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K a r l M a r x

CADERNOS DE PARIS
&
MANUSCRITOS
ECONÔMICO-FILOSÓFICOS
DE 1844
K a r l M a r x

CADERNOS DE PARIS
&
MANUSCRITOS
ECONÔMICO-FILOSÓFICOS
DE 1844

Traduções de José Paulo Netto e Maria Antónia Pacheco


Apresentação de José Paulo Netto
Revisão técnica de Sérgio Lessa

1ª edição

EXPRESSÃO POPULAR

São Paulo - 2015


Copyright © 2015, by Editora Expressão Popular

Tradução: José Paulo Netto e Maria Antónia Pacheco


Revisão técnica: Sérgio Lessa
Revisão: Miguel Makoto Cavalcanti Yoshida
Projeto gráfico, diagramação e capa: ZAP Design.
Impressão e acabamento: Cromosete

Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte desse livro pode ser utilizada
ou reproduzida sem a autorização da editora.

1ª edição: março de 2015

EDITORA EXPRESSÃO POPULAR


Rua Abolição, 201 – Bela Vista
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Tel: (11) 3522-7516 / 4063-4189 / 3105-9500
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SUMÁRIO

NOTA EDITORIAL......................................................................................... 7

MARX EM PARIS ............................................................................................ 9


José Paulo NetTo
Combatendo a “miséria alemã”: Marx deixa a Alemanha ........................... 13
Marx em Paris: a descoberta de um novo mundo........................................ 18
Os estudos iniciados no primeiro semestre de 1844 (I):
os Cadernos de Paris..................................................................................... 28
Os estudos iniciados no primeiro semestre de 1844 (II):
os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844................................................. 48
Os textos de 1844 e a emergência da
teoria social revolucionária.......................................................................... 96
Notas........................................................................................................... 107

CADERNOS DE PARIS (NOTAS DE LEITUR A DE 1844)


Nota do tradutor ......................................................................................... 181
1. A Economia Política, ciência do enriquecimento .................................... 185
2. Troca e divisão do trabalho..................................................................... 187
3. Valor e utilidade...................................................................................... 187
4. Renda da terra......................................................................................... 189
5. Propriedade e acumulação....................................................................... 190
6. Preço natural e preço corrente................................................................. 190
7. Propriedade e leis dos pobres.................................................................... 192
8. Superprodução e crise.............................................................................. 193
9. Renda bruta e renda líquida..................................................................... 194
10. Leis econômicas..................................................................................... 199
11. O dinheiro e Cristo................................................................................ 200
12. Economia Política e dinheiro................................................................ 202
13. Crédito e banco..................................................................................... 203
14. Comunidade e indivíduo....................................................................... 208
15. Propriedade privada e homem total....................................................... 209
16. Troca, valor e preço............................................................................... 211
17. O trabalho lucrativo............................................................................... 212
18. Divisão do trabalho e dinheiro.............................................................. 214
19. Produzir para ter.................................................................................... 215
20. Uma produção que não é social............................................................. 217
21. O roubo recíproco.................................................................................. 218
22. A produção humana.............................................................................. 221
23. Estado e renda fundiária........................................................................ 223
24. Homens e médias.................................................................................. 223
25. Os preços e a concorrência..................................................................... 223
26. Trabalho acumulado e miséria do trabalhador...................................... 224
27. Obstrução e equilíbrio do mercado........................................................ 225
28. Sofismas da Economia Política.............................................................. 226
29. Queda dos lucros................................................................................... 226
30. O dinheiro contra o homem.................................................................. 227
31. Necessidades e superprodução............................................................... 229

MANUSCRITOS ECONÔMICO-FILOSÓFICOS
DE 1844 KARL MARX

[PREFÁCIO (PROVENIENTE DO CADERNO III)]................................... 237


Prefácio........................................................................................................ 237

CADERNO I..................................................................................................... 243


[I] Salário.................................................................................................... 243
[I] Ganho do capital.................................................................................... 263
[I] Renda fundiária ..................................................................................... 283
[Trabalho alienado e propriedade privada].................................................. 302

[CADERNO II (PARTE CONSERVADA)]


[A RELAÇÃO DA PROPRIEDADE PRIVADA]............................................. 323

[CADERNO III] ............................................................................................... 335


[Propriedade privada e trabalho]................................................................. 335
[Complemento ao Caderno II, página XXXIX].......................................... 340
[Propriedade privada e comunismo]............................................................ 340
[Crítica da dialética e da filosofia de Hegel em geral].................................. 359
[Propriedade privada e necessidades]........................................................... 391
[Aditamentos].............................................................................................. 399
[Fragmentos]............................................................................................... 407
[Divisão do trabalho]................................................................................... 407
[Dinheiro]................................................................................................... 414

ANEXO I............................................................................................................ 423

ANEXO II.......................................................................................................... 425


Conspecto da Fenomenologia do espírito de Georg Wilhelm
Friedrich Hegel, capítulo “O saber absoluto”.............................................. 425
Notas........................................................................................................... 433

APÊNDICE
ALIENAÇÃO E ESTR ANHAMENTO.......................................................... 451
Sergio Lessa
NOTA EDITORIAL

A Expressão Popular reúne, neste volume, dois materiais de


suma importância no processo de elaboração da obra de Karl
Marx, redigidos em 1844: os Cadernos de Paris (notas de leitura
de 1844) e os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844.
Os Cadernos de Paris (notas de leitura de 1844) estavam até
agora inéditos em língua portuguesa; a tradução, de responsa-
bilidade do Professor José Paulo Netto, a partir da edição das
Oeuvres de Marx, preparada por M. Rubel (Paris: Gallimard/
La Pléiade, II, 1968), foi por ele parcialmente cotejada com o
original alemão (K. Marx-F. Engels. Werke. Ergänzungsband.
Schriften. Manuskripte. Briefe bis 1844. Berlin: Dietz Verlag,
1977).
Para os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, que dis-
põem de várias publicações em nossa língua, utilizamos a versão
lusitana de Maria Antónia Pacheco, lançada originalmente sob
a direção de José Barata-Moura e Francisco Melo pelas Edições
Avante! (Lisboa, 1994), feita a partir do texto da Mega² (K.
Marx/F. Engels, Gesamtausgabe. Berlin: Dietz Verlag, IML
beim ZK der KPSU e IML beum ZK der SED, I/2, 1982,
seguindo-se a seriação dos textos correspondente à 2ª versão
que aí é dada às p. 323-438). O texto dos Manuscritos... contou
C aNdoe tr an oe sd i dt eo rPi aa rl i s

com a revisão técnica do professor Sérgio Lessa (também autor


do apêndice aposto ao fim deste volume).
Neste volume, a numeração das páginas dos próprios
manuscritos vem em algarismos romanos entre [ ]; o sinal \
indica que Marx riscou a primeira palavra ou expressão e es-
creveu por cima as outras. Ao final dos Manuscritos..., o leitor
poderá encontrar a transcrição dos textos utilizados por Marx
e por ele traduzidos para alemão nas citações que deles faz,
cujas referências numeradas foram assinaladas no texto entre
colchetes [ ]. Por outro lado, ao pé de página traduzimos os
textos citados por Marx em línguas estrangeiras, assim como
notas relativas à tradução e de indicação de fontes utilizadas
por Marx, expressamente por ele referidas ou não.
Agradecemos às Edições Avante! a cessão dos direitos dos
Manuscritos... e aos professores José Paulo Netto e Sérgio Lessa
a sua generosa contribuição.
Estamos convencidos de que, com este lançamento, entre-
gamos aos estudiosos brasileiros uma edição confiável de textos
seminais de Karl Marx.

Editora Expressão Popular

8
MARX EM PARIS

José Paulo Netto

Para Nilo Batista e Vera

Em outubro ou novembro de 1843,1 os Marx – Karl Hein-


rich Marx (1818-1883) e Jenny Marx (née Johanna Berta Julia
Jenny von Westphalen, 1814-1881), que se haviam casado em
Kreuznach há pouco (19 de junho) – deixam a Alemanha em
direção à Paris, capital em que se fixariam até os primeiros dias
de fevereiro de 18452. À chegada, alojaram-se por cerca de uma
quinzena na residência de Arnold Ruge (à margem esquerda do
Sena, no 7e arrondissement: Rua Vanneau, nº 23) e depois se
transferiram para um prédio próximo (nº 38), onde já morava
um membro da clandestina Liga dos Justos, o alemão German
Maurer.3
Os cerca de 15 meses que Marx viveu em Paris foram – como
o reconhecem todos os estudiosos da sua vida e da sua obra –
extremamente importantes na definição dos rumos do seu itine-
rário teórico e político. Marcam o período, aliás tranquilo,4 em
que o jovem democrata radical relaciona-se com o movimento
M a r x e m P a r i s

operário, adere ao projeto comunista5 e inicia a sua fecunda e


fraternal colaboração com Friedrich Engels (1820-1895).6
Nas primeiras semanas que passa em Paris, Marx dedica-
-se seja à finalização dos preparativos para o lançamento dos
Deutsch-Französische Jahrbücher [Anais Franco-Alemães],7 cujo
único número (duplo) sai em fins de fevereiro/princípios de
março de 1844, seja aos textos que neles publicará – “Zur Ju-
denfrage” [“Para a questão judaica”], concluído em dezembro
de 1843, e “Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie. Einlen-
tung” [“Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel.
Introdução”], elaborado entre dezembro de 1843 e janeiro de
1844. Em simultâneo, estudando apaixonadamente, avança nas
leituras sobre Economia Política que inicia na capital francesa,8
fazendo uma série de apontamentos (que irão ocupá-lo ao longo
de todo o ano), precisamente o conjunto textual cujos excertos
formam, no presente volume, os Cadernos de Paris (notas de
leitura de 1844); e provavelmente entre março e agosto redige
o que seriam os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 (os
dois materiais serão referidos, de agora em diante, simplesmente
como Cadernos e Manuscritos). Os Cadernos obviamente não
estavam destinados à publicação: trata-se apenas de anotações
pessoais que registram o curso das suas pesquisas; já os Ma-
nuscritos constituem uma protoforma do projeto editorial que
Marx menciona no “prefácio” (cf., neste volume, as p. 237-241)
que fazia parte de um dos materiais autógrafos conservados.9
Este intenso trabalho teórico, realizado fundamentalmente
no primeiro semestre de 1844 em estreita relação com o seu
contato com o mundo proletário, resultará numa grande e
profunda inflexão no pensamento de Marx, com implicações
– de largo curso – que logo se farão notáveis: já no texto que
começa a elaborar no segundo semestre daquele ano, com a
colaboração de Engels10 – Die heilige Familie oder Kritik der

10
J o s é P a u l o N e t t o

Kritischen Kritik [A sagrada família...],11 a que se dedica entre


setembro e novembro – tal inflexão é visível. De fato, o primeiro
semestre de 1844 assinala a passagem do pensamento de Marx
a um novo estágio de desenvolvimento, passagem que se inicia e
se documenta nos dois conjuntos textuais reunidos no presente
volume e que nos revela um pensamento em trânsito da Filosofia
à crítica da Economia Política, no rumo da elaboração da teoria
social revolucionária.
Convém, desde logo, explicitar que entendo a obra de
Marx precisamente como a fundação da teoria social revolucio-
nária – não uma síntese enciclopédica de conhecimentos que
posteriormente constituirão os saberes autônomos e próprios
das Ciências Sociais configurados na academia europeia da
segunda metade do século XIX e, ainda hoje, desenvolvidas e
sofisticadas, hegemonizam universalmente o mundo acadêmi-
co. A concepção teórico-metodológica que Marx elaborou, ao
alcançar a plenitude na sua madurez, é radicalmente outra: a
teoria, produto do cérebro dos homens, constitui a reprodução,
no plano ideal, do movimento real do objeto de que se ocupa.12
O núcleo duro da obra que ele nos legou é a teoria que reproduz
idealmente o movimento real do capital no processo da gênese,
da consolidação, do desenvolvimento e das condições de crise
da sociedade embasada na dominância do modo de produção
capitalista, a sociedade burguesa. A verdade da teoria, assim pos-
ta, não depende apenas da sua coerência interna: a sua prova se
faz no seu confronto com a dinâmica profunda desta sociedade.
A teoria social revolucionária, fundada pela e na obra de
Marx, não se concluiu com ele – nem poderia sê-lo: na me-
dida em que deve reproduzir idealmente (como diz Marx na
“Introdução” aos Grundrisse, reproduzir “no cérebro”) o mo-
vimento real do modo de produção capitalista e da sociedade
nele assentada, é uma teoria igualmente em movimento (ou,

11
M a r x e m P a r i s

se se quiser, em desenvolvimento). E sua fundação, por Marx,


não emergiu da noite ao dia: resultou de um longo processo de
pesquisa e elaboração, amadurecendo no decurso de quase 15
anos – de 1844 (dos Manuscritos) a 1857-1858 (os Grundrisse).
Este processo tem seu ponto de arranque – evidentemente rela-
cionado à dinâmica intelectual de Marx desde o final da década
de 1830 – com os estudos e as vivências sociopolíticas que ele
tem a oportunidade de exercitar inicialmente em Paris, no pri-
meiro semestre de 1844. É neste processo que o jovem filósofo
define os rumos da sua evolução, de que resultará o método, o
objeto e o conteúdo da sua teoria. Processo que, desenvolvido
e consolidado entre 1845-1846, circunscreve a inflexão que se
iniciou na Paris de 1844 – no nível a partir do qual, de modo
nada linear, aquela teoria será elaborada.
Esta apresentação*1não tem outro objetivo que colaborar para
a clarificação deste momento do processo de constituição do
pensamento de Marx – tomando-o como o momento decisivo
*
Não se apoquente o eventual leitor desta apresentação com o seu rol de notas,
numerosas e algumas longas – desde logo, previno-o quanto às incontáveis citações:
já em 1923, Lukács dizia que “toda citação é, ao mesmo tempo, uma interpretação”
(G. Lukács, op. cit. infra na nota 63, p. 8).
De uma parte, faço minhas as palavras do mais importante filósofo marxista português
contemporâneo, J. Barata-Moura: “As abundantes [...] notas que passeiam [... por estas]
páginas não têm o propósito de aparentar erudição ou de exibir [...] profundidade
de estudos. Visam facilitadamente proporcionar a algum leitor à tarefa mais propenso a
possibilidade de verificação crítica de aquilo que vou dizendo” (José Barata-Moura, op.cit.
infra na nota 139, p. 8 [itálicos meus – JPN]). Demais disso, tais notas só pretendem:
1. sinalizar, mais uma vez, que, em relação a Marx e sua obra, incontáveis problemas
continuam em aberto, muitos conexos a questões extremamente complexas e, por
isso, a ampla, mas nada exaustiva, bibliografia referenciada (intencionalmente diversa
e plural); 2. oferecer elementos para a compreensão de que, na evolução teórica de
Marx, mesmo uma inflexão tão decisiva como a que ele experimentou em 1844-1846
não infirma a existência de uma unidade essencial em seu pensamento desde então.
E, doutra parte, parece-me ser de alguma valia, em especial pensando nas novas
gerações de pesquisadores e militantes políticos e sociais dispostos ao estudo,
compartilhar (ainda que pontual e parcialmente) uma documentação acumulada em
décadas de trato com a obra marxiana, remetendo inclusive a analistas hoje pouco

12
J o s é P a u l o N e t t o

da formação marxiana: momento fundacional da teoria social


revolucionária –, a fim de subsidiar e enriquecer a reflexão do
leitor que, enfrentando inegáveis dificuldades, tiver o prazer
(e a coragem...) de se aventurar ao conhecimento e ao desfrute
dessas páginas extraordinárias do jovem Karl Marx.13

Combatendo a “miséria alemã”: Marx deixa a Alemanha


A mudança de Marx para Paris, no outono de 1843, não
tem qualquer semelhança com um desterro, um exílio ou um
episódio acidental. Esta mudança para a capital francesa (de
fato, a sua segunda viagem para além das fronteiras de seu país14)
resultou da necessidade do então jovem filósofo, que completara
25 anos em maio daquele ano, de buscar melhores condições
para combater a “miséria alemã”.
A expressão “miséria alemã”15 – tão cara ao jovem Marx – de-
signa o descompasso entre a realidade econômica da Alemanha,
as suas limitadas e rígidas instituições sociais e a grandeza da
sua cultura (expressa na arte de Goethe e na filosofia de Hegel);
sinaliza a defasagem (o “atraso”) da vida alemã em relação à
ordem sociopolítica que, nas primeiras décadas do século XIX,
se consolidava na Inglaterra, Bélgica, França e dava seus passos
iniciais nos Estados Unidos da América. Ainda que as relações
econômicas capitalistas avançassem na Alemanha na primeira
metade do século XIX, tais avanços não rebatiam no plano
político-institucional; como observou um arguto estudioso, a
“situação da Alemanha antes de 1848 revela [...] um contraste
entre uma estrutura política cristalizada, um imobilismo oficial
e profundas transformações na economia e na sociedade”16 –
mesmo com a expansão de relações capitalistas, o país não

visitados e evocando fatos, registros e polêmicas sobre os quais o tempo presente já


estende o seu manto nada diáfano.

13
M a r x e m P a r i s

experimentava as transformações próprias da revolução bur-


guesa e não se erguia como um Estado nacional (moderno):
a Confederação Germânica, sob o comando da Prússia, era
então um conjunto de quase quatro dezenas de Estados, com
sistemas de representação política diversificados e restritivos,
ausência de laicização, burocracias de raiz feudal e submetida
à dominação da nobreza fundiária. Traço elementar da “misé-
ria alemã” constituía-o a inexistência da emancipação política
(cf. infra) pertinente à revolução burguesa, que conferia uma
dimensão trágica à dissincronia entre o florescimento cultural
da Alemanha (do “classicismo de Weimar” à “filosofia clássica
alemã”17) e as suas instituições sociopolíticas.
A geração intelectual a que Marx pertencia, nos anos 1840,
teve na “miséria alemã” o seu problema central, mas carecia
de suportes sociais (corolário do retardo alemão em termos
de industrialização/urbanização e da ausência de conquistas
democráticas, a emergente burguesia era débil e politicamente
vacilante e o proletariado incipiente) para travar de forma pro-
funda e consequente o combate contra ela; por isto, boa parte
dessa geração perdeu-se na especulação filosófica vazia. A tra-
jetória do jovem Marx (ainda que não só a dele) caracteriza-se,
entre outros indicadores, por um combate precoce à “miséria
alemã” acompanhado da busca de condições para efetivá-lo de
forma radical e eficiente – a mudança de Marx para a França
consistiu num passo neste sentido.
Marx concluíra, depois de frequentar as universidades de
Bonn e Berlim, a sua formação acadêmica em 1841 – com uma
dissertação sobre Demócrito e Epicuro, aprovada in absentia
na Universidade de Jena (15 de abril de 1841), que lhe conferiu
o título de doutor em Filosofia18 –, tendo em vista a carreira
universitária, para a qual tanto o estimulava Bruno Bauer; no
entanto, este interesse basicamente acadêmico não impediu

14
J o s é P a u l o N e t t o

que, no seu primeiro trabalho intelectual significativo, Marx


assumisse posições que incidiam mediatamente sobre a “miséria
alemã”.19 Porém, uma vez que o seu objetivo de ingressar na
carreira acadêmica viu-se inviabilizado pelas mudanças políticas
(de vincado cariz reacionário) então iniciadas com a ascensão de
Frederico Guilherme IV ao trono prussiano, o jovem filósofo,
sem alternativas profissionais, foi levado ao jornalismo: entre
1842 e 1843, tornou-se a liderança e a referência maior do
periódico Rheinische Zeitung für Politik, Handel und Gewerbe
[Gazeta Renana de Política, Negócios e Comércio – conhecido
abreviadamente como Gazeta Renana], editado em Colônia sob
o patrocínio da burguesia liberal renana.20
Esta experiência marcou-o profundamente: a intervenção
jornalística – que lhe descortinou o mundo da política e na qual
teve que se confrontar com problemas postos na imediaticidade
da vida social (a censura à imprensa, conflitos entre camponeses
e proprietários fundiários etc.) e com questões teóricas emer-
gentes na literatura social alemã (primeiros debates sobre ideias
socialistas etc.) – demonstrou-lhe que carecia de conhecimentos
históricos e políticos para compreender substantivamente a vida
social. E quando suas posições democráticas radicais, que im-
primiram ao jornal uma orientação oposicionista que ia muito
além do anêmico liberalismo da burguesia renana, colidiram
abertamente com esta última e com o poder de Frederico
Guilherme IV, ele preferiu, a fazer concessões a uma e a outro,
demitir-se da Gazeta Renana (em 18 de março de 1843; logo
depois, no dia 31, o jornal deixa de circular).21 Uma correta
avaliação dessa experiência jornalística indica que
o breve período em que Marx trabalhou na Gazeta Renana cons-
titui o momento mais alto do jornalismo democrático-burguês
alemão e, ao mesmo tempo, um importante ponto de inflexão
no desenvolvimento do próprio Marx: [...] ele abordou os proble-

15
M a r x e m P a r i s

mas como democrata radical, como jacobino, embora nele uma


consciente dialética revolucionária já houvesse tomado o lugar das
ideias do Contrato social.22

Demitindo-se da Gazeta Renana, Marx propôs-se um


programa de estudos que lhe permitisse qualificar-se, do pon-
to de vista teórico e histórico-político, precisamente para a
compreen­são em profundidade da vida social. Se se recusava a
tratar com ligeireza os problemas e as questões políticas e so-
ciais contemporâneas, a consequência necessária era preparar-se
intelectualmente para enfrentá-los com competência – e foi o
que fez:23 ocupou-se, nos meses imediatamente seguintes, de
intensas leituras que envolveram obras de Maquiavel, Rousseau,
Montesquieu, Hamilton e materiais sobre a Revolução Francesa
(Ludwig, Ranke, Wachsmuth). Já antes de mergulhar nesses
estudos, em face das pressões governamentais sobre a Gazeta
Renana, teve consciência de que não poderia encetá-los com êxi-
to se permanecesse limitado pelas condições políticas alemãs.24
Por isso, nos meses (maio-outubro) passados em Kreuznach
(onde, como se referiu, ele se casou e se recolheu ao “gabinete de
estudos”), amadureceu o projeto político-editorial que já vinha
elaborando com Arnold Ruge – e que deveria ser, igualmente,
uma alternativa profissional: a criação de um novo periódico.
E este projeto supunha, necessariamente, estar fora do alcance
do poder repressivo de Frederico Guilherme IV.
Por outra parte, as posições políticas de Marx desenvolviam-
-se em sintonia com a sua evolução filosófica, acelerada em
meados de 1843. Impactado, como boa parte da sua geração,
pela obra de Feuerbach – especialmente Das Wesen des Chris-
tentums [A essência do cristianismo, 1841], mas também pelas
Vorläufige Thesen Zur Reform Der Philosophie [Teses provisórias
para a reforma da filosofia, 1843]25 –, Marx orienta-se para uma
crítica do idealismo hegeliano, que tomará uma primeira forma

16
J o s é P a u l o N e t t o

aberta no chamado Manuscrito de Kreuznach (em que estuda a


Filosofia do direito de Hegel), crítica que se enlaça à explicitação
do seu posicionamento democrático-radical.26
Paralelamente, o círculo intelectual a que Marx se ligara ao
tempo de seus estudos em Berlim (1838-1841), expressivo da
chamada “esquerda hegeliana” e composto pelos “jovens hege-
lianos” (dos quais Bruno Bauer era a liderança mais notória),
começa a diferenciar-se expressamente. Como fez notar A. Cor-
nu, é em 1842 que a “esquerda hegeliana” se divide: de um lado,
aqueles que vão constituir o cenáculo dos “Livres de Berlim”
(os irmãos Bauer e Karl Schmidt – este conhecido como Max
Stirner), derivando para uma crítica abstrata e pretensamente
apolítica das condições da Alemanha; de outro, Moses Hess,
Arnold Ruge e Marx que, embora com concepções distintas,
dispõem-se a superar politicamente a “miséria alemã”. Aliás,
um dos trabalhos, acima citado, que Marx inicia nos meses
que passa em Kreuznach e conclui em dezembro, já em Paris
– “Para a questão judaica”27 –, assinala o seu distanciamento
de Bauer, distanciamento que, na segunda metade de 1844, se
consumaria numa inteira ruptura.
É este Marx orientado para o materialismo e com posições
democrático-radicais que se associa a Ruge para um empreen­
dimento político-editorial cujo projeto ocupa-os durante o
segundo semestre de 1843 e as primeiras semanas de 1844: a
criação de um novo periódico.28
Desde o início da gestação do projeto – e, para isto, a expe-
riência editorial de ambos (a de Marx, na Gazeta Renana, e a de
Ruge, mais ampla, coroada nos Anais alemães,29 que também
desaparecem, em 3 de janeiro de 1843, por pressão de Frede-
rico Guilherme IV) foi decisiva –, ambos tinham claro que a
publicação de um periódico de posições e propostas críticas
era inviável na Alemanha. Marx e Ruge apostavam igualmente

17
M a r x e m P a r i s

neste projeto: tratava-se de criar uma revista que abrisse a interlo-


cução entre o pensamento social francês30 e os segmentos críticos
da intelectualidade alemã (donde, coerentemente, a titulação
posteriormente escolhida para ela: Anais Franco-Alemães), de
forma a contribuir para a ultrapassagem da “miséria alemã”;
editado no exterior, o periódico não estaria sujeito à censura
prussiana e poderia chegar ao público-alvo alemão (o que não
aconteceu31). Este projeto comum, todavia, deixava na sombra
as profundas diferenças entre Marx e Ruge: o democratismo
radical de Marx já excluía quaisquer ilusões liberais, enquanto
o liberalismo democrático era o horizonte ídeo-político de
Ruge;32 tais diferenças, logo agravadas pela adesão de Marx a
uma perspectiva revolucionária, pronto – como se constatará
– haveriam de se explicitar e derivar na ruptura da associação
entre ambos, selando o fim da curta vida da publicação em que
depositaram tantas esperanças.
Tinham sido aventadas (com a ajuda de J. Fröebel, livreiro-
-editor que se encarregaria da produção do periódico) alterna-
tivas acerca do local onde sediar a revista. Depois de pensar
em Estrasburgo e Bruxelas, Marx e Ruge decidiram-se por
Paris – e assim se transferem para a capital francesa, na qual
os Anais Franco-Alemães veriam a luz num único número (du-
plo), numa tiragem de mil exemplares, que saiu em fevereiro
ou março de 1844.33

Marx em Paris: a descoberta de um novo mundo


A França que recebe Marx no outono de 1843 não conhece,
ainda, o padrão de crescimento urbano-industrial que a Ingla-
terra já alcançara 34 – experimentando a Revolução Industrial
poucas décadas depois da ilha, todavia é um país predominan-
temente agrário, com as atividades industriais desenvolvendo-se
sobretudo em oficinas artesanais e estabelecimentos manufatu-

18
J o s é P a u l o N e t t o

reiros: se, no campo, vegetam o pequeno e o médio proprietário,


dos 6 milhões de trabalhadores industriais (em uma população
total de cerca de 35 milhões de habitantes) pouco mais de 1,3
milhões labutam na grande indústria.35
Mas, desde os anos 1820, na França o capitalismo avançara
com rapidez, transformando a vida econômica (por exemplo,
“de 1830 a 1840, mais que quadruplicou [...] o número de má-
quinas a vapor. De 1828 a 1847, mais que duplicou a produção
de ferro fundido e triplicou a extração de carvão”36). Tal avanço
se acentuara no marco da “monarquia de julho”, emergente
da revolução de julho de 1830, protagonizada pela pequena
burguesia e pelos trabalhadores, que destronou Carlos X, da
“Casa de Bourbon”, substituindo-o por Luís Felipe, o último rei
francês, da “Casa de Orléans” – evento que acabou por conferir
poder, graças às manobras da grande burguesia, aos segmentos
proprietários especialmente ligados às finanças, poder que só a
revolução de 1848 derrubaria.37 Até a república proclamada em
1848, a pequena burguesia radicalizada e a massa trabalhadora
urbana, sem falar no campesinato, continuaram excluídas do
sistema político institucional (entre outras razões, pela vigência
do voto censitário).
Em consequência das altas taxas de exploração do trabalho,
verificou-se nesses anos uma forte degradação das condições de
vida da massa de artesãos e operários, donde uma generalizada
atmosfera de insatisfação e explosões de insurgências localiza-
das, sinais explícitos de um novo tipo de lutas de classes (de
que uma primeira manifestação foi a revolta dos operários da
seda – os canuts – de Lyon, em 183138). Na primeira metade dos
anos 1840, quando a memória das lutas do processo de 1789
ainda estava viva, artesãos e operários franceses dispunham de
considerável experiência política e constituíam uma significativa
audiência para as utópicas projeções do socialismo e as propostas

19
M a r x e m P a r i s

do comunismo – ademais de, à falta de liberdade para organizar


sindicatos e dada a interdição do direito à greve,39 participarem
de inúmeras sociedades secretas, das quais a mais expressiva do
movimento operário era a Sociedade das estações (fundada em
1837 por Blanqui e Barbès). Inicialmente, tais sociedades – que
surgem principalmente na década de 183040 – envolviam tanto
pequeno-burgueses radicalizados quanto operários revolucioná-
rios; mas, gradualmente, operou-se uma diferenciação entre elas
e também entre seus referenciais ideológicos, diferenciação já
perceptível quando da chegada de Marx a Paris: demarcam-se
duas vertentes – os doutrinários socialistas (L. Blanc, V. Con-
sidérant, P.-J. Proudhon) e os doutrinários comunistas (Cabet,
Dézamy, Blanqui). Observa Cornu:
Enquanto os primeiros preconizam somente reformas, como a
organização do trabalho, que consideram capazes de resolver
por si mesmas a questão social no marco da sociedade burguesa,
os outros têm como objetivo a destruição da própria sociedade
burguesa através da abolição da propriedade e da instauração do
comunismo.41

Paris, nesses anos 1840, é, de um lado, a caixa de ressonância


das lutas sociais que pipocam por todo o país. Sua população,
com fortes tradições associativas, cresceu muito na primeira
metade do século XIX – passou de cerca de 600 mil habitan-
tes, em 1800, para mais de um milhão em 1850 (em 1856,
um censo contou na cidade 1.130.488 pessoas) – e as notícias
e informações, bem como os boatos, circulavam velozmente,
graças à existência de incontáveis jornais, panfletos e pasquins
de todos os tipos. Mas a capital é, de outro lado, irradiadora de
novas ideias, e não só para o conjunto da França, mas também
para a Europa, uma vez que a literatura político-social francesa
influía à distância de milhares de quilômetros, e Paris registrava
a presença de imenso contingente de imigrantes (nela, a maior

20
J o s é P a u l o N e t t o

“colônia” era de alemães42), envolvendo dezenas de milhares de


europeus continentais, de artesãos e trabalhadores em busca de
emprego a perseguidos políticos das mais diversas origens. É
nesta Paris, que então dava mostras mais que suficientes de que
seria “a capital do século XIX”, tal como – levando em conta as
transformações urbanas operadas logo depois por Haussmann,
administrador da capital sob Napoleão III43 –, num texto de
1935, Benjamin a designará44; é nesta Paris que Marx, obvia-
mente impactado pelo seu caráter de metrópole45, descobre um
novo mundo: o mundo dos trabalhadores.
Já num dos textos que publica nos Anais Franco-Alemães –
precisamente a “Contribuição à crítica da filosofia do direito de
Hegel. Introdução” – está explicitamente marcada a presença do
proletariado. O ensaio, redigido em Paris (como vimos, entre
dezembro de 1843 e janeiro de 1844), faz deslizar os impor-
tantes e profundos esboços críticos contidos no Manuscrito de
Kreuznach para um novo plano, o de uma expressa reivindica-
ção revolucionária: a emancipação humana. Marx tematizara a
emancipação humana no outro ensaio também publicado nos
Anais Franco-Alemães (“Para a questão judaica”); mas agora
entende que ela só é possível mediante a ação de uma
esfera que não pode emancipar-se a si mesma nem se emancipar
de todas as outras esferas da sociedade sem emancipá-las a todas
– o que é, em suma, a perda total da humanidade, portanto, só
pode redimir-se a si mesma por uma redenção total do homem.
[...] A filosofia é a cabeça desta emancipação e o proletariado é o
seu coração. A filosofia não pode realizar-se sem a suprassunção
do proletariado, o proletariado não pode suprassumir-se sem a
realização da filosofia.46

Mesmo que neste ensaio se antecipe o que pouco mais de


um ano depois será posto como o “papel histórico-universal”
do proletariado, 47 esta referência (também uma convocação)

21
M a r x e m P a r i s

à classe operária é ainda uma petição de princípio – o que


não diminui o seu significado, argutamente apreendido por
E. Bloch­; 48 tão somente quando a relação de Marx com o
proletariado tornar-se uma relação prático-política esta petição
começará a desenvolver-se no sentido de constituir o arcabouço
ídeo-político adequado e qualificado para sustentar a elabora-
ção teórico-metodológica de que resultarão, posteriormente, as
grandes descobertas marxianas.
Um tal desenvolvimento, para alcançar a sua plenitude,
demandará quase 15 anos (e ficará explícito no tour de force
intelectual dos anos 1857-1858, registrado nos Grundrisse...49),
no curso dos quais – através da sua vinculação orgânica com
a classe operária (expressa inequivocamente na Liga dos Co-
munistas e na sua participação no processo revolucionário de
184850) – Marx tornará a perspectiva revolucionária do prole-
tariado o “ponto arquimédico” da sua teoria social. Esta, no
entanto, não manterá com o proletariado uma simples conexão
política direta: realmente, entre a teoria social marxiana e o
proletariado “inserem-se mediações lógico-históricas”,51 que
implicam muito mais que uma relação prático-empírica com
a classe: implicam – entre outros elementos teóricos estrutu-
rais – a pesquisa rigorosa, histórico-genética e sistemática, do
lugar e da função da classe na estrutura produtiva e social da
sociedade capitalista. Serão necessários cerca de três lustros de
investigações para que Marx determine, com inteira precisão,
tais lugar e função.
Mas o passo inicial e decisivo para esta pesquisa, a que de-
dicou o resto da sua vida, deu-o Marx em Paris, no primeiro
semestre de 1844: foi então que descobriu o mundo dos trabalha-
dores. Nestes meses, ele frequentou assiduamente as reuniões de
artesãos e operários parisienses; um estudioso anotou:

22
J o s é P a u l o N e t t o

A agitação política que conduzira várias vezes à luta armada e à


tentativa da Sociedade das estações de tomar a prefeitura em 12
de maio de 1839 estavam vivas em todas as memórias. Operários
alemães tinham participado dela e Marx, que desde a sua che-
gada a Paris frequentou as reuniões dos emigrados na Barrière
du Trône,52 sem dúvida os encontrou. E, a partir de março de
1844, assistirá aos banquetes democráticos de que tomavam parte
Pierre Leroux, Louis Blanc e Félix Pyat. Também participará
dos círculos operários que discutiam as ideias de Cabet ou de
Fourier. Paris lhe ofereceu o que em vão procurara na Alema-
nha: o contato vivo com um proletariado que pouco a pouco
toma consciência dos seus interesses de classe e se organiza num
movimento revolucionário.53

Até à data conhecedor apenas da sociabilidade de ambientes


intelectuais e universitários, Marx vislumbra então um novo
horizonte humano: o horizonte instaurado pela solidariedade de
classe dos trabalhadores – e se trata de uma solidariedade que
desconhece provincianismos e limitações nacionais, antes dina-
mizada por um forte sentimento internacionalista.54 O impacto
que esta outra sociabilidade lhe causa é enorme – mostra-o um
trecho de sua carta a Feuerbach, datada de 11 de agosto de 1844:
“O senhor teria que assistir a uma reunião de operários franceses
para conhecer a paixão juvenil e a nobreza de caráter de que dão
provas estes homens exauridos pelo trabalho” – e acrescenta,
logo depois de se referir também aos trabalhadores ingleses e
aos alemães emigrados: “De qualquer maneira, a história vai fa-
zendo desses ‘bárbaros’ da nossa sociedade civilizada o elemento
prático que emancipará a humanidade” (in K. Marx-F. Engels,
MEW, ed. cit., vol. 27, p. 426). Tal impacto logo se expressa
na sua elaboração teórica,55 exatamente porque esta se processa
em simultâneo, e vinculadamente, à inédita sociabilidade que
se apresenta diante dele – sociabilidade que Engels (e este, à
diferença de Marx, bem conhecia a sociabilidade dos burgueses
alemães e ingleses) vivenciara intensamente pouco antes na

23
M a r x e m P a r i s

sua profunda relação com o proletariado da Inglaterra e que,


acentuando as suas convicções comunistas, rebateu também
simultaneamente na sua elaboração.56
No caso de Marx, a expressão dessa sociabilidade na elabo-
ração teórica se deve, antes de mais, porque a estância em Paris
– especialmente este primeiro semestre de 1844 – permite a ele
começar a estabelecer com o proletariado a mencionada relação
prático-política coincidentemente com a abertura dos seus estu-
dos econonômico-políticos, para os quais a influência do ensaio
de Engels publicado nos Anais Franco-Alemães parece ter sido
decisiva.57 Aquela relação e este estudo confluem na sua opção
revolucionária: no curso deste semestre, o democrata radical
tornou-se comunista. Opção que nada tem a ver com qualquer
espécie de repentina “conversão”: resultou, de uma parte, do
movimento imanente do seu pensamento, já perceptível em
“Para a questão judaica”, e, de outra, da sua inserção nos deba-
tes de que participa nos meios operários e entre os emigrados
alemães – ao tempo em que se relaciona com revolucionários
franceses (Proudhon) e estrangeiros (Bakunin) e intelectuais
alemães no exílio (H. Heine).58
Registro documental de um dos debates em que Marx se
envolve neste período é a sua dura crítica a Ruge, publicada em
dois números (63 e 64, de 7 e 10 de agosto de 1844) do Vorwärts!
[Avante!] sob o título “Kritische Randglossem zu dem Artikel
‘Der König von Preussen und die Sozialreform. Von einem
Preussen’” [“Glosas críticas à margem do artigo O rei da Prússia
e a reforma social, de um prussiano”], replicando ao artigo de
Ruge “Der König von Preussen und die Sozialreform” [“O rei
da Prússia e a reforma social”], firmado sob o pseudônimo de
“um prussiano” (pseudônimo utilizado com evidentes propósi-
tos confusionistas, uma vez que Ruge era natural da Saxônia),
e veiculado no mesmo jornal em julho.59 Já ficou anotado que,

24
J o s é P a u l o N e t t o

logo depois da edição do primeiro (e único) número dos Anais


Franco-Alemães, rompeu-se a relação entre Marx e Ruge em
maio de 1844; para além de pretextos fúteis (por exemplo, as
censuras de Ruge ao comportamento pessoal de Herwegh, a
quem Marx defendeu), a ruptura deveu-se à evolução de Marx
no sentido do comunismo, comunismo que Ruge recusava li-
minarmente60 – e as “Glosas...” revelam de forma clara e pública
esta ruptura. Anotemos brevemente este episódio.
O Vorwärts!, periódico alemão (voltado para os emigrantes
e, virtualmente, a leitores no interior da Alemanha) editado
em Paris de janeiro a dezembro de 1844, foi criado por H.
Börnstein e dirigido inicialmente por A. von Bornstedt, suspeito
personagem conservador que sai do seu comando em março,
substituído por F. C. Bernays. Jornalista talentoso e opositor
de Frederico Guilherme IV, Bernays (que colaborara com os
Anais Franco-Alemães) deu um tom radical ao Vorwärts!, reu-
nindo em torno dele figuras como Heine, Bakunin, Herwegh
e G. Weerth. Este tom acentuou-se na sequência da rebelião
dos tecelões da Silésia,61 duramente reprimida pelo regime de
Frederico Guilherme IV – acontecimento impactante sobre o
qual Heine logo compôs o famoso poema “Os tecelões silesia-
nos” (publicado originalmente no Vorwärts!),62 acontecimento
que, de acordo com Lukács, constituindo “a primeira ação
revolucionária do proletariado alemão”, deve tomar-se como
um relevante dado histórico para a evolução do pensamento de
Marx, com importantes consequências teóricas.63
Muito esquematicamente, pode-se dizer que, no seu ar-
tigo, Ruge considerava o levante dos tecelões silesianos um
acontecimento de significado puramente local, motivado pelo
pauperismo imperante na região; e interpretava as medidas ime-
diatas de Frederico Guilherme IV na sequência da repressão aos
trabalhadores (medidas consistentes no recurso à benemerência

25
M a r x e m P a r i s

e à filantropia) como inócuas; avaliava que, devido ao “atraso”


da Alemanha, não havia condições ali para uma revolução e
que a solução do problema alemão – dada a impossibilidade
revolucionária – consistia na educação e numa reorganização
política.
Marx, na sua crítica, reduz a pó as considerações de Ruge.
Argumenta – também em resumo muito esquemático – que
o pauperismo não é algo localizado, restrito à “atrasada” Ale-
manha, mas é fenômeno generalizado, corrente na “avançada”
Inglaterra e na França, e que não pode ser compreendido a
partir de um ponto de vista filosófico e/ou político, mas so-
mente do ponto de vista social.64 E ainda: que não pode ser
solucionado se não se conhecem as suas causas (Marx recorre
a exemplos de políticos e economistas ingleses), em especial
através de providências tomadas pelo Estado (ele remete às
workhouses da Inglaterra e às medidas da Convenção francesa
e de Napoleão); com efeito, segundo Marx, quando o Estado
burguês se propõe a enfrentar o pauperismo, não faz mais que
socorrer-se de paliativos administrativos e/ou da beneficência
– aí está o limite do trato político que o Estado burguês pode dar
ao pauperismo: seria preciso ir além desse trato político para
conhecer as causas do pauperismo, residentes na “vida civil”.
Em suma, seria preciso ter em conta a “propriedade privada”,
que a “escravidão da sociedade civil é o fundamento natural em
que se apoia o Estado moderno” e que “a existência do Estado
e a existência da escravidão são inseparáveis” (K. Marx, Glosas
críticas marginais..., ed. cit. da Expressão Popular, p. 60); por
isto, o Marx que replica a Ruge credita o pauperismo ao que
então já designa por sistema da propriedade privada.65
Tão decisiva quanto esta última determinação é a ava-
liação de Marx acerca do significado da revolta dos tecelões
silesianos: se, para Ruge, tratava-se de um limitado evento de

26
J o s é P a u l o N e t t o

restrita incidência regional, para Marx ela era o sintoma e o


prenúncio de um processo muito mais profundo e amplo e
atestava a vocação dos trabalhadores alemães para uma revo-
lução social. Desnudando a confusa teoria de Ruge acerca de
uma “revolução política” com uma “alma social”, Marx afirma:
“Toda revolução dissolve a velha sociedade; neste sentido, é
social. Toda revolução derruba o velho poder; neste sentido,
é política” (K. Marx, Glosas críticas marginais..., ed. cit. da
Expressão Popular, p. 77); e mais: demonstra a limitação
inerente a uma revolução que se requer (como era a da visão
de Ruge) puramente política: se “uma revolução social se situa
do ponto de vista da totalidade porque [...] é um protesto do
homem contra a vida desumanizada”, se ela busca “a verda-
deira comunidade do homem”, que “é a essência humana”,
“a alma política de uma revolução”, diferentemente, tem o
ponto de vista “do Estado, de uma totalidade abstrata” e, por
isto, organiza “um círculo dirigente na sociedade às custas da
sociedade” (Idem, ibidem, p. 76-77); assim, “por mais parcial
que seja uma revolta industrial, ela encerra em si uma alma
universal; e por mais universal que seja a revolta política, ela
esconde, sob as formas mais colossais, um espírito estreito”
(Idem, ibidem, p. 76). Para o Marx que replica a Ruge, “ne-
nhuma das revoltas dos operários franceses e ingleses teve um
caráter tão teórico e consciente como a revolta dos tecelões
silesianos”66 e “somente no socialismo pode um povo filosófico”
[como aquele cujo espírito se encarna em trabalhadores como
os tecelões revoltosos] “encontrar a sua práxis correspondente
e, portanto, somente no proletariado o elemento ativo da sua
libertação” (Idem, ibidem, p. 68-70).
Para dizê-lo brevemente: o Marx que, ao fim do primeiro
semestre de 1844 (mais precisamente: em 31 de julho de 1844,
quando conclui a redação das “Glosas...”), publicita a sua rup-

27
M a r x e m P a r i s

tura com o “prussiano” Ruge, já fez a sua opção comunista e


não tem dúvidas de que o sujeito da revolução é o proletariado.

Os estudos iniciados no primeiro semestre de 1844 (I): os


Cadernos de Paris
Opção comunista e identificação do proletariado como su-
jeito revolucionário – eis o ponto a que Marx, no tocante a seu
desenvolvimento ídeo-político, chegou ao fim do seu primeiro
semestre em Paris. Retomemos, agora, um pouco da evolução
anterior de Marx para indicar o processo teórico de que os
textos enfeixados no presente volume resultam e são marcos
constitutivos, assinaladores da complexa dialética que determina
a inflexão que o seu desenvolvimento intelectual sofre em 1844.
Já mencionei que, após deixar a Gazeta Renana, Marx
recolheu-se por alguns meses ao seu “gabinete de estudos”
em Kreuznach:67 o problema central que polariza então o seu
pensamento é compreender a natureza do Estado moderno
(burguês) e, para enfrentá-lo, ele primeiramente dedicou-se a
uma análise, que não concluiu, da relação Estado-sociedade
civil em Hegel, operada sob direta influência de Feuerbach –
refiro-me ao Manuscrito de 1843.
Dentre os traços mais importantes dessa análise, dois
devem ser destacados: 1º) Marx assume, no plano filosófico,
uma perspectiva materialista;68 2º) Marx avança a ideia de que
a compreensão do Estado supõe a compreensão da sociedade
civil69. Em meados de 1843, porém, ele não tem condições de
explorar, de modo fundado, esta ideia – essencial para não só a
crítica da concepção de Hegel sobre a relação Estado-sociedade
(civil-burguesa), mas ainda para o tratamento (materialista e his-
tórico) do Estado (burguês); somente com as chaves heurísticas
proporcionadas pela crítica da Economia Política ele poderá,
subsequentemente, descobrir a natureza do Estado a partir da

28
J o s é P a u l o N e t t o

“anatomia da sociedade civil”; também por isto, o Manuscrito


de 1843 é um texto inconcluso.70
Ora, é igualmente para solucionar os impasses que se lhe
apresentam na crítica a Hegel que, nos mesmos meses passados
em Kreuznach, Marx se volta para o estudo intensivo (já men-
cionado mais acima) de clássicos da teoria e da filosofia política,
com um cuidado especial para com a história da Revolução
Francesa. A atenção dirigida a esta será acentuada em Paris,
quando, inclusive, pensará em escrever (projeto irrealizado) uma
história da Convenção – se, ainda na Alemanha, entre julho e
agosto de 1843, leu as memórias de Louvet e de Mme. Roland
e materiais de Montgaillard, no primeiro semestre de 1844, na
capital francesa, examinou atas dos debates da Convenção, as
memórias de Levasseur de la Sarthe, discursos de Robespierre
e Saint-Just e textos de Babeuf, além de compulsar obras de
historiadores (Thierry, Mignet, Thiers e Guizot).
Todavia em Kreuznach, iniciando a redação de um dos
ensaios que publicará nos Anais Franco-Alemães – precisamente
“Para a questão judaica” –, a reflexão de Marx dá passos adiante
(inclusive com a nítida consolidação da sua perspectiva mate-
rialista) no sentido da análise que se esboça no Manuscrito de
1843. O ponto de partida é a questão da religião e sua relação
com o Estado. Na sua perspectiva materialista, Marx desloca
o problema do terreno em que Bauer o situou – o da religião,
tratando a “questão judaica” como uma questão religiosa – e
o propõe no plano sociopolítico.71 Por isto, sua reflexão incide
sobre a relação Estado-sociedade civil. De uma parte, ele pre-
cisa melhor o desdobramento fático da ordem social moderna
(burguesa): o Estado, como expressão alienada dos interesses
gerais (da vida genérica dos homens), e a sociedade civil, espaço
real dos particularismos (reino da vida empírica e privada) (K.
Marx, Para a questão judaica, ed. cit., p. 50-51); de outra, na

29
M a r x e m P a r i s

determinação distintiva entre a emancipação política e a eman-


cipação humana (Idem, ibidem, esp. p. 52-53, 68-69 e 71), a
crítica marxiana aponta que esta última exige a “emancipação
relativamente ao tráfico e ao dinheiro”, implicando “uma orga-
nização da sociedade que suprim[a] os pressupostos do tráfico”
(Idem, ibidem, p. 75), posto que o dinheiro e a propriedade
privada alienam o homem do seu trabalho e da sua existência
(Idem, ibidem, p. 78). Entretanto, Marx ainda não sugere como
alcançar a emancipação humana nem, menos ainda, o sujeito
social que pode viabilizá-la.
No outro ensaio publicado nos Anais Franco-Alemães –
“Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel. Intro-
dução” –, Marx avança notavelmente.72 A crítica da religião que
nele expõe demonstra que o materialismo marxiano começa a
transcender os limites do materialismo de Feuerbach;73 Marx
mostra que o Estado e a sociedade têm, na religião, uma expres-
são alienada e invertida74 e, por isto, “a luta contra a religião é,
indiretamente, a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual
é a religião” (K. Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel, ed.
cit., p. 145). É assim que se passa à necessidade da crítica social
à religião, que implica a crítica ao próprio mundo invertido,
isto é, à sociedade burguesa, que se estrutura construindo a
emancipação política. Mas, nas condições especificamente ale-
mãs, que Marx considera na apreciação da teoria hegeliana da
relação Estado-sociedade civil, uma revolução apenas política na
Alemanha é impossível (Idem, ibidem, p. 154-155); aí, por isso,
a “possibilidade positiva de emancipação” é função da revolução
protagonizada pelo proletariado (Idem, ibidem, p. 156).
Marx, com estas reflexões, já se coloca, obviamente, para
muito além dos limites do radicalismo democrático de fundo
jacobino: a dinâmica interna do seu pensamento leva-o à fron-
teira do comunismo, que será franqueada no primeiro semestre

30
J o s é P a u l o N e t t o

de 1844. Os seus estudos de Economia Política e a sua relação


prático-política com os trabalhadores – ambos emergentes na-
queles meses, em Paris – articulam-se para conduzi-lo à opção
comunista.
Em parágrafos anteriores, sumariei rapidamente o impacto
causado em Marx pelo contato com o movimento operário,
assinalando a sua simultaneidade com o início dos estudos
referidos. Marx lançou-se a eles com o vigor e a paixão que
caracterizaria toda a sua existência como pesquisador 75 – e a
documentação que temos dos estudos deste primeiro semestre
parisiense já revela o estilo de trabalho intelectual que Marx
aperfeiçoaria e exercitaria até o final de sua vida: uma relação
ativa com os textos que examina, extratando-os e perquirindo
a sua estrutura lógica, criticando-os progressivamente à luz da
experiência sócio-histórica (mas aqui estamos ainda na consti-
tuição desse estilo de trabalho).76
Registrando o começo dos seus estudos econômico-políticos
sistemáticos, os Cadernos são constituídos por nove cadernos,
com centenas de apontamentos de leituras realizadas entre janei-
ro de 1844 e janeiro de 1845; desses cadernos, cinco relacionam-
-se diretamente com a leitura de economistas; dentre estes, em
três são raras as reflexões do próprio Marx; é especialmente a
partir do quarto caderno que Marx comenta os extratos que
faz dos economistas – e o material reunido neste volume que o
leitor tem em mãos reúne exatamente tais comentários.77
É ponto pacífico que os Cadernos foram redigidos parale-
lamente aos Manuscritos, mas não há dados que nos permitam
estabelecer com precisão a cronologia de sua redação.78 Ainda
que sua estrutura e forma sejam diversas (com os segundos apre-
sentando uma elaboração teórica mais desenvolvida, delineando
mesmo o projeto de um livro), a leitura de uns mostra a estreita
vinculação com os outros, como se verá nas páginas seguintes.

31
M a r x e m P a r i s

Por agora, tematizarei tão somente os Cadernos, considerando


de início a ordem dos comentários marxianos (cf. a numeração
dos comentários na nota do tradutor, infra, p. 181-182), mas
já remetendo, inclusive em minhas notas, a passagens dos Ma-
nuscritos que lhes estão claramente conectadas.
Os Cadernos são, repita-se, o documento dos primeiros
contatos de Marx com a Economia Política – disciplina emer-
gente a partir do século XVII e que, especialmente no curso do
século XVIII, ganhou componentes de cientificidade quando
pensadores ilustrados, em boa parte vinculados à burguesia
revolucionária, contribuíram para a sua consolidação.79 Trata-se
mesmo do início da relação de Marx com aquela que Lukács
chamou de a “maior e mais típica ciência nova da sociedade
burguesa”80 – o que explica o fato, por exemplo, de Marx, nos
Cadernos, não discriminar, entre os economistas políticos, os
“clássicos” dos “vulgares”;81 com efeito, no primeiro semestre de
1844, o Marx que começa a se apropriar do acervo da Economia
Política, ainda que o faça com lampejos geniais, quase nada sabia
dela82 e as suas operações críticas tomam a Economia Política
de um ponto de vista inequivocamente filosófico.
Na primeira nota (cf., infra, a p. 186), Marx cuida da con-
ceituação – apresentada por Say, economista que mais tarde
caracterizaria como “vulgar”83 – da propriedade privada. Aparece
nesta nota, sem sombra de dúvida, a decisiva influência do ensaio
de Engels (o “Esboço...”) publicado nos Anais Franco-Alemães:
é dele, resumido numa nota encontrada junto aos Cadernos (cf.,
infra, as p. 185-187), que Marx não só retira a determinação
da Economia Política como “ciência do enriquecimento” mas,
igualmente, várias das implicações ali apontadas (entre as quais a
questão do valor, a que retornaremos). Notável é o fato de, desde
o primeiro momento de seus estudos econômicos, Marx colocar
em destaque a questão da propriedade privada;84 e a centralidade

32
J o s é P a u l o N e t t o

da propriedade também atravessa os Manuscritos: cf., p. ex., no


“Manuscrito I”, a relação entre a propriedade privada e o “ganho
do capital”, infra, a p. 263 e ss., especialmente, a relação entre
“trabalho alienado e propriedade privada”, infra, a p. 302 e ss.,
onde Marx retoma praticamente aquela primeira nota; mas ainda
na parte conservada do “Manuscrito II”, ele volta à relação entre
a propriedade privada e o capital (cf., infra, a p. 323 e ss.). Tal
centralidade corta todo o “Manuscrito III” (cf., infra, a p. 335 e
ss.), em que se encontram alguns dos mais criativos desenvolvi-
mentos da reflexão marxiana de 1844.
A segunda nota (cf. infra, p. 187) refere-se a um passo de
Smith (lido então na tradução francesa da Riqueza das nações,
da lavra de G. Garnier85) – trata-se da relação entre troca e di-
visão do trabalho, que Marx retomará mais adiante (nas notas
referidas a James Mill). Nos Manuscritos, Marx vai muito além
do registro da “obscuridade” e do caráter “contraditório” do
trato oferecido pelos economistas a esta relação, reproduzindo
passagens de Smith (no fragmento “Divisão do trabalho” do
“Manuscrito III”; cf., infra, a p. 407 e ss.).
As sete notas seguintes (notas 3 a 9), ainda que tangen-
ciando ideias de outros economistas, cuidam basicamente de
teses ricardianas – Ricardo é, aqui, o interlocutor a que Marx
se remete (lido então na tradução francesa de F. S. Constancio
dos Princípios de Economia Política e tributação)86 e fica claro
que ele recusa a teoria do valor enunciada por Ricardo (mas a
evolução dos seus estudos vai levá-lo, já em 1847, na Miséria
da filosofia, a assumir a teoria do valor-trabalho87). Também
aqui se percebe o influxo do ensaio de Engels publicado nos
Anais Franco-Alemães: em seu texto, o jovem Engels considera
o princípio do valor uma abstração justificadora da ordem as-
sentada na propriedade privada, situando a concorrência como
o princípio que direciona efetivamente as relações econômicas

33
M a r x e m P a r i s

reais – e Marx o acompanha: “Os custos de produção são eles


mesmos determinados pela concorrência e não pela produção”.88
Os economistas clássicos voltam a sua atenção para a pro-
dução e abstraem a concorrência. O Marx de 1844 rechaça esta
posição, que embasa a teoria do valor de Ricardo, vendo nela
uma inversão entre abstração e realidade – a concorrência é posta
aí como “momentânea ou acidental”; recrimina Marx: “A Eco-
nomia Política, para dar mais consistência e precisão às suas leis,
tem que supor a realidade como acidental e a abstração como
real” (cf., infra, a p. 191). E é a abstração de um elemento axial
constitutivo da realidade – justamente a propriedade privada –
que permite ao economista supor que, na troca, há equivalência
e há coincidência entre o preço e o valor das mercadorias. Para
o economista, o capitalista paga pelo trabalho (o que bem de-
pois Marx designará por força de trabalho) o equivalente de seu
valor em dinheiro (o salário); Marx nega que entre capitalista
e operário se opere um tal intercâmbio equivalente e atribui a
esta falsificação a condição de consequência da teoria do valor.
A recusa da teoria do valor (de Ricardo) por Marx re-
sulta também do que o novel frequentador da bibliografia
econômico-política considera a sua contraditoriedade. Ele cita
aprobatoriamente Ricardo quando este “sublinha muito bem
o fato de que o operário nada ganha com o aumento da pro-
dutividade do trabalho” (nos Manuscritos, volta a isto89) e logo
a seguir retorna à concepção ricardiana do valor: “O trabalho
[...] fonte de todo valor, e sua quantidade relativa [...] a medida
que regula o valor relativo das mercadorias” (cf., infra, a p.
189). Para Marx, contém-se aqui uma contradição flagrante,
que ele registra com as próprias palavras de Ricardo; Vázquez
assinala: “Trata-se, em suma, do seguinte: se o trabalho é a
fonte de todo valor, por que o operário não se eleva – e, ao
contrário, se empobrece material e espiritualmente – ao elevar-

34
J o s é P a u l o N e t t o

-se a sua produtividade?”.90 Nos Manuscritos, Marx retornará


à mesmíssima questão: o economista
diz-nos que, originariamente e segundo o conceito, todo o produto
do trabalho pertence ao trabalhador. Mas diz-nos, simultaneamen-
te, que na realidade cabe ao trabalhador a parte mínima e mais
indispensável do produto; apenas tanto quanto for preciso para
ele existir, não como homem, mas como trabalhador, não para ele
reproduzir a humanidade, mas, antes, a classe de escravos [que é
a] dos trabalhadores (cf., infra, a p. 251).

Nos Manuscritos, Marx dará uma primeira (e insuficiente)


solução àquela contradição, sob a qual se oculta a exploração
do operário: o que o empobrece (desvaloriza) não é o trabalho,
mas o trabalho alienado91 – e dele trataremos adiante.
Relevante é o modo como Marx, na controvérsia entre
Ricardo, Say e Sismondi sobre a renda bruta e a renda líquida,
toma posição;92 afirma ele:
Negando qualquer importância à renda bruta – isto é: à quanti-
dade da produção e do consumo que não constitui o excedente e,
portanto, negando toda importância à vida mesma –, as abstrações
próprias da Economia Política atingem o cúmulo da infâmia. Daí
resulta: 1º) que a Economia Política não se preocupe absolutamente
com o interesse nacional, com o homem, mas somente com a renda
líquida, com o lucro, com a renda da terra, que nela aparece como
o fim supremo da nação; 2º) que, nela, a vida de um homem não
tenha nenhum valor; 3º) que o valor da classe operária limite-se
aos custos de produção necessários e que os operários só existam
em função da renda líquida – vale dizer, para o lucro do capitalista
e para a renda do proprietário fundiário (cf., infra, as p. 194-195).

Eis aqui um dos núcleos problemáticos mais densos, para


o jovem Marx, da Economia Política – que ele qualifica como
“infame” –: a consideração do operário como simples instru-
mento de produção de lucros; nos Manuscritos, esta consideração
é amplamente tematizada,93 mas já nos Cadernos ele evidencia

35
M a r x e m P a r i s

um dos traços pertinentes da Economia Política: “a huma-


nidade se situa fora da Economia Política e a inumanidade
dentro dela” (cf., infra, a p. 195). Nos Manuscritos, sabe-se (e
trataremos disto), a contraposição marxiana à tal inumanida-
de será operada mediante a crítica filosófico-antropológica do
trabalho alienado, com o recurso à sua concepção de essência
humana para explicitar o horror dessa redução do operário a
máquina produtiva94 – só na segunda metade dos anos 1850
Marx (sem renunciar à sua concepção filosófico-antropológica
e à sua defesa de princípio do humanismo, antes determinando-
-as e concretizando-as) terá condições de clarificar inteira e
radicalmente a problemática econômico-política aí embutida.
Ressalte-se, porém, que, na mesma controvérsia, Marx toma
o partido de Ricardo, contra Say e Sismondi: à sincera consta-
tação daquele, segundo a qual o operário é mero instrumento
de produção de lucros, estes opõem uma retórica edulcorante.
Marx se posiciona com nitidez: quando “combatem Ricardo,
eles só visam à expressão cínica de uma verdade econômica. A
tese de Ricardo é correta e lógica do ponto de vista econômico”
– Marx prefere o cinismo do clássico à demagogia dos menores.95
À parte outras questões relevantes – como, por exemplo,
a da renda fundiária, rapidamente tangenciada nos Cadernos
(cf., infra, a p. 223) e à que Marx voltará nos Manuscritos (cf.,
infra, a p. 284 e ss.) –, esta primeira leitura de Ricardo por Marx
revela a ambivalência do jovem pesquisador em face do grande
economista político. De um lado, Marx reconhece-lhe méritos:
sua teoria expressa a verdade da economia sob a vigência da
propriedade privada; de outro, ao operar dando como suposta
esta última e aceitando acriticamente a produção capitalista,
a teoria de Ricardo está amarrada aos substratos ideológicos
da ideologia burguesa (revolucionária), compartilhados pelo
melhor da ciência (a Economia Política) que ela engendrou.96

36
J o s é P a u l o N e t t o

Esta ambivalência será resolvida no curso de um largo projeto


de investigação, cumprido por Marx ao fim de quase duas dé-
cadas e que redundará na superação – no mais rigoroso sentido
hegeliano (isto é, a sua negação e a sua conservação num nível
superior) – de Ricardo.
As notas subsequentes (10 a 23) são aquelas que, nos Cader-
nos, demonstram sobejamente que uma concepção filosófico-
-antropológica anima a perquirição que o jovem Marx dirige
à Economia Política. Nelas, Marx não se limita a pontuar
questões e problematizar teses. Nestas páginas brilhantes a
propósito de um autor menor que Ricardo, mas representante
da sua escola já em dissolução, Marx revela que a filosofia funda
e operacionaliza a sua crítica a uma ciência carente (e, pelos seus
pressupostos, impossibilitada) de considerações humanas. Em
Paris, lendo – na tradução francesa de Parisot – e anotando
os Elementos de Economia Política, de James Mill, pai de John
Stuart Mill,97 Marx dá mostras da sua genialidade e formula
algumas das ideias-força que não só peculiarizam parte da sua
obra de juventude, mas também comparecem (evidentemente
reelaboradas) na sua obra da maturidade.98
Nestas notas, Marx trata a Economia Política à luz da
filosofia: mais exatamente, submete a Economia Política a um
questionamento radical a partir de uma perspectiva filosófico-
-antropológica; aprofunda e sobretudo enriquece a determi-
nação, já assinalada, segundo a qual “a humanidade se situa
fora da Economia Política e a inumanidade dentro dela”. De
fato, destas 14 notas, apenas duas, a primeira (referente às “leis
econômicas” – cf., infra, as p. 199-200) e a última (respeitante
à tributação da renda fundiária – cf, infra, p. 223) incidem
exclusiva e especificamente em teses da Economia Política,
mesmo que na primeira, conforme a arguta análise de Sán-
chez Vázquez, a reflexão dialética de Marx se movimente com

37
M a r x e m P a r i s

desembaraço. Assegura o exegeta que, neste passo, Marx “não


nega agora totalmente a lei do valor se se vê nela uma abstração
que só capta um aspecto do movimento real”; mas a Economia
Política não toma este movimento “como unidade dialética do
equilíbrio e da flutuação [...] e, portanto, de ambos os aspectos:
o essencial e o inessencial, o necessário e o casual”; por isto,
para a Economia Política, “admitir a abolição constante da lei
abstrata ou lei do valor [...] equivaleria a admitir que a ‘ausência
de leis’ determina a própria lei”.99
Em todas as outras 12 notas, as reflexões de Marx estão
conectadas a uma problemática de fundo: a alienação dos ho-
mens quando as suas relações sociais se desenvolvem sob o regime
da propriedade privada. Esta problemática – que marcará visce-
ralmente os Manuscritos – vincula o conteúdo dessas 12 notas.
Nelas, o dinheiro ocupará um espaço privilegiado.100 O
dinheiro, tomado como equivalente universal da existência hu-
mana alienada, já fora tematizado por Marx em “Para a questão
judaica”101 e agora constitui a matéria da primeira nota substan-
tiva da sua leitura de Mill (cf., infra, a p. 200 e ss.). Contudo,
Marx não está basicamente interessado aqui no debate acerca
do dinheiro tal como o situa a Economia Política – interessa-lhe
esclarecer por que, quando o dinheiro “reina onipotentemente
sobre as coisas para as quais ele [...] serve como intermediário”,
“o homem se empobrece tanto mais como homem separado
deste mediador quanto mais este se torna rico” (cf., infra, a
p. 201). Para Marx, o que ocorre é que, quando o dinheiro se
converte em mediador universal de todas as relações, a mediação
que realiza se autonomiza da atividade dos homens e aparece a
estes como algo alheio:
a atividade mediadora é que se aliena nele [no dinheiro], é o movi-
mento mediador, o ato humano, social, através do qual os produtos
do homem se complementam uns aos outros; este ato mediador

38
J o s é P a u l o N e t t o

torna-se a função de uma coisa material, externa ao homem – uma


função do dinheiro (cf., infra, as p. 200-201).

A similitude deste deslocamento (que configura uma in-


versão da relação sujeito-objeto, criticada já por Marx, sob a
inspiração de Feuerbach, no Manuscrito de Kreuznach102) com
aquela que o cristianismo opera, enquanto religião, é invocada
por Marx:
Cristo é o Deus alienado e o homem alienado. Deus só tem valor
na medida em que o representa Cristo; o homem só tem valor na
medida em que o representa Cristo. O mesmo vale para o dinheiro
(cf. infra, p. 202).103

A resultante de tal deslocamento é a inversão em que “todos


os caracteres que pertencem à atividade genérica da produção,
próprios a esta atividade, são transferidos a este mediador [o
dinheiro]” (cf., infra, a p. 201); é por isto que – retomemos a
frase já citada – “o homem se empobrece tanto mais como ho-
mem separado deste mediador quanto mais este se torna rico”.
Porém, o que o economista constata, para Marx tem seu
fundamento no que ele, o economista, aceita como factum
indiscutível, naturalizado – a propriedade privada (lembre-se a
tese marxiana de que a Economia Política se funda sobre o que
não explica, “um fato carente de necessidade”). Marx aponta
o processo de desenvolvimento da propriedade ao dinheiro:
Por que a propriedade privada deve chegar ao dinheiro? Porque o
homem, ser social, deve chegar ao intercâmbio e porque o inter-
câmbio – suposta a propriedade privada – deve chegar ao valor.
De fato, o movimento mediador do homem que intercambia não
é um movimento social, humano. Não é uma relação humana,
mas a relação abstrata da propriedade privada com a propriedade
privada, e esta relação abstrata é o valor, que só existe como tal
enquanto dinheiro. Pois, trocando, os homens não se comportam
mutuamente como homens, o objeto perde a sua significação de
propriedade humana, pessoal (cf. infra, p. 202).

39
M a r x e m P a r i s

Daí:
A relação da propriedade privada com a propriedade privada é já
uma relação em que a propriedade privada alienou-se de si mes-
ma. O dinheiro, que encarna esta relação, é, consequentemente,
a alienação da propriedade privada, a abstração da sua natureza
específica, pessoal (idem).

O sistema de crédito, substituindo o sistema monetário (no


qual domina o valor absoluto dos metais preciosos), recebe de
Marx um tratamento (que não se encontra nos Manuscritos)
crítico radical – do ponto de vista filosófico-antropológico.
Nele, segundo Marx,
é o próprio homem que se converte em dinheiro ou, noutra ex-
pressão, é o dinheiro que se encarna no homem. A individualidade
humana, a moral humana, transformam-se, simultaneamente,
em artigo de comércio e na existência material do dinheiro. Em
lugar do dinheiro, do papel, é a minha existência pessoal, a minha
carne e o meu sangue, a minha virtude social e a minha reputação
social que se tornam a matéria e o corpo do espírito do dinheiro. O
crédito calcula o valor monetário não em dinheiro, mas em carne
e coração humanos. Este é o ponto em que todos os progressos
e todas as inconsequências ocorrentes no interior de um sistema
falso constituem a suprema regressão e a suprema consequência
da abjeção (cf. infra, p. 206).

Parece-me equivocado reduzir a crítica marxiana que se


desenvolve nessas notas a uma dimensão puramente moral –
mesmo que uma apreciação superficialmente formal pareça
dar-lhe alguma sustentação. E por uma razão clara – para
além, é claro, da sua correção descritiva: ou há quem duvide,
por exemplo, de que “está subentendido que, além das garantias
morais, o credor dispõe, em relação ao devedor, de garantias e
coações jurídicas, sem falar de outras garantias mais ou menos
reais” (cf., infra, p. 205)? –: Marx sinaliza, nessas mesmas notas,
a concepção filosófico-antropológica que lhe permite qualifi-

40
J o s é P a u l o N e t t o

car como “falso” o “sistema”, “abjeta” uma “relação” etc. Não


adiantarei aqui observações que serão mais pertinentes no trato
dos próprios Manuscritos. Digamos, por agora, que ela envolve
muito da influência de Feuerbach que então se fazia sentir sobre
Marx (sobretudo, a ideia de ser genérico), mas também elementos
oriundos do pensamento de Hegel: a relevância da necessidade e
sua conexão com o trabalho; neste caso, quando Marx menciona
o intercâmbio real que os economistas descrevem, parece clara a
concepção hegeliana do “sistema de necessidades” (carecimentos)
que exprime, no fundo, tanto a sociedade de atividades comerciais
de Smith104 quanto a sociedade civil-burguesa de Hegel.105
Marx identifica precisamente a concepção antropológica
que subjaz à Economia Política: “A Economia Política [...] tem
como ponto de partida a relação do homem com o homem como
relação de proprietário privado com proprietário privado” (cf.,
infra, p. 209); assim,
o homem é pressuposto [na Economia Política] como proprietá-
rio privado, ou seja, como possuidor exclusivo que afirma a sua
personalidade, que se diferencia dos outros e se relaciona com eles
através dessa posse exclusiva: a propriedade privada é o seu modo
de existência pessoal, distintivo – logo, a sua vida essencial (idem).

Por consequência, “é sob a forma do intercâmbio e do


comércio que a Economia Política concebe a comunidade dos
homens” (cf., infra, a p. 209). Justo é, pois, que Destutt de Tracy
veja a sociedade como “uma série de trocas mútuas” e, conforme
Adam Smith, seja a sociedade “uma sociedade de atividades
comerciais – cada um de seus membros é um comerciante”
(idem). E Marx resume: “Vê-se como a Economia Política fixa
a forma alienada das relações sociais como o modo essencial e
original do intercâmbio humano e o considera como adequado
à vocação humana” (idem). Esta conclusão, Marx a funda na
concepção de homem (e de sociedade) que opõe à que critica.

41
M a r x e m P a r i s

Ao homem egoísta (“Mais o poder da sociedade se apresenta


maior e mais organizado no sistema da propriedade privada,
mais o homem se torna egoísta” – cf., infra, p. 213) e à socieda-
de (“uma sociedade de atividades comerciais” – Adam Smith)
entronizados pela Economia Política, Marx contrapõe: 1) o
homem como ser genérico e 2) a sociedade como a verdadeira
comunidade dos homens. A noção do homem como ser genérico –
ser autoconsciente e consciente do seu gênero –, Marx toma-a de
Feuerbach (mais exatamente, do primeiro capítulo d’A essência
do cristianismo) e já a evidencia em “Para a questão judaica”106,
mas desenvolve-a intensivamente nos Manuscritos, como vere-
mos adiante. Contudo, nestes Cadernos, embora enunciada (cf.,
infra, as p. 221-222), a genericidade humana é menos conceptu-
alizada que oposta ao homem egoísta e animicamente mutilado
pelo domínio da propriedade privada e do dinheiro. E Marx
deixa claro que é ao ser genérico do homem que corresponde
a verdadeira comunidade dos homens, posta como o locus em
que “estes produzem afirmando a sua essência, a comunidade
humana, o ser social” (cf., infra, a p. 208) – comunidade que
é impensável numa “sociedade de atividades comerciais”. Esta,
de fato, não constitui uma comunidade humana verdadeira, é a
sua “caricatura”, porque responde à mera agregação de homens
alienados; eis como Marx a caracteriza:
Esta comunidade são os homens, alienados não na abstração, mas
enquanto indivíduos reais, vivos, particulares – tais homens, tal
comunidade. Dizer que o homem está alienado de si mesmo é dizer
que a sociedade deste homem alienado é a caricatura da sua comu-
nidade real, da sua verdadeira vida genérica; que a sua atividade se
lhe apresenta como um tormento, suas próprias criações como um
poder alheio, sua riqueza como pobreza, o vínculo profundo que o
liga aos outros homens como vínculo artificial, a separação em face
dos outros homens como sua verdadeira existência; que a sua vida é
o sacrifício da sua vida; que a realização do seu ser é a desrealização

42
J o s é P a u l o N e t t o

da sua vida; que, na sua produção, produz o seu nada; que o seu
poder sobre o objeto é o poder do objeto sobre ele; que, senhor da
sua produção, aparece como escravo dela (cf., infra, a p. 208-209).

Nos Manuscritos, tais ideias são expostas com idêntica ni-


tidez – por exemplo:
O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza
produz quanto mais a sua produção cresce em poder e volume.
(cf., infra, a p. 304);
A realização do trabalho aparece a tal ponto como desrealização
[...] (cf., infra, a p. 305);
O que o produto do seu trabalho é, ele [o trabalhador] não é. [...]
o seu trabalho se torna um objeto, uma existência exterior, mas
também [...] um poder autônomo frente a ele (cf., infra, a p. 306).

As linhas acima demonstram que a problemática da aliena-


ção107 é posta, nestas notas referidas a James Mill (provavelmente
redigidas entre maio e junho de 1844), com extraordinária
ênfase, antecipando a centralidade que será reiterada nos Ma-
nuscritos.108 A alienação é, nestas notas, o parâmetro distintivo
entre uma comunidade humana verdadeira e uma comunidade
humana falsa porque falseia a vida própria ao homem tomado
como ser genérico – nesta comunidade humana caricata, a vida
humana é a desrealização da vida do ser genérico; precisamente
na nota 17 (cf., infra, a p. 212 e ss.), Marx expressa uma reflexão
seminal sobre o trabalho alienado, modo de ser do que aqui
chama de “trabalho lucrativo”109. Para Marx, são implicações
desta forma histórica do trabalho:
1º) em relação ao sujeito, o trabalho é alienado e acidental; 2º)
mesma situação do trabalho em relação ao objeto; 3º) o trabalhador
submete-se a necessidades sociais que lhe são alheias e impostas –
aceita-as pela sua necessidade egoísta e em desespero de causa; elas
não têm para ele nenhum significado, salvo o de serem a fonte de
satisfação das suas necessidades mais elementares; o trabalhador
é o escravo das necessidades sociais; 4º) para o trabalhador, a

43
M a r x e m P a r i s

finalidade da sua atividade é conservar a sua existência individual


– tudo o que faz é realmente apenas um meio: vive para ganhar
meios de vida (cf., infra, a p. 213).

Ora, nos Manuscritos, temos claramente as mesmas ideias:


[1º] em que o trabalho é exterior ao trabalhador, i. é, não pertence
à sua essência (cf., infra, a p. 308); [2º] a alienação mostra-se não
só no resultado, mas também no ato da produção, no interior da
própria atividade produtiva. [...] Na alienação do objeto do traba-
lho resume-se apenas a alienação, a exteriorização na atividade do
próprio trabalho (cf., infra, a p. 308); [3º] Ele [o trabalho] não é
[...] a satisfação de uma necessidade, mas é apenas um meio para
satisfazer necessidades externas a ele [cf., infra, a p. 308; os últimos
itálicos são meus – JPN ]; [4º] [Para o trabalhador] A própria vida
aparece apenas como meio de vida (cf., infra, a p. 311).

Se não temos aqui os desenvolvimentos intensivos dos


Manuscritos, em troca encontramos o núcleo das ideias neles
aprofundadas; de fato, as reflexões sobre a alienação documen-
tadas nestas notas contêm o embrião da teoria da alienação
que se apresenta nos Manuscritos – o que, por si só, sinaliza a
importância dos Cadernos. E nelas se reitera a raiz da crítica do
jovem Marx à Economia Política: esta última toma um elemento
efetivo da realidade econômica existente (e, portanto, determi-
nado historicamente) – o trabalho que produz mercadorias e,
pois, é “lucrativo” – como elemento supra-histórico (e, portanto,
“natural”), eternizando-o.
Também um motivo bastante expressivo nos/dos Manus-
critos, amplamente tematizado por autores conhecidos (com
destaque para Erich Fromm, entre outros) – a prioridade do
ter sobre o ser110 – comparece nos Cadernos nas notas relativas
a James Mill:
O homem – esta é a pressuposição fundamental da propriedade
privada – só produz para ter. A finalidade da produção é a posse.

44
J o s é P a u l o N e t t o

E a produção não tem apenas esta finalidade útil; tem uma fina-
lidade egoísta: o homem só produz para possuir para si mesmo.
O objeto da sua produção é a materialização da sua necessidade
imediata, egoísta (cf., infra, a p. 216).

Por isto,
sob a propriedade privada, o trabalho é alienação de vida, por-
que trabalho para viver, para conseguir um meio de viver. Meu
trabalho não é a minha vida [...]. Sob a propriedade privada, a
minha individualidade está alienada a tal grau que esta atividade
[o trabalho] me é detestável, motivo de tormento; é, antes, um
simulacro de atividade, uma atividade puramente forçada, que
me é imposta por um constrangimento exterior e contingente e
não por uma exigência interna e necessária (cf., infra, a p. 222).

Algo muito diverso dar-se-á quando os homens produzi-


rem “como homens”, isto é, quando a propriedade privada for
suprimida:
Suponhamos que produzíssemos como seres humanos – cada
um de nós haveria se afirmado duplamente na sua produção:
a si mesmo e ao outro. 1º) Na minha produção, eu realizaria a
minha individualidade, a minha particularidade; experimen-
taria, trabalhando, o gozo de uma manifestação individual da
minha vida e, contemplando o objeto, a alegria individual de
reconhecer a minha personalidade como um poder real, con-
cretamente sensível e indubitável. 2º) No teu gozo ou na tua
utilização do meu produto, eu desfrutaria da alegria espiritual
imediata, através do meu trabalho, de satisfazer a uma neces-
sidade humana, de realizar a essência humana e de oferecer à
necessidade de outro o seu objeto. 3º) Eu teria a consciência
de servir como mediador entre ti e o gênero humano, de ser
reconhecido por ti como um complemento do teu próprio ser
e como uma parte necessária de ti mesmo, de ser aceito em teu
espírito e em teu amor. 4º) Eu teria, em minhas manifestações
individuais, a alegria de criar a manifestação da tua vida, ou
seja, de realizar e afirmar, na minha atividade individual, a
minha verdadeira essência humana, a minha sociabilidade
humana [Gemeimwesen] (cf., infra, a p. 221-222).

45
M a r x e m P a r i s

A superação da propriedade privada, permitindo a instau-


ração da verdadeira comunidade humana, propiciaria uma
outra modalidade de produção – aquela liberada do trabalho
“lucrativo”, o trabalho alienado –: então, o “trabalho seria uma
livre manifestação de vida, um gozo de vida”: “a minha indivi-
dualidade particular, a minha vida individual, seria afirmada
pelo trabalho” (cf., infra, a p. 222)111. Nos Manuscritos ressoam
as mesmas ideias; vejam-se, por exemplo, as seguintes notações:
sob a propriedade privada,
a sua [do homem] expressão de vida (Lebensäußerung) é a sua
exteriorização de vida (Lebensentäußerung), a sua realização
é a sua desrealização [...]; assim a superação positiva da pro-
priedade privada [...é] a apropriação sensível da essência e vida
humanas, do homem objetivo, da obra humana para e pelo
homem, [...] não apenas no sentido da posse, no sentido do ter
(cf., infra, a p. 349).
A propriedade privada nos fez tão estúpidos e unilaterais que um
objeto só é nosso se o tivermos, [...]se existir para nós como capi-
tal, ou se for imediatamente possuído, comido, bebido, trazido
no corpo, habitado por nós etc.; em resumo, usado. [...]Para o
lugar de todos os sentidos físicos e espirituais entrou, portanto,
a simples alienação de todos esses sentidos, o sentido do ter (cf.,
infra, as p. 349-350).

sob a propriedade privada, como “o trabalho é exterior ao tra-


balhador, i. é, não pertence à sua essência”, “ele [o trabalhador]
não se afirma, antes se nega, no seu trabalho, não se sente bem,
mas desgraçado [...]. O trabalho exterior [...] é um trabalho
de autossacrifício, de mortificação” (cf., infra, as p. 308-309).
Superada a propriedade privada,
o homem produz[indo] o homem, a si próprio e ao outro homem
[...], não só o material da minha atividade [...] me é dado como
produto social, a minha existência própria é atividade social; por
isso, o que eu faço de mim, faço de mim para a sociedade e com a
consciência de mim como um ser social (cf., infra, as p. 346-347).

46
J o s é P a u l o N e t t o

Deste substantivo conjunto de notas a propósito de James


Mill extrai-se a compreensão de que o trabalho alienado é um
fenômeno histórico (portanto, superável e suprimível), vincula-
do à propriedade privada, à produção mercantil e à divisão do
trabalho, que, segundo Marx,
faz do homem um ser abstrato, uma máquina-instrumento etc.,
reduzindo-o a um monstro físico e intelectual. Se a unidade do
trabalho humano é concebida apenas sob o aspecto da divisão,
isto significa que o ser social só existe sob a forma da alienação,
como um ser que é o contrário de si mesmo (cf., infra, a p. 214).

Entretanto, nestas notas, mesmo referindo a superação da


propriedade privada, Marx – à diferença dos Manuscritos, como
adiante veremos – não se aprofunda na alternativa desta supera-
ção. E as notas seguintes (da 24 à última), nada acrescentam de
essencial à problemática da alienação: Marx apenas fará referên-
cias a questões que expressam as abstrações (anti-humanas) da
Economia Política – como as “médias” (“verdadeiros ultrajes aos
indivíduos reais” – cf., infra, a p. 223) e os “sofismas infames”
(cf., infra, a p. 226) – e a outros economistas menores, a que
posteriormente retornará112.
Os Cadernos documentam o que se poderia considerar o
“laboratório teórico” do jovem Marx – ou seja, os seus proce-
dimentos intelectuais em sua forma inicial, originária, nem
de longe a forma destinada à publicação; mais exatamente,
documentam o que, à diferença da exposição, o próprio Marx
caracterizaria como investigação113; e, neste caso particular,
documentam, como repetimos à exaustão, o seu primeiro
contato com a Economia Política. Por isto, eles atestam que
o prosseguimento dos estudos de Marx implicou o abandono
(quase sempre mediante a sua superação) de muitas das teses
então expendidas pelo jovem pensador (mencionamos, prin-
cipalmente, a ultrapassagem das suas posições ante a teoria

47
M a r x e m P a r i s

do valor). Mas encontra-se nestes Cadernos um núcleo teórico


que acompanhará a reflexão posterior de Marx: a problemática
do trabalho alienado, da alienação114. Os Manuscritos, de que
trataremos a seguir, expressarão, noutro nível, a centralidade
deste núcleo na constituição da obra de Marx, a crítica da
Economia Política.

Os estudos iniciados no primeiro semestre de 1844 (II):


os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844
Os Manuscritos, como já se viu acima, foram redigidos entre
março e agosto de 1844,115 simultaneamente com os Cadernos e,
sem dúvidas, formam com estes uma unidade pelo seu objeto e
pelo seu andamento teórico-crítico; com as referências até aqui
feitas no corpo desta apresentação e nas suas notas, já procurei
salientar a essencial e profunda conexão das ideias expressas
em glosas e passagens dos Cadernos com desenvolvimentos
contidos nos Manuscritos. Ambos os materiais constituem o
marco unitário da grande inflexão que estava em curso no
universo intelectual de Marx, registrando o seu deslizamento
da Filosofia para a crítica da Economia Política; mas a sua
unidade substantiva não os equaliza – seja formalmente, seja
em termos de conteúdo.
Nos Manuscritos, o pensamento de Marx movimenta-se
mais livremente e não se atém às suas leituras e transcrições,
ademais de tomar com ênfase distinta determinações de que se
ocupa nos Cadernos. Em especial, nos Manuscritos comparecem
tratamentos categoriais intensivos apenas supostos, aflorados
ou tangenciados nos Cadernos e tais tratamentos repõem em
nível mais elaborado praticamente toda a problemática neles
abordada.
As diferenças se evidenciam também plano da forma:
os Manuscritos, mesmo que não tenham recebido cuidados

48
J o s é P a u l o N e t t o

para a sua publicação (o “polimento final” mencionado por


Ludovico Silva), estão construídos mais articuladamente e
condensam elementos próprios do “estilo literário” de Marx.
Responde seguramente por esta distinção o fato de o autor
estar projetando a redação de um livro, conforme assinalará
no “prefácio” (proveniente do “Manuscrito III”) a que já alu-
dimos – e que o leitor encontra adiante, às p. 237-241.116 E,
realmente, em inícios do ano seguinte (mais exatamente, a 1º
de fevereiro de 1845), Marx assina com o editor C. W. Leske,
de Darmstad, um contrato para a edição, em dois tomos, de
um livro de “crítica da política e da Economia Política” – tudo
indica que de tal livro constariam textos elaborados à base
da sua “Crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução”
(a parte da “crítica da política”) e conteúdos dos Manuscritos
(a parte da “crítica da Economia Política”).117 Já no segundo
semestre de 1844, porém, a energia de Marx se concentra na
crítica da filosofia alemã pós-hegeliana (de que logo proveio,
com a colaboração de Engels e publicada em 1845, A sagrada
família... e, na sequência, a preparação, também com Engels,
d’A ideologia alemã, dada à luz só postumamente, em 1932) e
o projeto daquele livro, em termos imediatos, não foi adiante;
em termos mediatos, a “crítica da Economia Política” então
anunciada tardou cerca três lustros para ter uma primeira parte
editada (Contribuição à crítica da Economia Política, 1859) e
mais alguns anos para culminar no Livro I d’O capital (1867).
Dos Manuscritos, o que deles nos chegou (com os originais
autógrafos – a que Marx não apôs nenhum título geral118 –
conservados em Amsterdã no Internationaal Instituut voor
Sociale Geschiedenis (Instituto Internacional de História Social)
– compreende três conjuntos textuais, que se tornaram conhe-
cidos como primeiro/I, segundo/II e terceiro/III cadernos.119
O primeiro caderno compõe-se de 36 páginas – numeradas

49
M a r x e m P a r i s

originalmente em algarismos romanos (procedimento usado


nos dois outros) –, mas de que foram utilizadas somente 27;
até a de número 17, as páginas estão divididas verticalmente em
três colunas (“salário”, “ganho do capital” e “renda fundiária”);
a partir da página 17, Marx só escreve na terceira coluna (“renda
fundiária”); da página 22 em diante, Marx ignora as colunas
e redige os parágrafos que foram posteriormente intitulados
“Trabalho alienado e propriedade privada”. Do segundo caderno
apenas se conservaram 4 páginas, numeradas de 40 a 43 – o
material é, pois, tão somente o fragmento de um texto do qual
se perderam as 39 páginas anteriores. O terceiro caderno, de
que fez parte o “prefácio” a que já se referiu, consta de 68 pá-
ginas, com as últimas 23 em branco; as primeiras 13 páginas
contêm dois complementos – editados como “Propriedade
privada e trabalho” e “Propriedade privada e comunismo” – a
páginas perdidas do segundo caderno; seguem-se, depois, as
notações relativas à crítica da dialética de Hegel, à propriedade
privada e necessidades, produção e divisão do trabalho e ao
dinheiro.120 Tratemos de acompanhar, sem a menor pretensão de
exaustividade, o percurso intelectual de Marx registrado nesses
três cadernos.
No “Caderno I”, Marx realiza dois movimentos: um
mergulho na Economia Política, perscrutando três das suas
categorias nucleares – salário, ganho do capital (lucro) e renda
fundiária –, após o qual oferece, num segundo movimento,
a sua crítica desde um ponto de vista revolucionário, crítica
fundada numa angulação filosófico-antropológica.
No primeiro movimento, tratando aquelas três categorias
econômico-políticas, que remetem às classes sociais pertinentes
à sociedade burguesa e expressam os conflitos próprios a ela
(conflitos que, como salienta o jovem crítico, a Economia Polí-
tica registra inconsequentemente),121 Marx desenvolve reflexões

50
J o s é P a u l o N e t t o

a partir das próprias formulações dos economistas, expondo à


luz as suas contradições (discursivas, mas igualmente fáticas):
Coloquemo-nos [...] totalmente no ponto de vista do economista
nacional122 e comparemos, segundo ele, as reivindicações teóricas
e práticas do trabalhador.
Ele diz-nos que, originariamente e segundo o conceito, todo o
produto do trabalho pertence ao trabalhador. Mas diz-nos, simul-
taneamente, que na realidade cabe ao trabalhador a parte mínima
e mais indispensável do produto; apenas tanto quanto for preciso
para ele existir, não como homem, mas como trabalhador, não
para ele reproduzir a humanidade, mas, antes, a classe de escravos
[que é a] dos trabalhadores.
O economista nacional diz-nos que tudo se compra com trabalho,
e que o capital não é mais que trabalho acumulado; mas diz-nos,
simultaneamente, que o trabalhador, longe de poder comprar tudo,
tem de vender-se a si próprio e à sua humanidade.
[...] Enquanto, segundo o economista nacional, o trabalho é o
único preço invariável das coisas, nada é mais acidental, nada
exposto a maiores oscilações do que o preço do trabalho.123 [...]
Enquanto o interesse do trabalhador, segundo o economista na-
cional, nunca se contrapõe ao interesse da sociedade, a sociedade
contrapõe-se ao interesse do trabalhador sempre e necessariamente
(cf. infra, p. 250-252).

Este procedimento crítico-confrontativo é reiterado ao


longo do primeiro movimento constitutivo do “Caderno I”, no
qual, como Marx diz, “Partimos dos pressupostos da economia
nacional. Aceitamos a sua linguagem e as suas leis.” (cf., infra,
a p. 302). Tal como Marx já registrara na nota 1 dos Cadernos
(cf., infra, a p. 186), a Economia Política não explica, não analisa
nem põe à prova tais pressupostos:
A economia nacional parte do fato da propriedade privada. Ela
não no-lo esclarece. Capta o processo material da propriedade
privada, pelo qual ela opera (durchmacht) na realidade, em fórmu-
las universais, abstratas, que valem então para ela como leis. Ela

51
M a r x e m P a r i s

não concebe [begreift] essas leis, i. é, depois não mostra como elas
provêm da essência da propriedade privada. A economia nacional
não nos dá nenhum esclarecimento sobre o fundamento da divisão
entre trabalho e capital, entre capital e terra (cf. infra, p. 302-303).

A Economia Política é unilateral, limitada – ela não nos


fornece “nenhum esclarecimento” sobre seus pressupostos
porque “supõe o que deve explicar” e “não concebe (begreift) a
conexão do movimento” (cf., infra, a p. 303 [itálicos meus – JPN])
– porque carece de ponderar a dimensão histórica e termina
por naturalizar a empiria. A visão que Marx tem da Economia
Política nos Manuscritos é exatamente a mesma que apresenta
nos Cadernos: trata-se daquela “ciência do enriquecimento”,
articulação de cientificidade enviezada ideologicamente pela
defesa da ordem burguesa, apreensão de componentes signifi-
cativos da realidade da organização da produção capitalista e
sua subordinação ao ponto de vista dos proprietários. Por isto
mesmo, se Marx parte sempre “de um fato nacional-econômico,
presente.” (cf. infra, p. 304) – aquela empiria refratada nos textos
dos economistas políticos –, a sua crítica impõe elevar-se acima
dela (cf., infra, a p. 253).
Nos Manuscritos, pelas razões que já anotamos, Marx vai
quase sempre muito além das glosas e comentários contidos nos
Cadernos124. No “Caderno I”, ao tratar da categoria salário, Marx
(aqui, à diferença dos Cadernos, ele se refere sobretudo a Smi-
th125, recorre mais a Buret e a Schulz126) sustenta um raciocínio
que assenta na ideia de um contínuo e inevitável processo de
pauperização absoluta dos trabalhadores (cf., infra, as p. 244-
249), ideia que, de fato, ele haverá de superar inteiramente nos
anos 1860127. No trato do ganho do capital (lucro) – em que a
referencialidade novamente passa sobretudo por Smith –, Marx
(que já começa afirmando o capital como “propriedade privada
dos produtos de trabalho alheio” – cf., infra, a p. 263 [itálicos

52
J o s é P a u l o N e t t o

meus – JPN]) extrai dos economistas inferências sobre a nature-


za do capital (a começar pelo seu poder de comprar, “a que nada
pode resistir” – cf., infra, a p. 264), as fontes e as variações das
taxas de lucro, a concorrência e a acumulação...;128 também aqui,
Marx não se limita a extratar, para criticá-las, as formulações
da Economia Política: entre outros avanços, ele dá um passo
de extrema importância, ao desvelar a tendência do capital a
submeter o universo dos produtores diretos e dos apropriadores
do excedente (vale dizer, operários e capitalistas)129 – operando
como um poder objetivo e à primeira vista incontrolável pelos
homens, poder que levou Ricardo a dizer que “as leis econô-
micas regem cegamente o mundo” e que “os homens não são
nada”,130 bem como arrancou de Smith o comentário sobre o
poder das coisas; é sintomático que, logo a seguir, Marx encerre
as suas considerações sobre o ganho do capital com a notação
“Indiferença para com os homens” (cf. infra, p. 283). Na parte
em que aborda a renda fundiária, de um modo mais extensivo
que o dedicado a ela nos Cadernos, Marx vale-se especialmente
da leitura de Smith (ainda que se refira a Say); igualmente neste
passo, Marx insiste em expôr à luz as contradições internas da
Economia Política (cf. infra, por exemplo, o parágrafo refe-
rente ao “interesse do proprietário fundiário”, p. 292); mas é
perceptível o seu avanço na compreensão do processo histórico
da propriedade fundiária, indicando como a mercantilização
da terra conduz à sua transformação capitalista.131
É com a tematização da renda fundiária que Marx conclui
o primeiro movimento constitutivo do “Caderno I”, no qual
examinou as três categorias econômico-políticas acima referidas;
nos manuscritos autógrafos, este primeiro movimento ocupou
até parte da página 22 – as subsequentes (da 22 à 27, original-
mente numeradas, como se viu, em algarismos romanos) expres-
sarão o segundo movimento: a crítica da Economia Política, tal

53
M a r x e m P a r i s

como a caracterizamos há pouco: uma crítica revolucionária,


fundada numa angulação filosófico-antropológica.132 Então
e agora, mesmo partindo “de um fato nacional-econômico,
presente” (cf., infra, a p. 304), Marx vai dedicar-se à pesquisa
dos fundamentos das categorias da Economia Política – e, para
isto, tem que ir além dos pressupostos, da linguagem e das leis
da Economia Política; nos seus termos, é necessário “elev[armo-
-nos] agora acima do nível da economia nacional” (cf., infra,
a p. 253). Nesta pesquisa reside o conteúdo das páginas finais
do “Caderno I”, sob o título “Trabalho alienado e propriedade
privada” (cf., infra, as p. 302-321). É nestas páginas que toma
corpo, sendo ainda articulada e densificada no “Caderno III”,
como veremos, a teoria da alienação do jovem Marx – que,
nunca abandonada, haverá de ganhar dimensão e concreção
novas no processo do desenvolvimento da teoria social marxia-
na. Se, como assinalamos, desde antes de sua estada em Paris,
Marx já tematizava o problema da alienação e se, em especial
nos Cadernos, ele fora abordado frontalmente, ganhará nestas
páginas um estatuto efetivo de centralidade com a categoria de
alienação constituindo-se, na determinação do trabalho aliena-
do, como a categoria fundamental dos Manuscritos.
De fato, no Marx dos Manuscritos, a categoria de alienação,
tal como teorizada antes por Hegel e Feuerbach133 é criticada,
enriquecida e transformada. Nos Manuscritos, Marx avança
para além de ambos os filósofos na formulação da sua teoria
da alienação: nestes textos, está em processo a ultrapassagem
dos influxos hegelianos (para Hegel, a objetivação do sujeito,
a Ideia/Espírito, é universal e necessariamente alienação) e da
inspiração basicamente feuerbachiana (na qual a alienação tem
como sujeito o homem abstrato e é um processo que se opera na
consciência de si desse homem em geral) – Marx caminha para
a historicização materialista da alienação determinando-lhe um

54
J o s é P a u l o N e t t o

novo sujeito nuclear (o produtor direto, o operário) e precisando


a sua processualidade sociomaterial e histórica: o ato e o proces-
so da produção.134 A alienação do sujeito recebe um novo trato:
deixa de ser uma objetivação universal e necessária (como em
Hegel, que identifica objetivação com alienação) e não se reduz a
um produto da consciência (como em Feuerbach). Se em Hegel a
supressão da alienação equivale à supressão da objetivação,135 nos
Manuscritos a objetivação só é alienação em condições históricas
determinadas – nas condições próprias à existência histórica da
propriedade privada (com as suas conexões com a divisão do
trabalho, a produção mercantil e o trabalho assalariado – não
se esqueça que, na Economia Política, “trabalho aparece apenas
sob a figura de atividade remunerada [Erwerbsthätigkeit] – cf.,
infra, a p. 254); e se em Feuerbach ela se mostra privilegiada-
mente na consciência religiosa, nos Manuscritos esta é, antes,
uma dentre várias resultantes de condições sócio-históricas
muito determinadas.136
Sejamos o mais claro possível – nos Manuscritos, o cuidado
que Marx vinha conferindo ao problema da alienação desde,
pelo menos, o ano anterior, ganha um tratamento novo (prefi-
gurado nas notas sobre James Mill): Marx funda a sua teoria da
alienação, que estará presente, como temos salientado, ao longo
de toda a sua obra posterior.137 Isto não equivale a dizer que,
nos Manuscritos, a teoria marxiana da alienação se apresenta
conclusa: desenvolvimentos inéditos, alguns determinantes,
serão nela processados, inclusive em curto prazo,138 mas es-
pecialmente em função das descobertas de Marx no curso de
sua crítica da Economia Política – quando o essencial dessas
descobertas estiver realizado (ao fim dos anos 1850 e no início
do decênio seguinte), formulações que implicam uma teoria
da alienação enriquecida, sobretudo muito mais determinada e
concretizada historicamente, estarão na base da análise marxiana

55
M a r x e m P a r i s

do fetichismo (tal como apresentada n’O capital). Não é esta a


oportunidade para detalhar o evolver da teoria marxiana da
alienação que emerge nos Manuscritos, mas cumpre afirmar
que o seu posterior desenvolvimento, de uma parte, não colocou
em questão os seus componentes nucleares explicitados em 1844
e, doutra parte, que a crítica marxiana da Economia Política,
iniciada com uma angulação filosófico-antropológica, quando
se consolidou (e, aqui, o marco decisivo são os Grundrisse), não
cancelou aquela angulação, antes lhe conferiu – num movimento
dialético de simultânea negação e conservação noutro nível, su-
perior – um renovado, rigoroso e sólido embasamento econômico-
-político e sócio-histórico.139
Voltemos, todavia, ao segundo movimento que Marx opera
no “Caderno I”. O “fato nacional-econômico, [...] presente”,140
que a Economia Política meramente registra e de que Marx
parte, iluminado pelo foco da sua perspectiva filosófico-antro-
pológica revolucionária, é desdobrado: “quanto mais objetos o
trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais cai
sob a dominação do seu produto, do capital.”; a “realização do
trabalho” aparece como “desrealização do trabalhador”; “que o
trabalhador se relacione com o produto do seu trabalho como
com um objeto alienado” (ressalte-se que Marx não afirma que
o “produto do trabalho” é “um objeto alienado”, mas sim que o
trabalhador se defronta com ele como se defrontasse com “um
objeto alienado”). Nesses desdobramentos, o que se expressa,
para Marx, é a alienação, que assim se manifesta elementarmente:
“o objeto que o trabalho produz, o seu produto, enfrenta-o [ao
trabalhador] como um ser alienado, como um poder indepen-
dente do produtor”. E na medida em que o produto do trabalho
é “a objetivação do trabalho”, o trabalhador se desrealiza por-
quanto é dele exteriorizado (cf., infra, p. 305) – exteriorização
que converte a objetivação em alienação (logo veremos que, para

56
J o s é P a u l o N e t t o

Marx, a objetivação é constitutiva do ser do homem). Assim, a


questão primária é:
Se o produto do trabalho me é alienado, me confronta como poder
alienado, a quem pertence ele então?
Se a minha própria atividade não me pertence, é uma atividade
alienada, forçada, a quem pertence ela então? (cf., infra, a p. 315).

Não pertence nem aos deuses, nem à natureza:


O ser alienado, a quem o trabalho e o produto do trabalho per-
tencem, a serviço do qual está o trabalho e para fruição do qual o
produto do trabalho é, só pode ser o próprio homem.
Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, é um poder
alienado frente a ele, então isso só é possível porque ele pertence
a outro homem fora o trabalhador. Se a sua atividade é para ele
tormento, então deve ser fruição para um outro e alegria de viver
de um outro. Não os deuses, não a natureza, só o próprio homem
pode ser esse poder alienado sobre o homem (cf., infra, a p. 316).

Marx já assinala aqui que este desapossamento tem implica-


ções sócio-humanas distintas: “tormento” para uns, “fruição” para
outros.141 Se logo na abertura de “Trabalho alienado e propriedade
privada” ele constata a divisão da sociedade (burguesa) em duas
classes (cf., infra, a p. 302), no andamento da sua reflexão verificará
que a alienação envolve as duas classes,142 mas com decorrências muito
distintas. Tendo examinado no texto a alienação do operário, ele
não deixará de apontar a sua expressão no não operário:
Em primeiro lugar, é de observar que tudo o que aparece no tra-
balhador como atividade de exteriorização, de alienação, aparece
no não trabalhador como estado de exteriorização, de alienação.
Segundo, que o comportamento real, prático, do trabalhador na
produção e para com o produto (disposição de ânimo) aparece
no não trabalhador que o enfrenta como comportamento teórico.
Terceiro. O não trabalhador faz contra o trabalhador tudo o que
o trabalhador faz contra si próprio, mas não faz contra si próprio
o que faz contra o trabalhador (cf., infra, as p. 320-321).143

57
M a r x e m P a r i s

Marx igualmente observa que a despossessão do operário não


se restringe a objetos materiais: “[...] quanto mais o operário se
esforça tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, aliena-
do, que ele cria perante si próprio, tanto mais pobre se tornam
ele próprio [e] o seu mundo interior” (itálicos meus – JPN); para
Marx, pois, trata-se de uma despossessão objetiva e subjetiva:
A alienação do trabalhador no seu objeto exprime-se [...] em modo
tal que, quanto mais o trabalhador produz, tanto menos tem para
consumir; em que, quanto mais valores ele cria, tanto mais sem
valor (wertloser) e indigno se torna; em que, quanto mais formado
o seu produto, mais deformado o trabalhador; em que, quanto mais
civilizado o seu objeto, tanto mais bárbaro o trabalhador; em que,
quanto mais potente (mächtiger) o trabalho, tanto mais impotente
(ohnmächtiger) o trabalhador; em que, quanto mais espiritualmente
rico o trabalho, tanto mais sem espírito (geistloser) e servo da natureza
se torna o trabalhador.” (cf., infra, a p. 307 [itálicos meus – JPN ]).

Contudo, argumenta Marx, não basta considerar “a aliena-


ção, a exteriorização do trabalhador sob um aspecto, a saber, o
da sua relação com os produtos do seu trabalho”.144 E isto porque,
de fato,
[...] a alienação mostra-se não só no resultado, mas também no
ato da produção, no interior da própria atividade produtiva. Como
poderia o trabalhador defrontar-se com o produto da sua atividade
como algo de alienado se no próprio ato da produção ele próprio
não se alienasse? O produto é apenas o resumo da atividade, da
produção. Se, portanto, o produto do trabalho é a exteriorização,
então a própria produção tem de ser a exteriorização ativa, a exte-
riorização da atividade, a atividade da exteriorização. Na alienação
do objeto do trabalho resume-se apenas a alienação, a exteriorização
na atividade do próprio trabalho (cf., infra, a p. 308 [o itálico da
última frase é meu – JPN ]).

É preciso, portanto, esclarecer a exteriorização do trabalho, a


“relação essencial do trabalho”, a saber, “a relação do operário com
a produção” – o que a Economia Política não faz, ocultando assim

58
J o s é P a u l o N e t t o

“a alienação na essência do trabalho” (cf., infra, a p. 307) – e não se


esqueça também que esta operação analítica deve realizar-se para
descobrir os fundamentos das categorias da Economia Política,
em primeiro lugar a de propriedade privada. Ora, é justamente
aqui que Marx põe em cena, expressamente, a sua perspectiva
filosófico-antropológica; se, como vimos páginas atrás, na sua
crítica aos economistas políticos formulada nos Cadernos, Marx
identifica com exatidão a concepção antropológica que enforma a
Economia Política, já ali ele lhe contrapõe uma outra concepção,
esboçando seus traços principais – no entanto, não nos detivemos
sobre eles; agora, ao tratar dos Manuscritos, cumpre fazê-lo, uma
vez que é à luz da concepção filosófico-antropológica que Marx
desenvolve no primeiro semestre de 1844 (e que, embora ainda
marcada por influxos hegelianos e feuerbachianos, já evidencia
componentes de clara ultrapassagem – como viemos de indicar
– destas duas fontes seminais) que ele trata do substrato da pro-
priedade privada, a exteriorização do operário.
A concepção filosófico-antropológica de Marx145 é explicita-
da nos parágrafos que compõem o segmento “Trabalho alienado
e propriedade privada”, mas é objeto de novas determinações no
“Caderno III”; por isto, na exposição dela, já aqui recorreremos
também a passagens deste último caderno. Clarificar essa con-
cepção, num excurso necessariamente sumário, seguramente
contribui para a compreensão da exteriorização que subjaz à
alienação e dos próprios Manuscritos.
Tal concepção filosófico-antropológica,146 que Marx de-
senvolve em 1844, assenta na ideia de que o ser do homem se
constitui enquanto atividade vital consciente, enquanto atividade
livre consciente. A forma primária desta atividade é o trabalho,
a própria vida produtiva (cf., infra, p. 311), traço distintivo do
ser do homem em face do universo da vida animal. Lê-se neste
“Caderno I”:

59
M a r x e m P a r i s

O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se


diferencia dela. É ela. O homem faz a sua própria atividade vital
objeto da sua vontade e da sua consciência. Tem atividade vital
consciente. Não é uma determinidade (Bestimmtheit) com a qual
ele se confunda imediatamente. A atividade vital consciente dife-
rencia imediatamente o homem da atividade vital animal. [...] O
animal também produz. Constrói para si um ninho, habitações,
como as abelhas, castores, formigas etc. Contudo, produz apenas
o que necessita imediatamente para si ou para a sua cria; [...]
produz apenas sob a dominação da necessidade física imediata,
enquanto o homem produz mesmo livre da necessidade física e só
produz verdadeiramente na liberdade da mesma [...]. O animal dá
forma apenas segundo a medida e a necessidade da species a que
pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a medida de
cada species e sabe aplicar em toda a parte a medida inerente ao
objeto; por isso, o homem dá forma também segundo as leis da
beleza (cf., infra, as p. 312-313).147

Mas o trabalho, atividade vital específica do homem – que


o distingue da vida animal – não suprime a sua naturalidade.
Para Marx,
o homem (tal como o animal) vive da natureza [...] tanto na medida
em que ela é 1) um meio de vida imediato como na medida em que
ela é 2) o objeto/matéria e o instrumento da sua atividade vital. A
natureza é o corpo inorgânico do homem, quer dizer, a natureza na
medida em que não é ela própria corpo humano. O homem vive da
natureza significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de
permanecer em constante processo para não morrer. Que a vida física
e espiritual do homem esteja em conexão com a natureza, não tem
outro sentido senão que a natureza está em conexão com ela própria,
pois o homem é uma parte da natureza (cf., infra, as p. 310-311).148

Sinalizamos linhas acima que a perspectiva filosófico-antro-


pológica marxiana desenvolvida em 1844 ainda não se liberou
de algumas hipotecas ao pensamento de Hegel e de Feuerbach;
mas, ao mesmo tempo, dissemos que ela já patenteia vetores
de superação desses débitos (vetores que logo serão explicitados

60
J o s é P a u l o N e t t o

n’A ideologia alemã). O lastro feuerbachiano é visível no trato,


por Marx, da relação homem/natureza – por exemplo, com o
expressivo apelo, no “Caderno III”, à sensibilidade tal como
pensada por Feuerbach (cf., infra, a p. 355).149 Entretanto, neste
mesmo “Caderno III”, Marx escreve que o homem é um ser
da natureza ativo150 – a qualificação do homem como ser da
natureza ativo (ou, se se quiser, produtivo) colide abertamente
com a antropologia de Feuerbach, na qual o caráter ativo (pro-
dutivo) do homem carece de ponderação – como Marx haveria
de apontar cerca de um ano depois (na primavera de 1845), nas
suas Teses sobre Feuerbach.151 É a gravitação desta qualificação
que permitirá a Marx, ainda no próprio “Caderno III”, for-
mular o núcleo duro da sua compreensão do “ser da natureza
ativo”, que então aparece expressa e explicitamente: “[...] para
o homem socialista, toda a chamada história do mundo não é
senão a geração do homem pelo trabalho humano [...]” (cf., infra,
a p. 358 [os itálicos finais são meus – JPN ]). Eis aí o ponto
arquimédico da concepção filosófico-antropológica de Marx:
a emergência do ser do homem pela via da sua atividade vital, o
processo da autoconstituição (autoprodução) do homem mediante
o trabalho.152 O homem é, viu-se linhas acima, “uma parte da
natureza”; “o homem, porém, é não apenas ser da natureza, mas
ser da natureza humano” (cf., infra, a p. 377) – o ser do homem,
ao constituir-se pelo trabalho, é algo específico, diverso do ser
natural: o seu desenvolvimento supõe sempre a insuprimível
naturalidade do homem, mas implica a contínua redução dos
condicionalismos postos por ela (em formulações ulteriores, é o
que Marx vai caracterizar como o “afastamento” – ou “recuo”
– das “barreiras naturais”).153
No “Caderno I” (e, como se verá, também no “Caderno
III”), a relação do homem com a natureza, que Marx continuará
desenvolvendo ulteriormente na consideração do metabolismo

61
M a r x e m P a r i s

sociedade/natureza, não é apreendida como meramente utili-


tária e/ou unilateral (nada casual é a notação, que registramos
há pouco, de que o homem dá forma também segundo as leis da
beleza).154 Bem diversamente: “corpo inorgânico do homem”,
este se socorre dela (relaciona-se com ela) de modo omnilateral,
à diferença do animal, que o faz unilateralmente. No mesmo
passo, há pouco transcrito, em que caracterizou a “atividade
vital consciente” – distintiva do trabalho humano – Marx
pontuou: o animal
produz unilateralmente, enquanto o homem produz universal-
mente [...]; [o animal] produz-se apenas a si próprio, enquanto
o homem reproduz a natureza toda; o seu [do animal] produto
pertence imediatamente ao seu corpo físico, enquanto o homem
confronta livremente o seu produto (cf., infra, as p. 312-313).

A produção humana, que tem na natureza o objeto/matéria


e o instrumento da sua atividade vital, torna toda a natureza o
corpo inorgânico do homem, provando a sua universalidade e a
genericidade do seu ser. Para Marx,
o homem é um ser genérico não apenas na medida em que prática
e teoricamente torna objeto seu o gênero, tanto o seu próprio como
o das coisas restantes, mas também – e isto é apenas uma outra
expressão para a mesma coisa –, na medida em que ele se comporta
para consigo próprio como gênero vivo, presente, na medida em
que ele se comporta para consigo próprio como um ser universal,
por isso livre (cf., infra, a p. 310 [o último itálico é meu, JPN ]).

É sabido que procede de Feuerbach a ideia do homem como


ser genérico e consciente;155 Marx coincide com Feuerbach em
determinar a genericidade e a consciência como especificidades
humanas – mas, à diferença dele, diferença essencial, e em razão
do caráter ativo (produtivo) que atribui ao homem, vê que este
só na elaboração do mundo objetivo [...] se prova realmente como
ser genérico. Esta produção é a sua vida genérica operativa. Por ela, a

62
J o s é P a u l o N e t t o

natureza aparece como obra sua e sua realidade. O objeto do trabalho


é, portanto, a objetivação da vida genérica do homem, na medida em
que ele se duplica não só intelectualmente, como na consciência,
mas também operativamente, (werktätig) realmente, e contempla-se
por isso num mundo criado por ele (cf., infra, a p. 313 [os últimos
itálicos são meus [JPN]).

Daí porque, para Marx, o homem, nas suas genericidade


e consciência, é um ser objetivo. No “Caderno III”, no excurso
sobre Hegel, ele o afirma expressamente: referindo-se ao “ho-
mem real, corpóreo, de pé sobre a terra bem redonda e firme,
expirando e inspirando todas as forças da natureza”, verifica que
o ser objetivo opera objetivamente e não operaria objetivamente se o
objeto não residisse na sua determinação essencial. [...] o seu produto
objetivo apenas confirma a sua atividade objetiva, a sua atividade
como a atividade de um ser natural objetivo. [...] Que o homem é
um ser objetivo [...] significa que ele tem objetos sensíveis, reais por
objeto da sua essência, da sua exteriorização de vida ou que só pode
exteriorizar a sua vida em objetos sensíveis reais (cf., infra, a p. 375).

E de forma conclusiva: “Um ser que não tenha nenhum


objeto fora de si não é nenhum ser objetivo. [...] Um ser não
objetivo é um não ser” (cf., infra, a p. 376).
Ora, a exteriorização (objetivação) básica do homem é o
trabalho, que torna real e objetiva a sua atividade vital livre e
consciente, pela qual se faz ser genérico – e a
vida produtiva é a vida genérica. É a vida que gera vida. No modo
de atividade vital reside todo o caráter de uma species, o seu caráter
genérico, e a atividade consciente e livre é o caráter genérico do
homem (cf., infra, a p. 311)

– sublinhe-se com a máxima ênfase: o trabalho somente enquanto


“a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem”;
não o é, por exemplo, na forma (histórica) do que Marx chamou,
nos Cadernos, de “trabalho lucrativo” [Erwerbsarbeit] (cf., infra,

63
M a r x e m P a r i s

a p. 212), claramente uma designação do trabalho alienado, de


que se ocupa o “Caderno I” dos Manuscritos e a que logo vol-
taremos.156 Posto nesta atividade consciente e livre,
O gerar prático de um mundo objetivo, a elaboração da natureza
inorgânica é a prova do homem como um ser genérico consciente,
i. é, um ser que se relaciona para com o gênero como sua própria
essência ou para consigo como ser genérico (cf., infra, p. 312).

A perspectiva filosófico-antropológica marxiana, configu-


rando-se neste primeiro semestre de 1844, está em construção
e, portanto, ainda em aberto: ela só adquirirá mais densidade
teórico-filosófica no curso dos dois próximos anos, enriquecendo-
-se e ganhando novas determinações nas Teses sobre Feuerbach e
n’A ideologia alemã, quando então tomará seus traços definitivos.
Contudo, já seu núcleo central – que sintetizamos linhas acima:
o ser do homem autoproduz-se e autoconstitui-se mediante o traba-
lho – confere ao homem a especificidade que se expressa na sua
sociabilidade, resultante processual da prática operativa que é o
trabalho: especialmente no “Caderno III”157, o humano, colocado
pelo trabalho, identifica-se expressamente ao social (cf., infra,
“Propriedade privada e comunismo”, p. 340 e ss). Quando supe-
rada a propriedade privada, a sociabilidade humana revelar-se-á
como tal: o ser do homem (o ser humano do homem) mostrar-se-á
ser social, mesmo quando ele exercer uma atividade na aparência
solitária e/ou puramente individual, p. ex. e em geral, como a
elaboração teórico-científica – até nesta atividade
que eu raramente posso executar em comunidade imediata com
outros, estou socialmente ativo, porque [ativo] como homem. Não
só o material da minha atividade – como a própria língua na qual
o pensador é ativo – me é dado como produto social, a minha
existência própria é atividade social; por isso, o que eu faço de
mim, faço de mim para a sociedade e com a consciência de mim
como um ser social (cf., infra, a p. 347).

64
J o s é P a u l o N e t t o

E é na continuidade desta notação que Marx salienta ser


sobretudo de evitar fixar de novo a “sociedade” como abstração
face ao indivíduo. O indivíduo é o ser social. A sua exteriorização
de vida – mesmo que ela não apareça na forma imediata de uma
exteriorização de vida comunitária, levada a cabo simultaneamente
com outros – é, por isso, uma exteriorização e confirmação da vida
social. [...] O homem – por muito que seja portanto um indiví-
duo particular e, precisamente, a sua particularidade faz dele um
indivíduo e uma comunidade [Gemeinwesen] individual real – é
tanto a totalidade, a totalidade ideal, a existência subjetiva para si
da sociedade sentida e pensada como também existe na realidade,
quer como intuição e fruição real da existência social, quer como
uma totalidade de expressão humana (Lebensäußerung) de vida
(cf., infra, p. 348).158

Estas últimas reflexões – que, também elas, serão apro-


fundadas e redimensionadas, seja nas Teses sobre Feuerbach,
seja n’A ideologia alemã, e que enfim vão se consolidar nos
Grundrisse – mostram que, já nos inícios (mas também ao
longo) de sua obra, Marx não contrapõe e/ou hipostasia indi-
víduo e sociedade, o que lhe permite sobrepassar os pseudo-
-problemas que marcariam depois, no curso de sua história,
algumas expressivas obras da tradição sociológica acadêmica159.
Mas, por agora, o que interessa assinalar é que salta à vista a
gravitação da “exteriorização humana de vida” na “existência
social”: o “exteriorizar-se” é o “confirmar-se” da vida social.
Ora, a reiterada insistência de Marx no processo do “gerar
prático de um mundo objetivo” – vale dizer, no trabalho –,
do qual natureza e homem são partes constituintes e consti-
tutivas,160 põe o ser do homem como prático e social – ou, tal
qual o quiseram especialmente os filósofos do grupo Práxis,
como um ser da práxis.161
Enquanto categoria, a práxis está presente, explícita e deci-
sivamente, nas Teses sobre Feuerbach;162 julgo ser pouco discu-

65
M a r x e m P a r i s

tível a sua compreensão como prática social produtiva, objetiva,


tendo por sujeito os homens e objeto a natureza – embora se
direcionando também a outros homens, numa peculiar relação
sujeitos/sujeitos. Mas também julgo ser pouco discutível que
tal compreensão, evidentemente matrizada pela concepção
marxiana de trabalho que tem seu primeiro desenho nos Ma-
nuscritos e será posteriormente desenvolvida (cf., supra, a nota
147), atravessa o conjunto da reflexão marxiana a partir de 1844.
Que a matriz da práxis em Marx reside no trabalho parece-me
algo também pouco discutível: os traços pertinentes deste são
essenciais e constitutivos daquela – vê-se, pois, a razão de Lukács
afirmar com propriedade e segurança que o trabalho é o modelo
da práxis, ainda que esta categoria seja mais abrangente e que
o trabalho, como tal, não esgote, em absoluto, a práxis (ou, o
que dá no mesmo, que a práxis não se reduz ao trabalho).163 Se
é assim, a práxis é constitutiva da essência humana [menschli-
ches Wesen], núcleo da concepção filosófico-antropológica que
Marx está articulando em 1844, conexa (mas não idêntica) à
natureza humana [menschliche Natur], concepção que atravessa
os Manuscritos (e não só) e que haverá de tornar-se objeto de
acesa polêmica na tradição marxista.164
Como esta apresentação já vai se alongando mais que o
devido, valer-me-ei aqui da correta síntese que Heller ofereceu
da primorosa análise de Márkus sobre a concepção marxiana
de essência humana165 – após afirmar que “a ‘essência humana’
é também ela histórica” e que “a história é, entre outras coisas,
história da explicitação da essência humana, mas sem identifi-
car-se com esse processo”, Heller sumaria assim o resultado da
pesquisa de Márkus:
as componentes da essência humana são, para Marx, o trabalho
(a objetivação), a socialidade, a universalidade, a consciência e
a liberdade. A essência humana, portanto, não é o que ‘esteve

66
J o s é P a u l o N e t t o

sempre presente na humanidade’ (para não falar mesmo de cada


indivíduo), mas a realização gradual e contínua das possibilidades
imanentes à humanidade, ao gênero humano.166

Está claro: a essência humana, assim tomada e assim posta


em 1844 pela concepção filosófico-antropológica de Marx,
nada tem em comum com concepções essencialistas, supra
ou a-históricas, que a pensam como algo dado, fixo e eterno.
Trata-se de uma estrutura antropológica dinâmica, que dispõe
de possibilidades produzidas pelos homens no processo de
constituição do ser social deflagrado pelo trabalho, possibili-
dades portanto mutáveis – possibilidades que se constituem, se
explicitam e se transformam no curso da história. É fato que,
em 1844, a concepção filosófico-antropológica marxiana carece
de uma fundamentação histórico-concreta ampla e profunda,
antes resultando, sobretudo, de uma reflexão ainda de base
dominantemente filosófica; já n’A ideologia alemã explicita-se a
recorrência econômico-política e histórica167 que, como temos
insistido, só ganhará inteira densidade no curso da década se-
guinte quando, então, Marx esclarecerá como, expressando o
desenvolvimento das capacidades do gênero humano, aquelas
possibilidades objetivam-se mediante um processo, também ele,
historicamente determinado e imanentemente contraditório.168
Pois bem: feito esse breve excurso sobre a concepção filosófico-
-antropológica marxiana que se constitui em 1844, podemos
retornar à questão do desapossamento do trabalho – atentando
para as suas implicações e resultantes, expressas no fenômeno e no
processo da alienação do operário (e não só dele). Marx constatou
o fenômeno, vimo-lo páginas atrás, como um “fato nacional-
-econômico, presente”, partindo “dos pressupostos da economia
nacional” e aceitando “a sua linguagem e as suas leis”;169 mas ele
estabeleceu a sua crítica elevando-se “acima do nível da economia
nacional” – isto é, tratando-o como fato e processo à luz da (nova)

67
M a r x e m P a r i s

perspectiva propiciada pela sua concepção filosófico-antropológica. A


esta luz, Marx, no “Caderno I”, relaciona diretamente salariato,
trabalho exteriorizado (i. é, trabalho alienado) e propriedade
privada: “Salário é uma consequência imediata do trabalho
alienado e o trabalho alienado é a causa imediata da propriedade
privada” (cf., infra, a p. 318)170 – por isso, a propriedade privada
é vista “enquanto a expressão material, resumida, do trabalho
exteriorizado” (cf., infra, as p. 320-321). Linhas antes, todavia,
Marx já desenvolvera com mais elementos tais relações:
[...] através do trabalho alienado, exteriorizado, o trabalhador gera a
relação de um homem alienado ao trabalho e postado (stehenden)
fora deste trabalho. A relação do trabalhador com o trabalho gera
a relação daquele para com o capitalista [...].
A propriedade privada é, portanto, o produto, o resultado, a con-
sequência necessária do trabalho exteriorizado [...] A propriedade
privada resulta, portanto, por análise, a partir do conceito de
trabalho exteriorizado, i. é, do homem exteriorizado, do trabalho
alienado, da vida alienada, do homem alienado.
É certo que obtivemos o conceito de trabalho exteriorizado (da vida
exteriorizada) a partir da economia nacional como resultado do
movimento da propriedade privada. Mas a análise deste conceito
mostra que, se a propriedade privada aparece como fundamento,
como causa do trabalho exteriorizado, ela é antes uma consequên­
cia do mesmo, assim como também originariamente os deuses
não são a causa, mas o efeito do extravio do entendimento hu-
mano (menschlichen Verstandesverirrung). Mais tarde essa relação
converte-se em ação recíproca.
Unicamente no ponto culminante do desenvolvimento da proprie-
dade privada se evidencia de novo o seu segredo, a saber: por um
lado, que ela é o produto do trabalho exteriorizado e, por outro, que
ela é o meio através do qual o trabalho se exterioriza, a realização
dessa exteriorização (cf. infra, as p. 316-317).

Ainda voltaremos à questão do “movimento da propriedade


privada”. A esta altura, interessa somente observar que a relação
trabalho desapossado/propriedade privada é permeada pela di-

68
J o s é P a u l o N e t t o

visão do trabalho (que, já nos Cadernos, é também posta como


expressão alienada). Num importante fragmento dedicado a
ela nos Manuscritos, Marx registra:
A divisão do trabalho é a expressão nacional-econômica da sociali-
dade do trabalho no interior da alienação. Ou, dado que o traba-
lho é apenas uma expressão da atividade humana no interior da
exteriorização, da expressão de vida como exteriorização de vida,
assim também a divisão do trabalho não é senão o pôr alienado,
exteriorizado, da atividade humana como uma atividade genérica
real ou como atividade do homem como ser genérico. [...] [A divisão
do trabalho é a] figura alienada e exteriorizada da atividade humana
como atividade genérica (cf., infra, a p. 407).171

Divisão do trabalho que se conecta com a produção mer-


cantil, que, segundo o “Caderno II”, não apenas produz bens
para a troca, mas que é a produção que
produz o homem não só como uma mercadoria, a mercadoria-
-homem, o homem na determinação de mercadoria, o produz,
correspondendo a essa determinação, como um ser desumani-
zado (entmenschtes Wesen) tanto espiritual como corporalmente
– imoralidade, disformidade, imbecilidade dos trabalhadores e
dos capitalistas. O seu produto é a mercadoria autoconsciente e
autoativa (cf., infra, a p. 325).172

Ora, todas as reflexões formuladas por Marx a partir daquele


“fato nacional-econômico, presente” têm o seu caráter crítico
hipotecado à sua concepção filosófico-antropológica: é a perspec-
tiva posta por esta que possibilita a ele colocar-se efetivamente
“acima” das “leis” e da “linguagem” da Economia Política.
Para sermos diretos: a categoria propriedade privada só pôde
ser fundada a partir da categoria trabalho alienado,173 mas esta
só pôde ser elaborada quando Marx, sobre a base da sua concep-
ção filosófico-antropológica – com a sua compreensão de essência
humana –, apreendeu como a alienação trava o desenvolvimento
desta essência, compromete-a, fere-a, lesiona-a, violenta-a e a

69
M a r x e m P a r i s

nulifica. Vê-se que a crítica marxiana da alienação remete,


pois, à distinção existência/essência humanas que se inscreve na
condição operária.174
As considerações que expendemos no excurso precedente
(e também o que consignamos ao tratar dos Cadernos) permi-
tem compreender melhor as dimensões do desapossamento que
constitui o trabalho alienado e, nas implicações que dele são
apresentadas nos Manuscritos, a processualidade da alienação.
Uma vez estabelecido que
• o trabalho alienado é tão somente uma forma de tra-
balho: está na base de uma relação interatuante que
constitui (e se constitui com) a propriedade privada, que
implica a divisão do trabalho e a produção mercantil;
ela é, porém, a única forma de trabalho que a Economia
Política reconhece, hipostasiando-a e conferindo-lhe um
caráter natural e eterno (próprio de uma concepção de
natureza humana supra-histórica, tal como aparece, p.
ex., em Smith175) e que
• nesta forma histórica de trabalho se efetiva a objetivação
do operário, uma efetivação que – posta a propriedade
privada – converte a objetivação em alienação; essa
conversão (que tem implicações contraditórias) tende
à máxima hipertrofia quando o movimento da pro-
priedade privada faz com “que a essência universal da
riqueza seja reconhecida, e por isso o trabalho, na sua
absolutidade completa, i. é, abstração, seja elevado a
princípio.” (cf., infra, a p. 339),176
Marx pode examinar a alienação, determinando177

1. a alienação do trabalhador do produto do seu trabalho


o “produto do trabalho” é algo que só existe como resultan-
te da atividade do operário sobre material posto primariamente

70
J o s é P a u l o N e t t o

pela natureza – “O trabalhador não pode criar nada sem a


natureza, sem o mundo exterior sensível ” (cf., infra, a p. 306).
Mas “o produto do trabalho não pertence ao trabalhador”,
“pertence a um outro homem fora o trabalhador” – o trabalha-
dor é alienado do produto do seu trabalho e, pois, não exerce
controle sobre ele. É por isto que “o objeto produzido pelo
trabalho”, autonomizado em face do operário, apresenta-se
a ele “como um ser alienado [ein fremdes Wesen], como um
poder independente do produtor” (cf., infra, a p. 304). Assim, a
realização do trabalho, “na situação nacional-econômica” (ou
seja, como “trabalho lucrativo”, nas condições da propriedade
privada, da divisão social do trabalho e da produção mercan-
til), aparece “como desrealização do operário, a objetivação
como perda do objeto e servidão ao objeto, a apropriação como
alienação [Entfrendung], como exteriorização [Entäusserung]”.
Em suma: para o operário, o produto do seu trabalho não só
se torna um objeto, uma existência exterior, mas também
de que ele existe fora dele, independente e alienado a ele e se
torna um poder autônomo frente a ele, de que a vida, que ele
emprestou ao objeto, o enfrenta de modo hostil e alienado (cf.,
infra, a p. 306).

Vê-se: a exteriorização do trabalho retira da atividade que


é o trabalho a possibilidade de o operário “contempla[r]-se [...]
num mundo criado por ele” – o “mundo criado por ele” é-lhe
“alienado” e “hostil”; na exata medida em que a concepção
filosófico-antropológica de Marx considera que, pela atividade
consciente e livre do trabalho, “o seu [do homem] produto ob-
jetivo apenas confirma a sua atividade objetiva”, ele não pode
senão criticar radicalmente a alienação do produto da sua ati-
vidade de que, para o operário, resulta na “perda do objeto” e
na sua “servidão” a ele, posto que a produção do operário seja
também a produção de um poder alheio, um poder do objeto

71
M a r x e m P a r i s

criado sobre o operário (um poder da criação sobre o criador).


Segundo Marx, a alienação do produto do trabalho expressa
“a expressão de vida como exteriorização de vida”. Entretanto,
ele já notara que “na alienação do objeto do trabalho resume-
-se apenas a alienação, a exteriorização na atividade do próprio
trabalho”; por isto, é preciso dilucidar

2. a alienação no processo da produção178


é na relação do operário com a sua própria atividade, no
ato e no processo da produção, no interior da própria atividade
produtiva que se engendra o resultado alienado que se mani-
festa na alienação no/do produto. Segundo Marx, a alienação
do trabalho consiste em sua exterioridade em relação ao operário,
em seu caráter involuntário (coercitivo) e na autoalienação que
impõe ao operário. Consiste
em que o trabalho é exterior ao trabalhador, i. é, não pertence à
sua essência, que ele não se afirma, antes se nega, no seu trabalho,
não se sente bem, mas desgraçado; não desenvolve qualquer livre
energia física ou espiritual, antes mortifica o seu físico (Physis) e
arruína o seu espírito. Por isso, o trabalhador se sente, antes, em
si fora do trabalho e fora de si no trabalho. [...] O seu trabalho
não é, portanto, voluntário, mas coagido (gezwungen), trabalho
forçado (Zwangsarbeit). Ele não é, portanto, a satisfação de uma
necessidade, mas é apenas um meio para satisfazer necessidades
externas a ele [...]. A exterioridade do trabalho para o trabalha-
dor aparece no fato de que ele não é [trabalho] seu, mas de um
outro [...] a atividade do trabalhador não é a sua autoatividade.
Ela pertence a um outro, ela é a perda dele próprio (cf., infra,
as p. 308-309).

Nestas linhas de Marx se traduz perfeitamente a sua con-


cepção filosófico-antropológica: é central, aqui, a determinação
de que o trabalho desapossado não pertence à sua [do operário]
essência: não atende à necessidade do operário como homem

72
J o s é P a u l o N e t t o

(a necessidade de objetivar-se) – porque não é a “atividade


livre consciente”, específica do ser do homem179, é tão somente
atividade-meio para satisfazer necessidades alheias. No próprio
processo do trabalho, assim, o operário se aliena de si: daquilo
que não é autoatividade resulta a perda dele próprio (autoalie-
nação);

3. a alienação da vida genérica


já se verificou a relevância da genericidade humana na con-
cepção filosófico-antropológica de Marx: o homem é “um ser
que se relaciona para com o gênero como sua própria essência
ou para consigo como ser genérico” – ora, acabou-se de ver (logo
acima, em 2) que, no trabalho alienado, a atividade humana
é a perda do operário, a sua autoalienação: a alienação de si é,
também e simultaneamente, a alienação do homem em relação
ao seu ser genérico – pois “na medida em que arranca ao homem
o objeto da sua produção [que é a objetivação da vida genérica do
homem], o trabalho alienado arranca-lhe a sua vida genérica, a
sua real objetividade genérica” e “faz da vida genérica do homem
um meio para a sua existência física”; realmente, “a consciência
que o homem tem do seu gênero transforma-se, portanto, pela
alienação, de modo que a vida genérica se torna um meio para
ele”. Em conclusão, para Marx, o trabalho alienado torna “o ser
genérico do homem – tanto a natureza como a sua capacidade
espiritual genérica – numa essência alienada a ele, num meio
da sua existência individual” (cf., infra, a p. 313).
Sob a lente da concepção filosófico-antropológica de Marx,
a alienação da vida genérica do homem também tem por im-
plicação:
a) a alienação do homem em face da natureza – transformada
a “vida genérica do homem” num meio para a sua “existência
física”, perde-se a unidade homem/natureza e não se compreende

73
M a r x e m P a r i s

que “a natureza que devém na história humana [...] é a natureza


real do homem”, nem que “a própria história é uma parte real
da história da natureza, do devir da natureza até ao homem” (cf.,
infra, a p. 355). A relação do trabalhador com a natureza também
se torna uma “relação exterior” (cf., infra, a p. 317) – e, nela, a
natureza não pode revelar-se como “obra sua e sua realidade” (do
homem)180: assim, na alienação da natureza, aliena-se também a
essência humana – o trabalho alienado “aliena do homem o seu
corpo próprio, bem como a natureza fora dele, bem como a sua
essência espiritual, a sua essência humana” (cf., infra, a p. 314);
b) a alienação do homem em relação ao homem – é consequência
da alienação do seu ser genérico a “alienação do homem do homem”.
E Marx clarifica: “a proposição de que ao homem está alienado o
seu ser genérico significa que um homem está alienado do outro,
tal como cada um está alienado da sua essência humana.181 [...] A
alienação do homem [...] primeiro se realiza, se exprime, na relação
em que o homem está para com o outro homem” (cf., infra, a p.
314).182 Posta a alienação do ser genérico, o trabalhador, ao produzir,
não produz apenas objetos – produz também a relação estranha e
hostil com os outros homens: a alienação não somente o envolve
(autoalienação), mas envolve os outros homens e as suas relações
recíprocas.183 Do trabalho alienado resulta não somente a alienação
dos produtores diretos (os trabalhadores): resulta uma sociedade
alienada ou, para retomar a expressão marxiana dos Cadernos, a
caricatura de uma comunidade humana.
Ao modo de resumo das determinações marxianas de 1844
da alienação até aqui salientadas, valem como sintetizadoras as
pontuações de Sánchez Vázquez:
a) se se arranca ao homem o seu produto e se este se enfrenta a ele
porque pertence a outro, isto significa que o operário, seu produtor,
encontra-se numa relação de estranhamento com o outro a que
pertence o “seu” produto;

74
J o s é P a u l o N e t t o

b) se o operário se enfrenta a si mesmo, ao lhe ser alheia ou estranha


a sua atividade, enfrenta-se também ao outro homem: o que se
apropria dela ou do seu resultado;
c) se o homem aliena o seu ser genérico ao fazer dele um meio de
existência para sobreviver, isto significa que a sua relação com os
outros se torna alheia, estranha à sua vida individual (Sánchez
Vázquez, El joven Marx..., ed. cit., p. 96-97).

Antes de prosseguir nesta aproximação aos Manuscritos,


importa-me sinalizar enfaticamente um traço decisivo da teoria
marxiana da alienação – alienação que, para Marx, é processo
especificamente humano, social –, traço que, apontado já nos
Cadernos, se configura inteiramente nos Manuscritos: “No mundo
real prático, a autoalienação só pode aparecer através da relação
real prática com outros homens. O meio pelo qual a alienação
procede é ele próprio um meio prático” (cf., infra, a p. 316).184 Já
assinalamos que, à diferença do materialista Feuerbach (e também,
obviamente, de Hegel, em função do seu idealismo), que centrou a
sua elaboração sobre a alienação num fenômeno da consciência (o
fenômeno religioso), o alvo da preocupação de Marx – impensável
sem o seu cuidado crítico da Economia Política – foi a alienação
na vida real, efetiva, dos homens. Com os Manuscritos, o trata-
mento da alienação experimentou um giro radical: deslocou-se do
nível das expressões ideais, anímicas, filosóficas e foi inscrito no
mundo prático, efetivo, das relações econômico-sociais (e políticas)
dos homens. Por isto mesmo, é inerente à – e indescartável da –
perspectiva marxiana a ideia de que a superação da alienação não
pode nem há de se realizar no domínio da consciência (incluído
aí o mais elaborado conhecimento teórico que, evidentemente, é
necessário para tal superação): se ela procede por meios práticos, só
meios igualmente práticos poderão superá-la.185
Claro que a problemática do dinheiro (num movimento
que acompanha a reflexão de Marx desde “Para a questão ju-
daica”) comparece nos Manuscritos – todavia, sem a riqueza da

75
M a r x e m P a r i s

abordagem que dela se fez nos Cadernos.186 O fragmento sobre


o dinheiro (cf., infra, as p. 414) nada acrescenta de substantivo
à análise oferecida nas notas sobre James Mill.187 De fato, no
“Caderno III”, Marx reitera que o dinheiro tem por essência o
ser genérico do homem – “alienado, exteriorizando e vendendo-se
[entfremdeten, entäusserden und sich veräussernden]. Ele é o poder
[Vermögen] exteriorizado da humanidade” (cf., infra, a p. 418).
Mas se no “Caderno III” não há elementos mais expressivos
sobre o dinheiro que aqueles já formulados nos Cadernos, é fato
que ele tematiza a questão das necessidades (já tangenciada nos
comentários a James Mill – cf., infra, a p. 212 e ss.) e põe uma
nova questão, a da superação da alienação, vale dizer: a questão
do comunismo.188 Mas, antes de tratá-las, devemos dizer algo do
“Caderno II”.
Dos Manuscritos, como vimos, precisamente o “Caderno
II” é aquele que nos chegou em tal estado – apenas 4 páginas, o
fragmento que recebeu, quando da publicação dos Manuscritos, o
título de “A relação da propriedade privada” (cf., infra, as p. 323-
333) – que não é possível senão levantar hipóteses sobre a maior
parte do seu conteúdo.189 Das poucas páginas que conhecemos,
porém, resulta claro que Marx está perseguindo o movimento da
propriedade privada, movimento a que ele aludira no “Caderno
I” (já citamos o passo em que ele anota: “É certo que obtivemos
o conceito de trabalho exteriorizado [...] a partir da economia na-
cional como resultado do movimento da propriedade privada”). Ele
se detém sobre este movimento em duas passagens do “Caderno
II” e na abertura do “Caderno III” (lembre-se que o fragmento
“Propriedade privada e trabalho” é um complemento ao “Caderno
II”). A primeira dessas passagens é a seguinte:
A relação da propriedade privada contém em si latente a relação da
propriedade privada como trabalho, assim como a relação da mesma
como capital e a ligação de ambas expressões uma com a outra. A

76
J o s é P a u l o N e t t o

produção da atividade humana como trabalho, portanto como uma


atividade totalmente alienada a si, ao homem e à natureza, portanto
também alienada à consciência e à expressão da vida; a existência
abstrata do homem como um simples homem de trabalho, que,
portanto, pode precipitar-se diariamente do seu nada preenchido
(erfüllten) para o nada absoluto, para a sua não existência social e,
por isso, a sua não existência real190 – assim como, por outro lado, a
produção do objeto da atividade humana como capital, em que toda
a determinidade natural e social do objeto está apagada, a proprieda-
de privada perdeu a sua qualidade natural e social (portanto perdeu
todas as ilusões políticas e gregárias [geselligen] e não se confunde
com quaisquer relações aparentemente humanas), – em que também
o mesmo capital permanece o mesmo na mais diversificada existência
natural e social, sendo completamente indiferente perante o con-
teúdo real desta – esta oposição levada ao extremo é necessariamente
o extremo, o cume e a decadência da relação toda (cf., infra, a p. 326
[os itálicos da última frase são meus – JPN]).

A frase final diz respeito, exatamente, ao movimento da


propriedade privada, cuja natureza alienada fora posta de mani-
festo no “Caderno I”; aqui, ela é relacionada não só ao trabalho,
obviamente trabalho alienado (“atividade totalmente alienada
a si, ao homem e à natureza”), mas ao capital, igualmente um
produto alienado (que “não se confunde com quaisquer relações
aparentemente humanas”) e agora se põe em questão a conexão
(a ligação) “de ambas expressões uma com a outra” – conexão
que constitui uma oposição em movimento, que experimenta
diferentes estágios (“cume”, “decadência”). E, avançando para
determinar essa conexão, Marx escreve, na segunda passagem
que nos interessa:
A relação da propriedade privada é trabalho, capital e a ligação de
ambos. O movimento que esses membros têm de percorrer são:
Primeiro: unidade imediata ou mediata de ambos.
Capital e trabalho primeiro ainda unidos; depois, com efeito,
separados e alienados, mas erguendo-se e estimulando-se recipro-
camente como condições positivas.

77
M a r x e m P a r i s

Oposição de ambos. Excluem-se reciprocamente, e o trabalhador


sabe que o capitalista é a sua não existência e inversamente; cada
um procura arrancar ao outro a sua existência.
Oposição de cada um contra si próprio. Capital = trabalho acu-
mulado = trabalho. [...]
Oposição recíproca hostil (cf., infra, as p. 332-333).

Tanto no que restou do “Caderno II” como no fragmento que


é seu complemento no “Caderno III”, Marx procura sustentação
histórica para a sua argumentação – e isto porque ele põe o mo-
vimento da propriedade privada como um movimento real: daí a
recorrência marxiana, nestas páginas, ao confronto entre a proprie-
dade fundiária (territorial) e a propriedade industrial capitalista (cf.,
infra, a p. 327 e ss.). A esta altura do seu desenvolvimento crítico-
-teórico, compreende-se que ele ainda esteja longe de fundamentar
suficientemente a sua apreensão do movimento da propriedade
privada, que expressa igualmente – como bem percebeu Nicolai
Lápine – as “etapas da evolução do trabalho alienado”191. Trata-se
de um movimento necessário, porque é o curso que leva de uma
forma histórica de propriedade privada menos desenvolvida (a pro-
priedade fundiária) para a que lhe é superior, porque moderna e
mais desenvolvida192 – movimento necessário à propriedade privada
para que ela se desenvolva plenamente, alcançando, na forma do
capital industrial, a sua “figura objetiva explicitada”, mediante a
qual “a propriedade privada pode explicitar (vollenden) a sua do-
minação sobre o homem e tornar-se, em forma mais universal, um
poder histórico-mundial.” (cf., infra, a p. 340). O esforço de Marx
procura se calçar, no “Caderno II” e no seu complemento, na tran-
sição histórica que vai marcar, no “curso real do desenvolvimento”
da propriedade privada, “a necessária vitória do capitalista, i. é, da
propriedade privada desenvolvida sobre o proprietário da terra”
(cf., infra, a p. 332)193. O curso deste processo, Marx verifica-o
como contraditório, quer no seu andamento (“a essência subjetiva

78
J o s é P a u l o N e t t o

da indústria constituindo-se em oposição à propriedade fundiá-


ria” – cf., infra, as p. 339-340), quer na sua conclusão, quando a
propriedade privada consuma a sua dominação – é então que a
contradição pode emergir nitidamente: até aqui, a
oposição (Gegensatz) de sem propriedade e propriedade é ainda
indiferente, não apreendida na sua ligação ativa, na sua relação
interna, ainda não como contradição (Widerspruch), enquanto não
for concebida como a oposição do trabalho e do capital (cf., infra,
a p. 340-341)

– mas, consumada a dominação da propriedade privada, o seu


“poder histórico-mundial”, e já apreendido o trabalho “como
a essência subjetiva da propriedade privada como exclusão da
propriedade” e o capital, “o trabalho objetivo como exclusão do
trabalho”, então a propriedade privada se põe na “sua relação
desenvolvida da contradição, por isso uma relação enérgica que
impele à resolução” (cf., infra, a p. 341 [os itálicos finais são meus
– JPN ]). Voltaremos, logo adiante, a este ponto fundamental
(um ponto de comutação, como diria Bloch).
Neste mesmo “Caderno II” e em seu complemento, Marx
observa como o movimento real da propriedade privada se
refrata na sua reprodução ideal pela Economia Política – daí as
suas notações sobre o mercantilismo, a fisiocracia e a “recente
economia nacional inglesa” (a designação é dele mesmo – cf.,
infra, a p. 325)194. É notável como Marx, já nos seus primeiros
estudos, relaciona o evolver da teoria econômica à dinâmica
histórica da economia – ele apanha a fisiocracia de Quesnay
como transição do mercantilismo para Smith (cf., infra, a p.
338). O fetichismo dos mercantilistas, que viam a riqueza nos
elementos naturais (metais e pedras preciosas), é deslocado
pelos fisiocratas, que viam a riqueza como produto do traba-
lho – ainda que só reconhecessem como trabalho produtor de
riqueza o que se operava sobre a terra; com os fisiocratas, pois,

79
M a r x e m P a r i s

a essência subjetiva da riqueza é já transferida para o trabalho. Mas,


ao mesmo tempo, a agricultura é o trabalho unicamente produtivo.
Assim, o trabalho ainda não é apreendido na sua universalidade e
abstração, ainda está vinculado a um elemento natural particular
como sua matéria, por isso ele é ainda reconhecido também apenas
num particular modo de existência determinado pela natureza (cf.,
infra, as p. 338-339).

Ora, o mérito de Smith – só viável pela dinâmica histórica


real das relações econômicas, pela emersão da indústria moderna
(resultado, pois, do que Engels, pioneiramente, designará por
“revolução industrial”195) – consistiu na descoberta da “essência
subjetiva da riqueza”, suprimindo “a riqueza que se encontra
fora do homem e independente dele”196. A Economia Política, a
partir de Smith, pode assestar seus últimos golpes na fisiocracia
e conceber o trabalho, “na sua universalidade e abstração”, como
“a única essência da riqueza”– este “imenso progresso” (como
mais de 20 anos depois dirá Marx197), dados os vieses ideoló-
gicos dos economistas que posteriormente Marx reconhecerá
como “clássicos”, tem como contrapartida o cinismo que se
desenvolverá na Economia Política, aquele cinismo que, como
se viu, não cancela a “probidade” de um Ricardo. O “imenso
progresso” refrata, na consciência teórica dos “clássicos”, a
tendência real à consumação do movimento da propriedade
privada: na realidade da economia contemporânea de Marx,
na sua atualidade (forçando-se a mão, dir-se-ia: na efetividade
do já posto capitalismo198), esta tendência já era notável para o
“jovem” Marx:
Toda a riqueza se tornou riqueza industrial, riqueza do trabalho,
e a indústria é o trabalho explicitado, tal como a essência fabril é
a essência desenvolvida da indústria, i. é, do trabalho, e o capital
industrial é a figura objetiva explicitada (vollendete) da propriedade
privada. Vemos também como só agora a propriedade privada
pode explicitar (vollenden) a sua dominação sobre o homem e

80
J o s é P a u l o N e t t o

tornar-se, em forma mais universal, um poder histórico-mundial


(cf., infra, a p. 340).199

A esta altura, será esclarecedora a recorrência, num bre-


víssimo resumo, à análise de Lápine (cf. O jovem Marx, ed.
cit., p. 270-276), que associa a passagem dos Manuscritos que
transcrevemos acima (e cuja frase final é “Oposição recíproca
hostil” – cf., supra, a p. 78) às notas dos Cadernos sobre James
Mill e identifica o que considera serem as etapas da evolução do
trabalho alienado. Na segura interpretação de Lápine, daquele
movimento da propriedade privada pode-se apreender o pro-
cesso diferenciado de constituição do trabalho alienado:
1ª) inicialmente, num estágio bárbaro, selvagem, não há
alienação; o trabalho e seus produtos serviam apenas para aten-
der às necessidades do homem (num estágio bárbaro) em meios
de subsistência; então, todo o trabalho acumulado pertence ao
próprio produtor200 (diz Marx: “Capital e trabalho primeiro
ainda unidos” – cf., infra, a p. 333);
2ª) etapa em que surge a troca direta: o produtor dispõe da
posse de um excedente que ele produz, mas tem necessidade de
bens produzidos por outrem. Agora, diz Marx, trabalho e capital
separam-se, “mas erguendo-se e estimulando-se reciprocamente
como condições positivas” (cf., infra, a p. 333). Desenvolvendo-
-se a troca e a divisão do trabalho, o produto aliena-se do seu
produtor e as relações sociais tornam-se também um ato gené-
rico exterior e alienado;201
3ª) etapa na qual, ademais da alienação do produto, que já
ocorria na anterior, opera-se a alienação da atividade de traba-
lho, marcada pelo surgimento do equivalente cujo papel não
para de crescer e que substitui tudo – o dinheiro. Então, mais
desenvolvida ainda a divisão do trabalho, a troca e o trabalho se
tornam meros meios para o ganho (o que então Marx chamava

81
M a r x e m P a r i s

de trabalho lucrativo) e a alienação passa a envolver as forças


essenciais do homem;202
4ª) os efeitos das etapas anteriores determinam – conforme
Lápine – a acumulação do trabalho de outrem, ou seja, “do
capital no sentido próprio do termo e a sua oposição ao trabalho
direto. [...] A oposição entre o trabalho e o capital aparece aqui
sob a forma de oposição entre o trabalho agrícola e a renda da
terra”, mas a essência dessa oposição é mascarada por uma série
de circunstâncias;203
5ª) enfim, na última etapa, tais circunstâncias são supri-
midas, nas palavras de Marx, quando “o desenvolvimento
necessário do trabalho” põe “a indústria liberta e constituída
como tal para si própria e o capital liberto” (cf., infra, a p. 327)
– quadro que é instaurado com as realidades da revolução in-
dustrial e suas implicações, quando o capital tornado “liberto”,
tornado capital “puro”204 se coloca factualmente no controle da
produção da riqueza social. Só então é possível apreender o tra-
balho “como a essência subjetiva da propriedade privada como
exclusão da propriedade” e o capital como “o trabalho objetivo
como exclusão do trabalho”, só então (como reproduzimos em
passagem fundamental) a propriedade privada se põe na “sua
relação desenvolvida da contradição, por isso uma relação enér-
gica que impele à resolução” – só então se chega ao “ponto de
comutação”, que abre a via à “resolução”, que não é outra que
a superação da propriedade privada e da alienação.
O eixo dos Manuscritos, que exploramos até agora no exame
dos dois primeiros cadernos e parte do terceiro, gira em torno da
fundamental categoria de trabalho alienado – com a alienação
constituindo, até aqui, o cerne da emergente crítica marxiana da
Economia Política. Cuidamos de assinalar que Marx apreendeu
o movimento da propriedade privada (expresso no movimento
do trabalho alienado – vide o resumo da argumentação de Lá-

82
J o s é P a u l o N e t t o

pine) como um processo contraditório; como tal, o seu desenlace


necessário e possível é uma solução, resultante do seu próprio movi-
mento imanente, que, mediante a negação da negação, implica a
sua superação (i. é, a sua suprassunção). Na sua percuciente análise
dos Manuscritos – dos quais salienta as proporções modestas:
“apenas cerca de 50 mil palavras” –, Mészáros introduz uma
notação essencial: sustenta o pensador húngaro que o núcleo
que estrutura a totalidade destes manuscritos não é a categoria,
neles fundamental, de trabalho alienado; antes, é o conceito de
transcendência da autoalienação do trabalho – Mészáros afirma
expressamente que “a chave para o entendimento da teoria da
alienação de Marx é o seu conceito de Aufhebung”.205 Em sendo
correta esta notação, como tudo indica que o seja, dela decorre
que, na problemática da alienação, a questão central para Marx
é a sua superação (evidentemente só possível de colocar-se com o
tratamento da própria alienação e das suas raízes na propriedade
privada, na divisão social do trabalho e na produção mercantil).
Por isso, Marx precisa acertar definitivamente as contas com
a dialética do velho Hegel, mediante a qual a alienação do es-
pírito encontra uma específica resolução – já não lhe bastava a
crítica que fizera a ela em Kreuznach nem no texto publicado
nos Anais franco-alemães.
É exatamente o que Marx se propõe no excurso de pouco
mais de três dezenas de páginas dedicadas à “Crítica da dialé-
tica e da filosofia de Hegel em geral” (cf., infra, as p. 359-391).
Naturalmente que o texto seria adequado como uma primeira
redação do (como Marx o diz no “prefácio” – cf., infra, a p. 240)
“capítulo conclusivo” do livro que projetava e comprometeu-se
a editar através de Leske, reunindo a “crítica da política e da
Economia Política”; mas, certamente, não foi esta a única razão
que o levou a redigir estas páginas de extraordinária riqueza
analítica – que, para Mészáros, configuram um “acerto crítico

83
M a r x e m P a r i s

de contas” com a filosofia hegeliana como um todo.206 De fato, os


estudos da Economia Política e a interação com o mundo dos
trabalhadores, que Marx desenvolveu no curso deste primeiro
semestre em Paris, ampliavam as bases teóricas e ídeo-políticas
da crítica a Hegel que ele já operava, pelo menos, desde 1843
e inícios de 1844 – e, ademais, jogavam mais luz sobre as suas
divergências com os seus (ex)companheiros de Berlim.207 Se, por
uma parte, o texto respondia ao projeto do livro, por outra, e
tão ou mais importante, atendia a exigências internas do pensa-
mento de Marx no novo nível de desenvolvimento a que se alçava
a sua reflexão – precisamente aquele em que a sua concepção
filosófico-antropológica partia do ser do homem como ser prático
e social (ou, se se quiser, um ser da práxis).208
No texto, Marx antecipa que pretende cuidar da dialética
hegeliana considerando a sua exposição na Fenomenologia do
Espírito e na Ciência da lógica – mas nele desenvolve especial-
mente a sua crítica em relação à primeira dessas obras, na qual
vê “o verdadeiro lugar de nascimento […] da filosofia de Hegel”
(cf., infra, a p. 365). Ele precede a sua análise com o elogio de
Feuerbach, “o único [dentre os sucessores de Hegel] que tem
uma relação crítica, séria, com a dialética de Hegel e que fez
verdadeiras descobertas neste domínio” (cf., infra, a p. 363) – e
sustenta esta afirmação sintetizando tais descobertas.209 É só a
seguir que Marx interpela os momentos decisivos da dialética
hegeliana na exposição da Fenomenologia, com o seu interesse
voltado para a problemática da alienação (mas não limitado a
ela). Não é possível, aqui, sumariar o movimento crítico de Marx
(estão indicadas, na nota 206, supra, fontes básicas para esta
operação); interessa-nos tão só colocar de manifesto o que de
essencial Marx recolhe do filósofo e a sua essencial discrepância
em relação a ele. O essencial da recolha está condensado no
parágrafo que já citamos (na nota 152, supra):

84
J o s é P a u l o N e t t o

A grandeza da Phänomenologie de Hegel e do seu resultado final


– da dialética, da negatividade como princípio motor e gerador
– é […] que Hegel apreende a autogeração do homem como um
processo […], apreende a essência do trabalho e concebe o homem
objetivo, verdadeiro, porque homem real, como resultado do seu
próprio trabalho.210

Nenhuma das reservas críticas que Marx expende em segui-


da reduz a importância (a “grandeza”) da Fenomenologia – p. ex.,
que Hegel, compartilhando do “ponto de vista dos modernos
economistas nacionais”, só leva em conta as dimensões positivas,
não as negativas, do trabalho (cf., infra, a p. 370). A questão
de fundo reside no idealismo objetivo que funda a construção
filosófica de Hegel, idealismo do qual decorre o conhecimento
e o reconhecimento tão somente do “trabalho abstratamente
espiritual” (cf., infra, p. 371), idealismo que, enfim, leva Hegel
às “ilusões da especulação” (cf., infra, a p. 379). Marx reconhece
que Feuerbach já pusera de manifesto o caráter especulativo da
dialética de Hegel no trato da alienação – mas, resumindo em
poucos parágrafos a crítica de Feuerbach, assinala a sua limita-
ção e unilateralidade, consistente em conceber “a negação da ne-
gação unicamente como contradição da filosofia consigo própria”
(cf., infra, a p. 364 [os últimos itálicos são meus – JPN ]); para
Marx, à diferença de Feuerbach, mesmo no registro enviesado
de Hegel, a negação da negação permitiu ao filósofo encontrar
“a expressão abstrata, lógica, especulativa para o movimento da
história” (cf., infra, a p. 364).211
Para o que aqui nos interessa, também em poucas linhas
podemos condensar a discrepância essencial de Marx em face
de Hegel – depois de mostrar que a supressão da alienação acaba
por ser, para Hegel, a supressão da objetivação (o que equivale a
fazer do homem “um ser não objetivo, espiritualista” – cf., infra,
a p. 371), ele afirma:

85
M a r x e m P a r i s

A essência humana, o homem vale para Hegel = autoconsciência.


Toda a alienação da essência humana nada é, portanto, senão a
alienação da autoconsciência. [...] A alienação efetivamente real
[wirkliche], que aparece como real [real], antes não é segundo a sua
mais íntima essência ocultada [...] senão o fenômeno da alienação
da essência humana real, da autoconsciência (cf., infra, a p. 372).

Uma vez que Hegel põe só “o espírito” como “a verdadeira


essência do homem” (cf., infra, a p. 368), está claro nele e para
ele que tanto a alienação quanto, por decorrência, a sua superação
não são mais que puros processos ideais. A alienação hegeliana, de
acordo com uma fórmula precisa, “é o espírito tornado estranho
a si”212 e a sua superação, consequentemente, consiste, segundo
Marx, em que “a apropriação das forças essenciais do homem
tornadas objetos e objetos alienados” seja, “portanto, em primei-
ro lugar apenas uma apropriação que se processa na consciência,
no pensar puro, i. é, na abstração” (cf., infra, a p. 368).
Por tudo o que se viu até aqui do processo de desenvolvi-
mento teórico-filosófico de Marx, esta concepção da alienação
e, necessariamente, da sua superação, que Hegel embasa numa
“crítica mistificadora” (cf., infra, p. 369),213 é inaceitável para
Marx porquanto supõe um realizar-se tão somente no campo
do pensamento, no âmbito (para Hegel) do saber absoluto (é
aí que se dá, nas palavras de Lukács, a superação, através da
“reassunção da alienação no sujeito”) – “o movimento todo
termina, diz Marx, com o saber absoluto” (cf., infra, a p.
367). Marx já assentou suficientemente, no “Caderno I”, que
“o meio pelo qual a alienação procede é ele próprio um meio
prático” e, no “Caderno III”, que “a superação (Aufhebung)
da autoalienação faz o mesmo caminho que a autoalienação”
(cf., infra, respectivamente, as p. 316 e 341); assentou mais:
contraposições teóricas só são solucionáveis praticamente.214
A compreensão da superação da alienação como só realizável

86
J o s é P a u l o N e t t o

através de meios prático-sociais já se constituía como uma


conquista do pensamento marxiano.
A possibilidade desta modalidade prático-social de superação
(nas palavras de Mészáros, da transcendência da autoalienação
do trabalho) é colocada pelo movimento real da propriedade
privada (cuja essência subjetiva é o trabalho e a objetiva é o
capital – cf., infra, a p. 341) a partir do momento em que ela
alcança – como vimos – a “relação desenvolvida da contradição”
entre trabalho e capital, “uma relação enérgica que impele à
resolução” (eis o “ponto da comutação”, nos termos de Bloch):
esta resolução é a supressão de toda a “relação desenvolvida na
contradição” – i. é, a supressão prático-social da propriedade
privada com o comunismo, objeto da reflexão de Marx ime-
diatamente antes da exposição da crítica à dialética hegeliana
e é aqui que, na sua elaboração teórica, ele fundamenta pela
primeira vez uma posição favorável ao comunismo. O comunis-
mo – perspectivado por Marx como uma formação societária
que, suprimindo a propriedade privada, propicia a supressão
da alienação – é tanto possível pelo movimento da propriedade
privada quanto necessário para a resolução da “relação desen-
volvida na contradição”, que, “levada ao extremo é necessaria-
mente o extremo, o cume e a decadência da relação toda” (cf.,
infra, a p. 326). Assim é que, para Marx, o comunismo não
se constitui nem se propõe, liminarmente, como um ideal ou
um projeto: ele afirma expressamente que “no movimento da
propriedade privada, precisamente [no] da economia, todo o
movimento revolucionário encontra tanto a sua base empírica
quanto teórica” (cf., infra, a p. 345).215 A fundamentação da
possibilidade da supressão da propriedade privada – e da sua
necessidade para a emancipação humana, com a superação da
alienação –, tal como Marx a formula nos Manuscritos, está
muito aquém da concreção que ele alcança nos escritos da sua

87
M a r x e m P a r i s

madurez (retorne-se aqui ao expresso na nota 168, supra); mas


já nos Manuscritos está posto que é no movimento da proprie-
dade privada, quando chegado a seu extremo, que se abriga a
alternativa da sua supressão mesma.
Quando cuidamos da interação de Marx com o movimen-
to operário, neste primeiro semestre de 1844, consignamos que
artesãos e proletários moviam-se no espaço de uma cultura
revolucionária sob forte influência de doutrinários socialistas
e comunistas. Marx estudou-os e, nesta que é a sua primeira
confrontação significativa com a literatura socialista e comu-
nista da época, opera de suas proposições uma síntese crítica,
formulada no “Caderno III” (cf., infra, as p. 341-346);216 sua
atenção principal se dirige, contudo, para os doutrinários
comunistas,217 distinguindo as vertentes que designa “comu-
nismo rude” e “comunismo de natureza política”.218 No caso do
primeiro, a crítica de Marx aponta que, em vez de suprimir
a propriedade privada, pretende-se de fato universalizá-la –
por isso, “a determinação do trabalhador não é suprimida,
mas estendida a todos os homens; a relação da propriedade
privada permanece a relação da comunidade (Gemeinschaft)
com o mundo das coisas”. Nesse “comunismo rude”, o ter
alienado continua vigindo sobre o ser (“a posse imediata, física,
vale [...] como a única finalidade da vida e da existência”) e
se verifica “a negação abstrata de todo o mundo da cultura
e da civilização”, com “o regresso à simplicidade antinatural
do homem pobre e desprovido de necessidades” (cf., infra, as
p. 342-343).219 O “comunismo de natureza política” (“despó-
tico” ou “democrático”, “com superação do Estado”), trata-o
Marx muito sumariamente: em pouco mais de uma dezena de
linhas (cf., infra, a p. 344), reconhece que ele se sabe “como
reintegração ou regresso do homem a si, como superação da
autoalienação humana” – todavia, Marx o critica porque não

88
J o s é P a u l o N e t t o

apreendeu a “essência positiva da propriedade privada” e “está


ainda preso e contagiado pela mesma” (cf., infra, a p. 344).
Marx não tem qualquer dúvida de que a supressão da pro-
priedade privada é função de uma revolução – sua apreensão
desta relação começa na Crítica da filosofia do direito de Hegel.
Introdução e vai reafirmá-la na sequência dos Manuscritos, seja
n’A sagrada família, seja n’A ideologia alemã; e já sabe, também,
qual o sujeito social que pode conduzi-la, o proletariado; mas só
terá condições de iniciar a elaboração da sua processualidade não
só ao avançar mais em seus estudos, mas quando estreitar ainda
mais os seus vínculos com o movimento operário, o que vai se
evidenciar especialmente em 1847-1850.220 Nos Manuscritos, a
revolução, sempre pressuposta como condição para a “supressão
positiva da propriedade privada”, não é expressamente tematiza-
da; neles, a dominância da abordagem filosófico-antropológica
não abre espaço para uma aproximação sociopolítica explícita
ao processo revolucionário.
É assim que, uma vez criticados os comunismos “rude” e
de “natureza política”, Marx passa ao comunismo que situa
como “superação positiva da propriedade privada enquanto
autoalienação humana e por isso como apropriação real da es-
sência humana pelo e para o homem” (cf., infra, a p. 344): ao
comunismo como transcendência da autoalienação do trabalho
(Mészáros). Sustenta Marx que, assim posto, ele é o
regresso completo, consciente e advindo dentro de toda a riqueza do
desenvolvimento até agora, do homem a si próprio como um homem
social, i. é, humano. Esse comunismo é, como naturalismo consu-
mado = humanismo, como humanismo consumado = naturalismo,
ele é a verdadeira resolução do conflito do homem com a natureza
e com o homem, a verdadeira resolução da luta entre existência e
essência, entre objetivação e autoconfirmação, entre liberdade e
necessidade, entre indivíduo e gênero. Ele é o enigma da história
resolvido e sabe-se como essa solução (cf., infra, as p. 344-345).

89
M a r x e m P a r i s

A riqueza e a complexidade da formulação exigiriam um


tratamento analítico, desenvolvido na bibliografia já referenciada,
que aqui mal pode ser sugerido – sinalizemos, entretanto, umas
poucas trilhas para explorá-la, que indicam os seus pontos nodais.
Em primeiro lugar, aponta para um processo consciente: não se trata
de uma (re)conquista da “riqueza do desenvolvimento” como mera
e necessariamente resultante da contradição máxima posta pelo
movimento da propriedade privada – trata-se de resultante que se
sabe a superação daquela contradição. Em segundo lugar, situa a
importância do “desenvolvimento [operado] até agora”, da sua “ri-
queza” – o que permite compreender que a propriedade privada, no
seu movimento, não foi casual e/ou apenas pura negatividade; ela
expressou também uma necessidade do movimento macroscópico
da história e da sociedade, engendrando não só a alienação, mas
também a produção (ainda que alienada) de riqueza humana (mais
adiante, Marx se refere ao “movimento da propriedade privada e
da sua riqueza, bem como da sua miséria” – cf., infra, a p. 353); o
comunismo, como “superação positiva da propriedade privada”, é
negação da negação (cf., infra, a p. 401) portanto recupera e repõe
a sua riqueza social sob novas condições.221 Em terceiro lugar, o
comunismo é simultaneamente a realização do humanismo –
apropriação da essência humana pelo homem – e a realização do
naturalismo – porque o humanismo realizado não implica somente
uma nova relação entre os homens, mas uma nova relação dos
homens com a natureza, na qual esta deixa de ser simples objeto de
manipulação ou de contemplação; nesta nova relação, a natureza
(cuja existência objetiva em si Marx não questiona) ganha um
sentido humanizado para o homem que, uma vez apropriada a
sua essência humana, é um homem social.222 Enfim, o comunismo
tal como posto por Marx é medularmente humanismo – expres-
samente: “humanismo consumado”. Trata-se de um humanismo
que dispõe de nítido enraizamento de classe (como diz Lápine, é o

90
J o s é P a u l o N e t t o

humanismo proletário223); um honesto crítico de Marx, aliás cristão,


analisando a relação comunismo/humanismo em 1844, reconhece
que o humanismo ateu marxiano,
de nenhum modo sacrifica os indivíduos pessoais. É a realiza-
ção do homem concreto e só dele. [...] Não se trata de qualquer
humanismo abstrato [...]. [Nele] o que há é o homem que revela
a sua essência – essência que atinge, atingindo-se a si mesmo e
levando ao último acabamento a mediação entre si mesmo e o seu
ser genérico, isto é, entre si mesmo e a natureza ou o objeto.224

Acerca das bases econômicas do comunismo, Marx, nos


Manuscritos, quase nada nos pode dizer. Ele tem claro que a
propriedade privada material, imediatamente sensível,
é a expressão material sensível da vida humana alienada. O seu
movimento – a produção e o consumo – é a revelação sensível do
movimento de toda a produção até aqui, i. é, realização ou reali-
dade do homem. Religião, família, Estado, direito, moral, ciência,
arte etc. são apenas modos particulares da produção e caem sob a
sua lei universal (cf., infra, a p. 345);

Por isto, sabe que a sua supressão positiva (i. é, o comunismo)


implica uma outra e nova forma de produção (na expressão de
Marx: “um modo novo da produção” – cf., infra, a p. 391) – aque-
la que a história conhece “até aqui”, que engendra a alienação,
já nos Cadernos ele constatou que “não é uma produção do
homem para os homens enquanto tais – não é uma produção
social” e “não pode sê-lo porque não é a essência humana que
vincula mutuamente [... as] produções [dos homens]”, mas o
“egoísmo” (cf., infra, as p. 217-218). Seus conhecimentos teó-
ricos econômico-políticos, porém, ainda são incipientes para
permitir-lhe caracterizar minimamente como se constituirá,
posta a supressão positiva da propriedade privada, a produção
na qual os homens produzam como seres humanos 225; o má-
ximo que ele pode nos indicar é, nos Cadernos, uma síntese

91
M a r x e m P a r i s

das implicações decisivas de uma produção verdadeiramente


humana, superadora e contraposta da/à que vige sob o reino
da propriedade privada:
• meu trabalho seria uma livre manifestação de vida, um gozo de
vida. Sob a propriedade privada, o trabalho é alienação de vida,
porque trabalho para viver, para conseguir um meio de viver. Meu
trabalho não é a minha vida;
• em segundo lugar, a minha individualidade particular, a minha
vida individual, seria afirmada pelo trabalho. O trabalho seria,
então, uma verdadeira propriedade, uma propriedade ativa. Sob
a propriedade privada, a minha individualidade está alienada a
tal grau que esta atividade me é detestável, motivo de tormento;
é, antes, um simulacro de atividade, uma atividade puramente
forçada, que me é imposta por um constrangimento exterior e
contingente e não por uma exigência interna e necessária (cf.,
infra, a p. 222).

Uma produção verdadeiramente humana e social, capaz


dessas implicações, só é pensável no comunismo: “a superação
positiva da propriedade privada como apropriação da vida
humana é, por isso, a superação positiva de toda a alienação,
portanto o regresso do homem [...] à sua existência humana,
i. é, social” (cf., infra, a p. 345). Está claro que a revolução que
viabiliza esta produção humana é de tal magnitude que ela
instaura um estágio histórico radicalmente novo na vida dos
homens; ele se põe não como um pretenso “fim da história”
– antes, inaugura (como Marx dirá ulteriomente) a verdadeira
história da humanidade, deixando para trás a sua pré-história.226
Ora, aquele regresso do homem à sua existência humana,
que afeta profundamente a sua relação com a natureza, de
igual modo afeta as necessidades do homem – abordadas nos
Cadernos (cf., infra, as p. 216-222) e retomadas n’A ideologia
alemã (cf., na ed. cit, esp. as p. 33-34, 67-68, 79) – e também
os sentidos pelos quais transitam as necessidades e se frui a sua

92
J o s é P a u l o N e t t o

satisfação. À questão das necessidades, Marx voltará inúmeras


vezes ao longo de sua obra;227 nos Manuscritos, ela comparece
sobretudo no fragmento “Propriedade privada e necessidades”
(cf., infra, as p. 391-399). Nestas páginas, Marx mostra que a
Economia Política, “ciência da riqueza”, tem como princípio “a
falta de necessidades”, que se exibe na sua teoria da população.228
O economista “reduz a necessidade do trabalhador ao mais
necessário e lastimável sustento da vida física” e “calcula a vida
(existência) mais indigente possível como [...] padrão universal”,
tomando esta vida e esta existência como humanas. Em resu-
mo: para o trabalhador, “tudo o que vai além da mais abstrata
de todas as necessidades – seja como fruição passiva ou como
exteriorização de atividade – aparece-lhe como um luxo” (cf.,
infra, a p. 394).229 A “ciência da riqueza”, para o trabalhador,
mas não só, é a ciência da ascese e da poupança, “a mais moral
de todas as ciências”, que prega a “renúncia à vida” – mas, é
óbvio, as suas lições incidem diferenciadamente sobre ricos e
pobres.230 A Economia Política, quando pensa as necessidades
do homem, só pode pensá-las como algo rentável; “a necessidade
do dinheiro é, por isso, a verdadeira necessidade produzida pela
economia nacional e a única necessidade que ela produz” (cf.,
infra, as p. 391-392)231; compreende-se que, sob a propriedade
privada e com a mediação do dinheiro, ocorre que
cada homem especula sobre como criar no outro uma necessidade nova
para o forçar a um novo sacrifício [...] e induzi-lo a um novo modo de
fruição [...]. Cada um procura criar uma força essencial alienada sobre o
outro, para aí encontrar a satisfação da sua própria necessidade egoísta.
Com a massa dos objetos cresce, por isso, o domínio do ser alienado ao
qual o homem está subjugado, e cada novo produto é uma nova potência
do engano mútuo e do mútuo saque (cf., infra, a p. 391).

Nos Manuscritos, o que interessa a Marx são as necessidades


humanas, nas quais ele não vê tão só as necessidades materiais

93
M a r x e m P a r i s

vitais (necessidades naturais – comer, beber, abrigar-se – se se


quiser, necessidades animais). Importam-lhe as necessidades (é
claro que inclusive as materiais vitais) que se tornaram huma-
nas, constituídas e formadas por todo “um trabalho de toda a
história do mundo até hoje” (cf., infra, a p. 352). O exemplo
que ele oferece, aqui, é esclarecedor:
Para o homem esfomeado não existe a forma humana da comida,
mas apenas a sua existência abstrata como comida; ela também
podia estar aí na forma mais rude – e não se pode dizer em que é
que essa atividade de nutrição se distingue da atividade de nutrição
animal (cf., infra, a p. 352).

Seu interesse não é a “necessidade rude”, que “a propriedade


privada não sabe tornar [...] necessidade humana” (cf., infra, a
p. 392), mas a riqueza das necessidades humanas que podem
constituir o homem rico que, para Marx, é “o homem necessitado
de uma totalidade da exteriorização de vida humana” (cf., infra,
a p. 356). A passagem seguinte é seminal:
Tal como a propriedade privada é apenas a expressão sensível de
que o homem se torna simultaneamente objetivo para si e simul-
taneamente se torna antes um objeto alienado e inumano, de que
a sua expressão de vida (Lebensäußerung) é a sua exteriorização de
vida (Lebensentäußerung), a sua realização é a sua desrealização,
uma realidade alienada, assim a superação positiva da propriedade
privada, i. é, a apropriação sensível da essência e vida humanas, do
homem objetivo, da obra humana para e pelo homem, não é de
apreender apenas no sentido da fruição unilateral, imediata, não
apenas no sentido da posse, no sentido do ter. O homem apropria-se
da sua essência omnilateral de uma maneira omnilateral, portanto
como um homem total. Cada uma das suas relações humanas
com o mundo, ver, ouvir, cheirar, saborear, tatear, pensar, intuir,
sentir, querer, ser ativo, amar, em suma, todos os órgãos da sua
individualidade, bem como os órgãos que são imediatamente na
sua forma órgãos comunitários, são no seu comportamento obje-
tivo ou no seu comportamento para com o objeto a apropriação do
mesmo, a apropriação da realidade humana (cf., infra, a p. 349).

94
J o s é P a u l o N e t t o

As necessidades humanas, porque sensíveis, implicam objetos


para a sua satisfação, estão vinculadas aos sentidos humanos,
que se apropriam deles – que não são naturais: necessidades e
condições da fruição alcançada pelo atendimento delas resul-
tam de “um trabalho de toda a história do mundo até hoje”.
Sob a propriedade privada, as necessidades e os sentidos do
homem estão alienados; ambos, necessidades e sentidos, só
se tornam verdadeiramente humanos quando o homem pode
neles reconhecer a sua obra e pode apreender-se (como homem
social) e apreendê-los como emancipados da dominação do ter
– os sentidos e as qualidades do homem só se tornam humanos
quando os homens
comportam-se para com a coisa por causa da coisa, mas a própria
coisa é um comportamento humano objetivo para consigo própria
e para com o homem – e inversamente. Eu só posso praticamente
comportar-me para com a coisa humanamente quando a coisa se
comporta para com o homem humanamente (cf., infra, a p. 350).

Este comportamento humano de “mão dupla” (da coisa ao


homem e do homem à coisa) exige tanto “um modo novo da
produção como também um objeto novo da produção” e resulta
num “nova confirmação da força humana essencial e novo enri-
quecimento da essência humana” – mas ambos se situam fora do
reino da propriedade privada: já são um pressuposto do socialismo
(cf., infra, a p. 391). E, de fato, “a objetivação da essência humana
[...] é necessária tanto para fazer humanos os sentidos do homem
como para criar sentido humano correspondente a toda a riqueza
do ser humano e natural” (cf., infra, a p. 353)232.
Haveria muito, muito mais a explorar nos Manuscritos – em
especial, neste “Caderno III”, a radicalidade do humanismo
que comparece na fundamentação que Marx oferece (pela pri-
meira vez, repita-se) da possibilidade concreta do comunismo.
A supressão positiva da propriedade privada como necessidade

95
M a r x e m P a r i s

histórica para a emancipação humana, tendo a sua base numa


nova organização da produção social, envolve a inteira eman-
cipação dos sentidos, da sensibilidade e da racionalidade dos
indivíduos. Dados os limites necessários desta apresentação,
fica como emblemático desse humanismo o parágrafo final
dos Manuscritos:
Pressupondo o homem como homem e a sua relação com o mundo
como humana, só se pode trocar amor por amor, confiança por
confiança etc. Se se quer fruir a arte, tem de se ser uma pessoa
artisticamente culta; se se quer exercer influência sobre outras
pessoas, tem de se ser realmente uma pessoa que atue de um
modo estimulante e encorajador sobre outras pessoas. Cada uma
das suas relações com o homem e com a natureza – tem de ser
uma determinada exteriorização da sua vida individual real cor-
respondente ao objeto da sua vontade. Se você ama sem provocar
amor recíproco, i. é, se o seu amar enquanto amar não produz o
amor recíproco, se você não se torna pessoa amada através da sua
exteriorização de vida como pessoa amante, então o seu amor é
impotente, uma infelicidade (cf., infra, as p. 420-421).

Os textos de 1844 e a emergência da teoria social


revolucionária
Já registramos a fortuna editorial dos Cadernos e dos Ma-
nuscritos: permaneceram inéditos até 1932. Mas não só estes
materiais vieram à luz meio século depois da morte de Marx:
igual sorte teve A ideologia alemã, publicada também naquele
ano, para não mencionar os Grundrisse (editados pela primeira
vez em 1939-1941) – e o espólio literário marxiano ainda não
se esgotou, como o mostra o projeto da Mega² nas últimas
décadas do século XX.
A tardia e póstuma publicação dos textos marxianos de 1844
(mas não só deles) não é um dado desprezível para uma análise
cuidadosa da constituição do marxismo que se consolidou como

96
J o s é P a u l o N e t t o

a referência da Internacional Socialista (a Segunda Internacional)


e do marxismo-leninismo que se tornou a referência da Inter-
nacional Comunista (a Terceira Internacional)233 – lembra-se
aqui o dado para sinalizar que figuras tão diversas e influentes
como Kautsky, Plekhanov, Rosa Luxemburgo, Lenin e também
Gramsci (que praticamente deixou de ter acesso à literatura mar-
xista depois da sua prisão, em 1926) desconheceram materiais
marxianos de suma importância.
Não é pertinente aqui bosquejar minimamente a fortuna
crítica dos Manuscritos – bastam apenas umas poucas e sumárias
informações dar alguma inteligibilidade aos contextos em que
se fizeram as suas leituras.
Publicados em 1932, os Manuscritos não tiveram ressonân-
cia imediata. Nas fronteiras do único país que realizara uma
revolução vitoriosa e onde viram a luz, a União Soviética, a
repercussão dos Manuscritos foi limitadíssima, por razões óbvias:
a década de 1930 foi a da consolidação da autocracia stalinista,
que sacramentou o marxismo-leninismo tão positivista quanto
o marxismo que o precedeu – não se esqueça que o capítulo
“teórico” sobre o materialismo histórico e dialético da História
do Partido Comunista da URSS, publicada em 1938, tinha como
autor o próprio Stalin 234). Limitadíssima, quando não quase
clandestina – observe-se que Lukács, exilado na URSS de 1933
a 1945, e que conheceu os Manuscritos ainda inéditos (quando
de seu estágio, em 1931, no Instituto Marx-Engels, dirigido por
Riazanov, primeiro responsável pelo projeto e implementação
da Mega²35), lá redigiu o seu notável O jovem Hegel e os problemas
da sociedade capitalista, mas o livro só foi publicado... na Suíça,
em 1948, dez anos depois de concluído.236 De fato, na União
Soviética, um interesse específico pelos Manuscritos só ocorreu
após o XX Congresso do PCUS (fevereiro de 1956, quando
Nikita Kruschov fez a denúncia do “culto à personalidade”). Na

97
M a r x e m P a r i s

maioria dos países que, depois de 1945, conformaram o então


chamado “campo socialista”, a história não foi muito diferente.
Fora das fronteiras da União Soviética, na Europa dos anos
1930 também a ressonância imediata dos Manuscritos foi reduzi-
da – certamente sob o peso do quadro político daquela década.
Na Alemanha, o leitor mais destacado, que logo compreendeu
a sua relevância, foi Marcuse – impactado pelos Manuscritos,
manifestou-se quase imediatamente sobre seu conteúdo e no
exílio norte-americano a sua produção expressou a influência
exercida por eles.237 Tudo indica que a França tenha sido o
país em que dos Manuscritos resultaram, à época, as elabora-
ções mais marcantes: na sequência da sua publicação, foram
cuidadosamente examinados por Auguste Cornu e influíram
fortemente no pensamento e na obra de N. Gutermann e H.
Lefebvre238 (e tiveram uma primeira tradução em 1937, de J.
Molitor, à base da edição de Landshut e Mayer). Também na
França, logo depois do fim da Segunda Guerra, Maximilien
Rubel cuidou da produção do jovem Marx, dando início à sua
leitura de viés eticista da obra marxiana.239 Só nos anos 1950 o
conhecimento dos Manuscritos tornou-se acessível, em parte da
Europa Ocidental, para aqueles que não dominavam o idioma
alemão – ademais da existente versão francesa, em italiano sai
a sua primeira tradução (de N. Bobbio, em 1949) e, no ano
seguinte, a segunda (de G. Della Volpe), considerada melhor
que a anterior; mas a primeira edição integral em inglês (de M.
Milligan) só surge em 1959.240
E é a partir dos anos 1950 que, de fato, os Manuscritos
começam a ser objeto de valorização e análise. Na Europa
Ocidental, segmentos desvinculados do movimento comunista
se interessam por ele, com destaque para intelectuais ligados à
teologia (Bigo, Calvez e Thier241), cuja leitura dos textos mar-
xianos tinha, para além da sua natureza analítica específica,

98
J o s é P a u l o N e t t o

conotações ídeo-políticas – geralmente, o jovem Marx servia


como contraponto ao marxismo oficial (“soviético”) e sua di-
fusão e rebatimentos nos partidos comunistas. Por outra parte,
como indicamos, na União Soviética e no “campo socialista”,
a crítica antistalinista subsequente a 1956 criou as condições
para que se desse, enfim, um trato minimamente adequado da
produção juvenil de Marx (sintomaticamente, a tradução ao
russo dos Manuscritos foi editada em 1956). Mas foi nos anos
1960 que o debate em torno dos Manuscritos ganhou evidência.
Naquela década, a magnitude das lutas sociais (com a
questão da libertação nacional no seu bojo) nas periferias
do capitalismo, no então chamado Terceiro Mundo, alentou
novos movimentos revolucionários, sobre os quais eram for-
tes os influxos marxistas. Nos países capitalistas centrais, as
conquistas do movimento operário e sindical eram visíveis,
em alguns deles os partidos comunistas experimentavam sen-
sível crescimento (Itália, França, Japão), germinava a rebeldia
estudantil – que viria à tona em 1968 – e o hegemonismo
norte-americano, instaurado no segundo pós-guerra, vivia
um momento de grande desgaste (tanto no plano político,
como a agressão ao Vietnã comprovaria, como no plano
cultural, como se demonstraria na crítica ao american way of
life). A renovação teórica da esquerda era, então, um processo
ascendente (de que a New Left era sinal visível) e no interior
dos espaços comunistas registrava-se uma clara oxigenação.
Verificou-se o florescimento de uma diversificada produção
teórico-cultural, especialmente na Europa Ocidental (e tam-
bém Nórdica), mas abrangendo o mundo anglo-saxão e parte
do chamado campo socialista. Este quadro favorável ao debate
das ideias de Marx foi expresso pela conhecida afirmação de
Sartre, em carta daqueles anos: “o marxismo, como quadro
formal de todo pensamento filosófico de hoje, é insuperável”.242

99
M a r x e m P a r i s

Foi neste cenário que o debate em torno dos Manuscritos –


conduzido por filósofos, cientistas sociais e pensadores de várias
áreas do conhecimento, em estudos e análises que desbordaram
largamente as fronteiras do marxismo – adquiriu a amplitude a
que fazia jus. A problemática da alienação – tanto no Leste quanto
no Ocidente, por razões ídeo-políticas diferentes – entrou na
agenda então contemporânea.243 E ela permaneceu em tal agenda
até o último terço dos anos 1970 – quando, de um lado, a expe-
riência do socialismo real deu sinais flagrantes de que caminhava
para a sua trágica residualidade e, de outro e sincronizadamente,
no Ocidente o capital empreendia os passos para a sua dura e
momentamente exitosa ofensiva para travar e reverter a erosão do
seu domínio. As transformações econômicas e sociopolíticas que
emergiram nos anos 1980, em todas as latitudes, delimitaram o
fim de um ciclo histórico – e a afirmação de Sartre (bem como
a expectativa de Lukács sobre um “renascimento do marxismo”)
deixou de ter suporte real, inclusive com uma ampla capitulação
teórica e política de intelectuais, marxistas e não marxistas, em
face dos “novos tempos”.244 Esses “novos tempos”, tão midia-
ticamente mistificados, todavia logo revelaram o seu caráter:
extensa e profunda violência econômica, medular regressividade
social e visceral aviltamento teórico-cultural. Não tardou o
fim das ilusões e Marx, enxotado da cena pela ideologia tardo-
-burguesa, já na transição do século XX ao XXI reingressa
no proscênio do drama 245 – na primeira década da presente
centúria, sua obra (re)assume a relevância que lhe pretenderam
recusar: em todas as searas que lavrou, a sua crítica é resgatada,
como o demonstra, inclusive, o ressurgimento, nos últimos anos,
do debate sobre a alienação.
É chamativa a diferença entre a década de 1960 e os pri-
meiros anos do século XXI como contextos para a leitura dos
Manuscritos no Ocidente. A conjuntura dos anos 1960, quando

100
J o s é P a u l o N e t t o

o Estado de bem-estar social (Welfare State) parecia construir o


“capitalismo democrático” da “sociedade afluente”, com pensa-
dores e ideólogos de prestígio anunciando a feliz “integração”
da classe operária na ordem burguesa (e parte da periferia
capitalista sonhando com processos de industrialização como
a forma de ultrapassar o “subdesenvolvimento” e garantir a
soberania) – naquela conjuntura, algum leitor dos Manuscritos
poderia experimentar um travo de anacronismo. Afinal, Marx
registra neles a exploração mais gritante de operários miserabili-
zados por um capital cruel e impiedoso, que opera sem qualquer
consideração de ordem moral ou social; tem como pano-de-
-fundo um proletariado que, embora ativo e portador do futuro,
constituía um universo de “animais de trabalho”, uma “raça
de escravos”. Para muitos leitores daqueles anos, Marx parecia
estar falando de um mundo já morto. Na entrada do século
XXI, a conjuntura se configura invertida: a mundialização do
capital (a “globalização”) degradando planetariamente a condi-
ção de vida e de trabalho das massas, gerando um desemprego
sistemático e monumental, destruindo instituições de proteção
social duramente conquistadas, universalizando a insegurança e
produzindo uma assombrosa concentração de riqueza, proprie-
dade e poder – nesta entrada de século pode parecer a algum
leitor que os Manuscritos referem-se imediatamente à realidade
empiricamente dada.
A diferente contextualidade confere algum calço às diferentes
impressões provocadas pelas leituras dos Manuscritos. Mas caute-
las são necessárias; sobretudo, é indispensável considerar que os
Manuscritos (e não só eles, mas obviamente toda a obra de Marx)
são um conjunto de reflexões fortemente datado. Neles, o traba-
lhador que Marx tem em mente é o operário fabril da indústria tí-
pica da primeira revolução industrial (ou, se se quiser, da primeira
fase da revolução industrial), que duas ou três décadas mais tarde

101
M a r x e m P a r i s

se esgotaria, derivando numa reestruturação econômica e tecno-


lógica de fundas implicações; o movimento revolucionário com o
qual Marx se defronta é um movimento emergente, ainda sem
expressivas experiências de autonomia e num processo formativo
da consciência de classe proletária. Tudo isso se transformou na
segunda metade do século XIX (e Marx acompanhou várias das
transformações então ocorrentes, incorporando-as à sua análise
da sociedade capitalista) – e se alterou ainda mais ao longo da
primeira metade do século XX (recorde-se o chamado fordismo),
de modo que, nos anos 1960, a leitura dos Manuscritos já exigia
considerações que especificassem os limites da sua datação.246
Por seu turno, as transformações societárias processadas nas
quase três décadas de ofensiva do capital (os “novos tempos” da
“globalização”) redundaram num tal acréscimo da exploração
(mediante, mesmo, a reatualização extensiva de mecanismos
típicos da extração de mais-valia absoluta) e numa tal regressão
dos direitos sociais que, conectados às derrotas políticas dos tra-
balhadores naqueles anos, põem problemas para o movimento
revolucionário que são novos – apesar, p. ex., da revivescência de
relações de trabalho próprias da primeira metade do século XIX
(ou mesmo anteriores). São novas as articulações planetárias do
capital, as composições entre as diversas frações burguesas, as mo-
dalidades em que exerce o seu controle sobre o desenvolvimento
da pesquisa científica e a implementação tecnológica; igualmente
novas são a composição da classe operária, as suas condições de
trabalho, a sua cultura, as exigências para a sua organização polí-
tica e as demandas e modos de ser da massa de trabalhadores não
proletários, com a qual a classe deve estabelecer alianças – apenas
para indicar os pontos nodais de um estágio em que o sistema
capitalista apresenta uma dinâmica que sinaliza para uma crise
sistêmico-estrutural que, no mínimo, revela a plena exaustão do
que outrora foi a sua dimensão civilizadora (ainda que operada

102
J o s é P a u l o N e t t o

sempre por meios bárbaros). Também agora, portanto, é preciso


tratar os Manuscritos considerando, como antes, os seus limites
– históricos e teóricos.
Isto significa dizer que os Manuscritos, perderam impor-
tância, substancialidade, atualidade? A resposta é um rotundo
e categórico não. Os Manuscritos permanecem um documento
que – insistimos: tomado nos seus limites históricos e teóricos –
mantém intacta e integralmente a sua grandeza (a mesma palavra
que Marx empregou para caracterizar a Fenomenologia).
Sejamos breves: as limitações de natureza histórica dos Ma-
nuscritos residem em que ele lida com as expressões da alienação
num estágio do desenvolvimento da ordem burguesa que per-
tencem definitivamente ao passado, a um passado irreversível;
ora, tais expressões, ainda que muitas delas se conservem, se
reproduzam ainda hoje, estão longe de incluir o rol de expressões
engendradas pela dominação do capital (pelo movimento do capi-
tal) no seu evolver num curso temporal de mais de um século e
meio. Emergiram inéditas formas da alienação, insuspeitadas para
o Marx de 1844. O decisivo, porém, está em que o Marx de 1844
descobriu (e nunca será demasiado salientar o traço decisivo desta
descoberta) a raiz fundamental e primária do complexo fenomênico
da alienação: a propriedade privada, a divisão social do trabalho
e a produção mercantil – com a consequente descoberta da sua
superação na supressão positiva da propriedade privada (e, logo,
da divisão social do trabalho e da produção mercantil). Nesta
descoberta, cujo âmbito de validez cobre todo o ciclo histórico
da vigência do domínio do capital, está uma parte da grandeza
dos Manuscritos – a outra se contém no potencial de crítica social
e cultural que ela realmente porta, fundando um humanismo
concreto que se distingue estruturalmente de todas as formas
precedentes de defesa da humanidade (da humanitas) do homem.
Mas é também nela que está sua limitação teórica: a descoberta

103
M a r x e m P a r i s

marxiana não dispõe, em 1844, do arsenal heurístico próprio a


uma estrutura categorial apta a explicar e compreender, histórica e
sistematicamente, o movimento histórico-concreto da proprieda-
de privada – sob a forma do movimento do capital – chegado ao
seu ápice. Nos Manuscritos está o passo inicial do que constituirá
a crítica da Economia Política que Marx empreende a partir de
1844 e que terá a sua perspectiva teórico-metodológica determi-
nada ao fim de quase três lustros de pesquisa. Isto significa que a
teoria marxiana da alienação, nos Manuscritos, apresenta-se ainda
insuficiente e inconclusa: somente o ulterior desenvolvimento das
investigações de Marx, sem infirmar seus pontos centrais, haverá
de lhe conferir estrutura e sentido radicalmente plenos.
A tese subjacente à argumentação aqui expendida é que, com
os textos de 1844, Marx se movimenta na direção do objeto que
imantará a pesquisa da sua vida – ao mesmo tempo em que,
desde então e sem prejuízo das suas descobertas e desenvolvi-
mentos posteriores, encontra na crítica da Economia Política a
chave heurística que propiciará a unidade da sua obra. É com os
Manuscritos (que se ligam intimamente aos Cadernos) que Marx
abre a grande inflexão que seu pensamento experimentará nos
anos 1844-1846 – cobrindo, pois, a sua elaboração (com En-
gels a seu lado) até as Teses sobre Feuerbach e A ideologia alemã.
Este profundo giro no seu pensamento (já preparado pela sua
evolução imanente desde 1841-1842) se expressa naqueles anos
diretamente no seu deslizamento, no seu trânsito, da filosofia à
crítica da Economia Política, já evidente e realizado na Miséria
da filosofia, quando o objeto da obra marxiana comparece intei-
ramente determinado.247
A base a partir da qual se constituiu esta inflexão foram os
processos teóricos e ídeo-políticos deflagrados em Marx pelo
seu encontro com o movimento operário, a Economia Política
e a colaboração de/com Engels – todos iniciados, como vimos,

104
J o s é P a u l o N e t t o

em Paris, em 1844. Tal inflexão significou um salto qualitativo,


uma mudança estrutural no e para o evolver teórico e ídeo-
-político de Marx – é a partir dela que fundará e desenvolverá
uma nova modalidade de conhecimento (teórico) da vida social,
que propiciará um novo relacionamento entre conhecimento e
intervenção sociopolítica (uma nova relação teoria/prática), num
processo que envolverá cerca de um decênio e meio de reflexão/
ação para adquirir a sua feição completa, comportando revisões
e retificações teóricas e políticas. Inflexão que resgatou e repôs,
sobre novos pressupostos e fundamentos mais amplos, elementos
e componentes que já estavam presentes no seu pensamento e ex-
pressos, pelo menos, desde meados de 1843. Vale dizer: a inflexão
que apontamos vincula permanências e mudanças, nutre-se de
continuidade e ruptura. É uma amostra inequívoca que comprova
que, já na sua própria gênese, a tradição teórica inaugurada por
Marx é a de uma uma elaboração teórica em processo, é a consti-
tuição de uma teoria sempre em desenvolvimento.
Realizada a inflexão ocorrente em 1844-1846, o objeto da
teoria marxiana se configura com nitidez: a sociedade burguesa,
erguida sobre a dominância do modo de produção capitalista. Ao
longo dos anos seguintes, até 1857-1858 (quando os Grundrisse
são redigidos), a pesquisa de Marx afinará e calibrará a abordagem
teórico-metodológica para o enfrentamento do seu objeto – nos
Grundrisse se encontram (como Rosdolsky o demonstrou) a gê-
nese e a estrutura d’O capital. Neste trânsito de Marx da Filosofia
à crítica da Economia Política, toda a sua vida, a sua energia e o
seu talento serão direcionados para alcançar a reprodução ideal
do movimento real do objeto que investiga, visando à sua trans-
formação revolucionária.
Ainda antes de completar 20 anos, dando um balanço na
sua produção acadêmica do ano de 1837, Marx escreveu (10/

105
M a r x e m P a r i s

novembro/1837) a seu pai justificando o abandono do projeto


de uma alentada Filosofia do Direito:
Em meu estudo, tudo assumia a forma acientífica do dogma-
tismo matemático, no qual o espírito gira em torno da coisa,
tangenciando-a aqui e ali, sem que a coisa possa se desdobrar ela
mesma em algo rico e vivo, mas se apresentando de antemão como
um obstáculo para compreender a verdade. [...] Mas, na expressão
concreta de um mundo de pensamentos vivos como o são o Direito,
o Estado, a Natureza, toda a Filosofia, é necessário se deter para
escutar atentamente o próprio objeto em seu desenvolvimento,
sem se empenhar em imputar-lhe classificações arbitrárias, e sim
deixando que a própria razão da coisa siga seu curso contraditório
e encontre em si mesma a sua própria unidade (cf. a “Carta ao pai”,
in K. Marx-F. Engels, Cultura, arte e literatura, ed. cit., p. 297).

Eis o muito jovem Marx, ainda sem apreender claramente


os limites do hegelianismo, mas já compreendendo que “é
necessário se deter para escutar atentamente o próprio objeto
em seu desenvolvimento”, “deixando que a própria razão da
coisa siga seu curso contraditório e encontre em si mesma a
sua própria unidade”.
Entre o primeiro semestre de 1844, em Paris, e o segundo
semestre de 1857/primeiro semestre de 1858, em Londres – vale
dizer, entre a produção que tematizamos nesta apresentação e a
madurez dos Grundrisse –, Marx deteve-se “para escutar aten-
tamente o próprio objeto em seu desenvolvimento”, deixando
que “a própria razão da coisa” seguisse “seu curso contraditório”,
desdobrando-se “ela mesma em algo rico e vivo”. Realizou desco-
bertas geniais e prosseguiu a sua investigação – e, na exposição
dela, foi capaz de nos revelar (para usar da expressão d’O capital)
a lei econômica do movimento da sociedade moderna, fundamento
indispensável da teoria social revolucionária.

Recreio dos Bandeirantes, setembro de 2014

106
J o s é P a u l o N e t t o

Notas
1 A bibliografia não apresenta uma data precisa: há fontes que apontam outubro e
outras novembro. Cf., entre as primeiras, A. Cornu, Carlos Marx. Federico Engels.
La Habana: Ed. Ciencias Sociales, II, 1976, p. 371; M. Rubel, Crônica de Marx. São
Paulo: Ensaio, 1991, p. 25; P. Vranicki, Storia del marxismo. Roma: Riuniti, 1973,
I, p. 83; P. Fougeyrollas, Marx. São Paulo: Ática, 1989, p. 14; a última grande bio-
grafia “oficial” soviética, redigida por P. N. Fedosseiev et alii, Karl Marx. Biografia.
Lisboa/Moscou: Avante!-Progresso, 1983, p. 53; V. Barnett, Marx. Buenos Aires:
Javier Vergara, 2010, p. 42 e também J. Sperber, Karl Marx. Uma vida no século XIX.
Barueri: Amarilys, 2014, p. 129. Assinalam novembro R. Garaudy, Karl Marx. Rio
de Janeiro: Zahar, 1967, p. 235; a cronologia aposta a K. Marx-F. Engels, Manifeste
du Parti Communiste. Paris: Flammarion, 1998, p. 199 e a competente apresentação
de Rubén Jaramillo a K. Marx, Escritos de juventud sobre el derecho. Textos 1837-1847.
Barcelona: Anthropos, 2008, p. 35. Outras mencionam, simplesmente, a partida
da Alemanha “no outono de 1843” (cf., por exemplo, J. Hampden Jackson, Marx,
Proudhon e o socialismo europeu. Rio de Janeiro: Zahar, 1963, p. 40).
Na bibliografia referenciada ao longo desta apresentação, só não indiquei em por-
tuguês os títulos listados quando não há tradução deles ou – e é possível que isto
tenha ocorrido em vários casos – quando as desconheço.
2 As autoridades prussianas, que tinham Marx sob observação desde os tempos da Rhe-
inische Zeitung [Gazeta Renana – cf. infra] (1842-1843), exerciam contínua vigilância
sobre os emigrados alemães em Paris. Logo depois da publicação do número único
dos Deutsch-Französische Jahrbücher [Anais-Franco Alemães] (cf. infra), proibiram a
circulação do periódico na Alemanha e determinaram aos guardas de fronteira (16
de abril de 1844) a prisão de seus responsáveis (Marx, Ruge e o poeta G. Herweg);
pressionando o governo francês a expulsar Marx de seu território – notadamente
após a sua colaboração com o jornal Vorwärts! [Avante!] (cf. infra) –, tiveram enfim
êxito: na última semana de janeiro de 1845, o Ministro do Interior francês (Guizot)
assinou a ordem de expulsão. A 3 de fevereiro, Marx deixa Paris – residirá, até março
de 1848, na Bélgica (em Bruxelas, primeiro na zona leste da cidade: Rua da Aliança,
nº 5, depois na Praça Sainte-Gudule e na Rua d’Orléans, nº 42).
3 É neste período parisiense que Marx conhece a Liga dos Justos, mas não se vincula a
ela; só posteriormente, em Bruxelas, manterá os contatos – juntamente com Engels
– de que resultarão as transformações na organização, tornada Liga dos Comunistas,
na qual militarão e para a qual redigirão o Manifesto do Partido Comunista.
Sobre a história da Liga e da vinculação de Marx e Engels a ela, cf. Engels, “Contri-
buição à história da Liga dos Comunistas”, in K. Marx-F. Engels, Obras escolhidas
em três volumes. Rio de Janeiro: Vitória, vol. 3, 1963; M. I. Mijailov, Historia de
la Liga de los Comunistas. Moscú: Nauka, 1968; Bert Andreas, La Ligue des Com-
munistes (1847). Documents constitutifs. Paris: Aubier, 1972 e Fernando Claudín.
Marx, Engels y la revolución de 1848. Madrid: Siglo XXI, 1975.
4 Sabe-se que dificuldades financeiras acossaram a família Marx até meados dos anos
1860, quando Engels teve condições para garantir de modo regular a subsistência
do amigo (antes, ajudava-o emergencialmente). Mas, no período parisiense, os Marx
– cuja primeira filha, Jenny, nascera a 1º de maio de 1844 – não viveram apertos:
pouco antes de casar-se, Jenny recebera da mãe um pequeno pecúlio e amigos de
Marx lhe enviaram de Colônia recursos após o fim dos Anais Franco-Alemães,
empreendimento que também lhe rendeu algo.

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5 Marx, em princípios do outono de 1843, “não se via ainda, nem se pretendia,


comunista. O comunismo era, para ele, ‘uma abstração dogmática’” (Bernard Cot-
tret, Karl Marx. Une vie entre romantisme et révolution. Paris: Perrin, 2010, p. 63).
Mandel precisa: “Sua [de Marx] última recusa do comunismo data [...] de setembro
de 1843; sua primeira profissão de fé comunista data de março de 1844” (E. Man-
del, A formação do pensamento econômico de Karl Marx. De 1843 até a redação de
O capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 16). Sabe-se que a adesão de Engels ao
comunismo é anterior – data de 1842 (cf. Gustav Mayer, Friedrich Engels. Biografía.
México: Fondo de Cultura Económica, t. I, 1979, cap. V; Tristam Hunt, Comunista
de casaca. A vida revolucionária de Friedrich Engels. Rio de Janeiro: Record, 2010,
p. 90).
6 Para uma aproximação biobibliográfica e analítica a Engels, cf., além dos quatro
volumes da obra de A. Cornu citada na nota 1: Gustav Mayer, Friedrich Engels.
Biografía, ed. cit.; Horst Ullrich, Der junge Engels. Berlin: Deutscher Verlag der Wis-
senschaften, 1-2, 1961-1966; Heinrich Gemkow, Friedrich Engels. Eine Biographie.
Dietz Verlag: Berlin, 1970; S. Marcus, Engels, Manchester and the Working Class.
London: Wiedenfeld & Nicholson, 1974; W. O. Henderson, The Life of Friedrich
Engels. London: Frank Cass, 1976; D. McLellan, Engels. London: Collins, 1977; Vv.
Aa., Friedrich Engels. Biografia. Lisboa/Moscou: Avante!/Progresso, 1986; J. Sayers
et alii, eds., Engels Revisited. New Feminist Essays. London/New York: Tavistock,
1987; T. Carver, Friedrich Engels. His Life and Thought. Basingstone: Macmillan,
1989; J. D. Hunley, The Life and the Thought of Friedrich Engels. A Reinterpretation.
New Haven: Yale University Press, 1991; S. H. Rigby, Engels and the Formation of
Marxism. Manchester: Manchester University Press, 1992; C. J. Arthur, ed., Engels
Today. A Centenary Appreciation. Basingstone: Macmillan, 1996; G. Labica e M.
Delbraccio, orgs., Friedrich Engels, savant et révolutionnaire. Paris: PUF, 1997; John
Green, Engels. A Revolutionary Life. London: Artery, 2008; Tristam Hunt, Comunista
de casaca..., ed. cit.
7 K. Marx-A. Ruge, Deutsche-Französische Jahrbücher. Leipzig: Reclam, 1981 (com
introdução e notas de J. Höppner). Desconheço edição em português dos Anais...;
há uma acessível versão castelhana, a partir da italiana de G.-M. Bravo: K. Marx-A.
Ruge, Los Anales Franco-Alemanes. Barcelona: Martínez Roca, 1973. Dentre outros
brasileiros, cuidou dos textos de Marx que se publicaram no periódico Edmundo
Fernandes Dias, “Dinheiro, fetichismo e política: l’ homme et le citoyen. O debate
nos Anais Franco-Alemães”. Novos Rumos. São Paulo, ano 22, n. 47, 2007; em um
de seus últimos trabalhos (Revolução e história. Das Teses ao Manifesto comunista.
São Paulo: Sundermann, 2011), Dias dedicou-se à análise da obra de Marx de 1845
a 1848.
8 Acompanho aqui a expressa notação de Engels, segundo a qual Marx “começou seus
estudos econômicos em Paris, em 1843” (prefácio ao livro II d’O capital. Crítica da
Economia Política. O processo de circulação do capital. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1970, p. 7). Notação que apenas ratifica o que o próprio Marx declarara,
em 1859: “Cheguei [...] à conclusão de que a anatomia da sociedade burguesa deve
ser procurada na Economia Política. Eu havia começado o estudo desta última
em Paris [...]” (K. Marx, Contribuição à crítica da Economia Política. São Paulo:
Expressão Popular, 2008, p. 47).
9 Nem os Cadernos de Paris nem os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 foram,
portanto, preparados para publicação – e, pois, não tiveram o “polimento final” que
caracteriza, na feliz expressão de Ludovico Silva, o estilo literário de Marx (cf. o belo
ensaio de Silva com este título, editado pela Expressão Popular em 2012). Ambos os

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materiais só foram objeto de publicação integral postumamente, em Marx-Engels


Gesamtausgabe [Mega]. Berlin: Marx-Engels Verlag, Erste Abteilung, Band 3, 1932
(e foram reeditados in K. Marx-F.Engels, Werke [MEW ]. Ergänzungsband. Schriften.
Manuskripte. Briefe bis 1844. Erster Teil. Berlin: Dietz Verlag, 1977) – ainda que
partes dos Manuscritos tenham antes sido dadas à luz na publicação soviética Arquivos
de Marx e Engels (1927) e, em fevereiro e junho de 1929, no periódico parisiense
Revue Marxiste. É de assinalar que, à mesma época, sem os cuidados e os recursos
editoriais da Mega (cf., infra, a nota 120), os social-democratas S. Landshut e J. P.
Mayer prepararam os dois volumes de K. Marx, Der historische Materialismus. Die
Frühschriften [O materialismo histórico. Primeiros escritos]. Leipzig: Kröner, 1932 –
e, no primeiro deles, editaram os Manuscritos, sob o título “Economia Política e
Filosofia. Sobre a relação entre a Economia Política e o Estado, o direito, a moral
e a vida civil”. Recorde-se que um primeiro esforço para reunir textos “juvenis” de
Marx e Engels já fora empreendido por Franz Mehring, que publicou três volumes
com materiais redigidos entre 1841 e 1850 – mas o precioso trabalho de Mehring
(Gesammelte Schriften von Karl Marx und Friedrich Engels [Obras coligidas de Karl
Marx e Friedrich Engels]. Stuttgart: Dietz, 1–3, 1902) não contemplou textos como
os Manuscritos e A ideologia alemã.
Não registrei tradução ao português dos Cadernos de Paris. Quanto aos Manus­
critos, ao que sei, uma primeira versão (incompleta) apareceu em Erich Fromm,
Conceito marxista do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1962 – tradução de Octavio
Alves Velho, tendo por base a inglesa de T. B. Bottomore. No ano seguinte a esta
publicação – à época, um êxito editorial, que conheceu inúmeras edições –, saiu,
sob o título Economia política e filosofia (Rio de Janeiro: Melso, 1963; tradução de
Sylvia Patrícia, provavelmente um pseudônimo), outra versão, aliás precária e sem
indicação da fonte, num volume que enfeixava vários textos de Marx.
Em versão direta a partir do original alemão, o terceiro dos Manuscritos foi coligido
no volume Marx, organizado por J. A. Giannotti, da coleção “Os pensadores” (São
Paulo: Abril Cultural, 1974; tradução de José Carlos Bruni); também em versão
direta, parte do primeiro manuscrito foi inserida no volume Marx-Engels. História,
organizado por F. Fernandes, da coleção “Grandes cientistas sociais” (São Paulo:
Ática, 1983; tradução de Viktor von Ehrenreich).
A primeira tradução direta e integral ao português, sob o título Manuscritos
económico-filosóficos de 1844, lançaram-na as Edições Avante! (Lisboa, 1994 – é esta
versão, de Maria Antónia Pacheco, que, revisada e adaptada às normas ortográfi-
cas vigentes no Brasil, a Expressão Popular utiliza no volume que o leitor tem em
mãos). Posteriormente, saiu no Brasil uma edição integral à base do texto alemão:
Manuscritos econômico-filosóficos (São Paulo: Boitempo, 2004; tradução de Jesus
Ranieri); entre nós, circula, ainda, uma publicação em que os Manuscritos vêm
com outros textos marxianos (Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Martin
Claret, 2001, tradução de Alex Marins).
10 O primeiro encontro pessoal entre os dois ocorrera em novembro de 1842, em
Colônia, quando Engels se dirigia para a Inglaterra e passou pela redação da Gazeta
Renana, então conduzida por Marx – como mais de meio século depois Engels
recordou, tiveram uma conversa pouco amistosa, com Marx fazendo críticas aos
irmãos Bauer (Bruno e Edgar) e associando-o a eles (carta de Engels a F. Mehring,
abril de 1895, in K. Marx-F. Engels, MEW, ed. cit., vol. 39, 1968, p. 437).
Muito diferentes foram os contatos que, em Paris, no regresso de Engels da Inglaterra,
a caminho da Alemanha, mantiveram os dois no segundo semestre de 1844 – “nos
últimos dias de agosto de 1844”, ao longo “de dez dias” (Vv. Aa., Friedrich Engels.

109
M a r x e m P a r i s

Biografia, ed. cit., p. 53) –, inicialmente no célebre Café de la Régence (outrora fre-
quentado por Benjamin Franklin e Voltaire) e, em seguida, na casa de Marx. Engels
escreverá em outubro de 1885: “Quando, no verão de 1844, visitei Marx em Paris,
ficou patente nosso acordo em todos os terrenos teóricos e data dessa época nossa
colaboração” (“Contribuição à história da Liga dos Comunistas”, in loc. cit., p. 157);
então Marx se mostrava impactado pela leitura do ensaio engelsiano que editou nos
Anais Franco-Alemães (“Esboço de uma crítica da Economia Política” – coligido no
volume organizado por J. P. Netto, Engels. Política, da coleção “Grandes cientistas
sociais”. São Paulo: Ática, 1981); como Engels registrou, data daí a amizade e a
mútua colaboração que os uniu por toda a vida.
11 O livro sai em fins de fevereiro de 1845 – há edição brasileira: A sagrada família ou A
crítica da crítica crítica. Contra Bruno Bauer e consortes. São Paulo: Boitempo, 2003.
É de observar-se que a contribuição de Engels à obra foi pequena, uma vez que ele
estava inteiramente absorvido na preparação d’A situação da classe trabalhadora na
Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010, que vê a luz em Leipzig, em finais de maio
de 1845.
12 A concepção teórico-metodológica de Marx nunca teve, por parte do autor, um trata-
mento exaustivo – os textos pertinentes a ela mais importantes, que marcam a sua
evolução, encontram-se n’A ideologia alemã, na Miséria da filosofia e, especialmente,
na “Introdução” aos Grundrisse, além de uma referência importante no posfácio da
2ª edição do livro I d’O capital (todas estas obras estão editadas entre nós e serão
citadas adiante). Uma síntese muito acessível da concepção teórico-metodológica
marxiana encontra-se no meu opúsculo Introdução ao estudo do método de Marx.
São Paulo: Expressão Popular, 2011.
13 Vários pesquisadores brasileiros, ou trabalhando no Brasil, detiveram-se sobre
este momento de constituição do pensamento marxiano e sobre a sua pertinente
produção; cite-se, entre eles, Leandro Konder, Marxismo e alienação. São Paulo:
Expressão Popular, 2009 [ed. orig., 1965]; José Arthur Giannotti, Origens da
dialética do trabalho. São Paulo: Difel, 1966; José Paulo Netto, Capitalismo e reifi-
cação. São Paulo: Ciências Humanas, 1981; Ruy Fausto, Marx. Lógica & política.
São Paulo: Brasiliense, I, apêndice 2, 1983 e “Sobre o jovem Marx”. Discurso. São
Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH/USP, v. 13, 1983; H.-G. Flikinger,
Marx e Hegel. O porão de uma filosofia social. Porto Alegre: L&PM, 1986; Celso
Frederico, O jovem Marx. 1843-1844. As origens da ontologia do ser social. São Paulo:
Expressão Popular, 2009 [ed. orig., 1995]; o filósofo Manfredo A. de Oliveira
dedicou-lhe competente atenção, em “Os Manuscritos de Paris e a articulação do
horizonte de emancipação”. Síntese (nova fase). Belo Horizonte, vol. 23, n. 72 (1996)
e José Chasin também contribuiu com observações instigantes em Marx: estatuto
ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009. Mais recentemente,
registra-se um renovado interesse acadêmico em torno do “jovem” Marx – veja-se,
por exemplo, Jesus Ranieri, A câmara escura. Alienação e estranhamento em Marx.
São Paulo: Boitempo, 2001 e “Da produção do chamado ‘jovem Marx’: algumas
notas sobre os Manuscritos econômico-filosóficos”. Outubro. São Paulo: Alameda,
n. 14, 2007; Sérgio Lessa, “A emancipação política e a defesa de direitos”. Serviço
Social & Sociedade. São Paulo: Cortez, ano XXVIII, n. 90, junho de 2007; Renato
Almeida de Oliveira, “A concepção de trabalho na filosofia do jovem Marx e suas
implicações antropológicas”. Kínesis. Marília: Unesp, vol. II, n. 3, abril de 2010.
No âmbito acadêmico brasileiro, aliás, já são expressivas as dissertações e teses que
incidem sobre o trabalho do jovem Marx. Tal interesse desborda para a discussão
da reificação – como se verifica, por exemplo, no ensaio de N. Duarte, “O bezerro

110
J o s é P a u l o N e t t o

de ouro, o fetichismo da mercadoria e o fetichismo da individualidade”, in Newton


Duarte, org., Crítica ao fetichismo da individualidade. Campinas: Autores Associa-
dos, 2012.
São inúmeros os materiais – muito diferenciados – produzidos no exterior e aces-
síveis em português que oferecem interesse relativamente à produção do jovem
Marx. Dentre um enorme elenco, cite-se, seletivamente, uma amostra diversificada:
Jean-Yves Calvez, O pensamento de Karl Marx. Porto: Tavares Martins, I-II, 1959;
Rodolfo Mondolfo, Estudos sobre Marx. São Paulo: Mestre Jou, 1967; Adam Schaff,
O marxismo e o indivíduo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967; Carlos As-
trada, Trabalho e alienação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968; H. Marcuse, Razão e
revolução. Hegel e o advento da teoria social. Rio de Janeiro: Saga, 1969 e Ideias sobre
uma teoria crítica da sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 1972; I. Fetscher, Karl Marx e
os marxismos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970; E. Bottigelli, A gênese do socialismo
científico. Lisboa: Estampa, 1971 (ed. bras.: São Paulo: Mandacaru, 1989); György
Márkus, A teoria do conhecimento no jovem Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974;
Henri Lefebvre, Para compreender o pensamento de Karl Marx. Lisboa: Ed. 70, 1975;
I. Mészáros, “Marx filósofo”, in E. J. Hobsbawm, org., História do marxismo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, I, 1979 e A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo,
2006; N. Lápine, O jovem Marx. Lisboa: Caminho, 1983; D. Riazanov, Marx-Engels
e a história do movimento operário. São Paulo: Global, 1984; John B. Foster, A ecologia
de Marx. Materialismo e natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005; G.
Lukács, “O jovem Marx. Sua evolução filosófica de 1840 a 1844”, in G. Lukács,
O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007; Adolfo
Sánchez Vázquez, Filosofia da práxis. São Paulo: Expressão Popular/Clacso, 2007 e
As ideias estéticas de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011; M. Löwy, A teoria
da revolução no jovem Marx. São Paulo: Boitempo, 2012 (ed. orig., 1970) e Método
dialético e teoria política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, partes III e IV. Ademais,
textos importantes sobre a formação marxiana encontram-se na antologia preparada
pelo filósofo português Vasco de Magalhães-Vilhena, Raízes teóricas da formação
doutrinal de Marx e Engels. Lisboa: Horizonte, 1981; outra contribuição lusitana,
que aporta elementos ao conhecimento do jovem Marx, é a de José Barata-Moura,
Materialismo e subjectividade. Estudos em torno de Marx. Lisboa: Avante!, 1997.
Mas a bibliografia sobre Marx – centrada na sua biografia e/ou que tematiza aspectos
relevantes da sua obra – é, sabidamente, enorme e muito dela permite situar a sua
produção “juvenil”, ademais de explorar temas vinculados direta e/ou indiretamente
a ela (concepção de homem, alienação, reificação); vejam-se, seletivamente, títulos
como: Auguste Cornu, La jeunesse de K. Marx. Paris: PUF, 1934; N. Guterman e H.
Lefebvre, “introdução” a Morceaux choisis de Marx. Paris: Gallimard, 1934; G. Pischel,
Marx giovane: 1818-1849. Milano: Garzanti, 1948; P. Bigo, Humanisme et économie
politique chez Karl Marx. Paris: PUF, 1953; J. Hyppolite, Études sur Marx et Hegel.
Paris: M. Rivière, 1955; P. Naville, De l’aliénation à la jouissance. Paris: Marcel Rivière,
1957; E. Thier, Das Menschenbild des jungen Marx. Gottingen: Vandenhoeck und
Ruprecht, 1957; D. I. Rosenberg, Die Entwicklung der ökonomischen Lehre von Marx
und Engels in dem vierziger Jahren des 19. Jahrunderts. Berlin: Dietz Verlag, 1958; G.
Mende, Karl Marx: Entwicklung von revolutionären Demokraten zum Kommunisten.
Berlin: Dietz Verlag, 1960; Manfred Friedrich, Philosophie und Ökonomie beim
jungen Marx. Berlin: Duncker und Humblot, 1960; T. Oizerman, “Le problème de
l´aliénation dans le travaux de jeunesse de Karl Marx”. Recherches Internationales à la
Lumière du Marxisme. Paris: La Nouvelle Critique, 33-34, 1962; Sidney Hook, From
Hegel to Marx. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1962 [ed. orig., 1936];

111
M a r x e m P a r i s

Roger Garaudy, “Les manuscrits de 1844 de Karl Marx”. Cahiers du communisme.


Paris, 39, 1963; Kostas Axelos, Marx, penseur de la technique. Paris: Minuit, 1963;
Mario Rossi, Marx e la dialettica hegeliana. 2. La genesi del materialismo storico. Roma:
Riuniti, 1963; Karl Korsch, Karl Marx. New York: Russell and Russell, 1963; Mario
Dal Pra, La dialettica in Marx. Bari: Laterza, 1965 [ed. rev., 1977]; L. Althusser, Pour
Marx. Paris: Maspero, 1965 (ed. bras.: A favor de Marx. Rio de Janeiro: Zahar, 1979)
e L. Althusser et alii, A polêmica sobre o humanismo. Lisboa: Presença, s.d.; W. Schuf-
fenhauer, Feuerbach und der junge Marx. Berlin: Deutscher Verlag der Wissenschaf-
ten, 1965; Karl Löwith, De Hegel a Nietzsche. Buenos Aires: 1968; W. Schmied-Ko-
warzik, “Marx’ letzte philosophische Selbstrechtfertigung. Die Bedeutung der
Hegel-Kritik in den Pariser Manuskripten”. Wiener Jahrbuch für Philosophie, II (1969);
D. McLellan, The young hegelians and Karl Marx. London: MacMillan, 1969 e De
Hegel a Marx. Barcelona: A. Redondo, 1972; H. Marcuse, Philosophie et révolution.
Paris: Denoël-Gonthier, 1969; E. Bottigelli, “apresentação” a K. Marx, Manuscrits
de 1844. Paris: Éd. Sociales, 1969 e “apresentação” a K. Marx-F. Engels, Manifeste
du parti communiste. Paris: Flammarion, 1998; G. Petrovic, Marxismo contra stalinis-
mo. Barcelona: Seix Barral, 1970; Lucien Goldmann, Marxisme et sciences humaines.
Paris: Gallimard, 1970; Richard J. Bernstein, Praxis and Action. Philadelphia: Uni-
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1972; John Maguire, Marx’s Paris Writings. An Analysis. Dublin/London: Gill/
MacMillan, 1972; Heinz Monz et alii, Der Unbekkante junge Marx. Neue Studien zur
Entwicklung der Marxschen Denkes. 1835-1847. Mainz: Hase und Koehler, 1973;
Aldo Zanardo, Filosofia e socialismo. Roma: Riuniti, 1974; C. Luporini, Dialettica e
materialismo. Roma: Riuniti, 1974; P. Kägi, La génesis del materialismo histórico.
Barcelona: Península, 1974; J. Zeleny, La estructura lógica de “El capital” de Marx.
Barcelona: Grijalbo, 1974; Adolfo Sánchez Vázquez, “estudo prévio” a Carlos Marx,
Cuadernos de Paris (Notas de lectura de 1844). México: Era, 1974 e Filosofía y economía
en el joven Marx. México: Grijalbo, 1982 (reedição sob o título El joven Marx. Los
Manuscritos de 1844. México: Unam/La Jornada/Itaca, 2003; cumpre notar que estas
análises de Sánchez Vázquez sobre os Manuscritos econômico-filosóficos são das mais
influentes na América Latina e delas há ricas interpretações em Gabriel Vargas Lo-
zano, ed., En torno a la obra de Adolfo Sánchez Vázquez. México: Unam/Facultad de
Filosofía y Letras, 1995); J. Grandjonc, Marx et les communistes allemands à Paris,
1844. Contribution à l’étude de la naissance du marxisme. Paris: Maspero, 1974; Lucien
Sève, “Analyses marxistes de l’aliénation: Religion et économie politique”, in Vv. Aa.,
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Grijalbo, 1974 [a ser publicado, em 2015, pela Expressão Popular] e “Le opere giova-
nili di Marx e le scienze sociali contemporanee”. In Vv. Aa., Marx vivo. Milano:
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Marx. Salamanca: Sígueme, 1975; José Manuel Bermudo, El concepto de práxis en el
joven Marx. Barcelona: Península, 1975; G. Bedeschi, Alienación y fetichismo en el
pensamiento de Karl Marx. Madrid: Comunicación, 1975; H. Lefebvre, De l’État. 2.
Théorie marxiste de l’État de Hegel à Mao. Paris, UGE, 1976, cap. VI; Lucio Colletti,
Il marxismo e Hegel. Bari: Laterza, I-II, 1976; P. Walton-A. Gamble, Problemas del
marxismo contemporáneo. Barcelona: Grijalbo, 1977; Bertell Ollman, Alienation:
Marx’s Conception of Man in Capitalist Society. Cambridge: Cambridge University
Press, 1976; Alfred Schmidt, El concepto de naturaleza en Marx. Madrid: Siglo XXI,
1977; Z. Rosen, Bruno Bauer and Karl Marx. The influence of Bruno Bauer in Marx’s
thought. The Hague: M. Nijhoff, 1977 e Moses Hess und Karl Marx. Hamburg: Chris-

112
J o s é P a u l o N e t t o

tians, 1989; Galvano Della Volpe, Rousseau y Marx. Barcelona: Martinez Roca, 1978;
A. Heller, La théorie des besoins chez Marx. Paris: UGE, 1978; Ludovico Silva, La
alienación en el joven Marx. México: Nuestro Tiempo, 1979; Emilio Lamo de Espi-
nosa, La teoría de la cosificación. De Marx a la Escuela de Francfort. Madrid: Alianza,
1981; Solange Mercier-Josa, Pour lire Hegel et Marx. Paris: Éd. Sociales, 1980 e Retour
sur le jeune Marx. Deux études sur le rapport de Marx à Hegel dans les Manuscrits de
1844 e dans le Manuscrit dit de Kreuznach. Paris: Méridiens-Klincksieck, 1986;
Maximilien Rubel, “introdução” a K. Marx, Oeuvres. Paris: Gallimard/La Pléiade,
III, Philosophie, 1982 e ainda Marx critique du marxisme. Paris: Payot & Rivages,
2000; Allen Oakley, Marx’s Critique of Political Economy. Intellectual Sources and
Evolution. I. 1844-1860. London: Routledge & Kegan Paul, 1984; Ángel Prior Olmos,
La libertad en el pensamiento de Marx. Murcia: Editum, 1988; Marion Barzen et alii,
Studien zu Marx’ erstem Paris-Aufenthalt und zur Entstehung der Deutschen Ideologie.
Trier: Schriften aus dem Karl-Marx-Haus, 43, 1990; Georges Labica, As “Teses sobre
Feuerbach” de Karl Marx. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990; I. Garo, Marx, une
critique de la philosophie. Paris: Seuil, 2000; E. Balibar, La philosophie de Marx. Paris:
La Découverte, 2001; W. Breckman, Marx, the young hegelians and the origins of ra-
dical social theory. Cambridge: Cambridge University Press, 1999; J.-L. Lacascade,
Les métamorphoses du jeune Marx. Paris: PUF, 2002; Douglas Mogach, ed., The New
Hegelians. Politics and Philosophy in the Hegelian School. Cambridge: Cambridge
University Press, 2006; Vv. Aa., Nouvelles aliénations. Paris: Actuel Marx/PUF, 2006;
A. Artous, Le fétichisme chez Marx. Paris: Syllepse, 2006; S. Haber, L’aliénation. Vie
sociale et expérience de la dépossession. Paris: PUF, 2007 e “Quelques remarques sur la
critique de l’argent au debut du livre I du Capital de Marx”, in Marx – L’Image. Be-
sançon: Presses Universitaires de Franche-Comté, 2008; P. Macherey, Les “Thèses” sur
Feuerbach. Traduction et commentaire. Paris: Ed. Amsterdam, 2008; David Leopold,
The Young Karl Marx. Cambridge: Cambridge University Press, 2007; A. Honneth,
Reification. A new look at an old idea. New York: Oxford University Press, 2008;
Emmanuel Renault, dir., Lire les Manuscrits de 1844. Paris: Vrin, 2008; Michel
Henry, Marx. Paris: Gallimard, 2009; J. Spurk, “Le noyau dur de la théorie sociale
de Marx: du fétichisme et de ses conséquences”. Revue de MAUSS. Paris: La Décou-
verte, 2009 (2); Oliver Clain, dir., Marx philosophe. Montréal: Nota Bene, 2009;
Marcello Musto, “Marx in Paris: Manuscripts and Notebooks of 1844”. Science &
Society, vol. 73, 3 (july 2009) e “The Formation of Marx’s Critique of Political Eco-
nomy: From the Studies of 1843 to the Grundrisse”. Socialism and Democracy, vol.
24, 2 (july 2010); Miguel Vedda, “introdução” a K. Marx, Manuscritos económico-
-filosóficos de 1844. Buenos Aires: Colihue, 2010; H. Touboul, Marx avec Hegel.
Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, 2010; Lucien Sève, “introdução” a K.
Marx, Écrits philosophiques. Paris: Flammarion, 2011; Sean Sayers, Marx and Aliena-
tion: Essays on Hegelian Themes. Basingstone-New York: Palgrave Macmillan, 2011;
Norman Levine, Marx’s Discourse with Hegel. Basingstone/New York: Palgrave
Macmillan, 2012; P. Dardot et C. Laval, Marx. Prénom: Karl. Paris: Gallimard, 2012;
Daniel Bensaïd, Espetáculo, fetichismo, ideologia. Fortaleza: Plebeu Gabinete de Lei-
tura, 2013; Ousmane Sarr, Marx et lá théorie de l’ idéologie. Paris: L’Harmattan, 2013;
V. Chanson, A. Cukier, F. Monferrand, dirs., La réification. Histoire et actualité d’un
concept critique. Paris: La Dispute, 2014. Vejam-se ainda os textos reunidos em “Sur
le jeune Marx”. Recherches Internationales à la Lumière du Marxisme. Paris: La Nou-
velle Critique, n. 19, 1960 e em “Il giovane Marx e il nostro tempo”. Annali della
Fondazione Feltrinelli. 1964-1965. Milano: Feltrinelli, anno VII, 1965.

113
M a r x e m P a r i s

Em várias biografias de Marx traduzidas ao português há elementos que permitem


contextualizar a produção do jovem Marx; além das já citadas acima, cf. David
McLellan, Karl Marx: vida e pensamento. Petrópolis: Vozes, 1990; Francis Wheen,
Karl Marx. Rio de Janeiro: Record, 2001 e Francisco Fernández Buey, Marx (sem
ismos). Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2004. Do abundante material ainda não traduzido,
há a excelente e insuperada obra de Auguste Cornu, Carlos Marx. Federico Engels,
4 vols., ed. cit.; Maximilien Rubel, Karl Marx. Essai de biographie intellectuelle.
Paris: Marcel Rivière, 1957; Isaiah Berlin, Karl Marx: His Life and Environment.
Oxford: Oxford University Press,1963; Rolf Hosfeld, Karl Marx: An Intellectual
Biography. New York: Berghahn Books, 2013. Observe-se que não estão referidas
aqui duas biografias “clássicas” de Marx e Engels – a de Franz Mehring, de 1918
(Karl Marx. A história de sua vida. São Paulo: Sundermann, 2013) e a de Gustav
Mayer, redigida entre 1919 e 1932, Friedrich Engels. Biografía, já citada: embora em
ambas haja importantes subsídios para a reconstrução do itinerário dos jovens Marx
e Engels, não tratam dos materiais marxianos autógrafos produzidos em 1844 por
várias razões (inclusive pela sua tardia divulgação). Enfim, sem caráter biográfico,
registrem-se as preleções de Raymond Aron, O marxismo de Marx. São Paulo: ARX,
2003.
As biografias de Marx geralmente são parcas em informações sobre a sua vida pessoal
e familiar; sobre esta, veja-se especialmente a reedição de P. Lafargue-W. Liebknecht,
Souvenirs sur Marx. Paris: Sandre, 2008; Pierre Durand, La vie amoureuse de Karl
Marx. Essay monographique. Paris: Julliard, 1970; Yvone Kapp, Eleanor Marx. New
York: Pantheon, 1972; Olga Meier, ed., The Daughters of Karl Marx: Family Cor-
respondence. 1866-1898. London: Penguin, 1984; Heinz F. Peters, Jenny. Uma vida
com Karl Marx. Mem Martins (Lisboa): Inquérito, 1993 e Mary Gabriel, Amor e
Capital . A saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução. Rio de Janeiro:
Zahar, 2013.
14 Anteriormente, Marx fizera uma breve viagem à Holanda, em fins de março de
1843 – ao que parece em visita a familiares.
15 A mais notável análise da “miséria alemã” é devida a Lukács (cf. o capítulo I de Die
Zertörung der Vernunft. Neuwied: Luchterhand, 1974). Vale também a leitura do
item 6 da quarta parte do excelente livro de Leo Kofler, Contribución a la historia
de la sociedad burguesa. Buenos Aires: Amorrortu, 1997.
16 E. Bottigelli, A gênese do socialismo científico, ed. port. cit., p. 45; nas páginas ante-
riores, o autor oferece um quadro sintético da situação da Alemanha na primeira
metade do século XIX.
17 Sobre o primeiro, cf. G. Lukács, Breve storia della letteratura tedesca. Torino: Ei-
naudi, 1976 e ainda Goethe und seine Zeit. Luchterhand: Neuwied-Berlin, 1964;
sobre a segunda, cf. Engels, “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”,
in K. Marx-F. Engels, Obras escolhidas em três volumes, ed. cit., vol. 3, 1963; em
outro registro teórico-ideológico, vários núcleos temáticos da filosofia clássica
alemã são objeto da análise de A. Heller, Crítica de la Ilustración. Barcelona:
Península, 1984.
18 Cf. K. Marx, “Differenz des demokritischen und epikureichen Naturphilosophie
nebst einem Anhange“, in K. Marx-F. Engels, Werke, vol. e ed. cit. (1977). Registro
em português duas edições sob o mesmo título: Diferença entre as filosofias da natu-
reza de Demócrito e Epicuro. Lisboa: Presença, 1972 e São Paulo: Global, 1979. Mais
segura que ambas é a versão castelhana contida em Carlos Marx-Federico Engels,
Obras fundamentales. 1. Marx. Escritos de juventud. México: Fondo de Cultura
Económica, 1987.

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J o s é P a u l o N e t t o

É significativo observar que, pelo menos até inícios de 1845, Marx se qualificava
como doutor em Filosofia – como registra no documento, firmado em Bruxelas a 7 de
fevereiro, mediante o qual solicita ao rei Leopoldo I permissão para residir na Bélgica
(cf. K. Marx-F. Engels, Opere. Roma: Riuniti, IV, 1972, p. 663). Mas, em junho de
1847, identifica-se como economista (cf. K. Marx, Miséria da filosofia. São Paulo:
Expressão Popular, 2009, p. 41).
19 Na sua original interpretação da dissertação marxiana de 1841 – na qual chega
mesmo a vislumbrar um embrião das posteriores Teses sobre Feuerbach –, Lukács (cf.
“O jovem Marx...”, in O jovem Marx e outros escritos de filosofia, ed. cit., p.123-131,
132) indica como ao tratamento da história da filosofia antiga por Marx já subjaz um
“programa político”, ou seja, “a vinculação da filosofia à oposição liberal”. Além deste
ensaio de Lukács, esclarecedoras análises da dissertação marxiana encontram-se
no primeiro capítulo de Mario Dal Pra, La dialletica in Marx, ed. cit. e em Foster,
A ecologia de Marx, ed. cit.
20 A criação da Gazeta Renana foi iniciativa de segmentos burgueses liberais de Colônia,
“movidos pelo desejo de destituir o juridicamente irrefreável, e autoritário, ocupante
do governo da Prússia, assim como sua burocracia de Estado” – nas palavras de
um historiador norte-americano liberal –, liderados pelo advogado Robert Jung,
“partidário dos Jovens Hegelianos”, Dagobert Oppenheim, banqueiro, e Engel-
bert Renard, comerciante de livros; o financimento do projeto foi inovador: uma
sociedade por ações. Nessa mesma fonte, há um curioso e informado debate sobre
a primeira experiência jornalística de Marx (J. Sperber, op. cit., p. 92 e ss.).
Textos de Marx na Gazeta Renana comparecem em K. Marx-F. Engels, MEW, vol.
e ed. cit. (1977); cf. também Carlos Marx-Federico Engels, Obras fundamentales,
vol. e ed. cit. Geralmente, dá-se grande importância aos textos que Marx publicou
na Gazeta Renana acerca da liberdade de imprensa (K. Marx, Liberdade de imprensa.
Porto Alegre: L&PM, 2006); mas deve-se sublinhar a relevância da sua crítica à
“Escola histórica do direito” (Historische Rechtsschule), que foi minudentemente
analisada por José Barata-Moura, Marx e a crítica da “Escola Histórica do Direito”.
Lisboa: Caminho, 1994; dela se ocupou, no Brasil, Rubens Enderle, “O jovem Marx
e o manifesto filosófico da Escola Histórica do Direito”. Crítica marxista. São Paulo:
Boitempo, n. 20, 2005.
21 É interessante observar que, pouco depois – junho de 1843 – foi-lhe oferecido o
cargo (que Marx obviamente recusou) de redator-chefe de um órgão oficialista
(Preussische Staatszeitung [Gazeta do Estado Prussiano]).
22 G. Lukács, “O jovem Marx...”, in O jovem Marx e outros escritos de filosofia, ed. cit.,
p. 135.
23 Eis aqui, cerca de 15 anos depois, a sua evocação: “Em 1842-1843, na qualidade de
redator da Gazeta Renana, encontrei-me, pela primeira vez, na embaraçosa obri-
gação de opinar sobre os chamados interesses materiais. [...] Nessa época, em que
o afã de ‘avançar’ sobrepujava amiúde a verdadeira sabedoria, fez-se ouvir [...] um
eco entibiado, por assim dizer filosófico, do socialismo e do comunismo francês.
Pronunciei-me contra essa mixórdia, mas, ao mesmo tempo, confessei claramente
[...] que os estudos que eu havia feito até então não me permitiam arriscar um juízo
a respeito da natureza das tendências francesas. [...] [O fim da Gazeta Renana]
ofereceu-me a ocasião, que me apressei em aproveitar, de deixar a cena pública e
me recolher ao meu gabinete de estudos” (K. Marx, prefácio – janeiro de 1859 – à
Contribuição à crítica da Economia Política, ed. cit., p. 46).
Para uma síntese da relação de Marx com o socialismo e o comunismo em 1842-
1843, cf. José Barata-Moura, Materialismo e subjectividade, ed. cit., p. 237-242.

115
M a r x e m P a r i s

24 Em 25 de janeiro de 1843, quando soube das providências das autoridades prussianas


no sentido de proibir a Gazeta Renana – que seria fechada, como se viu, no fim de
março –, Marx escreveu a Ruge: “Não posso empreender mais nada na Alemanha”
(a íntegra da carta encontra-se em K. Marx-F. Engels, MEW, ed. cit., vol. 27, 1965,
p. 414-415).
Desde os anos 1830, intelectuais alemães dispostos a enfrentar a “miséria alemã”
tinham chegado à mesma conclusão – Heine e Borne, por exemplo, foram compeli-
dos ao exílio. Para muitos analistas, 1830 marca o início do Vormärz (“pré-março”),
período de preparação cultural dos eventos revolucionários de (março) de 1848; cf.,
entre outros, G. Farese, Poesia e rivoluzione in Germania. 1830-1850. Bari: Laterza,
1974 e J. Hermand, org., Der deutsche Vormärz. Stuttgart: Reclam, 1976.
25 Há tradução portuguesa: Teses provisórias para a reforma da filosofia. Covilhã: Uni-
versidade da Beira Interior, 2008; d’A essência do cristianismo, registro duas versões
sob o mesmo título – Campinas: Papirus, 1988 (relançada, em 2003, pela Vozes,
de Petrópolis) e Lisboa: Fundação C. Gulbenkian, 1994. Sobre o impacto causado
por esta última obra, rememorava Engels, nos anos 1880: “Foi então que apareceu
A essência do cristianismo. [...] Só tendo vivido [...] a força libertadora desse livro é
que se pode imaginá-la. O entusiasmo foi geral – e momentaneamente todos nós
nos transformamos em ‘feuerbachianos’. Com que entusiasmo Marx saudou a nova
concepção e até que ponto se deixou influenciar por ela – apesar de todas as suas
reservas críticas – pode ser visto em A sagrada família” (Engels, “Ludwig Feuerbach
e o fim da filosofia clássica alemã”, in K. Marx-F. Engels, Obras escolhidas em três
volumes, ed. cit., vol. 3, 1963, p. 177).
26 Este manuscrito (também conhecido como Manuscrito de 1843, publicado pos-
tumamente em 1927) está traduzido em K. Marx, Crítica da filosofia do direito de
Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 27-141. Em um ensaio de 1983, recolhido
posteriormente em J. P. Netto, Marxismo impenitente. Contribuição à história das
ideias marxistas. São Paulo: Cortez, 2004, detive-me sobre ele, acerca do qual deve-se
consultar Vv. Aa., Marx démocrate. Le Manuscrit de 1843. Paris: Actuel Marx/PUF,
2001; cf. também Rubens Enderle, “apresentação” de K. Marx, Crítica da filosofia
do direito de Hegel, ed. cit., e Benedicto A. Sampaio e Celso Frederico, Dialética e
materialismo. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2006.
27 Há várias edições deste texto no Brasil – a mais antiga que registro, sob o título A
questão judaica, é do fim dos anos 1960 (Rio de Janeiro: Laemmert, 1969; tradução
e apresentação de Wladimir Gomide); mais disponíveis, em diferentes traduções
diretas do alemão, temos Para a questão judaica. São Paulo: Expressão Popular,
2009 e Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010 (esta com belo estudo
de D. Bensaïd).
Lembre-se que o texto de Marx resenha e critica as posições explicitadas por Bauer
(que tratava a questão dos direitos dos judeus na Alemanha como uma questão
religiosa) em Die Judenfrage [A questão judaica], folheto de 1843 que reunia artigos
divulgados no ano anterior, e em “Die Fähigkeit der heutigen Juden und Christen
frei zu werden” [“A capacidade dos judeus e dos cristãos hodiernos para se tornarem
livres”], artigo que complementava os precedentes e dado à luz em Einundzwanzig
Boden aus der Schweiz [Vinte e um cadernos da Suíça] – publicação animada por G.
Herweg e editada na Suíça por J. Fröbel (uma determinação de Frederico Guilherme
IV, de 4 de outubro de 1842, isentava de censura as produções com mais de 20
cadernos de impressão; apesar disso, a publicação de Herweg e Fröbel foi confiscada
e proibida).

116
J o s é P a u l o N e t t o

28 Cuidadosa análise desse empreendimento encontra-se em A. Cornu, Carlos Marx.


Federico Engels, ed. cit., t. II, p. 342 e ss.
29 Cf. A. Ruge et alii, “Annali di Halle” e “Annali tedeschi” (1838-1843), aos cuidados
de G. A. De Toni. Firenze: La Nuova Italia, 1981.
30 Pensamento que, em linhas gerais, Marx acompanhava desde 1842, seja por fon-
tes indiretas (Lorenz von Stein, Der Socialismus und Communismus des heutigen
Frankreichs. Ein Beitrag zur Zeitgeschichte [Sobre o socialismo e o comunismo na França
atual. Contribuição à história contemporânea], publicado em Leipzig, em 1842), seja
pela sua leitura inicial de alguns socialistas franceses (Proudhon).
31 Cf., supra, a nota 2.
32 A ideia de um “programa comum” de Marx e Ruge é questionada pelo estudioso
soviético N. Lápine, no seu importante livro O jovem Marx (cf. ed. cit., p. 194 e
ss.). Vale notar que, cerca de uma década depois, num panfleto que Marx e Engels
redigiram em Londres (“Os grandes homens do exílio”) em maio-junho de 1852,
os dois argumentam que seus textos publicados nos Anais Franco-Alemães diziam
“precisamente o contrário” do que Ruge escrevera na apresentação do número único
do periódico (cf. “Die grossen Männer des Exils”, K. Marx-F. Engels, Werke, ed.
cit., vol. 8, 1960, p. 277).
Nos últimos anos, a figura de Ruge tem atraído atenções na Itália – cf. G. Battista
Vaccaro, Il concetto di democrazia in Arnold Ruge. Milano: F. Angeli, 1987 – e na
Alemanha – cf. Lars Lambrecht, Karl-Ewald Tietz, eds., Arnold Ruge (1802-1880):
Beiträge zum 200. Geburtstag. Frankfurt-New York: P. Lang, 2002. Cf. ainda W.
Breckman, Marx, the young hegelians and the origins of radical social theory, ed. cit.
33 Rubel (Crônica de Marx, ed. cit., p. 26) aponta “fim de fevereiro”; Cornu (Carlos
Marx. Federico Engels, ed. cit., II, 1976, p. 374) assinala “março”. Com um projeto/
apresentação de A. Ruge, nas suas 239 páginas, além de materiais de Marx (“Para a
questão judaica” e “Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdu-
ção”) e de Engels (“Esboço de uma crítica da Economia Política” e “A situação da
Inglaterra. Passado e presente, de Thomas Carlyle”), os Anais... davam à luz alguma
correspondência dos editores, uma comunicação de J. Jacoby, textos de M. Hess e
K. Bernays e poemas de H. Heine e G. Herwegh.
34 Marx só verificará diretamente os grandes impactos (na produção e na urbanização)
da Revolução Industrial quando viajar à Inglaterra pela primeira vez, ciceroniado
por Engels, em julho-agosto de 1845 – em semanas em que visitou Londres e
Manchester.
35 Não são inteiramente confiáveis os dados censitários franceses antes de 1856. Se-
gundo algumas fontes, em 1836, o país contava com 35 milhões de habitantes e as
cidades com mais de 50 mil eram apenas 9. Conforme outras, a população total,
em 1848, era de 35.500.000 habitantes.
36 Fedosseiev et alii, Karl Marx. Biografia, ed. cit., p. 63; cf., para mais dados, Cornu,
Carlos Marx. Federico Engels, ed. cit., IV, 1976, cap. I; E. J. Hobsbawm, A era das
revoluções. 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, cap. 9, e especialmente
David S. Landes, Prometeu desacorrentado. Transformação tecnológica e desenvolvi-
mento industrial na Europa ocidental, desde 1750 até a nossa época. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1994, p. 131-200.
37 “Quem dominou sob Luís Felipe não foi a burguesia francesa, mas uma fração
dela – os banqueiros, os reis da bolsa, os reis das estradas de ferro, os proprietários
de minas de carvão e de ferro e de explorações florestais e uma parte da propriedade
territorial ainda aliada a ela – a chamada aristocracia financeira. [...] A monarquia de
julho não passava de uma grande sociedade por ações para a exploração da riqueza

117
M a r x e m P a r i s

nacional da França, cujos dividendos se repartiam entre os ministros, as câmaras,


240 mil eleitores e seu séquito” (K. Marx, “As lutas de classes na França de 1848 a
1850”, in: K. Marx-F. Engels, Obras escolhidas em três volumes, ed. cit., vol. 1, 1961,
p. 111-113). Também Engels referiu-se ao “sistema mesquinho e pusilânime de Luís
Felipe, em que um pequeno setor da grande burguesia detinha o poder exclusivo”
(Engels, “Introdução” (1891) a “A guerra civil na França”, de Marx, in K. Marx-F.
Engels, Obras escolhidas em três volumes, ed. cit., vol. 2, 1961, p. 46).
38 Dentre os muitos títulos sobre este episódio revolucionário, cf. Fernand Rude, La
Révolte des Canuts (1831-1834). Paris: La Découverte, 2007.
39 À diferença da Inglaterra – onde a liberdade de associação operária (trade-unions)
foi conquistada nos anos 1820 –, na França vigia a “lei le Chapelier”, aprovada em
1791, proibindo greves e associações de trabalhadores. Esta lei só foi formalmente
derrogada em 1864.
40 Sobre tais sociedades, veja-se, entre outras fontes, o cap. 7 de Sarane Alexandrian,
Le socialisme romantique. Paris: Seuil, 1979.
41 A. Cornu, Carlos Marx. Federico Engels, ed. cit., IV, 1976, p. 14. É em função dessa
nítida diferenciação que Marx e Engels decidiriam posteriormente o título do
Manifesto de 1848, como Engels o recordou 40 anos depois – cf. o seu prefácio de
janeiro de 1888 à edição inglesa do texto célebre in K. Marx-F. Engels, Manifesto
do Partido Comunista. São Paulo: Cortez, 1998, p. XCI-XCII.
42 Não há dados seguros sobre os imigrantes à época – números de 1851 mencionam
100 mil estrangeiros na capital e pouco mais de um milhão em todo o país; de fato,
desde 1830, a França tornara-se um país de imigração. Mas não há dúvidas sobre
a predominância de alemães entre os imigrados em Paris: apontam-se 25 mil em
1825, 60 mil/80 mil em meados dos anos 1840; no fim desta década, o fluxo de
alemães cresceu com a repressão ao movimento de 1848. É este contingente que
explica a existência, na França, de uma enorme quantidade de periódicos alemães
(quase três dezenas, a maior parte dos quais de vida efêmera) até a década de 1840
– com destaque, entre eles, para o Vorwärts! [Avante!], de que se falará adiante.
Sobre estas questões, cf. Jacques Grandjonc, “La presse de l’imigration allemande
en France (1795-1848) et en Europe (1830-1848)”. Archiv für Sozialgeschichte, 10,
1970 e Emigrés français en Allemagne, emigrés allemands en France. Paris: Institut
Goethe, 1983.
43 Reformas que transformarão a urbanística de Paris a partir de inícios dos anos 1850
e depois serão replicadas em várias capitais e metrópoles – inclusive na perspectiva
de impedir movimentações como as de 1848: como Engels lembrou em 1895, “os
bairros construídos a partir de 1848 nas grandes cidades têm ruas longas, retas e
largas e parecem ser feitos sob encomenda para o uso dos novos canhões e fuzis”,
problematizando enormemente as possibilidades de êxito das lutas de barricadas
(F. Engels, “Introdução” a “As lutas de classes na França de 1848 a 1850”, de Marx,
loc. cit., p. 106).
44 W. Benjamin, “Paris, capital do século XIX”, in W. Benjamin, Passagens. Belo
Horizonte/S.Paulo: Ed.UFMG/IMESP, 2007.
45 Recorde-se que, até então, a maior cidade em que Marx (natural de Trier, então
com 15 mil habitantes) vivera fora Berlim, que só em 1849 chegaria a ter 380 mil
habitantes.
46 K. Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel, ed. cit., p. 155-156 (acerca de supras-
sunção, cf., infra, a nota seguinte). Esta relação entre a filosofia e a classe operária
alemãs, enunciada pelo jovem Marx e reafirmada ao longo da obra marx-engelsiana,
é coroada pela conhecida passagem final de um texto de Engels, redigido três anos

118
J o s é P a u l o N e t t o

após a morte de Marx: “O movimento operário alemão é o herdeiro da filosofia


clássica alemã” (“Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”, in K. Marx-F.
Engels, Obras escolhidas em três volumes, ed. cit., vol. 3, 1963, p. 207). Cf. também,
infra, a nota 66.
47 Penso especialmente na formulação constante d’A sagrada família: “Porque a abstra-
ção de toda humanidade, até mesmo da aparência de humanidade, praticamente já
é completa entre o proletariado instruído; porque nas condições de vida do prole-
tariado estão resumidas as condições de vida da sociedade de hoje, agudizadas do
modo mais desumano; porque o homem se perdeu a si mesmo no proletariado, mas
ao mesmo tempo ganhou com isso não apenas a consciência teórica dessa perda,
como também [...] foi obrigado à revolta [...], por causa disso o proletariado pode e
deve libertar-se a si mesmo. Mas ele não pode libertar-se a si mesmo sem suprassumir
suas próprias condições de vida. Ele não pode suprassumir suas próprias condições
de vida sem suprassumir todas as condições de vida desumana da sociedade atual
[...]” (K. Marx-F. Engels, A sagrada família ..., ed. cit., p. 49; para o original alemão,
cf. K. Marx-F. Engels, MEW, vol. 2, 1959, p. 38).
Tradicionalmente se traduziu Aufhebung por superação (tal como o fez Djacir Me-
nezes na sua versão de fragmentos hegelianos – cf. G. W. F. Hegel, Textos dialéticos.
Rio de Janeiro: Zahar, 1969, p. 146-147; cf. aí, às p. 249-256, as “Breves apostilas
ao léxico filosófico de Hegel”, do mesmo D. Menezes); a opção por suprassunção
é esclarecida por Marcelo Backes, tradutor da ed. bras. d’A sagrada família... que
estamos citando, na sua “nota à tradução” (cf. a ed. cit., esp. p. 11-13; procedimento
similar fora utilizado por Paulo Meneses – cf. a sua tradução da Fenomenologia do
Espírito. Petrópolis/Bragança Paulista, Vozes/Ed. Univ. São Francisco, 2008). Nesta
apresentação, o leitor encontrará o uso das duas formas.
Sobre dificuldades e variantes da versão ao português de termos de Hegel e Marx,
cf., infra, as notas 91 e 107.
48 O filósofo alemão viu que Marx descobriu naquela “perda total da humanidade”
no proletariado, no nada humano a que os operários são reduzidos, um “ponto de
comutação” essencial – como escreveu numa de suas maiores obras: “O marco
zero da alienação extrema, representado pelo proletariado, torna-se, no final das
contas, o ponto de comutação dialético; Marx ensina a encontrar o nosso universo
precisamente no nada desse marco zero” (Ernst Bloch, O princípio esperança. Rio de
Janeiro: UERJ/Contraponto, vol. 3, 2006, p. 444). Ao mencionar o nada a que são
reduzidos os trabalhadores, Bloch com certeza pensa na passagem marxiana segundo
a qual “a existência abstrata do homem como um simples homem de trabalho” faz
com que o operário se precipite “diariamente do seu nada preenchido para o nada
absoluto, para a sua não existência social e por isso a sua não existência real” (cf.,
infra, a p. 326).
49 K. Marx, Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica
da Economia Política. São Paulo-Rio de Janeiro: Boitempo-UFRJ, 2011. Estão
disponíveis para o leitor brasileiro duas obras – fundamentais – centradas nos
Grundrisse...: R. Rosdolsky, Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx. Rio de
Janeiro: Contraponto/UERJ, 2001 e E. Dussel, A produção teórica de Marx. Um
comentário aos Grundrisse. São Paulo: Expressão Popular, 2012. Vale também a
leitura dos ensaios coligidos em João Antônio de Paula, org., O ensaio geral: Marx e
a crítica da Economia Política (1857-1858). Belo Horizonte: Autêntica, 2010; sobre
a relação Marx-Hegel refratada nos Grundrisse, cf. H. Uchida, Marx’s Grundrisse
and Hegel’s Logic. London: Routledge, 1988. Ao que sei, permanece inédito em

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M a r x e m P a r i s

português o estudo de Antonio Negri, Marx oltre Marx. Quaderno di lavoro sui
Grundrisse. Milano: Feltrinelli, 1979.
50 Cf. os textos citados na nota 3, supra, e ainda Jacques Droz, “L’influence de Marx
en Allemagne pendant la révolution de 1848”. La Nouvelle Critique. Paris, n. 68,
1955. A intervenção jornalística de Marx na revolução alemã de 1848 está disponível
em K. Marx, Nova Gazeta Renana. São Paulo: EDUC, 2010; a tradutora dos textos
reunidos neste volume, Lívia Cotrim, precedeu-os de uma interessante apresentação;
outros comentários pertinentes encontram-se no prefácio de José Chasin a um dos
textos ali recolhidos, publicado anteriormente (K. Marx, A burguesia e a contrarre-
volução. São Paulo: Ensaio, 1987). Jovens pesquisadores têm, mais recentemente,
se debruçado sobre a importância daquele evento revolucionário na evolução de
Marx – veja-se, por exemplo, Irene Viparelli, “Marx e la revoluzione del 1848”.
Logos. Napoli, n. 4-5, 2009-2010.
51 Tal como formulei numa breve intervenção de 1983, incluída depois em J. P. Netto,
Democracia e transição socialista. Escritos de teoria e política. Belo Horizonte, Oficina
de Livros, 1990, p. 61-67.
52 O autor destas linhas, E. Bottigelli, dá por suposto que o leitor saiba que se tratava
de um espaço público demarcado por duas torres, construídas no final do século
XVIII, onde a guilhotina operou durante a Revolução de 1789.
53 E. Bottigelli, “apresentação” a K. Marx, Manuscrits de 1844, ed. cit. (1969), p.
XXIX.
54 Internacionalismo que Marx – assim como Engels, que já o assimilava em sua relação
com o movimento operário inglês – incorporará como constitutivo da mencionada
perspectiva revolucionária do proletariado e de que explicitamente ambos darão
provas cabais (teóricas e políticas) até o fim de suas vidas; a título de exemplos de
suas últimas intervenções, veja-se, em Marx, o parágrafo em que alude, n’A guerra
civil na França, à participação de estrangeiros na Comuna e em seu governo (cf.,
J. P. Netto, org., O leitor de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p.
418) e, em Engels, a sua correspondência posterior a 1891 (cf. K. Marx-F. Engels,
MEW, ed. cit., vols. 38 e 39).
Sabe-se que também a questão (e a problemática) do internacionalismo (e da nação)
é polêmica na tradição marxista; cf., entre outros títulos, G. Haupt, M. Löwy e
C. Weil, eds., Les marxistes et la question nationale. 1848-1914. Paris: Maspero,
1974; J. Pinsky, org., Questão nacional e marxismo. São Paulo: Brasiliense, 1980;
R. Galissot, “Nação e nacionalidade nos debates do movimento operário”, in E. J.
Hobsbawm, org., História do marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, vol. 4, 1984; M.
Löwy, Nacionalismos e internacionalismos. São Paulo: Xamã, 2000; E. J. Hobsbawm,
Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. São Paulo: Paz e Terra,
2008. Cf. ainda os ensaios de dois marxistas brasileiros: João Antônio de Paula, “A
ideia de nação no século XIX e o marxismo”. Estudos avançados. São Paulo: USP-
-IEA, vol. 22, n. 62, janeiro-abril de 2008 e Valério Arcary, “Internacionalismo e
nacionalismo: dilemas da aposta estratégica”. Serviço Social & Sociedade. São Paulo:
Cortez, n. 98, abril-junho de 2009.
55 Lê-se nos Manuscritos, redigidos por esta época: “Quando os artesãos comunistas
se unem, vale para eles antes do mais como finalidade a doutrina, propaganda etc.
Mas, ao mesmo tempo, eles apropriam-se por esse fato de uma nova necessidade, a
necessidade de sociedade, e o que aparece como meio tornou-se fim. Pode intuir-se
esse movimento prático nos seus resultados mais brilhantes quando se vê ouvriers
socialistas franceses reunidos. Fumar, beber, comer etc. já não existem como meios
da ligação nem como meios que ligam. A sociedade, a associação, a conversa, que de

120
J o s é P a u l o N e t t o

novo tem a sociedade como fim, basta-lhes; a fraternidade dos homens não é para
eles nenhuma frase, mas verdade, e a nobreza da humanidade ilumina-nos a partir
dessas figuras endurecidas pelo trabalho.” (cf. infra, neste volume, a p. 401-402).
Lê-se também n’A sagrada família, publicada um ano depois (1845): “Apenas quem
teve a oportunidade de conhecer o estudo, o afã de saber, a energia moral, o impulso
incansável de desenvolvimento dos operários franceses e ingleses pôde formar para
si uma ideia da nobreza humana desse movimento” (K. Marx-F. Engels, A sagrada
família..., ed. cit., p. 102. O “movimento” aqui referido diz respeito ao da grande
massa, que os “críticos críticos” desprezavam).
56 De que são provas eloquentes os seus textos de 1844/1845. Sobre essa sociabilidade,
vejam-se, por exemplo – duas entre tantas – as seguintes passagens d’A situação
da classe trabalhadora na Inglaterra: “Na vida cotidiana, o operário é muito mais
humano que o burguês. [...] Para os operários, qualquer homem é um ser humano;
para os burgueses, o operário é menos que um homem. Por isso, os operários são
mais sociáveis, mais amáveis [...]. O operário tem uma mentalidade mais aberta,
dispõe de um juízo mais agudo sobre os fatos e não vê tudo, como o faz o burguês,
pelo prisma do interesse”. E sobre a relação entre a classe e a cultura, escreve o jovem
Engels: “Mas os operários sabem apreciar ‘uma sólida cultura’, desde que ela não
venha trazendo de contrabando os interessados saberes da burguesia – provam-no
as frequentes conferências sobre problemas das ciências naturais, da estética e da
economia, assistidas por um grande público e organizadas pelas instituições pro-
letárias [...]. Várias vezes vi operários [...] discutirem geologia, astronomia e outros
temas com argumentos superiores aos de qualquer burguês culto alemão” (A situação
da classe trabalhadora na Inglaterra, ed. cit., p. 162-163 e 272).
57 O “Esboço de uma crítica da Economia Política”, que Engels redigiu entre fins de
1843 e janeiro de 1844 e logo enviou para os Anais Franco-Alemães, representou para
Marx, indiscutivelmente, um estímulo essencial para seus estudos – como observa-
ram dois analistas, o texto de Engels “agiu sobre Marx como uma revelação, e ele
lançou-se imediatamente à leitura dos economistas clássicos” (M. Morishima e G.
Catephores, Valor, exploração e crescimento. Marx à luz da teoria econômica moderna.
Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 17); não por acaso, junto aos apontamentos que
constituem os Cadernos de Paris, encontra-se um resumo do texto (cf. infra, neste
volume, as p. 185-186) e nos Manuscritos a caracterização de Adam Smith como
o “Lutero da economia” (cf. infra, neste volume, a p. 336) é diretamente tomada
dele. Ademais, como notou Chambre, nos mesmos Manuscritos, Marx desenvolveu
a concepção de alienação do proletário a partir da sua alienação diante do produto
do trabalho, tal como Engels indica no “Esboço...” (cf. H. Chambre, prefácio a
F. Engels, Esquisse d’une critique de l’ économie politique/Umrisse zu einer Kritik
der Nationalökonomie. Paris: Aubier Montaigne, 1974). E um historiador (ligado
à tradição da Sociedade Fabiana) do pensamento socialista chega até a sustentar,
penso que apressadamente, que o ensaio do jovem Engels “é uma antecipação das
doutrinas que Marx desenvolveu em seu folheto-conferência sobre Trabalho assa-
lariado e capital e, mais tarde, na sua Contribuição à crítica da Economia Política e
n’O capital ” (G. D. H. Cole, Historia del pensamiento socialista. I. Los precursores.
1789-1850. México: Fondo de Cultura Económica, I, 1974, p. 230).
Em 1859, Marx referiu-se ao “genial esboço de uma crítica das categorias econô-
micas” (K. Marx, Contribuição à crítica da Economia Política, ed. cit., p. 49) que
encontrou no ensaio juvenil de Engels; no livro I (1867) d’O capital, transcreve
passagens do texto engelsiano no capítulo I, a propósito da lei que regula a quan-
tidade de valor pelo tempo de trabalho socialmente necessário à produção, e no

121
M a r x e m P a r i s

capítulo IV, acerca da fórmula geral do capital e suas contradições (cf. K. Marx,
O capital. Crítica da Economia Política, ed. cit., livro I, vol. 1, 1968, p. 84, 171
e 184). Não sem razões, pois, Celso Frederico afirmou que, “sem dúvida, Engels
não só iniciou Marx no estudo da Economia Política, como também lhe forneceu
elementos conceituais para a crítica dessa ciência” (C. Frederico, O jovem Marx...,
ed. cit., p. 128-129).
58 Sobre tais relações, cf. Cornu, Carlos Marx. Federico Engels, ed. cit., III, cap. I e
ainda: P. Haubtmann, Marx et Proudhon; leurs rapports personnels. Lyon: Écono-
mie et humanisme, 1947; W. Victor, Marx und Heine. Berlin: Henschel, 1951; G.
Woodcock, Pierre-Joseph Proudhon. New York: Schoken, 1972; J.-P. Lefebvre, Marx
und Heine. Trier: Karl Marx Haus, 1972; E. H. Carr, Michael Bakunin. New York:
Octagon, 1975; M. Leier, Bakunin. The creative passion. New York: Seven Stories,
2009.
59 Cf. K. Marx-F. Engels, MEW, ed. cit., vol. 1, 1958. Há pelo menos duas edições
brasileiras do artigo, concluído em 31 de julho de 1844: K. Marx, Glosas críticas
marginais ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social”, de um prussiano. São Paulo:
Expressão Popular, 2010 e “Glosas críticas ao artigo O rei da Prússia e a reforma
social. De um prussiano”. K. Marx-F. Engels, Lutas de classes na Alemanha. São
Paulo: Boitempo, 2010. Ademais deste artigo, Marx só publicou no Vorwärts! mais
um pequeno texto (“Observações sobre os últimos exercícios de estilo de Frederico
Guilherme IV”, n. 66, 17 de agosto de 1844).
No Brasil, as Glosas críticas... receberam a atenção de alguns estudiosos, entre os
quais Alberto Dias Gadanha que, em 2002, defendeu a dissertação A revolta dos
tecelões da Silésia em 1844. Controvérsia entre Karl Marx e Arnold Ruge sobre a ins-
trumentalização da política pela revolução social (Universidade Federal da Paraíba)
e publicou o ensaio “O não senso de uma revolução social com alma política.
Marx – em 31 de julho de 1844. Uma leitura além de modernidades”. Kalagatos.
Revista de filosofia do Mestrado Acadêmico em Filosofia da UECE. Fortaleza, vol. 1,
n. 1, inverno de 2004; Giovanni Alves também tratou das Glosas... no segundo
capítulo do seu livro Limites do sindicalismo. Marx, Engels e a crítica da Economia
Política. Bauru: Praxis, 2003 e igualmente Ivo Tonet, na sua apresentação à edição
das Glosas..., por ele traduzida e lançada pela Expressão Popular na ed. cit. supra.
60 Inclusive em sua correspondência, Ruge evidenciava o rancor que desenvolvia frente
aos comunistas, em especial os alemães – veja-se esta passagem de uma carta (de 28
de março de 1844) à sua mãe: “Os piores são os comunistas alemães, que preten-
dem libertar todas as pessoas convertendo-as em operários e querem substituir a
propriedade privada pela comunidade de bens e por uma repartição equitativa das
riquezas, mas que, no entanto, estão eles mesmos agarrados à propriedade privada
e particularmente ao dinheiro” (apud Cornu, Carlos Marx. Federico Engels, ed.
cit., III, 1976, p. 40). Ou esta, de uma carta a Fleischer (de 9 de julho do mesmo
ano): “Marx mergulhou no comunismo alemão [...] é inconcebível que ele atribua
importância política a este lamentável movimento” (apud N. Lápine, O jovem Marx,
ed. cit., nota à p. 306).
61 Sobre a rebelião dos tecelões da Silésia (4-6 de junho de 1844) – componente do
quadro geral analisado por Jacques Droz, Europa, restauración y revolución. 1815-
1848. Madrid: Siglo XXI, 1993 –, cf. E. Dolléans, Histoire du mouvement ouvrier.
I. 1830-1871. Paris: A. Colin, 1948; B. Ponomariov, org., El movimiento obrero
internacional. Moscu: Progresso, vol. 1, 1982; Hans E. Bremes, 140 Jahre Webe-
raufstand in Schlesien. Industriearbeit und Technik – gestern und heute. Ein Beitrag
zur politischen Kulturarbeit. Münster: Westfälisches Dampfboot, 1985 e Christina

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J o s é P a u l o N e t t o

von Hodenberg, Aufstand der Weber. Die Revolte von 1844 und ihr Aufstieg zum
Mythos. Bonn: Dietz, 1997.
62 Há tradução ao português, apensa a K. Marx-F. Engels, Lutas de classes na Alemanha,
ed. cit.
63 No seu texto essencial sobre o jovem Marx, publicado em 1955, escreveu Lukács:
“Na formação de Marx, o processo de superação do hegelianismo e do próprio
Feuerbach, com a consequente fundação da dialética materialista, coincidiu com
a passagem das posições democrático-revolucionárias a um socialismo consciente.
As duas tendências formam uma unidade necessária, mas o processo global se
desenvolveu, certamente de modo não casual, no período da história alemã em
que, depois da subida ao trono da Prússia de Frederico Guilherme IV e da virada
em sentido reacionário-romântico da política interna prussiana, desenvolveu-se na
Alemanha um fermento político e ideológico generalizado, ou seja, a preparação da
revolução democrático-burguesa de 1848. E foi precisamente neste período [...] que
eclodiu pela primeira vez a luta do movimento operário e revolucionário alemão.
Certamente não é casual a coincidência entre, de um lado, o processo de esclarecimento
e consolidação da concepção socialista do mundo no jovem Marx e, de outro, a primeira
ação revolucionária do proletariado alemão, ou seja, a revolta dos trabalhadores têxteis
da Silésia em 1844” (“O jovem Marx...”, in O jovem Marx e outros escritos de filosofia,
ed. cit., p. 122 [itálicos meus – JPN]).
Aliás, a mim me parece que foi Lukács o primeiro marxista a apreender e a compreender
em profundidade a relação entre a emergência histórica do proletariado (alemão) e a
elaboração teórica de Marx – já no seu célebre livro de 1923 (História e consciência
de classe. Estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003), ele
sustentava que Marx descobriu no movimento revolucionário (dos tecelões da
Silésia) a possibilidade de a consciência de classe do proletariado (à diferença da
consciência burguesa) tender à supressão da imediaticidade – passo necessário para
uma consciência que visa à totalidade social; cf. o ensaio “Die Verdinglichung und
das Bewusstsein des Proletariats” [“A reificação e a consciência do proletariado”],
in Geschichte und Klassenbewusstsein. Studien über marxistische dialectik. Berlin:
Malik Verlag, 1923, esp. p. 189 e ss.
64 Em dois pequenos artigos publicados no jornal cartista The Northern Star, de 29
de junho de 1844 (n. 346), Engels comenta a rebelião silesiana, expedindo juízos
semelhantes aos que Marx formula na crítica a Ruge (cf. K. Marx-F. Engels, Collected
Works. London/New York: Lawrence & Wishart/International Publishers, vol. 3,
1975, p. 530 e ss.).
65 Cornu, Carlos Marx. Federico Engels, ed. cit., tomo III, 1976, p. 109-110.
66 Marx – ao contrário de Ruge – tem os trabalhadores pobres da Silésia em alta conta:
não protagonizam uma “revolta” de “espírito estreito”; aliás, neste mesmo texto, ele
escreve que “deve-se admitir que o proletariado alemão é o teórico do proletariado
europeu” (Idem, ibidem, p. 69).
67 “A cidade balneária de Kreuznach [na confluência dos rios Nahe e Reno, a nordeste
de Trier – JPN ] contava com uma excelente biblioteca municipal [...] para uso dos
muitos visitantes abastados e letrados que para lá acorriam [...]. Marx soube usu-
fruir desses recursos para fazer anotações sobre a história dos Estados Unidos e dos
principais países europeus, assim como estudar alguns clássicos da teoria política,
incluindo trabalhos de Montesquieu, Maquiavel e Rousseau” (Sperber, op. cit., p.
122).
68 Autores tão diversos como Lukács e Lápine coincidem nesta apreciação. Escreveu o
primeiro, ao analisar este momento da evolução de Marx, que o seu aspecto decisivo

123
M a r x e m P a r i s

“é a passagem ao materialismo” e acrescentou que “o alcance da crítica de Marx


não se limita ao hegelianismo, [...] contém também os princípios de uma superação
geral e abrangente de qualquer forma de idealismo no plano dos conceitos” (G.
Lukács, O jovem Marx e outros escritos de filosofia, ed. cit., p. 142 e 148). Pontuou
o segundo: “O Manuscrito de 1843 testemunha a passagem consciente de Marx ao
materialismo” (N. Lápine, O jovem Marx, ed. cit., p. 156).
69 Analisando o § 262 da Filosofia do direito hegeliana, escreve Marx: “A ideia é sub-
jetivada e a relação real entre família e sociedade civil e Estado se concebe como a
sua atividade interna imaginária. Família e sociedade civil são as premissas do Estado;
são, efetivamente, os fatores ativos; mas, na especulação, dá-se o inverso” (K. Marx,
“Kritik des Hegelschen Staatsrechts”, in K. Marx-F. Engels, MEW, ed. cit., vol. 1,
1958, p. 206 [o itálico da segunda frase é meu – JPN ]).
Talvez fosse melhor traduzir aqui bürgerlische Gesellschaft, conforme utilizada
por Hegel e por Marx, por “sociedade civil-burguesa” tal como o fizemos Carlos
Nelson Coutinho e eu (seguindo a lição de Marcos Lutz Müller – cf. G. W. F.
Hegel, Linhas fundamentais da filosofia do direito, “A eticidade”, segunda seção,
“A sociedade civil-burguesa”. Textos didáticos. Campinas: IFCH/Unicamp, n. 21,
março de 1966) na versão do ensaio citado de Lukács, “O jovem Marx...”. Com esta
tradução, sublinha-se que bürgerlische Gesellschaft, termo usado por Hegel e Marx,
não é sinônimo de “sociedade civil” nem na acepção consagrada por A. Gramsci
nem naquela com que aparece na literatura sociológica contemporânea.
70 Carente de instrumentos para uma análise radical da relação Estado/sociedade
civil e inconclusivo, nem por isto o manuscrito de Kreuznach deve ser minimizado
na detecção das virtualidades do processo constitutivo do pensamento de Marx.
Não se esqueça, por exemplo, das instigantes notações do jovem Marx acerca do
fenômeno burocrático (cf. K. Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel, ed.
bras. cit., p. 64 e ss.) – problemática que Marx não desenvolverá, mas que não será
descurada por ele ao se voltar para análises histórico-concretas: veja-se o seu trato
quando do golpe de Luís Bonaparte, em que as vinculações de classe da burocracia
são claramente destacadas (cf. K. Marx, O dezoito brumário de Luís Bonaparte, in
K. Marx-F. Engels, Obras escolhidas em três volumes, ed. bras. cit., vol. 1, 1961, p.
234-235) , bem como os parágrafos iniciais da seção III do “Manifesto do Conselho
Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores sobre a guerra civil na França
em 1871” (cf. idem, ibidem, vol. 2, 1961, p. 80-85).
71 Escreve Marx: “Para nós, a religião já não passa por ser o fundamento, mas apenas
o fenômeno da limitação mundana. Nós explicamos, portanto, o constrangimento
religioso dos cidadãos de Estados livres a partir do seu constrangimento munda-
no. [...] Nós não transformamos as questões mundanas em [questões] religiosas.
Nós transformamos as questões religiosas em [questões] mundanas. Depois de a
história, durante bastante tempo, ter sido resolvida em superstição, nós resolvemos
a superstição em história” (K. Marx, Para a questão judaica, ed. cit., p. 47).
72 Neste texto que considera “deslumbrante e substancioso”, Sánchez Vázquez aponta
as três questões fundamentais tratadas por Marx: a) a questão da transformação
social (ou crítica radical) da sociedade; b) a questão do agente histórico dessa
transformação, o proletariado; e c) a questão das relações entre a teoria e a prática
(a aliança da filosofia com o proletariado). Diz o falecido filósofo espanhol radicado
no México que Marx aborda essas questões de forma antropológica e insuficiente,
sob a influência de uma concepção abstrata do homem, derivada de Feuerbach;
falta-lhe ainda “fundamentar na interioridade mesma da estrutura social e do
desenvolvimento histórico a necessidade e a possibilidade da revolução [...] e na

124
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referida estrutura e no devir histórico o papel revolucionário do proletariado como


agente fundamental da transformação social” (A. Sánchez Vázquez, “Economía y
humanismo”, in K. Marx, Cuadernos de Paris (Notas de lectura de 1844), ed. cit., p.
22-23).
73 Meses antes, numa carta a Ruge (de 13 de março de 1843), Marx anotara que “os
aforismas de Feuerbach só me parecem carecer de razão na medida em que se refe-
rem muito à natureza e pouco à política” (K. Marx-F. Engels, MEW, ed. cit., vol.
27, 1965, p. 417). E cerca de dois anos e meio depois, provavelmente já redigidas
as Teses sobre Feuerbach, Marx e Engels escreviam n’A ideologia alemã: “Na medida
em que Feuerbach é materialista, nele não se encontra a história, e na medida em
que toma em consideração a história ele não é materialista” (A ideologia alemã. São
Paulo: Boitempo, 2007, p. 32).
74 Diz Marx: “[...] A religião é de fato a autoconsciência e o sentimento de si do homem
que ou não se encontrou ainda ou voltou a se perder. Mas o homem não é um ser
abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a
sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência inver-
tida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste
mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular, o seu point
d’ honneur espiritualista, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento
solene, a sua base geral de consolação e de justificação. [...] A abolição da religião
enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real ” (K.
Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel, ed. cit., p. 145).
75 Sobre Marx nesses meses de Paris, o testemunho de Ruge, numa carta de quando já
se encontravam rompidos, é eloquente: segundo ele, Marx “tem um caráter muito
particular, uma natureza de sábio e de escritor [...]. Lê imensamente, trabalha com
intensidade incomum [... e] mergulha sem cessar num oceano sem fundo de novas
leituras” (carta de Ruge a Feuerbach, 15 de maio de 1844, apud Rubel, Crônica de
Marx, ed. cit., p. 27).
76 Avaliando os escritos do jovem Marx, Lukács (in “O jovem Marx”, ed. e loc. cit.,
p. 121-122) observa que neles se delineiam “aquelas características intelectuais
que irão mais tarde se tornar decisivas: desde o início, manifestou-se com força o
impulso de Marx no sentido da apropriação e da reelaboração dos mais importantes
resultados científicos da época, bem como a inigualável atitude crítica com a qual,
em cada oportunidade, ele se empenhou na reconstrução das ideias preexistentes.
[...] Ao mesmo tempo, foi-lhe própria uma apaixonada aspiração à universalidade,
um insaciável desejo fáustico de descobrir todos os aspectos dos fenômenos, bem
como um incansável empenho na atividade de pesquisa [...]”.
77 Cf., adiante, na p. 181 e ss., a nota do tradutor dos Cadernos de Paris (notas de leitura
de 1844).
Observemos que Marx, desde os seus tempos de estudante universitário, costumava
anotar em cadernos as leituras que fazia – em geral, meros resumos com extratos dos
títulos lidos, mas também glosas e reflexões por eles provocadas (e, nalguns casos,
projetos de textos); aliás, na célebre “Carta ao pai” (10 de novembro de 1837), ele
já informa sobre esta sua forma de estudar (cf. K. Marx-F. Engels, Cultura, arte
e literatura. Textos escolhidos. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 299-300).
Um dos editores da Mega, V. V. Adoratski, anotou que se conservaram cerca de
250 de tais cadernos. Já antes dos cadernos de 1844-1845, de que fazem parte os
Cadernos de Paris (notas de leitura de 1844), Marx redigiu três conjuntos similares:
os Cadernos de Bonn (que têm por objeto Meiners, Barbeyrac, Debrosses, Boettiger
e Grund), os Cadernos de Berlim, de 1840-1841 (que têm por objeto Hegel, Aristó-

125
M a r x e m P a r i s

teles, Spinoza, Leibniz, Hume e Rosenkranz), e os Cadernos de Kreuznach, de 1843


(que têm por objeto, entre muitos outros, Rousseau, Montesquieu, Wachsmuth,
Ranke, Maquiavel) – cf. a esclarecedora nota de W. Roces a Obras fundamentales
de Marx y Engels. 1. Escritos de juventud de Carlos Marx. México: Fondo de Cultura
Económica, 1987, p. 539 e ss. Para mais indicações sobre os cadernos de Marx, cf.
os estudos de Marcelo Musto já citados, bem como a “apresentação” de M. Duayer
aos Grundrisse, ed. bras. cit.
78 Cf. Sánchez Vázquez, “Economía y humanismo”, in K. Marx, Cuadernos de Paris, ed.
cit., p. 14. Noutra oportunidade, o mesmo estudioso escreveu: “As notas de leitura
[os Cadernos de Paris] e os Manuscritos [de 1844] constituem [...] uma unidade. [...]
As notas de leitura precedem os Manuscritos, são paralelas a eles ou, nalguns casos,
são posteriores a eles ou a partes suas? A inexistência de dados cronológicos exatos
sobre o processo de redação de ambos os textos dificulta uma clara resposta sobre
tais relações. [...] Levando em conta o conteúdo temático e o nível teórico alcançado
na análise (quando se trata de um mesmo tema), pode-se estabelecer uma certa
ordem de precedência. Assim, por exemplo, pode-se supor que as notas de leitura
dos primeiros cadernos, nas quais se submete à crítica sobretudo Smith e Ricardo,
antecedem o tratamento do mesmo tema que encontramos nos Manuscritos (no
primeiro deles). O tema do dinheiro, nas notas, supera o estudo do mesmo tema nos
Manuscritos e já pressupõe o tratamento da alienação que encontramos no fragmento
destes intitulado ‘o trabalho alienado’. Talvez desenvolva nas notas aspectos que
foram tocados no segundo manuscrito, na parte que, perdida, não chegou até nós”
(Cf. Sánchez Vázquez, El joven Marx. Los Manuscritos de 1844, ed. cit., p. 41-42).
No belo texto de Sánchez Vázquez – “Economía y humanismo” – o leitor encontra
um detido exame dos Cadernos e as suas relações com os Manuscritos; adiante uti-
lizarei algumas das pistas oferecidas por Vázquez. Mas vale também, no que toca
àquelas relações, o recurso à cuidadosa análise desenvolvida por N. Lápine, O jovem
Marx, ed. cit.
79 Importa observar que, nos primeiros anos da década de 1840, tanto Engels quanto
Marx, como muitos alemães, designam a Economia Política por Nationalökonomie
[Economia Nacional], mesmo que, já em 1841, F. List tenha utilizado a expressão po-
litische Ökonomie (no seu Das Nationale System der politischen Ökonomie [há tradução:
Sistema nacional de Economia Política. Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, 2006]);
Marx leu com cuidado esta obra e, em 1845, esboçou um texto de crítica a ela (que nos
chegou incompleto: cf. Opere, ed. e vol. cit., p. 584 e ss.; há uma tradução sob título
equívoco: Karl Marx, Crítica do nacionalismo económico. Lisboa: Antígona, 2009).
Depois de seu período em Paris, Marx valer-se-á da designação Economia Política; o
leitor dos Manuscritos deve levar em conta esta notação, porque a versão portuguesa
aqui editada emprega reiteradamente economia nacional e economista(s) nacional(ais).
Sobre a gênese da Economia Política e seu desenvolvimento, cf., entre outros, J.
A. Schumpeter, História da análise econômica. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura
Econômica, 1964; Academia de Ciências Sociais da URSS, História das doutrinas
econômicas. Rio de Janeiro: Zahar, 1967; António José Avelãs Nunes, Uma intro-
dução à Economia Política. São Paulo: Quartier Latin, 2007; I. I. Rubin, História
do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2014 [ed. orig., 1926]; uma
sinopse da história da Economia Política encontra-se no texto “Economia Política”,
de O. Lange, recolhido por L. Pomeranz, org., em Oskar Lange/Economia, da col.
“Grandes cientistas sociais”. São Paulo: Ática, 1981; cf. ainda o verbete “Economia
Política (crítica da)”, de E. Balibar, in G. Labica e G. Bensussan, dirs., Diction-
naire critique du marxisme. Paris: PUF, 1985 – a partir da tradução para o alemão

126
J o s é P a u l o N e t t o

desta obra de referência, surgiu o projeto do Historisch-Kritisches Wörterbuch des


Marxismus que, iniciando-se em 1994, seguiu com volumes publicados sob a di-
reção de Wolfgang Fritz Haug, no marco do Institut für kritische Theorie (Berlim)
e editados pela Argument (Hamburgo); antes, na bibliografia alemã registrava-
-se, sob a responsabilidade de M. Buhr e A. Kosing, o Kleines Wörterbuch der
marxistisch-leninistischen Philosophie. Berlin: Dietz Verlag, 1975. Citem-se outros
dicionários, com características e fôlegos distintos: E. Mascitelli, org., Dizionario
dei Termini Marxisti. Milano: Vangelista, 1977; G. Bekerman, Vocabulario básico
del marxismo: terminología de las obras completas de Karl Marx y Friedrich Engels.
Barcelona: Crítica: 1983; K. Lotter, R. Meiners e E. Trepow, eds., Marx-Engels
Begriffslexicon. München: C. H. Beck, 1984; Terrel Carver, A Marx Dictionary.
Lanham (Maryland): Rowman & Littlefield, 1987; J. Bidet e E. Kouvélakis, dirs.,
Dictionnaire Marx Contemporain. Paris: PUF, 2001; Eike Bohlken-C. Henning, eds.,
Marxglossar. Berlin: Freitag, 2006; David Walker & Daniel Fray, eds., Historical
Dictionary of Marxism. Lanham (Maryland): The Scarecrow Press, 2007; Ian Fraser
& Lawrence Wilde, The Marx Dictionary. London/New York: Continuum, 2011;
com outro foco são os organizados por Robert Gorman e editados pela Greenwood
Press (Connecticut), Biographical Dictionary of Neo-Marxism (1985) e Biographical
Dictionary of Marxism (1986). Em português, há muito está traduzido o Dicionário
do pensamento marxista, editado por T. B. Bottomore (Rio de Janeiro: Zahar, 1988)
e a Expressão Popular deve publicar, em 2015, o léxico (com 61 entradas) organizado
por Ben Fine e Alfredo Saad Filho, The Elgar Companion to Marxists Economics.
Cheltenham: Edgard Elgar, 2012. Cf. ainda o sintético Vocabulário de Karl Marx,
de E. Renault (São Paulo: Martins Fontes, 2010).
80 G. Lukács, “Marx e o problema da decadência ideológica”, in G. Lukács, Marxismo
e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 51.
81 É somente no curso dos seus estudos que Marx distinguirá a Economia Política
“clássica” da Economia Política “vulgar” – a distinção já reponta na Miséria da
filosofia (1847), em Trabalho assalariado e capital (1849) e subjaz em várias passagens
dos Grundrisse... (1857-1858) e Marx, na Contribuição à crítica da Economia Política
(cf. ed. cit., p. 81), situa historicamente a primeira e tematiza ambas no posfácio
(1873) da 2ª ed. d’O capital (cf. O capital. Crítica da Economia Política. Rio de Ja-
neiro: Civilização Brasileira, livro I, vol. 1, 1968, p. 8 e ss.). Numa nota ao primeiro
capítulo desta obra (idem, p. 90), Marx pontua: “E, para esclarecer de uma vez por
todas, direi que, no meu entender, economia política clássica é toda a economia que,
desde W. Petty, investiga os nexos causais das condições burguesas de produção,
ao contrário da economia vulgar, que trata apenas das relações aparentes, rumina,
continuamente, o material fornecido, há muito tempo, pela economia científica, a
fim de oferecer uma explicação plausível para os fenômenos mais salientes, que sirva
ao uso diário da burguesia, limitando-se, de resto, a sistematizar pedantemente e
a proclamar como verdades eternas as ideias banais, presunçosas, dos capitalistas
sobre seu próprio mundo, para eles o melhor dos mundos.” Tal distinção marca
muito dos desenvolvimentos das Teorias da mais-valia (cf. K. Marx, Teorias da mais-
-valia. História crítica do pensamento econômico. São Paulo: Difel, III, 1985). Sem
recorrer explicitamente à distinção marxiana, Francisco José S. Teixeira escreveu
um belo ensaio sobre “clássicos” (Smith e Ricardo) e “vulgares” (Menger e Jevons),
tematizando a questão do valor e seus substratos filosóficos – cf. Trabalho e valor.
Contribuição para a crítica da razão econômica. São Paulo: Cortez, 2004.
82 “A verdade é que, ao iniciar as suas leituras econômicas, o jovem Marx encontra-se
desarmado neste terreno, pois, como Engels reconheceria mais tarde, naquele mo-

127
M a r x e m P a r i s

mento ‘não sabia absolutamente nada’ de economia” (Sánchez Vázquez, “Economía


y humanismo”, loc. cit., p. 28).
83 Cf., entre vários outros passos da sua obra, K. Marx, O capital. Crítica da Economia
Política, ed. cit., livro I, vol. 2, 1968, p. 598 e 620; Teorias da mais-valia. História
crítica do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, I, 1980, p.
82 e idem. São Paulo: Difel, III, 1985, p. 1538-1539.
84 Quanto a isto, Sánchez Vázquez (loc. cit., p. 31) recorda que “o ponto de vista da
supressão da propriedade privada já é – como Lenin assinala – o ponto de vista do
socialismo”.
85 A tradução de Garnier continha um rol de anotações; muitos anos depois, nas Teorias
da mais-valia, Marx dedica algumas páginas à crítica de notas deste tradutor (cf.
K. Marx, Teorias da mais-valia..., ed. cit., I, p. 162-167).
Anote-se que também há, no Brasil, tradução integral da obra de Smith: Uma
investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações. São Paulo: Hemus,
2008.
86 Recorde-se que Marx redigirá, bem mais tarde, um sem-número de páginas à análise
das ideias de Ricardo (cf., por exemplo, K. Marx, Teorias da mais-valia..., ed. cit.,
vol. II). Também há em português versão integral da obra de D. Ricardo: Princípios
de economia política e de tributação. Lisboa: Fundação C. Gulbenkian, 2001.
87 “Nas notas críticas que acompanham seu primeiro estudo sistemático da Economia
Política, Marx rejeita explicitamente o valor-trabalho. Na Miséria da filosofia, Marx
o aceita não menos explicitamente” (E. Mandel, A formação do pensamento econômico
de Karl Marx, ed. cit., p. 42; seis páginas adiante, Mandel anota que já há passagens,
n’A ideologia alemã, que apontam para a aceitação da teoria do valor-trabalho); cf.
infra, a nota 95.
A questão da teoria do valor (cuja evolução é sintetizada por Peter C. Dooley, The
Labour Theory of Value. London: Routledge, 2005) em Marx é das mais polêmicas
– veja-se E. Böhm-Bawerk et alii, Economía burguesa y economía socialista. Córdoba:
Cuadernos de Pasado y Presente, 1974; V. S. Nemcimov, Valore sociale e prezzo pia-
nificato. Roma: Riuniti, 1977; D. Elson, ed., Value. The Representation of Labour in
Capitalism. London: CSE Books, 1979; B. Fine and L. Harris, Re-Reading Capital.
London: Macmillan, 1979; P. Garegnani et alii, Debate sobre la teoría marxista del
valor. Cuadernos de Pasado y Presente, n. 82. México: Siglo XXI, 1979; I. Steedman,
ed., The Value Controversy. London: Verso, 1981; Alain Lipietz, “Le débat sur la
valeur: bilan partiel et perspectives partiales”, in G. Dostaler, dir., e M. Lagueux,
col., Un echiquier centenaire: théorie de la valeur et formation des prix. Paris/Québec:
La Découverte/Presses de l’Université de Québec, 1985; S. Mohun, ed., Debates
in Value Theory. London: Macmillan, 1995; A. Freeman, A. Kliman and J. Wells,
eds., The New Value Controversy and the Foundations of Economics.Cheltenham:
Edgard Elgar, 2004; Gilles Dostaler, Valeur et prix. Histoire d’um débat. Paris:
L’Harmattan, 2013. Sobre a teoria marxiana do valor, cf. I. I. Rubin, A teoria mar-
xista do valor. São Paulo: Brasiliense, 1980 [ed. orig., 1923]; e ainda, entre outros,
cf. P. M. Sweezy, Teoria do desenvolvimento capitalista. São Paulo: Nova Cultural,
col. “Os economistas”, 1986 [ed. orig., 1942]; R. Rosdolsky, Gênese e estrutura de
O capital de Karl Marx, ed. cit.; G. Faccarello, Travail, valeur et prix: une critique
de la théorie de la valeur. Paris: Anthropos, 1983; A. Freeman and E. Mandel, eds.,
Ricardo, Marx, Sraffa. London: Verso, 1984; E. Mandel, El capital: cien años de
controversias en torno a la obra de Karl Marx. México: Siglo XXI, 1985; M. Dobb,
Theories of Value and Distribution since Adam Smith: Ideology and Economic Theory.
London: Cambridge University Press, 1973 e Political Economic and Capitalism.

128
J o s é P a u l o N e t t o

London: Routledge, 2012 [ed. orig., 1937]; Alfredo Saad Filho, O valor de Marx.
Campinas: Ed. da Unicamp, 2011; Samir Amin, Three Essays on Marx’s Value Theory­.
New York: Monthly Review Press, 2013 e Jean-Marie Harribey, La richesse, la valeur
et l’ inestimable. Paris: Les Liens qui Libèrent, 2013; um dos componentes da “rein-
terpretação da teoria crítica de Marx”, empreendida por M. Postone (Time, labor
and social domination. New York: Cambridge University Press, 1993), é igualmente
uma “reinterpretação” da teoria do valor; em registro diverso, cf. também Anselm
Jappe, As aventuras da mercadoria. Para uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona,
2006. Para o quadro no interior do qual se deram as principais polêmicas marxistas,
cf. M. C. Howard and J. E. King, A History of Marxian Economics. I, 1883-1929,
II, 1929-1990. Basingstoke/ Princeton: Macmillan/ Princeton University Press,
1989-1992.
88 Cf., infra, a p. 191 A posição de Engels está expressa no “Esboço de uma crítica da
Economia Política”, loc. cit., esp. p. 60 e ss.
89 Veja-se: “O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz,
quanto mais a sua produção cresce em poder e volume. O trabalhador torna-se
uma mercadoria tanto mais barata quanto mais mercadoria cria. Com a valorização
do mundo das coisas, cresce a desvalorização do mundo dos homens em proporção
direta.” (cf. infra, a p. 304).
90 Cf. Sánchez Vázquez, loc. cit., p. 37.
91 A solução conclusiva de Marx, que supõe a incorporação crítica da teoria clássica
do valor, emergirá mesmo nos Grundrisse... e será formulada expressamente n’O
capital – trata-se da teoria da mais-valia.
Nos últimos 20 anos, competentes tradutores de Marx têm preferido verter, contra
uma tradição secular, porém justificadamente, Mehrwert por mais-valor/sobre-valor
– como se registra, por exemplo, nas edições francesa (de J.-P. Lefebvre) e brasileira
(de M. Duayer) dos Grundrisse; tal procedimento foi também adotado na edição
de Para a crítica da economia política. Manuscritos de 1861-1863. Cadernos I a V.
Terceiro Capítulo. O capital em geral (Belo Horizonte: Autêntica, 2010, trad. de
Leonardo de Deus) e na mais recente tradução do livro I d’O capital (São Paulo:
Boitempo, 2013, trad. de Rubens Enderle).
92 Marx vê nesta distinção a contradição entre os interesses gerais e os interesses par-
ticulares – toma o partido de Ricardo contra os seus críticos e extrai a conclusão do
possível direito da classe operária de abolir os segundos em benefício dos primeiros.
Cf., infra, as p. 194-197.
93 Leia-se: “[...]a economia nacional conhece o trabalhador apenas como animal
de trabalho, como uma rês reduzida às mais estritas necessidades corporais” (cf.,
infra, p. 255). Para Ricardo, diz Marx, “as nações são apenas oficinas da produção,
o homem é uma máquina de consumir e produzir; a vida humana, um capital; as
leis econômicas regem cegamente o mundo.”; e, citando Buret: “Para Ricardo, os
homens não são nada, o produto tudo” (cf., infra, p. 279).
94 Nos Manuscritos, lê-se que a Economia Política estabelece “o princípio de que ele
[o trabalhador], tal como qualquer cavalo, tem de ganhar o bastante para poder
trabalhar. Ela não o considera como homem [...]” (cf., infra, a p. 253). Para a Eco-
nomia Política, “as necessidades do trabalhador são apenas a necessidade de o manter
durante o trabalho e na perspectiva de que a raça dos trabalhadores não se extinga.”
(cf., infra, a p. 324).
95 Cf., infra, as p. 195-196. Na Miséria da filosofia, Marx volta ao cinismo de Ricardo:
após sublinhar que “a doutrina ricardiana resume rigorosamente, impiedosamente,
o ponto de vista de toda a burguesia inglesa, que é, em si mesma, a típica burguesia

129
M a r x e m P a r i s

moderna” e que “a teoria dos valores de Ricardo é a interpretação científica da vida


econômica atual ” [itálico meu – JPN ], ele afirma (depois de citar a relação que
Ricardo estabelece entre a redução dos custos de fabricação dos chapéus e a redução
dos custos de manutenção dos homens) que “é evidente que a linguagem de Ricardo
não poderia ser mais cínica. Colocar no mesmo plano os custos de fabricação dos
chapéus e os custos de manutenção do homem é transformar o homem em chapéu.
Mas não protestemos tanto contra o cinismo. O cinismo está nas coisas, não nas
palavras que as exprimem” (K. Marx, Miséria da filosofia, ed. cit., p. 58-59 e 63-
64). O cinismo de Ricardo estava impregnado do que, ulteriormente (nas Teorias
da mais-valia), Marx reconheceu ser a sua “probidade”.
96 Em seu excelente estudo sobre os Cadernos, Sánchez Vázquez sustenta que a crítica
marxiana da Economia Política (tanto nos Cadernos quanto nos Manuscritos) incide
“sobre a dupla operação dos economistas, de revelação e ocultamento. Enunciam
uma verdade acerca da produção ao considerá-la como produção para o lucro, na
qual a remuneração do trabalho exclui as faculdades intelectuais [do operário] e
na qual, em suma, o valor do operário se reduz a seus custos de subsistência. Mas
o enunciado desta verdade, ao referir-se à produção em geral, oculta a realidade
histórico-concreta na qual o enunciado é verdadeiro. Pura e simplesmente: apresenta-
-se a verdade de uma forma histórica concreta de produção como a verdade da
produção, com o que o enunciado dos economistas – mesmo reconhecendo-se a
sua ‘verdade’ – tem que ser problematizado. Mas o jovem Marx não o problematiza
a partir de um ponto de vista econômico, já que sob este ponto de vista ele contém
uma ‘verdade econômica’. Problematiza-o saindo da economia [...] e criticando a
economia a partir de uma determinada concepção de homem. Posto que se trata
de considerar o operário como homem e o humano se encontra fora da economia,
a filosofia com uma determinada concepção do homem é que permitirá esta crítica
humanista da economia – nela, e a partir dela, a sua ‘verdade econômica’ perde a
sua validez” (Sánchez Vázquez, loc. cit., p. 48).
97 Nas Teorias da mais-valia (ed. cit., vol. III), Marx, no capítulo “Desagregação da
escola ricardiana”, retorna a esta obra de Mill, no registro característico da sua crítica
madura da Economia Política; e, no mesmo capítulo, trata das ideias expendidas
por John Stuart Mill.
É de notar que na dissolução da “escola ricardiana” teve origem o chamado “socialis-
mo ricardiano”, de que foram representantes Sismondi, T. Hodgskin, W. Thompson
e John Gray (cf. A. J. Avelãs Nunes, op. cit., p. 486); cf. também a introdução de
Aloisio Teixeira à antologia por ele organizada: Utópicos, heréticos e malditos. Os
precursores do pensamento social de nossa época. Rio de Janeiro: Record, 2002, esp.
p. 29-38. A produção essencial dos “ricardianos de esquerda” encontra-se coligida
no volumoso tomo The Ricardian Socialists, da History of British Economic Thought,
editado por T. A. Kenyon (London: Routledge, 1997). Obra de referência, aqui
pertinente, é a de Jan Hoff, Karl Marx und die “ricardianischen Sozialisten”. Köln:
Papyrossa, 2005.
98 Cf., como exemplo, infra, as notas 103 e 114. N. Lápine, em O jovem Marx (ed. cit.,
nota à p. 270), afirma que, “do conjunto dos extratos de 1844, foram os de Mill os
mais utilizados por Marx na sua obra de maturidade, particularmente no tomo IV
de O capital (“Teorias da Mais-Valia”)”.
99 Cf. Sánchez Vázquez, “Economía y humanismo”, loc. cit., p. 58.
100 Tudo indica que nos desenvolvimentos que então Marx elabora acerca do dinheiro
há inf luências de um ensaio de Moses Hess (“Über das Geldwesen” [“Sobre a
essência do dinheiro”]), preparado em fins de 1843/princípios de 1844 para ser

130
J o s é P a u l o N e t t o

publicado nos Anais Franco-Alemães (encerrado o periódico, só mais tarde veio à


luz). Nos Manuscritos (cf. infra, adiante, a p. ...), Marx refere-se a trabalhos de Hess
divulgados nos Vinte e um cadernos da Suíça (cf., supra, a nota 27), mas entre eles
não se encontra este texto sobre o dinheiro (cf., infra, a nota da p. 415).
A importância de Hess na filosofia alemã pós-hegeliana é inconteste – ele foi o
primeiro, entre os jovens hegelianos, a orientar-se para a crítica social (segundo
Bottigelli) e produziu a primeira expressão do pensamento socialista na Alema-
nha (conforme McLellan); ademais, foi quem conduziu Engels ao comunismo.
Sobre Hess, consulte-se, além de títulos já citados: Auguste Cornu, Moses Hess
et la gauche hégélienne. Paris: PUF, 1934; I. Berlin, The life and opinions of Moses
Hess. Cambridge: W. Heffer, 1959; John Weiss, Moses Hess: utopian socialist.
Detroit: Wayne State University Press, 1960; S. Avineri, Moses Hess: Prophet
of Communism and Zionism. New York: Columbia University Press, 1985; G.
Bensussan, Moses Hess, la philosophie, le socialisme (1836-1845). Paris: PUF, 1985
e o clássico ensaio de Lukács, “Moses Hess und die Probleme der idealistischen
Dialektik” [“Moses Hess e os problemas da dialética idealista”], in G. Lukács,
Frühschriften II [Werkausgabe, 2]. Darmstad-Neuwied: Luchterhand, 1977.
Cabe consultar também o vol. 1 de Mario Rossi, Marx e la dialettica hegeliana,
ed. cit.
101 Leia-se: “O dinheiro rebaixa todos os deuses do homem – e transforma-os numa
mercadoria. O dinheiro é o valor universal – constituído para si próprio – de todas
as coisas. Roubou portanto ao mundo inteiro – ao mundo dos homens tal como à
natureza – o seu valor peculiar. O dinheiro é a essência – alienada ao homem – do
seu trabalho e da sua existência; e essa essência estranha domina-o, e ele adora-a”
(Para a questão judaica, ed. cit., p. 78).
102 Ali, para Marx, “o importante é que Hegel [...] faz da Ideia o sujeito e do sujeito
propriamente dito [...] faz o predicado” (cf. K. Marx, Crítica da filosofia do direito
de Hegel, ed. cit., p. 32).
A relação sujeito-objeto constitui, para Bottigelli, o “denominador comum” da
filosofia clássica alemã, de Kant a Hegel; na “apresentação” à sua tradução dos
Manuscritos – ed. cit. (1969), p. XI e XII –, ele afirma que “o problema que domina
toda esta época é o das relações teóricas do homem com o real” e que, no fundo,
ele é “o ponto de partida da reflexão hegeliana”.
103 Nos Manuscritos, Marx ocupa-se da inversão que o dinheiro realiza, mas não
recupera tanto a similitude com a religião; a referência dessa inversão ao “reflexo
religioso do mundo”, retorna, porém, n’O capital, quando Marx se ocupa do “feti-
chismo da mercadoria” (notações sobre o fetichismo – da mercadoria, do dinheiro
e do capital – encontram-se em Jorge Grespan, O negativo do capital. São Paulo:
Expressão Popular/Ideias Baratas, 2012; cf. ainda, infra, a nota 136). Já antes, nos
Grundrisse, o papel mediador de Cristo entre Deus e os homens fora referido (cf.
K. Marx, Grundrisse, ed. cit., p. 262).
104 Esta caracterização smithiana, extraída da Riqueza das nações (livro I, cap. IV) foi
vertida ao português em termos um pouco diversos, mas equivalentes: compare-se
a tradução parcial brasileira (A. Smith, Investigação sobre a natureza e as causas da
riqueza das nações, no volume XXVIII – reunindo textos selecionados de Smith e
Ricardo – da coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 27) com
a lusitana (A. Smith, Inquérito sobre a natureza e as causas da riqueza das nações.
Lisboa: Fundação C. Gulbenkian, I, 1999, p. 107).
105 Cf. G. W. F. Hegel, Linhas fundamentais da filosofia do direito. S. Leopoldo: Unisinos,
2010, terceira parte, segunda seção, A.

131
M a r x e m P a r i s

Lembre-se que foi Lukács o primeiro a explorar as relações do pensamento hegeliano


com a Economia Política inglesa – cf. G. Lukács, Der Junge Hegel und die Probleme
der Kapitalistischen Gesellschaft. Berlin: Aufbau, 1954.
106 Leia-se: “Só quando o homem individual retoma em si o cidadão abstrato e, como
homem individual – na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas
relações individuais –, se tornou ser genérico [...] [é] só então [que] está consumada
a emancipação humana” (K. Marx, Para a questão judaica, ed. cit., p. 71-72).
107 Além dos títulos já referidos sobre a alienação, cf. também H. Aptheker et alii,
Marxism and alienation. New York: Humanities Press, 1965; J.-M. Vincent, Féti-
chisme et societé. Paris: Anthropos, 1973; R. F. Geyer et alii. Theories of Alienation.
The Hague: M. Nijhof, 1976; J. Gabel, A falsa consciência. Ensaio sobre a reificação.
Lisboa: Guimarães, 1979 (ed. orig., 1962) e os ensaios de A. Heller, “Fetichismo
o alienación”. Argumentos. Madrid, n. 38, año 4, octubre de 1980; Paulo Silveira,
“Da alienação ao fetichismo – formas de subjetivação e objetivação”. In P. Silveira
e B. Doray, orgs., Elementos para uma teoria marxista da subjetividade. São Paulo:
Vértice, 1989; S. Lessa, “Lukács: trabalho, objetivação e alienação”. Trans/forma/
ação. São Paulo: Unesp, 15, 1992; N. Tertulian, “Le concept d’aliénation chez
Heidegger et Lukács”. Archives de Philosophie. Paris, n. 56, 1993; Marcello Musto,
“Revisiter le concept d’aliénation chez Marx”. La Pensée. Paris: Fond. Gabriel Péri,
n. 369, janvier-mars 2012; e ainda os trabalhos de: J. Israel, Teoría de la alienación.
Barcelona: Península, 1977; F. Vandenberghe, Une histoire critique de la sociologie
allemande. Aliénation et réification. Paris: La Découverte, I-II, 1997-1998 (há ed.
bras. do vol. I: Uma história filosófica da sociologia alemã. Alienação e reificação. São
Paulo: Annablume, 2012); Rahel Jaeggi, Entfremdung. Zur Aktualität eines sozialphi-
losophischen Problem. Berlin: Campus, 2005; F. Fischbach, Sans objet. Capitalisme,
subjetivité, aliénation. Paris: Vrin, 2009; Ousmane Sarr, Le problème de l’aliénation.
Critique des expériences dépossessives de Marx à Lukács. Paris: L’Harmattan, 2012.
Observações significativas sobre o fetichismo também se encontram em J. A. Gian-
notti: Trabalho e reflexão. Ensaios para uma dialética da sociabilidade. São Paulo:
Brasiliense, 1983, p. 245 e ss. e Certa herança marxista. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000, p. 102 e ss.Vale recorrer ainda ao verbete “alienação”, de G. Petrovic, in
Dicionário do pensamento marxista, ed. cit., ao de G. Labica, in Dictionnaire Critique
du Marxisme, ed. cit., ao de E. Renault no seu Vocabulário de Karl Marx, ed. cit. e à
apresentação de Franck Fischbach a K. Marx, Manuscrits économico-philosophiques
de 1844. Paris: Vrin, 2007.
Não podem ser minimizados os problemas contidos, ademais, na polissemia da ter-
minologia alemã de Marx, em boa parte herdada de Hegel e Feuerbach. “Em alemão,
as palavras Entäusserung, Entfremdung e Veräusserung são usadas para significar ‘alie-
nação’ ou ‘estranhamento’. Entäusserung e Entfremdung são usadas com muito mais
frequência por Marx do que Veräusserung, que é, como Marx a define, ‘die Praxis der
Entäusserung’ (a prática da alienação) [...] ou, em outro trecho, ‘Tat der Entäusserung’
(o ato da alienação) [...]. Assim, Veräusserung é o ato de traduzir na prática (na forma
da venda de alguma coisa) o princípio da Entäusserung. No uso que Marx faz do
termo, Veräusserung pode ser intercambiado com Entäusserung quando um ‘ato’ ou
uma ‘prática’ específica são referidos [...]. Tanto Entäusserung como Entfremdung­têm
uma tríplice função conceitual: 1) referindo-se a um princípio geral; 2) expressando
um determinado estado de coisas; e 3) designando um processo que engendra esse
estado. Quando a ênfase recai sobre a ‘externalização’ ou ‘objetivação’, Marx usa o
termo Entäusserung (ou termos como Vergegenständlichung), ao passo que Entfremdung
é usado quando a intenção do autor é ressaltar o fato de que o homem está encontrando

132
J o s é P a u l o N e t t o

oposição por parte de um poder hostil, criado por ele mesmo, de modo que ele frustra
seu próprio propósito” (I. Mészáros, A teoria da alienação em Marx, ed. cit., nota, p.
19-20). Ouça-se outro especialista: “Marx utiliza o termo mais geral de Entfremdung
para designar os diversos aspectos, objetivos e subjetivos, da alienação. O termo En-
täusserung, mais concreto, insiste mais no aspecto jurídico da alienação, no fato de que
o objeto se tornou propriedade de outra pessoa jurídica, na sua ‘perda’ jurídica (o termo
Entäusserung entrou na ciência através da jurisprudência). O fato de Marx utilizar
por vezes, a seguir à palavra Entfremdung, colocando uma vírgula, não Entäusserung,
mas um termo ainda mais concreto, Verlust (‘perda’), parece confirmar esta escolha”
(N. Lápine, O jovem Marx, ed. cit., nota, p. 332-333). E diz ainda um competente
estudioso (e tradutor) brasileiro, referindo-se às duas palavras, Entfremdung e Entäus-
serung: “Marx, com efeito, usa tanto uma como outra. No primeiro dos Manuscritos,
Marx fala frequentemente de entfremdete, entäusserte Arbeit. O uso de uma ou outra
das denominações por Marx advém do prisma que se pretende destacar: no caso de
Entäusserung, a objetivação no e do processo de trabalho; no caso de Entfremdung, a
perda do controle e da autonomia, a dominação do sujeito por um ‘poder alheio’, a
alienação no curso desse processo de exteriorização, de produção objetiva” (Wolfgang
Leo Maar, nota ao ensaio de Marcuse [1933] “Sobre os fundamentos filosóficos do
conceito de trabalho da ciência econômica”, in Herbert Marcuse, Cultura e sociedade.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, II, 1998, p. 46-47).
Variantes da terminologia marxiana dos Manuscritos – neste caso específico, da
expressão entfremdete Arbeit (cf. K. Marx, MEW, Ergänzungsband, ed. cit., Erster
Teil, 1977, p. 519) – estão consignadas, no Brasil, p. ex., por Giannotti, que se
refere a trabalho alienado (cf. Origens da dialética do trabalho, ed. cit., p. 137) e por
Ranieri (cf. a sua tradução dos Manuscritos de econômico-filosóficos, ed. cit., p. 87),
que utiliza a forma trabalho estranhado (que ele justifica na sua “Apresentação”, esp.
p. 15-16).
Vale lembrar que a versão da hegeliana Fenomenologia do Espírito para línguas
neolatinas coloca questões complicadas para os tradutores, obrigando-os, a partir
de difícil trabalho interpretativo, a soluções às vezes polêmicas e inovadoras – cf.,
por exemplo, as observações contidas no índice analítico da versão francesa de Jean
Hyppolite de La Phénoménologie de l’Esprit. Paris: Aubier Montaigne, s.d., II, 316
e ss. e o trabalho de Vicenzo Cicero com a edição italiana (Fenomenologia dello
Spirito. Milano: Bompiani, 2008), assim como a nota de Paulo Meneses à mesma
Fenomenologia do Espírito, ed. cit., p. 9-11. Cf. também, na versão de Paulo Meneses
e colaboradores, da Filosofia do Direito de Hegel – Linhas fundamentais da Filosofia
do Direito, ed. cit., p. 99 – a observação dos tradutores: “Os termos Entäusserung e
entäussern, normalmente traduzidos por ‘exteriorização’ e ‘exteriorizar’, no âmbito
jurídico ou do Direito Abstrato, são sinônimos de Veräusserung e veräussern; por
isso serão traduzidos por ‘alheação’ e ‘alhear’, na medida em que significam tornar
alheio, passar para outrem o domínio ou o direito de desfazer-se, vender, alienar
juridicamente. Com isso evitamos o uso dos termos ‘alienação’ e ‘alienar’, que serão
usados exclusivamente para traduzir os termos clássicos Entfremdung e entfremden”.
Tais questões provavelmente também respondem, em parte, pelos problemas loca-
lizados por R. Mondolfo em versões da Ciência da lógica (cf. os parágrafos finais do
seu “prólogo” – e a sua “nota sobre as traduções anteriores” – a Hegel, Ciencia de la
lógica. Buenos Aires: Solar-Hachette, 1968). Questões que, diga-se de passagem,
colocam-se igualmente aos tradutores de obras que lidam com textos hegelianos
(cf., p. ex., as notas de Manuel Sacristán apostas a H. Marcuse, Ontología de Hegel
y teoría de la historicidad. Barcelona: Martinez Roca, 1970).

133
M a r x e m P a r i s

108 Sánchez Vázquez chega mesmo a afirmar que estes apontamentos marxianos não
são “simples notas marginais de leitura, mas um texto bastante coerente e de uma
profundidade e brilhantismo que permite colocá-lo à altura dos mais louvados dos
Manuscritos de 1844”, na medida, inclusive, em que abordam problemas como: “o
dinheiro como atividade mediadora alienada e o crédito como desenvolvimento do
dinheiro e culminação da sua alienação; o intercâmbio como forma alienada da relação
social; as relações entre os homens quando tomam – com o intercâmbio – a forma
de relações entre proprietários privados; o trabalho como fonte de lucro ou trabalho
alienado; a dialética da necessidade, da produção e do intercâmbio nas condições da
propriedade privada e, enfim, a suposição de como seriam as relações humanas se
os homens produzissem humanamente” (loc. cit., p. 58-59). Ao que sei, o primeiro
estudioso que, no Brasil, apontou a importância das notas de Marx sobre James Mill
foi J. A. Giannotti, no seu pioneiro e já citado Origens da dialética do trabalho.
109 Em juízo que compartilho, Sánchez Vázquez (loc. cit., p. 83), sublinhando que a
análise do “trabalho lucrativo”, nestas notas sobre Mill, é “esquemática e pobre”
em relação à do trabalho alienado própria dos Manuscritos, considera que as deter-
minações marxianas alcançadas nos Cadernos são reiteradas nos Manuscritos, como
se verá a seguir.
110 Ademais de ser motivo recorrente na reflexão de Fromm, recorde-se que um dos
seus últimos trabalhos (1976) intitulava-se To Have or to Be? (há tradução: Ter ou
ser?. Lisboa: Presença, 1999).
A concepção antropológica que assenta o homem como proprietário privado – que,
como se viu, é pertinente à Economia Política (recorde-se Smith), com o privilégio
do ter, está vinculada ao que C. B. Macpherson designou como “individualismo
possessivo” no seu influente livro The Political Theory of Possessive Individualism:
Hobbes to Locke (Oxford: Oxford University Press, 1962, que teve, entre nós, uma
tradução pouco recomendável: A teoria política do individualismo possessivo de Hobbes
a Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979). Não parece, todavia, que o pensador
canadense tenha se valido substantivamente de Marx para a elaboração daquele livro
e, mesmo, da sua expressiva obra – cf., a partir de perspectivas críticas bem diversas,
Ellen M. Wood, “C. B. Macpherson: Liberalism and the Task of Socialist Political
Theory”. Socialist Register. London: Merlin Press, vol. 15, 1978 e J. M. Vilajosana
Rubio, “El aparato conceptual de C. B. Macpherson: poder y propiedad”. Anuario
de Filosofía del Derecho. Madrid: Sociedad Española de Filosofía Jurídica y Política/
Ministerio de Justicia, 4, 1987.
111 É neste passo que Marx distingue trabalho como manifestação de vida [Lebensäus-
serung] e trabalho como alienação de vida [Lebenssentäusserung] (cf., infra, a nota
156).
112 Como MacCulloch, Boisguillebert, Malthus e Say, além de Prévost e Daire (estes dois
últimos tradutores e antologiadores de economistas que leu em Paris). Nas Teorias
da mais-valia – mas não só nelas – vários deles serão objeto da análise marxiana.
113 No posfácio à 2ª edição d’O capital (janeiro de 1873) Marx diferencia “método de
exposição” de “método de pesquisa”: “É mister, sem dúvida, distinguir, formalmente,
o método de exposição do método de pesquisa. A investigação tem de apoderar-se
da matéria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de desenvolvi-
mento, e de perquirir a conexão íntima que há entre elas. Só depois de concluído
esse trabalho é que se pode descrever, adequadamente, o movimento real” (cf. K.
Marx, O capital, ed. cit., livro I, vol. 1, p. 16).
Ao que sei, foi Dussel (A produção teórica de Marx, ed. cit., p. 13) quem primeiro
utilizou a expressão “laboratório teórico” referida a Marx.

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114 Especial, mas não exclusivamente, a tematização expressa da alienação em textos


de Marx até meados dos anos 1840 alimentou a polêmica – nos espaços marxistas,
porém não só – da relação entre tais escritos e a elaboração marxiana posterior.
Inúmeros estudiosos, com maior ou menor cuidado, sustentaram a tese da existência
de “dois” Marx, às vezes separados no tempo (ora um “jovem” e outro “maduro”),
às vezes na coexistência de um “filósofo humanista” com um “cientista” – operações
que, poucos anos antes de morrer, Lukács caracterizou como estupidez historiográfica
(cf. H. H. Holz et alii, Conversando com Lukács. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969,
p. 56); mais recentemente, e a partir de uma posição diversa da de Lukács, Lucien
Sève usou a palavra aberração para qualificar procedimentos semelhantes (cf. a sua
“advertência” a K. Marx, Écrits philosophiques, ed. cit., p. 90).
São bem conhecidas as ideias de L. Althusser a respeito (veiculadas em ensaios, alguns
dos quais reunidos em A favor de Marx, cit., e em Louis Althusser et alii, Ler O Capital.
Rio de Janeiro: Zahar, 1, 1979; num escrito coligido no primeiro destes livros, o filósofo
francês qualificou, à p. 212, alienação como um “conceito ideológico pré-marxista”);
mas há que recordar também, entre outros, Alvin W. Gouldner, The Two Marxisms.
Contradictions and Anomalies in the Development of Theory. New York: Seabury Press,
1980. Dentre as várias críticas a essa tese, que desatou destemperos de linguagem em
autores alinhados com o marxismo “oficial” soviético (cf., por exemplo, Varlam V.
Koschelava, El mito de los dos Marx. Buenos Aires: Futuro, 1966), é ainda de reler o
ensaio “A relação com Marx”, que abre o volume de Umberto Cerroni, Teoria política
e socialismo. Lisboa: Europa-América, 1976.
Documentalmente, não se pode limitar o debate da alienação apenas às “obras
de juventude”; Mészáros escreveu, com toda a razão, que “atribuir o conceito de
alienação exclusivamente ao período de juventude é falsificar grosseiramente o
‘Marx maduro’” (I. Mészáros, A teoria da alienação em Marx, ed. cit., p. 26). Nos
Grundrisse, por exemplo, Marx vale-se da alienação como traço distintivo entre o
que Dussel chamou de “trabalho social” e “trabalho comunitário” – cf. E. Dussel,
A produção teórica de Marx. Um comentário aos Grundrisse, ed. cit., p. 87 e ss.; não
sem razão, M. Nicolaus, que verteu os Grundrisse ao inglês (K. Marx, Grundrisse:
Foundation of the Critique of Political Economy (Rough Draft). London: Penguin
Books, 1973), assinala a relação entre os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844
e os manuscritos de 1857/1858: “[...] O leitor dos Grundrisse encontrará uma linha
direta de continuidade que remonta a muitas da ideias dos Manuscritos de 1844 [...].
Os Grundrisse são o elo perdido entre o Marx maduro e o Marx jovem” – pouco
antes, escrevera que os Grundrisse tornam “impossível, ou ao menos desesperada-
mente frustrante, dicotomizar o trabalho de Marx em jovem e velho, em elementos
filosóficos e econômicos” (cf. Martin Nicolaus, El Marx desconocido. Barcelona: Ana-
grama, 1972, p. 52-53). E José Aricó, apresentando o texto (redigido poucos anos
depois dos Grundrisse, entre 1863-1864, inédito até 1933) “Resultados do processo
imediato de produção”, em que a questão da alienação comparece explicitamente,
argumenta que, em face deste manuscrito marxiano, “a ideia de uma ‘ruptura’
do pensamento de Marx entre uma etapa de ‘juventude’ e outra de ‘maturidade”
torna-se seriamente comprometida” (cf. Karl Marx, El capital. Libro I. Capítulo VI.
Inédito. México: Siglo XXI, 1985, p. XI [há ed. bras.: O capital. Livro I. Capítulo
VI. Inédito. São Paulo: LECH, 1978]; sobre estas importantes páginas marxianas,
cf., entre outros, o primeiro capítulo de E. Dussel, El último Marx (1863-1882) y
la liberación latinoamericana. México: Siglo XXI, 1990).
De fato, a problemática da alienação está mais que presente no pensamento do Marx
“maduro”. Compreende-se que não pode ser objeto desta apresentação tematizar com

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detalhamento esta presença; apenas a título sumário e indicativo, levem-se em conta,


para documentá-la textualmente: nos Grundrisse (ed. bras. cit.), passagens como as das
p. 108-110, 143, 424, 447, 564 e 705 e, ainda, um fragmento que ficou perdido dos
Grundrisse... (p. 227), mas retomado no “manuscrito de 1861-1863” (cf. K. Marx,
Para a crítica da Economia Política. Manuscrito de 1861-1863. Cadernos I a V. Terceiro
Capítulo. O capital em geral, ed. cit., p. 179-180); ou, n’O capital (também na ed.
cit.), no Livro I, além das seminais formulações sobre o fetichismo (cap. I, 4, aliás,
antecipadas já nos Grundrisse, ed. cit., p. 105-106 e igualmente no que conhecemos
dos manuscritos de 1863-1865, o “capítulo VI, inédito”), aquelas sobre a reprodução
simples (cap. XXI) e a lei geral da acumulação capitalista (cap. XXIII, 4); no Livro III,
sobre as contradições internas da lei da tendência da queda da taxa de lucro (cap. XV,
4), na análise do capital portador de juros (cap. XXIV; na ed. bras. cit., traduzida por
Reginaldo Sant’Anna, verteu-se, equivocamente, “portador de juros” – zinstragenden
Kapital, registrada em K. Marx-F. Engels, Werke, ed. cit., vol. 25, 1973, p. 404 – por
“produtor de juros”) e sobre a “fórmula trinitária” (cap. XLVIII, III); no Livro IV
(ed. cit. sob o título Teorias da mais-valia), as passagens das p. 384-387 (vol. I) e 847
(vol. II) e esp. 1319-1320, 1342, 1532-1533 e 1535-1536 (vol. III).
Dentre os muitos analistas que rastrearam com cuidado outras provas textuais da
reiterada e relevante presença/continuidade de ideias do “jovem Marx” no “Marx
maduro”, especialmente a questão da alienação, veja-se I. Mészáros (A teoria da
alienação em Marx), G. Márkus (Marxismo y “antropología”), G. Guijarro Díaz (La
concepción del hombre en Marx), Sánchez Vázquez, (El joven Marx: los Manuscritos
de 1844) e L. Sève, “introdução” a K. Marx, Écrits philosophiques (e, ademais, entre
os 100 textos aí compilados, cf. esp. os textos 61 a 66) e Aliénation et émancipation –
todos já citados nesta apresentação; vale tambem o recurso a I. Fetscher, Karl Marx
e os marxismos, igualmente citado, p. 13-48.
115 Na “apresentação” da sua tradução dos Manuscritos (K. Marx, Manuscrits de 1844,
ed. cit. (1969), p. XXXIII), E. Bottigelli julga provável que a sua redação se situe
entre fevereiro (mês que considera o da publicação dos Anais franco-alemães) e 28
de agosto de 1844 (quando data o encontro de Marx com Engels).
116 Este “prefácio”, nos originais marxianos, era parte do Manuscrito III; atualmente,
as edições colocam-no na abertura dos Manuscritos.
Na versão portuguesa apresentada no presente volume, os “manuscritos” são designados
como “cadernos” – por isto, é assim que a eles me referirei daqui em diante.
117 Entre outros, mencionam o projeto deste livro: A. Cornu, Carlos Marx. Federico
Engels, ed. cit., t. 4, p.183; M. Rubel, “Introduction” a K. Marx, Oeuvres. Économie,
ed. cit., II, p. LXIII; Fedosseiev et alii, Karl Marx. Biografia, ed. cit., p.107; W.
Roces, “Prólogo” a Carlos Marx. Federico Engels, Obras fundamentales. 1. Marx.
Escritos de juventud, ed. cit., p. XXXIV; N. Lápine, O jovem Marx, ed. cit., p.
232 e Sánchez Vázquez, El joven Marx.., ed. cit., p. 21. E. Mandel (A formação do
pensamento econômico de Karl Marx, ed. cit., p. 46) aponta indícios de que tal livro
estava em elaboração até inícios de 1845.
118 O título Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 [Oekonomisch-philosophische
Manuskripte aus dem Jahre 1844] apareceu pela primeira vez na edição da Mega, de
1932; nem todas as suas versões o conservam – registra-se, por exemplo: Manuscritos
econômico-filosóficos de Paris, Manuscritos: economia e filosofia, Manuscritos de 1844,
Economia política e filosofia. Na edição francesa já citada das Oeuvres de Marx, da
coleção “Pléiade”, sob a responsabilidade de M. Rubel, os textos dos Manuscritos
estão coligidos (no vol. II, 1968, p. 44-141) sob o título “Ébauche d’une critique
de l’économie politique” (“Esboço de uma crítica da Economia Política”).

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119 Para uma descrição detalhada dos Manuscritos, cf. a nota editorial n. 99 de K. Marx-
-F. Engels, MEW. Ergänzungsband. Schriften. Manuskripte. Briefe bis 1844. Erster
Teil. Berlin: Dietz Verlag, 1977, p. 672 e ss.; as notas editoriais apostas às p. 5, 71,
84 e 124 de K. Marx, Manuscrits de 1844, ed. cit. (1969); a nota de W. Roces à sua
tradução dos Manuscritos, in Carlos Marx-Federico Engels, Obras fundamentales.
1. Marx. Escritos de juventud, ed. cit., p. 723; N. Lápine, O jovem Marx, ed. cit., p.
230-231 e Sánchez Vázquez, El joven Marx..., ed. cit., p. 42 e ss.
120 No presente volume, seguindo-se a edição portuguesa, estão ainda apostos dois
“anexos”, cuja redação – conforme a Mega² (cf. as notas da Avante! às p. 423-425
deste volume) – é contemporânea à dos Manuscritos.
Observe-se a existência de duas Mega (acrônimo de Marx-Engels-Gesamtausgabe
[Obras completas de Marx e Engels]): a primeira, concebida por D. Riazanov no
início dos anos 1920, compreenderia 42 volumes, começou a ser editada em 1927 e
dela se tiraram 11 volumes até meados dos anos 1930; é de salientar que a primeira
publicação dos Grundrisse, editada em Moscou (1939-1941), não fez parte da Mega.
A segunda Mega (conhecida por Mega²), foi projetada pelos Institutos de Marxismo-
-Leninismo da União Soviética/URSS e da República Democrática Alemã/RDA
e começou a ser publicada nos anos 1970; com a anexação da RDA pela República
Federal da Alemanha e, em seguida, a implosão da União Soviética, articulou-se
um consórcio internacional para dar continuidade ao projeto, mas conforme uma
concepção – expressa com a criação, em 1990, da Fundação Internacional Marx-
-Engels [Internationale Marx-Engels Stiftung/IMES], sediada em Amsterdã – que se
pretende isenta de condicionalismos partidário-ideológicos; até agora, da Mega² já
foram publicados mais de 50 volumes (o projeto prevê 114 volumes). Os volumes que
vieram à luz antes de 1991 foram editados pela Dietz Verlag (Berlim); os editados
posteriormente têm a chancela da Akademie Verlag (também de Berlim).
Entre uma e outra Mega, a Dietz Verlag publicou, em 1956/1968, em 39 volumes,
mais dois volumes suplementares (no primeiro deles foram reeditados os Manus-
critos), a MEW (acrônimo de Marx-Engels Werke [Obras de Marx e Engels]); entre
1975 e 2005, foram editados em inglês (por Lawrence & Wishart/Londres e Inter-
national Publishers/Nova York) os 50 volumes da MECW (Marx-Engels Collected
Works [Obras coligidas de Marx e Engels]) e, em 1972, iniciou-se (Riuniti, Roma)
a publicação de uma edição italiana – K. Marx-F. Engels, Opere [Obras] – que, ao
que sei, foi interrompida em 1990, após o lançamento de 32 volumes. Na Espanha,
sob a direção de Manuel Sacristán, o grupo Grijalbo/Crítica (Barcelona) iniciou
na segunda metade dos anos 1970 a publicação das Obras de Marx y Engels (OME)
e, em 1982, sob a direção de Wenceslao Roces, a casa mexicana Fondo de Cultura
Económica, lançou a coleção Obras fundamentales de Marx y Engels, projetada para
um conjunto de 22 volumes – ao que sei, ambos os projetos restaram inconclusos.
Não é possível discutir aqui a questão do destino editorial da obra de Marx, que o
leitor interessado pode rastrear, numa aproximação geral, no ensaio de Hobsbawm,
“A fortuna das edições de Marx e Engels”, in E. J. Hobsbawm, org., História do
marxismo, ed. e vol. cit. e em G. Labica, dir., 1883-1983. L’oeuvre de Marx, un
siècle après. Paris: PUF, 1985. Dois ensaios (de Hugo Eduardo da G. Cerqueira e de
Leonardo de Deus), recolhidos em João Antônio de Paula, org., O ensaio geral..., ed.
cit., contribuem para esclarecer aquele destino e os projetos da Mega e da Mega² – e
as implicações deste último também não podem ser tangenciadas nesta oportuni-
dade, mas é preciso anotar que são significativas (sinalizadas, por exemplo, em A.
Mazzone, ed., Mega²: Marx ritrovato. Roma: Media Print, 2002 e em R. Fineschi,
Un nuovo Marx. Roma: Carocci, 2008).

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121 Veja-se: “O salário é determinado pela luta hostil entre capitalista e trabalhador”; “A
renda fundiária é fixada pela luta entre entre arrendatário e proprietário da terra. Por
toda a parte, encontramos reconhecidas na economia nacional a oposição como inimigos
(feindlichen Gegensatz) dos interesses, a luta, a guerra, como o fundamento da organização
social.” (cf., infra, as p. 243 e 286 [o itálico da última frase é meu [JPN]).
122 Para a nomenclatura utilizada nos Manuscritos, cf. o primeiro parágrafo da nota
79, supra e também a nota 188, infra.
123 Como já se referiu, nas suas primeiras aproximações à Economia Política, Marx
não distingue trabalho de força de trabalho – cf., por exemplo, K. Marx, Miséria da
filosofia, ed. cit., p. 65 e ss. A introdução de Engels (1891) a Trabalho assalariado e
capital (cf. K. Marx, Trabalho assalariado e capital & Salário, preço e lucro, ed. cit.,
p. 17 e ss.) esclarece didaticamente a distinção mencionada.
124 A ressalva do “quase sempre” justifica-se, por exemplo, pela questão do dinheiro,
mais desenvolvida nos Cadernos que nos Manuscritos – compare-se, infra, a p. 200
e ss. com a p. 414 e ss.
125 De fato, a referência a Smith, nos Manuscritos, é mais recorrente que nos Cadernos
– não só neste ponto, mas ainda na consideração da divisão do trabalho (cf., infra,
a p. 407 e ss. e a p. 187).
126 Quanto a E. Buret (1810-1842), a obra consultada por Marx é de reconhecida
importância no quadro dos estudos publicados nas décadas de 1830 a 1850 sobre
o pauperismo das massas trabalhadoras – como o mostram, p. ex., as suas referên-
cias por Robert Castel, As metamorfoses da questão social. Uma crônica do salário.
Petrópolis, Vozes, 1998, p. 283 e ss.
No que diz respeito a Wilhelm Schulz (1797-1860), A. Cornu, junto com W. Mönke,
foi dos poucos analistas a salientar a sua importância para o Marx dos Manuscritos:
o grande estudioso da obra marx-engelsiana vai ao ponto de afirmar que, em sua
análise “do desenvolvimento econômico e social, Schulz chegava a uma concepção
materialista da história”. Sintetizando as fontes de que se valeu Marx nas reflexões
contidas nos Manuscritos – sem deixar de remarcar a importância de Hegel e
Feuerbach­–, Cornu escreve: “[...] Marx tomou de Engels a sua concepção do caráter
contraditório desse sistema [capitalista], que deveria provocar a sua supressão; os
artigos de Hess reforçaram a sua concepção do trabalho como elemento essencial da
vida humana e do caráter econômico e social da alienação; tomou, enfim, de Schulz
a ideia de que o desenvolvimento da produção e da divisão do trabalho determina a
sucessão das formas de sociedade e de Estado, assim como as lutas de classes” [itálicos
meus – JPN ]. Mas acrescenta na sequência imediata: “[...] Seria completamente falso
acreditar que Marx elaborou a sua teoria mediante uma espécie de compilação de
ideias tomadas desses trabalhos. O elemento fundamental da sua teoria era a sua
nova concepção do homem, que determinaria na sua crítica a Hegel, a Feuerbach
e aos economistas. Graças a ela haveria de renovar as ideias de Engels, Hess e de
Schulz, fundindo-as em um todo orgânico” (cf. A. Cornu, Carlos Marx. Federico
Engels, ed. cit., III, 1976, p. 141-142).
127 A ideia de uma contínua pauperização absoluta dos trabalhadores está presente na
Miséria da filosofia e, igualmente, no Manifesto do Partido Comunista (Hobsbawm,
aliás, sugeriu que, no Manifesto..., Marx é antes um “comunista ricardiano” que
um “economista marxiano” – cf. E. J. Hobsbawm, Sobre história. São Paulo: Cia.
das Letras, 1998, p. 299). Mais precisamente: ainda na segunda metade dos anos
1840, Marx admite “uma lei geral da baixa dos salários a longo prazo” (Mandel, A
formação do pensamento econômico de Karl Marx, ed. cit., p. 61). As investigações
que se documentam nos Grundrisse... permitiram a Marx superar este equívoco e

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formular uma correta teoria do salário, que já está elaborada em 1865, em Salário,
preço e lucro (cf. K. Marx, Trabalho assalariado e capital & Salário, preço e lucro, ed.
cit.) e comparece especialmente nos capítulos XIV a XXXIII do livro I d’O capital
(cf., na ed. cit., vol. 2, p. 583 e ss.).
128 Nos conflitos concorrenciais entre o grande capital e os menores, Marx já verifica
o resultado: “Se [...] a este grande capital se enfrentam [...] capitais pequenos com
pequenos ganhos – como acontece na situação pressuposta de forte concorrência – ele
esmaga-os completamente. [...] A consequência necessária é, então, a deterioração
das mercadorias, a falsificação, a produção fraudulenta, o envenenamento universal,
como é manifesto nas grandes cidades” (cf., infra, as p. 273-274).
129 Leia-se: “Veremos [...] primeiro, como o capitalista exerce o seu poder de governo
sobre o trabalho por intermédio do capital, mas, em seguida, o poder de governo
do capital sobre o próprio capitalista” (cf., infra, a p. 264). Cf. também, infra, a
nota 144.
130 A problemática subjacente à afirmativa de Ricardo haveria de receber um tratamento
muito diverso por parte de Marx. Em 1847, depois de escrever que “os economistas
exprimem as relações da produção burguesa [... e] nos explicam como se produz
nessas relações dadas, mas não nos explicam como se produzem essas relações”, ele
anota: “essas relações sociais determinadas são também produzidas pelos homens
[...]. Adquirindo novas forças produtivas, os homens transformam o seu modo
de produção e, ao transformá-lo, alterando a maneira de ganhar a sua vida, eles
transformam todas as suas relações sociais” (K. Marx, Miséria da filosofia, ed. cit.,
p. 120-121, 125). E, cerca de cinco anos depois, clarifica o âmbito em que se pode
mover a ação dos homens: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem
como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com
que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (K. Marx, “O
dezoito brumário de Luís Bonaparte”, in K. Marx-F. Engels, Obras escolhidas em
três volumes, ed. cit., vol. 1, 1961, p. 203).
E quanto às “leis econômicas”: na teoria marxiana, as determinações econômicas
objetivas (sistêmicas e regulares) que a dinâmica do modo de produção capitalista
instaura na vida social são reconhecidas como leis e as suas implicações são tomadas
como necessárias – mas as leis que Marx identifica no modo de produção capitalista
nada têm de supra ou a-históricas nem de naturais no sentido de se deverem à natu-
reza: são tendências sociais reais que implicam contratendências igualmente objetivas
e operantes e que têm curso e validade em condições históricas muito determinadas;
quanto ao caráter necessário de suas implicações, ele diz respeito, exclusivamente, a
que “a presença factual de determinadas condições implica necessariamente, ainda
que apenas como tendência, determinadas consequências” (György Lukács, Para
uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, I, 2012, p. 363). É conhecida a
recusa marxiana, por exemplo, de uma “lei” (natural e invariante) do crescimento
demográfico, como a de Malthus: “[...] Todo modo histórico de produção tem
suas leis próprias de população, válidas dentro de limites históricos. Uma lei abstrata
da população só existe para plantas e animais, e apenas na medida em que esteja
excluída a ação humana” (cf. K. Marx, O capital..., ed. cit., livro I, vol. 2, p.733
[itálicos meus – JPN ]); cf. também G. Duménil, Le concept de loi économique dans
“Le capital”. Paris: Maspero, 1978 e M. Vadée, Marx, penseur du posible. Paris:
Klincksieck, 1992. Com efeito, não há, na obra de Marx, nenhuma concessão a
qualquer modalidade de naturalização de fenômenos/processos sociais (e certas
expressões – como a registrável na citação que se faz no parágrafo seguinte desta
nota: “processo histórico-natural” [naturgeschichtlinen Prozess] – não devem levar

139
M a r x e m P a r i s

o leitor a equívoco): a sua ontologia é especificamente social, como já o salientou


Carol C. Gould, Marx’s Social Ontology. Cambridge: The MIT Press, 1978 e como
o demonstrou exaustivamente György Lukács, Prolegômenos para uma ontologia do
ser social. São Paulo: Boitempo, 2010 e Para uma ontologia do ser social, ed. cit., São
Paulo: Boitempo, I, 2012, esp. cap. IV (em registro muito diferente, questões que
tangenciam a “naturalização” são sugestivamente tratadas por Marshall Sahlins,
Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003 [ed. orig., 1976], cap. 3).
Por outra parte, o reconhecimento do caráter objetivo das leis tendenciais que
operam na dinâmica da produção capitalista, bem como das suas características/
implicações, fez com que Marx não as debitasse a traços psicossociais dos capita-
listas – quanto a isto, a formulação mais clara aparece em 1867: “Não foi róseo o
colorido que dei às figuras do capitalista e do proprietário de terras. Mas, aqui, as
pessoas só interessam na medida em que representam categorias econômicas, em
que simbolizam relações de classe e interesses de classe. Minha concepção do desen-
volvimento da formação econômico-social como um processo histórico-natural exclui,
mais do que qualquer outra, a responsabilidade do indivíduo por relações das quais ele
continua sendo, socialmente, criatura, por mais que, subjetivamente, se julgue acima
delas” (K. Marx, O capital, ed. cit., livro I, vol. 1, prefácio à primeira edição, p. 6
[itálicos meus – JPN ]).
131 A problemática da renda fundiária, depois, será teoricamente tratada por Marx no
livro III d’O capital (cf., na ed. cit., o vol. 6, parte VI, p. 705-931); também nas
Teorias da mais-valia (ed. cit.) ela é objeto de reflexão no vol. I, a propósito dos
fisiocratas, no vol. II, especialmente em relação a Rodbertus, mas também a Smith
e Ricardo e, pontualmente, em passagens do vol. III.
Observe-se que, nos Manuscritos, apontando a “transformação da propriedade
fundiária numa mercadoria”, com a sua subordinação ao capital e indicando “a
derrocada final da velha aristocracia”, Marx afirma que “não partilhamos as lágrimas
sentimentais que o romantismo chora sobre isto” (cf., infra, a p. 295); nos Grundrisse,
referindo-se à nostalgia pelo passado, oposto romanticamente às condições sociais
próprias das relações capitalistas, ele relaciona o “ponto de vista burguês” à “visão
romântica” (cf. K. Marx, Grundrisse, ed. cit., p. 110).
Nesta consideração, não levamos em conta a obra “literária” de Marx (como, p. ex.,
seus poemas a Jenny) até 1840. O que interessa é a relação do Marx pós-1840, pensa-
dor e crítico da Economia Política com o romantismo, que é objeto de polêmica, seja
enquanto perspectiva histórico-filosófica, seja enquanto corrente estético-literária.
Entre muitos, marxólogos como Robert C. Tucker (Karl Marx: filosofia e mito. Rio
de Janeiro: Zahar, 1963) e Bernard Cottret (op. cit.) e ex-marxistas como Kolakowski
(cf. Leszek Kolakowski, Main Currents of Marxism. Oxford: Clarendon Press, 1, 1978)
sustentam incidências românticas em Marx; também mais recentemente, a partir
dos anos 1990, o marxista M. Löwy, talentoso analista de Marx, vem detectando
dimensões românticas na obra marxiana (cf., por exemplo, Michael Löwy – com a
colaboração de Robert Sayre –, Revolta e melancolia. O romantismo na contramão
da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1995). Antípoda a essas interpretações, aliás
diversas entre si, é a posição de Lukács; salientando sempre a complexidade do
romantismo (cf., p. ex., o ensaio “Balzac, crítico de Stendhal”, coligido em Balzac et
le réalisme français. Paris: Maspero, 1967, bem como a primeira parte de Breve storia
della letteratura tedesca, ed. cit.) e mostrando tanto os seus limites literários (cf., por
exemplo, o primeiro capítulo de O romance histórico. São Paulo: Boitempo, 2011)
quanto os conexos à sua crítica social (cf., p. ex., “Zur Ästhetik Schillers” [“Sobre a
estética de Schiller”], in Probleme der Ästhetik. Neuwied-Berlin: Luchterhand, 1969,

140
J o s é P a u l o N e t t o

p. 91: “A crítica da cultura capitalista, enquanto permanece em terreno burguês,


toma cada vez mais um caráter romântico”), o filósofo húngaro enfatizou a sua
virtualidade reacionária (cf., em especial, o áspero Die Zertörung der Vernunft, ed.
cit.) e assinalou sistematicamente a oposição de Marx ao romantismo, inclusive em
seus principais escritos juvenis (cf. “O jovem Marx. Sua evolução filosófica de 1840
a 1844”, in O jovem Marx..., ed. cit.); outro marxista contemporâneo corrobora esta
linha de interpretação, ao ressaltar que, “historicamente perspectivado, o ‘roman-
tismo’ aparece dominantemente aos olhos de Marx como uma forma primeira e
estruturante de reação contra a Revolução Francesa e o ideário das Luzes, conduzida
não a partir de uma revalorização crítica do seu patrimônio em termos de processo
de emancipação da humanidade, mas como apelo nostálgico a medievalidades
fantasiadas e a tendenciais inflexões restauracionistas” (José Barata-Moura, Marx
e a crítica da “Escola Histórica do Direito”, ed. cit., p. 52).
132 No belo ensaio que escreveu logo quando da publicação (1932) dos Manuscritos,
Marcuse observou que o seu caráter era o “de uma crítica filosófica da Economia
Política” (H. Marcuse, Ideias sobre uma teoria crítica da sociedade, ed. cit., p. 10).
133 É inconteste que a problemática da alienação foi descortinada para Marx a partir
de Hegel (fundamentalmente o Hegel da Fenomenologia do Espírito) e da crítica
operada por Feuerbach (basicamente o Feuerbach d’A essência do cristianismo);
sobre o trato distinto dado a ela, cf. F. Fischbach, “Transformations du concept
d’aliénation. Hegel, Feuerbach, Marx”. Revue Germanique Internationale. Paris:
CNRS, 8, 2008. Mas não se pode reduzir o débito de Marx somente a estas duas
fontes. Ademais delas, mesmo com incidências de menor impacto na sua reflexão,
há que mencionar ainda pelo menos Rousseau (o Rousseau d’O contrato social, como
salientou I. Mészáros n’A teoria da alienação em Marx, ed. cit.) e Moses Hess (como
assinalou D. McLellan em The young hegelians and Karl Marx, ed. cit.). E, segundo
H. Chambre, há também que levar em conta o contributo de Engels (cf., supra, a
nota 57).
134 Marx movimenta-se nesta direção, mas, nos Manuscritos, ainda estará distante da
abordagem histórico-social que se registra n’A ideologia alemã (que, para Mandel, n’
A formação do pensamento econômico de Karl Marx, ed. cit., p. 38, constitui a “obra
filosófica principal” de Marx e Engels, que “funda a teoria do materialismo histórico
sobre uma superação sistemática da filosofia pós-hegeliana alemã”), tratamento
teórico-metodológico que só se completará nos Grundrisse.
135 Cf., infra, a nota 152.
136 Quanto à alienação religiosa, sobre a qual Feuerbach dirigiu o foco da sua crítica,
pelo menos desde a Crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução, Marx já
apreendera (como anotamos – cf., supra, a nota 74) as suas raízes: “O homem é o
mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a
religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido.
A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica
em forma popular, o seu point d’ honneur espiritualista [...]”.
Nos Manuscritos, esta apreensão prossegue, com o materialismo marxiano secun-
darizando a questão do ateísmo: a alienação que se expressa no âmbito religioso não é
superável pela negação teórico-ideológica dos deuses e das religiões, negação que é pró-
pria do ateísmo, mas pela transformação das condições da vida sociomaterial; lê-se no
“Caderno III”: “A propriedade privada material [...] é a expressão material sensível
da vida humana alienada. [...] A superação positiva da propriedade privada como
apropriação da vida humana é, por isso, a superação positiva de toda a alienação,
portanto o regresso do homem, a partir da religião, família, Estado etc., à sua

141
M a r x e m P a r i s

existência humana, i. é, social. A alienação religiosa como tal processa-se apenas na


região da consciência, do interior humano, mas a alienação econômica é a da vida
real – por isso a sua superação abrange ambos os lados”: no mesmo passo, Marx
afirma que o ateísmo “está ainda muito longe de ser comunismo”: sua “filantropia
[é] abstrata, filosófica”; em troca “a do comunismo é de imediato real e tensionada
imediatamente ao efeito” [Wirkung]. (cf., infra, a p. 346).
A explicação/compreensão da alienação religiosa ganhará um tratamento sócio-
-histórico a partir d’A ideologia alemã – quando a teoria marx-engelsiana da ideologia
encontrará a sua formulação original, depois redimensionada (como se verifica no
célebre “prefácio” de 1859 à Contribuição à crítica da Economia Política) –, mas o
“núcleo duro” da apreensão de 1844, então sustentado por formulações mais sólidas,
estará presente na elaboração posterior de Marx – como se constata, por exemplo,
quando ele se volta para o fetichismo da mercadoria: “O reflexo religioso do mundo
real só pode desaparecer quando as condições práticas das atividades cotidianas
dos homens representem, normalmente, relações racionais claras entre os homens
e entre estes e a natureza” (cf. K. Marx, O capital, ed. cit., I, 1, p. 88).
Se, do ponto de vista rigorosamente teórico, têm sido pouco consequentes e consistentes
os esforços para compatibilizar o materialismo marxiano com concepções de mundo
teístas/deístas (esforços que compareceram em muito do “diálogo entre cristãos e
marxistas” próprio dos anos 1960 – cf., por exemplo, Roger Garaudy, Do anátema
ao diálogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1965 e Vv. Aa., Diálogo posto à prova. Debate
entre católicos e comunistas italianos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968), parece claro
que no arcabouço teórico marxiano não se encontra apoio para uma postura prático-
-política ateísta e/ou antirreligiosa; como há muito Leandro Konder já o disse, com a
sua reconhecida clarividência, na perspectiva de Marx não tem “sentido uma atitude
antirreligiosa. Se a religião manifesta um estado de coisas dentro do qual ela é neces-
sária, a única maneira de suprimi-la é agir tendo em vista a modificação de tal estado
de coisas, de que decorre a necessidade da religião. O exercício de qualquer violência
contra a consciência dos crentes não resultaria apenas inócuo: exprimiria também elevado
teor de religiosidade na intolerância dos antirreligiosos” (cf. L. Konder, Marxismo e
alienação, ed. cit., p. 81; o itálico da última frase é meu [JPN]).
Por outra parte, as lutas sociais – como o demonstram, concretamente, experiên-
cias históricas relevantes – deixaram suficientemente estabelecido que não se pode
identificar sem mais a consciência religiosa (alienada) com posições reacionárias
ou mesmo conservadoras; veja-se, apenas para citar um processo analisado por
Engels, o importante capítulo da luta de classes na Alemanha no século XVI – cf.
“As guerras camponesas na Alemanha”, in F. Engels, A revolução antes da revo-
lução. São Paulo: Expressão Popular, 2008 (recorde-se que, em 1921, Münzer, o
“revolucionário plebeu” que tem a simpatia de Engels contra Lutero, foi objeto do
belo estudo de Ernst Bloch, Thomas Münzer, teólogo da revolução. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1973). Aliás, nos seus últimos anos de vida, Engels dedicou novos
cuidados ao problema religioso e um de seus textos derradeiros, do verão de 1894,
foi o pequeno artigo “Contribuição à história do cristianismo primitivo”, que G.
Badia, P. Bange e E. Bottigelli recolheram na antologia K. Marx-F.Engels, Sur la
religion. Paris: Ed. Sociales, 1968. Mais excertos marx-engelsianos sobre religião
estão reunidos na coletânea que acabamos de citar e ainda em K. Marx-F. Engels,
Sobre a religião. Lisboa: Ed. 70, 1975 e em John Raines (ed.), Marx on Religion.
Philadelphia: Temple University Press, 2002.
Sobre este conjunto de questões, cf. também Henri Desroche, Socialismes et sociologie
religieuse. Paris: Cujas, 1965 e O marxismo e as religiões. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

142
J o s é P a u l o N e t t o

1968; o cap. IV de Roger Garaudy, Marxismo do século XX. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1967; Werner Post, Kritik der Religion bei Karl Marx. München: Kösel Verlag,
1969; Dennis McKown, The Classical Marxist Critique of Religion. The Hague: M.
Nijhoff, 1975; Michele Bertrand, Le statut de la réligion chez Marx et Engels. Paris:
Ed. Sociales, 1979 e David McLellan, Marxism and Religion. New York: Harper &
Row, 1987. Para observações significativas referentes à América Latina, cf. o ensaio
de Michael Löwy, Marxismo e teologia da libertação. São Paulo: Cortez/Autores
Associados, 1991.
Mais acima, nesta nota, mencionamos a teoria da ideologia de Marx (e de Engels).
Vulgarizada pela utilização que dela se fez por algumas décadas, esta teoria des-
pertou novo interesse crítico a partir dos anos 1960 e várias contribuições estão
consignadas na bibliografia que já refenciamos; mas vale assinalar ainda – além de
trabalhos mais antigos, como os de Leo Kofler, La ciencia de la sociedad. Madrid:
Revista de Occidente, 1968 [ed. orig., 1944] e Lucien Goldmann, Ciências humanas
e filosofia. São Paulo: Difel, 1967 [ed. orig., 1952] –: Jean Lojkine, “Pour une théorie
marxiste des idéologies”. Cahiers du CERM. Paris: CERM/Ed. Sociales, 69, 1969;
Lucio Colletti, Ideologia e società. Bari: Laterza, 1970; R. Blackburn, ed., Ideology in
Social Sience: Readings in Critical Social Theory. London: Pantheon Books, 1972; do
já referido Leo Kofler, Sociologie des Ideologischen. Stuttgart: Kolhammer, 1975; G.
Vargas Lozano, ed., Ideología, teoría y política en el pensamiento de Marx. México:
UAP, 1980; G. Therborn, The Ideology of Power and Power of Ideology. London:
New Left Books, 1982; B. Parekh, Marx’s Theory of Ideology. London: Croom
Helm, 1982; Adolfo Sánchez Vázquez, Ensayos marxistas sobre filosofía e ideología.
Barcelona: Oceano, 1983; W. F. Haug, Elemente einer Theorie des Ideologischen.
Hamburg: Argument, 1993; T. Eagleton, Ideologia. São Paulo: Boitempo, 1997;
S. Zizek, Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999; L. Althusser,
Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 2001 [ed. orig.,
1970]; I. Mészáros, O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004 [ed. orig., 1989];
Vv. Aa., Critiques de l’ idéologie. Paris: Actuel Marx/PUF, 2008; e com registros
teóricos bem mais diferenciados, cf. J. Habermas, La technique et la science comme
“ idéologie”. Paris: Gallimard, 1973 [ed. orig., 1968]; Jorge Larrain, The Concept of
Ideology. London: Hutchinson, 1979 e Marxism and Ideology. London: Macmilann,
1983; Robert Porter, Ideology. Contemporary Social, Political and Cultural Theory.
Cardiff: University of Wales Press, 2006; Jan Rehmann, Theories of Ideology. The
Powers of Alienation and Subjection. Leiden: Brill, 2013.
A meu juízo, no quadro da bibliografia marxista acerca da ideologia produzida na
segunda metade do século XX, a contribuição do último Lukács revela-se a mais
original – cf. Para uma ontologia do ser social, ed. cit., II, 2013, cap. III. Observe-
-se que também na Ontologia (idem, cap. IV) Lukács oferece notável contributo à
análise da alienação – na tradução brasileira (de C. N. Coutinho, M. Duayer e N.
Schneider, com revisão técnica de R. V. Fortes), do estranhamento; a tradução (de F.
García Chilcote, em edição sob os cuidados de A. Infranca e M. Vedda) castelhana
deste capítulo da obra lukasciana intitula-se Ontología del ser social: la alienación
(Buenos Aires: Herramienta, 2013).
137 Cf., supra, a nota 114.
138 E já localizáveis, por exemplo, n’A ideologia alemã – alguns deles anotados por Díaz
(cf. La concepción del hombre en Marx, ed. cit.).
139 O deslizamento (Mandel, seguramente, preferiria dizer que Marx movimenta-se
“na fronteira da Filosofia e da Economia Política” – cf. A formação do pensamento
econômico de Karl Marx, ed. cit., p. 34) da Filosofia para a crítica da Economia

143
M a r x e m P a r i s

Política apenas neste sentido pode ser posto como uma superação da Filosofia, que
não significa absolutamente o seu cancelamento – ou que só significa o cancelamento
do filosofar especulativo, da mentação filosófico-contemplativa. Cf. I. Mészáros,
“Marx filósofo” (loc. e ed. cit.) e José Barata-Moura, Filosofia em O capital. Uma
aproximação. Lisboa: Avante!, 2013. Para outra concepção da “superação da filosofia”
por Marx, cf. o polêmico Karl Korsch, Marxismo e filosofia. Rio de Janeiro: Ed.
UFRJ, 2010 [ed. orig., 1923].
140 Recordemos, sem temer a repetição, que fato é este, constatado pela Economia
Política: “O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz,
quanto mais a sua produção cresce em poder e volume. O trabalhador torna-se uma
mercadoria tanto mais barata quanto mais mercadoria cria.” (cf., infra, a p. 304).
Poucos parágrafos adiante, Marx volta a indicar como se exprime, “segundo as leis
nacional-econômicas”, a alienação do operário no seu objeto (cf., infra, a p. 307).
141 Marx verifica: “O trabalho produz obras maravilhosas para os ricos, mas produz
privação para o trabalhador. Produz palácios, mas cavernas para o trabalhador.
Produz beleza, mas mutilação para o trabalhador. Substitui o trabalho por máquinas,
mas lança uma parte dos trabalhadores a um trabalho bárbaro e faz da outra parte
máquinas. Produz espírito, mas produz idiotice, cretinismo para o trabalhador.”
(cf., infra, a p. 307).
142 As experiências (intelectuais e políticas) de Marx que se condensam no primeiro
semestre de 1844 permitem-lhe apreender os processos históricos com os quais está
defrontado como medularmente vinculados às classes sociais, suas contradições e
antagonismos e suas lutas. Mas ele ainda carece de conhecimentos e instrumentos
aptos para desenvolver uma análise histórico-concreta da estrutura de classes da
sociedade burguesa – somente a partir da segunda metade dos anos 1840 ele se
mostrará qualificado (seja pelo desenvolvimento dos seus estudos – de que o Ma-
nifesto do Partido Comunista já é uma prova evidente –, seja pela prova prática da
intervenção política, como na revolução de 1848) para reproduzir concretamente
a complexidade e a dinâmica das classes sociais na sociedade burguesa, operando
análises extremamente elaboradas, já perceptíveis na Mensagem do Comitê Central
à Liga dos Comunistas (março de 1850) e cujos primeiros exemplos estão em As
lutas de classes na França. 1848-1850 (1850) e n’O 18 brumário de Luís Bonaparte
(1852 – textos coligidos em K. Marx-F. Engels, Obras escolhidas em três volumes,
ed. cit., vol. I, 1961). Nas suas análises histórico-concretas, Marx não operou uma
abordagem da estrutura social como constituída somente por duas classes – ainda
que burguesia e proletariado sempre se lhe afigurassem as classes fundamentais no
modo de produção capitalista; de qualquer forma, ele nunca chegou a “definir”
classe social – como se constata no inacabado O capital, em que o texto pertinente
(o capítulo LII) não passa de duas páginas (cf. K. Marx, O capital, ed. cit., livro
III, vol. 6, 1974, p. 1112-1113).
Em vários verbetes (“burguesia”, “classes”, “camada social”, “campesinato” “pequena
burguesia/classe(s) média(s)”, “operários”, “proletariado” ), do já citado Dictionnaire
critique du marxisme, bem como em entradas similares (“burguesia”, “campesinato”,
“classe dominante”, “classe média”, “classe operária”) do também citado Dicioná-
rio do pensamento marxista, há um rol bibliográfico que contribui para clarificar
a categoria classe, ainda que as referências e mesmo os textos não digam respeito
exclusivamente à obra de Marx.
143 Glosando esta passagem, Sánchez Vázquez anota: “O operário [...] se aliena ao pro-
duzir, o não operário ao apropriar-se dos produtos e da atividade do operário. [...]
Esta diferença, no entanto, não altera o status alienado comum” (El joven Marx...,

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ed. cit., p. 103). Mas altera essencial e profundamente a relação das classes com a
alienação – como se verá abaixo, na próxima nota.
144 Neste passo, volta Marx a deixar claro que a alienação não incide somente sobre o
operário a partir da sua relação “com os objetos da sua produção. A relação do abas-
tado com os objetos da produção e com ela própria é apenas uma consequência desta
primeira relação. E confirma-a” (cf., infra, a p. 308). Como há pouco lembrou, em
pequeno mas expressivo artigo, o marxista indiano Patnaik, a alienação é processo
que tende à universalidade (cf. P. Patnaik, “Smith, Marx and Alienation”. People’s
Democracy, vol. XXXVIII, n. 32, August 10, 2014).
A alienação como processo inclusivo na sociedade fundada na propriedade privada
(burguesa) está presente no pensamento de Marx desde então; com uma mais clara
distinção entre os sujeitos sociais envolvidos, Marx, logo depois de dedicar-se aos
Manuscritos, escreve: “A classe possuinte e a classe do proletariado representam a
mesma auto-alienação humana. Mas a primeira das classes se sente bem e aprovada
nessa auto-alienação, sabe que a alienação é seu próprio poder e nela possui a aparência
de uma existência humana; a segunda, por sua vez, sente-se aniquilada nessa aliena-
ção, vislumbra nela sua impotência e a realidade de uma existência desumana. Ela
é, para fazer uso de uma expressão de Hegel, no interior da abjeção, a revolta contra
essa abjeção, uma revolta que se vê impulsionada necessariamente pela contradição
entre sua natureza humana e sua situação de vida, que é a negação franca e aberta,
resoluta e ampla dessa mesma natureza. Dentro dessa antítese o proprietário privado
é, portanto, o partido conservador, e o proletário o partido destruidor. Daquele parte
a ação que visa a manter a antítese, desse a ação de seu aniquilamento” (K. Marx-
-F. Engels, A sagrada família..., ed. cit., p. 47-48. A menção a Hegel tem razão de
ser – cf. a relação senhor/escravo na Fenomenologia do Espírito, ed. cit., p. 142 e ss.
–; cf., sobre este passo da Fenomenologia, o pequeno ensaio de Tran-Duc-Thao, “Le
‘noyau rationnel’ dans la dialectique hegélienne”. La Pensée. Paris, n. 119, 1965). A
“ação do seu aniquilamento” implica, segundo o Marx dos Manuscritos (cf., infra,
a p. 318), “a emancipação da sociedade da propriedade privada etc., da servidão,
[que] se exprime na forma política da emancipação dos trabalhadores não como se
se tratasse apenas da emancipação deles, mas antes porque na sua emancipação
está contido todo o humano [...]”; ou, como já vimos numa formulação marxiana
d’A sagrada família... (ed. cit., p. 49), “o proletariado pode e deve libertar-se a si
mesmo. Mas ele não pode libertar-se a si mesmo sem suprassumir suas próprias
condições de vida. Ele não pode suprassumir suas próprias condições de vida sem
suprassumir todas as condições de vida desumana da sociedade atual [...]” – este é
o “papel histórico-mundial” de proletariado.
Do Marx “maduro”, que já consolidou a sua concepção teórico-metodológica nos
Grundrisse e já avançou a ponto de considerar-se apto, enfim, a iniciar a redação
do livro I d’O capital, encontramos num manuscrito a formulação seminal da
tendência da alienação a operar universalmente na sociedade regida pelo capital:
“Na realidade, a dominação dos capitalistas sobre os operários é apenas o domínio
sobre estes das condições de trabalho [...], condições que se tornaram autônomas
precisamente diante dos operários. Esta relação em que as condições de trabalho
dominam o operário só se realiza, contudo, no processo real de produção que, [...]
como vimos, é essencialmente processo de produção de mais-valia [...]. As funções
que o capitalista exerce são somente as funções do próprio capital – do valor que se
valoriza succionando trabalho vivo – exercidas com consciência e vontade. O capi-
talista só funciona enquanto capital personificado, é o capital enquanto pessoa; do
mesmo modo, o operário funciona unicamente como trabalho personificado, que

145
M a r x e m P a r i s

lhe pertence como suplício, como esforço, mas que pertence ao capitalista como
substância criadora e ampliadora de riqueza. [...] A dominação do capitalista sobre
o operário é, por conseguinte, a dominação da coisa sobre o homem, do trabalho
morto sobre o trabalho vivo, do produto sobre o produtor [...] Na produção material,
no verdadeiro processo da vida social [...] dá-se exatamente a mesma relação que,
no terreno ideológico, se apresenta na religião: a conversão do sujeito no objeto e
vice-versa. Considerada historicamente, esta conversão aparece como o momento
de transição necessário para impor, pela violência e às expensas da maioria, a cria-
ção da riqueza enquanto tal, ou seja, o desenvolvimento [...] das forças produtivas
do trabalho social, o único que pode constituir a base material de uma sociedade
humana livre. É necessário passar através desta forma antitética, assim como, no
princípio, o homem deve atribuir uma forma religiosa às suas faculdades intelec-
tuais, como poderes que se lhe enfrentam. Trata-se do processo de alienação de seu
próprio trabalho. Aqui o operário está, desde o princípio, num plano superior ao
do capitalista, porque enquanto este deitou raízes neste processo de alienação e
encontra nele a sua absoluta satisfação, o operário, ao contrário, em sua condição
de vítima do processo, está numa situação de rebeldia e o sente como um processo
de avassalamento. [...] O próprio processo de trabalho se mostra apenas como meio
do processo de valorização [...] conteúdo absolutamente mesquinho e abstrato que,
de um certo ângulo, faz aparecer o capitalista como submetido exatamente à mesma
servidão em face da relação com o capital que o operário, no polo oposto e de outra
maneira” (K. Marx, El capital. Libro I. Capítulo VI. Inédito, ed. cit., p. 19-20).
É preciso salientar, com ênfase, que a tendência à universalização da alienação na
sociedade capitalista está longe de significar a inexistência de contratendências ou
– menos ainda – a submissão de todos os indivíduos a ela. Lukács deteve-se várias
vezes sobre esta questão, após o seu fundamental estudo sobre a reificação (cf.
Geschichte und Klassenbewusstsein, ed. cit., p. 94-228), sobretudo na sequência da
explicitação madura do seu pensamento sobre a alienação em Hegel e em Marx (cf.
Der Junge Hegel..., ed. cit., esp. cap. IV, 4); mas é em suas grandes e últimas obras
que a questão aparece superiormente elaborada a partir de uma angulação teórico-
-sistemática: na Estética I (cf. Ästhetik I. Die Eigenart des Ästhetischen.1. Halbband.
Neuwied, 1963, esp. p.161-206, 550-617; 2. Halbband, o último capítulo, p. 675 e
ss.) e na Ontologia (cf. Para uma ontologia do ser social, ed. cit., II, esp. p. 577).
Uma autora que foi, até os inícios dos anos 1970, muito ligada a Lukács tematizou
esta problemática em vários de seus ensaios de então – refiro-me a Agnes Heller,
que, a partir de meados daqueles anos, afastou-se tanto de Lukács quanto da tra-
dição marxista. Em um dos ensaios recolhidos em O cotidiano e a história (Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1972, p. 38-39), escreveu Heller: “Existe alienação quando
ocorre um abismo entre o desenvolvimento humano-genérico e as possibilidades
de desenvolvimento dos indivíduos humanos, entre a produção humano-genérica
e a participação consciente do indivíduo nessa produção. Esse abismo não teve a
mesma profundidade em todas as épocas nem para todas as camadas sociais; assim,
por exemplo, fechou-se quase completamente nas épocas de florescimento da pólis
ática e do Renascimento italiano [objetos de Heller em estudos anteriores, quando
sob a influência de Lukács; cf. O homem do Renascimento. Lisboa: Presença, 1982
e Aristóteles y el mundo antiguo. Barcelona: Península, 1983]; mas, no capitalismo
moderno, aprofundou-se desmesuradamente. Ademais, tal abismo jamais foi intei-
ramente insuperável para o indivíduo isolado: em todas as épocas, sempre houve um
número maior ou menor de pessoas que, com ajuda de seu talento, de sua situação, das
grandes constelações históricas, conseguiu superá-lo. Mas, para a massa, para o grande

146
J o s é P a u l o N e t t o

número dos demais, subsistiu o abismo, quer quando era muito profundo, quer quando
mais superficial ” [itálicos meus – JPN ]. Neste mesmo volume de ensaios, e também
em passagens de outra importante obra de Heller (Sociologia della vita quotidiana.
Roma: Riuniti, 1975), o leitor encontra importantes determinações sobre as relações
entre a genericidade humana e o indivíduo.
Outros autores de algum modo relacionados a Lukács tematizaram o problema
da universalidade da alienação/reificação, como Lucien Goldmann (no ensaio “A
reificação” [ed. orig., 1958], in Dialética e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979)
e Leo Kofler (implicitamente, ao longo do seu importante Arte abstrato y literatura
del absurdo. Barcelona: Barral, 1972; explicitamente, no cap. 7 de História e dialética.
Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2010); sob outra ótica, Karel Kosik considerou a questão
em Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969 [ed. orig., 1963]. No
Brasil, esta problemática foi tangenciada diversamente por Ricardo Antunes (Os
sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999, esp. caps. VII a X) e Mauro Iasi,
As metamorfoses da consciência de classe (São Paulo: Expressão Popular, 2006, esp.
parte 1).
Não podemos nos deter, aqui, no tratamento da alienação e da reificação operado
pela bem diferenciada (como o demonstrou Phil Slater, Origem e significado da
Escola de Frankfurt. Rio de Janeiro: Zahar, 1978) plêiade de pensadores que tive-
ram seus nomes ligados à chamada teoria crítica – cuja história foi cuidadosamente
rastreada por R. Wiggershaus, A Escola de Frankfurt. História, desenvolvimento
teórico, significação política. Rio de Janeiro: Difel, 2006, com rica documentação;
cf. também Martin Jay, A imaginação dialética. História da Escola de Frankfurt e do
Instituto de Pesquisas Sociais. 1923-1950. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. Além
do necessário exame dos textos seminais de seus autores (fundamental, mas não
exclusivamente, M. Horkheimer, T. W. Adorno, H. Marcuse, E. Fromm e também
J. Habermas), há que recorrer a um enorme rol de analistas – cf., entre muitos, G.
E. Rusconi, La teoria critica della società. Bologna: Il Mulino, 1968; J. G. Merquior,
Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1969 e O marxismo ocidental. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987; G. Therborn,
Critica e rivoluzione. Saggio sulla Scuola di Francoforte. Bari: Laterza, 1972, o seu
ensaio “The Frankfurt School”, in G. Stedman Jones et alii, Western Marxism. A
critical reader. London: Verso, 1978 e Do marxismo ao pós-marxismo?. São Paulo:
Boitempo, 2012; S. Buck-Morss, The Origin of Negative Dialectics. Theodor W.
Adorno, Walter Benjamin and the Frankfurt Institute. New York: The Free Press,
1977; P.-L. Assoun e G. Raulet, Marxismo e teoria crítica. Rio de Janeiro: Zahar,
1981; Emilio Lamo de Espinosa, La teoría de la cosificación…, ed. cit.; M. Löwy,
“Le marxisme rationaliste de l’École de Frankfort”. L’ homme et la societé. Paris:
Anthropos, vol. 65, n. 65- 66, 1982; Martin Jay, Marxism & Totality. The adventures
of a concept from Lukács to Habermas. Berkeley/Los Angeles: University of California
Press, 1984; Fredric Jameson, Marxismo e forma. Teorias dialéticas da literatura no
século XX. São Paulo: Hucitec, 1985 e O marxismo tardio. Adorno ou a persistência
da dialética. São Paulo: Ed. Unesp/Boitempo, 1997; Carlos Nelson Coutinho, “A
Escola de Frankfurt e a cultura brasileira”. Presença: Política e Cultura. São Paulo:
Caetés, n. 7, março de 1986; E. Guarnere, “Appunti su Adorno e il marxismo”, in
A. Angelini/G. Puglisi, Adorno in Italia. Siracusa: Ediprint, 1987; S. E. Bronner,
Da teoria crítica e seus teóricos. Campinas: Papirus, 1997 e I. Mészáros, O poder da
ideologia, ed. cit.; cf. também P. Anderson, Considerações sobre o marxismo ociden-
tal. Nas trilhas do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2004. Ademais de
páginas dos “clássicos de Frankfurt”, no que toca às relações da teoria crítica com

147
M a r x e m P a r i s

a tradição marxista vale recorrer às reflexões de um frankfurtiano da “segunda


geração” (como o caracteriza Barbara Freitag em A teoria crítica: ontem e hoje. São
Paulo: Brasiliense, 1990, p. 29): J. Habermas, Para a reconstrução do materialismo
histórico. São Paulo: Brasiliense, 1983.
145 A reiterada referência a concepção filosófico-antropológica faz-se nesta apresentação
para deixar claro que não há em Marx uma antropologia sem expressa fundação
filosófica – mais exatamente, uma antropologia descolada de uma ontologia. Sobre
este ponto fundamental, cf. Mészáros, A teoria da alienação em Marx, ed. cit., esp.
p. 45-48.
146 “Se se entende por ‘antropologia filosófica’ a descrição de traços humanos extra-
-históricos, supra-históricos ou simplesmente independentes da história, há que dizer
que Marx não dispõe de nenhuma ‘antropologia’ e que, inclusive, nega que uma
tal antropologia seja de alguma utilidade para conhecer o ser do homem. Mas se se
entende por ‘antropologia’ a resposta à pergunta acerca do ‘ser humano’, então há
que dizer que Marx tem uma antropologia – que não é uma abstração da história, é
o abstrato da história. Expresso de outra forma: a concepção de Marx se contrapõe
diametralmente a todas as tendências que separam e contrapõem a antropologia e a
sociologia, o estudo da essencialidade e a investigação da estruturação sócio-histórica
do homem. Para Marx, o ‘ser humano’ do homem se encontra precisamente no ‘ser’
do processo social global e evolutivo da humanidade, na unidade interna deste
processo” (G. Márkus, Marxismo y ‘antropología’, ed. cit., p. 54-55). Cf., infra, a
nota 158.
147 A partir de 1844, a consideração decisiva da atividade produtiva, do trabalho,
como distintivo do ser do homem (tão corretamente ressaltada por Henri Lefebvre­
– cf. o seu prefácio à 2ª ed. [1958] do primeiro volume [1947] da Critique de la
vie quotidienne. Paris, L’Arche, 1968, p. 73, em que ele afirma que “para Marx, o
trabalho constitui a essência do homem enquanto criador”), estará presente no
pensamento e no conjunto da obra marxiana (e, igualmente, no da obra engelsiana,
de que não podemos nos ocupar aqui). N’A ideologia alemã, quando os influxos
hegelianos e feuerbachianos já estão superados no quadro da original concepção
dialético-materialista marxiana, lê-se: “Pode-se distinguir os homens dos animais
pela consciência, pela religião ou pelo que se queira. Mas eles mesmos começam a
se distinguir dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida [...]” (cf.
K. Marx-F. Engels, A ideologia alemã, ed. cit., p. 87).
Duas décadas depois, O capital documenta a continuidade e o avanço de Marx no
âmbito da consideração do trabalho em relação à formulação dos Manuscritos – vale
a longa citação: “[...] O trabalho é um processo de que participam o homem e a
natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula
e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza
como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo [...]
a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida
humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo
modifica sua própria natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e
submete a seu domínio o jogo das forças naturais. Não se trata aqui das formas
instintivas, animais, de trabalho. Quando o trabalhador chega ao mercado para
vender a sua força de trabalho, é imensa a distância histórica que medeia entre sua
condição e a do homem primitivo com sua forma ainda instintiva de trabalho.
Pressupomos o trabalho sob forma exclusivamente humana. Uma aranha executa
operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao
construir a sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele

148
J o s é P a u l o N e t t o

figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo


do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do
trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao
material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determi-
nante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade”. E, na sequência
imediata, Marx acrescenta: “Os elementos componentes do processo de trabalho
são: 1) a atividade adequada a um fim, isto é, o próprio trabalho; 2) a matéria a que
se aplica o trabalho, o objeto do trabalho; 3) os meios de trabalho, o instrumental
de trabalho” (cf. K. Marx, O capital, ed. cit., I, vol. 1, p. 202 [todos os itálicos são
meus – JPN ]). Aliás, a atenção de Marx ao processo de trabalho, já presente nos
Grundrisse, acentua-se na abertura dos anos 1860 – cf. K. Marx, Para a crítica da
Economia Política. Manuscrito de 1861-1863..., ed. cit., p. 68-80 (ademais, outros
cadernos que constituem este volumoso manuscrito, só integralmente publicado
entre 1976 e 1982, atestam o aprofundamento das pesquisas de Marx acerca da
tecnologia, que vem dos primeiros anos de seu exílio em Londres – cf., com estudo
prévio de E. Dussel, C. Marx, Cuaderno tecnológico-histórico (extractos de lectura.
Londres, 1851). Puebla: Universidad Autónoma de Puebla, 1984 –; parte essencial
deles, apresentada por Mauro di Lisa, está reunida em K. Marx, Progreso técnico
y desarrollo capitalista (Manuscritos 1861-1863). México: Cuadernos de Pasado y
Presente, 1982. Uma excelente aproximação ao tema encontra-se em Claudio Katz:
“La concepción marxista del cambio tecnológico”. Revista Buenos Aires. Pensamiento
económico. Buenos Aires: l, otoño de 1996 e “Discusiones marxistas sobre tecnolo-
gía”. Razón y revolución. Buenos Aires: ryr, n. 3, invierno de 1997; cf. também D.
Romero, Marx e a técnica. São Paulo: Expressão Popular, 2005).
A continuidade das formulações d’O capital com o texto de 1844 é praticamente
óbvia, do trabalho como especificador do homem à identificação da “natureza
externa” como o seu “corpo inorgânico” (como se verá adiante, na escritura dos
Manuscritos); mas o avanço em face da reflexão da 1844 é notável (e não somente
em termos categoriais): sobretudo, para Marx a teleologia (que implica a antecipação
ideal do resultado a ser obtido, que Lukács explorou intensivamente na Ontologia...)
passa a constituir um distintivo do trabalho especificamente humano e ele confere
um peso especial à mediação que, no processo de trabalho, cabe aos instrumentos
de trabalho – não por acidente, logo a seguir, Marx observa que “o uso e a fabri-
cação de meios de trabalho [...] caracterizam o processo especificamente humano
de trabalho e Franklin define o homem como a toolmaking animal, um animal
que faz instrumentos de trabalho” (cf. K. Marx, O capital, ed. e loc. cit., p. 204).
Em suma, para o Marx “maduro”, “o processo de trabalho [...] é atividade dirigida
com o fim de criar valores de uso, de apropriar os elementos naturais às necessi-
dades humanas; é condição necessária do intercâmbio material entre o homem e
a natureza; é condição natural eterna da vida humana, sem depender, portanto,
de qualquer forma dessa vida, sendo antes comum a todas as suas formas sociais”
(idem, p. 208). É de observar que o traço teleológico próprio do trabalho, que o
Marx d’O capital salienta, será, como S. Lessa já analisou, uma das vigas-mestras
da Ontologia... do último Lukács (cf. Sérgio Lessa, Mundo dos homens. São Paulo:
Boitempo, 2002 e Para compreender a Ontologia de Lukács. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007;
para outras notações, cf. Artur Bispo dos Santos Neto, Trabalho e tempo de trabalho
na perspectiva marxiana. São Paulo: Instituto Lukács, 2013, esp. p. 61-74): veja-se
fundamentalmente o capítulo “O trabalho”, em G. Lukács, Para uma ontologia do
ser social, ed. cit., II, 2013, p. 41-157; cf. também A. Infranca, Trabajo, individuo,
historia. El concepto de trabajo en Lukács. Buenos Aires: Herramienta, 2005. Cabe

149
M a r x e m P a r i s

notar que Sánchez Vázquez assinalou que o fato de Althusser ignorar completamente
a dimensão teleológica do processo de trabalho responde pela contraposição radi-
cal que o filósofo francês viu entre os Manuscritos e O capital (cf. esta importante
indicação de Sánchez Vázquez na sua Filosofia da práxis, ed. cit., p. 228).
Com referência à longa citação de Marx que fizemos linhas acima nesta nota,
são pertinentes aqui duas observações acerca da edição d’O capital que estamos
utilizando, na tradução pioneira de Reginaldo Sant’anna: a) onde este verteu
“intercâmbio material com a natureza”, outros optaram por “metabolismo com a
natureza” (cf. a versão d’O capital, de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe, na coleção
“Os economistas”, São Paulo: Abril Cultural, I, 1, 1983, p. 149 e a de Rubens
Enderle, O capital. São Paulo: Boitempo, I, 2013, p. 255) – solução que me parece
mais consoante o original alemão (cf. K. Marx-F. Engels, MEW, ed. cit., vol. 23,
1972, p. 192: Stoffwechsel mit der Natur; acerca da relevância da concepção do
“metabolismo” em Marx, cf. as ricas notações de Foster em A ecologia de Marx, ed.
cit., p. 221 e ss.); b) onde Sant’anna valeu-se de “projeto”, tanto Barbosa e Kothe
quanto Enderle empregaram “objetivo” (cf. ed. e loc. cit., respectivamente p. 150
e p. 256), solução que igualmente me parece mais colada ao original (Marx não
usa o substantivo Projekt e sim Zweck – cf., em MEW, ed. e vol. cit., p. 193). Mas
devo advertir ao leitor que tais observações, como outras relacionadas a traduções
de textos marxianos, devem ser tomadas com cautela, uma vez que o meu limitado
domínio do alemão não me autoriza a nenhum juízo mais qualificado.
148 É claríssimo o rebatimento destas determinações do jovem Marx na sua obra “ma-
dura” – na “Introdução” (1857) aos Grundrisse, depois de assinalar que na produção
em geral a natureza é sempre o objeto da ação do sujeito (a humanidade), Marx
afirma que “toda produção é apropriação da natureza pelo indivíduo, no interior e
mediada por uma determinada forma de sociedade” (cf. K. Marx, Grundrisse, ed.
cit., p. 41-43); n’O capital, o “permanecer em constante processo para não morrer”
rebate da seguinte forma: “O trabalho, como criador de valores de uso, como traba-
lho útil, é indispensável à existência do homem – quaisquer que sejam as formas de
sociedade –, é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material [cf. o
último parágrafo da nota anterior – JPN ] entre o homem e a natureza e, portanto,
de manter a vida humana” (cf. K. Marx, O capital, ed. cit., livro I, vol. 1, p. 50).
Aliás, a relação trabalho/natureza – na criação de riquezas sociais – foi analisada
por Paul Burkett, Marx and Nature: a Red and Green Perspective. New York: St.
Martin’s Press, 1999.
Não é possível, nos limites desta apresentação, sequer tangenciar o debate, emergente
no último terço do século XX, acerca do “fim do trabalho” (ou da “sociedade do
trabalho”) – cabe apenas sinalizar que ele tem sido objeto, no Brasil, de substantivas
intervenções (elas mesmas marcadas por polêmicas) de marxistas que assinalam os
enormes equívocos embutidos em tal debate; dentre essas intervenções, registre-se
especialmente: Ricardo Antunes, Adeus ao trabalho?. São Paulo: Cortez, 2011 [ed.
orig., 1995], Os sentidos do trabalho, ed. cit., alguns textos de O caracol e sua concha.
São Paulo: Boitempo, 2005 e o breve artigo “Produção liofilizada e a precarização
estrutural do trabalho”, in Edvânia A. de Souza Lourenço et alii, orgs., Avesso do
trabalho II. São Paulo: Expressão Popular, 2010; Sérgio Lessa, Trabalho e proleta-
riado no capitalismo contemporâneo. São Paulo: Cortez, 2007; Francisco José Soares
Teixeira, “Marx, ontem e hoje” (esp. item 1, p. 50-85), in Francisco Teixeira e Celso
Frederico, Marx no século XXI. São Paulo: Cortez, 2008; e veja-se José Henrique C.
Organista, O debate sobre a centralidade do trabalho. São Paulo: Expressão Popular,
2006. Vale também a leitura de Giovanni Alves, ainda que sem o foco explícito no

150
J o s é P a u l o N e t t o

“fim do trabalho” – O novo (e precário) mundo do trabalho. São Paulo: Boitempo,


2000 e Trabalho e subjetividade. São Paulo: Boitempo, 2011.
149 É exatamente neste passo que Marx sustentará a ideia de que “a própria história é
uma parte real da história da natureza, do devir da natureza até ao homem. A ciência
da natureza subsumirá em si mais tarde a ciência do homem, tal como a ciência
do homem subsumirá a da natureza: haverá uma ciência” (cf., infra, a p. 355-356).
Não parece que tal ideia possa ser identificada sumariamente com a passagem em
que, n’A ideologia alemã, quando a crítica a Feuerbach já comparece explícita, Marx
e Engels afirmam – em frase aliás suprimida no original pelos autores – conhecer
“uma única ciência, a ciência da história” (cf. K. Marx-F. Engels, A ideologia alemã,
ed. cit., p. 86). Quanto ao “caráter antropológico das ciências naturais”, cf. Sánchez
Vázquez, Filosofia da práxis, ed. cit. supra, p. 128 e ss. e, especialmente, Mészáros,
A teoria da alienação em Marx, ed. cit., p. 96 e ss.
Também não me parece que a concepção marxiana de natureza, em 1844, suponha
o que bem posteriormente será a controversa “dialética da natureza”. Não é possível,
obviamente, nesta apresentação, referir mesmo lateralmente a “dialética da natureza”
entronizada – com a leitura própria que o dogmatismo da era stalinista (M. M.
Rozental, P. F. Ioudin, F. V. Konstantinov) fez de textos engelsianos como o Anti-
-Dühring e o inconcluso e póstumo Dialética da natureza – pela ciência marxista
“oficial” (cf. Kh. Fataliev, O materialismo dialético e as ciências da natureza. Rio de
Janeiro: Zahar, 1966). Tal “dialética da natureza” foi recusada por praticamente
todo o diferenciado “marxismo ocidental” (inclusive o Lukács de História e consciên­
cia de classe), rechaçada pelo Sartre mais próximo do marxismo (que, na Questão
de método. São Paulo: Difel, 1967, a equaliza a uma “metafísica dogmática” e a
desqualifica na Critique de la raison dialectique. Paris: Gallimard, 1960, I, A) e
ignorada pelo ulterior e também diferenciado e polêmico “marxismo analítico”.
Nem cabe, aqui, mencionar os esforços científicos para construir uma alternativa
às formulações tradicionais, como a de Havemann (cf. Robert Havemann, Dialética
sem dogma. Rio de Janeiro: Zahar, 1967 [ed. orig. 1964]); mas cumpre fazer notar
que o último Lukács, o da Ontologia..., parece-me ter encontrado, no plano filosófico,
na determinação da especificidade do ser social, a via adequada para estabelecer as
peculiaridades de processos dialéticos na natureza e na sociedade.
À guisa de rápida sugestão de algumas fontes para situar o debate acerca da “dialé-
tica da natureza”, além do material contido nos textos já citados de P. Vranicki, L.
Colletti­, I. Fetscher, A. Schmidt e J. B. Foster, veja-se, num quadro geral, H. She-
ehan, Marxism and the Philosophy of Science. A Critical History. New York: Humanity
Books, 1993; P. Peccatte, La consistance rationnelle. Saint-Étienne: Aubin, 1996; John
Rees, The Algebra of Revolution. The Dialectic and the Classical Marxist Tradition.
London: Routledge, 1998; Eftichios Bitsakis, La nature dans la pensée dialectique.
Paris: L’Harmattan, 2001; Pascal Charbonnat, Histoire des philosophies matérialistes.
Paris: Syllepse, 2007; com foco mais específico, cf. R. Garaudy, Perspectivas do
homem. Existencialismo. Pensamento católico. Marxismo. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1965; J.-P. Sartre et alii, Marxismo e existencialismo. Controvérsia sobre a
dialética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1966; G. Prestipino, Natura e società.
Roma: Riuniti, 1973; Giulio Giorello et alii, Attualità del materialismo dialettico.
Roma: Riuniti, 1974; N. Badaloni, Sulla dialettica della natura di Engels. Milano:
Feltrinelli, 1976; André Tosel, “Le matérialisme dialectique ‘entre’ les sciences de
la nature et la science de l’histoire”, in Vv. Aa., Le savoir philosophique. Paris: Les
Belles Lettres, 1978; S. Tagliagambe, “I rapporti tra scienza e filosofia in URSS”, in
L. Geymonat, ed., Storia del pensiero filosófico e scientifico. Milano: Garzanti, t. IX

151
M a r x e m P a r i s

(3), 1981; J. M. de Freitas Branco, Dialética, ciência e natureza. Lisboa: Caminho,


1989; L. Sève, org., Sciences et dialectiques de la nature. Paris: La Dispute, 1998 e
Georges Gastaud, “Sur la dialectique de la nature”. Etincelles. Liévin: Centre Lénine
de Culture Populaire, 2005.
150 Leia-se: “O homem é imediatamente ser da natureza. Como ser da natureza, e como
ser da natureza vivo, ele é, em parte, um ser da natureza ativo [estes itálicos são
meus – JPN ] equipado com forças naturais, com forças vitais: essas forças existem
nele como disposições e capacidades, como impulsos; em parte, como ser natural,
corpóreo, sensível, objetivo, ele é um ser que sofre, condicionado e limitado, tal como
o são o animal e a planta [...]”. E poucos parágrafos adiante: “O homem, porém, é
não apenas ser da natureza, mas ser da natureza humano” (cf., infra, as p. 375, 377).
151 É na tese I – a mais longa das Teses... – que Marx formula a sua crítica da incom-
preensão, por Feuerbach, da “atividade prático-crítica”, que o leva a conceber só
“a atividade teórica como verdadeiramente humana”. Mas o sentido da crítica
marxiana, que percorre todas as 11 assertivas, satura as teses 2, 3, 5, 8 e 9. Sobre as
Teses..., cf. o sintético, mas fundamental, estudo já citado de Labica (As “Teses...” de
Karl Marx) que reproduz tanto o texto original quanto o publicado postumamente
(em 1888) por Engels, anexado à edição do seu opúsculo Ludwig Feuerbach e o fim
da filosofia clássica alemã, que viera à luz anteriormente em Die Neue Zeit [Novo
tempo], n. 4-5, de 1886, revista da social-democracia alemã publicada em Stuttgart
entre 1883 e 1923.
Nunca será demasiado ressaltar a importância deste órgão teórico, criado por Karl
Kautsky e por ele dirigido até 1917, na publicidade do então constituído marxismo
– cf., p. ex., os textos de E. Ragioniere, “Alle origini del marxismo della Seconda
Internazionale. I. I primi anni della Neue Zeit”. Critica marxista. Roma, marzo-aprile
1966, E. Mandel, “Il y a cent ans, Die Neue Zeit”. Imprecor, 210, 06-janvier-1986,
G. Schimeyer in H.-D. Fischer, org., Deutsche Zeitschriften des 17. bis 20. Jahrhun-
derts. Pullach bei München: Verlag Dokumentation, 1973 e de T. S. Brandenburg
in E. Schöck-Quinteros et alii, org., Bürgerliche Gesellschaft. Idee und Wirklichkeit.
Festschrift für Manfred Hahn. Berlin: Steinberg, 2004.
152 Donde o elogio, no “Caderno III”, à hegeliana Fenomenologia do Espírito: “A grandeza
da Phänomenologie de Hegel e do seu resultado final – da dialética, da negatividade
como princípio motor e gerador – é […] que Hegel apreende a autogeração do ho-
mem como um processo […], apreende a essência do trabalho e concebe o homem
objetivo, verdadeiro, porque homem real, como resultado do seu próprio trabalho”
(cf., infra, a p. 369-370). No imediato seguimento desta frase, Marx refere-se ao
“ser genérico [do homem] como um ser genérico real, i. é, como essência humana”.
Recorde-se aqui uma notação crucial de Mészáros: “Ao examinarmos as opiniões
de Marx temos de lembrar que, quando ele emprega o termo ‘real’ (wirklich) ao
homem, ele o está equiparando a ‘histórico’ ou simplesmente deixando implícita a
historicidade como condição necessária do destino humano” (I. Mészáros, A teoria
da alienação em Marx, ed. cit., p. 100).
Mas, logo em seguida, Marx faz a sua reserva básica à identificação hegeliana de
objetivação/alienação: em Hegel, “ uma relação alienada do homem, uma relação
que não corresponde à essência humana [...]. Portanto, a reapropriação da essência
objetiva do homem gerada enquanto estranha, sob a determinação da alienação,
tem o significado não apenas de suprimir a alienação, mas também a objetividade,
i. é, portanto o homem passa por um ser não objetivo [...]” (cf., infra, a p. 371) –
voltaremos a este ponto. Veja-se ainda o item 3 do “Anexo I” (infra, p. 423). Mas,
desde já, considerem-se as palavras de Dal Pra: “Pode-se dizer [...] que o ponto de

152
J o s é P a u l o N e t t o

divergência entre o processo dialético hegeliano e o marxismo consiste em que


o primeiro, fundado na autoconsciência, identifica alienação com objetivação e,
portanto, faz coincidir a superação da alienação com a superação da objetivação,
ao passo que o segundo, fundado no homem real sensível vinculado aos objetos,
distingue a objetivação da alienação, que é um modo especial de manifestação da-
quela, e faz coincidir a superação da alienação com a superação do modo concreto e
desumanizado em que se expressa a relação entre o homem e os objetos [...]”; páginas
antes, o analista italiano já constatara que “a alienação se apresenta como um caso
particular de objetivação, já que não pode existir trabalho sem objetivação, mas
pode existir objetivação sem alienação” (Dal Pra, op. cit., p. e p..).
Relevante digressão pertinente às relações entre a tematização do trabalho em
Marx e no classicismo alemão (Hegel, Goethe) encontra-se em algumas páginas
de Néstor Kohan, Marx en su (Tercer) Mundo. Bogotá: Pensamiento Crítico, 2007,
esp. 187-242.
153 Veja-se a notação de Lukács: “O ser humano pertence ao mesmo tempo [...] à
natureza e à sociedade. Esse ser simultâneo foi mais claramente reconhecido por
Marx como processo, na medida em que diz, repetidas vezes, que o processo do
devir humano traz consigo um recuo das barreiras naturais. É importante enfatizar:
fala-se de um recuo, não de um desaparecimento das barreiras naturais, jamais sua
supressão total. De outro lado, porém, jamais se trata de uma constituição dualista
do ser humano. O homem nunca é, de um lado, essência humana, social, e, de
outro, pertencente à natureza; sua humanização, sua sociabilização, não significa
uma clivagem de seu ser em espírito (alma) e corpo. [...] Vê-se que também aquelas
funções do seu ser que permanecem sempre naturalmente fundadas, no curso do
desenvolvimento da humanidade, se sociabilizam cada vez mais. Basta pensar na
nutrição e na sexualidade, nas quais esse processo aparece de forma evidente” (G.
Lukács, Prolegômenos para uma ontologia do ser social, ed. cit., p. 41-42). Em resu-
midas contas, o processo do devir humano “faz recuar, com força cada vez maior na
atividade dos seres humanos, aqueles comportamentos surgidos do ser biológico,
impondo-lhes um comportamento sempre mais decisivamente determinado pela
sociedade” (idem, p. 316). A determinação social crescente da naturalidade do ho-
mem – que levou Lukács a mencionar, inclusive, uma “teoria marxiana do recuo
das barreiras naturais” (idem, ibidem) – é um dos eixos da concepção lukacsiana
de ontologia social, como se pode verificar em Para uma ontologia do ser social, ed.
cit., vol. II, esp. “A reprodução”, p. 159 e ss.
154 Ao contrário de leituras unilaterais, superficiais e/ou equivocadas, o pensamento
de Marx contém sólidos elementos de crítica a concepções meramente utilitárias
da relação sociedade/natureza (e, também, a produtivismos cegos, evidentes em
certo marxismo vulgar e em práticas conduzidas na experiência do “socialismo
real”) – aliás, ao mencionar uma sociedade liberada da propriedade privada,
Marx observa que, então, “a necessidade ou a fruição perder[á] [...] a sua natu-
reza egoísta e a natureza perde[rá] a sua mera utilidade (Nützlichkeit) na medida
em que a utilização (Nutzen) se tornou uma utilização (Nutzen) humana” (cf.,
infra, a p. 350).
Na verdade, e como o demonstrou, entre outros, Foster, em A ecologia de Marx, ed.
cit., Marx – ainda que, dada a sua contextualidade histórica, não tenha sido um
“ecologista” no sentido que a palavra porta nos dias correntes – possuía “uma forte
consciência ecológica”, o que é verificável não só nos Manuscritos (veja-se, p. ex., a
menção ao “envenenamento universal”, na nota 128, supra), mas em vários outros
passos da sua obra, antes e depois das suas reflexões neles registradas.

153
M a r x e m P a r i s

Há, na obra de Marx, elementos que contribuem decisivamente para fundar tanto
a crítica do nível a que chegou a liquidação da natureza pelo capitalismo contem-
porâneo (e não só este) quanto para projetar uma alternativa viável a ele; veja-se a
tese do caráter destrutivo da produção capitalista (que percorre toda a argumentação
de I. Mészáros, Para além do capital. São Paulo: Boitempo/Unicamp, 2002, mas cf.
esp. caps. 15 e 16) e o relevante trabalho de Joel Kovel, The Enemy of Nature. The
End of the Capitalism or the End of the World?. New York: Zed Books, 2002 – Kovel,
aliás, juntamente com M. Löwy, foi um dos inspiradores do Manifesto ecossocialista
internacional, divulgado por Capitalism, Nature, Socialism em seu n. 49, de março
de 2002; a um dos editores deste periódico norte-americano, James O’Connor,
deve-se o importante Natural Causes. Essays in Ecologycal Marxism. New York: The
Guilford Press, 1998. Cf. ainda R. Grundnann, Marxism and Ecology. Oxford:
Oxford University Press, 1991; o volume L’ écologie, ce matérialisme historique. Paris:
Actuel Marx/PUF, 1992; M. Löwy, Ecologia e socialismo. São Paulo: Cortez, 2005;
o texto “Existe um marxismo ecológico?”, de E. Altvater, recolhido em A. Borón
et alii, orgs., A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas. São Paulo: Expressão
Popular/Clacso, 2007; a intervenção de R. Vega Cantor, “Marx, a ecologia e discurso
ecológico”, in J. Nóvoa, org., Incontornável Marx. Salvador/São Paulo: EDUFBA-
-Unesp, 2007, bem como as contribuições de C. F. B. Loureiro, J. G. Pedrosa e
E. Trein in Carlos Frederico B. Loureiro, org., A questão ambiental no pensamento
crítico. Natureza, trabalho e educação. Rio de Janeiro: Quartet, 2007 e M. Empson,
Marxism, ecology and human history. London: Bookmarks, 2013.
155 Recorde-se que Feuerbach escrevera que “consciência no sentido rigoroso existe
somente quando, para um ser, é objeto o seu gênero [...]. De fato é o animal objeto
para si mesmo como indivíduo [...], mas não como gênero – por isso falta-lhe a
consciência [...]. Somente um ser para o qual o seu próprio gênero [...] torna-se objeto
pode ter por objeto outras coisas ou seres de acordo com a natureza essencial deles”
(A essência do cristianismo, ed. bras. cit. [1988], cap. I, p. 43).
156 Já vimos que, nas notas sobre James Mill, Marx escreveu que, supondo que “pro-
duzíssemos como seres humanos” , “meu trabalho seria uma livre manifestação de
vida, um gozo de vida”; em troca, “sob a propriedade privada, o trabalho é alienação
de vida, porque trabalho para viver, para conseguir um meio de viver. Meu trabalho
não é a minha vida” (cf., infra, as p. 221-222). Ele distingue, assim e como vimos,
trabalho como manifestação de vida [Lebensäusserung] e trabalho como alienação de
vida [Lebenssentäusserung] (cf. K. Marx-F. Engels, Ergänzungsband...(MEW ), ed.
cit., p. 463).
Parece-me não haver a menor dúvida de que é precisamente a propósito do “trabalho
lucrativo”, do trabalho típico do regime do salariato – em suma, a propósito do
trabalho alienado – que Marx, n’A ideologia alemã (cf., na ed. cit., p. 42), afirma
que “a revolução comunista [...] suprime o trabalho”. Comentando as passagens em
que Marx se refere à “abolição do trabalho”, Marcuse chama a atenção para o fato
de todas elas conterem “a palavra Aufhebung, do vocabulário hegeliano, de modo
que a abolição do trabalho significa que um conteúdo é restaurado na sua forma
verdadeira. [...] Ele usa o termo ‘trabalho’ para significar o que o capitalismo na
verdade entende que o trabalho, em última análise, signifique, ou seja, aquela ati-
vidade que cria a mais-valia na produção de mercadorias, ou que ‘produz capital’”
(H. Marcuse, Razão e revolução, ed. cit., p. 266).
Por outra parte, no seu magnífico estudo da alienação em Marx, Mészáros observa
que, nos Manuscritos, “o trabalho é considerado tanto em sua acepção geral – como
‘atividade produtiva’: a determinação ontológica fundamental da ‘humanidade’

154
J o s é P a u l o N e t t o

(‘menchliches Dasein’, isto é, o modo realmente humano de existência) – como em


sua acepção particular, na forma da ‘divisão do trabalho’ capitalista. É nesta última
forma – a atividade estruturada em moldes capitalistas – que o ‘trabalho’ é a base de
toda a alienação”. Ele argumenta que o ideal de uma superação (“transcendência posi-
tiva”) sócio-histórica da alienação “é formulado como uma superação sócio-histórica
necessária das ‘mediações’: propriedade privada-intercâmbio-divisão do trabalho que
se interpõem entre o homem e sua atividade e o impedem de se realizar em seu
trabalho, no exercício de suas capacidades produtivas (criativas) e na apropriação
humana dos produtos da sua atividade”. Mas deixa claro que se trata de suprimir
“mediações da mediação” (exatamente propriedade privada-intercâmbio-divisão do
trabalho) – ou o que ele chama de “mediação de segunda ordem”, porque a “media-
ção de primeira ordem”, isto é, a “auto-mediação ontologicamente fundamental ” (ou
seja: “a atividade produtiva como tal”) “é um fator ontológico absoluto da condição
humana” (para ele, obviamente, “o trabalho (atividade produtiva) é o único fator
absoluto em todo o complexo trabalho-divisão do trabalho-propriedade privada-
-intercâmbio”). E esclarece que, “para formular a questão de uma transcendência
positiva da alienação no mundo real, devemos compreender [...] que a forma dada
do trabalho (trabalho alienado) está relacionada com a atividade humana em geral
como o particular está para o universal. [...] Se a propriedade privada e o intercâmbio
forem considerados absolutos [...], então a divisão do trabalho, a forma capitalista da
atividade produtiva como trabalho assalariado, também surgirá como absoluta, pois
elas se implicam reciprocamente” (Mészáros, A teoria da alienação em Marx, ed. cit.,
p. 78-79; para a elucidação rigorosa das categorias singular/particular/universal, cf.
G. Lukács, Introdução a uma estética marxista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1970). Se não estou em erro, é neste livro que Mészáros formula, pela primeira vez,
esta distinção entre mediações de primeira e segunda ordens, que terá enorme peso
heurístico na sua obra maior (Para além do capital, ed. cit.); no já citado Os sentidos
do trabalho (cap. I), R. Antunes retoma com propriedade esta distinção.
Tanto no caso dos Cadernos quanto no dos Manuscritos, é sempre importante não
atribuir sem mais à nomenclatura marxiana neles utilizada o conteúdo que mais
tarde Marx lhe atribuiu – veja-se, no caso dos Manuscritos, o emprego de trabalho
abstrato (cf., infra, a p. 253), que então significa apenas “o trabalho unilateral e
dependente do operário, resultante da divisão do trabalho” (cf. N. Lápine, O jovem
Marx, ed. cit., nota à p. 245).
157 Especialmente, mas não exclusivamente: embora de forma não explícita, a identi-
ficação comparece no “Caderno II” (cf., infra, a p. 323).
158 Marx, porém, não vê no indivíduo isolado o sujeito do ser social: na sequência
imediata, Marx escreve (cf., infra, a p. 348) que “a morte aparece como uma dura
vitória do gênero sobre o indivíduo determinado e parece contradizer a sua [entre o
indivíduo e o gênero] unidade; mas o indivíduo determinado é apenas um ser genérico
determinado, como tal mortal” – vê-se, pois, que toda razão assiste a Márkus para
afirmar que “o portador, o sujeito do ‘ser humano’ não é, para Marx, o indivíduo
isolado, mas a própria sociedade humana, considerada na continuidade do seu
movimento histórico” (G. Márkus, Marxismo y ‘antropología’, ed. cit., p. 55). De
qualquer maneira, Marx nunca reduziu ou minimizou a consideração dos indivíduos,
desde que devidamente inscritos no marco societário; pouco depois dos Manuscritos,
ele anotou: “Os indivíduos partiram sempre de si mesmos, mas, naturalmente, de
si mesmos no interior de condições e relações históricas dadas, e não do indivíduo
‘puro’, no sentido dos ideólogos” (K. Marx-F. Engels, A ideologia alemã, ed. cit., p.
64).

155
M a r x e m P a r i s

159 Se, em 28 de dezembro de 1846, em carta a Annenkov, Marx afirma que “a socie-
dade, qualquer que seja a sua forma”, é “o produto da ação recíproca dos homens”
(cf. K. Marx-F. Engels, Werke, ed. cit., vol. 4, 1959, p. 548), já no calor da hora
revolucionária (início de abril de 1849), ele é muito mais preciso, valendo-se de
conquistas teóricas alcançadas n’A ideologia alemã (como a categoria de forças
produtivas): “[...] As relações sociais nas quais os indivíduos produzem, as relações
sociais de produção mudam, transformam-se com a transformação e desenvolvimento
dos meios materiais de produção, das forças produtivas. As relações de produção em sua
totalidade constituem o que chamamos de relações sociais, de sociedade, e na verdade
uma sociedade em um determinado nível de desenvolvimento histórico, uma sociedade
com caráter peculiar, distintivo. A sociedade antiga, a sociedade feudal, a sociedade
burguesa são tais totalidades de relações de produção, cada uma das quais designa
igualmente um nível específico de desenvolvimento na história da humanidade”
(cf. K. Marx, Nova Gazeta Renana, ed. cit., p. 542-543. Este texto, que retoma
conferências pronunciadas por Marx em 1847, em Bruxelas, foi depois coligido no
opúsculo Trabalho assalariado e capital – cf. K. Marx, Trabalho assalariado e capital
& Salário, preço e lucro. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 47).
Cerca de um decênio depois, Marx escreve que “a sociedade não consiste de
indivíduos, mas expressa a soma de vínculos, relações em que se encontram esses
indivíduos uns com os outros. [...] Ser escravo e ser cidadão são determinações,
relações sociais dos seres humanos A e B. O ser humano A enquanto tal não é
escravo. É escravo na e pela sociedade” (K. Marx, Grundrisse, ed. cit., p. 205). E,
na sua plena maturidade, no capítulo XLVIII do Livro III d’O capital, registra,
a propósito do “processo capitalista de produção” como “forma historicamente
determinada do processo social de produção em geral”, que este “é tanto um
processo de produção das condições materiais de existência da vida humana como
um processo que, operando-se em específicas relações histórico-econômicas de
produção, produz e reproduz estas mesmas relações de produção e, juntamente
com isto, os portadores deste processo, suas condições materiais de existência e
suas relações recíprocas, vale dizer, sua formação econômico-social determinada,
pois a totalidade destas relações com a natureza e entre si em que se encontram e em
que produzem os portadores desta produção, esta totalidade é justamente a sociedade,
considerada segundo a sua estrutura econômica” (K. Marx, El capital. México:
Siglo X XI, III, vol. 8, 1984, p. 1.042 [os itálicos são meus – JPN ]. Na edição
d’O capital, vertida por R. Sant’Anna, que venho citando, cf. o Livro III, vol. VI,
1974, p. 940). Sobre “formação econômico-social”, além do verbete (M. Godelier)
respectivo no citado Dictionnaire critique du marxisme, cf. as observações de H.
Lefebvre em seu livro O pensamento de Lenine. Lisboa: Moraes, 1969 [ed. orig.,
1957], E. Sereni et alii, La categoría formación económica y social. México: Roca,
1973 e C. Luporini, “Per l’interpretazione della categoria formazione economico-
-sociale”. Crítica marxista. Roma, XV, 3, 1977.
No quadro da sociologia acadêmica (e não só dela), a relação indivíduo/sociedade
(ou “grupo”, “comunidade” etc.) se pôs como problema consistente na prioridade,
precedência ou ponderação de um dos termos sobre o outro – foi assim desde Tar-
de e Durkheim, com suas distintas “soluções” (cf. G. Tarde, La logique sociale. Le
Plessis-Robinson: Institut Synthélabo, 1999 e As leis sociais. Niteroi: Ed. UFF, 2012
e E. Durkheim, esp. As regras do método sociológico. São Paulo: Cia. Ed. Nacional,
1972), culminando com o “esquema relacional” de Parsons (cf. Talcott Parsons,
The Social System. New York: The Free Press, 1959); igualmente pouco exitoso foi o
esforço, intencionalmente crítico, no marco da Psicologia Social, de Gerth e Mills

156
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(cf. H. Gerth e C. W. Mills, Caráter e estrutura social. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1973 [ed. orig., 1953]).
160 Além do que já se expôs, vimos que, “na elaboração do mundo objetivo” pelo
homem, “a natureza aparece como obra sua e sua realidade” (cf., infra, a p. 313);
mais adiante, no “Caderno III”, vê-se a que ponto, tornando-se e apreendendo-se
como “ser genérico, como homem”, “o comportamento natural do homem se tornou
humano, ou até que ponto a essência humana se tornou essência natural, até que
ponto a sua natureza humana se tornou para ele natureza” (cf., infra, a p. 343-344).
161 Filósofos iugoslavos – G. Petrovic, M. Markovic (deste, veja-se Dialéctica de la práxis.
Buenos Aires: Amorrortu, 1972) e P. Vranicki, entre outros –, que deram vida à
importante revista Práxis (1964-1974; cf. L. Bogdanic, Praxis. Storia di una rivista
eretica nella Jugoslavia di Tito. Roma: Aracne, 2010), foram os principais formula-
dores, nos anos 1960, da tese segundo a qual a obra marxiana constitui uma filosofia
da práxis; concepção semelhante emergiu também na América Latina, firmando-se
com a citada obra de Sánchez Vázquez, Filosofia da práxis [1ª. ed., 1967], que teve
grande ressonância; à mesma época, significativos marxistas europeus contribuíram
na renovação do debate em torno da práxis (p. ex., K. Kosik, Dialética do concreto,
ed. cit. [ed. orig., 1963]; H. Lefebvre, Metafilosofia. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1967 [ed. orig., 1965]); opondo-se a tal interpretação da obra marxiana,
em posições muito diversas, encontravam-se L. Althusser (veja-se, entre outros, o seu
ensaio “Do Capital à filosofia de Marx”, in Louis Althusser et alii, Ler O Capital, ed.
cit.) e Lucien Sève, que ainda recentemente (janeiro de 2011 – cf. a sua “introdução”
a K. Marx, Écrits philosophiques, ed. cit.; cf. a próxima nota, infra) insistia em não
caracterizar o pensamento marxiano como filosofia da práxis.
Há inúmeras indicações de que a categoria de práxis, expressiva de dimensões do que
Sánchez Vázquez designou por ativismo teórico do idealismo alemão (bem representa-
do, por exemplo, por Fichte, ao qual R. Garaudy – no já citado Karl Marx – atribui
sobre Marx uma influência reconhecidamente excessiva), foi trazida ao debate alemão
pós-hegeliano por A. Cieszkowski, que em 1838 publicou o seu Prolegomena zur His-
toriosophie [Prolegômenos para uma historiosofia]. Mas não há nenhuma comprovação
de que, em relação a este autor, possa se registrar qualquer débito direto de Marx.
Se se busca um pensador pós-hegeliano que tenha contribuído para o cuidado de
Marx para com a práxis, o nome a se referir, sem dúvidas, é o de Moses Hess (como
o demonstram, persuasivamente, várias das fontes até aqui referenciadas).
Quanto à peculiar e problemática posição de Gramsci, um dos primeiros marxistas a
empregar a expressão filosofia da práxis (na Itália, ela já comparece no “Discorrendo
di socialismo e di filosofia” [1898] de A. Labriola – cf. Antonio Labriola, Saggi sul
materialismo storico. Roma: Riuniti, 2000, p. 238), cf. Karel Kosik: “Gramsci e la
filosofia della praxis”, in P. Rossi, org., Gramsci e la cultura contemporanea. Roma:
Riuniti, I, 1969; o ensaio de N. Badaloni coligido em E. J. Hobsbawm, org., História
do marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, vol. X, 1987; os textos de W. F. Haug, A.
Tosel, R. Zanghieri e R. Finelli in Giorgio Baratta e Guido Liguori, orgs., Gramsci
da um secolo all’altro. Roma: Riuniti, 1999; Carlos Nelson Coutinho, Gramsci. Um
estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999; o
texto de W. F. Haug recolhido em G. Petronio e M. P. Musitelli, orgs., Gramsci:
memoria e attualità. Roma: Manifestolibri, 2001; o contributo de Mark Rupert
in Stephen Gill, org., Gramsci, materialismo histórico e relações internacionais. Rio
de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2007 e o verbete filosofia della praxis (R. Dainotto) em
Guido Liguori e Pasquale Voza, orgs., Dizionario Gramsciano. 1926-1937. Roma:
Carocci, 2009.

157
M a r x e m P a r i s

162 Observe-se que, nas Teses sobre Feuerbach, Praxis comparece nas teses 1, 2, 3 e 8 e
Tätigkeit nas teses 1, 3, 5 e 9 (cf. o original alemão reproduzido in Labica, As “Teses
sobre Feuerbach” de Kark Marx, ed. cit., p. 21-25). Na edição brasileira citada do
texto marxiano (cf. K. Marx-F. Engels, A ideologia alemã, p. 533-535), a solução
dos tradutores (R. Enderle, N. Schneider e L. C. Martorano) foi, respectivamente,
prática e atividade – solução que me parece adequada.
Coerente com as análises que vem desenvolvendo há quatro décadas, na “introdução”
já citada a K. Marx, Écrits philosophiques, Lucien Sève afirma (p. 83), “contra toda
uma tradição”, que “o pensamento marxiano não é uma filosofia da Praxis, mas
um materialismo da Tätigkeit”.
163 Eis, literalmente, a afirmação lukacsiana: “julgamos correto ver no trabalho o modelo
de toda práxis social, de qualquer conduta social ativa” – cf. G. Lukács, Para uma
ontologia do ser social, ed. cit., II, p. 83; neste capítulo (“O trabalho”) da segunda
parte da obra, a segunda seção (“O trabalho como modelo da práxis social”, p. 82-
126) fundamenta exaustivamente aquela afirmação.
A determinação do caráter inclusivo da práxis – que desborda para além do trabalho,
envolvendo a arte, a ciência e outras objetivações humanas – está posta nas obras
do “último” Lukács. Mas pensadores marxistas que não se inscrevem na órbita de
Lukács também esclarecem esta problemática, alguns desenvolvendo, inclusive,
interessantes tipologias da práxis (cf., p. ex., o já citado trabalho de Sánchez Vázquez,
Filosofia da práxis).
164 Conforme a correta análise de Márkus, em Marx natureza humana [menschliche
Natur] não é sinônimo de essência humana [menschliches Wesen]. Enquanto esta
diz respeito ao “ser do homem” – e a ela voltaremos adiante –, aquela designa “a
totalidade das necessidades, as capacidades, as propriedades em geral, entendidas
no sentido de suas possibilidades humanas, que têm os indivíduos típicos das vá-
rias épocas históricas”; ela é “historicamente mutável, mesmo que contenha certos
elementos constantes” (G. Márkus, Marxismo y “antropología”, ed. cit., p. 76-77).
A mutabilidade histórica da natureza humana é expressamente afirmada por Marx
em 1847: “[...] toda a história não é mais que uma transformação contínua da na-
tureza humana” (cf. K. Marx, Miséria da filosofia, ed. cit., p. 163); tem razão, pois,
Mészáros quando observa que Marx “não aceita algo como uma natureza humana
fixa” e que, por isto mesmo, realiza a sua crítica da Economia Política “com uma
abordagem [...] baseada numa concepção de natureza humana radicalmente oposta”
à dos economistas políticos (I. Mészáros, A teoria da alienação em Marx, ed. cit., p.
137) – já antes, tratando da “ambiguidade terminológica” verificável nos Manuscritos,
Mészáros se referira à essência humana: Marx teria rejeitado “categoricamente a ideia
de uma ‘essência humana’. No entanto, ele manteve a expressão transformando o seu
significado original até torná-la irreconhecível ” (idem, ibidem, p. 19 – itálicos meus
[ JPN ]).
Tais categorias, como o leitor verificará nos textos marxianos que estão coligidos
neste volume, comparecem tanto nos Cadernos quanto nos Manuscritos – para o
seu cotejo com os originais, cf., na fonte citada supra na nota 9 (1977), as p. 451,
460, 462, 517, 531, 535-536, 540 e 542. E apesar das ironias de Marx em relação
aos conceitos empregados pelos “filósofos”, de fato filósofos idealistas e/ou especu-
lativos ou “materialistas puros” – seja n’A sagrada família..., seja n’A ideologia alemã
–, ele nunca as abandonou inteiramente: registra-se, p. ex., a presença de “natureza
humana” na Miséria da filosofia (cf. a citação do primeiro parágrafo desta nota), n’O
capital (ed. cit., trad. de Sant’anna, I, vol. 2, p. 708; III, vol. 6, p. 943) e nas Teorias
da mais-valia (ed. cit., II, p. 549); quanto à “essência humana”, a concepção que se

158
J o s é P a u l o N e t t o

formula nos Manuscritos conservar-se-á, concretizada e enriquecida, ao longo da


obra marxiana – como afirmou Heller, trata-se de concepção “que se mantém no
período da maturidade [de Marx]” (A. Heller, O cotidiano e a história, ed. cit., p.
4).
No interior da tradição marxista, as categorias em questão têm constituído o
objeto de infindáveis e, às vezes, ásperas polêmicas – que podem ser detectadas
quando se comparam, p. ex., os verbetes alienação (Gajo Petrovic) e natureza
humana (Mihailo Marcovic), do dicionário editado por Bottomore, com os
verbetes aliénation (Georges Labica) e homme (Gérard Bensussan), do dicionário
dirigido por Labica-Bensussan, ambos os léxicos já citados. Além de títulos
anteriormente referidos e da bibliografia oferecida nos verbetes mencionados,
elementos substantivos dessas categorias (e da polêmica em torno delas) podem
ser colhidos em: Vernon Venable, Human Nature: The Marxian View. Cleveland:
Meridien Books, 1966; C. I. Gouliane, Le marxisme devant l’ homme. Essai
d’anthropologie philosophique. Paris: Payot, 1968; Galvano Della Volpe, Teoria
marxista dell’emancipazione umana. Roma: Riuniti, 1974; Agnes Heller, Sociologia
della vita quotidiana, ed. cit.; Lucien Sève, O marxismo e a teoria da personalidade.
Lisboa: Horizonte, I-II-III, 1979 [ed. orig., 1974] e Penser avec Marx aujourd’ hui.
II.“L’ homme?”. Paris: La Dispute, 2008; John Plamenatz, Karl Marx’s Philosophy of
Man. Oxford: Clarendon Press,1975; I. Roguinski et alii, La concepción marxista
del hombre. Madrid: Akal, 1978; I. S. Kulikova-V. V. Mshvenieradze, comps.,
The Philosophical Conception of Man. Moscow: Progress Publishers, 1988; Sean
Sayers, Marxism and Human Nature. London: Routledge, 1998; Yvon Quiniou,
L’ homme selon Marx. Paris: Kimé, 2011; Mehmet Tabak, Dialectics of Human
Nature in Marx’s Philosophy. New York: Palgrave Macmillan, 2012.
Quanto ao próprio Marx, nas Teses sobre Feuerbach, referindo-se à essência humana,
dirá que ela “não é uma abstração intrínseca ao indivíduo isolado. Em sua realidade,
ela é o conjunto das relações sociais” (K. Marx-F. Engels, A ideologia alemã, ed. cit.,
p. 534 [itálicos meus – JPN ]). Recorde-se que precisamente a tradução desta tese (a
VI) desatou uma polêmica em que se envolveram, nos anos 1971-1972, nas páginas
da revista L’Homme et la Société (Paris: Anthropos), Adam Schaff e Lucien Sève (cf.,
aos cuidados de Augusto Ponzio, A. Schaff-L. Sève, Marxismo e umanesino. Bari:
Dedalo, 1975), na sequência do “debate sobre o humanismo marxista” – acerca do
qual vale consultar o texto de 1967, publicado postumamente, de L. Althusser, “A
querela do humanismo”. Crítica Marxista. São Paulo, n. 9, 1999; de algum modo,
a “querela” se prolongou até 1972, ano em que, na sequência de críticas de J. Lewis,
publicadas em Marxism Today, revista do PC inglês, Althusser replicou a elas através
do mesmo órgão teórico (réplica disponível em Louis Althusser, Resposta a John
Lewis. Lisboa: Estampa, 1973). Cumpre notar que o tema do humanismo ganhou
relevância na tradição marxista especialmente com a divulgação dos escritos do
“jovem” Marx; o tema comparece em parte significativa da bibliografia citada até
aqui, mas ainda podem ser arrolados muitos outros títulos – p. ex.: R. Garaudy,
Humanisme marxiste. Paris: Ed. Sociales, 1957; J. D. García-Bacca, Humanismo
teórico, práctico y positivo según Marx. México: Fondo de Cultura Económica, 1965;
Hector Agosti, Condições atuais do humanismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970;
Erich Fromm, org., Humanismo socialista. Lisboa: Ed. 70, 1976; R. Gómez Perez,
El humanismo marxista. Madrid: Rialp, 1978; R. Geerlandt, Garaudy et Althusser:
le débat sur l’ humanisme dans le Parti communiste français et son enjeu. Paris: PUF,
1978; E. Grassi, Humanisme et marxisme. Lausanne: L’Age d’Homme, 1978; L.
Silva, Humanismo clásico y humanismo marxista. Caracas: Monte Ávila, 1982; A.

159
M a r x e m P a r i s

Schaff, La questione dell’umanesimo marxista. Bari: Dedalo, 1993 e o cap. III de J.


Barata-Moura, Materialismo e subjectividade, ed. cit.
Voltemos a Marx. É n’A ideologia alemã que se registram os primeiros passos
mais concretos para a determinação histórica do ser do homem (ser social) que os
Manuscritos referem. Nestas reflexões de 1845-1846, são inúmeras as passagens
em que o pensamento marxiano, relativamente ao ser social, avança no sentido
da sua concretização – cf., p. ex., o fragmento “Feuerbach e história” (K. Marx-F.
Engels, A ideologia alemã, ed. cit., p. 29-78) – e eis uma das mais carregadas de
implicações: “Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias e
assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um
determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a
ele corresponde [...]. A consciência [Bewusstsein] não pode jamais ser outra coisa
do que o ser consciente [bewusst Sein], e o ser dos homens é o seu processo de vida
real. [...] Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a
consciência” (Idem, ibidem, p. 94 [itálicos meus – JPN ]). Note-se que é n’A ideologia
alemã que Marx (e Engels) discute(m) a problemática da consciência em reflexão
fundada de que carecem os Manuscritos, assentando a sua relação com o trabalho,
com a “necessidade de intercâmbio” entre os homens (donde a sua conexão com a
linguagem articulada, “que é a consciência real”), e afirmando que “desde o início
[...] a consciência já é um produto social e continuará sendo enquanto existirem
homens” (Idem, ibidem, p. 34-35).
Somente no curso de mais de uma década de estudos (e, não se esqueça, de experiên­
cias prático-políticas) é que Marx chegará a uma fundamentação rigorosamente
histórica, embasada na crítica da Economia Política, da sua concepção de ser
social, alcançando, ademais, a plena determinação, nos Grundrisse, da categoria de
indivíduo social – para além de vários títulos já citados (esp. L. Sève, O marxismo e
a teoria da personalidade e A. Heller, Sociologia della vita quotidiana), cf. Marilda
V. Iamamoto, Trabalho e indivíduo social. São Paulo: Cortez, 2001, cap. 1.
165 O brilhante ensaio (Marxismo y ‘antropología’, ed. cit.; dele, na carta de Lukács a que
abaixo me referirei, o filósofo diz ser o “primeiro ensaio marxista de interpretação
dos conceitos-chave da ontologia marxiana e da antropologia que lhe é inseparável”)
em que Márkus analisa a concepção marxiana do ser do homem, determinando com
rigor e trazendo à luz a compreensão de Marx da essência humana, foi originalmente
publicado em húngaro em 1966; à tradução castelhana (1974) seguiu-se a inglesa
(1978) que, revisada, teve recente reedição, com notas introdutórias de A. Hon-
neth e H. Joas (Marxism and Anthropology: The Concept of ‘Human Essence’ in the
Philosophy of Marx. Vaucluse: Modem Verlag, 2014). Intelectual próximo a Lukács
na segunda metade da década de 1960, participou do que foi, até inícios dos anos
1970, a chamada “escola de Budapeste” (respondeu, inclusive, pela edição póstu-
ma de um importante manuscrito da juventude do filósofo – G. Lukács, Filosofia
dell’arte/Estetica di Heidelberg. Milano: Sugar, I-II, 1973-1974), Márkus desfruta de
considerável prestígio internacional (cf. John E. Grumley et alii, eds., Culture and
Enlightenment. Essays for György Márkus. Aldershot: Ashgate, 2002). Na citação de
Lukács feita acima, os itálicos não são originais – são de minha responsabilidade,
apenas para enfatizar que uma “antropologia” de Marx, para Lukács, implica a sua
ontologia (cf. a resposta à indagação de Kofler, in H.H. Holz et alii, Conversando
com Lukács, ed. cit., p. 75-77).
Lukács, ao que sei, foi o primeiro a mencionar a “escola de Budapeste”, numa carta
datada de 15 de fevereiro de 1971 (recorde-se que o filósofo faleceria pouco depois, a
4 de junho) e publicada no Times Literary Suplement de 11 de junho do mesmo ano.

160
J o s é P a u l o N e t t o

Na missiva, apresentando a “escola”, Lukács destacava a produtividade de Agnes


Heller e mencionava os trabalhos de Márkus, Ferenc Feher (de quem se traduziu
entre nós o ensaio O romance está morrendo?. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972) e
Mihaly Vajda. Nos anos seguintes, outros estudiosos, nas suas considerações sobre
a “escola”, alargaram o rol dos seus componentes – citando A. Hegedus, Maria
Márkus, G. Bence, Janos Kis et alii –, frequentemente ditos “discípulos” ou “alu-
nos” de Lukács (embora este só reconhecesse como seus “alunos”, “desde o início”,
apenas a A. Heller e F. Feher – cf. G. Lukács, Pensamento vivido. Autobiografia em
diálogo. São Paulo/Viçosa: Ad Hominem/Ed. da UFV, 1999, p. 144).
Nas referências à “escola de Budapeste” há muito material acrítico – em geral de
louvação da sua figura mais notória, A. Heller – e raras notas equilibradas (como
as de T. Szabó, György Lukács. Filosofo autonomo. Napoli: La Città del Sole, 2005,
p. 225-238); cf. Les Temps Modernes. Paris, nºs. 337-338, agosto-setembro de 1974;
Aut Aut. Firenze, nºs. 157-158, jan.-abril de 1977; o prefácio de J.-M. Palmier a A.
Heller, La théorie des besoins chez Marx, ed. cit.; Douglas Brown, Towards a radical
democracy: the political economy of the Budapest School. London: Unwin Hyman,
1988; o item 7 da contribuição de J. P. Arnason a E. J. Hobsbawm, org., História do
marxismo, ed. cit., vol. XI, 1989; o cap. 2 de J. H. Satterwhite, Varieties of Marxist
Humanism. Philosophical Revision in Postwar Eastern Europe. Pittsburgh: Pittsburgh
University Press, 1992; o ensaio de P. Despoix in John Burnheim, ed., The Social
Philosophy of Agnes Heller. Amsterdam: Rodopi, 1994 e os pertinentes contributos de
S. Naïr e A. Tosel, respectivamente, aos citados Dictionnaire Critique du Marxisme
e Dictionnaire Marx Contemporain.
166 A. Heller, O cotidiano e a história, ed. cit., p. 2 e 4.
É interessante anotar que Sánchez Vázquez, em El joven Marx... (no qual não há
menção a Márkus ou a Heller) arrola como “traços ou determinações do homem: a)
a consciência (o homem é um ser consciente); b) o trabalho (como atividade vital); c)
a socialidade (o homem é sempre um ser social); d) a universalidade (o homem é um
ser universal na medida em que faz de toda a natureza seu corpo); e) a liberdade (na
medida em que pode enfrentar-se livremente com sua necessidade e seus produtos); f)
a totalidade (o homem é um ser total na medida em que realiza a ideia de totalidade
e na medida em que, como indivíduo, desenvolve todas as suas potencialidades”. E
acrescenta que, a rigor, “estas determinações não se apresentam isoladas, mas sim
em estreita unidade” (Sánchez Vázquez, El joven Marx..., ed. cit., p. 243).
167 Como se pode verificar, por exemplo, nos rascunhos e anotações (novembro de
1845/abril de 1846) – cf. K. Marx-F. Engels, A ideologia alemã, ed. cit., p. 29-78.
Observe-se como comparece aí a divisão do trabalho e seu papel decisivo na fixação da
“atividade social”, fazendo com que “o poder social” apareça aos indivíduos “como
uma potência estranha, situada fora deles” (p. 38); como “o modo de produção
desenvolvido”, rompendo o “isolamento primitivo das nacionalidades singulares”,
constitui o mercado mundial, instaura uma história que é plenamente história
mundial (idem). Noutro passo (de redação provavelmente posterior), Marx – com
Engels – assinala as relações entre a divisão do trabalho e as formas de propriedade,
procurando determinações históricas destas últimas (p. 89-92).
168 É nos Grundrisse que Marx apreendeu os fundamentos econômico-políticos e
históricos da dialética da alienação: “No valor de troca, a conexão social entre as
pessoas é transformada em um comportamento social das coisas; o poder [Vermögen]
pessoal, em poder coisificado. Quanto menos força social possui o meio de troca,
quanto mais está ainda ligado à natureza do produto imediato do trabalho e às
necessidades imediatas dos trocadores, maior deve ser a força da comunidade que

161
M a r x e m P a r i s

liga os indivíduos uns aos outros, relação patriarcal, comunidade antiga, feudalismo
e sistema corporativo. [...] Cada indivíduo possui o poder social sob a forma de
uma coisa. Retire da coisa esse poder social e terá de dar tal poder a pessoas sobre
pessoas. Relações de dependência pessoal [...] são as primeiras formas sociais nas quais a
produtividade humana se desenvolve de maneira limitada e em pontos isolados [itálicos
meus – JPN ]. Independência pessoal fundada sobre uma dependência coisal [daqui
em diante, os itálicos são meus – JPN ] é a segunda grande forma na qual se constitui
pela primeira vez um sistema de metabolismo social universal, de relações universais,
de necessidades múltiplas e de capacidades universais. A livre individualidade fundada
sobre o desenvolvimento universal dos indivíduos e a subordinação de sua propriedade
coletiva, social, como seu poder social, é o terceiro estágio. O segundo estágio cria as
condições do terceiro (K. Marx, Grundrisse, ed. cit., p. 105-106). Para Marx, mais
adiante e entre parênteses, a “conexão coisificada” entre os indivíduos (a “segunda
forma”) “é certamente preferível à sua desconexão, ou a uma conexão local baseada
unicamente na estreiteza da consanguinidade natural ou nas [relações] de dominação
e servidão. É igualmente certo que os indivíduos não podem subordinar suas pró-
prias conexões sociais antes de tê-las criado. Porém, é absurdo conceber tal conexão
puramente coisificada como a conexão natural e espontânea, inseparável da natureza
da individualidade [...] e a ela imanente. A conexão é um produto dos indivíduos. É
um produto histórico. Faz parte de uma determinada fase de seu desenvolvimento.
A condição estranhada [Fremdartigkeit] e a autonomia com que ainda existe frente
aos indivíduos demonstram somente que estes estão ainda no processo de criação
das condições de sua vida social, em lugar de terem começado a vida social a partir
dessas condições. É a conexão natural e espontânea de indivíduos em meio a relações
de produção determinadas, estreitas. [Daqui em diante, os itálicos são meus, salvo
em “essa”, na segunda frase abaixo – JPN ] Os indivíduos universalmente desenvol-
vidos, cujas relações sociais, como relações próprias e comunitárias, estão igualmente
submetidas ao seu próprio controle comunitário, não são um produto da natureza, mas
da história. O grau e a universalidade do desenvolvimento das capacidades em que essa
individualidade se torna possível pressupõem justamente a produção sobre a base dos
valores de troca, que, com a universalidade do estranhamento do indivíduo de si e dos
outros, primeiro produz a universalidade e multilateralidade de suas relações e habi-
lidades. Em estágios anteriores de desenvolvimento, o indivíduo singular aparece
mais completo precisamente porque não elaborou ainda a plenitude de suas relações
e não as pôs diante de si como poderes e relações sociais independentes dele. É tão
ridículo ter nostalgia daquela plenitude original – da mesma forma, é ridícula a
crença de que é preciso permanecer naquele completo esvaziamento. O ponto de
vista burguês jamais foi além da oposição a tal visão romântica e, por isso, como
legítima antítese, a visão romântica o acompanhará até seu bem-aventurado fim”
(idem, ibidem, p. 109-110; note-se a relação entre “o ponto de vista burguês” e a
“visão romântica”).
Passemos a palavra ao Marx dos anos 1860: “Com razão para seu tempo, Ricardo
considera o modo capitalista de produção o mais vantajoso para a produção em
geral, o mais vantajoso para a geração da riqueza. Quer a produção pela produção,
e está certo. [...] A produção pela produção significa apenas desenvolvimento
das forças produtivas humanas, ou seja, desenvolvimento da riqueza da natureza
humana como fim em si. Opor a essa finalidade [como fazem os românticos e os
críticos sentimentais de Ricardo, como Sismondi] o bem do indivíduo é afirmar
que o desenvolvimento da espécie tem de ser detido [...]. Deixa-se de compreen-
der que esse desenvolvimento das aptidões da espécie humana, embora se faça de

162
J o s é P a u l o N e t t o

início às custas da maioria dos indivíduos e de classes inteiras, por fim rompe esse
antagonismo e coincide com o desenvolvimento do indivíduo isolado; que assim
o desenvolvimento mais alto da individualidade só se conquista por meio de um
processo histórico em que os indivíduos são sacrificados [...]” (K. Marx, Teorias
da mais-valia, ed. cit., vol. II, p. 549). Se a alienação implica uma defasagem entre
o nível de desenvolvimento do gênero e o do indivíduo (cf. a citação de Heller
no quinto parágrafo da nota 144, supra), estas linhas do Marx que já avançou,
desde os Grundrisse, até a determinação histórico-concreta da alienação deixam
claro a historicidade do fenômeno em que ela consiste e as condições (também
histórico-concretas) da sua ultrapassagem.
169 Recordemos as exatas palavras de Marx, resumindo – no parágrafo inicial de
“Trabalho alienado e propriedade privada” – a argumentação expendida nas pági-
nas anteriores do “Caderno I”: “Partimos dos pressupostos da economia nacional.
Aceitamos a sua linguagem e as suas leis. Supusemos a propriedade privada, a se-
paração de trabalho, capital e terra, igualmente de salário, lucro do capital e renda
fundiária, bem como a divisão do trabalho, a concorrência, o conceito de valor de
troca etc. A partir da própria economia nacional, com as suas próprias palavras,
mostramos que o trabalhador decai em mercadoria e na mais miserável mercadoria,
que a miséria do trabalhador está na relação inversa do poder e da magnitude da
sua produção, que o resultado necessário da concorrência é a acumulação do capital
em poucas mãos, portanto, o mais terrível restabelecimento do monopólio, que,
finalmente, a diferença de capitalista e arrendador fundiário [Grundrentner], tal
como a de agricultor e trabalhador manufatureiro desaparece, e toda a sociedade
tem de dividir-se nas duas classes dos proprietários e dos trabalhadores desprovidos
de propriedade.” (cf., infra, a p. 302-303; cf., supra, a nota 142).
É importante notar que, num complemento ao “Caderno II” (no qual Marx, questio-
nando a relação da fisiocracia – a que aludiremos adiante – com a indústria, já observa
que “o capital industrial é a figura objetiva explicitada (vollendete) da propriedade
privada” – cf., infra, a p. 340), Marx registrou que “a oposição (Gegensatz) de sem
propriedade e propriedade é ainda indiferente, não apreendida na sua ligação ativa,
na sua relação interna, ainda não como contradição (Widerspruch), enquanto não
for concebida como a oposição do trabalho e do capital.” (cf., infra, as p. 340-341).
170 Neste mesmo passo e linhas antes desta afirmação, Marx escreveu: “Uma elevação
violenta do salário [...] nada seria, portanto, senão um melhor assalariamento do
escravo e [daqui ao fim desta frase, os itálicos são meus – JPN ] não teria conquista-
do para o operário nem para o trabalho a sua determinação e dignidade humanas. A
própria igualdade dos salários, como Proudhon exige, apenas transforma a relação
do operário de hoje com seu trabalho na relação de todos os homens com o traba-
lho” – vê-se: bem antes de sua demolidora crítica a Proudhon (Miséria da filosofia,
1847; a obra de Proudhon criticada por Marx está vertida ao português: Sistema
das contradições econômicas ou Filosofia da miséria. São Paulo: Ícone, 2003), Marx
já apreende os limites do seu programa de reforma social. Lembre-se que, mais de
20 anos depois, na sua discussão (“Salário, preço e lucro”,1865) com o operário
John Weston, Marx diria que a classe operária, “em vez deste lema conservador: ‘Um
salário justo para uma jornada de trabalho justa!’, deverá inscrever na sua bandeira
esta divisa revolucionária: ‘Abolição do sistema de trabalho assalariado!’” (K. Marx,
Trabalho assalariado & Salário, preço e lucro, ed. cit., p. 142).
171 Nos “fragmentos” que tratam da divisão do trabalho, no Caderno III, linhas antes
de lembrar “que a divisão do trabalho e a troca repousam sobre a propriedade pri-
vada”, Marx escreveu: “A consideração da divisão do trabalho e da troca é do maior

163
M a r x e m P a r i s

interesse, porque são as expressões perceptivelmente exteriorizadas da força essencial e


atividade humanas [...]” (cf., infra, a p. 413).
Os Manuscritos não oferecem um detido tratamento histórico da divisão do trabalho,
e o mesmo se pode dizer d’A sagrada família. Há aproximações a tal tratamento
n’A ideologia alemã; na Miséria da filosofia Marx faz uma primeira exposição dele,
desenvolvendo-o nos Grundrisse, no Manuscrito de 1861-1863 e n’O capital. Exis-
tem indicações de que, entre os Manuscritos e A ideologia alemã, Marx consolidou
a relevância que atribuía à divisão do trabalho em face da alienação já recorrendo a
uma categoria ( forças produtivas) claramente historicizante que será explorada em
1845/1846 – num fragmento do período (Aus I. Feuerbach), Marx indaga como as
forças vitais dos homens podem se colocar tão firmemente contra eles e responde:
“Em poucas palavras: pela divisão do trabalho, cujo nível depende do desenvolvimento
das forças produtivas” (cf. K. Marx-F. Engels, MEW, ed. cit., vol. 3, 1959, p. 540
[itálicos meus – JPN ]. Cf., na ed. cit. d’A ideologia alemã, a p. 78).
172 Aliás, já na abertura do “Caderno I”, a mercantilização do trabalhador fora posta
de manifesto: “A demanda [Nachfrage] de homens regula necessariamente a produção
de homens como de qualquer outra mercadoria. Se a oferta [Zufuhr] for muito maior
do que a demanda, então uma parte dos trabalhadores cai na situação de miséria
ou na morte pela fome. A existência do trabalhador é, portanto, reduzida à con-
dição da existência de qualquer outra mercadoria. O trabalhador tornou-se uma
mercadoria e é uma sorte para ele quando consegue encontrar quem o compre.”
(cf., infra, as p. 244-245).
173 Lê-se no “Caderno I”: “Tal como encontramos por análise o conceito de proprieda-
de privada a partir do conceito do trabalho alienado, exteriorizado, assim todas as
categorias nacional-econômicas podem ser desenvolvidas com a ajuda desses dois
fatores, e reencontraremos em cada categoria, p. ex., a mesquinharia (Schacher), a
concorrência, o capital, o dinheiro, apenas uma expressão determinada e desenvolvida
dessas primeiras bases.” (cf., infra, a p. 319).
A categoria propriedade privada desempenha papel tão central na teoria da alienação
de Marx que um analista insiste em que ela está presente em todas as formulações
marxianas sobre o tema (cf. Israel, op. cit., p. 346).
174 Diz Marx: “O homem faz a sua própria atividade vital objeto da sua vontade e da
sua consciência. Tem atividade vital consciente. [...] Precisamente apenas por isto
ele é um ser genérico. Ou ele só é um ser consciente, i. é, a sua própria vida é para
ele objeto, precisamente porque ele é um ser genérico. Só por isso a sua atividade
é atividade livre. O trabalho alienado inverte essa relação até que o homem, pre-
cisamente porque é um ser consciente, faz da sua atividade vital, da sua essência,
apenas um meio para a sua existência.” (cf., infra, p. 312). Assim, com alguma razão,
Fromm escreveu que o conceito marxiano de alienação baseou-se “na distinção
entre existência e essência, no fato de a existência do homem ficar alheiada de sua
essência, de na realidade ele não ser o que é potencialmente, ou, por outras palavras,
de ele não ser o que deveria ser e de ele dever ser aquilo que poderia ser” (E. Fromm,
Conceito marxista do homem, ed. cit., p. 53).
175 Já vimos a notação dos Cadernos: “Ora, é sob a forma do intercâmbio e do comércio
que a Economia Política concebe a comunidade dos homens [...]. [...] A sociedade,
diz Adam Smith, é uma sociedade de atividades comerciais; cada um de seus mem-
bros é um comerciante. [...] Vê-se como a Economia Política fixa a forma alienada
das relações sociais como o modo essencial e original do intercâmbio humano e o
considera como adequado à vocação humana. [...] O homem é pressuposto como
proprietário privado, ou seja, como possuidor exclusivo que afirma a sua personalida-

164
J o s é P a u l o N e t t o

de, que se diferencia dos outros e se relaciona com eles através dessa posse exclusiva:
a propriedade privada é o seu modo de existência pessoal, distintivo – logo, a sua
vida essencial” (cf., infra, a p. 209).
176 Voltaremos ao “movimento da propriedade privada” – por agora, cabe completar
dizendo que só atingido o ponto a que aqui se refere Marx “a propriedade privada
pode explicitar (vollenden) a sua dominação sobre o homem e tornar-se, em sua forma
mais universal, um poder histórico-mundial” (cf., infra, a p. 340 [itálicos meus – JPN ]).
177 Quando agora alguma passagem aparecer entre aspas e sem indicação de fonte é
porque se trata de texto marxiano já transcrito anteriormente.
178 Para Marx, “A economia nacional [Economia Política] vela (verbirgt) a alienação
na essência do trabalho por não considerar a relação imediata entre o trabalhador,
(o trabalho) e a produção. [...] Mas a alienação mostra-se não só no resultado, mas
também no ato da produção, no interior da própria atividade produtiva.” (cf., infra,
a p. 308 ).Como anotam dois comentaristas: “A alienação no produto remete ou
pressupõe necessariamente a alienação da atividade de que resulta o produto”
(Sánchez Vázquez, El joven Marx..., ed. cit., p. 90); “Se o produto do trabalho é a
alienação, a própria produção deve ser a alienação em ato, a alienação da atividade”
(N. Lápine, O jovem Marx, ed. cit., p. 256).
179 Donde a desumanização do (homem) operário: “Chega-se assim ao resultado de que
o homem (o trabalhador) já só se sente livremente ativo nas suas funções animais –
comer, beber e procriar, quando muito ainda habitação, adorno etc. –, e já só como
animal nas suas funções humanas. O animal torna-se o humano e, o humano, o
animal.” (cf., infra, a p. 309).
180 Se, nos Manuscritos, como já se mencionou, há ainda hipotecas da antropologia de
Feuerbach, não me parece que o substrato desta afirmação marxiana tenha algo a
ver com o materialismo feuerbachiano ou, menos ainda, com laivos idealistas – no
primeiro semestre de 1844, Marx já é conscientemente materialista. Mas, de fato, os
problemas contidos na noção de sensibilidade de Feuerbach (de que Marx, também
como vimos, já se distingue com a notação do homem como ser da natureza ativo)
são definitivamente resolvidos em 1845-1846; veja-se, por exemplo, a seguinte pas-
sagem: Feuerbach “não vê como o mundo sensível que o rodeia não é uma coisa dada
imediatamente por toda a eternidade e sempre igual a si mesma, mas o produto da
indústria e do estado de coisas da sociedade, e isso precisamente no sentido de que
é um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de gerações [...].
Mesmo os objetos da mais simples ‘certeza sensível’ são dados a Feuerbach apenas
por meio do desenvolvimento social, da indústria e do intercâmbio comercial. Como
se sabe, a cerejeira, como quase todas as árvores frutíferas, foi transplantada para a
nossa região pelo comércio há apenas alguns séculos e, portanto, foi dada à ‘certeza
sensível’ de Feuerbach apenas mediante essa ação de uma sociedade determinada
numa determinada época”; é por isto que Feuerbach “descobre apenas pastagens e
pântanos na Campagna di Roma, onde na época de Augusto não teria encontrado
nada menos do que as vinhas e as propriedades rurais dos capitalistas romanos”. De
qualquer modo, Marx assinala que “subsiste, sem dúvida, a prioridade da natureza
exterior” (K. Marx-F. Engels, A ideologia alemã, ed. cit., p. 30-31 [os últimos itálicos
meus – JPN)].
181 Já enfatizamos que a alienação não afeta somente o operário, o produtor direto – vê-se
a mesma ênfase no comentário que a este passo de Marx faz Lápine (O jovem Marx,
ed. cit., p. 257-258): “Na medida em que o ser genérico une os homens, a alienação
relativamente a ele gera a atomização dos seres humanos. Não é só o operário que é
arrancado ao seu ser genérico; o não operário é-o igualmente, e cada um deles é-o

165
M a r x e m P a r i s

de maneira diferente: para o operário, o trabalho alienado significa a perda do seu


ser genérico (da sua própria atividade produtiva), ao passo que o não operário não
possui esse ser genérico e se apropria dele sob um aspecto objetivado por outrem”.
182 Se o homem “se comporta para com o produto do seu trabalho, para com o seu
trabalho objetivado, como um objeto alienado, hostil, poderoso, independente dele,
então comporta-se para com ele de tal modo que um outro homem alienado, hostil
a ele, poderoso e independente dele é o senhor desse objeto. Se ele se comporta para
com a sua atividade própria como uma atividade não livre, então comporta-se para
com ela como atividade ao serviço, sob a dominação, a coação e o jugo de um outro
homem. Toda a autoalienação do homem, de si e da natureza, aparece na relação que
ele oferece a ele e à natureza para com outros homens diferenciados dele.” (cf. infra, a
p. 316 [o itálico na última frase é meu – JPN ]).
183 Vale dizer: “Pelo trabalho alienado, o homem gera [...] não só a sua relação com o
objeto e o ato da produção como homens alienados e hostis a ele; gera também a
relação na qual outros homens estão com a sua produção e o seu produto e a relação
em que ele está com esses outros homens. Tal como faz da sua própria produção a
sua desrealização, o seu castigo, tal como faz do seu próprio produto a perda, um
produto que não lhe pertence, assim ele gera a dominação daquele que não produz
sobre a produção e sobre o produto. Tal como aliena de si a sua própria atividade,
assim também atribui ao alienado a atividade que não lhe é própria.” (cf., infra, as
p. 316-317).
Resumindo a concepção marxiana da alienação, um estudioso considera-a um
processo de tripla dimensão: a alienação do produto do trabalho, a alienação do
ato do trabalho e a alienação da vida genérica (cf. R. Garaudy, Karl Marx, ed. cit.,
p. 62 e ss.).
184 Nos Cadernos, Marx já escrevera: “ [...] Enquanto o homem não se reconhecer como
tal e não organizar o mundo de modo humano, esta comunidade [a comunidade
dos homens] terá a forma da alienação – o seu sujeito, o homem, está alienado de
si mesmo. Esta comunidade são os homens, alienados não na abstração, mas enquanto
indivíduos reais, vivos, particulares – tais homens, tal comunidade” (cf., infra, a p.
208 [itálicos meus – JPN ]).
185 Depois de assinalar, numa antecipação do que viria a ser retomado nas Teses sobre Feuer-
bach, que “a solução dos enigmas teóricos é uma tarefa da prática”, Marx – num parágrafo
cuja leitura é prejudicada pelo estado (danificado) do original – diz da propriedade
privada o que se pode estender à alienação: “Para superar o pensamento da propriedade
privada, basta perfeitamente o comunismo pensado. Para suprimir a propriedade privada
real, é preciso uma ação comunista real.” (cf., infra, as p. 400-401).
186 Cf., supra, a nota 108.
187 Há apenas uma diferente recorrência literária (aqui, as referências a Shakespeare –
antes feitas a’O mercador de Veneza, remetem ao Tímon de Atenas – somam-se ao
Goethe do Fausto). Sobre O mercador de Veneza, cf. a nota 23 aos Cadernos (infra,
p. 205). O Tímon de Atenas, redigido provavelmente em 1606, encontra-se, em
tradução de Bárbara Heliodora, em W. Shakespeare, Teatro completo. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, vol. 1, 2006. A peça de Goethe, originalmente publicada em 1808 e
1832, encontra-se, na tradução de Jenny Klabin Segall, em Fausto. São Paulo: Ed.
34, I, 2004, II, 2011.
O apego de Marx a estes dois clássicos, expresso em textos fundamentais (A ideologia
alemã, O capital) nunca foi meramente intelectual – eles faziam parte da vida de
Marx. Escreve um biógrafo, recorrendo a evocações de um contemporâneo, que,
mesmo nos difíceis primeiros anos do exílio londrino, voltando à casa de seus passeios

166
J o s é P a u l o N e t t o

dominicais com a família, Marx e a mulher “declamavam trechos de Shakespeare


e do Fausto” para as crianças (Sperber, Karl Marx, ed. cit., p. 294; cf. também M.
Gabriel, Amor e capital, ed. cit., p. 316-317).
Note-se que, nos Manuscritos, Marx se refere ainda ao Prometeu, de Ésquilo (cf.,
infra, a p. 393), e ao D. Quixote, de Cervantes (cf., infra, a p. 330) – vertidos em
Prometeu acorrentado. Trad. de D. Malhadas e M. H. Moura Neves. Araraquara:
Unesp-ILCSE, 1977 e em O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha. Trad. de
S. Molina. São Paulo: Ed. 34, 1º e 2º livros, 2011-2012.
São conhecidas as paixões literárias de Marx: Shakespeare, Ésquilo e Goethe – e,
sobre as suas preferências artísticas, vale recorrer ao breve, mas informado, artigo
de F. Fernández Buey, “Los gustos y las opiniones de Karl Marx sobre cuestiones
literárias y artísticas”. EnraHonar. Quaderns de Filosofia. Barcelona: Universitat
Autònoma de Barcelona, n. 9 (dedicado a Marx), 1984. No que toca às suas con-
cepções estéticas, permanecem como textos de referência dois ensaios de Lukács,
um de 1931, “O debate sobre o Sickingen de Lassalle” (in G. Lukács, Marx e Engels
como historiadores da literatura. Porto: Nova Crítica, s.d.) e outro, de 1945, “Intro-
dução aos escritos estéticos de Marx e Engels” (reproduzido em K. Marx-F. Engels,
Cultura, arte e literatura. Textos escolhidos. São Paulo: Expressão Popular, 2010),
assim como as notações contidas em “Karl Marx und Friedrich Theodor Vischer”
(ensaio de 1934, coligido em Probleme der Ästhetik. Georg Lukács Werke. Neuwied/
Berlin, 10, 1969). Cf. Mikhail Lifshitz, The Philosophy of Art of Karl Marx. London:
Pluto, 1976 e também Sánchez Vázquez, As ideias estéticas de Marx, ed. cit.
188 O leitor dos textos marxianos de 1844, no que toca à nomenclatura, deve levar
em conta que, também no caso de comunismo, “não há rigor terminológico nos
Manuscritos de 1844 [...] para qualificar o conteúdo de um determinado aspecto da
sociedade futura. Emprega as palavras ‘comunismo’, ‘humanismo’, ‘naturalismo’
[...]” (N. Lápine, O jovem Marx, ed. cit., p. 283).
Para uma discussão erudita acerca da concepção marxiana de comunismo, que não se
limita ao debate do jovem Marx, cf. J. Barata-Moura, Materialismo e subjectividade,
ed. cit., cap. IV.
189 A hipótese de Lápine é que o texto daria “a resposta a duas questões cruciais coloca-
das no fim do fragmento sobre o trabalho alienado: a origem do trabalho alienado
e a relação entre a propriedade privada e a propriedade autenticamente humana,
associada” (N. Lápine, O jovem Marx, ed. cit., p. 271).
190 Linhas antes, na abertura do que nos chegou do “Caderno II”, Marx escrevera:
“O trabalhador produz o capital, o capital o produz, portanto ele a si próprio, e o
homem, como trabalhador, como mercadoria, é o produto de todo o movimento.
Para o homem que não é senão trabalhador, e como trabalhador, todas as suas
qualidades humanas só existem na medida em que existirem para o capital dele
alienado. Mas, porque ambos são alienados, portanto estão numa relação indiferente,
exterior e acidental, então essa característica alienada (Fremdheit) tem de aparecer
também como real. Portanto, logo que ocorre ao capital [...] não ser mais para o
trabalhador, também este não mais é para si próprio, ele não tem nenhum trabalho,
por isso nenhum salário e, visto que ele não tem existência como homem mas só como
trabalhador, pode-se o deixar enterrar, morrer de fome etc. O trabalhador só existe
como trabalhador logo que existe para si como capital, e só existe como capital logo
que um capital existe para ele. A existência do capital é a sua existência, a sua vida,
tal como determina o conteúdo da sua vida de um modo indiferente a ele. Por isso,
a economia nacional não conhece o trabalhador desocupado, o homem de trabalho,
na medida em que ele se encontra fora da relação de trabalho. O bandido, gatuno,

167
M a r x e m P a r i s

mendigo, o homem de trabalho desocupado, o esfomeado, miserável e criminoso,


são figuras que não existem para ela, antes só para outros olhos, para os do médico,
do juiz, do coveiro e do curador dos pobres etc., fantasmas fora do seu reino.” (cf.,
infra, as p. 323-324).
191 A suficiente fundamentação só viria nos Grundrisse (cf. a nota 168, supra). Mais
adiante, faremos um resumo das considerações de Lápine.
192 Note-se: “A propriedade móvel [...] aponta para o milagre da indústria e do movi-
mento, é cria dos tempos modernos e sua filha legítima e única; ela se compadece
de seu adversário como um imbecil não esclarecido acerca da sua essência [...]que
quer pôr, no lugar do capital moral e do trabalho livre, a bruta violência imoral e a
servidão” (cf., infra, a p. 330).
193 Veja-se a formulação marxiana: “A propriedade fundiária, na sua diferença relati-
vamente ao capital, é a propriedade privada, o capital ainda eivado de preconceitos
locais e políticos, ainda não completamente regressado a si do seu enredamento
com o mundo, o capital ainda não consumado. Ele tem de chegar à sua expressão
abstrata, i. é, pura, no curso da sua formação mundial.” (cf., infra, a p. 332).
194 Sobre o mercantilismo, a fisiocracia e a “recente economia nacional inglesa”, cf.
Avelãs Nunes, Uma introdução à Economia Política, ed. cit., na excelente parte II,
os caps. II a VIII.
195 Parece consensual, entre os historiadores, que Engels foi dos primeiros a considerar
a emergência da industrialização como “revolução industrial” (a expressão compa-
rece já no primeiro parágrafo da “Introdução” a A situação da classe trabalhadora
na Inglaterra; cf., na ed. cit., a p. 45).
196 Engels, por isso, chamou com razão a Adam Smith o Lutero nacional-econômico.
[no seu “Esboço”, ed. e loc. cit., p. 59, Engels qualifica Smith como “o Lutero da
economia”] Tal como Lutero reconheceu a fé como a essência do mundo exterior da
religião [...], ao superar a religiosidade exterior, ao fazer da religiosidade a essência
interior do homem, [...] assim [com a descoberta da “essência subjetiva da riqueza”]
assim é superada a riqueza que se encontra fora do homem e independente dele –
[...] por isso o próprio homem é posto na determinação da propriedade privada, tal
como em Lutero na da religião”.” (cf. infra, a p. 336).
197 Na célebre “Introdução” de 1857, Marx é enfático ao assinalar o “imenso progresso
de Adam Smith” ao “descartar toda determinabilidade da atividade criadora de
riqueza – trabalho simplesmente, nem trabalho manufatureiro, nem comercial,
nem agrícola, mas tanto um como os outros. Com a universalidade abstrata da
atividade criadora de riqueza, tem-se agora igualmente a universalidade do objeto
determinado como riqueza, o produto em geral, ou ainda o trabalho em geral, mas
como trabalho passado, objetivado. O fato de que o próprio Adam Smith ainda
recai ocasionalmente no sistema fisiocrata mostra como foi difícil e extraordinária
essa transição” (cf. K. Marx, Grundrisse, ed. cit., p. 57).
198 E se trata mesmo de forçar a mão, pois a palavra capitalismo inexiste para o Marx dos
Manuscritos, d’A ideologia alemã e da Miséria da filosofia. Usando depois a palavra
como qualificativo (“modo de produção capitalista”, “capitalistas” etc.), sequer no
Manifesto do Partido Comunista ou mesmo no Livro I d’O capital ele a empregará
como substantivo – só o fazendo, e poucas vezes, nos anos 1870. Deve-se levar em
conta que nos anos 1850 capitalismo era palavra muito nova: lembra M. Desai (no
pertinente verbete que preparou para o citado Dicionário do pensamento marxista)
que “o Dicionário Oxford registra o seu aparecimento em 1854, em um texto do
romancista inglês William M. Tackeray”.

168
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199 Mas Marx já deixou claro que “a indústria abrange [itálico meu – JPN ] a propriedade
fundiária superada (aufgehobne), do mesmo modo a sua essência subjetiva abrange
simultaneamente a essência subjetiva desta” (cf., infra, a p. 339).
Parece-me importante assinalar, aqui, que Marx toma, genial e corretamente, essa
tendência real já operante como um componente axial da dinâmica do que ulte-
riormente ele designará como modo de produção capitalista – mas está claro que,
do ponto de vista imediato, factual, a tendência ainda tardaria a afirmar-se. Isto
é o que indica a pesquisa de Landes (Prometeu desacorrentado..., ed. cit.) e o que
Hobsbawm reconhece na sua “introdução” ao Manifesto do Partido Comunista, ao
advertir os leitores deste texto magnífico que, nele, “Marx e Engels descreveram
não o mundo conforme já transformado pelo capitalismo em 1848, mas previram
como o mundo estava logicamente fadado a ser transformado por ele” (Cf. E. J.
Hobsbawm, Sobre história, ed. cit., p. 301).
200 Lápine se refere, neste ponto, às anotações de Marx sobre Mill: “Neste estado [sel-
vagem, bárbaro], o homem só produz aquilo de que tem necessidade imediata. O
limite da sua necessidade é o limite da sua produção. A oferta e a demanda coincidem
perfeitamente. A sua produção é proporcional às suas necessidades. Neste estado,
não há intercâmbio” (cf., infra, a p. 217).
201 Aqui, Lápine remete novamente às notas sobre Mill: “Na verdade, produzi visando a
um outro objeto, o objeto da tua produção que eu quero trocar pelo meu excedente –
troca que já realizo no meu espírito. O vínculo social em que me encontro em relação
a ti – meu trabalho para satisfazer a tua necessidade – é, pois, uma aparência, e a
nossa mútua integração é, também ela, aparência: sua base é a pilhagem recíproca”
(cf., infra a p. 218).
202 A remissão, ainda aqui, é às notas sobre Mill: “O que, antes de tudo, caracteriza o
dinheiro não é o fato de a propriedade alienar-se nele: a atividade mediadora é que
se aliena nele, é o movimento mediador, o ato humano, social, através do qual os
produtos do homem se complementam uns aos outros; este ato mediador torna-
-se a função de uma coisa material, externa ao homem – uma função do dinheiro.
Através deste mediador externo, o homem, em lugar de ser ele mesmo o mediador
para o homem, experimenta a sua vontade, a sua atividade, a sua relação com os
outros como uma potência independente de si mesmo e dos outros. Chega aqui ao
cúmulo da servidão” (cf., infra, as p. 200-201).
203 O pesquisador esclarece que circunstâncias são essas: “a renda da terra aparece
como uma qualidade específica de uma propriedade agrária específica, isto é, da
propriedade revestida de um invólucro natural; o trabalho agrícola aparece também
como trabalho específico que tem por objeto a própria natureza e que se confunde
diretamente com a ação das forças naturais; por outro lado, este trabalho está ro-
deado de uma rede ramificada de relações de castas que lhe conferem a aparência
de uma atividade genérica que tem um sentido social” (Lápine, O jovem Marx, ed.
cit., p. 274).
204 A qualificação é de Marx – releia-se: trata-se da “produção do objeto da atividade
humana como capital, em que toda a determinidade natural e social do objeto está
apagada, a propriedade privada perdeu a sua qualidade natural e social (portanto
perdeu todas as ilusões políticas e gregárias [geselligen] e não se confunde com quais-
quer relações aparentemente humanas), – em que também o mesmo capital permanece
o mesmo na mais diversificada existência natural e social, sendo completamente
indiferente perante o conteúdo real desta [...]” (cf., infra, a p. 326). E explicitamente,
como já vimos: “A propriedade fundiária, na sua diferença relativamente ao capital,
é a propriedade privada, o capital ainda eivado de preconceitos locais e políticos

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[...] o capital ainda não consumado. Ele tem de chegar à sua expressão abstrata, i. é,
pura, no curso da sua formação mundial.” (cf., infra, a p. 332).
205 Mészáros, A teoria da alienação em Marx, ed. cit., p. 25 (cf., supra, a nota 47).
206 Mészáros, A teoria da alienação em Marx, ed. cit., p. 23. Na interpretação de Mészá-
ros, os Manuscritos constituem o sistema de Marx in statu nascendi – constituição
tornada possível quando a questão da “transcendência” é concretizada no texto
sobre Hegel.
A “Crítica da dialética e da filosofia de Hegel em geral” recebeu tratamento su-
ficiente, entre outros, de Cornu (cf. Carlos Marx. Federico Engels, ed. cit., III, p.
200-224), Lukács (cf. Der Junge Hegel..., ed. cit., cap. IV, 4 e O jovem Marx e outros
escritos de filosofia, ed. cit., p. 186-195), Calvez (cf. O pensamento de Karl Marx,
ed. cit., I, I, 3), Marcuse (cf. Ideias sobre uma teoria crítica da sociedade, ed. cit., p.
41-55; cf., infra, a nota 237); Dal Pra (cf. La dialettica in Marx, ed. cit. [1977], cap.
III), Sánchez Vázquez (cf. El joven Marx..., ed. cit., cap. VI) e Lápine (cf. O jovem
Marx, ed. cit., p. 290-303); cf. também os estudos, já citados, de M. Rossi (1963),
W. Schmied-Kowarzik (1969) e S. Mercier-Josa (1980 e 1986). Há elementos para
esta discussão em V. Magalhães Vilhena, org., Marx e Hegel: Marx e o “caso” Hegel.
Lisboa: Horizonte, 1985. Aspecto importante da crítica a Hegel no escrito de Marx
em tela diz respeito à abstração – por isto, vale recorrer à contribuição de M. Vadée
(“A crítica da abstração por Marx”) a Jacques d’Hondt et alii, A lógica em Marx.
Lisboa: Iniciativas Editoriais,1978.
Na abertura desta apresentação ficou claro, e certamente o leitor o comprovou no
que leu até aqui, que as fontes bibliográficas que arrolamos contemplam orientações,
interpretações e hipóteses/teses conflitantes e diversificadas – seu elenco é intencional
e efetivamente pluralista. No caso presente, permito-me assinalar uma expressiva
discrepância em duas fontes: Sánchez Vázquez, reconhecendo os méritos de Lukács
no trato da relação de Hegel com a Economia Política, põe em questão – a meu
juízo, de forma muito discutível – a apreciação que dela faz Lukács.
207 Se o último parágrafo do “prefácio” aos Manuscritos – e se vejam as notas editorais
a ele pertinentes – é, quanto a isto, significativo, muito mais o são os comentários
marxianos nos parágrafos segundo, terceiro e quarto do excurso (cf., infra, respec-
tivamente, as p. 359-363).
208 No último capítulo de O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista (cf.
Der junge Hegel..., ed. cit., IV, 4), Lukács demonstra persuasivamente que, embora
a crítica a Hegel só compareça explicitamente ao fim dos Manuscritos, ela de fato
atravessa o conjunto deles, ainda que Hegel não seja nomeado – e em função preci-
samente de Marx, à base dos seus estudos dos eonomistas políticos, já identificar a
raiz econômica da alienação.
209 Segundo o Marx de meados de 1844, três são os feitos de Feuerbach: 1. pro-
vou que a filosofia (de Hegel) é tão somente a religião trazida ao pensamento;
portanto, é um outro modo de existência da alienação da essência humana; 2.
fundou o materialismo verdadeiro e a ciência real e 3. questionou a concepção
hegeliana da negação da negação (cf., infra, a p. 363) – e a este questionamento
voltaremos adiante.
Recorde-se o leitor do “entusiasmo” de Marx referido por Engels (cf., supra, a nota
25) – meses depois, Marx já tinha claras, nas Teses sobre Feuerbach e em seguida n’A
ideologia alemã, as limitações desse “materialismo verdadeiro”.
210 A linguagem de Marx não é inocente: utiliza a palavra grandeza [Größe] para qua-
lificar a apreensão da essência do trabalho por Hegel – cf. o original alemão: “Das
Größe an der Hegelschen Phäenomenologie und ihrem Endresultate...” (K. Marx-F.

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Engels, Werke. Ergänzungsband. Schriften. Manuskripte. Briefe bis 1844, ed. cit., p.
574).
211 Para a exploração e o aprofundamento das questões aqui envolvidas, cf. esp. J. A.
Giannotti, Origens da dialética do trabalho, ed. cit., p. 155 e ss., Sánchez Vázquez,
El joven Marx..., ed. cit., cap. VI. Mas cf. também os textos citados na nota 206,
supra.
212 A feliz expressão é de Roger Garaudy, La pensée de Hegel. Paris: Bordas, 1966, p.
76; de Garaudy, o trabalho mais significativo sobre Hegel é Dieu est mort. Étude
sur Hegel. Paris: PUF, 1962.
213 Marx alude ao “positivismo acrítico” e ao “idealismo acrítico” de que Hegel con-
tinuará dando provas. Veja-se o comentário de Sánchez Vázquez (El joven Marx...,
ed. cit., p. 196-197): “A Fenomenologia contém, em germe, potencialmente, o que
se mostrará em toda a sua nudez no sistema hegeliano: uma justificação acrítica
da realidade, dos fatos. Por isto, Marx emprega o termo positivismo, no sentido de
um ater-se aos fatos, justificando-os acriticamente, não fundadamente, e, por isto,
Marx o qualifica como positivismo acrítico. [...] Mas é também um idealismo acrítico,
baseado no apriorismo não fundado da Ideia, que se traduz, por um lado, na negação
da experiência presente e, por outro, na sua restauração, justificando-a conservado-
ramente”. (Para uma ponderação cuidadosa do conservadorismo de Hegel, cf. os
trabalhos de Jacques d’Hondt, Hegel, philosophe de l’ histoire vivant. Paris: Delga,
2013 [ed. orig., 1966] e Hegel en son temps (Berlin, 1818-1831). Paris: Delga, 2011
[ed. orig., 1968] e também Vv. Aa., Hegel et Marx: la politique et le réel. Poitiers:
Centre de Recherche et de Documentation sur Hegel et sur Marx/Université de
Poitiers, 1971).
Marx, porém, mesmo nessas duras reservas à Fenomenologia hegeliana, não mi-
nimiza a sua “grandeza”: na crítica mistificadora, “na medida em que ela capta a
alienação do homem – ainda que o homem apareça apenas na figura do espírito
–, residem [...] todos os elementos da crítica, ocultos e frequentemente preparados
e elaborados de um modo que excede de longe o ponto de vista de Hegel.” (cf.,
infra, a p. 369).
Não é esta a oportunidade para sequer tangenciar as possibilidades e os limites do
idealismo objetivo (veja-se a tese I sobre Feuerbach) – possibilidades e limites que,
em Hegel, são concomitantes e inseparáveis, configurando um espaço de tensões e
contradições tais que a sua filosofia idealista acaba por comportar “um materialismo
posto de cabeça para baixo [...]” (cf. F. Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia
clássica alemã, em K. Marx-F. Engels, Obras escolhidas..., ed. cit., 3, 1963, p. 181).
Não é detalhe menor que, na sua leitura da Lógica, durante o exílio suíço, entre
setembro e dezembro de 1914, Lenin tenha verificado que “na obra mais idealista
de Hegel há menos idealismo e mais materialismo” (cf. V. I. Lenin, Cadernos sobre a
dialética de Hegel. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011, p. 194; M. Löwy discorre sobre
o que julga ser o impacto político desta leitura sobre Lenin em seu Método dialético
e teoria política, ed. cit., cap. VIII).
214 Já então Marx afirmava que a solução de “oposições teóricas” (subjetivismo/obje-
tivismo, espiritualismo/materialismo, atividade/sofrimento) “só é possível de um
modo prático, só através da energia prática do homem, e por isso a sua solução não
é de modo nenhum apenas uma tarefa do conhecimento, mas é uma tarefa vital
real, a qual a filosofia não pôde resolver precisamente porque a apreendia apenas
como tarefa teórica.” (cf., infra, a p. 353). E também já tinha clareza de que, se “a
solução dos enigmas teóricos é uma tarefa da prática e está mediada praticamente”,
“a verdadeira prática é a condição de uma teoria real e positiva” (cf., infra, a p. 400).

171
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215 Esta concepção é reiterada n’A ideologia alemã: “O comunismo não é para nós um
estado de coisas [Zustand] que deve ser instaurado, um ideal para o qual a realidade
deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera o
estado de coisas atual. As condições desse movimento [...] resultam dos pressupostos
atualmente existentes” (K. Marx-F. Engels, A ideologia alemã, ed. cit., p. 38). E,
sabe-se, retomada no Manifesto: “As proposições teóricas dos comunistas não se
baseiam, de modo nenhum, em ideias ou em princípios inventados ou descobertos
por este ou aquele reformador do mundo. São apenas expressões gerais de relações
efetivas de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico que se processa
diante de nossos olhos” (K. Marx-F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, ed.
cit., p. 21).
Nos Manuscritos, considerando a efetividade do movimento histórico em que consiste
o comunismo e a sua necessidade para a resolução da contradição mencionada, Marx
de fato não problematiza a sua realização (cf., infra, a nota 220) – por outro lado,
não se esqueça que estas páginas do “Caderno III” são a primeira elaboração teórico-
-filosófica marxiana em defesa do comunismo. Isto, porém, não significa que para
Marx uma tal realização sejam favas contadas, com o trânsito da humanidade ao
comunismo inscrito num determinismo histórico inexorável (cf., aqui, as reflexões
de João Antônio de Paula, Crítica e emancipação humana. Ensaios marxistas. Belo
Horizonte: Autêntica, 2014, p. 139-153). O otimismo revolucionário de que Marx
sempre deu provas não tinha nada de ingênuo – precisamente no seu documento
teórico-político mais célebre, lê-se que as lutas de classes (como a luta entre o
proletariado e a burguesia, constitutiva do movimento histórico que possibilita o
comunismo) configuram “uma guerra que sempre terminou ou com uma transfor-
mação revolucionária de toda a sociedade ou com a destruição das classes em luta”
(K. Marx-F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, ed. cit., p. 5 [os itálicos são
meus/JPN ]). Historicamente, sempre se lida com alternativas – a que está em jogo
aqui é supressão da propriedade privada, a alienação e seus corolários ou... o que
depois conheceremos, a barbárie.
216 Ao longo da sua vida, foram contínuos a polêmica e o confronto crítico (teórico e/
ou político) de Marx com/contra vertentes socialistas e comunistas, reformistas e
revolucionárias, mas também democrático-burguesas, que lhe eram contemporâneas.
Dentre as que tiveram registro e/ou divulgação públicos à época, assinalemos apenas
aquelas com/contra: W. Weitling e H. Kriege (ideólogo do “socialismo verdadeiro),
em 1846; Proudhon e K. Heinzen, em 1847; A. Gottschalk e S. Born, no processo
da revolução alemã de 1848; A. Willich e K. Schapper, em 1850; J. Weston, 1865;
Bakunin, 1869-1872; J. G. Eccarius, 1872; com os protagonistas, lassalleanos ou
não, da criação do Partido Social-Democrata Alemão, 1874-1875. Evidentemente,
não faz parte dessas polêmicas o confronto com o provocador Karl Vogt, cujo
desmascaramento atormentou Marx no final dos anos 1850 (cf. K. Marx, Sr. Vogt.
Lisboa: Iniciativas Editoriais, I-II, 1976).
217 Entre aqueles que são convencionalmente arrolados como socialistas, Marx menciona
Proudhon, Fourier e Saint-Simon (os dois últimos designados, também conven-
cionalmente, como “utópicos”). Aqui e noutro passo dos Manuscritos (cf., supra, a
nota 170) há reservas a Proudhon – Marx, porém, até 1846 manteve para com ele
uma relação de grande respeito (basta ver as referências a Proudhon n’A ideologia
alemã); em 1847 Marx o critica duramente (Miséria da filosofia), no Manifesto do
Partido Comunista trata-o como um “socialista burguês” e só na nota necrológica
que redige em janeiro de 1864 oferece dele uma avaliação mais justa (cf., na ed. cit.
da Miséria da filosofia, as p. 259-269). Saint-Simon, Fourier e Owen (nomeado mais

172
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adiante nos Manuscritos), no Manifesto do Partido Comunista são mencionados na


seção “O socialismo e o comunismo crítico-utópicos”.
218 Embora, neste passo crítico, Marx não nomine os autores a que se refere, tudo indica
que suas reservas dizem respeito especialmente a Buonarrotti e outros discípulos
de Babeuf (“comunismo tosco”), a E. Cabet (“comunismo democrático”), a L. A.
Blanqui (“comunismo despótico”) e a T. Dézamy (“comunismo com abolição do
Estado”).
219 Marx mostra que o movimento, próprio desse “comunismo rude”, de “contrapor à
propriedade privada a propriedade privada universal exprime-se na forma animal
em que o casamento (o qual decerto é uma forma da propriedade privada exclusiva)
é contraposto à comunidade de mulheres, portanto na qual a mulher se torna uma
propriedade comunitária e comum. Pode dizer-se que essa ideia da comunidade de
mulheres é o segredo expresso desse comunismo ainda totalmente rude e desprovido
de pensamento.” (cf., infra, a p. 342).
220 Devo, a esta altura, poupar o leitor de transcrições literais – portanto, apenas
seguem indicações pertinentes que só pontuam as passagens mais essenciais: na
“Crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução”, a tematização da revolução
(ainda que não a relacione já à propriedade privada) comparece pela primeira vez
explicitamente: cf., na ed. cit., esp. as pp 152-156; nos Manuscritos, não é preciso
dizer que encontramos a expressão “movimento revolucionário (e, nas Glosas
marginais..., o “movimento” aparece claramente); n’A sagrada família, cf., ed.
cit., as p. 46-49; n’A ideologia alemã, ed. cit., cf. as p. 41-42, 48-49 e 73-74; na
Miséria da filosofia (quando Marx já avançou mais em suas leituras da Economia
Política), cf. p. 189-192 – aí surge a diferenciação “classe em si”/“classe para si” e
a ideia de “revolução total”, abrindo o passo ao Manifesto do Partido Comunista;
deste e até a dissolução da Liga dos Comunistas, já com as lições da revolução de
1848, as referências são múltiplas. Para debater este ponto, cf. M. Löwy, A teoria
da revolução no jovem Marx, ed. cit., e Hal Draper, Marx’s theory of revolution.
New York: Monthly Review Press, 1977.
221 No “Caderno III”, Marx anota: “Precisamente em que divisão do trabalho e troca são
figuras da propriedade privada, precisamente aí reside a dupla demonstração, tanto
de que a vida humana precisou da propriedade privada para a sua realização como,
por outro lado, de que ela precisa agora da superação da propriedade privada.” (cf.,
infra, a p. 413).
No segundo parágrafo da nota 168, supra, vê-se que o Marx das Teorias da mais-valia
dá razão a Ricardo, que quer a produção pela produção; ele explica: “A produção
pela produção significa apenas desenvolvimento das forças produtivas humanas,
ou seja, desenvolvimento da riqueza da natureza humana como fim em si”. Com esta
explicação, suportada por categorias de que não dispunha em 1844, Marx está
apontando “a essência positiva da propriedade privada” que escapa ao “comunismo
de natureza política” (e, obviamente, ao “comunismo rude”).
222 Pelo trabalho, o homem transforma a natureza e transforma-se a si mesmo, com
a alienação incidindo sobre esta dupla transformação donde, comenta Lápine, “a
própria humanização da natureza efetuou-se de maneira desumana, tanto em relação
à natureza como em relação ao próprio homem”. Por isto, é no comunismo que “a
natureza torna-se um laço entre o homem e o homem, a existência natural torna-se
para ele a sua existência humana; simultaneamente, as riquezas naturais já não são
exploradas selvaticamente, mas racionalmente” (Lápine, op. cit., p. 286) – ou, nas
palavras de Marx: suprimida positivamente a propriedade privada, “a sociedade é a
unidade de essência consumada do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição

173
M a r x e m P a r i s

da natureza, o naturalismo realizado (durchgeführte) do homem e o humanismo


realizado da natureza.” (cf., infra, a p. 347).
223 Cf., no seu já citado O jovem marx, às p. 244-246, a seção “A partir das posições
do humanismo proletário”.
224 J.-Y. Calvez, O pensamento de Karl Marx, ed. cit., II, p. 306-307.
225 Marx adquire inteira clareza, nos anos 1844-1846, de que o comunismo exige e
instaura uma nova forma de produção. Lê-se n’A ideologia alemã: “O comunismo
distingue-se de todos os movimentos anteriores porque revoluciona os fundamen-
tos de todas as relações de produção e de intercâmbio precedentes e porque pela
primeira vez aborda conscientemente todos os pressupostos naturais como criação
dos homens que existiram anteriormente, despojando-os de seu caráter natural e
submetendo-os ao poder dos indivíduos associados. Sua organização é, por isso,
essencialmente econômica, a produção material das condições dessa associação; ele faz
das condições existentes as condições da associação” (cf. K. Marx-F. Engels, A ideologia
alemã, ed. cit., p. 67).
Somente nos Grundrisse – no “capítulo do dinheiro” – Marx avançará teoricamente
os traços distintivos entre a produção social que é própria do reino da propriedade
privada e a produção comunitária que advirá com a superação daquela; uma pauta
de leitura sobre essas páginas é oferecida por Dussel, distinguindo “trabalho social ”
e “trabalho comunitário” (cf. A produção teórica de Marx..., ed. cit., p. 87 e ss.).
Também em passos d’O capital ele fará algumas indicações sobre a produção na
sociedade emancipada. Suas observações teóricas sobre a sociedade emancipada – o
comunismo – guardaram sempre o cuidado de evitar prescrições e ele jamais ofereceu
um receituário político.
Evidentemente, na sua trajetória revolucionária, Marx, sempre à base de discussões e
trabalhos coletivos com seus camaradas de luta, respondeu pela formulação de progra-
mas políticos – por exemplo, em 1848, definiu as medidas a serem implementadas pelos
comunistas quando do domínio político do proletariado (cf., no Manifesto do Partido
Comunista, ed. cit., p. 30-31) e, especificamente para a Alemanha, foi o principal
redator das “Reivindicações do Partido Comunista na Alemanha” (cf. K. Marx, Nova
Gazeta Renana, ed. cit., p. 589-590); foi o principal redator do Manifesto Inaugural
da Associação Internacional dos Trabalhadores e dos seus Estatutos provisórios (outubro
de 1864) e, individualmente, não deixou de opinar sobre programas elaborados por
partidos operários (p. ex., no caso do partido alemão, cf. a “Crítica ao Programa de
Gotha” (1875), in K. Marx-F. Engels, Obras escolhidas, ed. cit., 2, 1961, p. 205-236) e,
no caso do partido francês, contribuiu na discussão do seu programa (1880), ademais
de anotar com cuidado o programa dos populistas russos (1880-1881).
226 Concluiu Marx no final dos anos 1850: “As relações de produção burguesas são a
última forma antagônica do processo de produção social [...]; as forças produtivas
que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam [...] as condições materiais
para resolver esse antagonismo. Com essa formação social termina, pois, a pré-história
da sociedade humana” (Contribuição à crítica da Economia Política, ed. cit., p. 48
[itálicos meus – JPN ]). Instigante discussão sobre a problemática aqui envolvida
encontra-se em H. Lefebvre, O fim da história. Lisboa: D. Quixote, 1971.
227 Como é verificável, por exemplo, no exame dos Grundrisse e d’O capital – aqui vamos
nos ater, rapidamente, somente à atenção que Marx lhes confere nos Manuscritos.
Na maior parte dos estudos sobre o jovem Marx que já citamos, a questão das
necessidades é de alguma forma objeto de análise – um tratamento nela centrado,
e que não se limita ao jovem Marx, é oferecido por A. Heller, La théorie des besoins
chez Marx, ed. cit.

174
J o s é P a u l o N e t t o

228 Segundo esta teoria, diz Marx, “há gente a mais. Até mesmo a existência do homem
é um puro luxo e se o trabalhador for ‘moral’ [...] será poupado na procriação. A
produção do homem aparece como miséria pública” (cf., infra, a p. 398).
229 As controvérsias entre os economistas (Lauderdale e Malthus, de um lado e, doutro,
Say, Ricardo) sobre poupança e luxo, Marx resume-as indicando a sua inépcia (cf.,
infra, as p. 396-399).
230 Diz Marx: “O sentido que a produção tem, no que diz respeito ao rico, mostra-se
manifestamente no sentido que ela tem para o pobre; para [os de] cima, a exterioriza-
ção é sempre fina, oculta, ambígua, aparência; para [os de] baixo, grosseira, franca,
sincera, essência. A necessidade rude do trabalhador é uma fonte de lucro muito
maior que a fina do rico. Os sotãos em Londres rendem mais ao seu senhorio do que
os palácios, i. é, são, no que a ele diz respeito, uma riqueza maior, portanto, para
falar nacional-economicamente, uma maior riqueza social.” (cf., infra, a p. 398).
De qualquer modo, a alienação, também aqui, é universal – se os de cima podem
fruir a riqueza e atender às suas necessidades, nem por isso a alienação na posse e
na fruição deixa de operar – cf., infra, as p. 403-404
No que toca à pregação moral, segundo Marx, “a autorrenúncia, a renúncia à vida,
a todas as necessidades humanas, é a sua tese principal. Quanto menos comeres,
beberes, comprares livros, fores ao teatro, ao baile, ao restaurante, pensares, amares,
teorizares, cantares, pintares, esgrimires etc., tanto [mais] poupas, tanto maior se
tornará o teu tesouro [...]. Quanto menos tu fores, quanto menos exteriorizares a
tua vida, tanto mais tens, tanto é a tua vida exteriorizada, tanto mais armazenas da
tua essência alienada.” (cf., infra, a p. 395).
231 Entra em cena, aqui, o dinheiro – na sequência imediata do que transcrevemos na nota
anterior, diz Marx: “Tudo o que o economista nacional te toma de vida e de humanidade,
tudo isso ele te restitui em dinheiro e riqueza. E tudo aquilo que tu não podes, pode o
teu dinheiro [...] ele é a verdadeira potência [Vermögen]” (cf., infra, a p. 395).
232 Note-se a referência à riqueza do ser humano e natural – no mesmo passo, Marx
anotou que “o sentido humano, a humanidade dos sentidos, apenas advêm pela
existência do seu objeto, pela natureza humanizada.” (cf., infra, a p. 352).
Neste contexto, é ilustrativa a reflexão de Marx acerca de como a indústria cons-
titui o livro aberto das forças humanas essenciais objetivadas de que o homem deve
se apropriar, questão que, até então, a Psicologia simplesmente abstraiu de suas
considerações (cf., infra, as p. 353-354).
233 Para a constituição do marxismo, alguns pensadores foram decisivos – como G.
Plekanov e K. Kautsky; na do maxismo-leninismo, não se pode minimizar o papel
intelectual, especialmente em 1924-1926, de Stalin – peça básica dessa contribui-
ção foi vertida ao português e divulgada no Brasil: Os fundamentos do leninismo.
Rio de Janeiro: Calvino, 1934 (precedida de uma edição tirada na Argentina: Os
fundamentos do leninismo: conferências realizadas na Universidade de Sverdlov, de
Moscou, em princípios de abril de 1924. Buenos Aires: Sudam, 1931). Nos anos
1950, a Editorial Vitória (Rio de Janeiro), do PCB, iniciou a publicação das Obras
de Stalin, que, ao que sei, foi interrompida com a edição do volume VI (1954), no
qual se encontram Os fundamentos do leninismo.
234 O texto staliniano está disponível no volume 29 da coleção “Grandes cientistas
sociais”/Política – Stalin. São Paulo: Ática, 1982, p. 127-157.
235 David Riazanov (1870-1938) foi vítima, mais uma, da razzia promovida por Stalin
na segunda metade dos anos 1930. O texto de Hugo Eduardo da G. Cerqueira,
coligido por João Antônio de Paula no já citado O ensaio geral..., apresenta uma
bela síntese da vida e da obra de Riazanov, seguida de bibliografia.

175
M a r x e m P a r i s

236 Em meses de 1930/1931, Lukács – então emigrado em Viena – desloca-se para


Moscou e tem a oportunidade, no Instituto Marx-Engels, de examinar os Manuscritos
(então preparados para a edição de 1932, porém ainda não publicados). Ele, que
já vinha desenvolvendo uma autocrítica relativa à História e consciência de classe,
afirma que a leitura dos Manuscritos lhe permitiu superar os fundamentos teóricos
da obra de 1923, conforme assevera no prefácio que escreveu (março de 1967) para
a reedição autorizada do célebre livro (Storia e coscienza di classe. Milano: Sugar,
1967).
237 No mesmo ano em que saem à luz os Manuscritos, Marcuse os toma como objeto
de análise em “Novas fontes para a fundamentação do materialismo histórico” (cf.
H. Marcuse, Ideias sobre uma teoria crítica da sociedade, ed. cit., p. 9-55) e no ano
seguinte publica um ensaio em que, em meio a claro influxo heideggeriano, eles são
referência (“Sobre os fundamentos filosóficos do conceito de trabalho da ciência
econômica”, in Herbert Marcuse, Cultura e sociedade, ed. cit., II, p. 7-50). É, porém,
na sua primeira grande obra redigida no exílio (1941) que se pode dimensionar como
Marcuse assimilou os Manuscritos – cf. H. Marcuse, Razão e revolução, ed. cit., p.
250-291).
238 Deve-se a Auguste Cornu o primeiro trabalho acadêmico sobre Marx apresentado à
universidade francesa e logo publicado (La jeunesse de Karl Marx. 1818-1845. Paris:
F. Alcan, 1934), em que já trata dos materiais que aqui nos interessam. Ele iniciou
então uma longa e contínua pesquisa, levada a cabo também na Alemanha, para
onde se transferiu, de que resultaram vários ensaios e ganhou feição plena na sua
cuidadosa obra (inacabada) Karl Marx et Friedrich Engels. Leur vie et leur oeuvre.
Paris: PUF, I-II-III-IV, 1955, 1958, 1962 e 1970 (citamos, supra, a edição cubana).
Nos anos 1930, Norbert Guterman e Henri Lefebvre estabeleceram uma colaboração
intelectual profícua e uma amizade que resistiu ao tempo e à distância (naquela
década, Guterman foi viver nos Estados Unidos). Foram dos primeiros conhecedores,
na França, dos Manuscritos: já em 1932 publicaram teses sobre a alienação (numa
pequena revista, Avant-Poste); numa antologia de textos marxianos que organizaram
(Karl Marx. Morceaux choisis. Paris: Gallimard, 1934) e na introdução à pioneira
tradução que fizeram (editada em 1936) dos Cadernos sobre a dialética de Hegel
de Lenin (cf. a ed. cit., p. 7-92) dão provas daquele conhecimento – mas é na sua
obra La conscience mystifiée (Paris: Gallimard, 1936) que dele oferecem um criativo
desenvolvimento.
239 O primeiro texto expressivo da interpretação de Marx pelo incansável marxólogo
M. Rubel é a longa introdução, redigida em 1947, para uma antologia de textos
marxianos que confere espaço aos textos juvenis (publicada originalmente em 1948,
teve reedição, com pequenas modificações: Pages de Karl Marx pour une éthique
socialiste. Paris: Payot, I-II, 1970). Rubel continuou sustentando a sua interpretação
nos seus trabalhos posteriores, sobretudo Karl Marx. Essai de biographie intellectuelle
e a introdução às Oeuvres de Marx, da col. La Pléiade, já citados.
240 É importante assinalar que desde 1939 já existia uma tradução castelhana dos
Manuscritos, da lavra de A. G. Rühle e J. Harari (também a partir da edição de
Landshut e Mayer), realizada e lançada no México.
241 Cf. Pierre Bigo, Marxisme et humanisme…, ed. cit.; a obra de J.-Y. Calvez, também
citada, teve a sua edição original em 1956 (Paris: Seuil) – ambos os autores se movem
numa órbita neotomista. Já E. Thier, Das Menschenbilden des jungen Marx, ed. cit.,
tem uma leitura existencializante do jovem Marx.
242 Cf. R. Garaudy, Perspectivas do homem, ed. cit., p. 113. Sartre, a partir de 1945 (data
da conferência O existencialismo é um humanismo, cuja tradução mais recente, de L.

176
J o s é P a u l o N e t t o

D. Coutinho, encontra-se em J. Marçal, org., Antologia de textos filosóficos. Curitiba:


Secretaria de Estado de Educação do Paraná, 2009), tornou-se um interlocutor
fundamental da tradição marxista, polemizando também a teoria da alienação.
Como referência para abordar Sartre, cf. I. Mészáros, A obra de Sartre. Busca da
liberdade e desafio da história. São Paulo: Boitempo, 2012.
243 É fato que então o tema imantou o universo intelectual de marxistas e intelectuais
progressistas: numa listagem seletiva, Adam Schaff (em La alienación como fenómeno
social. Barcelona: Crítica, 1979) contabilizou, até a entrada da década de 1970, mais
de três centenas de textos significativos sobre a alienação, a grande maioria produzida
nos anos 1960.
Quanto às mencionadas e distintas razões ídeo-políticas incidentes sobre a discussão
sobretudo marxista, resumi-as numa análise feita há sete lustros e da qual me permito
transcrever um parágrafo, com os seus itálicos originais: “Nos países do chamado
socialismo real, a questão da alienação emerge na medida em que é possível explicitar
uma crítica (teórica) do existente; nos países capitalistas, ela emerge na proporção em
que se reflete por que não avança a crítica (teórica e prática) do existente. Em ambos
os casos, a questão da alienação é contextualizada na perspectiva de responder a
crises histórico-sociais concomitantes (e que, também, se unem por laços vários): a
crise dos modelos vigentes dos padrões societários pós-capitalistas construídos em
nome da transição socialista e manifestamente insatisfatórios e a crise do processo
revolucionário nos países capitalistas avançados, onde o estabelecido revela uma
insuspeitada capacidade de adaptação e autopreservação. Nos países do socialismo
real, a incidência da tematização é francamente política: discutir a alienação é tanto
retomar uma problemática marxiana quanto sugerir a infirmação das retóricas ofi-
ciais e contribuir para a crítica das instituições – e não é casual que, ainda hoje, a
discussão seja frequentemente elíptica e vista sob suspeita. No ocidente, a dimensão
política é menos epidérmica, mas não menos efetiva, porque se trata de investigar
os mecanismos pelos quais as relações sociais capitalistas continuam conseguindo
reproduzir-se sem a quebra do seu dinamismo vital – e esta investigação, como
tal, pode ser levada a cabo sem grandes riscos. Nos dois casos, de fato, o fulcro da
dimensão política da tematização da alienação põe em causa a projeção da sociedade
comunista: nos países do socialismo real, o que está em causa é averiguar se os modelos
societários estabelecidos são capazes de conduzir historicamente à livre associação
de homens livres, numa organização social liberada de coações, constrangimentos
e restrições; nos países capitalistas avançados, indaga-se por que os grupos e classes
sociais espoliados permanecem refratários, na sua prática social, às exigências de
transformação de um estilo de vida posto por um sistema cuja falência é cada vez
mais evidente” (Capitalismo e reificação, ed. cit., p. 30-31).
244 Foram os anos em que se comemoraram alegremente o triunfo do capitalismo, os funerais
do “comunismo” e de Marx no celebrado “fim da história” etc. Há larga bibliografia
crítica sobre este processo, suas características e seus limites; parte dela, notadamente
a que se refere à vida intelectual, está registrada no ensaio que dediquei à obra de meu
amigo Carlos Nelson Coutinho, falecido a 20 de setembro de 2012, “Breve nota sobre
um marxista convicto e confesso”, in Marcelo Braz, org., Carlos Nelson Coutinho e a
renovação do marxismo no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
245 Quando da passagem do sesquicentenário da publicação do Manifesto do Partido
Comunista, coincidindo com mais uma das recorrentes crises capitalistas, o New
York Times observou que “o patrimônio de Marx ressurge depois de 150 anos” (ed.
de 27/6/1998); corridos dez anos, em meio a nova crise, foi a vez do Times anotar:
“Ele [Marx] voltou!” (ed. de 20/10/2008).

177
M a r x e m P a r i s

Surfando na onda do momento, Jacques Attali publicou Karl Marx ou o espírito do


mundo. Rio de Janeiro: Record, 2007; critiquei essa vigarice em “Marx por Monsieur
Attali: a incongruência intelectual como guia”. Em pauta: teoria social e realidade
contemporânea. Rio de Janeiro: UERJ, 21, 2008.
246 Já nos anos 1960, inúmeros pensadores de extração marxista se detiveram sobre as
transformações capitalistas e os modos pelos quais elas alteravam a condição operá-
ria, alterações que afetavam direta e indiretamente as reflexões marxianas acerca da
alienação. Dou novamente a palavra a Lukács, que abordou de maneira coloquial
esta questão nas entrevistas que, em setembro de 1966, concedeu a Holz, Kofler e
Abendroth (cf. Conversando com Lukács, ed. cit., p. 52-59); depois de mencionar que
o capitalismo desenvolveu no século XX um “sistema de manipulação” que invade a
vida cotidiana, inclusive no âmbito doméstico, ele observa que “a exploração da classe
operária passa cada vez mais da exploração através da mais-valia absoluta para a que
se opera através da mais-valia relativa. [...] O inteiro problema da alienação adquire
uma fisionomia inteiramente nova. No tempo em que Marx escrevia os Manuscritos
econômicos e filosóficos, a alienação da classe operária significava imediatamente
um trabalho opressivo em um nível quase animal. Com efeito, a alienação era, em
certo sentido, sinônimo de desumanidade. [...] A mais-valia absoluta não morreu,
simplesmente não desempenha mais o papel dominante, aquele que desempenhava
quando Marx escrevia os Manuscritos econômicos e filosóficos. Ora, o que daí decorre?
Que um novo problema surge no horizonte dos trabalhadores, isto é, o problema de
uma vida plena de sentido. A luta da classe operária no tempo da mais-valia absoluta
estava voltada para a criação das condições objetivas indispensáveis a uma vida deste
gênero. [...] Por isso é necessário empreender uma ampla discussão sobre as formas
atuais da alienação. [...] Devemos analisar o fato de que a transformação do capi-
talismo em um sistema dominado pela mais-valia relativa cria uma situação nova,
na qual o movimento revolucionário é condenado a um novo início, durante o qual
renascem, em formas muito caricaturais e cômicas, certas ideologias ultrapassadas
aparentemente há muito tempo, como o luddismo do fim do século XVIII”.
247 Sempre preciso, Mandel deixa clara a circunscrição de tal objeto: a Miséria da
filosofia é a “primeira obra [de Marx] que dá uma visão de conjunto das origens,
do desenvolvimento, das contradições e da queda futura do regime capitalista” (E.
Mandel. A formação do pensamento econômico de Karl Marx, ed. cit., p. 55).

178
CADERNOS DE PARIS
(notas de leitura de 1844)

KARL MARX
NOTA DO TRADUTOR

Entre janeiro de 1844 e janeiro de 1845, em Paris, Marx


anotou, em nove cadernos, as suas inúmeras leituras, entre as
quais estão as primeiras que faz dos economistas políticos. Além
de vários e simples resumos não comentados, estão as passagens
aqui reproduzidas, nas quais Marx estabelece uma interlocução
com os autores lidos:
a) na nota 1, com Say (Traité d´économie politique);
b) na nota 2, com Smith (Recherches sur la nature et les causes
de la richesse des nations);
c) nas notas 3 a 9, com Ricardo (Des principes de l´économie
politique et de l´impôt);
d) nas notas 10 a 23, com James Mill (Eléments d´économie
politique);
e) nas notas 24 a 29, com Mac Culloch (Discours sur
l´origine, les progrès, les objets particuliers et l´ importance de
l´ économie politique e, nesta fonte, com o texto do seu tradu-
N o t a d o t r a d u t o r

tor, G. Prévost, “Réflexions du traducteur sur le système de


Ricardo”);
f) nas notas 30 e 31, com os textos de Boisguillebert reco-
lhidos por E. Daire em Économistes financiers du XVIIIe siècle.
Segundo os responsáveis da primeira edição alemã desses
cadernos (cf. infra), foram os seguintes os textos registrados por
Marx naquele período:
Pierre le Pesant de Boisguillebert, “Le détail de la France,
la cause de la diminution de ses biens et la facilité du rèmede”;
“Dissertation sur la nature des richesses, de l´argent et des
tributs”; “Traité de la nature, culture, commerce et intérêt des
grains”, in Économistes financiers du XVIIIe siècle. Editado e
comentado por Eugène Daire. Paris, 1843.
Eugène Buret, De la misère des classes laborieuses en Angleterre
et en France. Paris, t. I, 1840.
A. L. C. Destutt de Tracy, Eléments d´ idéologie. IV e V
partes: “Traité de la volonté et des effets”. Paris, 1826.
Friedrich Engels, “Umrisse zu einer Kritik der Nationalöko-
nomie“, in Deutsch-Französische Jahrbücher. Paris, 1844.
James Lauderdale, Recherches sur la nature et l´origine de la
richesse publique. Trad. E. Lagentie de Lavaisse. Paris, 1808.
Jean Law, “Considérations sur le numéraire et le commerce”,
in Économistes financiers…, ed. cit.
R. Levasseur (de la Sarthe, ex-convencional), Mémoires.
Paris, 4 tomos, 1829-1831.
Friedrich List, Das nationale System der politischen Ökono-
mie. Stuttgart u. Tübingen, I, 1841.
John Ramsay Mac Culloch, Discours sur l´origine, les progrès,
les objets particuliers et l´importance de l´économie politique. Trad.
G. Prévost. Genève-Paris, 1825.
James Mill, Eléments d´ économie politique. Trad. J. T. Pa-
risot. Paris, 1823.

182
JNo os té a Pda ou r aN
lt o d u
e t o
t r
o

H. F. Osiander, Über den Handelsverkehr der Völker.


Stuttgart­, 2 tomos, 1840; Enttäuschung des Publikums über die
Interessen des Handels, der Industrie und der Landwirtschaft, oder
Beleuchtung der Manufakturkraft-Philosophie des Dr. List, nebst
einem Gebet aus Utopien. Tübingen, 1842.
David Ricardo, Des principes de l´ économie politique et de
l´impôt. Trad. F. S. Constancio. Paris, 2 tomos, 1835.
Jean-Baptiste Say, Traité d´ économie politique. Paris, 2
tomos, 1817; Cours complet d´ économie politique pratique.
Bruxelles, 1836.
Carl Wolfgang Christoph Schüz, Grundsätze der National-
-Ökonomie. Tübingen, 1843.
Frédéric Skarbek, Théories des richesses sociales. Paris, 2
tomos, 1829.
Adam Smith, Recherches sur la nature et les causes de la richesse
des nations. Trad. G. Garnier. Paris, 4 tomos, 1802.
Xenophon’s von Athen Werke. Trad. A. H. Christian.
Stuttgart­, t. IX, X, XI, 1828-1830.
A presente tradução teve por base o texto “Notes de lec-
ture”, in K. Marx, Oeuvres. Économie. Paris: Bibliothèque de
la Pléiade/Gallimard, 1968, II, p. 7-43, estabelecido por Ma-
ximilien Rubel a partir da primeira edição em Marx-Engels
Gesamtausgabe [Mega]. Berlin: Marx-Engels Verlag, 1932, Erste
Abteilung, Band 3; a numeração e os subtítulos não são originais,
mas introduzidos por Rubel; no caso das notas 10 a 23, a versão
de Rubel foi cotejada com o texto alemão – “Auszüge aus James
Mills Buch Élements d´économie”. K. Marx-F. Engels. Werke.
Ergänzungsband. Schriften. Manuskripte. Briefe bis 1844. Berlin:
Dietz Verlag, 1977, 445-463. Consultou-se também a tradução
de Bolívar Echeverría: Carlos Marx, Cuadernos de Paris (Notas
de lectura de 1844). México: Era, 1974, p. 101-175. As notas
devidas a estas edições são assinaladas pelas respectivas ini-

183
N o t a d o t r a d u t o r

ciais dos dois responsáveis: Maximilien Rubel (MR) e Bolívar


Echeverría (BE). Quando os apontamentos de Marx não são
claramente inteligíveis sem a referência aos autores que está
lendo, transcrevemos as respectivas passagens, valendo-nos
das citações de Bolívar Echeverría. Observe-se a tradução de
Nationalökonomie por Economia Política – cf., sobre isto, a nota
79 (nas p....., supra), da Apresentação deste volume

José Paulo Netto

184
CADERNOS DE PARIS

(notas de leitura de 1844)

1. A Economia Política, ciência do enriquecimento1

1 A edição de Maximilen Rubel se abre com esta passagem. O texto traduzido por
Bolívar Echeverría antecede-a com uma nota encontrada numa página solta, na qual
Marx faz um resumo do ensaio “Esboço de uma crítica da Economia Política”, que
Engels enviou da Inglaterra para os Anais Franco-Alemães (ensaio que se encontra
disponível em J. P. Netto, org., Engels. Política. S. Paulo: Ática, col. “Grandes
cientistas sociais”, vol. 17, 1981). Eis o teor da nota (cf. Cuadernos de Paris, ed. cit.,
p. 103-104):
“A propriedade privada. Sua consequência imediata: o comércio; como toda atividade
[se torna] fonte imediata de lucro para aqueles que a exercem. A seguinte categoria
condicionada pelo comércio: o valor. Valor real abstrato e valor de troca. Say: utili-
dade como determinação do valor real; Ricardo e Mill: custos de produção. Para os
autores ingleses, a concorrência representa a utilidade frente aos custos de produção;
para Say [os representados são] os custos de produção. Valor: a relação entre os custos
de produção e a utilidade. A aplicação imediata do valor: a decisão, em geral, se é
conveniente produzir, se a utilidade compensa os custos de produção. A aplicação
prática do conceito de valor, limitada à decisão sobre a produção; a diferença entre
valor real e valor de troca repousa no fato de que o equivalente oferecido no comér-
cio não é o equivalente. O preço: relação entre custos de produção e concorrência.
Apenas o que pode ser monopolizado tem um preço. A definição ricardiana da
C a d e r n o s d e P a r i s

A propriedade privada é um fato cuja explicação não é objeto


da Economia Política, mas que constitui o seu fundamento.
Não há riquezas sem propriedade privada e a Economia
Política é, em sua essência, a ciência do enriquecimento. Con-
sequentemente, não há Economia Política sem a propriedade
privada. Portanto, toda esta ciência repousa sobre um fato
carente de necessidade.
Riqueza. Aqui já se supõe o conceito de valor, conceito
que, entretanto, não está ainda analisado – pois a riqueza é
definida como “soma de valores”, “soma das coisas valiosas”
que se possui. Determinando-se a riqueza relativa mediante a
comparação do valor das coisas de que se tem necessidade com o
valor daquelas que se possa oferecer em troca, a “troca” torna-se
o elemento essencial da riqueza. A riqueza consiste nos objetos
dos quais “não se tem necessidade”, que não são exigidos pela
“necessidade pessoal”2.

renda da terra é errônea porque pressupõe que uma redução da demanda repercute
instantaneamente no arrendamento da terra e põe imediatamente fora de serviço
uma quantidade equivalente do solo trabalhado em piores condições. Isto é errôneo.
Esta definição deixa de lado a concorrência que, segundo Smith [...] a fertilidade.
O arrendamento da terra é a relação entre a fertilidade do solo e a concorrência. O
valor da terra deve medir-se segundo a capacidade de produção de áreas iguais nas
quais se emprega trabalho igual.
Divisão entre capital e trabalho. Divisão entre capital e lucro. Divisão do lucro em
lucro e juros [...]. Lucro: o peso que o capital põe na balança para a determinação
dos custos de produção; permanece inerente ao capital e isto recai sobre o trabalho.
Divisão entre trabalho e salário. Importância do salário. A importância do trabalho
na determinação dos custos de produção. Separação entre terra e homem. Trabalho
humano dividido em trabalho e capital.
(Aquilo que acima se pôs entre colchetes é da responsabilidade de Bolívar Echeverría.
[N. do T.])
2 “Propriedade [...] uma posse reconhecida. A Economia Política supõe a sua existência
como uma coisa de fato e apenas acidentalmente considera o seu fundamento e as suas
consequências. [...] Não pode haver riquezas sem propriedade [...] o maior estímulo
para a aquisição de riquezas e, portanto, para a produção. [...] Riqueza [...] a soma dos
valores, ou seja, a soma das coisas avaliáveis que alguém possui [...]. Riqueza de uma
nação [...] a soma dos valores na posse dos particulares que compõem esta nação e

186
K a r l M a r x

2. Troca e divisão do trabalho


Na sua demonstração, Smith gira em círculo, de maneira
divertida. Para explicar a divisão do trabalho, ele supõe a tro-
ca. Mas para que a troca seja possível, ele é obrigado a supor
a divisão do trabalho, a diferenciação da atividade humana.
Remetendo o problema para o estágio primitivo, não consegue
desembaraçar-se dele3.

3. Valor e utilidade
Na determinação do valor, Ricardo considera somente os
custos de produção e Say apenas a utilidade. Em Say, a concor-
rência substitui os custos de produção. A utilidade – ou seja,

dos valores que possuem em comum. A riqueza [...] relativa ao valor das coisas de
que se necessita, comparado ao valor das coisas que se podem oferecer em troca
[...]” (Jean-Baptiste Say, Traité d’ économie politique. Paris: 2 tomos, 1817, p. 471,
478-480). [BE] O Tratado de economia política, de J.-B. Say, tem edição brasileira
na coleção “Os economistas” (S. Paulo: Abril Cultural, 1983). [N. do T.]
3 “Os principais aperfeiçoamentos das faculdades produtivas do trabalho e a maior
parte da habilidade, da destreza e a inteligência com que elas são dirigidas ou
aplicadas se devem, ao que parece, à divisão do trabalho”. [...] “Assim como é mediante
o contrato, mediante a troca ou compra, que obtemos dos outros os benefícios que
nos são mutuamente necessários, assim foi também precisamente esta disposição
para comerciar que, nas origens, deu lugar à divisão do trabalho”. [...] “Por exemplo,
numa tribo de caçadores ou de pastores, um particular fabrica arcos e flechas com
maior rapidez e destreza que outros. Comercia amiúde com seus companheiros e
recebe cabeças de gado ou de caça em troca desse tipo de objetos; logo se dá conta
de que, mediante este procedimento, pode obter tais presas mais facilmente do
que se fosse pessoalmente atrás delas. Assim, pois, graças a um cálculo interessado,
faz da fabricação de arcos e flechas a sua ocupação principal – e ei-lo convertido
em fabricante de armas” (Adam Smith, Recherches sur la nature et les causes de la
richesse des nations. Tradução de Germain Garnier. Paris: 4 tomos, 1802, p. 11, 32
e 33). [BE] Registram-se duas edições integrais da obra de A. Smith em português:
A riqueza das nações. Investigação sobre sua natureza e suas causas. S. Paulo: Abril
Cultural, col. “Os economistas”, 2 vols., 1983 e Inquérito sobre a natureza e as causas
da riqueza das nações. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2 vols., 1999. [N.
do T.]

187
C a d e r n o s d e P a r i s

a concorrência – depende apenas, segundo o próprio Say, da


moda, do capricho etc.4
Contra Smith, Ricardo afirma que o valor do trigo aumenta
e diminui como resultado de aperfeiçoamentos etc., como no
caso do ouro. Say, ao contrário, observa que, para o trigo, a
relação entre a quantidade demandada e a quantidade oferecida
é mais constante, o que também é verdadeiro para o seu valor
de troca. “O trigo é um produto que, pela sua presença, cria
seus consumidores e que, pela sua ausência, os destroi. Não se
pode dizer o mesmo do ouro” (Principes..., p. 14). Por outro
lado, Say admite que não há “medida invariável dos valores”.
Eis uma bela confissão de Ricardo:
Ainda que tais aperfeiçoamentos (devidos às máquinas [K.M.])
se estendessem a todos os objetos de consumo do operário e sua
utilização se visse verdadeiramente ampliada (por causa da con-
corrência [K.M.]), e mesmo que o valor de troca destes objetos,
comparado ao dos objetos cuja fabricação não conheceu nenhum
aperfeiçoamento notável, se visse consideravelmente reduzido,
podendo-se obtê-los mediante uma quantidade bem menor de
trabalho, o bem estar do operário, na prática, não aumentaria
(op. cit., p. 15).

4 Valor: “Se é a quantidade de trabalho fixado numa coisa que regula o seu valor
de troca, consequentemente todo aumento da quantidade deste trabalho deve
necessariamente aumentar o valor do objeto sobre o qual foi aplicado; igualmente,
toda redução do mesmo trabalho deve reduzir o preço do objeto” (David Ricardo,
Des principes de l’ économie politique et de l’ impôt. Tradução de F. S. Constancio.
Paris: 2 tomos, 1835, p. 8). “Para que o valor de troca aumente quando aumentam
os custos de produção, será necessário que a relação entre a oferta e a demanda
permaneça igual; a demanda deveria também aumentar, mas isto não ocorre;
embora se igualem todas as outras relações, a demanda se reduz necessariamente.
Portanto, o valor de troca não aumenta quando aumentam os custos de produção”
(Say, op. cit., p. 8, nota). [BE] Há tradução da obra de D. Ricardo na coleção “Os
economistas”: Princípios de economia política e tributação (S. Paulo: Abril Cultural,
1982). [N. do T.]

188
K a r l M a r x

É a quantidade comparativa de bens que o trabalho pode produzir


que determina o seu valor relativo, presente ou passado, e não a
quantidade comparativa de bens que se oferece ao operário em
troca ou em pagamento de seu trabalho (op. cit., p. 16).

Ricardo sublinha muito bem o fato de que o operário nada


ganha com o aumento da produtividade do trabalho5.
O trabalho [...] fonte de todo valor, e sua quantidade relativa [...] a
medida que regula o valor relativo das mercadorias (op. cit., p. 17).

Ricardo demonstra que o trabalho engloba a totalidade do


preço, porque o capital, também ele, é trabalho. Say mostra (p.
25, nota) que ele esqueceu os lucros do capital e da terra, que
não são gratuitos. Proudhon conclui, com razão, que onde existe
propriedade privada, um objeto custa mais do que vale – este é
precisamente o tributo pago ao proprietário privado6.

4. Renda da terra
Ricardo separa a fertilidade do solo em si daquela que este
adquire graças a instrumentos e instalações, ao capital nele
investido. Trata-se de uma separação absurda. Smith observa,
corretamente, que, em geral, o capital destinado ao melhora-
mento do solo não provém do proprietário e, logo, este não
deveria exigir, enquanto capitalista, uma renda mais elevada por

5 “Se a retribuição do operário estivesse sempre em relação com a sua produção,


seria correto dizer que a quantidade de trabalho fixada na produção de uma coisa
é igual à quantidade de trabalho que esta coisa pode comprar [...]. Mas estas duas
quantidades não são iguais [...]. A segunda experimenta as mesmas variações que as
mercadorias e os meios de subsistência com os quais pode ser equiparada” (Ricardo,
op. cit., p. 10-11). [BE]
6 A referência a Proudhon tem em vista a “segunda proposição” da Mémoire..., assim
formulada: “A propriedade é impossível, porque onde ela é admitida, a produção
custa mais do que vale” (P.-J. Proudhon, Qu’est-ce que la propriété, premier
mémoire. 1804, cap. IV. [MR] Há tradução portuguesa – P.-J. Proudhon, O que é
a propriedade?. Lisboa: Estampa, 1997. [N. do T.]

189
C a d e r n o s d e P a r i s

uma terra melhorada. As “faculdades primitivas e indestrutíveis


do solo” que, segundo Ricardo, seriam o objeto da renda, não
passam de uma abstração7.

5. Propriedade e acumulação8
Eis uma observação divertida de Say sobre a função da
propriedade: função
na verdade cômoda, mas que, no estado atual das nossas socie-
dades, exigiu uma acumulação, fruto de uma produção e uma
poupança, vale dizer, de uma privação anterior (op. cit., p. 92).

Esta “privação anterior” é uma ideia plenamente justificada,


mas não no sentido que Say lhe atribui – porque a acumulação
já supõe a privação principal, a propriedade, que ela deve ex-
plicar. Privação, porque a produção cabe aos trabalhadores e a
poupança aos capitalistas9.

6. Preço natural e preço corrente


Segundo Smith, o preço natural se compõe de salário, de
renda e de lucro. Embora a terra seja indispensável à produção, a
renda não faz parte necessária dos custos de produção. Também
o lucro não é uma parte dos custos de produção. A necessidade
da terra e do capital para a produção só pode ser computada nos
7 “A renda [...] é a parte do produto da terra que se paga ao proprietário pelo direito
de explorar as capacidades produtivas do solo [...]. Ela deve ser distinguida do juro
e do lucro do capital (Ricardo, op. cit., p. 56). [BE]
8 Marx desenvolverá esta questão na oitava seção d’O capital, livro I, intitulada “A
acumulação primitiva”. [MR] Na edição brasileira d’O capital, tradução de Reginaldo
Sant’Anna (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, livro I, volume 1), o texto
referido por Maximilen Rubel encontra-se à p. 828 e ss. [N. do T.]
9 O texto traduzido por BE (cf. Cuadernos del 1844, ed. cit., p. 93) completa esta
frase com a seguinte explicação, que Marx transcreve de Ricardo: “Porque, com
a complexidade da produção, aumenta também o valor de troca dos produtos, de
modo que o proprietário ganha duplamente: primeiro, porque obtém uma parte
maior e, depois, porque é pago em produtos de valor maior”. [N. do T.]

190
K a r l M a r x

custos na medida em que o trabalho etc. é requerido para manter


o capital e a terra. Seus custos de reprodução. Mas apenas o
surplus,10 o excedente sobre estes custos constitui os juros e o
lucro, o arrendamento e a renda da terra. Por consequência, o
preço de todas as coisas é muito elevado, como Proudhon já o
demonstrou. Além do mais, a taxa natural do salário, da renda
e do lucro depende inteiramente do costume e do monopólio e,
em última instância, da concorrência; não derivam da natureza
da terra, do capital e do trabalho. Os custos de produção são eles
mesmos determinados pela concorrência e não pela produção.
Ricardo diz que, mencionando o “valor de troca”, se refere
sempre ao “preço natural” e negligencia os acidentes da con-
corrência, que designa como “qualquer causa momentânea ou
acidental” (op. cit., p 125). A Economia Política, para dar mais
consistência e precisão às suas leis, tem que supor a realidade
como acidental e a abstração como real. A este propósito, Say
observa (op. cit., p. 126, nota) que “o preço natural [...] parece
ser quimérico. Na Economia Política só há preços correntes”. E
o demonstra dizendo que os preços do trabalho, do capital, da
terra, não se determinam segundo uma taxa fixa, mas conforme a
relação entre a quantidade oferecida e a quantidade demandada.
Admitindo o preço natural, Smith colocava ao menos a ques-
tão: como o trabalho, o capital, o preço, a terra são determinados
pelos custos de produção? Eis uma questão que tem sentido,
fazendo-se abstração da propriedade privada – o preço natural
são os custos de produção.
Então, na communauté 11, poder-se-ia colocar a questão de
saber se a terra produzirá melhor este ou aquele bem, se ela
compensará o trabalho e o capital investidos. Mas, uma vez

10 Em francês no texto: excedente [N. do T.]


11 Em francês no texto: comunidade [N. do T.]

191
C a d e r n o s d e P a r i s

que a Economia Política trata apenas dos preços correntes, as


coisas já não são consideradas em relação a seus custos de pro-
dução, nem em relação aos homens, porém toda a produção é
considerada apenas sob o ângulo do tráfico sórdido12.

7. Propriedade e leis dos pobres


Na Inglaterra, a legislação sobre os pobres13 tende fatal-
mente a
transformar a riqueza e a potência em miséria e fragilidade, fazen-
do o homem renunciar a todo trabalho que não tenha por único
fim a procura da subsistência. Já não haveria distinções quanto
às faculdades intelectuais, o espírito só se ocuparia da satisfação
das necessidades do corpo até que todas as classes fossem lançadas
numa indigência universal ([Ricardo] op. cit., p. 139).

Recorde-se bem que, no início deste capítulo, o filantrópico


Ricardo definiu os meios de subsistência como o preço natural do

12 “O trabalho [...] fundamento do valor das coisas [...] a quantidade de trabalho


necessária para produzi-las [...] a regra que determina as quantidades respectivas
de mercadorias que se podem entregar em troca de outras [...] no preço de mercado
das mercadorias, certo desvio acidental e passageiro deste preço primitivo e natural ”
(Ricardo, op. cit., p. 105). “O trabalho foi o primeiro preço, a moeda com que se pagou na
compra primitiva de todas as coisas. Não foi absolutamente com ouro e dinheiro, mas
com trabalho que foram compradas originariamente todas as riquezas do mundo.
Seu valor, para aqueles que as possuem e as querem trocar por novos produtos, é
precisamente igual à quantidade de trabalho que elas estão em condições de comprar
ou utilizar” (Smith, op. cit., p. 60-61). [BE]
13 A legislação sobre os pobres surgiu na Inglaterra em 1601, sob o reinado de Elizabeth
ou Isabel I (1533-1603), através da “Lei dos pobres” (Poor Law). Assentava em quatro
princípios: a) a obrigação do socorro aos necessitados; b) a assistência pelo trabalho;
c) o imposto cobrado para o socorro aos pobres; d) a responsabilidade das paróquias
pela assistência de socorros e de trabalho. Em 1834, sofreu grande reformulação,
mediante um “Ato de alteração da Lei dos pobres” (Poor Law Amendment Act), que
a adequou a exigências burguesas, com forte repressão sobre os pobres considerados
aptos para o trabalho – mas já desde 1697 existiam as temidas “casas de trabalho”
(workhouses). Engels, n’A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (S. Paulo:
Boitempo, 2010, esp. p. 61, 297, 316 e ss.) discorre sobre aquela legislação e tais
estabelecimentos. [N. do T.]

192
K a r l M a r x

operário – logo, como o único objetivo do seu trabalho, porque


ele trabalha em função do salário14. Que fazem aí as faculdades
intelectuais? Mas ao que Ricardo visa são, verdadeira e unica-
mente, as distinções entre as diversas classes. Trata-se do círculo
vicioso habitual da Economia Política: o fim é a liberdade do
espírito – então, para a maioria, a servidão embrutecedora. As
necessidades físicas não são o único objetivo – portanto, para
a maioria, convertem-se no objetivo único. Ou inversamente: o
fim é o matrimônio – para a maioria, pois, a prostituição. O fim
é a propriedade – logo, para a maioria, nenhuma propriedade.

8. Superprodução e crise
A Economia Política não conhece apenas o milagre da
superprodução e da supermiséria, mas também o do contraste
entre o crescimento dos capitais e seus métodos de emprego de
um lado e, doutro, como consequência de tal crescimento, a
escassez de oportunidades produtivas.
Na situação atual, a importância da teoria de Ricardo reside
apenas em que ela mostra como, no curso de uma acumulação
progressiva, a concorrência entre os capitalistas e a queda de
seus lucros não acarretam necessariamente, como Smith su-
punha, uma elevação dos salários. Neste momento, em todos
os países industriais, o número de trabalhadores ultrapassa a
sua demanda e eles podem ser recrutados cotidianamente no
proletariado sem trabalho. Inversamente, a acumulação, junto
à concorrência, reduz continuamente o salário.

14 “O preço natural do trabalho é aquele que proporciona aos operários, em geral, os


meios para subsistir e para propagar a sua espécie, sem aumento e sem redução [...].
O preço natural do trabalho depende do preço dos meios de subsistência e das coisas
necessárias ou úteis para a manutenção do operário e sua família. Uma elevação
dos preços dessas coisas fará com que se eleve o preço natural do trabalho, o qual
se reduzirá se tais preços baixarem” (Ricardo, op. cit., p. 115). [BE]

193
C a d e r n o s d e P a r i s

Ricardo, tanto como Say – que pensa como ele (t. II, p.
95, nota) e que foi o primeiro a formular o princípio segundo
o qual a demanda da produção só é limitada pela própria pro-
dução –, não pode responder a esta questão: de onde provêm
a concorrência e as falências, as crises comerciais etc., se todo o
capital encontra seu emprego correspondente, se este emprego
está sempre em proporção ao número de capitais? Com esta
simples proposição, estes senhores suprimiriam o seu princípio
maior, a concorrência, tanto como a razão deste princípio e de
toda a sua sabedoria, ou seja: que cada indivíduo (bem enten-
dido, um indivíduo não sem dinheiro) sabe perfeitamente o que
corresponde a seus interesses e, por consequência (consequência
carregada de conteúdo), ao interesse da sociedade. Por que razão
esses sábios indivíduos se arruinariam a si mesmos e causariam a
ruína de outros se, para todo capital, há uma utilização lucrativa
sempre disponível?

9. Renda bruta e renda líquida


Negando qualquer importância à renda bruta – isto é: à
quantidade da produção e do consumo que não constitui o
excedente e, portanto, negando toda importância à vida mes-
ma –, as abstrações próprias da Economia Política atingem o
cúmulo da infâmia15. Daí resulta: 1º) que a Economia Política
não se preocupe absolutamente com o interesse nacional, com o

15 “Que benefício pode extrair um país de uma grande quantidade de trabalho


produtivo se, com esta quantidade ou uma menor, o total de suas rendas e lucros
permanece constante? O produto total da indústria e da terra se divide em três partes:
salários, lucro e renda. Somente no caso destas duas últimas é possível aumentar os
gastos ou poupar, já que a primeira, quando é adequada, é sempre igual aos custos
de produção necessários. Assim, pois, a uma pessoa que obtém 2.000 libras de lucro
com um capital de 20.000 libras, será completamente igual que seu capital ponha
em movimento 100 ou 1.000 homens, ou que seus produtos se vendam por 10.000
ou por 20.000 libras – desde que seus lucros nunca caiam abaixo de 2.000 libras.
E não é o mesmo o interesse real de uma nação? Se sua renda líquida e real, seus

194
K a r l M a r x

homem, mas somente com a renda líquida, com o lucro, com a


renda da terra, que nela aparece como o fim supremo da nação;
2º) que, nela, a vida de um homem não tenha nenhum valor; 3º)
que o valor da classe operária limite-se aos custos de produção
necessários e que os operários só existam em função da renda
líquida – vale dizer, para o lucro do capitalista e para a renda
do proprietário fundiário. Eles são e devem ser máquinas de
trabalho cujo custo deve corresponder exatamente às despesas
necessárias para manter o seu funcionamento. Supondo-se um
produto líquido constante, pouco importa o número dessas
máquinas de trabalho. Sismondi afirma, com razão, que, a crer-
-se em Ricardo, o rei da Inglaterra, se pudesse obter a mesma
renda graças a máquinas distribuídas por todo o país, poderia
prescindir do povo inglês16.
No entanto, se Say e Sismondi (na sua Economia política, o
primeiro sustenta que a distinção entre renda líquida e renda
bruta só tem importância para os particulares e não para a na-
ção; para Smith, a importância atribuída à renda bruta sinaliza
uma fraqueza humana, contrária à Economia Política) comba-
tem Ricardo, eles só visam à expressão cínica de uma verdade
econômica. A tese de Ricardo é correta e lógica do ponto de vista
econômico. Se, para lutar contra as consequências inumanas da
Economia Política, Sismondi e Say são obrigados a dar as costas
a esta ciência, o que isto prova? Apenas uma coisa: a humanidade
se situa fora da Economia Política e a inumanidade dentro dela.

ganhos e lucros permanecem iguais, que importa se ela se compõe de 10 ou de 12


milhões de indivíduos?” (Ricardo, op. cit., p. 194). [BE]
16 Cf. S. de Sismondi, Nouveaux principes d’ économie politique ou de la richesse dans
ses rapports avec la population (Paris, 1819, t. I, p. 331): “De fato, resta desejar que
o rei, isolado na ilha, girando continuamente uma manivela, realize, por meio de
autômatos, toda a produção da Inglaterra”. [MR] Esta obra de Sismondi foi editada
no Brasil: Novos princípios de economia política (1819-1827). Curitiba: Segesta, 2009.
[N. do T.]

195
C a d e r n o s d e P a r i s

A teoria de Ricardo nos oferece a chave do problema: a renda


líquida é nada menos que o lucro do capitalista e a renda do
proprietário fundiário – e a Economia Política não considera o
operário porque este é a máquina que cria tais ganhos privados.
As objeções econômicas e políticas de Say são ineptas – com
sete milhões de operários, a poupança seria maior que com
cinco milhões. Uma população numerosa protege melhor dos
Átilas que os
capitalistas especuladores, ocupados, no fundo dos seus escritó-
rios, com o balanço dos preços correntes das principais praças
da Europa e da América [...]. Há uma massa maior de felicidade
numa população de sete milhões [...] que numa de cinco milhões17.

A isto poder-se-ia replicar: sete milhões desperdiçam mais


que cinco. Por outra parte, Ricardo afirma que o valor do
homem é proporcional a uma grandeza dada de poupança.
Say considera que uma população numerosa é uma excelente
carne para canhão, um perfeito corpo de proteção para os
capitalistas especuladores instalados em seus escritórios. Mas
uma população numerosa não será também um risco para esses
especuladores quando reclamar a sua parte na renda líquida?
Enfim, há, seguramente, mais miséria entre uma população de
sete milhões que numa de cinco milhões.
Say, finalmente, escreve:
Parece que o homem só está no mundo para poupar e acumular!
[...] Produzir e consumir, eis o que é próprio à vida humana, eis
o seu objetivo principal (p. 198, nota).

Se este é o objetivo da vida, a Economia Política atende-o


muito mal, porque, para ela, consumir e produzir não são o
destino do operário.

17 Cf. Ricardo, op. cit., t. II, p. 195 (anotação de Say). [MR]

196
K a r l M a r x

Se se pretende que, do ponto de vista da nação, a distinção


entre renda bruta e renda líquida não é pertinente – qual a
conclusão? A distinção entre capital e lucro, terra e renda da
terra, teu capital e o meu não tem razão de ser para a Economia
Política. Então, por que a classe operária hesitaria em suprimir
esta diferença que, se não tem sentido para a comunidade, é
fatal para ela? E para que o ponto de vista da economia-nacional
não permaneça uma abstração, o capitalista e o proprietário –
tão membros da nação como o operário – deveriam chegar à
seguinte conclusão: pouco importa que eu ganhe mais, o que
importa é que o ganho nos beneficie a todos; dito de outro
modo: o capitalista deveria suprimir o ponto de vista do inte-
resse particular e, se não o quiser fazer ele mesmo, que outros
tenham o direito de fazê-lo em seu lugar.
Várias vezes tivemos ocasião de admirar o cinismo do eco-
nomista Ricardo, cinismo isento de qualquer ilusão humana.
Com ironia, faz contra Say a seguinte e mordaz observação:
‘Felizmente – diz o sr. Say –, a tendência natural das coisas conduz
preferencialmente os capitais não para onde realizariam os maiores
lucros, mas para onde a sua ação é mais benéfica para a sociedade’
(Liv. II, cap. VIII, § 3). O sr. Say não nos diz quais atividades,
sendo as mais lucrativas para os particulares, não o seriam para o
Estado. Se os países com capitais escassos, mas com terras férteis
em abundância, demoram a voltar-se para o comércio externo é
porque este apresenta menos ganhos aos particulares e, por con-
sequência, menos ganhos para o Estado.

A isto, Say responde:


[1º] Os empregos de capital que, buscando garantir um lucro
ao proprietário do capital, valorizam as faculdades industriais
da população do país, ou as faculdades produtivas do seu solo,
aumentam mais as rendas do país que os empregos que só buscam
as rendas em proveito do capital. [2º] Há também empregos de
capital que, malgrado o lucro que asseguram ao capitalista, não

197
C a d e r n o s d e P a r i s

trazem nenhuma renda para o país. Os ganhos alcançados na


especulação com efeitos públicos, todo ganho que não poderia
ser o lucro de um sem ser a perda de outro, são proveitosos para
o particular que ganha, mas não o são para o país.

Pode-se replicar a isto:


1º A objeção se refere à distinção entre renda bruta e renda
líquida, que já examinamos.
2º Em todo caso, o lucro do país é, de fato, apenas aquele
dos capitalistas e dos proprietários fundiários. A observação de
Say reduz-se à ideia de que os lucros dos capitalistas individuais
podem aumentar sem que aumente o total dos lucros de todos
os capitalistas, uns ganhando o que outros perdem. Portan-
to, a objeção de Say não refuta a tese de Ricardo. Ela apenas
demonstra que há ramos nos quais o lucro de um capitalista
exclui o lucro de outro. Mas não demonstra que todo o lucro
dos capitalistas seja diferente do lucro da nação.
Em última análise, o que significa a observação de Ricar-
do? Apenas uma coisa: separado do lucro dos capitalistas, o
lucro da nação é uma ficção, porque, por nação, entendemos
o conjunto dos capitalistas. Quanto ao capitalista individual,
este, por seu turno, poderia afirmar que para ele o conjunto
dos capitalistas é só uma ficção e que, cada um deles sendo a
nação, seu próprio lucro é o lucro do país. Se se admite que os
interesses particulares dos capitalistas são os interesses da nação,
por que o interesse particular do capitalista individual não
seria idêntico ao interesse geral de todos os capitalistas? O
mesmo direito que o interesse particular dos capitalistas tem
de apresentar-se como o interesse geral do país também o tem
o interesse particular do capitalista individual para apresentar-
-se como o interesse comum de todos os capitalistas, como
o interesse do país. Eis aí uma ficção arbitrária da Economia
Política. Ela parte da oposição entre o interesse particular e

198
K a r l M a r x

o interesse comum, afirmando, não obstante esta oposição,


que são idênticos.
Igualmente, quando Ricardo não compreende por que Say
considera que apenas no caso do comércio exterior, e não no do
comércio interno, todo lucro constitui um benefício útil produzido,
ele quer dizer com isto, em suma, que, num caso como noutro,
há roubo – e pouco importa à nação que seus comerciantes enri-
queçam espoliando mais os estrangeiros que os seus compatriotas,
já que cada comerciante é um estrangeiro em face de sua própria
nação, assim como, em geral, a pátria se estende para o proprietário
privado tão longe quanto as suas propriedades e o estrangeiro co-
meça, para ele, exatamente onde começa a propriedade dos outros.
Eis por que a Economia Política liberal, que descobriu e revelou a
lei segundo a qual a concorrência – vale dizer, a guerra – é a relação
adequada entre esses estrangeiros, rejeita com razão os monopólios
nacionais, que se embasam no preconceito de acordo com o qual
os proprietários privados teriam pátria.

10. Leis econômicas


Falando da compensação da moeda e do valor dos metais
preciosos, assim como apresentando os custos de produção
como o único fator na determinação do valor, Mill18 – como
toda a escola de Ricardo – comete o erro de enunciar a lei
abstrata sem levar em conta a mudança ou a contínua abolição
desta lei, que é precisamente o que permite a sua existência. Se

18 “A quantidade de dinheiro pode ser tão grande que seu valor pode cair abaixo do que
tem como metal precioso; neste caso, a relação original se restabelece graças à restituição
imediata do metal precioso a seu estado de metal precioso em barras”. “Se o valor do
dinheiro é determinado pelo valor do metal precioso, como este último é regulado? [...]
O ouro e a prata são mercadorias que requerem uma inversão de trabalho e capital;
portanto, os custos de produção regulam o valor do ouro e da prata, assim como o de
todos os demais produtos” (James Mill, Éléments d’économie politique. Tradução de J.
T. Parisot. Paris, 1823, p. 136-137). [BE]

199
C a d e r n o s d e P a r i s

é uma lei constante que, por exemplo, os custos de produção


determinam em última instância o preço (valor) – ou sobretudo
quando, periodicamente, acidentalmente, a oferta e a demanda
se equilibram –, também é uma lei não menos constante que esta
compensação não se dá; ou seja: entre valor e custos de produção
não há uma relação necessária. De fato, a oferta e a demanda
só se equilibram momentaneamente, depois de flutuações
precedentes e em consequência da disparidade entre custos de
produção e valor de troca; estas flutuações e esta disparidade
serão sucedidas, novamente, por um equilíbrio momentâneo.
Este movimento real, do qual a lei é apenas um momento
abstrato, contingente e unilateral, é tomado pelos economistas
como acidental e não essencial. Por quê? Porque se os econo-
mistas quisessem enunciar este movimento abstratamente,
deveriam, dentre as fórmulas penetrantes e exatas às quais
reduzem a Economia Política, escolher a fórmula fundamental:
na Economia Política, a lei é determinada pelo seu contrário
– isto é, a ausência de leis. A verdadeira lei da Economia Polí-
tica é o acaso e nós, cientistas, fixamos arbitrariamente alguns
momentos do movimento do acaso sob a forma de leis.

11. O dinheiro e Cristo19


Ao caracterizar o dinheiro como o mediador da troca, Mill
disse algo essencial20. O que, antes de tudo, caracteriza o dinheiro
não é o fato de a propriedade alienar-se nele: a atividade mediadora
é que se aliena nele, é o movimento mediador, o ato humano,
social, através do qual os produtos do homem se complementam

19 Marx formula aqui as mesmas ideias que Moses Hess apresenta em seu ensaio sobre
o dinheiro (Über das Geldwesen), cujo manuscrito lera em finais de 1843. [MR]
20 “O intermediário da troca é aquele artigo que torna efetivo o intercâmbio entre outros
dois artigos ao ser recebido em troca de um e entregue em troca de outro” (Mill, op.
cit., p. 125). [BE]

200
K a r l M a r x

uns aos outros; este ato mediador torna-se a função de uma coisa
material, externa ao homem – uma função do dinheiro.
Através deste mediador externo, o homem, em lugar de
ser ele mesmo o mediador para o homem, experimenta a sua
vontade, a sua atividade, a sua relação com os outros como uma
potência independente de si mesmo e dos outros. Chega aqui ao
cúmulo da servidão. Não é surpreendente que este mediador se
converta em um verdadeiro deus, porque reina onipotentemente
sobre as coisas para as quais ele me serve como intermediário.
Seu culto torna-se um fim em si. Separados deste mediador, os
objetos perdem o seu valor. Se, primitivamente, o dinheiro só
tinha valor na medida em que representava os objetos, estes,
agora, só possuem valor na medida em que o representam21.
Esta inversão da relação primitiva é necessária. Este mediador
é, por consequência, a essência da propriedade privada que se
perdeu a si mesma, que se alienou; é a essência da propriedade
privada tornada exterior a ela mesma, expulsa dela mesma, tan-
to como é a mediação entre as produções humanas, mas uma
mediação alienada, a atividade genérica do homem separada do
homem. Todos os caracteres que pertencem à atividade genérica
da produção, próprios a esta atividade, são transferidos a este
mediador. O homem se empobrece tanto mais como homem
separado deste mediador quanto mais este se torna rico.
Cristo, primitivamente, representa: 1º) os homens diante de
Deus; 2º) Deus para os homens; 3º) os homens para o homem.
De igual modo, o dinheiro – por definição – representa
primitivamente: 1º) a propriedade privada para a propriedade

21 “A parte do produto anual que não entrou de nenhuma forma no intercâmbio –


como a que foi consumida diretamente pelos produtores ou a que não foi entregue
em troca de dinheiro – não deve ser incluída no cálculo, porque tudo aquilo que não
pode ser trocado por dinheiro é, em relação ao dinheiro, como se não existisse” (Mill,
op. cit., p. 132-133). [BE]

201
C a d e r n o s d e P a r i s

privada; 2º) a sociedade para a propriedade privada; 3º) a pro-


priedade privada para a sociedade.
Mas Cristo é o Deus alienado e o homem alienado. Deus
só tem valor na medida em que o representa Cristo; o homem
só tem valor na medida em que o representa Cristo. O mesmo
vale para o dinheiro.
Por que a propriedade privada deve chegar ao dinheiro?
Porque o homem, ser social, deve chegar ao intercâmbio e
porque o intercâmbio – suposta a propriedade privada – deve
chegar ao valor. De fato, o movimento mediador do homem
que intercambia não é um movimento social, humano. Não é
uma relação humana, mas a relação abstrata da propriedade
privada com a propriedade privada, e esta relação abstrata é o
valor, que só existe como tal enquanto dinheiro. Pois, trocando,
os homens não se comportam mutuamente como homens, o
objeto perde a sua significação de propriedade humana, pessoal.
A relação da propriedade privada com a propriedade privada é
já uma relação em que a propriedade privada alienou-se de si
mesma. O dinheiro, que encarna esta relação, é, consequente-
mente, a alienação da propriedade privada, a abstração da sua
natureza específica, pessoal.

12. Economia Política e dinheiro


Apesar do seu refinamento, a Economia Política moderna
que se opõe ao système monétaire22 não pode alcançar uma vi-
tória decisiva. Presos à superstição da sua economia grosseira, o
povo e os governos agarram-se ao pé-de-meia concreto, tangível,
visível, acreditando no valor absoluto dos metais preciosos e na
sua posse como única realidade da riqueza. Vem o economista
esclarecido e informado e lhes demonstra que o dinheiro é uma

22 Em francês no texto: sistema monetário.

202
K a r l M a r x

mercadoria como qualquer outra, cujo valor, como o de toda


mercadoria, depende da relação entre os custos de produção e
a oferta e a demanda (concorrência) de outras mercadorias – e
então eles lhe respondem, com toda a razão, que o valor real das
coisas é o seu valor de troca e que este reside no dinheiro, em
última instância nos metais preciosos e que, portanto, o dinheiro
é o verdadeiro valor das coisas e a coisa mais desejável. Mas as
lições do economista, no fim das contas, já não conduzem a esta
sabedoria? Ele, na verdade, possui a capacidade da abstração,
que lhe permite reconhecer esta existência do dinheiro como
um tipo de mercadoria – e, por isto, não crê no valor exclusivo
da sua existência metálica e oficial.
A existência do dinheiro como metal precioso é apenas a
expressão oficial e palpável da alma-moeda que anima todos
os elementos da produção e todos os movimentos da sociedade
burguesa.
A oposição dos economistas modernos ao sistema monetário
se explica pelo fato de eles terem compreendido a essência do
dinheiro em sua abstração e em sua universalidade; estão livres
da tosca superstição que consiste na crença de que tal essência
existe exclusivamente no metal precioso. Eles substituíram a
superstição tosca por uma superstição refinada. Contudo, como
uma e outra têm uma raiz comum, a superstição na sua forma
esclarecida não chega a substituir inteiramente a superstição
tosca e elementar: ela não enfrenta a sua essência mesma, mas
a forma simples desta essência.

13. Crédito e banco


A existência pessoal do dinheiro como tal – e não apenas como
relação interior, íntima, oculta, de mútua comunicação ou de
hierarquia entre mercadorias –, esta existência corresponde tanto
mais à essência do dinheiro quanto mais é abstrata, quanto menor

203
C a d e r n o s d e P a r i s

é a sua relação natural com as outras mercadorias, quanto mais


evidente é o seu caráter de produto do homem e, no entanto, de
não produto do homem, quanto menor é o elemento natural que
a constitui, quanto maior é sua característica de criação humana;
em termos da Economia Política: quanto maior é a proporção
inversa entre seu valor como dinheiro e o valor de troca ou o valor
monetário do material em que existe. Por isto, o papel-moeda
e o grande número de papéis que representam o dinheiro (tais
como letras de câmbio, ordens de pagamento, obrigações etc.) são
uma forma aperfeiçoada do dinheiro como tal e um momento
necessário no progresso e desenvolvimento do sistema monetário.
No sistema creditício, cuja expressão completa é o sistema
bancário, tem-se a impressão de que foi quebrada a força desse
poder alheio, material, de que a alienação foi abolida e que o
homem se encontra novamente em relações humanas com o
homem. Enganados por esta aparência, os saint-simonianos
consideram o desenvolvimento do dinheiro, das letras de
câmbio, da substituição do dinheiro pelos papéis, do sistema
creditício e bancário como uma abolição progressiva da sepa-
ração entre o homem e os objetos, entre o capital e o trabalho,
entre a propriedade privada e o dinheiro, entre o dinheiro e o
homem – o fim da separação entre o homem e o homem. Eles
têm, por isto, como um ideal um sistema bancário organizado,
mas esta supressão da alienação, este retorno do homem a si
mesmo e aos outros homens, não passa de ilusão. Trata-se de
uma autoalienação, uma desumanização tanto mais infame e
tanto mais extrema na medida em que seu elemento não é mais
a mercadoria, o metal, o papel, mas a existência moral, a exis-
tência social, o íntimo do coração humano – sob a aparência da
confiança do homem no homem, é a suprema desconfiança e a
alienação total. Em que consiste a essência do crédito? Fazemos
aqui a inteira abstração do conteúdo do crédito, que é sempre

204
K a r l M a r x

o dinheiro. Desconsideramos, pois, o conteúdo dessa confian-


ça, segundo o qual um homem reconhece outro homem pelo
fato de emprestar-lhe valores e – no melhor dos casos, ou seja,
quando não se faz pagar pelo seu crédito, quando não é um
usurário – não tê-lo na conta de um patife, mas de um homem
“bom”. Para quem concede o crédito, assim como para Shylock,
homem “bom” é homem “que paga”23.
O crédito pode ser concebido em duas relações e sob duas
condições diferentes. Vejamos as duas relações. Na primeira,
um rico concede crédito a um pobre que considera trabalhador
e honesto. Este gênero de crédito pertence à esfera românti-
ca, sentimental, da Economia Política – a seus desvios, seus
excessos, suas exceções e não à regra. Entretanto, mesmo se
supusermos esta exceção, se admitirmos esta possibilidade
romântica, vemos que a vida do pobre, seu talento e sua ati-
vidade são apenas, aos olhos do rico, uma garantia do paga-
mento do que foi emprestado – dito de outra forma: todas as
virtudes sociais do pobre, o conteúdo da sua atividade vital,
a sua própria existência representam, para o rico, a garantia
do reembolso do seu capital e dos juros usuais. A morte do
pobre é, portanto, o pior que pode ocorrer para o credor – é
a morte do seu capital e dos seus juros. Pense-se no que há de
abjeto em avaliar um homem em dinheiro – tal como se dá
no caso do crédito. Está subentendido que, além das garantias
morais, o credor dispõe, em relação ao devedor, de garantias e
coações jurídicas, sem falar de outras garantias mais ou menos
reais. Na segunda relação, quando quem recebe o crédito é um
homem de fortuna, o crédito não é mais que o intermediário
conveniente da troca, ou seja, o próprio dinheiro elevado a
23 Shylock, judeu agiota e vingativo, é personagem de O mercador de Veneza, comédia
escrita por Shakespeare em 1594 ou 1596. Dentre as várias traduções ao português,
cite-se a de Bárbara Heliodora (Rio de Janeiro: Lacerda, 1999). [N. do T.]

205
C a d e r n o s d e P a r i s

uma forma totalmente ideal. O crédito é o julgamento que a


Economia Política realiza sobre a moralidade de um homem.
No crédito, em lugar do metal ou do papel, é o próprio ho-
mem que se torna o mediador da troca – não como homem,
mas como modo de existência de um capital e de seus juros.
Assim, deixando sua forma material, sem dúvida o meio de
troca retornou ao homem e se reincorporou ao homem, mas
unicamente porque o próprio homem lançou-se para fora de
si e se tornou para si mesmo uma forma material. Não é o
dinheiro que se suprime no homem no interior do sistema
creditício; é o próprio homem que se converte em dinheiro
ou, noutra expressão, é o dinheiro que se encarna no homem.
A individualidade humana, a moral humana, transformam-
-se, simultaneamente, em artigo de comércio e na existência
material do dinheiro. Em lugar do dinheiro, do papel, é a
minha existência pessoal, a minha carne e o meu sangue, a
minha virtude social e a minha reputação social que se tornam
a matéria e o corpo do espírito do dinheiro. O crédito calcula
o valor monetário não em dinheiro, mas em carne e coração
humanos. Este é o ponto em que todos os progressos e todas
as inconsequências ocorrentes no interior de um sistema falso
constituem a suprema regressão e a suprema consequência da
abjeção.
No interior do sistema creditício, a natureza alienada do
homem se afirma duplamente sob a aparência do máximo
reconhecimento econômico do homem: 1º) entre o capi-
talista e o operário, entre o grande capitalista e o pequeno
capitalista, aprofunda-se a oposição, porque o crédito só é
concedido a quem já possui, constituindo para o rico uma
nova oportunidade de acumulação, enquanto o pobre – cuja
existência depende dessa oportunidade – a vê assegurada ou
negada segundo o arbítrio do rico ou conforme a opinião

206
K a r l M a r x

casual formada sobre ele; 2º) a mistificação, a hipocrisia e a


vigarice recíprocas são levadas ao cúmulo; quanto àquele que
não recebe crédito, não é julgado apenas como um pobre,
mas também moralmente, como quem não merece confiança
nem estima, um pária, um homem mau – à miséria do pobre
soma-se a humilhação de rastejar para mendigar crédito ao
rico; 3º) dada essa existência completamente ideal do dinheiro,
o homem pode praticar a falsificação monetária não só sobre
qualquer matéria, mas ainda sobre a sua pessoa: o próprio
homem, forçado a falsificar sobre si mesmo, deve simular,
mentir etc. para obter crédito; assim, o crédito se torna – tanto
para quem o concede quanto para quem o solicita – objeto de
tráfico, de engano e de abuso mútuos. Aqui se revela, com toda
a clareza, como, na base dessa confiança econômica, estão: a
desconfiança, o cálculo suspeitoso para conceder ou negar o
crédito; a espionagem em busca dos segredos da vida privada
do solicitante; a denúncia de dificuldades momentâneas de
um concorrente para desacreditá-lo etc. – todo esse sistema de
falências e empresas falsas... No crédito público, o Estado ocupa
a mesma posição que acabamos de caracterizar para o homem
particular. Na especulação com os valores públicos, vê-se muito
bem como o Estado se tornou o joguete dos comerciantes etc.;
4º) enfim, o sistema creditício encontra seu acabamento no
sistema bancário. A criação do banqueiro, o poder público da
banca, a concentração da fortuna nessas mãos, este areópago
econômico da nação, eis a digna coroação do sistema monetário.
Quando, no sistema creditício, a avaliação moral de um homem,
assim como a confiança no Estado etc., toma a forma do crédito,
o mistério que se oculta sob a mentira dessa avaliação, a infâmia
imoral dessa moralidade, tanto como a hipocrisia e o egoísmo
dessa confiança no Estado – tudo isso emerge e aparece à luz
do dia tal como é na realidade.

207
C a d e r n o s d e P a r i s

14. Comunidade e indivíduo24


O intercâmbio, tanto da atividade humana no interior da
produção quanto dos produtos humanos, identifica-se à ativi-
dade e ao gozo genéricos, cuja realidade consciente e verdadeira
é a atividade social e o gozo social. Sendo a essência humana a
verdadeira comunidade dos homens, estes produzem afirmando
a sua essência, a comunidade humana, o ser social – que não é
uma potência geral, abstrata diante do indivíduo isolado, mas
o ser de cada indivíduo, a sua própria atividade, o seu próprio
gozo, a sua própria riqueza. Esta verdadeira comunidade não
nasce da reflexão: ela parece ser o produto da necessidade e do
egoísmo dos indivíduos – dito de outro modo: da afirmação
imediata da sua própria existência. A realização desta comuni-
dade não depende apenas da vontade humana; porém, enquanto
o homem não se reconhecer como tal e não organizar o mundo
de modo humano, esta comunidade terá a forma da aliena-
ção – o seu sujeito, o homem, está alienado de si mesmo. Esta
comunidade são os homens, alienados não na abstração, mas
enquanto indivíduos reais, vivos, particulares – tais homens,
tal comunidade. Dizer que o homem está alienado de si mesmo
é dizer que a sociedade deste homem alienado é a caricatura
da sua comunidade real, da sua verdadeira vida genérica; que a
sua atividade se lhe apresenta como um tormento, suas próprias
criações como um poder alheio, sua riqueza como pobreza, o
vínculo profundo que o liga aos outros homens como vínculo
artificial, a separação em face dos outros homens como sua

24 Marx transpõe aqui a crítica de Feuerbach da religião para o domínio da Economia


Política; a concepção do homem, ser genérico, torna-se concepção do homem
como ser social, e o conceito ético da alienação se enriquece progressivamente com
determinações sociológicas. [MR] O essencial da crítica de Feuerbach à religião
encontra-se na sua obra, de 1841, A essência do cristianismo. Campinas: Papirus,
1988. [N. do T.]

208
K a r l M a r x

verdadeira existência; que a sua vida é o sacrifício da sua vida;


que a realização do seu ser é a desrealização da sua vida; que,
na sua produção, produz o seu nada; que o seu poder sobre o
objeto é o poder do objeto sobre ele; que, senhor da sua pro-
dução, aparece como escravo dela.
Ora, é sob a forma do intercâmbio e do comércio que a
Economia Política concebe a comunidade dos homens – ou
seja, a sua humanidade em ato, a sua integração recíproca
mediante uma existência na solidariedade, numa vida ver-
dadeiramente humana. A sociedade, diz Destutt de Tracy, é
uma série de trocas mútuas; é precisamente este movimento
de mútua integração. A sociedade, diz Adam Smith, é uma
sociedade de atividades comerciais; cada um de seus membros
é um comerciante.
Vê-se como a Economia Política fixa a forma alienada das
relações sociais como o modo essencial e original do intercâm-
bio humano e o considera como adequado à vocação humana.

15. Propriedade privada e homem total


A Economia Política – assim como o movimento real –
tem como ponto de partida a relação do homem com o homem
como relação de proprietário privado com proprietário privado.
O homem é pressuposto como proprietário privado, ou seja,
como possuidor exclusivo que afirma a sua personalidade, que
se diferencia dos outros e se relaciona com eles através dessa
posse exclusiva: a propriedade privada é o seu modo de exis-
tência pessoal, distintivo – logo, a sua vida essencial. Assim,
a perda da propriedade privada ou a renúncia a ela é tanto
uma despossessão do homem quanto da propriedade privada
mesma. Detenhamo-nos neste último ponto. Quando cedo
minha propriedade a outro, ela deixa de ser minha; torna-se
algo independente de mim, fora do meu alcance, uma coisa

209
C a d e r n o s d e P a r i s

que me é exterior. Alieno a minha propriedade. Coloco-a como


propriedade alienada em relação a mim. Porém, alienando-a
em relação a mim, coloco-a como um objeto alienado em geral:
suprimo minha relação pessoal para com ela, restituo-a às forças
elementares da natureza. Ao mesmo tempo em que deixa de
ser a minha propriedade privada – isto é, em que ela entra com
outro na mesma relação que tinha para comigo, numa palavra:
que se torna propriedade de outro –, ela se torna propriedade
alienada sem deixar de ser propriedade privada. Tirante o caso
da violência, o que me leva a alienar a minha propriedade a
outro? A Economia Política, com razão, responde: a carência,
a necessidade. O outro é também proprietário privado, mas
possui um outro objeto, que me falta e do qual não posso ou
não quero me privar, um objeto que me parece ser necessário
para completar a minha existência e realizar o meu ser.
O vínculo que relaciona dois proprietários privados reside
na natureza específica dos dois objetos que constituem a matéria
da sua propriedade privada. O desejo que têm desses objetos,
a necessidade que têm do objeto do outro demonstra aos pro-
prietários privados – e os torna conscientes de que, para além
da propriedade privada, mantêm com os objetos uma relação
muito diferente, uma relação essencial: demonstra-lhes que
cada um deles não é o ser particular que acredita ser, mas que
é um ser total cujas necessidades mantêm com os produtos do
trabalho do outro uma relação de propriedade interna – porque
a necessidade que tenho de uma coisa é a prova evidente, irre-
futável, de que ela pertence ao meu ser, que a existência deste
objeto é para mim, que o seu atributo é próprio e particular à
minha natureza 25.
25 Sobre o homem como ser “universal” ou “total”, cf. L. Feuerbach, Principes de la
philosophie de l’avenir (1843). “O homem não é um ser particular, como o animal,
mas um ser universal, que, por esta razão, não é um ser limitado e cativo, mas um

210
K a r l M a r x

Os dois proprietários, pois, são levados a renunciar à sua


propriedade, mas o fazem de modo a afirmar, ao mesmo tempo,
a propriedade privada – renunciam à propriedade privada sem
abandonar a relação do seu próprio sistema. Por consequência,
cada um aliena ao outro uma parte da sua propriedade.

16. Troca, valor e preço


A relação social dos dois proprietários é a reciprocidade da
alienação, a alienação na dualidade das suas relações, ao passo
que, na propriedade simples, a alienação produz-se apenas em
relação a ela mesma.
Portanto, o intercâmbio ou a troca é o ato social, o ato
genérico, a comunidade, o comércio social e a integração dos
homens no interior da propriedade privada – é, pois, o ato
genérico exterior, alienado. Por isto, aparece como troca e, na
verdade, é o contrário da relação social.
Pelo desapossamento ou pela alienação recíproca da
propriedade privada, esta adquire a determinação de pro-
priedade alienada. Porque, primeiro, deixou de ser o produto
do trabalho, a personalidade exclusiva e distintiva do seu
proprietário; este a alienou, está afastada dele, de quem era o
produto; ela adquiriu uma importância pessoal para aquele que
não a produziu e perdeu sua significação pessoal para o seu
produtor. Segundo, ela foi posta em relação com uma outra
propriedade privada, à qual foi identificada; foi substituída

ser ilimitado e livre [...]; esta liberdade e esta universalidade se estendem ao seu
ser total ” (L. Feuerbach, Manifestes philosophiques. Paris, 1960, p. 196). São estes
manuscritos parisienses, inspirados em Feuerbach, que nos oferecem a definição do
“homem total” e do “indivíduo integral” de que fala Marx n’O capital (cf. Oeuvres,
t. I, p. 987, 992). [MR]. Esta última referência de Maximilien Rubel encontra-se, na
edição brasileira já citada d’O capital, no livro I, vol. 1, às p. 554 e 559. O primeiro
texto feuerbachiano citado foi traduzido ao português – L. Feuerbach, Princípios
da filosofia do futuro. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008. [N. do T.]

211
C a d e r n o s d e P a r i s

por uma propriedade de natureza diferente e substituiu uma


outra, também de natureza diferente. Assim, dos dois lados,
a propriedade privada parece representar uma propriedade de
natureza diferente, a identidade de um outro produto natural,
e os dois lados ligam-se de tal modo que cada um representa a
existência do outro e os dois se relacionam um ao outro como
substitutos deles mesmos e do outro. A existência da proprie-
dade privada como tal, portanto, tornou-se um substituto,
um equivalente. Em lugar da sua unidade imediata consigo
mesma, ela existe somente como uma relação a qualquer outra.
Como equivalente, sua existência não é mais a sua própria
particularidade. Ela se converteu, pois, em valor, e direta-
mente em valor de troca. Sua existência como valor é uma
determinação diferente da sua existência imediata, é exterior
à sua natureza específica; é uma determinação alienada de si
mesma, uma existência relativa da sua natureza.
Mostraremos noutro lugar como este valor se determina
mais precisamente e como se converte em preço.

17. O trabalho lucrativo


No sistema do intercâmbio, o trabalho toma diretamente
um caráter lucrativo. Esta forma do trabalho alienado atinge
seu ponto culminante nos dois fenômenos seguintes: 1º) o
trabalho lucrativo e o produto do operário não estão em
relação direta com a sua necessidade e a sua vocação; são
impostos ao operário por combinações sociais alheias a ele;
2º) aquele que compra o produto não o produz ele mesmo,
mas troca o que foi produzido por outro. Nesta forma gros-
seira da propriedade alienada, a troca, cada um dos dois
proprietários produzia coisas sob o impulso direto da sua
necessidade, das suas capacidades e das matérias naturais
existentes. Por consequência, cada um só trocava com o

212
K a r l M a r x

outro o excedente da sua produção. Na verdade, o trabalho


era a fonte da subsistência direta, mas, ao mesmo tempo,
a afirmação da existência individual. Com o intercâmbio,
o trabalho torna-se em parte uma fonte de aquisição. Sua
finalidade e sua realidade não são mais as mesmas. O pro-
duto é produzido como valor, como valor de troca, como
equivalente – e não mais por causa da sua relação imediata
e pessoal com o produtor. Tanto mais a produção e as ne-
cessidades se diferenciam, mais os trabalhos do produtor
são uniformes e mais o seu trabalho cai sob a categoria do
trabalho lucrativo. Finalmente, o trabalho adquire somente
esta significação quando se torna inteiramente acidental ou
inessencial para que o produtor se vincule ao seu produto
com uma relação de gozo imediato e de necessidade pesso-
al – igualmente, pouco importa que a atividade, a ação do
trabalho, seja para ele um gozo da sua personalidade, uma
realização dos seus dons naturais e dos seus fins espirituais.
Eis as implicações do trabalho lucrativo: 1º) em relação ao
sujeito, o trabalho é alienado e acidental; 2º) mesma situação
do trabalho em relação ao objeto; 3º) o trabalhador submete-se
a necessidades sociais que lhe são alheias e impostas – aceita-as
pela sua necessidade egoísta e em desespero de causa; elas não
têm para ele nenhum significado, salvo o de serem a fonte de
satisfação das suas necessidades mais elementares; o trabalhador
é o escravo das necessidades sociais; 4º) para o trabalhador, a
finalidade da sua atividade é conservar a sua existência indivi-
dual – tudo o que faz é realmente apenas um meio: vive para
ganhar meios de vida.
Mais o poder da sociedade se apresenta maior e mais or-
ganizado no sistema da propriedade privada, mais o homem
se torna egoísta: sente-se estranho em face da sociedade e em
face de seu próprio ser.

213
C a d e r n o s d e P a r i s

18. Divisão do trabalho e dinheiro26


Assim como o intercâmbio dos produtos da atividade hu-
mana aparece como troca e tráfico, assim também a integração
recíproca e o intercâmbio da própria atividade aparecem como
divisão do trabalho, que faz do homem um ser abstrato, uma
máquina-instrumento etc., reduzindo-o a um monstro físico
e intelectual.
Se a unidade do trabalho humano é concebida apenas sob o
aspecto da divisão, isto significa que o ser social só existe sob a
forma da alienação, como um ser que é o contrário de si mesmo.
No interior da divisão do trabalho, o produto, a matéria da
propriedade privada, toma cada vez mais o significado de um
equivalente; e como o produtor não troca mais o seu excedente,
mas um objeto que produziu na indiferença total, ele não o troca
mais diretamente por um objeto do qual tem necessidade. O
equivalente toma a forma do dinheiro, que é então o resultado
imediato do trabalho lucrativo e o mediador do intercâmbio.
(Ver mais acima.)
O dinheiro encarna a indiferença total em face da natureza
da matéria, da natureza específica da propriedade, assim como
em face da personalidade do proprietário – o dinheiro encarna
a dominação total do objeto alienado sobre o homem.
Não é mais a dominação da pessoa sobre a pessoa: agora,
é a dominação universal do objeto sobre a pessoa, do produto
sobre o produtor. Assim como o equivalente, o valor, implica

26 O tema dos efeitos destrutores da divisão do trabalho será desenvolvido n’O capital,
livro I, caps. XIV e XV. No seu Esboço..., Engels remete as diversas separações
“refinadas”, “contra-natureza”, caras ao economista, à separação fundamental do
capital e do trabalho, assim como ao crescente antagonismo entre capitalistas e
trabalhadores (Werke. Berlin: Dietz Verlag, 1958, I, p. 511 e ss.). [MR] A referência
de Maximilien Rubel a’O capital, na edição brasileira citada, é encontrada nos
capítulos XII e XIII (livro e volume citados, p. 386-579). Sobre o texto de Engels,
cf., supra, a nota 1. [N. do T.]

214
K a r l M a r x

o conceito da alienação da propriedade privada, o dinheiro


encarna a existência material desta alienação.
Compreende-se que a Economia Política só pode conceber
todo este processo como um simples fato, como o produto de
uma miséria acidental.
A separação do trabalho de si mesmo = a separação entre o
operário e o capital, cuja primeira forma se subdivide em pro-
priedade fundiária e propriedade móvel... A determinação inicial
da propriedade privada é o monopólio; desde que ela se dá uma
constituição política, a sua forma só pode ser a do monopólio. O
monopólio acabado é a concorrência. Para o economista, ocorre
a divisão entre a produção e o consumo e, como intermediário
entre uma e outro, há o intercâmbio ou a distribuição. A separação
entre a produção e o consumo, entre a atividade e o espírito – entre
diferentes indivíduos ou num só – é a separação do trabalho em
relação a seu objeto e em relação a si mesmo enquanto espírito.
A distribuição é a potência em ação da propriedade privada. As
separações recíprocas do trabalho, do capital, da propriedade
fundiária, assim como o trabalho separado do capital, o capital
separado do capital e a propriedade separada da propriedade e,
enfim, a separação do salário, do capital e do lucro e da proprie-
dade privada e da renda – todas essas separações fazem com que
a alienação de si se manifeste como tal sob o aspecto da alienação
de todos em relação a todos.

19. Produzir para ter


Duas coisas são necessárias para constituir uma demanda: o desejo
de ter uma mercadoria e a posse de um objeto equivalente que
se pode oferecer em troca dela. Uma demanda significa o desejo
de comprar e o meio para fazê-lo. Se falta um dos dois, a compra
não pode realizar-se. A posse de um objeto equivalente é a base
necessária de toda demanda (James Mill, loc. cit., p. 252).

215
C a d e r n o s d e P a r i s

Mill analisa aqui, com o seu cinismo e a sua argúcia ha-


bituais, o intercâmbio sobre a base da propriedade privada 27.
O homem – esta é a pressuposição fundamental da proprie-
dade privada – só produz para ter. A finalidade da produção é
a posse. E a produção não tem apenas esta finalidade útil; tem
uma finalidade egoísta: o homem só produz para possuir para
si mesmo. O objeto da sua produção é a materialização da sua
necessidade imediata, egoísta. O homem que vive para si – no
estado selvagem, bárbaro – tem a medida da sua produção na

27 “É consumo improdutivo todo aquele que não acresce o produto, que não serve
para adquirir, mediante uma coisa, outra equivalente”. “O consumo produtivo
é, em si, um meio, um meio para a produção; o consumo improdutivo não é um
meio, é um fim – o prazer que oferece o consumo é o motivo de toda a operação
precedente”. “Tudo o que se consome de maneira produtiva é capital. Esta é uma
propriedade especialmente curiosa do consumo produtivo. O que se consome de
maneira produtiva é capital e torna-se capital mediante o consumo”. “O trabalho
produtivo corresponde ao consumo produtivo e o trabalho improdutivo ao consumo
improdutivo”. “O consumo se regula de acordo à medida da produção; o homem
só produz porque necessita possuir. Se o objeto produzido é o que deseja possuir,
e se reuniu a sua quantidade necessária, deixa de trabalhar [...]. Se produz mais, é
porque quer possuir outro objeto, obtendo-o em troca do excedente do primeiro
[...]. Produz uma coisa motivado pelo desejo de possuir outra [...]. Se um homem
produz unicamente para si, o intercâmbio não se realiza [...] não deseja comprar
nada nem oferece nada para vender [...]. Se a este caso se aplica, como metáfora,
a expressão ‘oferta e demanda’, pode-se dizer que a oferta equivale exatamente à
demanda”. “Duas coisas são necessárias para constituir uma demanda: o desejo de
possuir uma mercadoria e a posse de um objeto equivalente que se pode oferecer em
troca dela. Por demanda compreende-se o desejo de comprar e o meio para fazê-lo. Se
falta um dos dois, a compra não pode realizar-se. A posse de um objeto equivalente
é a base necessária de toda demanda. É em vão que um homem deseja possuir um
determinado objeto se não possui nada a oferecer para possuí-lo. O objeto equivalente
que se entrega é o instrumento da demanda. A magnitude da demanda se mede de
acordo com o valor deste objeto. A demanda e o objeto equivalente são termos que
se podem substituir mutuamente. Como vimos [...], a magnitude do desejo de um
homem de possuir outros objetos se mede pela soma total da sua produção, menos
a parte que retém para seu consumo próprio [...]. Sua vontade de comprar e seu meio
para fazê-lo são, portanto, equivalentes [...]” (Mill, op. cit., p. 240, 241, 242, 246,
251, 252-253). [BE]

216
K a r l M a r x

intensidade da sua necessidade imediata, cujo conteúdo ime-


diato é o objeto produzido.
Neste estado, o homem só produz aquilo de que tem ne-
cessidade imediata. O limite da sua necessidade é o limite da sua
produção. A oferta e a demanda coincidem perfeitamente. A
sua produção é proporcional às suas necessidades. Neste esta-
do, não há intercâmbio – este se reduz à troca de seu trabalho
contra o produto do seu trabalho e é a forma latente (o germe)
do intercâmbio real.
Quando se produz para o intercâmbio, passa a existir um
excedente para além do limite imediato da posse. No entan-
to, esta produção excedente não é a ultrapassagem do desejo
egoísta. Ela é, sobretudo, uma maneira indireta de satisfazer a
uma necessidade. Esta não encontra seu atendimento na au-
toprodução, mas na produção de outro. A produção se torna
fonte de aquisição, trabalho lucrativo. Se, no primeiro caso, a
necessidade é a medida da produção, no segundo é a produção
(ou, melhor, a posse do produto) a medida do grau em que as
necessidades podem ser satisfeitas.

20. Uma produção que não é social


Produzi para mim e não para ti, assim como tu produziste
para ti e não para mim. O resultado da minha produção tem tão
pouca relação contigo quanto o da tua produção tem diretamen-
te para comigo. Em outros termos: a nossa produção não é uma
produção do homem para os homens enquanto tais – não é uma
produção social. Nenhum de nós tem, enquanto homens, uma
relação com o gozo do produto do outro. Enquanto homens,
não existimos mediante as nossas produções recíprocas. Assim,
o nosso intercâmbio não pode ser o movimento mediador em
que se confirmaria que o meu produto te é destinado por ser
a realização do teu próprio ser, da tua necessidade. Não pode

217
C a d e r n o s d e P a r i s

sê-lo porque não é a essência humana que vincula mutuamente


nossas produções. O intercâmbio pode apenas efetivar, confir-
mar o comportamento de cada um de nós frente a seu próprio
produto e, pois, frente à produção do outro. Cada um de nós
só vê, no seu produto, o seu próprio egoísmo materializado, e
no produto do outro um egoísmo alheio, independente, um
interesse material que lhe é estranho.
É certo que, enquanto homem, tu te relacionas humana-
mente com o meu produto. Tens necessidade dele, é objeto do
teu desejo e da tua vontade. Mas a tua necessidade, o teu desejo
e a tua vontade são impotentes em face do meu produto. Ou
seja: a tua essência humana (que um vínculo profundo liga
necessariamente à minha produção humana) não é a tua força,
ela não te dá a propriedade do meu produto, porque a particu-
laridade, a força da essência humana não estão reconhecidas na
minha produção. A tua força e a tua particularidade são, antes,
o vínculo que te torna dependente de mim porque te tornam
dependente do meu produto. Longe de ser o meio capaz de te
dar poder sobre a minha produção, elas são o meio de me dar
um poder sobre ti.

21. A pilhagem recíproca


Quando produzo mais do que necessito imediatamente, o
excedente do que produzo é cuidadosamente calculado em face
da tua necessidade. Só aparentemente produzo em excesso.
Na verdade, produzi visando a um outro objeto, o objeto da
tua produção que eu quero trocar pelo meu excedente – tro-
ca que já realizo no meu espírito. O vínculo social em que
me encontro em relação a ti – meu trabalho para satisfazer
a tua necessidade – é, pois, uma aparência, e a nossa mútua
integração é, também ela, aparência: sua base é a pilhagem
recíproca. A intenção de roubar e de enganar está, necessa-

218
K a r l M a r x

riamente, bem dissimulada: sendo a nossa troca interessada


para os dois lados – cada egoísmo pretendendo ultrapassar
o outro –, ambos procuramos necessariamente nos enganar
mutuamente. É verdade que o grau de poder que eu reconheço
ao meu objeto em relação ao teu reclama a tua aprovação para
tornar-se um poder real. Mas a nossa aprovação recíproca do
poder respectivo dos nossos objetos é um combate e, para
vencê-lo, é preciso ter mais energia, força, inteligência ou ha-
bilidade. Se a força física bastar, eu te roubo diretamente. Se
a força física perdeu sua vigência, procuraremos nos enganar
mutua­mente – e o mais hábil explorará o outro. Pouco im-
porta, do ponto de vista do sistema em seu conjunto, qual dos
dois leva vantagem – a exploração ideal, antecipada, opera-se
dos dois lados, ou seja: cada um explorou o outro, segundo o
seu próprio julgamento.
Por consequência, para as duas partes, o intercâmbio se
realiza necessariamente por intermédio do objeto da produção
e da posse recíprocas. A relação ideal com os objetos recíprocos
da nossa produção é, certamente, a nossa recíproca necessidade.
Mas a relação real e verdadeira, que acaba por se impor, deve-se
unicamente à posse recíproca e exclusiva do produto. O que dá
à tua necessidade do meu objeto um valor, uma dignidade, uma
efetividade a meus olhos é tão somente o teu objeto, o equivalente
do meu objeto. Nosso produto recíproco é o meio, a mediação,
o instrumento, o poder reconhecido das nossas necessidades
uma frente à outra. A tua demanda e o equivalente da tua
posse são, para mim, termos do mesmo valor e a tua demanda
só tem significação – ou seja, efetividade – se esta significação
e este efeito se relacionam a mim de qualquer modo. Se és
simplesmente um ser humano carente desse instrumento, a
tua demanda é para ti um desejo não satisfeito e para mim um
capricho irreal. Enquanto ser humano, tu não tens nenhuma

219
C a d e r n o s d e P a r i s

relação com meu objeto, porque eu mesmo não tenho nenhuma


relação humana com ele. O verdadeiro poder sobre um objeto é
o meio; por isto, consideramos reciprocamente o nosso produto
como o poder que cada um de nós possui sobre o outro e sobre
si mesmo – nosso próprio produto se voltou contra nós mesmos:
parecia ser propriedade nossa, mas, na verdade, nós somos a
sua propriedade. Estamos excluídos da verdadeira propriedade
porque a nossa propriedade exclui todos que não nós mesmos.
A única linguagem compreensível para nós são os nossos
objetos em suas relações mútuas. Seríamos incapazes de com-
preender uma liguagem humana; ela permaneceria sem efeito.
Um a utilizaria como um rogo, uma petição – sentindo-a
como uma humilhação; expressa envergonhadamente, o outro
a tomaria como impudência ou loucura e a rechaçaria como tal.
Estamos a tal ponto mutuamente alienados da essência humana
que uma linguagem direta desta essência nos apareceria como
uma violação da dignidade humana – enquanto que a lingua-
gem alienada dos valores materiais nos parece a única digna do
homem, autoconfiante e consciente de si.
Na verdade, aos teus olhos, o teu produto é um instrumen-
to, um meio para te apoderares do meu produto e, assim, para
satisfazer à tua necessidade. Mas, a meus olhos, ele é a finali-
dade do nosso intercâmbio. Para mim, tu és apenas o meio e o
instrumento da produção desse objeto, que é a finalidade para
mim, do mesmo modo que, inversamente, tu te relacionas com
o meu objeto. Porém, 1º) cada um de nós age como tal aos olhos
do outro: tu realmente te converteste em meio, em instrumen-
to de produção do teu próprio objeto a fim de apoderar-te do
meu objeto; 2º) o teu próprio objeto é para ti mesmo apenas a
envoltura concreta, a forma oculta do meu objeto, porque a tua
produção significa, quer expressar a aquisição do meu objeto.
Tu te tornaste, de fato, teu próprio meio, instrumento do teu

220
K a r l M a r x

objeto; teu desejo é escravo dele e tu aceitaste trabalhar como


escravo a fim de que o objeto não seja apenas uma esmola para
o teu desejo. Se, na origem do desenvolvimento, esta dependên-
cia recíproca em face do objeto nos aparece realmente como o
sistema do senhor e do escravo, ela é tão somente a expressão
sincera e brutal das nossas relações essenciais.
O valor que cada um de nós possui aos olhos do outro é o va-
lor dos nossos objetos respectivos. Por consequência, o homem,
enquanto homem, para cada um de nós, é carente de valor 28.

22. A produção humana


Suponhamos que produzíssemos como seres humanos – cada
um de nós haveria se afirmado duplamente na sua produção: a
si mesmo e ao outro. 1º) Na minha produção, eu realizaria a
minha individualidade, a minha particularidade; experimentaria,
trabalhando, o gozo de uma manifestação individual da minha
vida e, contemplando o objeto, a alegria individual de reconhe-
cer a minha personalidade como um poder real, concretamente
sensível e indubitável. 2º) No teu gozo ou na tua utilização do
meu produto, eu desfrutaria da alegria espiritual imediata, através
do meu trabalho, de satisfazer a uma necessidade humana, de
realizar a essência humana e de oferecer à necessidade de outro
o seu objeto. 3º) Eu teria a consciência de servir como mediador
entre ti e o gênero humano, de ser reconhecido por ti como um

28 Nesta amarga descrição da “pilhagem recíproca” que constitui o intercâmbio


das atividades sob o princípio lucrativo, Marx parece retomar a crítica, iniciada
em Kreuznach, da Filosofia do Direito. De fato, algumas observações são como
respostas às ideias formuladas por Hegel nos capítulos “A propriedade” (§ 41-71)
e “O sistema dos carecimentos” (§ 189-208). [MR] Maximilien Rubel refere-se
aqui ao “manuscrito de Kreuznach”, disponível em K. Marx, Crítica da filosofia do
direito de Hegel (S. Paulo: Boitempo, 2005, p. 27-141); o texto hegeliano pertinente
também está acessível em português: G. W. F. Hegel, Filosofia do direito (S. Leopoldo:
UNISINOS, 2010). [N. do T.]

221
C a d e r n o s d e P a r i s

complemento do teu próprio ser e como uma parte necessária


de ti mesmo, de ser aceito em teu espírito e em teu amor. 4º) Eu
teria, em minhas manifestações individuais, a alegria de criar a
manifestação da tua vida, ou seja, de realizar e afirmar, na mi-
nha atividade individual, a minha verdadeira essência humana,
a minha sociabilidade humana [Gemeimwesen].
Nossas produções seriam como que tantos espelhos que
irradiariam a nossa essência entre nós.
Nesta reciprocidade, o que seria realizado de minha parte
sê-lo-ia também da tua parte.
Consideremos os diversos momentos tais como aparecem
nessa suposição:
• meu trabalho seria uma livre manifestação de vida, um
gozo de vida. Sob a propriedade privada, o trabalho
é alienação de vida, porque trabalho para viver, para
conseguir um meio de viver. Meu trabalho não é a
minha vida;
• em segundo lugar, a minha individualidade particular,
a minha vida individual, seria afirmada pelo trabalho.
O trabalho seria, então, uma verdadeira propriedade,
uma propriedade ativa. Sob a propriedade privada, a
minha individualidade está alienada a tal grau que esta
atividade me é detestável, motivo de tormento; é, antes,
um simulacro de atividade, uma atividade puramente
forçada, que me é imposta por um constrangimento
exterior e contingente e não por uma exigência interna
e necessária.
Meu trabalho só pode aparecer no seu objeto tal como é.
Não pode aparecer como não é em sua essência. Por isso, meu
trabalho só aparece como a expressão material, concreta, visível
e, portanto, indubitável da minha impotência e da minha perda
de mim mesmo.

222
K a r l M a r x

23. Estado e renda fundiária


Compreende-se que Mill – assim como Ricardo – se negue
a sugerir a qualquer governo a ideia de fazer da renda fundiária
a única fonte dos impostos: para ele, seria injusto e parcial fazer
uma classe particular de indivíduos suportar uma carga tal.
Mas – e este mas é tanto decisivo quanto pérfido – o imposto
sobre a renda fundiária é o único que, do ponto de vista da
Economia Política, não é nocivo, é o único economicamente
justo. A única reserva que a Economia Política lhe faz é mais
sedutora que dissuasiva, a saber, “que, em um país de população
e extensão regulares, a importância da renda fundiária poderia
ultrapassar as necessidades de um governo”.

24. Homens e médias


Prévost elogia os ricardianos,
estes economistas profundos, por haverem reduzido a ciência a
uma grande simplicidade tomando por base as médias, deixando
de lado todas as circunstâncias acidentais (como o grande Ricardo,
por exemplo, deixa de lado o número de habitantes de um país)
que poderiam impedir as suas generalizações.

No entanto, o que as médias demonstram? Que cada vez


mais se faz abstração dos homens, que cada vez mais se deixa
de lado a vida real e que cada vez mais se considera apenas o
movimento abstrato da propriedade material, inumana. As
médias são verdadeiros ultrajes aos indivíduos reais.

25. Os preços e a concorrência


Prévost elogia Ricardo pela descoberta segundo a qual o
preço representa os custos de produção sem a intervenção da
oferta e da demanda.
Em primeiro lugar, o bravo homem esquece que os ricar-
dianos só demonstram este princípio servindo-se do cálculo das

223
C a d e r n o s d e P a r i s

médias – ou seja, fazendo abstração da realidade. Em segundo


lugar, conforme esta tese, bastaria oferecer uma mercadoria,
mesmo que ninguém a comprasse, para determinar seu preço
pelos custos de produção. Ora, pode-se produzir as coisas mais
inúteis. Em terceiro lugar, esses senhores admitem que causas
acidentais podem fazer oscilar os preços acima ou abaixo dos
custos de produção; neste caso, a concorrência os faria subir
ou descer ao nível dos custos de produção. Ora, o que é a con-
corrência senão a relação entre a oferta e a demanda? Assim, a
relação entre a oferta e a demanda é admitida sob a forma da
concorrência. Na realidade, o que esses senhores querem provar?
Que, no marco da livre concorrência, o preço dos produtos se
mantém igual aos seus custos de produção. Noutro lugar, já
falamos do efeito da livre concorrência como meio de deter-
minação dos preços. Para expressá-lo abstratamente: o preço
é determinado pela concorrência = o preço é casual. Se esses
senhores dizem que ninguém quer vender abaixo dos custos de
produção, têm razão. Mas querer não é poder.

26. Trabalho acumulado e miséria do trabalhador


Para nós, substituir o capital por trabalho acumulado, subs-
tituição em que tanto insistem os ricardianos (a expressão já
se encontra em Smith), significa somente que, quanto mais a
Economia Política reconhece o trabalho como o único princí-
pio da riqueza, mais ela degrada e empobrece o trabalhador e
faz do próprio trabalho uma mercadoria – e está aí tanto um
axioma teórico necessário à sua ciência quanto uma verdade
prática da vida social atual. Ademais de a expressão “trabalho
acumulado” indicar a origem do capital, significa igualmente
que o trabalho tornou-se cada vez mais uma coisa, uma merca-
doria e que progressivamente é concebido apenas sob o aspecto
de um capital e não como atividade humana.

224
K a r l M a r x

27. Obstrução e equilíbrio do mercado29


Aos ricardianos interessa unicamente a lei geral. À lei e aos
economistas pouco importa que milhares de homens sejam
levados à ruína pela ação desta lei.
A tese graças à qual a economia realiza todos os seus milagres
sustenta que a perda no preço de um produto se compensa pelo
ganho em outro produto, sem que a sociedade sofra qualquer
prejuízo. É claro que esta tese só teria sentido real e só seria
praticamente verdadeira se fossem idênticos os interesses dos
diferentes indivíduos e os deles e o da sociedade – em suma, se o
interesse individual e a própria produção tivessem um conteúdo
social. Considerada como uma pessoa, a sociedade ganharia
num ponto o que perderia em outro. Mas, sob a propriedade
privada, sob interesses hostilmente divididos, esta tese só tem
sentido se se faz abstração das pessoas. O equilíbrio é, aqui, o
equilíbrio entre o capital abstrato e o trabalho abstrato – um
equilíbrio que não tem em conta o capitalista e o operário. A
sociedade é vista como uma cifra média.

29 Entre o parágrafo precedente e o que se inicia depois deste subtítulo, a edição de


BE interpõe o seguinte texto (cf. Cuadernos de Paris, ed. cit., p. 161-162):
“A teoria dos ricardianos acerca da “obstrução do mercado” (que, segundo eles,
não pode esgotar-se nunca) afirma “que o produto excessivo cria uma demanda
equivalente que acaba por eliminar tal excesso, tal obstrução do mercado”. No
entanto, supondo precisamente os custos de produção e posto que, “no momento
em que se apresenta o excesso de um produto, tudo já se encontra em proporção às
necessidades gerais”, tal produto excessivo não cria uma “demanda efetiva”, mas
uma “demanda insuficiente” – ou seja: a mercadoria só encontra comprador a um
preço inferior a seu valor, a seus custos de produção. Não importa, argumentam
os ricardianos: “Quando se apresenta o excesso de algum produto, e portanto uma
redução do seu valor, produz-se imediatamente uma elevação do valor relativo de
todas as outras mercadorias; assim se restabelece o equilíbrio, e não se pode dizer
que existe um excedente geral no mercado. Pois um produto excessivo e de preço
reduzido torna relativamente escassos os outros produtos e faz com que o seu valor
aumente. É possível que se apresente um excesso de produtos – e que, inclusive,
este seja motivo de sofrimento e miséria em grandes ramos da produção –, mas tal
excesso não será permanente e o equilíbrio será restabelecido”. [N. do T.]

225
C a d e r n o s d e P a r i s

A Economia Política pressupõe a propriedade privada que


separa os interesses e os torna mutuamente hostis. A sua infâ-
mia consiste em especular como se tais interesses não fossem
separados e como se a propriedade fosse comunitária. Assim,
ela pode demonstrar que, se eu consumo tudo e se tu produzes
tudo, o consumo e a produção encontram-se perfeitamente
organizados para o bem da sociedade.

28. Sofismas da Economia Política


Todas essas teses razoáveis sobre a unidade do trabalho e do
capital, da produção e do consumo etc., tornam-se, manipula-
das pela Economia Política cuja base é a propriedade privada,
sofismas infames.
Infame contradição encontra-se, por exemplo, entre a
tese de que a concorrência nasce exclusivamente do interesse
privado e se justifica por ele, donde a explicação oficial de que
os interesses hostis guerreiam-se entre si, e, doutro lado, a tese
que apresenta a concorrência como o poder e o interesse da
sociedade na medida em que se opõe aos interesses individuais.
Supondo arbitrariamente que os interesses antissociais são de
fato sociais – e pela maneira como estabelece esta suposição –,
a Economia Política demonstra apenas que, no estado atual das
relações, só se pode obter leis razoáveis mediante a abstração da
natureza específica das condições atuais, ou seja, que o reino
dessas leis é uma pura abstração.

29. Queda dos lucros


Prévost está muito preocupado com o argumento dos ri-
cardianos segundo o qual os lucros seguem um curso inverso
ao progresso da riqueza.
A maneira mediante a qual ele refuta esta tese é cômica,
porque prova: 1º) que os lucros retomam o seu antigo nível

226
K a r l M a r x

com a redução da população, com a sua dizimação; 2º) que as


oscilações dos lucros (ou o argumento mencionado, que já se
encontra em Adam Smith – que, por seu turno, não mostra
uma ternura tão grande pelos lucros) devem levar a uma imensa
concentração num pequeno número de mãos, já que o pequeno
capital é arruinado em período de crise; 3º) que, por seu lado, o
aumento dos lucros conduz à ruína numerosos capitais agrícolas.

30. O dinheiro contra o homem


Boisguillebert fala sempre em nome da imensa população
pobre, cuja ruína atinge – por “contragolpe”, como ele diz –
igualmente os ricos. Fala da justiça distributiva.
Boisguillebert afirma que mil escudos, nas mãos de mil
pobres, graças à circulação e, pois, ao aumento mil vezes mais
rápido do consumo, ofereceriam ao Estado renda dez vezes
maior que mil escudos nas mãos de um grande proprietário.
Considera erroneamente, como Daire nota com razão, que a
atividade de intercâmbio, a circulação do dinheiro, é um “fato
que cria valor”.
No que diz respeito a esta primeira observação de Boisguille­
bert, Daire tem inteira razão do ponto de vista econômico. Um
escudo, esteja na mão de um pobre ou de um rico, não vale
mais que um escudo; este valor “não aumenta nem diminui
quando, na condição de renda, entra na bolsa de um ou outro
desses cidadãos”.
Quando Boisguillebert afirma “que o escudo ganho pelo
pobre ofereceria mais ao Estado que aquele ganho pelo rico,
porque sempre seria renda para o primeiro e geralmente capital
para o último”, Daire objeta, com razão, que “o escudo-capital
contribui, em toda a medida do seu valor, à manutenção do
trabalho produtivo da sociedade”. Mas o economista moderno
só tem razão contra o economista antigo porque este ainda não

227
C a d e r n o s d e P a r i s

se elevou ao nível em que valor e renda são seres que existem em


si, feita a abstração do homem. Isto posto, é evidente que, para o
pobre e para o Estado – na medida em que a existência do pobre
é parte da sua riqueza –, um escudo vale mais que para o rico.
Mas o economista moderno sabe que um escudo é um escudo.
“Mais uma vez, não se trata de agir para obter uma grande
riqueza, mas simplesmente de deixar de agir” (p. 420). É a dou-
trina do deixar fazer, deixar correr dos economistas modernos30.
Para Boisguillebert, como para eles, o curso natural das coisas
– quer dizer, da sociedade burguesa – responde pela ordenação
das coisas. Nele, como mais tarde nos fisiocratas, esta doutrina
ainda conserva algo de humano e de significativo: é humana em
oposição à economia do antigo Estado, que procurava encher
os seus cofres mediante os procedimentos menos naturais; é
significativa enquanto primeira tentativa para emancipar a
vida burguesa. Mas, para mostrar-se como é, teve primeiro que
emancipar-se.
Boisguillebert considera a depreciação dos metais preciosos,
do dinheiro, o restabelecimento do justo valor das mercadorias:
os “próprios produtos readquirem novamente o seu justo valor”

30 “Existe um dinheiro benfeitor, submetido às ordens da sua vocação no mundo e


sempre disposto a servir ao comércio, sem que haja necessidade de exercer sobre ele
a menor violência, desde que não se o constranja e, já que deve seguir o consumo
como um lacaio segue o seu senhor, desde que não se queira colocá-lo antes deste
e, menos ainda, convertê-lo em um abutre que o devore completamente”. [Quando
permanece em seus limites, é útil graças à] “velocidade com que se move”. “Há um
dinheiro criminoso, porque, em vez de escravo, quis ser um deus [...] que declara
a guerra [...] a todo o gênero humano [...]”. “Se certos particulares não vivessem
na opulência, o resto não estaria na miséria”. [Para superar os males do dinheiro
criminoso,] “não é necessário agir, é necessário apenas deixar de agir” (Pierre le
Pesant de Boisguillebert, na antologia Économistes financiers du XVIIIe siècle, editada
e comentada por Eugène Daire. Paris, 1843). [BE] De Boisguillebert (aliás, com
grafia diferente), só registramos em português umas poucas páginas, selecionadas por
Pedro de Alcântara Figueira, na antologia Economistas políticos. S. Paulo/Curitiba:
Musa/Segesta, 2001. [N. do T.]

228
K a r l M a r x

(p. 422). Ele ainda não podia ver que, sobre a base da proprie-
dade privada, é o próprio intercâmbio, o valor tout court31, que
despoja a natureza e o homem do seu “justo valor”. O “res-
tabelecimento do justo valor” das mercadorias significa, para
Boisguillebert, restabelecer o seu valor comercial. De qualquer
forma, devemos assinalar que a primeira polêmica radical contra
o ouro e a prata – logo, já que eram os únicos representantes da
moeda, contra o dinheiro – dirige-se contra a desvalorização do
homem e da natureza dos produtos humanos tomando-a como
uma consequência do dinheiro. Este valor ideal, escolástico,
destroi o seu valor real 32.

31. Necessidades e superprodução


Boisguillebert explica a penúria no interior da abundância
pelo débil intercâmbio dos produtos, que acarreta uma escassez
de produção e de consumo produtivo33. Este argumento se
parece àquele de Say, que demonstra, através da sua teoria dos
mercados, a impossibilidade da superprodução.

31 Em francês no texto: simplesmente [N. do T.]


32 A simpatia revelada aqui por Boisguillebert não será desmentida depois. Marx
verá nele o “primeiro representante”, na França, da Economia Política clássica,
comparável, na Inglaterra, a W. Petty, mas superior a este pela atitude audaciosa
em defesa dos pobres (cf. Critique de l’ économie politique, in Oeuvres, t. I, p. 305-
309 e 384 e ss.). [MR] Estas referências de Maximilien Rubel encontram-se, em
português, em K. Marx, Contribuição à crítica da Economia Política. S. Paulo:
Expressão Popular, 2009, p. 81-84 e 161 e ss. [N. do T.]
33 “Ocorre como se algum príncipe, abusando de sua autoridade [...] encarcerasse dez
ou doze [indivíduos] a cem passos uns dos outros [e os provesse, em quantidade
suficiente, de tudo o necessário para viver, mas de tal modo que cada um deles só
pudesse dispor de um dos artigos vitais]. Depois de sua morte, que seria inevitável,
seria correto dizer [...] que todos morreram de fome, frio e sede [...]; apesar disso,
é indubitável que, considerados em geral, não careciam de roupas e de alimentos,
mas que, exceto pela existência daquela coerção maior, poderiam inclusive estar
bem vestidos e viver comodamente” (Boisguillebert, op. cit., p. 423). [BE]

229
C a d e r n o s d e P a r i s

Como todas as teorias da Economia Política, a de Say é falsa.


De acordo com ele, jamais existe superprodução; quando uma
mercadoria não encontra comprador, isto se deve unicamente
a que (no próprio país ou fora dele) a produção de equivalentes
não é suficiente para o intercâmbio. No entanto:
1º) Say admite – como Mill e Ricardo – que pode haver
superprodução num ramo determinado da produção; logo, em
todos os seus ramos, posto que em um determinado país se trata
sempre de produtos determinados; a causa reside na inconsciência
com que se produz: a produção não é humana, já que se efetua
sob as condições da alienação, da propriedade privada.
2º) Suponhamos o caso mais favorável que Say possa
conceber: todos os países produzem ao máximo e, portanto,
possuem o máximo possível de equivalentes para o intercâmbio
dos seus respectivos produtos. Ora, Say esquece que o limite
da demanda é a propriedade privada. Na França, por exemplo,
não se produzem suficientes sapatos – milhões vivem descalços.
A superprodução sobrevém quando o número dos sapatos pro-
duzidos é maior que o das pessoas que podem comprá-los. O
que vale para um país vale também entre os diversos países. Por
exemplo: se na França se produz o máximo possível de vinho e
na Inglaterra o máximo possível de algodão – e assim em todos
os países –, o intercâmbio de vinho francês e de algodão inglês
ocorrerá na medida em que, nestes dois países, houver pessoas
que possam pagar pelo vinho e pelo algodão. Dito de outra
forma: a propriedade privada produz para a propriedade privada.
Portanto, a produção pode ultrapassar a demanda, ainda que
em ambos os países haja um excedente do equivalente respec-
tivo, já que a necessidade de vinho e de algodão – de todos os
produtos – tem limites e que é, enfim, determinada pelo número
de pessoas cuja demanda é real, ou seja, de pessoas que podem
pagar para satisfazê-la. Assim, a produção ultrapassará não a

230
K a r l M a r x

demanda determinada pelas necessidades humanas em geral,


mas a demanda determinada pelo número limitado das pessoas
que podem pagar. Say pode ampliar a magnitude da produção
e multiplicar ao infinito a sua diversidade, mas o possuidor de
uma certa quantidade de diversos produtos só poderá trocá-los,
sempre e unicamente, com um outro que igualmente possui
uma certa quantidade de produtos e cuja necessidade é limitada.
O intercâmbio não se constitui entre produtos enquanto tais,
mas entre produtos enquanto propriedade privada.
Supondo-se o caso considerado como o mais favorável, a
grande abundância de produtos haveria de baixar ponderavel-
mente seus preços; porém, seus custos de produção não poderiam
reduzir-se aquém de um certo limite. Se os produtores quiserem
esgotar as possibilidades de intercâmbio, serão obrigados a
vender a um número de compradores que pagarão abaixo do
preço de produção – ou seja, terão que doar suas mercadorias,
o que significa não vendê-las. O último limite das vendas, em
geral, é imposto pelos custos de produção, mais uma margem
que assegure ao produtor um certo ganho. Portanto, o que
importa não é que a outra parte produza, ela também, o má-
ximo possível, mas que o máximo possível de homens possua
produtos para oferecer em troca. Esta seria a condição favorável
a um grande intercâmbio – vale dizer, que a riqueza fosse geral;
contudo, ainda assim, a superprodução poderia existir, mas
seria uma superprodução que, bem observada, certamente não
se apresenta hoje.
Os economistas não se surpreendem com a abundância
de produtos em um país onde a maioria da população carece
enormemente dos meios de subsistência mais elementares. Eles
sabem que a riqueza tem por condição uma incomensurável
miséria. Mas, em seguida, eles – que não produzem para os
homens e sim para a riqueza – se surpreendem com o fato de a

231
C a d e r n o s d e P a r i s

própria riqueza aparecer sem valor, ou seja, que não encontrando


mercado, nem equivalentes, os produtos não tenham valor.
Embora a produção se realize em contraposição à massa
da humanidade, os economistas se surpreendem por ela poder
tornar-se muito grande para o pequeno resto da humanidade
que tem condição de comprar. Eles procuram dissimular o con-
traste entre a produção de um país e a quantidade de pessoas
a que ela se destina – o fato brutal de a maioria estar privada
dos resultados da produção –, contraste entre a produção e a
sua existência para os homens no interior de um país. Acre-
ditam fazê-lo mediante a consideração de vários países, como
se, ampliando a relação a uma escala mais larga, ela deixasse
de ser a mesma; como se isto abolisse o caráter antagônico
da produção; como se, no intercâmbio entre vários países,
deixasse de existir o antagonismo que se revela no interior
de cada um.
Em geral, aos olhos do economista, a máxima riqueza
equivaleria à máxima pobreza, porque aboliria o valor de todas
as coisas.
O economista não compreende que a mercadoria deve per-
der seu valor de troca precisamente porque este é seu único valor.
3º) É de fato ridículo que Malthus – que, ao contrário de
Say, fala de superprodução em relação às populações, aos ho-
mens – reconheça a possibilidade da superprodução de merca-
dorias e a considere como uma desgraça. Precisamente nisto se
manifesta o caráter desta superprodução. O mesmo economista
que afirma que se produz mais homens que mercadorias afirma
também que se produz mais mercadorias que as que se podem
vender – ou seja, que se produz mais que o devido.
4º) A superprodução é a depreciação da própria riqueza
precisamente porque a riqueza, para ser riqueza, deveria ter
um valor.

232
K a r l M a r x

Para os especuladores e os capitalistas, produzir muito pode


depreciar a mercadoria pela abundância. Um excedente pode
ser produzido em todas as partes, excedente que não se inter-
cambia porque ultrapassa a necessidade das pessoas que podem
pagar – mas o movimento da propriedade privada exige que
se produza em excesso, a despeito e por meio da pobreza geral.
(Uma produção que cria, ela mesma, a pobreza geral, perde um
comprador em cada indivíduo empobrecido. Os economistas
liberais, que observam que os monopólios reduzem as trocas,
não observam que a propriedade privada limita o intercâmbio
entre os indivíduos.) Com o crescimento da produção, aumenta
a falta de oportunidades de venda, visto que o número de não
proprietários aumenta. A riqueza que se opõe ao homem deve
se desenvolver até perder todo valor para a propriedade privada,
até aparecer como a sua própria pobreza, até deixar de produzir
riqueza. Os produtos só têm valor para a demanda. A demanda,
no sentido econômico, deve diminuir com a industrialização.
A massa dos produtos cresce necessariamente em comparação
com a demanda, ultrapassa-a mais e mais – dito de outro modo:
desvaloriza-se. Ver-se-á que não se produz para a sociedade,
mas para uma parte desta – e tende a perder o seu valor inclu-
sive para esta parte: a produção se destroi a si mesma devido à
relação entre a sua massa e a reduzida magnitude desta parte
da sociedade.

233
MANUSCRITOS
ECONÔMICO-FILOSÓFICOS
DE 1844

KARL MARX
[PREFÁCIO
(PROVENIENTE DO CADERNO III)]

[XXXIX] Prefácio
Anunciei, nos Anais franco-alemães, a crítica da ciência do
direito e do Estado sob a forma de uma crítica da filosofia hege-
liana do direito.1 Na preparação para a impressão,2 mostrou-se
inteiramente inadequada a mistura da crítica, dirigida apenas
contra a especulação, com a crítica das diversas matérias, to-
lhendo o desenvolvimento e dificultando o entendimento. Além

1 Marx refere-se ao artigo “Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie. Einlei-


tung” [“Para a crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução”], publicado
nos Deutsch-Französische Jahrbücher [Anais franco-alemães], 1844, Mega², I/2, p.
170-183. (N. Ed.)
[As notas designadas por N. Ed. são notas da edição portuguesa e as designadas
por N. do R. são do Professor Sérgio Lessa. Palavras e expressões alemães, quando
reproduzidas entre colchetes, são recuperações do original de responsabilidade da
tradutora portuguesa; quando reproduzidas entre parênteses, são-no do revisor
brasileiro. (N. da Ed. brasileira)]
2 Marx alude muito provavelmente aos chamados Manuscritos de 1843, intitulados
Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie. (N. Ed.)
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

disso, apenas um tratamento de modo totalmente aforístico teria


permitido a concentração da riqueza e da heterogeneidade dos
objetos em apenas um escrito, bem como, por outro lado, uma
tal apresentação aforística teria gerado a aparência de um siste-
matizar arbitrário. Por isso, vou fazer seguirem-se, em diversas
brochuras autônomas, a crítica do direito, da moral, da política
etc., e, no fim, tentarei dar, de novo, num trabalho específico, a
conexão do todo, a relação das partes singulares e, finalmente,
a crítica da elaboração especulativa daquele material. Por essa
razão, no presente escrito, a conexão da economia nacional3
com o Estado, o direito, a moral, a vida burguesa (bürgerlichen
Leben)4 etc., apenas se encontra abordada na medida em que
a própria economia nacional aborda ex professo5 esses assuntos.
Ao leitor familiarizado com a economia nacional, não pre-
ciso assegurar que os meus resultados foram obtidos através de
uma análise totalmente empírica, fundada num estudo crítico

3 Nos Manuscritos, Marx designa a Economia Política burguesa pela categoria


“Nationalökonomie”, ao tempo corrente entre autores alemães. Ingleses e franceses
usavam de preferência “Political Economy” e “Économie Politique”. Marx utilizará
mais tarde também a categoria “Economia Política”.
Sobre esta problemática da economia nacional, ver, por exemplo, Friedrich Engels,
“Umrisse zur einer Kritik der Nationalökonomie” [“Esboços para uma crítica da
economia nacional”], também de 1844.
Atente-se em que “economia nacional”, consoante os contextos, tanto pode se referir
à realidade do sistema econômico quanto às suas teorizações. (N. Ed.)
4 Hegel já havia percebido que a Revolução Francesa inaugurou uma nova etapa na
relação entre o Estado e o conjunto da sociedade. Por esta razão, denominou de
Estado burguês e de sociedade burguesa – isto é, o Estado e a sociedade que foram as
realizações históricas da burguesia revolucionária. Mais tarde, esta relação peculiar
entre o Estado e a sociedade burgueses será expressa pela oposição entre Estado e
sociedade civil – velando, ao menos na forma, seu caráter de classe. Marx, nesta
passagem dos Manuscritos de 1844, refere-se à vida peculiar que surgiu com a vitória
da burguesia contra a ordem absolutista como bürgerlichem Leben. Preferimos manter
o adjetivo burguês e alertar o leitor para este aspecto da tradução mais corrente do
termo bürgerlich por civil. (N. do R.)
5 Em latim no texto: declaradamente. (N. Ed.)

238
K a r l M a r x

escrupuloso da economia nacional. Entende-se por si que eu


tenha utilizado, além dos socialistas franceses e ingleses, tam-
bém trabalhos dos socialistas alemães. No entanto, os trabalhos
alemães originais e com conteúdo para essa ciência reduzem-se
– além dos escritos de Weitling6 – aos artigos de Hess publi-
cados nas 21 folhas de impressão7 e aos “Umrisse zur Kritik der
Nationalökonomie” de Engels, nos Anais franco-alemães,8 onde
igualmente eu apontei, de um modo muito geral, os primeiros
elementos do presente trabalho.9
Além disso, a crítica da economia nacional, tal como a
crítica positiva em geral, deve a sua verdadeira fundação às
descobertas de Feuerbach.10 Somente de Feuerbach data a crítica

6 Cf. Wilhelm Weitling, Die Menschheit, wie sie ist und wie sie sein sollte [A Humanidade,
como é e como devia ser], 1838-1839; Garantien der Harmonie und Freiheit [Garantias
da harmonia e da liberdade], 1842; Das Evangelium eines armen Sünders [O Evangelho
de um pobre pecador], com diversas redações entre 1843-1846. (N. Ed.)
7 Trata-se da coletânea Einundzwanzig Bogen aus der Schweiz [Vinte e uma folhas de
impressão a partir da Suíça], Primeira Parte, 1843, editada por Georg Herwegh. Nela
publicou Moses Hess, anonimamente, três artigos: “Socialismus und Communis-
mus” [“Socialismo e comunismo”], “Philosophie der Tat” [“Filosofia da ação”] e
“Die Eine und ganze Freiheit!” [“A liberdade una e toda!”]. (N. Ed.)
8 Trata-se de “Umrisse zur einer Kritik der Nationalökonomie”. Cf. Mega², I/3, p.
467-494. (N. Ed.)
9 Cf. K. Marx, “Zur Judenfrage” [“Para a questão judaica”], Mega², I/2, p. 141-169,
bem como o artigo citado na nota 1, supra. (N. Ed.)
10 Cf. Ludwig Feuerbach, Das Wesen des Christenthums [A essência do cristianismo],
1841, “Vorläufige Thesen zur Reformation der Philosophie” [“Teses provisórias para
a reformação da filosofia”], 1843, Grundsätze der Philosophie der Zukunft [Princípios
fundamentais da filosofia do futuro], 1843.
Do manuscrito consta ainda a seguinte variante: “Para além destes escritores citados,
que se ocuparam criticamente da economia nacional, a crítica positiva moderna \
alemã, portanto também a crítica alemã da economia nacional, deve a sua verdadeira
fundamentação às descobertas de Feuerbach, contra cuja “Philosophie der Zukunft!”,
bem como contra cujas “Thesen zur Reform [o título da 1ª edição nos Anekdota
era “Vorläufige Thesen zur Reformation der Philosophie”] der Philosophie” nos
Anekdota [Anekdota zur neuesten deutschen Philosophie und Publicistik (Inéditos da
filosofia e publicística alemã mais recente), 1843], por muito que elas sejam silencia-
damente utilizadas, parece ter-se provocado, pela inveja mesquinha de uns e pela

239
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

positiva naturalista e humanista. Quanto mais silencioso, tanto


mais seguro, mais profundo, mais amplo e mais duradouro é
o efeito dos escritos feuerbachianos, os únicos escritos – desde a
“Fenomenologia” e a “Lógica”11 de Hegel – em que está contida
uma revolução teórica real.
Considerei inteiramente necessário o capítulo conclusivo
do presente escrito, a confrontação com a dialética e a filosofia
hegelianas em geral, pois um tal trabalho não só nunca foi
levado a cabo como nem uma só vez a sua necessidade foi re-
conhecida pelos teólogos críticos12 do nosso tempo [XL] – uma
improfundidade [Ungründlichkeit] necessária, pois mesmo o
teólogo crítico permanece teólogo e, portanto, ou tem que partir
de determinados pressupostos da filosofia como de uma auto-
ridade ou, quando, no processo da crítica ou por descoberta
alheias, lhe nascem dúvidas sobre os pressupostos filosóficos,
ele abandona-os de modo covarde e injustificado, abstrai deles,
apenas exprime mais negativa, inconsciente e sofisticamente a
sua servidão aos mesmos e a irritação por essa servidão.13 Es-

real inimizade \ pela cólera real \ e pela impotência real de outros, uma conspiração
do silêncio, em forma.” (N. Ed.)
11 Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Phänomenologie des Geistes [Fenomenologia do
Espírito], 1807; Wissenschaft der Logik [Ciência da Lógica], 1812-1816. (N. Ed.)
12 Alguns aspectos desta problemática foram desenvolvidos de modo crítico por Marx
e Engels designadamente em Die heilige Familie, oder Kritik der kritischen Kritik.
Gegen Bruno Bauer & Consorten [A sagrada famí1ia, ou Crítica da crítica crítica.
Contra Bruno Bauer e consortes], 1845, e Die deutsche Ideologie. Kritik der neuesten
deutschen Philosophie in ihren Repräsentanten Feuerbach, B. Bauer und Stirner, und
des deutschen Sozialismus in seinen verschiedenen Propheten [A ideologia alemã. Crítica
da mais recente filosofia alemã nos seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner,
e do socialismo nos seus diversos profetas], 1845-1846. (N. Ed.)
13 Cf. Bruno Bauer, Was ist jetzt der Gegenstand der Kritik? [Qual é agora o objeto da
crítica?], 1844. (N. Ed.).
Relativamente a este passo, o manuscrito apresenta ainda a seguinte variante:
“Ao contrário, ao crítico abstrato \ recenseador insapiente que procura ocultar a
sua completa ignorância e pobreza de pensamento atirando à cabeça do crítico
positivo \ realmente produtivo a frase “ frase utópica” ou também frases como “a

240
K a r l M a r x

tritamente considerada, a crítica teológica – por muito que no


começo do movimento fosse um momento real do progresso –
em última instância nada mais é do que o cume e a consequência
da velha transcendência filosófica, e nomeadamente a hegeliana,
desfigurada em caricatura teológica. Essa interessante justiça da
história, que determina a teologia, desde sempre o lugar podre
da filosofia, a apresentar agora também em si a dissolução
negativa da filosofia – i. é, o seu processo de apodrecimento
–, essa nêmesis histórica demonstrá-la-ei eu minuciosamente
numa outra oportunidade.14

crítica totalmente pura, totalmente decidida, totalmente crítica”, a “sociedade não


meramente jurídica mas social, totalmente social”, a “massa massiva, compacta”,
os “porta-vozes que dão voz à massa massiva”, resta ainda a este crítico fornecer a
primeira prova de que, para além dos seus assuntos de família teológicos \ do seu
artesanato teológico, tem também uma palavra a dizer nos assuntos mundanos \
questões mundanas.” (N. Ed.)
14 Cf. K. Marx e F. Engels, Die heilige Familie... (N. Ed.)

241
CADERNO I

[I] Salário
O salário é determinado pela luta hostil15 entre capitalista e
trabalhador (Arbeiter). A necessidade da vitória para o capitalis-
ta16. O capitalista pode viver mais tempo sem o trabalhador do
que este sem aquele. Associação entre os capitalistas: habitual e
eficiente (von Effekt); a dos trabalhadores: proibida e com más
consequências para eles. Além disso, o proprietário fundiário e
o capitalista podem acrescentar vantagens industriais aos seus

15 Em alemão, feindlichen Kampf. Uma possibilidade também seria “luta antagônica”.


Luta, ou confronto, hostil entre inimigos mortais talvez fosse uma tradução mais
próxima do conteúdo. Na edição da primeira tradução para o inglês, editada por F.
Engels, do Livro I de O capital, no tão citado segundo parágrafo do Capítulo XIV,
a expressão feindlichen Gegensatz foi traduzida por deadly foes, inimigos mortais.
(N. do R.)
16 Em alemão: Die Notwendigkeit des Siegs für den Kapitalisten. Necessidade não no
sentido de ser uma necessidade do capitalista, mas no sentido de que a vitória do
capitalista é necessária. (N. do R.)
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

rendimentos [Revenuen], o trabalhador nem renda fundiária


nem juro do capital ao seu rendimento [Einkommen] indus-
trial [pode acrescentar]17. Daí tão grande a concorrência entre
os trabalhadores. Portanto, só para o trabalhador a separação
de capital, propriedade fundiária e trabalho é uma separação
necessária, essencial e nociva. Capital e propriedade fundiária
não precisam permanecer nessa abstração, mas o trabalho do
trabalhador, sim.
Para o trabalhador, portanto, a separação de capital, renda
fundiária e trabalho [é]18 mortal.
A taxa mais baixa e a unicamente necessária para o salário
é a subsistência do trabalhador durante o trabalho, e mais o
bastante para que ele possa alimentar uma família e para que
a raça dos trabalhadores não se extinga. O salário habitual é,
segundo Smith, o mais baixo que é compatível com a simple
humanité 19, a saber, com uma existência de animal.
A demanda [Nachfrage] de homens regula necessariamente
a produção de homens como de qualquer outra mercadoria. Se a

17 [pode acrescentar] – inserção do revisor. (N. do R.)


18 [é] – inserção dos editores portugueses. (N. do R.)
19 Em francês no texto: simples humanidade. Cf. Adam Smith, Recherches sur la na-
ture et les causes de la richesse des nations [Investigações sobre a natureza e as causas da
riqueza das nações]. Traduit par Germain Garnier, 1802, t. I, p. 138. Neste Caderno
Marx não utiliza diretamente como fonte a obra de Adam Smith, An inquiry into
the nature and causes of the wealth of nations, London, 1776, na tradução francesa
acima citada, mas os excertos e versões que dela havia anteriormente feito (o que
de modo semelhante acontece, aliás, com outros autores a seguir citados). Os er-
ros e variações detectáveis são de explicar nesse contexto. Na presente edição, de
acordo com o critério geral adotado, damos no final do volume o texto da tradução
utilizada por Marx quando é objeto de citação expressa. Para um confronto mais
pormenorizado ver Marx, Exzerpte aus Adam Smith: Recherches sur la nature et les
causes de la richesse des nations [Excertos de Adam Smith: Investigações sobre a natureza
e as causas da riqueza das nações] (doravante: EAS), Mega², IV/2, p. 332-386.
Tenha-se em conta que boa parte do texto é uma exposição das concepções de Smith,
como aliás Marx não deixará de assinalar mais adiante. (N. Ed.)

244
K a r l M a r x

oferta [Zufuhr] for muito maior do que a demanda, então uma


parte dos trabalhadores cai na situação de miséria ou na morte
pela fome. A existência do trabalhador é, portanto, reduzida
à condição da existência de qualquer outra mercadoria. O
trabalhador tornou-se uma mercadoria e é uma sorte para ele
quando consegue encontrar quem o compre. E a demanda, da
qual a vida do trabalhador depende, depende do capricho do
rico e capitalista.
Se a quantidade da oferta excede a demanda, então uma das
partes constitutivas do preço – lucro, renda fundiária, salário –
é paga abaixo do preço, portanto uma parte desses benefícios
(Leistungen)20 subtrai-se a essa aplicação e o preço de mercado
gravita para o preço natural como ponto central. Mas, 1) se,
com uma grande divisão do trabalho, para o trabalhador é difi-
cílimo dar ao seu trabalho uma outra destinação (Richtung), 2)
na sua relação subalterna para com o capitalista cabe-lhe antes
de mais a desvantagem.
Com a gravitação do preço de mercado para o preço natural,
o trabalhador perde, portanto, ao máximo e incondicionalmente.
E precisamente a capacidade do capitalista de dar outra desti-
nação ao seu capital quer põe sem pão o ouvrier 21 restringido a
um determinado ramo de trabalho, quer o força a submeter-se
a todas as exigências desse capitalista.
[II] As oscilações acidentais e súbitas do preço de merca-
do atingem menos a renda fundiária do que a parte do preço
decomposta em lucro e salário [Salaire], mas menos o lucro do
que o salário [Arbeitslohn]. A cada salário que sobe há, na maior
parte das vezes, um que fica estacionário e um que cai.

20 Leistungen também poderia ser traduzido por rendimentos, pagamentos ou contri-


buições. (N. do R.)
21 Em francês no texto: operário. (N. Ed.)

245
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

O trabalhador não precisa necessariamente ganhar com o


ganho do capitalista, mas necessariamente perde com ele. Assim,
o trabalhador não ganha quando o capitalista mantém o preço
de mercado acima do preço natural através de segredos de co-
mércio ou industriais, através do monopólio ou da localização
favorável de sua propriedade.
Além disso: Os preços do trabalho são muito mais constantes
do que os preços dos meios de vida. Frequentemente estão em
relação inversa. Num ano caro, o salário diminui por causa da
diminuição da demanda, eleva-se por causa da elevação dos
meios de vida. Portanto equilibra-se. Em todo o caso, uma
quantidade de trabalhadores fica sem pão. Em anos baratos,
o salário eleva-se por causa da elevação da demanda, diminui
por causa dos preços dos meios de vida. Portanto equilibra-se.
Outra desvantagem do trabalhador:
Os preços de trabalho das diversas espécies de trabalhos são
muito mais diversos do que os ganhos dos diversos ramos onde o
capital se aplica. No trabalho, toda a diversidade natural, espi-
ritual e social da atividade individual se destaca e é remunerada
diversamente, enquanto o capital morto segue sempre no mesmo
passo e é indiferente perante a atividade individual real.
É sobretudo de notar que, onde o trabalhador e o capitalista
sofrem igualmente, o trabalhador sofre na sua existência, o
capitalista no ganho do seu Mamon22 morto.
O trabalhador não tem apenas de lutar pelos seus meios de
vida físicos, tem de lutar pela aquisição de trabalho, i. é, pela
possibilidade, pelos meios de poder realizar a sua atividade.
Consideremos as três situações principais em que a sociedade
se pode encontrar e observemos a posição do trabalhador nelas.

22 Nome do deus da riqueza na mitologia fenícia e síria. (N. Ed.)

246
K a r l M a r x

1) Se a riqueza da sociedade estiver em declínio, então o


trabalhador sofre ao máximo, pois ainda que a classe operária
não possa ganhar tanto quanto a dos proprietários na situação
próspera da sociedade, aucune ne souffre aussi cruellement de son
déclin que la classe des ouvriers.23[1]
[III] 2) Consideremos agora uma sociedade na qual a rique-
za progrida. Essa situação é a única favorável ao trabalhador.
Aqui começa a concorrência entre os capitalistas. A demanda
de trabalhadores excede a sua oferta: Mas:
Primeiro: A elevação do salário causa o sobretrabalho [Üe-
berarbeitung] entre os trabalhadores. Quanto mais eles querem
ganhar, tanto mais têm de sacrificar o seu tempo e, desfazendo-
-se completamente (sich entäussernd) de toda a liberdade, exe-
cutar trabalho de escravos ao serviço da avareza. Com isso, eles
encurtam o seu tempo de vida. Esse encurtamento da duração
da sua vida é uma circunstância favorável à classe trabalhadora
no seu todo, porque por isso se torna sempre necessária nova
oferta. Essa classe tem sempre de sacrificar uma parte de si
própria para não se arruinar totalmente.
Mais: Quando se encontra uma sociedade em enriquecimen-
to progressivo? Com o crescimento de capitais e rendimentos
(Revenuen) de um país. Mas isto só é possível α) contanto que
seja reunido (zusammengehäuft) muito trabalho, pois capital
é trabalho amontoado [aufgehäufte]; portanto, contanto que
sejam retirados ao trabalhador cada vez mais produtos seus,
que o seu próprio trabalho cada vez mais o defronte como
propriedade alheia (fremdes Eigentum) e cada vez mais os meios
da sua existência e da sua atividade se concentrem na mão do
capitalista. β) A acumulação (Häufung) do capital aumenta a

23 Em francês no texto: nenhuma sofre tão cruelmente com o seu declínio como a
classe dos operários. (N. Ed.)

247
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

divisão do trabalho, a divisão do trabalho aumenta o número


dos trabalhadores; inversamente, o número dos trabalhadores
aumenta a divisão do trabalho, tal como a divisão do trabalho
aumenta o acúmulo (Aufhäufung) dos capitais. Com essa divi-
são do trabalho, por um lado, e a acumulação (Häufung) dos
capitais, por outro, o trabalhador torna-se cada vez mais pura-
mente dependente do trabalho, e de um trabalho determinado
muito unilateral, maquinal. Portanto, assim como é corpóreo
e espiritualmente reduzido à máquina – e, de homem, a uma
atividade abstrata e a um estômago –, assim também se torna
cada vez mais dependente de todas as oscilações do preço de
mercado, da aplicação dos capitais e do capricho do rico. Na
mesma medida, a concorrência [IV] dos trabalhadores é eleva-
da pelo crescimento da classe de homens que apenas trabalha,
portanto o seu preço baixa. No ser da fábrica (Fabrikwesen)24
essa posição do trabalhador atinge o seu ponto culminante.
γ) Numa sociedade que se encontra em crescente prosperida-
de, só os mais ricos de todos podem viver do juro do dinheiro.
Todos os restantes têm com o seu capital que montar um ne-
gócio ou de o lançar no comércio. Por esse fato, a concorrência
entre os capitais torna-se, portanto, maior, a concentração dos
capitais torna-se maior, os grandes capitalistas arruinam os
pequenos e uma parte dos outrora capitalistas afunda-se na
classe dos trabalhadores, a qual, com essa entrada, sofre em
parte de novo uma redução do salário e cai numa dependência
ainda maior dos poucos grandes capitalistas. Na medida em
que o número dos capitalistas se reduziu, quase deixou de
existir a sua concorrência relativamente aos trabalhadores, e,
na medida em que o número dos trabalhadores aumentou, a

24 Wesen, tal como em Fabrikwesen é ser e, também, essência. Uma tradução também
possível seria na essência da fábrica. (N. do R.)

248
K a r l M a r x

concorrência deles entre si tornou-se tanto maior, mais desna-


turada (unnatürlicher) e mais violenta. Por isso, uma parte do
estado-trabalhador [Arbeiterstand] cai, assim, necessariamente
no estado-de-mendicância ou de-morrer-à-fome, tal como uma
parte dos capitalistas médios cai no estado-trabalhador.25
Portanto, mesmo na situação da sociedade que é mais
favorável ao trabalhador, a consequência necessária para o tra-
balhador é sobretrabalho e morte prematura, decair [à condição
de] máquina, de servo do capital que se acumula perigosamente
perante ele, nova concorrência, morte pela fome ou mendicância
de uma parte dos trabalhadores.
[V] A elevação do salário suscita no trabalhador a mania
do enriquecimento [própria] do capitalista que, contudo, ele só
pode satisfazer pelo sacrifício do seu espírito e corpo. A eleva-
ção do salário pressupõe o acúmulo do capital e conduz a ele;
portanto, coloca o produto do trabalho como cada vez mais
estranho (fremder) perante o trabalhador. Na mesma medida,
a divisão do trabalho torna-o cada vez mais unilateral e depen-
dente, tal como acarreta a concorrência não só dos homens, mas
também das máquinas. Uma vez que o trabalhador rebaixou
[à condição de] máquina, a máquina pode enfrentá-lo como
concorrente. Finalmente, tal como a acumulação do capital au-
menta a quantidade da indústria e, portanto, dos trabalhadores,
a mesma quantidade da indústria traz, com essa acumulação
[Accumulation], uma maior quantidade de quinquilharias26 que
se torna sobreprodução e acaba ou por pôr sem trabalho uma
grande parte de trabalhadores ou por reduzir o seu salário ao
mais miserável mínimo.

25 Stand, aqui traduzido por “estado” no sentido do ordenamento da sociedade feudal


em “Estados”, estamentos. Marx faz aqui um jogo de palavras, Bettel-oder Verhun-
gerungsstand sugere um estamento-de-mendicância ou de-morrer-à-fome. (N. do R.)
26 Machwerk, literalmente, “obras mal feitas”. (N. do R.).

249
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

Estas são as consequências de uma situação da sociedade


que é a mais favorável ao trabalhador, a saber, a situação da
riqueza crescente, progressiva.
Mas, por fim, essa situação crescente tem que atingir um
dia o seu apogeu. Qual é, então, a posição do trabalhador?
3) Num país que tivesse atingido o último estágio possível da sua ri-
queza, salário e juro de capital [Kapitalinteresse] seriam ambos muito
baixos. A concorrência entre os trabalhadores para obter ocupação
seria tão grande que os salários seriam reduzidos ao que é suficiente
para manter o dito número de trabalhadores e, estando já o país
suficientemente povoado, esse número nunca poderia aumentar.[2]

O a mais teria de morrer27.


Portanto, na situação de recessão (abnehmenden) da so-
ciedade: miséria progressiva do trabalhador; na situação de
desenvolvimento: miséria complicada; na situação mais rica:
miséria estacionária.
[VI] Mas uma vez que, segundo Smith, uma sociedade
em que a maioria sofre não é feliz, mas uma vez que a situação
mais rica da sociedade conduz a esse sofrer da maioria, e que a
economia nacional (em geral a sociedade do interesse privado)
conduz a essa situação mais rica –, a infelicidade da sociedade
é, portanto, o objetivo da economia nacional.
Com respeito à relação entre trabalhador e capitalista, há ainda
que observar que a elevação do salário é mais que compensada, para
o capitalista, pela redução da quantidade de tempo de trabalho, e
que a elevação do salário e a elevação do juro do capital operam
sobre o preço das mercadorias como juro simples e composto.
Coloquemo-nos agora totalmente no ponto de vista do eco-
nomista nacional e comparemos, segundo ele, as reivindicações
teóricas e práticas do trabalhador.

27 No alemão: “Das + müßte sterben” (N. do R.)

250
K a r l M a r x

Ele diz-nos que, originariamente e segundo o conceito, todo


o produto do trabalho pertence ao trabalhador. Mas diz-nos,
simultaneamente, que na realidade cabe ao trabalhador a parte
mínima e mais indispensável do produto; apenas tanto quanto
for preciso para ele existir, não como homem, mas como tra-
balhador, não para ele reproduzir a humanidade, mas, antes, a
classe de escravos [que é a] dos trabalhadores.
O economista nacional diz-nos que tudo se compra com
trabalho, e que o capital não é mais que trabalho acumulado;
mas diz-nos, simultaneamente, que o trabalhador, longe de
poder comprar tudo, tem de vender-se a si próprio e a sua
humanidade.
Enquanto a renda fundiária do possuidor indolente de terra
ascende, na maior parte das vezes, à terceira parte do produto
da terra, e o lucro do ativo capitalista chega a valer o dobro do
juro do dinheiro, o a mais [Mehr] que no melhor dos casos o
trabalhador ganha ascende a que, de quatro filhos, dois lhe têm
de passar fome e de morrer.
[VII] Enquanto, segundo o economista nacional, o traba-
lho é a única coisa pela qual o homem aumenta o valor dos
produtos da Natureza, enquanto o trabalho é sua propriedade
ativa, segundo a mesma economia nacional o proprietário
fundiário e o capitalista – que qua28 proprietário fundiário e
capitalista são meramente deuses privilegiados e ociosos – por
toda a parte preponderam sobre (überlegen) o trabalhador e lhe
prescrevem leis.
Enquanto, segundo o economista nacional, o trabalho é o
único preço invariável das coisas, nada é mais acidental, nada
exposto a maiores oscilações do que o preço do trabalho.

28 Em latim no texto: enquanto. (N. Ed.)

251
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

Enquanto a divisão do trabalho eleva a força produtiva do


trabalho, a riqueza e o refinamento da sociedade, ela degrada
(verarmt) o trabalhador até [a condição de] máquina. Enquanto
o trabalho provoca a acumulação dos capitais e, com isso, a
crescente prosperidade da sociedade, ela torna o trabalhador
cada vez mais dependente do capitalista, leva-o a uma maior
concorrência, lança-o na caça à sobreprodução, que é seguida
por um correspondente afrouxamento.29
Enquanto o interesse do trabalhador, segundo o econo-
mista nacional, nunca se contrapõe ao interesse da sociedade,
a sociedade contrapõe-se ao interesse do trabalhador sempre e
necessariamente.
Segundo o economista nacional, o interesse do trabalhador
nunca se contrapõe ao da sociedade 1) porque a elevação do
salário é mais que compensada pela redução na quantidade do
tempo de trabalho, juntamente com as restantes consequências
acima desenvolvidas; e 2) porque, no que diz respeito à socie-
dade, todo o produto bruto é produto líquido, e apenas no que
diz respeito ao homem privado o líquido tem um significado.30
Que, porém, o próprio trabalho, não apenas nas condições
de agora, mas também na medida em que em geral o seu obje-
tivo é a mera ampliação da riqueza, digo que o próprio trabalho
é nocivo, funesto isso decorre, sem que o economista nacional
o saiba, dos seus próprios desenvolvimentos.
Segundo o conceito, renda fundiária e ganho de capital são
deduções que o salário sofre. Mas, na realidade, o salário é uma

29 Erschlaffung, literalmente, relaxar-se, ao se cansar. Aqui no sentido de que a super-


produção leva à crise e ao “afrouxamento” da produção. (N. do R.)
30 Cf. K. Marx, Exzerpte aus Jean-Baptiste Say: Traité d’ économie politique [Excertos de
Jean-Baptiste Say: Tratado de Economia Política] (doravante: EJBS), Mega². IV/2, p.
315. (N. Ed.)

252
K a r l M a r x

dedução que terra e capital deixam chegar ao trabalhador, uma


concessão do produto do trabalho ao trabalhador, ao trabalho.
Na situação de declínio da sociedade, o trabalhador sofre o
mais pesadamente. Ele deve o peso específico de sua opressão
à sua posição de trabalhador, mas a opressão em geral [deve-a]
à posição da sociedade.
Mas, na situação de desenvolvimento da sociedade, a deca-
dência e o empobrecimento do trabalhador são o produto do
seu trabalho e da riqueza por ele produzida. A miséria, que,
portanto, resulta da essência do próprio trabalho atual.
A situação mais rica da sociedade – um ideal que, contudo,
é aproximadamente alcançado, é pelo menos o objetivo da eco-
nomia nacional, assim como da sociedade burguesa – é miséria
estacionária para os trabalhadores.
Compreende-se que a economia nacional considere apenas
como trabalhador o proletário, i. é, aquele que, sem capital nem
renda fundiária, vive puramente do trabalho e de um trabalho
abstrato, unilateral. Ela pode, por isso, estabelecer o princípio
de que ele, tal como qualquer cavalo, tem de ganhar o bastante
para poder trabalhar. Ela não o considera como homem no seu
tempo livre de trabalho, antes deixa essa consideração para a
justiça criminal, os médicos, a religião, as tabelas estatísticas,
a política e o curador dos mendigos (Bettelvogt)31.
Elevemo-nos agora acima do nível da economia nacional e
procuremos responder, quase com as palavras do economista
nacional, a duas perguntas a partir do percurso (Entwicklung)
feito até aqui.
1) Que sentido tem, no desenvolvimento da humanidade,
essa redução da maior parte da humanidade ao trabalho abs-
trato?

31 Uma tradução menos literal poderia ser “administrador da miséria”. (N. do R.)

253
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

2) Que erro cometem os reformadores en détail,32 que ora


querem elevar o salário e com isso melhorar a situação da classe
trabalhadora, ora consideram (como Proudhon) a igualdade do
salário como o objetivo da revolução social?33
Na economia nacional, o trabalho aparece apenas sob a
figura de atividade remunerada [Erwerbsthätigkeit].
[VIII] Pode-se afirmar que aquelas ocupações que pressupõem
disposições específicas ou preparação mais demorada se tornam,
no seu todo, mais rendosas; enquanto o salário relativo para a
atividade mecanicamente uniforme, na qual qualquer um pode
rápida e facilmente ser adestrado, baixou e tinha de necessaria-
mente baixar com a concorrência crescente. E precisamente esta
espécie de trabalho, no estado atual da sua organização, é de
longe a mais numerosa. Portanto, se um trabalhador da primeira
categoria ganha agora sete vezes mais e um outro, da segunda,
ganha o mesmo que ganhava 50 anos atrás, ambos ganham agora
em média, decerto, quatro vezes esse tanto. Mas, se num país a
primeira categoria do trabalho é ocupada por apenas mil pessoas e
a segunda, por um milhão, então 999 mil não estão, quanto a isso,
melhor do que há 50 anos, e estão muito pior se, simultaneamente,
tiverem subido os preços das necessidades vitais. E com cálculos
médios superficiais destes quer-se enganar a classe mais numerosa
da população. Além disso, a magnitude do salário é apenas um
momento para a avaliação do rendimento do trabalhador, porque,
para a medição deste último, conta ainda essencialmente a sua
duração assegurada, da qual pura e simplesmente não se fala na
anarquia da chamada livre concorrência com as suas recorrentes
oscilações e interrupções. Finalmente, há que ainda encarar o tem-
po de trabalho habitual de antes e o de agora. Mas este elevou-se
(erhöht worden), para o trabalhador inglês, a 12-16 horas diárias
nas manufaturas de algodão desde há cerca de 25 anos, devido
à ganância do empresário [IX], portanto precisamente depois da

32 Em francês no texto: a varejo. (N. Ed.)


33 Cf. Pierre-Joseph Proudhon, Qu’est-ce que la propriété? Ou recherches sur le principe
du droit et du gouvernement. Premier mémoire [O que é a propriedade? Ou investigações
sobre o princípio do direito e do governo. Primeira memória] 1840, por exemplo, cap.
III, § 6. (N. Ed.)

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K a r l M a r x

introdução das máquinas que economizam trabalho. E com o


direito, por toda a parte reconhecido, de uma exploração incon-
dicionada dos pobres pelos ricos, a subida (Steigerung), num país e
num ramo de indústria, tinha de vigorar mais ou menos também
noutros lugares. Schulz. Bewegun der Production, p. 65.34
Mesmo se fosse tão verdadeiro quanto é falso que o rendimento
médio de todas as classes da sociedade tivesse aumentado, as di-
ferenças e distâncias relativas dos rendimentos poderiam ter-se,
contudo, tornado maiores, e por isso as oposições da riqueza e
da pobreza poderiam ter-se evidenciado mais agudamente. Pois
precisamente porque a produção total sobe e, na mesma medida em
que isso acontece, aumentam também as necessidades, apetites e
exigências, a pobreza relativa pode, portanto, aumentar enquanto
a absoluta diminui. O samoiedo, com o seu óleo de foca e peixes
rançosos, não é pobre, porque na sua sociedade fechada todos
têm as mesmas necessidades (Bedürfnisse). Mas, num Estado que
avança, que no decurso de cerca de uma década aumenta a sua
produção total um terço relativamente à sociedade,35 o trabalhador
que ganha o mesmo antes como dez anos depois não ficou tão
abastado quanto era, mas tornou-se um terço mais necessitado
(bedürftiger). Ibid., p. 65-66.

Mas a economia nacional conhece o trabalhador apenas


como animal de trabalho, como uma rês reduzida às mais
estritas necessidades corporais (Leibesbedürfnisse).
Um povo, para se formar de um modo espiritualmente mais livre,
não pode permanecer na escravatura das suas necessidades corpóreas
(körperlichen Bedürfnisse), não pode continuar a ser o servo do cor-

34 Wilhelm Schulz, Die Bewegung der Production. Eine geschichtlich-statistische Ab-


handlung zur Grundlegung einer neuen Wissenschaft des Staats und der Gesellschaft
[O movimento da produção. Um ensaio histórico-estatístico para a fundação de uma
nova ciência do Estado e da sociedade], 1843. Cotejando os textos citados por Marx
e o original observam-se, por vezes, pequenas diferenças que, todavia, não alteram
o sentido. Limitar-nos-emos a assinalar as mais importantes. Por exemplo, nesse
passo Marx escreve “rendimento do trabalhador” (Arbeitereinkommen) e em Schulz
figura “rendimento do trabalho” (Arbeitseinkommen). (N. Ed.)
35 Em Schulz: Bevölkerung, população. (N. Ed.)

255
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po36. Antes de mais, tem de lhe restar tempo para poder também criar
espiritualmente e fruir espiritualmente. Os progressos no organismo
[Organismus] do trabalho ganham esse tempo. Pois, agora, com as
novas forças motrizes e maquinaria melhorada, não poucas vezes um
só trabalhador executa, nas fábricas de algodão, o trabalho de 100
ou mesmo de 250-350 dos antigos trabalhadores. Consequências
semelhantes em todos os ramos da produção, porque cada vez mais
forças naturais exteriores são forçadas a tomar parte [X] no trabalho
humano. Ora, se antes, para a satisfação de um certo quantum37 de
necessidades materiais, era exigido um dispêndio de tempo e força
humana que mais tarde foi reduzido para metade, então outro tanto
se alargou, simultaneamente, sem qualquer prejuízo para o bem-estar
sensível (sinnlichem Wohlbehagen), o espaço de ação para o criar e
fruir espiritual... Mas, também sobre a repartição dos despojos que
ganhamos ao velho Cronos, ele mesmo, no seu domínio mais próprio,
ainda decide o jogo de dados do acaso cego e injusto. Na França,
calculou-se que, do ponto de vista atual da produção, um tempo de
trabalho médio de cinco horas diárias a cada apto para o trabalho seria
bastante para a satisfação de todos os interesses materiais da sociedade.
... Não obstante a economia de tempo devida ao aperfeiçoamento da
maquinaria, para uma numerosa população a duração do trabalho
de escravo nas fábricas apenas aumentou. Ibid, p. 67-68.
A passagem para além do trabalho manual composto pressupõe uma
decomposição do mesmo nas suas operações simples. Mas, então,
em primeiro lugar apenas uma parte das operações uniformemente
recorrentes caberá às máquinas, a outra parte caberá aos homens.
Segundo a natureza das coisas e segundo experiências concordantes,
tal atividade contínua e uniforme é igualmente prejudicial para o
espírito como para o corpo; e então, assim, ainda tem de manifestar-
-se, nessa ligação da maquinaria com a mera divisão do trabalho
entre braços humanos mais numerosos, todas as desvantagens desta
última [da divisão do trabalho].38 As desvantagens mostram-se, entre
outras coisas, na maior mortalidade do trabalhador fabril [XI]. ...
Ainda não se tomou... em consideração esta grande diferença: até

36 Marx faz aqui um jogo de palavras. Em “não pode continuar a ser o servo do corpo”
(nicht mehr der Leibeigene des Leibes sein”), servo (Leibeigene) e corpo (Leibes) pos-
suem a mesma raiz. (N. do R.)
37 Em latim no texto: quantidade. (N. Ed.)
38 Inserção do revisor. (N. do R.)

256
K a r l M a r x

que ponto os homens trabalham com máquinas, ou até que ponto


os homens trabalham como máquinas. Ibid., p. 69.
Mas para o futuro da vida dos povos as forças naturais desprovidas
de entendimento, que operam nas máquinas, serão nossas escravas
e servas. Ibid., p. 74.
Nas fiações inglesas, apenas estão ocupados 158.818 homens e
196.818 mulheres. Nas fábricas de algodão do condado de Lancaster,
para cada 100 trabalhadores há 103 trabalhadoras e, na Escócia,
mesmo 209. Nas fábricas de linho inglesas de Leeds contavam-
-se, para cada 100 trabalhadores masculinos, 147 femininos; em
Druden39 e na costa Leste da Escócia, mesmo 280. Nas fábricas de
seda inglesas, muitas trabalhadoras; nas fábricas de lã, que exigem
maior força de trabalho,40 mais homens. Também nas fábricas de
algodão norte-americanas estavam ocupados, no ano de 1833,
cerca de 18.593 homens e não menos de 38.927 mulheres. Com
as transformações no organismo do trabalho (im Organismus der
Arbeit), coube, portanto, ao sexo feminino uma esfera mais ampla
de atividades remuneradas. ... as mulheres levadas a uma posição
economicamente mais autônoma ... ambos os sexos aproximados
um do outro nas suas relações sociais. Ibid, p. 71-72.
Nas fiações inglesas movidas a vapor e água, trabalhavam no ano de
1835: 20.558 crianças entre 8-12 anos; 35.867 entre 12-13, e finalmente
108.208 entre 13-18 anos. ... Certamente os ulteriores progressos da
mecânica, dado que retiram cada vez mais da mão do homem todas as
ocupações monótonas, atuam no sentido de uma gradual eliminação
[XII] desse inconveniente. Contudo, no caminho desses mais rápidos
progressos está a circunstância de que os capitalistas podem apropriar
as forças das classes inferiores, entrando pela idade infantil, da maneira
mais fácil e mais barata, para as usar e gastar41 em lugar dos recursos da
mecânica. Schulz Bew. d. Product, p. 70-71.
Apelo de Lord Brougham aos trabalhadores: Tornai-vos capitalis-
tas. O ... mal é que milhões apenas através de trabalho fatigante,
corporalmente ruinoso, atrofiante moral e espiritualmente, podem
ganhar escassos meios de subsistência; que até essa infelicidade de

39 Possivelmente trata-se de Dundee. (N. Ed.)


40 Em Schulz: Körperkraft, força corporal. (N. Ed.)
41 Marx emprega aqui um jogo de palavras: zu brauchen und zu verbrauchen. (N. do R.)

257
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

ter encontrado um tal trabalho eles tenham de considerar como


uma felicidade. Ibid., p. 60.
Para viver, portanto, os não proprietários são obrigados a pôr-se
direta ou indiretamente ao serviço dos proprietários, quer dizer,
sob a sua dependência.42 Pecqueur, Théorie nouvelle d’économie
soc. etc., p. 409.43
Criados – ordenados; operários – salários; empregados – venci-
mento ou emolumentos.44 Ibid., p. 409-410.[3]
“alugar o seu trabalho”, “prestar trabalho a juro”, “trabalhar no
lugar de outro”.45 Ibid.
“Alugar a matéria do trabalho”, “emprestar a matéria do trabalho
a juro”, “fazer trabalhar outrem no seu lugar”.46 Ibid.[4]
[XIII] Esta constituição econômica condena os homens a ofícios
de tal modo abjetos, a uma degradação de tal maneira desoladora
e amarga que a selvageria aparece, em comparação, como uma
condição régia.47 l. c., p. 417-418.
A prostituição da carne não proprietária sob todas as formas.48 p.
421 sq. Catador de rua49.[5]

Ch. Loudon, no escrito solution du problème de la population


etc., Paris, 1842, indica, como número de prostitutas na Ingla-

42 Em francês no texto: “Pour vivre donc, les non-propriétaires sont obligés de se mettre
directement ou indirectement au service des propriétaires, c-à-d. sous leur dépendance.”
43 Constantin Pecqueur, Théorie nouvelle d’ économie sociale et politique, ou études sur
l’organization des sociétés [Teoria nova de economia social e política, ou estudos sobre
a organização das sociedades], 1842. (N. Ed.)
44 Em francês no texto: Domestiques – gages; ouvriers – salaires; employés – traite-
ment ou emoluments. (N. Ed.)
45 Em francês no texto: “louer son travail”, “prêter son travail à l’intérêt”, “travailler
à la place d’autrui”. (N. Ed.)
46 Em francês no texto: “louer la matière du travail”, “prêter la matière du travail à
l’intérêt”, “faire travailler autrui à sa place”. (N. Ed.)
47 Em francês no texto: “Cette constitution économique condamne des hommes à
des métiers tellement abjects, à une dégradation tellement désolante et amère, que
la sauvagerie apparaît, en comparaison, comme une royale condition.” (N. Ed.)
48 Em francês no texto: “La prostitution de la chair non-propriétaire sous toutes les
formes.” (N. Ed.)
49 Em alemão, Lumpensammler, literalmente catador de trapos. O miserável de rua.
(N. do R.)

258
K a r l M a r x

terra, 60-70 mil; o número das femmes d’une vertu douteuse50


seria igualmente grande. p. 228.[6]
A média de vida dessas desafortunadas criaturas na rua, depois
de terem entrado na carreira do vício, é de cerca de seis ou sete
anos. De maneira que, para manter o número de 60 a 70 mil
prostitutas, deve haver, nos três reinos, pelo menos 8 a 9 mil mu-
lheres que se voltam a esse infame ofício todos os anos, ou cerca
de 24 novas vítimas por dia, o que dá a média de uma por hora;
e, consequentemente, se a mesma proporção tiver lugar em toda a
superfície do globo, deve haver constantemente 1,5 milhão dessas
infelizes.51 Ibid., p. 229.
A população dos miseráveis cresce com a sua miséria, e é no
extremo limite de indigência que os seres humanos se apressam
em maior número a disputar o direito de sofrer. ... Em 1821 a
população da Irlanda era de 6.801.827. Em 1831, ela tinha se ele-
vado a 7.764.010; são 14% de aumento em dez anos. No Leinster,
província onde há maior desafogo, a população só aumentou 8%,
enquanto no Connaught, a província mais miserável, o aumento se
elevou a 21%. (“Extraits des Enquêtes publiées en Angleterre sur
l’Irlande. Vienne, 1840).” Buret de la misère etc., t. I, p. 36-37.52

50 Em francês no texto: mulheres de virtude duvidosa. (N. Ed.)


51 Em francês no texto: “La moyenne vie de ces infortunées créatures sur le pavé, après
qu’elles sont entrées dans la carrière du vice, est d’environ six ou sept ans. De manière
que pour maintenir le nombre de 60-à-70.000 prostituées, il doit y avoir, dans les
3 royaumes, au moins 8 à 9.000 femmes qui se vouent à cet infâme métier chaque
année, ou environ 24 nouvelles victimes par jour, ce qui est la moyenne d’une par
heure; et conséquemment, si la même proportion a lieu sur toute la surface du globe,
il doit y avoir constamment un million et demi de ces malheureuses.” (N. Ed.)
52 Em francês no texto: “La population des misérables croît avec leur misère et c’est
à la limite extrême du dénûment que les êtres humains se pressent en plus grand
nombre pour se disputer le droit de souffrir. ... En 1821 la population de l’Irlande
était de 6.801.827. En 1831, elle s’était élevée à 7.764.010; c’est 14% d’augmentation
en dix ans. Dans le Leinster, province où il y a le plus d’aisance, la population n’a
augmenté que de 8%, tandis que, dans le Connaught, province la plus misérable,
l’augmentation s’est élevée à 2%. Eugène Buret, De la misère des classes labourieuses
en Angleterre et en France; de la nature de la misère, de son existence, de ses effets, de
ses causes, et de l’ insuffisance des remèdes qu’on lui a opposés jusqu’ ici; avec l’ indication
des moyens propres a en affranchir les sociétés [Da miséria das classes laboriosas na
Inglaterra e na França; da natureza da miséria, da sua existência, dos seus efeitos,

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M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

A economia nacional considera o trabalho abstratamente


como uma coisa; o trabalho é uma mercadoria:53 se o preço
for alto, a mercadoria é muito procurada; se for baixo, é muito
ofertada; como mercadoria, o trabalho deve baixar cada vez
mais de preço54: em parte, a concorrência entre capitalista e
trabalhador, em parte a concorrência entre trabalhadores força
a isso;[7]...
A população operária, mercadora de trabalho, é forçosamente
reduzida à parte mais fraca do produto... A teoria do trabalho
mercadoria será outra coisa que não uma teoria da servidão dis-
farçada? (...) l. c., p. 43.
Por que então não ter visto no trabalho senão um valor de troca?55
Ibid., p. 44.

As grandes oficinas compram preferencialmente o trabalho


de mulheres e crianças, porque este custa menos que o dos
homens.[8] l. c.
O trabalhador não está, face àquele que o emprega, na posição
de um livre vendedor. ... O capitalista é sempre livre de empregar
o trabalho, e o operário é sempre forçado a vendê-lo. O valor do
trabalho é completamente destruído se não for vendido a cada
instante. O trabalho não é suscetível nem de acumulação nem
mesmo de poupança, diferentemente das verdadeiras [mercado-

das suas causas, e da insuficiência dos remédios que lhe foram opostos até agora; com
a indicação dos meios próprios para libertar dela as sociedades], t. I, 1840, p. 36. É
segundo essa obra, p. 36-37, que Marx cita os referidos Extraits des enquêtes et des
pièces officielles publiées en Angleterre par le parlement, depuis l’année 1833 jusqu’ à
ce jour [Extratos dos inquéritos e dos documentos oficiais publicados em Inglaterra pelo
Parlamento, desde o ano de 1833 até hoje]. (N. Ed.)
53 Em francês no texto: Le travail est une marchandise. (N. Ed.)
54 Em francês no texto: Comme marchandise le travail doit de plus en plus baisser de
prix. (N. Ed.)
55 Em francês no texto: “La population ouvrière, marchande de travail, est forcément
réduite à la plus faible part du produit... La théorie du travail marchandise est-elle
autre chose qu’une théorie de servitude déguisée? Pourquoi donc n’avoir vu dans le
travail qu’une valeur d’échange?” (N. Ed.)

260
K a r l M a r x

rias]. [XIV] O trabalho é a vida, e, se a vida não se trocar todos


os dias por alimentos, sofre e em breve perece. Para que a vida
do homem seja uma mercadoria, é preciso, portanto, admitir a
escravatura.56 l. c., p. 49-50.

Se o trabalho é, portanto, uma mercadoria, então é uma


mercadoria com os mais funestos atributos. Mas, mesmo se-
gundo princípios da economia nacional, ele não é tal, porque
não é o resultado livre de um mercado livre.57 [9] O regime eco-
nômico atual baixa ao mesmo tempo o preço e a remuneração
do trabalho; ele aperfeiçoa o operário e degrada o homem.[10]
p. 52-53 l. c. “A indústria tornou-se uma guerra e o comércio,
um jogo.” l. c., p. 62.
As máquinas de trabalhar o algodão58 (na Inglaterra)59
representam só elas 84 milhões de artesãos.60
A indústria encontrou-se até agora na situação da guerra
de conquista:
Ela esbanjou a vida dos homens que compunham o seu exército
com tanta indiferença como os grandes conquistadores. O seu
objetivo era a posse da riqueza, e não a felicidade dos homens”.
Buret, l. c., p. 20.

56 Em francês no texto: “Le travailleur n’est point vis à vis de celui qui l’emploie dans
la position d’un libre vendeur. ... Le capitaliste est toujours libre d’employer le
travail, et l’ouvrier est toujours forcé de le vendre. La valeur du travail est complète-
ment détruite, s’il n’est pas vendu à chaque instant. Le travail n’est susceptible, ni
d’accumulation, ni même d’épargne, à la différence des véritables [marchandises.]
Le travail c’est la vie, et si la vie ne s’échange pas chaque jour contre des aliments,
elle souffre et périt bientôt. Pour que la vie de l’homme soit une marchandise, il
faut donc admettre l’esclavage.” (N. Ed.)
57 Em francês no texto: le libre résultat d’un libre marché. (N. Ed.)
58 Em francês no texto: “abaisse à la fois et le prix et la rémunération du travail; il
perfectionne l’ouvrier et dégrade l’homme (...) L’industrie est devenue une guerre
et le commerce un jeu.” (...) Les machines à travailler le coton. (N. Ed.)
59 Em inglês no texto: in England. (N. Ed.)
60 Cf. E. Buret, De la misère..., p. 193, nota. (N. Ed.)

261
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

Esses interesses (sc.61 econômicos) livremente abandonados a


eles próprios devem necessariamente entrar em conflito; não têm
outro árbitro senão a guerra, e as decisões da guerra dão a uns a
derrota e a morte para dar aos outros a vitória. ... é no conflito
das forças opostas que a ciência procura a ordem e o equilíbrio: a
guerra perpétua é, segundo ela, o único meio de obter a paz; essa
guerra chama-se a concorrência.62 l. c., p. 23.

A guerra industrial, para ser conduzida com êxito, exige


exércitos numerosos, que ela possa amontoar no mesmo ponto e
abundantemente dizimar. E nem por dedicação, nem por dever,
os soldados desses exércitos aguentam o esforço que se lhes impõe:
só para escapar à dura necessidade da fome. Eles não têm afeição
nem reconhecimento pelos seus chefes; estes não se ligam aos seus
subordinados por nenhum sentimento de benevolência; eles não
os conhecem como homens, mas apenas como instrumentos da
produção, os quais têm que render tanto quanto possível e fazer
tão poucas despesas quanto possível. Essas hordas de trabalhado-
res, cada vez mais pressionadas, nem sequer têm a despreocupação
de estarem sempre empregadas; a indústria, que os convocou a
todos, deixa-os viver unicamente enquanto precisa deles e, logo
que pode libertar-se deles, abandona-os sem o mínimo escrúpulo;
e os trabalhadores são forçados a oferecer a sua pessoa e a sua força
pelo preço que se lhes quiser atribuir. Quanto mais o trabalho
que se lhes dá é prolongado (lang), penoso, repugnante, tanto

61 Abreviatura da palavra latina scilicet: a saber. Os parênteses são de Marx. (N. Ed.)
62 Em francês no texto: “Elle a prodigué la vie des hommes qui composaient son
armée avec autant d’indifférence que les grands conquérants. Son but était la
possession de la richesse et non le bonheur des hommes.” (...) (sc. économiques)
librement abandonnés à eux-mêmes... doivent nécessairement entrer en conflit;
ils n’ont d’autre arbitre que la guerre, et les décisions de la guerre donnent aux
uns la défaite et la mort, pour donner aux autres la victoire. ... c’est dans le
conflit des forces opposées que la science cherche l’ordre et l’équilibre: la guerre
perpétuelle est selon elle le seul moyen d’obtenir la paix; cette guerre s’appelle
la concurrence.” (N. Ed.)

262
K a r l M a r x

pior são eles pagos; veem-se alguns que, com 16 longas horas de
trabalho por dia de esforço contínuo, mal compram o direito de
não morrer.[11] l. c. p. 68-69.
[XV] Temos a convicção ... partilhada pelos comissários encar-
regados do inquérito à condição dos tecelões manuais, de que as
grandes cidades industriais perderiam, em pouco tempo, a sua
população de trabalhadores, se não recebessem a cada instante
dos campos vizinhos recrutamentos contínuos de homens sãos,
de sangue novo.63 p. 362 l. c.

[I] Ganho do capital

1) O capital
1) Sobre que se baseia o capital, i. é, a propriedade privada
dos produtos de trabalho alheio?
Se o próprio capital não se reduz a roubo ou fraude, então precisa
do concurso da legislação para consagrar (heiligen) a herança. Say,
t. I, p. 136, nota.[12]

Como se torna alguém proprietário de fonds64 produtivos?


Como se torna alguém proprietário dos produtos que são criados
por intermédio desses fonds?
Pelo direito positivo. Say, t. II, p. 4.[13]
O que se ganha com o capital, com a herança de uma grande
fortuna, p. ex.?
Alguém que, p. ex., herda uma grande fortuna, com efeito não
ganha com isso imediatamente poder político. A espécie de poder

63 Em francês no texto: “Nous avons la conviction... partagée par les commissaires


chargés de l’enquête sur la condition des tisserands à la main, que les grandes villes
industrielles perdraient, en peu de temps, leur population de travailleurs, si elles
ne recevaient à chaque instant des campagnes voisines des recrues continuelles
d’hommes sains, de sang nouveau.” (N. Ed.)
64 Em francês no texto: fundos. (N. Ed.)

263
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

que essa propriedade imediata e diretamente lhe transmite é o poder


de comprar, isto é, um direito de comando sobre todo o trabalho
de outros ou sobre todo o produto desse trabalho que ao tempo
(zur Zeit) existe no mercado. Smith, t. I, p. 61.[14]

O capital é, portanto, o poder de governo sobre o trabalho e


os seus produtos. O capitalista possui esse poder não por causa
dos seus atributos pessoais ou humanos, mas na medida em que
é proprietário do capital. O poder de comprar do seu capital, a
que nada pode resistir, é o seu poder.
Veremos mais tarde, primeiro, como o capitalista exerce
o seu poder de governo sobre o trabalho por intermédio do
capital; mas, em seguida, o poder de governo do capital sobre
o próprio capitalista.
O que é o capital?
Uma certa quantidade de trabalho acumulado e posto de reserva.65
Smith, t. II, p. 312.

Capital é trabalho armazenado.


2) Fonds, fundos [Stock] é cada acúmulo de produtos da terra
e do trabalho manufaturado. Então, os fundos só se chamam
capital se dão ao seu proprietário um rendimento ou ganho.
Smith, t. II, p. 191.[15]

2) O ganho do capital
O lucro ou ganho do capital é totalmente diverso (verschieden) do
salário (Arbeitslohn). Essa diversidade (Verschiedenheit) mostra-se
de um modo duplo. Por um lado, os ganhos do capital regulam-se
totalmente pelo valor do capital aplicado, mesmo que o trabalho
de controle e direção possa ser o mesmo com capitais diversos.
Acresce, além disso, que em fábricas grandes todo esse trabalho é

65 Em francês no texto: “Une certaine quantité de travail amassé et mis en réserve”.


(N. Ed.)

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K a r l M a r x

confiado a um funcionário-chefe [Hauptcommis], cujo ordenado


não tem nenhuma relação com o [II] capital cujo redimento ele
supervisiona66. Não obstante o trabalho do proprietário aqui se
reduzir a quase nada, ele ainda deseja lucros na proporção do seu
capital. Smith, t. I. p. 97-99.[16]

Por que deseja o capitalista essa proporção entre ganho e


capital?
Ele não teria qualquer interesse em empregar o trabalhador
se não esperasse, da venda da obra deste, mais do que é preciso
para compensar os fonds adiantados para salários, e não teria
qualquer interesse em aplicar uma soma grande em vez de uma
soma pequena de fonds se o seu lucro não estivesse em proporção
com o volume dos fonds aplicados. t. I, p. 97.[17]
Portanto, o capitalista retira em primeiro lugar um ganho
dos salários, em segundo lugar da matéria-prima adiantada.
Que relação tem então o ganho com o capital?
Se já é difícil determinar a taxa média habitual do salário
num dado lugar e num dado tempo, então mais difícil o é ainda
o ganho dos capitais. Mudança no preço das mercadorias com
as quais o capital comercia, felicidade ou infelicidade dos seus
rivais e clientes, mil outros acasos a que as mercadorias estão
expostas, tanto durante o transporte quanto nos armazéns,
produzem uma mudança diária, quase horária, no lucro. Smith.
t. I, p. 179-180.[18] Por impossível que seja então determinar
com precisão os ganhos dos capitais, pode-se contudo fazer
uma ideia deles pelo juro do dinheiro. Se se pode fazer muito
ganho com o dinheiro, então dá-se muito pela capacidade de
se servir do seu, se [se pode ganhar] pouco por mediação dele,
[dá-se] pouco. Smith. t. I, p. 180-181.[19] A proporção que a taxa
do juro habitual tem de manter com a taxa do ganho líquido
66 No original, dessen Leistung er überwacht: o sentido é que o funcionário-chefe
personifica o capital ao supervisionar o rendimento do mesmo capital. (N. do R.)

265
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

muda necessariamente com a subida ou a queda do ganho.


Na Grã-Bretanha estima-se o dobro do juro [Interesse] aquilo
a que os comerciantes chamam um lucro honesto, moderado,
razoável67, puras expressões que nada querem dizer senão um
lucro habitual e usual. Smith, t. I, p. 198.[20]
Qual é a taxa mais baixa do ganho? Qual a sua mais alta?
A taxa mais baixa do lucro habitual dos capitais tem sem-
pre que ser algo mais do que é preciso para compensar perdas
acidentais a que está sujeita toda a aplicação do capital. Esse
excedente68 é propriamente o ganho ou o benefício líquido69.
O mesmo se passa com a taxa [Taxe] mais baixa da taxa de juro
[Zinsjitss]. Smith, t. I, p. 196.[21]
[III] A taxa mais alta a que podem subir os ganhos habituais
é aquela que na maioria das mercadorias extrai a totalidade da
renda fundiária e reduz o salário da mercadoria fornecida ao
preço mais baixo, à mera subsistência do trabalhador durante
o trabalho. De uma ou de outra maneira, o trabalhador tem
sempre de ser alimentado enquanto estiver empregado num
trabalho diário; a renda fundiária pode ficar totalmente supri-
mida. Exemplo: em Bengala, o pessoal da companhia indiana
de comércio. Smith, t. I, p. 197-198.[22]
Além de todas as vantagens de uma concorrência escassa,
que o capitalista nesse caso pode explorar, ele pode manter, de
um modo honesto, o preço de mercado acima do preço natural.
Primeiro: pelo segredo comercial, se o mercado estiver muito
afastado daqueles que com ele se relacionam, nomeadamente
(nämlich) pela ocultação (Geheimhaltung) da variação de pre-
ço, a sua elevação acima do nível natural. Essa ocultação tem

67 Em francês no texto: un profit honnête, modéré, raisonnable. (N. Ed.)


68 Em francês no texto: surplus. (N. Ed.)
69 Em francês no texto: le bénéfice net. (N. Ed.)

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K a r l M a r x

precisamente como consequência que do mesmo modo outros


capitalistas não lancem nesse ramo o seu capital.
Depois: pelo segredo de fabricação, em que o capitalista
com menos custos de produção oferece a sua mercadoria pelos
mesmos preços, ou mesmo por preços mais baixos que os seus
concorrentes, com mais lucro (o ardil da ocultação não é in-
decente (unsittlich)? Negócio na bolsa de valores.) Mais: onde
a produção está ligada a uma determinada localidade (como,
p. ex., o vinho mais caro) e a demanda efetiva nunca pode ser
satisfeita. Finalmente: pelo monopólio de indivíduos e compa-
nhias. O preço de monopólio é tão alto quanto possível. Smith,
t. I, p. 120-124.[23]
Outras causas acidentais que podem elevar o ganho do
capital:
Aquisição de novos territórios ou novos ramos de comércio
aumentam frequentemente, mesmo num país rico, o ganho dos
capitais, porque subtraem aos antigos ramos de comércio uma
parte dos capitais, diminuem a concorrência, fazem com que
o mercado fique fornecido com menos mercadorias cujo preço,
então, elevam; os que exercem o comércio com elas podem então
pagar o dinheiro emprestado com juros mais fortes. Smith, t.
I, p. 190.[24]
Quanto mais uma mercadoria é elaborada (bearbeitet), mais
se torna um objeto da manufatura70, mais sobe a parte do preço
que se decompõe em salário e lucro em proporção com a parte
que se decompõe em renda fundiária. No progresso que o tra-
balho manual opera sobre essa mercadoria, não só aumenta o
número dos ganhos, como também cada ganho subsequente é
maior do que o precedente, porque o capital de que [IV] ele se
70 “Gegenstand der Manufaktur wird”. Marx se refere ao processo de transformação do
produto do artesanato medieval, realizado pelos grêmios e corporações de ofícios,
no produto das manufaturas típicas do período moderno. (N. do R.)

267
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

origina é necessariamente cada vez maior. O capital que põe em


ação os tecelões é necessariamente sempre maior que aquele que
faz trabalhar os fiandeiros, porque não só reembolsa o último
capital com os seus ganhos como, além disso, ainda paga o sa-
lário do tecelão – e é necessário que os ganhos estejam sempre
numa espécie de proporção com o capital. t. I, 102-103.[25]
O progresso feito, portanto, do trabalho humano sobre o
produto natural, e o produto natural elaborado (bearbeitete), não
aumenta o salário, mas, em parte, o número dos capitais que
dão ganho e, em parte, a proporção de cada capital subsequente
com o precedente.
Acerca do ganho que o capitalista tira da divisão do traba-
lho, mais tarde.71
Ele ganha duplamente, primeiro com a divisão do trabalho
e, em segundo lugar, geralmente com o progresso que o trabalho
humano produz (macht) sobre os produtos naturais. Quanto
maior é a porção humana numa mercadoria, tanto maior é o
ganho do capital morto.
Numa mesma sociedade, a taxa média do ganho do capital
está muito mais perto do mesmo nível que o salário das diversas
espécies de trabalho. t. I, p. 228.[26] Com as diversas aplicações
do capital, a taxa habitual do ganho muda segundo a maior ou
menor certeza do retorno do capital. A taxa do ganho sobe com o
risque72, ainda que não em proporção integral. t. I, p. 226-227.[27]
É evidente que os ganhos do capital também sobem pela
facilidade ou menor dispendiosidade dos meios de circulação
(p. ex., papel-moeda).

71 Cf. K. Marx, EAS, Mega², IV/2, p. 349-350. (N. Ed.)


72 Em francês no texto: risco (N. Ed.)

268
K a r l M a r x

3) A dominação do capital sobre o trabalho e os motivos do


capitalista
O único motivo que determina o possuidor de um capital
a aplicá-lo, seja na agricultura ou na manufatura ou num ramo
particular do comércio en gros ou en détail 73, é o ponto de vista do
seu próprio lucro. Não lhe vem à ideia calcular quanto trabalho
produtivo essas diversas espécies de aplicação põem em atividade ou
quanto será acrescentado em [V] valor ao produto anual dos terre-
nos (Landes) e do trabalho do seu país. Smith, t. II, p. 400-401.[28]
A aplicação mais útil do capital para o capitalista é aquela
que lhe rende o maior ganho com a mesma segurança. Essa
aplicação não é sempre a mais útil para a sociedade; a mais útil
é aquela que é empregada para extrair utilidades (Nutzen) das
forças produtivas da Natureza. Say, t. II, p. 130-131.[29]
As operações mais importantes do trabalho são reguladas
e dirigidas segundo os planos e as especulações daqueles que
aplicam os capitais; e a finalidade que eles têm em todos esses
planos e operações é o lucro. Portanto: a taxa de lucro não sobe,
como a renda fundiária e o salário, com a prosperidade da so-
ciedade e não cai, tal como aqueles, com a decadência desta. Ao
contrário, essa taxa é naturalmente baixa nos países ricos e alta
nos países pobres; e nunca é tão alta como nos países que mais
rapidamente se precipitam para a sua ruína. O interesse dessa
classe não tem, portanto, a mesma ligação que as outras duas
com o interesse geral (allgemeinen) da sociedade. ... O interesse
particular daqueles que exploram um ramo de comércio ou de
manufatura é, em certo sentido, sempre diverso do do público e,
muitas vezes, mesmo contraposto antagonisticamente (feindlich)
a ele. O interesse do comerciante é sempre de alargar o mercado
e limitar a concorrência dos vendedores. ... Esta é uma classe de

73 Em francês no texto: por atacado ou a varejo. (N. Ed.)

269
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

indivíduos cujo interesse nunca será exatamente o mesmo que o


da sociedade, que tem em geral (im allgemeinen) um interesse:
ludibriar o público e sobrecarregá-lo. Smith, t. II, p. 163-165.[30]

4) A acumulação dos capitais e a concorrência entre os


capitalistas
O aumento dos capitais (Capitalien), que eleva o salário,
tende a diminuir o ganho do capitalista pela concorrência entre
os capitalistas. Smith, t. I, p. 179.[31]
Se, p. ex., o capital que é preciso para o negócio de mercearia de
uma cidade se encontrar repartido entre dois merceeiros diferentes,
então a concorrência fará com que cada um deles venda mais barato
do que se o capital se tivesse encontrado nas mãos de um só; e se
estiver repartido entre 20 [VI], a concorrência será tanto mais ativa
e tanto menos possibilidade haverá de eles se entenderem entre si
para elevar o preço das suas mercadorias. Smith, t. II, p. 372-373.[32]

Uma vez que já sabemos que os preços de monopólio são


tão altos quanto possível, uma vez que o interesse do próprio
capitalista, mesmo do ponto de vista da economia nacional
como um todo (gemein nationalökonomischen) comum, se
contrapõe antagonisticamente ( feindlich) à sociedade, uma
vez que a elevação do ganho de capital atua sobre o preço da
mercadoria como o juro composto, (Smith, t. 1. I, p. 201),[33]
então a concorrência é o único socorro contra os capitalistas,
a qual, segundo as indicações da economia nacional, atua
beneficamente em favor do público consumidor tanto sobre a
elevação do salário quanto sobre a barateza das mercadorias.
Contudo, a concorrência só é possível por se multiplica-
rem os capitais e sem dúvida em muitas mãos. O surgimento
de muitos capitais só é possível através de uma acumulação
multilateral, pois em geral o capital só surge por acumulação,
e a acumulação multilateral converte-se necessariamente em

270
K a r l M a r x

unilateral. A concorrência entre os capitais aumenta, entre os


capitais, a acumulação. A acumulação, que sob a dominação da
propriedade privada é concentração do capital em poucas mãos,
é geralmente uma consequência necessária quando os capitais
são abandonados ao seu curso natural, e só pela concorrência
se abre verdadeiramente caminho livre a essa determinação
natural do capital.
Já ouvimos que o ganho do capital está em proporção com
a sua magnitude. Inicialmente, abstraindo toda a concorrência
intencionada, um capital grande acumula-se, portanto, propor-
cionalmente à sua magnitude, muito mais depressa do que um
capital pequeno.
[VIII] De acordo com isto, abstraída já toda a concorrência,
a acumulação do capital grande é muito mais rápida do que a
do pequeno. Mas prossigamos a marcha.
Com o aumento dos capitais diminuem, por intermédio da
concorrência, os lucros dos capitais. Portanto, sofre em primeiro
lugar o pequeno capitalista.
O aumento dos capitais num grande número de capitais
pressupõe riqueza progressiva do país.
Num país que chegou a um estágio muito alto da riqueza, a taxa
habitual do ganho é tão pequena que a taxa de juro que esse ga-
nho permite pagar é demasiado baixa para que outros, que não
as pessoas mais ricas, possam viver do juro do dinheiro. Todas as
pessoas de média fortuna têm, portanto, de aplicar elas próprias
o seu capital, dedicar-se a negócios ou interessar-se por um ramo
qualquer de comércio. Smith, t. I, p. 196-197.[34]

Essa situação é a situação predileta da economia nacional.


A proporção que existe entre a soma dos capitais e dos rendimentos de-
termina por toda a parte a proporção em que se encontram a indústria
e a ociosidade; onde os capitais obtêm a vitória, domina a indústria;
onde os rendimentos [vencem,] a ociosidade. Smith, t. II, p. 325.[35]

271
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

Que se passa com a aplicação do capital nessa concorrência


ampliada?
Com o aumento dos capitais, a quantidade dos fundos a emprestar
a juro74 tem de tornar-se sucessivamente maior; com o aumento
desses fonds, torna-se menor o juro do dinheiro, 1) porque o preço
de mercado de todas as coisas cai quanto mais a sua quantidade
aumenta, 2) porque com o aumento dos capitais num país se torna
mais difícil colocar um capital novo de um modo vantajoso. Surge
uma concorrência entre os diversos capitais quando o possuidor
de um capital faz todos os esforços possíveis para se apoderar do
negócio que se encontra ocupado por um outro capital. Mas,
na maioria das vezes, ele não pode esperar desalojar esse outro
capital do seu lugar a não ser pela oferta de melhores condições
para negociar. Ele não só tem de vender as coisas mais baratas
como também, frequentemente, para encontrar oportunidade de
venda, tem de as comprar mais caro. Quanto mais fonds forem
destinados à manutenção do trabalho produtivo, tanto maior será
a procura de trabalho: os trabalhadores encontram facilmente
ocupação [IX], mas os capitalistas têm dificuldade em encontrar
trabalhadores. A concorrência dos capitalistas faz subir o salário
e caírem os ganhos. Smith, t. II, p. 358-359.[36]

O pequeno capitalista tem, portanto, à escolha: 1) ou esgotar


o seu capital porque já não pode viver dos juros, portanto, deixar
de ser capitalista; ou 2) montar ele próprio um negócio e vender
mais barato a mercadoria, comprá-la mais caro que o capitalista
mais rico e pagar um salário elevado; portanto, arruinar-se, dado
que o preço de mercado já é muito baixo devido à pressuposta
elevada concorrência. Se, ao contrário, o grande capitalista quer
derrubar o pequeno, tem perante este todas as vantagens que
o capitalista, como capitalista, tem perante o trabalhador. Os
ganhos menores são-lhe compensados pela maior quantidade
do seu capital, e ele pode mesmo suportar perdas momentâneas
por um tempo suficiente até que o capitalista menor fique arrui-
74 Em francês no texto: fonds à prêter à intêrét. (N. Ed.)

272
K a r l M a r x

nado e ele se veja livre dessa concorrência. Assim ele acumula


os ganhos do pequeno capitalista.
Mais ainda: o grande capitalista compra sempre mais
barato do que o pequeno, porque compra por atacado (mas-
senhafter). Portanto, pode vender mais barato sem prejuízos.
Mas se a queda do juro do dinheiro faz passar os capitalistas
médios, de gente que vive de rendimentos [Rentiers] a gente de
negócios, também inversamente o aumento de capitais comer-
ciais e o menor ganho daí decorrente causam a queda do juro
do dinheiro.
Como resultado de o benefício que se pode tirar do uso de um
capital diminuir, diminui necessariamente o preço que se pode
pagar pelo uso desse capital. Smith, t. II, p. 359.[37]
Quanto mais a riqueza, a indústria e a população aumentam, tanto
mais diminui o juro do dinheiro e, portanto, o ganho dos capita-
listas; mas os próprios [capitais], não obstante, aumentam ainda
mais depressa do que antes, apesar da diminuição dos ganhos.
Um grande capital, ainda que de pequenos ganhos, aumenta em
geral muito mais depressa do que um capital pequeno com grandes
ganhos. O dinheiro faz dinheiro, diz o provérbio. T. I, p. 189.[38]

Se, portanto, a esse grande capital se enfrentam agora


capitais pequenos com pequenos ganhos – como acontece na
situação pressuposta de forte concorrência –, ele esmaga-os
completamente.
Nessa concorrência, a consequência necessária é, então, a
deterioração das mercadorias, a falsificação, a produção frau-
dulenta (Scheinproduktion), o envenenamento universal, como
é manifesto nas grandes cidades.
[X] Uma circunstância importante na concorrência de
grandes e pequenos capitais é, além disso, a relação de capital
fixe e capital circulant.75

75 Em francês no texto: capital fixo e capital circulante. (N. Ed.)

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M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

Capital circulant é um capital empregado na produção de meios


de subsistência (Lebensmitteln), manufatura ou comércio. Esse
capital assim colocado não dá ao seu dono nem renda nem lucro
enquanto permanece na sua posse ou vai permanecendo sob a
mesma forma. Sai constantemente da sua mão sob uma deter-
minada forma para regressar sob uma outra, e só traz lucro por
intermédio dessa circulação ou dessa sucessiva transformação
e troca. O capital fixe consiste no capital colocado no melho-
ramento de terras, na aquisição de máquinas, instrumentos,
ferramentas e coisas semelhantes. Smith, p. 197-198.[39]
Cada economia na manutenção do capital fixe é um acréscimo
do ganho líquido. O conjunto do capital de cada organizador
de um trabalho qualquer (Das Gesamtkapital eines jeden Ar-
beitsunternehmers) divide-se necessariamente entre o seu capital
fixe e o seu capital circulant. Na igualdade da soma, uma parte
será tanto menor quanto maior for a outra. O capital circulant
fornece-lhe a matéria e o salário do trabalho, e põe a indústria
em atividade. Portanto, cada economia em capital fixe que
não diminua a força produtiva do trabalho aumenta os fonds.
Smith, t. II, p. 226.[40]

Vê-se de antemão que a relação de capital fixe e capital


circulant é muito mais favorável aos grandes do que aos
pequenos capitalistas. Um banqueiro muito grande precisa
apenas insignificantemente de mais capital fixe do que um
muito pequeno. O seu capital fixe limita-se aos balcões. Os
intrumentos de um grande proprietário de terra não aumen-
tam em relação com a grandeza do seu terreno. Do mesmo
modo, o crédito que um grande capitalista possui em compa-
ração com o menor é uma poupança tanto maior no capital
fixe; a saber, no dinheiro que ele precisa ter sempre pronto.
Compreende-se finalmente que, onde o trabalho industrial
atingiu um grau elevado e, portanto, quase todo o trabalho
manual se tornou trabalho fabril, todo o seu capital não basta
ao pequeno capitalista para possuir o capital fixe necessário.

274
K a r l M a r x

É sabido que os trabalhos da grande cultura não ocupam


habitualmente senão um pequeno número de braços.76
Em geral, com a acumulação de grandes capitais, tem lugar,
proporcionalmente, também uma concentração e simplificação
do capital fixe em relação ao capitalista menor. O grande ca-
pitalista introduz por si uma espécie [XI] de organização dos
instrumentos de trabalho.
Igualmente, no âmbito da indústria, já cada manufatura e cada
fábrica é uma ligação mais abrangente de uma grande fortuna
coisal [sächlichen] com numerosas e diversificadas capacidades inte-
lectuais e aptidões técnicas para um objetivo comum da produção.
... Onde a legislação conserva a propriedade fundiária em grande
escala, o excesso de uma população crescente apinha-se nos ofícios,
e é, portanto, tal como na Grã-Bretanha, no campo da indústria
que se junta principalmente a maior quantidade de proletários
(Proletarier). Onde, porém, a legislação admite a contínua divisão
do solo, aí aumenta, como na França, o número de pequenos e
endividados proprietários que, pelo contínuo emparcelamento,
são lançados na classe dos indigentes e descontentes. Finalmente,
se esse emparcelamento e pesado endividamento forem levados
a um grau elevado, então a grande propriedade fundiária volta a
devorar a pequena, como também a grande indústria aniquila a
pequena; e, uma vez que se voltam a formar complexos de terras
[Gütercomplexe] maiores, também a quantidade de trabalhadores
não proprietários, pura e simplesmente desnecessários à cultura do
solo, é novamente empurrada para a indústria. Schulz, Bewegung
der Produktion, p. 58-59.
A qualidade (Beschaffenheit) das mercadorias da mesma espécie
(Art) modifica-se pela alteração da maneira (Art) da produção e,
nomeadamente, pela aplicação da essência da máquina (Maschi-
nenwesens). Só pela exclusão da força humana se tornou possível
fiar, de uma libra de algodão no valor de 3 xelins e 8 dinheiros,

76 Em francês no texto: “On sait que les travaux de la grande culture n’occupent
habituellement qu’un petit nombre de bras”. De acordo com os editores da Mega²,
não foi possível localizar a fonte dessa citação. (N. Ed.)

275
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

350 meadas com o comprimento de 167 milhas inglesas ou 36


milhas alemãs e com o valor comercial de 25 guinéus. Ibid., p. 62.
Na Inglaterra, desde há 45 anos, os preços dos tecidos de algo-
dão diminuíram em média cerca de 11/12 e, segundo os cálculos
de Marshall, o mesmo quantum de fabricação [Quantum von
Fabrication] pelo qual ainda no ano de 1814 foram pagos 16
xelins é agora fornecido por 1 sh. e 10 d. A maior barateza dos
produtos industriais aumenta o consumo tanto no interior do
país quanto o mercado no estrangeiro; e isso se conecta a que,
na Grã-Bretanha, o número de trabalhadores do algodão, depois
da introdução das máquinas, não só não diminuiu como antes
subiu de 40 mil para 1,5 milhão. [XII] Ora, no que diz respei-
to aos proventos dos empresários e trabalhadores industriais,
devido à concorrência crescente entre os donos das fábricas, o
ganho daqueles, em relação com a quantidade dos produtos que
fornecem, necessariamente diminuiu. Nos anos 1820-1833, o
ganho bruto dos fabricantes em Manchester por uma peça de
calicó77 caiu de 4 xelins e 11/3 d. para 1 xelim e 9 d. Mas, para
compensar esse prejuízo, tanto mais se alargou a extensão das
coisas fabricadas. Ora, a consequência é que a sobreprodução
entrou parcialmente78 em ramos singulares da indústria; surgem
frequentes bancarrotas, pelo que se gera no interior da classe dos
capitalistas e senhores do trabalho (Klasse der Kapitalisten und
Arbeitsherrn) um inseguro vacilar e flutuar da posse, o que lan-
ça uma parte dos economicamente arruinados no proletariado
(Proletariat); frequente e repentinamente se torne necessária uma
suspensão ou redução do trabalho, cujo prejuízo a classe dos tra-
balhadores assalariados sente sempre amargamente. Ibid., p. 63.
Alugar o seu trabalho é começar a sua escravatura; alugar a matéria
do trabalho é constituir a sua liberdade. ... o trabalho é o homem.
A matéria, ao contrário, não é nada do homem.79 Pecqueur, Théor.
soc. etc., p. 411-412.

77 Tecido grosseiro de algodão. (N. do R.)


78 Em Schulz: zeitweise, temporariamente. (N. Ed.)
79 Em francês no texto: “Louer son travail, c’est commencer son esclavage; louer la
matière du travail, c’est constituer la liberté. ... le travail est l’homme. La matière
au contraire n’est rien de l’homme.” Pecqueur théor. soc. etc. p. 411-412.

276
K a r l M a r x

(...) O elemento matéria, que nada pode para a criação da riqueza


sem o outro elemento trabalho, recebe a virtude mágica de ser
fecundo para eles como se eles aí tivessem posto, por eles, esse
indispensável elemento. Ibid, l. c.
Supondo que o trabalho cotidiano de um operário lhe proporciona
em média 400 fr. por ano, e que essa soma basta para cada adulto
viver uma vida grosseira, todo o proprietário de 2 mil fr. de renda,
de renda da terra, de aluguel etc., força portanto indiretamente
cinco homens a trabalhar para ele; 100 mil fr. de renda represen-
tam o trabalho de 250 homens, e 1 milhão, o trabalho de 2.500
indivíduos.80 (Portanto, 300 milhões (Louis Philippe) o trabalho
de 750 mil trabalhadores). Ibid., p. 412-413.
Os proprietários receberam da lei dos homens o direito de usar
e de abusar, quer dizer, de fazer o que quiserem da matéria de
todo o trabalho... Não são de modo algum obrigados pela lei a
fornecer oportunamente e sempre trabalho aos não proprietários,
nem de lhes pagar um salário sempre suficiente etc.” p. 413 l. c.
“Inteira liberdade, quanto à natureza, à quantidade, à qualidade,
à oportunidade da produção, ao uso, ao consumo das riquezas,
à disposição da matéria de todo o trabalho. Cada um é livre de
trocar a sua coisa como entenda sem outra consideração que não
seja o seu próprio interesse de indivíduo. p. 413 l. c.81

80 Em francês no texto: … “L’élément matière, qui ne peut rien pour la création de la


richesse sans l’autre élément travail, reçoit la vertu magique d’être fécond pour eux
comme s’ils y avaient mis, de leur propre fait, cet indispensable élément.” Ibid. l. c.
“En supposant que le travail quotidien d’un ouvrier lui rapporte en moyenne 400 fr.
par an, et que cette somme suffise à chaque adulte pour vivre d’une vie grossière, tout
propriétaire de 2.000 fr. de rente, de fermage, de loyer etc., force donc indirectemente
5 hommes à travailler pour lui; 100.000 fr. de rente représentent le travail de 250
hommes, et 1.000.000 le travail de 2.500 individus.” Ibid. p. 412-413. (N. Ed.)
81 Em francês no texto: “Les propriétaires ont reçu de la loi des hommes le droit
d’user et d’abuser, c-à-d. de faire ce qu’ils veulent de la matière de tout travail...
ils sont nullement obligés par la loi de fournir à propos et toujours du travail aux
non propriétaires, ni de leur payer un salaire toujours suffisant etc.” p. 413, l. c. ...
“Liberté entière, quant à la nature, à la quantité, à la qualité, à l’opportunité de la
production, à l’usage, à la consommation des richesses, à la disposition de la matière
de tout travail. Chacun est libre d’échanger sa chose comme il l’entend sans autre
considération que son propre intérêt d’individu.” p. 413 l. c.

277
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

A concorrência não exprime senão que a troca facultativa, que é ela


própria a consequência próxima e lógica do direito individual de
usar e de abusar dos instrumentos de toda a produção. Esses três
momentos econômicos, os quais fazem apenas um: o direito de
usar e de abusar, a liberdade de trocas e a concorrência arbitrária
acarretam as consequências seguintes: cada um produz o que quer,
como quer, quando quer, onde quer; produz bem ou produz mal,
demasiado ou não suficientemente, demasiado cedo ou demasiado
tarde, demasiado caro ou demasiado barato; cada um ignora se
venderá, a quem venderá, como venderá, quando venderá, onde
venderá; e é o mesmo quanto às compras. [XIII] O produtor ignora
as necessidades e os recursos, as procuras e as ofertas. Vende quan-
do quer, quanto pode, onde quer, a quem quer, ao preço que quer.
E do mesmo modo compra. Em tudo isso ele é sempre o joguete
do acaso, o escravo da lei do mais forte, do menos apressado, do
mais rico. ... Enquanto num ponto há escassez de uma riqueza,
noutro há demasiado e desperdício. Enquanto um produtor vende
muito ou muito caro, e tem um benefício enorme, o outro não
vende nada ou vende com perda. ... A oferta ignora a procura e
a procura ignora a oferta. Produzis fazendo fé num gosto, numa
moda que se manifesta no público dos consumidores; mas logo,
quando estais prontos a entregar a mercadoria, a fantasia passou
e fixou-se num outro gênero de produto. ... Consequências infa-
líveis: a permanência e a universalização das bancarrotas, os erros
de cálculo, as ruínas súbitas e as fortunas improvisadas; as crises
comerciais, os desempregos, as saturações ou a escassez periódicas;
a instabilidade e o aviltamento dos salários e dos lucros; a perda
ou o desperdício enorme das riquezas, de tempo e de esforços na
arena de uma concorrência encarniçada. p. 414-416 l. c.82

82 Em francês no texto: “La concurrence n’exprime pas autre chose que l’échange
facultatif, qui lui-même est la conséquence prochaine et logique du droit indivi-
duel d’user et d’abuser des instruments de toute production. Ces trois moments
économiques, lesquels n’en font qu’un: le droit d’user et d’abuser, la liberté
d’échanges et la concurrence arbitraire, entraînent les conséquences suivantes:
chacun produit ce qu’il veut, comme il veut, quand il veut, où il veut; produit
bien ou produit mal, trop ou pas assez, trop tôt ou trop tard, trop cher ou à
trop bas prix; chacun ignore s’il vendra, à qui il vendra, comment il vendra,
quand il vendra, où il vendra; et il en est de même quant aux achats. [XIII]
Le producteur ignore les besoins et les ressources, les demandes et les offres. Il
vend quand il veut, quant il peut, où il veut, à qui il veut, au prix qu’il veut. Et

278
K a r l M a r x

Ricardo no seu livro 83 (rent of land): 84 as nações são


apenas oficinas da produção, o homem é uma máquina de
consumir e produzir; a vida humana, um capital; as leis
econômicas regem cegamente o mundo. Para Ricardo, os
homens não são nada, o produto, tudo.85 No capítulo 26 da
tradução francesa diz-se:
Seria completamente indiferente, para uma pessoa, que de um
capital de 20 mil fr. tirasse 2 mil fr. por ano de lucro, que o seu
capital empregasse cem homens ou mil... O interesse real de uma
nação não é o mesmo? Desde que o seu rendimento líquido e real
e que as suas rendas e os seus lucros sejam os mesmos, que importa
que se componha de 10 ou de 12 milhões de indivíduos?86

il achete de même. En tout cela il est toujours le jouet du hasard, l’esclave de la


loi du plus fort, du moins pressé, du plus riche. ... Tandis que sur un point il y
a disette d’une richesse, sur l’autre il y a trop plein et gaspillage. Tandis qu’un
producteur vend beaucoup ou très cher, et à bénéfice énorme, l’autre ne vend
rien ou vend à perte. ... L’offre ignore la demande et la demande ignore l’offre.
Vous produisez sur la foi d’un goût, d’une mode qui se manifeste dans le public
des consommateurs; mais déjà, lorsque vous êtes prêt à livrer la marchandise,
la fantaisie a passé et s’est fixée sur un autre genre de produit. ... conséquences
infaillibles la permanence et l’universalisation des banqueroutes, les mé-
comptes, les ruines subites et les fortunes improvisées; les crises commerciales,
les chômages, les encombrements ou les disettes périodiques; l’instabilité et
l’avilissement des salaires et des profits; la déperdition ou le gaspillage énorme
des richesses, de temps et d’efforts dans l’arène d’une concurrence acharnée.”
p. 414-416 l. c. (N. Ed.)
83 David Ricardo, Des principes de l’ économie politique et de l’ impôt. Trad. de l’anglais
par F.-S. Constancio, avec des notes explicatives et critiques par J.-B. Say. [Dos
princípios da economia política e do imposto. Trad. do inglês por F.-S. Constâncio,
com notas explicativas e críticas por J.-B. Say]. 2ª ed., t. 2, 1835, p. 194-195. Citado
segundo E. Buret, De la misère..., p. 6-7. (N. Ed.)
84 Em inglês no texto: renda da terra. (N. Ed.)
85 Cf. E. Buret, De la misère..., p. 6, nota. (N. Ed.)
86 “Il serait tout-à-fait indifférent, pour une personne, qui sur un capital de 20 mil fr.
ferait 2 mil fr. par an de profit, que son capital employât cent hommes ou mille...
L’intérêt réel d’une nation n’est-il pas le même? pourvu que son revenu net et réel
et que ses fermages et ses profits soient les mêmes, qu’importe qu’elle se compose de
dix ou de douze millions d’individus?” l. c., p. 194-195. Citado segundo E. Buret,
De la misère..., p. 6-7. (N. Ed.)

279
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

Na verdade, diz o sr. de Sismondi (t. II, p. 33187), não resta senão
desejar que o rei, tendo ficado só na ilha, rodando constantemente
uma manivela (Kurbel), faça realizar por autômatos todo o tra-
balho da Inglaterra.88
O patrão, que compra o trabalho do operário a um preço tão
baixo que mal basta para as necessidades mais prementes, não
é responsável nem pela insuficiência dos salários, nem pela de-
masiado longa duração do trabalho: ele padece, ele próprio, a lei
que impõe ... não é tanto dos homens que vem a miséria, mas da
potência das coisas.89 l. c. p. 82.
Na Inglaterra, há muitos lugares onde faltam aos habitantes
capitais para uma completa cultura da terra. A lã das provín-
cias do Sul da Escócia tem, na maior parte das vezes, de fazer
uma grande viagem por terra pelos piores caminhos para ser
trabalhada no condado de York, porque faltam capitais para a
manufatura no seu lugar de produção. Há na Inglaterra mui-
tas cidades fabris pequenas, cujos habitantes não têm capital
suficiente para o transporte dos seus produtos industriais para
mercados afastados onde encontrem procura e consumidores.
Os comerciantes são aqui [XIV] apenas agentes de comerciantes
mais ricos que residem em algumas grandes cidades comerciais.
Smith, t. II, p. 382.[41]
Para aumentar o valor do produto anual da terra e do trabalho, não
há outros meios senão aumentar, quanto ao número, os operários
produtivos, ou aumentar, quanto à potência, a faculdade produtiva

87 Jean-Charles-Leonard Simonde de Sismondi, Nouveaux príncipes d’ économie politi-


que, ou de La richesse dans sés rapports avec la population [Novos princípios de Economia
Política, ou da Riqueza nas suas relações com a população], 2. ed., t. 2, 1827. Citado
segundo E. Buret, De La misere..., p. 6-7 (N. Ed.)
88 Em francês no texto: “En vérité, dit M. de Sismondi (t. II, p. 331), il ne reste plus
qu’a désirer que le roi, demeuré tout seul dans l’île, en tournant constamment
une manivelle (Kurbel ) fasse accomplir par des automates, tout l’ouvrage de
l’Angleterre.”
89 Em francês no texto: “le maître, qui achète le travail de l’ouvrier à un prix si bas qu’il
suffit à peine aux besoins les plus pressants, n’est responsable ni de l’insuffisance des
salaires, ni de la trop longue durée du travail: il subit lui-même la loi qu’il impose...
ce n’est pas tant des hommes que vient la misère, que de la puissance des choses.”
Citado segundo E. Buret, De la misère... (N. Ed.)

280
K a r l M a r x

dos operários precedentemente empregados. ... Num e noutro caso é


preciso quase sempre um acréscimo de capital.90 Smith, t. II, p. 338.
Visto que, portanto, reside na natureza das coisas que a acumulação
de um capital é um preliminar necessário da divisão do trabalho, o
trabalho não pode sofrer maiores subdivisões senão na proporção
em que os capitais se foram acumulando cada vez mais. Quanto
mais o trabalho se decompõe em subdivisões, mais aumenta a
quantidade dos materiais [Materien] que o mesmo número de
pessoas pode operar; e, dado que a tarefa de cada trabalhador se
encontra cada vez mais reduzida a um maior nível de simplicidade,
descobre-se uma quantidade de novas máquinas para facilitar e en-
curtar essas tarefas. Quanto mais se amplifica, portanto, a divisão
do trabalho, tanto mais é necessário, para que um mesmo número
de ouvriers91 esteja constantemente ocupado, que se reúna anteci-
padamente uma mesma provisão de meios de subsistência e uma
provisão de materiais, instrumentos e ferramentas, a qual é muito
mais considerável (viel stärker) do que aquela que era anteriormente
necessária numa situação menos avançada das coisas. O número
dos trabalhadores em cada ramo de trabalho aumenta ao mesmo
tempo em que aí aumenta a divisão do trabalho, ou, antes, é esse
aumento do seu número que os põe na situação de se classificarem
e subdividirem dessa maneira. Smith, t. II, p. 193-194.[42]
Do mesmo modo que o trabalho não pode manter essa grande
extensão da força produtiva sem uma precedente acumulação dos
capitais, também a acumulação dos capitais leva de um modo
natural a essa extensão. O capitalista, por meio do seu capital,
quer produzir a máxima quantidade possível de peças [Machwerk],
esforça-se por introduzir entre os seus trabalhadores a mais conve-
niente divisão do trabalho e provê-los com as melhores máquinas
possíveis. Para ter êxito nesses dois tópicos, os seus meios [XV]
estão em relação com a extensão do seu capital e com o número
de pessoas que esse capital pode manter ocupadas. Assim, não só
a quantidade da indústria aumenta num país por intermédio do

90 Em francês no texto: “Pour augmenter la valeur du produit annuel de la terre et du


travail, il n’y a pas d’autres moyens que d’augmenter, quant au nombre, les ouvriers
productifs, ou d’augmenter, quant à la puissance, la faculté productive des ouvriers
précédemment employés. ...Dans l’un et dans l’autre cas il faut presque toujours
un surcroit de capital.”. (N. Ed.)
91 Em francês no texto: operários. (N. Ed.)

281
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

crescimento do capital que a põe em movimento como também, em


consequência desse crescimento, a mesma quantidade de indús-
tria produz uma quantidade muito maior de peças (Machwerke).
Smith., l. c. p. 194-195.[43]
Portanto, sobreprodução.
Combinações mais abrangentes das forças produtivas ... na indús-
tria e no comércio pela reunião de forças humanas e forças naturais
mais numerosas e mais diversificadas para empreendimentos em
maior escala. Também já aqui e ali – mais estreita ligação dos
principais ramos da produção entre si. Assim, os grandes fabri-
cantes procurarão simultaneamente adquirir grandes propriedades
fundiá­rias, para pelo menos não terem de adquirir (beziehn) só de
terceira mão uma parte das matérias-primas necessárias à sua in-
dústria; ou estabelecerão em ligação com os seus empreendimentos
industriais um comércio não apenas para a saída dos seus próprios
fabricos, mas também para a compra de produtos de outras espécies
e para a venda dos mesmos aos seus trabalhadores. Na Inglaterra,
onde donos de fábrica singulares estão por vezes à frente de 10 a 12
mil trabalhadores ... não são raras já semelhantes ligações de ramos
de produção diversos sob uma inteligência dirigente, semelhantes
Estados menores ou províncias no Estado. Assim, nos tempos
mais recentes, os possuidores de minas em Birmingham assumem
todo o processo de preparação do ferro, que antes se dividia entre
diversos empresários e possuidores. Veja-se o distrito mineiro de
Birmingham – Deutsche Viertelj. 3, 1838.92 Finalmente vemos,
nos maiores empreendimentos por ações, tornados tão numerosos,
amplas combinações das forças do dinheiro de muitos participantes
com os conhecimentos e aptidões científicas e técnicas de outros,
a quem é confiada a realização93 do trabalho. Desse modo, é pos-
sível aos capitalistas empregar as suas poupanças de modo mais
diversificado e também simultaneamente em produção agrícola,

92 A. von Treskow, “Der bergmännische Distrikt zwischen Birmingham und Wolver-


hampton, mit besonderer Bezugnahme auf die Gewinnung des Eisens”. Deutsche
Vierteljahrs Schrift [“O distrito mineiro entre Birmingham e Wolverhampton, com
particular referência à extração do ferro”, Revista Trimestral Alemã], 1838, H. 3, p.
53. Citado segundo Wilhelm Schulz, Die Bewegung..., p. 40. (N. Ed.)
93 Ausführung em alemão. Literalmente, uma execução que se preocupa com o desem­
penho, que implementa o processo de trabalho. (N. do R.)

282
K a r l M a r x

industrial e comercial, pelo que o seu interesse se torna ao mesmo


tempo mais plurifacetado, [XVI] as oposições entre os interesses
da agricultura, indústria e comércio se atenuam e fundem. Mas
mesmo essa possibilidade facilitada de tornar o capital lucrativo
(nutzbringend) do modo mais diverso tem de elevar a oposição
entre as classes com meios e sem meios. Schulz. l. c., p. 40-41.

Monstruoso ganho extraem da miséria os locadores de


casas. O loyer 94 está na proporção inversa da miséria industrial.
Do mesmo modo, percentagens [extraídas] dos vícios dos pro-
letários arruinados. (Prostituição, embriaguês, prêteur sur gages95).
A acumulação dos capitais cresce e a sua concorrência di-
minui quando capital e posse fundiária se encontram reunidos
numa mão, igualmente quando o capital se torna, pela sua
magnitude, capaz de combinar diversos ramos de produção.
Indiferença para com os homens. Os 20 bilhetes de loteria
de Smith.[44]
Rendimento líquido e bruto de Say.96

[I] Renda fundiária


O direito dos proprietários fundiários deriva a sua origem
do roubo. Say, t. I, p. 136, nota[45]. Os proprietários fundiários
gostam, como todas as pessoas, de colher onde não semearam
e até demandam uma renda pelo produto natural da terra.
Smith, t. I, p. 99.[46]
Poder-se-ia imaginar que a renda fundiária é apenas o ganho do
capital que o proprietário utilizou para o melhoramento do solo.
... Há casos em que a renda fundiária pode ser isso em parte ...

94 Em francês no texto: aluguel. (N. Ed.)


95 Em francês no texto: prestamista. (N. Ed.)
96 Em francês no texto: “Revenu net et brut de Say.” Cf. J.-B. Say, Traité d’ économie
politique..., t. 2, p. 469. (N. Ed.)

283
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

mas o proprietário fundiário exige 1) uma renda mesmo pela


terra não melhorada, e o que se pode considerar como juro ou
ganho sobre os custos de melhoramento é, na maior parte das
vezes, apenas um adendo\adição a essa renda primitiva; 2) além
disso, esses melhoramentos nem sempre são feitos com os fonds
do proprietário fundiário, mas muitas vezes com os do arrenda-
tário: não obstante, quando se trata de renovar o arrendamento,
o proprietário fundiário pede habitualmente uma tal elevação da
renda como se todos esses melhoramentos tivessem sido feitos
com os seus fonds próprios; 3) sim, muita vezes, ele pede mesmo
uma renda por aquilo que de modo algum é suscetível do mínimo
melhoramento pela mão humana. Smith, t. I, p. 300-301.[47]

Smith dá como exemplo a barrilheira (garança marinha –


salicorne)97,
uma espécie de planta marinha que, depois da combustão, dá um
sal alcalino com que se pode fazer vidro, sabão etc. Ela cresce na
Grã-Bretanha, principalmente em diversos lugares da Escócia,
mas unicamente sobre rochas que estão abaixo do fluxo e refluxo
(maré alta, marée)98 e são cobertas pelas ondas do mar duas vezes
por dia, pelo que o seu produto nunca é aumentado pela indústria
humana. Todavia, o proprietário de um desses terrenos onde cresce
essa espécie de plantas pede uma renda tão grande como pela terra
adequada ao plantio (Getreideboden). Nas proximidades da ilha
de Shetland, o mar é extraordinariamente rico. Uma grande parte
dos seus habitantes [II] vive da pesca. Mas, para tirar ganho dos
produtos do mar, tem de se ter uma habitação nas terras vizinhas.
A renda fundiária não está em relação com o que o arrendatário
pode fazer com a terra, mas com o que ele pode fazer com a terra
e o mar juntamente. Smith, t. I, p. 301-302.[48]
Pode-se considerar a renda fundiária como o produto do poder da
Natureza, cujo uso o proprietário empresta ao arrendatário. Esse
produto é maior ou menor segundo o volume desse poder ou,
por outras palavras, segundo o volume da fertilidade natural ou
artificial da terra. É a obra da natureza que fica depois da subtração

97 Em francês no texto: salicórnia. (N. Ed.)


98 Em francês no texto: maré. (N. Ed.)

284
K a r l M a r x

ou depois do balanço de tudo aquilo que se pode considerar como


obra do homem. Smith, t. II, p. 377-378.[49]
A renda fundiária, considerada como preço que se paga pelo uso
da terra, é portanto naturalmente um preço de monopólio. Ela
não está de modo algum em relação com os melhoramentos que
o proprietário fundiário fez na terra, ou com o que ele tem de
receber para não perder, mas, antes, com o que o arrendatário
possivelmente pode dar sem perder. Smith, t. I, p. 302.[50]
Das três classes produtivas99, a dos proprietários fundiários é
aquela cujo rendimento não lhe custa nem trabalho nem cuidado,
mas que, por assim dizer, lhe vem por si e sem que eles adicionem
para isso qualquer intenção100 ou qualquer plano.101 Smith, t. II,
p. 161.[51]

Já ouvimos dizer que a quantidade da renda fundiária de-


pende da relação com a fertilidade do solo.
Um outro momento da sua determinação é a localização.
A renda varia segundo a fertilidade da terra, qualquer que seja o seu
produto, e segundo a localização, qualquer que seja a fertilidade.
Smith, t. I, p. 306.[52]
Sendo terrenos, minas e pescarias da mesma fertilidade, o seu
produto estará em igual relação com a extensão dos capitais que
se aplicam na sua cultura e exploração, bem como com o modo
mais [III] ou menos hábil da aplicação dos capitais. Sendo os
capitais iguais e aplicados de modo igualmente hábil, o produto
estará em igual proporção com a fertilidade natural dos terrenos,
pescarias e minas. T. II, p. 210.[53]

99 “Produtivas” não figura no texto de Smith. (N. Ed.)


Na edição de 1932 dos Manuscritos, reproduzida na MEW, em vez de “produtivas”
consta “primitivas.” (MEW Bd. 40, p. 498-9). (N. do R.)
100 No texto de Marx: “Einsicht”. Na tradução francesa de Smith figura “dessein” (de-
sígnio), o que em alemão poderia ser traduzido por “Absicht”. (N. Ed.)
101 Passagem de difícil tradução e com uma variante entre a edição da MEW e da
Mega². Na primeira lemos und ohne daß sie irgendeine Absicht oder einen Plan; na
Mega², em vez de Absicht temos Einsicht. Como sugere a nota 86, supra, da edição
portuguesa, a escolha por Absicht em vez de Einsicht pode ter sido decorrente de que
na tradução francesa de Smith consta “dessein (desígnio), o que em alemão poderia
ser traduzido por Absicht.” (N. do R.)

285
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

Essas proposições de Smith são importantes porque, dados


os mesmos custos de produção e o mesmo volume, reduzem a
renda fundiária à maior ou menor fertilidade da terra. Provam
claramente, deste modo, a distorção dos conceitos na economia
nacional, a qual transforma a fertilidade da terra num atributo
do proprietário fundiário (Grundbesitzers).
Mas consideremos agora a renda fundiária tal como ela se
configura no intercâmbio real.
A renda fundiária é fixada pela luta entre arrendatário e
proprietário da terra (Grundeigentümer). Por toda a parte, en-
contramos reconhecidas na economia nacional a oposição como
inimigos (feindlichen Gegensatz) dos interesses, a luta, a guerra,
como o fundamento da organização social.
Vejamos agora como o arrendatário e o proprietário fundiá­
rio estão um para o outro.
O proprietário fundiário procura, se possível pela estipulação das
cláusulas de arrendamento, não deixar ao arrendatário mais do
que o bastante para repor o capital, que proporciona as sementes,
paga o trabalho, compra e mantém animais e outros instrumentos
e, sobretudo, rende o ganho habitual nos restantes arrendamentos
do cantão. Manifestamente, esta é a parte menor com que o ar-
rendatário pode satisfazer-se sem cair em perda, e o proprietário
fundiário raramente é de opinião de lhe conceder mais. Tudo o
que, do produto ou do seu preço, vai para além desta proporção,
seja o resto como for, o proprietário busca reservar para si como
a mais forte renda fundiária que o arrendatário, na atual situação
da terra [IV], pode pagar. Esse surplus pode sempre ser conside-
rado como a renda fundiária natural, ou como a renda pela qual
é naturalmente arrendada a maior parte dos terrenos. Smith, t.
I, p. 299-300.[54]
Os proprietários da terra, diz Say, exercem uma certa espécie de
monopólio sobre os arrendatários. A procura das suas mercadorias,
dos terrenos e dos solos, pode estender-se sem cessar; mas a quan-
tidade das suas mercadorias apenas se pode alargar até um certo
ponto. ... O negócio que se fecha entre o proprietário da terra e o

286
K a r l M a r x

arrendatário é sempre tão vantajoso quanto possível para o primei-


ro ... Além da vantagem que ele tira da natureza das coisas, tira ele
outra da sua posição, maior fortuna, crédito, prestígio; contudo,
só a primeira já basta para que esteja sempre capacitado para só ele
lucrar das circunstâncias favoráveis da terra e do solo. A abertura
de um canal, de um caminho, o progresso do povoamento e da
prosperidade (Wohlstandes) de um cantão elevam sempre o preço
do arrendamento. ... O próprio arrendatário pode, sem dúvida,
melhorar o solo às suas custas; mas desse capital ele apenas tira
vantagem enquanto dura o arrendamento e, com a expiração desse,
o capital fica para o proprietário da terra; a partir desse momento,
este tira daí os juros sem ter feito adiantamentos, pois o aluguel
eleva-se agora proporcionalmente. Say, t. II, p. 142-143.[55]
A renda fundiária, considerada como o preço que é pago pelo uso
da terra, é portanto de um modo natural o preço mais alto que
o arrendatário está em situação de pagar nas presentes condições
de terrenos e solos. Smith, t. I, p. 299.[56]
A renda fundiária da superfície da terra ascende, portanto, na
maioria das vezes... à terceira parte do produto total e na maioria
das vezes é uma renda fixa e independente das oscilações [IV]
acidentais da colheita. Smith, t. I, p. 351.[57]
Raramente essa renda ascende a menos de 1/4 do produto total.
Ibid. t. 11, p. 378.[58]

A renda fundiária não pode ser paga por todas as merca-


dorias. P. ex., em muitas regiões, não se paga nenhuma renda
fundiária pelas pedras.[59]
Habitualmente, só se podem trazer os produtos da terra ao mer-
cado, a parte do produto da terra cujo preço habitual chega para
repor o capital que é preciso para esse transporte e o ganho habitual
desse capital. Se o preço chega para mais do que isso, então o sur-
plus102 vai naturalmente para a renda fundiária. Se ele for apenas
suficiente, então a mercadoria pode ser trazida ao mercado, mas
não é suficiente para pagar a renda fundiária ao possuidor de terra
(Landbesitzer). Será ou não será o preço mais que suficiente? Isso
depende da procura. Smith, t. I, p. 302-303.[60]

102 Em francês no texto: excedente. (N. Ed.)

287
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

A renda fundiária entra na composição do preço das mercadorias de


uma maneira totalmente diferente do salário e do ganho do capital.
A taxa alta ou baixa dos salários e ganhos é a causa do alto ou baixo
preço das mercadorias: a taxa alta ou baixa da renda fundiária é
o efeito do preço. Smith, t. I, p. 303-304.[61]

O alimento pertence aos produtos que sempre trazem uma


renda fundiária.
Visto que os homens, como todos os animais, aumentam em relação
com os seus meios de subsistência, assim há sempre maior ou menor
procura de alimento. O alimento poderá sempre comprar uma parte
maior ou menor [VI] de trabalho, e encontrar-se-á sempre gente
disposta a encontrar algo que fazer para o conseguir (gewinnen). O
trabalho que o alimento pode comprar não é sempre, com efeito,
igual ao trabalho que poderia subsistir com ele se ele fosse repartido
do modo mais econômico, e isto por causa dos salários (Arbeitssalai-
re) de vez em quando altos. Mas o alimento pode sempre comprar
tanto trabalho quanto trabalho ele pode fazer subsistir, segundo a
taxa dessa espécie de trabalho habitual na região (Lande). A terra
produz, em quase todas as situações possíveis, mais alimento do
que o preciso para a subsistência de todo o trabalho que contribui
para levar esse alimento ao mercado. O a mais desse alimento é
sempre mais que suficiente para repor com ganho o capital que põe
em movimento esse trabalho. Portanto, fica sempre algo para dar
uma renda ao proprietário fundiário. Smith, t. I, p. 305-306. [62]
Não só a renda fundiária tira a sua origem primeira do alimento,
como também, se, na sequência, uma outra parte do produto da
terra vier a dar uma renda, a renda deve esse acréscimo de valor
ao crescimento do poder que o trabalho adquiriu para produzir
alimentação por intermédio (au moyen)103 da cultura e melhora-
mento da terra. Smith, t. I, p. 345.[63]
O alimento do homem basta, portanto, sempre para o pagamento
da renda fundiária, t. I, p. 337.[64]
Os países não se povoam em relação ao número que o seu produto
pode vestir e alojar, mas em relação àquele que o seu produto pode
alimentar. Smith, t. I, p. 342.[65]

103 Em francês no texto: por meio. (N. Ed.)

288
K a r l M a r x

As duas maiores necessidades humanas depois do alimento são o


vestuário, o alojamento e a calefação. Na maior parte dos casos
dão uma renda fundiária, mas nem sempre necessariamente. t.
I, ibid. p. 338.[66]

[VIII] Vejamos agora como o proprietário da terra explora


todas as vantagens da sociedade.
1) A renda fundiária aumenta com a população. Smith, t. I, p.
335.[67]

2) Já ouvimos de Say como a renda fundiária sobe com as


ferrovias etc., com a melhoria, a segurança e multiplicação dos
meios de comunicação.
3) Cada melhoria no estado da sociedade tende a fazer subir
direta ou indiretamente a renda fundiária, a elevar a riqueza real
do proprietário, i. é, o seu poder de comprar trabalho alheio ou
o produto deste. ... O incremento na melhoria dos terrenos e das
culturas tende diretamente nesse sentido. A parte do proprietário
no produto aumenta necessariamente com o aumento do produto.
... O subir no preço real dessas espécies de matérias-primas, p. ex.,
o subir no preço do gado, tende também diretamente a fazer subir
a renda fundiária numa proporção ainda mais forte. Não só o valor
real da parte do proprietário da terra – o poder real que essa parte
lhe dá sobre o trabalho alheio – aumenta necessariamente com o
valor real do produto, como também a magnitude dessa parte em
relação ao produto total aumenta com esse valor. Depois do preço
real desse produto ter subido, ele não requer qualquer trabalho
maior para ser fornecido e para que o capital aplicado seja reposto
juntamente com os seus ganhos habituais. A parte restante do
produto, que pertence ao proprietário da terra, torna-se portanto
muito maior do que era até aí no que diz respeito ao produto total.
Smith, t. II, p. 157-159.[68]

[IX] A maior procura de produtos in natura, e daí a elevação


do valor, pode provir em parte do aumento da população e do
aumento das suas necessidades. Mas cada nova invenção, cada
nova aplicação que a manufatura faz de uma matéria-prima até

289
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

aí nunca ou pouco usada, aumenta a renda fundiária. Assim,


por exemplo, a renda das minas de carvão subiu extraordina-
riamente com as ferrovias, barcos a vapor etc.
Além dessa vantagem que o proprietário da terra tira da
manufatura, das invenções, do trabalho, veremos ainda uma
outra.104
4) Os modos de melhoramentos na força produtiva do traba-
lho, que visam diretamente baixar o preço real dos produtos da
manufatura, tendem indiretamente a elevar a renda fundiária
real. O proprietário fundiário nomeadamente troca por produto
de manufatura a parte da sua matéria-prima que excede o seu
consumo pessoal, ou o preço dessa parte. Tudo o que diminui o
preço real da primeira espécie de produtos aumenta o preço real da
segunda. A mesma quantidade de produto in natura corresponde
doravante a uma maior quantidade de produto de manufatura, e
o proprietário fundiário acha-se capacitado para conseguir para
si uma maior quantidade de comodidades, adornos e coisas de
luxo. Smith, t. II, p. 159.[69]

Quando, todavia, de que o proprietário fundiário explora


todas as vantagens da sociedade [X], infere Smith (p. 161, t. II)
[70]
que o interesse do proprietário fundiário é sempre idêntico
ao da sociedade, isso é ridículo. Na economia nacional, sob a
dominação da propriedade privada, o interesse que um indiví-
duo tem na sociedade está em relação inversa ao interesse que a
sociedade tem nele, tal como o interesse do agiota pelo esban-
jador não é inteiramente idêntico ao interesse do esbanjador.
Mencionamos apenas de passagem a avidez de monopólio
(Monopolsucht) do proprietário da terra pela propriedade fundiá-
ria de países estrangeiros, donde datam p. ex. as leis dos cereais.105

104 Cf. K. Marx, EAS, Mega², IV/2, p. 353. (N. Ed.)


105 Referência às Corn Laws, uma série de leis visando restringir ou proibir a importação
de cereais do estrangeiro, introduzidas na Inglaterra para salvaguardar os interesses
dos grandes proprietários fundiários. No primeiro terço do século XIX, várias leis

290
K a r l M a r x

Do mesmo modo, omitimos aqui a servidão medieval, a


escravatura nas colônias, a miséria da gente do campo\jorna-
leiros (Taglöhner) na Grã-Bretanha. Detenhamo-nos agora nas
proposições da própria economia nacional.
1) O proprietário da terra está interessado no bem da so-
ciedade significa, segundo os princípios nacional-econômicos,
que ele está interessado nos seus progressivos povoamento,
produção artística, aumento das suas necessidades, numa pa-
lavra, no crescimento da riqueza, e esse crescimento é, segundo
as nossas considerações, até agora idêntico ao crescimento da
miséria e da escravatura. A crescente relação do aluguel com a
miséria é um exemplo do interesse do proprietário da terra pela
sociedade, pois com o aluguel cresce a renda fundiária, o juro
do solo sobre o qual está a casa.
2) Segundo o próprio economista nacional, o interesse do
proprietário da terra está em oposição antagônica ( feindliche
Gegensatz) ao interesse do arrendatário; portanto, já a uma parte
significativa da sociedade.
[XI] 3) Uma vez que o proprietário da terra pode exigir ao
arrendatário tanto mais renda quanto menos salário o arren-
datário pagar, e uma vez que o arrendatário baixa tanto mais
o salário quanto mais renda fundiária o proprietário da terra
(Grundeingentümer) exigir, o interesse do proprietário da terra é
tão antagônico (feindlich) ao interesse dos escravizados do campo

foram adotadas (em 1815, 1822 e depois) alterando as condições das importações
de cereais, e em 1828 foi introduzida uma escala móvel, a qual elevava as taxas de
importação de cereais quando os preços desciam no mercado interno e vice-versa.
Em 1838, Cobden e Bright, industriais de Manchester, fundaram a Anti-Corn Law
League (Liga Contra a Lei dos Cereais). Apresentando a exigência da plena liberdade
de comércio, a Liga lutava pela revogação das Leis dos Cereais, com o objetivo de
reduzir os salários dos trabalhadores e de enfraquecer as posições políticas e eco-
nômicas da aristocracia fundiária. Como resultado dessa luta, as Leis dos Cereais
foram revogadas em 1846, o que significou uma vitória da burguesia industrial
sobre a aristocracia fundiária. (N. Ed.)

291
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

(Ackerknechte) como o do dono de manufatura está para o dos


seus trabalhadores. Também ele reduz os salários a um mínimo.
4) Dado que a baixa real no preço dos produtos de manu-
fatura eleva a renda fundiária, então o proprietário fundiário
(Grundbesitzer) tem um interesse direto na redução do salário
dos trabalhadores manufatureiros, na concorrência entre os ca-
pitalistas, na sobreprodução, em toda a miséria da manufatura.
5) Portanto, se o interesse do proprietário da terra, muito
longe de ser idêntico ao interesse da sociedade, está em oposi-
ção antagônica (feindlichen) ao interesse dos arrendatários, dos
escravizados do campo, dos trabalhadores de manufatura e dos
capitalistas, então nem sequer o interesse de um só proprietário
da terra é idêntico ao do outro, por causa da concorrência que
queremos considerar agora.
Em geral, grande propriedade fundiária e pequena já se
relacionam como grande e pequeno capital. Mas surgem ainda
circunstâncias especiais que trazem consigo incondicionalmente
a acumulação da grande propriedade fundiária e o devorar da
pequena por aquela.
[XII] 1) Em parte alguma diminui mais o número proporcio-
nal de trabalhadores e instrumentos com a magnitude dos fonds
do que na posse fundiária. Do mesmo modo, em parte alguma
aumenta mais a possibilidade de exploração omnilateral, de eco-
nomia (Ersparung) dos custos de produção e de hábil divisão do
trabalho, com a magnitude dos fonds, do que na posse fundiária.
Por menor que um campo seja, os instrumentos de trabalho de
que ele necessita, como arado, serra etc., chegam a certo limite
em que não podem diminuir mais, enquanto a pequenez da posse
fundiária pode ultrapassar amplamente esses limites.
2) A grande posse fundiária acumula para si os juros que o
capital do arrendatário aplicou no melhoramento do terreno e

292
K a r l M a r x

do solo. A pequena posse fundiária tem de aplicar o seu próprio


capital. Para ela fica, assim, suprimido todo esse lucro.
3) Enquanto cada melhoramento social é útil à grande pro-
priedade fundiária, ele prejudica a pequena porque faz com que
ela precise cada vez mais de dinheiro sonante.
4) Há ainda a considerar duas leis importantes para esta
concorrência:
α) A renda dos terrenos que são cultivados para a produção
de meios de alimento dos homens regula a renda da maioria dos
restantes terrenos cultivados. Smith, t. I, p. 331.[71]
Meios de alimento como gado etc., apenas a grande posse
fundiária os pode afinal produzir. Portanto, ela regula a renda
dos restantes terrenos e pode pressioná-la a um mínimo.
O pequeno proprietário da terra que trabalha para si encontra-
-se assim perante o grande proprietário da terra na relação de um
artesão que possui um instrumento próprio para com o dono da
fábrica. A pequena posse fundiária tornou-se mero instrumento
de trabalho. [XVI] A renda fundiária desaparece totalmente para
o pequeno proprietário da terra; resta-lhe no máximo o juro do
seu capital e o salário do seu trabalho; pois a renda fundiária pode
ser rebaixada pela concorrência até ser nada mais que o juro do
capital não investido pelo próprio.
β) De resto, já ouvimos dizer que, dada igual fertilidade e
exploração igualmente hábil das terras, minas e pescarias, o
produto está na proporção da extensão dos capitais. Portanto,
vitória do grande proprietário da terra. Do mesmo modo, da-
dos capitais iguais [o produto está] na proporção da fertilidade.
Portanto, dados capitais iguais vence o proprietário da terra do
solo mais fértil.
γ) Pode-se em geral dizer de uma mina que ela é produtiva ou
improdutiva se a quantidade de mineral que certa quantidade de
trabalho tirar é maior ou menor do que a mesma quantidade de

293
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

trabalho pode tirar da maioria das outras minas da mesma espécie.


Smith, t. I, p. 345-346.[72]
O preço da mina mais produtiva (fruchtbarsten) regula o preço do
carvão para todas as outras minas da vizinhança. Proprietário da
terra e empresário, ambos, concluem (finden) que terão, um, uma
renda mais forte, o outro, um lucro mais forte, se venderem as
coisas mais baratas do que os seus vizinhos. Os vizinhos são então
forçados a vender pelo mesmo preço, mesmo se não estiverem em
condição para isso, e mesmo se esse preço diminuir cada vez mais
e algumas vezes lhes levar a renda toda e o lucro todo. Algumas
explorações encontram-se então totalmente abandonadas, outras
já não dão renda nenhuma e só podem continuar a ser trabalhadas
pelo próprio proprietário da terra. Smith, t. I. p. 350,[73]
Depois da descoberta das minas do Peru, foi abandonada a maioria
das minas de prata da Europa. ... O mesmo aconteceu com as
minas de Cuba e Santo Domingo e mesmo com as velhas minas
do Peru depois da descoberta das de Potosi, t. I. p. 353.[74]

Exatamente o mesmo que Smith aqui diz das minas vale


mais ou menos para a posse fundiária em geral.
δ) É de notar que o preço corrente dos terrenos depende sempre da
taxa corrente da taxa de juro... Se a renda fundiária caísse abaixo
do juro do dinheiro por uma diferença muito forte, ninguém
quereria comprar terras, o que em breve de novo reduziria o seu
preço corrente. Ao contrário, se as vantagens da renda fundiária
mais do que compensassem o juro do dinheiro, então todos que-
reriam comprar terras, o que igualmente em breve restabeleceria
o seu preço corrente, p. 367-368, t. II.[75]

Dessa relação da renda fundiária com o juro do dinheiro,


segue-se que a renda fundiária tem de cair cada vez mais, de
modo que por fim apenas as pessoas mais ricas podem viver
dela. Assim a concorrência entre os proprietários da terra que
não arrendam é cada vez maior: ruína de uma parte dos mes-
mos. Reiterada accumulation106 da grande propriedade fundiária.

106 Em francês no texto: acumulação. (N. Ed.)

294
K a r l M a r x

[XVII] Essa concorrência tem ainda por consequência que


uma grande parte da propriedade fundiária cai nas mãos dos
capitalistas e os capitalistas tornam-se simultaneamente pro-
prietários da terra, tal como então em geral os proprietários da
terra menores já não são mais do que capitalistas. Do mesmo
modo, uma parte da grande propriedade fundiária torna-se ao
mesmo tempo industrial.
A última consequência é, portanto, a dissolução da diferença
entre capitalista e proprietário da terra, pelo que no todo apenas
há duas classes da população, a classe trabalhadora e a classe dos
capitalistas. Essa venda ao desbarato da propriedade fundiária,
a transformação da propriedade fundiária numa mercadoria é
a derrocada final da velha aristocracia e a consumação final da
aristocracia do dinheiro.
1) Não partilhamos as lágrimas sentimentais que o roman-
tismo chora sobre isto. Ele confunde sempre a infâmia que reside
na venda da terra com a consequência inteiramente racional,
necessária, desejável dentro da propriedade privada e que está
contida na venda da propriedade privada da terra. Em primeiro
lugar, já a propriedade fundiária feudal é pela sua essência a terra
vendida, a terra alienada (entfremdete) do homem e que se lhe
confronta por isso na figura de alguns poucos grandes senhores.
Na posse fundiária feudal reside já a dominação da terra
como um poder alienado (fremden) acima dos homens. O servo
é o acidente da terra. Do mesmo modo, o morgado, o primo-
gênito, pertence à terra. Ela herda-o. Em geral, com a posse
fundiária começa a dominação da propriedade privada, ela é a
sua base. Mas, na posse fundiária feudal, o senhor aparece pelo
menos como rei da posse fundiária. Do mesmo modo, existe
ainda a aparência de uma relação mais íntima entre o possuidor
e a terra do que a mera riqueza coisal [sachlichen]. O pedaço de
terra individualiza-se com o seu senhor, tem a sua posição, é com

295
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

ele baronia ou condado, tem os seus privilégios, a sua jurisdição,


a sua relação política etc. Ela aparece como o corpo inorgânico
do seu senhor. Daí o provérbio: nulle terre sans maître,107 onde
está expressa a coalescência108 do senhorio e da posse fundiária.
A dominação da propriedade fundiária não aparece também
imediatamente como dominação do mero capital. Os que lhe
pertencem estão mais em relação com ela que com sua pátria.
É uma espécie estreita (engbrüstige) de nacionalidade.
[XVIII] De igual modo, a propriedade fundiária feudal dá
ao seu senhor o nome, como um reino ao seu rei. A história da
sua família, a história da sua casa etc., tudo isso individualiza
para ele a sua posse fundiária e faz dela formalmente a sua
casa, uma pessoa. De igual modo os trabalhadores109 da posse
fundiária não têm a relação de jornaleiros, mas, em parte, são
eles próprios propriedade dela, como os servos, em parte, estão
para com ela numa relação de respeito, de súdito e de dever.
A posição dela relativamente a eles é, por isso, imediatamente
política e tem de igual modo um lado afetivo (gemütliche).
Costumes, caráter etc. modificam-se de um pedaço de terra
para outro e parecem ser um com a parcela, enquanto mais
tarde já só o fonds do homem se liga ao pedaço de terra, não o
seu caráter, a sua individualidade. Finalmente, ele não procura
tirar da sua posse fundiária a máxima vantagem possível. Antes,
consome o que lá existe e deixa serenamente (ruhig) aos servos e
arrendatários a preocupação com o produzir (Herbeischaffens).

107 Em francês no texto: nenhuma terra sem dono. (N. Ed.)


108 Em alemão, Verwachsensein, que estão intimamente unidos, que crescem conjun-
tamente. (N. do R.)
109 Em alemão, Bearbeiter e não Arbeiter. Literalmente, o segundo é trabalhador e, o
primeiro é o encarregado de alguma tarefa. Contudo, na tradução para o inglês
do Volume I de O capital, sob a supervisão de Engels, Bearbeiter foi traduzido por
labourers, trabalhadores, portanto. (MEW, volume 23, p. 696; Capital, International
Publishers, New York, 1879, p. 667). (N. do R.)

296
K a r l M a r x

Esta é a relação aristocrática da propriedade fundiária que lança


uma glória romântica sobre o seu senhor.
É preciso que essa aparência seja superada, que a proprie-
dade fundiária, a raiz da propriedade privada, seja totalmente
arrastada para dentro do movimento da propriedade priva-
da e se torne mercadoria, que a dominação do proprietário
apareça como a pura dominação da propriedade privada, do
capital, subtraído a toda a coloração política, que a relação
entre proprietário e trabalhador se reduza à relação nacional-
-econômica de explorador e explorado, que toda a relação
pessoal do proprietário com a sua propriedade cesse e esta se
torne ela mesma riqueza material coisal, que para o lugar do
casamento de honra com a terra entre o casamento do interesse
e, a terra, tal como o homem, se degrade a valor mesquinho110.
É necessário que aquilo que é a raiz da propriedade fundiária,
o sórdido interesse pessoal, apareça também na sua figura
cínica. É necessário que o monopólio inerte se converta no
monopólio em movimento e inquieto, a concorrência, que a
fruição ociosa do suor e sangue alheios se converta num co-
mércio multiativo com os mesmos. Finalmente é necessário
que nessa concorrência a propriedade fundiária mostre, sob
a figura do capital, a sua dominação, tanto sobre a classe tra-
balhadora quanto sobre os próprios proprietários, na medida
em que as leis do movimento do capital os arruínem ou os
façam prosperar (erheben). Entra assim então, para o lugar
do provérbio medieval nulle terre sans seigneur, o provérbio
moderno: l’argent n’a pas de maître,111 em que se exprime toda
a dominação da matéria morta sobre o homem.

110 Em alemão: Verschacherungsgeist. (N. do R.)


111 Em francês no texto: respectivamente, nenhuma terra sem senhor, o dinheiro não
tem dono. (N. Ed.)

297
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

[XIX] 2) No que diz respeito à controvérsia sobre a divisão


ou não divisão da posse fundiária,112 há que observar o seguinte.
A divisão da posse fundiária nega o grande monopólio da
propriedade da terra, suprime-o, mas apenas pelo fato de que
universaliza esse monopólio. Ela não suprime o fundamento do
monopólio, a propriedade privada. Ela alcança (greift) a existên-
cia, mas não a essência do monopólio. A consequência é que ela
cai vítima das leis da propriedade privada. É que a divisão da
posse fundiária corresponde ao movimento da concorrência na
esfera industrial. Além das desvantagens nacional-econômicas
dessa divisão de instrumentos e do trabalho separado um do
outro (a distinguir bem da divisão do trabalho; o trabalho não
é dividido entre muitos, antes o mesmo trabalho é exercido por
cada um para si, é uma multiplicação do mesmo trabalho), essa
divisão converte-se, como aquela concorrência, necessariamente
de novo em acumulação.
Onde, portanto, a divisão da posse fundiária tem lugar não
resta senão regressar ao monopólio numa figura ainda mais
odiosa ou negar\suprimir (negieren/aufzuheben) a própria divisão
da posse fundiária. Mas isto não é o regresso à posse feudal, é
a superação (Aufhebung) da propriedade privada na terra e no
solo em geral. A primeira superação (Aufhebung) do monopólio
é sempre a sua universalização, o alargamento da sua existên-
cia. A superação do monopólio, que conseguiu a sua existência
mais larga e abrangente possível, é a sua integral aniquilação. A
associação [Association], aplicada à terra e ao solo, compartilha
da vantagem da grande posse fundiária na perspectiva nacional-
-econômica e realiza primeiro (erst) a tendência originária da
divisão, a saber, a igualdade; bem como também estabelece
112 Cf. K. Marx, “Verhandlungen des 6. Rheinischen Landtags. Dritter Artikel. De-
batten über das Holzdiebstahlsgesetz” [“Sessões da 6ª dieta renana. Artigo terceiro.
Debates acerca da Lei do Roubo da Lenha”, Mega², I/1, p. 199. (N. Ed.)

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K a r l M a r x

a ligação afetiva (gemütliche) do homem à terra de um modo


racional e já não mediado pela servidão, pela dominação e uma
ridícula mística da propriedade, quando a terra deixa de ser um
objeto de barganha e se torna de novo, pelo trabalho livre e a
fruição livre, uma propriedade verdadeira e pessoal do homem.
Uma grande vantagem da divisão é que a sua massa113 se arruína
na propriedade de modo diferente do que na indústria – uma
massa que não pode mais decidir-se à servidão.
Quanto à grande posse fundiária, os seus defensores
identificaram114 sempre, de um modo sofístico, a vantagem
nacional-econômica que a agricultura em larga escala oferece
com a grande propriedade fundiária, como se não fosse pre-
cisamente pela superação da propriedade que essa vantagem
em parte alcançasse a sua máxima [XX] extensão possível, e
em parte, primeiro se tornasse de utilidade social. Do mes-
mo modo, atacaram o espírito mesquinho da pequena posse
fundiária, como se a grande posse fundiária ela própria, já na
sua forma feudal, não contivesse latente em si a mesquinharia,
para não falar da moderna forma inglesa, em que estão ligados
o feudalismo do senhor da terra e a mesquinharia industrial
do arrendatário.
Assim como a grande propriedade fundiária pode devolver
o reproche de monopólio que a divisão da posse fundiária lhe
faz, uma vez que a divisão também se baseia no monopólio
da propriedade privada, a divisão fundiária pode devolver à
grande posse fundiária o reproche de divisão, pois também aqui
domina a divisão, só que em forma rígida, congelada. Além

113 Isto é, a massa dos camponeses. (N. Ed.)


114 Há, nesta passagem, uma diferença entre a edição dos Manuscritos na MEW e na
Mega². Na primeira lemos identifiziert (identifica) e, na segunda, identificirt . (MEW,
v. 40, p. 508, Mega², I/2, p. 361.) (N. do R.)

299
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disso, a propriedade privada repousa sim sobre o ser dividido


[Getheiltsein115].
Ademais, assim como a divisão da posse fundiária reconduz
à grande posse fundiária como riqueza de capital, a propriedade
fundiária feudal tem necessariamente de prosseguir para a di-
visão ou, pelo menos, cair nas mãos dos capitalistas, por mais
voltas que queira dar.
Pois a grande propriedade fundiária, como na Inglaterra,
atira a grande maioria da população para os braços da indústria
e reduz os seus próprios trabalhadores à completa miséria. Ela
gera e aumenta, portanto, o poder do seu inimigo, do capital,
da indústria, ao lançar para o outro lado braços e uma com-
pleta e inteira atividade do país. Torna industrial a maioria do
país, portanto em adversária da grande propriedade fundiária.
Tenha a indústria alcançado um poder elevado, como agora na
Inglaterra, então força pouco a pouco o monopólio da grande
propriedade fundiária (Grundeigentum) contra o estrangeiro e
lança-a na concorrência com a posse fundiária (Grundbesitz) do
estrangeiro. É que, sob a dominação da indústria, a propriedade
fundiária só podia assegurar a sua dimensão feudal por mono-
pólios contra o estrangeiro, para assim se opor às leis universais
do comércio que contradizem a sua essência feudal. Uma vez
lançada na concorrência, ela segue as leis da concorrência como
qualquer outra mercadoria que lhes esteja submetida. Ela torna-
-se tão oscilante quanto aquela, diminuindo e aumentando,
sendo lançada de mão em mão e, então, nenhuma lei pode
mantê-la em poucas mãos predestinadas. [XXI] A consequência
imediata é dispersão por muitas mãos, e em todo o caso a queda
sob a alçada do poder dos capitais industriais.

115 Na edição da Werke, temos Geteiltsein, literalmente “ser dividido”. Na Mega²,


Getheiltsein. (MEW, v. 40, p. 508; Mega², 2/1, p. 362). (N. do R.)

300
K a r l M a r x

Finalmente, a grande posse fundiária, que dessa forma foi


mantida pela força e gerou a seu lado uma tremenda indústria,
conduz ainda mais rapidamente à crise do que a divisão da pos-
se fundiária, ao lado da qual o poder da indústria permanece
sempre de segunda categoria116.
A grande posse fundiária, como vemos na Inglaterra, já
despiu o seu caráter feudal e adotou um caráter industrial, na
medida em que quer fazer o máximo dinheiro possível. Ela
[dá ao]117 proprietário a máxima renda fundiária possível, ao
arrendatário o máximo lucro possível do seu capital. Por isso,
os trabalhadores agrícolas estão já reduzidos ao mínimo, e a
classe dos arrendatários representa já o poder da indústria e do
capital no interior da posse fundiária. Pela concorrência com o
estrangeiro, na maior parte dos casos a renda fundiária deixa de
poder constituir um rendimento autônomo. Uma grande parte
dos proprietários fundiários tem de tomar o lugar dos arrenda-
tários, que desse modo decaem parcialmente no proletariado
(Proletariat). Por outro lado, muitos arrendatários apoderar-se-
-ão também da propriedade fundiária, pois os grandes proprie-
tários que, com o seu confortável rendimento, na maior parte
dos casos se entregaram ao esbanjamento e na maioria das vezes
são imprestáveis para a direção da agricultura em larga escala,
em parte não possuem capital nem aptidão para explorar a
terra e o solo. Portanto, também uma parte destes se arruinará
completamente. Finalmente, o salário reduzido a um mínimo
tem ainda que ser mais reduzido, para que subsista a nova
concorrência. Isto conduz então necessariamente à revolução.

116 Em alemão, Rang. Poderia também ser traduzido por “segunda ordem” ou “segunda
classe”. Preferimos “segunda categoria” para não confundir com as ordens medievais
ou com classes sociais. (N. do R.)
117 Os colchetes constam na edição da Mega². (N. do R.)

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M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

A propriedade fundiária tinha de se desenvolver de cada um


desses dois modos, para em ambos experienciar a sua necessária
decadência, como também a indústria tinha de se arruinar na
forma do monopólio e na forma da concorrência para aprender
a acreditar no homem.

[Trabalho alienado118 e propriedade privada]


[XXII] Partimos dos pressupostos da economia nacio-
nal. Aceitamos a sua linguagem e as suas leis. Supusemos a
propriedade privada, a separação de trabalho, capital e terra,
igualmente de salário, lucro do capital e renda fundiária, bem
como a divisão do trabalho, a concorrência, o conceito de valor
de troca etc. A partir da própria economia nacional, com as
suas próprias palavras, mostramos que o trabalhador decai em
mercadoria e na mais miserável mercadoria, que a miséria do
trabalhador está na relação inversa do poder e da magnitude da
sua produção, que o resultado necessário da concorrência é a
acumulação do capital em poucas mãos, portanto, o mais terrí-
vel restabelecimento do monopólio, que, finalmente, a diferença
de capitalista e arrendador fundiário [Grundrentner], tal como
a de agricultor e trabalhador manufatureiro desaparece, e toda
a sociedade tem de dividir-se nas duas classes dos proprietários
e dos trabalhadores desprovidos de propriedade.
A economia nacional parte do fato da propriedade privada.
Ela não no-lo esclarece.119 Capta o processo material da pro-
priedade privada, pelo qual ela opera (durchmacht) na realidade,
em fórmulas universais, abstratas, que valem então para ela

118 Traduzimos Entfremdung e seus derivados por alienação, alienado etc., e Entässerung
e seus derivados por exteriorização, exteriorizado etc. As razões para tal escolha são
discutidas no apêndice desta edição. (N. do R.)
119 Cf. K. Marx, EJ-BS; Mega², IV/2, p. 316 e 319. (N. Ed.)

302
K a r l M a r x

como leis. Ela não concebe [begreift]120 essas leis, i. é, depois não
mostra como elas provêm da essência da propriedade privada.
A economia nacional não nos dá nenhum esclarecimento sobre
o fundamento da divisão entre trabalho e capital, entre capi-
tal e terra. Quando, p. ex., ela determina a relação do salário
com lucro do capital, vale para ela como fundamento último
o interesse do capitalista; quer dizer, ela supõe o que deve ex-
plicar (entwickeln). De igual modo, por toda a parte intervém
a concorrência. Ela é explicada por circunstâncias exteriores.
Em que medida essas circunstâncias exteriores, aparentemente
acidentais, são apenas a expressão de um desenvolvimento neces-
sário – sobre isso a economia nacional nada nos ensina. Vimos
como a própria troca lhe aparece como um fato acidental. As
únicas rodas que o economista nacional põe em movimento
são a ganância e a guerra entre os gananciosos, a concorrência.
Precisamente porque a economia nacional não concebe
(begreift) a conexão do movimento, pôde-se, p. ex., tornar a
contrapor a doutrina da concorrência à doutrina do monopólio,
a doutrina da liberdade industrial à doutrina da corporação,
a doutrina da divisão da posse fundiária à doutrina da grande
propriedade fundiária, pois concorrência, liberdade industrial,
divisão da posse fundiária eram apenas desenvolvidas e conce-
bidas (begriffen) como consequências acidentais, propositadas,
violentas, e não como consequências necessárias, inevitáveis,
naturais do monopólio, da corporação e da propriedade feudal.
Portanto, temos agora que conceber a conexão essencial
com o sistema do dinheiro (Geldsystem) de toda a alienação
(Entfremdung) que é a propriedade privada, a ganância, a
separação entre trabalho, capital e propriedade da terra, entre
120 Lembremos que a categoria hegeliana de “conceito” (Begriff ) supõe uma ultrapassa-
gem da imediatez em direção a um saber da sua essência, isto é, a uma compreensão
concreta do seu desenvolvimento. (N. Ed.)

303
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

troca e concorrência, entre valor e desvalorização do homem,


entre monopólio e concorrência etc.
Não nos transportemos – como o economista nacional
quando quer explicar – para uma situação originária fictícia.
Uma tal situação originária nada explica.121 Empurra meramen-
te a questão para uma distância cinzenta, nublada. Ele supõe
na forma do fato, do acontecimento, aquilo que deve deduzir; a
saber, a relação necessária entre duas coisas, p. ex., entre divisão
do trabalho e troca. É assim que o teólogo explica a origem
do mal pelo pecado original, i. é, ele supõe como um fato, na
forma de história, o que deve explicar.
Nós partimos de um fato nacional-econômico, presente.
O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais
riqueza produz, quanto mais a sua produção cresce em po-
der e volume. O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto
mais barata quanto mais mercadoria cria. Com a valorização
do mundo das coisas, cresce a desvalorização do mundo dos
homens em proporção direta. O trabalho não produz apenas
mercadorias; produz-se a si próprio e o trabalhador como uma
mercadoria, e, a saber, na mesma proporção em que produz
mercadorias em geral.
Esse fato exprime apenas que: o objeto que o trabalho
produz, o seu produto, enfrenta-o como um ser alienado [ein
fremdes Wesen], como um poder independente do produtor. O
produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto,
se coisificou122, ele é a objetivação (Vergegenständlichung) do
trabalho. A realização do trabalho é a sua objetivação. Essa
realização (Verwirklichung) do trabalho aparece na situação

121 Ver as anotações de Marx a um passo de A. Smith em EAS; Mega², IV/2, p. 336.
(N. Ed.)
122 Em alemão, sachlich gemacht hat, literalmente, “se fez coisa” ou “se fez objetivo” (no
sentido de objetividade oposta à subjetividade). (N. do R.)

304
K a r l M a r x

nacional-econômica como desrealização (Entwirklichung) do


trabalhador, a objetivação como perda do objeto e servidão ao
objeto, a apropriação como alienação [Entfremdung], como
exteriorização [Entäusserung].123
A realização do trabalho aparece a tal ponto como desrea-
lização que o trabalhador é desrealizado até à morte pela fome.
A objetivação aparece a tal ponto como perda do objeto que o
trabalhador é privado dos objetos mais necessários não só da
vida como também dos objetos de trabalho. Sim, o próprio
trabalho torna-se um objeto, do qual ele só pode se apoderar
com o máximo esforço e com os intervalos os mais erráticos
(Unregelmäßigsten Unterbrechungen). A apropriação do objeto
aparece a tal ponto como alienação que, quanto mais objetos
o trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais
cai sob a dominação do seu produto, do capital.
Todas essas consequências repousam na determinação de
que o trabalhador se relaciona com o produto do seu trabalho
como com um objeto alienado. O que é claro deste pressuposto:
quanto mais o trabalhador se esforça (ausarbeitet), tanto mais
poderoso se torna o mundo objetivo, alienado, que ele cria
perante si próprio; quanto mais pobre se tornam ele próprio
[e] o seu mundo interior, tanto menos ele possui. Na religião
é igualmente assim. Quanto mais o homem põe em deus com

123 A versão lusitana dos Manuscritos, que é a base do texto desta edição brasileira,
registra, neste passo, desapossamento; em nota, os editores portugueses assinalam:
“Neste contexto de oposição a apropriação (Aneignung), Entäusserung adquire
o significado de desapossamento”. Optamos por exteriorização, por parecer-nos
mais próximo ao texto marxiano - mas está é uma passagem de difícil tradução e
interpretação e nos pareceu por bem assinalar a opção da edição portuguesa. Nas
outras passagens do texto, optamos por traduzir Entäusserung por exteriorização e
Entfrendung por alienação. Se é verdade que toda Entfremdung é uma Entäusserung,
o oposto não é verdade. Esta associação – ou aproximação à quase identidade –,
entre alienação e exteriorização, pode ter sentido para Hegel da Fenomonologia e
da Ciência da Lógica, mas não faz qualquer sentido nos Manuscritos. (N. do R.)

305
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

tanto menos fica em si próprio.124 O trabalhador põe a sua


vida no objeto; porém, então, ela já não lhe pertence, mas ao
objeto. Portanto, quanto maior é essa atividade, tanto mais
privado de objeto fica o trabalhador. O que o produto do seu
trabalho é, ele não é. Quanto maior, portanto, é esse produto,
tanto menos ele próprio é. A exteriorização do trabalhador no
seu produto tem o significado não só de que o seu trabalho se
torna um objeto, uma existência exterior, mas também de que
ele existe fora dele, independente e alienado a ele, e se torna um
poder autônomo frente a ele, de que a vida, que ele emprestou
ao objeto, o enfrenta de modo hostil e alienado.
[XXIII] Consideremos agora mais pormenorizadamente a
objetivação, a produção do trabalhador e, nela, a alienação, a
perda do objeto, do seu produto.
O trabalhador não pode criar nada sem a natureza, sem o
mundo exterior sensível. Ela é o material125 no qual o seu traba-
lho se realiza, no qual este é ativo, a partir do qual e por meio
do qual produz.
Porém, tal como a natureza fornece o meio de vida do tra-
balho, no sentido de que o trabalho não pode viver sem objetos
nos quais se exerce, assim a natureza fornece por outro lado
também o meio de vida no sentido estrito; a saber, o meio da
subsistência física do próprio trabalhador.
Portanto, quanto mais o trabalhador se apropria pelo seu
trabalho do mundo exterior, da natureza sensível, tanto mais
se priva de meios de vida, pelo duplo aspecto de que, primeiro,
cada vez mais o mundo exterior sensível deixa de ser um objeto
pertencente ao seu trabalho, um meio de vida do seu trabalho;

124 Cf. L. Feuerbach, Das Wesen..., Introdução, II, e K. Marx, “Zur Kritik... Einleitung”,
Mega², I/2, p. 170-171. (N. Ed.)
125 Stoff, no original. Outra tradução possível seria “substância”. (N. do R.)

306
K a r l M a r x

segundo, cada vez mais ele deixa de ser meio de vida no sentido
imediato, meio para a subsistência física do trabalhador.
Segundo esse duplo aspecto, o trabalhador torna-se, por-
tanto, um servo do seu objeto, primeiro, por receber um objeto
do trabalho, i. é, por receber trabalho, e, segundo, por receber
meios de subsistência. Portanto, para poder existir, primeiro,
como trabalhador, e, segundo, como sujeito físico. O extremo
dessa servidão é que ele só já como trabalhador se pode manter
como sujeito físico e só já como sujeito físico é trabalhador.
(A alienação do trabalhador no seu objeto exprime-se, se-
gundo as leis nacional-econômicas, em modo tal que, quanto
mais o trabalhador produz, tanto menos tem para consumir;
em que, quanto mais valores ele cria, tanto mais sem valor
(wertloser) e indigno se torna; em que, quanto mais formado o
seu produto, mais deformado o trabalhador126; em que, quanto
mais civilizado o seu objeto, tanto mais bárbaro o trabalhador;
em que, quanto mais potente (mächtiger) o trabalho, tanto
mais impotente (ohnmächtiger) o trabalhador; em que, quanto
mais espiritualmente rico o trabalho, tanto mais sem espírito
(geistloser) e servo da natureza se torna o trabalhador.)
A economia nacional vela (verbirgt) a alienação na essência do
trabalho por não considerar a relação imediata entre o trabalha-
dor, (o trabalho) e a produção. Com certeza. O trabalho produz
obras maravilhosas para os ricos, mas produz privação para o
trabalhador. Produz palácios, mas cavernas para o trabalhador.
Produz beleza, mas mutilação para o trabalhador. Substitui o

126 Marx emprega aqui um jogo de palavras difícil de ser traduzido em português:
geformter é o aumentativo do particípio passado de formen, traduzível por formar
ou moldar; mißförmiger é composto por förmig, que significa “com forma de”, com
o prefixo miß, literalmente falso, muito próximo do fake em inglês. Quanto mais
o trabalhador forma seu objeto, mais ele se constitui com forma de falso: “mais
deformado”, nesta passagem, possui este sentido. (N. do R.)

307
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

trabalho por máquinas, mas lança uma parte dos trabalhadores


a um trabalho bárbaro e faz da outra parte máquinas. Produz
espírito, mas produz idiotice, cretinismo para o trabalhador.
A relação imediata do trabalho com os seus produtos é a rela-
ção do trabalhador com os objetos da sua produção. A relação do
abastado com os objetos da produção e com ela própria é apenas
uma consequência dessa primeira relação. E confirma-a. Mais
tarde consideraremos esse outro aspecto. Portanto, quando per-
guntamos: qual é a relação essencial do trabalho, perguntamos
pela relação do trabalhador com a produção.
Até aqui apenas consideramos a alienação, a exteriorização
(Entäusserung) do trabalhador sob um aspecto; a saber, o da sua
relação com os produtos do seu trabalho. Mas a alienação mostra-
-se não só no resultado, mas também no ato da produção, no
interior da própria atividade produtiva. Como poderia o traba-
lhador defrontar-se com o produto da sua atividade como algo
de alienado se no próprio ato da produção ele próprio não se
alienasse? O produto é apenas o resumo da atividade, da pro-
dução. Se, portanto, o produto do trabalho é a exteriorização,
então a própria produção tem de ser a exteriorização ativa, a
exteriorização da atividade, a atividade da exteriorização. Na
alienação do objeto do trabalho resume-se apenas a alienação,
a exteriorização na atividade do próprio trabalho.
Ora em que consiste a exteriorização do trabalho?
Primeiro, em que o trabalho é exterior ao trabalhador, i. é,
não pertence à sua essência, que ele não se afirma, antes se nega,
no seu trabalho, não se sente bem, mas desgraçado; não desen-
volve qualquer livre energia física ou espiritual, antes mortifica o
seu físico (Physis) e arruína o seu espírito. Por isso, o trabalhador
se sente, antes, em si fora do trabalho e fora de si no trabalho.
Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não
está em casa. O seu trabalho não é, portanto, voluntário, mas

308
K a r l M a r x

coagido (gezwungen), trabalho forçado (Zwangsarbeit). Ele não


é, portanto, a satisfação de uma necessidade, mas é apenas um
meio para satisfazer necessidades externas a ele. O seu caráter
alienado (Fremdheit) evidencia-se muito nitidamente em que,
logo que não exista qualquer coação, física ou outra, se foge
do trabalho como da peste. O trabalho exterior, o trabalho no
qual o homem se exterioriza, é um trabalho de autossacrifício,
de mortificação. Finalmente, a exterioridade do trabalho para
o trabalhador aparece no fato de que ele não é [trabalho] seu,
mas de um outro, em que ele não lhe pertence, em que nele não
pertence a si próprio, mas a um outro. Assim como na religião
a autoatividade da fantasia humana, do cérebro humano e do
coração humano opera independentemente do indivíduo, i. é,
como uma atividade alienada, divina ou demoníaca, também a
atividade do trabalhador não é a sua autoatividade. Ela pertence
a um outro, ela é a perda dele próprio.
Chega-se assim ao resultado de que o homem (o trabalhador)
já só se sente livremente ativo nas suas funções animais – comer,
beber e procriar, quando muito ainda habitação, adorno etc.
–, e já só como animal nas suas funções humanas. O animal
torna-se o humano e o humano, o animal.
Comer, beber e procriar etc. são decerto também funções
genuinamente humanas. Porém, na abstração que as separa do
âmbito restante da atividade humana e delas faz finalidades
últimas e exclusivas, elas são animais.
Até aqui consideramos o ato da alienação da atividade hu-
mana prática, o trabalho, segundo dois aspectos. 1) A relação do
trabalhador com o produto do trabalho como objeto alienado e
com poder sobre ele. Essa relação é simultaneamente a relação
com o mundo exterior sensível, com os objetos naturais como
um mundo alienado que o confronta hostilmente. 2) A relação
de trabalho com o ato da produção, no interior do trabalho.

309
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

Essa relação é a relação do trabalhador com a sua atividade


própria como alienada, não lhe pertencendo, a atividade como
sofrer, a força como impotência, a procriação como castração.
A energia física e espiritual própria do trabalhador, a sua vida
pessoal – pois o que é a vida senão atividade? – como uma
atividade voltada contra ele próprio, independente dele, não
lhe pertencendo. A autoalienação tal como acima a alienação
da coisa.
[XXIV] Temos agora de tirar uma terceira determinação
do trabalho alienado a partir das duas até aqui [consideradas].
O homem é um ser genérico (Gattungswesen)127 não
apenas na medida em que prática e teoricamente torna
objeto seu o gênero, tanto o seu próprio como o das coisas
restantes, mas também – e isto é apenas uma outra expressão
para a mesma coisa – na medida em que ele se comporta
para consigo próprio como gênero vivo, presente, na medida
em que ele se comporta para consigo próprio como um ser
universal, por isso livre.
A vida genérica, tanto entre os homens quanto entre os
animais, fisicamente consiste primeiro em que o homem (tal
como o animal) vive da natureza inorgânica, e, quanto mais
universal do que o animal o homem, é tanto mais universal é
o domínio da natureza inorgânica de que ele vive. Assim como
plantas, animais, pedras, ar, luz etc. formam teoricamente

127 Para Marx, o universal é tão real e pleno de determinações quanto o singular. O fato
de se comer uma pera e não o universal frutas não significa que a universalidade das
frutas seja inexistente. O universal é parte da história tal como o singular, ambos
são componentes moventes e movidos da história. O homem, nesta frase de Marx,
é genérico na medida em que ele só existe como parte do gênero humano, da hu-
manidade e, por sua vez, esta apenas existe como síntese dos singulares que são os
indivíduos. O que o homem faz é parte movente e movida da história, o produto
de cada ato de trabalho é um produto singular que faz parte da história universal
do gênero humano. (N. do R.)

310
K a r l M a r x

uma parte da consciência humana, em parte como objetos


da ciência da natureza, em parte como objetos da arte – a sua
natureza inorgânica espiritual, meios de vida espirituais, que
ele tem primeiro que preparar para a fruição e para a digestão
–, também praticamente formam uma parte da vida humana
e da atividade humana. Fisicamente, o homem só vive desses
produtos da natureza, possam eles aparecer agora na forma de
alimento, aquecimento, vestuário, habitação etc. Precisamente
a universalidade do homem aparece praticamente na universa-
lidade que faz de toda a natureza o seu corpo inorgânico, tanto
na medida em que ela é 1) um meio de vida imediato, como
na medida em que ela é 2) o objeto/matéria e o instrumento da
sua atividade vital. A natureza é o corpo inorgânico do homem,
quer dizer, a natureza na medida em que não é ela própria corpo
humano. O homem vive da natureza significa: a natureza é o seu
corpo, com o qual ele tem de permanecer em constante processo
para não morrer. Que a vida física e espiritual do homem esteja
em conexão com a natureza, não tem outro sentido senão que
a natureza está em conexão com ela própria, pois o homem é
uma parte da natureza.
Na medida em que o trabalho alienado aliena ao homem
1) a natureza, 2) ele próprio, a sua própria função ativa, a sua
atividade vital, assim ele aliena do homem o gênero; torna-lhe
a vida genérica meio de vida individual. Primeiro, aliena a vida
genérica e a vida individual e, segundo, torna a última na sua
abstração finalidade da primeira, igualmente na sua forma
abstrata e alienada.
Pois, em primeiro lugar, o trabalho, a atividade vital, a
própria vida produtiva, aparecem ao homem apenas como um
meio para a satisfação de uma necessidade, da necessidade da
manutenção da existência física. Mas a vida produtiva é a vida
genérica. É a vida que gera vida. No modo de atividade vital

311
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

reside todo o caráter de uma species,128 o seu caráter genérico, e


a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem. A
própria vida aparece apenas como meio de vida.
O animal é imediatamente um com a sua atividade vital.
Não se diferencia dela. É ela. O homem faz a sua própria ativi-
dade vital objeto da sua vontade e da sua consciência. Tem ativi-
dade vital consciente. Não é uma determinidade (Bestimmtheit)
com a qual ele se confunda imediatamente. A atividade vital
consciente diferencia imediatamente o homem da atividade
vital animal. Precisamente apenas por isto ele é um ser genérico.
Ou ele só é um ser consciente, i. é, a sua própria vida é para ele
objeto, precisamente porque ele é um ser genérico. Só por isso
a sua atividade é atividade livre. O trabalho alienado inverte
essa relação até que o homem, precisamente porque é um ser
consciente, faz da sua atividade vital, da sua essência, apenas
um meio para a sua existência.
O gerar129 prático de um mundo objetivo, a elaboração da
natureza inorgânica, é a prova do homem como um ser gené-
rico consciente, i. é, um ser que se relaciona para com o gênero
como sua própria essência ou para consigo como ser genérico.
Decerto, o animal também produz. Constrói para si um ninho,
habitações, como as abelhas, castores, formigas etc. Contudo,
produz apenas o que necessita imediatamente para si ou para a
sua cria; produz unilateralmente, enquanto o homem produz
universalmente; produz apenas sob a dominação da necessidade
física imediata, enquanto o homem produz mesmo livre da
necessidade física e só produz verdadeiramente na liberdade
da mesma; produz-se apenas a si próprio, enquanto o homem
reproduz a natureza toda; o seu produto pertence imediatamente

128 Em latim no texto: literalmente, espécie. (N. Ed.)


129 Erzeugen. Uma tradução também possível seria “o produzir”. (N. do R.)

312
K a r l M a r x

ao seu corpo físico, enquanto o homem confronta livremente o


seu produto. O animal dá forma apenas segundo a medida e a
necessidade da species a que pertence, enquanto o homem sabe
produzir segundo a medida de cada species e sabe aplicar em
toda a parte a medida inerente ao objeto; por isso, o homem
dá forma também segundo as leis da beleza.
Precisamente por isso, só na elaboração do mundo objetivo
o homem se prova realmente como ser genérico. Esta produção
é a sua vida genérica operativa.130 Por ela, a natureza aparece
como obra sua e sua realidade. O objeto do trabalho é, portanto,
a objetivação da vida genérica do homem, na medida em que ele
se duplica não só intelectualmente, como na consciência, mas
também operativamente (werktätig), realmente, e contempla-
-se131 por isso num mundo criado por ele. Por isso, na medida
em que arranca ao homem o objeto da sua produção, o trabalho
alienado arranca-lhe a sua vida genérica, a sua real objetividade
genérica, e transforma sua vantagem sobre o animal na desvan-
tagem de lhe ser retirado o seu corpo inorgânico, a natureza.
Do mesmo modo, na medida em que reduz a autoatividade,
a atividade livre, a um meio, o trabalho alienado faz da vida
genérica do homem um meio para a sua existência física.
A consciência que o homem tem do seu gênero transforma-
-se, portanto, pela alienação, de modo que a vida genérica se
torna um meio para ele.
Assim, o trabalho alienado faz:
3) do ser genérico do homem – tanto a natureza quanto a
sua capacidade espiritual genérica (Gattungsvermögen) – uma

130 Seria razoável também a tradução de werktätiges Gattungsleben por “atividade


genérica criadora”. (N. do R.)
131 Passagem de difícil tradução. Em alemão, o termo é anschaut, de ansehen. A dificul-
dade reside em que este verbo inclui uma ação ativa de contemplação, no sentido
que se aproxima de perscrutar – ainda que esta opção seja um exagero. (N. do R.)

313
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

essência alienada132 a ele, num meio da sua existência indivi-


dual. Ele aliena do homem o seu corpo próprio, bem como a
natureza fora dele, bem como a sua essência espiritual, a sua
essência humana.133
4) Uma consequência imediata disto, de que o homem está
alienado do produto do seu trabalho, da sua atividade vital, do
seu ser genérico, é a alienação do homem do homem. Quando o
homem se confronta a si próprio, enfrenta-o o outro homem. O
que vale para a relação do homem com o seu trabalho, com o
produto do seu trabalho e consigo próprio, vale para a relação
do homem com o outro homem, tal como para o trabalho e o
objeto de trabalho do outro homem.
Em geral, a proposição de que ao homem está alienado
o seu ser genérico significa que um homem está alienado do
outro, tal como cada um está alienado da sua essência (Wesen)
humana.
A alienação do homem, em geral toda a relação em que
o homem está para consigo mesmo, primeiro se realiza, se
exprime, na relação em que o homem está para com o outro
homem.
Portanto, na relação do trabalho alienado, cada homem
considera o outro segundo a medida e a relação na qual ele
próprio se encontra como trabalhador.
[XXV] Partimos de um factum nacional-econômico, a
alienação do trabalhador e da sua produção. Expressamos o
conceito desse factum, o trabalho alienado, exteriorizado. Ana-

132 Seguimos, até o momento, a opção, da edição portuguesa, de traduzir Wesen por
ser. Contudo, neste parágrafo, parece-nos que a tradução mais fiel seria traduzir
as três vezes em que comparece Wesen por essência. Mas, ao leitor, fica o alerta da
possibilidade de uma tradução ligeiramente diferente, alternando “ser” por “essência”.
(N. do R.)
133 No manuscrito figura ainda, riscado: “Nós partimos do trabalho alienado de si
próprio e analisamos apenas esse conceito”. (N. Ed.)

314
K a r l M a r x

lisamos esse conceito, portanto analisamos um mero factum


nacional-econômico.134
Vejamos agora, além disso, como o conceito de trabalho
alienado, exteriorizado, tem de expressar-se e apresentar-se na
realidade.
Se o produto do trabalho me é alienado, me confronta como
poder alienado, a quem pertence ele então?
Se a minha própria atividade não me pertence, é uma ati-
vidade alienada, forçada, a quem pertence ela então?
A um outro ser que não eu.
Quem é esse ser?
Os deuses? Certamente, nos primeiros tempos, a principal
produção, como p. ex. a construção de templos etc., no Egito,
Índia, México, aparece tanto ao serviço dos deuses quanto o
produto pertence aos deuses. Todavia, sozinhos os deuses nunca
foram os senhores do trabalho. Tampouco a natureza. E que
contradição não seria também que, quanto mais o homem
submete a natureza pelo seu trabalho, quanto mais os milagres
dos deuses são tornados supérfluos pelos milagres da indústria,
tanto mais o homem devesse renunciar à alegria na produção e
à fruição do produto por amor a esses poderes.
O ser alienado, a quem o trabalho e o produto do trabalho
pertencem, a serviço do qual está o trabalho e para fruição do
qual o produto do trabalho é, só pode ser o próprio homem.
Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, é
um poder alienado frente a ele, então isso só é possível por-
que ele pertence a outro homem fora o trabalhador. Se a sua
atividade é para ele tormento, então deve ser fruição para um
outro e alegria de viver de um outro. Não os deuses, não a

134 No manuscrito figura ainda, riscado: “Nós não pressupusemos o conceito da pro-
priedade privada”. (N. Ed.)

315
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

natureza, só o próprio homem pode ser esse poder alienado


sobre o homem.
Reflita-se ainda sobre a proposição anteriormente apresen-
tada de que a relação do homem consigo próprio só é para ele
objetiva, real, pela sua relação com o outro homem. Portanto,
se ele se comporta para com o produto do seu trabalho, para
com o seu trabalho objetivado, como um objeto alienado, hostil,
poderoso, independente dele, então comporta-se para com ele de
tal modo que um outro homem alienado, hostil a ele, poderoso
e independente dele é o senhor desse objeto. Se ele se comporta
para com a sua atividade própria como uma atividade não livre,
então comporta-se para com ela como atividade ao serviço, sob
a dominação, a coação e o jugo de um outro homem.
Toda a autoalienação do homem, de si e da natureza, aparece
na relação que ele oferece a ele e à natureza para com outros
homens diferenciados dele. Por isso, a autoalienação religiosa
aparece necessariamente na relação do leigo com o padre, ou
também, porque aqui se trata do mundo intelectual, com um
mediador etc. No mundo real prático, a autoalienação só pode
aparecer através da relação real prática com outros homens.
O meio pelo qual a alienação procede é ele próprio um meio
prático. Pelo trabalho alienado o homem gera, portanto, não só
a sua relação com o objeto e o ato da produção como homens
alienados e hostis a ele; gera também a relação na qual outros
homens estão com a sua produção e o seu produto e a relação
em que ele está com esses outros homens. Tal como faz da sua
própria produção a sua desrealização, o seu castigo, tal como
faz do seu próprio produto a perda, um produto que não lhe
pertence, assim ele gera a dominação daquele que não produz
sobre a produção e sobre o produto. Tal como aliena de si a sua
própria atividade, assim também atribui ao alienado a atividade
que não lhe é própria.

316
K a r l M a r x

Consideramos até aqui a relação apenas pelo lado do


trabalhador; mais tarde considerá-la-emos pelo lado do não
trabalhador.
Portanto, através do trabalho alienado, exteriorizado, o tra-
balhador gera a relação de um homem alienado ao trabalho e
postado (stehenden) fora deste trabalho. A relação do trabalhador
com o trabalho gera a relação daquele para com o capitalista –
ou como se queira chamar ao senhor de trabalho.
A propriedade privada é, portanto, o produto, o resultado,
a consequência necessária do trabalho exteriorizado, da relação
exterior do trabalhador com a natureza e consigo próprio.
A propriedade privada resulta, portanto, por análise, a
partir do conceito de trabalho exteriorizado, i. é, do homem
exteriorizado, do trabalho alienado, da vida alienada, do ho-
mem alienado.
É certo que obtivemos o conceito de trabalho exteriori-
zado (da vida exteriorizada) a partir da economia nacional
como resultado do movimento da propriedade privada. Mas
a análise desse conceito mostra que, se a propriedade privada
aparece como fundamento, como causa do trabalho exterio-
rizado, ela é antes uma consequência do mesmo, assim como
também originariamente os deuses não são a causa, mas o
efeito do extravio do entendimento humano (menschlichen
Verstandesverirrung). Mais tarde essa relação converte-se em
ação recíproca.
Unicamente no ponto culminante do desenvolvimento da
propriedade privada se evidencia de novo o seu segredo, a saber:
por um lado, que ela é o produto do trabalho exteriorizado e, por
outro, que ela é o meio através do qual o trabalho se exterioriza,
a realização dessa exteriorização.
Esse desenvolvimento lança luz sobre diversos conflitos até
aqui não resolvidos.

317
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

1) A economia nacional parte do trabalho como a alma pro-


priamente dita da produção e, todavia, dá ao trabalho nada e à
propriedade privada tudo. Proudhon, a partir dessa contradição,
concluiu a favor do trabalho contra a propriedade privada.135
Mas nós vemos que essa aparente contradição é a contradição
do trabalho alienado consigo próprio, e que a economia nacional
apenas exprimiu as leis do trabalho alienado.
Vemos por isso também que salário e propriedade privada
são idênticos: porque o salário, donde o produto, objeto do
trabalho, paga o próprio trabalho, é apenas uma consequência
necessária da alienação do trabalho, bem como porque no
salário o trabalho também não aparece como autofinalidade,
mas como servidor do salário. Adiante desenvolveremos isto e
agora apenas tiramos algumas consequências. |[XX]VI|
Uma elevação violenta do salário (abstraindo de todas as ou-
tras dificuldades, abstraindo de que ela, como uma anomalia, só
violentamente se haveria de manter) nada seria, portanto, senão
um melhor assalariamento do escravo, e não teria conquistado
para o trabalhador nem para o trabalho a sua determinação e
dignidade humanas.
A própria igualdade dos salários, como Proudhon exige,136
apenas transforma a relação do trabalhador de hoje com o seu
trabalho na relação de todos os homens com o trabalho. A
sociedade é então apreendida como um capitalista abstrato.
Salário é uma consequência imediata do trabalho alienado e
o trabalho alienado é a causa imediata da propriedade privada.
Por isso, com um, o outro lado também tem de cair.
2) Da relação do trabalho alienado com a propriedade
privada, segue-se ainda que a emancipação da sociedade da pro-

135 Cf. P.-J. Proudhon, Qu’est-ce que la propriété?.., III, §§ 4 a 8. (N. Ed.)
136 Cf. nota 135, supra. (N. Ed.)

318
K a r l M a r x

priedade privada etc., da servidão, se exprime na forma política


da emancipação dos trabalhadores não como se se tratasse apenas
da emancipação deles, mas antes porque na sua emancipação
está contido todo o humano (allgemein137 menschliche) – este,
todavia, está aí contido porque toda a servidão humana está
envolvida na relação do trabalhador com a produção e todas as
relações de servidão são apenas modificações e consequências
dessa relação.
Tal como encontramos por análise o conceito de propriedade
privada a partir do conceito do trabalho alienado, exteriorizado,
assim todas as categorias nacional-econômicas podem ser de-
senvolvidas com a ajuda desses dois fatores, e reencontraremos
em cada categoria, p. ex., a mesquinharia (Schacher), a concor-
rência, o capital, o dinheiro, apenas uma expressão determinada
e desenvolvida dessas primeiras bases.
Contudo, antes de considerar essa configuração, procuremos
ainda resolver dois problemas.
1) Determinar a essência universal da propriedade privada
tal como decorreu enquanto resultado do trabalho alienado na
sua relação com a propriedade verdadeiramente humana e social;
2) Aceitamos a alienação do trabalho, a sua exteriorização,
como um factum e analisamos esse factum. Como, perguntamos
agora, pode o homem exteriorizar tanto (zu), alienar tanto seu
trabalho? Como está essa alienação fundada na essência do
desenvolvimento humano? Já ganhamos muito para a solução
do problema na medida em que transformamos a pergunta

137 Com muita frequência, allgemein é traduzido por universal. O que é correto. Mas
há uma sutil diferença entre allgemein e universell, o primeiro literalmente significa
“todos da aldeia” e, o segundo, vindo do latim universalis: significa todo o existente,
o universal. Aqui, nesta passagem, Marx emprega allgemein menschliche no sentido
de que na emancipação dos trabalhadores está contida a emancipação de todos os
membros da humanidade. (N. do R.)

319
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

pela origem da propriedade privada na pergunta pela relação


do trabalho exteriorizado com o curso de desenvolvimento da
humanidade. Pois quando se fala de propriedade privada crê-se
ter de lidar com uma coisa fora do homem. Quando se fala do
trabalho, tem imediatamente de lidar-se com o próprio homem.
Essa nova posição da pergunta é inclusive já a sua solução.
ad 1. Essência universal da propriedade privada e sua relação
com a propriedade verdadeiramente humana.
O trabalho exteriorizado resolveu-se para nós em duas
partes componentes, que se condicionam reciprocamente ou
que são apenas expressões diversas de uma e a mesma relação,
a apropriação aparece como alienação, como exteriorização, e a
exteriorização como apropriação, a alienação como a verdadeira
aquisição do direito de cidade [Einbürgerung138].
Consideramos um lado, o trabalho exteriorizado no que se
refere ao próprio trabalhador, i. é, a relação do trabalho exteriori-
zado consigo próprio. Como produto, como resultado necessário
dessa relação, encontramos a relação de propriedade do não
trabalhador (Nichtarbeiters) com o trabalhador e o trabalho. A
propriedade privada, enquanto a expressão material, resumida,
do trabalho exteriorizado, abrange ambas as relações: a relação
do trabalhador com o trabalho e com o produto do seu trabalho
e com o não trabalhador, e a relação do não trabalhador com o
trabalhador e o produto do seu trabalho.
Ora, vimos que, com respeito ao trabalhador, o qual se
apropria da natureza pelo trabalho, a apropriação aparece como
alienação, a autoatividade como atividade para um outro e como
atividade de um outro, a vitalidade como sacrifício da vida, a
produção do objeto como perda do objeto para um poder aliena-
138 Literalmente, aquisição do direito à nacionalidade, nacionalização. Aqui é empregada
por Marx no sentido de que a alienação torna o indivíduo membro integrante,
partícipe, da totalidade social mediada pela propriedade privada. (N. do R.)

320
K a r l M a r x

do, para um homem alienado; deste modo, consideremos agora


a relação deste com o trabalho e com o homem trabalhador
alienado, para com o trabalho e o seu objeto.
Em primeiro lugar, é de observar que tudo o que aparece
no trabalhador como atividade de exteriorização, de alienação,
aparece no não trabalhador como estado de exteriorização, de
alienação.
Segundo, que o comportamento real, prático, do trabalhador
na produção e para com o produto (disposição de ânimo139)
aparece no não trabalhador que o enfrenta como comportamento
teórico.
[XXVII] Terceiro. O não trabalhador faz contra o traba-
lhador tudo o que o trabalhador faz contra si próprio, mas não
faz contra si próprio o que faz contra o trabalhador.
Consideremos mais pormenorizadamente essas três relações.

139 Em alemão Gemütszustand. Preferimos disposição de ânimo para diferenciar Gemüt


de Geist, este último literalmente “espírito”. (N. do R.)

321
[CADERNO II (PARTE CONSERVADA)]
[A RELAÇÃO DA PROPRIEDADE PRIVADA]

(...) [XL] forma juros do seu capital. No trabalhador existe


[existirt], portanto, subjetivamente que o capital é o homem to-
talmente perdido de si, tal como no capital existe objetivamente
que o trabalho é o homem perdido de si. Mas o trabalhador tem a
infelicidade de ser um capital vivo e, portanto, que tem necessidades
[bedürftiges], que perde os seus juros e com isso a sua existência
em cada momento em que não trabalha. Como capital, o valor do
trabalhador sobe segundo procura e oferta e, também fisicamente,
a sua existência, a sua vida, se torna e é sabida como oferta de
mercadoria tal como qualquer outra mercadoria. O trabalhador
produz o capital, o capital o produz, portanto ele a si próprio, e o
homem, como trabalhador, como mercadoria, é o produto de todo
o movimento. Para o homem que não é senão trabalhador, e como
trabalhador, todas as suas qualidades humanas só existem na me-
dida em que existirem para o capital dele alienado. Mas, porque
ambos são alienados, portanto estão numa relação indiferente,
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

exterior e acidental, então essa característica alienada (Fremdheit)


tem de aparecer também como real. Portanto, logo que ocorre
ao capital – ocorrência necessária ou arbitrária – não ser mais
para o trabalhador, também este não mais é para si próprio, ele
não tem nenhum trabalho, por isso nenhum salário e, visto que
ele não tem existência como homem mas só como trabalhador,
pode-se o deixar enterrar, morrer de fome etc. O trabalhador só
existe como trabalhador logo que existe para si como capital, e só
existe como capital logo que um capital existe para ele. A existên-
cia do capital é a sua existência, a sua vida, tal como determina
o conteúdo da sua vida de um modo indiferente a ele. Por isso,
a economia nacional não conhece o trabalhador desocupado, o
homem de trabalho, na medida em que ele se encontra fora da
relação de trabalho. O bandido, gatuno, mendigo, o homem de
trabalho desocupado, o esfomeado, miserável e criminoso, são
figuras que não existem para ela, antes só para outros olhos, para
os do médico, do juiz, do coveiro e do curador dos pobres etc.,
fantasmas fora do seu reino. Por isso, para ela as necessidades do
trabalhador são apenas a necessidade de o manter durante o trabalho
e na perspectiva de que a raça dos trabalhadores não se extinga. O
salário tem, assim, inteiramente o mesmo sentido do óleo que é
aplicado nas rodas para mantê-las em movimento: a manutenção,
a conservação em ordem de qualquer outro instrumento produtivo
de que o consumo do capital em geral precisa para se reproduzir
com juros. O salário pertence, por isso, aos custos necessários do
capital e do capitalista e não deve ultrapassar a necessidade dessa
necessidade. Foi assim que de um modo totalmente consequente
os donos de fábricas ingleses, antes do Amendment Bill140 de 1834,

140 Em inglês no texto: proposta de Emenda. Trata-se de An Act for the Amendment
and better Administration of the Laws relating to the Poor in England and Wales que
entrou em vigor em 14 de agosto de 1834. Por essa lei ficava proibido qualquer
auxílio em dinheiro e meios de vida aos desocupados e suas famílias, que deviam

324
K a r l M a r x

deduziram as esmolas públicas que o trabalhador recebia através


da taxa dos pobres do seu salário e as consideraram como uma
parte integrante do mesmo.
A produção produz o homem não só como uma mercadoria,
a mercadoria-homem, o homem na determinação de mercado-
ria, o produz, correspondendo a essa determinação, como um
ser desumanizado (entmenschtes Wesen) tanto espiritual como
corporalmente – imoralidade, disformidade, imbecilidade dos
trabalhadores e dos capitalistas. O seu produto é a mercadoria
autoconsciente e autoativa, ... a mercadoria-homem. ... Grande
progresso de Ricardo, Mill etc., relativamente a Smith e Say,
elucidarem a existência do homem – a produtividade humana
maior ou menor de mercadoria – como indiferente e mesmo
prejudicial.141 Não quantos trabalhadores um capital sustenta,
mas quantos juros ele rende, a soma das poupanças anuais, seria
a verdadeira finalidade da produção. Foi igualmente um grande
e consistente progresso da recente economia nacional inglesa
[XLI] – que elevou o trabalho a princípio único da economia
nacional – que simultaneamente ela tivesse explicitado, com
inteira clareza, a relação invertida entre o salário e os juros do
capital e que o capitalista em regra apenas possa ganhar através
do abaixamento do salário, bem como inversamente. Não o en-

ser encaminhados para casas de trabalho (work houses), onde eram compelidos a
trabalhar em condições infra-humanas. Cf. K. Marx, Exzerpte aus Eugène Buret:
De la misère des classes labourieuses en Angleterre et en France [Excertos de Eugène
Buret: Da miséria das classes laboriosas na Inglaterra e na França] (doravante: EEB)
e “Kritische Randglossen zu dem Artikel ‘Der König Von Preuβen und die Sozial-
reform. Von einem Preuβen’” [“Notas marginais críticas ao artigo ‘O rei da Prússia
e a reforma social. De um prussiano’”], Mega², respectivamente IV/2, p. 555-556,
e I/2, p. 452-453. (N. Ed.)
141 Cf. K. Marx, Exzerpte aus Guillaume Prevost: Réflexions du traducteur sur le système
de Ricardo [Excertos de Guillaume Prevost: Reflexões do tradutor sobre o sistema de
Ricardo] (doravante: EGP), Mega², IV/2, p. 477-478 e 483. (N. Ed.)

325
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

gano (Übervorteilung) dos consumidores, mas o engano mútuo


de capitalista e trabalhador seria a relação normal.
A relação da propriedade privada contém em si latente a
relação da propriedade privada como trabalho, assim como a
relação da mesma como capital e a ligação de ambas expressões
uma com a outra. A produção da atividade humana como
trabalho, portanto como uma atividade totalmente alienada
a si, ao homem e à natureza, portanto também alienada à
consciência e à expressão da vida; a existência abstrata do
homem como um simples homem de trabalho, que, portanto,
pode precipitar-se diariamente do seu nada preenchido (er-
füllten) para o nada absoluto, para a sua não existência social
e, por isso, a sua não existência real – assim como, por outro
lado, a produção do objeto da atividade humana como capi-
tal, em que toda a determinidade natural e social do objeto
está apagada, a propriedade privada perdeu a sua qualidade
natural e social (portanto perdeu todas as ilusões políticas e
gregárias [geselligen] e não se confunde com quaisquer rela-
ções aparentemente humanas), – em que também o mesmo
capital permanece o mesmo na mais diversificada existência
natural e social, sendo completamente indiferente perante o
conteúdo real desta – esta oposição levada ao extremo é ne-
cessariamente o extremo, o cume e a decadência da relação
toda. Por isso, de novo é um grande feito da economia na-
cional inglesa recente ter indicado a renda fundiária como a
diferença entre os juros da pior terra votada ao cultivo e os da
melhor terra de cultivo,142 ter apontado as ilusões românticas
do proprietário da terra (Grundeingentümer) – a sua preten-
sa importância social e a identidade do seu interesse com o
interesse da sociedade, que Adam Smith afirma ainda depois

142 Cf. K. Marx, EGP, Mega², IV/2, p. 477-478 e 480. (N. Ed.)

326
K a r l M a r x

dos fisiocratas143 – e ter antecipado e preparado o movimento


da realidade, que transformará o proprietário da terra num
capitalista totalmente corrente e prosaico, pelo que a oposição
se simplificará, se extremará, e assim será acelerada a sua re-
solução. A terra enquanto terra e a renda fundiária enquanto
renda fundiária perderam com isso a sua diferença de estado
social [Standesunterschied ] e tornaram-se capital e juro que
nada dizem senão que apenas sugam dinheiro.
A diferença entre capital e terra, entre ganho e renda
fundiária, tal como entre ambos e o salário, entre indústria e
agricultura, entre a propriedade privada imóvel e a móvel, é uma
diferença ainda histórica, não fundada na essência da coisa, um
momento fixado na história de formação e origem da oposi-
ção entre capital e trabalho. Na indústria etc., em oposição à
propriedade fundiária imóvel, apenas se exprime o modo de
surgimento e a oposição à agricultura em que a indústria se
desenvolveu. Enquanto espécie particular do trabalho, enquanto
diferença essencial, importante, abrangendo a vida, essa diferença
subsiste apenas na medida em que a indústria (a vida da cidade)
se forma frente à posse de terra (à vida nobre\vida feudal) e traz
ainda em si própria o caráter feudal da sua oposição na forma
do monopólio, grêmio, guilda, corporação etc., no interior
de cujas determinações o trabalho ainda tem um significado
aparentemente social, ainda tem o significado da comunidade
[Gemeinwesen] real, ainda não avançou até a indiferença perante
o seu conteúdo e até o completo ser para si próprio, i. é, até a
abstração de qualquer outro ser, e por isso também ainda não
até capital liberto. [XLII] Mas o desenvolvimento necessário do
trabalho é a indústria liberta enquanto constituída como tal
para si própria e o capital liberto. O poder da indústria sobre a

143 Cf. K. Marx, EAS, Mega², IV/2, p. 356. (N. Ed.)

327
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

sua oposição mostra-se logo no surgimento da agricultura como


uma indústria real, enquanto ela anteriormente deixava o traba-
lho principal ao solo e ao escravo desse solo, através do qual este
cultivava a si próprio. Com a transformação do escravo num
trabalhador livre, i. é, num mercenário, o senhor fundiário em si
transformou-se num senhor de indústria, num capitalista, uma
transformação que acontece em primeiro lugar por intermédio
do arrendatário. Mas o arrendatário é o representante, o segredo
revelado do proprietário da terra (Grundeingentümer); só por
ele ocorre a sua existência nacional-econômica, a sua existência
como proprietário privado – pois a renda fundiária da sua
terra apenas existe através da concorrência dos arrendatários;
portanto, o senhor fundiário já se tornou essencialmente no
arrendatário um capitalista comum. E isto tem de se consumar
também na realidade: o capitalista que se dedica à agricultu-
ra – o arrendatário – tem que se tornar senhor fundiário ou
inversamente. A mesquinharia industrial (Industrieschacher) do
arrendatário é a do proprietário da terra, pois o ser do primeiro
põe o ser do segundo.
Ao recordarem-se do seu surgimento em oposição, da
sua proveniência: o proprietário da terra está ciente de que
o capitalista é o seu escravo de ontem enriquecido, liberto,
arrogante, e vê-se a si próprio como capitalista ameaçado por
aquele; o capitalista está ciente de que o proprietário da terra é
o senhor ocioso e cruel\egoísta de ontem, está ciente de que ele
o prejudica como capitalista, se bem que deva à indústria todo
o seu significado social de hoje, o seu ter e o seu fruir, vê nele
uma oposição à indústria livre e ao capital livre, independente
de toda a determinação natural; essa oposição é extremamente
amarga e diz reciprocamente a verdade. Basta ler os ataques
da propriedade imóvel contra a móvel, e inversamente, para
se obter um quadro intuitivo da sua recíproca indignidade. O

328
K a r l M a r x

proprietário da terra faz valer a nobreza de nascimento da sua


propriedade, os souvenirs144 feudais, \reminiscências, a poesia
da recordação, a sua essência de visionário, a sua importância
política etc. e, quando fala nacional-economicamente, só a
agricultura seria produtiva. Ele descreve simultaneamente o seu
adversário como um astuto, ostentador, crítico incapaz (mäkeln-
den), fraudulento, ganancioso, vendido, insurrecto145, sem coração
nem espírito, alienado da comunidade e livre para vendê-la,
usurário, alcoviteiro, escravo, galanteador, insinuante, engana-
dor, espoliador, que cria, que alimenta e que louva (trocknen) a
concorrência e, por isso, o pauperismo e o crime, a dissolução
de todos os vínculos sociais – agiota sem honra, sem princípios,
sem poesia, sem substância, sem nada. (Veja-se, entre outros, o
fisiocrata Bergasse, que já Camille Desmoulins fustigava no seu
jornal: Révolutions de France et de Brabant,146 veja-se von Vincke,
Lancizolle, Haller, Leo, Kosegarten,147 o impertigado teólogo
velho-hegeliano Funke,148 que, com lágrimas nos olhos, conta,
segundo o senhor Leo, como um escravo, quando da supressão

144 Em francês no texto: recordações. (N. Ed.)


145 Em alemão: empörungssüchtigen, literalmente: aquele que é viciado em sublevação.
(N. do R.)
146 Cf. Révolutions de France et de Brabant. Editado por Camille Desmoulins, 1790,
n. 13, 16, 23 e 26. (N. Ed.)
147 Cf. K. Marx, Notizen zur Geschichte Frankreichs, Deutschlands, Englands und
Schwedens [Apontamentos para a história da França, da Alemanha, da Inglaterra
e da Suécia]; Mega², IV/2, p. 156-162. Marx tinha, na sua biblioteca de Paris, de
Wilhelm Kosegarten, Betrachtungen über die Veräusserlichkeit und Theilbarkeit
des Landsbesitzes mit besonderer Rücksicht auf einige Provinzen der Preuβischen
Monarchie [Considerações acerca da alienabilidade e divisibilidade da propriedade
rural com particular referência a algumas províncias da monarquia prussiana], 1842.
Há referências de Marx a esse autor em “Der Kommunismus und die Augsburger
‘Allgemeine Zeitung’” [“O comunismo e a Gazeta Universal de Augsburg”], Mega²,
I/1, p. 238 e 240. (N. Ed.)
148 Cf. Georg Ludwig Wilhelm Funke, Die aus der unbeschränkten Theilbarkeit des
Grundeigenthums hervorgehenden Nachtheile [As desvantagens provenientes da divi-
sibilidade ilimitada da propriedade fundiária], 1839, p. 56. (N. Ed.)

329
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

da servidão, se teria recusado a deixar de ser uma propriedade


aristocrática.149 Vejam-se também as fantasias patrióticas de Justus
Möser, que se distinguem por não abandonarem um momento
o horizonte tacanho, “caseiro” habitual, pequeno-burguês, ho-
nesto [bieder], do filisteu e são, por isso, puras fantastiquices.150
Essa contradição tornou-se assim simpática para o espírito
alemão. E veja-se Sismondi.”151
A propriedade móvel, por seu lado, aponta para o milagre
da indústria e do movimento, é cria dos tempos modernos e
sua filha legítima e única; ela se compadece de seu adversário
como um imbecil não esclarecido acerca da sua essência (e isto
está perfeitamente correto) que quer pôr, no lugar do capital
moral e do trabalho livre, a bruta violência imoral e a servidão;
ela descreve-o como um Dom Quixote que, sob a aparência da
elevação e da honestidade, do interesse universal, da estabilidade,
esconde a incapacidade de movimento, o hedonismo avarento,
o egoísmo, o interesse particular, a má intenção; ela o declara
um monopolista ardiloso; abafa as suas reminiscências, a sua
poesia, o seu visionarismo, com uma enumeração histórica e
sarcástica da baixeza, crueldade, aviltação, prostituição, in-
fâmia, anarquia, indignação, cujas oficinas foram os castelos
românticos. [XLIII] Ela teria proporcionado ao mundo a
liberdade política, quebrado as cadeias da sociedade burguesa

149 Funke relata que o episódio é narrado por Justus Möser em Patriotische Phantasien
[Fantasias patrióticas], 1820; todavia faz também referência a Heinrich Leo e aos
seus Studien und Skizzen zu einer Naturlehre des Staates [Estudos e esboços para uma
doutrina natural do Estado], 1833, provável razão da atribuição errônea por parte
de Marx. (N. Ed.)
150 Cf. K. Marx, Notizen zur Geschichte Deutschlands und der USA und Exzerpte aus
staats – und verfassungsgeschichtlichen Werken (Heft 5) [Apontamentos para a história
da Alemanha e dos USA e Excertos de obras de história do Estado e da Constituição
(Fascículo 5), Mega², IV/2, p. 256 -265. (N. Ed.)
151 As referências a Sismondi são em geral tomadas de Eugène Buret. Veja -se, por
exemplo, a nota 89, supra. (N. Ed.)

330
K a r l M a r x

(bürgerlichen Gesellschaft), ligado os mundos entre si, criado


o filantrópico comércio, a moral pura, a cultura obsequiosa
(gefällige Bildung); ela teria dado ao povo, em vez das suas
rudes necessidades, as necessidades civilizadas e os meios para
a sua satisfação, enquanto o proprietário da terra – esse inativo
e muito desagradável açambarcador de cereal – encareceria
para o povo os primeiros meios de vida, pelo que forçaria
o capitalista a elevar o salário sem poder elevar a força de
produção, assim diminuiria e por fim suprimiria totalmente
o rendimento anual da nação, a acumulação de capitais,
portanto a possibilidade de proporcionar trabalho ao povo e
riqueza ao país, traria consigo uma decadência geral e explo-
raria de um modo usurário todas as vantagens da civilização
moderna, sem fazer o mínimo por ela e mesmo sem largar
os seus preconceitos feudais. Finalmente, ele só deveria olhar
para o seu arrendatário – ele, para quem o cultivo da terra e
o próprio solo apenas existem como uma fonte de dinheiro
presenteada152 – e ele deveria dizer se não é um patife honesto,
fantástico, astuto, que, pelo coração e pela realidade, de há
muito pertence já à indústria livre e ao querido comércio, se
bem que também ele resista a isso tanto e por muito que ta-
garele acerca de recordações históricas e de objetivos morais
(sittlichen) ou políticos. Tudo quanto ele realmente alegue em
seu favor seria apenas verdadeiro para os cultivadores da terra
(os capitalistas e os servos de trabalho), cujo inimigo seria antes
o proprietário da terra; ele daria, portanto, evidências contra
si próprio. Sem capital, a propriedade fundiária seria matéria
morta, sem valor. A sua vitória civilizada seria precisamente
ter descoberto e criado o trabalho humano como fonte da

152 Em alemão, geschenkte, doada como presente, presenteada, no significado literal.


(N. do R.)

331
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

riqueza, em vez da coisa morta. (Veja-se Paul Louis Courier,


St. Simon, Ganilh, Ricardo, Mill, MacCulloch, Destutt de
Tracy e Michel Chevalier.)153
Do curso real do desenvolvimento (a inserir aqui) segue a
necessária vitória do capitalista, i. é, da propriedade privada
desenvolvida sobre o proprietário da terra não desenvolvido,
semidesenvolvido, como em geral o movimento tem já de
vencer a imobilidade, a vulgaridade aberta autoconsciente tem
de vencer a oculta e desprovida de consciência, a cupidez tem de
vencer o hedonismo, o egoísmo [Eigennutz] professado, versado
nas coisas do mundo, incansável, muito proficiente, das luzes
[Aufklärung] tem de vencer o egoísmo local, honesto, preguiçoso
e fantástico da superstição, assim como o dinheiro tem de vencer
a outra forma da propriedade privada.
Os Estados que pressentem algo do perigo da indústria
livre consumada, da moral pura consumada e do comércio
filantrópico consumado procuram suster – mas totalmente em
vão – a capitalização da propriedade fundiária.
A propriedade fundiária, na sua diferença relativamente
ao capital, é a propriedade privada, o capital ainda eivado de
preconceitos locais e políticos, ainda não completamente regres-
sado a si do seu enredamento com o mundo, o capital ainda
não consumado. Ele tem de chegar à sua expressão abstrata, i.
é, pura, no curso da sua formação mundial.
154 A relação da propriedade privada é trabalho, capital e a

ligação de ambos. O movimento que esses membros têm de


percorrer são:

153 Ao tempo, e documentadamente, Marx tinha feito excertos de obras de David


Ricardo, James Mill, John Ramsay MacCulloch e Destutt de Tracy; cf. Mega²,
IV/2. Quanto a Michel Chevalier, há referências mais adiante, p. 397, e no artigo
“Kritische Randglossen...”, Mega², I/2, p. 461. (N. Ed.)
154 Para toda esta passagem, Cf. F. Engels, “Umrisse...”, Mega², I/3, p. 481-482. (N. Ed.)

332
K a r l M a r x

Primeiro: unidade imediata ou mediata de ambos.


Capital e trabalho primeiro ainda unidos; depois, com
efeito, separados e alienados, mas erguendo-se e estimulando-se
reciprocamente como condições positivas.
Oposição de ambos. Excluem-se reciprocamente, e o trabalha-
dor sabe que o capitalista é a sua não existência e inversamente;
cada um procura arrancar ao outro a sua existência.
Oposição de cada um contra si próprio. Capital = trabalho
acumulado = trabalho. Como tal decompondo-se em si e nos
seus juros, tal como estes, de novo, em juros e ganho. Completo
sacrifício do capitalista. Ele cai na classe trabalhadora, tal como
o trabalhador – embora apenas excepcionalmente – se torna
capitalista. Trabalho como momento do capital, os seus custos.
Portanto, o salário um sacrifício do capital.
Trabalho decompõe-se em si e no salário. O próprio traba-
lhador [é] um capital e mercadoria.
Oposição recíproca hostil.

333
[CADERNO III]

[Complemento ao Caderno II, página XXXVI]


[Propriedade privada e trabalho]
[I] ad. p.155 XXXVI. A essência subjetiva da propriedade pri-
vada, a propriedade privada enquanto sendo atividade para si,
enquanto sujeito, enquanto pessoa, é o trabalho. Compreende-se,
portanto, que só a economia nacional, que reconheceu o tra-
balho como seu princípio – Adam Smith –, não estivesse ciente
da propriedade privada apenas como uma situação exterior do
homem; que essa economia nacional é considerada como um
produto da energia e do movimento reais da propriedade privada
(ela é o movimento autônomo da propriedade privada tornado
para si na consciência, a indústria moderna enquanto tal [als
Selbst]), como um produto da indústria moderna, e por outro
lado tenha acelerado, glorificado a energia e o desenvolvimento
dessa indústria e feito deles um poder da consciência. Por isso,

155 Em latim no texto: [complemento] à p[ágina]. (N. Ed.)


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para essa economia nacional esclarecida que descobriu a essência


subjetiva da riqueza – no interior da propriedade privada –, apa-
recem como servidores do fetiche (Fetischdiener), como católicos,
os discípulos do sistema mercantil e do sistema monetário, os
quais estão cientes de que a propriedade privada é uma essência
somente objetiva para o homem. Por isso Engels chamou com
razão a Adam Smith o Lutero nacional-econômico.156 Tal como
Lutero reconheceu a fé como a essência do mundo exterior da
religião, tal como fez frente ao paganismo católico ao superar
a religiosidade exterior, ao fazer da religiosidade a essência in-
terior do homem; tal como ele negou o padre existindo fora do
leigo, porque transferiu o padre para o coração do leigo, assim
é superada a riqueza que se encontra fora do homem e inde-
pendente dele – portanto apenas a ser conservada e afirmada de
um modo exterior –, i. é, é superada essa sua objetividade sem
pensamento, exterior na medida em que a propriedade privada
se incorpora ao próprio homem e reconhece o próprio homem
como sua essência – mas por isso o próprio homem é posto na
determinação da propriedade privada, tal como em Lutero na da
religião.157 Sob a aparência de um reconhecimento do homem, a
economia nacional, cujo princípio é o trabalho, é portanto antes
apenas o cumprimento consequente da renegação do homem,
na medida em que ele próprio já não está numa tensão exterior
para com a essência exterior da propriedade privada, mas antes
ele próprio se tornou essa essência tensa da propriedade privada.
O que antes era ser exterior a si (Sichäußerlichsein), exterioriza-
ção real do homem, tornou-se apenas o ato da exteriorização,
venda [Veräusserung].158 Portanto, se aquela economia nacional

156 Cf. F. Engels, “Umrisse...”; Mega², I/3, p. 474. (N. Ed.)


157 Cf. K. Marx, “Zur Kritik... . Einleitung”; Mega², I/2, p. 177-178. (N. Ed.)
158 Cf. M. Hess, “Philosophie der That” em Einundzwanzig Bogen..., p. 329. (N. Ed.)

336
K a r l M a r x

começa sob a aparência do reconhecimento do homem, da sua


autonomia, da sua autoatividade etc., e quando transfere para a
própria essência do homem a propriedade privada, já não pode
ser condicionada pelas determinações locais, nacionais etc., da
propriedade privada como uma existente essência externa, portan-
to desenvolve uma energia cosmopolita, universal, que derruba
todo o limite e todo o vínculo para se pôr na posição de únicos
política, universalidade, limite e vínculo – assim ela tem de, no
desenvolvimento ulterior, derrubar essa hipocrisia, evidenciar-
-se no seu total cinismo e fá-lo na medida em que – indiferente
a todas as contradições aparentes em que essa doutrina se
enreda – ao desenvolver muito mais unilateralmente, por isso
mais agudamente e mais consequentemente, o trabalho como a
única essência da riqueza, ao demonstrar que as consequências
dessa doutrina, em oposição àquela concepção originária, são
antes hostis ao homem, e finalmente dá o golpe mortal à última
existência – individual, natural, que existe independentemente
do movimento do trabalho – da propriedade privada e fonte da
riqueza, à renda fundiária, essa expressão da propriedade feudal
tornada totalmente nacional-econômica e por isso incapaz de
resistência face à economia nacional. (Escola de Ricardo.)159 De
Smith, passando por Say, até Ricardo, Mill etc. (na medida
em que as consequências da indústria surgem aos olhos dos
últimos mais desenvolvidas e contraditórias), não só o cinismo
da economia nacional cresce relativamente como também,
positivamente, eles vão sempre e com consciência mais longe
do que os seus antecessores na alienação contra o homem, mas

159 Cf. K. Marx, Exzerpte aus John Ramsay MacCulloch: Discours sur l’origine, les pro-
grès, les objects particuliers, et l’ importance de l’ économie politique [Excertos de John
Ramsay MacCulloch: Discurso sobre a origem, os progressos, os objetos particulares e
a importância da economia política] (doravante: EJRM); Mega², IV/2, p. 474-475.
(N. Ed.)

337
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

unicamente porque a sua ciência se desenvolve mais consequente


e mais verdadeiramente. Na medida em que fazem sujeito da
propriedade privada na sua figura ativa, portanto simultanea-
mente fazem do homem essência (Wesen) e simultaneamente
fazem do homem, como um não ser [Unwesen], um ser [Wesen],
então a contradição da realidade corresponde plenamente à
essência (Wesen) plenamente contraditória que reconheceram
como princípio. A realidade [II] cindida da indústria confirma-a
no seu princípio cindido em si, muito longe de o refutar. O seu
princípio é sim o princípio dessa cisão.
A doutrina fisiocrata do Dr. Quesnay forma a passagem do
sistema mercantil para Adam Smith. A fisiocracia é imediata-
mente a dissolução nacional-econômica da propriedade feudal,
mas precisamente por isso é imediatamente a transformação
nacional-econômica, restabelecimento da mesma, só que a sua
linguagem já não é feudal, mas torna-se econômica. Toda a
riqueza é dissolvida na terra e no cultivo da terra; (agricultura)
a terra ainda não é capital, ela é ainda um modo particular de
existência do mesmo, que deve valer na sua e pela sua particu-
laridade natural; mas a terra é, contudo, um elemento natural
universal, enquanto o sistema mercantil apenas conhece o
metal nobre como existência da riqueza. O objeto da riqueza,
a sua matéria, portanto conservou imediatamente, portanto, a
universalidade suprema no interior dos limites da natureza – na
medida em que, ainda como natureza, é imediatamente riqueza
objetiva. E a terra só é para o homem através do trabalho, da
agricultura. Portanto, a essência subjetiva da riqueza é já trans-
ferida para o trabalho. Mas, ao mesmo tempo, a agricultura
é o trabalho unicamente produtivo. Assim, o trabalho ainda
não é apreendido na sua universalidade e abstração, ainda está
vinculado a um elemento natural particular como sua matéria,
por isso ele é ainda reconhecido também apenas num particu-

338
K a r l M a r x

lar modo de existência determinado pela natureza. Por isso, ele


é unicamente uma exteriorização particular, determinada, do
homem, tal como o seu produto também é apreendido como
um produto determinado – riqueza cabendo mais ainda à na-
tureza do que a ele próprio. A terra ainda é aqui reconhecida
como existência natural independente do homem, ainda não
como capital, i. é, como um momento do próprio trabalho.
Antes, o trabalho aparece como momento dela. Mas enquanto
o fetichismo da velha riqueza exterior (äußerlichen) e existindo
apenas como objeto se reduz a um elemento muito simples da
natureza, e a sua essência é já reconhecida na sua existência
subjetiva, embora apenas parcialmente e de um modo particular,
o progresso necessário é que a essência universal da riqueza seja
reconhecida, e por isso o trabalho, na sua absolutidade completa,
i. é, abstração, seja elevado a princípio. É provado à fisiocracia
que a agricultura na perspectiva econômica, portanto a única
válida, não se diferencia de nenhuma outra indústria; portanto,
não um trabalho determinado, um vinculado a um elemento
particular, uma expressão de trabalho particular, mas o trabalho
em geral é a essência da riqueza.
A fisiocracia nega a riqueza particular exterior apenas objetiva
ao declarar o trabalho como sua essência. Mas, em primeiro lugar,
o trabalho é para ela apenas a essência subjetiva da propriedade
fundiária (ela parte da espécie de propriedade que aparece his-
toricamente como a que é reconhecida e dominante); ela apenas
faz com que a propriedade privada se torne homem exteriorizado.
Ela suprime o seu caráter feudal ao declarar a indústria (agricul-
tura) como sua essência; mas comporta-se para com o mundo da
indústria negando-o, reconhece a essência feudal [Feudalwesen]
ao declarar a agricultura como a única indústria.
Compreende-se que, tão logo seja apreendida a essência
subjetiva da indústria constituindo-se em oposição à proprie-

339
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

dade fundiária, i. é, como indústria –, essa essência encerra em


si aquela sua oposição. Pois assim como a indústria abrange a
propriedade fundiária superada (aufgehobne), do mesmo modo
a sua essência subjetiva abrange simultaneamente a essência
subjetiva desta.
Tal como a propriedade fundiária é a primeira forma da
propriedade privada, tal como a indústria, primeiro, lhe faz
historicamente frente meramente como uma espécie particular
da propriedade – ou melhor, é o escravo liberto da propriedade
fundiária –, assim esse processo se repete na apreensão científica
da essência subjetiva da propriedade privada, do trabalho, e o
trabalho, primeiro, apenas como trabalho de cultivo da terra,
mas se faz depois valer como trabalho em geral. [III] Toda a
riqueza se tornou riqueza industrial, riqueza do trabalho, e a
indústria é o trabalho explicitado160, tal como a essência fabril
é a essência desenvolvida da indústria, i. é, do trabalho, e o
capital industrial é a figura objetiva explicitada (vollendete) da
propriedade privada. Vemos também como só agora a pro-
priedade privada pode explicitar (vollenden) a sua dominação
sobre o homem e tornar-se, em forma mais universal, um poder
histórico-mundial.

[Complemento ao Caderno II, página XXXIX]


[Propriedade privada e comunismo]
ad. p. XXXIX. Mas a oposição (Gegensatz) de sem proprie-
dade e propriedade é ainda indiferente, não apreendida na sua
ligação ativa, na sua relação interna, ainda não como contradição
(Widerspruch), enquanto não for concebida como a oposição

160 No alemão, vollendete. Literalmente “perfeito”, “realizado”. Aqui no sentido de o


trabalho, já tendo plenamente explicitado todas as suas determinações universais,
deixou de ser o trabalho particular do cultivo da terra para se elevar a trabalho em
geral. (N. do R.)

340
K a r l M a r x

do trabalho e do capital. Mesmo sem o movimento progressivo


da propriedade privada, na Roma antiga, na Turquia etc. essa
oposição pode exprimir-se na primeira figura. Assim ela ainda
não aparece como posta pela própria propriedade privada. Mas
o trabalho, a essência subjetiva da propriedade privada como
exclusão da propriedade, e o capital, o trabalho objetivo como
exclusão do trabalho, é a propriedade privada como sua relação
desenvolvida da contradição, por isso, uma relação enérgica que
impele à resolução (Auflösung).
ad ibidem161 A superação (Aufhebung) da autoalienação faz o
mesmo caminho que a autoalienação. Considera-se primeiro a
propriedade privada apenas no seu lado objetivo –, mas, contu-
do, o trabalho como sua essência. A sua forma de existência é
por isso o capital, que é de suprimir “como tal”. (Proudhon.)162
Ou o modo particular do trabalho – enquanto trabalho nivelado,
parcelado e por isso não livre – é apreendido como a fonte da
nocividade da propriedade privada e da sua existência alienada
do homem – Fourier, que, como os fisiocratas, apreende ainda
uma vez o trabalho de cultivo da terra pelo menos como o por
excelência, enquanto St. Simon, em oposição, declara o trabalho
de indústria enquanto tal como a essência e pretende também
a exclusiva dominação dos industriais e a melhoria da situação
dos trabalhadores. O comunismo é, por fim, a expressão positiva
da propriedade privada superada (aufgehobnen); antes de tudo,
a propriedade privada universal. Ao apreender essa relação na
sua universalidade, ele é 1) na sua primeira figura, apenas uma
universalização e explicitação163 da mesma; enquanto tal, mostra-se
numa dupla figura: antes, a dominação da propriedade coisal é

161 Em latim no texto: [complementol à [mesma página]. (N. Ed.)


162 Cf. P.-J. Proudhon, Qu’est-ce que la propriété?.., III, §5. (N. Ed.)
163 Aqui, Vollendung. Explicitado no mesmo sentido da nota 160, supra. (N. do R.)

341
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

tão grande perante ele que ele quer aniquilar tudo o que não é
capaz de ser possuído por todos como propriedade privada; ele
quer abstrair do talento de um modo violento etc. a posse ime-
diata, física, vale para ele como a única finalidade da vida e da
existência; a determinação do trabalhador não é superada, mas
estendida a todos os homens; a relação da propriedade privada
permanece a relação da comunidade (Gemeinschaft) com o
mundo das coisas; finalmente, esse movimento de contrapor à
propriedade privada a propriedade privada universal exprime-se
na forma animal em que o casamento (o qual decerto é uma
forma da propriedade privada exclusiva) é contraposto à comu-
nidade de mulheres, portanto na qual a mulher se torna uma
propriedade comunitária e comum. Pode dizer-se que essa ideia
da comunidade de mulheres é o segredo expresso desse comunismo
ainda totalmente rude e desprovido de pensamento. Tal como
a mulher sai do casamento para a prostituição universal, todo
o mundo da riqueza, i. é, da essência objetiva do homem, sai
da relação do casamento exclusivo com o proprietário privado
para a relação da prostituição universal com a comunidade.
Esse comunismo, ao negar por toda a parte a personalidade do
homem – é precisamente apenas a expressão consequente da
propriedade privada, a qual é essa negação. A inveja universal e
constituindo-se como poder é a forma oculta na qual a avareza
se estabelece e apenas se satisfaz de outro modo. A ideia de toda
a propriedade privada enquanto tal está pelo menos virada contra
a propriedade privada mais rica como inveja e desejo de nive-
lamento, de tal modo que estes constituem mesmo a essência
da concorrência. O comunismo rude é apenas a explicitação
dessa inveja e desse nivelamento a partir do mínimo imagina-
do. Ele tem uma medida determinada limitada. Quão pouco
essa superação da propriedade privada é uma apropriação real
demonstra-o precisamente a negação abstrata de todo o mundo

342
K a r l M a r x

da cultura e da civilização; o regresso à simplicidade [IV] anti-


natural do homem pobre e desprovido de necessidades, que não
ultrapassou a propriedade privada, nem sequer até ela chegou.
A comunidade é apenas uma comunidade do trabalho e da
igualdade do salário, que o capital comunitário, a comunidade
como capitalista universal, paga. Ambos os lados da relação
estão elevados a uma universalidade representada: o trabalho,
como determinação em que todos são postos; o capital, como
universalidade e poder reconhecido da comunidade.
Na relação com a mulher, como presa e serva da volúpia
comunitária, está expressa a infinita degradação na qual o
homem existe para si próprio, pois o segredo dessa relação tem
a sua expressão inequívoca, categórica, manifesta, revelada na
relação do homem com a mulher e no modo como é apreendida a
relação genérica natural, imediata. A relação necessária, natural,
imediata do homem com o homem é a relação do homem com
a mulher.164 Nessa relação genérica natural, a relação do homem
com a natureza é imediatamente a sua relação com o homem,
assim como a relação com o homem é imediatamente a sua
relação com a natureza, a sua própria determinação natural.
Nessa relação aparece, portanto, sensivelmente, reduzido a um
factum intuível, até que ponto a essência humana se tornou
para o homem natureza ou a natureza em essência humana do
homem. A partir dessa relação pode-se, portanto, valorar de
todo o estágio cultural do homem. Do caráter dessa relação
segue-se até que ponto o homem se tornou e apreendeu como ser
genérico, como homem; a relação do homem com a mulher é a
relação mais natural do homem com o homem. Nela se mostra,
portanto, até que ponto o comportamento natural do homem se
tornou humano, ou até que ponto a essência humana se tornou

164 Cf. L. Feuerbach, Das Wesen..., x; GW, vol. 5, p. 178. (N. Ed.)

343
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

essência natural, até que ponto a sua natureza humana se tor-


nou para ele natureza. Nessa relação mostra-se também até que
ponto a necessidade do homem se tornou necessidade humana,
portanto até que ponto para ele o outro homem como homem
se tornou necessidade, até que ponto ele, na sua existência mais
individual, é simultaneamente comunidade [Gemeinwesen].
A primeira superação positiva da propriedade privada, o
comunismo rude, é, portanto, apenas uma forma fenomênica
da infâmia da propriedade privada, que se quer pôr como a
comunidade positiva.
2) O comunismo α) ainda de natureza política, democrático
ou despótico; β) com superação do Estado, mas simultanea-
mente ainda incompleto, sempre ainda com a essência afetada
pela propriedade privada, i. é, pela alienação do homem. Em
ambas as formas, o comunismo sabe-se como reintegração
ou regresso do homem a si, como superação da autoalienação
humana, mas, enquanto ele ainda não apreendeu a essência
positiva da propriedade privada nem tampouco entendeu a
natureza humana da necessidade, está também ainda preso e
contagiado pela mesma. Ele apreendeu decerto o seu conceito,
mas não ainda a sua essência.
3) O comunismo como superação positiva da propriedade
privada, enquanto autoalienação humana e por isso como
apropriação real da essência humana pelo e para o homem; por
isso como regresso completo, consciente e advindo dentro de
toda a riqueza do desenvolvimento até agora, do homem a si
próprio como um homem social, i. é, humano. Esse comunismo
é, como naturalismo consumado = humanismo, como huma-
nismo consumado = naturalismo, ele é a verdadeira resolução
do conflito do homem com a natureza e com o homem, a
verdadeira resolução da luta entre existência e essência, entre
objetivação e autoconfirmação, entre liberdade e necessidade,

344
K a r l M a r x

entre indivíduo e gênero. Ele é o enigma da história resolvido


e sabe-se como essa solução.
[V] Por isso, todo o movimento da história, quer como seu
[do comunismo] ato de geração real – seu ato de nascimento da
sua existência empírica –, quer também para a sua consciência
pensante, é o movimento sabido e concebido do seu devir; en-
quanto aquele comunismo ainda incompleto procura para si
uma prova histórica a partir de figuras da história isoladas que se
opõem à propriedade privada, uma prova no existente, ao arrancar
momentos isolados do movimento (Cabet, Villegardelle etc., em
particular montam este cavalo) e ao fixá-los como prova da sua
pureza histórica de sangue, com o que precisamente demonstra
que a incomparavelmente maior parte desse movimento contradiz
as suas alegações e que, se alguma vez ele existiu, precisamente o
seu ser passado refuta a pretensão da essência.
Que no movimento da propriedade privada, precisamente
da economia, todo o movimento revolucionário encontra tanto
a sua base empírica quanto teórica, disso é fácil de reconhecer
a necessidade (Notwendigkeit).
A propriedade privada material, imediatamente sensível, é
a expressão material sensível da vida humana alienada. O seu
movimento – a produção e o consumo – é a revelação sensível
do movimento de toda a produção até aqui, i. é, realização ou
realidade do homem. Religião, família, Estado, direito, moral,
ciência, arte etc. são apenas modos particulares da produção e
caem sob a sua lei universal. A superação positiva da propriedade
privada como apropriação da vida humana é, por isso, a supera-
ção positiva de toda a alienação, portanto o regresso do homem,
a partir da religião, família, Estado etc., à sua existência humana,
i. é, social. A alienação religiosa como tal processa-se apenas
na região da consciência, do interior humano, mas a alienação
econômica é a da vida real – por isso a sua superação abrange

345
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

ambos os lados. Compreende-se que entre os diversos povos o


movimento tome o seu primeiro começo segundo a verdadeira
vida reconhecida do povo se processe mais na consciência ou no
mundo exterior, mais na vida ideal ou na real. O comunismo
começa de imediato (Owen)165 com o ateísmo, o ateísmo primeiro
está ainda muito longe de ser comunismo, assim como aquele
ateísmo é antes ainda uma abstração. A filantropia do ateísmo
é, por isso, primeiro apenas uma filantropia abstrata, filosófica;
a do comunismo é de imediato real e tensionada imediatamente
ao efeito [Wirkung].
Vimos como, no pressuposto da propriedade privada positi-
vamente superada, o homem produz o homem, a si próprio e ao
outro homem; como o objeto, o qual é a imediata atuação166 da
sua individualidade e simultaneamente a sua própria existência
para o outro homem, a existência deste e a existência deste para
ele. Do mesmo modo, tanto o material do trabalho quanto o
homem como sujeito são, porém, tanto ponto de partida quan-
to resultado do movimento (e em que eles tenham de ser esse
ponto de partida, precisamente aí reside a necessidade histórica
da propriedade privada). Portanto, o caráter social é o caráter
universal de todo o movimento; tal como a própria sociedade
produz o homem como homem, assim ela é produzida por ele.
A atividade e a fruição, bem como o seu conteúdo, são também
modos de existência segundo a atividade social e a fruição social.
A essência humana da natureza é apenas para o homem social;
pois só aqui ela existe para ele como vínculo com o homem, como
sua existência para o outro e do outro para ele, só aqui ela existe
como elemento de vida da realidade humana, só aqui como base

165 Cf. F. Engels. Briefe aus London [Cartas de Londres], III; Mega², I/3, p. 460-463.
(N. Ed.)
166 Em alemão, Betätigung, que também poderia ser traduzido como “colocar em
marcha”. (N. do R.)

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K a r l M a r x

da sua existência humana própria. Só aqui a sua existência na-


tural é para ele a sua existência humana, e a natureza se tornou
homem para ele. Portanto, a sociedade é a unidade de essência
consumada do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição
da natureza, o naturalismo realizado (durchgeführte) do homem
e o humanismo realizado da natureza.
[VI] A atividade social e a fruição social de modo nenhum
existem unicamente na forma de uma atividade imediatamente
comunitária e de uma fruição imediatamente comunitária,
ainda que a atividade comunitária e a fruição comunitária, i.
é, a atividade e a fruição que imediatamente se exteriorizam e
confirmam em sociedade real com outros homens, em toda a
parte terão lugar onde aquela expressão imediata da socialidade
se fundamente na essência do seu conteúdo e seja conforme
com a sua natureza.
A prostituição é apenas uma expressão particular da pros-
tituição universal do trabalhador, e, visto que a prostituição é
uma relação em que cai não só a prostituída, mas também o
prostituidor – cuja infâmia é ainda maior – assim cai também
o capitalista etc., nessa categoria.
Mas mesmo quando estou cientificamente ativo etc., uma
atividade que eu raramente posso executar em comunidade
imediata com outros, estou socialmente ativo, porque [ativo]
como homem. Não só o material da minha atividade – como
a própria língua na qual o pensador é ativo – me é dado como
produto social, a minha existência própria é atividade social;
por isso, o que eu faço de mim, faço de mim para a sociedade
e com a consciência de mim como um ser social.
A minha consciência universal (allgemeines) é apenas a figura
teórica daquilo de que a comunidade [Gemeinwesen] real, o
ser social, é a figura viva, enquanto hoje em dia a consciência
universal é uma abstração da vida real e como tal a enfrenta

347
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

hostilmente. Por isso também a atividade da minha consciência


universal – enquanto tal (als eine solche) – é a minha existência
teórica como ser social.
É sobretudo de evitar fixar de novo a “sociedade” como
abstração face ao indivíduo. O indivíduo é o ser social. A sua
exteriorização de vida – mesmo que ela não apareça na forma
imediata de uma exteriorização de vida comunitária, levada a
cabo simultaneamente com outros – é, por isso, uma exteriori-
zação e confirmação da vida social. A vida individual e a vida
genérica do homem não são diversas, por muito que – e isso
necessariamente – o modo de existência da vida individual seja
um modo mais particular ou mais universal da vida genérica,
ou por mais que a vida genérica seja uma vida individual mais
particular ou mais universal.
Como consciência genérica, o homem confirma a sua vida
social real e apenas repete no pensamento a sua existência real, tal
como, inversamente, o ser genérico se confirma na consciência
genérica e é, na sua universalidade, como ser pensante, para si.
O homem – por muito que seja portanto um indivíduo
particular e, precisamente, a sua particularidade faz dele um
indivíduo e uma comunidade [Gemeinwesen] individual real
– é tanto a totalidade, a totalidade ideal, a existência subjetiva
para si da sociedade sentida e pensada como também existe
na realidade, quer como intuição e fruição real da existência
social, quer como uma totalidade de expressão humana (Le-
bensäußerung) de vida.
Portanto, pensar e ser são decerto diferentes, mas simulta-
neamente estão em unidade um com o outro.
A morte aparece como uma dura vitória do gênero sobre o
indivíduo determinado e parece contradizer a sua unidade; mas
o indivíduo determinado é apenas um ser genérico determinado,
como tal mortal.

348
K a r l M a r x

4) Tal como a propriedade privada é apenas a expressão


sensível de que o homem se torna simultaneamente objetivo
para si e simultaneamente se torna antes um objeto alienado e
inumano, de que a sua expressão de vida (Lebensäußerung) é a
sua exteriorização de vida (Lebensentäußerung), a sua realização
é a sua desrealização, uma realidade alienada, assim a superação
positiva da propriedade privada, i. é, a apropriação sensível da
essência e vida humanas, do homem objetivo, da obra humana
para e pelo homem, não é de apreender apenas no sentido da
fruição unilateral, imediata, não apenas no sentido da posse, no
sentido do ter. O homem apropria-se da sua essência omnilateral
de uma maneira omnilateral, portanto como um homem total.
Cada uma das suas relações humanas com o mundo, ver, ouvir,
cheirar, saborear, tatear, pensar, intuir, sentir, querer, ser ativo,
amar, em suma, todos os órgãos da sua individualidade, bem
como os órgãos que são imediatamente na sua forma órgãos
comunitários, [VII] são no seu comportamento objetivo ou no
seu comportamento para com o objeto a apropriação do mesmo,
a apropriação da realidade humana; o seu comportamento para
com o objeto é o acionamento (Betätigung)167 da realidade huma-
na (precisamente por isso ela é tão múltipla quanto múltiplas
são as determinações essenciais e atividades humanas), eficácia
humana e sofrimento [Leiden] humano, pois o sofrimento hu-
manamente apreendido é uma autofruição do homem.168
A propriedade privada nos fez tão estúpidos e unilaterais
que um objeto só é nosso se o tivermos, portanto se existir para
nós como capital, ou se for imediatamente possuído, comido,
bebido, trazido no corpo, habitado por nós etc.; em resumo,
usado. Embora a propriedade privada apreenda todas essas reali-

167 Ver nota 166, supra. (N. do R.)


168 L. Feuerbach, Vorläufige...; GW, vol. 9, p. 253-254. (N. Ed.)

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M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

zações imediatas da própria posse, de novo, apenas como meios


de vida, e a vida, a que servem de meio, é a vida da propriedade
privada de trabalho e capitalização.
Para o lugar de todos os sentidos físicos e espirituais entrou,
portanto, a simples alienação de todos esses sentidos, o sentido
do ter. A essência humana tinha de ser reduzida a essa absoluta
pobreza para com isso dar à luz a sua riqueza interior. (Sobre
a categoria do ter veja-se Hess nas 21 folhas de impressão.)169
A superação da propriedade privada é por isso a completa
emancipação de todos os sentidos e qualidades humanas; mas
ela é essa emancipação precisamente pelo fato de esses sentidos
e qualidades terem se tornado humanos, tanto subjetiva quanto
objetivamente. O olho tornou-se olho humano, tal como o seu
objeto se tornou um objeto social, humano, proveniente do ho-
mem para o homem. Por isso, os sentidos tornaram-se teóricos
(Theoretiker) imediatamente na sua prática.170 Comportam-se
para com a coisa por causa da coisa,171 mas a própria coisa é um
comportamento humano objetivo para consigo própria e para
com o homem – e inversamente. Eu só posso praticamente
comportar-me para com a coisa humanamente quando a coisa
se comporta para com o homem humanamente. A necessidade
ou a fruição perderam assim a sua natureza egoísta e a natureza
perdeu a sua mera utilidade (Nützlichkeit) na medida em que a
utilização (Nutzen) se tornou uma utilização (Nutzen) humana.
Do mesmo modo os sentidos e o espírito172 do outro homem
tornaram-se minha apropriação própria. Por isso, além desses

169 Cf. M. Heβ, “Philosophie der That” em Einundzwanzig Bogen..., p. 329. Marx
aborda igualmente o tema do ter em Die heilige Familie... [A sagrada família...];
MEW, vol. 2, p. 43-44. (N. Ed.)
170 Cf. L. Feuerbach, Grundsätze..., § 42; GW, vol. 9, p. 323-324. (N. Ed.)
171 Cf. L. Feuerbach, Das Wesen...; GW, vol. 5, p. 333. (N. Ed.)
172 Na edição da MEW, lê-se Genuss (consumo) em vez de Geist (espírito). (N. do R.)

350
K a r l M a r x

órgãos imediatos, formam-se órgãos sociais, na forma da socie-


dade; portanto, p. ex., a atividade em imediata sociedade com
outros etc. tornou-se um órgão da minha exteriorização de vida
e um modo da apropriação da vida humana.
Compreende-se que o olho humano frua de modo diferente
do olho rude, inumano, o ouvido humano, diferentemente do
ouvido rude etc.
Vimo-lo, o homem só não se perde no seu objeto se este se
tornar para ele objeto humano ou homem objetivo. Isto só é
possível na medida em que se lhe torna objeto social, em que
ele próprio se torna ser social, assim como a sociedade se torna
ser para ele nesse objeto.
Por um lado, portanto, na medida em que, por toda a par-
te, na sociedade, a realidade objetiva se torna para o homem
realidade das forças essenciais do homem, a realidade humana
e portanto realidade das suas forças essenciais próprias, todos
os objetos se tornam para ele objetivação de si próprio, enquanto
objetos que realizam e confirmam a sua individualidade, en-
quanto objetos seus; i. é, ele próprio se torna objeto. Como eles
se tornam seus para ele, isso depende da natureza do objeto e
da natureza da força essencial que lhe corresponde; pois precisa-
mente a determinidade dessa relação forma o modo real, parti-
cular, da afirmação. Para o olho, torna-se um outro objeto do
que para o ouvido, e o objeto do olho é um outro objeto do do
ouvido. A peculiaridade de cada força essencial é precisamente
a sua essência peculiar, portanto também o modo peculiar da
sua objetivação, do seu ser vivo real, objetivo. Não só no pensar,
[VIII] mas com todos os sentidos se afirma, portanto, homem
no mundo objetivo.173

173 Cf. L. Feuerbach, Das Wesen...; GW, vol. 5, p. 34. (N. Ed.)

351
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

Por outro lado, apreendido subjetivamente: tal como só a


música desperta o sentido musical do homem, tal como para
o ouvido não musical a mais bela música não tem nenhum
sentido,174 não é nenhum objeto, porque o meu objeto só pode
ser a confirmação de uma das minhas forças essenciais, portanto
só pode ser para mim assim como a minha força essencial é para
si como capacidade subjetiva, porque o sentido de um objeto
para mim (só tem sentido para um sentido correspondente a
ele) vai precisamente tão longe quanto vai o meu sentido,175 pelo
que os sentidos do homem social são outros sentidos que não os
do não social; somente pela riqueza objetivamente desdobrada
da essência humana é em parte produzida, em parte desenvol-
vida a riqueza da sensibilidade humana subjetiva – um ouvido
musical, um olho para a beleza da forma, somente, em suma,
sentidos capazes de fruição humana, sentidos que se confirmam
como forças essenciais humanas. Pois não só os cinco sentidos,
mas também os chamados sentidos espirituais, os sentidos prá-
ticos (vontade, amor etc.), numa palavra, o sentido humano, a
humanidade dos sentidos, apenas advêm pela existência do seu
objeto, pela natureza humanizada.
A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a
história do mundo até hoje. O sentido preso na necessidade
prática rude tem também somente um sentido tacanho. Para
o homem esfomeado não existe a forma humana da comida,
mas apenas a sua existência abstrata como comida; ela também
podia estar aí na forma mais rude – e não se pode dizer em
que é que essa atividade de nutrição se distingue da atividade
de nutrição animal. O homem necessitado, cheio de preocu-
pações, não tem nenhum sentido para o espetáculo mais belo;

174 Cf. id., ibid.; GW, vol. 5, p. 40. (N. Ed.)


175 Cf. id., ibid.; GW, vol. 5, p. 39. (N. Ed.)

352
K a r l M a r x

o comerciante de minerais vê apenas o valor mercantil, não a


beleza nem a natureza peculiar do mineral; ele não tem qual-
quer sentido mineralógico; portanto, a objetivação da essência
humana, tanto do ponto de vista teórico quanto do prático, é
necessária tanto para fazer humanos os sentidos do homem como
para criar sentido humano correspondente a toda a riqueza do
ser humano e natural.
Assim como, pelo movimento da propriedade privada e da
sua riqueza, bem como da sua miséria – ou da riqueza e misé-
ria materiais e espirituais –, a sociedade que devém encontra
todo o material para essa formação, assim a sociedade devinda
produz o homem nessa total riqueza da sua essência, o homem
rico, profundo e dotado de todos os sentidos, como sua realidade
permanente.
Vê-se como subjetivismo e objetivismo, espiritualismo e
materialismo, atividade e sofrimento, apenas no estado social
perdem a sua oposição e com isso a sua existência enquanto tais
oposições; vê-se como a solução das próprias oposições teóricas
só é possível de um modo prático, só através da energia prática
do homem, e por isso a sua solução não é de modo nenhum
apenas uma tarefa do conhecimento, mas é uma tarefa vital
real, a qual a filosofia não pôde resolver precisamente porque a
apreendia apenas como tarefa teórica.176
Vê-se como a história da indústria e a existência objetiva
devinda da indústria são o livro aberto das forças humanas es-
senciais, a psicologia humana sensivelmente dada, que até aqui
não foi apreendida na sua conexão com a essência do homem,
mas sempre apenas numa relação de exterior utilidade, porque

176 Cf. L. Feuerbach, Grundsätze..., § 28; GW, vol. 9, p. 308. Atente-se em como, para
Marx, a prática já não corresponde apenas a uma confirmação da existência, mas
alarga-se ao vetor da transformação. Veja-se K. Marx, Thesen über Feuerbach [Teses
sobre Feurbach], 8; MEW, vol. 3, p. 7. (N. Ed.)

353
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

[as pessoas] – movendo-se no interior da alienação – só sabiam


apreender como realidade das forças essenciais humanas e
como atos genéricos humanos a existência universal do homem,
a religião, ou a história na sua essência abstratamente universal,
como política, arte, literatura etc. [IX] Na indústria material,
habitual (– que precisamente se pode apreender, tanto como
uma parte daquele movimento universal, como este mesmo
se pode apreender como uma parte particular da indústria,
uma vez que toda a atividade humana até agora era trabalho,
portanto indústria, atividade alienada de si –), temos perante
nós as forças essenciais do homem objetivadas, sob a forma de
objetos sensíveis, alienados, úteis, sob a forma da alienação. Uma
psicologia, para a qual este livro, portanto precisamente a parte
sensivelmente mais presente, mais acessível da história, esteja
fechado não pode nem tornar-se algo pleno de conteúdo real
nem ciência. O que se deve em geral pensar de uma ciência que
abstrai soberbamente [vornehm] dessa grande parte do trabalho
humano e não sente em si própria a sua incompletude, enquanto
uma tão ampliada riqueza do operar humano nada lhe diz senão
porventura o que se pode dizer numa palavra: “necessidade”,
“comum necessidade”?
As ciências da natureza desenvolveram uma enorme ati-
vidade e apropriaram-se de um material sempre crescente. A
filosofia permaneceu-lhes, contudo, tão alheia (fremd) como
elas permaneceram alheias relativamente à filosofia.177 A mo-
mentânea união foi apenas uma ilusão fantástica. A vontade
existia, mas faltava o poder. A própria historiografia apenas de
passagem toma em consideração a ciência da natureza como
momento das Luzes, da utilidade, de grandes descobertas
singulares. Mas a ciência da natureza, quanto mais interveio

177 Cf. F. Hegel, Enzyklopädie..., II, Introdução; TW, vol. 9, p. 9-11. (N. Ed.)

354
K a r l M a r x

praticamente na vida humana por intermédio da indústria, a


reconfigurou e preparou a emancipação humana, tanto mais
teve imediatamente de completar a desumanização. A indústria
é a relação histórica real da natureza e, portanto, da ciência da
natureza, com o homem; por isso, se ela for apreendida como
desocultação exotérica das forças essenciais do homem, também
será assim entendida a essência humana da natureza ou a essên-
cia natural do homem; por isso, a ciência da natureza perderá
a sua orientação abstratamente material, ou antes idealista, e
tornar-se-á a base da ciência humana, como agora já se tornou
– ainda que em figura alienada – a base da vida realmente
humana; uma base para a vida e uma outra para a ciência – é
de antemão uma mentira.178 A natureza que devém na história
humana – no ato de surgimento da sociedade humana – é a
natureza real do homem, pelo que a natureza, tal como devém
através da indústria, ainda que em figura alienada, é a verdadeira
natureza antropológica.
A sensibilidade (veja-se Feuerbach)179 tem de ser a base de
toda a ciência. Unicamente se partir dela, na dupla figura tanto
da consciência sensível quanto da necessidade sensível – portanto,
unicamente se a ciência partir da natureza é ela ciência real.
Para que o “ homem” se torne objeto da consciência sensível e a
necessidade do “homem como homem” se torne necessidade,
toda a história é a história da preparação\história do desenvolvi-
mento para isso. A própria história é uma parte real da história
da natureza, do devir da natureza até ao homem. A ciência da
natureza subsumirá em si mais tarde a ciência do homem, tal
como a ciência do homem subsumirá a da natureza: haverá

178 Cf. L. Feuerbach, Vorläufige...; GW, vol. 9, p. 262. (N. Ed.)


179 Cf., por exemplo, Grundsätze..., § 32; GW, vol. 9, p. 316. Para Feuerbach, “sensibi-
lidade” (Sinnlichkeit) tem o duplo sentido, objetivo e subjetivo, de “mundo sensível”
e “faculdade humana de apreensão sensível”. (N. Ed.)

355
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

uma ciência. [X] O homem é o objeto imediato da ciência da


natureza; pois a natureza sensível imediata para o homem é ime-
diatamente a sensibilidade humana (uma expressão idêntica),
imediatamente como o homem outro existindo sensivelmente
para ele; pois a sua sensibilidade própria somente através do
outro homem é para ele próprio sensibilidade humana. Mas a
natureza é o objeto imediato da ciência do homem. O primeiro
objeto do homem – o homem – é natureza, sensibilidade e as
forças essenciais humanas sensíveis particulares assim como
só encontram a sua realização objetiva em objetos naturais só
podem encontrar o seu autoconhecimento na ciência do ser
natural em geral. O próprio elemento do pensar, o elemento da
exteriorização de vida do pensamento, a linguagem, é de nature-
za sensível. A realidade social da natureza e a ciência humana da
natureza ou a ciência natural do homem são expressões idênticas.
Vê-se como entram para o lugar da riqueza e miséria nacio-
nal-econômicas o homem rico e a necessidade humana rica. O
homem rico é simultaneamente o homem necessitado de uma
totalidade da exteriorização de vida humana. O homem no
qual a sua realização própria existe como necessidade interior,
como privação (Not). Não só a riqueza, também a pobreza do
homem alcançam na mesma medida – sob o pressuposto do
socialismo – uma significação humana, e por isso social. Ela [a
privação] é o vínculo passivo, que faz perceber (empfinden) ao
homem a maior riqueza, o outro homem, como necessidade.
A dominação da essência objetiva em mim, a erupção sensível
da minha atividade essencial é a paixão, a qual assim se torna
aqui, com isso, a atividade da minha essência.180
5) Um ser só se tem por autônomo desde que se erga sobre
os seus próprios pés, e ele só se ergue nos seus próprios pés

180 Cf. L. Feuerbach, Vorläufige...; GW, vol. 9, p. 253. (N. Ed.)

356
K a r l M a r x

desde que a si mesmo deve a sua existência. Um homem que


viva da graça de outro considera-se como um ser dependente.
Mas eu vivo completamente da graça de um outro se não lhe
dever apenas o sustento da minha vida, mas também se, além
disso, ele ainda tiver criado a minha vida; se ele for a fonte da
minha vida, e a minha vida tem necessariamente um tal fun-
damento fora de si se ela não for a minha criação própria. Por
isso, a criação é uma representação muito difícil de desalojar
da consciência do povo. O ser por si próprio da natureza e
do homem é-lhe inconcebível, porque contradiz todos os fatos
palpáveis da vida prática.
A criação da Terra recebeu um golpe violento com a
geognosia,181 i. é, com a ciência que expôs a formação da Terra, o
devir da Terra como um processo, como autogeração. A genera-
tio aequivoca182 é a única refutação prática da teoria da criação.183
Ora, é decerto fácil dizer ao indivíduo isolado o que já Aris-
tóteles184 diz: foste gerado pelo teu pai e a tua mãe, portanto em
ti a cópula de dois seres humanos, portanto um ato genérico do
homem, produziu o homem. Portanto vês que, mesmo fisica-
mente, o homem deve a sua existência ao homem. Assim, tens
de manter diante dos olhos não apenas um lado, o progresso
infinito, segundo o qual continuas a perguntar: quem gerou
o meu pai, o seu avô etc. Tens também de reter o movimento
circular que é sensivelmente intuível naquele progresso, segundo
o qual o homem se repete a si próprio na geração, portanto o
homem permanece sempre sujeito.

181 Cf. F. Hegel, Enzyklopädie..., § 339; TW, vol. 9, p. 343-351. (N. Ed.)
182 Em latim no texto: geração espontânea. (N. Ed.)
183 Cf. F. Hegel, Enzyklopädie..., § 341; TW, vol. 9, p. 360-367. (N. Ed.)
184 Cf., provavelmente, Aristóteles, Metafisica, H, 4, 1044 a 34-35. Ver também F.
Hegel, Enzyklopädie..., §§ 369, 370; TW, vol. 9, p. 516-520. (N. Ed.)

357
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

Só que tu responderás: concedido a ti esse movimento cir-


cular, concede-me tu o progresso que me continua a mover até
que eu pergunte: quem gerou o primeiro homem e a natureza
em geral?
Ora, eu só posso responder-te: a tua pergunta é ela própria
um produto da abstração. Interroga-te sobre como chegaste
a essa pergunta; pergunta a ti mesmo se a tua pergunta não
ocorre a partir de um ponto de vista a que eu não posso res-
ponder, porque é um ponto de vista improcedente (verkehrter).
Pergunta-te se aquele progresso existe como tal para um pensar
racional. Se tu te interrogas sobre a criação da natureza e do
homem, abstrais do homem e da natureza. Tu põe-los como
não sendo e, contudo, queres que eu tos demonstre como sen-
do. Eu digo-te então: se desistires da tua abstração, também
desistes da tua pergunta, ou se te quiseres ater à tua abstração,
então sê consequente, e, quando pensando, pensas o homem
e a natureza como não sendo [XI], pensa-te a ti próprio como
não sendo, pois todavia tu és também natureza e homem. Não
penses, não me perguntes, pois logo que pensas ou perguntas a
tua abstração do ser da natureza e do homem não tem qualquer
sentido. Ou serás tu um egoísta tal que pões tudo como nada
e queres tu próprio ser?
Tu podes replicar-me: eu não quero pôr o nada da natureza
etc.; pergunto-te pelo seu ato de surgimento, tal como pergunto
ao anatomista pela formação dos ossos etc.
Mas, na medida em que, para o homem socialista, toda a
chamada história do mundo não é senão a geração do homem
pelo trabalho humano, senão o devir da natureza para o homem,
assim ele tem, portanto, a prova irrefutável, intuível, do seu
nascimento através de si próprio, do seu processo de surgimento.
Na medida em que a essencialidade do homem e da natureza
se tornou praticamente, sensivelmente intuível, na medida em

358
K a r l M a r x

que o homem [se tornou praticamente, sensivelmente intuível]


para o homem como existência da natureza e a natureza para
o homem como existência do homem, a pergunta por um ser
alienado, por um ser acima da natureza e do homem – uma
pergunta que encerra a confissão da inessencialidade da natureza
e do homem –, tornou-se praticamente impossível. O ateísmo,
como recusa (Leugnung) dessa inessencialidade, não tem mais
qualquer sentido, pois o ateísmo é uma negação do deus e põe
por essa negação a existência do homem; mas o socialismo como
socialismo não necessita mais de uma tal mediação; ele começa
pela consciência teórica e praticamente sensível do homem e da
natureza como [consciência] da essência. Ele é autoconsciência
positiva do homem, já não mediada pela superação da religião,
tal como a vida real é realidade positiva do homem já não me-
diada pela superação da propriedade privada, o comunismo. O
comunismo é a posição como negação da negação, por isso o
momento real, necessário para o próximo desenvolvimento his-
tórico, da emancipação e recuperação humanas. O comunismo
é a figura necessária e o princípio enérgico do futuro próximo,
mas o comunismo não é, como tal, o final (Ziel) do desenvol-
vimento humano – a figura da sociedade humana.

[Crítica da dialética e da filosofia de Hegel em geral]


6) Neste ponto é talvez o lugar para dar algumas indicações
tanto para o entendimento e legitimação da dialética hegeliana
em geral quanto, nomeadamente, da sua exposição na feno-
menologia e lógica,185 finalmente da relação com o movimento
crítico recente.
A ocupação com o conteúdo do mundo antigo, o desenvolvi-
mento da crítica alemã moderna embaraçado nesse material, era

185 Cf. nota 11, supra. (N. Ed.)

359
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

tão poderoso que teve lugar um comportamento completamente


desprovido de crítica para com o método do criticar e uma
completa falta de consciência acerca da questão aparentemente
formal mas realmente essencial: como nos portamos nós agora
para com a dialética hegeliana? A falta de consciência acerca da
relação da crítica moderna com a filosofia hegeliana em geral e,
nomeadamente, com a dialética era tão grande que críticos como
Strauβ e Bruno Bauer, o primeiro, completamente,186 o segundo,
nos seus “Synoptiker”187 (em que ele, em face de Strauβ, coloca
a “autoconsciência” do homem abstrato no lugar da substância
da “natureza abstrata”) e mesmo ainda em “entdeckte Christen-
thum” (Cristianismo desvendado), pelo menos potencialmente
ainda se encontram completamente presos no interior da lógica
hegeliana. Assim, em Cristianismo desvendado diz-se: “Como se
a autoconsciência – ao pôr o mundo, a diferença, e ao produzir-
-se a si própria no que produz, uma vez que supera (aufhebt)
novamente a diferença de si própria do produzido, uma vez
que só no produzir e no movimento ela própria é – como se
não tivesse nesse movimento o seu objetivo”188 etc., ou: “Eles

186 Cf. David Friedrich Strauβ, Das Leben Jesu, kritisch bearbeitet [A vida de Jesus, critica-
mente elaborada], Bd. 1-2, 1835-1836; Streitschriften zur Vertheidigung meiner Schrift
über das Leben Jesu und zur Charakteristik der gegenwärtigen Theologie [Polêmicas em
defesa do meu escrito acerca da vida de Jesus e da caracterização da Teologia presente],
H. 1-3, 1837; Charakteristiken und Kritiken. Eine Sammlung zerstreuter Aufsätze
aus den Gebieten der Theologie, Anthropologie und Aesthetik [Características e críticas.
Uma coletânea de ensaios dispersos nos domínios da Teologia, da Antropologia e da
Estética], 1839; Die christliche Glaubenslehre in ihrer geschichtlichen Entwicklung und
im Kampfe mit der modernen Wissenschaft [A dogmática cristã no seu desenvolvimento
histórico e em luta com a ciência moderna], Bd. 1-2, 1840-1841. (N. Ed.)
187 Cf. B. Bauer, Kritik der evangelischen Geschichte der Synoptiker [Crítica da história
evangélica dos sinóticos], Bd. 1, 1841, p. VI-XV. (N. Ed.)
188 Cf. B. Bauer, Das entdeckte Christenthum. Eine Erinnerung an das achtzehnte
Jahrhundert und ein Beitrag zur Krisis des neunzehnten [O cristianismo desvendado.
Uma reminiscência do século dezoito e um contributo para a crise do século dezenove],
1843, p. 113. (N. Ed.)

360
K a r l M a r x

(os materialistas franceses)189 ainda não puderam ver que o


movimento do universo só como movimento da autoconsciên­
cia deveio realmente para si e se fundiu na unidade consigo
próprio”,190 expressões que na linguagem nem uma vez sequer
mostram uma diferença relativamente à concepção hegeliana,
mas antes a repetem literalmente.
[XII] Quão pouco durante o ato da crítica (Bauer, os
sinóticos)191 houve consciência da relação com a dialética de
Hegel, quão pouco essa consciência também surgiu depois do
ato da crítica material, prova-o Bauer quando na sua “gute Sa-
che der Freiheit”192 recusa a pergunta indiscreta do sr. Gruppe,
“que se passa com a lógica”, pelo fato de a remeter para críticos
vindouros.
Mas também agora, depois de Feuerbach – tanto nas suas
“Thesen”193, nos “Anedoctis” como pormenorizadamente na
“Philosophie der Zukunft”194 – ter derrubado o embrião das
antigas dialética e filosofia; depois de, ao contrário, aquela crítica
que não soube realizar esse feito ter em compensação realizado

189 Acréscimo de Marx. (N. Ed.)


190 Cf. B. Bauer, Das entdeckte Christenthum..., p. 114-115. (N. Ed.)
191 Cf. B. Bauer, Kritik der evangelischen..., Bd. 3, 1841. (N. Ed.)
192 Cf. B. Bauer, Die gute Sache der Freiheit und meine eigene Angelegenheit [A boa
causa da liberdade e o meu próprio caso], 1842, p. 85 e 193-194. Nesse escrito,
Bauer polemiza quer com Otto Friedrich Gruppe (Bruno Bauer und die akademi-
sche Lehrfreiheit [Bruno Bauer e a liberdade acadêmica de ensino], 1842), quer com
Philipp Marheineke (Einleitung in die öffentlichen Vorlesungen über die Bedeutung
der Hegelschen Philosophie in der christlichen Theologie [Introdução às lições públicas
sobre o significado da filosofia de Hegel para a teologia cristã], 1842). A questão da
pergunta pela lógica aparece no decorrer do debate com Marheineke; todavia, num
outro texto (“Correspondenz aus der Provinz” [“Correspondência da Província”],
Allgemeine Literatur-Zeitung [Gazeta universal de literatura], 1844, H. VI, p. 38),
Bauer de algum modo a assimila ao “ponto de vista de Gruppe”. Marx regressa a
essa questão em Die heilige Familie...; MEW, vol. 2, p. 166. (N. Ed.)
193 Cf. nota 10, supra. (N. Ed.)
194 Cf. nota 10, supra. (N. Ed.)

361
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

o feito de se proclamar “crítica pura, decidida, absoluta, clara


para si própria”195; depois de, na sua soberba espiritualista, ela
ter reduzido todo o movimento histórico à relação do resto do
mundo – que face a ela cai na categoria da “massa”196 – com ela
própria e ter dissolvido todas as oposições dogmáticas na única
oposição dogmática da sua própria esperteza e da estupidez
do mundo, do Cristo crítico e da humanidade como “turba”;
depois de ela ter provado diariamente e a toda a hora a sua
excelência própria com a falta de espírito da massa; depois
de ter, finalmente, anunciado o Juízo Final crítico, na figura
de que se aproximava o dia em que a humanidade decadente
toda se apinharia ante ela, seria por ela separada em grupos, e
cada turba particular receberia o seu testimonium paupertatis197;
depois de ela ter feito imprimir a sua sublimidade acima das
sensações humanas, bem como acima do mundo, sobre o qual
em sublime solidão entronizada apenas de tempos a tempos faz
ressoar o riso dos deuses olímpicos nos seus lábios sarcásticos198 –
depois de todas estas condutas frívolas do idealismo que expira
sob a forma da crítica (o jovem-hegelianismo), ele também não
exprimiu uma vez sequer a suspeita de que fosse preciso agora
discutir criticamente com a sua mãe, a dialética de Hegel, nem
sequer soube dar alguma indicação acerca de uma relação crítica

195 Cf. B. Bauer, “Neueste Schriften über die Judenfrage” [“Escritos mais recentes
sobre a questão judaica”], Allgemeine Literatur-Zeitung, H. IV, p. 10-19; e “Cor-
respondenz...”, p. 38. (N. Ed.)
196 Para além dos artigos de Bauer, tenha-se em conta também Melchior Hirzel, “Cor-
respondenz. Aus Zürich” [“Correspondência. De Zurique”], Allgemeine Literatur-
-Zeitung, H. V, p. 12 e 15. Marx voltará à crítica dessa perspectiva designadamente
em Die heilige Familie...; MEW, vol. 2, p. 152-157, 222-223. (N. Ed.)
197 Em latim no texto: atestado de pobreza. (N. Ed.)
198 Cf. B. Bauer, “Correspondenz...”, p. 30-32, e também K. Marx, Die heilige Familie...;
MEW, vol. 2, p. 157-171. (N. Ed.)

362
K a r l M a r x

com a dialética de Feuerbach. Um comportamento completa-


mente acrítico (unkritischen) para consigo próprio.
Feuerbach é o único que tem uma relação crítica, séria, com
a dialética de Hegel e que fez verdadeiras descobertas nesse
domínio, é em geral o verdadeiro superador (Überwinder) da
velha filosofia.199 A grandeza da obra e a simplicidade sem alarde
com que F[euerbach] a dá ao mundo estão em um espantoso
contraste com a atitude inversa.
O grande feito de Feuerbach é: 1) a prova de que a filosofia
não é senão a religião trazida ao pensamento e conduzida de
modo pensante;200 portanto, é igualmente de condenar; uma
outra forma e modo de existência da alienação da essência
humana.
2) A fundação do materialismo verdadeiro e da ciência real,
na medida em que Feuerbach faz da relação social, a “do homem
com o homem”, princípio fundamental da teoria;201
3) na medida em que ele contrapõe à negação da negação,
que afirma ser o absolutamente positivo, o positivo que repousa
sobre si próprio e positivamente se funda sobre si próprio.202
Feuerbach explica a dialética hegeliana – (e funda por esse
fato o ponto de partida [Ausgang] no positivo, no sensivelmente
certo) – da seguinte maneira:
Hegel parte da alienação (logicamente: do infinito, abstrata-
mente universal), da substância, da abstração absoluta e fixa – i.
é, expresso de modo popular, ele parte da religião e da teologia.

199 Para além das obras de Feuerbach que têm vindo a ser referidas, tenha-se igualmente
em conta Zur Kritik der Hegelschen Philosophie; GW, vol. 9, p. 16-62. (N. Ed.)
200 Cf. L. Feuerbach, por exemplo, Vorläufige...; GW, vol. 9, p. 245-246; e Grundsätze...,
§ 5º; GW, vol. 9, p. 266. (N. Ed.)
201 Cf. L. Feuerbach, Grundsätze..., §§ 42 e 61; GW, vol. 9, respectivamente p. 323-324
e 338-339. (N. Ed.)
202 Cf. id., ibid., Grundsätze..., § 39; GW, vol. 9, p. 321-322. (N. Ed.)

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Segundo: ele suprime o infinito, põe o efetivo [das Wirkli-


che], o sensível, o real [Reale], o finito, o particular. (Filosofia,
superação da religião e da teologia.)
Terceiro. Ele suprime de novo o positivo; restabelece a abs-
tração, o infinito. Restabelecimento da religião e da teologia.
Feuerbach concebe portanto a negação da negação unica-
mente como contradição da filosofia consigo própria, como a
filosofia que afirma a teologia (transcendência etc.) depois de
a ter negado ela própria, portanto afirma-a em oposição a si
própria.203
A posição, ou autoafirmação e autoconfirmação, que reside
na negação da negação é tomada por uma posição ainda não
segura de si, por isso afetada pela sua oposição, duvidando de
si própria e com isso necessitada da prova, portanto não se
provando a si própria pela sua existência, como posição não
confessada, [XIII] e por isso está-lhe contraposta direta e não
mediadamente a posição sensivelmente-certa sobre si mesma
fundada.
Feuerbach apreende, então, a negação da negação, o con-
ceito concreto, como o pensar que a si próprio se sobrepuja no
pensar e como pensar querendo ser imediatamente intuição,
natureza, realidade.204
Mas Hegel, ao apreender a negação da negação – segundo a
relação positiva que nela reside, como o verdadeira e unicamente
positiva segundo a relação negativa que nela reside, como o ato
unicamente verdadeiro e ato de autoacionamento de todo o ser
–, ele apenas encontrou a expressão abstrata, lógica, especulati-
va para o movimento da história, a história ainda não real do

203 Cf. L. Feuerbach, Vorläufige...; GW, vol. 9, p. 246-247, e Grundsätze..., § 21; GW,
vol. 9, p. 297. (N. Ed.)
204 Cf. L. Feuerbach, 1..., §§ 29 e 30; GW, vol. 9, respectivamente p. 308-309 e p.
313-314. (N. Ed.)

364
K a r l M a r x

homem como um sujeito pressuposto, mas que apenas é ato de


geração, história do surgimento do homem. – Esclareceremos tan-
to a forma abstrata quanto a diferença que esse movimento tem
em Hegel em oposição à crítica moderna, ao mesmo processo
na Essência do cristianismo de Feuerbach, ou melhor, a figura
crítica desse movimento ainda acrítico (unkritishen) em Hegel.
Um olhar sobre o sistema de Hegel. Tem de começar-se pela
Phänomenologie de Hegel, o verdadeiro lugar de nascimento e
o segredo da filosofia de Hegel.
Phänomenologie.
A) A autoconsciência.
I.) Consciência. α) Certeza sensível ou o isto e o opinar (das
Meinen). β) a percepção ou a coisa com as suas qualidades e a ilu-
são. γ) Força e entendimento, fenômeno e mundo suprassensível.
II.) Autoconsciência. A verdade da certeza de si próprio. a)
Autonomia e inautonomia da autoconsciência, dominação e
servidão. b) Liberdade da autoconsciência. Estoicismo, ceticis-
mo, a consciência infeliz.
III.) Razão. Certeza e verdade da razão. a) Razão observante;
observação da natureza e da autoconsciência. b) Realização da
autoconsciência racional por si própria. O prazer e a necessi-
dade. A lei do coração e a loucura da presunção. A virtude e o
curso do mundo. c) A individualidade que é real em e para si.
O reino animal espiritual e a fraude ou a coisa mesma. A razão
legisladora. A razão que examina leis.
B) O espírito.
I.) O espírito verdadeiro; o costumeiro205. II.) O espírito
alienado de si, a cultura [Bildung]. III.) O espírito certo de si
mesmo, a moralidade.

205 Em alemão, die Sittlichkeit. Sitte é o costume, die Sittlichkeit está mais próximo aos
costumes da vida cotidiana e se distingue de Ethik e também de Moralität. Por isso

365
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

C) A religião. Religião natural, religião artística, religião


revelada.
D) O saber absoluto.
Assim como a Encyclopädie206 de Hegel começa com a lógi-
ca, com o pensamento especulativo puro, e termina com o saber
absoluto, o espírito autoconsciente, com [o espírito] filosófico
ou absoluto que se apreende a si próprio, i. é, [o espírito] abs-
trato sobre-humano, assim toda a Encyclopädie não é senão a
essência expandida do espírito filosófico, a sua auto-objetivação;
assim o espírito filosófico não é senão o espírito do mundo,
pensante no interior da sua autoalienação, i. é, [o espírito do
mundo] alienado que se apreende abstratamente. – A lógica
– o dinheiro do espírito,207 o valor de pensamento, o [valor] es-
peculativo, do homem e da natureza – a sua essência tornada
completamente indiferente face a toda a determinidade real,
e por isso essência irreal – [é] o pensar exteriorizado, portanto
que abstrai da natureza e do homem real, o pensar abstrato. – A
exterioridade deste pensar abstrato... a natureza, tal como ela é
para esse pensar abstrato. Ela lhe é exterior, a sua autoperda; e
ele apreende-a também exteriormente, como pensamento abs-
trato, mas como pensar abstrato exteriorizado. – Finalmente
o espírito, esse pensar regressando ao seu lugar de nascimento
próprio, o qual, como espírito antropológico, fenomenológico,
psicológico, ético, artístico, religioso, continua a não valer para
si até que finalmente se encontre e autoasserte como saber abso-
luto e, por isso, como espírito absoluto, i. é, abstrato, [até que]

preferimos traduzir die Sittlichkeit por costumeiro, para distinguir de Moralität a


seguir na frase. (N. do R.)
206 F. Hegel, Enzyklopädie... . Essa obra integra três partes: “A ciência da lógica”, “A
filosofia da natureza” e “Filosofia do espírito”. (N. Ed.)
207 Cf. K. Marx, Zur Judenfrage [Para a questão judaica], Mega², I/2, p. 166. (N. Ed.)

366
K a r l M a r x

alcance a sua existência consciente e que lhe corresponde. Pois


a sua existência real é a abstração...
Um duplo erro em Hegel.
1. aparece na fenomenologia, como lugar de nascimento
da filosofia de Hegel, do modo mais claro. Quando p. ex. ele
apreendeu a riqueza, o poder do Estado etc., como a essência
alienada da essência humana, isso ocorre apenas na sua forma
de pensamento.208 ... Eles são seres de pensamento – por isso
meramente uma alienação do pensar puro, i. é, abstratamente
filosófico. O movimento todo termina por isso com o saber
absoluto. De onde se alienaram esses objetos e a que se con-
frontaram com a usurpação (Anmaßung) da realidade – isso é
precisamente o pensar abstrato. O filósofo – portanto ele pró-
prio uma figura abstrata do homem alienado – erige-se como
o padrão do mundo alienado. Toda a história da exteriorização
(Entäußerungsgeschichte) e todo o retorno da exteriorização
(Zurücknahme der Entäußerung) não é, por isso, mais do que
a história da produção do pensar abstrato, do [pensar] absoluto
[XVII] (ver p. XIII),209 do pensar lógico, especulativo. A alie-
nação, que forma portanto o interesse propriamente dito dessa
exteriorização e da superação dessa exteriorização, é a oposição
de em si e para si, de consciência e autoconsciência, de objeto e
sujeito, i. é, a oposição do pensar abstrato e da realidade sensível
ou da sensibilidade real no interior do próprio pensamento.
Todas as outras oposições e movimentos dessas oposições são
apenas a aparência, o invólucro, a figura exotérica dessas oposi-
ções unicamente interessantes, que formam o sentido das outras
oposições profanas. O que vigora como essência posta e a ser
superada da alienação é não que a essência humana se objetive

208 Cf. F. Hegel, Phänomenologie...; TW, vol. 3, p. 359-390. (N. Ed.)


209 Paginação do manuscrito de Marx. (N. Ed.)

367
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

inumanamente, em oposição a si própria, mas, antes, que ela se


objetive em diferença de e em oposição ao pensar abstrato.
[XVIII] A apropriação das forças essenciais do homem
tornadas objetos e objetos alienados é, portanto, em primeiro
lugar, apenas uma apropriação que se processa na consciência,
no pensar puro, i. é, na abstração, a apropriação desses objetos
como pensamentos e movimentos de pensamento, pelo que já na
fenomenologia – apesar do seu aspecto inteiramente negativo e
crítico e apesar da crítica realmente nela contida, muitas vezes
antecipando-se ao desenvolvimento posterior210 –, já nela está
latente o positivismo acrítico e, do mesmo modo, o idealismo
acrítico da obra posterior de Hegel – essa dissolução filosófica
e restabelecimento da empiria existente – como germe, como
potência, como um segredo. Segundo. A exigência (Vindicirung)
do mundo objetivo para o homem – p. ex., o conhecimento de
que a consciência sensível não é nenhuma consciência abstra-
tamente sensível, mas uma consciência humanamente sensível,
que a religião, a riqueza etc. são apenas a realidade alienada da
objetivação humana, as forças essenciais humanas postas à obra
e, por isso, apenas o caminho para a verdadeira realidade humana
–, essa apropriação ou a compreensão desse processo aparece em
Hegel de tal modo que sensibilidade, religião, poder do Estado
etc. são seres espirituais – pois só o espírito é a verdadeira essência
do homem, e a verdadeira forma do espírito é o espírito pensan-
te, o espírito lógico, especulativo. A humanidade da natureza
e da natureza gerada pela história, dos produtos do homem,

210 A primeira edição da Phänomenologie des Geistes [Fenomenologia do Espírito]


apareceu em 1807. Os três livros da Wissenschaft der Logik [Ciência da lógica]
apareceram em 1812, 1813 e 1816. No ano de 1817 apareceu a Enzyklopädie der
philosophischen Wissenschaften [Enciclopédia de ciências filosóficas] e, em 1821, as
Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht und Staatswissenschaft im
Grundrisse [Linhas fundamentais da filosofia do direito ou direito natural e ciência do
Estado em compêndio]. (N. Ed.)

368
K a r l M a r x

aparece no fato de que são produtos do espírito abstrato e, nessa


medida, portanto, momentos espirituais, seres de pensamento. A
fenomenologia é por isso a crítica mistificadora, oculta e ainda
não clara para si própria; mas, na medida em que ela capta a
alienação do homem – ainda que o homem apareça apenas na
figura do espírito –, residem nela todos os elementos da crítica,
ocultos e frequentemente preparados e elaborados de um modo
que excede de longe o ponto de vista de Hegel. A “consciência
infeliz”, a “consciência honesta”, a luta da “consciência nobre
e da consciência vil211 etc. etc., essas seções isoladas encerram
os elementos críticos – embora ainda de uma forma alienada
– de esferas inteiras, como a religião, o Estado, a vida civil
(desbürgerlichen Lebens) etc. Portanto, assim como a essência, o
objeto [aparecem] como seres de pensamento, assim é o sujeito
sempre consciência ou autoconsciência, ou melhor, o objeto
aparece apenas como consciência abstrata, o homem apenas
como autoconsciência; as diferentes figuras da alienação que
surgiram são, por isso, apenas figuras diversas da consciência e
da autoconsciência. Assim como a consciência abstrata – como
aquela em que o objeto é apreendido – é em si meramente um
momento de diferenciação da autoconsciência, também aparece
como resultado do movimento a identidade da autoconsciência
com a consciência, o saber absoluto, o movimento do pensa-
mento abstrato, que já não procede para fora de si, mas dentro
de si próprio como resultado, i. é, a dialética do pensamento
puro é o resultado. (Ver continuação p. XXII.)212
[XXII] (Veja-se p. XVIII.)213 A grandeza da Phänomenologie
de Hegel e do seu resultado final – da dialética, da negativi-

211 Cf. F. Hegel, Phänomenologie...; TW, vol. 3, respectivamente p. 155-177, 305-311,


372-390. (N. Ed.)
212 Paginação do manuscrito de Marx. (N. Ed.)
213 Paginação do manuscrito de Marx. (N. Ed.)

369
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

dade como princípio motor e gerador – é, portanto, por um


lado, que Hegel apreende a autogeração do homem como um
processo, a objetivação (Vergegenständlichung) como desobje-
tivação (Entgegenständlichung), como exteriorização e como
superação dessa exteriorização; que ele, portanto, apreende a
essência do trabalho e concebe o homem objetivo, verdadeiro,
porque homem real, como resultado do seu próprio trabalho.214
O comportamento real, ativo, do homem para consigo como
ser genérico, ou o acionamento do seu ser genérico como um
ser genérico real, i. é, como essência humana, só é possível pelo
fato de ele realmente evidenciar (herausschafft) – todas as suas
forças genéricas – o que, por sua vez, só é possível pelo operar
conjunto dos homens, somente como resultado da história –, a
se comportar para com elas como objetos, o que por sua vez só
é possível, em primeiro lugar, na forma da alienação.
A unilateralidade e as limitações de Hegel, apresentá-las-
-emos pormenorizadamente quando do capítulo final da feno-
menolgia – “O saber absoluto”215 –, um capítulo que contém
tanto o espírito resumido da fenomenologia, a sua relação com
a dialética especulativa, como também a consciência de Hegel
acerca de ambos e da sua relação recíproca.
Provisoriamente, antecipemos ainda apenas isto: Hegel
mantém-se no ponto de vista dos modernos economistas nacio-
nais.216 Apreende o trabalho como a essência do homem, como a
essência que confirma a si própria; ele vê apenas o lado positivo
do trabalho, não o negativo. O trabalho é o devir para si do ho-
mem no interior da exteriorização ou como homem exteriorizado.

214 Ver, por exemplo, F. Hegel, Phänomenologie...; TW, vol. 3, p. 153-154, e Vorlesungen
über die Geschichte der Philosophie [Lições sobre a história da filosofia]; TW, vol. 8,
p. 21-22. (N. Ed.)
215 Cf. F. Hegel, Phänomenologie...; TW, vol. 3, p. 575-591. (N. Ed.)
216 Cf. F. Hegel, Grundlinien...; TW, vol. 7, p. 346-347. (N. Ed.)

370
K a r l M a r x

O trabalho, que Hegel unicamente conhece e reconhece, é o


trabalho abstratamente espiritual. Assim, o que forma em geral
a essência da filosofia, a exteriorização do homem que se sabe ou
a ciência exteriorizada que se pensa a si própria, isso apreende
Hegel como a sua essência e por isso pode, perante a filosofia
antecedente, resumir [em si] os seus momentos isolados e apre-
sentar a sua filosofia como a filosofia. O que os outros filósofos
fizeram – que eles apreendem momentos isolados da natureza
e da vida humana como momentos da autoconsciência e, com
efeito, da autoconsciência abstrata – isto Hegel sabe como fazer
da filosofia. Por isso a sua ciência é absoluta.
Passemos agora ao nosso objeto.
O saber absoluto. Último capítulo da fenomenologia.217
A questão principal é que o objeto da consciência não é mais
do que a autoconsciência, ou que o objeto é apenas a autoconsciên­
cia objetivada, a autoconsciência como objeto. (Pôr do homem
= autoconsciência.)
Trata-se, por isso, do triunfar do objeto da consciência. A
objetividade como tal passa por uma relação alienada do homem,
uma relação do homem que não corresponde à essência humana,
à autoconsciência. Portanto, a reapropriação da essência objetiva
do homem gerada como alienada, sob a determinação da alie-
nação, tem o significado não apenas de suprimir a alienação,
mas também a objetividade, i. é, portanto o homem passa por
um ser não objetivo, espiritualista.
Ora, Hegel descreve o movimento do triunfo sobre o objeto
da consciência como se segue:218
O objeto mostra-se não apenas (segundo Hegel, isto é a apre-
ensão unilateral daquele movimento – portanto a que apreen­de

217 Cf. no presente volume os Anexos I e II. (N. Ed.)


218 Relativamente a esse desenvolvimento, cf. no presente volume o Anexo II. (N. Ed.)

371
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

um único lado) como regressando ao si mesmo [Selbst]. O homem


torna-se = põe a si mesmo. O si mesmo é apenas, porém, o
homem apreendido abstratamente e gerado por abstração. O
homem é autista 219. O seu olho, o seu ouvido etc. são autistas;
cada uma das suas forças essenciais tem em si o atributo de
ser autista [selbstigkeit]. Mas por isso é totalmente falso dizer:
a autoconsciência tem olhos, ouvidos, forças essenciais. A auto-
consciência é, antes, uma qualidade da natureza humana, do
olho humano etc., não é a natureza humana uma qualidade da
[XXIV] autoconsciência.
O si mesmo abstraído e fixado para si é o homem como
egoísta abstrato, o egoísmo na sua pura abstração, elevado ao
pensar. (Mais tarde regressaremos a isto.)
A essência humana, o homem, vale para Hegel = auto-
consciência. Toda a alienação da essência humana nada é,
portanto, senão alienação da autoconsciência. A alienação
da autoconsciência não passa por ser expressão, por ser ex-
pressão da alienação real da essência humana refletindo-se
no saber e pensar. A alienação efetivamente real [wirkliche],
que aparece como real [real], antes não é segundo a sua mais
íntima essência ocultada – e apenas pela filosofia trazida à
luz – senão o fenômeno da alienação da essência humana
real, da autoconsciência. Por isso, a ciência que concebe isto
chama-se fenomenologia. Toda a reapropriação da essência
objetiva alienada aparece, portanto, como uma incorporação
na autoconsciência; o homem que se apodera da sua essên-
cia é apenas a autoconsciência que se apodera da essência

219 Em alemão, Selbstisch, literalmente, egoísta. Aqui no sentido de que o mundo


exterior não entra nesta relação, de que o pensamento abstrato põe uma abstração
do humano que é considerada como o homem objetivo, real. A alternativa autista,
aqui adotada, não consegue expressar com precisão o sentido que Marx confere,
nesta passagem, a Selbstisch e por isto esta nota. (N. do R.)

372
K a r l M a r x

objetiva. O regresso do objeto ao si mesmo é, portanto, a


reapropriação do objeto.
Omnilateralmente expresso, o triunfo do objeto da consciên­
cia é:
1) que o objeto como tal se apresenta à consciência como
[algo] que desaparece; 2) que é a exteriorização (Entäußerung)
da autoconsciência que põe a coisidade; 3) que essa exteriori-
zação (Entäußerung) tem significado não apenas negativo, mas
também positivo; 4) não o tem unicamente para nós ou em si,
mas também para ela própria. 5) Para ela, o negativo do objeto
ou o seu superar-se tem por esse fato um significado positivo, ou
esta sabe essa sua nadidade (Nichtigkeit) [do objeto] pelo fato de
se exteriorizar a si própria, pois nessa exteriorização põe-se a si
como objeto ou o objeto como ela própria, por causa da unidade
inseparável do ser para si. 6) Por outro lado, reside aqui simul-
taneamente esse outro momento: que ela igualmente também
suprimiu e retomou em si essa exteriorização e objetividade,
portanto, no seu ser-outro como tal ela está junto de si. 7) Este
é o movimento da consciência, e esta é, pois, a totalidade dos
seus momentos. 8) Ela tem igualmente de comportar-se para
com o objeto segundo a totalidade das suas determinações
e o ter apreendido segundo cada uma delas. Essa totalidade
das suas determinações fá-lo em si um ser espiritual, e para a
consciência isto vem a ser em verdade pelo apreender de cada
uma delas isolada como [determinação] do si mesmo ou pelo
comportamento, acima chamado espiritual, para com elas.220
Ad 1. Que o objeto como tal se apresente à consciência
como [algo] que desaparece, é o acima mencionado regresso do
objeto ao si mesmo.

220 Cf. F. Hegel, Phänomenologie...; TW, vol. 3, p. 575 e ss. (N. Ed.)

373
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

Ad 2. A exteriorização da autoconsciência põe a coisidade.


Porque o homem = autoconsciência, a sua essência objetiva
exteriorizada ou a coisidade – (o que para ele é objeto, e para
ele verdadeiramente só é objeto o que é essencialmente obje-
to, portanto o que é sua essência objetiva. Ora, como não é o
homem real, portanto também não a natureza – o homem é a
natureza humana –, como tal que é feito sujeito mas apenas a
abstração do homem, a autoconsciência, a coisidade só pode ser
a autoconsciência exteriorizada) = a autoconsciência exteriorizada
e a coisidade é posta por essa exteriorização. Que um ser vivo,
natural, dotado e equipado com forças essenciais objetivas, i.
é, materiais, tenha também, do mesmo modo, objetos naturais
reais da sua essência, bem como que a sua autoexteriorização
seja a posição de um mundo real objetivo, mas sob a forma da
exterioridade, portanto não apropriado, superior, à sua essên-
cia – é totalmente natural. Não há nada de inconcebível e de
enigmático nisto. Antes, o contrário é que seria enigmático. Mas
que uma autoconsciência, pela sua exteriorização, só possa pôr
a coisidade, i. é, propriamente apenas uma coisa abstrata, uma
coisa da abstração e nenhuma coisa real – é igualmente claro.
É além disso [XXVI] claro ainda que, por isso, a coisidade não
é inteiramente nada de autônomo, de essencial face à autocons-
ciência, mas uma mera criatura, um algo posto por ela, e esse
posto, em vez de se confirmar, é unicamente uma confirmação
do ato de pôr, que por um momento fixa a sua energia como
produto e lhe dá em aparência o papel – mas apenas por um
momento – de um ser autônomo, real.
Quando o homem real, corpóreo, de pé sobre a terra bem
redonda e firme, expirando e inspirando todas as forças da
natureza, põe, pela sua exteriorização, as suas forças essenciais
objetivas, reais, como objetos alienados, o pôr não é sujeito; é
a subjetividade de forças essenciais objetivas, cuja ação tem por

374
K a r l M a r x

isso de ser também uma ação objetiva. O ser objetivo opera


objetivamente, e não operaria objetivamente se o objetivo não
residisse na sua determinação essencial. Ele só cria, põe objetos,
porque é posto por objetos, porque é, à partida [von Haus aus],
natureza. Portanto, no ato do pôr, ele não cai da sua “atividade
pura” num criar do objeto, mas o seu produto objetivo apenas
confirma a sua atividade objetiva, a sua atividade como a ativi-
dade de um ser natural objetivo.
Vemos aqui como o naturalismo consumado ou humanis-
mo se diferencia tanto do idealismo quanto do materialismo e
é, simultaneamente, a verdade unificadora de ambos. Vemos
simultaneamente como apenas o naturalismo é capaz de con-
ceber o ato da história mundial.
O homem é imediatamente ser da natureza. Como ser da
natureza, e como ser vivo da natureza, ele é, em parte, um ser
da natureza ativo equipado com forças naturais, com forças vi-
tais: essas forças existem nele como disposições e capacidades,
como impulsos; em parte, como ser natural, corpóreo, sensível,
objetivo, ele é um ser que sofre, condicionado e limitado, tal
como o são o animal e a planta; i. é, os objetos dos seus impulsos
existem fora dele, como objetos independentes dele; mas esses
objetos são objetos da sua necessidade, objetos essenciais, indis-
pensáveis para a ação e confirmação das suas forças essenciais.
Que o homem é um ser objetivo sensível, real, vivo, de força
natural, corpóreo, significa que ele tem objetos sensíveis, reais por
objeto da sua essência, da sua exteriorização de vida ou que só
pode exteriorizar a sua vida em objetos sensíveis reais.221Ser ob-
jetivo, natural, sensível e do mesmo modo ter objeto, natureza,
sentido fora de si ou ser propriamente objeto, natureza, sentido
para um terceiro, é idêntico. A fome é uma necessidade natural;

221 Cf. L. Feuerbach, Grundsätze..., § 6º; GW, vol. 9, p. 269. (N. Ed.)

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M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

precisa, por isso, de uma natureza fora de si, de um objeto fora


de si, para se satisfazer, para se saciar. A fome é a necessidade
confessada do meu corpo de um objeto que lhe é exterior, in-
dispensável à sua integridade e exteriorização da sua essência.
O Sol é o objeto da planta, um objeto que lhe é indispensável,
que lhe confirma a vida, tal como a planta é objeto do Sol,
como exteriorização da força despertadora de vida do Sol, da
força essencial objetiva do Sol.222
Um ser que não tenha a sua natureza fora de si não é nenhum
ser natural, não toma parte na essência da natureza. Um ser que
não tenha nenhum objeto fora de si não é nenhum ser objetivo.
Um ser que não seja ele próprio objeto para um terceiro ser não
tem nenhuma essência para o seu objeto, i. é, não se comporta
objetivamente, o seu ser não é nenhum ser objetivo. [XXVII]
Um ser não objetivo é um não ser.
Ponha-se um ser que não seja propriamente objeto nem
tenha um objeto. Um tal ser seria, em primeiro lugar, o único
ser, não existiria nenhum ser fora dele, ele existiria solitário e
sozinho. Pois, desde que haja objetos fora de mim, desde que
eu não esteja só, sou um outro, uma outra realidade que não o
objeto fora de mim. Para este terceiro objeto eu sou, portanto,
uma outra realidade que não ele, i. é, seu objeto. Um ser que
não seja objeto de um outro ser supõe, portanto, que não existe
nenhum ser objetivo. Logo que eu tenha um objeto, esse objeto
tem-me por objeto. Mas um ser não objetivo é um ser não real,
não sensível, apenas pensado, i. é, apenas imaginado, um ser da
abstração. Ser sensível, i. é, ser real, é ser objeto do sentido, ser
objeto sensível, portanto ter objetos sensíveis fora de si, objetos
da sua sensibilidade. Ser sensível é ser que sofre.223

222 Cf. L. Feuerbach, Das Wesen...; GW, vol. 5, p. 84. (N. Ed.)
223 Cf. L. Feuerbach, Grundsätze..., § 34; GW, vol. 9, p. 318. (N. Ed.)

376
K a r l M a r x

O homem como um ser sensível objetivo é, portanto, um ser


que sofre e, porque sente o seu sofrimento, um ser apaixonado.
A paixão [Leidenschaft, Passion] é a força essencial do homem
tendendo energicamente para o seu objeto.224
O homem, porém, é não apenas ser da natureza, mas ser
da natureza humano; i. é, ser que é para si próprio, por isso ser
genérico, como tal ele tem que se confirmar e agir tanto no seu
ser quanto no seu saber. Portanto, nem os objetos humanos tal
como imediatamente se oferecem são objetos da natureza, nem
o sentido humano tal como imediatamente é, objetivamente é,
é sensibilidade humana, objetividade humana; nem a natureza
– objetivamente – nem a natureza subjetivamente está imedia-
tamente dada, de um modo adequado, ao ser humano.
E como tudo o que é natural tem de nascer, também o ho-
mem tem o seu ato de nascimento, a história, que é, contudo,
para ele um ato de nascimento sabido e por isso que se suprime
com consciência enquanto ato de nascimento. A história é a
verdadeira história natural do homem. (Voltar a isto.)
Terceiro, porque esse pôr da própria coisidade é apenas uma
aparência, um ato que contradiz a essência da atividade pura,
que tem de ser superada de novo, a coisidade [tem de ser] negada.
Ad 3, 4, 5, 6. 3.) Essa exteriorização da consciência tem
significado não apenas negativo, mas também positivo, e 4) esse
significado positivo não é apenas para nós ou em si, mas para ela,
para a própria consciência. 5) Para ela, o negativo do objeto ou
o superar-se a si próprio deste tem o significado positivo, ou sabe
essa nadidade (Nichtigkeit) do mesmo, pelo fato de se exteriorizar
ela própria, pois nesta exteriorização ela sabe-se como objeto
ou o objeto como si própria, por causa da inseparável unidade
do ser para si. 6) Por outro lado, reside aqui simultaneamente

224 Cf. L. Feuerbach, Vorläufige...; GW, vol. 9, p. 253-254. (N. Ed.)

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o outro momento de que ela igualmente também superou e


retomou em si essa exteriorização e objetividade, portanto, no
seu ser-outro como tal, ela está junto de si.
Já vimos: a apropriação do ser objetivo alienado ou a
superação da objetividade sob a determinação da alienação –
que tem de progredir da trivial alienação até a alienação real
hostil225 – tem para Hegel simultaneamente, ou antes, princi-
palmente, o significado de suprimir a objetividade, pois, para a
autoconsciência, o escandaloso [Anstöβige] e a alienação não é o
caráter determinado do objeto, mas o caráter objetivo. Por isso,
o objeto é um negativo, algo que se supera a si própria, uma
nadidade (Nichtigkeit). Essa nadidade tem para a consciência
um significado não só negativo, mas também positivo, pois
aquela nadidade do objeto é precisamente a autoconfirmação
da inobjetividade, da [XXVIII] abstração de si mesma. Para
a própria consciência, a nadidade do objeto tem por isso um
significado positivo: que ela sabe essa nadidade, o ser objetivo,
como sua autoexteriorização; que ela sabe que ela só é pela sua
autoexteriorização. ... A maneira como a consciência é e como
algo é para ela é o saber. O saber é o seu único ato. Algo devém,
portanto, para ela na medida em que sabe esse algo. Saber é o
seu único comportamento objetivo. – Ora, ela sabe a nadidade
do objeto, i. é, o não ser distinto do objeto relativamente a ela,

225 Passagem de difícil tradução. No alemão temos “die von der gleichgültigen Fremdheit
bis zurwirklichen feindseligen Entfremdung fortgehnmuß ”. Fremdheit tem o mesmo
radical de Entfremdung, que traduzimos homogeneamente por alienação (e seus
correlatos). Não há em português substantivo abstrato para alienação (alienidade,
por exemplo), o que torna impossível a tradução literal de “gleichgültigen Fremdheit”.
A expressão se refere ao caráter trivial, desimportante, quase não notado, que não
provoca uma reação do sujeito, de muitos dos processos de alienação que ocorrem
na vida cotidiana sem maiores consequências para a história do indivíduo ou da
sociedade. Destes processos alienantes “triviais” “deve-se” evoluir para a “alienação
real” que comparece como inimigo (feindseligen), como oposição hostil e que requer
uma ação do sujeito (seja ele o indivíduo ou o gênero humano). (N. do R.)

378
K a r l M a r x

o não ser do objeto para ela, pelo fato de que ela sabe o objeto
como sua autoexteriorização, i. é, se sabe – o saber como objeto
– pelo fato de o objeto ser apenas a aparência de um objeto, um
engano, mas pela sua essência não é nada a não ser o próprio
saber, que se contrapõe a si próprio e por isso tem contraposta
a si uma nadidade, um algo que não tem nenhuma objetividade
fora do saber; ou o saber sabe que, ao comportar-se para com
um objeto, apenas está fora de si, se exterioriza; que ele apenas
aparece a si próprio como objeto, ou que o que lhe aparece como
objeto é apenas ele próprio.
Por outro lado, diz Hegel, aqui reside simultaneamente esse
outro momento: que ela precisamente superou e retomou em si
igualmente essa exteriorização e objetividade, portanto, no seu
ser-outro como tal, ela está junto de si.
Temos reunidas nesta análise todas as ilusões da especu-
lação.
Em primeiro lugar: a consciência, a autoconsciência no seu
ser-outro como tal, ela está junto de si. Ela está, portanto, ou se
aqui abstrairmos da abstração hegeliana e no lugar da autocons-
ciência pusermos a autoconsciência do homem, ela está, no seu
ser-outro como tal, junto de si.
Isso, em primeiro lugar, implica que a consciência – o
saber como saber –, o pensar como pensar –, finge ser imedia-
tamente o outro de si, sensibilidade, realidade, vida, o pensar
sobrepujando-se no pensar. (Feuerbach.)226 Esse aspecto está
aqui contido na medida em que a consciência, como consciência
apenas, tem o seu escândalo não na objetividade alienada, mas
na objetividade como tal.
Em segundo lugar, implica que o homem autoconsciente,
na medida em que reconheceu e suprimiu o mundo espiritual

226 Cf. nota 204, supra. (N. Ed.)

379
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

– ou a existência espiritual universal do seu mundo – como


autoexteriorização, contudo de novo o confirma nessa figura
exteriorizada, e o dá por sua verdadeira existência, o restabelece,
finge estar, no seu ser-outro como tal, junto de si; portanto, depois
da superação, p. ex., da religião, depois do reconhecimento
da religião como um produto da autoexteriorização, contudo
acha-se confirmado na religião como religião. Aqui está a raiz do
falso positivismo de Hegel ou do seu criticismo apenas aparente;
o que Feuerbach designou como pôr, negar e restabelecer da
religião ou da teologia,227 o que, porém, há que se apreender de
um modo mais universal. Assim, a razão está junto de si na não
razão como não razão. O homem que reconheceu levar uma
vida exteriorizada no direito, na política etc. leva essa mesma
vida exteriorizada como a sua vida verdadeira humana. A au-
toasserção, a autoconfirmação em contradição consigo próprio,
tanto com o saber quanto com a essência do objeto, é, portanto,
o verdadeiro saber e vida.
Portanto, já não se pode falar de uma acomodação de Hegel
em face da religião, Estado etc., pois essa mentira é a mentira
do seu princípio.
[XXIX] Quando eu sei a religião como autoconsciência
humana exteriorizada, sei portanto nela como religião, não a mi-
nha autoconsciência, mas a minha autoconsciência exteriorizada
nela confirmada. O meu si mesmo, a minha autoconsciência
que pertence à sua essência sei-os, portanto, confirmados então
não na religião, mas antes na religião superada, aniquilada.
Por isso, em Hegel, a negação da negação não é a confir-
mação da verdadeira essência precisamente pela negação da
essência aparente, mas é a confirmação da essência aparente ou
da essência alienada de si na sua negação ou a negação dessa

227 Cf. L. Feuerbach, Grundsätze..., § 21; GW, vol. 9, p. 295-298. (N. Ed.)

380
K a r l M a r x

essência aparente enquanto essência objetiva, habitando fora do


homem e independente dele, e a sua transformação no sujeito.
Um papel peculiar desempenha, por isso, o superar [Au-
fheben], em que a negação e a conservação, a asserção, estão
ligadas.228
Assim, p. ex., na filosofia do direito de Hegel, o direito
privado superado = moral, a moral superada = família, a família
superada = sociedade burguesa, a sociedade burguesa superada
(bürgerlicher Gesellschaft, die aufgehobnebürgerliche Gesellschaft)
= Estado, o Estado suprimido = história mundial.229 Na realida-
de, direito privado, moral, família, sociedade burguesa, Estado
etc. permanecem existentes; apenas se tornaram momentos,
existências e modos de existência do homem, os quais não
valem isoladamente, se dissolvem e geram reciprocamente etc.
momentos do movimento.
Na sua existência real, essa sua essência móvel está oculta.
Só vem à luz, se revela, primeiro no pensar, na filosofia, e, por
isso, a minha verdadeira existência religiosa é a minha existência
filosófico-religiosa, a minha verdadeira existência política, a mi-
nha existência filosófico-jurídica, a minha verdadeira existência
natural, a minha existência filosófico-natural, a minha verdadeira
existência artística, a minha existência filosófico-artística, a mi-
nha verdadeira existência humana, minha existência filosófica.
Do mesmo modo, a verdadeira existência de religião, Estado,
natureza, arte = a filosofia da religião, da natureza, do Estado, da
arte. Se, porém, para mim só a filosofia da religião etc. é a verda-
deira existência da religião, eu também só sou verdadeiramente
religioso como filósofo da religião; renego assim a religiosidade
real e os homens realmente religiosos. Mas simultaneamente

228 Cf. F. Hegel, Wissenschaft...; TW, vol. 5, p. 113-114. (N. Ed.)


229 Cf. F. Hegel, Grundlinien..., § 33; TW, vol. 7, p. 87-88. (N. Ed.)

381
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

confirmo-os, em parte, no interior da minha própria existência


ou no interior da existência alienada, que lhes contraponho, pois
esta é apenas a expressão filosófica deles; em parte, na sua figura
original peculiar, pois para mim eles passam por o ser-outro
apenas aparente, por alegorias, figuras ocultas sob invólucros
sensíveis da sua verdadeira existência própria, id est 230 da minha
existência filosófica.
Do mesmo modo, é a qualidade superada = quantidade, a
quantidade superada = medida, a medida superada = essência, a
essência superada = fenômeno, o fenômeno superado = realidade,
a realidade superada = conceito, o conceito superado = objetivi-
dade, a objetividade superada = Ideia absoluta, a Ideia absoluta
superada = natureza, a natureza superada = espírito subjetivo,
o espírito subjetivo superado = espírito objetivo costumeiro231, o
espírito costumeiro superado = arte, a arte superada = religião,
a religião superada = saber absoluto.232
Por um lado, esse superar é um superar do ser pensado,
portanto a propriedade privada pensada supera-se no pensamen-
to da moral. E porque o pensar imagina ser imediatamente o
outro de si próprio, realidade sensível, portanto a sua ação vale
para ele também como ação real sensível, esse superar pensante,
que deixa o seu objeto permanecer na realidade, que crê tê-lo
realmente ultrapassado e, por outro lado, porque se tornou
para ele momento de pensamento, vale por isso para ele, na sua
realidade, como autoconfirmação de si mesmo, da autoconsciên­
cia, da abstração.
[XXX] Por um lado, a existência que Hegel supera na fi-
losofia não é, portanto, a religião, o Estado, a natureza reais,

230 Em latim no texto: isto é. (N. Ed.)


231 Em alemão Sittlichem objektivem Geist. Cf., supra, a nota 205. (N. do R.)
232 Cf. nota 206, supra. (N. Ed.)

382
K a r l M a r x

mas a própria religião já como um objeto do saber, a dogmáti-


ca; o mesmo para a jurisprudência, ciência política, ciência da
natureza. Por um lado, portanto, ele está em oposição tanto
à essência real quanto à ciência não filosófica imediata ou aos
conceitos não filosóficos dessa essência. Ele contradiz por isso
os seus conceitos correntes.
Por outro lado, o homem religioso etc. pode encontrar em
Hegel a sua última confirmação.
Há agora que apreender os momentos positivos da dialética
de Hegel – no interior da determinação da alienação.
a) O superar, como movimento objetivo, retomando de
volta em si a exteriorização. – É isto a inteligência, expressa
no interior da alienação, da apropriação da essência objetiva
pela superação [Aufhebung 233] da sua alienação, a inteligência
alienada da objetivação real do homem, da apropriação real da
sua essência objetiva pela aniquilação da determinação alie-
nada do mundo objetivo, pela sua superação na sua existência
alienada; assim como o ateísmo como superação de deus é o
devir do humanismo teórico, o comunismo como superação
da propriedade privada é a reivindicação da vida humana real
como sua propriedade, é o devir do humanismo prático; ou o
ateísmo é o humanismo mediado consigo pela superação da
religião, o comunismo é o humanismo mediado consigo pela
superação da propriedade privada. Só pela superação dessa
mediação, que é, porém, um pressuposto necessário, devém
o humanismo positivo, que positivamente parte de si próprio.
Mas ateísmo, comunismo não são nenhuma fuga, nenhuma
abstração, nenhum perder do mundo objetivo gerado pelo ho-
mem, das suas forças essenciais trazidas à luz para a objetividade,
233 No emprego marxista dessa categoria, o aspecto da negação é determinante, pelo
que, e dada a dificuldade de encontrar um rigoroso equivalente em português, a
traduzimos por “superação”. (N. do R.)

383
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

nenhuma pobreza regressando à simplicidade não natural, não


desenvolvida. Eles são antes, pela primeira vez, o devir real, a
realização realmente devinda para o homem da sua essência ou
da sua essência como uma essência real.
Portanto, Hegel, na medida em que apreende o sentido
positivo da negação referida a si própria – mesmo que de
novo de um modo alienado – apreende a autoalienação, [a]
exteriorização da essência, [a] desobjetivação e [a] desrea-
lização do homem como autoaquisição, exteriorização de
essência, objetivação, realização. Em resumo, ele apreende
– no interior da abstração – o trabalho como ato de autoge-
ração do homem, o comportar-se para consigo como para
com essência alienada e o acionar da sua essência como uma
essência alienada como a essência da consciência genérica e
da vida genérica que devêm.
b) Em Hegel – abstraindo de, ou antes, como consequência
do erro [Verkehrtheit] já descrito – esse ato aparece, porém, em
primeiro lugar, como um ato apenas formal, porque vale como
um ato abstrato, pois o próprio ser humano apenas vale como
ser pensante abstrato, como autoconsciência; e em segundo lu-
gar, porque a apreensão é formal e abstrata, assim a superação
da exteriorização torna-se uma confirmação da exteriorização;
ou, para Hegel, aquele movimento do autogerar-se, do auto-
-objetivar-se como autoexteriorização e autoalienação, é a ab-
soluta e por isso a última exteriorização humana de vida, que
se tem a si própria por finalidade e em paz consigo, chegada à
sua essência. Esse movimento na sua [XXXI] forma abstrata
como dialética passa, portanto, por ser a vida verdadeiramente
humana e, porque é contudo uma abstração, uma alienação da
vida humana, passa por ser processo divino, mas como o processo
divino do homem – um processo que percorre a sua própria
essência, abstrata, pura, absoluta, dele distinta.

384
K a r l M a r x

Terceiro: Esse processo tem de ter um portador, um sujeito;


mas o sujeito só devém como resultado; esse resultado, o sujeito
que se sabe como autoconsciência absoluta, é por isso o deus,
Espírito absoluto, a Ideia que se sabe e aciona. O homem real
e a natureza real tornam-se meros predicados, símbolos desse
homem irreal oculto e dessa natureza irreal. Por isso, sujeito
e predicado têm um para o outro a relação de uma absoluta
inversão [Verkehrung], sujeito-objeto místico ou subjetividade que
predomina sobre o objeto, o sujeito absoluto como um processo
– como sujeito exteriorizando-se e regressando a si da exteriori-
zação, mas simultaneamente recebendo-o de volta em si – e o
sujeito como esse processo; o puro círculo incansável em si.234
Em primeiro lugar. Apreensão formal e abstrata da autoge-
ração ou do ato de auto-objetivação do homem.
O objeto alienado, a realidade essencial alienada do homem
não é – visto que Hegel põe o homem = autoconsciência – senão
consciência, apenas o pensamento da alienação, a sua expressão
abstrata e por isso desprovida de conteúdo e irreal, a negação.
A superação da exteriorização não é senão igualmente uma
superação abstrata, desprovida de conteúdo, daquela abstra-
ção desprovida de conteúdo, a negação da negação. A atividade
concreta, sensível, viva, plena de conteúdo, da auto-objetivação
torna-se por isso, na sua mera abstração, a negatividade absoluta,
uma abstração que de novo é fixada como tal e é pensada como
uma atividade autônoma, como a atividade pura e simples-
mente. Porque essa chamada negatividade não é senão a forma
abstrata, desprovida de conteúdo, daquele ato vivo, real, o seu
conteúdo pode ser meramente um conteúdo formal, gerado
pela abstração de todo o conteúdo. São, por isso, as fórmulas

234 Cf., por exemplo, L. Feuerbach, Vorläufige...; GW, vol. 9, p. 244 e 258; e Grund-
sätze..., § 49; GW, vol. 9, p. 330-332. (N. Ed.)

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de abstração universais, abstratas, que pertencem a qualquer


conteúdo, por isso tanto indiferentes a todo o conteúdo como
válidas para qualquer conteúdo, as formas de pensamento, as
categorias lógicas, desprendidas do espírito real e da natureza
real. (Mais abaixo desenvolveremos o conteúdo lógico da nega-
tividade absoluta.)
O positivo que Hegel aqui conseguiu – na sua lógica especu-
lativa – é que os conceitos determinados, as formas de pensamento
universais fixas, na sua autonomia face à natureza e ao espírito,
são um resultado necessário da alienação universal da essência
humana, portanto também do pensar humano, e que Hegel
as expôs e reuniu, por isso, como momentos do processo de
abstração. P. ex., o ser superado é essência, a essência superada,
conceito, o conceito superado. ... Ideia absoluta.235 Mas o que é
então a Ideia absoluta? Ela volta a superar-se se não quer voltar
a percorrer desde o início todo o ato de abstração e contentar-se
assim em ser uma totalidade de abstrações ou a abstração que
a si se apreende. Mas a abstração que se apreende como abstra-
ção sabe-se como nada; ela tem de renunciar a si, à abstração,
e chega assim a um ser que é precisamente o contrário dela, a
natureza. Toda a lógica é, portanto, a prova de que o pensar
abstrato por si nada é, de que a Ideia absoluta por si nada é,
de que só a natureza é algo. [XXXII] A Ideia absoluta, a Ideia
abstrata, a qual “considerada segundo a sua unidade consigo é
intuir” (Enzyklopädie de Hegel, 3ª edição, p. 222),236 a qual “na
verdade absoluta de si própria se decide livremente a libertar de
si como natureza o momento da sua particularidade ou do pri-
meiro determinar e ser outro, a Ideia imediata como seu reflexo”

235 Marx alude aqui ao ritmo que estrutura a Ciência da lógica de Hegel. Para além
dessa obra, tenha-se igualmente em conta a I Parte da Enciclopédia. (N. Ed.)
236 Cf. F. Hegel, Enzyklopädie...,§ 244; TW, vol. 8, p. 393. (N. Ed.)

386
K a r l M a r x

(l. c.), toda essa Ideia comportando-se tão esquisita (sonderbar)


e barrocamente, que causou aos hegelianos monstruosas dores
de cabeça, não é outra coisa senão a abstração, i. é, o pensador
abstrato, a qual, instruída pela experiência e esclarecida acerca
da sua verdade, entre muitas outras condições – falsas e mesmo
ainda abstratas – se decide a renunciar a si e a pôr o seu ser-
-outro, o particular, o determinado, no lugar do seu estar junto
de-si\ser nada, da sua universalidade e da sua indeterminidade;
[se decide livremente a libertar de si] a natureza, que escondera
em si apenas como abstração, como coisa de pensamento, i. é,
a abandonar a abstração e a de uma vez encarar a natureza por
ela liberta. A Ideia abstrata, que se torna imediatamente intuir,
não é outra coisa senão o pensar abstrato, que renuncia a si e
decide-se intuição. Essa transição toda da lógica para a filosofia
da natureza não é senão a transição – para o pensador abstrato
tão difícil de conseguir e, por isso, tão aventurosamente descrita
por ele – do abstrair para o intuir. O sentimento místico, que
impele o filósofo do pensar abstrato para o intuir, é o tédio, a
ânsia por um conteúdo.
(O homem autoalienado é também o pensador alienado da
sua essência, i. é, da essência natural e humana. Os seus pensa-
mentos são, por isso, espíritos fixos morando fora da natureza
e do homem. Hegel encerrou conjuntamente na sua lógica
todos esses espíritos fixos, cada um deles apreendido primeiro
como negação, i. é, como exteriorização do pensar humano,
depois como negação da negação, i. é, como superação dessa
exteriorização, como exteriorização real do pensar humano; mas
– enquanto ele próprio ainda está aprisionado na alienação –
essa negação da negação é em parte o restabelecer dos espíritos
fixos na sua alienação; em parte, o paralisar no último ato, no
referir-se a si na exteriorização como a verdadeira existência
desses espíritos fixos {(i. é – Hegel põe o ato circulando sobre si

387
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

da abstração no lugar daquelas abstrações fixas; por isso, ele tem


o mérito de ter demonstrado primeiro os lugares de nascimento
de todos esses conceitos impróprios – pertencentes segundo a
sua data originária a filósofos singulares –, de os ter conjunta-
mente apreendido e de ter criado como objeto da crítica, em
vez de uma abstração determinada, a abstração exaurida no
seu circuito todo) (veremos mais tarde por que Hegel separa o
pensar do sujeito; mas por ora já é claro que, se o homem não é
humano, também a exteriorização da sua essência não o pode
ser, portanto também o pensar não podia ser apreendido como
exteriorização de essência do homem como um sujeito humano
e natural, com olhos, ouvidos etc., vivendo na sociedade, no
mundo e na natureza)}; em parte, na medida em que essa abs-
tração se apreende e sente acerca de si própria um tédio infinito,
em Hegel o abandono do pensar abstrato que se move apenas
no pensar – que não tem olhos, nem dentes, nem ouvidos, nem
nada237 – aparece como resolução de reconhecer a natureza como
essência e de se transferir para a intuição.)
[XXXIII] Mas também a natureza, tomada abstratamente,
para si, fixada na separação do homem, é para o homem nada. É
evidente que o pensador abstrato, que se decidiu pela intuição, a
intui abstratamente. Tal como a natureza se encontrava incluída
pelo pensador em si mesmo na sua figura enigmática e oculta,
como Ideia absoluta, como coisa de pensamento, assim ele na
verdade, na medida em que a libertou de si, apenas libertou de
si essa natureza abstrata, apenas a coisa de pensamento da natu-
reza – mas agora com o significado de que ela é o ser-outro do
pensamento, de que ela é a natureza real intuída, diferente do
pensar abstrato. Ou, para falar uma linguagem humana, na sua
237 A expressão “Sem dentes, sem olhos, sem gosto, sem nada” ocorre no final da famosa
fala de Jacques em que o mundo é comparado a um palco e os homens e mulheres, a
meros atores. Cf. W. Shakespeare, As you like it [Como lhe aprouver], II, VII. (N. Ed.)

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K a r l M a r x

intuição da natureza, o pensador abstrato experimenta que os


seres, que ele na dialética divina julgava criar a partir do nada,
da abstração pura, como produtos puros do trabalho do pensar
que se tece sobre si e nunca olha para fora para a realidade, nada
mais são que abstrações de determinações da natureza. Portanto,
toda a natureza apenas lhe repete numa forma sensível, exterior,
as abstrações lógicas. Ele analisa-a de novo nessas abstrações.
Logo, a sua intuição da natureza é apenas o ato de confirmação
da sua abstração da intuição da natureza, o curso genético da
sua abstração, repetido por ele com consciência. Assim, p. ex., o
tempo = negatividade que se refere a si (p. 238 l. c.).238 Ao devir
superado como existência corresponde – de forma natural – o
movimento superado como matéria. A luz é a forma natural da
reflexão em si. O corpo como Lua e cometa é a forma natural
da oposição, que é, segundo a lógica, por um lado, o positivo
repousando sobre si próprio, por outro, o negativo repousando
sobre si próprio. A Terra é a forma natural do fundamento lógico,
como unidade negativa da oposição etc.
A natureza como natureza, i. é, na medida em que ainda se
diferencia sensivelmente daquele sentido secreto, oculto nela, a
natureza, separada, diferenciada dessas abstrações é nada, um
nada asseverando-se como nada, é desprovida de sentido ou tem
apenas o sentido de uma exterioridade que tem de ser superada.
“No ponto de vista finito-teleológico encontra-se o pressu-
posto correto de que a natureza não contém em si própria a
finalidade absoluta.” p. 225.239 A sua finalidade é a confirmação
da abstração. “A natureza mostrou-se como a Ideia na forma
do ser-outro. Uma vez que a Ideia é assim como o negativo
de si própria ou exterior a si, a natureza não é exterior apenas

238 Cf. F. Hegel, Enzyklopädie..., § 257; TW, vol. 9, p. 47-48. (N. Ed.)
239 Cf. id., ibid., § 245; TW, vol. 9, p. 13. (N. Ed.)

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relativamente face a essa Ideia, mas a exterioridade constitui a


determinação na qual é como natureza.” p. 227.240
A exterioridade não é de entender aqui como a sensibilidade
exteriorizando-se e aberta à luz, ao homem sensível. A exterio-
ridade é tomada aqui no sentido da exteriorização, de um erro,
de um defeito, que não deve ser. Pois o verdadeiro continua
a ser a Ideia. A natureza é apenas a forma do seu ser-outro. E,
uma vez que o pensar abstrato é a essência, aquilo que lhe é
exterior é, pela sua essência, algo de apenas exterior. O pensa-
dor abstrato reconhece ao mesmo tempo que a sensibilidade é
a essência da natureza, a exterioridade em oposição ao pensar
tecendo-se sobre si. Mas, simultaneamente, ele exprime essa
oposição de tal modo que essa exterioridade da natureza, a sua
oposição ao pensar, é defeito seu, que ela, na medida em que se
diferencia da abstração, é uma essência defeituosa. [XXXIV]
Uma essência defeituosa não apenas para mim, defeituosa aos
meus olhos, mas uma essência defeituosa em si mesmo tem
algo fora de si que lhe falta. I. é, seu ser é algo diferente dele
próprio. Por isso, para o pensador abstrato, a natureza tem de
se superar, porque foi já posta por ele como um ser superado
em potência.
O espírito tem para nós a natureza como seu pressuposto, sendo
dela verdade e, assim, o seu primeiro absoluto. Nessa verdade a
natureza desapareceu e o espírito mostrou-se como a Ideia chegada
ao seu ser para si, cujo objeto tanto quanto o sujeito é o conceito.
Essa identidade é negatividade absoluta, porque na natureza o
conceito tem a sua perfeita objetividade exterior, mas superou
essa sua exteriorização e nela se tornou idêntico consigo mesmo.
Ele é essa identidade, por isso, apenas como regresso a partir da
natureza, p. 392.241

240 Cf. id., ibid., § 247; TW, vol. 9, p. 24. (N. Ed.)
241 Cf. F. Hegel, Enzyklopädie..., § 381; TW, vol. 10, p. 17. (N. Ed.)

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O revelar – o qual como Ideia abstrata é transição imediata,


devir da natureza – é enquanto revelar do espírito, que é livre,
pôr da natureza como mundo seu; um pôr que, como reflexão, é
simultaneamente pressupor do mundo como natureza autônoma.
O revelar no conceito é criar dela como ser seu, no qual ele se dá
a afirmação e verdade da sua liberdade.
O absoluto é o espírito; isto é a definição suprema do absoluto.242

[Propriedade privada e necessidades]


[XIV] 7) Vimos que significado tem, sob o pressuposto
do socialismo, a riqueza das necessidades humanas e, por-
tanto, tanto um modo novo da produção como também um
objeto novo da produção. Nova confirmação da força humana
essencial e novo enriquecimento da essência humana. No
interior da propriedade privada, o significado inverso. Cada
homem especula sobre como criar no outro uma necessida-
de nova para o forçar a um novo sacrifício, para o deslocar
para uma nova dependência e induzi-lo a um novo modo de
fruição e, por isso, de ruína econômica. Cada um procura
criar uma força essencial alienada sobre o outro para aí en-
contrar a satisfação da sua própria necessidade egoísta. Com
a massa dos objetos cresce, por isso, o domínio do ser alie-
nado ao qual o homem está subjugado, e cada novo produto
é uma nova potência do engano mútuo e do mútuo saque.
O homem torna-se tanto mais pobre como homem, precisa
tanto mais do dinheiro para se apoderar do ser alienado, e o
poder do seu dinheiro cai justamente na proporção inversa
da massa da produção, i. é, a sua penúria cresce à medida
que aumenta o poder do dinheiro. – A necessidade do di-
nheiro é, por isso, a verdadeira necessidade produzida pela
economia nacional e a única necessidade que ela produz. – A
242 Cf. id., ibid., § 384; TW, vol. 10, p. 29. (N. Ed.)

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quantidade do dinheiro torna-se cada vez mais a sua única


qualidade [Eigenschaft] com poder; assim como reduz todo
o ser à sua abstração, reduz-se no seu próprio movimento a
ser quantitativo. A desmedida e o descomedimento tornam-se
a sua verdadeira medida.
Subjetivamente mesmo, isto manifesta-se em que, em par-
te, a extensão dos produtos e das necessidades o torna escravo
inventivo e sempre calculista de apetites inumanos, refinados,
inaturais e imaginários – a propriedade privada não sabe tornar
a necessidade rude numa necessidade humana; o seu idealismo é
a imaginação, o arbítrio, o capricho, e não há eunuco que lison-
jeie mais infamemente o seu déspota e não procure estimular
por nenhum meio mais infame a sua embotada capacidade de
prazer para conseguir um favor do que o eunuco da indústria,
o produtor, para conseguir cêntimos de prata, para fazer voar
dos bolsos do próximo cristãmente amado os pássaros de ouro –
(cada produto é um engodo com que se quer atrair a si a essência
do outro, o seu dinheiro; cada necessidade real ou possível é uma
fraqueza que trará a mosca à armadilha – exploração universal
da essência humana comunitária, tal como cada imperfeição do
homem é um laço com o céu, um lado pelo qual o seu coração
é acessível ao padre; cada carência (Not) é uma oportunidade
de se dirigir ao próximo sob a mais amável das aparências e
dizer-lhe:243 caro amigo, eu te dou aquilo de que careces, mas
tu conheces a conditio sine qua non;244 sabes com qual tinta terás
que te prescrever a mim, eu te engano ao prover-te um prazer)
–, submete-se às ideias mais abjetas daquele, faz de alcoviteiro
entre ele e a sua necessidade, suscita nele apetites doentios,

243 Cf. Johann Wolfgang von Goethe, Faust, I, Auerbachs Keller. (N. Ed.)
244 Em latim no texto: condição indispensável. (N. Ed.)

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espreita nele toda a fraqueza, para então exigir o penhor dessa


obra de caridade.
Em parte, essa alienação mostra-se na medida em que
produz, por um lado, o refinamento das necessidades e dos
seus meios, por outro lado, o asselvajamento bestial (viehis-
che Verwildrung), a completa simplicidade abstrata rude da
necessidade; ou melhor, apenas se volta a engendrar no seu
significado contrário. Mesmo a necessidade de ar livre deixa de
ser para o trabalhador uma necessidade, o homem regressa à
caverna, que, contudo, está agora infestada pelo mefístico háli-
to pestilento da civilização, e que ele já só habita precariamente,
como um poder alienado que diariamente se lhe subtrai, de
que ele diariamente pode ser expulso se [XV] não pagar. Tem
de pagar por essa casa mortuária. A casa com luz – que, em
Ésquilo,245 Prometeu designa como uma das maiores dádivas
pelas quais ele fez do selvagem homem – deixa de existir para
o trabalhador. Luz, ar etc., a limpeza animal mais simples
deixam de ser uma necessidade para o homem. A sujeira, esse
atolamento, apodrecimento do homem, o cano de esgoto (há
que entender isto literalmente) da civilização torna-se para ele
um elemento de vida. O completo desleixo inatural, a natu-
reza apodrecida tornam-se o seu elemento de vida. Nenhum
dos seus sentidos existe mais, não só no seu modo humano,
mas sequer num modo inumano, por isso mesmo nem sequer
animal. Os modos (e instrumentos) mais rudes do trabalho hu-
mano regressam: assim o moinho de tambor do escravo romano
tornou-se modo de produção, modo de existência de muitos
trabalhadores ingleses. O homem deixa de ter não só quaisquer
necessidades humanas, mas mesmo necessidades animais. O
irlandês já só conhece a necessidade do comer e efetivamente

245 Cf. Ésquilo, Prometeu agrilhoado, V, p. 450-453. (N. Ed)

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já só do comer batatas e efetivamente só da batata Lumper, a


espécie pior de batatas.246 Mas a Inglaterra e a França já têm,
em cada cidade industrial, uma pequena Irlanda. O selvagem,
o animal ainda tem a necessidade da caça, do movimento etc.,
da socialidade (Geselligkeit). A simplificação da máquina, do
trabalho, é utilizada para fazer do homem ainda em devir, do
homem totalmente impreparado – a criança –, trabalhador,
assim como o trabalhador se tornou uma criança deixada ao
desleixo. A máquina acomoda-se à fraqueza do homem para
tornar o homem fraco máquina.
Como o aumento das necessidades e dos seus meios gera a
falta de necessidades e a falta de meios, prova-o o economista
nacional (e o capitalista, falamos em geral sempre dos homens
de negócios empíricos quando nos dirigimos aos economistas
nacionais – seu testemunho científico e existência) 1) na me-
dida em que ele reduz a necessidade do trabalhador ao mais
necessário e lastimável sustento da vida física e a sua atividade
ao movimento mecânico mais abstrato, portanto ele diz: o ho-
mem não tem nenhuma outra necessidade, nem de atividade,
nem de fruição; pois ele declara também essa vida como vida
e existência humanas; na medida em que 2) ele calcula a vida
(existência) mais indigente possível como padrão e efetivamente
como padrão universal: universal, porque válido para a massa
dos homens; ele faz do trabalhador um ser insensível e sem
necessidades, como faz da sua atividade uma pura abstração
de toda a atividade; cada luxo do trabalhador aparece-lhe por
isso como condenável, e tudo o que vai além da mais abstrata
de todas as necessidades – seja como fruição passiva ou como
exteriorização de atividade – aparece-lhe como luxo. A economia

246 Relativamente a essa espécie de batata e ao seu papel na alimentação dos trabalha-
dores, cf. E. Buret, De la misère..., p. 110-111. (N. Ed)

394
K a r l M a r x

nacional, essa ciência da riqueza, é por isso, simultaneamente,


ciência do renunciar, do passar fome, da poupança, e chega real-
mente a poupar ao homem mesmo a necessidade de um ar puro
e do movimento físico. Essa ciência da indústria maravilhosa é,
simultaneamente, a ciência da ascese, e o seu verdadeiro ideal
é o avarento ascético, mas usurário, e o escravo ascético, mas
produtor. O seu ideal moral é o trabalhador que deposita na
caixa econômica uma parte do seu salaire247, e encontrou mesmo
para essa sua predileção uma arte servil: levou-se o sentimental248
para o teatro. Por isso, ela é – apesar do seu aspecto mundano
e voluptuoso – uma ciência realmente moral; a mais moral de
todas as ciências. A autorrenúncia, a renúncia à vida, a todas
as necessidades humanas, é a sua tese principal. Quanto menos
comeres, beberes, comprares livros, fores ao teatro, ao baile, ao
restaurante, pensares, amares, teorizares, cantares, pintares,
esgrimires etc., tanto [mais] poupas, tanto maior se tornará o
teu tesouro, que nem as traças nem o roubo corroem,249 o teu
capital. Quanto menos tu fores, quanto menos exteriorizares a
tua vida, tanto mais tens, tanto é a tua vida exteriorizada, tanto
mais armazenas da tua essência alienada. Tudo [XVI] o que o
economista nacional te toma de vida e de humanidade, tudo isso
ele te restitui em dinheiro e riqueza. E tudo aquilo que tu não
podes, pode o teu dinheiro: ele pode comer, beber, ir ao baile,
ao teatro; sabe de arte, de erudição, de raridades históricas, de
poder político; pode viajar; pode apropriar-se disso tudo para ti;
pode comprar tudo isso; ele é a verdadeira potência [Vermögen].
Mas ele, que é tudo isso, não pode [mögen] senão criar-se a si
próprio, comprar-se a si próprio, porque tudo o mais é já seu

247 Em francês no texto: salário. (N. Ed.)


248 Em francês no texto: sentimental, isto é, sentimentalismo. (N. Ed.)
249 Cf. Mateus, Evangelho, VI, p. 19-20. (N. Ed.)

395
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

servo, e, se eu tiver o senhor, tenho o servo e não preciso do seu


servo. Todas as paixões e toda a atividade têm, portanto, de se
afundar na avareza. Ao trabalhador só é lícito ter o tanto para
que queira viver, e só é lícito querer viver para ter.
Sem dúvida que se ergue agora no terreno da economia na-
cional uma controvérsia. Um dos lados (Lauderdale, Malthus
etc.) recomenda o luxo e amaldiçoa a poupança; o outro (Say,
Ricardo etc.) recomenda a poupança e amaldiçoa o luxo. Mas
aquele admite que quer o luxo para produzir o trabalho, i. é,
a absoluta poupança; o outro lado admite que recomenda a
poupança para produzir a riqueza, i. é, o luxo. O primeiro lado
tem a ilusão romântica de que não somente a avareza deveria
determinar o consumo do rico, e contradiz as suas próprias
leis quando faz passar o esbanjamento imediatamente por um
meio do enriquecimento; e, pelo outro lado, é-lhe provado
muito séria e circunstanciadamente que, pelo esbanjamento, eu
restrinjo e não aumento os meus haveres; o outro lado comete
a hipocrisia de não admitir que precisamente o capricho e a
veneta determinam a produção; ele esquece as “necessidades
refinadas”, esquece que sem consumo nada seria produzido; ele
esquece que a produção só tem de se tornar mais omnilateral
e luxuosa pela concorrência; esquece que o uso lhe determina
o valor das coisas, e que a moda determina o uso; ele deseja
ver produzido só o “útil”, mas esquece que a produção de
demasiado útil produz população demasiado inútil. Ambos os
lados esquecem que esbanjamento e poupança, luxo e privação,
riqueza e pobreza são =.
E tu tens de poupar não apenas os teus sentidos imediatos,
como comer etc., tens também de poupar na participação em
interesses universais, na compaixão, na confiança etc., em tudo
isso se quiseres ser econômico, se não te quiseres arruinar com
ilusões.

396
K a r l M a r x

Tens que tornar vendável, i. é, útil, tudo o que é teu. Quando


pergunto ao economista nacional: obedeço às leis econômicas
quando tiro dinheiro do abandono, do pôr à venda do meu corpo
para volúpia alheia (os trabalhadores fabris na França chamam
à prostituição das suas mulheres e filhas a hora de trabalho x,
o que é literalmente verdadeiro), ou não ajo nacional-economi-
camente quando eu vendo o meu amigo aos marroquinos (e a
venda imediata de homens como comércio dos conscritos etc.
tem lugar em todos os países civilizados), o economista nacional
responde-me assim: não ages contra as minhas leis; mas olha o
que diz a comadre moral e a comadre religião; a minha moral e
religião nacional-econômica não tem nada a censurar-te, mas –
mas em quem devo então acreditar, na economia nacional ou na
moral? – A moral da economia nacional é o proveito, o trabalho
e a poupança, a sobriedade – mas a economia nacional promete
satisfazer-me as minhas necessidades. – A economia nacional da
moral é a riqueza em boa consciência, em virtude etc., mas como
posso ser virtuoso se nada sou, como posso ter uma boa consciên­
cia [Gewissen] se nada sei [wissen]? – Está fundado na essência
da alienação que cada esfera me impõe um padrão diferente e
oposto – a moral, um, a economia nacional, outro – porque cada
uma é uma alienação determinada do homem e cada [XVII] uma
fixa um círculo particular da atividade essencial alienada; cada
uma comporta-se alienadamente para com a outra alienação. ...
Assim o senhor Michel Chevalier censura Ricardo por abstrair
da moral. Mas Ricardo faz a economia nacional falar a sua
linguagem própria. Quando esta não fala moralmente, então a
culpa não é de Ricardo. M. Ch. abstrai da economia nacional
na medida em que moraliza, mas abstrai necessária e realmente
da moral na medida em que lida com a economia nacional. A
ligação do economista nacional à moral, quando, de outro modo,
não é arbitrária, acidental, e por isso infundada e não científica,

397
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

quando não ilude pela aparência, mas é julgada essencial, só pode


ser, contudo, a ligação das leis nacional-econômicas à moral; se
isto não tem lugar, ou antes, é o contrário que tem lugar, que
pode Ricardo fazer? De resto, a oposição da economia nacional
e da moral é também apenas uma aparência e, assim como é uma
oposição, de novo não é oposição nenhuma. A economia nacional
apenas exprime a seu modo as leis morais.
A falta de necessidades como princípio da economia na-
cional mostra-se da maneira mais brilhante na sua teoria da
população. Há gente a mais. Até mesmo a existência do homem
é um puro luxo, e se o trabalhador for “moral” (Mill propõe
louvores públicos para aqueles que se mostrem continentes
nas relações sexuais e repreensões públicas para os que pecam
contra essa esterilidade do casamento250 ... não será isto moral,
doutrina da ascese?) será poupado na procriação. A produção
do homem aparece como miséria pública.
O sentido que a produção tem, no que diz respeito ao
rico, mostra-se manifestamente no sentido que ela tem para o
pobre; para [os de] cima, a exteriorização é sempre fina, ocul-
ta, ambígua, aparência; para [os de] baixo, grosseira, franca,
sincera, essência. A necessidade rude do trabalhador é uma
fonte de lucro muito maior que a fina do rico. Os sótãos em
Londres rendem mais ao seu senhorio do que os palácios, i.
é, são, no que a ele diz respeito, uma riqueza maior, portanto,
para falar nacional-economicamente, uma maior riqueza so-
cial. – E a indústria, assim como especula com o refinamento
das necessidades, igualmente especula com a sua rudeza, mas
sobre a sua rudeza artificialmente produzida, cuja verdadeira
fruição é, por isso, a autoanestesia, essa satisfação aparente da
250 Cf. K. Marx, Exzerpte aus James Mill: Éléments d’ économie politique [Excertos de
James Mill: Elementos de economia política] (doravante: EJM), Mega², IV/2, p. 435.
(N. Ed.)

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K a r l M a r x

necessidade, essa civilização no interior da barbárie rude da


necessidade. – As tabernas inglesas são, por isso, exposições
emblemáticas da propriedade privada. O seu luxo mostra a rela-
ção verdadeira do luxo industrial e da riqueza com o homem.
São por isso também, com razão, os únicos divertimentos
dominicais do povo, pelo menos os únicos indulgentemente
tratados pela polícia inglesa.

[Aditamentos]
[XVIII] Já vimos os múltiplos modos como o economis-
ta nacional estabelece a unidade de trabalho e capital: 1) o
capital é trabalho acumulado; 2) a determinação do capital
no interior da produção – em parte a reprodução do capital
com ganho, em parte o capital como matéria-prima (mate-
rial do trabalho), em parte ele próprio como instrumento que
trabalha (a máquina é o capital imediatamente posto como
idêntico ao trabalho) – é trabalho produtivo; 3) o trabalhador
é um capital; 4) o salário pertence aos custos do capital; 5)
com respeito ao trabalhador, o trabalho é reprodução do seu
capital de vida; 6) com respeito ao capitalista, um momento
da atividade do seu capital.
Finalmente, 7) o economista nacional supõe a unidade
originária de ambos como unidade de capitalista e trabalha-
dor; é isto a situação paradisíaca originária. Como esses dois
momentos, como duas pessoas, se engalfinham [XIX] é para o
economista nacional um acontecimento acidental e, por isso, a
ser esclarecido apenas externamente. (Veja-se Mill.)251
As nações que ainda estão ofuscadas pelo brilho sensível
dos metais nobres e por isso ainda são servas do fetiche do
dinheiro metálico (Fetischdienerdes Metallgeldes) – ainda não

251 Cf. K. Marx, EJM, p. 432. (N. Ed.)

399
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

são as nações de dinheiro consumadas252. Oposição de França


e Inglaterra.
Quanto a solução dos enigmas teóricos é uma tarefa da prática e
está mediada praticamente, como a verdadeira prática é a condição
de uma teoria real e positiva,253 mostra-se p. ex. no fetichismo. A
consciência sensível do servo do fetiche (Fetischdieners) é diferente
da do grego, porque a sua existência sensível ainda é uma outra. A
hostilidade abstrata entre sentido e espírito é necessária enquanto
o sentido humano para com a natureza, o sentido humano da
natureza, portanto também o sentido natural do homem, ainda
não tiver sido produzido pelo próprio trabalho do homem.
A igualdade não é senão o alemão eu = eu [Ich= Ich]254 tra-
duzido em francês, i. é, de forma política. A igualdade como
fundamento do comunismo é a sua fundamentação política,
e é o mesmo que quando o alemão o fundamenta pelo fato
de apreender o homem como autoconsciência universal.255
Compreende-se que a superação da alienação aconteça sempre
a partir da forma da alienação que é o poder dominante – na
Alemanha a autoconsciência, na França a igualdade por causa
da política, na Inglaterra a necessidade prática material real,
medindo-se apenas por si própria.256 É a partir desse ponto que
há que reconhecer e criticar Proudhon.257

252 Em alemão, vollendeten Geldnationen, literalmente, nações que ainda não realizaram
em toda a sua amplitude a relação dinheiro. (N. do R.)
253 Cf. nota 176, supra (N. Ed.)
254 Fórmula que evoca um dos princípios da doutrina da ciência de Fichte. Ver também
o texto de Heβ, anteriormente citado, Philosophie der That. (N. Ed.)
255 Cf. B. Bauer, Die Posaune des jüngsten Gerichts über Hegel, den Atheisten und Anti-
christen [A trombeta do Juízo Final sobre Hegel, o ateu e anticristo], 1841, I e II. (N.
Ed.)
256 Ver, por exemplo, Heβ, Die europäische Triarchie [A triarquia europeia], 1841, p.
155-178. (N. Ed.)
257 Cf. Edgar Bauer, “Proudhon”, Allgemeine Literatur-Zeitung, H. V, p. 41-42; K.
Marx, Die heilige Familie..., MEW, 2, p. 40-44. (N. Ed.)

400
K a r l M a r x

Se caracterizamos o próprio comunismo ainda – porque


como negação da negação, como apropriação da essência hu-
mana, que se medeia consigo própria pela negação da proprie-
dade privada, por isso ainda não como a verdadeira posição,
a posição por si própria, mas antes que começa a partir da
propriedade privada, (...) ao velho modo alemão – seguindo o
modo da fenomenologia de Hegel – assim para sup(...) fosse
agora entendido como um momento que foi vencido, e se (...)
pudesse, e se pudesse ficar descansado com isso, tê-lo supre(...)
da essência humana na consciência unicamente pela superação
real (...) do seu pensamento depois tal como antes (...) assim
com ele permanece portanto a alienação real da vida humana,
e uma alienação tanto maior quanto mais se tem uma cons-
ciência acerca da mesma – pode ser levada a cabo, assim ela
é, portanto, de levar a cabo somente pelo comunismo posto
à obra. Para superar o pensamento da propriedade privada,
basta perfeitamente o comunismo pensado. Para suprimir a
propriedade privada real, é preciso uma ação comunista real. A
história há de trazê-la, e aquele movimento, que em pensamento
já sabemos ser um movimento que se suprime, percorrerá na
realidade um processo muito duro e extenso. Temos, porém, de
considerar como um progresso real que tenhamos de antemão
adquirido uma consciência, tanto da limitação como da meta
do movimento histórico, e uma consciência que o ultrapassa.
Quando os artesãos comunistas se unem, vale para eles antes
do mais como finalidade a doutrina, propaganda etc. Mas, ao
mesmo tempo, eles apropriam-se por esse fato de uma nova
necessidade, a necessidade de sociedade, e o que aparece como
meio tornou-se fim. Pode intuir-se esse movimento prático
nos seus resultados mais brilhantes quando se vê ouvriers 258

258 Em francês no texto: operários. (N. Ed.)

401
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

socialistas franceses reunidos. Fumar, beber, comer etc. já não


existem como meios da ligação nem como meios que ligam. A
sociedade, a associação, a conversa, que de novo tem a sociedade
como fim, basta-lhes; a fraternidade dos homens não é para
eles nenhuma frase, mas verdade, e a nobreza da humanidade
ilumina-nos a partir dessas figuras endurecidas pelo trabalho.
[XX] – Se a economia nacional afirma que procura e oferta
sempre se cobrem, esquece logo que, segundo a sua própria
afirmação, a oferta de homens (teoria da população) ultrapassa
sempre a procura, que portanto a desproporção entre procura
e oferta alcança a sua expressão mais decisiva no resultado es-
sencial de toda a produção – a existência do homem.
Quanto o dinheiro que aparece como meio é o verdadeiro
poder e a única finalidade – quanto em geral o meio, que faz de
mim um ser, que me apropria do ser objetivo alienado é autofi-
nalidade, ... isso se pode concluir de como propriedade fundiária
(onde o solo é a fonte de vida), cavalo e espada (lá onde eles são
os verdadeiros meios de vida) – são também reconhecidos como
os verdadeiros poderes de vida políticos. Na Idade Média um
estado259 [Stand] emancipa-se logo que lhe é permitido usar a
espada. Entre as populações nômades, é o corcel que me torna
um ser livre, um participante na comunidade.
Dissemos acima 260 que o homem regressa à habitação em
cavernas etc., mas regressa a elas numa figura alienada, hostil. O
selvagem na sua caverna – esse desprenconceituoso (unbefangen)
elemento natural oferecendo-se para fruição e proteção – não
se sente alienado, ou sente-se antes tão à vontade como o peixe
na água. Mas o sótão do pobre é uma habitação hostil, “que se

259 Marx se refere, aqui, à organização da sociedade feudal em três estados, a nobreza
(o “Segundo estado”), a Igreja (o “Primeiro estado”) e o “Terceiro estado” composto
pelo restante da população. (N. do R.)
260 Cf. a p. 393, supra. (N. Ed.)

402
K a r l M a r x

lhe opõe como poder alienado, que só se lhe entrega na medida


em que ele lhe entrega o seu suor de sangue”,261 que ele não
pode considerar como seu lar – onde pudesse finalmente dizer
aqui estou em casa –, onde ele antes está numa casa alienada,
na casa de um outro, que diariamente está à espreita e o põe na
rua se ele não paga a renda. Ele conhece igualmente, no que
toca à qualidade, a oposição da sua habitação com a habitação
humana que reside no além, no céu da riqueza.
A alienação aparece tanto em que o meu meio de vida é de
um outro, em que aquilo que é meu desejo é a posse inacessível
de um outro, como em que mesmo cada coisa é ela própria um
outro de si mesma, como em que a minha atividade é algo de
outro, finalmente – e isto vale também para os capitalistas – em
que em geral o poder inumano domina.
A determinação da riqueza que se abandona à fruição ina-
tiva e que se esbanja – em que o desfrutador, com efeito, por
um lado, se aciona como um indivíduo apenas transitório, que
vãmente se desgasta, e igualmente está ciente do trabalho de
escravo dos outros, do suor humano de sangue, como a vítima
da sua avidez e, por isso, do próprio homem, portanto também
de si próprio como um ser nulo sacrificado, pelo que o desprezo
pelos homens aparece como arrogância, como um desperdiçar
(Wegwerfen) daquilo que pode prolongar cem vidas humanas,
aparece em parte como a ilusão infame de que o seu esbanja-
mento desenfreado e o consumo sem consistência e improdutivo
condicionam o trabalho e, com isso, a subsistência do outro;
está ciente de que a realização das forças humanas essenciais é
apenas realização do seu não ser, de seus caprichos e venetas
arbitrariamente bizarros, essa riqueza que, por outro lado, está,
porém, ciente de que a riqueza é um mero meio e apenas coisa

261 Segundo os editores da Mega² não foi possível localizar a fonte dessa citação. (N. Ed.)

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digna de aniquilação, que é, portanto, simultaneamente seu


escravo e seu senhor, simultaneamente generosa e malvada,
caprichosa, presunçosa, pretensiosa, fina, culta, espirituosa –,
essa riqueza ainda não experimentou a riqueza como um poder
totalmente alienado sobre si própria; vê nela antes apenas o seu
próprio poder, e [não] a riqueza, mas sim a fruição (...) finalidade
última. A essa riqueza (...) [XXI] e à brilhante ilusão, cega pela
aparência sensível, acerca da essência da riqueza, enfrenta-se
o industrial laborioso, sóbrio, prosaico\econômico – esclarecido
acerca da essência da riqueza –, e como ele proporciona àquela
sede de fruição um âmbito maior, lhe faz belas lisonjas nas
suas produções – os seus produtos são outros tantos cumpri-
mentos mesquinhos aos apetites do esbanjador – assim ele sabe
apropriar-se, do modo unicamente útil, do poder que escapa
ao outro. Se, por conseguinte, a riqueza industrial aparece an-
tes de mais como resultado da riqueza fantástica, perdulária,
o movimento da primeira desaloja por ele também, de modo
ativo, o movimento próprio da última. A queda do juro do
dinheiro é nomeadamente uma consequência necessária e um
resultado do movimento industrial. Os meios do perdulário que
vive de rendimentos [Rentier] diminuem assim diariamente,
precisamente na proporção inversa do aumento dos meios e
armadilhas da fruição. Ele tem, portanto, ou que consumir o
seu próprio capital, portanto arruinar-se, ou que tornar-se ele
próprio capitalista industrial. ... Por outro lado, com efeito, a
renda fundiária de imediato sobe constantemente com o curso
do movimento industrial, mas – já o vimos – virá necessaria-
mente um momento em que a propriedade fundiária tem de cair
na categoria do capital que se reproduz com ganho, como toda a
outra propriedade – e efetivamente este é o resultado do mesmo
movimento industrial. Portanto, também o perdulário senhor
da terra tem de ou consumir o seu capital, portanto arruinar-se,

404
K a r l M a r x

ou tornar-se ele próprio industrial agricultor – arrendatário do


seu pedaço de terra próprio.
A diminuição do juro do dinheiro – que Proudhon considera
como a superação do capital e como tendência para a sociali-
zação do capital262 – é, por isso, antes imediatamente apenas
um sintoma da completa vitória do capital laborioso sobre a
riqueza perdulária, i. é, a transformação de toda a propriedade
privada em capital industrial – a completa vitória da propriedade
privada sobre todas as qualidades da mesma, ainda humanas
na aparência, e a completa subjugação do proprietário privado
pela essência da propriedade privada – o trabalho.
Certamente, o capitalista industrial também frui. Ele não
regressa de modo nenhum à simplicidade inatural da neces-
sidade, mas a sua fruição é apenas coisa secundária, recreio,
subordinada à produção, por isso fruição calculada, portanto
ela própria econômica, pois ele junta a sua fruição aos custos
do capital, e a sua fruição deve por isso custar-lhe apenas tanto
quanto o por ele esbanjado é de novo substituído com ganho
pela reprodução do capital. A fruição é, portanto, subsumida
no capital, o indivíduo que frui é subsumido no que capitaliza,
enquanto anteriormente tinha lugar o contrário. O decréscimo
dos juros é por isso apenas um sintoma de superação do capital
somente na medida em que é um sintoma da sua completa do-
minação, da alienação que se completa e, por isso, corre para a
sua superação. Este é em geral o único modo em que o existente
confirma o seu contrário.
A querela dos economistas nacionais sobre luxo e poupança
é apenas, por isso, a querela da economia nacional que tirou a
limpo a essência da riqueza com aqueles que ainda estão aco-
metidos por recordações românticas anti-industriais. Nenhum

262 Cf. P.-J. Proudhon, Qu’est-ce que la propriété?..., IV, 7. (N. Ed.)

405
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dos lados sabe conduzir à sua expressão simples o objeto da luta,


pelo que nenhum a leva até o fim.
[XXXIV] Além disso, a renda fundiária, qua263 renda fun-
diária, seria derrubada – na medida em que seria provado antes
pela nova economia nacional (em oposição ao argumento dos
fisiocratas de que o proprietário da terra (Grundeingenthümer)
seria o único verdadeiro produtor) que o proprietário da terra
como tal era antes o único que vive de rendimentos totalmente
improdutivo. A agricultura seria coisa do capitalista, que daria
essa aplicação ao seu capital se tivesse esperando dela o ganho
habitual. A afirmação dos fisiocratas – de que só a propriedade
fundiária, como única propriedade produtiva, teria de pagar
impostos estatais e, portanto, também só ela teria que os aprovar
e participar no sistema estatal – converte-se por isso na determi-
nação inversa de que o imposto sobre a renda fundiária é o único
imposto sobre um rendimento improdutivo, por isso o único im-
posto que não é prejudicial à produção nacional. Entende-se que,
assim apreendido, também o privilégio político do proprietário
da terra não mais se segue de serem os principais tributados.264
Tudo o que Proudhon apreende como movimento do tra-
balho contra o capital é apenas o movimento do trabalho na
determinação do capital, do capital industrial contra o capital
que se consome não como capital, i. é, não industrialmente.265 E
esse movimento segue o seu caminho vitorioso, i. é, o caminho
da vitória do capital industrial. – Vê-se, portanto, que somente
na medida em que o trabalho é apreendido como essência da
propriedade privada pode também o movimento nacional-
-econômico como tal ser visto na sua determinidade real.

263 Em latim no texto: enquanto. (N. Ed.)


264 Cf. K. Marx. EJRM, Mega², IV/2, p. 474-475. (N. Ed.)
265 Cf. P.-J. Proudhon, Qu’est-ce que la propriété?..., III, §§ 4 a 8. (N. Ed.)

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[Fragmentos]
[Divisão do trabalho]
A sociedade – tal como aparece para o economista nacional
– é a sociedade burguesa, na qual cada indivíduo é um todo de
necessidades e só |[XXX]V| existe para o outro tal como o outro
só existe para ele, na medida em que se tornam reciprocamente
meios. O economista nacional – tão bem quanto a política nos
seus direitos humanos – reduz tudo ao homem, i. é, ao indivíduo,
a que retira toda a determinidade, para o fixar como capitalista
ou trabalhador.
A divisão do trabalho é a expressão nacional-econômica da
socialidade do trabalho no interior da alienação. Ou, dado que
o trabalho é apenas uma expressão da atividade humana no
interior da exteriorização, da expressão de vida como exteriori-
zação de vida, assim também a divisão do trabalho não é senão
o pôr alienado, exteriorizado, da atividade humana como uma
atividade genérica real ou como atividade do homem como ser
genérico.
Acerca da essência da divisão do trabalho, que naturalmente
tinha de ser apreendida como um motor principal da produção
da riqueza logo que o trabalho fosse reconhecido como a essên-
cia da propriedade privada, – i. é, acerca dessa figura alienada
e exteriorizada da atividade humana como atividade genérica,
os economistas nacionais são muito obscuros e contraditórios.
Adam Smith: “A divisão do trabalho não deve a sua origem
à sabedoria humana. Ela é a consequência necessária, lenta e
gradual da inclinação para a troca e do traficar recíproco dos
produtos. Essa propensão para o comércio é verosimilhan-
temente uma consequência necessária do uso da razão e da
palavra. Ela é comum a todos os homens, não se encontra em
nenhum animal. O animal, logo que está crescido, vive por sua
conta. O homem precisa constantemente do apoio de outros e

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M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

em vão esperaria meramente da sua benevolência. Será muito


mais seguro dirigir-se ao interesse pessoal deles e persuadi-
-los de que a sua vantagem requer fazer o que ele deles deseja.
Dirigimo-nos a outros homens, não à sua humanidade, mas
ao seu egoísmo; nunca lhes falamos das nossas necessidades, mas
sempre da vantagem deles. ... Portanto, dado que obtemos, por
troca, comércio, tráfico, a maioria dos bons serviços que nos
são reciprocamente precisos, assim foi essa disposição para o
tráfico que deu à divisão do trabalho a sua origem. P. ex., numa
tribo de caçadores ou pastores, um particular faz arcos e cordas
com mais rapidez e habilidade que outros. Ele troca frequente-
mente com os seus camaradas essas espécies de trabalho diário
por gado e caça, e em breve nota que por esse meio pode mais
facilmente obter os últimos do que quando ele próprio ia à caça.
Portanto, a partir de um cálculo interessado, ele faz do fabrico
de arcos etc. a sua ocupação principal. A diferença dos talentos
naturais entre os indivíduos não é tanto a causa como o efeito
da divisão do trabalho. ... Sem a disposição dos homens para
comerciar e trocar, cada um seria obrigado a proporcionar a
si próprio todas as necessidades e comodidades da vida. Cada
um teria que cumprir o mesmo trabalho diário, e aquela grande
diferença das ocupações, que unicamente pode gerar uma grande
diferença de talentos, não teria tido lugar. ... Ora, tal como essa
inclinação para trocar gera a diversidade dos talentos entre os
homens, é também a mesma inclinação que torna útil essa
diversidade. – Muitas raças de animais, ainda que da mesma
espécie, receberam da natureza caracteres diferentes que, re-
lativamente às suas disposições, são mais evidentes do que se
poderia observar entre os homens incultos. Por natureza, um
filósofo não é nem na metade diferente de um carregador, em
talento e inteligência, do que um cão de guarda de um galgo,
um galgo de um perdigueiro e este de um cão pastor. Não

408
K a r l M a r x

obstante, essas diversas raças de animais, ainda que da mesma


espécie, não são de quase nenhuma utilidade umas para as
outras. O mastim não pode acrescentar nada à vantagem da
sua força [XXXVI] pelo fato de porventura poder lançar mão
da agilidade do galgo etc. Os efeitos desses diversos talentos ou
estágios da inteligência, na falta da capacidade ou da inclinação
para comércio/troca, não podem ser projetados em conjunto
na comunidade e não podem de modo nenhum contribuir
para a vantagem comunitária da species. ... Cada animal tem de
manter-se e proteger-se, independentemente dos outros – não
pode tirar a mínima utilidade da diversidade dos talentos que a
natureza repartiu entre os seus semelhantes. Ao contrário, entre
os homens, os mais díspares talentos são reciprocamente úteis,
porque os diversos produtos de cada um dos seus respectivos
ramos de indústria, por intermédio dessa propensão universal
para o comércio e a troca, se encontram por assim dizer lan-
çados numa massa comunitária, em que cada homem pode ir
comprar, segundo a sua necessidade, qualquer parte do produto
da indústria dos outros. – Porque essa propensão para a troca
dá origem à divisão do trabalho, o crescimento dessa divisão
está consequentemente limitado pela extensão da capacidade
de trocar ou, por outras palavras, pela extensão do mercado.
Se o mercado for muito pequeno, ninguém terá coragem para
se dedicar totalmente a uma única ocupação, por não poder
trocar produto a mais do seu trabalho, que excede o seu consumo
próprio, por um igual produto a mais do trabalho de um outro,
que desejaria comprar...”[76] Em situação desenvolvida: “Cada pes-
soa consiste em échanges,266 em troca, e torna-se uma espécie de
comerciante, e a própria sociedade é propriamente uma sociedade
comerciante.[77] (Veja-se Destutt de Tracy: a sociedade é uma

266 Em francês no texto: trocas. (N. Ed.)

409
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

série de troca recíproca, no commerce267 reside toda a essência da


sociedade.)[78] ... A acumulação dos capitais sobe com a divisão
do trabalho e reciprocamente”. – Isto quanto a Adam Smith.
Se cada família produzisse a totalidade dos objetos do seu con-
sumo, a sociedade poderia manter-se em andamento, ainda que
não efetuasse nenhuma espécie de troca – sem ser fundamental, a
troca é indispensável na situação avançada da nossa sociedade –,
a divisão do trabalho é uma aplicação hábil das forças do homem
– portanto ela aumenta os produtos da sociedade, o seu poder e as
suas fruições, mas rouba, diminui a capacidade de cada homem
individualmente tomado. – A produção não pode ter lugar sem
a troca.[79]

Assim J. B. Say.
As forças inerentes ao homem são: a sua inteligência e a sua dis-
posição física para o trabalho; aquelas que derivam a sua origem
da condição de sociedade268 consistem: na capacidade de dividir o
trabalho e de dividir os diversos trabalhos entre os diversos homens... e
na capacidade [Vermögen] de trocar os serviços recíprocos e os produtos
que constituem esses meios.[80]... O motivo pelo qual um homem
dedica a outro os seus serviços é o interesse próprio – o homem
exige uma recompensa pelos serviços prestados a um outro.[81] – O
direito da propriedade privada exclusiva é indispensável para que
se estabeleça a troca entre os homens.[82]

Troca e divisão do trabalho condicionam-se reciprocamente.[83]

Assim Skarbek.
Mill apresenta a troca desenvolvida, o comércio, como con-
sequência da divisão do trabalho.
A atividade do homem pode ser reduzida a elementos muito
simples. Na verdade, ele nada mais pode fazer que produzir

267 Em francês no texto: comércio. (N. Ed.)


268 No original, gesells chaftlichen Zustand, literalmente a condição, o estado, de se viver
em sociedade. (N. do R.)

410
K a r l M a r x

movimento; pode mover as coisas, para as afastar [XXXVII]


ou aproximar umas das outras; as qualidades da matéria fazem
o restante. Na aplicação do trabalho e das máquinas, verifica-se
frequentemente que os efeitos poderiam ser aumentados por uma
hábil repartição, por separação das operações que se opõem e por
reunião de todas aquelas que de algum modo podem se fomentar
reciprocamente. Visto que em geral os homens não podem execu-
tar muitas operações diversas com a mesma rapidez e habilidade
que o hábito lhes proporciona para o exercício de um pequeno
número – é sempre vantajoso limitar tanto quanto possível o nú-
mero das operações confiadas a cada indivíduo. – Para a divisão
do trabalho e a repartição das forças dos homens e das máquinas
do modo mais vantajoso, é necessário, num grande número de
casos, operar numa larga escala ou, por outras palavras, produzir
as riquezas em grandes massas. Essa vantagem é o fundamento do
surgimento das grandes manufaturas, das quais frequentemente
um pequeno número, fundado em circunstâncias favoráveis, às
vezes aprovisiona não apenas um só, mas muitos países da quan-
tidade aí exigida dos objetos por elas produzidos.[84]

Assim Mill.
Mas toda a economia nacional moderna concorda em que
divisão do trabalho e riqueza da produção, divisão do trabalho
e acumulação do capital se condicionam reciprocamente, bem
como em que unicamente a propriedade privada em liberdade,
entregue a si própria, pode produzir a divisão do trabalho mais
útil e abrangente.
Os desenvolvimentos de Adam Smith podem resumir-se nisto:
a divisão do trabalho dá ao trabalho a capacidade infinita de pro-
dução. Ela está fundada na propensão para a troca e o tráfico, uma
inclinação especificamente humana, que verosimilhantemente
não é acidental, mas, antes, está condicionada pelo uso da razão e
da linguagem. O motivo daquele que faz a troca (Austauschenden)
não é a humanidade, mas o egoísmo. A diversidade dos talentos
humanos é mais o efeito do que a causa da divisão do trabalho,
i. é, da troca. Também só a última torna útil essa diversidade. As

411
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

qualidades particulares das diversas raças de uma espécie animal


são por natureza mais agudas que a diversidade da disposição e
atividade humanas. Mas, porque os animais não podem trocar,
não é útil a nenhum indivíduo animal a diferente qualidade de
um animal da mesma espécie, mas de raça diversa. Os animais
não podem juntar as diferentes qualidades da sua species; não
podem contribuir em nada para a vantagem comunitária e como-
didade da sua species. Diferente é o caso do homem, cujos díspares
talentos e modos de atividade são reciprocamente úteis porque
podem lançar conjuntamente os seus diversos produtos para uma
massa comunitária, da qual cada um pode comprar. Tal como
a divisão do trabalho brota da inclinação para a troca, assim ela
cresce e está limitada pela extensão da troca, do mercado. Numa
situação adiantada, cada homem [é um] comerciante, a sociedade
[é] uma sociedade comercial.
Say considera a troca como acidental, e não fundamental. A
sociedade poderia subsistir sem ela. Ela torna-se indispensável
numa situação avançada da sociedade. Todavia, a produção não
pode ter lugar sem ela. A divisão do trabalho é um meio cômodo,
útil, uma aplicação hábil das forças humanas para a riqueza so-
cial, mas diminui a capacidade de cada homem individualmente
tomado. A última observação é um progresso de Say.
Skarbek diferencia as forças individuais inerentes ao homem,
inteligência e disposição física para o trabalho, das forças que
são derivadas da sociedade, troca e divisão do trabalho, que se
condicionam reciprocamente. Mas o pressuposto necessário
da troca é a propriedade privada. Skarbek exprime aqui, de
forma objetiva, o que Smith, Say, Ricardo etc. dizem quando
designam o egoísmo, o interesse privado, como fundamento da
troca, ou o tráfico como a forma essencial e adequada da troca.
Mill apresenta o comércio como consequência da divisão do
trabalho. A atividade humana reduz-se, para ele, a um movi-

412
K a r l M a r x

mento mecânico, divisão do trabalho e aplicação de máquinas


promovem a riqueza da produção. Tem de confiar-se a cada
homem uma esfera tão pequena quanto possível de operações.
Por seu lado, a divisão do trabalho e a aplicação de máquinas
condicionam a produção em massa da riqueza, portanto do
produto. Este o fundamento das grandes manufaturas.
[XXXVIII] A consideração da divisão do trabalho e da troca
é do maior interesse, porque são as expressões perceptivelmente
exteriorizadas da força essencial e atividade humanas, como uma
atividade e força essencial conformes ao gênero.
Que a divisão do trabalho e a troca repousam sobre a pro-
priedade privada não é senão a afirmação de que o trabalho é
a essência da propriedade privada, uma afirmação que o eco-
nomista nacional não pode demonstrar, e que nós queremos
demonstrar-lhe. Precisamente em que divisão do trabalho e troca
são figuras da propriedade privada, precisamente aí reside a
dupla demonstração, tanto de que a vida humana precisou da
propriedade privada para a sua realização como, por outro lado,
de que ela precisa agora da superação da propriedade privada.
Divisão do trabalho e troca são dois fenômenos nos quais o
economista nacional faz alarde da socialidade da sua ciência
e expressa de uma assentada, sem consciência, a contradição
da sua ciência, a fundação da sociedade pelo insocial interesse
particular (ungesellschaftlche Sonderinteresse).
Os momentos que temos de considerar são: primeiro, será
considerada a propensão para a troca – cujo fundamento tem sido
encontrado no egoísmo – como fundamento ou ação recíproca
da divisão do trabalho. Say considera a troca como não funda-
mental para a essência da sociedade. A riqueza, a produção, é
explicada pela divisão do trabalho e a troca. O empobrecimento
e a desessencialização [Entwesung] da atividade individual pela
divisão do trabalho são admitidos. Troca e divisão do trabalho

413
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

são reconhecidas como produtoras da grande diversidade dos


talentos humanos, uma diversidade que, pelas primeiras, se torna
também de novo útil. Skarbek divide as produções, ou forças
essenciais produtivas, do homem em duas partes, 1) as indivi-
duais e a ele inerentes, a sua inteligência e especial disposição
ou capacidade de trabalho, 2) as derivadas da sociedade – não
do indivíduo real –, a divisão do trabalho e a troca. Mais: a
divisão do trabalho está limitada pelo mercado. – O trabalho
humano é simples movimento mecânico; o principal fazem-no
as propriedades materiais dos objetos. – A um indivíduo tem
de ser atribuído o mínimo possível de operações – cisão do
trabalho e concentração do capital, a nulidade da produção
individual e a produção da riqueza em massa –, entendimento
da livre propriedade privada na divisão do trabalho.

[Dinheiro]
|XL[I]| Se as sensações, paixões etc. do homem não são
apenas determinações antropológicas em sentido próprio, mas
verdadeiramente afirmações essenciais (naturais), ontológicas
(ontologisheWesens-(Natur)bejahungen) – e se elas só se afirmam
real­mente pelo fato de o seu objeto ser sensivelmente para elas,
então é evidente que 1) o modo da sua afirmação não é intei-
ramente um e o mesmo, mas, antes, que o modo diferente da
afirmação forma a peculiaridade da sua existência, da sua vida; o
modo como o objeto é para elas é o modo peculiar da sua fruição;
2) aí onde a afirmação sensível é superar imediato do objeto na
sua forma autônoma (comer, beber, elaborar o objeto etc.), é a
afirmação do objeto; 3) na medida em que o homem é humano,
portanto também a sua sensação etc. é humana, a afirmação do
objeto por um outro é igualmente a sua fruição própria; 4) só
pela indústria desenvolvida, i. é, pela mediação da propriedade
privada, devém a essência ontológica da paixão humana, tanto na

414
K a r l M a r x

sua totalidade quanto na sua humanidade; a ciência do homem


é, portanto, ela própria um produto da autoatividade prática do
homem; 5) o sentido da propriedade privada – liberta da sua
alienação – é a existência dos objetos essenciais para o homem,
tanto como objeto da fruição quanto da atividade.
O dinheiro, na medida em que possui a qualidade de tudo
comprar, na medida em que possui a qualidade de se apropriar
de todos os objetos, é, portanto, o objeto como possessão emi-
nente. A universalidade da sua qualidade é a onipotência do
seu ser; por isso ele vale como ser onipotente. ... O dinheiro
é o alcoviteiro entre a necessidade e o objeto, entre a vida e o
meio de vida do homem. Mas o que me medeia a minha vida,
medeia-me também a existência do outro homem para mim. É
para mim o outro homem.269 –
Com a breca! pernas, braços, peito
Cabeça, sexo, aquilo é teu;
Mas, tudo o que, fresco, aproveito,
Será por isso menos meu?
Se podes pagar seis cavalos,
As suas forças não governas?
Corres por morros, clivos, valos,
Qual possuidor de vinte e quatro pernas.
Goethe. Fausto. (Mefistófeles)270

269 Esse tema do dinheiro e da alienação será retomado por M. Heβ em 1844-1845
num quadro onde se fazem igualmente sentir algumas teses do chamado “socialismo
verdadeiro”. Ver, por exemplo, “Über die sozialistischen Bewegung in Deutschland”
[“Acerca do movimento socialista na Alemanha”], “Über die Noth in unserer
Gesellschaft und deren Abhülfe” [“Acerca da miséria na nossa sociedade e do seu
remédio”] e “Über das Geldwesen” [“Acerca do sistema do dinheiro”] em Philoso-
phie und Sozialistische Schriften [Escritos filosóficos e socialistas], respectivamente p.
284-307, 311-326 e 329-348. (N. Ed.)
270 Faust, I, Auerbachs Keller. (N. Ed.) [Cf. Fausto. São Paulo: Ed. 34, I, 2004, p.
149-150. (N. do R.)

415
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

Shakespeare em Timon de Atenas:


Ouro? Fulvo, brilhante, precioso ouro? Não, deuses!
Eu não suplico em vão.
Um quanto dele faz do preto, branco, do feio, belo,
Do mau, bom, do velho, novo, do covarde, valente, do baixo,
[nobre.

Ele atrai ... o padre do altar;


Arranca ao semiconvalescente o travesseiro:
Sim, este escravo fulvo ata e desata
Vínculos sagrados; abençoa o maldito;
Torna a lepra amável, honra o ladrão,
E dá-lhe posição, genuflexão e influência
No conselho dos senadores; arranja
Noivo à viúva sobreanosa;
Àquela que peçonhentamente deita pus das feridas
E é mandada embora com repugnância do hospital
Rejuvenesce-a balsamicamente
Em juventude primaveril. Danado metal,
Oh, ordinária meretriz dos homens
Que ensandece os povos.

E depois, abaixo:
Oh, tu doce regicida, nobre divórcio
De filho e pai! brilhante profanador
Do mais puro leito de Himeneu! valente Marte!
Terno e amado sedutor eternamente florescente
Cujo esplendor fulvo funde a neve sagrada
No seio puro de Diana! divindade visível,
Que fraternizas estreitamente impossibilidades
E as constranges a beijarem-se! tu falas em cada língua,
[XLII] Qualquer finalidade! oh, pedra de toque dos corações!
Pensa, o homem teu escravo rebela-se!
Que a tua força, enredando-os, os aniquile a todos

416
K a r l M a r x

Para que de animais se torne a dominação deste mundo!271

Shakespeare descreve acertadamente a essência do dinheiro.


Para entendê-lo, comecemos antes de mais com a interpretação
da passagem goethiana.
O que é para mim pelo dinheiro, o que eu posso pagar, i.
é, o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o possuidor do
próprio dinheiro. Tão grande quanto a força do dinheiro for,
tão grande é a minha força. As propriedades do dinheiro são
minhas – possuidor dele – propriedades e forças essenciais.
Portanto, o que eu sou e sou capaz não é de modo nenhum
determinado pela minha individualidade. Eu sou feio, mas
posso comprar para mim a mulher mais bonita. Portanto, eu
não sou feio, pois o efeito da fealdade, a sua força intimidante,
é anulada pelo dinheiro. Eu sou – segundo a minha individua­
lidade – manco, mas o dinheiro proporciona-me 24 pés; não
sou, portanto, manco; eu sou uma pessoa má, desonesta, sem
escrúpulos, desprovida de espírito, mas o dinheiro é honrado,
portanto também o seu possuidor. O dinheiro é o bem supre-
mo, portanto o seu possuidor é bom, o dinheiro dispensa-me
além disso o trabalho de ser desonesto, sou portanto presumi-
do honesto; eu sou desprovido de espírito, mas o dinheiro é o
espírito real de todas as coisas: como havia o possuidor dele de
ser desprovido de espírito? Ademais, ele pode comprar para si
a gente rica de espírito, e quem tem o poder sobre os ricos de
espírito não é ele mais rico de espírito do que o rico de espírito?
Eu, que pelo dinheiro consigo tudo aquilo por que um coração
humano anseia, não possuo eu todos os poderes [Vermögen]

271 W. Shakespeare, Timon of Athens, ato IV, cena 3. Marx cita segundo a tradução
de August Wilhelm von Schlegel e Ludwig Tieck, 1832. Marx voltará a esse passo
de Shakespeare, designadamente, em O capital (ver K. Marx, O capital, vol. I, t. I,
Edições “Avante!”; Edições Progresso, Lisboa-Moscou, 1990, p. 155).(N. Ed.)

417
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

humanos? Todo o meu dinheiro não transforma, portanto, as


minhas impotências [Unvermögen] no seu contrário?
Se o dinheiro é o vínculo que me liga à vida humana, que
liga a mim à sociedade, que me liga à natureza e ao homem,
não é o dinheiro o vínculo de todos os vínculos? Não pode ele
atar e desatar todos os vínculos? Não é ele por isso também o
meio universal de divórcio? Ele é a verdadeira moeda divisionária
[Scheidemünze], bem como o verdadeiro meio de ligação, a força
galvano-química da sociedade.
Shakespeare salienta no dinheiro particularmente duas
propriedades.
1) Ele é a divindade visível, a transformação de todas as
qualidades humanas e naturais no seu contrário, a universal
confusão e inversão das coisas; ele fraterniza impossibilidades;
2) Ele é a meretriz universal, o alcoviteiro universal dos
homens e dos povos.
A inversão e confusão de todas as qualidades humanas e
naturais, a fraternização das impossibilidades – a força divina –,
pelo dinheiro, reside na sua essência como ser genérico – aliena-
do, exteriorizando e vendendo-se [entfremdeten, entäussernden
und sich veräussernden] – do homem. Ele é o poder [Vermögen]
exteriorizado da humanidade.
Aquilo que eu qua 272 homem não consigo, aquilo que,
portanto, todas as minhas forças essenciais individuais não
conseguem, consigo-o eu pelo dinheiro. O dinheiro faz, assim,
de cada uma dessas forças essenciais algo que ela em si não é,
i. é, o seu contrário.
Se eu anseio por uma comida ou preciso de usar a mala-
-posta porque não sou suficientemente forte para fazer o cami-
nho a pé, o dinheiro proporciona-me a comida e a mala-posta,

272 Em latim no texto: enquanto (N. Ed.)

418
K a r l M a r x

i. é, transforma os meus desejos de seres da representação,


tradu-los da sua existência pensada, representada, querida, na
sua existência sensível, real, da representação para a vida, do
ser representado para o ser real. Enquanto tal mediação, ele é
a força verdadeiramente criadora.
A demande273 existe por certo também para aquele que não
têm dinheiro nenhum, mas a sua demande é um mero ser da
representação, que não tem nenhum efeito sobre mim, sobre
o terceiro, sobre o outro, [XLIII] que não tem nenhuma exis-
tência, que portanto permanece para mim mesmo irreal, sem
objeto. A diferença da demande efetiva, baseada no dinheiro, e
da desprovida de efeito, baseada na minha necessidade, na mi-
nha paixão, no meu desejo etc., é a diferença entre ser e pensar,
entre a mera representação existindo em mim e a representação
tal como ela é para mim enquanto objeto real fora de mim.
Eu, se não tenho dinheiro para viajar, não tenho nenhuma
necessidade, i. é, nenhuma necessidade real e realizando-se de
viajar. Eu, quando tenho vocação para estudar, mas não tenho
dinheiro para isso, não tenho nenhuma vocação para estudar,
i. é, nenhuma vocação real, verdadeira. Ao contrário, se eu
não tiver realmente nenhuma vocação para estudar, mas tiver
vontade e dinheiro, [então] tenho uma vocação real para isso.
O dinheiro como o meio e poder universais, exteriores, não pro-
vindo do homem como homem e não provindo da sociedade
humana como sociedade – meio e poder de fazer da representação
realidade e da realidade uma mera representação, transforma
igualmente as forças essenciais humanas e naturais reais em re-
presentações meramente abstratas e, por isso, em imperfeições,
tormentosa quimera, tal como por outro lado transforma as
reais imperfeições e quimeras, as suas forças essenciais realmente

273 Em francês no texto: procura. (N. Ed.)

419
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

impotentes, que só existem na imaginação do indivíduo, em


poderes e forças essenciais reais. Já segundo essa determinação
ele é, portanto, inversão universal das individualidades, que
converte no seu contrário e que junta, às suas qualidades, qua-
lidades contraditórias.
Ele aparece então também como esse poder inversor face
ao indivíduo e face aos vínculos sociais etc., que afirmam se-
rem por si seres. Ele transforma a fidelidade em infidelidade, o
amor em ódio, o ódio em amor, a virtude em vício, o vício em
virtude, o servo em senhor, o senhor em servo, a estupidez em
inteligência, a inteligência em estupidez.
Uma vez que o dinheiro, como conceito – existente e
acionando-se – do valor, confunde, mistura todas as coisas,
ele é então a confusão e mistura universal de todas as coisas,
portanto, o mundo invertido, a confusão e a mistura de todas
as qualidades naturais e humanas.
Quem pode comprar a valentia é valente, por mais covarde
que seja. Uma vez que o dinheiro não se troca por uma qua-
lidade determinada, por uma coisa determinada, [por] forças
essenciais humanas, mas por todo o mundo objetivo humano
e natural, ele troca, portanto – encarado sob o ponto de vista
do seu possuidor –, toda a qualidade por uma outra – mesmo
pela qualidade e objeto que lhe [sejam] contraditórios; ele é a
fraternização das impossibilidades, constrange os contraditórios
a beijarem-se.
Pressupondo o homem como homem e a sua relação com
o mundo como humana, só se pode trocar amor por amor,
confiança por confiança etc. Se se quer fruir a arte, tem de se
ser uma pessoa artisticamente culta; se se quer exercer influên-
cia sobre outras pessoas, tem de se ser realmente uma pessoa
que atue de um modo estimulante e encorajador sobre outras
pessoas. Cada uma das suas relações com o homem e com a

420
K a r l M a r x

natureza – tem de ser uma determinada exteriorização da sua


vida individual real correspondente ao objeto da sua vontade.
Se você ama sem provocar amor recíproco, i. é, se o seu amar
enquanto amar não produz o amor recíproco, se você não se
torna pessoa amada através da sua exteriorização de vida como
pessoa amante, então o seu amor é impotente, uma infelicidade.

421
ANEXO I

“A construção da fenomenologia de Hegel 274


1) Autoconsciência em vez de homem. Sujeito. Objeto.
2) As diferenças. As coisas [são] importantes porque a
substância é apreendida como autodiferenciação ou porque a
autodiferenciação, as diferenças, a atividade do entendimento,
são apreendidas como essências. Hegel dá, portanto, no interior
da especulação, distinções reais que agarram as coisas.
3) Superação da alienação identificada com superação
da objetividade. (Um lado, nomeadamente desenvolvido por
Feuerbach).
4) Daí superação do objeto representado, do objeto como
objeto da consciência, identificada com a superação objetiva real
da ação sensível, da prática e da atividade real, diferenciadas do
pensar. (A desenvolver seriamente.)”

274 Apontamento provavelmente da segunda metade de 1844; Mega², I/2, p. 909. (N. Ed.)
ANEXO II

Conspecto da Fenomenologia do espírito de Georg Wilhelm


Friedrich Hegel, capítulo “O saber absoluto”275
|[1]| Na Fenomenologia, o saber absoluto devindo é assim
descrito:
1) Na religião revelada, a autoconsciência real do espírito
não é ainda o objeto da sua consciência; ele e os seus momentos
caem no representar e na forma da objetividade. O conteúdo
do representar é o espírito absoluto; trata-se ainda do superar
[Aufheben] dessa mera forma.
2) Essa conquista [Ueberwindung] do objeto da consciência
... não é apenas o unilateral – que o objeto se mostra como re-

275 Texto escrito por Marx durante a redação do Caderno III dos seus Manuscritos
econômico-filosóficos, tendo aí sido intercalado entre as p. XXXIV e XXXV, mas
com numeração autônoma das páginas; Mega², I/2, p. 439-444. Para um confronto
com o texto de Hegel, cf. Phanomenologie..., TW, vol. 3, p. 575-586. (N. Ed.)
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

tornando ao si mesmo –, mas mais determinadamente ... que ele


como tal tanto se expõe desaparecendo dela, quanto, mais ainda,
que a exteriorização da autoconsciência é o que põe a coisidade,
e que essa exteriorização tem significação não só negativa mas
positiva, não só para nós ou em si, mas para si própria. Para ela,
o negativo do objeto, ou o superar-se deste, tem por isso a signi-
ficação positiva, ou ela sabe a sua nadidade (Nichtigkeit), por um
lado, porque ela própria se exterioriza (pois nessa exteriorização
ela se põe como objeto ou o objeto, por causa da inseparável
unidade do ser para si, como si própria). ... Por outro lado, reside
aqui simultaneamente este outro momento: que ela igualmente
superou também essa exteriorização e objetividade e regressou a
si, portanto no seu ser-outro como tal está junto de si...
3) Isto é o movimento da consciência, e esta é aí a totalidade
dos seus momentos. ... Assim, ela tem de se comportar com
o objeto segundo a totalidade das determinações deste e tê-lo
apreen­dido segundo cada uma delas. Essa totalidade das suas de-
terminações faz dele, em si, essência espiritual, e para a consciência
ele torna-se isso na verdade pelo apreender de cada uma das suas
[determinações singulares] como [determinações] do si mesmo,
ou pelo mencionado comportamento espiritual para com elas.
4) O objeto, portanto, [é], em parte, ser imediato ou uma
coisa em geral – o que corresponde à consciência imediata; em
parte, um tornar-se outro de si, a sua relação ou ser para outro e
ser para si, a determinidade – o que [corresponde] à percepção; em
parte, essência ou, como universal, o que corresponde ao entendi-
mento. (Ser, essência, conceito; universalidade, particularidade,
singularidade. Posição, negação, negação da negação; oposição
simples, decidida, superada. Unidade. Imediatidade, mediação,
mediação superando-se. Ser junto de si. Diferença. Autodife-
renciação. Exteriorização. Regresso a partir da exteriorização.
Identidade. Negação. Negatividade. Em si. Para si. Em e para

426
K a r l M a r x

si. Lógica. Natureza. Espírito. Consciência pura. Consciência.


Autoconsciência. Conceito. Juízo. Silogismo.)276 Ele é, como todo,
o silogismo ou o movimento do universal para a singularidade
através da determinação, ou o [movimento] inverso da singula-
ridade para o universal através desta como superando-se ou da
determinação. – Segundo essas três determinações, portanto, a
consciência tem de sabê-lo como si própria. Isto não é, contudo,
o saber como puro conceber do objeto de que se está falando, mas
esse saber deve ser mostrado apenas no seu devir ou nos seus
momentos, segundo o lado que pertence à consciência como tal
e os momentos do conceito propriamente dito ou do saber puro
na forma de configurações (Gestaltungen) da consciência. Por isso,
o objeto ainda não aparece na consciência como a essencialidade
espiritual, tal como foi expressa por nós, e o seu comportamento
para com ele não é a consideração do mesmo nessa totalidade
como tal, ainda na sua pura forma de conceito, mas: em parte,
figura (Gestalt) da consciência em geral, em parte, um número de
figuras (Gestalten) destas que nós tomamos conjuntamente e nas
quais a totalidade dos momentos do objeto e do comportamento
da consciência só resolvida nos seus momentos pode ser mostrada.
5) Atendendo ao objeto, na medida em que ele imediatamente
é um ser indiferente (sic), vimos a razão observante procurar-se e
encontrar-se a si mesma nessa coisa indiferente, i. é, ser consciente
do seu agir como um agir igualmente exterior, ao ser consciente
do objeto apenas como um [objeto] imediato ... no seu cume,
ela exprime a sua determinação no juízo infinito, que o ser do
eu é uma coisa. E decerto uma coisa imediata sensível, se o eu é
chamado alma, decerto é também representado como coisa, mas
como um invisível, insensível; de fato, portanto, não como ser
276 Por comodidade de composição e de leitura propomos aqui esta sequência. No
original, algumas destas expressões figuram em entrelinha sem indicação do local
onde devem entrar. (N. Ed.)

427
M a n u s c r i t o s e c o n ô m i c o - f i l o s ó f i c o s

imediato, o que se quer dizer por coisa. Ao contrário, aquele juízo


desprovido de espírito é |[2]| segundo o seu conceito o mais rico
de espírito. Veja-se agora como o seu interior é expresso. A coisa
é eu; i. é, a coisa superada; em si é nada; tem apenas significação
na relação, apenas pelo eu e a sua ligação a ela. – Esse momento
resultou para a consciência na pura inteligência e esclarecimento
(Aufklärung). As coisas são pura e simplesmente úteis e de consi-
derar apenas segundo a sua utilidade. ... A autoconsciência culta,
que percorreu o mundo do espírito alienado de si, engendrou pela
sua exteriorização a coisa como si própria, por isso conserva-se
ainda a si própria nela e sabe a dependência [Unselbstständigkeit]
dela própria ou que a coisa essencialmente é apenas ser para outro;
ou completamente a relação, i. é, o que aqui somente a natureza
do objeto constitui, expressa; assim a coisa vale para ela como
um sendo para si (Fürsichseiendes), expressa a certeza sensível
como verdade absoluta, mas este ser para si, ele próprio, como
momento, que apenas desaparece e transita para o seu contrário,
para o sacrificado ser para outro. – Mas aqui não está ainda com-
pletado o saber da coisa; ela tem que ser sabida não só segundo
a imediatidade do ser e segundo a determinidade, mas também
como essência ou interior, como o si mesmo. Isto está dado na
autoconsciência moral. Esta sabe o seu saber como a essencialida-
de absoluta ou o ser pura e simplesmente como a vontade pura
ou saber; ela nada é senão essa vontade ou saber; ao outro cabe
apenas um ser inessencial, i. é, um ser que não é em si, é apenas
a sua casca vazia. A consciência moral na sua representação do
mundo, a existência, ao desprender do si mesmo, volta igualmente
a retomá-la em si. Como certeza (Gewissen), ela já não é este ainda
alternado pôr e deslocar da existência e do si mesmo, mas ela sabe
que a sua existência como tal é essa pura certeza (reine Gewißheit)
de si mesma; o elemento objetivo, no qual ela se apresenta como
agindo, não é senão o puro saber por si do si mesmo.

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6) São estes os momentos a partir dos quais se compõe a


conciliação do espírito com a sua consciência propriamente dita;
eles são singulares para si, e é só a sua unidade espiritual que
constitui a força dessa conciliação. O último desses momentos
é essa mesma unidade, e ela conecta de fato todos em si. O espí-
rito certo (gewisse Geist) de si mesmo na sua existência não tem
como elemento da existência senão esse saber de si; o exprimir de
que o que ele faz, o faz por convicção do dever, esta sua fala é o
valer [Gelten] (dinheiro [Geld]) do seu agir. – O agir é o separar,
sendo somente em si, da simplicidade do conceito e o regresso a
partir dessa separação. Este primeiro movimento converte-se no
segundo, na medida em que o elemento do reconhecimento se
põe, como saber simples do dever, face à diferença e à cisão que
reside como tal no agir e desse modo forma uma realidade férrea
face ao agir. No perdão, vimos como essa dureza se solta de si
própria e se exterioriza. A realidade não tem, portanto, aqui para
a autoconsciência, tanto quanto existência imediata, qualquer
outra significação senão ser puro saber; – igualmente, como
existência determinada ou como relação, aquilo que está em
oposição a si é um saber, em parte, desse si mesmo puramente
singular e, em parte, do saber como universal. Simultaneamen-
te, é aqui posto isto: que o terceiro momento, a universalidade
ou a essência, vale para cada um dos dois que estão em oposição
a si apenas como saber; e assim superam finalmente a oposição
vazia ainda restante e são o saber do eu = eu, deste si mesmo
singular, que é o saber imediatamente puro ou universal.
|[3]| Conciliação da consciência com a autoconsciência
posta, assim, de pé de uma dupla maneira: 1) no espírito re-
ligioso, 2) na própria consciência como tal. 1) Conciliação na
forma do ser em si; 2) na forma do ser para si. Tal como foram
consideradas, suprem-se uma a outra. Há que mostrar agora a
reunião de ambos os lados: 1) espírito em si, conteúdo absoluto;

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2) para si, forma sem conteúdo ou pelo lado da autoconsciência;


3) o espírito em e para si.
7) Essa reunião na religião, dada como o regresso da repre-
sentação à autoconsciência, mas não na forma propriamente dita,
pois o lado religioso é o lado do em si, que se contrapõe ao movi-
mento da autoconsciência. A reunião pertence ao outro lado, que,
em oposição, contém o lado da reflexão em si, portanto, o lado
que se desenvolve e se diferencia a si mesmo e ao seu contrário
para si. O conteúdo, tal como o outro lado do espírito enquanto
outro, foi dado e mostrado na sua completude; a reunião que
ainda falta é a simples unidade do conceito. – Ele é, como figura
particular da consciência, a alma bela, a figura do espírito certo
de si mesmo (selbst gewissen Geistes), que permanece junto do seu
conceito. Como mantendo-se contraposto à sua realização, ele é
figura unilateral, desaparece na bruma; mas também exteriori-
zação positiva e movimento que prossegue. Por essa realização,
a determinidade do conceito supera-se face ao seu preenchimento;
a sua autoconsciência ganha a forma da universalidade. O ver-
dadeiro conceito, o saber do puro saber como essência, o saber
disto, dessa pura autoconsciência, que portanto simultaneamente
é verdadeiro objeto, pois é o si mesmo sendo para si.
O preenchimento desse conceito, em parte no espírito em
ação, em parte na religião. ... Naquela primeira figura, a forma
é o próprio si mesmo, pois ela contém o espírito agindo certo
de si mesmo (selbst gewissen Geist), o si mesmo conduz a vida
do espírito absoluto. Essa figura é aquele conceito simples, que,
porém, renuncia à sua essência eterna, existe ou age. O cindir[-se]
ou o comparecer tem-nos ele na pureza do conceito, pois ela
é a abstração absoluta ou negatividade. Assim, o elemento do
ser ou da sua realidade em si mesmo, pois ele é a imediatidade
simples, que é igualmente ser e existência como essência, aque-
le, o próprio pensar negativo, esta, o positivo. Hegel continua

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K a r l M a r x

desenvolvendo agora o aborrecido processo da alma bela, cujo


resultado é pura universalidade do saber, que é autoconsciência.
– O conceito implica que o conteúdo é agir próprio do si mesmo;
pois esse conceito é o saber do agir do si mesmo em si, como de
toda a essencialidade e de toda a existência, o saber desse sujeito
como substância e da substância como desse saber do seu agir.
8) O espírito que se sabe na sua figura de espírito, o saber que
concebe. A verdade não só em si igual à certeza, mas tem também
a figura da certeza de si própria ou é na sua existência, i. é, para
o espírito que sabe, na forma do saber de si própria. A verdade é
o conteúdo que na religião é ainda desigual da sua certeza. Mas
essa igualdade está em que o conteúdo obtém a figura do si mes-
mo. Por isso, aquele se tornou elemento da existência ou forma
da objetividade para a consciência, o que é a essência mesma – o
conceito. O espírito, aparecendo nesse elemento à consciência ou
aí produzido por ela, é a ciência. É o ser para si puro da auto-
consciência; é eu, que é este e nenhum outro eu e o eu universal
de igual modo imediatamente mediado ou superado. Ele tem
um conteúdo que o diferencia de si; pois ele é a pura negatividade
ou o cindir-se; é consciência. Esse conteúdo é na sua diferença
mesma o eu, pois é o movimento de superar a si mesmo ou a
mesma negatividade pura que é eu. Eu está nele refletido como
diferenciado em si; o conteúdo é concebido somente pelo fato de
o eu no seu ser-outro estar junto de si próprio.
[4] Este conteúdo, mais determinadamente dado, não é outro
senão o próprio movimento que precisamente assim foi expresso; pois
ele é o espírito que, como espírito, percorre a si mesmo e decerto
para si, pelo fato de ter a figura do conceito na sua objetividade.
No que diz respeito à existência desse conceito, à ciência não apa-
rece no tempo e na realidade até que o espírito tenha chegado a
essa consciência acerca de si. Como o espírito que sabe o que é,
ele não existe antes e, de resto, em parte alguma senão depois do

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completamento (Vollendung) do trabalho de dominar a sua figura


imperfeita, de forjar para a sua consciência a figura da sua essência
e desse modo de igualar a sua autoconsciência com a sua consciência.
Veja-se a continuação p. 583ss. Oculto o ser desprovido de si mes-
mo, revelada está apenas para ele a certeza de si próprio. A relação
do tempo com a história. O espírito que concebe extingue o tempo.
Experiência e saber, transformação da substância em sujeito, do
objeto da consciência no objeto da autoconsciência, i. é, em objeto na
mesma medida superado ou conceito. Somente enquanto é esse devir
refletindo-se em si ele é, na verdade, o espírito. Na medida em que
o espírito é, portanto, necessariamente esse diferenciar[-se] em si, o
seu todo comparece, intuído face à sua simples autoconsciência, e
uma vez que, portanto, aquele é o diferenciado, ele está diferenciado
no seu conceito puro intuído, no tempo, e no conteúdo, o em si;
a substância como sujeito tem de expor a necessidade unicamente
interior nela, [tem de] se [expor] nela própria tal como em si é, como
espírito. A exposição objetiva completa é simultaneamente a reflexão
da mesma ou o devir da mesma para si mesma. Antes, portanto,
que o espírito não se complete em si como espírito do mundo, ele
não pode alcançar o seu completamento (Vollendung) como espírito
autoconsciente.
O conteúdo da religião exprime, por isso, mais cedo no
tempo do que a ciência, o que o espírito é, mas somente esta é
o seu verdadeiro saber dele mesmo. ... O movimento, a forma
do seu saber de si.277

277 O manuscrito interrompe-se aqui. No texto de Hegel pode ler-se: “O movimento,


a forma de tirar de si para fora o seu saber, é o trabalho que ele leva a cabo como
história real.” (Hegel, Phänomenologie..., TW, vol. 3, p. 586. (N. Ed.)

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Notas
1 Adam Smith, Recherches sur la nature et les causes de la richesse des nations. Trad.
nouv., avec des notes et observations; par Germain Garnier, t. 1 e 2, Paris, 1802,
t. 2, p. 162: “La classe des propriétaires peut gagner peut-être plus que celle-ci à
la prospérité de la société; mais aucune ne souffre aussi cruellement de son déclin,
que la classe des ouvriers.”
2 Id., ibid., t. 1, p. 193: “Dans un pays qui aurait atteint le dernier degré de richesse
... les salaires du travail et les profits des capitaux seraient probablement très-bas
tous les deux. ... la concurrence, pour obtenir de l’occupation, serait nécessairement
telle, que les salaires y seraient réduits à ce qui est purement suffisant pour maintenir
le même nombre d’ouvriers, et le pays étant déjà pleinement peuplé, ce nombre ne
pourrait jamais augmenter.”
3 Constantin Pecqueur, Théorie nouvelle d’ économie sociale et politique, ou études sur
l’organisation des sociétés, Paris, 1842, p. 409-410: “Ce sont alors des domestiques, et
la part de richesses qu’ils reçoivent en retour s’appelle gages. Ils concourent avec eux
ou sous leurs ordres à l’oeuvre de production des richesses agricoles, manufacturières
et commerciales; et alors ce sont des ouvriers: et la part de richesse qu’ils reçoivent se
nomme salaire. IIs dirigent le travail, ou ils remplissent diverses fonctions de l’ordre
intellectuel ou de surveillance qui assurent l’oeuvre de production, pour le compte
du propriétaire; et alors, sous le nom d’employés, ils obtiennent plus de considération,
plus de stabilité dans leur fonction, que les ouvriers au jour ou à la semaine, et la
part de richesse qui leur est échue prend le nom de traitement ou d’émoluments, et
se paie au mois ou à l’année.”
4 Id., ibid., p. 411: “Des propriétaires qui prêtent à intérêt la matière du travail aux
prolétaires. Or, emprunter du travail moyennant intérêt, c’est prêter la matière du
travail à intérêt, tout comme emprunter la matière du travail à intérêt, c’est prêter
son travail à intérêt. Et en définitive, faire quelqu’une de ces choses, c’est ou faire
travailler autrui à sa place, ou travailler à la place d’autrui: ce qui est le point juste
ou se noue le noeud gordien de l’économie politique du passé, noeud fatal, qui
constitue, avec l’esclavage ou avec la servitude mitigée, l’immoralité la plus flagrante,
au dire de saint Paul, qui déclare que celui qui ne veut pas travailler n’a point le
droit de manger. Ainsi donc tout se réduit à ces deux moments: louer son travail et
louer la matière du travail; mais quelle différence entre ces deux modes de location!
Louer son travail, c’est commencer son esclavage; louer la matière du travail, c’est
constituer sa liberté.”
5 Id., ibid., p. 418: “... parmi nous, la dignité humaine est si bas ravalée, que des
cadavres vivants qu’on nomme chiffonniers, sortent quotidiennement de leur tombe à
l’heure des ténebres et s’en vont, munis d’une lanterne, d’un crochet et d’une hotte,
à la recherche de guenilles, remuer et fouiller les tas d’immondices de nos riches
et fastueuses cités! et tant d’ignominie pour gagner les plus pressantes nécessités
d’une vie mourante!”
6 Charles Loudon, Solution du problème de la population et de la subsistance, soumise
a un médecin dans une série de lettres, Paris, 1842, p. 228: “Je doute fort qu’il y ait

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beaucoup plus de 60 à 70,000 filles publiques dans les trois royaumes réunis. On
peut estimer égal le nombre de femmes d’une vertu douteuse.”
7 Eugène Buret, De la misère des classes laborieuses en Angleterre et en France; de la
nature de la misère, de son existence, de ses effets, de ses causes, et de l’ insuffisance
des remèdes qu’on lui a opposés jusqu’ ici, avec l’ indication des moyens propres à en
affranchir les sociétés, t. 1, Paris, 1840, p. 42-43: “Suivant cette théorie, le travail
est considéré abstraitement comme une chose, et l’économiste qui étudie les varia-
tions de l’offre et de la demande, oublie que la vie, la santé, la moralité de plusieurs
millions d’hommes sont engagées dans la question; le travail est une marchandise:
si le prix en est élevé, c’est que la marchandise est très-demandée; si, au contraire,
il est très-bas, c’est qu’elle est très-offerte; et de cette façon, quand on spécule ainsi,
rien ne vient troubler votre sang-froid ni déranger vos calculs.”
“Comme marchandise, le travail doit de plus en plus baisser de prix; car la concur-
rence exerce une double pression pour le réduire, pression de la part de ceux qui
emploient le travail et qui s’efforcent de l’obtenir au meilleur marché possible, au
moyen de machines et d’inventions nouvelles; pression de la part des travailleurs,
qui, agglomérés sur un même point et de plus en plus nombreux, offrent leur travail
au rabais ...”
8 Id., ibid., p. 44: “... si les grands ateliers achètent de préférence le travail des enfants
et des femmes qui coûte moins que celui des hommes ...”
9 Id., ibid., p. 50: “... que le salaire n’était pas le résultat d’un libre marché, ou, si
l’on veut, que le travail n’était pas une marchandise.”
10 Id., ibid., p. 52-53: “... le régime économique actuel ... abaisse à la fois et le prix et
la rémunération du travail, il perfectionne l’ouvrier et dégrade l’homme.”
11 Id., ibid., p. 68-69: “La guerre industrielle demande pour être menée avec succès
des armées nombreuses qu’elle puisse entasser sur le même point et décimer large-
ment. Et ce n’est ni par dévoûment, ni par devoir, que les soldats de cette armée
supportent les fatigues qu’on leur impose; c’est uniquement pour échapper à la
dure nécessité de la faim. Ils n’ont ni affection, ni reconnaissance pour leurs chefs;
les chefs ne tiennent à leurs inférieurs par aucun sentiment de bienveillance; ils ne
les connaissent pas comme hommes, mais seulement comme des instruments de
production qui doivent rapporter beaucoup en dépensant le moins possible. Ces
populations de travailleurs, de plus en plus pressées, n’ont pas même la sécurité
d’être toujours employées; l’industrie qui les a convoquées ne les fait vivre que
quand elle a besoin d’elles, et, sitôt qu’elle peut s’en passer, elle les abandonne
sans le moindre souci; et les travailleurs, mis à la reforme, sont forcés d’offrir leur
personne et leur force pour le prix qu’on veut bien leur accorder. Plus le travail
qu’on leur donne est long, pénible et fastidieux, moins ils sont rétribués; on en
voit qui, avec seize heures par jour d’efforts continus, achètent à peine le droit de
ne pas mourir!”
12 Jean-Baptiste Say, Traité d’ économie politique, ou simple exposition de la manière dont
se forment, se distribuent et se consomment les richesses, 3. éd., t. 1 e 2, Paris, 1817, t.
1, p. 136: “... en supposant même que le capital ne soit le fruit d’aucune spoliation
... il faut encore ... le concours de la législation pour en consacrer l’hérédité ...”

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13 Id., ibid., t. 2, p. 4: “Or, comment est-on propriétaire de ces fonds productifs? et


par suite, comment est-on propriétaire des produits qui peuvent en sortir? Ici, le
droit positif est venu ajouter sa sanction au droit naturel.”
14 Adam Smith, Recherches..., t. 1, p. 61: “... celui qui acquiert une grande fortune ou
qui l’a par héritage, n’acquiert par-là nécessairement aucun pouvoir politique ... Le
genre de pouvoir que cette possession lui transmet immédiatement et directement,
c’est le pouvoir d’acheter; c’est un droit de commandement sur tout le travail d’autrui,
ou sur tout le produit de ce travail existant alors au marché.”
15 Id., ibid., t. 2, p. 191: “De la nature des fonds (1) [nota de pé de página de Garnier:]
... il signifie tout amas quelconque des produits de la terre ou du travail des manu-
factures ... Il ne prend le nom de capital que lorsqu’il rapporte à son propriétaire
un revenu ou un profit quelconque.”
16 Id., ibid., t. 1, p. 97-99: “Les profits des fonds ... sont cependant d’une nature
absolument différente des salaires... Ils se reglent en entier sur la valeur du capital
employé ... Mais ... il se peut que leur travail d’inspection et de direction soit tout-
-à-fait le même ou très-approchant. Dans beaucoup de grandes fabriques souvent
presque tout le travail de ce genre est confié à un principal commis. Ses salaires ...
ne gardent jamais de proportion réglée avec le capital dont il surveille la régie; et le
propriétaire de ce capital, bien qu’il se trouve par-là débarrassé de presque tout le
travail, n’ en compte pas moins que ses profits seront en proportion réglée avec son
capital.”
17 Id., ibid., t. I, p. 97: “Il n’aurait pas d’intérêt à employer ces ouvriers, s’il n’attendait
pas de la vente de leur ouvrage quelque chose de plus que ce qu’il fallait pour lui
remplacer ses fonds, et il n’aurait pas d’intérêt à employer une grosse somme de
fonds plutôt qu’une petite, si ses profits ne gardaient pas quelque proportion avec
l’étendue des fonds employés.”
18 Id., ibid., t. I, p. 179-180: “Nous avons déjà observé qu’il était difficile de déterminer
quel est le taux moyen des salaires du travail, dans un lieu et dans un temps parti-
culier ... mais ceci même ne peut guere s’obtenir à l’égard des profits de capitaux ...
Ce profit se ressent, non-seulement de chaque variation qui survient dans le prix des
marchandises sur lesquelles elle commerce, mais encore de la bonne ou mauvaise
fortune de ses rivaux et de ses pratiques, et de mille autres accidents auxquels les
marchandises sont exposées, soit dans leur transport par terre ou par mer, soit même
quand on les tient en magasin. Il varie donc, non-seulement d’une année à l’autre,
mais même d’un jour à l’autre, et presque d’heure en heure.”
19 Id., ibid., t. I, p. 180-181: “Mais quoiqu’il soit peut-être impossible de déterminer
avec quelque précision quels sont ou quels ont été les profits moyens des capitaux,
soit à présent, soit dans les temps anciens, cependant on peut s’en faire quelque idée
d’après l’intérêt de l’argent. On peut établir pour maxime que partout où on pourra
faire beaucoup de profits par le moyen de l’argent, on donnera communément
beaucoup pour avoir la faculté de s’en servir, et qu’on donnera en général moins
quand il n’y aura que peu de profits à faire par son moyen.”
20 Id., ibid., t. I, p. 198: “La proportion que le taux ordinaire de l’intérêt, au cours
de la place, doit garder avec le taux ordinaire du profit net, varie nécessairement,

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selon que le profit hausse ou baisse. Dans la Grande-Bretagne, on porte au double


de l’intérêt ce que les commerçans appellent un profit honnête, modéré, raisonnable;
toutes expressions qui, à mon avis, ne signifient autre chose qu’un profit commun
et d’usage.”
21 Id., ibid., t. I, p. 196: “Le taux le plus bas des profits ordinaires des capitaux doit
toujours être quelque chose au-delà de ce qu’il faut pour compenser les pertes
accidentelles auxquelles est exposé chaque emploi de capital. Il n’y a que ce surplus
qui constitue vraiment le profit ou le bénéfice net. ... Il faut aussi que le taux le plus
bas de l’intérêt ordinaire soit quelque chose au-delà de ce qui est suffisant pour
compenser les pertes accidentelles ...”
22 Id., ibid., t. I, p. 197-198: “Le taux le plus élevé auquel puissent monter les profits
ordinaires, est celui qui, dans la plus grande partie des marchandises, emporte la
totalité de ce qui devrait aller à la rente de la terre, et laisse seulement ce qui est
nécessaire pour salarier le travail de préparer la marchandise et de la conduire au
marché, au taux le plus bas auquel le travail puisse jamais être payé, c’est-à-dire, la
simple subsistance de l’ouvrier. Il faut toujours que, de manière ou d’autre, l’ouvrier
ait été nourri pendant le temps que l’ouvrage lui a employé; mais il peut très-bien
se faire que le propriétaire de la terre n’ait pas eu de rente. Les profits du commerce
que tiennent au Bengale les employés de la compagnie des Indes orientales, ne sont
peut-être pas très-éloignés de ce taux excessif.”
23 Id., ibid., t. I, p. 120-124: “... quoique le prix de marché de chaque marchandise
particulière tende ainsi, par une gravitation continuelle ... tenir assez long-temps de
suite le prix de marché au dessus du prix naturel. Lorsque, par une augmentation dans
la demande effective, le prix de marché de quelque marchandise particulière vient à
s’élever considérablement au dessus du prix naturel, ceux qui emploient leurs capi-
taux à fournir le marché de cette marchandise, ont en général grand soin de cacher
ce changement. S’il était bien connu, leurs grands profits leur susciteraient tant de
nouveaux rivaux qui seraient tentés d’employer leurs capitaux de la même manière,
que la demande effective étant pleinement remplie, le prix de marché redescendrait
bientôt aux prix naturel, et peut-être même au dessous pour quelque temps. Si le
marché est à une grande distance de ceux qui le fournissent, ils peuvent quelque
fois être à même de garder leur secret pendant plusieurs années de suite, et jouir
pendant tout ce temps de leurs profits extraordinaires, sans éveiller de nouveaux
rivaux. ... Les secrets de fabrique sont de nature à être gardés plus longtemps que les
secrets de commerce. ... Son gain extraordinaire procède du haut prix qu’on lui paie
pour son travail particulier; ce gain consiste proprement dans les hauts salaires de ce
travail. Mais comme ils se trouvent être répétés sur chaque partie de son capital, et
que leur somme totale conserve, à ce moyen, une proportion réglée avec ce capital,
on les regarde communément comme des profits extraordinaires de capital. ... Il y
a telles productions naturelles qui exigent un sol et une exposition particulière, de
sorte que toute la terre propre à les produire dans un grand pays, ne suffit pas pour
répondre à la demande effective. ... Un monopol accordé à un individu ou à une
compagnie commerçante a le même effet qu’un secret dans un genre de commerce
ou de fabrique. ... Le prix de monopole est, à tous les moments, le plus haut qu’il soit
possible de retirer.”

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24 Id., ibid., t. I, p. 190: “L’acquisition d’un nouveau territoire ou de quelques nouvelles


branches de commerce peut quelquefois élever les profits des capitaux, et avec eux
l’intérêt de l’argent, même dans un pays qui fait des progrès rapides vers l’opulence.
... Une partie de ce qui était auparavant employé dans d’autres commerces, en est
nécessairement retirée pour être versée dans ces affaires nouvelles qui sont plus
profitables; ainsi, dans toutes ces anciennes branches de commerce, la concurreuce
devient moindre qu’auparavant. Le marché vient à être moins complétement fourni
de plusieurs différentes sortes de marchandises. Le prix de celles-ci hausse nécessai-
rement plus ou moins, et rend un plus gros profit à ceux qui en trafiquent; ce qui
les met dans le cas de payer un intérêt plus fort des prêts qu’on leur fait.”
25 Id., ibid., t. I, p. 102-103: “A mesure qu’une marchandise particulière vient à être
plus manufacturée, cette partie du prix qui se résout en salaires et en profits, devient
plus grande à proportion de la partie qui se résout en rente. Dans les progrès que
fait la main-d’oeuvre sur cette marchandise, non-seulement le nombre des profits
augmente, mais chaque profit subséquent est plus grand que le précédent, parce
que le capital d’où il procède est nécessairement toujours plus grand. Le capital qui
met en oeuvre les tisserands, par exemple, est nécessairement plus grand que celui
qui fait travailler les fileurs, parce que non-seulement il remplace ce dernier capital
avec ses profits, mais il paie encore en outre les salaires des tisserands; et, comme
nous l’avons vu, il faut toujours que les profits gardent une sorte de proportion avec
le capital.”
26 Id., ibid., t. I, p. 228: “... dans une même société ou canton, le taux moyen des profits
ordinaires dans les différents emplois des capitaux se trouvera bien plus proche du
même niveau, que celui des salaires pécuniaires des diverses espêces de travai1...”
27 Id., ibid., t. 1, p. 226-227: “Dans tous les divers emplois de capitaux, le taux
ordinaire du profit varie plus ou moins, suivant le plus ou moins de certitude des
rentrées. ... Le taux ordinaire du profit s’éleve toujours plus ou moins avec le risque.
Il ne paraît pas pourtant qu’il s’élève à proportion du risque, ou de manière à le
compenser parfaitement.”
28 Id., ibid., t. I, p. 400-401: “Le seul motif qui détermine le possesseur d’un capital
à l’employer plutôt dans l’agriculture ou dans les manufactures, ou dans quelque
branche particulière de commerce en gros ou en détail, c’est la vue de son propre
profit. Il n’entre jamais dans sa pensée de calculer combien chacun de ces différents
genres d’emploi mettra de travail productif en activité, ou ajoutera de valeur au
produit annuel des terres et du travail de son pays.”
29 Jean-Baptiste Say, Traité d’ économie politique..., t. 2, p. 130-131: “L’emploi de capital
le plus avantageux pour le capitaliste est celui qui, à sureté égale, lui rapporte le
plus gros profit; mais cet emploi peut ne pas être le plus avantageux pour la société
... tous les capitaux employés à tirer parti des forces productives de la nature sont
les plus avantageusement employés.”
30 Adam Smith, Recherches..., t. 2, p. 163-165: “Les opérations les plus importantes
du travail sont réglées et dirigées d’après les plans et les spéculations de ceux qui
emploient les capitaux; et le but qu’ils se proposent dans tous ces plans et ces spé-
culations, c’est le profit. Or, le taux du profit ne hausse point, comme la rente et

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les salaires, avec la prospérité de la société, et ne tombe pas; comme eux, avec sa
décadence. Au contraire, ce taux est naturellement bas dans les pays riches, et haut
dans les pays pauvres; et jamais il n’est si haut que dans ceux qui se précipitent le plus
rapidement vers leur mine. L’intérêt de cette troisième classe n’a donc pas la même
liaison que celui des deux autres, avec l’intérêt général de la société. ... Cependant
l’intérêt particulier de ceux qui exercent une branche particulière de commerce ou
de manufacture, est toujours, à quelques égards, différent et même contraire à celui
du public. L’intérêt du marchand est toujours d’agrandir le marché et de restreindre
la concurrence des vendeurs. ... Cette proposition vient d’une classe de gens dont
l’intérêt ne saurait jamais être exactement le même que l’intérêt de la société, qui
ont en général intérêt à tromper le public et même à le surcharger...”
31 Id., ibid., t. I, p. 179: “L’accroissement des capitaux qui fait hausser les salaires,
tend à abaisser les profits. Quand les capitaux de beaucoup de riches commerçants
sont versés dans un même genre de commerce, leur concurrence mutuelle tend
naturellement à en faire baisser les profits...”
32 Id., ibid., t. 2, p. 372-373: “Ainsi le capital qu’on peut employer au commerce
d’épicerie, ne saurait excéder ce qu’il faut pour acheter cette quantité. Si ce capital
se trouve partagé entre deux différents épiciers, la concurrence fera que chacun
d’eux vendra à meilleur marché que si le capital eut été dans les mains d’un seul; et
s’il est divisé entre vingt, la concurrence en sera précisément d’autant plus active, et
il y aura aussi d’autant moins de chance qu’ils puissent se concerter entr’eux pour
hausser le prix de leurs marchandises.”
33 Id., ibid., t. I, p. 201: “La hausse des salaires opère en haussant le prix d’une mar-
chandise, comme opère l’intérêt simple dans l’accumulation d’une dette. La hausse
des profits opère comme l’intérêt composé.”
34 Id., ibid., t. I, p. 196-197: “Dans un pays qui est parvenu au comble de sa mesure
de richesse... comme le taux ordinaire du profit net y sera très-petit, il s’ensuivra
que le taux de l’intérêt ordinaire que ce profit pourra suffire à payer, sera trop bas
pour qu’il soit possible, à d’autres qu’aux gens très-riches, de vivre de l’intérêt de
leur argent. Tout les gens de fortune bornée ou médiocre seront obligés de diriger
par leurs mains l’emploi de leurs capitaux. Il faudra absolument que tout homme
à peu près soit dans les affaires ou intéressé dans quelque genre de commerce.”
35 Id., ibid., t. 2, p. 325: “C’est ... la proportion existante entre la somme des capitaux
et celle des revenus qui détermine partout la proportion dans laquelle se trouveront
l’industrie et la fainéantise: partout où les capitaux l’emportent, c’est l’industrie qui
domine; partout ou ce sont les revenus, le fainéantise prévaut.”
36 Id., ibid., t. 2, p. 358-359: “... à mesure que les capitaux se multiplient, la quantité
de fonds à prêter à intérêt devient successivement de plus en plus grande. À mesure
que la quantité des fonds à prêter à intérêt vient à augmenter, l’ intérêt ... va nécessai-
rement en diminuant, non-seulement en vertu de ces causes générales qui font que
le prix de marché de toutes choses diminue à mesure que la quantité de ces choses
augmente, mais encore en vertu d’autres causes qui sont particulières à ce cas-ci. À
mesure que les capitaux se multiplient dans un pays, le profit qu’on peut faire en les
employant diminue nécessairement: il devient successivement de plus en plus difficile

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de trouver dans ce pays une manière profitable d’employer un nouveau capital. En


conséquence il s’éleve une concurrence entre les différents capitaux; le possesseur
d’un capital faisant tous ses efforts pour s’emparer de l’emploi qui se trouve occupé
par un autre. Mais le plus souvent il ne peut espérer de débusquer de son emploi cet
autre capital, sinon par des offres de traiter à de meilleures conditions. Il se trouve
obligé, non-seulement de vendre la chose sur laquelle il commerce quelque peu
meilleur marché, mais encore, pour trouver occasion de la vendre, il est quelquefois
aussi obligé de l’acheter plus cher. Le fonds destiné à l’entretien du travail productif
grossissant de jour en jour, la demande qu’on fait de ce travail devient aussi de jour
en jour plus grande: les ouvriers trouvent aisément de l’emploi, mais les possesseurs
de capitaux ont de la difficulté à trouver des ouvriers à employer. La concurrence
des capitalistes fait hausser les salaires du travail et fait baisser les profits.”
37 Id., ibid., t. 2, p. 359: “Or, lorsque le bénéfice qu’on peut retirer de l’usage d’un
capital se trouve ainsi pour ainsi dire rogné à la fois par les deux bouts, il faut bien
nécessairement que le prix qu’on peut payer pour l’usage de ce capital diminue en
même temps que ce bénéfice.”
38 Id., ibid., t. I, p. 189: “À mesure de l’augmentation des richesses, de l’industrie et
de la population, l’intérêt a diminué. Les salaires du travail ne baissent pas comme
les profits des capitaux. La demande de travail augmente avec l’accroissement des
capitaux, quels que soient les profits; et après que ces profits ont baissé, les capi-
taux n’en augmentent pas moins; ils continuent même à augmenter bien plus vite
qu’auparavant. Il en est des nations industrieuses qui sont en train de s’enrichir,
comme des individus industrieux. Un gros capital, quoiqu’avec de petits profits,
augmente en général plus promptement qu’un petit capital avec de gros profits.
L’argent fait l’argent, dit le proverbe.”
39 Id., ibid., t. 2, p. 197-198: “Il y a deux manières différentes d’employer un capital
pour qu’il rende un revenu ou profit à celui qui l’emploie. D’abord, on peut l’employer
à faire croître des denrées, à les manufacturer ou à les acheter pour les revendre avec
profit. Le capital employé de cette manière ne peut rendre à son maître de revenu
ou de profit, tant qu’il reste en sa possession ou tant qu’il continue à rester sous
la même forme. ... Ce capital sort continuellement de ses mains sous une forme
pour y rentrer sous une autre, et ce n’est qu’au moyen de cette circulation ou de ces
échanges sucessifs qu’il peut lui rendre quelque profit. Des capitaux de ce genre
peuvent donc être très-proprement nommés capitaux circulants. En second lieu, on
peut employer un capital à améliorer des terres ou à acheter des machines utiles et
des instruments de métier, ou d’autres choses semblables qui puissent donner un
revenu ou profit, sans changer de maître ou sans qu’elles aient besoin de circuler
davantage: ces sortes de capitaux peuvent donc très-bien être distingués par le nom
de capitaux fixes.”
40 Id., ibid., t. 2, p. 226: “... toute épargne dans la dépense d’entretien du capital fixe est
une bonification du revenu net de la société. La totalité du capital de l’entrepreneur
d’un ouvrage quelconque est nécessairement partagée entre son capital fixe et son
capital circulant. Tant que son capital total reste le même, plus l’une des deux parts
est petite, plus l’autre sera nécessairement grande. C’est le capital circulant qui fournit
les matières et les salaires du travail, et qui met l’industrie en activité. Ainsi toute

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épargne dans la dépense d’entretien du capital fixe, qui ne diminue pas dans le tra
vail la puissance productive, doit augmenter le fonds...”
41 Id., ibid., t. 2, p. 382: “ll y a beaucoup d’endroits dans la Grande-Bretagne, où les
habitants n’ont pas de capitaux suffisants pour cultiver et améliorer leurs terres. La
laine des provinces du midi de l’Écosse vient, en grande partie, faire un long voyage
par terre dans de fort mauvaises routes, pour être manufacturée dans le comte d’York,
faute de capital pour être manufacturée sur les lieux. Il y a en Angleterre plusieurs
petites villes de fabriques, dont les habitants manquent de capitaux suffisants pour
transporter le produit de leur propre industrie à ces marchés éloignés où il trouve
des demandes et des consommateurs. Si on y voit quelques marchands, ce ne sont
proprement que les agents de marchands plus riches qui résident dans quelques-unes
des grandes villes commerçantes.”
42 Id., ibid., t. 2, p. 193-194: “Puis donc que, dans la nature des choses, l’accumulation
d’un capital est un préalable nécessaire à la division du travail, le travail ne peut pas
recevoir de subdivisions ultérieures qu’à proportion que les capitaux se sont préa-
lablement accumulés de plus en plus. À mesure que le travail vient à se subdiviser,
la quantité de matières qu’un même nombre de personnes peut mettre en oeuvre
augmente dans une grande proportion; et comme la tâche de chaque ouvrier se
trouve successivement réduite à un plus grand degré de simplicité, il arrive qu’on
invente une foule de nouvelles machines pour faciliter et abréger ces tâches. A
mesure donc que la division de travail va en s’étendant, il faut, pour qu’un même
nombre d’ouvriers soit constamment occupé, qu’on accumule d’avance une égale
provision de vivres et une provision de matières et d’outils plus forte que celle qui
aurait été nécessaire dans un état de choses moins avancé. Or, le nombre des ou-
vriers augmente en général dans chaque branche d’ouvrage, en même temps qu’y
augmente la division de travail, ou plutôt c’est l’augmentation de leur nombre qui
les met à portée de se classer et de se subdiviser de cette manière.”
43 Id., ibid., t. 2, p. 194-195: “De même que le travail ne peut acquérir cette grande
extension de puissance productive, sans une accumulation préalable de capitaux, de
même l’accumulation des capitaux amène naturellement cette extension. La personne
qui emploie son capital à faire travailler, cherche nécessairement à l’employer de
manière à ce qu’il fasse produire la plus grande quantité possible d’ouvrage: elle
tâche donc à la fois d’établir entre ses ouvriers la distribution de travaux la plus
convenable, et des les fournir des meilleures machines qu’elle puisse imaginer ou
qu’elle soit à même de se procurer. Ses moyens pour réussir dans ces deux objects,
sont propor tionnés en général à l’étendue de son capital ou au nombre de gens que
ce capital peut tenir occupés. Ainsi non-seulement la quantité d’industrie augment
dans un pays à mesure de l’accroissement du capital qui la met en activité, mais
encore, par une suite de cet accroissement, la même quantité d’industrie produit
une beaucoup plus grande quantité d’ouvrage.”
44 Id., ibid., t. 2, p. 215-216: “Dans une loterie parfaitement égale, ceux qui tirent les
billets gagnants doivent gagner tout ce qui est perdu par ceux qui tirent les billets
blancs. Dans une profession ou il y en a vingt qui échouent contre un qui réussit, cet
un doit gagner tout ce qui aurait pu être gagné par les vingt malheureux. L’avocat,
qui commence peut-être à pres de quarante ans à tirer parti de sa profession, doit

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recevoir la rétribution, non -seulement de l’éducation si longue et si coûteuse qu’il


s’est donnée, mais encore de celle que se sont donnée plus de vingt autres étudiants,
à qui probablement cette éducation ne rapportera jamais rien.”
45 Jean-Baptiste Say, Traité d’ économie politique..., t. 1, p. 136. Nota de pé de página:
“Ils établissent un droit supérieur à celui des propriétaires de terre, qui remonte à
une spoliation ...”
46 Adam Smith, Recherches..., t. 1, p. 99: “... les propriétaires, comme tous les autres
hommes, aiment à recueillir où ils n’ont pas semé, et ils demandent une rente, même
pour le produit naturel de la terre.”
47 Id., ibid., t. 1, p. 300-301: “On pourrait se figurer que la rente de la terre n’est souvent
autre chose qu’un profit ou un intérêt raisonnable du capital que le propriétaire a
employé à l’amélioration de la terre ... il y a des circonstances où la rente pourrait
être regardée comme telle en partie ... Le propriétaire exige une rente même pour la
terre non améliorée, et ce qu’on pourrait supposer être intérêt ou profit des dépenses
d’amélioration, n’est en général qu’une addition à cette rente primitive; d’ailleurs,
ces améliorations ne sont pas toujours faites avec les fonds du propriétaire, mais
quelquefois avec ceux du fermier: cependant, quand il s’agit de renouveler le bail, le
propriétaire exige ordinairement la même augmentation de rente, que si toutes ces
améliorations eussent été faites de ses propres fonds. Il exige quelquefois une rente
pour ce qui est tout-à-fait incapable d’être amélioré par la main des hommes.”
48 Id., ibid., t. 1, p. 301-302: “La salicorne est une espèce de plante marine qui donne,
quand elle est brûlée, un sel alkali dont on se sert pour faire du verre, du savon, et
pour plusieurs autres usages; elle croit en différents endroits de la Grande-Bretagne,
particulièrement en Ecosse, et seulement sur des rochers situés au dessous de la haute
marée, qui sont deux fois par jour couverts par les eaux de la mer, et dont le produit,
par conséquent, n’ a jamais été augmenté par l’industrie des hommes. Cependant
le propriétaire d’un domaine borné par un rivage où croît cette espèce de salicorne,
en exige une rente, tout aussi bien que de ses terres à blé. Dans le voisinage des îles
de Shetland, la mer est extraordinairement abondante en poisson, ce qui fait une
grande partie de la subsistance de leurs habitants; mais, pour tirer parti du produit
de la mer, il faut avoir une habitation sur la terre voisine. La rente du propriétaire
est en proportion, non de ce que le fermier peut faire avec la terre, mais de ce qu’il
peut faire avec la terre et la mer ensemble.”
49 Id., ibid., t. 2, p. 377-378: “On peut considérer cette rente comme le produit de cette
puissance de la nature, dont le propriétaire prête 1’usage au fermier. Ce produit est
plus ou moins grand, selon qu’on suppose à cette puissance plus ou moins d’étendue,
ou en autres termes, selon qu’on suppose à la terre plus ou moins de fertilité naturelle
ou artificielle. C’est l’oeuvre de la nature qui reste après qu’on a fait la déduction ou
la balance de tout ce qu’on peut regarder comme 1’oeuvre de l’homme.”
50 Id., ibid., t. 1, p. 302: “La rente de la terre, considérée comme le prix payé pour
l’usage de la terre, est donc naturellement un prix de monopole. Elle n’est nullement
en proportion de ce que le propriétaire peut avoir placé sur sa terre en améliorations,
ou de ce qu’il lui suffirait de prendre pour ne pas perdre, mais bien de ce que le
fermier peut suffire à donner sans perdre. ”

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51 Id., ibid., t. 2, p. 161: “Des trois classes, c’est la seule à laquelle son revenu ne coûte
ni travail ni souci, mais à laquelle il vient pour ainsi dire de luimême, et sans qu’elle
y apporte aucun dessein ni plan quelconque.”
52 Id., ibid., t. I, p. 306: “La rente varie selon la fertilité de la terre, quel que soit son
produit, et selon sa situation, quelle que soit sa fertilité.”
53 Id., ibid., t. I, p. 210: “En supposant des terres, des mines et des pêcheries d’une
égale fécondité, le produit qu’elles rendront sera en proportion de l’étendue des
capitaux qu’on emploiera à leur culture et exploitation, et de la manière plus ou
moins convenable dont ces capitaux seront appliqués. En supposant des capitaux
égaux et également bien appliqués, ce produit sera en proportion de la fécondité
naturelle des terres, des mines et des pêcheries.”
54 Id., ibid., t. I, p. 299-300: “Le propriétaire, lors de la stipulation des clauses du bail,
tâche, autant qu’il peut, de ne lui pas laisser dans le produit une portion plus forte
que ce qu’il faut pour remplacer le capital qui fournit la semence, paie le travail,
achète et entretient les bestiaux et autres instruments de labourage, et pour lui
donner en outre les profits ordinaires que rendent les fermes dans le canton. Cette
portion est évidemment la plus petite dont le fermier puisse se contenter sans être
en perte, et le propriétaire est raremente d’avis de lui en laisser davantage. Tout
ce qui reste du produit ou de son prix ... au-delà de cette portion, quel que puisse
être ce reste, le propriétaire tâche de se le réserver comme rente de sa terre; ce qui
est évidemment la plus forte rente que le fermier puisse suffire à payer, dans l’état
actuel de la terre. ... ce surplus peut toujours être regardé comme la rente naturelle
de la terre, ou la rente moyennant laquelle on peut naturellement penser que seront
louées la plupart des terres.”
55 Jean-Baptiste Say, Traité d’ économie politique..., t. 2, p. 142-143: “Les propriétaires
terriens ... exercent ... une espèce de monopole envers les fermiers. La demande de
leur denrée, qui est le terrain, peut s’étendre sans cesse; mais la quantité de leur
denrée ne s’étend que jusqu’à un certain point ... le marché qui se conclut entre
le propriétaire et le fermier, est toujours aussi avantageux qu’il peut l’être pour le
premier ... Outre cet avantage que le propriétaire tient de la nature des choses, il
en tire un autre de sa position, qui d’ordinaire lui donne sur le fermier l’ascendant
d’une fortune plus grande, et quelquefois celui du crédit et des places; mais le
premier de ces avantages suffit pour qu’il soit toujours à même de profiter seul
des circonstances favorables aux profits de la terre. L’ouverture d’un canal, d’un
chemin, les progrès de la population et de l’aisance d’un canton, élevent toujours
le prix des fermages. ... Le fermier lui-même peut améliorer le fonds à ses frais;
mais c’est un capital dont il ne tire les intérêts que pendant la durée de son bail,
et qui, à l’expiration de ce bail, ne pouvant être emporté, demeure au propriétaire;
dès ce moment, celui-ci en retire les intérêts sans en avoir fait les avances, car le
loyer s’élève en proportion.”
56 Adam Smith, Recherches..., t. 1, p. 299: “La rente, considérée comme le prix payé
pour l’usage de la terre, est naturellement le prix le plus haut que le fermier soit en
état de payer, dans les circonstances où se trouve la terre pour le moment.”

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57 Id., ibid., t. I, p. 351: “La rente d’un bien à la surface de la terre, monte communé-
ment à ce qu’on suppose être le tiers du produit total, et c’est pour l’ordinaire une
rente fixe et indépendante des variations accidentelles de la récolte.”
58 Id., ibid., t. 2, p. 378: “C’est rarement moins du quart ... du produit total.”
59 Id., ibid., t. I, p. 341: “Une bonne carrière de pierre, dans le voisinage de Londres,
fournirait une rente considérable. Dans beaucoup d’endroits d’Ecosse et de la
province de Galles, elle n’en rapportera aucune.”
60 Id., ibid., t. I, p. 302-303: “On ne peut porter ordinairement au marché que ces
parties seulement du produit de la terre dont le prix ordinaire est suffisant pour
remplacer le capital qu’il faut employer pour les y porter, et les profits ordinaires de
ce capital. Si le prix ordinaire est plus que suffisant, le surplus en ira naturellement
à la rente de la terre. S’il n’est juste que suffisant, la marchandise pourra bien être
portée au marché, mais elle ne peut fournir à payer une rente au propriétaire. Le prix
sera-t-il ou ne sera-t-il pas plus que suffisant? C’est ce qui dépend de la demande.”
61 Id., ibid., t. I, p. 303-304: “... la rente entre dans la composition du prix des mar-
chandises, d’une autre manière que n’y entrent les salaires et les profits. Le taux haut
ou bas des salaires et des profits est la cause du haut ou bas prix des marchandises;
le taux haut ou bas de la rente est l’effet du prix ...”
62 Id., ibid., t. I, p. 305-306: “Les hommes, comme toutes les autres espèces anima-
les, se multipliant naturellement en proportion des moyens de leur subsistance, il
y a toujours plus ou moins demande de nourriture. Toujours la nourriture pourra
acheter ... une quantité plus ou moins grande de travail, et toujours il se trouvera
quelqu’un disposé à faire quelque chose pour la gagner. A la verité, ce qu’elle peut
acheter de travail n’est pas toujours égal à ce qu’elle pourrait en faire subsister si elle
était distribuée de la manière la plus économique, et cela à cause des forts salaires
qui sont quelquefois donnés au travail. Mais elle peut toujours acheter autant de
travail qu’elle peut en faire subsister, au taux auquel ce genre de travail subsiste
communément dans le pays. Or, la terre, dans presque toutes les situations possi-
bles, produit plus de nourriture que ce qu’il faut pour faire subsister tout le travail
qui concourt à mettre cette nourriture au marché ... Le surplus de cette nourriture
est aussi toujours plus que suffisant pour remplacer avec profit le capital qui fait
mouvoir ce travail. Ainsi, il reste toujours quelque chose pour donner une rente au
propriétaire.”
63 Id., ibid., t. I, p. 345: “... non-seulement c’est de la nourriture que la rente tire sa
première origine, mais encore si quelqu’autre partie du produit de la terre vient aussi
par la suite à rapporter une rente, elle doit cette addition de valeur à l’accroissement
de puissance qu’a acquis le travail pour produire de la nourriture, au moyen de la
culture et de l’amélioration de la terre.”
64 Id., ibid., t. I, p. 337: “La nourriture de l’homme paraît être le seul des produits de
la terre qui fournisse toujours, et nécessairement de quoi payer une rente quelconque
au propriétaire.”
65 Id., ibid., t. I, p. 342: “Les pays ne se peuplent pas en proportion du nombre que
leur produit peut vêtir e loger, mais en raison de celui que ce produit peut nourrir.”

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66 Id., ibid., t. I, p. 338-339: “Les deux plus grands besoins de l’homme, après la nour-
riture, sont le vêtement et le logement. La terre, dans son état primitif et inculte, peut
fournir des matériaux de vêtement et de logement pour beaucoup plus de personnes
qu’elle n’en peut nourrir. Dans son état de culture, au contraire, elle ne peut guère
fournir de ces sortes de matériaux à toutes les personnes qu’elle serait dans le cas de
nourrir, du moins tels que ces personnes voudraient les avoir et consentiraient à les
payer. Ainsi, dans le premier état, il y a toujours surabondance de ces matériaux,
qui nont souvent, pour cette raison, que peu ou point de prix. Dans l’autre, il y en
a souvent disète; ce qui augmente nécessairement leur valeur. Dans le premier état,
une grande partie de ces matières est jetée comme inutile, et le prix de celles dont on
fait usage est regardé comme équivalent seulement au travail et à la dépense de les
mettre en état de servir. Elles ne peuvent en conséquence fournir aucune rente au
propriétaire du sol. Dans l’autre, elles sont toutes mises en oeuvre, et il y a souvent
demande pour plus qu’on n’en peut avoir. Il se trouve toujours quelqu’un disposé
à donner, de chaque portion de ces matières, plus que ce qu’il faut pour payer la
dépense de les transporter au marché; ainsi leur prix peut toujours fournir quelque
chose pour faire une rente au propriétaire de la terre.”
67 Id., ibid., t. 1, p. 335: “La population augmenterait, et les rentes s’élèveraient
beaucoup au dessus de ce qu’elles sont aujourd’hui.”
68 Id., ibid., t. 2, p. 157-159: “... toute amélioration qui se fait dans l’état de la société,
tend, d’une manière directe ou indirecte, à faire monter la rente réelle de la terre,
à augmenter la richesse réelle du propriétaire, c’est-à-dire, son pouvoir d’acheter le
travail d’autrui ou le produit du travail d’autrui. L’extension de l’amélioration des
terres et de la culture y tend d’une manière directe. La part du propriétaire dans le
produit augmente nécessairement à mesure que le produit augmente. La hausse qui
survient dans le prix réel de ces sortes de produits bruts ... la hausse, par exemple,
du prix du bétail tend aussi à élever, d’une manière directe, la rente du propriétaire,
et dans une proportion encore plus forte. Non-seulement la valeur réelle de la part
du propriétaire, le pouvoir réel que cette part lui donne sur le travail d’autrui, aug-
mentent avec la valeur réelle du produit, mais encore la proportion de cette part,
relativement au produit total, augmente aussi avec cette valeur. Ce produit, après
avoir haussé dans son prix réel, n’exige pas plus de travail, pour être recueilli ...
pour suffire à remplacer le capital qui fait mouvoir ce travail, ensemble les profits
ordinaires de ce capital. La portion restante du produit, qui est la part du proprié-
taire, sera donc plus grande, relativement au tout, qu’elle ne l’était auparavant.”
69 Id., ibid., t. 2, p. 159: “Ces sortes d’améliorations dans la puissance productive du
travail, qui tendent directement à réduire le prix réel des ouvrages de manufacture,
tendent indirectement à élever la rente réelle de la terre. C’est contre du produit
manufacturé que le propriétaire échange cette partie de son produit brut, qui excède
sa consommation personelle, ou, ce qui revient au même, le prix de cette partie.
Tout ce qui réduit le prix réel de ce premier genre de produit, élève le prix réel du
second; une même quantité de ce produit brut répond dès-lors à une plus grande
quantité de ce produit manufacturé, et le propriétaire se trouve à portée d’acheter
une plus grande quantité des choses de commodité, d’ornement ou de luxe qu’il
desire se procurer.”

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70 Id., ibid., t. 2, p. 161: “Ce que nous venons de dire plus haut, fait voir que l’intérêt
de la première de ces trois grandes classes est étroitement et inséparablement lié à
l’intérêt général de la société.”
71 Id., ibid., t. 1, p. 331: “... la rente des terres cultivées pour produire la nourriture
des hommes, règle la rente de la plupart des autres terres cultivées.”
72 Id., ibid., t. I, p. 345-346: “On peut dire d’une mine en général, qu’elle est féconde
ou qu’elle est stérile, selon que la quantité de minéral que peut en tirer une certaine
quantité de travail, est plus ou moins grande que celle qu’une même quantité de
travail tirerait de la plupart des autres mines de la même espèce.”
73 Id., ibid., t. I, p. 350: “... le prix de la mine de charbon la plus féconde règle le
prix du charbon pour toutes les autres mines de son voisinage. Le propriétaire et
l’entrepreneur trouvent tous deux qu’ils pourront se faire, l’un une plus forte rente,
l’autre un plus gros profit en vendant quelque chose au dessous de tous leurs voisins.
Les voisins sont bientôt obligés de vendre au même prix, quoiqu’ils soient moins en
état d’y suffire, et quoique ce prix aille toujours en diminuant, et leur enlève même
quelquefois toute leur rente et tout leur profit. Quelques exploitations se trouvent
alors entièrement abandonnées; d’autre ne rapportent plus de rente, et ne peuvent
plus être continuées que par le propriétaire de la mine.”
74 Id., ibid., t. I, p. 353: “Après la découverte des mines du Pérou, les mines d’argent
d’Europe furent pour la plupart abandonnées. ... La même chose arriva à l’égard
des mines de Cuba et de Saint-Domingue, et même à l’égard des anciennes mines
du Pérou, apres la découverte de celles du Potosi.”
75 Id., ibid., t 2, p. 367-368: “Il est à remarquer que partout le prix courant des terres
dépend du taux courant de l’intérêt. ... si la rente de la terre tombait au dessous
de l’intérêt de l’argent d’une différence plus forte, personne ne voudrait acheter
des terres; ce qui réduirait bientôt leur prix courant. Au contraire, si les avantages
faisaient beaucoup plus que compenser la différence, tout le monde voudrait acheter
des terres; ce qui en releverait encore bientôt le prix courant.”
76 Id., ibid.,t. I, p. 29-37: “Cette division du travail ... ne doit pas être regardée, dans son
origine, comme l’effet d’une sagesse humaine ... elle est la conséquence nécessaire,
quoique lente et graduelle, d’un certain penchant naturel à tous les hommes qui
ne se proposent pas des vues d’utilité aussi étendues; c’est ce penchant à trafiquer,
à faire des trocs et des échanges d’une chose pour une autre. ... ce penchant est un
de ces premiers principes de la nature humaine ... ou bien, comme il paraît plus
probable, s’il est une conséquence nécessaire de l’usage du raisonnement et de la
parole. Il est commun à tous les hommes, et on ne l’aperçoit dans aucune autre
espèce d’animaux ... Dans presque toutes les autres espèces d’animaux, chaque
individu, quand il est parvenu à sa pleine croissance, est tout-à-fait indépendant
... Mais l’homme a presque continuellement besoin du secours de ses semblables,
et c’est en vain qu’il l’attendrait de leur seule bienveillance. Il sera bien plus sûr de
son fait en s’adressant à leur intérêt personnel, et en leur persuadant qu’il y va de
leur propre avantage de faire ce qu’il souhaite d’eux. ... Nous ne nous adressons
pas à leur humanité, mais à leur égoisme; et ce n’est jamais de nos besoins que nous
leur parlons, c’est toujours de leur avantage. ... Comme c’est ainsi par traité, par

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troc et par achat que nous obtenons des autres la plupart de ces bons offices qui
nous sont mutuellement nécessaires, c’est cette même disposition à trafiquer qui
a, dans l’origine, donné lieu à la division du travail. Par exemple, dans une tribu
de chasseurs ou de bergers, un particulier fait des arcs et des fleches avec plus de
célérité et d’adresse qu’un autre. Il troque souvent avec ses compagnons ces sortes
d’ouvrages contre du bétail ou du gibier, et il s’aparçoit bientôt que par ce moyen il
peut se procurer plus de bétail et de gibier, que s’il se mettait lui-même en campagne
pour en avoir. Par calcul d’intérêt donc, il fait sa principale affaire de fabriquer des
arcs et des flêches ... la différence des talents naturels entre les individus ... n’est pas
tant la cause que l’effet de la division du travail ... sans la disposition des hommes
à trafiquer et à échanger, chacun aurait été obligé de se procurer à soi-même toutes
les nécessités et commodités de la vie. Chacun aurai eu la même tâche à remplir
et le même ouvrage à faire, et il n’y aurait pas eu lieu à cette grande différence
d’occupations, qui seule peut donner naissance à une grande différence de talents.
Comme c’est ce penchant à troquer qui donne lieu à cette diversité de talents, si
remarquable entre hommes de différentes professions, c’est aussi ce même penchant
qui rend cette diversité utile. Beaucoup de races d’animaux, qu’on reconnaît pour
être de la même espèce, ont reçu de la nature des caractères distinctifs, quant à leurs
dispositions, beaucoup plus remarquables que ceux qu’on pourrait observer entre
les hommes, antérieurement à l’effet des habitudes et de l’éducation. Par nature,
un philosophe n’est pas de moitié aussi différent d’un porte-faix, en talent et en
intelligence, qu’un mâtin l’est d’un lévrier, un lévrier d’un épagneul, et celui-ci
d’un chien de berger. Toutefois ces différentes races d’animaux, quoique de même
espèce, ne sont presque d’aucune utilité les unes pour les autres. Le mâtin ne peut
pas ajouter aux avantages de sa force, en s’aidant de la légéreté du lévrier ou de la
sagacité de l’épagneul, ou de la docilité du chien de berger. Les effets de ces différents
talents ou degrés d’intelligence, faute d’une faculté ou d’un penchant au commerce
et à l’échange, ne peuvent être mis en commun, et ne peuvent le moins du monde
contribuer à l’avantage ou à la commodité commune de l’espèce. Chaque animal est
toujours obligé de s’entretenir et de se défendre lui-même à part et indépendamment
des autres, et il ne peut retirer la moindre utilité de cette variété de talents que la
nature a répartie entre ses pareils. Parmi les hommes, au contraire, les talents les plus
disparates sont utiles les uns aux autres, parce que les différents produits de chacune
de leurs diverses sortes d’industrie respective, au moyen de ce penchant universel à
troquer et à commercer, se trouvent mis, pour ainsi dire, en une masse commune
ou chaque homme peut aller acheter, suivant ses besoins, une portion quelconque
du produit de l’industrie des autres. Puisque c’est la faculté d’échanger qui donne
lieu à la division du travail, l’accroissement de cette division doit par conséquent
toujours être limitée par l’étendue de la faculté d’échanger, ou en autres termes,
par l’étendue du marché. Si le marché est très-petit, personne ne sera encouragé à
s’adonner entièrement à une seule occupation, faute de pouvoir trouver à échanger
tout ce surplus du produit de son travail qui excédera sa propre consommation,
contre un pareil surplus du produit du travail d’autrui qu’il voudrait se procurer.”
77 Id., ibid., t. 1, p. 46: “Ainsi chaque homme subsiste d’échanges ou devient une espèce
de marchand, et la société elle-même est proprement une société commerçante.”

446
K a r l M a r x

78 [Antoine-Louis-Claude] Destutt de Tracy, Éléments d’ idéologie. Pt. 4.5: Traité


de la volonté et de ses effets, Paris, 1826, p. 68 et 78: “... la société est ... une série
continuelle d’échanges ...” “... le commerce est toute la société...”
79 Jean-Baptiste Say, Traité d’ économie politique..., t. 1, p. 76-77: “En résultat, on
peut dire que la séparation des travaux est un habile emploi des forces de l’homme,
qu’elle accroît en conséquence les produits de la société, c’est-à dire sa puissance et
ses jouissances, mais qu’elle ôte quelque chose à la capacité de chaque homme pris
individuellement.”
80 Frédéric Skarbek, Théorie des richesses sociales. Suivie d’une bibliographie de l’ économie
politique, t. I, Paris, 1829, p. 25-26: “Les forces inhérentes à l’homme sont: son
intelligence et son aptitude physique au travail. Celles qui dérivent de l’état de société
consistent: dans la faculté de diviser et de répartir parmi les hommes les divers travaux
... et dans la faculté d’ échanger les services mutuels et les produits qui constituent
ces moyens.”
81 Id., ibid., p. 27: “... les motifs pour lesquels il consent à vouer ses services à autrui
... l’homme exige ... une récompense pour les services rendus à autrui ...”
82 Id., ibid., p. 75: “L’existence du droit de propriété exclusive est donc indispensable
pour que l’échange puisse s’établir parmi les hommes.”
83 Id., ibid., p. 121: “Chapitre V. De l’influence réciproque de la division d’industrie
sur l’échange, et de l’échange sur cette division.”
84 James Mill, Éléments d’ économie politique..., p. 7: “... l’action de l’homme peut
être ramenée à de très-simples éléments. Il ne peut, en effet, rien faire de plus que
de produire du mouvement; il peut mouvoir les choses pour les approcher ou les
éloigner les unes des autres; les propriétés de la matière font tout le rest.” p. 11-12:
“Dans l’emploi du travail et des machines, on trouve souvent que les effets peu-
vent être augmentés par une distribution habile, c’est-à-dire en séparant toutes les
opérations qui ont une tendance à se contrarier, et en réunissant toutes celles qui
peuvent, de quelque manière que ce soit, se faciliter les unes les autres. Comme en
général les hommes ne peuvent exécuter beaucoup d’opérations différentes avec la
même vitesse et la même dextérité qu’ils parviennent, par l’habitude, à en exécuter
un petit nombre, il est toujours avantageux de limiter autant que possible le nombre
d’opérations confiées à chaque individu. Pour diviser le travail et distribuer les forces
des hommes et des machines de la manière la plus avantageuse, il est nécessaire,
dans une foule de cas, d’opérer sur une grande échelle, ou en d’autres termes de
produire les richesses par grandes masses. C’est cet avantage qui donne naissance
aux grandes manufactures. Un petit nombre de ces manufactures placées dans les
positions les plus convenables, approvisionnent quelquefois non pas un seul, mais
plusieurs pays, de la quantité qu’on y désire de l’objet qu’elles produisent.

447
APÊNDICE
ALIENAÇÃO E ESTRANHAMENTO

Sérgio Lessa

O grande Hegel, o da Fenomenologia do Espírito e da Ciência


da Lógica, situa-se em meio à Revolução Industrial (1776-1830)
e à Revolução Francesa (1789-1815). Do outro lado do Reno,
contemplava as duas obras máximas da burguesia, o fim do
modo de produção feudal pelas mãos dos revolucionários fran-
ceses e a passagem do reino da carência para o da abundância
pelas mãos dos proletários ingleses. De uma perspectiva de
quase dois séculos, podemos contemplar os significados daque-
las revoluções: a emancipação política do capital das relações
pré-capitalistas de produção encastoadas no Estado do Velho
Regime e o aumento da produtividade, com a superação dos
limites biológicos que o corpo humano impunha ao trabalho
manual, pela entrada do maquinário na produção. A eman-
cipação política garantiu ao capital a regência da reprodução
social, quer no que se refere à totalidade social, quer no que diz
respeito à reprodução dos indivíduos. A superação dos limites
A p ê n d i c e

biológicos inerentes ao corpo humano possibilitou tal explosão


da capacidade produtiva que a oferta de mercadorias tornou-se
maior do que as demandas postas pelas necessidades humanas.
Oferta maior do que a procura significa que os preços tendem
a cair abaixo do seu valor, portanto, que o mercado deixa de
funcionar como eficiente mediação para a reprodução da pro-
priedade privada. A reprodução do capital passou, desde então,
a ser de tempos em tempos paralisada pela “superprodução” (a
denominação burguesa para a abundância) até que, iniciada a
crise estrutural em meados da década de 1970, a produção do
capital apenas pode se dar pela “produção destrutiva” (Mészá-
ros) de riquezas e de força de trabalho, do planeta e dos seres
humanos1. A crise se torna um continuum em que ela, a crise,
é o único e último modo possível de reprodução do capital.
Hegel foi a testemunha e a mais elevada consciência daquela
“virada” na história. Contra as teses iluministas e modernas que
tendiam a derivar a história de uma “natureza humana” dada
pela natureza e a história das sociedades de condições naturais
(clima, relevo etc.), Hegel postulou que a Revolução Industrial
evidenciava como, na relação do homem com a natureza, está
nele, e não nesta, o determinante. Os humanos fazem da na-
tureza o que necessitam, não seria a necessidade natural que
ditaria aos homens os nossos destinos.
Se a história humana reside nos homens e não na natureza,
como fariam os humanos a si próprios? A Revolução Francesa
demonstraria os meios pelos quais os humanos se fazem hu-
manos. Em 5 de maio de 1789 reuniram-se, convocados por
Luís XVI, os Estados Gerais. Nesse momento, todos estavam
convencidos de que uma nação sem rei significava o caos (não

1 Duas descrições gráficas impressionantes desse fenômeno: Davis, 2007 e Ziegler,


2013.

452
S é r g i o L e ss a

era precisamente isso que demonstrara a Revolução Inglesa,


um século antes?). Melhor um péssimo rei que rei algum. O
controle dos Estados Gerais estava destinado à Igreja, a quem
cabia o Primeiro Estado, e à nobreza, que compunha o Segundo
Estado. Esses dois Estados contavam dois votos contra apenas
um voto do Terceiro Estado que, contudo, representava 96% dos
franceses, aqueles que nem eram nobres nem do alto clero. O
conflito se estabeleceu a partir da exigência do Terceiro Estado
de alteração do critério de votação nos Estados Gerais. O voto
por Estado deveria ser substituído pelo voto por representante
e, como o Terceiro Estado possuía mais representantes do que
os dois outros Estados somados, caberia aos representantes dos
96% dos franceses o controle dos Estados Gerais.
O conflito elevou-se a um novo patamar quando o Terceiro
Estado resistiu à ordem de sua dissolução e convocou o Primeiro
e Segundo Estados a se reunirem com ele para, conjuntamente,
deliberarem. O conflito se converteu em revolução quando
Luís XVI decidiu concentrar tropas em Paris para dissolver os
Estados Gerais e a população, de forma espontânea, converteu
uma pequena passeata de “cidadãos” em uma avalanche que
tomou a Bastilha. Um pouco mais de duas semanas depois, com
a notícia da queda da Bastilha lançando os servos a um combate
de terra arrasada contra os senhores feudais, a nobreza se diri-
giu à Assembleia Nacional Constituinte (em que se convertera
os Estados Gerais) solicitando a abolição do feudalismo. Era
a Noite do Grande Medo: os camponeses faziam a sua entrada
vitoriosa no processo revolucionário francês.
Da Noite do Grande Medo até a execução revolucionária
da família real, em janeiro de 1793, dois grandes partidos se
opuseram. De um lado, os partidários do rei que buscavam uma
aliança com a burguesia mais moderada ao redor da proposta de
uma monarquia constitucional, tal como ocorrera na Inglaterra.

453
A p ê n d i c e

Do outro, aqueles que necessitavam da abolição de todas as


relações de produção (e, portanto, de propriedade) feudais. O
monarca, enquanto pretendia aceitar uma Constituição para
fortalecer os setores mais moderados contra os mais radicais,
secretamente negociava com as forças feudais de toda a Europa
uma intervenção militar para massacrar a Revolução. A família
real, disfarçada, tentou fugir da França e, surpreendida pelos
revolucionários em Varennes, é aprisionada no Palácio das Tu-
lherias, em Paris. A Inglaterra se somou à iniciativa e a França
foi invadida pelo exército mais poderoso que os poderosos na
Europa podiam então colocar em campo.
Os generais franceses e Luís XVI fizeram de tudo para
promover a vitória dos invasores. O rei escreveu cartas pessoais
ao comandante invasor, Conde de Brunswick, entregando os
planos de campanha do exército da França. Com esse rei, com
esse exército e com tais comandantes, a derrota da França era
certa.
Após a vitória, Brunswick ameaçou a população de Paris:
caso um fio de cabelo da família real fosse tocado, da cidade não
restaria pedra sobre pedra. Em pouco mais de três ou quatro
dias, os invasores estariam em Paris, “libertariam” Luís XVI de
sua prisão nas Tulherias e estaria terminada esta triste aventura
que fora a Revolução Francesa. Não havia força militar capaz
de impedir esse desfecho. Os dados haviam sido todos lançados
e os revolucionários estavam perdidos.
É em momentos como esses que a humanidade mostra do
que é capaz. Quando não há alternativas é que as fronteiras
do possível são deslocadas e o impensável se torna realidade.
Quatro indivíduos, Marat, Robespierre, Danton e Herbert, con-
clamaram a população de Paris a se dirigir a Valmy, a pequena
vila em que ficava a única ponte sobre o rio que se interpunha
entre Paris e os invasores. Na manhã seguinte, uma multidão

454
S é r g i o L e ss a

desorganizada, sem treinamento ou experiência militar, desar-


mada (suas armas não iam além de instrumentos domésticos,
como facas, enxadas etc.), seguindo o brado maluco de “atacar”
pronunciado por um indivíduo não menos maluco (cujo nome
a história não recordou), destroçou o exército mais poderoso
que a contrarrevolução podia organizar naqueles dias. Goethe,
junto ao Estado Maior invasor, anotou em seu diário que era
o início de uma nova era.
O segredo do sucesso dos revolucionários não é mais, hoje,
segredo. Os soldados da contrarrevolução eram servos que não
tinham qualquer interesse em morrer para defender os senhores
feudais que os exploravam. Ao se confrontarem com um exército
de cidadãos, que lutavam por suas vidas e pelo direito a não ser
explorado pelas mesmas forças sociais que oprimiam os soldados
invasores, o exército contrarrevolucionário ruiu. Os soldados da
contrarrevolução não eram páreo para os da revolução. Vitorio-
sa, a população voltou a Paris não apenas com a autoconfiança
de saber-se invencível no campo de batalha, mas com as cartas
que Luís XVI enviara a Brunswick traindo a França.
Que o rei era um traidor, não havia dúvidas.
A questão era o que fazer com ele. Iniciou-se a discussão
pública conhecida como o julgamento da família real. Duas
alternativas: o fim da revolução, a devolução aos nobres das
terras tomadas pelos camponeses e o retorno à ordem prévia à
queda da Bastilha ou, a segunda, a guilhotina para toda a famí-
lia real. Danton foi o principal acusador: rei apenas serve para
reinar ou morrer! A população parisiense decidiu pela execução
da família real, abrindo a etapa mais avançada e revolucionária
das jornadas francesas; os jacobinos subiram ao poder e a França
conheceu uma república, a Convenção. A história continuou
com o esgotamento das forças revolucionárias em poucos meses:
não era ainda possível superar o capital. Por um longo e tortuoso

455
A p ê n d i c e

processo chegou-se, por fim, ao Império Napoleônico. É no


apogeu deste, em 1807 (o Bloqueio Continental é de 1806), e
na sua decadência, logo após a invasão da Rússia pela Grande
Armée, em 1813, e a derrota final em Waterloo, em 1815, que são
publicadas a Fenomenologia do Espírito e a Ciência da Lógica. A
primeira foi publicada em 1807 e, a segunda, entre 1812 e 1816.
Hegel, frente aos acontecimentos franceses, pôde enfim
desvelar como fazemos a nossa história. A ciência dos fenôme-
nos do espírito (a Fenomenologia do Espírito) é o primeiro livro
de história geral, na acepção que hoje damos a esse termo; ou
seja, o passado é causa do presente e, este, a base para o futuro.
Antes, a história era composta por crônicas; agora, se eleva a
processo. Essa a grande descoberta de Hegel, tornada possível
ao a Revolução Industrial mostrar que são os humanos que
predominam sobre a natureza (e não o inverso) e ao a Revolução
Francesa mostrar que fazemos a nossa história na medida em
que, conhecendo cada vez melhor o mundo em que vivemos,
alteramos nosso comportamento na vida cotidiana. A história
seria o processo puramente humano pelo qual nosso espírito
vai se aproximando cada vez mais do que somos e do que o
mundo é. Fazemo-nos cada vez mais humanos conforme nos-
sa consciência torna-se portadora de um conhecimento cada
vez mais próximo do que somos – até que, nos dias de Hegel,
finalmente descobrimos o nosso ser: burgueses. A razão e o
presente se identificam, sujeito e objeto são agora idênticos e o
Espírito eleva-se ao Absoluto. Antes, porém, dessa fundamental
debilidade do idealismo hegeliano, vejamos alguns dos grandes
avanços que propiciou.

A história como processo


Contra as teses que derivavam da natureza a nossa história,
Hegel argumentou que entre a instalação dos Estados Gerais,

456
S é r g i o L e ss a

em maio de 1789, e a decapitação de Luís XVI, em 1793, não


houve qualquer mudança na natureza que explicasse a sucessão
de eventos que conectam esses dois pontos da história. O que se
alterara, segundo ele, foi a concepção de mundo dos indivíduos.
A Bastilha teria mostrado que o monarca absolutista não era
invencível; Valmy, que o povo era invencível. O que se alterou
foi a consciência que os cidadãos tinham das forças que molda-
vam seu mundo, das potências qualitativamente superiores dos
cidadãos enquanto coletividade se comparadas às potências dos
cidadãos tomados individualmente – e da impotência do Velho
Regime no confronto com as forças do “novo mundo”. Hegel
argumentou que um processo de conhecimento, um processo
gnosiológico, é o fundamento dessa elevação da consciência
a novos patamares e, com isso, o fundamento da elevação do
comportamento dos humanos: de súditos evoluíram a cidadãos
ao guilhotinarem o rei. Da concepção de mundo segundo a
qual qualquer rei, por pior que fosse, seria melhor que o caos
de um mundo sem rei, evoluiu-se para a compreensão superior
que um rei apenas serve para trair ou morrer!
A síntese na vida cotidiana das consciências de cada cida-
dão em uma concepção de mundo que é superior ao conteúdo
das consciências individuais (porque, lembremos, Hegel sabia
que a totalidade é mais do que a somatória das partes) seria
o fundamento último da história – e a concepção de mundo
consubstancia o Espírito do Tempo, o Zeitgeist, de cada época.
A passagem do Espírito, de patamares de conhecimento mais
simples aos mais complexos, de conceitos mais simples aos mais
ricos e mediados, teria a forma abstrata da transição lógica entre
tais conceitos; a história da humanidade seria a passagem lógica
do Espírito de cada época ao Espírito das épocas subsequentes,
seria a transição lógica de patamares de conhecimentos mais
simples a conceitos mais ricos, complexos e mediados. O Geist

457
A p ê n d i c e

não se alteraria: o que evoluiria seria o seu conteúdo gnosio-


lógico, o seu conhecimento do mundo. Do Espírito em-si a
humanidade transitaria para o Espírito para-si pela evolução
do conteúdo gnosiológico do Geist.
Três são as grandes e clássicas questões que permeiam essa
concepção da história em Hegel. A primeira delas tem seu
núcleo no fato de que a passagem lógica do Espírito de pata-
mares mais simples aos mais complexos requer que os estágios
mais evoluídos nada mais sejam do que o desenvolvimento dos
estágios mais primitivos. Em poucas palavras, que já no início
deveria estar contido tudo o que seria explicitado no futuro; no
início estaria contido o fim: a concepção teleológica da história
em Hegel. Nessa concepção, o novo se limitaria a ser o desen-
volvimento do anterior; o que existia no passado não poderia
deixar de existir no futuro, manter-se-ia de forma superada nas
formas mais desenvolvidas. Nem o ontologicamente novo (o
antes inexistente) nem a negação ontológica do existente (a des-
truição do velho) podem comparecer nesse sistema2. Esse limite
da concepção de mundo de Hegel, com as devidas mediações,
ao fim e ao cabo corresponde ao limite de seu tempo. Isto é, a
Revolução Francesa podia revolucionar a propriedade privada,
o Estado, a economia, a relação do trabalho alienado com a
totalidade da reprodução social etc. Mas não podia destruí-los.
A sociedade burguesa seria uma nova forma de continuidade da
sociedade de classes; o passado seria mantido nas novas formas
do presente.
A segunda das três grandes e clássicas questões que envolvem
o construto hegeliano centra-se no “fim da história”. Sendo a
história o processo de elevação do Geist ao para-si, uma vez re-
2 Daqui emerge um conjunto importante de questões: a potência deve ser reduzida
a potência de ser (deixando de ser a potência “de ser e de não ser”) e a casualidade
não pode ser conceitualmente integrada como momento da causalidade.

458
S é r g i o L e ss a

conhecida pela humanidade a essência do mundo e de si própria,


realizar-se-ia uma nova e superior relação da humanidade com
o mundo. Da contradição entre um sujeito que desconhece a
essência do mundo passamos a uma identidade entre o conteúdo
da consciência e a essência do mundo. Da contradição, passamos
à identidade sujeito-objeto. A humanidade, ao final, descobre
que o mundo é o que ela fez de si própria; o mundo revela-se
como a humanidade que se fez mundo social.
Esta superação da contradição pela identidade estaria se
realizando nos dias de Hegel. Da Revolução Francesa e da
Revolução Industrial emergiria uma humanidade cujos indiví-
duos teriam plena consciência de, enquanto indivíduos, serem
burgueses, proprietários privados, locus do individualismo e do
egoísmo. Concomitantemente, tanto a humanidade quanto os
indivíduos também teriam consciência que não há indivíduos
sem sociedade e que, portanto, não há propriedade privada sem
uma ordem que lhe dê respaldo. O egoísmo essencial do bur-
guês apenas pode se efetivar na vida cotidiana como partícipe
de uma totalidade social que garanta a ordem imprescindível.
O Estado é o locus dessa necessidade coletiva e universal, é o
locus do bem comum, o oposto dialético do egoísmo do bur-
guês individual; o Estado é a consubstanciação da ética. Entre
indivíduo e sociedade, entre o egoísmo essencial ao indivíduo
e a ética essencial ao Estado, desdobrar-se-ia uma comple-
mentariedade da mesma ordem pela qual, ao desenvolver seus
negócios privados e se enriquecer, o burguês individual também
promoveria a prosperidade coletiva ao aumentar a riqueza so-
cial, gerar empregos etc. Sendo a história o desenvolvimento da
contradição sujeito-objeto que articula o mundo e o Espírito
de cada época, ao se superar essa contradição pela identidade, a
história não mais será impulsionada a novos desenvolvimentos;
a humanidade continuará a desenvolver as forças produtivas, o

459
A p ê n d i c e

conhecimento etc., mas sempre no patamar dessa identidade.


Em poucas palavras, a história estaria destinada a terminar
na sociedade burguesa; esta é o final, posto desde o início, da
evolução do Geist em-si ao para-si.
Para nosso tema, contudo, mais importante é a terceira das
clássicas questões que cercam a concepção hegeliana. Referimo-
-nos ao início da história.

A gênese da humanidade
Na passagem do século XVIII ao XIX, o que se conhecia da
história da humanidade era muito pouco. A civilização egípcia,
com as pirâmides e a Esfinge, por exemplo, foi “descoberta”
quando da invasão do Egito por Napoleão. Que o planeta tivesse
uma história era algo impensável – e que esta história se estende
por cerca de 4,5 bilhões de anos, era ainda mais inconcebível.
Darwin ainda estava há meio século de distância. Apenas ao
final do século XIX foi incorporado à ciência que a família,
algo tão fundamental na reprodução das sociedades, tinha
um passado muito distinto da família burguesa, monogâmica,
patriarcal.
Hegel contava com menos dados históricos à sua disposição
do que qualquer colegial dos nossos dias. A resposta que ele po-
deria dar à questão da origem da humanidade era muito pobre3.
Tendo em vista a maior complexidade da matéria orgânica frente
à inorgânica, postulou que a primeira era posterior à segunda.

3 É curioso como essa questão é tratada nos Manuscritos de 1844: a questão é


deixada de lado por “improcedente”! O desconhecimento da história do uni-
verso e, dentro dele, do planeta, fazia da própria questão algo que só poderia
caber nos espíritos religiosos que concebiam a gênese da humanidade como
um ato divino. Por isso, diz Marx, “a [...] pergunta é ela própria um produto
da abstração. Interroga-te sobre como chegaste a essa pergunta; pergunta a ti
mesmo se a tua pergunta não ocorre a partir de um ponto de vista a que eu não
posso responder, porque é um ponto de vista improcedente (verkehrter).”

460
S é r g i o L e ss a

Pelo mesmo critério afirmou que, na sequência lógica do simples


ao complexo, a sociedade seria posterior à natureza. Isso era o
máximo a que se poderia chegar naquelas circunstâncias.
Como a história seria a gradual e lógica elevação do Geist de
seu em-si ao seu para-si, o seu início teria que ser o primeiro mo-
mento dessa elevação pelo avanço do conhecimento. A conditio
sine qua non de todo processo de conhecimento é a existência
de um sujeito (de uma consciência) que se relacione com um
objeto pela pergunta: o que é isso? O início da humanidade
teria que ser, portanto, o primeiro momento em que a huma-
nidade, ao olhar para suas condições de vida, interrogou-se:
porque vivemos assim? Por que nosso destino é esse, não outro?
A humanidade, para Hegel, se fundou como humanidade ao
considerar como um problema desconhecido as suas condições
imediatas de existência. As circunstâncias imediatas da vida
comparecem, nessa relação, como o objeto a ser investigado
por um sujeito que necessita conhecer esse objeto. Estaria, desse
modo, fundada a relação de conhecimento entre um sujeito
(uma consciência) e um objeto (as condições objetivas da vida).
Esse ato, tal como a santíssima trindade, possui para Hegel
uma intrínseca unidade que é a síntese de três momentos dis-
tintos. Ao colocar sua própria história como objeto, a humani-
dade assume a si própria como um sujeito distinto do objeto.
A história da humanidade, por esse ato, é convertida em um
objeto externo à própria humanidade que põe a pergunta; pelo
mesmo ato, a humanidade se funda como sujeito distinto de
sua própria história convertida em objeto. A humanidade e sua
história estabelecem assim uma relação de alienação (Entfre-
mdung), a humanidade separa-se de sua própria história, esta
entra na relação sujeito-objeto enquanto algo externo à própria
humanidade. A humanidade se exteriorizou em um objeto e,
ao fazê-lo, alienou-se de si própria. A alienação implica, re-

461
A p ê n d i c e

quer, portanto, uma exteriorização (Entäusserung) pela qual a


humanidade distingue-se de sua história, convertendo esta em
algo externo a ela própria. A exteriorização e alienação entre a
humanidade e suas condições imediatas de vida, o seu destino, é
o único modo pelo qual a humanidade pode se constituir como
um desconhecido objeto de conhecimento a ser investigado, por
um lado e, por outro, como um sujeito, uma consciência que
irá investigar esse objeto. A humanidade, portanto, “objetiva”
sua história em um objeto exterior e alienado na relação com
ela própria: em poucas palavras, a humanidade se objetivou em
um objeto a ela alienado e exterior4.
Uma vez fundada a relação sujeito-objeto, o conhecimento e
a história poderiam avançar. Têm início, então, possivelmente,
as passagens mais fascinantes da Fenomenologia do Espírito: a
descrição da incrível epopeia da humanidade que, de conceito a
conceito mais elevado, transita para a sociedade burguesa, pelas
mediações da Grécia clássica, do período medieval e do período
moderno (Bildung). No início do século XIX, a humanidade pôde
se compreender como o resultado único e exclusivo de seus atos,
de suas ações. Todos os poderes que, por milênios, atribuímos aos
deuses se revelaram potências humanas das quais a humanidade
não tinha consciência. A humanidade, ao contemplar o objeto
composto por seu destino, compreendeu, finalmente, que todas
as “circunstâncias” eram o resultado lógico e processual dos atos
humanos ao longo dos tempos. A humanidade, sujeito do proces-
so de conhecimento, descobriu, no objeto que investigava, a ela

4 Há aqui, ainda, um aspecto importante. Para que a humanidade ponha a si


própria como sujeito-objeto, é preciso que alguma consciência de sua identi-
dade no confronto com a alteridade do objeto já se faça presente. Esse impasse
conduz Hegel, na Ciência da Lógica, a converter o nada, de negação ontológica
(não-ser), à negação lógica (o não-ser do ser-outro). Cf. Lessa, 1989, com várias
citações da Ontologia de Lukács.

462
S é r g i o L e ss a

própria. O que lhe parecia como um outro objeto, a ela exterior e


alienado, revelou-se, ao final, como nada mais do que ela própria
que se objetivara, se alienara e se exteriorizara em um objeto de
conhecimento para que fosse possível investigar a si própria e,
desse modo, desdobrar toda a história humana.
Esse foi o primeiro momento na história da humanidade em
que não precisamos de potências naturais, divinas, transcenden-
tais de qualquer ordem para compreendermos a nós próprios.
O gigantesco desse passo não pode ser exagerado.
A humanidade, com Hegel, pode afirmar em suas próprias
potências, humanas e sociais, o fundamento de sua existência.
Mais ainda. Hegel revela o que seria a “verdade” da Revolução
Francesa: o momento final da elevação da humanidade ao seu
para-si. Napoleão seria a Razão a cavalo. A humanidade realizar-
-se-ia plenamente pelas mãos revolucionárias da burguesia – não
poderia haver maior elogio da revolução burguesa! Hegel foi
o filósofo da burguesia revolucionária em seu momento mais
glorioso, a conversão do mundo feudal na imagem e semelhança
do capital.
O final da história, em Hegel, é portanto, também, a justifi-
cativa burguesa mais elevada da Revolução Francesa. Vitoriosas
as forças revolucionárias, o mundo seria constituído não mais
por contradições entre opostos, mas pela complementariedade
entre os diferentes. A eticidade do Estado complementaria
dialeticamente o egoísmo do indivíduo burguês; a ganância
do burguês seria complementada pela prosperidade coletiva
promovida pelo desenvolvimento dos negócios privados; sin-
gular e universal seriam partes de uma totalidade harmônica
e equilibrada. Igualdade, liberdade e fraternidade, os ideais de
1789, finalmente se consubstanciariam na vida cotidiana pela
plenitude da sociedade burguesa, aquela na qual a humanidade
descobriu-se como seu único demiurgo.

463
A p ê n d i c e

Partindo do em-si, o único desenvolvimento possível ao


Espírito seria em direção ao para-si. A concepção teleológica
da história, em Hegel, articula-se de modo rigorosamente
necessário com os momentos de objetivação, alienação e ex-
teriorização da humanidade. O Espírito em-si, apenas pelo
crescente conhecimento de si próprio (e do mundo), gradual-
mente eleva-se ao para-si. Uma vez lá, contudo, o que era um
objeto alienado, exterior, revela-se a própria humanidade que
se alienara, objetivara e exteriorizara (lembremos, para que
fosse possível constituir a relação sujeito-objeto fundante do
processo de conhecimento que é a história humana). A iden-
tidade sujeito-objeto é, também, a superação da alienação, da
objetivação e da exteriorização. Agora que sabemos que somos
nós a nossa própria história, a humanidade recupera a si pró-
pria, desalienando-se; a humanidade recupera o que lhe parecia
externo como parte de si própria, “desexteriorizando-se”, se se
permite a expressão. E, pelo mesmo andar da carruagem, o
mundo objetivo deixa de ser o mundo que se opõe à consciên-
cia como um objeto a ser conhecido e se converte no mundo
exterior que somos nós próprios A humanidade se “desobjetiva”,
novamente com perdão da expressão.
O Geist, em seu estágio para-si, é o Espírito Absoluto
também porque deixou para trás os momentos de objetivação,
alienação e exteriorização imprescindíveis aos estágios anterio-
res. A humanidade em sua plena explicitação superaria essas
mediações: elas deixariam de existir.

***

Se a Revolução Francesa e a Revolução Industrial foram


o solo histórico que possibilitou Hegel, as contradições que
delas nasceram levaram à crise do hegelianismo, a Feuerbach

464
S é r g i o L e ss a

e à virada de 1843-1844 de Marx. A descoberta do trabalho,


do intercâmbio material do homem com a natureza como
fundante da humanidade, abriu caminho para a superação
final do hegelianismo; radicou na objetividade da existência o
desenvolvimento da consciência e tornou possível a primeira
concepção de mundo materialista superior ao idealismo. No
que agora nos interessa, ao fazê-lo, Marx conferiu um conteúdo
inteiramente distinto aos conceitos de objetivação, alienação,
exteriorização e teleologia.

Objetivação e exteriorização em Marx


O pressuposto de Marx e Engels é que não há sociedade que
possa se reproduzir sem o intercâmbio material com a natureza
(o trabalho). Esse pressuposto não é uma preferência pessoal
dos dois; decorre de o ser humano ter uma base biológica da
qual não pode se livrar, o Homo sapiens que somos. Esse pres-
suposto lança raízes na concepção materialista de mundo: o
desenvolvimento da matéria inorgânica possibilitou a vida e o
desenvolvimento do ser biológico, o surgimento do ser huma-
no. O salto do humano para além da natureza é o trabalho. O
que distingue o humano de todas as outras formas de vida é a
modalidade do nosso intercâmbio material com o ambiente,
pela qual, ao transformar a natureza, os humanos transformam
sua própria natureza de ser social. (Marx, 1983: 149)
Em outras palavras, a peculiaridade ontológica do trabalho
frente às outras formas de intercâmbio biológicas com a na-
tureza – para ficarmos com nosso tema – está em que apenas
no trabalho nós temos efetivas objetivação e exteriorização; é
também isso que possibilita que, ao transformar a natureza, os
humanos transformem sua natureza social.
Marx, em O Capital, coloca essa questão nestes termos:
diferente da abelha, o “pior arquiteto” constrói primeiro na

465
A p ê n d i c e

consciência, isto é, “idealmente” para depois construir na “cera”;


“de antemão”,
o que distingue [...] o pior arquiteto da me­lhor abelha é que ele
construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em ce­r a.
No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já
no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto
idealmente. (Marx, 1983:149-50)

Um processo orientado a um fim já determinado em sua


origem é um processo teleológico, como já vimos em Hegel. O
projeto idealmente construído de machado, que existe apenas
“idealmente” na “imaginação”, orientará a ação transformadora
da natureza de que resultará um machado objetivamente exis-
tente. O construto ideal, que existe “na imaginação do trabalha-
dor”, a finalidade que dirige todo o processo de trabalho a um
ponto de chegada já pré-determinado, é uma teleologia. Aqui a
primeira diferença decisiva entre Marx e Hegel: enquanto para
o filósofo idealista a teleologia era uma categoria universal, uma
determinação da totalidade da história humana, Marx restringe
a teleologia aos atos singulares dos indivíduos “concretos” (“his-
toricamente determinados”, como Lukács gostava de colocar).
A teleologia, para Marx, possui, ao lado de sua ação orienta-
dora dos atos humanos, duas outras características importantes.
Existe “idealmente”, isto é, “na imaginação do trabalhador”. E,
em segundo lugar, por ser um constructo da imaginação, não
tem qualquer possibilidade de atender às necessidades da vida
cotidiana que estão em sua origem. A ideia do machado não é
capaz de cortar árvores, abrir o crânio ou quebrar os ossos dos
animais, a imaginação da fogueira não é capaz de produzir nem
o calor nem a luz etc.
Essa incapacidade da teleologia em atender às necessidades
presentes em sua origem torna indispensável a objetivação.
Caso a natureza não seja transformada em meios de produção

466
S é r g i o L e ss a

e de subsistência, não há reprodução social possível: converter


a ideia de machado ou de fogueira em machado e fogueira
que existam fora da consciência é, nesse nosso exemplo, uma
conditio sine qua non da existência humana. A objetivação,
em Marx, é o processo pelo qual a teleologia é convertida em
objetos que existem fora da consciência e que interagem com o
mundo já existente – e não, como em Hegel, um momento de
constituição da relação gnosiológica fundante da trajetória do
Geist ao seu para-si. Por isso, a relação entre a objetivação e a
teleologia em Marx é muito mais rica do que a relação sujeito/
objeto em Hegel. Para nós, agora, interessa antes de tudo o fato
de que a objetivação
não apenas efetua uma transformação da forma da matéria na-
tural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo,
que ele [o indivíduo] sabe que determina, como lei, a espécie e o
modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade.
(Marx, 1983: 150).

O “objetivo”, a finalidade que de ideia é convertida em ob-


jeto, “determina como lei”, “a espécie e o modo” “da atividade”
do “indivíduo”. Isto porque o como, de que modo, por quais
procedimentos, com que duração, com qual esforço físico, com
que nível de “atenção” etc. a objetivação se desdobrará decorre,
fundamentalmente5, do que será produzido, das propriedades da
porção do mundo a ser transformada. O existente impõe limites
e abre possibilidades às ações humanas. Um desses limites mais
importantes é que, como só se pode transformar a natureza por
processos físicos, químicos e biológicos6, não resta aos humanos

5 Fundamentalmente porque há também a interferência decisiva do patamar já


alcançado no desenvolvimento das forças produtivas. Mas não é dessa relação
que Marx trata nesta passagem.
6 “Ao produzir, o homem só pode proceder como a própria natureza, isto é, apenas
mudando as formas da matéria.” (Marx, 1983, p. 51).

467
A p ê n d i c e

senão lançarem mão de seu corpo, de sua “corporalidade, braços


e pernas, cabeça e mão” para “apropriar-se da matéria natural
numa forma útil para sua própria vida.”7 Caso a finalidade seja
um machado, um cesto, uma casa ou uma fogueira, o campo
de ação possível aos humanos será, em parte importante, as
possibilidades inerentes à porção da natureza a ser transformada.
Vejamos: 1) no caso do trabalho, a objetivação requer que
os humanos lancem mão de sua “corporalidade” – a qual, sendo
a porção da natureza sob controle imediato da consciência, é
a única mediação pela qual podemos “colocar em movimento
as forças naturais” de tal modo a produzir o que necessitamos.
2) Já vimos, também, que a objetivação é sempre a objetivação
de uma teleologia, portanto ela envolve a consciência. O envol-
vimento da consciência, aqui, possui uma qualidade precisa:
“subordinação”. O indivíduo “tem que subordinar sua vontade”
à objetivação, caso contrário dificilmente será produzido o al-
mejado. “E essa subordinação não é um ato isolado”: além “dos
órgãos que trabalham”, do corpo, a “vontade” também deve
se subordinar à finalidade: o corpo e a mente do trabalhador
devem estar subordinados às exigências da objetivação e isso se
“manifesta como atenção durante todo o tempo de trabalho.”
(Marx, 1983: 150)
Portanto, além do fato de que a porção da natureza a ser
transformada possui um peso decisivo na determinação de cada
ato singular, a) a teleologia, “a finalidade” (cesta, casa, fogueira,
machado etc.) “determina como lei, a espécie e o modo de sua
atividade”; b) a imaginação, a consciência, o corpo, a vontade
do trabalhador estão “subordinados” ao processo de trabalho,
à objetivação da teleologia: a totalidade da pessoa (o que ela é
7 Marx, mais à frente: “[...] como o homem precisa de um pulmão para respirar,
ele precisa de uma ‘criação da mão humana’ para consumir produtivamente
forças da natureza” (Marx, 1985, p. 17).

468
S é r g i o L e ss a

objetiva e subjetivamente, “suas próprias forças físicas e espi-


rituais”) está envolvida nessa peculiar conexão do ser humano
com o mundo que o rodeia que é, primordialmente, o trabalho.
Essa articulação da totalidade do indivíduo com o mundo
é de tal ordem que “ao atuar, por meio desse movimento, so-
bre a natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao
mesmo tempo, sua própria natureza”. (Marx, 1983, p. 149). Por
um lado, o que pensamos acerca do mundo e de nós próprios
é confrontado imediatamente com o que o mundo de fato é e
com o que nós, de fato, somos. Objetivar uma teleologia faz com
que nossa concepção de mundo seja colocada diretamente em
contato com o mundo. Ao transformarmos a natureza, o que
pensamos da pedra etc. se confronta com a dureza objetiva do
que ela, de fato, é. Só é possível ter êxito a objetivação de uma
teleologia que incorpore em alguma medida as propriedades de
fato existentes na porção da natureza que vamos transformar8.
A pedra filosofal dos alquimistas nunca poderia ser objetivada,
não porque fosse uma ideia má, mas porque as propriedades da
natureza não possibilitam que tal pedra seja produzida. Essa
exigência, posta pela objetividade do mundo (apenas podemos
transformá-lo explorando as suas propriedades), faz com que
a objetivação nos possibilite averiguar até que ponto nossos
conhecimentos e nossas concepções correspondem ao que o
mundo é. Na objetivação, o que pensamos acerca do mundo
se exterioriza e se confronta com o mundo objetivo: novos
conhecimentos e habilidades são produzidos e os indivíduos
transformam a “sua própria natureza”.

8 A “medida” é dada pela intensidade da transformação a ser levada a cabo o que,


por sua vez, se relaciona com o desenvolvimento das forças produtivas. Sobre
isso, cf. Lessa, 2012 em especial os capítulos que tratam do conhecimento e da
liberdade. Cf. ainda Lukács, 1981:64-65, 72.

469
A p ê n d i c e

Esse é o processo de exteriorização (Entäusserung), em Marx.


Diferente de Hegel, para quem a exteriorização é o momento
do Espírito em-si em que ele precisa colocar-se como um seu
outro como mediação ao seu para-si, para Marx a exteriorização
é o momento, inerente e interno primordialmente ao trabalho,
pelo qual, ao objetivar a teleologia, o conteúdo da consciência se
exterioriza e entra em confronto imediato com a objetividade do
mundo. Por essa exteriorização, os indivíduos produzem novas
habilidades, novas sensibilidades e conhecimentos, se transfor-
mam ao transformar o mundo. A exteriorização, em Marx, é
um primeiro momento pelo qual, ao transformar a natureza,
transformamos nossas próprias naturezas de seres humanos.
A relação da exteriorização com a objetivação é de tal ordem
que esta predomina sobre a primeira; todavia, a exteriorização
não é redutível à objetivação. Em uma sociedade de pescadores,
os indivíduos objetivarão teleologias peculiares a essa atividade e
se desenvolverão enquanto pescadores; se em uma sociedade ca-
çadora, serão caçadores; caso seja uma sociedade agrícola, serão
camponeses etc. A objetivação predomina sobre a exteriorização.
Todavia, como cada indivíduo é uma singularidade – nunca
teremos dois indivíduos exatamente iguais –, o confronto de
cada consciência com o mundo que a rodeia (a exteriorização)
será tão singular quanto a singularidade de cada indivíduo. A
história de cada indivíduo, de como ele se desenvolve, de como
sua relação com o mundo evolui etc. não é redutível à história
da sociedade da qual é partícipe. Por isso, a exteriorização é
determinada pela objetivação sem ser a ela redutível. Daqui,
com as devidas mediações, decorre o fato de que a pessoa não
é redutível à sociedade da qual faz parte. Ao falarmos de Júlio
César, temos que mencionar o Império Romano; a história do
Império Romano não pode ser contada sem a atuação de Júlio
César – mas a história de um não é redutível à história do outro.

470
S é r g i o L e ss a

Mencionamos que a exteriorização, em Marx, é um primeiro


momento em que, ao transformar a natureza, transformamos
também nossa natureza de seres sociais. Um segundo momen-
to tem seu fundamento na articulação da objetivação com o
mundo. Toda objetivação de uma teleologia é a introdução,
na relação de causa e efeito que é o mundo objetivo, de novas
relações de causa e efeito que interagem com as já existentes. O
planeta Terra, por esse processo, vem sendo convertido crescen-
temente à imagem e semelhança dos humanos (se isso resultará
na nossa emancipação do capital ou na destruição da humani-
dade, é algo que só o futuro dirá). Nós geramos novas relações
de causa/efeito que interagem com as já existentes, produzidas
pela natureza; nos defrontamos “com a matéria natural como
uma força natural” e, levada a cabo a objetivação, desdobra-se
um “período de consequências” (Lukács) que produz, sempre,
novas necessidades e possibilidades objetivas. Esse é o segundo
momento pelo qual, ao transformar a natureza, os humanos
transformam suas próprias naturezas de seres humanos. Ao
objetivarmos uma teleologia, produzimos necessidades e pos-
sibilidades objetivas que, objetivamente (desculpe-se a repeti-
ção), alteram a nossa relação com o mundo em que vivemos:
alteram a natureza de nossas ações, alteram a natureza do que
somos. No dia a dia, essa alteração pode ser tão pequena que
seja imperceptível “de antemão”. Contudo, o fato de ser ou não
consciente, de ser mais ou menos consciente, não altera o fato
de fundo: ao transformarmos o mundo, transformamos nossa
própria natureza de seres humanos porque nos obrigamos a nos
comportar para com o mundo de modo distinto. Nossa natureza
é o que nós fazemos do mundo – e de nós próprios, portanto.9

9 “A essência humana é o conjunto (ensemble) das relações sociais.” (Marx, 2009)

471
A p ê n d i c e

Já vimos que, analogamente a como toda objetivação produz


novas necessidades e possibilidades objetivas, a exteriorização,
ao possibilitar que o indivíduo desenvolva novos conhecimentos
e habilidades, também o torna portador de novas necessidades
e possibilidades subjetivas. O complexo da objetivação e da
exteriorização produz, portanto, novas necessidades e posssi-
bilidades, objetivas e subjetivas – e a consequência imediata
desse fato é que a teleologia objetivada deve ser substituída por
uma nova, que seja agora a resposta também ao que de novo foi
produzido na objetivação/exteriorização precedente. Ao final do
processo de trabalho, não apenas o mundo foi transformado,
mas também os seres humanos não são mais os mesmos. Ao
transformar a natureza, transformamos também nossas natu-
rezas de seres humanos.
Podemos, agora, esclarecer melhor a relação da teleologia
com o mundo objetivo. Acima mencionamos que a teleologia é
uma resposta às necessidades e possibilidades da vida cotidiana.
Devemos acrescentar que a teleologia é um construto da consci-
ência, existe “idealmente” na “imaginação do trabalhador” – é,
portanto, um ato consciente dos indivíduos. Sem alterar em
nada esse fato, a teleologia sempre se refere às necessidades e
possibilidades (objetivas e subjetivas) com as quais os indivíduos
se confrontam, a “existência determina a consciência”. Nessa
relação que estamos examinando, a atividade da consciência
que produz a teleologia apenas é possível se a consciência for a
consciência do mundo em que vive o indivíduo, se a consciência
refletir as necessidades e possibilidades das suas condições de
vida. Uma ideia, para cumprir a função social de teleologia,
deve, entre outras coisas, ser também o reflexo do mundo
objetivo na consciência. A origem, o fundamento da teleologia
é, portanto, a reprodução social em que incessantemente são
produzidas novas necessidades e possibilidades – e, nesse con-

472
S é r g i o L e ss a

texto mais geral, na relação entre objetividade e teleologia cabe


à primeira o momento predominante sem que isso cancele o
papel ativo da consciência ao produzir a segunda.
Há dois outros aspectos do processo de transformação da
natureza humana que são importantes quando se trata de uma
análise da reprodução da sociedade mas que, para nossa fina-
lidade presente, podem ser apenas mencionados. O primeiro
deles é que o complexo da objetivação/exteriorização é sempre,
imediatamente, singular. Isto é, nunca um mesmo processo de
trabalho se repete exatamente igual, pois nem a natureza nem
os indivíduos permanecem os mesmos. Contudo, para que o
conhecimento e a habilidade adquiridos em uma objetivação
possam ser empregados nas futuras objetivações, é imprescin-
dível que os elementos singulares, irrepetíveis portanto, desse
conhecimento sejam separados de seus elementos universais.
A generalização do conhecimento é a função social da ciência
e da filosofia e, em parte, de complexos valorativos como a
moral e a ética.
O segundo aspecto é que, como a totalidade da pessoa
do trabalhador é envolvida no trabalho (sua “consciência”,
sua “imaginação”, sua “vontade” e sua “corporalidade”), a sua
sensibilidade, a sua capacidade sensível, também se desenvol-
ve.10 Na medida em que melhor pensamos o mundo, também
melhor o sentimos – e vice-versa. A arte, essencialmente, é o
complexo social cuja função é elevar o patamar de sensibilidade
dos humanos ao máximo alcançado em cada momento. Isso é
imprescindível para a reprodução social: sem o constante desen-
volvimento de nossa capacidade de sentir o mundo, mais cedo

10 Como lemos nos Manuscritos de 1844, “A formação dos cinco sentidos é um


trabalho de toda a história do mundo até hoje.”

473
A p ê n d i c e

ou mais tarde nossa própria capacidade de conhecer o mundo


ficaria impossibilidata de novos desenvolvimentos – e vice-versa.

***

Ainda que rápida e condensada, essa exposição das catego-


rias da objetivação e exteriorização em Marx delineia, espera-
mos, o fundamental do que, nesse terreno, o separa de Hegel.
Em primeiro lugar, assim como fez com a teleologia, também
a objetivação e a exteriorização deixam de ser processos que
dizem respeito à totalidade da história para se restringirem ao
interior dos atos humanos singulares. Isto é, não há ato huma-
no singular que não contenha os momentos de objetivação e
exteriorização. Se, em Hegel, a objetivação e exteriorização se
referem à totalidade da humanidade e devem desaparecer com
o Espírito elevado ao seu Absoluto, ao seu para-si – para Marx,
são categorias dos atos humanos singulares e, por isso, enquanto
existir humanidade, existirão objetivações e exteriorizações.
Em segundo lugar, o trabalho é a categoria fundante do hu-
mano porque apenas nele, primordialmente, temos verdadeiros
processos de objetivação e exteriorização. Os outros seres vivos
também transformam a natureza; todavia, aqui não ocorre nem
a objetivação de teleologias nem a exteriorização de concepções
do mundo, de subjetividades. Novamente: a exteriorização e a
objetivação são processos apenas existentes no interior dos atos
humanos singulares.
Essa distância entre os dois pensadores se relaciona com as
suas diferentes concepções de história. Marx argumenta que
nossa história é fundada pelo trabalho; Hegel, que é a auto-
-exteriorização/auto-objetivação/auto-alienação da humanidade
em um sujeito versus um desconhecido objeto de conhecimento
que funda a nossa história. Para Hegel, por isso, desvelada a

474
S é r g i o L e ss a

essência desse objeto desconhecido, teríamos atingido o patamar


final do nosso desenvolvimento; para Marx, a história humana
apenas terminará caso os seres humanos destruam a si próprios.
A objetivação e a exteriorização em Marx, se comparadas com
Hegel, se ampliam e se restringem. Ampliam-se, porque suas
existências não são limitadas a um particular momento da
evolução humana (a do Espírito em-si); pelo contrário, estarão
presentes em todas as formações sociais. Restringem-se, porque
apenas existem no interior dos atos humanos singulares, não
fazendo parte das determinações histórico-universais. De um
lado, a concepção teleológica da história em Hegel que requer
a universalização da exteriorização e da objetivação; de outro,
a concepção materialista da história em Marx, que limita a
objetivação e a exteriorização apenas e tão somente aos atos
singulares dos indivíduos.

Alienação em Marx
Há uma enorme distância entre os conteúdos dos conceitos
de objetivação e exteriorização de Hegel e de Marx. O mesmo
ocorre com a alienação. Para Hegel, a exteriorização e objeti-
vação eram momentos do processo fundante da contradição
sujeito-objeto que teria dado o início à elevação do Geist de
seu em-si ao seu para-si. Para Marx, trata-se, primordialmente,
do processo de transformação da matéria natural em meios de
produção e de subsistência pelo qual, ao objetivar uma teleo-
logia, não apenas a natureza é transformada, mas também a
natureza social dos humanos evolui. Se, para Hegel, alcançado
o Absoluto, a contradição sujeito-objeto seria superada pela
identidade sujeito-objeto e, consequentemente, a exterioriza-
ção e objetivação deixariam de comparecer, para Marx não há
processo social que não seja a síntese em tendências históricas
universais dos atos singulares dos indivíduos concretos, social-

475
A p ê n d i c e

mente determinados e, por isso, a exteriorização e objetivação


são categorias sempre presentes na reprodução social. O fato
de que Marx empregue as mesmas palavras de Hegel não nos
deve conduzir ao equívoco de minorar a profunda distância
entre o conteúdo que tais conceitos recebem em cada pensador.
O mesmo ocorrerá com a alienação. A palavra alemã é a
mesma, nos dois pensadores: Entfremdung. O conteúdo é intei-
ramente distinto. Para Hegel, a alienação é um dos momentos
fundantes da contradição sujeito-objeto que conduz o Geist do
em-si ao para-si. Ao se objetivar e se exteriorizar em um objeto,
o Espírito também efetiva a sua perda de si próprio, ele se aliena.
Por isso, para Hegel, objetivação, exteriorização e alienação são
três momentos de um mesmo e único processo, de tal modo
que não há nenhuma alienação que não seja exteriorização e
objetivação do Espírito; não há nenhuma objetivação que não
seja exteriorização e alienação do Espírito e, por fim, não há
qualquer exteriorização que não seja a alienação e objetivação
do Espírito. Ainda, ao elevar-se ao seu para-si, o Espírito cessa
toda exteriorização-alienação-objetivação.
Com Marx, a alienação refere-se a outro processo.
Como vimos ao tratarmos da objetivação e exteriorização
em Marx, todos os atos humanos, mesmos os mais singulares e
íntimos, mesmo aqueles mais referidos à interioridade da perso-
nalidade, são determinados historicamente. Ou seja, são sempre
respostas às necessidades e possibilidades (objetivas e subjetivas)
da vida cotidiana. Podemos responder a essas necessidades e
explorar essas possibilidades de maneira muito variada porque
toda situação histórica é um complexo de determinações que
comporta um campo maior ou menor de alternativas. Como
essas necessidades e possibilidades são o resultado do desenvol-
vimento geral e, ainda, como nossas objetivações irão interferir
e sofrer interferências das objetivações dos outros indivíduos,

476
S é r g i o L e ss a

o desenvolvimento da humanidade é o complexo processo de


sínteses dos atos singulares dos indivíduos concretos, historica-
mente determinados, em tendências universais. Esse processo
de síntese é a reprodução social.
Como a necessidade primeira de toda reprodução social é
a produção dos meios de produção e subsistência sem os quais
os indivíduos sequer podem viver, serão as necessidades e pos-
sibilidades geradas no interior do complexo da economia (que
contém o trabalho) que tenderão a predominar ao longo do
tempo. Analogamente, como as necessidades e possibilidades
geradas na economia e em todos os outros complexos sociais
interferem umas nas outras incessantemente, a totalidade tende
a ser a mediação entre as necessidades e possibilidades geradas
na economia e o desenvolvimento de cada complexo social
particular (a fala, a educação, a política, o Estado, os indivíduos
etc.). O momento predominante no desenvolvimento histó-
rico concentra-se no desenvolvimento das forças produtivas,
portanto, sem que com isso a humanidade e sua história sejam
redutíveis ao complexo da economia. Ainda: o predomínio do
desenvolvimento das forças produtivas não impede que, em
alguns momentos, outros complexos possam exercer a função
de momento predominante. Por exemplo: nos períodos revolu-
cionários é a luta de classes que determina o desenvolvimento
da propriedade e das relações de produção, que determina como
se estruturará o trabalho e a economia futuros.
Todas essas relações e questões já foram tratadas em vários
momentos e, podemos, por isso, não fazer aqui mais do que
essa brevíssima menção, certamente plena de carências. O que
nos importa, para a comparação entre a alienação em Hegel
e Marx, é que, para o autor d´O Capital, o desenvolvimento
da humanidade não é nem poderia ser um processo teleológi-
co; isto é, um processo que, desde seu primeiro momento, já

477
A p ê n d i c e

conteria o seu necessário final. Os atos humanos se articulam


com a totalidade social e com os outros atos humanos não pelo
conteúdo da consciência que os dirige, mas sim pelas conse-
quências objetivas que produzem na reprodução da sociedade.
Não é o que os indivíduos pensam, mas o que eles fazem que
determina os seus papéis na evolução da humanidade. Cada
ação humana singular gera necessidades e possibilidades que
interagirão com as necessidades e possibilidades produzidas
pelas ações dos outros indivíduos. Como a totalidade é mais do
que a soma das partes, essa complexa, rica e mediada interação
do “período de consequências” (Lukács) de cada ato singular
com todos os “períodos de consequências” de todos os outros
atos singulares resultará na vida cotidiana, isto é, na síntese de
todos os atos em uma mesma totalidade imediata.
Por isso, vai argumentar Marx, a história é um processo
causal (isto é, mediado por causas e efeitos) que não é teleoló-
gico. A cada situação histórica concreta corresponde um cam-
po de possibilidades e impossibilidades futuras. Quais dessas
possibilidades serão objetivadas (e quais não serão) é algo que
será decidido, no limite, pelos atos singulares dos indivíduos
concretos. O fato de tais atos serem predominantemente de-
terminados pela totalidade social (mediação, lembremos, do
momento predominante exercido pelo complexo da economia)
não cancela, de modo algum, o papel das escolhas individuais
(e, portanto, dos complexos valorativos, da personalidade de
cada indivíduo etc.) do que será objetivado em cada caso. Isso,
que pode parecer um paradoxo, nada mais é do que reflexo
do fato de que as escolhas individuais determinam o que cada
indivíduo fará a cada momento, determinam o que será por
eles objetivado; e, contudo, esse papel ativo das escolhas pelos
indivíduos apenas pode ocorrer porque tais escolhas têm seu solo
fundante nas necessidades e possibilidades objetivas e subjetivas

478
S é r g i o L e ss a

que surgiram (com todas as devidas mediações em cada caso) do


desenvolvimento da humanidade em sua totalidade. Júlio Cesar,
Napoleão, Cipião, assim como Ícaro e Santos Dumont, apenas
puderam fazer história pelas suas escolhas individuais porque
tais escolhas correspondiam às possibilidades e necessidades
realmente existentes na vida cotidiana de cada um deles. Nós
só podemos fazer, enquanto indivíduos, ativamente a história
porque somos integrantes dessa mesma história, porque dela
recebemos o “campo de possibilidades” no interior do qual
desdobramos nosso papel ativo.
Sumariando: o fato de a história não possuir um único
futuro (não ser um processo teleológico) não significa, para
Marx, que a história não seja determinada por leis universais.
Significa, “apenas”: 1) que as leis universais operam na história
sendo portadoras de um quantum de acaso. Ou seja, como o
presente é um conjunto de possibilidades e necessidades que
podem ou não ser atendidas e exploradas, o futuro será o re-
sultado também do acaso que intervém em como a síntese dos
atos humanos em tendências gerais atualizará esta ou aquela
potência. De um jogo de futebol a um relacionamento afetivo
entre apenas dois indivíduos; de uma greve em uma fábrica à
rebelião que tomou conta do Brasil em 2013, nenhum processo
social deixa de incorporar em sua trajetória causas e acasos. 2)
Significa, ainda, que as leis mais universais, por serem sínteses
dos “períodos de consequências” gerados pelos atos singulares
dos indivíduos, são elas também construto social. Portanto,
tal como elas foram produzidas pela reprodução da sociedade,
podem também ser alteradas e, até mesmo, destruídas, por essa
mesma reprodução.
As leis da história humana apenas atuam enquanto não fo-
rem revogadas pela humanidade. Tal como o desenvolvimento
humano criou e destruiu o escravismo, também criou e destruiu

479
A p ê n d i c e

o feudalismo. Determinadas relações entre os humanos apenas


podem comparecer como leis da reprodução social na medida
em que também puderem vir a ser revogadas por uma alteração
substancial dessa mesma reprodução. E, por fim, 3) que o fato de
a história ser determinada por leis universais não cancela o fato
de que os indivíduos possuem papel ativo nessa mesma história
e, portanto, na gênese, desenvolvimento e reprodução dessas
mesmas leis. As leis determinam o “campo de possibilidades” às
escolhas e objetivações individuais e, ao mesmo tempo, apenas
podem se reproduzir pela mediação desses mesmos atos indi-
viduais. Ainda mais: em algumas circunstâncias, tais escolhas
e objetivações pelos indivíduos podem até mesmo revogar tais
leis e substituí-las por outras, como ocorre, por exemplo, nas
revoluções.
Para Marx, portanto, a história da humanidade e, no outro
polo, dos indivíduos não são processos teleológicos. O desenvol-
vimento do presente em um futuro incorpora um quantum de
acaso que faz com o futuro não seja o desenvolvimento lógico
e direto do presente.
Daqui decorrem muitas consequências para o exame da
relação entre a consciência e o mundo, para o exame do papel
e do peso dos indivíduos na história, para a investigação das
questões ao redor do método etc. O que nos interessa, agora, é
que, para Marx, essa necessária articulação entre causalidade
e acaso é o fundamento último da possibilidade da alienação.
Tomemos duas situações bastante típicas na história. Uma
sociedade primitiva é acometida por uma epidemia. Seu baixo
desenvolvimento das forças produtivas faz com que se confronte
com o mundo como um conjunto enorme de necessidades que
não podem ser atendidas. Desta base material decorre uma
concepção de mundo (Weltanschauung) segundo a qual os
deuses ordenam todo o existente e, assim o fazendo, ordenam

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S é r g i o L e ss a

também os destinos humanos. Para sobreviver à epidemia, não


restaria aos humanos senão comoverem os deuses para remo-
verem a doença. Sacrificam, então, seus melhores animais e
fazem jejum para que os deuses se apiedem; aglomeram-se em
cerimônias religiosas para que, juntando seus prantos, sejam
audíveis aos deuses.
Hoje sabemos que esse comportamento, em vez de forta-
lecer os humanos contra a epidemia, provavelmente resultou
no oposto. Os humanos se enfraqueceram ao se alimentarem
pior, as defesas biológicas foram debilitadas ao sacrificarem seus
melhores animais, as aglomerações nas cerimônias religiosas
devem ter favorecido a generalização da epidemia.
Em determinadas circunstâncias, as relações sociais podem
se converter em obstáculos ao desenvolvimento da humanida-
de. Tendo ou não os indivíduos disso consciência. Quando as
relações sociais se tornam entraves ao desenvolvimento huma-
no, passam a ser uma relação social (criada, portanto, pelos
humanos) que é anti-humana, desumana. São desumanidades
criadas e reproduzidas pelos próprios humanos, são desuma-
nidades socialmente postas. Isto é, em Marx, a alienação: uma
desumanidade socialmente posta.
Há uma crítica ao conceito de alienação de Marx, em es-
pecial por alguns althusserianos11, que parte do pressuposto de
que a alienação somente poderia ser criticada a partir de um
conceito fixo e eterno (portanto, idealista e burguês) de essência
humana. Vimos como isso não é verdade em se tratando de
Marx. Cada situação histórica é portadora de necessidades e
possibilidades objetivas – e é no confronto com elas que uma
relação social pode cumprir um papel impulsionador ou de freio
ao desenvolvimento da humanidade. Nesse nosso exemplo, a

11 Mas não apenas. Conferir, por exemplo MacCarney, 1990.

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A p ê n d i c e

concepção religiosa12 impossibilitou que as melhores alternativas


fossem levadas à prática; fez com que os humanos agissem de tal
modo a agravar, em vez de minorar, as ameaças à sobrevivência.
Nesse caso específico, a religião cumpriu a função social de um
complexo alienante.
Nas mesmas sociedades primitivas, contudo, as seitas e as
religiões cumpriram, também, funções não alienantes. Não
raras vezes serviram de mediações para a generalização dos
conhecimentos adquiridos na vida cotidiana de tal modo que
pudessem ser aplicados nas situações futuras, necessariamente
distintas. Outras vezes, cumpriram funções similares à moral
em nossos dias, ao ordenarem determinados comportamentos
sociais imprescindíveis (incesto etc.)13. É a função que exerce
na reprodução da sociedade, portanto, que faz com que um
complexo cumpra ou não um papel alienante.
Na história da humanidade há um enorme conjunto de
alienações que foi sendo produzido e superado com o desen-
volvimento das forças produtivas – sem que exigissem uma
intervenção política e violenta de uma porção contra a outra
dos humanos. Há, contudo, um complexo de alienações que
tem seu fundamento na exploração do homem pelo homem
(na propriedade privada) e que apenas pode desaparecer pela
superação da sociedade de classes. A propriedade privada, o
Estado, a política, as classes sociais e a família monogâmica
são exemplos típicos de alienações que apenas serão superadas
pela revolução proletária. Tais complexos sociais são sempre

12 Por sua vez, fundada pelo baixo desenvolvimento das forças produtivas etc.
13 Em O povo das Montanhas Negras, Raymond Williams (1991) narra lendas em
que esse papel da religião no período primitivo é bastante evidente. Lukács
discute também essa função social da religião nas sociedades primitivas (cf.
em especial Lukács, 1990, p. 288-290, 1986, p. 19, 71-79, 221 e 702-705).

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alienantes – todavia, a qualidade de suas alienações não foi,


sempre, exatamente a mesma.
Entre a Revolução Neolítica, há cerca de 12 mil anos, e a
Revolução Industrial (1776-1830), a humanidade conheceu um
período histórico em que se articularam a carência e o trabalho
excedente. As forças produtivas ainda não produziam o necessá-
rio para atender a todas as necessidades de todos os indivíduos
(a carência) e, todavia, a capacidade produtiva do trabalhador
já excedia suas necessidades imediatas (o trabalho excedente).
Nesse longo período (que abarcou os modos de produção
asiático, escravista, feudal e toda a “acumulação primitiva”), a
sociedade de classes foi a mais eficiente para o desenvolvimento
das forças produtivas. A razão básica desse fato está em que, em
uma situação de carência, a divisão igualitária do produzido
implica no consumo de toda a riqueza, nada restando para
o desenvolvimento das forças produtivas. A concentração da
riqueza excedente produzida pelos trabalhadores nas mãos das
classes dominantes, ao contrário, possibilitou que parte dela
fosse empregada no desenvolvimento das forças produtivas. Por
isso, ao longo da história, as sociedades igualitárias tenderam
a ser substituídas pelas classes. Com o capitalismo contempo-
râneo esse processo chegou ao seu término e todo o planeta se
converteu à sociedade de classes.
Por mais de 14 mil anos, portanto, o mais rápido desen-
volvimento apenas foi possível pela destruição da maior parte
da humanidade: a alienação, nesse caso, servia ao desenvolvi-
mento das forças produtivas e, ao mesmo tempo, rebaixava o
desenvolvimento humano ao patamar da propriedade privada.
Não deixava de ser alienação – no limite, porque submete
o humano às necessidades da reprodução da propriedade
privada, tanto dos indivíduos das classes dominantes como
entre os trabalhadores; tanto entre os homens quanto entre

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A p ê n d i c e

as mulheres, agora marcados pelo patriarcalismo. Todavia,


ainda cumpria o papel de suporte ao desenvolvimento das
forças produtivas.
Com a Revolução Industrial, esse quadro se alterou na sua
essência. O desenvolvimento das forças produtivas superou a
carência e lançou a humanidade no período da abundância.
Produzimos mais do que necessitamos. A abundância significa
que a oferta estruturalmente é maior do que a procura e os pre-
ços tendem a cair abaixo do valor das mercadorias. O mercado,
que sempre foi excelente mediação à acumulação da riqueza da
classe dominante, deixa de o ser. A produção periodicamente
é interrompida, forças produtivas são destruídas até que, pela
carência artificiosamente gerada pela crise, os preços se elevam
e a produção é retomada – até uma nova crise. São as crises
cíclicas. Ao chegarmos em meados da década de 1970, a abun-
dância elevou-se a tal nível que as crises não conseguem, mesmo
momentaneamente, superá-la. A crise torna-se um continuum
e o desenvolvimento das forças produtivas torna-se cada vez
mais impossível14.

14 Mészáros, 2002; Paniago, 2012. Para Marx e Engels (assim como para Lukács
e Mészáros), as forças produtivas representam a capacidade de a humanidade
fazer sua própria história ao retirar da natureza os meios de produção e de
subsistência. Os complexos alienantes, com enorme frequência, reduzem ou
rebaixam a capacidade humana em fazer sua própria história, exatamente por
isso são processos de alienação. No capitalismo desenvolvido, esta contradição
entre o desenvolvimento das capacidades humanas e os processos alienantes
atinge uma qualidade pela qual a capacidade produtiva a serviço do capital
está em antagonismo direto com a capacidade humana em fazer nossa própria
história – sem nenhum exagero, se converte em um processo de destruição do
humano que nos aproxima da possibilidade de nos extinguirmos no planeta.
Não há, por isso, qualquer identidade entre o desenvolvimento da capacidade
produtiva e o desenvolvimento das forças produtivas em nossos dias – pelo
contrário, como a relação do capital com a humanidade é de alienação e não
de identidade, o aumento da capacidade produtiva do capital é antagônico ao
desenvolvimento da humanidade.

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Como diz Mészáros (2002), a “destruição produtiva”


converte-se em “produção destrutiva”. Aqui reside a nova
qualidade das alienações que brotam da propriedade privada
se comparada às mesmas alienações do passado. A destruição
da maior parte da humanidade não mais serve, sequer, ao de-
senvolvimento das forças produtivas. O pleno desenvolvimento
das forças produtivas requer hoje, imperativamente, a superação
da propriedade privada e das alienações que lhe são peculiares
(as classes sociais, o trabalho alienado, o Estado, a política, a
família monogâmica etc.).
Frente a uma epidemia, a reação típica dos indivíduos dos
nossos dias não será entregar seus melhores rebanhos e estoques
de cereais aos deuses, nem se aglomerar em multidões para ce-
rimônias religiosas – essa forma de alienação foi superada pelo
próprio desenvolvimento das forças produtivas, pela ampliação
de nossa capacidade em conhecer e compreender o mundo etc.
Não é necessária a destruição das classes sociais para que tais
alienações sejam superadas. Exatamente o oposto ocorre com
as alienações que surgem do trabalho alienado, com as desu-
manidades típicas e peculiares às sociedades de classe.

***

Ainda que muito rapidamente – talvez rapidamente demais


–, podemos perceber o fundamental que separa a alienação em
Marx do conceito de alienação em Hegel.
Alienação para Hegel era uma etapa imprescindível para
a elevação do Geist ao para-si. Essa elevação, como vimos, se
constituiria, no essencial, pela mediação da relação entre a hu-
manidade que se questionava pelo seu próprio destino e o seu
destino ainda a ela misterioso. Essa relação de uma consciência
em-si que não conhecia a si mesma e, portanto, se assumia como

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A p ê n d i c e

sendo algo distinto dela própria – uma humanidade que fazia


seu destino sem saber que o fazia – só poderia ser superada por
um processo de conhecimento. A humanidade, ao constituir-
-se como seu próprio objeto de conhecimento, se objetivou, se
exteriorizou e se alienou. A humanidade colocou a si própria
como um objeto outro (alienado), externo (a exteriorização) e
objetivo (a objetivação). A humanidade se distingue da própria
humanidade como o sujeito que questiona pelo seu destino.
A alienação em Hegel possui, portanto, um estatuto on-
tológico preciso. É uma relação de uma consciência com seu
mundo objetivo, corresponde ao em-si dessa consciência; uma
relação cujo desenvolvimento se dará movido por um processo
de conhecimento pelo qual, de conceito a conceito mais desen-
volvido, de modo lógico e necessário, a consciência evolui para
seu para-si, o Espírito Absoluto.
Por isso, para Hegel, a alienação é essencialmente um fe-
nômeno da consciência, fundado e referido a um determinado
estágio de desenvolvimento do Espírito e gnosiolgicamente
impulsionado. Articula-se de modo direto à concepção tele-
ológica da história. Pelas mesmas razões, não há objetivação
e exteriorização que não sejam articuladas à alienação, e vice-
-versa. Atingido o Absoluto, a contradição sujeito-objeto seria
superada pela sua identidade e a identidade razão-presente
tornaria desnecessárias tanto a objetivação e a exteriorização
quanto a alienação.
Para Marx, os processos alienantes possuem outro estatuto
ontológico. São relações sociais objetivas, que têm lugar no
mundo objetivo e, apenas em consequência disso, são refletidas
pela consciência. Muitas vezes, os processos alienantes sequer
se elevam à consciência enquanto tais. A peste bubônica na
Europa ocidental, na Idade Média, para tomarmos um exem-
plo. O Renascimento comercial e urbano lançou as bases para

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a peste negra e os europeus passaram por toda a epidemia sem


terem a menor ideia de que foram eles próprios que criaram
todas as condições para que tal tragédia abatesse sobre suas
vidas (Tuchman, 1999). A alienação, para existir, não requer,
de modo algum, que esteja presente na consciência enquanto
alienação – e, claro está, nem corresponde ao pretenso estágio
em-si da consciência. A Weltanschauung mágica e religiosa da
sociedade primitiva tem suas raízes no parco desenvolvimento
das forças produtivas, na forma peculiar de trabalho (a coleta)
que fundava aquelas sociabilidades. As alienações religiosas,
naqueles casos, tinham seu fundamento no trabalho de coleta,
não no “em-si” do Espírito.
As alienações que brotam da propriedade privada exibem
esse predomínio do seu fundamento material, do trabalho
alienado, ainda mais explicitamente – justamente por serem
fenômenos mais desenvolvidos de alienação. O fato de Aris-
tóteles – e praticamente todo o Mundo Antigo – excluir da
humanidade os escravos (instrumentos de trabalho que falam e
se locomovem, diferente dos animais que apenas se locomovem
e das ferramentas, que nem falam nem se locomovem); o fato
de que a escravidão não era para eles algo “estranho”, ou sequer
questionável, não altera o fato de ser o escravismo um complexo
de alienações. Não é a qualidade da relação da consciência com
o mundo que determina a existência da alienação, mas sim
a função que as relações sociais cumprem na reprodução do
mundo dos homens. A alienação em Marx é primordialmente
um fenômeno objetivo que possui reflexos na consciência; para
Hegel, é um fenômeno da consciência que serve à elevação desta
mesma consciência ao seu para-si.
Some-se a isso que, entre Hegel e Marx, a alienação também
se distingue porque integra concepções da história inteiramente
distintas. O fim da história em Hegel é o fim das alienações.

487
A p ê n d i c e

A identidade sujeito-objeto supera a etapa histórica em que a


humanidade apenas poderia progredir pela mediação dos mo-
mentos de exteriorização, objetivação e alienação. Em Marx, a
história não é teleologicamente orientada, não é a realização de
uma finalidade dada desde o início; é o complexo processo de
reprodução social pelo qual, ao transformar a natureza, tam-
bém transformamos nossa natureza social. Nesse processo, os
atos singulares humanos, elementos inelimináveis da história,
são objetivações de teleologias. Tais objetivações, por sua vez,
possibilitam o confronto direto (a exteriorização) entre o que
os indivíduos pensam do mundo e o que o mundo de fato é: os
indivíduos aprendem, desenvolvem sensibilidades e habilidades.
Tal como a objetivação produz novas necessidades e possibi-
lidades objetivas, a exteriorização gera novas necessidades e
possibilidades subjetivas. Por isso, não há história humana que
prescinda da objetivação das teleologias e da exteriorização a
ela associada.
Isso não quer dizer, agora deve estar claro, nem que a história
seja um processo teleológico, nem que a história, como querem
os modernos, seja redutível aos atos humanos singulares. A
reprodução social, como vimos acima, é mais do que os atos
humanos singulares, ainda que não possa prescindir deles. “[...]
Os homens fazem a história [...]. mas não em circunstâncias
escolhidas por eles próprios” (Marx, 2008, p. 207): tais circuns-
tâncias, fruto único e exclusivo das forças humanas, sociais, são
a síntese dos atos singulares em gênero humano. Nada devemos
a qualquer força transcendental ou divina – e a história nem
é teleológica nem redutível aos atos singulares dos indivíduos.
Como todo ato humano é mediado pela objetivação e ex-
teriorização, todos os processos de alienação envolvem objeti-
vações e interferem nos processos de exteriorização. O inverso,
contudo, não é verdadeiro. A maior parte dos processos de ob-

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S é r g i o L e ss a

jetivação e de exteriorização ao longo dos tempos não cumpriu


a função social de desumanidades socialmente postas – caso
contrário, os humanos já teriam desaparecido há muito da face
da Terra. Se não há alienação sem a objetivação de teleologias
e sem a exteriorização das individualidades, certamente há
objetivações e exteriorizações que não são alienadas.
Portanto, identificar em Marx objetivação, exteriorização
e alienação é um equívoco, quase sempre originado por uma
interpretação hegelianizante de seu pensamento.

***

É dessa interpretação hegelianizante de Marx que se nutre


a concepção de que a melhor tradução de Entfrendung seria
estranhamento, em vez de alienação15. No contexto do pensa-
mento de Hegel, a tradução de Enfremdung por estranhamento
nem sempre é a preferida pelos próprios hegelianos. Contudo,
possui alguma plausibilidade na medida em que tratar-se-ia de
um fenômeno da consciência no qual algum mal-estar se faz
presente. O não reconhecimento pela consciência do mundo
em que vive é um processo da consciência, nela fundado; tem
nela seu campo de desenvolvimento e será superado pela cons-
ciência: o Espírito “estranhado” em um “mundo estranho”. O
estranhamento é uma relação em que alguma consciência se
sente estranhada. Não faz qualquer sentido um estranhamento
que seja absolutamente inconsciente: ser estranho ou estranhado

15 A porção restante do texto é, também, uma autocrítica. Pode-se verificar o


quanto de verdade tem este reconhecimento ao se consultar meus trabalhos
anteriores a 2001-2002. Cabe, ainda, assinalar a dívida com Nicolas Tertulian
e Guido Oldrini, entre os estrangeiros, e Carlos Nelson Coutinho, Leandro
Konder e José Paulo Netto, no país, cujas críticas e ponderações acerca da
tradução de Entfremdung em larga medida estão incorporadas neste texto.

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é qualidade de uma sensação ou estado subjetivo (que, no caso


de Hegel, se articula ao desconhecido, possui uma base gno-
siológica) na relação entre uma consciência e um dado objeto.
Como, para Hegel, a humanidade estranhada de si própria
geraria, na consciência, o desconforto que conduz à busca da
superação desse estado, tem algum sentido traduzir Entfre-
mdung por estranhamento. Mesmo em se tratando de Hegel,
contudo, ainda que plausível, estranhamento por Entfremdung
não é uma unanimidade.
Em se tratando de Marx, qualquer plausibilidade desapa-
rece. A alienação não é a “perda” da humanidade de si própria,
mas a constituição de relações sociais desumanas por obra da
própria humanidade. A alienação é a desumanidade humana-
mente, socialmente, posta. Sua existência não depende de os
indivíduos e suas consciências sentirem-se (ou não) estranhos
ou estranhados – assim como a superação da alienação não
terá lugar na esfera afetiva ao se modificar esse sentimento por
outro de conforto ou aconchego.
A objetividade da alienação não decorre de seu estatuto mais
ou menos consciente, mas da função social de ser obstáculo ao
desenvolvimento humano, tenham ou não os homens consciên-
cia desse fato. Há alienações que foram produzidas e superadas
na história sem que os humanos tivessem delas consciência, ou
tivessem consciências tão rudimentares que mal se aproximavam
de suas essências. As alienações, em Marx, são determinações
objetivas da existência. Por isso, as superações das alienações
não podem ocorrer nos complexos ideológicos sem que uma
alteração correspondente se verifique, com as devidas mediações,
em suas bases materiais fundantes.
Em outras palavras, um complexo social não deixa de ser
alienado, nem tem a intensidade da alienação acrescida ou
diminuída, pela qualidade da relação da consciência para com

490
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ele. O fato de a consciência se perceber (ou sentir) mais ou


menos estranha, estranhada, pode ser um dado significativo
do processo em análise, mas jamais é fundante dos processos
alienantes eventualmente em curso. O inverso também é cor-
reto. Os indivíduos podem não se sentir em nada estranhos ou
estranhados (pensemos Aristóteles e a exploração dos escravos,
Adam Smith e a exploração dos trabalhadores assalariados
etc.) em uma relação essencialmente alienada. Espártaco não
se sentia estranho no mundo escravista, queria apenas não ser,
ele, o escravo. Seu projeto era retornar à sua terra natal e, com
a riqueza saqueada de Roma, ser lá um senhor de escravo. O
mundo escravista não era estranho a Espártaco, muito ao con-
trário! Contudo, o fato de não se elevar enquanto alienação à
consciência não faz o escravismo mais ou menos alienado. O
estranhamento ou o estado de estranhado requer uma cons-
ciência que ponha esta relação de “ser estranho”, requer uma
relação entre uma consciência que “estranha” e o que não lhe é
confortável, familiar, acolhedor ou aconchegante – não é aqui
que as alienações encontram seu fundamento ontológico.
Traduzir Entfremdung por alienação, ao contrário, preserva
essa essência objetiva dos complexos alienantes e possibilita
um tratamento adequado, do ponto de vista ontológico, da
relação muito variada de cada um desses complexos com a
consciência. Esse fato é demonstrado pelas décadas de tradução
de Entfremdung por alienação e, inversamente, pelos inúmeros
problemas gerados pela sua tradução por estranhamento. Já há
experiência acumulada com ambas as alternativas para poder-
mos, com segurança, afirmar a superioridade da tradução de
Entfremdung por alienação.
Por fim, uma dificuldade menor, mas que precisa ser men-
cionada. Ao se optar por traduzir Entfremdung e seus derivados
por estranhamento, estranhado, estranho etc., gera-se uma

491
A p ê n d i c e

outra esfera de confusões. Como nem tudo que é estranho é


estranhamento no sentido de alienação, as traduções, quando
confrontadas com sonderbar (aquilo que, por não ser familiar é
estranho), colocam para si próprias um obstáculo insuperável.
Não há boa solução para sondebar e estranho (e derivados) foi
reservado para Entfremdung. Nos Manuscritos de 1844, por
exemplo, a frase, “toda esta ideia, comportando-se tão estranha
(sonderbar) e barrocamente, ocasionou aos hegelianos tremendas
dores de cabeça,” é incompreensível se por “estranha” entende-
mos “alienada”. O texto dos Manuscritos, longe de ser um texto
claro, torna-se opaco.
A concepção materialista da alienação em Marx é incompa-
tível com a interpretação hegelianizante presente na tradução de
Entfremdung por estranhamento. É um equívoco que ecoa uma
concepção idealista dos processos de alienação e que desconsi-
dera aspectos essenciais da superação por Marx da concepção
de mundo de Hegel.

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