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DOI: 10.1590/1413-812320182312.

21142016 4311

Traz a deformidade de orelha impacto negativo na qualidade

TEMAS LIVRES FREE THEMES


de vida em indivíduos com síndrome de Treacher Collins?

Does an ear deformity bring an adverse impact on quality


of life of Treacher Collins syndrome individuals?

Fernando Felipe Lodovichi 1


Jessica Pereira Oliveira 1
Rafael Denadai 2
Cesar Augusto Raposo-Amaral 2
Enrico Ghizoni 1
Cassio Eduardo Raposo-Amaral 2

Abstract Treacher Collins syndrome (TCS) is Resumo A Síndrome de Treacher Collins (STC) é
an autosomal dominant disorder with variable uma síndrome craniofacial de padrão autossômi-
expression in which the ear may or may not be co dominante e expressão clínica variada, em que
absent or with a malformation. Individuals with a orelha pode ou não estar ausente ou malforma-
TCS suffer social stigma that may affect interac- da. Indivíduos com STC sofrem estigmas podendo
tion with their peers. Quality of life instruments repercutir na interação com pares. Instrumentos
obtained through self-perception questionnaires de qualidade de vida obtidos por meio de ques-
are stigma identification tools and can enable so- tionários de autopercepção são ferramentas de
cial adjustment of these individuals. This study identificação de estigmas e podem permitir o ajus-
aims to assess the quality of life of individuals te social desses indivíduos. Objetiva-se avaliar e
with TCS and to gauge the impacts of ear defor- mensurar a qualidade de vida em indivíduos com
mity on the quality of life. Twelve volunteers with STC, aferindo os impactos da deformidade de ore-
a clinical and genetic diagnosis of TCS answered lhas na qualidade de vida. Doze voluntários com
the WHO quality of life questionnaire and were diagnóstico clínico e genético de STC responderam
divided into groups with normal ears (n = 6) ver- ao questionário de qualidade de vida da OMS, di-
sus affected ears (n = 6), and their results were vididos em grupos com orelhas normais (n = 6)
compared. Siviero’s scale was used to stratify the versus orelhas afetadas (n = 6) e seus resultados
quality of life scores as satisfactory, intermediate foram comparados. A escala de Siviero foi usada
and unsatisfactory. The overall score of the nor- para estratificar a qualidade de vida em satisfa-
mal ears group was 73.13 and 71.81 for the af- tória, intermediária e insatisfatória. A pontuação
fected ears group, and both were classified as an geral do grupo com orelhas normais foi de 73,13;
intermediate quality of life, with no statistically a do grupo com orelhas afetadas de 71,81, ambos
1
Faculdade de Ciências significant differences between them. Ear defor- classificados como níveis intermediários de qua-
Médicas, Universidade mity is not a burden to the quality of life of these lidade de vida e sem diferença significativa entre
Estadual de Campinas. R.
Tessália Vieira de Camargo individuals, who already show other deformities si. A deformidade de orelha não representa um
126, Cidade Universitária. and overall intermediate quality of life scores. ônus na qualidade de vida dos indivíduos que já
13083-887 Campinas SP Key words Treacher Collins Syndrome, Quality se apresentam com outras deformidades e com es-
Brasil. fernando.lodovichi@
gmail.com of life cores de qualidade de vida intermediários.
2
Sociedade Brasileira de Palavras-chave Síndrome de Treacher Collins,
Pesquisa e Assistência para Qualidade de vida
Reabilitação Craniofacial.
Campinas SP Brasil.
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Lodovichi FF et al.

Introdução negativo na qualidade de vida desse grupo. Rea-


lizamos a hipótese de que a deformidade ou au-
A Síndrome de Treacher Collins (STC), também sência de orelhas pode reduzir significativamente
conhecida como disostose mandibulofacial ou a qualidade de vida dos indivíduos com STC.
Síndrome de Franceschetti-Klein1, é uma rara
síndrome transmitida em um padrão autossômi-
co dominante, caracterizada por um pobre de- Métodos
senvolvimento da crista supraorbital, hipoplasia
maxilar, zigomática, mandibular e tecidos moles Trata-se de um estudo retrospectivo observa-
da face2. Apresenta uma incidência estimada de cional no qual foi utilizado um questionário de
1 em cada 50000 nascidos vivos3. A maioria dos qualidade de vida da OMS (WHOQOL-100) nos
indivíduos com STC é de heterozigotos para uma indivíduos com diagnóstico clínico e genético de
mutação localizada no gene TCOF14. Embora STC em acompanhamento em nossa instituição
tenham sido observadas taxas de detecção de entre os anos de 2005 a 2013. Nos registros da
mutações chegando a 93%, em um subconjunto instituição, um total de 20 indivíduos foi iden-
relevante de indivíduos com a síndrome a muta- tificado atendendo aos critérios diagnósticos, de
ção causal ainda não foi identificada5. Em estu- modo que todos foram convidados a participar
dos mais recentes, foram encontradas mutações do estudo. Foram estabelecidos como critérios
também nos genes POLR1D e POLR1C em uma de exclusão: aqueles que receberam qualquer
amostra menor de indivíduos3. As características intervenção fora do serviço; e os indivíduos que
clínicas comuns incluem retração das pálpebras não aceitaram responder ao questionário de
inferiores, exposição da córnea, diminuição do qualidade de vida. Deste modo, foram excluídos
espaço retro-faríngeo, dificuldade respiratória e 8 indivíduos, todos em função de optarem por
perda auditiva6. Outra característica de extrema não participar do estudo, já que a maioria destes
relevância clínica que pode estar presente é a de- residia em locais distantes de nosso centro. Os 12
formidade ou ausência de orelhas, denominada indivíduos com STC remanescentes selecionados
microtia ou anotia. Nestas situações, o tratamen- foram então divididos em dois grupos, sendo o
to é ainda mais complexo, pois envolve a recons- grupo 1 composto por voluntários com orelhas
trução total das orelhas com as cartilagens das normais não afetadas (n = 6), e o grupo 2 por vo-
costelas, realizada em dois a quatro estágios em luntários com ausência parcial ou total de orelhas
cada um dos lados7. com o diagnóstico clínico de microtia ou anotia
O tratamento das formas mais graves de STC (orelhas afetadas) (n = 6) (Figuras 1 e 2).
requer uma média de 5 cirurgias até o término Todos os pacientes estiveram, portanto, sob
do crescimento craniofacial8. Nas situações de os cuidados de um centro especializado de aten-
deformidade de orelha (microtia) ou total au- dimento multidisciplinar (com psicólogos, fono-
sência de orelha (anotia), o número de cirurgias audiólogos, ortodontistas, cirurgiões plásticos,
aumenta significativamente, o que gera um ônus
social ao indivíduo e a seus familiares com pro-
vável impacto na qualidade de vida dos mesmos.
Portanto, existe a necessidade de se identificar
parâmetros para mensuração das respostas des-
ses indivíduos às cirurgias craniofaciais por meio
de instrumentos de aferição da qualidade de vida
e identificar se a característica clínica microtia/
anotia leva a impacto negativo na qualidade de
vida e, consequentemente, compromisso no tra-
tamento longitudinal dos indivíduos com STC.
Curiosamente, a qualidade de vida dos in-
divíduos com STC e seus distintos fenótipos
(com orelha normal versus com deformidade
ou ausência de orelha) ainda não foi mensurada
e comparada na literatura. Portanto, urge a ne-
cessidade de se avaliar e mensurar a qualidade
de vida desses brasileiros com STC e aferir se a
Figura 1. Paciente com Síndrome de Treacher Collins
deformidade ou ausência de orelhas tem impacto e presença de microtia.
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mandibular, mordida aberta anterior, microg-
natia e microgenia. Com relação a maxila, ha-
via diminuição da altura da porção posterior da
maxila e diminuição do espaço aéreo posterior.
Estas deformidades ósseas levavam os indivíduos
a dificuldade respiratória. Os pacientes que res-
ponderam o questionário apresentavam boa ca-
pacidade auditiva e se comunicavam muito bem
com os avaliadores.
Em relação ao questionário aplicado, o
WHOQOL-100 constitui-se como um instru-
mento de avaliação de qualidade de vida de acei-
tação internacional, proposto e elaborado pela
Figura 2. Paciente com Síndrome de Treacher Collins Organização Mundial da Saúde. É um instru-
e ausência de deformidade de orelha.
mento que consiste em 100 questões referentes a
6 domínios (físico, psicológico, nível de indepen-
dência, relações sociais, ambiente e espiritualida-
de/religiosidade/crenças pessoais), os quais são
divididos em 24 facetas, sendo que cada faceta
otorrinolaringologistas e assistentes sociais). No é composta por quatro perguntas. Além das 24
primeiro atendimento, o indivíduo e os familiares facetas específicas, o instrumento tem uma vigé-
passam em consulta com todas as especialidades sima quinta faceta composta de perguntas gerais
e um diagnóstico detalhado de cada indivíduo é sobre qualidade de vida9.
descrito no prontuário por cada especialidade, Após aplicação dos questionários, dados so-
assim como as prioridades imediatas e ao longo cioeconômicos, antecedentes cirúrgicos e com-
do seguimento. O número, os tipos de cirurgias plicações foram coletados dos prontuários. Fo-
e as idades em que deverão ocorrer são deline- ram estabelecidos como complicações apenas os
ados às famílias, bem como a idade do início do eventos que trouxeram repercussões permanen-
tratamento ortodôntico. A necessidade de acom- tes e significativas, com potencial de refletir na
panhamento pela equipe de psicologia é enfati- qualidade de vida dos avaliados.
zada à família, bem como o número aproximado Foi adotada a escala de Siviero10 para de-
de sessões, tempo de cada sessão e tempo médio finir parâmetros de qualidade de vida e como
de acompanhamento. A interferência ativa do referência para determinar a qualidade de vida
Serviço Social junto ao município visa facilitar em satisfatória, intermediária ou insatisfatória.
a obtenção do auxílio denominado Transporte Nessa perspectiva, os valores inferiores a 25 ca-
Fora de Domicilio (TFD). A secretaria de saúde racterizaram a insatisfação (qualidade de vida
da cidade de origem do indivíduo reconhece que insatisfatória), enquanto os valores superiores a
não existe tratamento dentro da área do municí- 75 caracterizaram a satisfação (qualidade de vida
pio e deve oferecer transporte até o centro espe- satisfatória). Os valores compreendidos entre 25
cializado. Desta forma, o serviço social promove e 75 caracterizaram o nível intermediário de qua-
a garantia da adesão do indivíduo ao tratamento lidade de vida11.
multidisciplinar ao longo do seguimento até a re- A aplicação do questionário foi realizada con-
abilitação final e inserção completa no ambiente forme orientações estabelecidas, de maneira que
de trabalho. Todo o atendimento é realizado pelo os voluntários foram informados do objetivo de
Sistema Único de Saúde (SUS). sua aplicação e do destino dos dados coletados.
Os indivíduos apresentavam-se com a hipo- Todos os indivíduos compareceram à instituição,
plasia do terço médio da face (óssea e muscular), de modo que o questionário fosse respondido
rotação anti-mongoliana da fenda palpebral, co- por cada um em apenas um encontro. Como
loboma das pálpebras inferiores, ausência de cí- orientação geral, foi estabelecido que o questio-
lios na região medial das pálpebras. Todos apre- nário é auto respondido, baseando-se na inter-
sentavam perda de audição por condução óssea pretação individual e de como o respondente se
independente da presença das orelhas e alteração sente nas últimas duas semanas que antecederam
da configuração da linha capilar lateral. As de- a pesquisa, assim ele próprio leria e assinalaria
formidades ósseas foram caracterizadas como uma das alternativas propostas no instrumento
retrusão da mandíbula, encurtamento do ramo (autoexplicativo), sem influência dos aplicadores
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na explanação das questões. As crianças tiveram Quando foram divididos nos dois grupos;
auxílio de um dos pais em certos momentos da o grupo dos indivíduos com orelhas normais
entrevista e também não foram avaliadas quanto apresentou 5 membros do sexo masculino e 1
à vida sexual. membro do sexo feminino. A média de idade do
O cálculo dos escores e estatística descritiva grupo foi de 24 anos e 10 meses, variando de 15
foi realizado por meio do instrumento do Mi- a 33 anos. A renda per capita média das famílias
crosoft Excel desenvolvido pela Universidade foi de R$ 532,55. Já o grupo dos indivíduos com
Tecnológica Federal do Paraná (UFTPR)12. Após orelhas afetadas era constituído por 4 membros
a aplicação dos questionários, os dados foram do sexo masculino e 2 do sexo feminino. A média
tabelados e as respostas, após análise estatísti- de idade foi de 16 anos e 4 meses, variando de 6 a
ca, foram convertidas em escala de 0 a 100 pelo 32 anos. A renda per capita média das famílias do
próprio programa, as facetas que apresentavam grupo correspondeu a R$ 728,64.
escala invertida foram convertidas de modo a Foi realizada uma média de 5,5 procedimen-
permitir a comparação com as demais facetas. tos cirúrgicos por indivíduo do grupo com ore-
Houve a comparação de cada faceta e domínio lhas normais. Foi realizada transfusão sanguínea
do questionário entre os dois grupos de pacientes de uma unidade de concentrado de hemácias em
com STC por meio do Teste de Mann-Whitney. um dos procedimentos. Todos os demais indiví-
O nível de significância estatística foi estabeleci- duos evoluíram sem complicações ou transfusões
do para p < 0,05. nesse grupo. Já no grupo com orelhas afetadas a
média foi de 7,17 procedimentos cirúrgicos por
Considerações éticas indivíduo. Não foram identificadas complicações
permanentes e significativas.
Este projeto foi aprovado pelo Comitê de Éti- Na maioria dos domínios do questionário
ca da Instituição. WHOQOL-100, os resultados dos voluntários
Todos os indivíduos tiveram o Termo de Con- com orelhas normais foram superiores aos com
sentimento Livre e Esclarecido (TCLE) assinado orelhas afetadas. No domínio físico, a média para
como documentação legal. Para os indivíduos o grupo com orelhas normais foi de 70,49, já no
com idade inferior a 18 anos, coube ao represen- grupo com orelhas afetadas o resultado foi de
tante legal assinar o documento. Todos os volun- 65,28, ambos com níveis intermediários de qua-
tários poderiam ainda optar por não participar lidade de vida, segundo a escala definida por Si-
em qualquer momento do curso da pesquisa, es- viero10. No domínio psicológico, os resultados fo-
tando seguros de que isso jamais os prejudicaria ram de 76,88 para o grupo com orelhas normais
no plano de tratamento, atual ou futuro. (nível satisfatório de qualidade de vida), e 70,21
(nível intermediário de satisfação) para o grupo
com orelhas afetadas. Já com relação ao domínio
Resultados nível de independência, os resultados foram de
78,65 e 76,22, nos grupos 1 e 2, respectivamente,
Foram entrevistados 12 voluntários com STC, ambos os escores considerados como nível sa-
sendo 9 do sexo masculino e 3 do sexo feminino. tisfatório de qualidade de vida. No domínio das
No grupo, a média de idade foi de 20 anos e 7 me- relações sociais, o grupo orelhas normais obteve
ses, variando de 6 a 33 anos. Já a renda per capita 77,78, e o grupo orelhas afetadas 75,64, também
média das famílias foi de R$ 630,59. considerados escores de satisfação, com a quali-
De acordo com a escala definida por Siviero10, dade de vida.
os indivíduos com STC apresentaram níveis sa- No domínio ambiente, ambos os grupos ob-
tisfatórios de qualidade de vida para os seguin- tiveram escores intermediários de qualidade de
tes domínios: nível de independência, relações vida, embora a pontuação do grupo com orelhas
sociais e aspectos espirituais/ religião/ crenças afetadas seja superior (69,40) ao grupo com ore-
pessoais (77,43, 76,71 e 80,11, respectivamente). lhas normais (67,32). Foi verificado no domínio
As respostas aos demais domínios geraram níveis aspectos espirituais/religião/crenças pessoais que
intermediários de qualidade de vida, sendo que o grupo com orelhas afetadas obteve escore de
os domínios físico e ambiente geraram os níveis 81,25 enquanto o grupo com orelhas normais
mais baixos (67,88 e 68,36, respectivamente). obteve 78,75, níveis satisfatórios nos dois grupos.
Com relação ao escore geral do instrumento, os Por fim, na avaliação geral da qualidade de vida,
voluntários com STC apresentam níveis interme- a pontuação do grupo orelhas normais foi de
diários de qualidade de vida (72,47) (Tabela 1). 73,13, e no grupo orelhas afetadas 71,81, níveis
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intermediários de qualidade de vida em ambos derado as crianças a partir de cinco anos de idade
os grupos (Tabela 2 e Gráfico 1). como elegíveis para responder os instrumentos
Por fim, observamos que não há resultados que mensuraram a qualidade de vida14-16. A idade
com diferença significativa entre os dois grupos limite de cinco anos para aplicação do questio-
para nenhum domínio comparado. nário WHOQOL-100 já foi utilizada por vários
autores14-17. Tendo sido inclusive descrito que
crianças a partir desta idade podem ser autocríti-
Discussão cas14-16. Portanto, a utilização de um instrumento
validado para a língua portuguesa nos pacientes
Bindra et al.13 ressaltaram a premissa de que os brasileiros com STC, com idade entre 6 a 33 anos,
próprios indivíduos são os observadores mais possibilitou a obtenção de dados que mostram
confiáveis e precisos de suas percepções de saúde que esses indivíduos com STC, tratados em nossa
e experiências, independentemente da sua idade Instituição, apresentam escores de qualidade de
no momento da avaliação. Além disto, os instru- vida elevados em todos os domínios e facetas.
mentos de identificação da qualidade de vida por É muito provável que a adesão ao protocolo ci-
meio de questionários fornecem resultados fiéis13 rúrgico bem planejado tenha impactado positi-
e, portanto, facilitam à equipe multidisciplinar a vamente a qualidade de vida destes indivíduos.
elaborar estratégias de tratamento para benefi- Além disto, a terapia psicológica permitiu a ob-
ciar o indivíduo. tenção de ferramentas para o fortalecimento do
Estudos sobre a qualidade de vida em crian- repertório cognitivo necessário para o manuseio
ças com e sem anomalias craniofaciais têm consi- das ofensas e insultos advindos dos pares.

Tabela 1. Resultados e estatística descritiva dos pacientes com Treacher Collins por domínio do WHOQOL-100.
Desvio
Domínios 0-100 Média Mediana CV Min Max N
Padrão
Domínio Físico 67,88 14,86 15,3 2,10 14% 11,0 18,3 12
Domínio Psicológico 73,54 15,77 15,9 2,21 14% 11,8 19,6 12
Nível de Independência 77,43 16,39 17,0 2,19 13% 11,7 20,0 12
Relações Sociais 76,71 16,27 16,8 1,94 12% 12,7 19,1 12
Ambiente 68,36 14,94 15,0 1,57 10% 12,4 18,6 12
Aspectos espirituais/Religião/Crenças pessoais 80,11 16,82 17,0 2,48 15% 14,0 20,0 11
Geral 72,47 15,59 15,9 1,66 11% 12,4 17,9 12

Tabela 2. Resultados e estatística descritiva entre grupos com e sem orelhas por domínio do WHOQOL-100.
Desvio
Domínios Grupo 0-100 Média Mediana N IC P-valor
Padrão
Domínio físico Com Orelha 70,49 15,28 15,3 2,18 6 1,75 0,628
Sem Orelha 65,28 14,44 15,0 2,13 6 1,70
Domínio psicológico Com Orelha 76,88 16,30 16,0 1,85 6 1,48 0,749
Sem Orelha 70,21 15,23 15,9 2,58 6 2,06
Nível de Independência Com Orelha 78,65 16,58 16,8 0,88 6 0,70 0,629
Sem Orelha 76,22 16,19 17,1 3,12 6 2,50
Relações sociais Com Orelha 77,78 16,44 17,0 1,94 6 1,55 0,629
Sem Orelha 75,64 16,10 16,3 2,12 6 1,69
Ambiente Com Orelha 67,32 14,77 15,0 0,90 6 0,72 0,936
Sem Orelha 69,40 15,10 14,9 2,12 6 1,70
Aspectos espirituais/ Com Orelha 78,75 16,60 17,0 2,07 5 1,82 0,711
Religião/Crenças pessoais Sem Orelha 81,25 17,00 17,0 2,97 6 2,37
Geral Com Orelha 73,13 15,70 15,9 1,03 6 0,83 0,873
Sem Orelha 71,81 15,49 15,9 2,22 6 1,78
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Qualidade de Vida do ponto de vista do avaliado 83,33


75,00
Espiritualidade/religião/crenças pessoais 81,25
78,75
Transporte 72,92
63,54
Ambiente físico: (poluição/ruído/trânsito/clima) 64,58
64,58
Participação em, e oportunidades de recreação/lazer 73,96
80,21
Oportunidades de adquirir novas inrormações e... 70,83
70,83
Cuidados de saúde e sociais: disponibildade e... 76,04
69,79
Recursos financeiros 61,46
48,96
79,17
Ambiente no lar 82,29
56,25
Segurança física e proteção 58,33 67,71
Atividade sexual 73,75
71,88
Suporte (apoio)social 71,88 84,38
Sem orelha
Relações pessoais 84,38
74,65 Com orelha
Capacidade de trabalho 84,38
83,33
Dependência de medicação ou de tratamentos 63,54
67,71
Atividades da vida cotidiana 80,21
79,17
Mobilidade 88,75
66,67
Sentimentos negativos 67,71
63,54
Imagem corporal e aparência 67,71
72,92
Auto-estima 83,33
70,83
Pensar, aprender, memória e concentração 77,08
77,08
Sentimentos positivos 88,54
72,92
Sono e repouso 75,00
76,04
Energia e fadiga 46,88 78,13
Dor e desconforto 58,33
0,00 20,00 40,00 60,00 80,00 100,00

Gráfico 1. Resultados entre grupos com e sem orelhas por facetas do WHOQOL-100.

Em nosso centro, um grupo de 14 psicólogos na respiração. Cirurgias precoces em crianças com


oferece terapia longitudinal para enfrentamento menos de 01 ano de idade podem ser necessárias
das inúmeras etapas de tratamento como tam- para restabelecimento da via aérea posterior. O
bém fundamenta os alicerces de combate às do- alongamento gradual da mandíbula por meio de
res advindas das ofensas repetidas no ambiente distração osteogênica foi uma técnica cirúrgica
social e escolar. Portanto, acreditamos que todo proposta por McCarthy, que possibilitou que esses
indivíduo que apresenta deformidade craniofa- indivíduos deixassem de receber traqueostomia
cial deva ser tratado em centro especializado em ao permitir mudança na anatomia da mandíbula e
cirurgia craniofacial. readequação e aumento do espaço aéreo posterior
Indivíduos nascidos com STC necessitam de e melhora significativa na respiração18,19.
tratamento longitudinal, com abordagem mul- Uma outra característica clínica relativamen-
tidisciplinar em que inúmeras cirurgias são pla- te prevalente nestes indivíduos é o déficit de au-
nejadas e realizadas individualmente, de acordo dição e a deformidade/ausência das orelhas.
com a gravidade e apresentação fenotípica desde Algum grau de perda auditiva condutiva bi-
o nascimento. O principal problema anatômico lateral sempre está presente em todos os indiví-
é a hipoplasia do terço médio da face e o hipo- duos com a síndrome, independente da presença
desenvolvimento da mandíbula e mento. Estas ou deformidades da orelha externa. O ouvido
alterações anatômicas são características fenotípi- médio é pequeno, com hipoplasia das células do
cas das alterações genéticas inerentes à síndrome antro e mastóide. Os ossículos martelo, bigorna
e têm interferência direta na função respiratória, e estribo apresentam-se com alterações anatô-
pois o espaço aéreo encontra-se estreitado nestes micas relevantes. No entanto, se os pacientes
indivíduos e, como consequência, respiram pre- são diagnosticados e tratados adequadamente,
cariamente. Normalmente, são indivíduos muito é possível o restabelecimento da capacidade au-
magros, devido ao grande esforço e gasto calórico ditiva por meio de prótese auditiva ancorada no
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osso. Os indivíduos, com perda auditiva signi- sentaram em nosso centro tardiamente ou estão
ficativa, tratados em nosso centro, resgatam a aguardando condições clínicas para a cirurgia e
capacidade auditiva condutiva por meio da im- já entraram no protocolo de terapia psicológica.
plantação destes aparelhos. Portanto, a audição Embora o presente estudo tenha sido o pri-
dos indivíduos estudados lhes permite a execu- meiro no Brasil a tentar identificar a qualidade
ção de tarefas diárias (como por exemplo falar de vida nos indivíduos com STC e o impacto da
ao telefone sem dificuldades) e interação social microtia/anotia na qualidade de vida destes, esse
e diálogos com boa compreensão e comunica- não é livre de limitações. Trata-se de avaliação da
ção em ambiente com poucos ruídos. Todos os qualidade de vida com amostra reduzida. No en-
pacientes, apesar do déficit auditivo, se comu- tanto, acreditamos que o aumento do número de
nicaram bem durante as entrevistas, sem ajuda. indivíduos provavelmente não mudaria os resul-
A ausência da orelha externa apresenta-se tados obtidos nos dois diferentes grupos, uma vez
como um aspecto morfológico adicional (não que todos os valores de p foram acima de 0,6 para
relacionado ao grau de surdez) que pode levar a todos os domínios, o que enfraqueceu significa-
um grande estigma individual com perda da fun- tivamente a nossa hipótese inicial. Outra limita-
ção cognitiva comportamental, retração e iso- ção importante foi a ausência de grupo controle
lamento social. A cirurgia para reconstrução de e ausência de outros instrumentos que pudessem
orelhas nestes indivíduos é extremamente com- comparar os dados obtidos pelo instrumento
plexa e envolve retirada de 3 costelas, confecção WHOQOL-100. Estudos futuros em andamento
do arcabouço cartilaginoso e inserção na região deverão comparar os dados do presente estudo à
da mastoide7. A idade ideal para a reconstrução qualidade de vida de um grupo controle de indi-
de orelha é 10 anos, no entanto, como esses indi- víduos não afetados pela síndrome.
víduos apresentam-se normalmente hipodesen-
volvidos e magros, não é infrequente a necessi-
dade de protelar a cirurgia para a fase adulta. No Conclusão
entanto, crescer com orelhas e enfrentar os perío-
dos da infância e da adolescência pode trazer da- Curiosamente, os indivíduos mensurados em
nos e sequelas graves ao desenvolvimento psíqui- nosso estudo representam uma amostra peque-
co, uma vez que essa característica clínica pode na dos indivíduos com STC encontrados no
acentuar ou suscitar ofensas e piadas advindas de Brasil. Muito provavelmente a grande maioria
seus pares em ambiente escolar. Portanto, nosso destes não se encontra em acompanhamento em
estudo foi desenhado com objetivo de esclare- centros especializados e, portanto, sem a opor-
cermos e identificarmos o impacto da microtia/ tunidade do tratamento global. É possível que
anotia na qualidade de vida dos indivíduos com muitos indivíduos com STC que não receberam
STC e, eventualmente, anteciparmos as cirurgias tratamento e/ou receberam tratamento fora dos
de reconstrução de orelha para idade mais preco- centros apresentem uma qualidade de vida infe-
ce possível, ou elaborarmos uma prótese tempo- rior àqueles com acompanhamento em um cen-
rária de orelhas até a idade ideal para a cirurgia. tro especializado de cirurgia craniofacial. Desta
Curiosamente, os indivíduos com STC com maneira, qualquer generalização dos nossos da-
microtia/anotia não apresentaram qualidade de dos fica limitada a indivíduos com STC acompa-
vida distintas daqueles com orelhas normais, nhados em centros de reconhecida excelência no
contrariando nossa hipótese inicial. Os dados tratamento das deformidades craniofaciais e não
do presente estudo demonstraram que outras podem ser extrapolados para outros cenários.
deformidades faciais características do fenótipo Assim, ainda que não esteja claro se os resul-
podem impactar negativamente e com maior tados se aplicam a todos os indivíduos com a sín-
intensidade a qualidade de vida dos indivíduos drome, contrariamente à nossa hipótese inicial,
com STC. Além disto, como esses indivíduos e ambos os grupos com STC (com ou sem defor-
seus responsáveis legais são avisados de que as ci- midade de orelhas) no nosso estudo, apresenta-
rurgias de reconstrução de orelha são realizadas ram níveis elevados de qualidade de vida, suge-
de maneira programada a partir dos 10 anos de rindo que adquiriram repertório para lidar com
idade, estes acabam nutrindo a esperança de ob- situações adversas da vida diária, o que contribui
ter uma orelha próxima ao normal, diminuindo para justificar nossa abordagem a estes indiví-
a ansiedade e impactando positivamente na qua- duos, bem como solidificar a necessidade de ga-
lidade de vida. Os indivíduos com STC do grupo rantia de acesso a centros especializados mesmo
das orelhas afetadas maiores que 10 anos se apre- àqueles indivíduos com síndromes raras.
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Lodovichi FF et al.

Colaboradores

FF Lodovichi trabalhou na aplicação dos questio- aplicação dos questionários e no delineamento


nários, na revisão dos prontuários, na escrita do do projeto. CA Raposo-do-Amaral trabalhou
projeto e teve um papel central no levantamento na revisão do texto final e no delineamento do
bibliográfico e na discussão final. JP Oliveira. tra- projeto. E Ghizoni trabalhou na discussão dos re-
balhou na aplicação dos questionários, na revisão sultados e na revisão do texto final. CE Raposo-
dos prontuários, na escrita do projeto e teve um do-Amaral trabalhou no planejamento, delinea-
papel central no levantamento dos resultados e mento do projeto e na discussão dos resultados,
na análise estatística. R Denadai trabalhou na orientou todas as etapas e revisou o texto final.

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