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38 • Público • Sexta-feira, 10 de Novembro de 2023

Ciência e Ambiente Estudo de genética de equipa portuguesa

Os cavalos-marinhos
têm rins muito
estranhos. E várias
outras coisas
Cientistas portugueses estudaram o rim peculiar dos cavalos-marinhos,
dragões-marinhos e marinhas. “São criaturas de aspecto dócil e delicado,
mas evolutivamente hiperactivas”, diz um dos biólogos da equipa
Os machos é que engravidam. A climáticas afectam gravemente os “[Os singnatídeos] são aquilo que se
Beatriz Silva
fêmea transfere ovos para a bolsa do seus habitats”, acrescenta Nuno designam como ‘aglomerulares’,

O
s cavalos-marinhos, dra- macho, sendo depois ele a Æcar grá- Monteiro, do Biopolis — Centro de portanto não têm glomérulos renais.
gões-marinhos e as mari- vido, com os ovos a serem fertiliza- Investigação em Biodiversidade e O que a minha equipa perguntou,
nhas não têm uma parte dos dentro dessa bolsa. Quando as Recursos Genéticos (Cibio/InBio), para além do porquê, foi como.
importante dos rins e já crias eclodem dos ovos, são expeli- do Porto. Como é que estes glomérulos estão
se sabe o porquê, revelam das através de movimentos. Em Portugal, a ria Formosa é a ausentes?”, conta Filipe Castro.
cientistas portugueses Como se não bastasse, os cavalos- casa dos cavalos-marinhos-de-foci- Os rins são dos órgãos mais impor-
que investigaram, através do geno- marinhos, em particular, possuem nho-longo (Hippocampus guttulatus) tantes do sistema urinário ou excre-
ma, a razão para o surgimento uma cauda que é, ao mesmo tempo, e dos cavalos-marinhos-de-focinho- tor, servindo como Æltro para a cor-
deste “rim peculiar” — e bastante rígida, Çexível e resistente e que, curto (Hippocampus hippocampus), rente sanguínea. “Esta função é
raro — e das suas mudanças Æsio- depois de milhões de anos de evo- onde estas duas espécies, icónicas fundamental e minimiza a perda de
lógicas. lução, já quase não serve para nadar desta ria algarvia, vivem em comu- água e de moléculas essenciais, como
Esta família de peixes — a Syng- — mas, sim, apenas para se agarra- nidade. Além da ria Formosa, tam- a glucose, mas elimina os produtos
nathidae, ou singnatídeos — é rem a algas e corais, onde esperam bém já foram avistados cavalos-ma- tóxicos”, explica o comunicado de
conhecida pela sua cabeça longa, calmamente pelas presas que vão rinhos, por exemplo, na Arrábida, imprensa relativo a este trabalho
corpo esguio e cauda enrolada, ten- comer. no estuário do Sado, no estuário do cientíÆco.
do muita visibilidade nos media. Estes peixes ósseos vivem no mar Tejo, na ria de Aveiro e nos Açores A função da Æltragem é uma carac-
“Os cavalos-marinhos, e os singna- Mediterrâneo, no Nordeste da bacia e na Madeira. terística antiga, estando presente nos
tídeos em geral, são um grupo que do Atlântico e no Noroeste da Penín- animais vertebrados há milhões de
é muito atractivo para as pessoas sula Ibérica. “Em águas europeias, Sem dentes nem estômago anos. “O rim de um tubarão-branco,
porque são muito bonitos e icóni- existem aproximadamente 18 espé- Os cavalos-marinhos alimentam-se o de uma sardinha ou o de um huma-
cos”, começa por dizer Filipe Cas- cies de singnatídeos: 15 espécies de de animais pequenos, que são engo- no, apesar de algumas diferenças,
tro, do Centro Interdisciplinar de marinhas e quatro espécies de cava- lidos sem mastigação, devido ao fac- apresentam uma imensa semelhança
Investigação Marinha e Ambiental los-marinhos. Destes, de acordo com to de não possuírem dentes ou estô- funcional e molecular na porção Æl-
(Ciimar) da Universidade do Porto a União Internacional para a Conser- mago, passando a comida directa- tradora, resultado de uma origem
e um dos autores de um artigo cien- vação da Natureza (IUCN), 55% estão mente para o intestino. Devido a isto, evolutiva comum”, acrescenta o
tíÆco na revista Current Biology listados como tendo ‘informação os alimentos são processados de for- comunicado.
sobre o “rim peculiar” destes ani- insuÆciente’ e o estado actual das ma mais rápida. A forma como são Nos seres humanos, os glomérulos
mais, como é apelidado num comu- populações de 83% dos singnatídeos processados é uma questão ainda renais são fundamentais para a
nicado de imprensa sobre este tra- europeus é ainda desconhecido”, sem resposta, que está a ser investi- sobrevivência. “Se não conseguirmos
balho cientíÆco. explica o biólogo Nuno Monteiro, gada pela equipa de Filipe Castro. Æltrar devidamente o nosso sangue No topo: um cavalo-marinho
“Além disso, há um aspecto que, também entre os autores do artigo Para além disto, tanto os cavalos- no rim, temos um problema de saúde fêmea (Hippocampus
para um biólogo, é muito apelati- cientíÆco. marinhos como os dragões-marinhos bem sério”, realça Filipe Castro. No guttulatus) e, ao lado, uma
vo: a questão da gravidez, que é “Embora gozem de um estatuto e as marinhas têm rins bastante dife- caso dos cavalos-marinhos e restan- marinha macho grávida
talvez o aspecto mais conhecido. especial, em comparação com mui- rentes em comparação com os seres tes singnatídeos, a peculiaridade dos (Nerophis lumbriciformis).
Há uma inversão do papel paren- tos outros organismos aquáticos, os humanos e outros animais vertebra- seus rins não parece afectá-los. Ao centro: um cavalo-marinho
tal”, diz o investigador referindo- singnatídeos continuam a enfrentar dos: caracterizam-se pela ausência Para tentar perceber o porquê des- macho grávido.
se aos cavalos-marinhos, dragões- inúmeras ameaças, uma vez que a de glomérulos renais, estruturas res- ta alteração nos rins dos singnatí- Em baixo: um dragão-marinho
marinhos e às marinhas. actividade humana e as alterações ponsáveis pela Æltração sanguínea. deos, a equipa recorreu ao estudo do
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VASILIS MENTOGIANNIS/EUROSYNG (GRÉCIA) PATRICK LOUISY/EUROSYNG (FRANÇA)

RUDIE KUITER/AQUATIC PHOTOGRAPHICS


vos. Porque, com um estilo de vida
activo, em que o movimento é cons-
tante e rápido e, consequentemen-
te, a alimentação é maior e frequen-
te, um sistema de Æltração torna-se
fundamental.

Uma evolução hiperactiva


O trabalho sobre a família dos
cavalos-marinhos ainda não está
concluído. Há que conÆrmar quan-
do apareceu este rim peculiar.
“Vamos andar para trás no tempo,
utilizando mais espécies próximas
dos singnatídeos. Vamos utilizar
uma análise comparativa com
outros peixes ósseos, como, por
exemplo, o peixe-zebra e até o
bacalhau. E, depois, vamos estu-
JOHN TURNBULL/UNSW SYDNEY
dar o desenvolvimento embrioná-

18
cavalos-marinhos e restante família rio do rim em cavalos-marinhos e
dos singnatídeos. em singnatídeos”, conta Filipe
Embora a razão para este facto Castro referindo-se à “janela tem-
ainda esteja em estudo e, para já, poral muito pequenina” do desen-
apenas seja possível especular, Filipe volvimento do embrião.
Castro esclarece que os singnatídeos Tal como no caso dos seres
são “organismos muito estáticos”, humanos, os rins formam-se duran-
que adoptam um estilo de vida inac- é o número de espécies de te o desenvolvimento embrionário,
tivo e à base do disfarce. singnatídeos em águas sendo esse considerado o momen-
Adjacente a isso, os singnatídeos europeias: 15 das quais são to-chave para se perceber como é
apresentam uma taxa metabólica espécies de marinhas e quatro que estes órgãos se modiÆcam,
baixa, que, em conjunto com as pre- de cavalos-marinhos explica ainda o cientista. “O rim
sas de baixo valor energético de que modiÆcou-se em termos funcionais
se alimentam, e a incapacidade de nos cavalos-marinhos. Queremos
extrair energia desses alimentos, perceber como é que isso aconte-
poderá ter levado à necessidade de ceu durante o desenvolvimento
reduzir o seu gasto energético. “[O embrionário.”
pouco gasto energético] está relacio- Tudo para desvendar os misté-
nado com a dieta e a digestão. Por- rios dos singnatídeos, em particu-
tanto, para quem tem um budget lar dos cavalos-marinhos, que não
energético tão escasso, Æltrar menos têm dentes, não têm estômago, os
é uma forma de poupar energia”, machos é que engravidam e agora
explica Filipe Castro.
Assim sendo, os cientistas dedu-
Há um aspecto que, percebeu-se também como os seus
rins são especiais. E que, se têm
zem que a ausência da Æltração renal para um biólogo, um estilo de vida inactiva, em ter-
é uma resposta evolutiva para lidar
com as limitações do estilo de vida é muito apelativo: mos evolutivos são tudo menos
parados no tempo.
dos singnatídeos. Como são animais
inactivos, a necessidade dos glomé-
a questão da “A recente descoberta da singu-
laridade dos rins dos singnatídeos
rulos renais é assim reduzida. “Con-
seguem-se ver os tubos renais e
gravidez, que é mostra, mais uma vez, quão espe-
cial é a família dos cavalos-mari-
ADN. “Todos estes aspectos da Æsio- — de singnatídeos e compará-lo com outras componentes do rim, que são talvez o aspecto nhos. Enquanto concebem maqui-
logia, da anatomia e do comporta-
mento, de uma maneira ou de outra,
o de organismos ou peixes que têm
glomérulos, por exemplo o atum.”
especíÆcas dos peixes, mas os glomé-
rulos e os genes associados desapa- mais conhecido. naria capaz de transferir o ónus da
gravidez para os machos, desmon-
têm uma impressão digital no ADN”,
explica Filipe Castro.
Durante esta análise, Filipe Castro
e a sua equipa constataram, pela pri-
receram, porque assim não há Æltra-
ção, sendo essa poupança energética
Há uma inversão tam estruturas milenares, como é
o caso do rim”, remata Nuno Mon-
“Se o glomérulo não existe, então
o Æltro desapareceu. E a forma de
meira vez, que as proteínas (a podo-
cina e a nefrina) e os genes normal-
muito positiva para o peixe.”
Filipe Castro aÆrma ainda que a
do papel parental teiro. “São criaturas de aspecto
dócil e delicado, mas evolutivamen-
validar se o Æltro tinha desaparecido mente incluídos na função de Æltra- eliminação deste sistema de Æltração Filipe Castro te hiperactivas.” Texto editado
ou não foi estudar o ADN — o genoma ção não estavam presentes em nunca seria possível em peixes acti- Investigador por Teresa Firmino

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