Você está na página 1de 35

São Paulo Law School of Fundação Getulio Vargas – FGV DIREITO SP

Research Paper Series – Legal Studies


Paper n. 122

Algumas notas teóricas sobre a pesquisa empírica em direito 1

Some theoretical notes on empirical legal research

José Roberto Franco Xavier2


Faculdade Nacional de Direito da UFRJ

June 2015

This paper can be downloaded without charge from FGV DIREITO SP’s website:
http://direitogv.fgv.br/publicacoes/working-papers and at the Social Science Research Network
(SSRN) electronic library at: http://www.ssrn.com/link/Direito-GV-LEG.html.
Please do not quote without author’s permission

1
Este texto é parte de uma reflexão maior que foi desenvolvida no quadro de uma pesquisa de pós-doutorado junto à
FGV Direito-SP. Agradeço à Fapesp pelo financiamento da pesquisa de pós-doutorado sobre a produção de pesquisa
empírica em direito no Brasil desde o ano 2000, pesquisa da qual este texto é um pequeno produto. Agradeço
também à professora Maíra Rocha Machado pelas críticas a este texto e por toda a generosidade com que me acolheu
durante o pós-doutorado. Por fim, agradeço à FGV Direito-SP por ter me recebido e dado uma excelente estrutura de
trabalho ao longo dessa pesquisa. Para os interessados no relatório de pesquisa completo, basta contatar o autor.
2
Bacharel em Direito pela USP. Mestre e doutor em Criminologia pela University of Ottawa (Canadá). Professor da
Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. E-mail: jrx@ufrj.br

Electronic copy available at: http://ssrn.com/abstract=2623260


Resumo: Tratamos neste texto de algumas dificuldades teóricas que aparecem quando
pensamos numa atividade de pesquisa empírica no mundo da academia jurídica. Interessam-nos
aqui os problemas enfrentados pelos pesquisadores que se identificam como pertencendo à
academia do direito, mas que desenvolvem pesquisas que fogem ao modelo tradicional de
pesquisa teórico-doutrinária ou teórico-filosófica. Falamos rapidamente no texto de como a
pesquisa empírica em direito se tornou importante em outros cenários nacionais, e como ela
parece ter adquirido um importante espaço na academia jurídica nacional nos últimos anos.
Tratamos também da dificuldade teórica que aparece quando tentamos definir o que é pesquisa
em direito, e da consequente dificuldade de se dizer se é possível pesquisa empírica em direito
(interna ao campo) ou somente sobre o direito (externa).
Palavras-chave: pesquisa empírica em direito; epistemologia do direito

Abstract: This paper deals with some theoretical challenges that come to light when we
think about empirical research in the legal academia. We focus our attention to the challenges
faced by researchers, whom identify themselves as legal scholars, but perform research that
departs from traditional doctrinal or philosophical legal scholarship. We briefly discuss how
empirical legal research has become relevant in other national contexts, and how during the last
few years it seems to have acquired considerable importance in the Brazilian legal academia.
Moreover, we discuss the theoretical difficulties that emerge in conceptualizing legal research.
After all, is it possible to perform empirical legal research (research in law ‒ inside the legal
field), or only empirical research about law (research with law ‒ outside the legal field).
Keywords: empirical legal studies; epistemology of law

Electronic copy available at: http://ssrn.com/abstract=2623260


Sumário

1 Introdução __________________________________________________________________ 4

2 A emergência da pesquisa empírica no cenário das faculdades de direito _________________ 5

2.1 A empiria e o direito em outros contextos nacionais ______________________________ 6

2.2 A emergência da pesquisa empírica em direito no contexto nacional ________________ 11

2.2.1 Um histórico de crise da pesquisa em direito _______________________________ 11

2.2.2 A recente emergência da pesquisa empírica entre os acadêmicos do direito _______ 15

3 O olhar teórico sobre o direito como fundamental para conceber a pesquisa empírica ______ 18

3.1 A pesquisa empírica apropriada pela dogmática ________________________________ 20

3.2 A pesquisa empírica como um procedimento do sistema científico e não do

sistema jurídico __________________________________________________________ 22

3.3 Um modelo de conhecimento jurídico em que a empiria é central __________________ 23

3.4 Um modelo de ciência jurídica que prescinde da pesquisa empírica _________________ 26

3.5 Um modelo de ciência jurídica pluralista ______________________________________ 27

4 Notas finais: por um exercício de dessubstancialização do conceito de pesquisa

em direito __________________________________________________________________ 29

Referências bibliográficas ______________________________________________________ 32

Electronic copy available at: http://ssrn.com/abstract=2623260


4

1 Introdução

Este texto faz uma discussão teórica sobre a pesquisa empírica em direito. Antes de
entrarmos no nosso propósito e objetivo, deixamos claro desde o início que este texto é um
trabalho em construção. As ideias aqui apresentadas ainda precisam de amadurecimento e maior
reflexão. No entanto, como o propósito de um working paper é exatamente o de se expor à crítica
para que seja retrabalhado, creio que tais ideias já estão suficientemente claras para serem
submetidas aos leitores.
O nosso propósito aqui é tentar levar adiante alguns questionamentos sobre o status e o
papel da pesquisa empírica que se ocupa de fenômenos relacionados ao direito. Não só este texto
nasce de dúvidas (assim como, ao que me parece, toda pesquisa o faz), como avança para tentar
complexificar tais dúvidas muito mais do que para respondê-las. Por mais frustrante que isso
possa parecer para alguns leitores, evitamos aqui dar respostas definitivas sobre esse status e
papel da pesquisa empírica. Aqueles que buscam respostas diretas muito provavelmente não as
encontrarão aqui. O objetivo é, antes de tudo, mostrar a complexidade do problema do status da
pesquisa empírica que emerge no mundo das faculdades de direito. A fuga das respostas acabadas
e prontas é, antes de tudo, uma atitude de não substancialização: como encarar o lugar da
pesquisa empírica na área do direito é, ao que me parece, sobretudo uma questão de ponto de
vista teórico e, por vezes, de posicionamento político-acadêmico.
Voltaremos a essas questões ao longo do texto. Por ora, a título de introdução, exponho
algumas dúvidas que motivam esta pesquisa. São dúvidas que apareceram no caminho, e que são
elencadas aqui sem qualquer preocupação de coerência. Como conceber a pesquisa empírica em
direito tendo em vista a centralidade da dogmática nessa área? Como conciliar o princípio
científico de busca da verdade (ainda que sempre provisória) em face de um corpo dogmático
cuja essência é a prescrição e não a descrição ou a compreensão (e que, portanto, não se pretende
verificado empiricamente)? O direito serve para produzir conhecimento científico? E qual seria o
“empírico” do direito? A pesquisa empírica que se debruça sobre o direito necessita
obrigatoriamente se apoiar sobre uma outra disciplina? Ou seja, é possível realizar pesquisa
empírica em direito, sem que esta seja uma pesquisa da sociologia, da ciência política, da
economia etc.? Como conceber em termos objetivos a sua realização? Seria possível conceber
uma pesquisa, que se pretende jurídica, que utilize técnicas bem pouco familiares às reflexões
5

tradicionais em direito? Ou seja, técnicas tradicionais das pesquisas em ciências sociais podem
ser incorporadas a pesquisas empíricas que se pretendem jurídicas?
O leitor atento já há de ter notado que essas questões são demasiado amplas para serem
respondidas num curto texto como este. O propósito, como dissemos, não é respondê-las, mas
utilizá-las como um guia para a reflexão que se desenvolve nas próximas páginas. Há uma
reflexão mais densa em alguns momentos, mas em outros apenas expõem-se as dúvidas sem
conseguirmos desenvolver uma argumentação mais sólida (mesmo porque algumas dessas
perguntas dariam uma tese em si). De qualquer forma, trata-se aqui de uma reflexão que não tem
a pretensão de esgotar um tema tão complexo, mas apenas de tentar avançar com algumas
ferramentas para melhor navegar nessa complexidade. E, não nos custa lembrar (por mais óbvio
que isso seja), a reflexão teórica desenvolvida aqui é limitada por até onde este pesquisador
conseguiu avançar. Fica a provocação aos leitores deste trabalho que se interessam pelo tema que
retomem alguns dos pontos aqui trabalhados e levem adiante a reflexão.

2 A emergência da pesquisa empírica no cenário das faculdades de direito

Antes de entrar numa discussão mais teórica sobre a pesquisa empírica em direito,
precisamos ter a clareza de que pesquisas empíricas que se debruçam sobre o direito não são um
fenômeno raro. A sociologia, por exemplo, sempre teve uma forte reflexão sobre o fenômeno
jurídico (a começar por Weber e Durkheim), e a mobilização de quadros teóricos sociológicos
para se entender algum aspecto do direito (como os conceitos de infralegalidades de Foucault ou
de campo jurídico de Bourdieu, por exemplo) não constitui exatamente uma novidade nessa área.
O que nos chama a atenção, no entanto, é como a pesquisa empírica realizada por acadêmicos das
faculdades de direito parece ganhar um certo fôlego nos últimos anos. Parece-nos haver um
crescente interesse, nas faculdades de direito, pelo modo como o direito se manifesta como
fenômeno empírico, um interesse, aliás, que não parece ser exclusivo do Brasil. Vejamos, pois,
de onde vem essa nossa percepção.
6

2.1 A empiria e o direito em outros contextos nacionais

Historicamente, a falta de proximidade das faculdades de direito com pesquisas empíricas


não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Em diferentes contextos nacionais, as faculdades
de direito são fundamentalmente centros de formação de profissionais que devem saber
operacionalizar os diferentes referenciais normativos para a solução de determinados problemas.
Ou seja, o grosso da formação é orientado à transmissão de conteúdo dogmático, de forma que o
egresso dessas faculdades saiba como operacionalizar juridicamente (isto é, decidir de quais
normas se deve lançar mão) um problema que lhe será apresentado na sua prática profissional.
Nas melhores faculdades, aquelas que são centros de referência por terem uma produção
acadêmica mais desenvolvida, o tipo de reflexão sobre o direito vai certamente além dessa
simples formação profissional. Há uma preocupação com uma reflexão teórica sobre
argumentação jurídica, sobre princípios do direito, sobre as fontes do direito etc., que denotam
uma pretensão sofisticada de se compreender um fenômeno multifacetado como o direito. No
entanto, mesmo nessas faculdades de direito de ponta, há tradicionalmente muito pouca
preocupação em compreender as manifestações empíricas do direito, ou mesmo tentar refletir
sobre a dogmática a partir de resultados de pesquisas empíricas. É claro que isso não é algo
completamente estranho a essas faculdades: a sociologia do direito3, em diferentes países, vem há
décadas mostrando a “realidade” das manifestações do direito enquanto fenômeno social. Uma
boa parte do que ela faz como pesquisa é resultado de observações sistemáticas de determinados
fenômenos sociais em que o direito é peça fundamental. A questão aqui, parece-nos, é que há um
interesse mais recente pela pesquisa empírica que vai além do mundo sempre bastante restrito da
sociologia jurídica, sempre marginal nas faculdades de direito, para se tornar agora algo mais
mainstream. E essa transformação parece acontecer, além do Brasil, em outros contextos
nacionais.
O mais emblemático, pelo peso de sua academia, é o estadunidense. A pesquisa empírica
parece ter uma relação bastante particular com as faculdades de direito naquele país. Já nos anos
20 do século XX, havia um movimento de acadêmicos do direito – o realismo jurídico americano

3
Não apenas a sociologia do direito, evidentemente. Pesquisadores da sociologia, da economia, da ciência política e
da psicologia, apenas para citar algumas áreas de forma não exaustiva, se interessam por fenômenos que estão
ligados a algum aspecto do direito. E, com frequência, as suas pesquisas teriam algo a dizer para os pesquisadores
das faculdades de direito.
7

– que fazia a crítica do formalismo do ensino e da pesquisa naquele país. Essa crítica apontava
que o que se ensinava era um formalismo jurídico que não era de fato utilizado na prática do
direito para a tomada de decisão, mas apenas como racionalização posterior para justificar
decisões baseadas em outras razões. Além disso, entendia-se que o que se ensinava nas
faculdades de direito era não só muitas vezes desconectado das práticas do direito4, como
também ignorava variáveis sociais, econômicas e políticas que eram inseparáveis na aplicação do
direito. Para remediar tal situação, propunha-se mais pesquisa empírica para se descobrir as
“verdadeiras” motivações das decisões jurídicas 5. Esse ethos de pesquisa empírica na academia
jurídica norte-americana, nesse momento de emergência do American Legal Realism, parece ter
ficado mais na promessa do que nos resultados6. A grande contribuição desse movimento parece
ter sido no plano teórico, com a defesa de um ensino e de uma prática jurídicos mais atentos à
indeterminação7 do direito e seu caráter aberto a disputas.
Esse pendor para um olhar mais “realista” do direito ganhou muita força com a fundação
da Law & Society Association, já nos anos 60 do século passado. Com o seu surgimento, os
acadêmicos norte-americanos (e de outros países, posteriormente) passaram a ter um fórum anual
e permanente de crítica do direito no qual a pesquisa (com forte ligação com as ciências sociais),
inclusive a empírica, era um elemento fundamental. No entanto, até o final dos anos 1980, havia
uma percepção bastante presente da marginalidade dessa crítica para as faculdades de direito 8.

4
E isso, é de se notar, num contexto onde o ensino é permeado pelos cases, que, por si só, já poderiam ser
considerados como manifestações empíricas do fenômeno jurídico.
5
Nesse sentido, cf. Leiter (2004, p. 50): “American Legal Realism was the most important indigenous jurisprudential
movement in the United States during the 20th century, having a profound impact not only on American legal education
and scholarship, but also on law reform and lawyering. Unlike its Scandinavian cousin, American Legal Realism was not
primarily an extension to law of substantive philosophical doctrines from semantics and epistemology. The Realists were
lawyers (plus a few social scientists), not philosophers, and their motivations were, accordingly, different. As lawyers, they
were reacting against the dominant ‘mechanical jurisprudence’ or ‘formalism’ of their day. ‘Formalism’, in the sense
pertinent here, held that judges decide cases on the basis of distinctively legal rules and reasons, which justify a unique
result in most cases (perhaps every case). The Realists argued, instead, that careful empirical consideration of how courts
really decide cases reveals that they decide not primarily because of law, but based (roughly speaking) on their sense of
what would be ‘fair’ on the facts of the case. [...] Legal rules and reasons figure simply as post-hoc rationalizations for
decisions reached on the basis of non-legal considerations”.
6
Cf., nesse sentido, Schlegel (1995). O autor é bastante enfático ao afirmar a pouca expressividade das poucas
pesquisas empíricas que foram levadas a cabo naquele momento.
7
Nesse sentido, ver Leiter (2004, p. 51): “The Realists famously argued that the law was ‘indeterminate’. By this
they meant two things: first, that the law was rationally indeterminate, in the sense that the available class of legal
reasons did not justify a unique decision (at least in those cases that reached the stage of appellate review); but
second, that the law was also causally or explanatorily indeterminate, in the sense that legal reasons did not suffice to
explain why judges decided as they did”.
8
Nesse sentido, ver Trubek e Esser (2014, p. 213): “Acadêmicos de direito e sociedade foram capazes de conseguir
empregos nos departamentos de ciências sociais, mas em geral se sentiram marginalizados dentro de suas disciplinas
8

Desde os anos 1990 começam a tomar corpo novos movimentos acadêmicos nos quais a
pesquisa empírica sobre o direito é um elemento central. Três me parecem particularmente
relevantes. O primeiro, o movimento Law & Economics, agrupa pesquisadores interessados em
compreender o direito a partir de análises econômicas. Embora haja uma revista Law &
Economics desde o final dos anos 1950, uma associação e um encontro anual só surgem a partir
dos anos 19909. Não podemos ser precisos aqui, mas o fato de a associação se fortalecer no início
dessa década nos parece um indício relevante do crescimento em importância da análise
econômica nas faculdades de direito norte-americanas naquele momento (e, com ela, a análise
empírica de viés econômico do direito).
Um segundo movimento que chama a atenção pela relevância que dá à empiria no estudo
do direito é o New Legal Realism. Fazendo alusão à herança do American Legal Realism que
mencionamos acima, esse movimento pretende fazer uma aproximação entre o direito e as
ciências sociais. Para os new legal realists, a agenda a ser avançada é a da compreensão do law in
action, o direito tal como aplicado/praticado/representado, o que só pode ser feito com um
esforço de estreitamento de laços entre direito e ciências sociais que passa necessariamente tanto
por desenvolvimentos teóricos quanto pela produção de pesquisa empírica qualificada 10. Trata-se,
no entanto, de um movimento bem recente, que acaba de completar dez anos.
Por fim, um terceiro movimento que coloca em evidência a pesquisa empírica em relação
ao direito é o Empirical Legal Studies. Trata-se de um grupo de acadêmicos que conta com uma
associação própria que realiza encontros anuais desde 2006 e publica uma revista desde 2004. O
foco é majoritariamente em estudos quantitativos que tentam invariavelmente entender algum

e departamentos. Embora as faculdades de direito tenham começado a aceitar a necessidade de pesquisa empírica,
esta movimentação tem sido lenta e esporádica. Mesmo as faculdades de direito que aceitam esta ideia geralmente
pensam que é suficiente contratar um cientista social para suprir todas as suas necessidades”.
9
Fundada em 1991, mais especificamente. Cf. o site da associação: <http://www.amlecon.org/>.
10
A própria página de internet da associação é bastante clara nos seus objetivos de aproximação entre direito e
ciências sociais: “The New Legal Realism Project (NLR) promotes rigorous and genuinely interdisciplinary
scholarship on law in action, building from the law-and-society tradition. Law professors and lawyers often turn to
social science research for help in resolving legal problems, but they usually do so without much social science
training or expertise. On the other hand, social scientists who study legal issues can fail to appreciate the distinctive
requirements of law and policy, resulting in failed attempts to apply social science to ‘real world’ problems. NLR
focuses on developing better, more sophisticated translations between law and social science. This is especially
important as law increasingly turns to social science for guidance in dealing with crucial legal and policy issues.
Sloppy or inaccurate interdisciplinary translation on these issues can have serious social effects”
(<www.newlegalrealism.org>).
9

aspecto do direito a partir de dados empíricos, numa aproximação que é na maioria das vezes
com a economia, a ciência política, a sociologia quantitativa e a psicologia 11.
Parece-nos, portanto, uma evidência que a pesquisa empírica em direito nos Estados
Unidos ganhou nas últimas duas décadas um fôlego que jamais tivera. Mas a novidade parece
estar menos no tipo de pesquisa que se faz do que nos locais institucionais que se abriram para a
pesquisa em direito. Nas palavras de Suchman e Mertz (2010):

[...] the new legal empiricism’s novelty lies less in its method and subject matter than in
its institutional locus and intellectual agenda: ELS [Empirical Legal Studies] and NLR
[New Legal Realism], we argue, are best understood as efforts to legitimate empirical
research within the legal academy itself.

Para esses dois autores, a emergência da pesquisa empírica está associada a esses dois
movimentos, o Empirical Legal Studies e o New Legal Realism. E a grande novidade, segundo
eles, não é necessariamente o tipo de pesquisa que se faz, mas sim o fato de se produzir pesquisa
empírica num novo locus, as faculdades de direito, e com uma clara intenção de se afirmar uma
agenda de pesquisa empírica nas faculdades de direito.
Esse aumento do interesse pela pesquisa empírica nas faculdades de direito não é uma
exclusividade do cenário estadunidense. Bradney (1998) já mencionava no final dos anos 1990 uma
transformação radical na pesquisa jurídica nas universidades britânicas, que se abria para as ciências
sociais. Naquele momento, falando sobre o declínio de estudos que seriam puramente doutrinários e
da emergência de trabalhos que se apropriam de técnicas das ciências sociais, ele afirmava:

[...] doctrinal work has always been infused with intellectual presumptions and
assumptions that have dominated the doctrinal argument even though the doctrinal
method has concealed their existence. Doctrinal method has never had the purity its
partisans ascribed to it. The realization of this, and the realization that, within the
academy, it is unacceptable to deal with any material or with any question with anything
less than full attention, is what has characterized the new method of working. This has
resulted in either the abandonment of doctrinal method, on the ground that it is incapable
of producing satisfactory answers to any intellectually compelling questions, or, as
frequently, infusing doctrinal methods with other techniques. (BRADNEY, 1998, p. 73)

Aqui há uma crítica dos estudos que se pretendem puramente doutrinários e uma
constatação, para esse autor, de que um certo “sincretismo” com as ciências sociais sempre foi
necessário e hoje parece sê-lo mais do que nunca. “Infusing doctrinal methods with other

11
Sobre a Society of Empirical Legal Studies e seus produtos, ver <http://www.lawschool.cornell.edu/SELS/>.
10

techniques” parece ser, no contexto do pensamento desse autor, uma abertura maior para a
pesquisa empírica problematizar o conhecimento da doutrina.
Nesse mesmo cenário inglês, um indício importante da relevância que toma a pesquisa
empírica para a pesquisa em direito é o importante e extenso relatório da Nuffield Foundation
(GENN; PARTINGTON; WHEELER, 2006). Essa fundação, preocupada com o conhecimento
que estava sendo produzido sobre o funcionamento do direito, sobre o direito no “mundo real”
(para retomar a expressão do próprio relatório), vai comissionar um grupo de pesquisadores
ingleses para avaliar o estado da arte da pesquisa empírica em direito naquele país. Há nesse
relatório (de uma pesquisa que levou mais de dois anos) algumas informações que são pertinentes
para o nosso argumento. Em primeiro lugar, a própria realização dessa pesquisa e desse relatório
dá conta da relevância do status que a pesquisa empírica em direito parece tomar no começo
deste século naquele contexto nacional. Trata-se de um extenso levantamento do histórico de
pesquisa, no qual se ressalta a importância de investimento na formação de pesquisadores e de
centros de pesquisa capacitados a entender o “real” funcionamento do direito 12. Há ali um
diagnóstico de que, embora tenha havido interessantes pesquisas empíricas nas últimas décadas, e
que o Reino Unido seja o país com maior tradição nesse tipo de pesquisa na Europa, há
atualmente uma carência de tal tipo de estudos. Esse relatório traz sobretudo uma preocupação
com os desafios que se apresentam para o direito e a capacidade de se manter e expandir a
pesquisa empírica na área – “The fundamental point is that while law is an increasingly important
feature of modern life, there seems to a decreasing capacity to keep it under empirical
examination” (GENN; PARTINGTON; WHEELER, 2006, p. 2). Os autores veem uma crescente
demanda por se compreender os novos desafios para o direito neste novo século,

As Parliament, particularly through the work of its select committees, and government
departments draws on and needs the evidence that can be provided by empirical legal
researchers to inform discussion of policy and evaluate legislative change, this adds to
the demand for high quality empirical legal research. As empirical legal research is
important for underpinning many areas of legal and social policy, there will be an
increasing demand from a wider range of others – business, NGOs and so on – that
evidence about how law works be made available. As practitioners and non-empirical

12
Nas palavras dos próprios autores do relatório: “The work of empirical legal researchers since the last third of the
20th Century has provided Government, the judiciary, law reform bodies, regulatory bodies, universities, social, and
economic institutions of all kinds with vital insights into how the law works in the real world. Empirical legal
research is valuable in revealing and explaining the practices and procedures of legal, regulatory, redress and dispute
resolution systems and the impact of legal phenomena on a range of social institutions, on business and on citizens”
(GENN; PARTINGTON; WHEELER, 2006, p. 1).
11

legal scholars come to realise the ways in which empirical legal research enriches the
study and practice of law and the development of doctrine, they too add to the demand
for more research. (GENN; PARTINGTON; WHEELER, 2006, p. 1)

Em suma, o contexto inglês aparenta dar grande importância para a pesquisa empírica em
direito. Talvez aqui a expressão “emergência” pareça menos apropriada – o próprio relatório
Nuffield faz um histórico de pesquisa que remonta à década de 1960 –, mas a simples relevância
que se dá para a questão (com um chamado para maior investimento de pesquisa na área), na
primeira década deste século, já nos parece um dado bastante relevante.
Essa contextualização sobre a pesquisa empírica em direito nos Estados Unidos e na
Inglaterra nos serve aqui para o simples propósito de dizer que a preocupação de que os
acadêmicos do direito produzam pesquisas empíricas é uma preocupação bastante relevante nos
últimos anos nos meios acadêmicos desses países. Vejamos agora esse cenário no Brasil, com um
histórico um pouco mais extenso.

2.2 A emergência da pesquisa empírica em direito no contexto nacional

2.2.1 Um histórico de crise da pesquisa em direito

Para falar sobre um cenário de emergência da pesquisa empírica na área do direito no


Brasil, precisamos primeiro compreender um cenário de críticas que têm sido feitas há anos sobre
a pesquisa em direito (em sentido lato) neste país. Os diagnósticos feitos no Brasil sobre a
qualidade da produção de pesquisa acadêmica no direito não são dos mais otimistas. Nobre
(2004, p. 7), por exemplo, sustenta que o que se ensina nas faculdades de direito no Brasil baseia-
se essencialmente na “transmissão dos resultados da prática jurídica de advogados, juízes,
promotores e procuradores, e não em uma produção acadêmica desenvolvida segundo critérios de
pesquisa científica”. Ressalta que um isolamento histórico do direito em relação às outras
disciplinas das ciências humanas 13 contribuiu para uma confusão nociva (do ponto de vista da
produção de conhecimento científico) entre a prática profissional e a construção teórica 14.

13
Interessante ressaltar aqui que um diagnóstico semelhante é feito em outros países. Ver, por exemplo, o trabalho de
Bradney (1998) sobre o caso inglês.
14
Fragale Filho e Veronese (2004) vão criticar o severo diagnóstico, feito por Nobre (2004), de “atraso relativo” da
pesquisa em direito em relação às ciências sociais. Para esses autores, tal diagnóstico denota uma visão pejorativa de
quem não conhece a especificidade da área do direito. Ou seja, tratar-se-ia de uma crítica feita por um “olhar
12

O mesmo autor nos deixa a par do fato de que esse seu diagnóstico não é uma novidade.
Ele cita um relatório, feito para o CNPq em 1984, bastante crítico à produção de conhecimento
jurídico nas faculdades de direito:

Numa sociedade em que as faculdades de direito não produzem aquilo que transmitem, e
o que se transmite não reflete o conhecimento produzido, sistematizado ou
empiricamente identificado, a pesquisa jurídica científica, se não está inviabilizada, está
comprometida. (BASTOS, 1984 apud NOBRE, 2004).

Ainda na mesma linha, Faria e Campilongo (1991, p. 44) fazem coro com esse
diagnóstico sombrio acerca da produção de conhecimento pelas faculdades de direito:

A pesquisa empírica – e mesmo a produção teórica – nas faculdades de direito


praticamente inexiste. As escolas não assumem, há tempos, a função de produtoras de
conhecimento jurídico; quando muito, limitam-se, e quase sempre mal, a reproduzir o
legalismo oficial. Professores e doutrinadores, em sua grande maioria, não costumam
imaginar nada além da simples e tradicional pesquisa bibliográfica. Essa bibliografia,
por seu turno, é fundamentalmente composta por estudos de exegese normativa ou
repertórios de jurisprudência atados a um dogmatismo estrito e [...] incapaz de ir além da
pura forma das normas jurídicas para examiná-la em termos de suas origens históricas,
de suas implicações sociais e de sua efetividade [...]

O diagnóstico permanece o mesmo quando é feito por dois conhecidos professores da


Universidade Federal de Pernambuco. Oliveira e Adeodato, ainda na década de 1990, vão
também ressaltar o “atraso” da pesquisa em direito comparando-a com outras áreas.

Há também notório descompasso entre a pesquisa jurídica e o estágio em que se


encontram outras ciências sociais, teóricas ou aplicadas, para não mencionar as áreas
tecnológicas e biológicas, nas quais a figura do pesquisador individualizado
praticamente desapareceu. Se se considera que, no Brasil contemporâneo, as ciências
sociais estão muito aquém das demais, uma comparação dentro do quadro geral das
ciências reduz a pesquisa do direito à situação das piores. Os cursos jurídicos mantêm
seu caráter bacharelesco, indiferentes às mudanças no ambiente e às novas concepções,
mostrando-se inadequados não apenas para explicar e transmitir conhecimentos sobre a
realidade jurídica brasileira como também na preparação do corpo discente para a vida
profissional. (OLIVEIRA e ADEODATO, 1996, p. 3)

Eles prosseguem criticando a falta de qualificação dos acadêmicos da área:

externo”. No entanto, esses dois autores vão também tecer uma forte crítica à pesquisa em direito: “o real ‘atraso’
[...] consiste na ausência de uma reflexão epistemológica e metodológica mais consistente na área jurídica. Esse nos
parece ser o grande handicap da área e que necessita ser urgentemente enfrentado” (FRAGALE FILHO;
VERONESE, 2004, p. 67).
13

Um dos grandes problemas da área é a falta de qualificação e experiência dos eventuais


candidatos a pesquisadores, amadores recrutados na advocacia privada, na magistratura,
no ministério público, muitos sem o menor preparo, tornando a pesquisa em direito uma
atividade secundária e diletante, ainda menos importante do que o já desprestigiado
ensino. (OLIVEIRA e ADEODATO, 1996, p. 3)

O diagnóstico, até bem recentemente, era portanto bastante desanimador. De fato, a


produção de conhecimento científico pelos círculos acadêmicos do direito parece ter tido uma
razoável dificuldade para conseguir se estabelecer. Quando olhamos um pouco mais em detalhe o
problema, vemos algumas razões por que a produção acadêmica em direito é forte e
frequentemente criticada.
Em primeiro lugar, podemos citar como problema pontual a questão da tradição dos
manuais 15. A transmissão de conhecimento dogmático pelo formato dos manuais é em grande
medida engessador das possibilidades de se produzir novos conhecimentos. O manual se propõe a
ser uma instância definitiva de conhecimento sobre determinado tema, dificilmente deixando uma
abertura para a crítica e para o questionamento, funcionando como um argumento de autoridade.
A pesquisa em direito mais recorrente no mundo jurídico acaba sendo um inventário do que
dizem os manuais, numa busca pela “melhor doutrina” que se torna, antes de tudo, a eleição do
argumento de autoridade que mais convém ao autor. O que os manuais não revelam, o que eles
não julgam conveniente ou o que lhes contraria acaba sendo “ostracizado” como conhecimento
não pertinente. Além disso, esse conhecimento dos manuais é fortemente ligado às codificações e
aos diplomas normativos: sua bem-aventurança sucumbe no horizonte da implantação de uma
nova legislação.
Em segundo lugar, a pesquisa jurídica parece sofrer de uma contaminação da atividade de
concessão de pareceres. Como apontado por Nobre (2004, p. 10-11), a atividade do parecer, um
modelo de produção intelectual no mundo jurídico, é claramente problemática quando o que se
pretende é a produção de conhecimento científico. O parecer, contrariamente a uma pesquisa
científica, tem um ponto de vista que é construído em função de uma tese predeterminada a ser
defendida. O parecer recolhe os argumentos (doutrinários, jurisprudenciais) que reforçam a tese

15
Para uma crítica dos manuais de direito, ver Nobre (2004), Carvalho (2013), Fragale Filho (2005) e Oliveira
(2004, p. 143-6). Lopes (2006, p. 55) resume bem essa conhecida crítica acerca da onipresença dos manuais nas
faculdades de direito: “La cultura de lós manuales impide justamente eso: que los problemas reales y prácticos se
conviertan em problemas jurídicos. La forma tradicional de enseñar derecho es, de hecho, empobrecedora, pues los
manuales difícilmente presentan las cuestiones jurídicas como problemas propiamente dichos. En general los
manuales, y por imitación muchos trabajos jurídicos, comienzan con definiciones”.
14

previamente determinada. Ora, esse modelo em nada se assemelha a uma pesquisa que tem como
propósito a descoberta, o acaso, a possibilidade de se enganar, de falsificar hipóteses. Se a
pesquisa é a abertura para a incerteza, para a construção de uma tese que não sabemos
exatamente qual será ao final, o parecer é nesse sentido a sua negação: ele é a tese já dada que
não se sujeita a refutações16.
Em terceiro lugar, a pesquisa jurídica pode também ser em grande medida criticada pela
ausência de parâmetros metodológicos. Esse problema, intimamente relacionado com o que
acabamos de descrever, pode ser resumido pela ausência frequente de uma discussão
metodológica nos trabalhos acadêmicos em direito. Se muitas vezes o que se chama de pesquisa
em direito são opiniões informadas apoiadas numa seleção arbitrária das fontes disponíveis,
parece ser uma decorrência lógica desse procedimento a ausência de reflexão metodológica. Em
outras palavras, a própria crítica da produção acadêmica fica prejudicada, pois é impossível
determinar muitas vezes como as pesquisas são feitas. Entre o tema da pesquisa (que muitas
vezes não chega a ser um problema de pesquisa) e as conclusões que o autor nos apresenta, há
uma caixa-preta: os procedimentos, as amostras (teóricas e empíricas), as técnicas de coleta de
dados, a técnica de análise do material etc., tudo isso são preocupações pouco lembradas nos
trabalhos acadêmicos em direito.
Em suma, a pesquisa que se faz em direito – e as objeções levantadas aqui não se referem
exclusivamente à pesquisa empírica – é fortemente criticada pela ausência de rigor acadêmico e
pela reprodução de argumentos de autoridade. Nesse cenário, a pesquisa empírica se viu em face
de uma grande dificuldade de se estabelecer, uma vez que a própria noção de pesquisa
propriamente dita seria (embora este cenário nos pareça em transformação) algo pouco
desenvolvido e refletido no mundo jurídico-acadêmico nacional.

16
Essa crítica não é, todavia, unanimidade. Há autores bastante qualificados que defendem que o problema não seria
a defesa de uma tese preconcebida, mas sim uma defesa ruim e parcial que ignora as críticas ao ponto defendido.
Nesse caso, o problema das faculdades de direito não seria o “parecerismo”, entendido como trabalho de pesquisa de
justificação de certas posições dogmáticas, mas simplesmente aquele tipo de parecerismo raso, que não se sustenta
como pesquisa acadêmica. Nesse sentido, Neves (2011, p. 77) sustenta: “[havia] uma distinção, que eu acho um tanto
boba, entre parecerismo e pesquisa. A questão era em torno do fato de o parecerista ser parcial e, por isso, ter uma
visão deturpada. Já o pesquisador vai apontar para as possibilidades de solução de casos. Mas isso, de certa maneira,
é uma reprodução do modelo kelseniano de moldura: o pesquisador, com a pesquisa empírica, vai buscar maneiras de
delimitar campos de aplicação. Mas o problema normativo está exatamente em como afirmar a orientação normativa.
É necessário ter fundamentos argumentativos”.
15

2.2.2 A recente emergência da pesquisa empírica entre os acadêmicos do direito

Como podemos compreender o papel e o status da pesquisa empírica num cenário tal
como o descrito, em que se criticam fortemente as pesquisas em direito por sua pouca relevância?
Que contribuição as pesquisas empíricas podem trazer (ou vêm trazendo, como me parece mais
apropriado dizer) tanto para uma nova compreensão do direito como para uma mudança do status
da pesquisa jurídica no cenário acadêmico nacional? Ou ainda, como é possível falar num
momento forte, numa emergência, de pesquisas empíricas no cenário nacional (que acreditamos
estar acontecendo) tendo em vista esse histórico pouco nobre da pesquisa em direito no Brasil?
Em primeiro lugar, talvez seja necessário relativizar um pouco aquele cenário descrito
acima. As críticas de Nobre, Campilongo, Faria, Bastos, Adeodato e Oliveira acima
mencionadas, embora fundamentais no momento em que apareceram, tratam de um cenário que
parece ter se modificado. A mais recente delas (Nobre, 2004) já tem uma década; a mais antiga
(Bastos, 1984), três. Não puderam captar algumas transformações mais recentes no cenário
nacional.
Em segundo lugar, se a crítica da pobreza da pesquisa jurídica nas últimas décadas nos
parece grosso modo pertinente, ela desconsidera as especificidades da pesquisa sociojurídica.
Mesmo na área do direito no Brasil, há alguns pesquisadores que sempre estiveram atentos às
possibilidades da pesquisa empírica como elemento de renovação do direito. Como notam Horta,
Almeida e Chilvarquer (2014):

Entre nós, o emprego de técnicas empíricas de pesquisa jurídica é tributário de trabalhos


realizados desde a década de 197017 por pesquisadores como Joaquim Falcão, Cláudio
Souto, Roberto Lyra Filho, Roberto Aguiar, João Batista Herkenhoff, Edmundo Lima
Arruda Jr., Luís Warat, José Eduardo Faria, Celso Campilongo, José Geraldo de Souza
Jr., Luciano Oliveira e Eliane Junqueira. A sociologia jurídica brasileira desde então tem
valorizado investigações empíricas e contribuído para romper com a tradicional pesquisa
teórico-bibliográfica, tão afeita ao Direito.

17
Para Junqueira, que trata especificamente das pesquisas empíricas da sociologia do direito, cujos pesquisadores
eram egressos de faculdades de direito, o marco mais apropriado aqui seria a década de 1980: “Apesar da
investigação sobre processos decisórios formais e informais coordenada por Felippe Augusto de Miranda Rosa na
década de 70, não se pode falar de uma produção sistemática na área direito e sociedade, ou seja, de uma linha de
investigação sobre temas e instituições jurídicas, antes dos anos 80” (JUNQUEIRA, 1996, p. 389). Por outro lado,
Oliveira (2004) ao falar da origem desse tipo de pesquisa, recua ainda mais no tempo chamando a atenção para os
trabalhos de Cláudio Souto na década de 1960. Ficamos aqui apenas com a impressão desses autores, pois não
buscamos esses trabalhos de Souto e Rosa no quadro desta pesquisa.
16

Em outras palavras, a pesquisa empírica pode nunca ter sido central nas faculdades de
direito, mas ela de forma alguma foi inexistente.
Um terceiro ponto a se destacar dá conta do fato de que pesquisas empíricas que têm o
direito como objeto podem ser historicamente pouco familiares para a academia jurídica, mas
elas aparecem com frequência em outras áreas do conhecimento. Quando se critica o que tem
sido feito como pesquisa nas faculdades de direito (incluindo a crítica de ausência de pesquisas
empíricas), essa crítica não leva evidentemente em consideração o que se faz nas ciências sociais.
Pesquisas empíricas não são algo inovador ou recente para, como já dissemos, a sociologia ou a
ciência política. Devemos sempre lembrar que outras áreas do conhecimento tiveram
historicamente preocupação com o direito como objeto de pesquisa. Pelo menos desde os anos
1980 a antropologia e a sociologia no Brasil produzem estudos a partir de observações empíricas
nos quais o direito é peça-chave. Autores bastante profícuos da antropologia como Luis Roberto
Cardozo de Oliveira e Roberto Kant de Lima sempre tiveram o direito como objeto de estudo. O
mesmo se pode dizer para sociólogos como Sérgio Adorno, ou para cientistas políticos como
Rogério Arantes e Maria Tereza Sadek, que sempre tiveram uma preocupação com o direito a
partir de suas disciplinas e uma produção na qual o direito é um elemento bastante relevante.
Aliás, alguns desses autores são eles próprios egressos de faculdades de direito. É legítimo pensar
que, embora a ida de muitos desses acadêmicos para outras áreas tenha algo a ver com a falta de
perspectiva de pesquisa nas faculdades de direito (ainda que essa possa ser uma razão marginal
para alguns deles), sua produção foi e continua sendo lida por muitos pesquisadores que estão nas
faculdades de direito.
Enfim, se pesquisas empíricas que têm algum aspecto do direito como objeto não são algo
novo nem no Brasil nem tampouco em outros países com produção acadêmica mais robusta, o
que há de novo então? Qual o interesse de se debruçar, como fazemos neste texto, sobre a
produção de pesquisa empírica nos últimos anos?
A resposta aqui é dupla: (i) a pesquisa empírica começa a aparecer como nunca antes nas
publicações da área; e (ii) a pesquisa empírica começa a se institucionalizar nas faculdades de
direito18, como um tipo de pesquisa legítima e necessária, para além dos departamentos de
sociologia do direito.

18
Essa opinião sobre o crescimento da pesquisa empírica no direito não é unânime. Veronese, em 2011, fala da baixa
penetração da pesquisa empírica nas faculdades de direito: “O objetivo principal deste trabalho é demonstrar que a
pesquisa empírica não se consolidou na área jurídica por sua baixa difusão na prática dos programas de pós-
17

A proliferação da pesquisa empírica nas publicações da área foi logo notada no nosso
levantamento de dados da pesquisa de pós-doutorado mencionada no início deste texto. A
quantidade de publicações que foram identificadas como pesquisa empírica, nas revistas
classificadas pela área do direito do órgão regulador nacional, foi muito superior ao previsto (o
que nos obrigou até a refazer o recorte empírico)19. Essa constatação está em linha com o que
Jardim, observou, numa pesquisa ainda em andamento, a partir de uma busca automatizada nos
periódicos nacionais:

A pesquisa, parcialmente realizada, levantou o quanto se produziu de pesquisa empírica


em Direito no Brasil. Com o uso de um crawler (software) para automação de coleta e
com o uso de palavras-chave como “pesquisa empírica”, “enfoque empírico”, “direito”,
descobriu-se que houve um crescimento quase exponencial do que foi produzido em
revistas nacionais, a partir de 2003. Mais, realizando um levantamento por área, também
se identificou o mesmo crescimento na série temporal. (JARDIM, 2014)20

Para além dessa explosão da pesquisa empírica em direito, o que é de se notar aqui é o
fato de essa pesquisa começar a se institucionalizar nas faculdades de direito. Algumas razões
parecem ter sido fundamentais para isso. A primeira delas foi o chamado do governo federal para
a produção de pesquisa em direito que pudesse subsidiar seus processos de tomada de decisão.
Destacam-se aqui os editais do Conselho Nacional de Justiça, da Secretaria de Reforma do
Judiciário e, sobretudo, da Secretaria de Assuntos Legislativos21, que forneceram alguns milhões
em verba de pesquisa para grupos que pudessem entregar produtos de pesquisa empírica, na área
do direito, que fossem relevantes para esses órgãos.
A segunda razão me parece ser a própria expansão das pós-graduações em direito. Como
identificado por Fragale Filho e Veronese (2004), houve nos últimos vinte anos uma
multiplicação das pós-graduações em direito, o que levou a um incremento quantitativo

graduação” (VERONESE, 2011, p. 173). E ele ainda fala das razões dessa baixa difusão: “Afinal, o problema da
pesquisa empírica em direito está relacionado com dificuldades de ordem institucional ou de ordem epistemológica?
Ou seja, falta infraestrutura ou a carência é de métodos e de formação científica? A primeira objeção para tal
formulação poderia ser que obviamente o problema ocorre nas duas pontas: é tanto um problema institucional quanto
um problema epistemológico” (VERONESE, 2011, p. 175).
19
Apenas nas revistas nacionais classificadas como A1 e A2 pela área do direito da CAPES, foram 181 artigos
relativos a pesquisas empíricas de 2000 a 2014.
20
Parte do conteúdo dessa apresentação pode ser encontrada no blog do autor: <http://sociaisemetodos.wordpress.com/>.
21
Na descrição de Horta, Almeida e Chilvarquer (2014, p. 167), “[e]ntre 2007 e 2014, foram investidos mais de R$9
milhões no projeto, viabilizando a publicação de 50 volumes da Série Pensando o Direito, num total de 56 relatórios
finais de pesquisa”.
18

considerável nas pesquisas na área. A expansão na pesquisa empírica em direito seria, de certa
forma, reflexo de uma expansão generalizada na pesquisa em direito.
Por fim, uma terceira razão parece ter sido uma maior organização de pesquisadores
empíricos em direito que permitiu tanto uma maior divulgação de suas pesquisas quanto um efeito
de captação de novos pesquisadores. Como efeito dessa organização, os dois maiores exemplos me
parecem ser a formação da Rede de Pesquisa Empírica em Direito22 e seus encontros anuais de
pesquisa (desde 2011), e o lançamento de um periódico especializado em pesquisas empíricas na
área do direito, a Revista de Estudos Empíricos em Direito23 (em janeiro de 2014).
Em resumo, o cenário da pesquisa em direito, e especificamente de pesquisas empíricas,
tanto no Brasil quanto em outros países, parece ter sofrido mudanças importantes desde o início
dos anos 2000. A produção do conhecimento nas faculdades de direito, embora ainda
essencialmente centradas no desenvolvimento da doutrina e na reflexão de cunho mais filosófica,
tem passado por uma abertura para a observação empírica bastante inovadora. No entanto, essa
abertura não se faz sem percalços no plano teórico (e político-acadêmico também). Na próxima
seção tentaremos elaborar um pouco melhor a dificuldade de se pensar a compatibilidade da
produção de conhecimento de base empírica num mundo onde a dogmática é um elemento central.

3 O olhar teórico sobre o direito como fundamental para conceber a pesquisa


empírica

Há uma dificuldade epistemológica difícil de ser trabalhada com relação à pesquisa


empírica que se pretende jurídica. Se concebermos o direito como o mundo da doutrina, o mundo
da elaboração teórica de categorias para a tomada de decisão, qual espaço resta para a pesquisa
empírica em direito? Em outras palavras, para que a pesquisa empírica seja em direito, e não
apenas com ou sobre o direito, é preciso ter uma concepção do direito que compreenda que o
direito é aquilo que pode ser observado para além de construções doutrinárias e normas
positivadas.

22
Ver <www.reedpesquisa.org>.
23
Ver <www.reedrevista.org>.
19

Vamos tentar esclarecer melhor esse ponto. Da forma como concebemos o problema, não
há e não pode haver uma resposta definitiva sobre se existe ou não pesquisa empírica em direito
ou apenas com o direito. O nó da questão parece residir no fato de que uma resposta definitiva
para essa indagação é sempre dependente da escolha de uma perspectiva teórica. Ou seja,
dependendo de como eu concebo teoricamente o direito, posso observar determinado tipo de
conhecimento como lhe sendo ou não pertinente. Um conhecimento produzido por uma pesquisa
empírica pode assim ser um conhecimento do direito se a minha perspectiva teórica concebe que
o olhar empírico, como complementar ao doutrinário, é igualmente relevante para o direito
enquanto forma de conhecimento.
Em sentido contrário, a minha concepção de direito pode entender que um conhecimento
produzido por pesquisa empírica seja irrelevante para se definir e delimitar o que seja direito.
Posso assumir que o direito, enquanto campo de conhecimento, prescinde de observações
sistemáticas da realidade (não por ignorá-las completamente, mas por considerá-las como
pertencentes a outras áreas). É possível, por exemplo, conceber esse conhecimento (de
observações empíricas de manifestações ligadas ao direito) como relevante para a sociedade, mas
como sendo externo ao direito (pertencente à sociologia, à ciência política, à psicologia, à
economia etc.). Numa tal concepção, falaríamos de pesquisas com o direito e não no direito.
Em suma, quando alguém diz que um conhecimento de pesquisa empírica é interno ou
externo ao direito, há por trás dessa observação uma concepção teórica do direito que permitiu
fazer essa distinção. Em outras palavras, dizer que uma pesquisa empírica é do direito (interna)
ou sobre o direito (externa; da sociologia, da economia etc.) pressupõe uma pré-classificação
epistemológica sobre o conhecimento que está sendo produzido. Ressalto que considerar que uma
pesquisa empírica que se debruça sobre o direito seja interna ou externa a ele não implica
qualquer hierarquização. Trata-se simplesmente aqui de uma tentativa de dessubstancializar essa
noção de pesquisa empírica relativa ao direito. Seja qual for a classificação que um autor
qualquer dê para esse tipo de pesquisa, ela permanece relevante para a produção acadêmica das
faculdades de direito.
Vejamos na sequência alguns exemplos de como a perspectiva teórica é fundamental para
se entender a importância maior ou menor que os estudiosos do direito podem dar para a pesquisa
empírica. Exponho a seguir, a título de ilustração, algumas perspectivas teóricas que, quando
adotadas, têm efeitos completamente diversos na nossa maneira de encarar as possibilidades da
20

pesquisa empírica no mundo da pesquisa em direito. Que fique claro, todavia, que os exemplos
abaixo analisados foram escolhidos não aleatoriamente, dentro de uma infinidade de
possibilidades de se conceber o direito, apenas para servir aos nossos propósitos aqui. Parece-nos
imprudente, até mesmo impossível, querer ser exaustivo em tal exercício. Que fique claro
também que, numa ilustração tão breve de perspectivas teóricas diferentes, fazemos uma
gigantesca redução de complexidade. Acreditamos, no entanto, que os exemplos abaixo permitem
ilustrar o nosso propósito: perspectivas teóricas diferentes podem seja abraçar, seja refutar, a
pesquisa empírica no direito.

3.1 A pesquisa empírica apropriada pela dogmática

O primeiro exemplo vem de Franz Neumann, tal como interpretado por Rodriguez (2012).
Esse autor, debruçando-se sobre as ideias de Neumann, tem o intuito específico de “mostrar que
esta espécie de pesquisa [a pesquisa empírica] pode ser incluída no âmbito da dogmática”. Não só
ela pode ser incluída no âmbito da dogmática, como também é observada como tendo uma
função de grande relevância: “a dogmática jurídica tem na pesquisa empírica um elemento
essencial para o controle do poder”. Neumann (sempre segundo Rodriguez) se interessa por uma
distinção entre legislação-administração e jurisdição, concebida por ele como fundamental para
um Estado de Direito. Uma preocupação que aparece com tal distinção é a atividade do julgador
que “age como administrador”: quando ele assim se comporta, “destrói a força das normas gerais,
ao ignorar seu texto em favor da ação de mediar os interesses sociais sem seu intermédio”
(RODRIGUEZ, 2012, p. 77). Para Neumann, essa distinção é criada continuamente no processo
de “funcionamento das instituições”, ou seja:

depende da percepção dos envolvidos no processo e na observação constantemente


efetuada por pesquisas. Nesse sentido, é uma diferença produzida pelos inúmeros atos de
aplicação e pela observação científica dos mesmos pela ciência do direito. Esta encontra
aqui uma dimensão empírica destinada a reconstruir os atos de aplicação realizados
pelos órgãos de poder, ação que, na verdade, é um dos momentos da descrição do direito
positivo.

Vemos aqui então um primeiro “uso” da pesquisa empírica para o que o autor chama de
ciência do direito. A distinção entre atos do administrador e julgador está em permanente disputa,
e ela só pode ser compreendida e estabelecida a partir de um olhar empírico da “ciência do
21

direito” sobre esses atos. Ou seja, a pesquisa empírica aqui não é algo externo, um conhecimento
de outras áreas sobre o direito. Ela é parte fundamental da atividade de conhecimento do direito
pelos juristas.
Numa outra passagem de Rodriguez, a importância da empiria para a dogmática na
concepção de Neumann fica ainda mais evidente:

[...] Neumann defende a necessidade de estudar “sociologicamente” o funcionamento


dos atos jurisdicionais e administrativos, ou seja, pesquisar empiricamente essas formas
de agir do poder soberano. Ora, se considerarmos que a racionalidade da jurisdição é
dogmática, podemos concluir que Neumann afirma a necessidade de analisar
sociologicamente a dogmática jurídica. [...] Seria esta uma atividade especificamente
jurídica ou algo que cabe à sociologia do direito e à ciência política? No registro de
Neumann, sem dúvida nenhuma, trata-se de um objeto de estudo da ciência do direito
que abarca o estudo das normas e do comportamento dos responsáveis por aplicá-las.
(RODRIGUEZ, 2012, p. 78)

Observamos também neste trecho essa concepção segundo a qual a ciência do direito
compreende uma observação de cunho mais sociológico sobre a dogmática. Em outras palavras,
não estaríamos saindo do terreno do direito (e indo para a sociologia) ao observar empiricamente
como as decisões se dão, mas sim trabalhando dentro da ciência do direito (para guardar a
expressão do autor) que precisava dessa observação como uma forma de reflexão sobre as suas
categorias.
Neumann ainda diz:

The science of law is just as much a science of norms as of reality. As a science of


norms it has as its subject-matter the objective meaning of legal norms. As a science of
reality it investigates the relations between legal norms, the social substructure
(Substrat), the social behavior of the legal subjects, and of legal administrators.
(NEUMANN apud RODRIGUEZ, 2012, p. 80)

Uma tal concepção, para alguns, poderia ser vista claramente como demasiado ampla,
invadindo o campo de outras ciências sociais. Para Neumann, no entanto, a pesquisa empírica que
investiga a relação entre as normas, seus formuladores/aplicadores e o restante da sociedade não é
(ou não deveria ser) de forma alguma um problema estranho à atividade de produção de
conhecimento dos juristas. Dessa forma, a pesquisa empírica aqui não é apenas sobre o direito:
ela está dentro do direito.
22

3.2 A pesquisa empírica como um procedimento do sistema científico e não do sistema


jurídico

Outra forma de se conceber o que é direito pode ser encontrada na obra de Niklas
Luhmann. Para esse autor, o debate sobre uma “natureza” do direito, sobre o que é o direito, é de
pouca utilidade. Na sua concepção, o direito só pode ser compreendido como tendo uma
“essência” tautológica: é direito aquilo que o direito (sistema jurídico) define como sendo direito.
Vejamos como o autor trata tal questão para depois tratarmos da implicação de tal teorização para
a pesquisa empírica sobre o direito.

Perhaps one can agree, at least, on the point that there is nothing to be gained from
arguing over a “nature” or “essence” of law, and that the worthwhile question that
should be asked is: what are the boundaries of law? This question points to the well-
known issue as to whether these boundaries are analytical or concrete, that is, whether
they are defined by the observer or by the object itself. If the answer is “analytical” (and
there are some who feel, wrongly, that they are bound by the theory of science to answer
in this way), one allows each observer to decide his own objectivity and so ends up
where one started from, that is, stating that interdisciplinary communication is
impossible. It is for these reasons that our answer is “the boundaries are defined by the
object”. This means, in fact, that the law itself defines what the boundaries of law are,
and what belongs to law and what does not. (LUHMANN, 2004, p. 58)

Em outras palavras, numa tal concepção a única possibilidade de concebermos o direito


como tendo uma “essência”, algo que permite diferenciá-lo, por exemplo, da política ou da
ciência, é concebermos que essa essência não é aquela de traços imutáveis, de características
intrínsecas, mas é aquela instável e em permanente mutação que é definida pelo próprio direito
(sistema jurídico) nas suas operações. Assim, é o direito que vai dizer se determinado fato é da
sua alçada ou não (isto é, se ele é jurídico), ou se determinada atividade ‒ por exemplo, atos
legislativos ‒ está sujeita ao seu controle, ou ainda se determinada relação entre dois indivíduos é
um contrato sujeito à sua tutela. Essa é a perpétua atividade do sistema jurídico de dizer o que é
direito e, assim, delimitar suas (sempre mutáveis) fronteiras.
Para tanto, o direito utiliza sua distinção diretora ao observar o mundo. Ao olhar para o
mundo, ele coloca em prática um esquema de observação direito/não direito. Ou seja, ao olhar para o
mundo, a sua preocupação é decidir entre aquilo que é legal, lícito, permitido etc., e aquilo que é
ilegal, ilícito, proibido etc. Ao assim proceder, o direito se diferencia enquanto sistema social. Em
outras palavras, ele cria a sua identidade de sistema jurídico. E é aqui que chegamos aos nossos
23

propósitos: numa concepção luhmanniana, essa operação para definir a sua identidade (a partir de um
código binário direito/não direito) é diferente da operação realizada pelo sistema científico.
Assim, o que permite dizer que estamos no sistema jurídico e não no sistema científico é
esse procedimento de observação de uma situação a partir dessa distinção direito/não direito. Ao
fazermos uma pesquisa empírica que tem por objeto o direito, no fundo o que estamos fazendo é
aplicar um outro código nessa observação: o sistema científico, nessa concepção sistêmica
(luhmanniana) da sociedade, funciona a partir de uma distinção verdadeiro/falso. Ao olharmos
um problema de pesquisa que envolva o direito, temos a pretensão de chegarmos a uma
“verdade” (por mais que as verdades em ciência sejam sempre passíveis de falsificação
posterior). Após uma pesquisa podemos dizer, por exemplo, coisas do tipo: “É verdade que os
juízes decidem sem conhecer o processo ou até mesmo delegam as suas decisões para
funcionários da vara”; “É verdade que o acesso à prestação de serviços de saúde, especificamente
fornecimento de medicamentos e exames, é sempre contemplado pela via judicial”. Essas
“verdades” são resultados de pesquisa empírica do sistema científico (fruto de observações
sistemáticas de determinada realidade). Elas estão num outro registro que não o do direito. Para
este é menos questão se as demandas judiciais para acesso a serviços de saúde são sempre
contempladas, e mais uma questão se elas deveriam ser (em abstrato, como previsão normativa,
ou em concreto, num julgamento de determinado caso).
Dessa forma, numa tal perspectiva sistêmica, fica difícil defender a ideia de uma pesquisa
empírica em direito. Estamos falando de dois registros diferentes, de duas formas de observar o
mundo incompatíveis: uma, a do direito, que observa o mundo a partir de uma distinção direito/não
direito; o outro, da ciência, a partir de uma distinção verdadeiro/falso. As pesquisas empíricas que
têm o direito por objeto são pesquisas do sistema científico (sobretudo das ciências sociais), portanto
seriam no máximo pesquisas sobre o direito. O direito é sempre o objeto de uma observação teórica e
metodologicamente fundada em alguma disciplina que se inscreve no sistema científico.

3.3 Um modelo de conhecimento jurídico em que a empiria é central

Em outro modelo, o do realismo escandinavo de Alf Ross, a empiria aparece como um


elemento central da validade do direito. Nessa forma de se compreender e explicar o direito,
pretende-se que os enunciados da dita ciência jurídica possam ser construídos não a partir de
24

modelos simplesmente teórico-dedutivos, mas sim a partir de uma permanente validação em


confrontação com a empiria. Nas palavras de Nino (1979, p. 39), Ross “se propone construir
un modelo de ciencia jurídica que sea no sólo puramente descriptiva, sino también empírica”.
Em outras palavras, “un modelo de ciencia cuyas proposiciones puedan ser verificables sobre
la base de la experiencia, tal como ocurre con las ciencias naturales” (NINO, 1979, p. 39).
Ross, no prefácio que escreveu para o seu livro On Law and Justice, deixa bem claro
como a ideia de observação do mundo e verificação empírica de nossas construções teóricas é
a base para se compreender o direito e sua validade. No trecho a seguir, há um importante
deslocamento do dever ser como elemento central da cognição jurídica, para uma formulação
que vê na aplicação do direito (pelos magistrados) um elemento central da validade jurídica .

The leading idea of this work is to carry, in the field of law, the empirical principles to
their ultimate conclusions. From this idea springs the methodological demand that the
study of law must follow the traditional patterns of observation and verification which
animate all modern empirical science; and the analytical demand that the fundamental
legal notions must be interpreted as conceptions of social reality, the behaviour of man
in society, and as nothing else. For this reason, I reject the idea of a specific a priori
“validity” which raises the law above the world of facts, and reinterpret validity in terms
of social facts; I reject the idea of an a priori principle of justice as a guide for
legislation (legal politics), and discuss the problems of legal politics in a relativistic
spirit, that is, in relation to hypothetical values accepted by influential groups in the
society; and, finally, I reject the idea that the legal cognition constitutes a specific
normative cognition, expressed in ought-propositions, and interpret legal thinking
formally in terms of the same logic as that on which other empirical sciences are based
(is-propositions). (ROSS, 2004 [1959], p. x)

O direito aqui é visto como um fenômeno social que não deve buscar sua validade num a
priori metafísico (a “justiça”), mas sim ser interpretado à luz de “concepções da realidade
social”, do que os tribunais de fato têm aplicado 24. Difícil precisar exatamente o sentido dado
pelo autor quando ele recoloca o problema da validade do direito nesse sentido mais “mundano”,
no entanto parece-nos patente aqui a ideia dos valores contemplados pelo direito como relativos,
como passíveis de permanente verificação empírica. Serverin (2002), na sua interpretação do

24
Nesse sentido, Ross ainda diz num outro momento: “The interpretation of the doctrinal study of law presented in
this book rests upon the postulate that the principle of verification must apply also to this field of cognition – that the
doctrinal study of law must be recognised as an empirical social science. This means that the propositions about valid
law must be recognised as referring not to an unobservable validity or ‘binding force’ derived from a priori
principles or postulates but the social facts. It must be made clear in what procedure the doctrine propositions can be
verified; or what their verifiable implications are. [...] Our interpretation, based on the preceding analysis, is that the
real content of doctrinal propositions refers to the actions of the courts under certain conditions” (ROSS, 2004
[1959], p. 40).
25

texto de Alf Ross, vai dizer que não se trata aqui de negar nem que o direito seja composto por
normas, nem que essas normas sejam prescritivas. Trata-se, mais precisamente, de negar que
essas prescrições tenham validade em si, aprioristicamente. Se entendermos que a validade se
constitui pela criação real de obrigações, diz Serverin (2002, p. 63), o modelo de Ross nos obriga
a considerar que essa validade só pode ser dada pelo aplicador da norma (o magistrado). E ela só
pode ser aferida por uma observação empírica.
Ross sustenta ainda que a ciência do direito se ocupa tanto do conteúdo abstrato das
normas quanto do direito em ação. Para ele, “el derecho en acción y las normas jurídicas no son
dos fenómenos independientes sino aspectos distintos de una misma realidad” (NINO, 1979, p.
44). Ora, numa tal perspectiva, o direito só é possível de ser compreendido enquanto objeto de
estudo quando confrontado à sua aplicação. A dogmática não pode ser tida como um conjunto de
enunciados coerentes se não houver uma confrontação com o “direito em ação”. Não há,
portanto, possibilidade de conhecimento compreensivo do direito que seja apartado do mundo
dos fatos. Nas palavras de Nino (1979, p. 44-5), o que o critério empírico de Ross encerra como
significado “es que, si se excluye a los enunciados analíticos de las matemáticas y la lógica, un
enunciado no tiene significado si no es posible determinar su verdad o falsedad sobre la base de
observaciones empíricas”.
Ante o exposto, parece-nos que a concepção de Alf Ross sobre o estudo do direito é de
uma radical indistinção, quanto à sua relevância, entre o conhecimento produzido no plano
teórico-dogmático e o conhecimento fruto da aplicação do direito. O estudo do direito não pode
prescindir dos “testes de realidade”, sejam eles a aplicação do direito pelos tribunais, sejam os
efeitos da aplicação das normas na sociedade. Trata-se, ao nosso ver, de uma concepção da
“ciência do direito” que traz a sociologia do direito para o centro da reflexão teórico-jurídica25.
Mais do que nunca a pesquisa empírica com temas jurídicos é pesquisa em direito.

25
Serverin (2002, p. 60) desenvolve um pouco mais essa ideia: “Aquilo de que a ciência empírica do direito deve
prestar contas, submetendo-se aos testes necessários para estabelecer a verdade de suas proposições, é sobre a
presença efetiva de uma regra de comportamento numa dada sociedade. Assim resumido, o projeto empírico parece
comportar uma exigência prática, que implicaria colocar de pé procedimentos de observação sobre ‘o que é do
direito na sociedade’, fazendo da ciência empírica do direito uma variante da sociologia do direito” (tradução nossa).
26

3.4 Um modelo de ciência jurídica que prescinde da pesquisa empírica

Um dos autores mais conhecidos da teoria do direito, Hans Kelsen, parece conceber, no
seu clássico Teoria pura do direito, uma ciência jurídica na qual há muito pouco espaço para se
pensar a produção de conhecimento baseada em observações sistemáticas da realidade empírica.
Na sua teorização sobre o objeto da ciência do direito, os fatos empíricos são irrelevantes para se
pensar o direito quando não são observados pelas lentes das normas jurídicas. A observação
sistemática de fatos sociais em que o direito está implicado, com o fim de transformar o direito,
estaria longe de ser uma atividade pertinente para a “ciência do direito” na concepção de Kelsen.
Fatos sociais têm sua relevância aqui, mas apenas como ponto de partida para a abstração
necessária de concepção das normas jurídicas.
Vejamos como o autor precisa o papel daquilo que entende como ciência jurídica e a sua
relação com “a conduta humana”:

Na afirmação evidente de que o objeto da ciência jurídica é o Direito, está contida a


afirmação ‒ menos evidente ‒ de que são as normas jurídicas o objeto da ciência
jurídica, e a conduta humana só o é na medida em que é determinada nas normas
jurídicas como pressuposto ou consequência, ou ‒ por outras palavras ‒ na medida em
que constitui conteúdo de normas jurídicas. Pelo que respeita à questão de saber se as
relações inter-humanas são objeto da ciência jurídica, importa dizer que elas também só
são objeto de um conhecimento jurídico enquanto relações jurídicas, isto é, como
relações que são constituídas através de normas jurídicas. A ciência jurídica procura
apreender o seu objeto “juridicamente”, isto é, do ponto de vista do Direito. Apreender
algo juridicamente não pode, porém, significar senão apreender algo como Direito, o que
quer dizer: como norma jurídica ou conteúdo de uma norma jurídica, como determinado
através de uma norma jurídica. (KELSEN, 1999, p. 50)

Pelo extrato, parece-nos acertado afirmar que a empiria nessa concepção de “ciência do
direito” é apenas aquele ponto de referência para o conteúdo das normas jurídicas. Não se trata de
dizer que os fatos sociais (ou a conduta humana, para retomar a expressão do autor) são
absolutamente prescindíveis ao direito (como parece evidente), mas sim que o estudo do direito
só se interessa por eles como representação construída por uma norma jurídica. Não há como,
portanto, pensar que as consequências das normas na sociedade são elementos de permanente
reconstrução do direito, como parece ver Alf Ross.
Kelsen prossegue no seu argumento:
27

Na medida em que a ciência jurídica apenas apreende a conduta humana enquanto esta
constitui conteúdo de normas jurídicas, isto é, enquanto é determinada por normas
jurídicas, representa uma interpretação normativa destes fatos de conduta. Descreve as
normas jurídicas produzidas através de atos de conduta humana e que hão de ser
aplicadas e observadas também por atos de conduta e, consequentemente, descreve as
relações constituídas, através dessas normas jurídicas, entre os fatos por elas
determinados. (KELSEN, 1999, p. 51)

Ou ainda:

A produção das normas jurídicas gerais, isto é, o processo legislativo, é regulado pela
Constituição, e as leis formais ou processuais, por seu turno, tomam à sua conta regular a
aplicação das leis materiais pelos tribunais e autoridades administrativas. Por isso, os
atos de produção e de aplicação [...] do Direito, que representam o processo jurídico,
somente interessam ao conhecimento jurídico enquanto formam o conteúdo de normas
jurídicas, enquanto são determinados por normas jurídicas. (KELSEN, 1999, p. 50-51)

Este último trecho deixa ainda mais evidente que aquilo que boa parte da sociologia do
direito considera um amplo campo para a pesquisa empírica – a produção e a aplicação do direito
–, na concepção de Kelsen só podem interessar enquanto componentes do ordenamento jurídico,
isto é, enquanto normas (plano do dever ser) e não como práticas sociais (plano do ser). “Atos de
produção e de aplicação” não são considerados como fonte de conhecimento empírico para o
direito, mas mais como elementos do arcabouço normativo que só tem interesse para uma
“ciência do direito” por exercerem um papel no ordenamento jurídico.
Dessa forma, parece-nos seguro dizer que uma tal concepção do direito exclui a produção
de conhecimentos produzidos a partir de observações sistemáticas de determinada realidade
social. Nessa perspectiva kelseniana, tal conhecimento não é pertinente ao direito no sentido de
estar fora do campo daquilo que o autor entende como ciência do direito.

3.5 Um modelo de ciência jurídica pluralista

Falar de pluralismo jurídico implica uma equivocidade maior do que tratar de concepções
de determinados autores de produção de conhecimento em direito, como fizemos nas seções
anteriores. Se até aqui falamos de como autores específicos e bastante conhecidos no direito
entendem o que deve ser a produção de conhecimento jurídico, ou o que deve ser a “ciência do
direito”, quando tratamos de “pluralismo jurídico” entramos em um conceito que tem múltiplas
28

interpretações26. Oriundo dos estudos de antropologia jurídica dos anos 1970 (TAMANAHA,
2008), o conceito era evocado para explicar a existência de ordens normativas (costumeiras e
vinculantes) extraestatais, reconhecidas ou não pelo Estado.
Uma grande dificuldade teórica do conceito de pluralismo jurídico é a dificuldade de se
definir o que é direito (TAMANAHA, 2008; TEUBNER, 1991)27. O propósito de se considerar
ordens normativas diversas como “jurídicas” acaba por ampliar de forma problemática o conceito
de direito. Afinal, há um grau de normatividade obrigatória numa infinidade de relações sociais e,
em algumas delas (normas costumeiras, familiares, religiosas, associativas, de etiqueta etc.),
parece artificial e inapropriado atribuir o rótulo de direito. Como bem coloca Tamanaha (2008, p.
392), o grande problema das diversas definições de pluralismo jurídico é que “they are unable to
distinguish ‘law’ from other forms of normative order”.
Todavia, se esse problema teórico difícil acompanha em permanência o conceito de
pluralismo jurídico, isso não impede que esse mesmo conceito seja muito útil para explicar
determinadas realidades sociais (e por isso, também, seja tão popular). Ao adotarmos um desses
conceitos de pluralismo jurídico para se fazer pesquisa, temos uma implicação bastante
importante aqui para os nossos propósitos. Ao colocarmos as lentes da noção de pluralismo
jurídico (por mais imprecisa que ela possa ser) para olhar a realidade social, enxergando assim o
direito em diversas manifestações que não exclusivamente originárias do Estado, as
possibilidades de pesquisa empírica em direito se multiplicam.
Ora, se por um lado o conceito de pluralismo jurídico permanece numa grande dificuldade
de distinguir o direito de outras ordens normativa na sociedade, por outro essa imprecisão teórica
possibilita uma enorme abertura para a pesquisa empírica no direito. Ao embaralharmos as
fronteiras da ordem normativa estatal (direito do Estado) e de outras ordens normativas na
sociedade, permite-se abrir um vasto campo de pesquisa empírica no direito (aproveitando-se da
imprecisão da definição) para se identificar quais são essas ordens normativas, como elas
funcionam e como elas se relacionam (ou não) com o direito estatal. Ao concebermos outras
ordens normativas como jurídicas, temos que abrir espaço para uma concepção de produção de

26
Como se trata aqui apenas de uma rápida passada pelo conceito para mostrar as possibilidades teóricas de se
conceber a pesquisa (sobretudo empírica) em direito, não nos preocupamos muito em aprofundar na teorização.
Nossa fonte aqui foi sobretudo o bom artigo de Tamanaha (2008), que faz uma exposição sobre o histórico do
conceito e seus múltiplos usos entre os acadêmicos.
27
Para algumas definições de pluralismo jurídico, ver o artigo clássico de Griffiths (1986).
29

conhecimento em direito que é impregnada da necessidade de observações empíricas para se


apreender as diversas manifestações jurídicas que perpassam a sociedade.

4 Notas finais: por um exercício de dessubstancialização do conceito de pesquisa em


direito

A apresentação dessas cinco possibilidades teóricas de conceber o estudo do direito tem


aqui um propósito bastante importante para nós. Mais do que dizer que a pertinência da pesquisa
empírica para o direito é dependente da perspectiva teórica que assumimos, trata-se aqui de
rejeitar proposições que, ao substancializar o conceito de “ciência do direito”, rejeitam qualquer
possibilidade de concebê-la de outra forma. Em outras palavras, negar ou restringir as
possibilidades de pesquisa empírica em direito é absolutamente compreensível como posição de
defesa de determinado ponto de vista teórico (se, por exemplo, seguimos um modelo kelseniano
de compreensão do direito), mas no plano epistemológico é preciso ter clareza que aquela
substancialização do conceito que exclui a pesquisa empírica é apenas uma forma de dar
conteúdo a essa “ciência do direito”. Trata-se de uma seleção de ponto de vista teórico que não
pode, e aqui há uma questão valorativa de nossa parte, prevenir que outras formas de conceber a
pesquisa em direito ocupem o espaço nas faculdades de direito.
Ao fazermos essa advertência, temos em mente o histórico da epistemologia da pesquisa
em ciências sociais. Numa área com uma extensa tradição de pesquisa, é possível observar ao
longo das décadas como várias correntes teóricas tentaram substancializar o que seriam as
“verdadeiras” pesquisas em diferentes áreas das ciências sociais. Pires (2014) descreve, de forma
bastante didática, aquilo que ele observa como um fenômeno de substancialização problemática
dos diferentes campos das ciências sociais:

Podemos tirar uma primeira lição do que foi dito para o nosso debate sobre a pesquisa
empírica em direito. Vou nomear esse erro da maneira divertida para que possamos rir um
pouco de nós mesmos: o erro da “visão do Tratado de Tordesilhas”. As ciências sociais
passaram também por essa fase, da qual ainda não se libertaram completamente, de
definição prescritiva do seu campo ou dos seus objetos. Tentaram dividir o mundo das
atividades de pesquisa em “o que é meu” e “o que é seu”, estabelecendo a partir daí
diversas “capitanias hereditárias”: a do antropólogo, a do sociólogo, a do criminólogo, etc.
Hereditário significa aqui que ninguém poderia mudar as fronteiras da sua capitânia sem
criar um problema de ordem “internacional”, isto é, sem interferir indevidamente com os
30

outros. Cada capitania deveria se reproduzir sempre do mesmo jeito, com as mesmas
propriedades e as mesmas características internas, passando isso de pai/mãe para
filho/filha. Bem, foi essa camisa de força que começou a explodir no último quarto do
século 20. As disciplinas, felizmente, não se desenvolvem seguindo prescrições desse tipo:
elas vão investir no que acreditam ser importante para as contribuições que querem fazer
que são frequentemente mais variadas do que parecem ser à primeira vista, contribuições
que se modificam também internamente. Está na hora de [nós no Direito] nos despedirmos
dessa visão de Tratado de Tordesilhas e de capitanias hereditárias. Mas isso não é tarefa
fácil para ninguém: a tendência para reproduzi-la na nossa cultura acadêmica e filosófica
ainda é muito forte. Ainda não fizemos, massivamente, uma espécie de revolução
copernicana nesse terreno. Ainda substancializamos muito o conteúdo das nossas
disciplinas, afirmando a existência de traços naturais ou ontológicos.

Essa defesa da não substancialização do estudo do direito me parece aqui fundamental. Se


o espaço da academia do direito se torna prescritivo, estabelecendo limites estreitos sobre o que é
pesquisa em direito (dizendo por vezes que a pesquisa empírica não lhe pertence), reproduz-se
então uma lógica engessadora da criatividade dos pesquisadores.
O que é pesquisa em direito só pode ser definido, ao que nos parece, por uma lógica
tautológica: aquilo que os pesquisadores da área definem como tal, aquilo a que eles atribuem
valor como conhecimento relevante para se entender o direito na sociedade e para se ensinar num
contexto acadêmico. Num tal cenário, são necessárias substancializações sobre o que seria a
“ciência do direito” e qual seria a sua função (até para se definir linhas de pesquisa), mas tais
substancializações não podem ter a pretensão de ser a única forma de conceber o conhecimento
na área. Em outras palavras, se as substancializações, isto é, as atribuições de uma ontologia para
a produção de conhecimento em direito, são necessárias (circunstancialmente) para os
pesquisadores para se dar horizontes na produção de conhecimento, elas comportam o risco
(quando se pretende que elas são as únicas formas possíveis) de querer se impor ao campo e
limitar a possibilidade de outras concepções emergirem.
Ao que nos parece, cada vez mais a complexidade do mundo contemporâneo sabota essas
fronteiras estanques, que pretendem que o objeto de uma disciplina possa ser tão claramente
identificado. Como bem argumenta Garcia (2011, p. 417),

As questões/problemas de sociedades contemporâneas (direitos religiosos, direitos das


minorias, direitos das mulheres, direitos dos indígenas, direito ao suicídio assistido,
direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, direitos de reprodução, direitos dos
imigrantes) são cada vez mais regulados por figuras jurídicas caracterizadas por sua
textura normativa aberta (valores fundamentais, direitos humanos etc.) e as ciências
sociais serão mais do que nunca consideradas recursos cognitivos importantes de
determinação e especificação jurídica, essenciais para aqueles que pensam e dizem o
direito. Com efeito, uma vez que essas questões/problemas exigem dos atores judiciários
criatividade, imaginação jurídica e abertura cognitiva e normativa em relação às
31

diferentes possibilidades de regulação, em face da concepção de diferentes “possíveis”,


as ciências sociais serão, nesse contexto, um elemento importante de “determinação” dos
possíveis ainda não atualizados.28

Ou seja, certos problemas complexos da vida contemporânea parecem favorecer a


abertura do direito para as ciências sociais. Parece haver nos últimos anos um maior interesse
pelo que o direito pode aprender com a produção das ciências sociais, incluindo aí uma abertura
para as pesquisas empíricas. Em outras palavras, os juristas e os operadores do direito parecem
ter uma grande disposição em ver as possibilidades não atualizadas pela dogmática, as
possibilidades de enriquecer o direito a partir do conhecimento empírico 29.
Nesse sentido, os esforços de substancialização da pesquisa em direito parecem-nos um
esforço contraproducente. Trata-se de uma postura prescritiva que subestima tanto as possibilidades
criativas dos pesquisadores do direito quanto a dificuldade apresentada pela complexidade da
realidade social. Não se trata aqui, mais uma vez, de reprovar as substancializações que permitam
certos tipos de pesquisa, mas simplesmente mostrar que as substancializações sobre o que é a
pesquisa em direito podem ter um efeito engessador das possibilidades criativas no campo do direito.
Com isso, pensando a pesquisa em direito de forma não substancializada, como definida a
partir do que os acadêmicos do direito entendem que seja pesquisa (e, evidentemente, pelo que
produzem), parece que abrimos caminho para se contemplar a pesquisa empírica na área. E, já
entrando numa concepção valorativa, a pesquisa empírica em direito nos parece trazer um elemento
de reflexão bastante relevante para os juristas. Seguimos, nesse sentido, o entendimento de Pires:

28
Nossa tradução. No original, lê-se: “Les enjeux de société contemporains (droits religieux, droits des minorités,
droits des femmes, droits des peuples autochtones, droit au suicide assisté, droit au mariage entre couples de même
sexe, droits de reproduction, droits des sans-papiers, etc.) sont de plus en plus régulés par des figures juridiques
caractérisées par leur texture normative ouverte (valeurs fondamentales, droits de la personne, etc.) et les sciences
sociales seront davantage envisagées comme des ressources cognitives importantes de détermination et de
spécification juridique, essentielles donc pour ceux qui pensent et disent le droit. En effet, puisque ces enjeux exigent
des acteurs judiciaires de la créativité, de l’imagination juridique et de l’ouverture cognitive et normative à l’égard
des différentes possibilités de régulation, devant la conception des différents ‘possibles’, les sciences sociales seront,
dans ce contexte, des éléments importants de ‘détermination’ des possibles encore non actualisés”. Utilizamos aqui a
versão original desse texto, que também foi publicado em português no v. 1, n. 1, da Revista de Estudos Empíricos
em Direito. Disponível em: <www.reedrevista.org>.
29
Como bem notou Veronese ao comentar o Plano Nacional de Pós-Graduação (2005-2010) da Capes na área do
Direito, as próprias áreas prioritárias de pesquisa para o país (segundo interpretação da Capes) requerem um diálogo
com outras disciplinas que exigem uma compreensão de dados empíricos. Nas palavras do autor, “[e]ssas subáreas
prioritárias de pesquisa requerem inexoravelmente o relacionamento com outros campos científicos, alguns deles,
fortemente orientados à necessidade de compreensão dos dados empíricos, como proteção da propriedade intelectual,
desenvolvimento e regulação (economia). No tocante à efetividade do acesso à justiça, há a necessidade de
interlocução com a economia e com a sociologia” (VERONESE, 2011, p. 110).
32

Dentro do direito, a pesquisa empírica pode vir a desempenhar, sob certas condições, um
papel epistemologicamente equivalente ao que ela desempenha dentro da ciência: o
papel de produzir uma “autoestranheza” dentro da sua própria cultura sistêmica. Ela
quer, por um lado, adquirir informações sistemáticas e controladas susceptíveis de ter
certo interesse para o direito e, por outro lado, colocar certos conhecimentos produzidos
pelo direito à prova da realidade, obrigá-los a prestar contas à realidade na esperança que
isso possa melhorar as intervenções do direito em todos os planos, inclusive no plano da
reforma do direito, onde o direito pode precisar da colaboração do sistema político.
(PIRES, 2014)

Não se pode ter a ingenuidade de pensar que a pesquisa empírica pode subverter quadros
teóricos bastante sólidos no direito ou em qualquer outra área (como é sabido de longa data pelos
cientistas sociais, nenhum grande quadro teórico é passível de desconstrução por descobertas
empíricas localizadas30), mas a pesquisa empírica pode certamente levar, acreditamos, a uma
sofisticação da argumentação jurídica ao aproximá-la da realidade empírica.

Referências bibliográficas

ADEODATO, João Maurício Leitão. Bases para uma metodologia da pesquisa em direito.
Anuário dos cursos de pós-graduação em direito, UFPE, n. 8, p. 201-24, 1997.

BANAKAR, Reza; TRAVERS, Max. Theory and Method in Socio-Legal Research. Oxford:
Hart, 2005.

BATESON, Gregory. Steps to an Ecology of Mind. Northvale: Jason Aronson, 1972.

BRADNEY, Anthony. Law as a Parasitic Discipline. Journal of Law and Society, v. 25, n. 1, p.
71-84, 1998.

CARVALHO, Salo de. Como não se faz um trabalho de conclusão. São Paulo: Saraiva, 2013.

EPSTEIN, L.; KING, G. The rules of inference. The University of Chicago Law Review, v. 30,
p. 1-133, 2001.

30
Nesse sentido, ver Paterson e Teubner (2014, p. 481), que tratando de pesquisa empírica num quadro da teoria dos
sistemas, desdenham da pretensão de pesquisadores empíricos que acreditam poder refutar grandes quadros teóricos:
“Theories do not die from falsification via independent empirical facts. We called this the omnipotence fantasies of
empirical researchers, which they tend to develop when they feel disturbed by speculative theories. The only thing
that empiricism can do is to create counter irritations and compel theory to create new routinizations that may keep
itself in tune with other constructed worlds or drive itself into implausibility. This is what we would call a
relationship of therapy – of course, not the usual interventionist therapies but a therapy rethought in the spirit of
autopoiesis. Has Marxism, for example, died from its countless empirical refutations? For decades we have
witnessed successful immunization strategies by this Grand Theory by which it moved into admirably complex
constructions”.
33

FARIA, José Eduardo; CAMPILONGO, Celso Fernandes. A Sociologia Jurídica no Brasil.


Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.

FONSECA, Maria G. P. Iniciação à Pesquisa no Direito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

FRAGALE FILHO, Roberto. Quando a empiria é necessária? Anais do XIV CONPEDI.


Fortaleza, Fundação Boiteux, 2005. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/
arquivos/Anais/Roberto%20Fragale%20Filho.pdf>. Acesso em: 15 maio 2012.

______; VERONESE, Alexandre. A pesquisa em Direito: diagnóstico e perspectivas. Revista


Brasileira de Pós-Graduação, v. 1, n. 2, p. 53-70, 2004.

GARCIA, Margarida. De nouveaux horizons épistémologiques pour la recherche empirique em


droit: décentrer Le sujet, interviewer Le système et “désubstantialiser” les catégories juridiques.
Les Cahiers de Droit, v. 52, n. 3-4, p. 417-59, 2011.

GENN, Dame Hazel; PARTINGTON, Martin; WHEELER, Sally. Law in the Real World.
Improving our understanding of how law works. London: The Nuffield Foundation, 2006. (The
Nuffield Inquiry on Empirical Legal Research).

GERALDO, Pedro Barros. Sociologia empírica do direito: uma introdução. Revista Ética e
Filosofia Política, v. 2, n. 12, p. 1-13, 2010.

GRIFFITHS, John. What is Legal Pluralism? Journal of Legal Pluralism, n. 24, p. 1-55, 1986.

HORTA, Ricardo de Lins e; ALMEIDA, Vera Ribeiro de; CHILVARQUER, Marcelo.


Avaliando o desenvolvimento da pesquisa empírica em direito no Brasil: o caso do Projeto
Pensando o Direito. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 1, n. 2, p. 162-83, 2014.

JARDIM, Guilherme Duarte. Mapeamento da produção de pesquisa em direito no brasil


(2003-2012). Trabalho apresentado no IV Encontro de Pesquisa Empírica em Direito. Ribeirão
Preto: REED, 2014.

JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Acesso à justiça: um olhar retrospectivo. Estudos Históricos, v.


9, n. 18, p. 389-402, 1996.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

KOROBKIN, Russell. Empirical Scholarship in Contract Law: possibilities and pitfalls.


University of Illinois Law Review, v. 2002, p. 1033-66, 2003.

LAMY, Marcelo. Metodologia da pesquisa jurídica. Rio de Janeiro; São Paulo: Elsevier;
Campus Jurídico, 2011.

LEITER, Brian. American Legal Realism. In: EDMUNDSON, W.; GOLDING, M. (Orgs.). The
Blackwell Guide to Philosophy of Law and Legal Theory. Oxford: Blackwell, 2004. p. 50-66.
34

LOPES, José Reinaldo de Lima. Regla y compás, o metodología para un trabajo jurídico sensato.
In: COURTIS, C. (Org.). Observar la Ley. Ensayos sobre Metodología de la Investigación
Jurídica. Madrid: Trotta, 2006. p. 41-67.

LUHMANN, Niklas. Law as a Social System. Oxford: Oxford University Press, 2004.

MEZZAROBA, Orides; MONTEIRO, Cláudio S. Manual de metodologia da pesquisa no


Direito. São Paulo: Saraiva, 2009.

MADEIRA, Lígia Mori; ENGELMANN, Fabiano. Estudos sociojurídicos: apontamentos sobre


teorias e temáticas de pesquisa em sociologia jurídica no Brasil. Sociologias, ano 15, n. 32, p.
182-209, 2013.

NEVES, Marcelo. A pesquisa em direito na concepção de políticas públicas. Mesa de debates. In:
Anais do I Encontro de Pesquisa Empírica em Direito. Ribeirão Preto: Faculdade de Direito
de Ribeirão Preto-USP, 2011. p. 76-82.

NINO, Carlos Santiago. Algunos modelos metodológicos da la “Ciencia” jurídica. Buenos


Aires: Oficina Latinoamericana de Investigaciones Jurídicas y Sociales, 1979.

NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em direito no Brasil. Cadernos Direito GV, v.
1, n. 1, p. 3-19, 2004.

OLIVEIRA, Luciano. Não fale do Código de Hamurábi. A pesquisa sócio-jurídica na pós-


graduação em Direito. In: OLIVEIRA, L. (Org.). Sua Excelência o Comissário e outros ensaios
de Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004. p. 137-67.

______; ADEODATO, João Maurício. O estado da arte da pesquisa jurídica e sócio-jurídica no


Brasil. Série Pesquisas do Centro de Estudos Judiciais, Conselho da Justiça Federal, v. 4,
1996. Disponível em: <http://daleth.cjf.jus.br/revista/seriepesq04.htm>. Acesso em: 22 jul. 2014.

PATERSON, John; TEUBNER, Gunther. Changing Maps: Empirical Legal Autopoiesis. Social
and Legal Studies, v. 7, p. 451-86, 1998.

PIRES, Alvaro. Como conceber a pesquisa empírica em direito? Problemas de observação e


dificuldades de descrição. Texto apresentado no IV Encontro de Pesquisa Empírica em Direito.
Ribeirão Preto: REED, 2014.

QUEIROZ, Rafael M. R.; FEFERBAUM, Marina. Metodologia jurídica: um roteiro prático para
trabalhos de conclusão de curso. São Paulo: Saraiva, 2012.

ROSS, Alf. On Law and Justice [1959]. Clark, NJ: The Lawbook Exchange, 2004.

SCHLEGEL, John Henry. American Legal Realism and empirical social sciences. Chapel Hill:
University of North Carolina Press, 1995.

SERVERIN, Évelyne. Quels faits sociaux pour une science empirique du droit? Droit et Société,
v. 50, p. 59-68, 2002.
35

TAMANAHA, Brian. Understanding Legal Pluralism: past to present, local to global. Sydney
Law Review, v. 30, p. 375-411, 2008.

TEUBNER, Gunther. The two faces of Janus: rethinking legal pluralism. Cardozo Law Review,
v. 13, p. 1443-62, 1991.

TRUBEK, David M.; ESSER, John. “Empirismo crítico” e os estudos jurídicos norte-
americanos: paradoxo, programa ou caixa de Pandora? Revista de Estudos Empíricos em
Direito, v. 1, n. 1, p. 210-44, 2014.

RODRIGUEZ, José Rodrigo. A dogmática jurídica como controle do poder soberano: pesquisa
empírica e Estado de Direito. In: RODRIGUEZ, J. R.: PUSCHEL, F. P.; MACHADO, M. R. A.
(Orgs.). Dogmática é conflito: Uma visão crítica da racionalidade jurídica. São Paulo: Saraiva,
2012.

SUCHMAN, Mark C.; MERTZ, Elizabeth. Toward a New Legal Empiricism: Empirical Legal
Studies and New Legal Realism. Annual Review of Law and Social Science, v. 6, p. 555-79,
2010.

VERONESE, Alexandre. O papel da pesquisa empírica na formação do profissional do direito.


Revista OABRJ, v. 27, n. especial, p. 171-218, 2011.

Você também pode gostar