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608 PSICOLOGIA CIÊNCIA E


PROFISSÃO, 2007, 27 (4), 608-621

O Surgimento da Clínica
Psicológica: Da Prática
Curativa aos Dispositivos de
Promoção da Saúde
The Beginning of the Psycolo gical Clinic: From the
Healing Practice to the Dispositiv es to Promote Health

Jacqueline de Oliveira
Moreira,
Roberta Carvalho
Romagnoli &
Edwiges de Oliveira
Neves

Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais

Artigo

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2007, 27 (4), 608-621


Resumo: O presente artigo pretende trabalhar com o conceito de clínica
psicológica e tenta de finir esse campo de atuação do psicólogo através
de uma análise históri ca do surgimento dessa prática e de uma reflexão
sobre os limites do modelo de clínica como prática individual de
consultório, em contr aposição a um modelo de clínica chamada social,
que sustenta novas at uações no campo da Psicologia, no Brasil. Assim,
iremos, primeiramen te, buscar as origens etimológicas, históricas e
reflexivas do termo c línica. Em seguida, pretendemos refletir sobre as
articulações entre a P sicologia e o individualismo moderno, e, ainda,
sobre os limites da c línica entendida como prática liberal, privada e
individualizante. Por fim, defenderemos, para além da cisão entre clínica
e política, presente n o modelo tradicional, uma definição de clínica
social como prática ética e política das intervenções, comprometida
com a promoção da s aúde e engajada na realidade social brasileira.
Palavras-chave: Psicologia clínica, individualismo, escuta, clínica social.

Abstract: This articl e intends to work with the clinical psychological


concept trying to define the psychologist field across a historical analysis
of the beginning of th is practice and a reflection about the model limits
of clinic as an individ ual practice at the office, in opposite to a model of
clinic called social, th at supports new performances on the Psychology
field in Brazil. First, we will look for the etymological, historical and
reflexive origins of th e term clinic. Then, we intend to reflect about the
articulations between Psychology and the modern individualism and
the limits of the clini c understood as a liberal and private practice. In
the end, we will defen d beyond the division between clinic and politics,
in the tradicional mo del, a definition of social clinic as a political and
ethical position of int erventions engaged with the promotion of health
and with the Brazilian social reality.
Key words: clinical Psychology, individualism, listening, social clinic.
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Conselho Federal de Psicologia, em recente reflexões acerca da influência do saber médico


pesquisa (Who, 2001, pp. 7-9), apresentou um sobre o fazer “psi”.
“(...) dado significativo sobre a atuação do
originariamente, a psicólogo no Brasil. Entre os psicólogos No saber médico que sustenta a prática
atividade clínica (75%) que estavam exercendo a profissão na médica, é impossível diagnosticar sem antes
(do grego klinê – descrever os sintomas/sinais e conhecer os
leito) é a do data da pesquisa, a maioria (54,9%) se
médico que, à dedicava à clínica em consultório, e 12,6% antecedentes da enfermidade. Do mesmo
cabeceira do atuava com Psicologia da saúde, sendo que, modo, não é possível fazer um prognóstico
doente, examina sem antes obter um diagnóstico. Entretanto,
as manifestações nesse campo, a prática, na maioria das vezes,
da doença para também é clínica. Mas, anterior à discussão nem sempre foi assim. Antes de Hipócrates, a
fazer um sobre a atuação do psicólogo, no Brasil, uma Medicina estava mais próxima do mágico do
diagnóstico, um que do racional. Ele introduziu uma
prognóstico e questão nos parece prioritária: o que é
prescrever um Psicologia clínica? Dutra (2004) revela que transformação na Medicina, na Grécia, há
tratamento” alguns conceitos são pertinentes à prática 2.500 anos, na tentativa de compreender a
clínica, como escuta clínica, sofrimento história da doença que provoca, no paciente, a
Doron e Parot
psíquico, subjetividade. necessidade de procurar tratamento.

Na trilha de possíveis respostas para a pergunta Hipócrates inaugurou a observação clínica e


“o que é clínica?”, iremos, primeiramente, buscar criou a anamnese, definindo-a como a
as origens etimológicas, históricas e reflexivas do primeira etapa do exame médico. Aliás, o
termo clínica. Em seguida, pretendemos refletir próprio exame médico foi por ele introduzido
sobre as articulações entre a Psicologia e o na clínica, objetivando a obtenção de dados
individualismo moderno, e ainda sobre os limites para a elaboração do diagnóstico e do
da clínica entendida como prática liberal, privada prognóstico. O exame médico hipocrático
e individualizante. Por fim, para além da cisão consistia em medir a temperatura através da
entre clínica e política, presente no modelo imposição das mãos, observar
tradicional, defenderemos uma definição de cuidadosamente, apalpar o corpo e auscultar
clínica social como uma prática ética e política de os batimentos cardíacos, dentre outras ações.
escuta dos sujeitos, comprometida com a Com esses instrumentos – observação,
promoção da saúde e engajada na realidade social anamnese e exame –, o pai da Medicina foi
brasileira. capaz de descrever mais de quarenta e cinco
enfermidades, que prevaleceram até o século
O surgimento da clínica XVII.

Primeiramente, faz-se necessário compreender o Já a Medicina romana pouco contribuiu para


significado do termo clínica para, posteriormente, a clínica médica, embora tenha acrescentado
conhecer sua trajetória histórica. Segundo Doron muito aos conhecimentos de anatomia e
& Parot (1998), “(...) originariamente, a fisiologia, graças a Galeno. Na era medieval,
atividade clínica (do grego klinê – leito) é a do a
médico que, à cabeceira do doente, examina as Europa estagnou nesse campo de
manifestações da doença para fazer um conhecimento. As grandes contribuições, nesse
diagnóstico, um prognóstico e prescrever um período, foram da Pérsia e dos países árabes.
tratamento” (Doron e Parot, 1998, pp.144-145). Surge, na Pérsia, um dos maiores nomes da
Medicina clínica de todos os tempos: Abu al
Para tal, o médico faria uso da observação e da
Hussein ibn Abdallah in Sina, conhecido por
entrevista. Esses procedimentos, inicialmente, já
Avicena (980-1037 d.C.). Segundo Rezende
nos suscitam (2006), o Cânon é a maior obra de Avicena; ela é
PSICOLOGIA CIÊNCIA E composta
PROFISSÃO, por
2007, 27 (4), cinco volumes e contém um
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grande número de histórias clínicas. Na
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obra citada, encontramos descrições precisas de propriamente sua história. Nesse sentido, Foucault
doenças como hidrofobia, nefrite crônica e (1977) articula o discurso médico, que inaugura e
outras. Depois da magistral obra de Avicena, a embasa o campo de atuação e de produção científica da
história da Medicina vive uma fase de disciplina médica dentro de fatores sociais, políticos,
pequenos avanços no século XVII e no início do econômicos, tecnológicos e pedagógicos, e que
século XVIII. evidencia as relações discursivas que “fabricam” a
doença e seu tratamento. Dessa maneira, o discurso
O auge da clínica médica se situa entre o final do médico recebe uma ordenação estabelecida pelos
século XVIII e o início do século XIX. Esse critérios de cientificidade e fundamenta as práticas que
último foi, sem dúvida, um dos séculos mais organizam a Medicina moderna. O corpo torna-se,
prósperos para a área, devido às muitas assim, motivo de controle disciplinar e tecnológico.
descobertas no ramo da Biologia e às
invenções que possibilitaram a Já na fase seguinte, denominada Genealogia do Poder, o
instrumentalização médica. Parece-nos filósofo Michel Foucault lança um olhar crítico sobre as
pertinente ressaltar que, segundo Rezende relações de poder que emergem associadas ao saber.
(2006), Foucault introduz uma confusão Essa coexistência de saber e poder faz com que
histórica ao enunciar a origem da clínica no fim discursos tidos como verdadeiros sejam ditos sobre algo
do século XVIII e início do XIX. Na verdade, a produzido como objeto de saber. Nesse sentido,
clínica médica surgiu com Hipócrates. O que verdades imutáveis são questionadas e aparecem
ocorre, no período, é um avanço dos recursos imbricadas na produção da subjetividade, tendo como
técnicos usados nos diagnósticos. Nas palavras do função última a monitoração e a ordenação do que
autor: escapa à norma. Aliás, nesse raciocínio, a subjetividade
é constituída através de práticas, e as relações de poder
O filósofo francês Michel Foucault, em seu são processos que incidem sobre os sujeitos e os corpos,
livro Nascimento da Clínica, considera o fim do o que nos faz pensar sobre os discursos produzidos pela
século XVIII e o início do XIX como a época em Medicina e suas produções de formas de ser.
que despontou a clínica médica. Creio que
seria mais apropriado falar em crescimento, em De acordo com Foucault (1999), a modernidade – e aí,
lugar de nascimento, pois o método clínico já sim, mais especificamente, o século XIX – instaurou o
existia desde Hipócrates. O século XIX foi, poder sobre o homem como ser vivo, e, nesse processo,
sem dúvida, o século em que a clínica médica a Medicina teve papel preponderante. Esse poder recebe
teve o seu período áureo, enriquecendo a o nome de biopoder, poder sobre a vida, e pode ser
Medicina com numerosas descobertas, fruto de definido como um “(...) poder que se incumbiu tanto do
observações cuidadosas e da corpo como da vida, ou que se incumbiu, se vocês
instrumentalização do médico preferirem, da vida em geral, com o pólo do corpo e o
(Rezende,2006). pólo da população”. (Foucault, 1999, p. 302).

Preocupado, nessa fase, em desenvolver um Essa forma de poder possui dois eixos, que atuam,
projeto arqueológico que tinha por objetivo respectivamente, sobre o sujeito e sobre a espécie
efetuar uma análise histórica da constituição dos humana: o poder disciplinar e a biopolítica. O poder
saberes das ciências humanas, o referido disciplinar, que incide sobre os indivíduos e os corpos,
filósofo enfatiza mais as práticas discursivas que fundamentase no sistema racional e científico da
fabricam o objeto de estudo da Medicina do que sociedade moderna. A biopolítica, por sua vez, tem,
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como área de atuação, a população, e é Nessa perspectiva, cabem as seguintes


auxiliada por mecanismos de regulamentação perguntas: teria ocorrido aqui uma inversão de
da natalidade, da mortalidade, das capacidades papéis? Tamanho nível de especialização não
biológicas e dos efeitos do meio. A relação teria conduzido a um afastamento da perspectiva
entre esses dois eixos é de coexistência e a humanista que também
influência mútua. A biopolítica modifica fundamenta a Medicina? Embora essas
parcialmente o biopoder e utiliza-o. reflexões sejam interessantes do ponto de vista
Entretanto, sua tecnologia não suprime a da própria clínica, elas não terão lugar neste
tecnologia disciplinar. trabalho, já que não é nosso objetivo discutir os
rumos da clínica médica, mas sim, da clínica
A partir desses dois eixos, que evidenciam a psicológica, e a trajetória histórica da Medicina
ligação entre saber e poder, emergem os aqui realizada serve apenas para
sistemas de vigilância da subjetividade. Esses contextualização desse objetivo.
sistemas de controle social são praticados pela
Medicina e também pela Psicologia. Ao Na era vitoriana, ainda não existia a prática de
estabelecer o estatuto do homem saudável e o cliente buscar auxilio psicológico por si;
“normal”, a Medicina paulatinamente vai assim, Sigmund Freud, o pai da psicanálise,
exercendo um controle disciplinar e cada vez imprime, na História, algumas inovações.
mais tecnológico, através de modelos cada vez Primordialmente, na clínica psicanalítica, há
um deslocamento do saber. Não mais o
mais refinados, com o intuito de ajustar as
médico o detém, mas o cliente. Contudo, é um
distintas materialidades que tem a seu cargo,
saber inconsciente. Nesse processo, o analista
atuando no cotidiano dos sujeitos,
é um mero facilitador, já que, na condução do
normalizando a população e regulando as
tratamento, ele apenas aponta o caminho e o
políticas de saúde através de um arsenal
paciente não apenas ouve, como se fosse uma
técnico cada vez mais especializado.
prescrição médica, mas elabora e encontra sua
verdade no próprio inconsciente. A cena é
Continuando o exame da perspectiva histórica
ocupada, dessa maneira, pelo discurso do
da clínica no século XX, a Medicina alia-se
paciente, sem o qual não é possível nem
aos conhecimentos acumulados, às novas
mesmo apontar um caminho. Cabe ao analista
tecnologias, o que, por sua vez, revoluciona a
apenas mobilizar o paciente a prosseguir na
prática médica. O incremento dos dispositivos
busca de sua verdade. Portanto, quem
diagnósticos, a abundância de tratamentos
trabalha, verdadeiramente, na análise, é o
sofisticados e o elevado nível de
analisando. É importante fazer uma
especificidade médica conduzem à seguinte
diferenciação: enquanto a clínica médica
premissa: quanto maior a complexidade,
aprimora seus métodos diagnósticos, por via
maior a necessidade de especializar-se. Aqui,
da observação e de complexas tecnologias que
portanto, a clínica médica se perde entre
sustentam múltiplas possibilidades de
inúmeras fragmentações e ainda delega ao
intervenção na direção da cura orgânica, a
paciente a decisão sobre qual especialista
clínica freudiana, embora também se debruce
buscar. É como se a clínica estivesse se sobre o cliente na busca diagnóstica, enfatiza
abstendo do leito, do debruçar-se sobre, uma mais a escuta do sofrimento do que a visão do
vez que o paciente, a partir de seu sintoma, mesmo, e propõe, como método de
avalia a quem deve recorrer. O acamado passa intervenção, a psicoterapia/análise.
a depender de um outro que o faça, já que não
é mais o médico quem vai até o paciente, mas Freud (1905 [1904]) elabora um texto para explicar o
início, adverte que muitos médicos consideram a desvendar o jogo das forças psíquicas implicadas no
psicoterapia um produto do misticismo processo de adoecimento. Nesse sentido, Freud subverte
moderno, se comparada aos recursos a lógica do tratamento médico, pois, para ele, a
terapêuticos físico-químicos. Em sua grande resistência é fundamental no processo de cura.
capacidade argumentativa, ele irá mostrar que a
psicoterapia é um recurso bastante familiar aos Muitos são os avanços
médicos, tanto porque foi utilizada na introduzidos por Freud na clínica
Medicina antiga quanto pelo fato de que todos os psicológica, tais como: a mudança
médicos, mesmo os modernos, utilizam o do paradigma da observação para
recurso da psicoterapia através da sugestão de o da escuta, a importância da
melhora, que se assenta na confiança do resistência e, em última instância,
cliente no profissional que o trata. a perspectiva de tratar o cliente
como um sujeito de sua história de
Segundo o autor, uma máxima dos médicos adoecimento, e não como mero
revela que as doenças não são curadas pelo objeto. No entanto, a clínica
medicamento, mas pelo médico, ou seja, pela psicanalítica freudiana introduz a
personalidade do médico, na medida em que, questão do segredo como força
através dela, ele exerce uma influência motriz do processo terapêutico;
psíquica. A psicoterapia que Freud propõe assim, essa clínica se enquadra em
difere, também, da psicoterapia clássica da moldes individualistas. O
Medicina, a da sugestão, que é uma sugestão paradigma da psicoterapia como
hipnótica, pois o paciente se encontra espaço do segredo fortalece o
“hipnotizado” pelo poder e saber do médico. A imaginário de que a clínica mais
psicoterapia proposta por Freud difere da efetiva para tratar os sofrimentos
sugestão porque não deposita “algo” na e psíquicos seja a clínica individual.
através da relação; pelo contrário, pretende
retirar os possíveis significados dos sintomas. A
Psicoterapia: campo
terapia analítica, em contrapartida, não
pretende acrescentar nem introduzir nada de
privilegiado da clínica
novo, mas antes tirar, trazer algo à tona, e, psicológica –
para esse fim, preocupa-se com a gênese dos individualismo e
sintomas patológicos e com a trama psíquica da prática curativa
idéia patogênica, cuja eliminação é a sua meta
(Freud (1905 [1904]), p. 244). Assim, o A clínica psicológica é herdeira do
caminho para atingir a meta não segue a modelo médico, no qual, como já
facilidade direta da remoção através da dissemos, cabe ao profissional
sugestão, da introdução ou da adição de um observar e compreender para,
elemento, mas da subtração, da retirada dos posteriormente, intervir, isto é,
elementos formadores do sintoma. remediar, tratar, curar. Tratava-se,
portanto, de uma prática higienista.
Para Freud (1905 [1904]), a técnica da Dessa maneira, a clínica
sugestão não possibilita a sustentação da psicológica esteve, por um bom
posição de cura, pois oculta o entendimento do tempo, distante das questões
jogo de forças psíquicas e não permite sociais.
identificar a resistência. A cura alcançada após o
enfrentamento da resistência permanece, ao
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Freud e a psicanálise, segundo clínica psicológica passa a
Guerra (2002), serão responsáveis vincular-se a uma demanda do
pelo deslocamento da prática sujeito, e não necessariamente a
fundamentada no olhar (sobre o uma patologia, como no modelo
fenômeno) para a prática médico. Mas a vinculação da
fundamentada na escuta (do Psicologia ao individualismo não
metafenomenal). Assim, a prática será superada pelo

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freudismo, pois a Psicologia, em sua origem, perceber a pessoa em sua interioridade, com o
inclusive a Psicologia clínica, está atrelada a uma intuito de observar e controlar o lado
perspectiva individualista. pecaminoso dessa intimidade. Todavia,
somente com o pensamento moderno vamos
O início do pensamento moderno é marcado pelo assistir à valorização da categoria sujeito e da
surgimento do sujeito e do individualismo, experiência de intimidade, de individualidade.
anunciando assim uma nova fonte de problemas Surge, então, a Psicologia, também como
que exigem uma nova ciência para pensar sobre espaço de acolhida para esse ser-
eles. Na famosa tese de Dumont (1993), saímos sujeitoindividual. O sujeito não tem mais as
de um modelo holista de sociedade para um grandes estruturas holistas que organizam e
modelo individualista. Explicando essa tese, o oferecem sentido a sua existência; cada um
psicanalista Benilton Bezerra Júnior nos revela: tem que construir por si seus sentidos
subjetivos e individuais. Assim, a clínica do
(...) a consciência dos sujeitos de sociedades segredo cresce e floresce na modernidade.
hierárquicas, fundada num ideário holista,
“(...) os
corresponde a uma imagem de si como integrante As mudanças introduzidas pela revolução
ritmos impostos
pela produção de uma totalidade, sua identidade sendo vivida industrial na produção de bens influenciaram
industrial e pela como a expressão de sua vinculação ao todo profundamente a sociedade e os indivíduos.
vida urbana social. Somente nas sociedades igualitárias, Segundo Laville & Dionne (1999), “(...) os
destroem ou
baseadas no individualismo como ideologia ritmos impostos pela produção industrial e
transformam os
modos de vida e hegemônica, seria possível para os sujeitos pela vida urbana destroem ou transformam
levam ao aperceberem-se e, mais do que isto, viverem sua os modos de vida e levam ao individualismo,
individualismo, natureza como sendo de indivíduos, isto é, seres assim como ao isolamento” (p. 53). Além
assim como ao
singulares, livres, autônomos, dotados de um disso, a distância entre a classe detentora dos
isolamento”
mundo interno próprio, morada de sua verdadeira meios de produção e o proletariado
identidade. (Bezerra Júnior , 1989, p. 223). aumentava cada vez mais. Aqueles que
poderiam tirar proveito dessas mudanças
Assim, o sujeito moderno se percebe como um “(...) gostariam de propiciar que a nova
ser singular, um ser que conquistou o direito de ordem se estabelecesse sem confrontos”
exercer sua individualidade de maneira sigilosa, (Laville & Dionne, 1999, pp. 5354). Surgem,
em segredo, de forma a resguardar-se da então, as ciências humanas, “(...) com o
exposição pública. Não é por acaso que os objetivo de compreender e intervir na ordem
fenômenos psicológicos, na Grécia antiga, eram social da mesma forma que as ciências
deuses (Phobos, naturais tentavam dominar a natureza”
Mnemosine, Eros, dentre outros). Esse fato indica (Laville & Dionne, 1999, pp. 53-54).
a que distância se estava da idéia de intimidade,
de algo que se dá no interior e pertence Portanto, o surgimento das ciências humanas,
secretamente ao sujeito. A dimensão da inclusive o da Psicologia, esteve ligado aos
interesses da nova detentora dos poderes
interioridade será introduzida no início da Idade
político, econômico e social: a burguesia.
Média, a partir da divulgação, pela Igreja Segundo Guerra (2002), “(...) a história da
Católica, das experiências do indivíduo como ser Psicologia nos evidencia uma tradição de
sexual. Dessa forma, teremos uma intimidade, trabalho associada ao controle, à
um segredo, que aponta um indivíduo voltado higienização e à diferenciação, que, desde os
para suas mazelas sexuais. O cristianismo primórdios de seu nascimento, associaram às
introduz a possibilidade de práticas sociais e políticas a manutenção do
status quo” (p. 29). A prática clínica era,
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portanto, descomprometida com o contexto
social, ou,

ao contrário, comprometida com apenas parte individualismo foi condição sine qua non para o
dele. surgimento da Psicologia como ciência, por outro, ele
tomará uma forma tal que denunciará a necessidade de
Tendo sido o surgimento das ciências humanas que essa mesma Psicologia reflita sobre seus efeitos, o
vinculado aos interesses da classe dominante e que mudará completamente a relação entre ambos.
estando a própria Psicologia aliada a práticas
higienistas, fica evidente que o público de sua Assim, seria possível dar conta de todo tipo de
intervenção era aquele que não se enquadrava no “mazela”, nesse modelo? No nosso entender, não se
projeto cartesiano do homem racional, e que pode tratar a psique da mesma maneira que se trata do
uma de suas tarefas era sustentar e manter o soma e tampouco manter a neutralidade científica diante
individualismo. Dessa maneira, a terapia da de um objeto que coincide com o observador. A clínica
alma se inspiraria no modelo da terapia do individual é fundamental, mas não podemos nos perder
corpo, isto é, no modelo médico, a fim de ser no individualismo. Não se pode esquecer que a ciência
reconhecida como ciência. Assim, a expressa e alimenta ideologias; assim, a idéia de clínica
psicoterapia se tornou um campo privilegiado da neoliberal alimenta o modelo individualista, por vezes
clínica psicológica: ela seria, até então, a perverso, que se esquece do homem para manter a
terapêutica mais adequada para tratar das lógica do capital. Acreditamos que existam outras
“mazelas humanas” em que outras tentativas intervenções psicológicas, de efeitos terapêuticos,
haviam falhado. Os “problemas psicológicos”, resultantes de uma escuta clínica. Como breve
uma vez que são imateriais, só se exemplo das limitações da clínica quanto ao
apresentariam através da fala, sobre a qual o segredo individual, queremos relatar um
psicólogo se “debruçaria” a fim de traçar uma episódio referente à prática de uma psicóloga em
linha de tratamento (diagnóstico, prescrição e um hospital público. A psicóloga, novata,
prognóstico). interroga a coordenação de psicologia do
hospital sobre a possibilidade de se oferecerem
Mas a relação entre a Psicologia e o
mais consultórios dentro do hospital para
individualismo é marcada por uma
estagiários atenderem os pacientes. A
ambigüidade: se, por um lado, o
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coordenadora pergunta por que não atender as pessoas Segundo Moreira (2004), é fácil
no leito, pois atender só aqueles que têm condições compreender a tentação
médicas de caminhar até o consultório seria excluir os individualista, pois o processo de
acamados. A psicóloga responde que não pode atender constituição da subjetividade só é
nas enfermarias, porque sempre existe um segredo a ser possível mediante o encontro
dito. No nosso entender, manter esse pressuposto é intersubjetivo; é o outro que
retirar, de alguns sujeitos, a possibilidade de possibilita ao eu o ingresso no
acolhimento, de escuta do sofrimento e até de uma nova mundo social. No entanto, o eu
posição subjetiva frente ao sofrimento. vive, primeiramente, um momento
de “não-eu”, de uma consciência
Dessa forma, o contexto social em si, sem auto-reflexão, para usar
passou a adentrar os consultórios a expressão de Lévinas
de forma a convocar os psicólogos (1983,1997), uma “consciência-
a saírem dele, ou seja, para nãointencional”. Em sua não-
responder às novas formas de intencionalidade, anterior a todo
subjetivação e de adoecimento querer e a qualquer falta, a
psíquico, o psicólogo deveria identidade da “consciência não-
compreender a realidade local. A intencional” encontra-se exposta,
Psicologia “tradicional” é entregue à exterioridade
“obrigada” a se redesenhar, absolutamente estranha e
tornando-se mais crítica e imprevisível.
engajada socialmente.

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Segundo Lévinas (1983, 1997), a consciência, projeto da Psicologia como compromisso
antes de significar um saber de si, é social anuncia a dimensão da consciência-
apagamento ou discrição da presença, sem para-si e para-o-outro, sendo que a condição
intenção, sem nome, sem situação, sem de ser para outro é anterior à consciência de
títulos, sem visada e sem a proteção da si.
máscara protetora do eu. No entanto, quando
essa consciência se torna intencional, quando A Psicologia, ou melhor, as psicologias,
alcança o estatuto de uma consciência-de-si, devem encontrar seu compromisso social,
pensa que esse é o ponto zero. A consciência pois o eu não se constitui sem o outro, ou
só reconhece como momento inaugural aquele seja, não há individualismo que se sustente na
em que ela possui racionalidade; portanto, é ausência do social. Se o paradigma moderno é
facilmente capturada pelo engodo de pensar o da consciência que propicia o
que o eu é anterior ao outro. Na modalidade individualismo, o paradigma contemporâneo é
voluntária da consciência intencional, sua o da linguagem que pressupõe o encontro
atividade é mortífera em relação à dimensão intersubjetivo. O “paradigma da linguagem”
do outro. No domínio da consciência, o outro apenas demarca o campo das teorias que
é visado para completar. O eu prefigurado concebem o sujeito originariamente como
pela consciência intencional conhece e “ser social”, “ser-nomundo”, “ser
representa, e, nesse processo, conhece a si comunicacional”, “ser-com”, enfim,
mesmo refletido na realidade objetiva que ele mergulhado no universo das interações
próprio constitui. Assim, a falácia simbólicas.
individualista é facilmente compreendida; o
eu, em sua arrogância, crê que é anterior ao As novas modalidades de
outro. De acordo como Moreira (2004), do
clínica para além da
ponto de vista lógico, o eu é anterior ao outro,
pois só pode haver a distinção de fronteiras
psicoterapia: clínica social e
quando os dois elementos têm claros, promoção da saúde
racionalmente delimitados, seus limites. Mas,
Desde o final do século passado e ainda no
do ponto de vista ontológico, o outro é
início deste século, presenciamos, no País, um
anterior ao eu. Todavia, a consciência-não-
aumento considerável das áreas de atuação da
intencional não possui instrumentos racionais
Psicologia, o que evidencia uma ampliação
para apreender esse momento de dependência
paulatina de seus locais de trabalho: o
do outro.
psicólogo torna-se presença cada vez mais
Moreira (2004) defende a tese de que esse constante nos sistemas de saúde pública, nos
ponto pode ser um fundamento, uma centros de reabilitação, nos asilos, nos
perspectiva para a Psicologia engajada no hospitais psiquiátricos e gerais, no sistema
compromisso social. A Psicologia não teria, judiciário, nas creches, nas penitenciárias, nas
como tarefa, fortalecer a arrogância do eu comunidades. Dessa maneira, surgem, para o
igual a eu, nos projetos de busca do profissional, outras oportunidades de trabalho
“verdadeiro eu”, mas desvelar, para o eu, sua que escapam a seus espaços usuais de
pertinência necessária e vital no campo do atuação, restritos até então aos consultórios,
outro, revelar sua condição estruturante de às escolas e às empresas.
“ser com”. O sujeito percorreria o trajeto de
uma consciência-em-si, que se desconhece, Todavia, cabe ressaltar que o psicólogo se
para uma consciência-para-si, que pode se depara, portanto, com o desafio de trilhar
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disseminação da especialidade do psicólogo diante das injunções de assujeitamento” (s/p).
para um número maior de pessoas e de classes Nessa perspectiva, operar mudanças é sempre
sociais mas também a produção de novos um fazer político.
recursos em sua formação e de novas formas de
exercício profissional, que apostem na Embora, em nosso entender, essa relação seja
construção de práticas ético-políticas. intrínseca, presenciamos ainda, na forma
dominante da prática clínica, o perpetuamento
Nesse sentido, concordamos com Figueiredo da cisão entre clínica e política. Realizando
(1996) quando ele afirma que a clínica uma reflexão acerca da relação entre o
psicológica se caracteriza não pelo local em que momento contemporâneo, o exercício da
“(...) mesmo
se realiza – o consultório –, mas pela clínica e a produção da subjetividade,
quando [as
qualidade da escuta e da acolhida que se Benevides de Barros & Passos (2004) insistem questões] surgem
oferece ao sujeito: a escuta e a acolhida do na articulação desse tripé com o viés político e no seio de uma
família, numa
excluído do discurso. Portanto, ser psicólogo com a necessidade de uma análise das formas
escola ou numa
clínico implica determinada postura diante do instituídas da clínica. Para tal, os autores relação amorosa,
outro. Nesse sentido, podemos fazer a seguinte examinam as formas de poder da atualidade, trata-se sempre do
quanto e de como
observação: que gerenciam a vida e moldam formas de
o desejo pode
existência, como nos propõem as análises produzir e se
Assim, não importa em que lugar ou espaço o ato foucaultianas, apontadas no início deste texto. expressar diante
das injunções de
clínico aconteça, seja no âmbito privado ou Em plena era da globalização, as subjetividades
assujeitamento”
público, numa relação diádica, grupal ou são geridas por controles parciais e instáveis,
coletiva. Este será sempre um fazer que se exercem em redes, que estão em todos (s/p)
psicológico que se pautará em concepções os lugares na ordem do dia, e que administram
teóricas e metodológicas que refletirão essa as formas de vida e seu cotidiano. Vale lembrar
postura diante do sofrimento ou fenômeno que esse poder é positivo, direcionado para o
psicológico que se coloca diante dele. Melhor consumo e para a serialização, e administra
dizendo, o ato clínico se pautará muito mais por maneiras de ser e de viver.
uma ética do que por referenciais teóricos
fechados. (Dutra, 2004, s/p). Frente a essa captura contemporânea da
subjetividade, a clínica aflora como
É claro que essa postura implica se haver com as possibilidade também de produção, e não
mudanças provocadas pela relação que ali se somente de reprodução; uma forma de
trava, relação essa que reflete/remete às outras resistência, conforme pontua Romagnoli
relações que seus elementos (terapeuta e (2006/no prelo). Nesse espaço, vamos nos
cliente) possuem fora do setting terapêutico, seja deparar com modos de produção, de
ele qual for. No espaço clínico, estamos em subjetivação e de construção, formas de se criar
contato com modos de subjetivação que a si mesmo e o mundo, que também incidem no
buscam, de alguma maneira, criar alternativas de espaço social. Nesse contexto, é necessário que
retificação. Isso significa que o fazer clínico é, os profissionais que atuam nessa área reflitam
também, um fazer político, uma vez que ele é acerca dos desdobramentos de suas práticas no
transformador. Segundo Gondar (2006), “(...) campo social. Nem que seja através dos
mesmo quando [as questões] surgem no seio de sintomas de seus clientes que adentram os
uma família, numa escola ou numa relação consultórios, mantidos e sustentados pelo
amorosa, trata-se sempre do quanto e de momento contemporâneo, o social se faz
como o desejo pode produzir e se expressar presente e se faz notar nas mudanças que
emergem nesse cenário, criando focos enunciativos Mediante essas idéias, acreditamos que o estado de
frente à padronização das subjetividades. potência da vida, inerente à

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subjetividade, pode atualizar-se na experiência de sujeito universal e a-histórico, metas e


clínica e pode atuar como dispositivo para fundamentos que, sem dúvida, circunscrevem
sustentação de modos de existência que se a clínica como espaço de reprodução e
criam, de maneira singular, e que emergem mantêm a cisão entre clínica e política.
como resistência à reprodução, à
massificação, à gerência da vida. Na verdade, Ainda analisando essa forma dominante,
a Psicologia se dedica à subjetividade em suas Ferreira Neto (2004), em sua reflexão sobre a
mais variadas aparições, mas devemos pensar formação do psicólogo brasileiro, afirma que
não somente no sujeito individual, pois este outras pesquisas também anunciaram que a
sempre é fruto de um encontro social. Para tal, visão da prática psicológica como clínica
é preciso tomar a clínica como plano de dentro do modelo liberal privado predomina
produção do coletivo, como sustentação da entre os estudantes e profissionais da
alteridade: clínica social. Psicologia. Em sua pesquisa, o autor pretende
investigar o processo de mudança desse
Ao examinar o uso da expressão clínica privilegiado ideal para a construção de uma
social, mediante uma perspectiva histórica, clínica social. Concordamos com o autor no
Ferreira Neto (2003) afirma que seu uso se que se refere ao esgotamento da clínica liberal
inicia, em nosso país, na década de 80, em curativa dentro de um cenário nacional em
associação a uma série de transformações, não que os problemas sociais se multiplicam.
só nessa área, mas na Psicologia como um Também estamos de acordo com o
todo. Embora, desde a década de 70, já
deslocamento do paradigma da clínica liberal
houvesse, no Brasil, práticas e grupos “psi”
curativa para uma clínica implicada e aplicada
engajados em práticas sociais e com reflexões
nos processos de promoção da saúde no
políticas acerca do que faziam, é necessário
social.
frisar que essa postura não atingia o campo da
clínica, que se apresentava, de maneira geral,
A clínica social nasce como prática que se
apolítica e distante das questões sociais. Em pretende realizar de forma ampla, envolvida
1984, com a abertura política, inicia-se o com a construção de novas formas de atuação.
questionamento da neutralidade da clínica, A partir da década de 80, como vimos acima,
através da ampliação do conceito de política e os profissionais “psi” passam a atender a uma
da constatação da força dos movimentos clientela oriunda das classes populares em que
sociais. Essas alterações confrontam a idéia é inevitável a dimensão social, que, por sua
dominante na prática clínica, até então vez, convoca a necessidade de outra escuta e
de outra intervenção. Todavia, cabe ressaltar
definida como atividade liberal e privada, que
que esse tipo de atividade, por si só, não
se desenvolvia junto às classes médias e altas. garante uma prática política e de resistência.
A ênfase no social, em seu surgimento,
Em pesquisa efetuada nessa mesma época,
também era despolitizada, e, como se
com o intuito de conhecer os campos dedicava às camadas baixas da população,
emergentes de exercício dos psicólogos, o consistia, de maneira geral, em práticas
Conselho Federal de Psicologia (1988) assistencialistas. Com o intuito de ocupar
denuncia a clínica tradicional como prática novos espaços e realizar práticas diversas, os
hegemônica e centrada no indivíduo. De psicólogos geralmente utilizavam os mesmos
acordo com o órgão, essa atividade tem modelos do consultório privado. Assim,
entendemos que, naquele momento histórico,
objetivos analíticos, psicoterapêuticos e/ou
foi fundamental essa inserção – que, contudo,
psicodiagnósticos, e baseia-se em uma
por si só, não garante novas atuações.
concepção da clínica como um saber/fazer
Atualmente, com as práticas emergentes em sujeição a uma prática clínica descontextualizada,
Psicologia já solidificadas, percebemos uma inquestionável e entendida como verdade.
flexibilização e uma politização cada vez mais
crescentes, que se associam ao Tendo como sustentáculo as idéias
desenvolvimento do trabalho clínico. Essa discutidas acima, ressaltamos que
conduta emerge como necessária frente à a clínica social não se refere
multideterminação de fatores que atravessam o somente ao atendimento das
exercício profissional na diversidade de camadas pobres da população nem
campos em que o psicólogo se insere. diz respeito apenas aos novos
Entretanto, vale lembrar que, quanto mais espaços de atuação em que os
espaços esse profissional ocupa, mais psicólogos estão se inserindo. É,
necessária se torna a realização de análises antes de tudo, a clínica de qualquer
críticas acerca do poder de suas intervenções e da lugar, de qualquer público, que
gerência ou não da vida, em prol da insiste em combater a
reprodução ou da invenção, isso porque um massificação, cada vez mais
trabalho com o social não é, por si só, uma presente, e buscar cada vez mais a
prática ética e libertária. invenção, na singularidade de cada
cliente, na particularidade de cada
Na verdade, não podemos nos esquecer de inserção profissional.
que, ultrapassando a homogeneidade e a
segurança de nossas especializações, Propomos, portanto, um trabalho
encontramos um mundo portador de facetas de intervenção psicológica, seja
variadas. Dinâmico e aberto, esse mundo não se qual for a vertente teórica
esgota nem se finaliza em nenhuma escolhida pelo profissional, que
abordagem; pelo contrário, traduz-se em associe o sujeito psicológico ao
diversidades e multiplicidades. Analisando sujeito político, pois acreditamos
essa proposição, Baremblitt (1988) demonstra que que, devido ao alto nível de
o campo de atuação dos trabalhadores na subjetivismo, de atomização, de
saúde é um espaço de múltiplas narcisismo, um trabalho que possa
determinações, que configuram linhas de força e alcançar algum sucesso deve partir
materialidades bastante diferentes entre si, que das mazelas íntimas desse sujeito
podem e devem ser consideradas. para depois lançá-lo ao campo
político, transformando-o em um
Ao centrar sua proposta somente no manejo de sujeito histórico, no sentido de se
classes sociais distintas, em diferentes espaços de envolver com sua história, com a
trabalho, o psicólogo corre o risco de nada comunidade, com a humanidade.
mais realizar a não ser a adaptação maciça de As produções dominantes no
seus clientes ao mercado globalizado e de campo da Psicologia ainda
distanciar-se da inventividade. Essa enfatizam a formação
diversificação de usuários de seus serviços e especializada e tecnicista e
esse aumento da demanda de sua atuação perseguem homogeneizações e
profissional não garantem nenhum avanço, seguranças ilusórias perante a
apenas respondem a um movimento de multideterminação da realidade.
psicologização dos problemas da vida e podem
aperfeiçoar os mecanismos de exclusão do Em nosso entendimento, essa
capitalismo, se o ponto de partida for o de grande ênfase na formação de
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especialistas traz, como práticas, seja indispensável,
conseqüência imediata, a cisão sobretudo nesse momento em que
entre conhecimento e engajamento outros espaços de atuação foram
social. conquistados e já se encontram
Acreditamos que a articulação do sedimentados. No nosso entender,
uso de nossa formação acadêmica somente sustentando essa
e de seus efeitos no campo social, problemática é possível promover
mediante o desenvolvimento de ações que,
um conhecimento crítico de nossas
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mesmo parciais, nos conduzam a outras da prática psicológica também são prisioneiro
s
práticas clínicas e sociais. dessa forma de conceituação, e propõem ,
assim, uma polarização entre intervençã o
Por fim, gostaríamos de revelar que muitos clínica e intervenção psicossocial. Faz-s e
profissionais entendem a clínica psicológica necessário compreender que a escuta clínic a
como prática liberal que acontece apenas no é uma postura ética e política diante do sujeit
o
consultório particular, atrelada ao modelo humano. Não é o local que define a clínica,
e
individualizante. De outro lado, alguns sim, a posição do profissional e os objetivo
s
profissionais que defendem uma politização de libertação e potencialização dos sujeitos.
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Jacqueline de Oliveira Moreira, Roberta Carvalho Romagnoli & Edwiges de Oliveira Neves
PROFISSÃO, 2007, 27 (4), 608-621
Jacqueline de Oliveira Moreira
Doutora em Psicologi a clínica pela PUC/SP, Mestre em Filosofia pela UFMG,
professora do Mestrado da PUC/MG, psicóloga clínica

Roberta Carvalho Romagnoli


Doutora em Psicologia clínica pela PUC/SP, Mestre em Psicologia social pela UFMG,
professora do Mestrado da PUC/MG, psicóloga clínica

Edwiges de Oliveira Neves


Discente do Curso de Psicologia da PUC/MG – Unidade de Betim

Rua Congonhas, 161 – São Pedro Belo Horizonte – MG. CEP – 30.330-100
E-mail:jackdrawin@yahoo.com.br

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