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O Surgimento da Clínica
Psicológica: Da Prática
Curativa aos Dispositivos de
Promoção da Saúde
The Beginning of the Psycolo gical Clinic: From the
Healing Practice to the Dispositiv es to Promote Health
Jacqueline de Oliveira
Moreira,
Roberta Carvalho
Romagnoli &
Edwiges de Oliveira
Neves
Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais
Artigo
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Preocupado, nessa fase, em desenvolver um Essa forma de poder possui dois eixos, que atuam,
projeto arqueológico que tinha por objetivo respectivamente, sobre o sujeito e sobre a espécie
efetuar uma análise histórica da constituição dos humana: o poder disciplinar e a biopolítica. O poder
saberes das ciências humanas, o referido disciplinar, que incide sobre os indivíduos e os corpos,
filósofo enfatiza mais as práticas discursivas que fundamentase no sistema racional e científico da
fabricam o objeto de estudo da Medicina do que sociedade moderna. A biopolítica, por sua vez, tem,
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freudismo, pois a Psicologia, em sua origem, perceber a pessoa em sua interioridade, com o
inclusive a Psicologia clínica, está atrelada a uma intuito de observar e controlar o lado
perspectiva individualista. pecaminoso dessa intimidade. Todavia,
somente com o pensamento moderno vamos
O início do pensamento moderno é marcado pelo assistir à valorização da categoria sujeito e da
surgimento do sujeito e do individualismo, experiência de intimidade, de individualidade.
anunciando assim uma nova fonte de problemas Surge, então, a Psicologia, também como
que exigem uma nova ciência para pensar sobre espaço de acolhida para esse ser-
eles. Na famosa tese de Dumont (1993), saímos sujeitoindividual. O sujeito não tem mais as
de um modelo holista de sociedade para um grandes estruturas holistas que organizam e
modelo individualista. Explicando essa tese, o oferecem sentido a sua existência; cada um
psicanalista Benilton Bezerra Júnior nos revela: tem que construir por si seus sentidos
subjetivos e individuais. Assim, a clínica do
(...) a consciência dos sujeitos de sociedades segredo cresce e floresce na modernidade.
hierárquicas, fundada num ideário holista,
“(...) os
corresponde a uma imagem de si como integrante As mudanças introduzidas pela revolução
ritmos impostos
pela produção de uma totalidade, sua identidade sendo vivida industrial na produção de bens influenciaram
industrial e pela como a expressão de sua vinculação ao todo profundamente a sociedade e os indivíduos.
vida urbana social. Somente nas sociedades igualitárias, Segundo Laville & Dionne (1999), “(...) os
destroem ou
baseadas no individualismo como ideologia ritmos impostos pela produção industrial e
transformam os
modos de vida e hegemônica, seria possível para os sujeitos pela vida urbana destroem ou transformam
levam ao aperceberem-se e, mais do que isto, viverem sua os modos de vida e levam ao individualismo,
individualismo, natureza como sendo de indivíduos, isto é, seres assim como ao isolamento” (p. 53). Além
assim como ao
singulares, livres, autônomos, dotados de um disso, a distância entre a classe detentora dos
isolamento”
mundo interno próprio, morada de sua verdadeira meios de produção e o proletariado
identidade. (Bezerra Júnior , 1989, p. 223). aumentava cada vez mais. Aqueles que
poderiam tirar proveito dessas mudanças
Assim, o sujeito moderno se percebe como um “(...) gostariam de propiciar que a nova
ser singular, um ser que conquistou o direito de ordem se estabelecesse sem confrontos”
exercer sua individualidade de maneira sigilosa, (Laville & Dionne, 1999, pp. 5354). Surgem,
em segredo, de forma a resguardar-se da então, as ciências humanas, “(...) com o
exposição pública. Não é por acaso que os objetivo de compreender e intervir na ordem
fenômenos psicológicos, na Grécia antiga, eram social da mesma forma que as ciências
deuses (Phobos, naturais tentavam dominar a natureza”
Mnemosine, Eros, dentre outros). Esse fato indica (Laville & Dionne, 1999, pp. 53-54).
a que distância se estava da idéia de intimidade,
de algo que se dá no interior e pertence Portanto, o surgimento das ciências humanas,
secretamente ao sujeito. A dimensão da inclusive o da Psicologia, esteve ligado aos
interesses da nova detentora dos poderes
interioridade será introduzida no início da Idade
político, econômico e social: a burguesia.
Média, a partir da divulgação, pela Igreja Segundo Guerra (2002), “(...) a história da
Católica, das experiências do indivíduo como ser Psicologia nos evidencia uma tradição de
sexual. Dessa forma, teremos uma intimidade, trabalho associada ao controle, à
um segredo, que aponta um indivíduo voltado higienização e à diferenciação, que, desde os
para suas mazelas sexuais. O cristianismo primórdios de seu nascimento, associaram às
introduz a possibilidade de práticas sociais e políticas a manutenção do
status quo” (p. 29). A prática clínica era,
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portanto, descomprometida com o contexto
social, ou,
ao contrário, comprometida com apenas parte individualismo foi condição sine qua non para o
dele. surgimento da Psicologia como ciência, por outro, ele
tomará uma forma tal que denunciará a necessidade de
Tendo sido o surgimento das ciências humanas que essa mesma Psicologia reflita sobre seus efeitos, o
vinculado aos interesses da classe dominante e que mudará completamente a relação entre ambos.
estando a própria Psicologia aliada a práticas
higienistas, fica evidente que o público de sua Assim, seria possível dar conta de todo tipo de
intervenção era aquele que não se enquadrava no “mazela”, nesse modelo? No nosso entender, não se
projeto cartesiano do homem racional, e que pode tratar a psique da mesma maneira que se trata do
uma de suas tarefas era sustentar e manter o soma e tampouco manter a neutralidade científica diante
individualismo. Dessa maneira, a terapia da de um objeto que coincide com o observador. A clínica
alma se inspiraria no modelo da terapia do individual é fundamental, mas não podemos nos perder
corpo, isto é, no modelo médico, a fim de ser no individualismo. Não se pode esquecer que a ciência
reconhecida como ciência. Assim, a expressa e alimenta ideologias; assim, a idéia de clínica
psicoterapia se tornou um campo privilegiado da neoliberal alimenta o modelo individualista, por vezes
clínica psicológica: ela seria, até então, a perverso, que se esquece do homem para manter a
terapêutica mais adequada para tratar das lógica do capital. Acreditamos que existam outras
“mazelas humanas” em que outras tentativas intervenções psicológicas, de efeitos terapêuticos,
haviam falhado. Os “problemas psicológicos”, resultantes de uma escuta clínica. Como breve
uma vez que são imateriais, só se exemplo das limitações da clínica quanto ao
apresentariam através da fala, sobre a qual o segredo individual, queremos relatar um
psicólogo se “debruçaria” a fim de traçar uma episódio referente à prática de uma psicóloga em
linha de tratamento (diagnóstico, prescrição e um hospital público. A psicóloga, novata,
prognóstico). interroga a coordenação de psicologia do
hospital sobre a possibilidade de se oferecerem
Mas a relação entre a Psicologia e o
mais consultórios dentro do hospital para
individualismo é marcada por uma
estagiários atenderem os pacientes. A
ambigüidade: se, por um lado, o
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coordenadora pergunta por que não atender as pessoas Segundo Moreira (2004), é fácil
no leito, pois atender só aqueles que têm condições compreender a tentação
médicas de caminhar até o consultório seria excluir os individualista, pois o processo de
acamados. A psicóloga responde que não pode atender constituição da subjetividade só é
nas enfermarias, porque sempre existe um segredo a ser possível mediante o encontro
dito. No nosso entender, manter esse pressuposto é intersubjetivo; é o outro que
retirar, de alguns sujeitos, a possibilidade de possibilita ao eu o ingresso no
acolhimento, de escuta do sofrimento e até de uma nova mundo social. No entanto, o eu
posição subjetiva frente ao sofrimento. vive, primeiramente, um momento
de “não-eu”, de uma consciência
Dessa forma, o contexto social em si, sem auto-reflexão, para usar
passou a adentrar os consultórios a expressão de Lévinas
de forma a convocar os psicólogos (1983,1997), uma “consciência-
a saírem dele, ou seja, para nãointencional”. Em sua não-
responder às novas formas de intencionalidade, anterior a todo
subjetivação e de adoecimento querer e a qualquer falta, a
psíquico, o psicólogo deveria identidade da “consciência não-
compreender a realidade local. A intencional” encontra-se exposta,
Psicologia “tradicional” é entregue à exterioridade
“obrigada” a se redesenhar, absolutamente estranha e
tornando-se mais crítica e imprevisível.
engajada socialmente.
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Segundo Lévinas (1983, 1997), a consciência, projeto da Psicologia como compromisso
antes de significar um saber de si, é social anuncia a dimensão da consciência-
apagamento ou discrição da presença, sem para-si e para-o-outro, sendo que a condição
intenção, sem nome, sem situação, sem de ser para outro é anterior à consciência de
títulos, sem visada e sem a proteção da si.
máscara protetora do eu. No entanto, quando
essa consciência se torna intencional, quando A Psicologia, ou melhor, as psicologias,
alcança o estatuto de uma consciência-de-si, devem encontrar seu compromisso social,
pensa que esse é o ponto zero. A consciência pois o eu não se constitui sem o outro, ou
só reconhece como momento inaugural aquele seja, não há individualismo que se sustente na
em que ela possui racionalidade; portanto, é ausência do social. Se o paradigma moderno é
facilmente capturada pelo engodo de pensar o da consciência que propicia o
que o eu é anterior ao outro. Na modalidade individualismo, o paradigma contemporâneo é
voluntária da consciência intencional, sua o da linguagem que pressupõe o encontro
atividade é mortífera em relação à dimensão intersubjetivo. O “paradigma da linguagem”
do outro. No domínio da consciência, o outro apenas demarca o campo das teorias que
é visado para completar. O eu prefigurado concebem o sujeito originariamente como
pela consciência intencional conhece e “ser social”, “ser-nomundo”, “ser
representa, e, nesse processo, conhece a si comunicacional”, “ser-com”, enfim,
mesmo refletido na realidade objetiva que ele mergulhado no universo das interações
próprio constitui. Assim, a falácia simbólicas.
individualista é facilmente compreendida; o
eu, em sua arrogância, crê que é anterior ao As novas modalidades de
outro. De acordo como Moreira (2004), do
clínica para além da
ponto de vista lógico, o eu é anterior ao outro,
pois só pode haver a distinção de fronteiras
psicoterapia: clínica social e
quando os dois elementos têm claros, promoção da saúde
racionalmente delimitados, seus limites. Mas,
Desde o final do século passado e ainda no
do ponto de vista ontológico, o outro é
início deste século, presenciamos, no País, um
anterior ao eu. Todavia, a consciência-não-
aumento considerável das áreas de atuação da
intencional não possui instrumentos racionais
Psicologia, o que evidencia uma ampliação
para apreender esse momento de dependência
paulatina de seus locais de trabalho: o
do outro.
psicólogo torna-se presença cada vez mais
Moreira (2004) defende a tese de que esse constante nos sistemas de saúde pública, nos
ponto pode ser um fundamento, uma centros de reabilitação, nos asilos, nos
perspectiva para a Psicologia engajada no hospitais psiquiátricos e gerais, no sistema
compromisso social. A Psicologia não teria, judiciário, nas creches, nas penitenciárias, nas
como tarefa, fortalecer a arrogância do eu comunidades. Dessa maneira, surgem, para o
igual a eu, nos projetos de busca do profissional, outras oportunidades de trabalho
“verdadeiro eu”, mas desvelar, para o eu, sua que escapam a seus espaços usuais de
pertinência necessária e vital no campo do atuação, restritos até então aos consultórios,
outro, revelar sua condição estruturante de às escolas e às empresas.
“ser com”. O sujeito percorreria o trajeto de
uma consciência-em-si, que se desconhece, Todavia, cabe ressaltar que o psicólogo se
para uma consciência-para-si, que pode se depara, portanto, com o desafio de trilhar
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disseminação da especialidade do psicólogo diante das injunções de assujeitamento” (s/p).
para um número maior de pessoas e de classes Nessa perspectiva, operar mudanças é sempre
sociais mas também a produção de novos um fazer político.
recursos em sua formação e de novas formas de
exercício profissional, que apostem na Embora, em nosso entender, essa relação seja
construção de práticas ético-políticas. intrínseca, presenciamos ainda, na forma
dominante da prática clínica, o perpetuamento
Nesse sentido, concordamos com Figueiredo da cisão entre clínica e política. Realizando
(1996) quando ele afirma que a clínica uma reflexão acerca da relação entre o
psicológica se caracteriza não pelo local em que momento contemporâneo, o exercício da
“(...) mesmo
se realiza – o consultório –, mas pela clínica e a produção da subjetividade,
quando [as
qualidade da escuta e da acolhida que se Benevides de Barros & Passos (2004) insistem questões] surgem
oferece ao sujeito: a escuta e a acolhida do na articulação desse tripé com o viés político e no seio de uma
família, numa
excluído do discurso. Portanto, ser psicólogo com a necessidade de uma análise das formas
escola ou numa
clínico implica determinada postura diante do instituídas da clínica. Para tal, os autores relação amorosa,
outro. Nesse sentido, podemos fazer a seguinte examinam as formas de poder da atualidade, trata-se sempre do
quanto e de como
observação: que gerenciam a vida e moldam formas de
o desejo pode
existência, como nos propõem as análises produzir e se
Assim, não importa em que lugar ou espaço o ato foucaultianas, apontadas no início deste texto. expressar diante
das injunções de
clínico aconteça, seja no âmbito privado ou Em plena era da globalização, as subjetividades
assujeitamento”
público, numa relação diádica, grupal ou são geridas por controles parciais e instáveis,
coletiva. Este será sempre um fazer que se exercem em redes, que estão em todos (s/p)
psicológico que se pautará em concepções os lugares na ordem do dia, e que administram
teóricas e metodológicas que refletirão essa as formas de vida e seu cotidiano. Vale lembrar
postura diante do sofrimento ou fenômeno que esse poder é positivo, direcionado para o
psicológico que se coloca diante dele. Melhor consumo e para a serialização, e administra
dizendo, o ato clínico se pautará muito mais por maneiras de ser e de viver.
uma ética do que por referenciais teóricos
fechados. (Dutra, 2004, s/p). Frente a essa captura contemporânea da
subjetividade, a clínica aflora como
É claro que essa postura implica se haver com as possibilidade também de produção, e não
mudanças provocadas pela relação que ali se somente de reprodução; uma forma de
trava, relação essa que reflete/remete às outras resistência, conforme pontua Romagnoli
relações que seus elementos (terapeuta e (2006/no prelo). Nesse espaço, vamos nos
cliente) possuem fora do setting terapêutico, seja deparar com modos de produção, de
ele qual for. No espaço clínico, estamos em subjetivação e de construção, formas de se criar
contato com modos de subjetivação que a si mesmo e o mundo, que também incidem no
buscam, de alguma maneira, criar alternativas de espaço social. Nesse contexto, é necessário que
retificação. Isso significa que o fazer clínico é, os profissionais que atuam nessa área reflitam
também, um fazer político, uma vez que ele é acerca dos desdobramentos de suas práticas no
transformador. Segundo Gondar (2006), “(...) campo social. Nem que seja através dos
mesmo quando [as questões] surgem no seio de sintomas de seus clientes que adentram os
uma família, numa escola ou numa relação consultórios, mantidos e sustentados pelo
amorosa, trata-se sempre do quanto e de momento contemporâneo, o social se faz
como o desejo pode produzir e se expressar presente e se faz notar nas mudanças que
emergem nesse cenário, criando focos enunciativos Mediante essas idéias, acreditamos que o estado de
frente à padronização das subjetividades. potência da vida, inerente à
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mesmo parciais, nos conduzam a outras da prática psicológica também são prisioneiro
s
práticas clínicas e sociais. dessa forma de conceituação, e propõem ,
assim, uma polarização entre intervençã o
Por fim, gostaríamos de revelar que muitos clínica e intervenção psicossocial. Faz-s e
profissionais entendem a clínica psicológica necessário compreender que a escuta clínic a
como prática liberal que acontece apenas no é uma postura ética e política diante do sujeit
o
consultório particular, atrelada ao modelo humano. Não é o local que define a clínica,
e
individualizante. De outro lado, alguns sim, a posição do profissional e os objetivo
s
profissionais que defendem uma politização de libertação e potencialização dos sujeitos.
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Jacqueline de Oliveira Moreira
Doutora em Psicologi a clínica pela PUC/SP, Mestre em Filosofia pela UFMG,
professora do Mestrado da PUC/MG, psicóloga clínica
Rua Congonhas, 161 – São Pedro Belo Horizonte – MG. CEP – 30.330-100
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