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1176 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

O cuidado psicossocial no campo da saúde


mental infantojuvenil: desconstruindo
saberes e reinventando saúde
Psychosocial care in children’s mental health field: deconstructing
knowledge and reinventing health

Julie de Novaes Tavares1

DOI: 10.1590/0103-1104202012717

RESUMO O artigo propõe uma discussão sobre o cuidado psicossocial no campo da saúde mental infanto-
juvenil, no cenário brasileiro atual, sublinhando o tensionamento inerente às suas práticas e envolvendo
diversos atores e redes, buscando refletir sobre o sentido de cuidar e reinventar a saúde. Tendo como
referência o modelo de atenção psicossocial da Reforma Psiquiátrica Brasileira, busca-se articular o
conceito de saúde e doença no trabalho intersetorial, na construção do Projeto Terapêutico Singular.
Através da metodologia do estudo de caso, apresenta-se um caso clínico atendido em um Centro de
Atenção Psicossocial Infantojuvenil. A Reforma Psiquiátrica Brasileira engendra o modelo psicossocial
de cuidado rompendo com o modelo biomédico, modificando a maneira pela qual se concebe o sujeito no
processo saúde-doença. No campo da saúde mental infantojuvenil, marcada pela invisibilidade histórica
nas políticas públicas, há um tensionamento sobre a forma de conceber o cuidado nas diversas instituições,
marcado pelo exercício da tutela. O artigo enfatiza a perspectiva de reinvenção em saúde, a apropriação
pelo usuário do seu projeto terapêutico enquanto sujeito do próprio tratamento. O trabalho em rede e
intersetorial se apresenta como ferramenta potente de transformação de saberes e práticas cristalizadas,
em um movimento micropolítico, como proposto pela Reforma Psiquiátrica Brasileira.

PALAVRAS-CHAVE Assistência integral à saúde. Serviços de saúde mental. Colaboração intersetorial.


Direito à saúde.

ABSTRACT The article proposes a discussion on psychosocial care in the field of mental health for children
and adolescents, in the current Brazilian scenario, underlining the tension inherent in their practices and
involving the various actors and networks, seeking to reflect on the meaning of caring and reinventing health.
Taking the model of psychosocial care in the Brazilian Psychiatric Reform as reference, it seeks to articulate
the concept of health and disease in intersectoral work, in the construction of the Singular Therapeutic Project.
Through the case study methodology, it is presented an attended clinical case at a Psychosocial Care Center
for children and adolescents. The Brazilian Psychiatric Reform engenders the psychosocial model of care,
breaking with the biomedical model, modifying the way in which we conceive the subject in the health-disease
process. In the field of mental health for children and adolescents, marked by historical invisibility in public
policies, there are tensions over the way of conceiving care in the various institutions, a field marked by the
exercise of guardianship. The article emphasizes the perspective of reinvention in health, the appropriation
by the user of his therapeutic project as the subject of the treatment itself. Networking and intersectoral work
present itself as a powerful tool for transforming crystallized knowledge and practices, in a micropolitical
1 Universidade Federal do movement, as proposed by the Brazilian Psychiatric Reform.
Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil.
julietavares12@gmail.com KEYWORDS Comprehensive health care. Mental health services. Intersectoral collaboration. Right to health.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 44, N. 127, P. 1176-1188, OUT-DEZ 2020 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
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e

Introdução lidar com o sujeito com sofrimento mental,


considerando sua relação com o social e a
A Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) promoção de saúde nos diversos espaços da
definiu um novo paradigma sobre a loucura1, cidade2. Desta forma, o trabalho em rede e
que buscava, sobretudo, superar o olhar bio- intersetorial é o que permite uma atuação com
médico, que a compreendia como uma doença o sujeito em sua complexidade, operando no
a ser curada. Assim, o paradigma biomédico da real das suas relações, promovendo sua auto-
psiquiatria desconhecia a dimensão de sujeito nomia e cidadania¹. Além disto, pela atuação
do louco, reduzindo-o à condição de doente e intersetorial, no cerne das relações sociais, o
buscando incessantemente descobrir a causa real pode ser transformado, em um contínuo
da loucura como um disfuncionamento a ser trabalho micropolítico.
eliminado2. A RPB representou uma ruptura Desse modo, o presente artigo propõe
radical com relação a essa visão biomédica, co- uma discussão sobre o cuidado psicossocial
locando o acolhimento à integralidade da pessoa no campo da saúde mental infantojuvenil, os
na centralidade do trabalho em saúde mental3. desafios e embates com o Projeto Terapêutico
Há, historicamente, uma compreensão da Singular do usuário, e a rede de saúde mental
loucura enquanto uma alienação mental, de e intersetorial, refletindo sobre o sentido de
uma pessoa ‘sem razão’, impossibilitada de cuidar e reinventar saúde.
inscrição no social, na cidade e no mundo dos
direitos. “O doente é despojado de seus direitos
jurídicos, políticos e civis, tornando-se, dessa Metodologia
maneira, um não cidadão”4.
Pode-se perceber, então, que a luta pela Foi adotado, como metodologia deste trabalho,
RPB não é uma luta apenas das instituições o estudo de caso, considerado o mais adequado
de saúde. Tanto questões teóricas quanto po- para o objetivo proposto, tornando possível a
líticas, culturais e sociais estão no cerne da discussão sobre a singularidade que subjaz
discussão deste movimento, configurando-o a todo projeto terapêutico no paradigma da
como um processo social complexo, envol- RPB. Abordou-se, assim, a situação clínica
vendo diversos atores sociais e uma carga de em questão, que ocorreu durante o período
tensões e embates4. de Estágio Integrado em Saúde Mental, em
O movimento da Reforma Sanitária, ca- 2019, em um Centro de Atenção Psicossocial
minhando pari passu com a constituição do Infantojuvenil (Capsi) do Rio de Janeiro. A
Sistema Único de Saúde (SUS), implicou um escolha do citado caso se deu por sua situação
esforço radical sobre a maneira como a saúde emblemática, que permitiu a constatação do
pública operava no Brasil. Nesse sentido, uma cenário construído através das tecnologias
transformação importante foi a introdução em funcionamento no corpo da RPB, de onde
da discussão sobre os determinantes sociais surge uma nova visão sobre o processo de saú-
da saúde5. Através dessa noção, passou-se a de-doença, sobre a relação do usuário com o
considerar que a saúde é determinada pelas seu projeto terapêutico e o trabalho em rede.
condições de vida, com uma compreensão de
sujeito integral, considerando-o no interior A prática de um Centro de Atenção
das suas relações, do seu cotidiano e modo de Psicossocial Infantojuvenil
habitar a cidade. É sobre esta nova compre-
ensão de sujeito que o paradigma psicossocial Através da Doutrina de Proteção Integral
constrói o seu cuidado³. estabelecida pelo Estatuto da Criança e do
Essa nova compreensão dos processos de Adolescente (ECA), em 1990, crianças e ado-
saúde-doença introduz uma nova forma de lescentes deixam de ser objetos de intervenção

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e tornam-se sujeitos de direito, tendo o Estado estava fazendo seu tratamento. Ele demons-
a função de protegê-los e garantir seu bem- trou ser um jovem quieto, que desconfiava
-estar social6. Considerados como seres em da equipe, e demandou alguns atendimentos
desenvolvimento e tendo garantidos os seus individuais até se sentir mais confortável para
direitos, passam a ser tratados como sujeitos, compartilhar suas questões. O jovem, que em
detentores, portanto, de lugares autênticos 2017 havia passado por um franco surto psicó-
de fala7. Enquanto sujeitos, podem ser escu- tico na escola, se encontrava demasiadamente
tados e acolhidos na sua singularidade, com desorganizado e com delírios de perseguição,
suas demandas e sofrimentos legitimados, e, que tornavam difíceis para ele os movimen-
finalmente, compreendidos como sujeitos de tos de sair de casa, ir à escola, conversar ou
suas próprias histórias7. até mesmo olhar para outras pessoas. Sentia
Esse novo estatuto, no campo do cuidado medo de que todos ‘descobrissem’ quem ele
em saúde mental, propõe como norte ético o era; sentia-se invadido até mesmo dentro
olhar interdisciplinar, integral, e uma atuação de casa, quando ligava a televisão e via uma
intersetorial, voltada para a especificidade notícia, achando que os acontecimentos
desses sujeitos7. Deste modo, a compreensão mencionados pudessem ocorrer em sua re-
do cuidar é iluminada por um olhar psicos- sidência. Apresentava um estranhamento
social, e tal cuidado se apresenta com carac- com o mundo e com ele mesmo. Dizia saber
terísticas muito próprias e específicas, que o que havia algo errado consigo mesmo e, por
paradigma da RPB impõe. Nesta perspectiva, conta disso, passava horas no quarto escuro,
este artigo apresenta o caso de Lucas, acom- pensando no que fazer para sair daquela si-
panhado em um Capsi do Rio de Janeiro, em tuação. Apresentava embotamento afetivo e
2019, de modo a trazer uma reflexão sobre o humor deprimido.
cuidar psicossocial. Desde 2017, devido a uma reação adversa
O relato começa em 2019, quando Lucas, de Lucas ao antidepressivo, Amália optou por
acompanhado por sua mãe, Amália, e seu pai, cessar-lhe a administração de tal medicamen-
José, aos 17 anos de idade, retorna ao Centro to. No momento do seu retorno o jovem era
de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (Capsi), medicado somente com uma subdose de an-
no qual dera entrada dois anos antes. Amália tipsicótico. Era necessária uma nova avaliação
disse que seu filho precisava ser medicado e com um psiquiatra. Contudo, em decorrên-
receber acompanhamento de um médico psi- cia da ausência de psiquiatra, tanto no Capsi
quiatra. Em 2017, no momento da sua entrada, quanto na CF, foi necessária uma articulação
o Capsi acolheu o jovem e sua demanda foi com outra instituição para que Lucas pudesse
articulada na rede de cuidado do território. Seu dar continuidade ao seu tratamento, baseado
tratamento prosseguiria na Clínica da Família na sua última prescrição.
(CF), com o apoio do Núcleo de Atenção à Com a chegada de um novo psiquiatra na
Saúde da Família, e o Capsi atuaria como CF, Lucas retornou a esta instituição e passou
suporte. Contudo, no seu retorno em 2019, por uma nova avaliação, sendo diagnostica-
Amália informou que o jovem apresentou uma do com um quadro depressivo. Entretanto, a
reação adversa à medicação prescrita pela CF equipe do Capsi percebeu, através de atendi-
de referência, e que, por conta disso, procurou mentos familiares e individuais, que o caso de
outros locais de atendimento psiquiátrico na Lucas se tratava mais de um quadro psicótico.
rede. No novo local encontrado por Amália, Acreditava-se que a avaliação da CF tenha
o jovem pôde ser acompanhado por um psi- ocorrido mediante atendimentos familiares,
quiatra por dois anos consecutivos. nos quais, como observado pelo Capsi, apenas
Em 2019, Lucas retornou ao Capsi devido Amália relatava o que acontecia com Lucas,
às dificuldades encontradas no local em que enquanto ele mesmo se calava. Entretanto, em

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atendimentos individuais, os relatos de Lucas colegas de sala, e a importância de passar de


divergiam dos relatos da mãe, demonstrando série. Relatou estar tentando estudar, mas que,
seu sofrimento por outra ótica. Por conta disso, pela dificuldade com o conteúdo, gostaria de
foi sugerido à CF que Lucas fosse atendido in- ter uma explicadora e de se sentar à frente, na
dividualmente. Então, após novo atendimento, sala de aula. Contou sobre se sentir invadido
sua medicação foi alterada, com aumento do pelo olhar dos outros, em sala de aula, e que,
antipsicótico e do antidepressivo. por vezes, a permanência na instituição lhe
Mesmo com as doses aumentadas, Lucas causava demasiado mal. Então, juntamente
não começou o tratamento prontamente. Por com Lucas, foram criadas estratégias para
conta da reação adversa à medicação que ele ele estar em sala de aula, tais como abaixar a
apresentou em 2017, Amália sentia-se inse- cabeça quando os olhares lhe fossem insupor-
gura em medicá-lo com o antidepressivo. Foi táveis, e se ausentar da sala por algum tempo.
necessário um trabalho de conscientização Contudo, Lucas relatou as dificuldades junto à
para que ela se sentisse segura para dar a própria instituição para conseguir acordar as
medicação ao jovem. Então, após um tempo, saídas mais cedo, e como isso era um obstáculo
tendo sido acolhida em seus receios e am- para ele estar na escola. Foi perguntado a ele
parada pela rede de saúde mental, Amália sobre a possibilidade de suas questões serem
iniciou o tratamento de seu filho. levadas para uma conversa presencial com a
Após alguns meses de tratamento, notou- escola e sobre possíveis formas de mantê-lo
-se uma melhora no ritmo de produção dos no ambiente escolar. Lucas concordou.
pensamentos de Lucas, por conta do trabalho O Capsi, que possuía um contato prévio
terapêutico aliado à medicação. Ele se encon- com a escola, marcou uma reunião presen-
trava com mais desejo de sair de casa e ir à rua. cial para discutir a urgente situação de Lucas.
Nos atendimentos, conseguia olhar nos olhos Compareceram dois representantes da escola,
dos membros da equipe. Além disso, começou bem como dois representantes do Capsi. A
a despontar-lhe um desejo de retornar à escola. escola afirmou que Lucas não mais conseguiria
Em um determinado momento, em uma passar de ano através do Conselho de Classe,
consulta com Lucas e sua mãe, em meados caso precisasse, pois houve o entendimento
de julho de 2019, Amália surpreendentemen- de que sua ‘condição’ não o prejudicava cog-
te relatou que o jovem iria interromper os nitivamente. Por conta disso, o jovem seria
estudos no colégio que frequentava e reco- avaliado como todos os alunos, e, pelo fato
meçá-los em outra instituição somente no ano de sua base de conteúdos estar irregular em
seguinte. Lucas apenas abaixou a cabeça e relação à classe em que se encontrava, haveria
concordou com a mãe. Amália justificou que uma chance de ele repetir de série.
Lucas possuía uma defasagem de conheci- A possibilidade de repetir um aluno como
mento devida às faltas no corrente ano letivo, Lucas era cerne de receio para a escola, por
e também por sua aprovação via Conselho de não saberem como ele reagiria e temerem
Classe, nos últimos dois anos. Por conta disso, uma piora no seu quadro. Então, a solução
em uma decisão conjunta, a família e a escola discutida entre escola e família foi transferi-lo
decidiram que seria melhor para Lucas que ele para uma escola ‘mais fácil’. A representação
fosse para um colégio ‘mais fácil’. Solicitou-se, do Capsi perguntou qual a opinião de Lucas
no entanto, que tal decisão não fosse tomada sobre aquela situação, e a escola relatou que
naquele momento. não houve uma reunião que o incluísse, apenas
Em um atendimento individual seguinte, conversaram com Amália. Inclusive, sempre
Lucas foi questionado sobre o colégio. Ele, que chamavam Lucas para alguma conversa,
então, falou sobre seu desejo de prosseguir o jovem permanecia olhando para baixo e
na escola, sobre querer se formar com seus apresentava respostas curtas.

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Conforme acordado com Lucas, a escola sem que ele se sentisse interrogado, e que seu
foi informada sobre seus atendimentos no interlocutor soubesse sustentar o silêncio caso
Capsi, sobre o entendimento de que o jovem fosse necessário.
se sentia mais confortável nos atendimentos Lucas foi informado sobre a discussão com a
sem sua família, sobre o processo de criação escola. Ele agradeceu pela ‘coragem’ da equipe,
de vínculos e abertura para sua fala, e sobre de falar com a escola o que ele não conseguia.
seu desejo de começar a tomar a nova medica- Tanto a fala de Lucas quanto a posição que a
ção, por achar que ela o ajudaria a querer sair escola pôde tomar foram exemplos da dimen-
mais de casa e frequentar a escola. Foram re- são do cuidado no paradigma da atenção psi-
latados tanto o desejo de Lucas, de continuar cossocial. Lucas tinha desejos e dificuldades,
na instituição escolar, com a sua turma, como e, sozinho, não conseguia dizer o que queria.
os esforços e obstáculos que ele enfrentava A escola, por ver-se sozinha no cuidado, tinha
para permanecer na instituição. receio e desconhecimento, o que dificultava
A instituição não tinha conhecimento do sua aposta em Lucas. Amália, sua mãe, na
que se passava com Lucas, até aquele momento. mesma situação, sem encontrar um lugar de
Mesmo nas reuniões com Amália, os relatos tratamento para o filho, relatava seu medo de
de Lucas não eram sequer comentados. Não tomar decisões sozinha sobre a medicação.
se tinha ideia do tamanho dos obstáculos O trabalho clínico-institucional no cuidado
enfrentados. Assim foram, então, desenha- em saúde mental infantojuvenil é um trabalho
das, conjuntamente, estratégias e modos de ampliado, que inclui outros componentes da
cuidado para que Lucas pudesse completar rede, de natureza clínica ou não, e que atraves-
bem o seu ano letivo. sam a vida das crianças e dos adolescentes8. São
A partir da disponibilidade da instituição, como “linhas que costuram seu território”8. O
foram pensadas aulas de apoio e monitorias território não se confunde com o espaço físico,
para ajudar Lucas nos estudos. Por ele ter mas compreende um campo interinstitucional
perdido as provas do começo do ano, foi levan- e intersubjetivo, que atravessa a experiência
tada a possibilidade de ele realizar as provas do sujeito e constitui seu lugar psicossocial8.
seguintes normalmente, sem prejuízo pelas Com o trabalho intersetorial, redes de
que perdeu. A escola aceitou a possibilidade suporte podem ser construídas, não apenas
de mudar o jovem de lugar em sala de aula, e para os usuários, mas também para os pro-
demonstrou cuidado na elaboração de uma fissionais dos serviços. A ampliação da co-
justificativa para isso, procurando não expô-lo municação e das trocas produz parcerias e
mais do que o necessário, entendendo que o compartilhamento do trabalho, qualificando
ato de mudar o local de uma pessoa em sala o cuidado9. Segundo Matsukura e Tãno9(3):
de aula é um componente importante nas
relações sociais de tal espaço escolar. Além Compreende-se que a intersetorialidade se
disso, foi discutida a possibilidade de Lucas afirma em práticas contextualizadas, sendo
sair mais cedo quando fosse necessário, e a apoiada por diferentes atores sociais e relativa
possibilidade de haver uma pessoa no espaço a problemas reais e, portanto, somente por
escolar disponível como referência para Lucas meio destes pode ser empreendida. O conhe-
conversar quando se sentisse confortável. cimento e o saber articulados são produzidos
Discutiu-se também sobre como deveria ser em arenas dialógicas, entendidas enquanto
realizada a conversa com Lucas como uma espaços de diálogo e elaboração de alternati-
maneira de acolhimento de seu sofrimento. vas para as problemáticas elencadas a partir
Tanto o Capsi quanto a escola puderam re- dos diferentes sujeitos envolvidos, nos quais
collher que o diálogo com Lucas devia dar distintos interesses, perspectivas e valores são
a ele liberdade de falar sobre suas questões colocados em jogo.

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O compromisso das equipes de saúde diz da alegria de viver10. Considerando a potên-


respeito ao exercício da corresponsabiliza- cia dos afetos, pode-se perceber o momento
ção do cuidado. Esta corresponsabilização dá em que os desejos de Lucas são legitimados e
lugar a relações transversalizadas, que podem postos em primeiro plano. Foi a partir do seu
superar eventuais disputas de poder e ofe- desejo de permanecer no espaço escolar que
recem a possibilidade de produzir saberes, se abriu um horizonte para seu tratamento.
articulações e estratégias, pensadas pelos Então, seu desejo entra em consonância com
diversos atores9. o cuidado de si11, de um sujeito entrando em
Isso é o que se considera importante neste contato consigo mesmo, compondo uma vida
novo paradigma do cuidado: o ‘fazer com’. que lhe seja própria.
No momento em que a escola não se viu mais Quando se coloca o caso de Lucas, é in-
sozinha diante de uma situação grave, tendo teressante salientar os termos de uma ‘vida
parceiros para trocar experiências e ideias, mais apropriada’, uma vez que ele frequen-
ela pôde modificar a maneira como concebia temente se calava diante da figura materna
Lucas e seu sofrimento, assim, dando lugar e procurava resolver suas questões sozinho,
às dificuldades e singularidades do jovem, com dificuldades para verbalizar seu sofri-
acolhendo-o e apostando em seu desejo. Esta mento. Então, quando Lucas afirma o desejo
segurança da escola tem relação com o tra- de querer ficar na escola, indo contra uma
balho desempenhado pelo Capsi. A partir da decisão das instituições família e escola, e sus-
legitimação e do acolhimento das demandas tentando o ano letivo, ele compõe um retrato
da escola, da família, da CF e de Lucas, foi surpreendente do trabalho que pôde realizar.
possível mudar a maneira como esses atores Assim, percebeu-se uma melhora em Lucas,
sociais lidavam com o caso. O ‘fazer com’ é que passou a se mostrar mais sorridente, com
fundamental para o cuidado psicossocial, que, uma postura mais ereta, não mais evitando os
pelo trabalho em rede, faz compartilhar e qua- olhares, contando piadas e com vontade de
lificar o cuidado, corresponsabilizando cada sair de casa. Isso foi fruto de um trabalho, de
componente dessa rede. Através de uma aposta uma aposta e afirmação do desejo de Lucas e
no desejo de Lucas, pôde-se desenhar uma do cuidado de si.
rede de cuidados em que cada componente Este trabalho não se realizou sem tensões,
atuou conforme o possível, tendo a certeza pois o cenário da saúde mental infantojuvenil
de não estar sozinho. sempre foi historicamente invisível e ineficien-
te quanto à elaboração de políticas públicas12.
No entanto, a RPB acabou por cessar a histó-
O que se entende por ‘ter rica experiência do não lugar para tal clien-
saúde’ tela, e a trajetória de dispositivos voltados ao
atendimento em saúde mental infantojuvenil
O caso de Lucas ilustra a ética de uma clínica se tornou uma realidade no campo.
voltada para o sujeito, tal qual é o trabalho A primeira política pública destinada para
em um Capsi. Como diz Espinosa, a vida ética o cuidado em saúde mental de crianças e
só é possível no interior dos afetos. A partir adolescentes foi a Portaria nº 336/2002, que
do desejo, que “é a força que nos leva ao en- instituiu os Capsi, após séculos de ausência de
contro com algo que sentimos que compõe cuidados voltados para essa população. Antes
com a potência de nosso corpo e alma para disso, acumulavam-se práticas segregadoras,
se conservar”10, pode-se falar da busca da li- punitivas e tutelares, que visavam o que era
berdade e da felicidade. Considerando a ética considerado o ‘verdadeiro’ problema da juven-
e os afetos, o que está em jogo é a busca de tude: a pobreza12. Diante da falta de palavras,
uma liberdade que não pode ser dissociada crianças e adolescentes com sofrimento mental

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se viam ‘sem lugar’, altamente medicalizadas, compreende o controle das influências do orga-
sujeitas ao tratamento para suas condutas nismo, com uma prática intervencionista, como
consideradas inapropriadas13. Nestes casos, uma verdadeira obsessão com a ‘saúde perfeita’15.
desinstitucionalizar está para além de des- A biomedicina possui um caráter genera-
construir saberes e práticas psiquiátricas, uma lista, mecanicista e analítico. A perspectiva é
vez que esses saberes sequer foram aplicados o exame do corpo enquanto uma máquina, na
para essa clientela. busca de causas e consequências, dividindo-o
O caso de Lucas demonstra a possibilidade em especialidades, traduzindo-se em formas
de produção de um lugar e uma ética de tra- científicas de abordar o ‘problema’. Com o
balho com crianças e adolescentes. A partir corpo dividido, a busca por causas a partir do
da afirmação do desejo do sujeito, foi possível exame empírico, o positivismo da biomedicina,
pensar em maneiras de o jovem continuar na abre alas para o objetivo intervencionista da
escola. E isso apenas foi possível porque Lucas cura e a tradução objetiva do ser da doença15.
pôde verbalizar sua vontade de permanecer. No que tange a saúde mental, na interseção
Para ele ter dito isso, primeiro foi necessário com a biomedicina se encontra a psiquiatria.
que confiasse na equipe que o acompanhava, Empregada com a intenção de um postulado
indo contra os discursos tanto da instituição científico, procura produzir um saber positivo,
escolar quanto da instituição familiar. A possi- neutro e autônomo, e, pela experimentação,
bilidade de colocar em palavras seus desejos e chegar à verdade da doença¹. Contudo, o mito
ter seu discurso legitimado, levado em consi- da neutralidade apenas obstrui a produção
deração enquanto uma ferramenta potente no de uma verdade, da doença mental enquanto
tratamento, demonstra outra forma de olhar objeto construído pela psiquiatria. Suas exten-
para o sujeito e dar eco à sua voz. Dar lugar ao sas classificações funcionam como forma de
desejo de Lucas, incluindo-o no interior de um conhecer o problema sobre “fenômenos que,
projeto terapêutico, possibilitou a construção em última instância, lhe são absolutamente
de outros projetos possíveis, com ele e para ele. incompreensíveis e que, portanto, cumprem
Entretanto, não é possível dizer, de antemão, papel meramente ideológico”4, resultando na
o que será de seu futuro, ou de sua felicidade coisificação e consequente exclusão do ser
tão almejada. Isso será construído por ele, e considerado ‘doente’. Fica evidente a função
sua rede de apoio o acompanhará no processo. social da psiquiatria, de produtora de discur-
Entender o espaço escolar enquanto um sos, práticas e saberes16.
lugar de produção de saúde para o jovem passa, A RPB colocou esse modelo racionalista
sem dúvida, por uma concepção sobre o que em xeque. A dualidade proposta pela racio-
é a saúde, que, segundo Canguilhem14, não é nalidade médica – para a normalidade, a rua,
a ausência de doença, como compreende o e para a patologia, o muro – é continuamente
modelo biomédico. Ter saúde significa exerci- contestada. Não se trata de uma ciência da
tar uma capacidade normativa própria a cada doença, mas sim de aproximar o sujeito da
sujeito, de modo que ele possa ‘andar a vida’14. sua experiência global, que também inclui
Como dito, o paradigma biomédico define o seu sofrimento. Para isso, Basaglia propõe
a saúde como ausência de doença, buscando colocar a doença mental entre parênteses. Esta
causas e tratamentos no campo orgânico. Este operação pretende:
paradigma biomédico abre lugar para uma
racionalidade biomédica, que modificará a A negação, isto sim, da aceitação da elaboração
forma como se compreende e lida com o dife- teórica da psiquiatria em dar conta do fenôme-
rente, sendo central no saber e fazer médico a no da loucura e da experiência do sofrimento;
nova concepção de doença, tratando-se, assim, significa realizar uma operação prático-teórica
de uma ciência da doença. A biomedicina de afastar as incrustações, as superestruturas,

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produzidas tanto no interior da instituição ma- ou restabelecendo um estado de equilíbrio


nicomial, em decorrência da condição do estar estável. Ser sadio, então, diferentemente do
institucionalizado, quanto no mundo externo, ser normal, seria ser normativo. A doença é a
em consequência da rotulação social que é redução da margem de tolerância às infideli-
fortemente autorizada pelo saber psiquiátrico4. dades do meio, e ser infiel é o devir do meio.
Desta forma, o limite entre normal e patológico
Não se tr ata da negação do sofrimento, é impreciso, o estado de doença apenas pode
mas de uma ruptura com o modelo teórico ser julgado em relação à situação com a qual a
que coisificou e objetificou a experiência pessoa reage, e aos seus instrumentos de ação,
humana12, buscando aproximar-se do homem oferecidos pelo próprio meio14.
real, incluindo o seu sofrimento. Pode-se pensar se a possibilidade de construir
Dessa forma, ao considerar a saúde como uma novas formas e instrumentos para lidar com o
questão psicossocial, entende-se que ela não é a cotidiano não seria, finalmente, aquilo que se
ausência de doenças. A Organização Mundial da compreende como atenção psicossocial. Lucas
Saúde (OMS) define saúde enquanto bem-estar tinha desejo de continuar na escola e, com a
físico, social, afetivo, buscando sua determinação construção a partir do trabalho do Capsi no
social, não apenas física e mental1. É preciso levar seu meio, foi possível criar um ambiente mais
em consideração as condições de (re)existir, os propício para sua existência. Mesmo diante de
determinantes sociais de saúde. situações em que não se pôde intervir, como na
Canguilhem parte do entendimento de que apresentação de um trabalho em sala de aula,
ter saúde, ser saudável, é exercer a capacidade por exemplo, Lucas, no exercício de sua capa-
normativa pela qual, à semelhança do que se cidade normativa, pôde cumprir um requisito
passa no organismo, pode-se estabelecer novas considerado ‘normal’ para um aluno. O próprio
normas de vida diante de situações diversas14. desejo de Lucas, de permanecer na escola, pode
A linha entre saúde e doença é demasiada- ser entendido enquanto exercício dessa capaci-
mente tênue, e diferente entre os indivíduos. dade normativa, que existe a partir do sujeito.
Cada pessoa deve ser considerada a partir de Compreende-se, assim, o sujeito enquanto um
um ponto de referência, que é absolutamente sujeito de desejos, e não como um portador de
singular. Nesta perspectiva, ser saudável não doença, como o modelo biomédico o classificaria.
pode se definir a partir de uma média estatísti- Cabe uma ressalva sobre o que Canguilhem
ca ou a partir de uma norma supraindividual14. entenderia enquanto cura, e ao considerar
Desta forma, a doença se refere à incapacidade uma doença que o modelo biomédico con-
de produção de novas normas, correspondendo sidera ‘incurável’, como a de Lucas. A cura
a uma perda da capacidade normativa. Isto seria a tentativa do organismo de estabelecer
representa um abalo e uma ameaça à existên- uma nova ordem, procurando a conservação.
cia, uma vez que o indivíduo sem capacidade Pela obtenção de novas constantes, garantiria,
normativa apresentaria reações catastróficas assim, uma nova ordem, possibilitando a ele,
no meio que lhe é próprio14. na expressão do próprio autor, ‘andar a vida’14.
Pode-se perceber, assim, que a doença re- Modificar essas novas constantes é perigo-
presentaria uma nova dimensão da vida, e não so, pois poderia criar uma nova desordem.
uma variação da saúde. O estado denominado Desta forma, toda constante – por exemplo, um
anormal não é uma ausência de norma, pois o sintoma psicótico – é nociva e deve ser calada?
patológico seria justamente a dificuldade de Ou a tentativa de mudar a ordem estabelecida
encontrar uma nova norma capaz de resta- pelo sujeito, como o sintoma que o sustenta,
belecer um equilíbrio, que, no entanto, como não acarretaria um desmoronamento daquela
argumenta Canguilhem, diferentemente de existência psíquica? Neste caso, é preciso res-
uma máquina, busca funcionar estabelecendo peitar a busca de novas normas de cada um.

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A tensionalidade da construindo um cuidado cada vez mais qualifi-


intersetorialidade cado13. As instituições, integrando-se em uma
rede de corresponsabilização, podem intervir
Um aspecto fundamental do trabalho de um nos diversos aspectos da vida dos sujeitos,
Capsi é o trabalho intersetorial, considerado favorecendo sua inclusão e sua cidadania9.
imprescindível para uma ação ampliada de A intersetorialidade e o trabalho em rede
atenção, territorializada, cobrindo as comple- são as principais estratégias para um cuidado
xas questões do cuidado em saúde mental in- potente, uma vez que permitem lidar com
fantojuvenil12. No aparato das leis, este aspecto as questões complexas do cuidado em saúde
do cuidado é ressaltado. A Política Nacional mental13. Permitem, igualmente, a afirmação
de Promoção da Saúde é a primeira norma- dos sujeitos em práticas contextualizadas,
tiva a tratar sobre a intersetorialidade como operando, assim, no real. Somente podem ser
promotora de saúde e cidadania9. A Portaria empreendidas a partir das tensões, de atores
nº 3.088/2011, que institui a Rede de Atenção diferentes e de problemas reais, criando, assim,
Psicossocial (Raps), em seu artigo 2, sobre as espaços de diálogo, com elaboração de diferen-
diretrizes de funcionamento da rede, designa a tes alternativas. Os embates são positivos, como
formas de circulação dos saberes, demandando
organização dos serviços em rede de atenção à a configuração de novos olhares. Desta forma,
saúde regionalizada, com estabelecimento de o trabalho em rede e intersetorial configura-se
ações intersetoriais para garantir a integralidade como uma micropolítica, procurando a trans-
do cuidado17. formação de práticas hegemônicas cristalizadas
e a formação de novos discursos sobre a loucura,
O mesmo documento dispõe sobre a ar- visando à garantia dos direitos.
ticulação dos Caps e a sua “participação de
forma ativa na articulação intersetorial para O exercício intersetorial contribui também
promover a reinserção do usuário na comu- para o questionamento em relação aos enten-
nidade”17. A própria criação de Comissões dimentos sobre o sofrimento psíquico, que se
Intersetoriais, disposta na Lei nº 8.080/1990, fundamentam em uma linearidade biomédica
demonstra a importância da intersetorialidade oriunda dos diagnósticos nosológicos e clas-
para o cuidado integral em saúde5. sificatórios que condicionam a compreensão
Nesse contexto, o trabalho proposto pelos ‘técnica’ sobre os contextos de vida por meio
Caps tem como diretrizes a intersetorialidade, de checklists e protocolos9.
a integralidade da atenção, o cuidado em rede
e de base comunitária12. O cuidado psicossocial A RPB propõe a desinstitucionalização, apon-
foca no sujeito e no coletivo, na sua (re)inser- tando para o fim dos manicômios e a descons-
ção social, com a aposta na inclusão, cidadania trução dos saberes e das práticas do paradigma
e autonomia como formas de possibilitar a psiquiátrico, não como uma desospitalização ou
existência3. Fica evidente que o trabalho a ser desassistência4. Pelo fato de o modelo asilar não
desempenhado não se traduz em uma exces- se sustentar apenas com suas estruturas físicas,
siva medicalização, no controle de condutas é necessário colocar em xeque o manicômio
‘estranhas’ ou na manicomialização13. enquanto um dispositivo social, para, assim,
O (re)encontro com a cidade, como cuidado desconstruí-lo e fazer emergir novos discursos e
proposto pela RPB, ocasiona embates e saberes sobre a loucura, outro paradigma sobre
tensões16. A intersetorialidade se justifica por o sofrimento mental16.
uma forma de cuidado que, compreendendo A desinstitucionalização, desta forma, é um
o sujeito de forma integral, busca atuar em processo também de transformação social, de
seus diversos contextos e singularidades, reencontro da cidade com a loucura4. Este

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O cuidado psicossocial no campo da saúde mental infantojuvenil: desconstruindo saberes e reinventando saúd1185
e

processo conta com uma carga de tensionali- A assistência à clientela infantojuvenil colo-
dade, uma vez que os saberes e práticas asilares cava toda uma gama de aspectos considerados
estão cristalizados no social e nas formas de ‘problemáticos’ sob o discurso da deficiên-
se operar nas instituições, se configurando em cia13. No exemplo de Lucas, a escola relatou
relações de opressão e violência16. Um exemplo a impossibilidade de ele ser aprovado em um
disto é a manutenção do mito de periculosida- conselho especial, já que precisaria haver um
de do louco, que se iniciou na construção dos diagnóstico de problema cognitivo, descon-
Hospitais Gerais, no século XVII, permanece siderando, nesse sentido, o funcionamento
ainda hoje no imaginário social e é reproduzido psíquico do jovem.
nos discursos1. No caso estudado, a instituição escolar apre-
Conforme a discussão de caso apresentada, sentava uma dificuldade para lidar com Lucas.
o espaço escolar é um lugar potente para a Nas reuniões sobre seu caso, apenas sua mãe
constituição do jovem9, lugar de trocas sociais comparecia; nos momentos em que ele era
e construção de uma identidade durante o chamado para conversar, permanecia quieto.
adolescer. Contudo, a própria escola é uma Por conta do silêncio de Lucas, a instituição
instituição da violência, de reprodução de questionava seus professores e colegas sobre
relações de opressão e de poder, capturada seu comportamento, e buscava mais informa-
pelo discurso asilar16. Aspectos do estigma da ções. É importante ressaltar o aspecto negativo
loucura são encontrados neste espaço, como, disto para Lucas, que constantemente dizia que
por exemplo, a forma de lidar com o diferente as pessoas falavam sobre ele, que sabiam quem
como algo a ser consertado e normalizado. ele era ‘de verdade’, o que lhe representava um
sofrimento. Todos tinham medo de insistir nos
Em nome de tutelar e proteger, muitos desca- estudos de Lucas.
minhos são construídos, submetendo os jovens Esse modo de a escola lidar com a diferença
à mortificação de sua palavra, ao exercício que Lucas apresentava refere-se ao lugar de
cruel da institucionalização, ou à intervenção tutela em que ele era colocado, tanto por ser
adaptativa dos especialistas. Neste aspecto jovem quanto por ter um sofrimento mental
particular, equivalem-se crianças e os ‘loucos considerável. Historicamente, as políticas pú-
de toda ordem’: são considerados os seres da blicas para crianças e jovens os colocam no
desrazão, a requerer a sabedoria iluminada dos lugar objetal, sem considerá-los enquanto su-
tutores, sejam eles médicos ou juízes13. jeitos. Observa-se uma mudança neste aspecto
apenas com o advento do ECA, em 1990, e
Crianças e adolescentes, excluídos das com a instituição da Doutrina de Proteção
agendas de debates e políticas públicas de Integral12. Contudo, apenas implementar leis
saúde mental12, demonstram que o paradigma não ocasiona uma transformação no imaginá-
asilar ultrapassa os muros dos hospícios. A rio social e nas práticas.
loucura fica sob a égide do estigma da defici- Além do lugar de jovem, Lucas ocupa o lugar
ência, e há a necessidade de readaptar crianças de sujeito com um diagnóstico grave, do qual
para se transformarem em adultos produtivos, a escola estava ciente, tendo sido palco de seu
criando dispositivos mais pedagógicos do que primeiro surto. O aspecto da manicomialização
clínicos13. Somando-se a isto, encontra-se a do espaço escolar acaba por constranger o
psicologização ou psiquiatrização das de- sujeito e reduzi-lo ao seu diagnóstico, confe-
mandas advindas das escolas, com o objetivo rindo-lhe o lugar de pessoa a ser tutelada por
de alteração de condutas para permanência terceiros, sem capacidade de decisão por si
no espaço escolar. Desta forma, percebe-se própria16. Esta ausência de lugar configura-se
o consequente sequestro de cidadanias, pelo em uma forma de exclusão do sujeito. E esta
estatuto de indivíduos a ‘serem tutelados’16. representação em torno da loucura acarreta

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consequências danosas ao cotidiano dos su- Considerações finais


jeitos16. Desta forma, fica evidente que qual-
quer transformação que se pretende operar na A partir da RPB, observa-se uma mudança
saúde mental infantojuvenil necessita rever o na forma de atuar sobre a saúde mental,
exercício histórico da tutela13. com a negação da instituição manicomial e a
Considerando esses aspectos, o trabalho desconstrução dos saberes psiquiátricos. A
intersetorial é imprescindível para a atenção psiquiatria tem como alicerce o paradigma
psicossocial9. O diálogo com a escola se fez es- biomédico, funcionando como dispositivo
sencial para a discussão sobre uma maneira de social e promotor de capturas manicomiais.
trabalho com Lucas, entendendo o que aparecia Com a transformação operada pela RPB,
para a escola e o que chegava ao Capsi. Desta surge o paradigma psicossocial, modificando
forma, comportamentos que apareciam para a a forma de se conceber o sujeito em seu
escola, como falta de interesse e sono, podem sofrimento, entendendo-o enquanto ser in-
ser vistos como uma maneira de o jovem lidar tegral, dentro de um contexto que o afeta e o
com as invasões que sentia em sala de aula e subjetiva, reconhecendo-o enquanto sujeito,
ainda poder habitar tal espaço. A abundância de com uma dimensão subjetiva e desejante.
discursos da figura materna e ausência de dis- Esta transformação coloca em xeque o que
cursos de Lucas pôde tomar outro lugar, em uma se entende como saúde e doença. Saúde
tentativa de tornar o ambiente escolar acolhedor não é mais considerada como ausência de
e propício para que o jovem se sentisse ampa- doença, e sim como exercício da capacidade
rado e dissesse coisas sobre si mesmo. Assim, a normativa.
instituição escolar pôde conceber a diferença do Através deste estudo de caso, sustenta-se o
funcionamento psíquico de Lucas, dando lugar à lugar de sujeitos de crianças e adolescentes,
sua singularidade e construindo uma aposta no apostando no cuidado integral e psicossocial,
desejo do jovem, de forma responsável. e nas práticas em rede, que são preceitos da
A mudança na maneira de atuar da insti- RPB. O cuidar passa por assegurar ao sujeito a
tuição foi possibilitada pelo acolhimento das centralidade do seu projeto terapêutico, aco-
suas demandas e dificuldades por parte do lhendo e legitimando suas demandas e seu
Capsi, que, saindo do lugar de um suposto sofrimento. No relato exposto, a intervenção
saber, pôde dialogar com o outro, legitimar com os componentes da rede de Lucas e a sua
suas dificuldades e colocar suas demandas a necessidade de ser ouvido individualmente
trabalho, assim construindo ‘com’ a instituição. permitiram construções inventivas de cuidado.
O trabalho em rede somente pôde se efetivar a Além disso, foi a partir do acolhimento da
partir da corresponsabilização do cuidado9, na demanda e das dificuldades da escola que tais
qual os componentes não se viram sozinhos, construções puderam ser postas a trabalho.
mas tiveram a certeza de poderem dialogar e Apenas através da corresponsabilização do
compartilhar entre si. cuidado entre os componentes da rede está
A mudança de paradigma e a RPB são pro- sendo possível afirmar o lugar de Lucas no
cessos de transformação do lugar social da centro do projeto terapêutico.
loucura e de um novo modo de lidar com o É a partir do sujeito que os dispositivos vão
sofrimento mental que ainda estão em anda- atuar, com os seus contextos e o real de suas
mento. Resquícios mais ou menos gritantes e vidas. Entretanto, em contato com institui-
alarmantes sobre o modelo manicomial ainda ções distintas e, algumas vezes, capturadas
se encontram nas instituições. Desta forma, pelo discurso manicomial, o exercício da in-
o trabalho em rede e intersetorial é essencial tersetorialidade é tensionado. Esta tensão se
para a construção de um novo discurso sobre mostra benéfica ao permitir uma circulação
a loucura e um cuidado psicossocial integral. de saberes, possibilitando uma transformação

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O cuidado psicossocial no campo da saúde mental infantojuvenil: desconstruindo saberes e reinventando saúd1187
e

no social, em um movimento micropolítico. Colaboradora


Desta forma, o cuidado é qualificado com cada
instituição atuando na promoção de saúde do Tavares JN (0000-0003-0127-8306)* é res-
sujeito, da sua autonomia e cidadania. ponsável pela elaboração do manuscrito. s

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15(supl):177-201.
Suporte financeiro: não houve

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