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Ano 9 -N2 39 - 1990

COMU NICAÇÕES do !SER ISSN 0102-3055

Sumário
APRESENTAÇÃO 3
José Oscar Beozzo
Indícios de uma reação conservadora
Do Concílio Vaticano 11 à eleição de João Paulo 11 5
Ivo Lesbaupin
O Vaticano e a Igreja no Brasil 17
Jerzy Turowicz
João Paulo 11 e a unidade da Europa 33
Pedro A Ribeiro de Oliveira
A Europa, o papa e o profeta Isaías 39
Luiz Alberto Gómez de Souza
Encontros e desencontros dos cristãos latino-americanos 43
Rubem César Fernandes
1989: a rejeição da violência 52
Otto Maduro
A desmitificação do marxismo na Teologia da Libertação 55
Cecília Loreto Mariz & Lemuel Dourado Guerra Sobrinho
Algumas reflexões sobre a reação conservadora na Igreja Católica 73
LEITURA
O silêncio de Leonardo Boff 79
Cecília Loreto Mariz
INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS
Conjuntura atual da Igreja 84
Faustino Teixeira
Comunicações do ISER

Comlsslo Editorial: Rubem César Fernandes (coordenador)


Pedro A. Ribeiro de Oliveira
Waldo Cesar
Pedro Celso Uchôa Cavalcanti
Caetana Damasceno
Mauricio Lissovsky
Editor: Jesus Lemos
Secretárfo de Redaçlo: Flávio Lenz
Revido: Oscar Guilherme, Mareio Cavalcanti Gomes e Mareio Alexandre M. Gualberto
Programaçlo visual: Cecilia Leal de Oliveira
Arte-Final: Conexão- Computação Gráfica
Composição: Flávia Lanari I Conexão - Computação Gráfica
DlstrlbulçAo e assinaturas: Daniel Evangelista de Souza (ISER)

Redaçao:
Ladeira da Glória, 98
CEP 22211 Rio de Janeiro RJ Brasil
Telefone (021) 265-5747
APRESENTAÇAO
-

Este número de ComunlcaçOes do ISER cronologia dos principais acontecimentos


é resultado de um seminário realizado em deste papado. Em seguida, detém-se
junho de 1990 sobre O Pontificado de Joio nas intervenções do Vaticano no Brasil,
Paulo 11 e a Igreja Católica no BraSil. Ele foi que foram crescendo nos últimos anos,
organizado pela Equipe de Assessoria do e finalmente procura caracterizar o atual
ISER e reuniu especialistas de vârias âreas: processo de restauraçAo na Igreja.
historiadores, sociólogos, antropólogos,
teólogos. Alguns dos artigos aqui presentes Os artigos de Jerzy Turowicz - Joio Paulo 11
reproduzem exposições feitas no decorrer do e a unidade da Europa - publicado no
seminârio. Os demais foram incluídos por Tygodnik Powszechny, de Cracóvia,
sua relação com a temâtica em questao. e de Pedro Ribeiro de Oliveira - A Europa,
o papa e o profeta lsalas - polemizam em
O sociólogo e teólogo José Oscar Beouo torno da figura do papa Joao Paulo 11.
analisa Os lndlclos de uma reaçlo
conservadora, descobrindo as raízes da Luiz Alberto Gómez de Souza discute os
situação atual da Igreja jâ no Concílio Encontros e desencontros dos crlstaos
Vaticano 11 (1962-1965). A minoria latino-americanos. Depois de chamar a
conservadora conseguiu introduzir nos atenção para alguns aspectos da ação dos
documentos conciliares afirmações cristaos na Europa no século passado, traça
tradicionais que reduzem o impacto das um quadro histórico dos cristaos na América
posições inovadoras. Este mesmo setor Latina, detendo-se especialmente nos
continuou ativo após o Concílio e foi últimos 30 anos. A partir daí levanta os novos
alargando o caminho até chegar onde desafios que se apresentam neste final de
estamos hoje. século.

Ivo Lesbaupin, em O Vaticano e a Igreja no Em 1989: a rejelçlo da violência, Rubem


Brasil, analisa os doze anos de pontificado César Fernandes enfatiza o carâter nao
de Joao Paulo 11, começando com uma violento das transformações no Leste

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Europeu e contrasta este dado com o caráter religião racionalizada versus uma religião
violento das transiçOes revolucionárias mágica e mística. Em seguida, Cecília
anteriores. Mariz resenha o livro de Harvey Lox,
The Sllenclng of Leonardo Boff;
Otto Maduro analisa A desmlstlflcaçlo do the Vatlcan and the future of World
marxismo na Teologia da Ubertaçlo. Chrlstlanlty (0 sllenclamento de Leonardo
Segundo ele, apesar das influências do Boff; o Vaticano e o futuro do cristianismo
marxismo, ·esta forma de teologia contém mundial), publicado em 1988.
um processo subjacente, em constante
crescimento, de crítica e rejeição a aspectos O número concluiu com uma bibliografia
do marxismo que, em geral, sao inédita organizada por Faustino Teixeira,
considerados fundamentais pela maioria sobre a Conjuntura atual da Igreja.
dos textos, líderes e partidos marxistas
da América Latina·. Destacamos que a publicação deste número
foi possível graças ao financiamento da
Cecília Loreto Mariz e Lemuel Dourado, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
partindo do caso da Arquidiocese de Olinda do Rio de Janeiro (Faperj). Agradecemos
e Recife, tecem Algumas reflexOes sobre igualmente à contribuição da organização
a reaçao conservadora na Igreja Católica. nao-governamental belga lnterchanges.
Os autores chamam a atenção para llila
dimensao do conflito entre progressistas e Ivo Lesbaupin
conservadores, que é a oposição entre lJ1la Equipe de Assessoria

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Indícios de uma reação conservadora
Do Concílio Vaticano II à eleição de João Paulo ll

JOSÉ OSCAR BEOZZO


Sociólogo e teólogo - CESEP

As raízes do que nós podemos chamar de coisa muito nebulosa, implicava


uma rea~o conservadora na Igreja Católica necessariamente uma revisão do concílio
estão plantadas dentro do próprio Concílio tridentino. Por isso foi captado logo em seu
Vaticano IL Deste modo, inicialmente, anúncio que o concílio constituía o fim de
analisarei estes indícios conservadores uma época e o começo de outra na Igreja,
dentro do próprio concílio e, depois, no pelo simples fato de ser convocado sem ao
período de Paulo VI, terminando com uma menos se saber muito bem qual seria seu
breve palavra sobre o Brasil e a América conteúdo.
Latina.
Estou participando junto com um amplo
O concílio suscitou, logo de início, com o grupo internacional de um estudo sobre os
anúncio de João XXIII, uma grande votos preparatórios ao concílio. Realmente, é
esperança e,logo depois, já houve gente a coisa mais decepcionante para quem
dizendo que era o fim da época tridentina e conheceu o concílio depois. O que se pede
do Vaticano I, pelo simples fato de se chamar são coisas minúsculas, de reajuste da
de volta um concílio. Depois da infalibilidade disciplina interna da Igreja, raramente algum
pontifícia, muita gente dizia dentro da Igreja bispo escreveu traçando um grande
que não havia mais lugar para concílios, pois horizonte, uma coisa nova. Penso que a
agora o papa podia resolver tudo sozinho. preparação conciliar foi decepcionante em
Além disso, ao colocar o horizonte dois eixos: um, na consulta, e outro, no
ecumênico desde o anúncio, João XXIII material preparado pelas comissões
praticamente punha fim à Contra-Reforma, pré-conciliares - o controle da preparação foi
que tinha sido absolutamente antiecumênica. estritamente romano. Os 72 esquemas
Então, o fato de a Igreja voltar a se reunir em preparatórios do concílio foram feitos pelos
concílio, não concentrando tudo no papa, peritos e teólogos dos dicastérios e
marcava, de um lado, o fim do Vaticano I; e universidades romanas, dentro da ótica da
de outro, ao falar de ecumenismo no teologia romana e sob o controle da Cúria
anúncio, ainda que fosse no momento uma Romana. Então sentimos que um grande

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acontecimento como o concílio provocou impasse: foram mais de 1.200 votos contra
internamente muita resistência, e sua 800 e eram precisos 100 votos a mais para
preparação foi toda no sentido de reconfirmar se ter os 213 que permitiriam rejeitar um
Pio XII, as condenações anteriores, esquema. Nesse momento, foi decisiva a
mantendo-o sob a hegemonia romana, intervenção de João XXIII dentro do concílio,
dentro das comissões - sobretudo da dizendo que o esquema rejeitado por 1.200
Comissao Teológica, que dava a última padres teria que ser refeito.
palavra em cada esquema.
E isso pesou muito no andamento do
Isso foi rompido em três momentos concílio. Quer dizer, houve um apoio direto
fundamentais: no primeiro dia do concílio, de João XXIII à constituição de uma maioria
quando a Assembléia não aceitou a lista de dentro do concílio. A minoria - que sempre se
novos membros das comissões proposta sentira como a ortodoxia da Igreja, como
pelo secretariado do concílio e propôs que os bastião da defesa das verdades na Igreja,
bispos discutissem a constituição das das prerrogativas do papa, da teologia
comissões. Então se interrompeu o concílio romana - ficou sem ponto de apoio ao
nos seus primeiros dez minutos, por três perder, pela intervenção de João XXIII, essa
dias, para que o episcopado mundial legitimação do papa para as posições
tomasse em mãos a direção da Assembléia e tradicionalistas dentro da Igreja. Acho que a
do concílio. Este foi um momento rejeição do esquema e a tomada de posição
fundamental. Um segundo momento foi de João XXIII praticamente abriram as
quando se rejeitou, em 20 de novembro, o comportas para que o rio do concílio fluísse
chamado esquema sobre as "duas fontes da na direção nova.
revelação", por ser antiecumênico. Depois,
todos os esquemas preparados pela Cúria Outro pequeno acontecimento está
caíram. Nenhum dos 72 esquemas foi aceito relacionado a essa elaboração de um novo
como base para discussao, com exceção do esquema dentro do concílio. A responsável
que tratava da Liturgia. por isso até então era a toda-poderosa
Comissao Teológica, presidida pelo cardeal
Houve uma primeira virada em que a Otaviani e tendo como secretário-geral o
Assembléia assumiu o controle dos padre Tromp, SJ, de mais de 80 anos e que
procedimentos das eleições (vai ser sempre havia sido teólogo de Pio XII, tinha escrito
um processo penoso, negociado) -o concílio vários documentos e era praticamente o
passou das mãos da Cúria para as da homem da Cúria Romana, o teólogo oficial.
própria Assembléia conciliar; e, depois, Como fazer um novo esquema, com uma
assumiu o controle dos conteúdos, com a comissao que era contrária a essa mudança?
decisao de não aceitar o esquema A solução foi a constituição de uma comissao
pré-montado. Só que a decisao não alcançou mista, com membros do Secretariado pela
maioria qualificada de dois terços da União dos Cristãos, presidido pelo cardeal
Assembléia e o terceiro momento brotou do Bea, e da Comissao Teológica, que

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apresentavam posições opostas. Falo dessa dois eixos, o da Igreja ad intra e o da Igreja
comissão mista para podermos compreender ad extra. Dever-se-ia retomar todas as
depois o esquema da reaçao conservadora. questões ligadas à Igreja, mas a grande
pois, neste momento, a constituiçao dessa novidade é que a Igreja deveria se definir
comissão foi fundamental para que o concílio frente ao mundo. Este eixo da Igreja ad extra
pudesse introduzir no fechado bloco da vai ser a origem do esquema 17, depois do
Comissão Teológica a novidade. A comissão esquema 13, que resultou na Gaudium et
mista foi fundamental na preparaçao do novo Spes.
esquema, que seria depois a Constituiçao
sobre a Revelaçao Divina. A terceira intervenção, talvez a mais
profética, que não foi recolhida como
A reaçao conservadora vai se articular inspiraçao no concílio, é a do cardeal
melhor num segundo momento do concílio, Lercaro. Ele retoma um discurso de João
quando Paulo VI assume. O cardeal Montini XXIII, pronunciado um mês antes dg concílio,
(que mais tarde viria a ser o sucessor de anunciando a data de abertura e onde dizia
João XXIII), juntamente com os cardeais que o fundamental tinha que ser a Igreja nos
Suenens e Lercaro foram os homens que, ao países da periferia, uma Igreja dos pobres e
fim da primeira sessão, propuseram um para os pobres. Lercaro retoma a questão da
esquema geral para o concílio. Paulo VI era pobreza, dizendo ser este o tema-chave. Na
um homem do concílio, no sentido em que verdade, o tema dos pobres e da pobreza
fez parte do grupo que sentia que João XXIII permaneceu marginal. Finalmente, é o
propusera uma convocaçao de toda a Igreja, esquema de Montini e de Suenens que vai
mas não tinha apresentado diretamente um traçar os rumos do concílio.
roteiro de encaminhamento do próprio
concílio. Ele propôs a inspiraçao que
transparece sobretudo no discurso de
abertura. Essa é uma peça à qual a Igreja A eleiçao de Paulo VI significou a escolha de
deve voltar continuamente. Nela João XXIII alguém profundamente comprometido com a
condena os profetas da desgraça, que só tarefa conciliar. Ele diz que o programa do
vêem erros por toda parte e pedem punições. seu pontificado é o concílio. Só que neste
Esse discurso é programático, mas não momento muda um pouco a ênfase: a grande
significa que indique como este programa se ênfase de João XXIII era que acontecesse o
raduziria nos trabalhos do concílio. Isso foi concílio como diálogo, como abertura, que
1ma grande preocupaçao no fim da primeira fosse pastoral, que não houvesse
sessão. Nós temos três intervenções-chaves, condenações. Eu tenho a impressão de que
nos dias 2 e 3 de dezembro de 1962: uma do a preocupaçao central de Paulo VI foi
cardeal Montini falando que o grande eixo do continuar o concílio, mas alcançando sempre
concílio era a questão da Igreja, com várias que possível, em todos os documentos, a
propostas internas; a segunda, do cardeal unanimidade dos padres conciliares.
Suenens, dizendo que o Concílio deveria ter Trabalhar um documento até a exaustão, até

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que a formulação pudesse alcançar não na Igreja. Então, Paulo VI faz introduzir na
apenas uma maioria, mas uma unanimidade. Lumen Gentium uma nota explicativa sobre a
O problema é o preço dessa unanimidade. colegialidade que realmente a esvazia
Outra questão é que o concílio, mais do que bastante. A nota era para que se aceitasse a
uma ruptura, deveria enfatizar a continuidade colegialidade, mas reafinnava a função
com a tradição anterior. Essas duas petrina na tradição da Igreja, o que acabou
preocupações estavam presentes e, em coonestando a concentração histórica do
certos momentos, causaram impasses. poder em Roma a partir dos séculos XI e XII,
sobretudo com o Vaticano I. Essa nota
Vou dar dois exemplos de como essa nova desequilibra o texto, porque ela é uma
postura fez com que a minoria conciliar não espécie de interpretação introduzida de fora.
se sentisse excluída (o que é muito Sua função era conseguir que a minoria
importante dentro do concílio), mas que conciliar, apoiando-se mais na nota do que
ganhasse um peso que provavelmente não no texto, o aprovasse. Esta é uma
teria depois de conformada a maioria intervenção no sentido contrário àquela de
conciliar. Um primeiro exemplo é na questão João XXIII.
da colegialidade. Essa questão criou um
verdadeiro impasse, no sentido de como O segundo exemplo é o esquema sobre a
conciliar a definição do Vaticano I, não só Liberdade Religiosa, que talvez tenha sido o
sobre a infalibilidade pontifícia, mas sobre o esquema mais laborioso, pois sofreu
tipo de poder do papa na Igreja. Ao propor dezenas de correções e reelaborações.
uma jurisdição não apenas "extraordinária", Estava para ser votado na 3i sessão do
mas ordinária sobre cada uma das Igrejas, concílio. O episcopado norte-americano era
isto esvaziava profundamente o poder e a majoritariamente a favor da liberdade
função real do restante do episcopado. A religiosa, mas o episcopado espanhol e
questão, para muitos bispos, era como muitos do italiano tinham posições duras e
conciliar essa posição do Vaticano I com a achavam que a Igreja quebraria a tradição
definição da colegialidade de modo que não anterior, dando direito ao erro (ela que
significasse uma diminuição da autoridade sempre disse que o erro não tinha direitos).
papal. De outro lado, muitos bispos insistiam Como ficavam também todas aquelas
em que o Colégio Episcopal sucede ao situações onde o Estado dava privilégios à fé
Colégio Apostólico e a Igreja é colegial, católica - como no caso da Espanha, que
embora dentro do colégio haja alguém com consagra em uma concordata que a
uma função primacial. Um grupo insistia na liberdade religiosa é uma área onde não
colegialidade e o outro a aceitava, mas pode haver nenhuma coerção. Ne-sses casos
reafirmando que o papa, inclusive sem o o Estado não tem função nenhuma? Então
colégio, tem todos os poderes e direitos e isso rompia com toda uma tradição da
nenhuma limitação. Ora, um grupo grande cristandade, a tradição que fundou também a
não queria aceitar a colegial idade porque Inquisição, o Santo Ofício, e há um manejo
achava que isso destruiria a função petrina diplomático da Santa Sé para garantir, via

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Estado, uma série de privilégios à Igreja, o chegou a uma compreensão às vezes
que nao se coadunava com a liberdade melhor, outras vezes ao meio-termo das
religiosa. opiniões; em certas ocasiões, quando o
impasse era real, a solução foi a de justapor
Na véspera do dia marcado para as as duas posições. Há vários textos no
votações, a minoria continuava gritando que concílio onde temos primeiro a afirmação da
o texto era inaceitável. Na manhã seguinte, a maioria conciliar e imediatamente uma frase
votação foi suspensa por ordem de Paulo VI que diz exatamente o contrário e é
após uma consulta interna ao órgao jurídico expressão doutrinal da minoria. Entao, em
do concílio, que julgou haver número muitos lugares do concílio, a gente tem nao
suficiente para se conceder o direito à apenas uma solução de compromisso, mas a
minoria para uma releitura do texto. Com isso justaposição de duas concepções
a votação foi suspensa e mandada para a 4i heterogéneas.
sessão, criando um desconserto total.
Constituiu-se uma pequena comissão de Com isso temos alguns dos germes da
revisão do texto, onde, de um lado, tínhamos reação conservadora - os textos consignados
os cardeais Bea e De Smedt, da Bélgica, e, dentro do concílio, que são textos autênticos
de outro, Lefêbvre e o cardeal Brau, com e que vao permitir duas interpretações
posições completamente opostas. Na apoiadas nos textos conciliares: uma leitura a
primeira intervenção de Joao XXIII houve partir da maioria, na qual Paulo VI
uma brecha na maioria conservadora da empenhou-se, e uma outra que, por
comissão para que passasse o novo, agora exemplo, Joao Paulo 11 e Ratzinger fazem
tinha-se praticamente um bloqueio, com essa neste momento, a partir das ênfases e
comissão mista, para que se garantissem os posições da minoria conciliar.
direitos da minoria conservadora na
elaboração deste esquema. Houve duas intervenções de Paulo VI que
criaram impasses posteriores na vida da
Dei dois exemplos para vermos como este Igreja. Foram intervenções no sentido de
mecanismo da busca da unanimidade fez retirar do concílio a discussão de
com que houvesse um retrocesso, durante determinados temas polêmicos: o
as 3i e 4i sessões do concílio, nas planejamento familiar (que vai originar depois
formulações das questões mais agudas. Daí a Humanae Vitae) e o celibato sacerdotal
para a frente, todos os textos são de (que vai ensejar a encíclica S9cerdotalis
compromisso. Compromisso com o interior Celibatis) . Mais importante do que o
da maioria conciliar, que também era muito conteúdo é o próprio procedimento. Ao nao
diversificada. Entao trabalhou-se confiar em que a Assembléia Conciliar,
exaustivamente a formulação até obter-se constituída por todos os bispos, fosse a boa
um compromisso interno. Muitas vezes, se instância para a discussão, esta era
atingiu este compromisso burilado e transferida para os órgãos da Cúria Romana.
aprofundado pelo embate de idéias e. se Transferiu-se a discussão de uma instância,

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que gozava naquele momento da máxima assumisse essa posição estaria provocando
legitimidade na Igreja, para outra que estava uma ruptura na Igreja, de continuidade na
sendo vivamente questionada nos seus doutrina, desautorizando a Casti Conubii de
métodos e orientações: a Cúria Romana. De Pio XI, e isso teria efeitos desastrosos sobre
certo modo, não se confiou no concílio ou a autoridade papal e sobre a questão da
acreditou-se que ele decidiria em direção ética dentro da Igreja. Nós teremos assim
oposta àquela que certos meios romanos uma coisa muito híbrida na Humanae Vitae.
achavam ser a mais prudente. Ela afirma as posições da maioria no seu
preâmbulo e na orientação de fundo, que é a
O problema da continuidade doutrinal ética da pessoa e da prioridade do amor
aparece mais forte na questão do como o eixo dentro do qual se deve trabalhar
planejamento familiar. O papa João XXIII em a ética matrimonial. Na segunda parte,
1963, meses antes de sua morte, havia porém, reafirma a doutrina tradicional, numa
convocado uma comissão internacional, com ética não da pessoa mas da natureza, não
casais, moralistas, teólogos, para começar a do amor mas da lei natural quase identificada
tratar o tema da limitação da natalidade, do com os ritmos biológicos, aí vistos como
planejamento familiar e da posição da Igreja intocáveis, numa ética baseada na prioridade
na questão da ética, da sexualidade e da da procriação, não como um projeto dentro
Iam ília. Paulo VI retira do concílio a do matrimónio, mas como um processo onde
discussão, amplia esta comissão que vai cada ato deveria estar orientado à
trabalhando ao longo de cinco anos. Ainda procriação. Ao se afirmar que não se pode ir
que aumentasse o número de pessoas, contra a natureza, fecham -se as portas ao
foi-se chegando a um consenso. Mais de uso de qualquer método artificial de controle
90% desta comissão aconselhou ao papa de natalidade. Há aí uma profunda
que a Igreja não só aceitasse o planejamento contradição, pois a teoria é a da maioria e o
familiar, mas consagrasse o deslocamento agir prático é o da minoria. Eu acho que essa
do eixo profundo da questão matrimonial: decisão fez a semente conservadora
dos fins do matrimónio como procriação e desenvolver-se após o concílio.
remédio à concupiscência (como dizia Santo
Agostinho) para o eixo do amor, e um Uma instituição fundamental que foi pedida
deslocamento do eixo da natureza para o da para depois do concílio é que este não
pessoa. A ética deriva não da natureza, mas terminasse e que houvesse alguma maneira
da pessoa e da liberdade. Esses eram os de perpetuar uma expressão da
dois deslocamentos fundamentais que colegialidade episcopal no exercício do
permitiam o uso dos contraceptivos, sem governo central da Igreja. Paulo VI tomou
criar um problema de conflito ético. A duas iniciativas neste sentido: uma foi a
comissão se define por essa posição. Houve internacionalização da Cúria Romana. Ele
um grupo que ficou em minoria absoluta sentia que era impossível aluar no concílio
(Ford e Kelly, dos Estados Unidos) e com a Cúria, que estava ressentida porque
procurou Paulo VI, dizendo-lhe que se havia perdido posições, deslocado

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atribuições das Igrejas locais para as atento os dois documentos em que se acham
conferências episcopais; havia um forte contidos os votos expressos pela Segunda
ressentimento daqueles órgãos que sempre Assembléia-Geral do Sínodo dos Bispos
mandaram - era impossível manter o espírito sobre os temas O Sacerdócio Ministerial e A
do concílio e um Santo Ofício. Havia uma Justiça no Mundo, que haviam sido
série de contradições nos órgãos centrais da sujeitados ao estudo da mesma Assembléia.
Igreja que teriam que ser eliminadas. Fez-se Conforme já foi anunciado no discurso por
isto com a reforma da Cúria e sua ele proferido no final do sínodo, o Santo
internacionalização, mas também com a Padre dispôs que os mencionados
extinção do Santo Ofício, convertido em documentos sejam tornados públicos" - tal
Congregação para a Doutrina da Fé. Foi qual os bispos redigiram, mas já com uma
pedido que a nova Congregação tivesse um série de restrições -, dizendo que ·o papa
outro espírito - depois nós vimos que nada reservava-se a examinar, em seguida, com a
disso aconteceu. maior atenção se e quais propostas·contidas
nos votos da Assembléia Sinodal convirá
A segunda iniciativa foi o sínodo, que seria a serem ratificadas em linhas diretivas ou
forma de se manter uma presença do normas práticas·. Aí fica-se em um
restante do episcopado no governo central meio-termo. O que os bispos fazem , tal qual ,
da Igreja. Sobreveio então o grande debate vai para a opinião pública, com coisas muito
sobre qual seria o caráter do sínodo : os que contraditórias, as várias posições, críticas
pensavam no sínodo como uma expressão internas muito duras, e o papa se reserva
da autoridade do conjunto do colégio sobre o dizer o que ele vai pôr em funcionamento. No
conjunto da Igreja queriam um sínodo sínodo de 1974, sobre a Evangelização no
deliberante, junto com o papa, mas Mundo, houve uma divisão profunda na
deliberante como o concílio; outros preferiam Assembléia. Os países da Europa e os
um sínodo expressão da colegialidade, mas Estados Unidos achavam que a questão
como órgão de apoio e consulta à única central para a evangelização era a
autoridade que é a do papa. Essa segunda secularização ; os países do Leste Europeu, a
posição acabou prevalecendo. Acho que questão do ateísmo militante do Estado ; os
esse foi um passo mortal numa possível países da África, a questão da africanização
evolução da Igreja, onde se fossem da Igreja; a América Latina, a questão da
consolidando estes órgãos colegiados. Só opressão e libertação ; e a Ásia dizia que a
que no funcionamento real dos primeiros questão fundamental era abrir.o diálogo com
sínodos permanecia forte o espírito do as grandes tradições religiosas do Oriente. O
concílio, a tal ponto que eles produziram sínodo não conseguiu escrever um
seus próprios documentos. Vejamos a documento final único. Eles entregaram ao
introdução ao documento do sínodo sobre A papa os relatórios das diferentes regiões
Justiça no Mundo. Depois de uma audiência para que ele redigisse um documento final.
com o papa, o cardeal secretário de Estado Daí para a frente nunca mais um texto do
·o
diz: Santo Padre submeteu a um exame sínodo foi publicado diretamente. Nem se

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sabe o que é discutido. Só chega à opiniao A questão-chave e fundamental do concílio
pública a versao da Cúria Romana. foi a emergência da Igreja local. E depois a
emergência de órgaos colegiados desta
O sínodo se esvazia neste conflito de 1974, Igreja, como conselhos de pastorais (onde os
onde os bispos nao souberam assumir as leigos aluam junto, decidem), os conselhos
contradições e expô-las publicamente. de presbíteros, que de um certo modo
Embora tivesse resultado talvez o melhor associam a direção episcopal a uma direçao
documento do período põs-ronciliar, que é a também dos presbíteros, e as conferências
Evangelii Nuntiandi, justamente porque episcopais, que sao frutos fundamentais do
colhia do conjunto da Igreja as contradições, concílio. Os conservadores batalham cada
o pluralismo que se tinha aberto dentro da vez mais contra essas coisas. Eles dizem
vida da Igreja e o reconhece no documento. que as conferências episcopais sao uma
Este momento também representou uma diminuição da autoridade do bispo e com
perda da substância do papel dos bispos no esta afirmação querem restabelecer um
sínodo e a devolução à autoridade romana esquema unívoco Roma-cada bispo, em vez
do absoluto controle sobre este. Neste de um esquema colegiado dos bispos. E
momento, é marcado um retrocesso tentam esvaziar teologicamente a substância
institucional, prenhe de conseqüências para das conferências episcopais, dizendo que
o futuro, onde os próprios bispos entregaram elas sao um ajuste prático, mas sem
o ouro, romperam a posição de certo fundamento teológico. Roma ainda nao
equilíbrio no funcionamento desta nova t conseguiu passar isso, mas a cada momento
instituição, diminuindo o papel do bispado e volta a insistir. Com isto os episcopados e
reforçando o da Cúria Romana. O sínodo a suas organizações perderiam força e se
partir daí perde substância. Há um restabeleceria o modelo anterior da relação
secretariado do sínodo eleito pelos bispos, individual de cada bispo com Roma. E isso
mas é uma ficção. Eu estive com bispos que se pode ver nos conflitos que ocorreram
eram do secretariado e eles escreviam uma como, por exemplo, quando D. Padim lança
coisa e lá na Cúria escreviam outra, e as Jornadas Internacionais para uma
ninguém sabia quem a tinha escrito. O que Sociedade Superando as Dominaç6es, e
vale é a burocracia romana, que mantém consegue apoio de outras conferências
atualmente um estreito controle sobre esta episcopais, como a norte-americana, a
instituição-<:have no pós-roncílio e, assim, francesa, a australiana. Roma intervém para
sobre o conjunto da vida da Igreja, suspender, dizendo que iniciativas
retomando um exercício imperial e muito internacionais sao de estrito direito da Santa
pouco colegial do poder. Sé e nao dos outros bispos. Quer dizer, eles
nao têm como exercer essa responsabilidade
colegiada sobre o conjunto da Igreja, por
iniciativas regionais, sem que passe sempre
Eu diria que onde o concílio deu maiores pela anuência ou o controle da Santa Sé. Ali
frutos foi na periferia da Igreja. também se matou a emergência de um

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funcionamento e de uma expressão desse raciocínio é o seguinte: o concílio foi
lado mais novo e criativo do Vaticano I. convocado legitimamente, é um sínodo
válido dentro da Igreja, mas o caráter dele foi
pastoral e não dogmático. Por isso não
atribuem um caráter vinculante às decisões
Apresento agora um esquema das reações do concílio. A gente pode continuar com a
na Igreja pós-conciliar, no sentido da recusa Igreja pré-Vaticano 11, sem nenhum
do concílio. Quem é que o recusa e como? problema, porque o que aconteceu lá é
Há várias formas de recusar o concílio. Há legítimo, mas de caráter pastoral, por isso
formas radicais. Uma primeira é afirmando não é vinculante, nM é dogmático.
que ele rompeu com a tradição anterior, que
a Igreja deixou de ser Católica Romana com Um terceiro grupo, já mais conhecido, é
a colegialidade, com mudança da liturgia, a praticamente o que se formou em torno do
aceitação do mundo moderno. Diziam ainda Coetus lnternacionalis Patrum, que surge
que o concílio laborou em heresias logo na 1i! sessão, quando se configura
condenadas pela própria Igreja: o aquela questão da maioria e da minoria.
modernismo, o liberalismo; que aceitou os Essa minoria não era organizada, pois tinha
princípios da Reforma Protestante. o controle do centro romano que decidia
Rejeitavam a posição de Paulo VI ao dizer tudo, e, de repente, com a tomada de
que havia culpa dos católicos na divisão da posição de João XXIII, sente que perdeu o
Igreja, ao pedir perdão aos irmãos controle e não sabe como aluar, porque agia
separados, e ao assumir o ecumenismo. via autoridade e agora tem que entrar num
Diante disso, este grupo dizia que a Igreja jogo democrático de força de persuasão.
deixou de ser Igreja Católica, tornou-se Formado o Coetus lnternacionalis Patrum
herética, e que a sede romana ficara eles vão batalhar o concílio todo, por
vacante. Quem quisesse ser realmente exemplo, pela condenação do comunismo,
católico deveria rejeitar o concílio. O Abbé de pela rejeição do ecumenismo, da liberdade
Nantes representa esta posição, religiosa. Era um grupo relativamente
apresentando-se inclusive como antipapa. pequeno, mas alardeava ser maior. Num
Há ainda uma revista dos dominicanos, na determinado momento, pretendia haver
França, o grupo Septuaginta, na Holanda, a colhido mais de 400 assinaturas pedindo a
Liga dos Katholischen Traditionalisten, na condenação do comunismo, mas parece que
Alemanha, organizações pequenas, mas nunca chegaram a tanto. Ele~ não
com uma posição radical e de recusa ao conseguem introduzir nos textos conciliares
concílio. suas posições mais radicais, mas lutam até o
fim por condenações e por uma série de
Um segundo grupo de críticos do concílio coisas que o concílio recusa fazer. Voltando
são aqueles que não querem sair da Igreja: para casa, a reação deste grupo foi a de dar
Una Voce, Opus Sacerdotalis, Credo - todos uma adesão meramente formal ao concílio.
com nome em latim -,entre os quais o Lefébvre era o coordenador mais importante

13
e D. Geraldo Proença Sigaud, arcebispo de dentro da Igreja. Por exemplo, Maritain,
Diamantina, no Brasil, era secretárioi)eral terminado o concílio, vai escrever Le Paysan
deste Coetus. No começo, publicamente, de la Garonne, um livro muito amargo em
eles dão adesão ao concílio e, em privado, relação aos frutos do concílio. Daniélou, De
atacam, sobretudo Lefêbvre. A tensão vai Lubac, Hans Urs von Balthasar (é
culminar, finalmente, com a excomunhão por interessante que este pessoal vira cardeal. ..)
Paulo VI do grupo de Lefêbvre em 1976. tiveram receio de que o próprio Vaticano li
Muita gente acha que essa excomunhão foi trouxesse em germe a idéia de que a Igreja
um erro porque deu maior importância ao estivesse se adequando ao espírito do tempo
grupo do que ele teria e criou uma posição e sendo levada ao sabor do vento e das
protagônica do grupo dentro da Igreja. Mas opiniões. Que os sinais dos tempos teriam se
em todo caso essa posição de 1966 resulta convertido em uma espécie de falta de rumo
dez anos depois numa excomunhão, por não certo e de posições doutrinais seguras.
aceitar de fato o concílio, mas dizer que Achavam que a Igreja estava perdendo o seu
aceitava apoiando-se em alguns textos caráter quase atemporal em favor de uma
conciliares. adaptação ao mundo presente. Maritain usa
uma expressão dura e diz que 'a Igreja se
Um quarto grupo é o que recusava ver no colocou de joelhos diante do mundo e está
Vaticano 11 uma verdadeira virada histórica, adorando o mundo'; que agora o mundo, o
quer dizer, o encerramento da época tempo, a História passaram a ser o grande
tridentina, do que foi o Vaticano I, do ídolo da Igreja. Esse é o grande problema
confronto de um lado com a Reforma e de deste grupo, que poderíamos chamar de
outro com a cultura modema. Esse grupo diz neoconservadores. Um segundo argumento
não ter havido nada disso, mas sim uma é o de que com isso a Igreja perderia
continuidade, e a única leitura possível do autoridade ; então, eles vão propor uma
Vaticano 11 é a leitura continuísta. Por releitura da Lumen Gentium, onde o eixo não
exemplo, alguns teóricos de Comunione e seja mais o povo de Deus, e sim a
Liberazione vão nesta linha. hierarquia. As ênfases é que mudam. Ora, a
novidade do concílio foi a afirmação do povo
O grupo mais numeroso e que talvez tenha de Deus (claro que ao mesmo tempo se
mais influência atualmente é o dos que reafirmou a questão da hierarquia - há
integraram a maioria conciliar, mas que sempre uma novidade e uma reafirmação do
depois conformaram o bloco dos tradicional). A leitura desse grupo é a da
arrependidos do concílio. Entre estes, num minoria conciliar, não naquele sentido dos
certo momento, vai se alinhar o papa Paulo textos heterogêneos, mas naqueles onde há
VI. Não diria que arrependido do concílio, afirmação da novidade e reafirmação da
propriamente dito, mas de determinadas tradição. Hoje se lê o concílio pela
conseqüências deste. Temos neste grupo reafirmação da tradição, é uma questão
pessoas que lutaram pelo concílio, eclesiológica, se lê de novo pela ênfase na
realizaram-no, tinham seguidores, um peso autoridade hierárquica e não no carisma do

( · ·.
povo de Deus e no sacerdócio comum dos uma aplicação do concílio que esvaziava a
fiéis, mas enfatiza o sacerdócio ministerial. sua lógica mais íntima. Paulo VI ficou
Ent~o a gente poderia passar todos os ofendido, ficou doente. Eles eram amigos,
pontos e seria erróneo dizer que n~o seguem trabalharam juntos no concílio e Suenens
o concílio. Esses textos estão lá, eles nM saía a púb!ico der.~nciando que Roma
seguem é o espírito do concílio. É o grande aplicava o concílio de uma maneira que
problema da posição deste grupo. esvaziava o próprio concílio. Alfrink, da
Holanda, em 1971, denunciou publicamente
Eu penso que aqueles que defendem o os rumos romanos que ele dizia serem
concílio na sua grande inspiração s~o os que contra o concílio.
hoje se tornaram os suspeitos dentro da
Igreja. A situação se inverteu. A minoria que Há outras coisas que, a meu ver, v~o
ficou desconsertada com o concílio, que n~o levando a um retrocesso em relação ao
achava espaço para respirar, dentro da concílio, como, por exemplo, a deci~o a
inspiração profunda do concílio, hoje é respeito do Direito Canónico da Igreja. O eixo
dominante. É o que Ratzinger fala no do concílio foi pastoral e n~o disciplinar, o
Raportto sul/a Fede, está em curso uma Direito Canónico é da ordem da disciplina.
restauraç~o. o concílio tem que ser lido na Na onda da nova orientação muita gente
grande tradição, nM há ruptura nenhuma. dizia: n~o queremos mais um Direito
Então se perdem a relevância e a novidade Canónico na Igreja, o que se pode ter ~o
do que aconteceu, e simplesmente se diz algumas normas bem amplas e cada Igreja
que é uma reafirmação das velhas coisas. É vai formando seu próprio direito - que seria
a tendência dominante: hoje, este grupo se dar espaço para que n~o houvesse um só
encontra no poder, no centro romano ; n~o é direito latino romano, mas que a África fosse
à toa que est~o sendo feitos cardeais e elaborando seu direito, a América Latina
colocados nos postos-chaves, enquanto os fosse elaborando a sua teologia e seu direito.
membros da maioria conciliar e até mesmo Propunha-se que cada grande Igreja
os seguidores de Paulo VI foram pudesse edificar o seu corpo de normas
marginalizados ou colocados sob suspeita. dentro de uma Lex Fundamenta/is, um
enunciado de grandes princípios comuns,
Claro que houve reações. A maioria dos aceito numa espécie de sínodo de toda a
episcopados europeus, o belga, o holandês, Igreja. Depois cada Igreja iria devagar
o francês e também o brasileiro e o fazendo suas normas prática!! de
norte-americano, n~o aceitou a Humanae funcionamento -essa era uma posição. Num
Vitae e o disse publicamente. No ano determinado momento, Paulo VI intervém
seguinte (1969), o cardeal Suenens, de para dizer sim a um novo Código de Direito
Malines-Bruxelles, deu uma entrevista à Canónico. A comissão que discutia uma Lei
lntormations Catholiques lnternationales que Fundamental para a Igreja vira Comissão do
que provocou uma enorme celeuma. ele Direito Canónico. Com João Paulo 11, os
dizia que Roma vinha sendo exemplo de trabalhos são apressados ao máximo e, no

IS
final , o próprio papa, com um grupo restrito, Nesse sentido, eu diria que a América Latina
fez algumas modificações fundamentais no foi a área que conseguiu uma recepção
sentido de reforçar o centro romano dentro criativa do concílio. A reunião de Medellín foi
do Direito Canónico. O Direito Canónico diz feita ainda num clima de entusiasmo
em seu prólogo que é inspirado no concílio, conciliar, esteve atenta ao que representou
mas de fato ele esvazia, na ecleseologia e na maio de 1968 para a juventude de todo o
disciplina eclesiástica, algumas das mundo, enquanto a Igreja européia e Roma,
inspirações fundamentais do concílio, como a frente a esse acontecimento histórico,
força da Igreja local. Eu vejo aí uma questão raciocinaram no sentido de que se deveria
grave e difícil de se consertar e vai seguir frear muitas das instituições do concílio. A
produzindo efeitos a longo prazo. normalização da América Latina começa a
ser tentada a partir da eleição de López
A nível latino-americano, a Igreja colheu e Trujillo à Secretaria-Geral do Gelam. em
pôde levar adiante o espírito conciliar, dando novembro de 1972. A partir d2.í c Gelam
um salto à frente na aplicaç~o criativa do deixa de ser o executor das insp:rações do
concílio. Medellín n~o é aplicaç~o do concílio concílio para a Igreja na América Latina, para
à América Latina, mas é uma leitura da tornar-se um pouco a Manus Lunga desta
América Latina à luz do concílio e propondo restauraç~o romana para a América Latina.
muitas novidades, como o eixo do pobre e da
justiça nas relações Norte-Sul, o que n~o
estava claro no concílio. Na apreciação do
mundo moderno, n~o se trata apenas de • Trata-se de uma conferência pronunciada em junho de
aceitá-lo, mas de perguntar-se com quem 1900. A transcrição foi corrigida pelo autor, mas se
fica a Igreja em meio aos conflitos existentes. manteve o tom coloquial.

16
O Vaticano e a Igreja no Brasil

IVO LESBAUPIN
Sociólogo UFRJ - Centro Joao XXIII - /SER

lntroduçao Cronologia dos principais fatos

O pontificado do papa João Paulo li - iniciado 1978- 16 de outubro: eleição de João Paulo 11.
em 1978- tem significado para a Igreja
católica um claro recuo face aos avanços 1979 -O papa dá especial atenção a certos
obtidos pelo papa João XXIII e pelo Concílio movimentos da Igreja: em março recebe
Vaticano 11 (1962-1965). Se o concílio tinha Comunhão e Libertação, e em agosto Opus
imprimido uma concepção mais democrática Dei (Aiberigo, 1989).
da igreja e impulsionado uma abertura aos - Encíclica Redemptor Hominis.
problemas do mundo moderno, o atual - Primeira visita de João Paulo 11 à Polônia;
pontificado tem se pautado pela busca da visita também México, Irlanda, EUA e
restauraçao: restauração da disciplina e da Turquia.
hierarquia no interior da Igreja, e reafirmação - O Cardeal Oddi, que havia sido afastado
da autoridade eclesiástica em face do por Paulo VI por sua atitude hostil ao
mundo. Retornam com força as Concílio Vaticano 11, é nomeado prefeito da
preocupações com a ortodoxia da doutrina e Congregação do Clero (Aiberigo, 1989).
com a submissão dos católicos à autoridade - Condenação de alguns teólogos
hierárquica. No que diz respeito à América progressistas: Jacques Pohier (abril); Hans
Latina, o Vaticano tem sistematicamente Kung (dezembro); interrogatório de
colocado em xeque o engajamento político Schillebeeckx (dezembro).
dcs cristãos - leigos, padres ou bispos- ao
lado dos pobres e oprimidos e a Teologia da 1980 - Sínodo holandês em Roma. A
Libertação. O objetivo deste artigo é analisar pressão do Vaticano consegue mudar
o atual pontificado. Iniciaremos com uma totalmente a linha da Igreja holandesa. Ao
cronologia dos principais fatos (1 ). Em final do sínodo os bispos têm de assinar um
seguida, veremos as sucessivas documento contendo 46 proposições. São
intervenções do Vaticano na Igreja do Brasil. sobretudo as tendências democráticas desta
Finalmente, tentaremos uma interpretação Igreja que são atingidas (Lemoux, 1989: 56).
global da ação do Vaticano neste período. - Viagens: Brasil, Zaire, Gana, Costa do

17
Marfim, Alto Volta, Congo, Quêriia, França e Gutiérrez, exigindo uma tomada de posição.
Alemanha Ocidental. - O papa nomeia 18 novos cardeais. Entre
eles: Alfonso López Trujillo, Jean-Marie
1981 -Viagens: Paquistão, Filipinas, Guam, Lustiger, Jozef Glemp, Henri de Lubac.
Japao. - Carta de João Paulo 11 ao presidente do
-O atentado ao papa (13 de maio). Secretariado para a União dos Cristãos
- Laborem Exercens. sobre Lutero, por ocasião do V centenário de
- Ratzinger é nomeado prefeito da seu nascimento, onde fixa posição aberta
Congregação para a Doutrina da Fé. sobre o mesmo.
- Intervenção em algumas ordens religiosas: - Carta pastoral do episcopado
Jesuítas (nomeação de delegado pessoal do norte-americano: O Desafio da Paz.
papa; demissão de Arrupe em 1983); - Viagens: América Central, Lourdes
Carmelitas (1984); Dominicanos; (França), Áustria, segunda visita à Polónia.
Franciscanos (1985). - Em sua chegada à Nicarágua, o papa
adverte publicamente o padre Ernesto
1982 - O Opus Dei é erigido em "prelazia Cardenal. Durante a missa em Manágua, há
pessoal". reações populares de descontentamento
- Depois de várias pressões do episcopado (Oliveira, 1983).
nicaragüense sobre os quatro padres que
participam do governo sandinista para que 1984 - Restabelecem-se as relações
deixem seus cargos (as pressões vêm desde diplomáticas do Vaticano com os EUA,
1980), o papa também deixa claro que é rompidas desde 1868. Dom Pio Laghi é
desejo expresso seu que eles se retirem do nomeado núncio (entre 1980 e 1987, Dom
governo (Ezcurra, 1984). Pio Laghi contribuiu para a nomeação de 100
- Pressões do Vaticano e do episcopado bispos e 12 arcebispos de tendência
alemão (Hoeffner) sobre os bispos conservadora nos EUA - até 1989 havia 405
norte-americanos a propósito do documento bispos e 33 arcebispos) (Goddijn, 1987;
sobre as armas nucleares (O Desafio da Pernoux, 1989).
Paz) (Lernoux, 1989:43-44, 185-189). - A revista 30 Giorni publica entrevista de
- Viagens: Nigéria, Benin, Gabão, Guiné Ratzinger, "Eu vos explico a Teologia da
Equatorial, Inglaterra, Espanha. Libertação", onde acentua a presença do
marxismo, de categorias como a práxis, a
1983 - O papa promulga o novo Código de luta de classes e o reducionismo.
Direito Canónico. O poder absoluto do papa - Duas semanas antes de sua morte (30 de
está garantido no texto e o poder da Cúria março), Karl Rahner envia carta ao cardeal
Romana sobre a Igreja universal se encontra Landázuri Rickets, de Lima, defendendo
também reforçado. Gustavo Gutiérrez.
- A Congregação para a Doutrina da Fé envia - Ratzinger convoca os bispos peruanos a
ao episcopado peruano 1Oobservações Roma para pressioná-los a tomar posição
críticas sobre a teologia de Gustavo sobre Gutiérrez. Os bispos vão a Roma, mas

18
não cedem à pressão e terminam por o pluralismo teológico; risco de perda da
expressar o seu apreço pela Teologia da dimensão divina na cristologia; risco do
Libertação. imanentismo na Teologia da Libertação;
- Esboço do projeto Evangelização 2000: desenvolvimento na Igreja de forças latentes
encontro de Tom Forres!, líder da Renovação agressivas, centrífugas. Como elementos
Carismática Católica, com Giussani, fundador positivos, refere o desenvolvimento de
do movimento Comunhão e Libertação, e o movimentos como Comunhão e Libertação,
líder do movimento alemão Schoenstadt. Em Focolari, Cursilhos de Cristandade,
junho a idéia é sugerida a João Paulo 11 Renovação Carismática (2).
(Sedoc, 22(216) :254, set.-out. 1989). - O padre Bimwenyi Kweshi, assessor
- 2 de setembro: Leonardo Boff chega a teológico da Conferência Episcopal do Zaire,
Roma para o colóquio ao qual foi convocado juntamente com dois outros assessores, é
por Ratzinger. afastado deste cargo pelos bispos. O
- 3 de setembro: a Congregação para a afastamento é resultado de pressão do
Doutrina da Fé publica a lnstruç~o sobre Vaticano. O padre Bimwenyi tinha importante
alguns aspectos da Teologia da Libertaç~o. papel na formação e consolidação de uma
- Intervenção romana na Ordem dos nascente teologia autóctone, africana, atenta
Carmelitas: em carta de 15 de outubro, o às condições e exigências do contexto em que
secretário de Estado do Vaticano, cardeal se gerava (REB, 45(1/8): 428, junho 1985).
Agostino Casaroli, determina que caberá à - Leonardo Boff é condenado pelo Vaticano a
Sagrada Congregação para os Religiosos e um "silêncio obsequioso·.
Institutos Seculares a redação definitiva das - O papa nomeia 25 novos cardeais (25 de
novas Constituições Gerais dos Carmelitas. maio). Entre eles: John O'Connor, de Nova
Isto foi feito apesar de mais de 80% dos Iorque; Bernard Law, de Boston; Miguel
mosteiros terem se pronunciado Obando y Bravo, de Manágua (único cardeal
favoravelmente às novas Constituições da América Central); Fresno, de Santiago do
elaboradas pelos próprios carmelitas (REB, Chile; Angel Suquía Goicochea, de Madri;
45(178):425, junho 1985). Jérôme Hamer, prefeito da Congregação
-O padre Fernando Cardenal, ministro da para os Religiosos e os Institutos Seculares;
Educação da Nicarágua, é excluído da Simonis, de Utrecht (Holanda).
Companhia de Jesus por não ter deixado o - Sínodo dos Bispos, sobre o Concílio
cargo governamental. Vaticano 11 e o período pós-conciliar. A
-Viagens: Extremo Oriente, Suíça, Canadá. reunião foi precedida por umá expectativa de
recuo quanto às posições assumidas no
1985 - Publicação do Rapporto sul/a Fede de concílio, inclusive por causa da publicação
Ratzinger. O cardeal apresenta o período do Rapporto sul/a Fede, de Ratzinger, onde
póHonciliar como fundamentalmente ele fala de uma necessária restauração. O
negativo. Alguns destes aspectos negativos: sínodo ficou centrado nos problemas internos
o excessivo otimismo em relação ao mundo; da Igreja. Entre outras determinações,
a Igreja vista como construção humana; propôs a revisão do estatuto das

19
conferências episcopais e sugeriu a criação profissao. O diretor da revista espanhola
de um catecismo universal. Vida Nueva, Pedro Miguel Lamet, s.j. , havia
- Viagens: Bélgica, Holanda, Luxemburgo, sido demitido, por pressão do Vaticano (um
Venezuela, Equador, Peru, Trinidad-Tobago. ano depois, o mesmo ocorre com o diretor da
revista Misión Abierta e, em março de 1989,
1986 - O papa visita a Sinagoga de Roma. com o diretor da revista italiana Missione
- A Congregação para a Doutrina da Fé - Oggi; por outro lado, a revista Civilitá
pressionada por vários grupos, em particular CaNolica é mantida sob forte censura).
os episcopados peruano e brasileiro - publica - O prefeito da Congregação dos Religiosos,
nova instrução sobre a Teologia da Jérôme Hamer, envia circular a todos os
Libertação: lnstruç~o sobre a liberdade crist~ superiores de Ordens e Congregações
e a libertaçM Religiosas, insistindo para que se cumpra
- 27 de outubro: a convite do papa, reúnem-se com todo o rigor o instituto canônico de
em Assis, cristãos, judeus, muçulmanos, controle sobre "revistas, boletins e periódicos
hindus, siks, budistas, xintoístas para uma em geral" que estejam sob a
Jornada Mundial de Prece e Jejum pela Paz. responsabilidade direta ou indireta dos
- Carta pastoral do episcopado religiosos (REB, 48(189):215, março 1988).
norte-americano: Justiça econômica para - Publicação da encíclica Sollicitudo Rei
todos (cf. Boff, C., 1987). Socialis.
- Viagens: Índia, Colômbia, França, Extremo - Viagens: Uruguai, Chile, Argentina,
Oriente. Alemanha, Polônia, Estados Unidos.

1987 - O escritório central do projeto 1988 - Janeiro: documento de trabalho de


Evangelização 200 é aberto em Roma. Bernardin Gantin, da Congregação dos
- Ruptura com a JOC Internacional: o Bispos, sobre o estatuto teológico e jurídico
Vaticano não considera mais a JOCI como das conferências episcopais. O documento
legítima inter1ocutora quando se tratar das procura restringir o poder e o alcance das
questões ligadas à militância dos jovens conferências episcopais, afirmando o poder
trabalhadores. de cada bispo em sua diocese e em relação
- O sínodo sobre os leigos decepciona. Ele com o Vaticano (Sedoc, 21(212) : 463ss.,
havia sido precedido pela proibição formal jan.-fev. 1989).
aos leigos de pregar. Juan Arias comenta - 30 de junho: Dom Marcel Lefebvre é
que este sínodo foi ·o sínodo do medo" - excomungado por ter consagrado quatro
sobre ele pairaram dois fantasmas, a opinião bispos, em flagrante desrespeito à expressa
pública (imprensa) e a mulher (apud REB, determinação do papa. A excomunhão
48(189) : 208). atingiu igualmente Dom Antônio de Castro
- Os redatores de algumas das maiores Mayer, co-consagrante.
revistas católicas se reúnem em Roma e - 9 de outubro : o papa publica Carta
enviam manifesto ao Sínodo dos Bispos Apostólica sobre a Mulher: Mulieris
pedindo maior liberdade no exercício da Dignitatem.

20
- 15 de dezembro: o teólogo norte-americano Haering, em que denuncia seu processo na
Matthew Fox, o.p., é reduzido ao silêncio, por Congregação para a Doutrina da Fé.
pressão da Congregação para a Doutrina da - A Clar tenta de todas as formas, em acordo
Fé. com o Ceiam , manter o Projeto Palavra-Vida,
- Viagens: Uruguai, Bolívia, Paraguai, Peru. fazendo as mudanças consideradas
necessárias por Roma. Apesar disso, a 5 de
1989 - A partir de janeiro, a Congregação julho se dá a intervenção romana na Clar: a
para a Vida Religiosa e os Institutos Congregação para a Vida Religiosa e os
Seculares (Cris) começam uma Institutos Seculares nomeia outro
correspondência com a Clar (Confederação secretário-geral que não o indicado pela
Latino-Americana de Religiosos) criticando própria Clar.
duramente o Projeto Palavra-Vida como uma Devido à intervenção do Vaticano e às
leitura reducionista da Bíblia. Dois sucessivas críticas vindas da Congregação
consultores - cujos nomes não são citados - para a Doutrina da Fé, a equipe encarregada
emitem pareceres críticos sobre o projeto. O do Projeto Palavra-Vida renuncia (12 de
Ceiam igualmente critica o projeto. Em outubro);
novembro de 1988 a Clar havia publicado o A Equipe de Formação da Clar renuncia
12 fascículo do Projeto Palavra-Vida. O igualmente (8 de outubro);
projeto previa a publicação de cinco A Clar desiste de forma definitiva do Projeto
fascículos de 1988 a 1993 para uma leitura Palavra-Vida (12 de outubro) (Sedoc,
da Bíblia no contexto latino-americano 22(218), jan.-fev. 1990).
(Sedoc, 22(215) ,jul.-ago. 1989). - Exortação Apostólica Christifideles Laici
-Janeiro: Declaração de Colônia assinada (sobre os leigos). Em seu número 23, "os
por 163 teólogos de língua alemã (Áustria, leigos recebem ofícios na comunidade,
Suíça, Alemanha Ocidental, Holanda). A quando há falta de ministros, em caráter de
Declaração centra a crítica em três aspectos suplência e com o poder delegado. Assim
da prática atual do Vaticano: a nomeação de não existe, de fato, autonomia na comunhão
bispos sem respeitar as propostas das para os leigos dentro da comunidade; eles
Igrejas locais; muitos casos de não são apêndices da hierarquia, a única
autorização de magistério a teólogos portadora de poder via sacramento da
(atentado à liberdade de pesquisa); a ordem· (Boff, L., 1989).
tentativa de estender a competência - Viagens: Escandinávia, Espanha, Coréia,
magisterial do papa além da jurisdicional. Indonésia, Ilhas Maurício.
Seguem-se outras declarações de teor
semelhante: declaração de teólogos 1990 - Os bispos francófonos da Bélgica
italianos; declaração de teólogos espanhóis; fecham o seminário Cardeal Cardijn.
declaração de teólogos franceses; -Junho: a Congregação para a Doutrina da
declaração de teólogos e religiosos belgas; Fé publica a lnstruçAo sobre a vocaçAo
declaração de teólogos brasileiros. eclesial do teólogo.
- Publicação do livro-entrevista de Bernard

21
As sucessivas lntervençOes do Vaticano põem em perigo asa doutrina da fé( ... )". O
na Igreja no Brasil teólogo acata a decisao da Congregaçao
para a Doutrina da Fé.
1981 - Proibiçao do Diretório para Missas - 19 de março: em visita ao Brasil, D. Agnello
Populares. Rossi publica documento em que critica a
Teologia da Libertaçao: Verdades, erros e
1982- Proibiçao das Missas Te"a sem perigos da Teologia da Libertaç~o.
Males (1982), Esperança (1984) e Quilombos -Em abril, a Comissao Arquidiocesana para
(1985). a Doutrina da Fé do Rio de Janeiro publica
uma sentença condenatória sobre a obra de
Frei Clodovis Boff.
1984 - Fevereiro: o cardeal Dom Eugênio - Maio: imposiçao do silêncio a Leonardo
Salles suspende a Missio Canonica de Frei Boff. Dez bispos brasileiros se solidarizam
Clodovis Boff, que era professor da PUC com o teólogo. Em sao Paulo, um grupo de
desde 1978. A suspensao atinge também juristas se articula e envia ao Vaticano um
Frei Antônio Moser. recurso em defesa de Boff. Uma
-Maio: inspeçao nos seminários e casas de manifestaçao de solidariedade no Rio reúne
formaçao. O cardeal Hoeffner visita o mil pessoas no Colégio Bennett. Nesta
seminário na Arquidiocese de sao Paulo. manifestaçao, entre outras coisas é lida a
- 7 de setembro: colóquio de Leonardo Boff abjuraçao de Galileu Galilei perante o
com Ratzinger em Roma. Depois de duas tribunal do Santo Ofício. Intelectuais, artistas.
horas, a conversaçao é acompanhada pelos professores se manifestam a favor do
Cardeais D. Aloísio Lorscheider (presidente teólogo. Milhares de membros de
da Comissao Episcopal de Doutrina da comunidades de base assinam documento
CNBB) e D. Paulo Evaristo Ams. De entrada, em apoio a Leonardo Boff. Teólogos
D. Paulo sugere que, para a elaboraçao do europeus e de outros países se manifestam
novo documento da Teologia da Libertaçao, no mesmo sentido.
deveriam ser consultados os teólogos da Em carta de 29 de julho, assinada pelo
libertaçao, os episcopados onde há pastoral secretário de Estado, Agostino Casaroli, o
popular junto aos oprimidos numa linha mesmo termina enviando a Boff uma Benção
libertadora e o documento deveria ser Apostólica e uma lembrança especial do
elaborado no Terceiro Mundo. Santo Padre.
-Os cardeais D. Aloísio Lorscheider e D. - 12 de junho: o comitê da revista Concilium
Paulo Evaristo Arns perdem vários dos seus se solidariza com Leonardo Boff. Afirma que
cargos nos dicastérios romanos. há uma tendência "restauradora· na atual
direçao suprema da Igreja e levanta a
1985 - 11 de março : notificaçao romana suspeita de haver uma intenção deliberada
sobre o livro de Leonardo Boff, Igreja, de desmontar a Igreja dos Pobres no caso do
carisma e poder. Aí se afirma que as opções Brasil:
analisadas no livro ·sao de tal natureza que

22
"A visita do Cardeal Hoeffner à Arquidiocese Doutrina da Fé publica a segunda instrução
de São Paulo em fins de maio de 1984; as sobre a Teologia da Libertação: lnstru~o
intervenções papais em Ordens e sobre a liberdade cris~ e a liberta~o.
Congregações, como nos Jesuítas, -29 de março: Leonardo Boff recebe a notícia
Franciscanos e Monjas Carmelitas; a de que terminara o período de "silêncio
destituição de Frei Clodovis Boff e Antônio obsequioso·. Certamente este fato é
Moser da PUC-RJ ; a marginalização da resultado das conversações entre a CNBB e
CNBB por parte da Cúria Romana quando do a Cúria Romana.
caso Boff e da proibição de tentativas - 9 de abril: carta do papa à CNBB sobre a
litúrgicas de inculturação entre índios e Missão da Igreja e a Teologia da Libertação:
negros (a Missa da Terra sem Males e a "( ...)A Igreja conduzida pelos Senhores,
Missa dos Quilombos) . Ato contínuo, se Bispos do Brasil, dá mostra de estar com
percebe uma série de repetidas advertências este povo, especialmente com os pobres e
e intimidações: as diversas visitas do cardeal sofredores, com os pequenos e os
da Cúria Agnello Rossi (as últimas em julho desassistidos, a quem ela consagra um
de 1984 e em maio de 1985); o artigo do amor, não exclusivo nem excludente, mas
cardeal J. Ratzinger em março de 1984 preferencial.( ...) Estamos convencidos, nós
sobre a Teologia da Libertação, no qual ele e os Senhores, de que a Teologia da
apenas ataca esta teologia; depois, a Libertação é não só oportuna, mas útil e
Instrução de agosto de 1984; a pressão necessária( ... )".
constante à qual estão submetidos o cardeal - Documento confidencial do Conselho de
Arns e o cardeal Lorscheider; a proibição, até Segurança Nacional afirma que é preciso
hoje não justificada, de falar (sic!) e ensinar, controlar melhor as atividades e operações
imposta a Leonardo Boff (...)" (apud REB, da "Igreja progressista" (REB, 48(192):986,
45( 180): 618ss., dez. 1985). dez. 1988).

1986 - De 13 a 15 de março reúnem-se em 1988- Maio: nomeação de Dom Luciano


Roma o papa, os cardeais prefeitos dos Mendes de Almeida, presidente da CNBB,
dicastérios romanos, a presidência da CNBB, para uma diocese pequena e distante,
cinco cardeais residentes no Brasil e os Mariana.
presidentes das 14 regionais da CNBB, num - Maio: alguns bispos recebem carta de
total de 21 bispos do Brasil. A iniciativa é advertência da Congregação dos Bispos:
inédita, pois é a primeira vez que uma Dom Adriano Hypolito, de Nova lguaçu; D.
conferência episcopal , terminada a série de Waldir Calheiros, de Volta Redonda; D.
visitas ad limina, se reúne com o papa para Moacir Grecchi, do Acre.
um balanço. Na ocasião, o cardeal Ratzinger - Junho: pressionado pelo Vaticano através
expõe em que situação se encontrava a de duas cartas duras da Congregação para
redação do novo documento sobre a os Bispos, Dom Pedro Casaldáliga faz visita
Teologia da Libertação. ad limina. Na ocasião, é interrogado por
- 22 de março: a Congregação para a Ratzinger e Gantin durante uma hora e meia.

23
Este último lhe diz ao iniciar a conversa: ·o apostólica aos seminários do Brasil, o núncio
cardeal Ratzinger e eu lhe faremos algumas e a presidência da CNBB. A reunião visa
advertências." Solicitado a assinar um complementar os relatórios apresentados em
documento, recusa-se. Três dias depois, é 1988 e oferecer propostas para
recebido pelo papa, durante quinze minutos. aperfeiçoamento das normas referentes à
- 15 de setembro: Dom Pedro recebe uma formação sacerdotal no país.
intimação vinda de Roma (CDF e - Fechamento do lter (Instituto Teológico de
Congregação para os Bispos) para assinar Recife) e do Serene 11 (Seminário Regional
um documento de compromisso. O do Nordeste 11) por decreto da Congregação
documento viera através da nunciatura, mas para a Educação Católica: o fechamento vem
não tinha selo de qualquer congregação a público a 12 de setembro. D. Vicente Zico,
romana nem assinatura. Dom Pedro se que havia visitado a Arquidiocese de Olinda
recusa a assiná-lo. e Recife, fica surpreso, pois seu relatório
sobre o seminário enviado a Roma era
1989- 15 de março: divisão da Arquidiocese positivo. Bispos e superiores provinciais do
de São Paulo (março). Surgem quatro novas Regional Nordeste 11 que tinham seus
dioceses: Campo Limpo- D. Emílio Pignoli; seminaristas estudando no lter são
Osasco- D. Francisco Manuel Vieira; Santo surpreendidos por não terem sido
Amaro - Frei Fernando Antônio Figueiredo; consultados por Roma. Este é o ponto
São Miguel Paulista - D. Fernando Legal. D. culminante de uma crise que vem se
Antônio Gaspar, D. Fernando Penteado e D. desenvolvendo na Arquidiocese de Olinda e
Angélico Sândalo Bernardino continuam Recife e no Regional Nordeste 11 sobretudo a
como bispos auxiliares da arquidiocese. partir de 1988.
- Artigo de Dom Terra criticando o Projeto Em agosto de 1988 D. José Cardoso
Palavra-Vida (da Clar), Mesters e o Cebi: desaloja a Pastoral Rural do Secretariado
"Bíblia: projeto preocupa papa e bispos" (O Regional Nordeste 11 do Giriquiti e demite
Estado de S~o Paulo, 11 de abril de 1989). quatro membros desta pastoral. Nestes dois
- 10 a 14 de julho: participantes do 72 últimos anos, o arcebispo afastou os padres
Encontro lntereclesial das CEBs em Duque Tiago Thorbly, Antonio Guerin, Felipe Mallet,
de Caxias - que reuniu mais de duas mil Aloísio Fragoso e Reginaldo Veloso;
pessoas - escrevem cartas de apoio e convocou a polícia para retirar camponeses
solidariedade a Frei Carlos Mesters, a D. do palácio episcopal; entrou em conflito e
Paulo Evaristo Arns e a Frei Leonardo Boff. demitiu os membros da Comissão Justiça e
Quarenta e três bispos presentes escrevem Paz da arquidiocese. A cada nova medida
um testemunho sobre Frei Carlos Mesters e arbitrária do arcebispo, manifestações de
sobre o Cebi (Centro de Estudos Bíblicos). fiéis são organizadas em protesto. Em 15 de
- 17 a 19 de julho: encontro sobre seminários dezembro de 1989 um protesto popular
diocesanos reúne em Brasília representantes reuniu 2 mil pessoas que pediam a saída do
da Congregação para a Educação Católica, arcebispo. Em 24 de dezembro, 62 padres
15 bispos que participaram da visita da arquidiocese - incluindo conservadores -

24
assinam nota d? protesto contra a atitude de O Vaticano e o processo de "restauraçlo"
D. José de afasiar os padres. Manifestações
da sociedade civil também ocorrem de forma Numa análise objetiva deste pontificado, é
crescente: em 5 de setembro, 40 entidades preciso considerar o importante papel que o
civis e religiosas, inclusive a OAB, assinam papa desempenhou no processo de
carta aberta à população para expressar emancipação vivido pelos países do Leste
solidariedade à Comissão Justiça e Paz. europeu, em particular no caso da Polônia.
-Setembro: Frei Damien Byme, Pode-se mesmo dizer, de acordo com alguns
superior-geral da Ordem dos Pregadores, analistas, que foi sua visita àquele país em
recebe uma advertência do prefeito da 1979 que criou um clima favorável ao
Congregação para a Doutrina da Fé a surgimento do sindicato Solidariedade no
respeito de Frei Betto: refere afirmações ano seguinte. Do mesmo modo, é necessário
deste frade sobre descriminalização do atentar para os inúmeros discursos feitos em
aborto, os contatos com países socialistas e favor dos direitos humanos através de suas
critica o livro Fidel e a religiáo. viagens por quase todos os países do
- 17 a 22 de outubro: no III Encontro Nacional mundo. Ao mesmo tempo, porém, este
de Presbíteros, o documento final fala da pontificado tem se pautado pelo reforço
perplexidade diante das restrições a bispos, autoritário da hierarquia e da disciplina no
da suspeita sobre teólogos, do clima de interior da Igreja e por uma evidente
receio existente atualmente na Igreja. insensibilidade à ação dos cristãos contra a
opressão nos países do Terceiro Mundo.
1990- Janeiro: D. José Maria Pires, Analisemos isto mais de perto.
arcebispo de João Pessoa, reabre o
seminário diocesano a fim de acolher Há em curso um projeto claro de
seminaristas de dioceses do Regional modificação da fisionomia do episcopado
Nordeste 11. Professores do lter vão dar aulas mundial. A escolha dos novos bispos
no seminário reaberto (Cenap, 1989; lter e desconsidera as conferências episcopais do
CJP, 1989; Arquivo de jornais Cedi). país em questão. Em várias dioceses
- Abril: o cardeallnnocenti, responsável pela importantes, bispos progressistas foram
Congregação do Clero, envia uma carta de substituídos por bispos conservadores (4),
advertência ao clero da Arquidiocese de mesmo que isso criasse conflitos na Igreja
Olinda e Recife. Oitenta e dois padres local:
assinam uma carta em resposta ao cardeal. • Monsenhor Lustiger substitui o cardeal
-Maio: Frei Leonardo Boff recebe carta do Marty em Paris (1981 ).
provincial dos franciscanos comunicando • Angel Suquía Goicochea substitui o cardeal
uma advertência do prefeito da CDF a Enrique y Tarancón, de Madri (1983).
respeito de três artigos seus (dois publicados • Monsenhor Fresno substitui o cardeal Silva
na REB e um na revista Vozes) (3). Henriquez, de Santiago do Chile (1983).
(Acaba de ser substituído, por ter atingido o
limite de idade, por Mons. Carlos Oviedo.)

25
• Monsenhor Simonis substitui o cardeal O episcopado norte-americano começou a
Willebrands na Holanda. desenvolver uma atitude mais critica ao
• Na Áustria, H. Groer substitui o cardeal governo americano a partir de 1980, quando
Konig e recebe como bispo auxiliar Kurt do assassinato de Dom Oscar Romero e de
Kreen. quatro freiras americanas poucos meses
• Em Recife, Dom Hélder é substituído por D. depois em El Salvador. Quando Reagan
José Cardoso Sobrinho, que recebe como renovou a ajuda militar a El Salvador em
um de seus bispos auxiliares D. Martins 1981, a liderança católica se tornou hostil a
Terra. Washington. E, quando, em 1982, a ajuda
• Para Nova Iorque é nomeado J. O'Connor aos contras nicaragüenses ficou bem
(1984). conhecida, se tornaram ainda mais hostis. O
• Para Boston é nomeado Bernard Law documento que eles escreveram sobre a
(1984). questão nuclear assim como aquele em que
• Para Portland é nomeado William Levada. denunciam a política económica americana
• No Peru são nomeados sete bispos da (de Reagan particularmente) foram porém
Opus Dei. malvistos em Roma. Quanto ao primeiro,
sobre as armas nucleares, sofreu fortes
Até o início de 1987, João Paulo 11 já havia preSSOes: o governo americano chegou a
nomeado 900 bispos, quase um quarto do enviar o general Vernon Walters ao Vaticano
episcopado mundial (em 1986, havia 3.885 (Walters é ex-diretor da CIA). O episcopado
bispos no mundo e o número de dioceses alemao, particularmente o cardeal Hoeffner,
era de 2.460- cf. REB, 47(187): 734, set. também pressionou. O bispo de Seattle,
1987 e Goddijn, 1986: 208). Hunthausen, forte crítico das armas
nucleares, foi alvo de intensa campanha
É preciso observar, porém, que a nomeaçao pelos jornais e o Vaticano acabou mandando
de bispos conservadores nao começou no investigá-lo (5). E fez o mesmo com o bispo
pontifiCado de João Paulo 11: começou em de Richmond, Walter Sullivan, crítico da
fins dos anos 60. O movimento conservador corrida armamentista. O Vaticano organizou
na Igreja, em minoria durante o concílio, se um encontro de bispos americanos e
articula após o concílio para retomar pouco a alemaes: os americanos acabaram tendo de
pouco as rédeas do catolicismo mundial. O ceder e nuançaram o documento.
que ocorre no atual pontificado é que a
corrente conservadora adquire plenos Ambos os episcopados (norte-americano e
poderes. brasileiro) são criticados por suas práticas
democráticas no interior da Igreja e por suas
• posiç6es criticas no campo sócio-económico
(lernoux, 1989; Duquoc, 1990) (6).
No momento, os dois episcopados com os
· quais o Vaticano está mais em conftim sao •
os do EUA e do Brasi.

26
Tanto o engajamento prático de cristãos queimaduras por dois homens se dizendo do
(leigos, padres ou bispos) quanto a Teologia •esquadrão da morte"; este mesmo Luiz
da Libertação sao criticados quando se trata Tenderini foi destituído, no mesmo ano,
de uma luta pela libertação em países juntamente com os demais membros da
capitalistas. As condolências do Vaticano por Comissão, pelo arcebispo nomeado no atual
ocasião da morte de D. Oscar Romero foram, pontificado.
no mínimo, pouco calorosas. A atuação dos
cristãos contra a opressão nos países
socialistas não sofre restrições. Muitos
padres poloneses, por exemplo, Na América Latina há uma clara coincidência
engajaram-se a fundo no apoio ao entre as preocupações e as iniciativas do
Solidariedade por ocasião das eleições de governo americano e as do Vaticano, no que
1989 (inclusive fazendo propaganda de seus se refere à Teologia da Libertação.
candidatos nas igrejas) e isto não foi
computado no Vaticano como "fazer política". O documento de Santa Fé I, de 1980, que
Em compensação, a atuação do cardeal Sin propunha a política norte-americana para a
nas Filipinas contra o ditador Marcos não foi América Latina a ser implementada pelo
bem vista no Vaticano. (É preciso dizer que o governo Reagan, dizia:
núncio era amigo da família Marcos.)
Também o núncio na África do Sul pediu à "(...) A política exterior dos EUA deve
Igreja local que ficasse fora da política. Na começar a enfrentar (e não simplesmente
América Central, o Vaticano entrou em reagir posteriormente) a Teologia da
confHto com os padres que estavam no Libertação tal como é utilizada pelo clero da
góverno da Nicarágua e nomeou como único Teologia da Libertação. O papel da Igreja na
cardeal desta região Obando y Bravo, América Latina é vital para o conceito de
opositor declarado dos Sandinistas (Lernoux, liberdade política. Lamentavelmente, as
1989). É de se notar no caso brasileiro a forças marxistas-leninistas utilizaram a Igreja
coincidência entre a atuação repressiva do como uma arma política contra a propriedade
regime autoritário e a atuação repressiva do privada e o sistema capitalista de produção,
Vaticano. Os bispos que sofrem o assédio do infiltrando a comunidade religiosa com idéias
Vaticano sao os mesmos que sofreram que sao menos cristas que comunistas (.. .)"
perseguição por parte da ditadura militar: D. (Documento, 1981).
Pedro Casaldáliga, D. Paulo Evaristo Arns,
D. Aloísio Lorscheider, D. Adriano Hypolito, O documento de Santa Fé 11, de 1988,
D. Waldir Calheiros, D. Hélder Câmara. Até reincidia, no item ·A ofensiva cultural
os leigos atingidos sao os perseguidos pelos marxista":
órgãos repressivos: o presidente da
Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de "( ...)É neste contexto que se deve entender
Olinda e Recife, Luiz Tenderini, em março de a Teologia da Libertação, uma doutrina
1989 fora seqüestrado, espancado e sofrera politica disfarçada como crença reUgiosa com

27
uma conotação antipapa! e contrária à livre bispos que considera mais ortodoxos e ao
empresa, com o objetivo de enfraquecer a mesmo tempo mais condescendentes com
independência da sociedade a respeito do os regimes sociais existentes (nos países
controle estatista. (... )" (Sedoc, 22(216): 186, capitalistas).
set.-out. 1989).
A política eclesiástica do pontificado de Joao
Um documento militar secreto sobre a Paulo 11 está voltada para a centralização e o
Teologia da Libertação foi apresentado em reforço da autoridade eclesiástica, em
1987 na 171 Conferência das Forças especial do papa. Daí a tendência à
Armadas Americanas (de toda a América desvalorização do papel das conferências
Latina, menos Cuba e Nicarágua): episcopais, e a busca do restabelecimento
da relação direta entre papa e bispos, sem
"( ...)Determinaremos no que segue alguns intermediários. Há igualmente uma volta da
momentos particulares da configuração e da Igreja sobre si mesma: preocupação em
incidência desta modalidade operacional, em recolocar ordem na casa - ·a volta à grande
primeiro lugar, no quadro da experiência disciplina" (Libânio, 1983) -,reforçar a
religiosa do continente e na elaboraçao fidelidade à reta doutrina (ortodoxia), em
doutrinária desta, que é a Teologia da combater os "desvios· - e portanto os
Libertaçao, uma vez que ela é um fato social "desviantes· (teólogos considerados
de importância para os nossos povos e que heterodoxos). Em suma, após os tempos
nao podemos deixar de considerar com conturbados do pós-concílio, é hora de
vistas a uma apreciação mais clara e rica da restaurar a Igreja na sua doutrina e na sua
realidade que vivemos( ... )". E o documento hierarquia (Ratzinger). Com isso se leva à
segue falando da penetração do marxismo frente uma política típica dos tempos
na teologia, e assim por diante (apud Rolim, pré-conciliares. Os poucos mecanismos
1989). democráticos que tinham começado a entrar
na vida da Igreja a partir do concílio sao
A avaliação dos órgaos de segurança desprezados. Como observa González Faus,
norte-americanos e a da Congregação para a a prática aluai do Vaticano é exatamente
Doutrina da Fé no tocante à Teologia da oposta àquela proposta no discurso de
Libertaçao sao bastante semelhantes: o abertura do Concílio Vaticano 11 por Joao
marxismo como marco teórico, infiltrado na XXIII: da misericórdia ao bastao; da acolhida
teologia, o reducionismo. Para ambos, a ao mundo à desconfiança receosa do
Teologia da Libertação é perigosa e deve ser mundo; do risco da criatividade ao talento
cerceada. O Vaticano, através de suas enterrado na terra da repetição.
congregações, particularmente a
Congregação para a Doutrina da Fé, Em resumo, em vez de se voltar para o
persegue os teólogos da libertação, adverte homem, para o mundo, a Igreja agora se
os bispos que têm uma posição mais volta sobre si mesma e se fecha. Frente ao
compru.netida com o povo. E valoriza os mundo, a Igreja deve reconquistar a

28
autoridade que tinha outrora: o seu ideal (Itália); Pro Sanctitate. Para completar esta
passa a ser o de cristianizar o mundo, pois o lista deveríamos acrescentar o Opus Dei e a
mundo só é plenamente humano se for Renovação Carismática Católica. A grande
cristão (ver, nos discursos, por exemplo, o maioria destes movimentos se originou na
tema da reconstrução da Europa cristã- cf. Europa ocidental, tem organização e ação a
Blanquart, 1986; Faus, 1987). No que diz nível internacional, se caracteriza por uma
respeito à teologia moral e à questão da absoluta fidelidade ao papado e por uma
mulher há um claro enrijecimento por parte espiritualidade intimista; rejeita a
do Vaticano: vários dos teólogos que secularização; está afinado com o
sofreram processos por parte da Cúria são restabelecimento da ordem e da ortodoxia na
especialistas em moral (Charles Curran, Igreja; é contra qualquer tipo de marxismo.
Bernard Haering) (Jossua, 1987; Blanquart, Parece que o Vaticano estaria confiando
1987). mais em alguns destes movimentos leigos do
que nas antigas ordens religiosas, que eram
Entre os elementos que estão sendo as instituições em que tradicionalmente o
mobilizados nesta nova política eclesiástica papa se apoiava no governo da Igreja e no
observamos: nomeação de bispos exercício da missão (cf. Della Cava, 1989).
conservadores (reforço ao nível da
hierarquia); integração doutrinal (reforço da No que diz respeito ao reforço da ortodoxia,
ortodoxia); revalorização do enquadramento o melhor exemplo é o mais recente
juridicista: utilização intensiva do Direito documento da Congregação para a Doutrina
Canônico (reforço da disciplina); intervenção da Fé, lnst~o sotxe a voca~o eclesial do
em algumas ordens religiosas (onde pesou a teólogo. O documento redobra o controle
preocupação com o engajamento político, sobre os teólogos. Na prática, ele suprime o
particularmente na América Latina); direito à dissensão, isto é, o direito do
valorização de novos movimentos leigos de teólogo de discordar publicamente de alguma
caráter conservador. posição doutrinária tomada pelo Magistério
da Igreja. São rebatidos um a um os
Este último aspecto vale a pena ser argumentos que têm sido levantados para
ressaltado. Em setembro de 1981 realizou-se justificar este direito: seja a liberdade de
em Roma um congresso onde estiveram pensamento, sejam os direitos humanos.
presentes 17 destes movimentos. Entre seja o respeito à democracia. Manifesta uma
estes movimentos estavam: Comunhão e clara desconfiança dos meios de
Libertação (originário da Itália); A Arca; comunicação e do debate público. "Portanto
Cursilhos de Cristandade; A Água Viva; não se podem aplicar a ela (a Igreja), pura e
Luz-Vida (da Polônia); Focolari (Suíça); simplesmente, critérios de conduta que têm
Movimento Internacional Oásis (da Itália); sua razão de ser na sociedade civil ou nas
Igreja Viva (da luguslávia); Igreja-Mundo regras ,de funcionamento de uma
(Itália); Schoenstad1 (Alemanha); Sodalício democracia.· A atitude recomendada ao
da Vida Cristã (Peru); Fraternidade de Jesus teólogo que porventura discordar do

29
magistério e continuar discordando mesmo no caso do silenciamento de Leonardo Boff
depois do diálogo com as autoridades (quando do colóquio em Roma, dois cardeais
magisteriais é o silêncio. Não resta dúvida de acompanharam o teólogo, o que é um
que o documento é mais um instrumento procedimento inédito); a Conferência
para reprimir a liberdade de pesquisa e de Episcopal Norte-Americana, assim como as
reflexão teológica. religiosas americanas têm oposto tenaz
resistência às tentativas de enquadramento
No caso brasileiro, a ofensiva contra o setor por parte do Vaticano ; do mesmo modo a
da Igreja mais comprometido com as classes CNBB tem resistido às sucessivas
populares e contra a Teologia da Libertação intervenções de Roma. O documento do
está sendo levada a efeito por várias das cardeal Bernardin Gantin foi rejeitado pelas
congregações romanas: a Congregação para conferências episcopais. No caso de D.
a Doutrina da Fé (cerceando teólogos e a Pedro Casaldáliga os protestos se fizeram
própria teologia); a Congregação para os ouvir. Na Arquidiocese de Olinda e Recife,
Bispos (nomeando bispos conservadores e uma parte substantiva da Igreja tem reagido
cerceando os demais) ; a Congregação para às atitudes autoritárias do arcebispo, que se
a Educação Católica (fechando seminários encontra praticamente isolado. No caso do
considerados pouco ortodoxos e mantendo fechamento do lter e do Serene, bispos do
uma vigilância estreita sobre os demais); a Regional Nordeste 11 se mobilizaram, a
Congregação para a Evangelização dos CNBB tomou providências, D. Luciano viajou
Povos (através de declarações públicas); a a Roma, os contatos foram feitos.
Congregação para a Vida Religiosa e os Mobilizam-se os cristãos, sem dúvida, mas
Institutos Seculares (intervindo em ordens e em muitos casos, setores da sociedade civil
congregações, intervindo na Clar e em têm também se mobilizado em defesa dos
projetos específicos). atingidos, em nome da solidariedade ou
simplesmente em nome da liberdade, dos
Sendo assim, não é possível afinnar que direitos humanos. Tudo isto permite ver que
esta ofensiva esteja sendo feita à revelia ou não basta ao Vaticano a detenção do poder
sem o conhecimento dos setores dirigentes para conseguir o que quer: ele precisa
do Vaticano. também da legitimidade, de suporte político
para efetivar o seu projeto. A ofensiva do
Vaticano está criando obstáculos e
dificultando o trabalho dos se tores da Igreja
Apesar do poder indiscutível de que dispõe o mais comprometidos com as classes
Vaticano para exercer o seu controle sobre a populares, está provocando sofrimento no
Igreja Católica - um poder que se exerce meio destas pessoas. Apesar disso, o
autoritariamente, de cima para baixo-, a trabalho continua, novas comunidades de
resistência tem se feito sentir. Assim foi no base surgem , as pastorais populares se
caso da tentativa de pressionar o episcopado desenvolvem, a Teologia da Libertação
peruano para condenar Gutiérrez; assim foi prossegue o seu esforço reftexivo.

30
Talvez seja útil lembrar, como o fez o teólogo termos do modelo democrático ocidental. A querela
latente que opõe os dicastérios romanos à maneira de
González Faus, que o Concílio da
governar da Conferência dos Bispos Americanos tem
Calcedônia (século V) também foi um sua origem na lenta adaptação desta ccnferência às
concílio avançado e também sofreu inúmeras práticas democráticas da sociedade civil. Assim, a forma
tentativas de recupera~o. de revi~o. ou de de produzir os últimos documentos desta conferência,
documentos sobre o armamento e a economia,
nega~o por parte dos setores
desagradou aos dicastérios romanos , que discerniram
conservadores da época. Afirmavam ent~o no vaivém democrático das diferentes redações entre a
que o concílio anterior (o de Nicéia) tinha base católica e os bispos um bafo de democracia de
sido mais importante, tinha valor doutrinário opiniões e um sério questi onamento do principio
heirárquico : os bispos dispõem de um poder de ensinar
maior. O processo de restaura~o trouxe
que lhes é próprio, portanto não provém do povo fiel.( ... )
sofrimentos mas n~o triunfou: mais tarde o A conclusão de não aceitar uma democratização da
Concílio da Calcedônia acabou ratificado forma de governo da lg reJa católica provém de um
(Faus, 1987). mal-entendido: a democracia é considerada como o
regime no qual a opin ião majoritária se torna a norma da
verdade ou da ética. (... ) Por isso é surpreendente ver
que Igreja e democracia se opõem, como se a segunda
NOTAS fosse lugar do arbitrário. São muito mais as monarquias
do bel-prazer e as modernas ditaduras que são o lugar
1. Não é inútil lembrar aqui que toda cronologia, por ser do arbitrário" (Duq uoc. 1990: 43-44).
uma seleção de fatos, contém já u:na Interpretação.

2. Goddijn lembra que, em 1975, por ocasião do 1()Q BIBUOGRAFIA


aniversário do Concílio Vaticano 11. o teólogo Ratzinger
discursou contra uma interpretação muito otim1sta do ALBERIGO, Giuseppe. "João Paulo 11: dez anos de
movimento de renovação que se seguiu ao concílio. pontificado." Corrunicações do ISER (33) : 16-27, 1989.
Segundo ele, este mov1mento teria ido muito longe em
do1s países : a Holanda e o Brasil (Goddijn, 1987: 202). BLANOUART, Paul. "Le pape en voyage: la geopoht~que
de Jean -Pauli!.· ln : LADRIERE, Paul et LUNEAU, René
3. Deve-se notar que desde 1972 não se passa um ano (eds.). Le retour des certitudes. Evénements et
sem que este teólogo receba ao menos uma carta da orthodoxie depuis Vatican 11. Paris, Centunon, 1987, p.
Congregação para a Doutnna da Fé. 161 -178.

4 Neste artigo utilizamos o ad)etivo "conservador" no BOFF, Clodovis. "A IgreJa perante a econom1a nos EUA
segUinte sentido: conservador é aquele que tem uma (Um olhar a partir da penfena)." REB, 47(186) .356-377,
postura contrária à democratização interna da IgreJa e JUnho 1987.
que desconsidera a opção preferencial pelos pobres
numa perspectiva libertadora. BOFF, Leonardo. "Um projeto do Vat1cano para a
Aménca Latma?" Revista de Cultura Vozes (6) :
5. Além d1sso, em 1986, o Vaticano nomeou um bispo 737-756, 1989.
auxiliar para Hunthausen. Donald Wuer1, que tmha antes
trabalhado no Vaticano e f81to um inquénto sobre os CENAP. "O pastor e seu rebanho." Recife. setem bro
sem1nários americanos a ped1do de Roma (Goddijn, 1989. 52 págs. Mimeo.
1987: 211).
CEOC (Centro Ecumêmco de Onentação e
6. "Compreende-se assim que o papa João Paulo li se Convivência). "IgreJa, realtdade e esperança." São
tenha levantado com vigor contra as tendências Paulo, abril 1989 58 págs M1meo
americanas de pensar a organização edesiástica em

31
CEPIS. "Estratégia do imperialismo norte-americano HERBLETHWAITF, Peter. ,_a rêve polonais d'une
para a América Latina· Santa Fé 11." Documento n° 3. 36 chrétienté restaurée. le Monde Dlplomatlque, maio
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32
João Paulo II
e a unidade da Europa
JERZY TUROWICZ

Mais do que nunca somos testemunhas da antes de Gorbachev e de sua perestroika.


história que se faz a cada momento. N~o E um dos principais (embora n~o único)
apenas testemunhas, mas também atores e impulsos que levariam à criação do
objeto deste fazer-se da história. Aquilo que Solidariedade foi , em primeiro lugar, a
aconteceu e continua acontecendo na eleição de Karol Wojtyla para a sede
Europa Central e do Leste representa um apostólica (acontecimento que deu ao povo
marco n~o somente no nosso continente. polonês, cansado e mergulhado na
Essas mudanças significam o fim da divi~o desesperança, um novo ânimo) bem como, e
da Europa em dois blocos, cujo símbolo era de modo especial , a sua viagem apostólica à
o muro de Berlim, o retorno à Europa dos Polônia, em 1979. Na ocasião, os poloneses
países ao leste do rio Elba e o começo da sentiram pela primeira vez em décadas, e de
construção, ou melhor, da reconstrução do uma maneira muito vigorosa, a sua força e a
que se convencionou chamar ·a casa comunh~o de idéias, indispensáveis para
comum· da Europa. É evidente que o que derrotar o jugo comunista. Não menos
acontece na Europa tem um significado importantes foram as palavras de
profundo para todo o nosso planeta, dividido encorajamento que o papa dirigia sem cessar
politicamente e economicamente em Leste e ao povo polonês após a primeira tentativa
Oeste, Norte e Sul. frustrada do Solidariedade, nos anos da lei
marcial.
Os futuros historiadores analisar~o as
causas dessa mudança. Eles não poderão O papel de João Paulo 11, no entanto, não se
omitir o papel importante que teve em tudo restringiu à Polônia, embora, ao assumir a
isso João Paulo li e o seu pontificado. Essa direção da Igreja, ele não tenha deixado de
importância é sublinhada por comentaristas ser polonês, com o direito de se preocupar
da atualidade, embora alguns estejam bem especialmente com o destino de seu povo.
distantes da fé e das opiniões do papa. Desde o início do seu pontificado, sentindo -
segundo ele próprio - ·o mundo inteiro nas
Não há dúvida de que o começo concreto costas·, engajou-se de modo particular nos
dessas transformações foi em 1980, com o problemas do Terceiro Mundo, sobretudo da
surgim ento do Solidariedade, alguns anos América Latina e da Igreja da África; uma

33
parte considerável de sua atividade e dos universalmente como Joáo Paulo li. Foi
seus pronunciamentos dirigia-se também ao justamente sua palavra que animou
leste da Europa- inclusive à Polõnia -, para católicos, cristãos e também n:ío-cristãos em
os países do chamado bloco socialista. O muitos países a lutar pela liberdade, contra o
instrumento de que a Sé Apostólica se valeu jugo e a injustiça. A palavra de João Paulo 11 ,
para exercer sua influência naquela regi:ío , inspirada no Evangelho de Cristo, n:ío é uma
sobretudo nas igrejas daqueles países, foi a construção teórir:a, uma ideologia abstraia -
chamada 'política para o leste', continuaç:ío ela se apóia numa realidade histórica
- embora em outros moldes - da aç:ío concreta. No discurso de João Paulo 11
iniciada por Jo:ío XXIII e Paulo VI. Com uma transparece uma visáo cristã da Europa,
crítica decidida e firme ao marxismo imposto manifesta em suas dezenas de alocuções,
àquela regi:ío, ao ateísmo e ao materialismo, na memorável homilia em Gniezno - durante
denunciando a prática totalitária da a primeira viagem apostólica à Polõnia -,no
inobservância dos direitos humanos e do famoso Ato de Compostela, na Espanha, em
cerceamento da liberdade religiosa, Joáo Viena, em seu discurso ao Conselho da
Paulo li continuava os seus esforços no Europa, em Estrasburgo e, recentemente, na
sentido de manter o diálogo com os governos Tchecoslováquia.
daqueles países. Através de inúmeros
contatos com estadistas, de emissários que Pode-se afirmar que essa visáo cristá da
iam a Moscou e a outras capitais, através de Europa tem origem na vivência polonesa de
negociações trabalhosas, ele conseguiu Karol Wojtyla, cônscio de que o batismo da
melhorar gradualmente a situação da Igreja Polõnia no ano 966 é, ao mesmo tempo, o
na região, aumentar sua liberdade, promover começo do Estado polonês e da formação de
a reconstrução de estruturas eclesiais nossa nação e que, entre esses
desmanteladas e preencher as sedes acontecimentos, há uma relaçáo náo apenas
episcopais, algumas vacantes há décadas. temporal mas causal. De certa forma, é
Influência maior ainda do que as démarches semelhante à experiência de toda a Europa.
diplomáticas teve a palavra do papa O cristianismo que teve sua origem na
disseminada em centenas, senão milhares, margem leste do Mediterrâneo, a partir de
de homilias, discursos feitos em Roma e em Roma, espalha-se por toda a Europa, de
suas viagens internacionais, bem como em onde posteriormente os apóstolos e
suas encíclicas e em vários documentos da missionários o levam a todos os quadrantes,
Igreja. A palavra em defesa da dignidade conforme o mandamento de Cristo: 'Ide e
humana e de seus direitos, a palavra sobre a ensinai todas as nações.'
liberdade religiosa, tratada como raiz de
todas as liberdades, a palavra que proclama As fronteiras da Europa se estendem à
o homem e cada nação sujeitos do seu medida que se amplia o cristianismo. A Igreja
destino - com direito à liberdade e à condução leva a civilização aos povos bárbaros
de seu próprio rumo -e, finalmente, a palavra fazendo chegar até eles não apenas a luz do
em prol da justiça e da fraternidade universal. Evangelho, mas também a cultura; toda a
civilização européia se forma sob influência
No mundo aluai, ninguém defendeu esses do cristianismo . Disso fala, entre outros, o
valores com tanto vigor, clareza e tão historiador britânico Christopher Dawson em

34
sua conhecida obra The Making of Europe. n~o sem a sua participação- os muros que
O fim da Idade Média marca o início da separam a Europa, quando se inicia a
emancipação da Europa da tutela da Igreja e, construç~o da 'casa comum' européia, há
com o tem po, de uma gradual uma nítida consciência de que n~o é
descristianização. Antes, o Grande Cisma já suficiente fortalecer a paz e destruir os
havia separado o Leste do Oeste da Europa. arsenais de guerra, reconstruir as instituições
Posteriormente, com a Reforma, o Iluminismo democráticas, promover a integração política
e a Revolução Francesa, vamos caminhando da Europa sem o sopro de um novo Espírito
para o século XX, com as suas duas grandes para consolidar esta 'casa comum', sem a
guerras, a Revolução de Outubro e a era construção espiritual de unidade européia, e
totalitária, de cujo término somos tudo isto principalmente através de uma volta
te stemunhas. N~o é fácil responder hoje em às raízes crist~s da Europa.
dia à pergunta até que ponto a Europa ainda
é crist~ . Jo~o Paulo 11 n~o idealiza a Idade A essa volta para a unidade espiritual da
Média crist~ e tampouco condena e despreza Europa, à sua herança cristã, João. Paulo li
as conquistas da era moderna. convida desde o início do seu pontificado.
Vale lembrar aqui o extraordinário apelo
Todavia, ao analisar a chegada dos tempos contido no já mencionado Ato de
modernos fica difícil avaliá-los de um modo Compostela, em Santiago de Compostela.
positivo. Eis que o mundo que tem sua N~o sem raz~o . Jo~o Paulo escolheu este
origem na autonomia do homem e do culto lugar para fazer o seu apelo. Em Santiago de
da raz~o . proclamado pela Grande Compostela - um dos pontos da Europa
Revolução, é um mundo no qual as armas localizados mais ao oeste - está o túmulo
nucleares ameaçam destruir todo o planeta, (segundo a tradiç~o ) de S~o Tiago Maior,
o mundo dos campos de concentração, do apóstolo. Já no início da Idade Média,
extermínio de nações inteiras. De Oswiecim Santiago de Compostela atraía os peregrinos
(Auschwitz) e Hiroxima, do violento desprezo de toda a Europa. Através dos séculos
pelos direitos do homem , mundo do dirigiam -se para lá, a pé , peregrino s da Itália,
terrorismo internacional , da destruição da França, dos países germânicos, da
suicida do meio ambiente. NJ mesmo tempo, Inglaterra e dos países eslavos. Goethe - que
é o mundo em que uma fé vacilante conduz é citado pelo papa - disse que a consciência
ao ceticismo, ao relativismo e ao da europeidade nasceu nas peregrinações.
questionamento de normas éticas até os É aí que se formou a unidade espiritual da
limites do permissivismo e, em última Europa.
análise, à perda do sentido da vida.
O autor destas linhas teve a felicidade de
As transformações por que passa a estar no dia 9 de novembro de 1982 na
civilização ocidental neste século deixam catedral de ~o Tiago, em Santiago de
claro que a construç~o de um mundo sem Compostela, quando na presença do casal
Deus leva a um mundo desumano. real, dos presidentes dos episcopados de
toda a Europa, dos representantes de
Disso tudo Jo~o Paulo 11 tem plena grandes organizações internacionais e dos
consciência. Por isso, quando hoje caíram - reitores das universidades mais antigas da

35
Europa, Joao Paulo li proferiu as seguintes foi A Herança Crista da Cultura Européia e
palavras: dele participou um grupo numeroso de
intelectuais católicos vindos da Polônia. É
"Eu, Joao Paulo 11, filho da naçao polonesa, significativo, porém, que até entre os
nação que sempre se considerou integrada à católicos nao agrada a todos este
Europa, tendo em vista sua origem, posicionamento do papa. Prova disso sao
tradições, cultura e vínculos vitais, de uma dois trabalhos coletivos sob a redaçao de
naçao eslava entre as latinas e latina entre dois sociólogos franceses : René Luneau e
os eslavos, eu, sucessor de Pedro na sede Paul Ladriêre, publicados recentemente na
romana, sede que Cristo quis situar na França pela Editora Le Centurion. O primeiro
Europa e que ama pelo seu esforço de tem o título de Le Retour des Certitudes (A
divulgar o cristianismo no mundo inteiro, eu, Volta às Certezas, 1987) e o outro Le Rêve
Bispo de Roma e Pastor da Igreja Universal , de Compostei/e (O Sonho de Compostela,
de Santiago dirijo a ti, velha Europa, uma 1989), com o subtítulo : Em direção da
invocação de grande amor: Reencontra-te a Restauração da Europa Crist:i ?. Não é fácil
ti mesma I Sejas tu mesma! Descobre tua resumir aqui a tese contida nestes trabalhos.
origem! Vivifique as tuas raízes. Vivifique Reduzindo-a ao máximo, pode -se dizer que
aqueles valores autênticos, que fizeram com os seus autores, sociólogos, historiadores e
que a tua história fosse uma história cheia de teólogos católicos receiam que João Paulo 11
glória e a tua presença em outros esteja idealizando o quadro do cristianismo
continentes benfazeja. Reconstrua a tua na Idade Média, não percebendo o seu lado
unidade espiritual num clima pleno de sombrio, que não valoriza as conquistas dos
respeito para com as outras religiões e para tempos modernos (afinal , foram também
com as verdadeiras liberdades. Dai a César cristãos os que construíram a Europa
o que é de César e a Deus o que é de Deus. moderna), que não respeita a autonomia das
Não te vanglories de tuas conquistas, realidades terrenas, que a intenção da
lembrando de suas possíveis conseqüências sacralidade da Europa contém em si a
negativas. Não desanimes por estar ambição de ampliar o poder temporal da
perdendo importância no mundo, ou por Igreja, a imposição de uma ideologia e a
atravessares crises sociais e culturais. Tu ingerência na esfera laical das atividades
poderás ainda ser o farol da civilizaçao e um humanas.
estímulo para o progresso do mundo. Outros
continentes olham para ti e de ti esperam a Eles sao de opinião que João Paulo li tem
mesma responsabilidade com que São Tiago uma interpretação redutivista da abertura do
correspondeu a Cristo : 'Posso': Vaticano 11 para o mundo e que pretende
impor à Igreja ocidental o modelo polonês de
A idéia da volta às raízes cristãs da Europa religiosidade. Em suma, o propósito da
tem lugar de destaque na pregaçao de João restauraçao de uma Europa cristã abre - na
Paulo. A este tema foi dedicado o colóquio opinião deles - o caminho para o
internacional organizado em Roma, em abril fundamentalismo e o integrismo. E que neste
de 1986, pelo Instituto Polonês de Cultura caminho podemos encontrar os demônios do
Crista, com a colaboraçao do Conselho nacionalismo, da intolerância e do
Pontifício de Cultura. A temática do colóquio conservadorismo, que negam todas as

36
conquistas dos tempos modernos, a Não obstante, é uma realidade que os
liberdade autêntica e a democracia. receios e as inquietações dos críticos do
Inquieta-os, ainda, a volta da certeza da fé, 'sonho de Compostela' não passam de uma
tão característica e clara na prega~o de caricatura daquilo que João Paulo li de fato
João Paulo IL A certeza da fé e a exigência deseja e almeja.
da reconstrução da plena identidade cristã, a
exigência feita aos católicos para que A volta às raízes cristãs da Europa, o
aceitem a totalidade da fé e das normas da ressurgimento das tradições cristãs e da
moral. Esta volta à certeza carrega em si - na herança cristã não significam restaurar o
opinião deles - o perigo do dogmatismo, Ancien Régime nem, tampouco, almejar uma
mexe com o seu direito para procurar e 'nova Idade Média' da qual antes da última
duvidar, bloqueia o desenvolvimento do Grande Guerra sonhou Michail Bierdajew.
pensamento teológico bem como o processo João Paulo 11 olha para o futuro, para o
de uma renovação e reforma da Igreja. terceiro milénio. Ele não pensa naqueles
'demónios' que supostamente possam
Estes pontos de vista - comuns em certos aparecer no caminho que leva às raízes, mas
círculos da inteligentzia católica no Ocidente naqueles que agora se notam a olho nu no
(e não apenas na França) - têm, na minha cenário da Europa e do mundo inteiro. Já
opinião, uma dupla fonte. Uma delas consiste falamos deles: a ameaça de uma guerra
na crítica, senão na própria contestação, de nuclear, antagonismos e conflitos étnicos, a
todo o pontificado de João Paulo 11, possibilidade de uma volta ao totalitarismo -
acusando-o de tradicionalista e conservador, não de todo afastada - e sempre ainda a
de um triunfalismo católico, da intenção de violação de direitos humanos, a miséria e a
voltar à época pré-conciliar. A outra é, fome de bilhões de pessoas do terceiro
simplesmente, um profundo desconhecer, mundo, presentes também nos países
uma radical incompreensão deste chamados desenvolvidos. É o primado do ter
pontificado, a incompreensão das palavras e sobre o ser, o materialismo da civilização
dos gestos deste papa, a incompreensão de consumista, a perda do sentido da vida e da
sua visão da Igreja e da maneira como ele vê hierarquia de valores. Para apaziguar estes
o papel desta Igreja no mundo demónios não basta construir uma nova
contemporâneo. ordem européia, integrar as estruturas
políticas e económicas. É preciso dar à
Esta polarização de opiniões na Igreja, Europa uma alma.
mesmo quando as atitudes críticas
representam apenas uma minoria, constitui João Paulo 11 não sonha com um
um problema sério que não se pode totalitarismo católico, não almeja colocar a
menosprezar afirmando tão -somente que Europa, ou o mundo, sob o dom ínio da
essas opiniões e essas atitudes são injustas. Igreja. No Ato de Compostela, em Santiago
É indispensável que aconteça um diálogo de Compostela, ele disse o seguinte :
sério e sistemático que possibilite eliminar as
incompreensões e ajude a definir em que ·A Igreja tem consciência do lugar que lhe
consistem as verdadeiras diferenças. cabe dentro da renovação espiritual e
humana da Europa. Não exige para si a

37
posição que tinha no passado, e que os nações, enriquecendo-se mutuamente e
novos tempos cons1deram inteiramente solucionando pelo diálogo os conflitos que
ultrapassada. A IgreJa. como sede apostólica venham a acontecer, eliminando a injustiça
e como comunidade católica, está disposta a social pelo zelo aos pobres, aos injustiçados
servir, está disposta a dar a sua contribuição aos deserdados. Essa é a Europa que , ao
para alcançar o autêntico bem-estar material reencontrrar as suas raízes cristãs,
e cultural das nações." O papa separa reencontra também a sua unidade espiritua,
claramente as coisas de Deus das coisas de
César, a religião da política. Portanto, não se trata de restaurar a ordem
cristã nos moldes daquela que existiu antes
A Nova Evangelização, que João Paulo lança do advento dos tempos modernos, mas de
como um desafio para fazer frente à caminhar para o futuro , para além da
descristianização da Europa (e não apenas modernidade, vencendo as sombras dessa
da Europa), tem por objetivo não o modernidade.
fortalecimento do poder da Igreja, mas a
conversão do homem , deseja devolver-lhe o A essa Europa renovada, João Paulo apela
sentido da vida, revelar-lhe a sua vocação de para que leve ao mundo a sua missão de
serviço a Deus e ao seu semelhante e divulgar um novo humanismo, CUJO cerne
também a sua responsabilidade pelo mundo. constitui a verdade sobre o valor único de
cada pessoa humana e de seus 1nalienáve1s
A IgreJa de João Paulo 11 não é uma fortaleza d1re1tos. Essa Europa, João Paulo, Karol
que fecha o seu portão de ferro para o mal Wojtyla, nascido há 70 anos em Wadow1ce,
que está no mundo, mas, ao contrario, uma nas proximidades de Cracóvia, almeja
Igreja aberta para o mundo, disposta a conduzir através do limiar do terceiro milénio
dialogar com todas as religiões e credos, que da era cristã.
exige que o homem seja fiel à sua
consciência.

A Europa que João Paulo li deseja ver • Art1go pub/1cado no Tygodmk Powszechny, de Cracóvia
(20105190).
concretizada é 2 Europa da unidade na
diversidade, da multiplicidade de culturas e • Traduz1do por Tomasz Lychowsk1.

3H
A Europa, o papa
e o profeta Isaías
PEDRO A RIBEIRO DE OLIVEIRA
Sociólogo - UERJ- !SER

O sistema mundial moderno, fundado na todos os povos o direito de viver em paz.


divisão internacional do trabalho, criou uma
forma original de 1mpério: em seu núcleo, Os recentes acontecimentos no Leste
uma classe burguesa internacionalizada europeu, porém , vieram destruir aquela
comanda a economia, enquanto nas esperança. A URSS não quer ser o novo
periferias os povos empobrecidos Ciro, não tem intenção de deixar-se ung1r
submetem se a trocas desiguais, contra1ndo pelo Senhor para libertar os cat1vos do
dívidas e exportando suas riquezas. Tal mundo. Prefere fazer as pazes com a
como o povo JUdeu ex1lado na Babilónia, eles Babilónia, Ingressando na soc1edade de
esperavam que Deus convocasse seu consumo. Num encontro de cúpula, a Pérs1a
ung1do, C1ro, conforme prometia Isaías: e a Babilónia dão-se as mãos, selam a paz
entre si , e deixam que os pobres da periferia
"Tomei -lhe a mão direita para esmagar as sigam seu triste destino.
nações em sua presença e desarmar
completamente os reis, para abrir diante dele Wojtyla, feito papa, é um dos principais
as portas, e os portões não estejam artífices dessa paz. O discurso de paz de
cerrados. Em atenção a meu servo Jacó e a João Paulo li encaixa-se como uma luva na
meu eleito Israel, eu te chamei por teu nome, política de entendimento entre os grandes da
dei-te um sobrenome honroso, embora não terra. Exceto em sua visita à Nicarágua,
me conhecesses.· (Is. 45, 1 e 4) quando preferiu discursar sobre os outros
temas, João Paulo IItem sido um arauto da
Do exílio, na periferia do sistema, tínhamos a paz no mundo.( 1) O artigo de J. Turowicz,
impressão de que o novo Ciro já havia "João Paulo 11 e a unidade da Europa"(2), é
atendido à convocação do Senhor e iniciado muito esclarecedor a este respeito. Ele
sua vitoriosa campanha contra o mostra que a construção de uma nova
imperialismo em novembro de 1917. A URSS Europa, unificada, forte, rica , passa por um
seria aquele guerreiro forte e corajoso, capaz processo de reconstrução cultural e
de derrubar o velho império e garantir a espiritual. A Europa não volta a Compostela

39
em busca de um passado , mas em busca de limiar do terceiro milênio. Aquele que todos
sua identidade mais profunda: 'Farol de olham . Ele é forte, simples e generoso,
civilização e um estimulo para o progresso sábio, sorridente e calmo.
do mundo", conforme as palavras de João
Paulo 11, que se autodefine como 'sucessor O homem novo. Sem uniforme.
de Pedro na sede romana , sede que Cristo
quis situar na Europa (sic) e que ama pelo Aquele que se tem no coração. Que faz rir de
seu esforço de divulgar o cristianismo pelo felicidade . Que sofre em silêncio, que ama
mundo inteiro'. (Cit por J. Turowicz) sem esperar, sem cobrar, sem perguntar,
sem rodeios. O homem a quem se fez mal, e
O eurocentrismo , agora renovado e em alta, que dorme sem fechar os olhos. De futuro
encontra no discurso de paz do papado sua radioso .
melhor expressão. Esquecem-se as guerras,
faz-se de conta que acabou a corrida Que a Europa espose o homem que ela ama
armamentista, e a velha Europa dá a si e que o mundo por eles gerado seja de paz,
mesma uma nova identidade : síntese da de amor e liberdade.·
tradição e da modernidade, ela pretende ser
sinal de paz para o mundo. Derrubado o Como se tornam aluais, neste contexto, as
muro de Berlim , a Europa quer dar lição de palavras de Marx, quando fala da religião
liberdade e democracia. (Mesmo porque como 'espírito de um mundo sem espírito"!
cabe aos EUA o papel impuro de polícia do Quando o ser humano não consegue
mundo.) realizar-se pelo trabalho porque a energia
humana tornou -se mercadoria, alienando-se
Uma pérola desse novo eurocentrismo pode o trabalhador do seu trabalho e de si mesmo,
ser encontrada no edital da revista cultural da o capitalismo cria um mundo sem espírito.(3)
Universidade Católica de Louvain, publicada Mas não existe mundo sem espírito! Se
por sua associação de ex-alunos em janeiro entendemos por espírito o sopro, a força da
de 1990: vida, aquilo que move a humanidade e o
cosmos, não há como retirar o espírito do
'Vinda do túmulo de lalta, levantou-se a mundo. De fato, o mundo capitalista não
noiva perdida. É inacreditável! Ela fala. Já perdeu o espírito : apenas o incorporou ao
caminha a passos firmes. Corre-se a ela, capital, consumando a alienação não só de
seguindo-a, tocando-a, apressando-a. quem trabalha, mas de toda a humanidade
Corajosa, inteligente e bela, jovem , mais (agora submetida ao jugo do capital).
jovem que nunca! Negado o espírito que está no corpo de
quem trabalha, o capitalismo precisa de uma
Ela avança, com o olhar voltado para o outra forma de espiritualização do mundo.(4)
homem que ela escolheu. Aquele que ela E quem vem lhe oferecer o espírito em
recebeu das mãos do cristianismo, aquele abundância? A velha mestra no assunto, a
que romperá, com a força de seus braços, o Igreja Católica Romana ...

40
Wojtyla representa a própria alma européia. à morte para os pequenos. Ciro não quer
É o homem que vem do centro do continente, destruir a Babilónia; antes, aliou-se a seus
da vida rude, católico desde muitas antigos inimigos, com a bénção do sumo
gerações, homem para quem a verdadeira pontífice. Aos excluídos do banquete, só
cultura bebe nas fontes do cristianismo resta voltar a Isaías. Ele previa a unção de
ocidental. Tem tudo para ser o líder moral da Ciro com o vingador do povo de Deus, mas
nova Europa, e, por extensão, de todo o nunca jogou toda a sua esperança nos
mundo capitalista. A 'nova evangelização' exércitos persas. Estes não seriam mais do
representa uma injeçáo de espiritualismo que ferramentas para um plano de libertação
num mundo cuja espiritualidade se muito mais ampla: a libertação que vem do
esvaneceu num céu distante: o mundo próprio povo.
fantástico do capital e da mercadoria. Agora
o espírito é infundido pela mediação da Das periferias do império, agora tripartite,
Igreja, com seus templos, seus ministros nasce uma nova espiritualidade. Quem vive a
sagrados , seus rituais tradicionais, seus pobreza - aquela situação onde a vida está
mosteiros, mas também com os novos constantemente ameaçada de não poder
movimentos espiritualistas que animam a reproduzir-se - não despreza a matéria.
vida com seu intimismo religioso. Se não há O espírito que está no mundo da pobreza
lugar para a vida espiritual no mundo do não é um espírito confinado aos espaços
capital e da mercadoria, cria-se espaço para etéreos. Ao contrário. Para o pobre, e para
ela na esfera privada e familiar. Ao menos quem se põe no lugar do pobre , o corpo é
por alguns momentos as pessoas templo sagrado do espírito. Toda a matéria
encontrarão nos espaços sagrados da Igreja está prenhe do espírito vital. O trabalho é
um alimento espiritual e a satisfação das vida, a terra é vida, a água é vida, o mundo
suas necessidades humanas mais todo é vida. Diz o poeta que ·o verbo ter é a
profundas ... Felizes os convidados para morte de Deus"(5). A matéria tem coração,
essas bodas do papado com a Nova Europa I dizia Teillard de Chardin, para quem até um
Mulheres e homens ricos, bem nutridos, gráozinho de areia tem seu "dentro'. Nada é
cultivados, sorridentes e pacíficos, terão a pura exterioridade, pura coisa. O espírito
partir de agora sua demanda espiritual está na matéria. De forma privilegiada, está
satisfeita nas renovadas fontes do na matéria humana: homem e mulher,
catolicismo romano. crianças, adolescentes, adultos e idosos. E
quanto mais integrados no cosmos, mais
Olhando tudo isso a partir da periferia, próximos à natureza e à materialidade da
solidário com a enorme massa de povos e vida, mais o espírito é neles atuante. Por
pessoas sacrificadas ao capital, os pobres, isso, são dispensáveis 'mestres em
aleijados, cegos e coxos que não foram espiritualidade' que buscam o espírito
convidados para a festa das bodas, sinto na separando-se da vida - sem outra
boca um gosto amargo de abandono. A paz qualificação do que ser a vida que se vive.
entre os grandes do mundo é a condenação Quem confia no Deus da vida, no Espírito

41
que vivifica, na Trindade que cria a matéria admiram , diante dele os reis ficam mudos;
humana à sua imagem e semelhança, no pois vêem algo que jamais lhes foi contado , e
Deus encarnado na história para ressuscitar chegam a saber o que nunca tinham ouvido.·
e criar o homem novo e a mulher nova, pode
abrir mão do espiritualismo triunfante de O novo ' servo sofredor" são os pobres do
Compostela. mundo inteiro , quando se organizam para
sua libertação. Ninguém lhes dá valor, os
Terminado o sonho de vermos o novo Ciro grandes teóricos os ignoram , mas é deles
em sua vitoriosa campanha de aniquilamento que pode vir algo de novo na História.
do império, voltamos novamente os olhos ao
profeta Isaías, em busca de outra pista. E a Estaria portanto muito enganado quem visse
pista que ele nos dá são os cânticos do nesses cânticos uma apologia do
'servo sofredor' (Is. 42, 1-4; 49, 1-6; 50, 4-9; conform ismo ou a imagem de um deus
e 52, 13 - 53, 12): sacioso de sacrifícios humanos . O que aí
temos é o grito de esperança dos oprimidos,
'Pus nele meu espírito ; ele levará o direito aos dos lascados e desprezados do mundo , e
povos. Ele não esmorecerá nem se deixará que pode ser resumido por um verso de um
abater, até estabelecer na terra o direito. dos hinos mais cantados nas CEBs:

Enquanto eu pensava 'em vão me afadiguei, ' Eu acredito que o mundo será melhor
inutilmente e por nada consumi o meu vigor', quando o menor que padece acreditar no
contudo o meu direito estava com o Senhor, menor.'
minha recompensa junto de Deus.
NOTAS
O Senhor Deus me deu língua de discípulo,
para que eu saiba confortar ao abatido com 1. J. G. Vaillancourt. "Le Pape et la paix", Social
uma palavra de alento . Cada manhã ele Co"1>ass, 37, 2, 1990. É interessante notar que o autor
não faz menção ao episódio de Manágua, quando o
desperta meu ouvido, para prestar atenção papa mandou calar-se a multidão que clamava por paz.
como um discípulo.
2. J. Turowicz. "João Paulo 11 e a unidade da Europa",
Era desprezado, era o refugo da humanidade , publicado nes te número de Corrunicações do !SER.
homem das dores e habituado à enfermidade; 3. Carlos A. Steil desenvolve bem este tema em sua
era como pessoa de quem se desvia o rosto, tese sobre Alienação e transcendência: a realidade e
tão desprezível que não fizemos caso dele. o devir humano, Rio de Janeiro, lesae, 1990 (mimeo).
Eis que meu servo será bem-sucedido, subirá,
4. A este respeito, os excelentes ensaios de H. Assmann
será exaltado e elevado bem alto. Assim como e F. Hinkelammert, em A idolatria do mercado, Vozes ,
muitos se sentiram horrorizados à vista dele - 1989.
tão desfigurado estava que já não parecia
homem e seu aspecto já não era o de seres 5. O verso de Moacyr Felix, citado por H.
mortais -, do mesmo modo muitos povos se Assmann, op. cit, p. 83.

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Encontros e desencontros dos
cristãos latino-americanos
LUIZ ALBERTO GÓMEZ DE SOUZA
Centro João XXIII e IFCS - UFRJ

Ser sensível aos novos problemas que vão Os cristãos e a civilização ocidental
surgindo sem parar é uma meta nem sempre
possível de alcançar. As novidades trazem Uma observação rápida em relação à
freqüentemente uma aparência estranha e presença dos cristãos na sociedade em
rude que assusta; tão mais fácil pareceria diferentes momentos mostra compassos e
sucumbir à tentação das rotinas e das idéias descompasses. Muito se escreveu sobre o
feitas. Inclusive aqueles que inovaram papel da Igreja quando ruiu o império romano
ontem, recentemente iconoclastas e e chegaram os povos selvagens que vinham
transgressores, podem instalar-se mais do leste. Santo Agostinho, na próspera
facilmente do que pensam nos louros de comunidade de Hipona, morreu angustiado
suas audácias passadas e, sem se darem com a idéia de fim dos tempos. Tinha razão
conta, ir construindo uma posição quanto ao futuro das comunidades da África
neoconservadora. Neste final de século, por do Norte, que logo depois terminariam de
exemplo, setores da esquerda radical, desaparecer com o assédio do mundo árabe.
enredados ainda hoje nos debates entre Mal sabia ele que seu cristianism o ia
trotsquistas e stalinistas dos anos 30, dão ressurgir mais ao norte, entre povos
freqüentemente um espetáculo curioso de atrasados, para criar inclusive uma resistente
falta de renovação e de envelhecimento nas civilização que duraria dez séculos. Ali
idéias e posições. Por outro lado, há um estavam os cristãos, sem o saber, nos
espaço da novidade mais efémero do que mosteiros, nas pequenas comunidades que
parece, com seus modismos, suas se reorganizavam, participando ativamente
imposturas e improvisações sem da articulação de um novo tecido social ,
consistência. O mundo das crenças está deitando nas bases da economia, recriando o
cheio deles. Como estar atentos aos sinais poder político, outras idéias e valores. Mas a
dos tempos, sem enveredar por trilhas História não se detém e esconde suas
irresponsáveis e fugazes? Para isso não há ironias: o que era inserção fecunda pode
respostas gerais, fica apenas o lembrete de transformar-se mais adiante em prisão e
indispensáveis cautelas. inércia. Tão grande era a ligação com o

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mundo medieval que, quando ele começou a Encontro tardio e nem sempre crítico com a
desmoronar, os cristãos ligados a Roma - modernidade que , se trouxe o fantástico
que se chamariam católicos logo depois - legado das liberdades cívicas, foi
não souberam abandoná-lo para ir ao responsável pelos aspectos perversos do
encontro da modernidade. Esse equívoco se capitalismo concentrador das riquezas.
manteria pelos próximos séculos, agravado Superando a recusa de setores tradicionais,
pela Contra-Reforma, com a dificuldade para outros se modernizariam na aceitação
desembaraçar-se do Ancien Régime. sôfrega e sem distinções de tudo o que
Algumas vozes se levantariam aqui e ali, parecia aluai.
mas permaneceriam isoladas. Assim
Frederico Ozanan, em 1848, ano do
Manifesto de Marx e de Engels, lançou seu Os cristãos na América Latina
'passemos aos bárbaros', para repetir o
gesto com que 'Roma (a Igreja), abandonara Na Am érica Latina, a Igreja chegara de
o trono carunchado de Bizâncio (o império)'. maneira ambígua com os conquistadores,
E para ele, na ocasião, os novos bárbaros a destruindo indiscriminadamente velhas e
encontrar eram os operários e a república. sábias civilizações am eríndias. Hoje, na
Sabemos que , em 1891 , o Papa Leão XII I comemoração dos quinhentos anos, é tempo
falaria de 'coisas novas', a questão social , de fazer um cuidadoso balanço. A Igreja
talvez novidade para os cristãos, porém com estava tão ligada ao novo sistema social que
mais de meio século de práticas para os se implantava, que seria o apoio dos setores
movimentos socialistas europeus. E poucos dom inantes, da colónia às independências
meses depois, o mesmo papa teria de nacionais. Os católicos se sentiam , então,
escrever uma severa carta aos bispos muito à vontade nos partidos conservadores
franceses para obrigá-los a reatar contatos latino-americanos, que expressavam os
com a temida república. A Igreja nào interesses das velhas oligarquias rurais.
conseguia entender as contradições da Certamente se desenvolveria ao mesmo
modernidade, cum suas idéias liberais, seus tempo uma religiosidade popular em meio ao
estados-nações e seu sistema capitalista. A povo simples, mas freqüentemente vista com
desconfiança ou a recusa em bloco eram desconfiança pelos setores 'oficiais' do
sinais de desadequação e insegurança. A catolicismo .
crise modernista, no começo deste século,
foi indicação eloqüente dessas resistências e O notável , no entanto, é que o
medos. Já bem perto de nós, João XXIII aggiornamento da Igreja em nossa região, a
falaria da necessidade de aggiornamento, partir dos anos 60 , iria muito além da
pôr-se em dia com os novos tempos. E o atualização que ocorrera na Europa, e aí
Vaticano li fez um enorme esforço para está uma de suas maiores façanhas. O
dialogar com o mundo europeu do esforço para pôr-se em dia com a realidade
pôs-guerra, superando os temores diante dos social, o mundo industrial , moderno e
modernismos, da liberdade e da democracia. capitalista, se faria desde a perspectiva de

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nossa situação dependente, concentradora e A reunião de Medellín, em 1968, fora
excludente. E isso permitiu uma aproximação pensada como a aplicação do Vaticano 11 à
que foi ao mesmo tempo um distanciamento América Latina. Entretanto, em vez de uma
crítico. É certo que um bom setor dos adaptação acrítica, seus documentos,
cristãos latino-americanos, influenciados inesperadamente, colocaram -se numa
pelas experiências democratas-cristãs, postura bem mais original, falando de
depois de um encontro envergonhado com a dependência, denunciando o "pecado social"
modernidade, entraria de cheio no apoio de nas estruturas sociais e econômicas e
suas estruturas sociais, políticas, privilegiando o pobre. Isso foi possível graças
econômicas e culturais. Num certo momento, a toda uma série de experiências em várias
nos anos 60, foi lançada a idéia de uma Igrejas locais durante quase uma década, a
"teologia do desenvolvimento", mencionada partir dos trabalhos de educação popular e
no encontro do GELAM em Mar dei Plata, na dos movimentos de jovens da Ação Católica
Argentina, tomando uma idéia em moda nos especializada e instigados pela revolução
organismos internacionais como a CEPAL e cubana. Estavam surgindo as primeiras
aqui no Brasil , presente na reflexão do ISEB comunidades de cristãos no meio popular e,
e nos esquemas do recentemente criado paralelamente, ligada a elas, uma reflexão
BNDE. Mas logo outros setores de cristãos, a teológica ia abrindo caminho teórico a partir
partir dos movimentos populares, das das novas práticas. Assim , um mês antes de
experiências de educação de base, das Medellín, o peruano Gustavo Gutiérrez, em
organizaçóes sindicais e dos partidos de Chimbote, lançava numa palestra um
esquerda, propuseram uma reflexão crítica programa do que deveria ser, nos anos
diante do capitalismo periférico e passaram a seguintes, uma "teologia da libertação".
insistir em libertação, termo que surgira nos
movimentos políticos de libertação nacional e Começou então uma década, de Medellín a
nas buscas de uma educação "como prática Puebla, de 1968 a 1979, das mais fecundas
da liberdade" (Paulo Freire) . É verdade que a na Igreja Católica, como exemplo de
idéia de liberdade - libertação, por influência inserção dos seus membros na história e nos
dos esquemas teóricos economicistas (e o desafios de seu tempo. Foram se
marxismo teria aí uma contribuição que era solidificando as comunidades eclesiais de
ao mesmo tempo uma limitação) - base no Brasil, no Equador, no Peru, em El
privilegiaria a dimensão necessária da Salvador ou no México ; em nosso país
superação das estruturas de um modo de surgiram a CPT e o CIMI , renovaram -se a
produção injusto, sem dar a mesma ênfase pastoral operária e a pastoral da juventude.
às necessidades de liberdades cívicas e Ao mesmo tempo, durante os anos da
pessoai s. Isso teria conseqüências mais repressão autoritária, terrível entre nós de
adiante, como se verá. Mas já foi uma 1969 a 1975, houve choques entre a Igreja e
contri buição importantíssima, com resultados o Estado, e aquela se constituiu como um
inestimáveis, ainda que parciais, como tudo dos poucos espaços de liberdade e de
que é histórico. organização popular. A década de 70 foi

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então muito rica em práticas pastorais últimas foram emergindo em tantas
criativas e renovadas, abertas às experiências de organizaçao, de tomada de
transformações sociais e econômicas, consciência e de práticas variadas. O mundo
fortemente críticas às estruturas de das idéias também esteve presente. Diante
concentraçao da riqueza. Desenvolveu-se do esvaziamento das propostas liberais e da
uma reflexão teológica original, deu-se uma pobreza, para não falar na inexistência de
renovação bíblica etc. Os cristãos estavam um pensamento conservador, a contribuição
na linha de frente do processo político e do marxismo foi fundamental para a "crítica
social da região. Basta comparar sua da economia política" e o desvelamento dos
ausência no triunfo da revolução cubana em mecanismos materiais da alienação do
1959 com sua visibilidade na Nicarágua de homem e dos fetiches econômicos. E os
1979, vinte anos depois. cristãos não deixaram de se beneficiar
dessas análises. Até então, eles tinham
É preciso cautela, para evitar generalizações estado mais à vontade nas dimensões da
ou triunfalismos. A Igreja Católica esteve filosofia e da ética social, dos projetas do
sempre atravessada pelos conflitos sociais e dever ser e dos "ideais históricos·. Análise s
ideológicos, e o caso da Nicarágua é um das estruturas, das relações de produção e
bom exemplo dessas contradições. Se a das contradições concretas lhes eram bem
Igreja no Chile teve uma presença mais difíceis de captar. Uma lógica dialética,
significativa na luta pelos direitos humanos a acostumada a lidar com uma realidade
partir de 1973, seu silêncio foi lastimável na contraditória, causava espanto para quem
Argentina. Setores conservadores e fora formado na lógica formal escolástica. O
modernos são inclusive hegemônicos em encontro dos cristãos com o pensamento
muitas situações nacionais. Mas o que marxista foi um processo complexo que não
importa aqui assinalar é a "força histórica" de há tempo de tratar aqui. Oito Maduro o fez
certas experiências renovadoras que, mesmo com maestria em texto que poderá ser lido
minoritárias, pelo impacto de sua irradiação, nesta mesma publicaçao. Em artigo já antigo ,
passaram a articular as idéias-chave da "Breve nota sobre a análise marxista",
Igreja em seu conjunto, como se deu em publicado na Revista Eclesiástica Brasileira
Puebla, com sua "opção preferencial pelos meses antes da reunião de Puebla
pobres· . (dezembro de 1978), tratei de indicar suas
dimensões e limites. As contribuições do
Tudo o que foi ocorrendo teria de ser marxismo não escondiam, porém , seu
analisado no contexto mais global da reducionismo ao econômico e sué: aposta
América Latina, com suas lutas sociais, suas nas regras do jogo da modernidade vigente.
divisões ideológicas, a contribuiçao de Isso era, aliás, inevitável num pensamento
diferentes correntes políticas etc. Essa que se construíra no clima de crença no
presença da Igreja junto às classes progresso próprio ao século XIX e não o
populares seria impensável sem um habilitava para enfrentar novos desafios que
processo histórico anterior em que essas se colocariam nas últimas décadas, quando

46
a própria modernidade foi sendo povo simples, à problemática da
crescentemente questionada. Uma subjetividade, do corpo, da sexualidade, do
aproximação crítica ao marxismo poderia gênero e do prazer, dos pluralismos raciais
permitir o aproveitamento de suas etc. Isso não é indicado para desmerecer
contribuições, sem ficar prisioneiro de seus tudo o que se alcançou no processo
impasses. Isso, porém, é mais fácil de libertador, mas para reconhecer os limites
postular no plano das intenções do que de inevitáveis.
pôr em prática e um certo fascínio por um
pensamento rico e complexo, se por uma Entretanto, além disso, há que fazer justiça
parte iluminou novas perspectivas de análise, ao processo vivido, freqüentemente mais rico
por outro lado impediu muitas vezes de ver do que o pensado. As práticas populares,
mais além de suas estreitezas. Tal coisa dando ocasião a que o povo simples se
ocorreu tanto com os movimentos populares expressasse, 'dissesse sua palavra', libertou
em geral, quanto com os cristãos que ali energias profundas e desenvolveu práticas
estavam presentes. Graças ao marxismo, de participação inesperadas. Um dos
eles puderam descobrir e analisar melhor grandes resultados foi a importância desse
certos mecanismos de dominação e de último elemento. E quem exige participação
alienação. Também por causa dele não já não está fazendo um exercício de
estiveram sempre atentos a outros desses democracia? Menos presente como
mecanismos. Aliás, não era o próprio programa proposto do que como prática
marxismo quem chamava a atenção para o experimentada, o aprendizado democrático
contraditório do real e do pensar e para os foi uma constante das pastorais populares. E
limites historicamente postos deste último? inclusive ocorreu de maneira paradoxal,
·A humanidade só se propõe as tarefas que numa instituição onde as estruturas de
pode resolver (e) ... a própria tarefa só autoridade são muito fortes, como é o caso
aparece onde as condições materiais de sua da Igreja Católica. Sem falar nas práticas
solução já existem ou, pelo menos, são autoritárias da esquerda, de tradição
captadas no processo de seu devir." Faltou, Ieninista, onde o papel das vanguardas e dos
porém, perceber que há mais condições do dirigentes foi sempre cuidadosamente
que as 'materiais', mas a simplificação faz preservado, até ruir estrepitosamente diante
parte dos limites e dos condicionamentos de dos movimentos libertários dos últimos
qualquer autor, incluídos Marx e os meses, que parecem ir levando de roldão
marxismos subseqüentes. uma teoria revolucionária ortodoxa que não
se sustenta mais em pé. Em contraste, o
As opções 'libertadoras· não estiveram movimento popular mais espontâneo e as
assim tão atentas ao tema da democracia, práticas pastorais menos tuteladas por
das liberdades cívicas, das idéias e valores ·agentes· controladores têm uma sede de
populares (que Gramsci assimilaria falar, participar, debater, que irritam e
apressadamente ao sentido comum), aí confundem os que têm projetes e programas
incluídas as crenças e a religiosidade do prefixados. Aliás, na crise atual de projetes e

47
programas, libertadora e criativa, a raz~o Latina, parece ter sido um momento
parece ir ficando com esse "povinho" privilegiado para a inser~o dos crist~os na
questionador e incômodo. realidade social, ainda que com seus limites
e contradições. Gostaria nesta parte final de
Também o clima dos processos de liberta~o indicar alguns problemas novos que foram
foi secularizante e, deste ponto de vista, bem surgindo e que exigem uma observa~o
moderno. A religiosidade era vista como muito atenta e cuidadosa.
alienada por um pensamento que se
pretendia científico. Uma vez mais o povo Com rela~o à América Latina, os problemas
simples, com suas práticas, foi-se impondo estruturais foram aumentando na década que
sobre a raz~o dos intelectuais, candidatos a terminou. Apesar dos programas e dos
·orgânicos·, isto é, dirigentes das projetas dos governos e dos organismos
consciências. Quantas vezes a pastoral internacionais, da proclama~o de três
libertadora n~o entrou no clima "moderno· do "décadas de desenvolvimento" pela ONU , a
pós-concílio, simplificando liturgias, banindo realidade social se deteriorou sempre mais.
cultos dos santos e romarias, adaptando-se a Já o documento de Puebla afirmava que a
uma sensibilidade urbana, de selares médios situa~o era pior em 1979 do que no tempo
letrados. Mas quantas outras vezes ela n~o de Medellín. A crise econômica mundial dos
foi reocupada pelas crenças do povo e por anos 70 fazia mais longínquas ainda as
suas devoções ... A religiosidade popular foi possibilidades de transformações sociais no
pacientemente recuperando espaços nas chamado Terceiro Mundo. Foi o tempo do
práticas e, logo depois, nas reflexões endividamento crescente e da sempre maior
pastorais teóricas da própria Teologia da concentra~o de renda. Um documento da
Libertaç~o, que num primeiro momento CEPAL de maio deste ano traz dados
tomou certa distância do mundo das crenças, impressionantes sobre o aumento da
para logo depois ser submergida por elas. pobreza crítica e da miséria, da desnutri~o
Nos últimos encontros intereclesiais das infantil etc. (CEPAL, Magnitud de la pobreza
CEB's, há um clima de celebraç~o , de cantos en América Latina en los af!os ochenta,
e de gestos que mostra essa penetra~o Santiago do Chile, 31 de maio de 1990).
profunda da religiosidade popular, tão Sabemos que os primeiros anos da última
afastada de uma racionalidade moderna e década agravaram ainda mais os
científica de certas esquerdas e inclusive de estrangulamentos econômicos e sociais da
posições libertadoras dos anos 60. década anterior. Muita coisa aconteceu no
mundo, da crise econômica de 1981/1982 ao
desabamento do Leste europeu em 1989. Os
Novos desafios se apresentam especialistas cunharam uma expressão
terrível para o caso da América Latina: a
Estas observações encaminham ao último década perdida. Entretanto, essa expressão,
ponto deste tema de encontros e uma vez mais indica a limitação economicista
desencontros. A década de 70, na América da maioria das análises. Se a situaç~o

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económ ico-social se deteriorou, continuaram da Universidade de Paris uma paráfrase bem
os esforços de organização na sociedade livre da sentença célebre : "Majestade, não é
civil: seguiram adiante, apesar das uma revolução ; trata-se de uma mutação."
di ficuldades, associações, movimentos, Começo de uma era aquariana, cantavam os
clubes, iniciativas as mais diversas, formais e jovens num musical americano daquela
Informai s, fragmentadas e heterogéneas, época. Logo depois, os anos 70 pareciam
articulando-se em redes flexíveis. Eram às contradizer as previsões talvez apressadas e
vezes organizações de vida efémera mas falou-se em refluxo dos movimentos da
que , inclusive em razão de sua própria contracultura. Alain Touraine, um dos
fragilidade, não se esclerosavam tão analistas mais atentos aos movimentos
rapidamente como outras formas de sociais, já em 1969 dizia que a recente
agregação. O mundo das grandes rebeli:ío dos jovens não tivera um amanM,
organizações - aí incluído o Estado - foi isto é, um resultado imediato, mas poderia
ficando cada vez menos manejável , apesar ter um futuro , logo mais adiante. E durante a
dos progressos no campo das técnicas década de 80, num processo menos
organizativas e da informática. espetacular que 1968, foram se
Os movimentos sociais, mais ou menos sedimentando experiências e transformações
espontâneos, foram mostrando uma significativas.
vi talidade maior do que corporações,
burocracias, partidos e grandes centrais Fernand Braudel perguntava, desde alguns
sindicais. Há como que um dinamismo social anos, se não estaríamos no fim de um
que vem de novos e mais decisivos período histórico de "longa duração", que
processos. começara há quinhentos anos, com o
renascimento europeu e os tempos
Mas para entendê-los, há que sair da modernos. Fim da modernidade? Crise da
América Latina e senti -los numa dimensão modernidade? Crise na modernidade? Pouco
mais global. Desde 1968 foi chegando a importa a expressão preferida, toda previsão
sensação de que alguma coisa mais do futuro é sempre uma aposta incerta. Vale
profunda estava ocorrendo no underground notar transformações que foram ocorrendo
da sociedade, para além dos problemas do ao nível do real e da consciência sobre o
si stema sócio -económico, da dicotomia real , na sociedade e nos paradigmas do
capitalismo-socialismo e dos projetos de conhecimento. Lentamente a última década
mudança através da ocupação do poder foi desvelando a profundidade de uma crise
político. Uma inscrição que apareceu no que lançava dúvidas sobre os aspectos da
maio parisiense era ilustrativa desse razão, especialmente da razão instrumental,
sentimento . Durante a queda da Bastilha, em da ciência e alargava a consciência dos
1789, diante da observação do rei de que horizontes da realidade e de sua
estava ocorrendo uma revolta, um dos seus complexidade. Os reducionismos - e aí o
ministros corrigira: "Trata-se de uma economicismo - passaram a ser cada vez
revoluç:ío." Em 1968 se podia ler nos muros menos tolerados. Também a ilusão de

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marcos explicativos seguros, globais e subjetividade, o afetivo, a superação do
totalizantes foi sendo questionada. Depois da antropocentrismo etc. Durante alguns anos
ambição cientificista do século XIX, um novo houve a pretensão de uma artificial divisão
desafio: como conviver com explicações de tarefas: os problemas sócio-económ icos
provisórias e fragmentadas? Ruíram as com o Terceiro Mundo e os alternativos com
grandes sínteses e com elas os projetas os países industriais. Hoje, vai ficando cada
globais prefixados. Crise, entre outros, do vez mais evidente como essa separação é
paradigma marxista e do socialismo insustentável: a pobreza crítica é problema
científico. Mudaram as aproximações ao de todo o mundo e não podemos pensar o
conhecimento do mundo e os físicos foram futuro da América Latina sem a contribuição
os primeiros a dar um exemplo de humildade ecológica e feminina . Aliás, o adversário dos
e de audácia (Prigogine, Capra, Hawker. .. ). movimentos populares rurais entre nós é
Os cientistas sociais, que tinham tido a cada vez mais o mesmo dos ecologistas: a
tentação de descobrir na sociedade as grande empresa industrial , moderna,
mesmas inexoráveis leis newtonianas do predadora e poluidora. Chico Mendes reuniu
universo (ver as leis do materialismo em seu exemplo e sua morte duas
histórico), tiveram de revisar suas ambições dimensões de um mesmo processo de
(os economistas tecnocratas parecem ser os libertação : dos seringueiros e da floresta
menos conscientes de tudo isso, prisioneiros amazónica.
de seus sistemas e suas tentações de
poder). Chegava-se àquela situação que E aqui se colocam desafios inéditos para os
Emmanuel Mounier já antevira, quando disse cristãos que, nos anos 70, souberam
que na sociedade se tratava menos de fazer descobrir processos históricos de libertação
previsões aventureiras, do que de construir ao nível sócio-económico. Estarão eles
projetas abertos, como propostas possíveis igualmente atentos a outras dimensões? A
de implementar. E antes de mais nada, tendo tarefa não é fácil. No caso da Igreja Católica,
como base e ponto de partida as sua ética sexual estreita dificulta uma
experiências que se estavam fazendo, a abordagem tranqüila e aberta dos problem as
partir da práxis concreta (o valor da práxis da afetividade. Uma leitura tradicional do
seria aliás uma contribuição inestimável do "dominai a terra" tampouco dá espaço para
marxismo, numa de suas mais relevantes uma sensibilidade aos direitos da natureza e
intuições). à vida que pulsa em todos os seres e no
próprio universo.
E práticas fecundas foram brotando dos
novos movimentos sociais: os femininos, Não se trata de abandonar um legado
questionando a dominação masculina, os inegociável, a opção pelos pobres, mas de
ecológicos, fazendo repensar a relação abri-lo a novas perspectivas. Já se disse
homem-natureza, os raciais etc. Novas mais atrás que o problema da pobreza social
tem áticas foram sendo colocadas, ampliando segue presente e cada vez mais
a pauta dos problemas sócio-económicos: a escandalosamente grave. Mas cresce

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também a consciência de outras dimensões de nossas razões e legítimos direitos. A
das opressões e das dominações, assim Igreja na América Latina tem de unir suas
como fica mais patente a ilusão de certas forças e não desgastá-las em discussões de
receitas politicas ou económicas. A crise dos pouco fôlego . Para isso precisamos
socialismos reais indica a falência de reconhecer a interpelação do Senhor,
modelos e a necessidade de transformações presente no sinal dos tempos" (revista
bem mais profundas e a longo prazo. Alargar Páginas, Lima, Peru, outubro de 1988).
a visão é uma necessidade para quem não
quiser ser superado pela rapidez com que É muito significativo que a espiritualidade, a
vão aparecendo sempre novos oração e as celebrações litúrgicas ocupem
questionamentos. Estamos obrigados a cada vez mais posição central nas
repensar num horizonte planetário , e ao preocupações pastorais em renovação. A
mesmo tempo ancorados em nossas sensibilidade social esvaziada de
realidades locais, toda uma maneira de transcendência, própria de uma relrgiosidade
perceber a realidade e de enfrentá-la. secularizada e moderna, pode transformar a
Os caminhos da libertação se fazem cada fé numa opção ideológica a mais, fazendo -a
vez mais exigentes e os cristãos perder seu caráter irredutível. É o risco de
latino-americanos, na reunião de Santo um debate, por exemplo, entre Fé e política,
Domingo, em 1992, terão de continuar reduzido ao nível de propostas
Medellín e Puebla dando alguns passos bem sócio-económicas e que pode ir
à frente . Ficar apenas na repetição do degenerando numa simples relação entre
passado é trocar audácia pela acomodação ideologia e política. A Fé tem raízes bem
ou pelo medo. Em texto recente, Gustavo mais fundas e a modernidade em crise,
Gutiérrez indica uma tarefa para os anos 90 : questionando as ambições da razão , das
"Mirar lejos" (expressão tirada de um texto de ciências e dos projetas históricos, vai
João XXIII, pouco antes de sua morte) ; a desocultando o dinamismo do sagrado. Fica
partir das práticas da caminhada, com os o desafio para nossas pastorais : lugar de
olhos postos num horizonte utópico sempre encontro com Deus ou apenas espaços de
mais à frente , recriando e repensando sem motivação social? A resposta já vem sendo
cessar. Só assim a libertação irá adquirindo dada pela prática das comunidades
uma abertura bem mais abrangente, populares, a partir de sua religiosidade e de
escapando dos reducionismos que podem suas esperanças. Aí estamos longe da
transformá-la em ideologia simplificadora. O atitude ao mesmo tempo cética e segura da
teólogo peruano insiste: "Olhar longe. Para modernidade. Uma velha frase de Chesterton
além de nosso pequeno mundo, de nossas mantém sua atualidade : ·o mistério é a
idéias e discussões, de nossos interesses, saúde do espírito.·
de maus momentos e - por que não dizê-lo -

51
1989: a rejeição da violência

RUBEM CÉSAR FERNANDES


Museu Nacional - !SER

Os acontecimentos de 1989 na Europa do contraste entre a não-violência no eixo


Leste ultrapassaram os limites da Leste/Oeste da Europa, e a fúria ao Sul,
imaginaç:ío. Atares, público, críticos, fomos entre a Europa e Ásia, reforça o interesse do
todos surpreendidos pela dinâmica que nos tema. Na Europa do Leste, em meio às
envolvia. A cada passo um impulso para maiores transformações, a violência foi
novos saltos. O ano de 1989 não será desarmada.
esquecido. Não será rotineiramente
assimilado tampouco. Há de permanecer em Suponho que o fato seja significativo, que
destaque, como um desses marcos diga algo importante sobre o sentido das
históricos cujo relato faz as vezes do mito, transformações. Limito-me a indicar um único
matriz referencial para explicações e ponto : esta foi uma revolução contra o
disputas normativas. Já não é admissível espírito revolucionário. As múltiplas e
falar de ·revolução" sem a ele fazer variadas insatisfações concentraram -se na
referência. O ano de 1989 dialoga com 1789 recusa ao mito fundador do sistema. Dizer
e com 1917. "recusa", aliás, é dizer pouco, pois a rejeição
foi mais profunda. Nem "revolução" , nem
Um dos aspectos impressionantes é o modo "contra-revolução", mas a desmoralização
pacífico das transformações. Leviathan, o desta forma de pensar e o desgosto por uma
senhor da guerra, foi derrotado sem de suas características centrais, a
violência. Varsóvia, Praga, Budapeste, racionalização ideológica do uso da
Dresden, Berlim , cidades familiarizadas com violência.
as grandes brutalidades, refazem os
percursos da conflagração, pacificamente. A associação entre "revolução" e "violência',
O mesmo vale, até aqui, para os portanto, parece-me estar em julgamento na
acontecimentos na Rússia, nos países maneira pela qual os europeus do Leste
bálticos, Bielo-Rússia, Ucrânia. N:ío vale, desvencilharam-se do antigo regime. Ele
contudo, para os Bálcãs, o Cáucaso, ou as constitui um tema forte para quem se
repúblicas soviéticas da Ásia central. O preocupa em entender o que se passou.

52
Vale lembrar que a história efetiva do resistência contra as invasões externas e à
socialismo na Europa do Leste foi marcada ofensiva contra as resistências interiores.
por um elevadíssimo grau de violência. Quanto maior o seu progresso, dizia Stalin,
Nasceu em meio à Primeira Grande Guerra, maiores as agressões e as resistências. A
que fez algo como três milhões de mortos decadência precipitou -se, justamente, com a
entre civis e militares da Grande Rússia. 'coexistência pacífica· cristalizada no tempo
Impôs-se através de uma guerra civil ainda de Brejnev. Ao que tudo indica, a vitalidade
mais cruenta, com cerca de sete milhões de do regime dependia do valor da luta.
vitimas. Avançou numa segunda onda
revol ucionária, com a coletivização forçada Os dados e o cenário são reforçados pelos
do campo e o primeiro plano qüinqüenal, na instrumentos conceituais. Pensa-se
passagem dos anos 20 para os 30. 'oposição' como "contradição", o que em
Krushtchev estimou em 10 milhões os mortos termos lógicos requer a eliminação de um ou
neste processo, mas os cálculos estatísticos de ambos os termos da oposição. Pensa-se
tndicam mais de 16 milhões. Os expurgas e 'polaridade' como 'dicotom ia', busca-se o
processos de 1934 e 1938 trouxeram para esclarecimento dos 'antagonismos';
dentro do partido a dinâmica da resoluç:lo interpreta-se a história humana como uma
violenta dos conflitos. Entre 1,5 e 2 milhões 'luta de classes', e o progresso histórico
de quadros partidários desapareceram. como a universalização desta luta.
As perdas com a Segunda Guerra Mundial
montam a mais de 20 milhões. Contando As categorias de pensamento veiculadas
ainda o exílio e vítimas da fome , entre 1914 pelo discurso revolucionário induzem à
e 1946, o passivo demográfico soviético é convicção de que pensar o social com
calculado em cerca de 60 milhões de vidas, o objetividade significa preparar -se para a
equivalente a 1/3 da população da URSS no guerra.
pós-guerra! Depois, veio a Guerra Fria, e
seguiu o Gulag. Impossível é separar 'objetivo' e 'subjetivo'
no entrelaçamento dos dados, do cenário e
Estes dados significam que cada pessoa tem dos conceitos na história das revoluções.
mais de uma história trágica para contar
acerca de seu passado próximo. Essas Impõe-se como tragédia que escapa ao
histórias, por sua vez, são concatenadas controle dos mortais. É impressionante e
pelo cenário da Grande Luta Revolucionária significativo, portanto, que o çjesgosto com
que informa o imaginário soc1al. Stalin em essa história fosse acompanhado de um
pessoa afirmou ser uma lei do movimento radical de recusa dos seus
desenvolvimento que a luta de classes é termos. As dissidências e as oposições
acirrada, ao invés de moderada, com o cresceram cultivando as formas pacíficas da
avanço do socialismo. A "revolução" enfrenta argumentação verbal , da desobediência civil ,
o "cerco" das potências inimigas, e seu da simbologia cristã do martírio passivo. A
heroísmo está intrinsecamente ligado à imagem de Gandhi passou a ser exposta

53
com freqüência nas salas das paróquias agridem . Difícil explicá-lo pelo senso com um
polonesas. A piedade crist~ ganhou a sociológico, t~o dependente da lógica
potência das intenções radicais. ·vencei o egoísta dos "interesses·. N~o estranha que
Mal com o Bem'·. disse Jo~o Paulo 11 em sua as principais lideranças intelectuais
visita à Polónia, frase que se tomou o lema brotassem n~o das "ciências·, mas das
do padre Popieluszko, capelão do "belas letras·. É o pensador Mazowiecki na
Solidariedade, e que veio a ser repetida Polónia, o dramaturgo (teatro do absurdo!)
milhões de vezes pelos manifestantes a na Tchecoslováquia, o filósofo na Bulgária, o
começar do imenso funeral de Popieluszko, maestro na Lituânia, pastores na Alemanha.
torturado e morto pela polícia de milhares de Os assessores de Havei ~o personagens
concentrações. Na Alemanha, a derrubada conhecidos dos cabarés artísticos de Praga.
do Muro culminou em festas históricas,
animadas pela cerveja, o rock e as sinfonias. Os cristãos latino-americanos que se
Vaclav Havei, o líder tcheco, já havia escrito aproximaram do marxismo nos anos 60
que os destruidores das bastilhas são incorporam então o valor da "luta• pela
forçados a construir outras bastilhas ainda justiça. Confrontados agora pelos eventos de
maiores. Em suma, a grande transforma~o . 1989, têm a oportunidade de repensar as
neste caso, foi gestada através de múltiplos relações de sua fé com a violência contida na
gestos de conten~o dos impulsos que tradi~o revolucionária.

54
A desmitificação do marxismo
na Teologia da Libertação
OITO MADURO
Sociólogo e filósofo

"Não haver deus é um deus também" latino-americana e as tradições políticas e


Fernando Pessoa, 1926 intelectuais do marxismo na América Latina.

Para ser mais exalo, permitam -me dizer, em


Introdução: uma análise sociológica da poucas palavras, o que este ensaio não
Teologia da Libertação? pretende tratar. Não vou me referir ao
marxismo ou à Teologia da Libertação tal
Quase um quarto de século depois do como deveriam ser. ou como essencialmente
nascimento da Teologia da Libertação o são. Não me pronunciarei sobre o valor em
latino-americana, penso que chegou o termos de verdade, a bondade e o peso
momento apropriado para uma análise (do histórico da Teologia da Libertação ou do
ponto de vista da sociologia das religiões) marxismo. Pelo contrário. esforçar -me-ei
desse importante movimento religioso. Alguns explicitamente por limitar-me aos
especialistas já começaram a trabalhar nesse acontecimentos da história latino-americana
sentido: Luiz Alberto Gómez de Souza, recente. Dentro dessa história, pretendo
François Houtart, Madeleine Adriance, Pablo concentrar-me nas relações existentes entre
Richard, Thomas Bruneau, Ralph Della Cava, dois movimentos ideológicos (no sentido
Diego lrarrázaval, Margaret Crahan, Michael amplo do termo) - a Teologia da Libertação e
Dodson, Scott Mainwaring, Ted Hewitt etc. o marxismo - e verificar de que forma eles
Este estudo, porém , contém uma proposta estão interagindo, exercendo influências
que difere parcialmente do objetivo daqueles mútuas. Desejo formular algumas hipóteses
cienti stas sociais. Prefiro apresentar algumas acerca do que poderia ser interpretado como
hipóteses- embora de forma pouco um processo de desmitificação do marxismo,
elaborada- que estimulem a investigação por parte da Teologia da Libertação
sociológica a respeito da Teologia da latino-americana.
Libertação. Além disso, pretendo limitar-me a
uma área bastante específica: as relações Antes de entrar neste campo de estudo, quero
existentes entre a Teologia da Libertação estabelecer algumas premissas. Os meios de

55
comunicação de massa projetaram e Proponho aqui uma hipótese exatamente
reforçaram uma imagem predominante a contrária a essa imagem predominante da
respeito da Teologia da Libertação, que Teologia da Libertação latino-americana. Não
contribuiu para superestimar as convergências desejo, de forma alguma, negar a influência
existentes entre ela e o pensamento marxista e a presença do marxismo na Teologia da
- o que não aconteceu com relação às Libertação latino-americana (e também as
diferenças e oposições entre os dots coincidências entre os dois tipos de
pensamentos. Vários sociólogos (Samuel pensamento). Embora inflados e exagerados,
Silva Gotay e Marvin Dunn) - além de outros, são aspectos indiscutíveis da realidade atual
entre os quais me incluo -, bem como, de da Teologia da Libertação latino-americana.
uma perspectiva oposta, Roland Robertson, Por outro lado, esse movimento contribuiu,
William Garrett e William Swatos - com toda certeza, para uma dessatanização
consideraram adequada essa imagem e do marxismo. Apesar daquelas influências do
empreenderam investigações que marxismo na Teologia da Libertação
confirmaram as hipóteses nela implícitas. E latino-americana ( ou então apesar delas,
mais: uma leitura rápida dos principais autores além delas e, de certa forma, em oposição a
da Teologia da Libertação latino-americana elas), esta forma de teologia contém um
(Gutiérrez, Boff, Sobrino, Richard, Dussel, processo subjacente, em constante
Segundo, Támez, Galilea etc.) não detectaria crescimento, de crítica e rejeição a aspectos
com facilidade críticas ou desacordos do marxismo que, em geral, são
explícitos ao marxismo - especialmente se considerados fundamentais pela maioria de
essa leitura é feita inconscientemente, do textos, líderes e partidos marxistas da
ponto de vista da imagem predominante na América Latina.
Teologia da Libertação. Pior ainda: parece que
os simpatizantes e os inimigos do marxismo Especificamente em relação a esse
se alegram de ver na Teologia da Libertação processo, desejo apresentar algumas idéias,
uma imagem predominantemente marxista - surgidas de contatos que empreendi e do
o mesmo acontecendo com todos os inimigos estudo que fiz a respeito da Teologia da
(e alguns amigos) da Teologia da Libertação. Libertação latino-americana. Talvez seja
Enfim, acredito que deve ser levado em pertinente assinalar, de antemão, que não
conta o fato de que tanto o marxismo como a sou (nem pretendo ser) um observador
Teologia da Libertação constituem minorias ·neutro· do processo em questão. Sou um
perseguidas, com numerosos inimigos sociólogo da religião e procuro ser tão
comuns, tarefas convergentes e audiências objetivo quanto possível. Tenho consciência
parcialmente coincidentes, em quase todos de meus preconceitos e admito que estes
os países latino-americanos. Esse fato talvez podem ser um obstáculo a minha percepção
contribua para que entendamos o motivo da realidade: não sou pessoa estranha à
pelo qual ambos os movimentos subestimam Teologia da Libertação latino-americana e ao
(em vez de sublinhar) as diferenças e marxismo. Espero que esta dupla condição
desacordos mútuos. (sujeito e participante de meu próprio objeto

56
de análise) me ajude a captar e articular um O marxismo como simples ferramenta e
processo real (em vez de fictício) que não é não como uma cosmovisao Intocável
facilmente apreendido de fora.
Inicialmente, parece que uma análise atenta
De qualquer forma , minhas hipóteses se das múltiplas expressões da Teologia da
referem à Teologia da Libertação não como Libertação latino-americana (TdLLA, para
um movimento meramente intelectual, mas simplificar) indicaria o seguinte : a presença,
também de caráter prático (organizacional, no seu interior, de elementos (expressões,
litúrgico, pol ítico etc.): um movimento que, símbolos, formas de organização, de
constantemente, está gerando valores, pensamento ou de conduta) que podem ser
condutas e relações que afetam a vida diária identificados como marxistas (de acordo com
de um número crescente de critérios sérios) é, no máximo , um tanto vaga.
latino-americanos. Assim, não é apenas (nem
tanto) nos textos, mas no comportamento A TdLLA efetuou (inconscientemente) um
cam biante daqueles grupos eclesiais saque livre, quase caótico , na tradição
latino-americanos (que, de alguma forma , marxista: tomou dela expressões, símbolos,
participam ativamente da Teologia da modos de organização, pensamento e
Libertação) que se teria de fazer um confronto conduta e deu-lhes formas que variam de
com as hipóteses levantadas neste trabalho. acordo com o respectivo país, lugar, grupo,
autor ou período. Alguns indivíduos e grupos
Finalmente, gostaria de situar esta proposta filiados, de alguma maneira, à TdLLA se
no contexto de uma preocupaçao mais autoqualificam de marxistas com mais
ampla. Tenho a impressao de que a Teologia freqüência do que se imagina - e, com o
da Libertação está contribuindo para o decorrer do tempo, esse ato de
aparecimento de uma nova ética - no sentido autoqualificação explícita pode revelar
clássico que encontramos em Max Weber -, bastante incoerência. Um sociólogo arguto
a qual já está servindo de estímulo para não deveria, a priori, considerar estas (ou
determinadas situações culturais, políticas e outras) taxonomias como válidas. Uma tarefa
económicas, dentro do contexto sociológica séria, nessa área, deveria
latino-americano. Penso que essa ética consistir, em parte, na tentativa de
(tanto no aspecto teológico como nas reconstrução da lógica social que rege os
implicações económicas e políticas) está processos de auto e heteroqualificação ,
caminhando num sentido que se opõe a especialmente quando eles fazem parte de
muitos aspectos sagrados para a tradição outros processos sociais mais profundos e
marxista latino-americana. Creio que a amplos de confrontação, deslegitimização,
Teologia da Libertação está desmitificando, exclusão etc. (o que sucede amiúde com a
dessacralizando o marxismo. Pretendo, etiqueta de marxista).
então, apresentar aqui alguns aspectos
indicativos de que essa dessacralização está Creio que o motivo por que a relação da
se efetuando. TdLLA com o marxismo parece constituir um

57
saque livre, caótico e incoerente poder ser intelectuais, autoridades governamentais,
este : a lógica intelectual e a lógica textos canónicos) sobre a ortodoxia dessa
organizacional que regem esse saque são apropriação. A interação com a comunidade
geradas fora das fronteiras das organizações eclesial é que regula a lógica e os limites da
e dos intelectuais marxistas. São lógicas apropriação de certos elementos marxistas
produzidas dentro de igrejas, cujas teologias por parte de grupos e porta-vozes da TdLLA.
e organizações subministram o marco que É a dinâmica complexa da ortodoxia
regula aquele saque do marxismo por parte eclesiástica (e não da ortodoxia marxista)
da Teologia da Libertação latino-americana que preside esse processo - igualmente
(mas não sem a ocorrência de inovações, complexo - de apropriação simbó:ica.
tensões, conflitos e reacomodações) . Ou
ainda: suspeito que a relação da TdLLA com Que fator, portanto, orienta a forma através
o marxismo (sociologicamente falando) não é da qual a TdLLA se relaciona com o
caótica nem incoerente. Essa relação marxismo? Para me expressar em termos
poderia ser interpretada como um processo estruturalistas: parece -me que o que regula e
(inconsciente) de seleção daqueles determina o acesso da TdLLA a certos
elementos do marxismo (vocabulário, elementos do marxismo não são as
símbolos, escritos etc.) que parecem oposições e associações desses elementos
apropriados para suas próprias estratégias, (por exemplo, a expressão luta de classes, a
micro e macrossociais - do ponto de vista de percepção de empresa privada capitalista
certos grupos eclesiásticos, colocados em como um negócio sujo, um livro de Lenine, o
determinadas relações, tensões e conceito gramsciano de intelectual orgânico
transformações micro e macrossociais. etc.), dentro do discurso, organizações ou
governos oficialmente reconhecidos como
Esse sentido sociológico estrito , que percebo marxistas. Não. O que regula e determina o
no marxismo, se converteu numa ferramenta acesso da TdLLA a certos elementos do
dentro da TdLLA: certos grupos e membros marxismo é, de preferência, a experiência do
de igrejas cristãs (sem filiação, lealdade ou interesse e da possibilidade concreta de se
identificação com qualquer instituição colocar esses elementos dentro da estrutura
tradicional e propriamente marxista) recorrem de oposições e associações do discurso, das
ao arsenal simbólico do marxismo, organizações e lideranças oficiais da própria
apoderando-se e desfazendo-se daquilo que Igreja. Tenho a intuição de que esse
lhes parece estar contribuindo para o avanço processo leva a termo não apenas uma
de suas próprias estratégias intra e determinada dessatanização do marxismo,
extra-eclesiais (e não a dos marxistas). A como também sua dessacralização. Isso
chave da avaliação desses processos parece acontece porque o marxismo é considerado
estar no seguinte fato : tal apropriação é por seus novos usuários como algo que não
realizada sem se dar a devida atenção à exige uma lealdade total, algo que não está,
opinião das agências tradicionais e necessariamente, ligado a certos partidos e
propriamente marxistas (políticos, políticos, que não exige a renúncia a

58
concepções e organizações religiosas , que inferior (histórica e intelectualmente) a outras
não tem caráter "uno, único e excludente". formas de conhecimento e de ação
Quando esse processo consegue realizar-se humanas. Por outro lado, a ciência, o
plenamente, ele não provoca a exclusão de ateísmo, a economia e a política são vistos
pessoas nele envolvidas de suas próprias pelos marxistas como formas superiores à
igrejas e chega a consolidar (ou fortalecer) religião- isto é, superando-a, excluindo-a e
no espaço religioso seus interesses e refutando-a.
posições. O marxismo passa, então, a ser
considerado por essas pessoas e grupos A teoria e a prática da TdLLA estão, a meu
como uma massa desintegrada e caótica de ver, desenvolvendo-se explicitamente em
ferram entas ou instrumentos, alguns dos oposição a essa pretensão tradicional do
quais podem ser apropriados e outros marxismo.
rechaçados - sem ressentimento de qualquer
tipo. Na realidade, as profundas lutas Na realidade, a TdLLA encara, cada vez
internas entre facções marxistas mais, aquela concepção marxista de religião
(pró-soviéticas, pró-cubanas, trotskystas, como uma típica (mas inconsciente)
maoístas, pró-albanesas, luxemburguesas, ideologia da classe média branca, masculina,
eurocomunistas etc.) parecem exercer uma intelectual, urbana. Através dessa ideologia,
influência escassa (ou até nula) sobre a (como aconteceu, no passado, com a
relação da TdLLA com o marxismo. liderança liberal anticlerical de nossos
próprios países latino-americanos) certas
Durante muito tempo, o marxismo foi !rações da classe média urbana afirmam sua
encarado, por alguns sociólogos da religião, identidade e sua superioridade em relação às
como um movimento cripta-religioso : po ssuía classes subalternas, negam que o povo tenha
cronologia, espaços, livros, doutrinas e capacidade para ter uma criatividade cultural
autoridades sagradas, com profetas, doutores, autónoma (e/ou negam a va:idade dessa
mártires e santos, com hereges, inquisições criatividade) e tratam de impor aos oprimidos
e excomunhões - mas tudo isso sob o manto o controle e os preconceitos culturais das
do ateísmo. De qualquer maneira, afirmo que mesmas !rações da classe média.
a TdLLA está, atualmente, desmitificando e
dessacralizando o marxismo. A TdLLA propõe e expressa, de certa forma ,
algo oposto: a religião é vista como o
am biente tradicional e normal de vida entre
A inferioridade da religião como uma os oprimidos. E é também a partir da religião
ideologia de classe a mais (com os desafios, tensões e mudanças que
sempre acompanham esforços desse tipo)
A maior parte das organizações, autores e que se efetua a luta contra a opressão : os
líderes autoqualificados e reconhecidos oprimidos se esforçam por se tornarem
como marxistas na América Latina entende sujeitos ativos, criadores e autónomos, em
que o marxismo encara a religião corno algo relação a uma cultura nova e válida - tanto em

59
continuidade, como em oposi~o parcial a os conceitos políticos, jurídicos etc .) e
suas tradições culturais, próprias e reprimido na prática (através da polícia, do
específicas. exército, do sistema legal etc.) as lutas que
os oprimidos empreendem para poder
Tal processo leva, indubitavelmente, a participar das instituições (inclusive das
conflitos religiosos: entre a inércia do instituições religiosas) e decisões que afetam
passado e os desafios do presente, entre a suas próprias vidas. Esse comportamento
liderança religiosa tradicional e a criatividade tem se repetido através do tempo, desde os
surgida de baixo para cima, entre os administradores espanhóis das Índias, no
interesses dos marginalizados e dos século XVI , até , mutatis mutandi, a maior
privilegiados. Na perspectiva da TdLLA, parte dos governos latino-americanos da
esses conflitos estão sendo avaliados e atualidade. Com esse processo, as elites
enfrentados, sem que se abandonem as conseguiram , parcialmente, minar a
antigas estruturas religiosas, mas, pelo auto-estima, a autoconfiança, a iniciativa e a
contrário, com o empenho de modificá-las de organiza~o do povo, em geral , forçando-o a
dentro para fora (tanto na forma, como no uma atitude de dependência, com a
conteúdo). É uma perspectiva totalmente conseqüente perpetuação das relações de
alheia ao marxismo ortodoxo tradicional , para dominação atualmente existentes. Apesar
o qual os interesses dos oprimidos numa disso, surgem constantemente entre os
sociedade capitalista só podem ser oprimidos novos esforços com o objetivo de
defendidos através de uma perspectiva se reconquistar uma certa autonomia - o que
científica (que equivale a materialista, atéia, representa uma ameaça aos poderes,
para o marxismo tradicional). privilégios e hábitos das elites. Alguns
desses esforços, no sentido da reconquista
da autonomia dos oprimidos, estão
A inibição da criatividade religiosa acontecendo exatamente na área das
popular: um tipo de opressão tradições e estruturas religiosas.

A rejei~o (mais concreta do que teórica) da Apesar disso, as organizações e textos


TdLLA ao desprezo que o marxismo ateu marxistas desprezam - com inusitada
sente pela religião tem ainda outra dimensão. freqüência - essas explosões de criatividade
religiosa, rotulando-as, desdenhosamente,
Entre outras tendências da história de ilusórias, contra-revolucionárias,
latino-americana, a TdLLA identifir.ou a diversionistas ou irrelevantes. Deliberada ou
nega~o contínua e sistemática (por parte implicitamente, as organizações e textos
dos opressores) da capacidade que o povo marxistas, ao se depararem com a criatividade
tem de passar a ser o sujeito ativo e criador cultural autónoma dos oprimidos (por
de sua própria história. Segundo essa exemplo, no campo religioso), submetem-na
interpreta~o. as elites latino-americanas têm à liderança e aos métodos de uma das !rações
negado na teoria (com a filosofia, a teologia, marxistas preexistentes (em geral dirigida por

60
um grupo de intelectuais, homens brancos, esperando delas a defin i~o e solução de
urbarx>s). Assim, com a nega~o dos métodos seus problemas. Ou em outros termos:
de luta e liderança surgidos da experiência e segundo a praxis da TdLLA, quando os
tradições dos oprimidos, impondo-lhes os marxistas negam, de forma elitista, a
métodos de uma elite alienígena, as criatividade religiosa popular, eles estão
organizações e textos marxistas reforçam, contribuindo para perpetuar o próprio sistema
freqüentemente, o autodesprezo, a de opress:lo e privilégios, aos quais o próprio
passividade, a dependência e a fragmenta~o marxismo pretende opor-se.
das classes oprimidas (assemelhando-se,
com isso, aos efeitos de certas novas seitas Vou mais longe ainda. A escolarizaç~o das
religiosas na América Latina). novas gerações que pertencem a famílias
pobres freqüentemente põe os jovens em
Na minha opini~o . a TdLLA está contato com a armadilha da ascensão social
impulsionando e consolidando a criatividade, individual e, simultaneamente, com as idéias
a iniciativa e a autonomia religiosa dos revolucionárias do marxismo. Quando voltam
oprimidos, contribuindo, assim (simbolica e para casa, muitos desses jovens
materialmente), para aumentar a intensidade experimentam um processo de real a l ienaç~o
de sua luta contra a opress~o . Nesse (rejeiç~o dos atos, signos, valores e estilo de
processo de fortalecimento religioso dos vida das classes operárias e adoção dos
oprimidos, freqüentemente a TdLLA é valores da classe média) . Dentro desse
obrigada a confrontar e questionar os processo de alienação (condicionado,
esforços feitos pelos marxistas para controlar também , pela revolta dos adolescentes contra
e inibir a criatividade religiosa do povo em a autoridade dos pais). alguns jovens adotam ,
geral. A aç:lo da TdLLA implica, inconscientemente- entre outras coisas -, o
parcialmente, o seguinte fato : a crítica mais vocabulário, a argumentação e a organiza~o
generalizada e usual que o marxismo faz à marxista como armas para questionar e
religi:lo quase sempre se transforma em rechaçar a autoridade e as tradições dos
mais uma forma de opress:lo, num mais velhos. Mas o que sucede, então,
mecanismo através do qual se consolida ultrapassa em muito o nível de um simples
uma percepç:lo elitista do povo em geral. conflito de gerações: muitos jovens marxistas
Essa percepç:lo elitista implica a seguinte se convertem, assim , em agentes ativos e
conce~o : a maior parte das pessoas não inconscientes das elites e debilitam a
sabe mesmo o que é bom para elas e, de auto-afirmação e as formas de associação
qualquer modo, s~o incapazes de descobrir, que poderiam ter permitido que os
sozinhas, esse fato . Parte ainda da explorados se opusessem à opressão, de
pre ssuposiç~o de que são outras pessoas forma dinâmica, criativa, autónoma e efetiva.
(na elite masculina, branca, intelectual Por isso mesmo, os jovens de setores
urbana) que sabem o que é bom para o povo populares participam desse conflito
- e que, conseqüentemente, as classes (inadvertidamente e inconscientemente) ,
populares devem olhar apenas para as elites, como agentes de opressão, inibindo a

61
criatividade cultural (inclusive a religiosa) dos TdLLA encaram a expansao desse
oprimidos, mediante uma determinada pensamento teológico como algo necessário
manipulação do marxismo. A prática da TdLLA para que a opressão seja vencida - em
aponta, precisamente, em direção oposta e outras palavras, como se a derrota da
com mais freqüência do que se imagina. exploração capitalista na América Latina
fosse, hoje em dia, impossível sem a
participação ativa dos próprios cristãos. Por
Religião, tator capaz de estimular a luta outro lado, ainda não encontrei na TdLLA
anticapltalista (nem em seus textos, grupos ou ações) a
idéia de que o marxismo seja necessário,
Vários textos de Marx e Engels, que compõem como instrumento para aquela luta
a ortodoxia marxista, afirmam que a natureza anticapitalista; na TdLLA, o marxismo, no
da religião a leva, inapelavelmente, a máximo, é considerado como ·parcialmente
mascarar e disfarçar a opressao social - e útil" a essa tarefa.
que a natureza do capitalismo o leva,
inapelavelmente, a não permitir que a religião Na realidade, nos círculos da TdLLA a
desempenhe qualquer papel importante em revolução sandinista é freqüentemente
sua área de domínio (muito menos um papel considerada como uma revolução bem
subversivo) . Em ambos os aspectos, a teoria lograda (parcialmente), anticapitalista
e prática da TdLLA se choca com o marxismo. (parcialmente) e, freqüentemente , é
considerada a primeira revolução com as
Inicialmente, a TdLLA leva a um esforço seguintes características: é uma revolução
explícito para desmascarar, denunciar, cujo êxito se deveu à participação ativa e
criticar e subverter relações sociais crescente dos cristãos, em todas as fases,
opressoras, partindo de um ponto de vista lutas e níveis da Frente Sandinista. Essa
explicitamente religioso. Esse explícito explicação pode ser adequada ou exagerada.
propósito da TdLLA (abstração feita de suas No entanto, isso é absolutamente irrelevante
reais conseqüências) já a coloca numa para o objetivo deste estudo, no qual desejo ,
posição antitética ao marxismo - mesmo simplesmente, sugerir que o marxismo não é
quando coincide, parcialmente, com considerado, nos círculos da TdLLA como
intensões políticas de organizações algo que tem (ou teve) um papel tão
marxistas- e apesar de recorrer, para tal, a importante assim na revolução sandinista.
certos elementos teóricos marxistas. Ele está sendo desmitificado na TdLLA- isso
é inegável.
Mas isso não é tudo. A TdLLA vê a luta
vitoriosa contra a exploração capitalista não Num certo sentido e do ponto de vista da
apenas como uma mera possibilidade, mas, TdLLA, pode-se dizer que o papel do
em certo sentido, como um imperativo - pelo marxismo numa revolução anticapitalista
menos, em primeiríssimo lugar, para os latino-americana está sendo radicalmente
crist~os. Além disso, os participantes da minimizado e relativizado (sem que, no

62
entai •lU , :>eJa Inteiramente negado ou concepção marxista de que a religião só tem
excluído). Simultaneamente, a importância sentido dentro da luta de classes - e apenas
da relig1ão naqu la revolução (como já em sociedades pré -capitalistas.
afirmei antes) está sendo sublinhada e
enfatizada pela TdLLA. Esses processos Para a TdLLA a religião (especialmente o
convergentes apontam na mesma dire~o : cristianismo) é uma referência de sentido
uma desconstrução do marxismo como um dentro do capitalismo - particularmente para
todo que deve ser aceito (ou rechaçado) em aqueles que estão oprimidos dentro desse
sua globalidade, tanto na qualidade de um sistema e em luta contra ele. As comunidades
todo sagrado como na de um todo satânico. eclesiais de base (CEBs) muitas vezes lutam
É, sem dúvida, fato novo, tanto para especificamente para a reconstrução de
marxistas, como para não-marxistas. redes autônomas de sobrevivência, amiúde
desmanteladas pelo processo capitalista, e
esforçam-se (entre outros recursos) por
A validade da religião como algo que vai recuperar o sentido daquelas vidas que estão
mais longe do que o capitalismo e a luta frustradas, deslocadas e ameaçadas pelo
de classes desenvolvimento capitalista. Na realidade,
uma parcela do questionamento que a TdLLA
Para o marxismo tradicional, ortodoxo (e faz ao capitalismo consiste na denúncia de
novamente os textos de Marx fundamentam que esse sistema social nega, na prática, a
facilmente esta afirmação), a religião é existência de qualquer tipo de transcendência,
exclusivamente um produto da sociedade de privando, assim, a vida humana de um
classes. Segundo essa (predominante) significado que a religião (que vai além da
interpretação do marxismo, a religião está, idolatria que a TdLLA encontra e critica no
provavelmente, condenada ao capitalismo) pode devolver à própria vida. A
desaparecimento, quando a propriedade reflexão teológica no seio do capitalismo
privada for abolida. Na realidade - diz o deveria precisamente - do ponto de vista da
marxismo ortodoxo-. muito antes do advento TdLLA- implicar um esforço para que a fé
do socialismo, a confrontação econômica cristã se articulasse com o sofrimento a as
direta entre o proletariado e a burguesia lutas dos oprimidos. Isso deveria ser feito de
dentro do capitalismo varrerá para sempre a forma que essa reflexão teológica permitisse
religião da face da terra. simultaneamente a descoberta de um sentido
para aquele sofrimento e, igualmente, o
Essa é outra idéia-chave do marxismo impulsionamento de lutas com o objetivo de
ortodoxo que está sendo rejeitada pela teoria se superar o sofrimento resultante da
e prática da TdLLA. Mas, insisto, com isso explora~o. mediante a eliminação da própria
não estou querendo que a TdLLA prove que explora~o - entre outras coisas.
essa idéia-chave do marxismo é errônea ou
não. Apenas desejo expressar que a TdLLA No entanto, o significado da religião para a
rechaça (tanto na teoria como na prática) a TdLLA não diminui nem se esgota com a

63
'crítica ao capitalismo'. Contrariamente, oposição aos preconceitos marxistas - e
dentro de um perspectiva muito mais ampla apesar do que eles pro pugnam.
que a do capitalismo, a religi:ío (e o
cristianismo em particular) é concebida como Agora, porém, vou mais longe ainda. Minha
um compromisso para a construção do Reino experiência leva a crer que o alcance do
de Deus a partir do aqui e agora terrenos. pensamento e a açáo da TdLLA ultrapassam
Embora não se possa encontrar na TdLLA em muito o campo da criatividade
uma concepção clara e comum a respeito da exclusivamente religiosa. Acredito que na
forma de se expressar religião 'depois da TdLLA se está articulando (entre vários
libertação', parece -me fácil detectar naquela outros fatos) o esforço (e interesse) de muitos
teologia um consenso comum quanto à setores oprimidos, que procuram afirmar-se
persistência do cristianismo - e de seu como agentes culturais legítimos e válidos.
significado e valor - dentro de uma eventual Ou, ent:ío, que a TdLLA é um dos caminhos
sociedade pós-capitalista, sem classes nem pelos quais as classes subalternas
exploração. latino-americanas procuram expressar,
comunicar, inter-relacionar, desenvolver,
Por outro lado, a insistência da TdLLA na fortalecer e consolidar uma cultura própria:
convers:ío, deci~ o e compromisso e um sistema dinâmico e vivo de valores,
(especialmente nos anos 80) no significado e símbolos, normas e relações, a partir do qual
centralidade da espiritualidade sugere uma essas classes possam reavaliar e criticar seu
perspectiva radicalmente incompatível com a passado (inclusive suas tradições culturais já
atitude marxista predominante, que reduz a demasiadamente desprezadas), confrontar a
religião a um mero produto social. Na TdLLA, opress:ío de que estão padecendo e
as pessoas aparecem como agentes de aprofundar sua influência sobre as decisões
reflexão, decis:ío e a~o. capazes de captar relativas ao futuro.
e criticar- e de superar e transformar suas
estruturas sociais (pelo menos, parcialmente). Portanto, a TdLLA é um dos muitos canais
Na TdLLA, a reflexão teológica é encarada que parecem expressar essa luta cultural de
como um caminho especial, por cujo muitas classes oprimidas. Outros canais
intermédio esses processos podem ocorrer, incluem, com intensidade variável,
dinamizando-se, assim , a força dos oprimidos determinados movimentos musicais (salsa,
em suas lutas revolucionárias. reggae, nova can~o), algumas tendências de
arte popular, vários movimentos religiosos
(santos populares, pentecostais,
Os povos oprimidos: agentes criadores rastafarianismo) etc. A TdLLA representa
de cultura provavelmente o mais amplo e abrangente
de todos esses esforços, pelo menos nas
Anteriormente, afirmei que a TdLLA reconhece duas últimas décadas. Por seu intermédio,
e promove a criatividade religiosa dos foram reconhecidas e dinamizadas tanto a
oprimidos como um processo libertador, em necessidade como a capacidade dos grupos

64
de base (índios, negros, camponeses, realidade, já está provocando mudanças
trabalhadores, mulheres e crianças dos significativas dentro dessa teologia) aponta
setores populares - freqüentemente para a necessidade e a capacidade que as
analfabetos) no sentido de se desenvolver classes oprimidas têm, de criarem uma cultura
como agentes culturais ativos, criativos, própria - com sua própria linguagem,
articulados e legítimos. Tudo isso foi símbolos, expressões, tradições, instrumentos
extrapolando o âmbito estrito da religiao e, e preocupações. O reconhecimento e a
freqüentemente, do controle eclesiástico promoçao de espaços, tempos, organizações,
estrito. recursos, atitudes e experiências
dinamizadoras dessa criatividade
Parece, no entanto, que as organizações representam, freqüentemente, na minha
marxistas desenvolvem uma política bastante opinião, uma ameaça para a concepção de
diferente. Inicialmente, a maior parte dos cultura predominante entre os marxistas. Na
grupos marxistas tende a assumir a prosa realidade , muitos ativistas e alguns líderes de
acadêmica escrita segundo o estilo ocidental organizações marxistas, após terem travado
com o paradigma da expressão cultural , conhecimento com a criatividade cultural de
relegando a lugar secundário outras formas comunidades eclesiais de base e outros
de expressão cultural, que são muito mais grupos ligados á TdLLA (como no Brasil,
familiares às classes oprimidas, Venezuela, México etc.), começaram a
especialmente no Terceiro Mundo: música, questionar a ideologia e a política de suas
poesia, contos e religião. Mais ainda : os organizações, reivindicando a necessidade
marxistas assumem comum ente um marxismo de democratizá-las e enraizá-las nas
intocável (com suas idéias, terminologia, tradições culturais locais.
obras etc. , às vezes tao artificialmente
traduzidas de outros idiomas europeus), Igualmente nessa área, a TdLLA parece
como a 'única teoria verdadeira· - uma favorecer uma relativizaçao do marxismo,
cosmovisáo preexistente, a partir da qual a que é dificilmente compatível com qualquer
cultura dos oprimidos do Terceiro Mundo é forma de lealdade total e submissão passiva
julgada e reconstruída. É improvável (ou raro) a ideologias ou lideranças marxistas.
que as organizações marxistas cheguem a
reconhecer e impulsionar esforços culturais
realmente criativos e originais provindos dos A negação do pluralismo e da diversidade
oprimidos. Essa atitude se agrava quando como meios de opressão
esse tipo de criatividade questiona os
conteúdos da cosmovisão marxista ou Algumas tensões experimentadas pela TdLLA
quando contesta a forma pela qual as (tanto frente a outras tendências dentro das
organizações marxistas costumam igrejas cristãs, como em relaçao a questões
relacionar-se com a cultura dos oprimidos. ligadas a seu próprio desenvolvimento) dizem
respeito à rica diversidade da realidade
Uma das idéias centrais da TdLLA (que, na latino-americana. Diferenças raciais, étnicas,

65
estruturas económicas e lingüísticas, haviam sido reprimidas durante vários séculos
características religiosas e geográficas, - e, assim, questionou a uniformidade
raízes nacionais e sociais são elementos exdudente que havia caracterizado as igrejas
crescentemente potencializados pela cris~s com demasiada freqüência. Ao
experiência de diversas gerações (com a afirmar e estimular o direito que os crentes
influência da participa~o masculina e têm de se expressar teologicamente (ou de
feminina). Tudo isso confere aos povos outra forma). a TdLLA contribuiu para o
latino-americanos uma multiplicidade desenvolvimento de atitudes contrárias a
complexa que nem sempre é devidamente qualquer conce~o rígida, autoritária e/ou
reconhecida (nem respeitada). etnocêntrica da ortodoxia ou da ortopráxis.
Assim, cada grupo (de classe, gênero,
Marxistas raramente assumiram as graves étnico, racial, local, nacional, lingüístico e/ou
conseqüências que essa diversidade pode religioso) se expressa de maneira própria e
acarretar, tanto na formula~o como na idiossincrática, com suas preocupações,
interpreta~o do marxismo na América Latina prioridades e perspectivas.
(entre os escassos pensadores marxistas de
algum significado, José Carlos Mariátegui, O pluralismo de perspectivas (teóricas e
líder e ensaísta peruano - já falecido - práticas) e a diversidade de tradições culturais
merece uma referência especial) . Pelo s~o. assim , reconhecidos como realidades
contrário, entre os marxistas - tanto na teoria válidas e legítimas: como, efetivamente , um
como na prática - predomina a tendência de enriquecimento da realidade e uma
adaptaç~o da realidade latino-americana multiplica~o das possibilidades de
contemporânea a conceitos (e modelos transformá-la em benefício das maiorias. Boa
organizacionais) elaborados no contexto parte da reflexão e da a~o desenvolvidas na
euro-ocidental do século 19, enraizados na TdLLA- e dentro das CEBs - que são,
sua realidade específica (feudalismo e freqüentemente, fonte e materialização da
capitalismo, burguesia e proletariado, TdLLA- aponta precisamente nessa direçáo.
economia, política e ideologia, partido e
vanguarda, centralismo democrático e Por outro lado, a tendência para negar a
ditadura do proletariado etc.). realidade, validade, conveniência,
legitimidade e potencialidade positiva dessa
Sem referência explícita oposta ao marxismo, diversidade pluralista - tal como a vemos nas
a TdLLA, através de suas reflexões e igrejas, governos, empresas, partidos,
experiências, reconheceu a realidade, exércitos e outras organizações - é apontada
validade e legitimidade do pluralismo e da e criticada sistematicamente pela TdLLA,
diversidade - o que aconteceu no nível como uma tendência autoritária, ditatorial,
particularmente difícil do pensamento opressiva e reacionária. Na realidade, é uma
religioso e, mais ainda, teológico. A TdLLA tendência que deveria ser permanentemente
estimulou a multiplica~o de teologias e o redescoberta e questionada - do ponto de
renascimento de tradições religiosas que vista de uma perspectiva crist~ libertadora.

66
Com efeito, existem, atualmente, em bens, onde deixaram de existir as classes
organizações marxistas (em El Salvador, sociais, a propriedade privada, os exércitos,
Brasil, Peru e outros países da América guerras ou qualquer tipo de opressão). Mas o
Latina) que são crescentemente processo em direção do comunismo passa
questionadas - devido a suas concepções necessariamente pelo capitalismo (com sua
rígidas, pré-fabricadas e sectárias - por seqüela: urbanização, industrialização, alta
aqueles que participaram da experiência (e tecnologia, alta concentração de capitais,
não apenas das idéias) da TdLLA: são crescimento de um proletariado urbano e
pessoas que integraram uma tendência quase criação de um mercado mundial
espontânea de questionar qualquer tipo de interdependente). Por conseguinte, segundo
teorias, soluções, autoridades e organizações a visão marxista predominante, qualquer
apresentadas como ·as únicas que servem· ... outra forma de organização social e
- principalmente se esses conceitos foram económica (isto é, as que não são nem
elaborados ao arrepio e à margem da capitalistas nem pós-capitalistas) é·concebida
participação livre, ativa, consciente e como uma formação económico-social
comunitária dos grupos neles envolvidos. pré-capitalista. Essa concepção trouxe (e
traz) graves implicações para as análises e
conduta dos partidos marxistas na América
O determinismo histórico marxista: uma Latina. Isso acontece, porque, entre outras
concepção etnocida? razões, aquela concepção pressupõe que
nossas sociedades (pré-capitalistas) têm que
Outra característica problemática do se tornar capitalistas, antes que uma
marxismo ortodoxo tradicional da América superação radical das relações de opressão
Latina consiste na concepção determinista existentes possa realmente efetivar-se - por
da história - uma concepção que só foi exemplo, através de uma redistribuição
questionada por Marx em textos menores, igualitária de possibilidades de gozo dos
escritos pouco antes de sua morte e cujo recursos económicos, políticos e culturais. Por
impacto nas versões predominantes do esse motivo, aliás, a maior parte dos partidos
marxismo é praticamente nulo -, uma marxistas de linha soviética (inclusive os de
concepção segundo a qual o princípio, o Cuba e da Nicarágua) criticou os esforços
caminho e o fim da história já estão prévia e revolucionários do Movimento 26 de Julho e
totalmente definidos, de maneira iniludível. da Frente Sandinista de Libertação Nacional ,
antes, durante e depois de suas respectivas
Segundo essa concepção, a história da vitórias.
humanidade é una - apesar de qualquer
pretensão em sentido contrário. É a história Em seus trabalhos teóricos e práticos, a
mundial, segundo o pensamento de Hegel. TdLLA enfatiza uma concepção diferente de
Essa história se processa inevitavelmente, história. Efetivamente, para ela, aquele
num único sentido: em direção do comunismo determinismo histórico unidirecional que
(uma sociedade livre, igualitária e abundante predomina no marxismo seria um caso

67
específico da negaçao opressora e uniforme para a história humana (nem
etnocêntrica da pluralidade, diversidade, tampouco para a busca histórica de justiça e
originalidade e criatividade dos povos do paz) : cada povo constrói seu futuro de sua
Terceiro Mundo. A originalidade das própria maneira. A direç~o e o tipo de história
sociedades do Terceiro Mundo, de suas de cada povo estariam na dependência de
específicas trajetórias históricas, de seus muitos aspectos peculiares de sua cultura :
singulares recursos e fracassos, das por exemplo, as decisões livremente
habilidades específicas que cada um tem tomadas (tanto individual, como
para desenvolver suas próprias formas coletivamente) e os variados obstáculos
(eventualmente, de redistribuiç~o mais concretos à realização dessas decisões.
produtividade) · tudo isso tem sido negado,
sistematicamente , consciente ou
inconscientemente, independentemente da Os meios autoritários: coisa incompatível
vontade dos atores que participam do com uma libertação autêntica
processo. O marxismo e o capitalismo têm
negado esse processo, tanto no discurso Boa parte dos esforços da TdLLA · e,
como na conduta. Enquanto isso, a TdLLA o especialmente, das CEBs · concentra-se na
tem afirmado cada vez mais claramente. crítica das instituições e métodos autoritários
(incluindo, em primeiro lugar, o autoritarismo
De certa maneira, a TdLLA pressupõe· e existente dentro das próprias igrejas) e no
promove · uma concepção de história, estudo e desenvolvimento de soluções
segundo a qual, entre uma multiplicidade alternativas.
quase infinita de futuros realmente possíveis,
existe um para o qual Deus nos convida · o Essas soluções alternativas - tiradas, entre
Reino de Deus, cuja descrição coincide com outras fontes, da tradição de conscientização
aquela que Marx e seus seguidores e educação popular libertadora, ligada a
adotaram , provinda dos comunistas cristãos Paulo Freire · tendem a se caracterizar, entre
franceses da primeira metade do século 19 · outros, por estes elementos : a)
os autênticos fundadores do comunismo horizontalidade, ou a concepção de que
como objetivo, ideologia e movimento. Mas, todas as pessoas são iguais · o que significa
por um lado, a nós, seres humanos - livres, conviver e viver de acordo com essa
frágeis e sujeitos falíveis de nossa própria premissa, com a exclusão de qualquer tipo
história ·, cabe a responsabilidade de aceitar de discriminaçao e de qualquer tipo de
(ou não) o convite divino. Por outro lado, monopólio exclusivo (monopólio da verdade,
apenas dentro das tradições, características da palavra, da liderança, por exemplo); b)
e tendências de cada povo será possível dar participação estimulada: um esforço
forma concreta à resposta histórica que sistemático, explícito e deliberado para o
dermos ao chamado divino. estímulo da participaçao (em reuniões,
Conseqüentemente, n~o haveria uma reflexões, interpretações, discussões,
direçao preestabelecida, inevitável ou tomada de decisões, administração,

68
liderança etc.) de todas as pessoas futuro absoluto. Na TdLLA, o presente
implicadas numa a~o ou instituição, imediato e concreto é captado como o único
especialmente por parte daqueles que lugar a partir do qual o Reino de Deus pode
tendem a participar menos que os outros - ser encontrado e o único lugar, igualmente,
seja por inexperiência, timidez, submissào, onde pode ser vivido e desenvolvido. Parece
medo ou reduzida auto-estima; c) liderança que essa conce~o reforça a insistência (na
compartilhada: a tendência de se substituir a TdLLA e nas CEBs) de serem construídas
tradicional liderança individual por uma direção aqui e agora relações e instituições que
coletiva, que detenha a perpetuação de anunciem , testemunhem e desenvolvam o
certos indivíduos e grupos em posições de Rei no de Deus em sua própria configuração
autoridade ; que renove constantemente as (e não apenas em sua linguagem e
equipes dirigentes, incluindo nelas pessoas intenções).
que ainda não tiveram a possibilidade de
desenvolver suas próprias capacidades no Na realidade, a contrapartida dessa
cam po da administração, da direção e da concepção é, exatamente, a crítica às
tom ada de decisões; e, finalmente . que instituições e relações autoritárias: elas sào
institucionalize meios através dos quais o incapazes de contribuir positivamente para
público das ações e organizações que as lutas de liberta~o dos oprimidos.
sofrem a influência da TdLLA possa avaliar e Relações verticais, unilaterais, hierárquicas e
corrigir seu processo de trabalho ; d) reflexão piramidais, nas quais as ordens, regras, a
crítica, fato que implica a prática sistemática linha e as teorias sào impostas de cima para
de se detectar e questionar qualquer tipo de baixo ; relações em que o público tem um
teoria, autoridade, regra ou decisão, peso institucional nulo ou escasso nas
tendentes a se impor ou se perpetuar ao decisões que lhe dizem respeito. É esse tipo
arrepio da vontade deliberada das pessoas de relações que constitui o principal alvo das
envolvidas no processo. críticas da TdLLA e das CEBs ... quer estejam
elas nos governos, empresas, escola,
A teologia que embasa esses esforços da exército, centros de saúde, igrejas, sindicatos
TdLLA é, parcialmente, uma teologia em que ou partidos políticos. Não é a suposta
os meios não estão rigidamente separados influência do marxismo na TdLLA o principal
dos fins; em outras palavras, uma teologia na ponto de fricção entre o Vaticano e essa
qual o Reino de Deus é concebido como algo teologia, mas exatamente aquele tipo de
que "já está aqui entre nós, mas que ainda relação autoritária - como sugere o estudo da
não se completou· . Nessa teologia, o esforço correspondência e declarações relativas ao
para se construir o Reino de Deus não está caso Leonardo Boff.
ligado à idéia de que o presente é, única e
exclusivamente, um meio para se chegar a Na minha opinião, um dos principais conflitos
um fim, nem tampouco considera que o Reino entre a TdLLA e o marxismo surge,
de Deus seja, como conseqüência, um mero precisamente, das características autoritárias
fim - pura e simplesmente colocado num comuns às organizações e governos

69
auto-etiquetados de marxistas - traços que especializados que as elites têm a seu
existem, igualmente, nas relações, processos alcance) , desenvolveram uma aproxima~o
de construç~o teórica e mecanismos de multilateral para a vida humana. Nesse
tomada de decisões típicos da maior parte sentido, é bastante comum ver numa CEB
dos partidos e governos supostamente uma discus~o que está centralizada nos
marxistas. Esses conflitos já começam a ser problemas conjugais de um casal da
visíveis no Brasil , Venezuela, Peru, El comunidade, no tratamento da doença de
Salvador e outros países latino-americanos. uma vizinha ou membro do grupo , na crise
psicológica de um parente de uma pessoa
conhecida, nas ações que devem ser
Multidimensionalidade das CEBs versus empreendidas para se obter um bom sistema
reducionismo político marxista de fossas para o bairro, na busca de uma
casa para uma família, ou nos procedimentos
As CEBs (na forma como as conhecemos na legais para se tirar uma pessoa da pri~o . Do
América Latina) ~o uma das principais mesmo modo, as ações externas (individuais
fontes - e talvez a principal materializaçiío - ou coletivas) surgidas das reflexões e
da TdLLA. É um fenômeno florescente, por decisões de uma CEB podem encaminhar-se
vezes exagerado ou subestimado. Essas para qualquer das direções mencionadas.
comunidades freqüentemente competem Por isso mesmo, n~o causa estranheza ver
com várias organizações marxistas - assim um membro de uma CEB (aluando como tal)
como com certas seitas e cultos religiosos -, ajudando uma família vizinha na constru~o
na tentativa de atrair o interesse dos grupos ou reforma de sua casa, recolhendo fundos
oprimidos. para pagar a conta do médico de outra
pessoa, preparando a primeira comunh~o de
No meu entender, uma das razões do êxito um grupo de crianças do bairro, jejuando em
relativo das CEBs (ou de sua multiplicidade, inten~o da paz na América Central e/ou
legitimidade e infllJência crescente nas fazendo manifestações contra a tortura em
igrejas etc.) consiste em seu aspecto frente a um quartel da polícia.
multidimensional.
Especialmente em processos de
A maior parte das instituições nas democratiza~o política (mas n~o apenas
sociedades urbanas modernas (inclusive nas nesse se to r), as pessoas participantes das
igrejas crist~s e partidos marxistas) vai ao CEBs tendem , treqüentemente, a observar
encontro de necessidades muito específicas com bastante aten~o as organizações
e isoladas. As CEBs, porém , talvez devido a políticas existentes, com o objetivo de
sua origem em setores sociais com uma poderem canalizar suas próprias
tradiç~o mais integrada da existência necessidades e lutas políticas. No entanto,
humana (mas, também , devido à um dos obstáculos mais sérios que os
incapacidade que esses mesmos setores membros das CEBs enfrentam, a fim de
têm de conseguirem os serviços mais poderem participar de partidos políticos

70
(inclusive os marxistas), é a unilateralidade subproduto da opressão social - é uma
dessas instituições: a tendência para se ideologia de nível inferior, que não ocupa
ocuparem exclusivamente de assuntos espaço algum numa sociedade
políticos, encarando-os sob uma perspectiva pós-capitalista, nem na luta contra o
estreita, exclusivamente política. capitalismo); em segundo lugar, ele se
Freqüentemente essa discordância se apresenta como a única teoria científica da
resolve ou através da recusa global da história humana, que desembocará
política partidária, ou através da dupla (inevitavelmente) no comunismo, através do
militância - fato igualmente encontrado nos capitalismo; e, finalmente, o marxismo serve
meios feministas. Muitos militam de inspira~o para os partidos e governos
parcialmente numa CEB e, parcialmente, autoritários, sectários e unilaterais.
num partido político. Neste último caso, a
CEB funciona como uma espécie de ponto A TdLLA, pelo contrário, relativiza o
de observa~o externo, do qual se torna marxismo, encarando-o como mera
possível fazer uma revis:io crítica e coletiva ferramenta de análise e luta política; valoriza
do compromisso político, do ponto de vista a religião- e, particularmente, a criatividade
da fé religiosa (e vice-versa, pois o partido religiosa popular - como algo profundamente
pode funcionar como um lugar de análise importante na luta pela superação do
crítica independente das implicações capitalismo e da explora~o ; sublinha a
políticas da CEB) . necessidade de se reconhecer e promover a
multívoca criatividade popular dos oprimidos ;
Em ambos os casos, as organizações rechaça o determinismo histórico e o
marxistas estão sob o olhar crítico das CEBs, autoritarismo, considerando-os fatores
que analisa a perspectiva política unilateral contrários à libertação dos oprimidos; e, por
predominante naqueles partidos e fim, estimula o caráter multidimensional das
movimentos. CEBs.

Na minha opinião, essas características da


Conclusão: nada mais (e nada menos) do TdLLA- se é que foram bem captadas por
que hipóteses para serem examinadas mim - se chocam com muitas idéias e
tendências típicas do marxismo na América
Permitam-me resumir o que acabo de sugerir Latina. Esse choque - que parece ser um fato
nestas páginas. O marxismo, na vis:io da real e crescente em muitos lugares -tende a
maior parte de seus amigos, inimigos e dessacralizar o marxismo, isto é, a encará-lo
espectadores curiosos na América Latina, como um conjunto heterogêneo de elementos
constitui uma rede complexa de idéias, díspares e discutíveis (não evidentes) -
organizações e práticas. Como tal , sua nenhum dos quais constitui um tabu.
primeira característica (entre outros fatores)
é a apresenta~o de uma doutrina atéia Queria limitar-me apenas, neste estudo, a
global (para a qual a religião - mero formular algumas hipóteses acerca de um

71
possível (interessante e, inclusive, talvez semelhante de dessacralização. No entanto,
positivo) processo aluai de dessacralização desde 1966, escrevi centenas de páginas
do marxismo através da TdLLA. Tenho sobre estes últimos fatos. Agora, porém , e
consciência plena de que o marxismo vai pela primeira vez, com meu próprio punho e
muito além de seu significado predominante letra, olho curiosamente essa ·outra face da
(e, às vezes, está também em oposiçao a lua· (lua em quarto crescente?), sugerindo o
ele), comum e usual na opini~o pública das que já havia sugerido anteriormente : nada
Américas. Vejo, igualmente, que as relações mais (porém , tampouco, nada menos) do que
da TdLLA com o marxismo ~o muito mais algumas escassas e limitadas intuições, para
ricas e complexas do que se imagina - o que que os interessados as examinem
poderia ter sido apontado neste estudo. Por criticamente, a fim de poderem ver se elas
fim, compartilho da opini~o de que o servem para alguma coisa que valha a
cristianismo predominante nas Américas pena ... ou não.
deve passar - inclusive com forte ajuda da
crítica marxista à religião - por um processo • Tradução do espanhol: Maria Luiza Cesar

72
Algumas reflexões sobre a reação
conservadora na Igreja Católica
CECÍLIA LORETO MARIZ e LEMUEL DOURAOO GUERRA SOBRINHO
Professora e mestrando de Sociologia - UFPE

No segundo semestre de 1989 foi anunciado significado e as causas tanto da reação


o encerramento das atividades de duas conservadora como da crise no setor
importantes instituições de formação teológica progressista da Igreja Católica ocorrida nos
católica em Pernambuco ( o ITER e o últimos anos. Essas reflexões se inspiraram
SERENE 11). Da mesma forma que as não apenas nos recentes acontecimentos da
punições impingidas a teólogos Arquidiocese de Olinda e Recife, mas também
latino-americanos da Teologia da Libertação, na análise dos resultados parciais de pesquisa
o fechamento dessas organizações indicava atualmente em curso sobre o conflito entre
uma reavaliação da orientação ideológica da progressistas e conservadores da Igreja
Igreja Católica e uma rearrumação da Católica no Estado de Pernambuco (Guerra,
com posição de forças de seus setores 1990). Nesta pesquisa procura-se identificar
internos. as características sociais dos clérigos e leigos
que apóiam as tendências progressistas e
O setor progressista perde espaço dentro da conservadoras e as motivações que têm para
Igreja em toda a América Latina frente à as atitudes que adotam . Embora baseada em
chamada reação conservadora que tem o resultados parciais da coleta de dados, a
apoio do Vaticano. Por outro lado, presente reflexão tende a ir além do material
coincidentemente com as medidas ofensivas empírico de que dispõe.
por parte dos setores conservadores, mas, ao
que tudo indica, com origem aparentemente Argumenta-se neste artigo que apesar do
diversa, se inicia uma crise interna no setor desacordo sobre o papel político que a Igreja
progressista. Esta se revela num discurso desempenha dentro da sociedade ser um dos
sobre a ·ruptura do tecido das CEBs" , por pontos centrais que dividem as tendências
exemplo, ou sobre o cansaço e esgotamento progressistas e conservadoras na Igreja
deste projeto (Comblin, 1990). Católica, este não é o único ponto de choque.
O conflito entre estas tendências na verdade
As presentes notas constituem algumas é parte de uma oposição mais ampla de
reflexões ainda de caráter preliminar sobre o concepções gerais sobre religião e sociedade.

73
Outro argumento que se defende é de que o radical, indo além da simples proposta
surgimento tanto do progressismo quanto da reformista inicial.
reação conservadora n:ío pode ser
compreendido sem que se levem em conta No Brasil, após os anos 60, a nova orientação
os diversos contextos sociais, nacional e católica se reflete tanto na adoção de
internacional , seja no nível institucional estruturas novas baseadas na organização
eclesiástico, seja no nível de classes sociais. popular em Comunidades Eclesiais de Base
O conflito entre estas duas tendências (CEBs), como na criação de instituições
refletiria assim uma conjunção de tipos oficialmente desligadas da Igreja, como, por
diversos de contradições sociais. exemplo, a Comissáo de Justiça e Paz, que
se tornaram instrumentos significativos na
Para contextualizar melhor a crise do luta por direitos humanos e justiça social.
progressismo e a reação conservadora,
recapitula-se na próxima seção um pouco da Os bispos com orientação progressista se
história da Igreja Popular ou Progressista e tomam hegemónicos na Conferência Nacional
algumas discussões sobre suas origens. dos Bispos do Brasil (CNBB) desde 1974. Os
temas debatidos nesta conferência ganham
cada vez mais uma conotação social.
A Igreja progressista
Entre os progressistas, há vários bispos com
Já no final da década de 50, no Brasil, dioceses no Nordeste. Um dos que mais se
setores da Igreja se preocupavaam em destaca, O. Hélder Câmara, liderava a
denunciar a miséria e injustiças sociais Arquidiocese de Olinda e Recife desde 1964.
identificando seu compromisso religioso com O. Hélder definiu sua orientação progressista
um compromisso e engajamento político e n:ío apenas por suas declarações e denúncias
social. Desde ent:ío estes setores têm se políticas, mas também pela criação de
ampliado dentro da própria instituição, movimentos católicos no fim da década de 60,
transformando a atuação da mesma na área como a Operação Esperança e o Encontro de
política e social, e redefinindo a vis:ío de lrm:íos, tendo o último criado grupos que têm
mundo católica e as alianças políticas sido considerados como as primeiras
estabelecidas por esta Igreja. experiências de CEBs no Brasil (Gregory,
1973).
Embora a emergência de um setor dentro da
Igreja Católica com preocupações sociais Este novo papel político definido pelo setor
seja anterior ao Vaticano 11, é com este progressista para a Igreja Católica no Brasil
concílio e a sua proposta de aggiomamento tem atraído muito interesse de diversos
que se operam nesta instituição a redefinição autores e estudiosos de ciência social e de
da consciência histórica e o estabelecimento religi:ío, que tentam explicá-lo de forma
de fato de uma ala progressista na Igreja. distinta. Alguns apontam apenas razoes
Esta aos poucos adquirirá um caráter mais internas à instituição católica, enquanto

74
outros encontram as causas desta renovação décadas um papel extremamente diferente
religiosa na sociedade mais ampla. do que possuía anteriormente no conjunto de
forças que lutam por justiça social e por
Os autores que percebem apenas os fatores reformas de bases que buscam a construção
internos e institucionais do surgimento da do socialismo.
opçáo pelos pobres, em geral, consideram o
progressismo católico como uma estratégia A adoçáo dessa face popular e progressista
adaptativa e de sobrevivência da Igreja que, náo significa a existência de uma unanimidade
em sua opinião, teria sido, com o processo no conjunto da Igreja. As contradições dentro
de secularização, abandonada pelas classes desta instituição tenderáo a se agudizar após
dominantes (Motta, 1988). os anos 80 e os grupos opostos ao
progressismo passaráo a se reorganizar na
Outros autores, como Frei Betto (1981 ), por chamada ·reação conservadora·.
exemplo, entendem o progressismo e
conservadorismo dentro da Igreja Católica
essencialmente como expressões das A reaçao conservadora
contradições existentes na sociedade. No
entanto, Frei Betto observa que com o Neste artigo defende-se que a reação
Concílio Vaticano 11 houve uma diminuição conservadora no Brasil é fruto de uma
relativa da autocracia eclesial, fato que teria convergência de diversos fatores externos e
possibilitado o aumento do espaço para a internos à própria Igreja Católica e à
expressa.o dessas contradições dentro da sociedade brasileira como um todo. O conflito
Igreja. Assim, o aumento do progressismo se entre a Igreja progressista e a conservadora
explica também pela conjunção de fatores possuiria assim várias dimensões.
externos e internos à Igreja.
A primeira dimensão seria a institucional e
O mesmo autor chama ainda a atenção para compreenderia a reação conservadora como
outra fonte de pressa.o externa que fruto do temor de setores do clero em relação
determinou o surgimento do progrressismo ao aumento da participação dos leigos na
dentro da Igreja Católica no caso do Brasil : a esfera do poder episcopal. A ampliação do
exigência histórica desta instituição funcionar poder das bases defendida pelo progressismo
como instância de reivindicação no período ameaçaria a instituição católica como ameaça
pós 64, quando outros mecanismos de qualquer instituição em geral. A Igreja
representatividade popular foram cerceados Católica fortemente hierarquizada náo se
(Betto, 1981 : 201-31) . constitui numa exceção. Este receio se
revelaria, por exemplo, na decisão durante a
Apesar de divergirem a respeito dos motivos redação do atual código de Direito Canónico,
da mudança de orientação da Igreja, quase de se substituir, na seção referente aos
todos os autores observam que ela tem leigos, a palavra ·participação" pelo termo
desempenhado nas últimas três ou quatro ·cooperação", por ser a última menos

75
ameaçadora do que a primeira. Outro Assim , a proposta democrática progressista
indicador sintomático deste aspecto do conflito abre brechas não apenas para o conflito
foi o fato de ter sido justamente o livro Igreja, entre a base e a cúpula da hierarquia, mas
Carisma e Poder, de Frei Leonardo Boff, também entre os cleros de culturas e
que critica o autoritarismo e a hierarquia da sociedades distintas. Nesse sentido, a
Igreja propondo sua democratização interna, reação conservadora pode ser interpretada
que chamou a atenção do Vaticano e como um reflexo da visão religiosa específica
agudizou toda a polémica em torno da dos países centrais ou do hemisfério norte,
Teologia da Libertação. Portanto, o atual enquanto o progressismo refletiria os
conflito entre conservadores e progressistas interesses do sul ou dos países periféricos.
pode ser compreendido sob alguns aspectos
como a expressão da luta permanente, Portanto, o segundo aspecto do conflito entre
presente na maioria das instituições, entre os conservadores e progressistas se relacionaria
poderes hierarquicamente estabelecidos e com a oposição de ordem internacional entre
seus subordinados. Compreenderia na Igreja norte e sul. Ainda no contexto dos fatores
Católica o conflito entre a palavra bíblica e a ideológicos a nível internacional, pode se
tradição institucional ou, ainda, dos cristãos interpretar a oposição conservador versus
radicais, que buscavam maior autenticidade progressista como ligada à oposição
cristã contra as autoridades eclesiásticas que capitalismo versus socialismo. A menor
se prendiam às tradições estabelecidas e simpatia dos progressistas pelo capitalismo e
temiam ameaças à sobrevivência da dos conservadores pelo socialismo parece
instituição. Neste ponto de vista, se refletir, em parte, a situação económica dos
perceberia o progressismo católico como países periféricos e centrais, onde cada um
uma continuação de opções radicais cristãs desses setores da Igreja tem hegemonia.
semelhantes às de São Francisco de Assis e
da Reforma Protestante (Cox, 1989). A mudança recente na correlação de forças
dessas tendências católicas no Brasil parece
Um segundo aspecto do conflito também se ter sido afetada pela crise tanto da ideologia,
relacionaria com democratização das quanto do sistema económico socialista. Os
estruturas eclesiais proposta pela Teologia limites do modelo económico e democrático
da Libertação. Esta proposta levaria do socialismo exigiram redefinições no seu
necessariamente a uma pluralidade de projeto de construção de uma sociedade
opiniões que produziria um crescente espaço mais justa. A crise no nível ideológico se
de contestação das posições vindas de revela numa ausência de consenso sobre
Roma. Desta forma, ao dar voz a todos, a qual seria a opção política e social melhor
Teologia da Libertação coloca em xeque não para os pobres. Esta crise atinge de certa
apenas o poder hierárquico da Igreja forma a Igreja progressista, na medida em
Católica, mas também o caráter genérico e que coloca em xeque uma ideologia que está
universalista de seu discurso político e social, na base da elaboração ideológica do seu
que visa unificar a diversidade. projeto.

76
No Brasil , o impasse entre progressistas e As experiências das CEBs não conseguiram
conservadores adquire outras dimensões se libertar de uma dependência estreita da
específicas, além das acima descritas, figura do padre, como mostram diversos
relacionadas com elementos internos a este pesquisadores (Castro, 1987; Macedo, 1986;
país. Mariz, 1989).

Primeiro , no Brasil , tanto a crise da Igreja A mobilização e a própria existência das


progressista quanto a reação conservadora CEBs parece ter se apoiado na conquista de
se relacionam com o processo de abertura reivindicações imediatas. As discussões
política. A democratização do país tornou teóricas não eram acompanhadas pela massa
mais evidente as contradições internas ao de fiéis . Essa dificuldade de internalização do
setor progressista que ameaçam a hegemonia projeto das CEBs pela maioria dos fiéis
do seu projeto . Segundo, ao contrário do que católicos coloca em evidência outros limites
ocorreu na Igreja Católica de outros países do projeto progressista que favorecem a
da América Latina, no Brasil o setor reação conservadora.
progressista teve apoio da alta hierarquia e o
confiito conservadores/progressistas refletia A visão progressista propõe em muitos
menos uma oposição povo/clero do que aspectos o desencantamento da religião e
entre dois cleros, o conservador versus o adota pressupostos cognitivos da ciência
progressista. Como mostra a pesquisa de moderna que entram em choque com a visão
Guerra (1990), já citada, em Pernambuco o do senso comum da cultura popular (Mariz,
clero parece ser mais progressista do que a 1989). Por esses motivos, a proposta da
massa dos fiéis leigos. Teologia da Libertação , mesmo que
traduzida para uma linguagem popular, não é
A análise parcial dos questionários aplicados compreendida e aceita em sua totalidade
aleatoriamente a uma amostra de leigos do pela população em geral e pelos brasileiros
estado indica que há uma tendência entre pobres, em particular.
esses de apoiar o modelo neoconservador
atualmente adotado. Os dados disponíveis A estratégia alternativa oposta ao discurso
ainda não permitem entender se este apoio se progressista adota o modelo espiritualista
relaciona com a preferência por um discurso representado atualmente em Pernambuco
religioso mais espiritualista e devocional , pelos grupos carismáticos. Esses grupos se
como o que propõe a ala conservadora da reúnem para atividades de louvor
Igreja Católica, ou com o respeito à semelhantes às das igrejas pentecostais. A
autoridade eclesiástica. A dependência da aceitação pelos fiéis da reação conservadora
atitude dos fiéis em relação às autoridades parece ser fruto do mesmo tipo de
da Igreja se revela na observação de necessidades que levam muitos ao
Bruneau (1982) sobre o papel determinante pentecostalismo .
dos bispos e padres para o desenvolvimento
das CEBs em suas áreas de atuação. Assim, uma dimensão importante do conflito

77
progressistas versus conservadores, neste BIBLIOGRAFIA
contexto, é a da oposi~o entre uma religião ALVES. M. M. A Igreja e a Politica no Brasil. São
racionalizada versus uma religião mágica e Paulo, Ed. Brasiliense. 1979.
mística. O aspecto racionalizador da proposta
BETTO, Frei. "A Igreja, a política e a esquerda". ln: A
progressista e seus conflitos com a visão Igreja dos Oprimidos. SALEM. H . São Paulo, Ed .
popular já foi observado tanto por pastoralistas Brasil Debates, 198 1.
como por cientistas sociais. No entanto, tem
BOFF, L Igreja, Carisma e Poder. Lisboa, Editorial
sido pouco considerado enquanto fator Inquérito, 1981 .
facilitador da rea~o conservadora.
BRUNEAU, T. The Church ln Brazil: The politics of
Religion. Austin, Texas, Austin University Press, 1982.
Nossa hipótese é de que, para a massa dos
fi8is, o conflito entre a visão moderna e a CASTRO, G. P. As Co111Jnidades do Dom. Recife,
Massangana. 1987.
mágica parece se sobrepor ao conflito entre
os interesses de classes, também presente COMBLIN. J. "Algumas questões a partir da prática das
na oposição conservadores versus CEBs no Nordeste". REB, 50, fase. 198, 1990.
progressistas. Decorreria daí o fato de que, COX, H. The Silencing of Leonardo Boff ; lhe Vatican
embora a Igreja progressista tenha tomado and lhe future Wor1d Christianity. Oak Park, IL, Meyer
opção pelos pobres, às vezes atrai menos o Stone Books, 1988.

pobre do que a linha conservadora. GREGORY, A. Co111Jnidades Eclesiais de Base:


Utopia ou realidade . Rio de Janeiro, Vozes/Ceris. 1973.
A ênfase colocada pela nova orientação nos GUERRA. L Ideologia e relações de forças no
aspectos místicos da prática religiosa parece calll'o eclesiástico católico em Pernambuco. ProJe to
direcionada para a satisfação da crescente de dissertação (pesquisa em elaboração). mestrado em
Sociologia UFPE. 1990.
demanda de um reencantamento da
sociedade. MACEDO. C. M. Telll>o de Gênesis (O povo das
CEBs). São Paulo, Ed. Brasiliense, 1986.

O apoio popular à reação conservadora no MARIZ, C. L Rellgion and Coplng wlth Poverty ln
Brasil se relacionaria, assim , com a Brazil. PhD Dissertation, Boston University, 1989.
proliferação das novas seitas nessa MOITA, R. "Interesses de classes e parbcipação
sociedade, muitas das quais têm maior poder popular no Catolicism o Popular e no Candomblé-
de atra~o nas camadas populares. ·Xangô". Texto datilografado, UFPE, Recife, 1988.

78
Leituras

A Teologia da Libertação:
entre o Sul e o Norte
CECÍLIA LORETO MARIZ
Professora de Sociologia - UFPE

COX, Harvey. The Silencing of Leonardo Libertação, mas também busca entender o
Boff; TheVatican and the Future of World que esta controvérsia nos ensina a respeito
Christianity, Oak Park, IL, Meyer Stone do futuro da cristandade como um todo
Books, 1988. (p. 3).

Cox inicia sua análise observando que Boff


O fenômeno que mais tem chamado a foi repreendido pela Igreja de Roma quando
atenção dos analistas da Igreja Católica nos publicou Igreja, Carisma e Poder, livro que
últimos anos tem sido a crise que ela questiona a distribuição do poder dentro da
enfrenta com o aparecimento da Teologia da própria Igreja (p. 12/3). A controvérsia com a
Libertação. O último livro de Harvey Cox, Teologia da Libertação, portanto, só se torna
teólogo e professor da Universidade de aguda quando a questão da democracia
Harvard, The Silencing of Leonardo Boff, interna da Igreja Católica é levantada (cap.
trata justamente desta questão. 3). Cox tenta também mostrar que a punição
de Boff foi na verdade uma punição à Igreja
No estilo de um bom romance, Cox narra as Católica no Brasil (cap. 12) . Neste aspecto, o
idas e vindas do que alguns chamaram o processo contra Boff se distingue muito
"renascimento da Inquisição" (p. 5). com a daquele contra Hans Küng . As opiniões de
proibição do Frei Leonardo Boff pela Sagrada Boff representavam a de um setor
Congregação da Doutrina para a Fé de significativo da Igreja Católica na América
pregar e publicar suas idéias. Cox conta, Latina como um todo.
com detalhes de uma novela, a ida de Boff a
Roma, sua entrevista com o cardeal Para Cox, o conflito fundamental subjacente
Ratzinger, o prefeito da Sagrada Congregação ao silêncio de Boff imposto por Roma, bem
para a Doutrina da Fé e as repercussOes como toda a controvérsia em torno da
que este processo teve no Brasil e em Roma. Teologia da Libertaçao, é o conflito entre os
Descrevendo este episódio, discute não hemisférios Norte e Sul: países
apenas a controvérsia sobre a Teologia da desenvolvidos versus Terceiro Mundo.

79
Argumenta que a unicidade da Igreja Católica, ênfases acarreta perspectivas distintas
como a de todas as grandes igrejas e quanto ao projeto cristão de salvação. A
religiões, tem sido mantida à custa de Teologia da Libertação, por exemplo, tende a
silêncios impostos. A Igreja Católica, ao ver este projeto como continuação da história
incorporar os valores e culturas européias à judia e, por conseguinte, como um projeto
sua teologia oficial , impôs silêncio a outras concreto de libertação de um povo das
culturas econômica e socialmente dominadas. injustiças deste mundo e desta vida na terra.
Ao propor a democratização, descentralização Já na teologia defendida por Ratzinger, com
da Igreja Católica , a Teologia da Libertação ênfase na Ressurreição, o projeto cristão de
inicia um processo que Hoornaert chamou de salvação rompe com o judeu, tornãndo-se
"desnort1ficação" (p. 13). Este processo, mais transcendental e espiritual.
segundo Cox, ameaça a unicidade da Igreja
Católica e a idéia de um Catolicismo Romano Cox acredita que a Teologia da Libertação
Universal. veio atender às necessidades das
populações pauperizadas do Terceiro
Embora enfatize a oposição Norte versus Sul Mundo, que têm sido excluídas não apenas
no conflito da Teologia da Libertação com a dos benefícios materiais da indústria
Igreja Católica oficial, Cox destaca ainda moderna, mas também desapropriadas do
outros aspectos importantes deste conflito . direi to de gerir a si próprias e manter seus
Inicialmente, considera que o conflito pela valores e culturas. A concepção de um
democratização da Igreja Católica seria uma projeto de salvação que busca justiça neste
continuação do conflito entre a Igreja de mundo e a adoção de um radicalismo cristão
Roma e São Francisco de Assis. Seria assim respondem a estas necessidades, ao dar voz
uma nova versão da eterna oposição entre às bases da Igreja. No entanto , observa Cox,
cristãos radicais e a instituição. A Teologia ao permitir que aquelas culturas, por tanto
da Libertação, tal como São Francisco, opta tempo silenciadas, se expressem , a Teologia
pelos pobres, pela prática radical do da Libertação conduz a Igreja Católica e o
cristianismo no cotidiano e pela importância Cristianismo em geral ao dilema da
dos leigos e dos dons face à hierarquia e à multiplicidade cultural das expressões
preparação teológica formal (cap. 5) . religiosas. Com efeito, questiona a antiga
uniformidade de linguagem , de rituais e de
Outra oposição identificada por Cox valores marcadamente europeus que têm
encontra-se no nível teológico. Ele contrasta caracterizado o cristianismo aluai. Para Cox,
a ênfase dada pela Teologia da Libertação a essa multiplicidade cultural seria o maior
Jesus como homem e a sua mensagem em desafio que o mundo cristão enfrenta hoje.
oposição à ênfase da teologia oficial ao
Jesus Ressuscitado, ou seja, ao Cristo. Segundo o autor, atualmente não é mais o
Reconhecendo que essa questão teológica ateísmo e a secularização que competem
pode parecer um tanto sutil ou rebuscada, o com a Igreja Católica e com as outras igrejas
autor mostra como essa diferença de cristãs, roubando-lhes os fiéis, como ocorria

80
no fim do século passado e no início deste. não-católicos, especialmente os grupoos
Em nossos dias, são as novas formas de pentecostais e afro-espíritas tem sido a
religiosidade e de reavivamentos religiosos marca destes últimos 30 anos na vida
as grandes ameaças ou os grandes rivais. religiosa do povo brasileiro (Aubrée, 1984;
Brown, 1986; Rolim , 1985).
Cox considera a Teologia da Liberta~o
como uma forma de reavivamento religioso Cox pressupõe que a Teologia da Liberta~o
no Brasil. Em mais de um momento neste seja um instrumento que expressa e
livro, afirma que nao considera a Teologia da representa, em termos culturais, as
Libertaçao como um tipo de teologia populações carentes da América Latina.
moderna ou secularizada (p. 52). Nestes dois Embora concorde que a Teologia da
pontos discordo do autor. Cox superestima o Liberta~o responda às necessidades
reavivamento religioso promovido pela materiais destas populações, discordo que
Teologia da Libertaçao e subestima o seu reflita sua cultura. A Teologia da Libertação
conteúdo racionalista, secularizado e jamais teria surgido espontaneamente desta
também moderno, mesmo que crítico desta cultura. Surgiu, pelo contrário, entre clérigos
modernidade. intelectuais formados em universidades
européias. Além disso, tem sido difundida por
Cox afirma : "A Europa, exceto a Polónia, tem missionários também vindos do Norte, como
assistido a um declínio constante no número mostram os dados de Adriance (1986) . A
de jovens que entram para ser padres, mas o Teologia da Liberta~o. na verdade , rompe
Brasil assistiu a um aumento· (p. 53/4), sem com os principais pressupostos cognitivos da
oferecer, contudo, dados que sustentem cultura popular brasileira (Mariz, 1989) e com
essa afirma~o . Os dados que conheço a lógica do catolicismo popular (Maués, 1988).
sobre vocações no Brasil, como aqueles
apresentados por Bruneau (1982) e Adriance Sinto falta neste livro de Cox de uma maior
(1 986) , mostram, pelo contrário, que tem discussão do paradoxo de que a Teologia da
havido uma queda constante no percentual Liberta~o - da "desnortifica~o· - tenha
das vocações no Brasil. As pesquisas sobre origem numa Teologia "nortificada" e
CEBs (Macedo, 1986; Mariz, 1989) indicam ·nortificadora·. Cox lembra que Boff to i aluno
que seu reavivamento religioso teria um de Ratzinger e mostra como o tipo de
caráter mais qualitativo do que quantitativo. atividade e o país onde cada um passou a
O Brasil não tem se tornado mais católico no desenvolver sua teologia levaram -nos a
sentido de ter experimentado um visões opostas. O autor, contudo, subestima
crescimento na proporçao de balizados ou as semelhanças entre essas teolcgias. Cox
de seminaristas, padres e freiras, nem por também não percebe as similitudes e a
um aumento na quantidade de fiéis em relaçao entre o processo de romaniza~o
missas por causa da Teologia da Libertação brasileiro e a Teologia da Liberta~o .
ou mesmo das CEBs. Ao contrário, o Segundo sua de scri~o. a romanização no
crescimento de outros grupos religiosos Brasil se reduziria a uma conspiração entre

81
os barões de café e a Igreja Católica de contrário, não ver o aspecto secular, e neste
Roma, numa tentativa de modernizar o país sentido moderno, da Teologia da Libertação
(cap. 8) . Desconsidera, assim, o fato de que é não perceber o maior desafio que esta
a romanização também representou, em enfrenta nas suas bases, entre o povo pobre
termos de motivações subjetivas, a busca de no Brasil. O desafio colocado pelos que
um cristianismo mais ético, menos supostamente tinham seus interesses
supersticioso, e, nesse sentido, mais expressos pela Teologia da Libertação e que
autêntico, além de que ensejou, como a estão exalam ente numa posição extrema
Teologia da Libertação, um enfrentamento da oposta, em termos intelectuais e sociais, a dos
Igreja com o Estado (Maués, 1988). Por personagens analisados por Cox. Desta
negligenciar estes pontos, Cox deixa de lado forma, relacionar o surgimento da Teologia da
el8mentos fundamentais de formação do Libertação com a multiplicidade cultural dos
clero brasileiro que mais tarde desenvolveu a "povos· dominados do Sul e identificá-la com
Teologia da Libertação e perde de vista que a cultura destes é uma questão muito mais
esta Teologia é, como diz Hoomaert (1989), complexa do que pode parecer no livro de
filha da romanização. Cox.

Embora o aspecto racional e secular da Acrescento também que reconhecer os


Teologia da Libertação não pareça ser a aspectos racionais e modernos da Teologia
questão nodal das controvérsias que desperta, da Libertação e a apontar para o hiato entre
não se pode negar que o seu questionamento os seus pressupostos cognitivos e os da
da autoridade tradicional e a sua interpretação cultura dos povos oprimidos não significa
de mundo adotam uma concepção racional fazer uma crítica negativa a esta teologia.
de autoridade e a mesma definição da Pelo contrário, acredito que os limites
realidade da ciência moderna (desenvolvida cognitivos da cultura popular limitam também
no Norte). Assim , a secularização e a ciência o alcance de sua práxis, de sua moralidade e
não são mais amP.aças à teologia oficial da conceito de justiça. Como argumenta
Igreja Católica, nem nunca o foram à Teologia Habermas, um projeto de maior
da Libertação, porque ambas teologias já aperfeiçoamento moral da sociedade e dos
incorporaram muito dos pressupostos indivíduos exige um desenvolvimento da
científicos. Os concorrentes aluais, ou seja, capacidade de apreensão da realidade. A
aqueles que roubam agora os fiéis da Igreja proposta da Teologia da Libertação é, então
Católica, são exatamente as religiões que muito mais complexa do que simplesmente
enfatizam o mágico e questionam a ciência. dar voz a culturas silenciadas do Sul.

Nesse sentido, a afirmação de Cox, de que Apesar destas críticas, considero que The
considerar a Teologia da Libertação como Silenclng of Leonardo Boff discute aspectos
sendo uma visão modema secularizada é importantes da Teologia da Libertação e é
perder de vista seu ponto fundamental, me muito informativo. Vale, então, ser lido por isso
parece insatisfatória. Acredito que, pelo e também pelo prazer de uma boa literatura.

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88
ESTAÇÃO DE SECA NA ~GREJA

Uma ofensiva restauradora vem cortando as fontes da Igreja


da LibertaçãO. Os sinais da seca religiosa se multiplicam, crls·
pando o chão onde só o mandacaru resiste. Será esta somen·
te uma estação que vem e depois dá lugar à ressurreição? Ou
trata-se de uma longa estiagem de efeitos imprevisíveis? Os
artigos apresentados neste Comunicações do /SER, sob o ti·
tulo Estação de seca na Igreja, são o resultado de diversas
pesquisas sobre os acontecimentos na Igreja Católica Roma·
na nos últimos dez anos. Eles pretendem situar a reflexão
atual sobre essa seca no seu contexto mais amplo, semean·
~ do a semente de uma nova estação.
..
u
) JOSÉ OSCAR BEOZZO • IVO LESBAUPIN • JERZY TU..ROWICZ
~ • PEDRO RIBEIRO DE OLIVEIRA • LUIZ ALBERTO GOMEZ DE
~~ ~ S9UZA • RUBEM CÉSAR FERNANDES • OTTO MADURO • CE·
8
~ CILIA LORETO • FAUSTINO LUIZ TEIXEIRA
~rJ:.II ~

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