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manejo do cipó-titica
e sementes nativas
na FloNA do Purus
Manaus, 2021
Copyright© Graça Maria Mitoso da Silva
Ficha catalográfica
S586
Olho da mata: manejo do cipó-titica e sementes nativas na FloNA do Purus/
Organizadora: Graça Maria Mitoso da Silva. --- Manaus, 2021.
118 p.: il, color.
ISBN: 978-65-00-33130-1
CONEC ICEFLU
Comissão Nacional de Educação do Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz
Campo Universal
CONTAG ICMBio
Confederação Nacional dos Instituto Chico Mendes para a
Conservação da Biodiversidade
Trabalhadores na Agricultura
IDARIS
COOPERAR
Instituto de Desenvolvimento Ambiental
Cooperativa Agroextrativista do Mapiá e
Raimundo Irineu Serra
Médio Purus
INCRA
CTA
Instituto Nacional de Colonização e
Centro de Trabalhadores da Amazônia
Reforma Agrária
EDUCAMPO
ISAViçosa
Núcleo de Estudos e Pesquisas em
Instituto Socioambiental de Viçosa
Educação do Campo e Sustentabilidade
ITERAM RESEX
Instituto de Terras da Amazonas Reserva Extrativista
MEB SNUC
Movimento de Educação de Base Sistema Nacional de Unidades de
Conservação
MEC
Ministério de Educação e Cultura UFOP
Universidade Federal de Ouro Preto
MST
Movimento dos Trabalhadores Rurais UFPA
Sem-Terra Universidade Federal do Pará
NEPAM UFSCar
Núcleo de Estudos Pró-Amazônia Universidade Federal de São Carlos
OEJN UFV
Oficina-Escola Jardim da Natureza Universidade Federal de Viçosa
ONG UNB
Organização Não Governamental Universidade de Brasília
PDC UNESCO
Plano de Desenvolvimento Comunitário Organização das Nações Unidas para
Educação, Ciência e Cultura
PRONERA
Programa Nacional de Educação na UNICEF
Reforma Agrária Fundo das Nações Unidas para a Infância
SECADI USP
Secretaria de Educação Continuada, Universidade de São Paulo
Alfabetização, Diversidade e Inclusão
WCS
SEDUC Associação Conservação da Vida Silvestre
Secretaria de Estado da Educação e
Qualidade de Ensino do Amazonas WWF
World Wide Fund for Nature
STR
Sindicato dos Trabalhadores Rurais
SUDAM
Superintendência de Desenvolvimento da
Amazônia
Sumário
Agradecimentos 6
A vez, a voz e o voto do Olho da Mata 10
Educação florestal hoje e sempre 11
Prefácio 13
Apresentação 15
Relato oral 18
Entre sementes e cipós 26
O cipó-titica no Amazonas: conhecimento, importância e manejo 38
Manejo da vida: cipó-titica e sementes nativas na Vila Céu do Mapiá 48
Sustentabilidade no Purus 64
Cadeia de afetos 83
Perspectiva ecológica: vozes artesãs 89
O artesanato Olho da Mata 106
Até breve 117
Agradecimentos
«6»
Agradeço pelo apoio ao Instituto de Desenvolvimento Ambiental Raimundo
Irineu Serra – IDARIS, à Associação dos Moradores da Vila Céu do Mapiá
(AMVCM), à Rádio Jagube e ao Canal Jagube.
Agradeço à equipe do projeto Olho da Mata que, num mínimo espaço de
tempo, conseguiu articular-se num trabalho dinâmico e participativo, que
favoreceu a nossa convivência e a conclusão do livro.
Agradeço aos pesquisadores que atuaram na elaboração dos artigos: ao
geógrafo e ambientalista, diretor da WCS Brasil, Carlos César Durigan; ao
mestre em Ciências, doutor em Biologia de Água Doce e Pesca do Interior, Boris
Marioni; e a designer de biojoias, Maria Oiticica, gratidão por compartilharem
seus conhecimentos.
Agradeço carinhosamente ao jornalista e poeta, membro da Academia
Brasileira de Letras do Estado do Amazonas, Aldísio Filgueiras, que abrilhantou
e coroou nosso trabalho com sua visão crítica e certeira sobre os processos
vivenciados na Amazônia brasileira.
Agradeço ao meu irmão, José Ribamar Mitoso, escritor, professor e doutor
da Universidade Federal do Amazonas, pelo conceito de desglobalização sempre
presente nas suas novelas, nos seus contos, poemas e no seu teatro.
Um agradecimento especial às minhas filhas, Juliana Belota e Maria Belota,
pelo apoio incondicional dado ao projeto; agradeço ao coordenador de mídia
visual do projeto, Dênis Maerlant, por lançar seu olhar ao projeto; à coordenadora
de mídias sociais, Jackeline Monteiro; à artista plástica que assina a arte da
capa, Tai Lin Iuri da Silva; ao artista plástico, Zeca Nazaré, pela ilustração do
livro; ao Bóris Marioni, pela elaboração dos mapas; e aos fotógrafos, Leônide
Príncipe e Alex Pazuello, que disponibilizaram seus acervos.
Agradeço, finalmente, a toda equipe do projeto Olho da Mata pela cuidadosa
condução dos fazimentos do projeto até a execução do livro e aos meus filhos
Marcelo Augusto e André Luiz, que sempre me apoiaram em todas as minhas
iniciativas.
«7»
A vez, a voz e o voto do
Olho da Mata
Aldísio Filgueiras
Poeta, jornalista, membro da Academia
Amazonense de Letras
«8»
Amazônia que ainda não era Amazônia nem propriedade de ninguém?). Uma
diplomacia cujo exemplo pode matar de vergonha os chanceleres de hoje, se
vergonha fosse o insumo da ética e da política dos chanceleres de hoje.
Essas realidades tão antigas quanto contemporâneas têm permanecido vivas,
apesar da contínua e reiterada violência que a República Federativa do Brasil
dedica à região e àqueles sobreviventes que a mantêm brasileira, até hoje. A
capilaridade que sustenta a comunicação entre essa herança cultural e política
está dispersa, mas não menos conectada. Graça Maria Mitoso e sua filha Juliana
estão entre os muitos e diferentes integrantes dessa frente de resistência. Trata-
se de sobrevivência, não de um humano, que eventualmente se perde, mas de
uma humanidade, que se recusa organicamente a deixar de existir, uma história
e uma cultura.
A edição, em boa hora, deste “Olho da mata: manejo do cipó-titica e sementes
nativas na FloNA do Purus”, retrata experiências dela e de seus companheiros e
companheiras na Floresta Nacional do Purus. Não só ali, no entanto. A herança
cultural referida está infestada de contribuições das culturais globais. Graça vem
de uma vivência de bisavós e avós indígenas e africanos, avô vidente, de mãe
católica praticante, mas amiga de mães de santo de umbanda e candomblé;
anexe-se uma infância com um quintal cheio de animais domésticos, o que hoje
seria crime federal, pois esses animais deixaram de ser domésticos (jabutis,
macacos, papagaios, araras, periquitos, tartarugas e tracajás, preguiças e até
galinhas, gatos e cachorros, todos de estimação).
A essa “bagagem” de convivências, Graça Maria juntou estudos de
educação, comunicação e informática, na Itália; foi funcionária do Tribunal
do Trabalho, professora no interior e na capital do Amazonas. Ou seja, Graça
jamais deixou de pagar impostos municipais, estaduais e federais, como a
maioria dos brasileiros que trabalham. E no entanto, essa qualidade que ela
e a sua família compartilham como espiritualidade esteve sempre presente
em todas as suas atividades. A Floresta Amazônica jamais foi um vazio e um
silêncio. Suas experiências sempre se trocaram por todos os meios, agora, com
recursos do rádio, da internet, das redes sociais, distribuindo produtos culturais
e informativos criados dentro das comunidades que são várias e diferenciadas.
Se existe um território de democracia dentro da pátria amada Brasil, ele está
plenamente tipificado na Amazônia.
A rádio Jagube – voz da integração mapiense, vai repercutir o manejo do
cipó-titica e das sementes nativas do rio Purus. E as vozes de Juliana e Graça
Maria darão a dicção e a sintaxe desse evento, da mesma maneira como tratam
da bicharada na floresta, teatro radiofônico que concorre com a instantaneidade
das informações de que as redes antissociais bombardeiam as comunidades e as
«9»
aldeias com a evangelização da doutrina de um progresso, que nunca fez bem a
ninguém, muito pelo contrário.
A Amazônia nunca esteve ausente e está cada vez mais frequente na aldeia
global, mas sua integridade deve-se a esse “trabalho de formiga”, incansável de
salvar sementes nativas e seu uso medicinal. Laboratórios estrangeiros faturam
bilhões de dólares com esse mesmo material usado tradicionalmente pelos povos
da região, mas não respeitado pela “cultura superior” e branca das academias
do litoral atlântico. Desde o Império, pelo menos, o Brasil contraiu uma dívida
com a Amazônia que jamais conseguirá pagar. O desprezo da república de faz de
conta do Brasil para com as populações amazônicas não tem dobrado o ânimo
de viver dessa gente. Agora mesmo um Instituto de Biotecnologia da Amazônia,
criado há 20 anos, está inativo. Nem Manaus, e os governos estadual e federal
não sabem sequer como resolver a burocracia da paternidade da criatura,
que poderia estar à frente do combate à Covid-19. Que tal o cipó-titica? Não
é suficientemente agro para interessar à China, como a soja? Além de vender
madeira em toras, o que interessa à pátria amada Brasil?
É a Graça de Marias e Julianas, e de professoras como Amanda Ayres,
de empates como os de Chico Mendes, o sacrifício de religiosas como a
estadunidense Dorothy Stang, assassinada pelos grileiros de terra e donos de
cartório no Pará, jornalistas perseguidos até pela Justiça, como o paraense Lúcio
Flávio Pino... A lista de combatentes assassinados não caberia em 10 volumes
das listas telefônicas de Nova York e São Paulo, juntas.
O cipó-titica vai dar o que falar e, provavelmente, algum laboratório não
brasileiro se interessará por ele, e ficará muito mais rico com ele. Mas deve se
apressar, porque existe uma guerra não declarada do governo do Brasil contra a
Amazônia, e cada árvore tombada leva consigo os milhares de mistérios que a
nossa orgulhosa ignorância prefere trocar por um hambúrguer do McDonald’s,
sem perder o sono. Eu tenho muito orgulho de ser filho de uma Amazônia que
se põe no mapa com essa gente, por essa gente, como essa gente. É graças a
gente assim que ainda existe uma espécie humana neste planeta. É gente assim
que está na mira dos fuzis da República Federativa do Brasil. O povo do futuro.
« 10 »
Educação florestal
hoje e sempre
Alfredo Gregório de Melo
« 11 »
dos setores que ali foram criadas para apoio até as grandes caminhadas. Essas
caminhadas fazem parte do nosso retiro espiritual e das aulas de reconhecimento
de árvores, ervas, cipós, sementes medicinais e, também, de artesanatos.
O projeto da Oficina de Artesanato Olho da Mata tem a grande força e
interesse da nossa irmã e mestre artesã, Arlete Maciel, e de pessoas que vêm
abrilhantando e fortificando o projeto do Jardim da Natureza. Esse local é palco
de muitas coisas boas para os nossos jovens, nossos artistas, nossos artesãos e
para todo o nosso povo do Céu do Mapiá. É um espaço de estudos espirituais,
um local de desenvolvimento mediúnico, ou seja, um estudo da matéria e do
espírito. E falando em espírito, a natureza é um grande espírito criador, uma
grande mãe criadora e daí vem esta sabedoria, esta explicação.
Através de uma forma ou de outra, estamos contidos neste livro,
neste projeto. Estamos dando a nossa humilde contribuição para este produto
verdadeiro e que revela uma compreensão melhor do poder da mata, da floresta,
da selva. Que este livro seja uma luz para buscar mais coisas boas, sempre na
continuação do agora e na continuação com os nossos jovens, com nossas novas
gerações. Que essas pessoas possam perpetuar o respeito à biodiversidade e o
respeito à natureza em geral. Portanto, reitero que este livro traz boas histórias e
que estas devem ser apreciadas para que outras melhores possam ser produzidas.
Fica aqui essa afirmação e o viva ao nosso esforço, sobretudo neste momento de
isolamento social, na produção deste livro.
« 12 »
Prefácio
Graça Mitoso
Professora de Língua Portuguesa, Servidora Pública Federal Aposentada, Estudiosa dos Saberes/
Fazeres da Floresta e Organizadora do Livro
« 13 »
O livro é a expressão do projeto e das vivências dessa estratégia de certa
cultura popular amazônica. Nos seus nove capítulos, escritos por diferentes
pessoas, o(a) leitor(a) encontrará uma estratégia nativa de produção econômica
sustentável, a qual se destina a transformar a matéria-prima da floresta sem
depredá-la, agregando valor aos produtos dessa atividade econômica sem
transformá-los em commodities para o mercado financeiro internacional.
Há também, é verdade, a intenção de colocar os produtos como resultado
do trabalho cooperativo em um comércio de escala internacional, mas como
instrumento justo de sobrevivência e não de exploração das populações nativas.
O projeto é nativo.
Os capítulos foram escritos por profissionais como professores, artesãos,
jornalistas, psicólogos, designers, acadêmicos. Se não são profissionais de
nascença, são de vivência. Todos amazônicos e todas amazônicas. De nascença
e sabença. Também estão agregados e enraizados até a sola do pé no solo da
cultura popular da Amazônia.
Os temas que compõem os capítulos do livro lhe dão unidade estrutural e
são basicamente em torno do cipó-titica e das sementes da floresta amazônica,
com considerações acerca de seus valores de uso e troca para a sustentabilidade
das populações nativas em vários níveis. Ademais, são reflexões do pensamento
social amazônico, inclusive autobiográficas sobre esses fazeres e saberes. Isso
torna o livro uma expressão das vivências, do projeto e da estratégia da cultura
popular. A expressão da cultura particular, inclusive religiosa, das populações
nativas da Floresta Nacional do Purus e de suas articulações urbanas.
As autoras e os autores estão no sumário e suas sintéticas biografias estão
publicadas no livro. Não cabe aqui na apresentação falar sobre elas e eles.
Também não serei estraga-prazer e não darei spoiler sobre o conteúdo de cada
texto. Suponho que nesses breves parágrafos eu possa ter apresentado o que
todas, todos e todes encontrarão nesta publicação.
A mensagem do livro é de cooperação, inclusão, criatividade e qualidade de
vida.
Não é um livro antiglobalização no sentido de uma globalização enquanto
comércio internacional justo e democrático entre povos e nações, mas está
dentro do conceito de “desglobalização”, criado pela literatura de ficção de
José Ribamar Mitoso, cujos contos e novelas revelam o cotidiano dos atos
de recuperação da sustentabilidade e das identidades culturais dos povos da
Amazônia. Tal fenômeno também ocorre em toda a América Latina, na África e
na Ásia, após a globalização unilateral, responsável pela privatização dos bens
da natureza e pela destruição de muitas culturas tradicionais desses continentes.
Boa leitura!
« 14 »
Apresentação
Arlete Maciel, por Nancy Katz
« 16 »
« 17 »
Relato oral
Da floresta eu recebo
Força para trabalhar
Da floresta eu tenho tudo
Tudo, tudo, Deus me dá.
É um primor a floresta
da maneira que é feita
Com amor se harmoniza
E deixa a Terra satisfeita2.
1 Os hinos do Santo Daime não são concebidos pelos seguidores da religião como “composi-
ções musicais”, mas “presentes” entregues por entidades sobrenaturais para que com essas
canções os fardados possam percorrer o caminho rumo à salvação e a iluminação do espí-
rito. Desde o surgimento da doutrina até os dias de hoje, os hinos são descritos, em falas e
nas próprias poesias, como “presentes, flores, prendas, prêmios e tesouros. (REHEN, Lucas
Kastrup. Presentes do astral in REHEN, Lucas Kastrup F. “Recebido e ofertado: a natureza
dos hinos na religião do Santo Daime”. Rio de Janeiro, Dissertação de Mestrado em Ciências
Sociais, UERJ, 2007a).
2 DA FLORESTA. Hino 14. Hinário O Cruzeirinho. Pad. Alfredo Gregório de Melo.
« 25 »
Entre sementes
e cipós
Graça Mitoso
« 26 »
governança, junto à prefeitura de Boca do Acre, que resulta hoje na expansão do
artesanato local, e no assento de indígenas na Cooperativa Extrativista do Médio
Purus (Cooperar).
Trata sobretudo do processo de desenvolvimento do artesanato na FloNA do
Purus, por este grupo de artesãos, que entra para a Vila Céu do Mapiá em 1997 e
vem desde lá atuando no manejo de espécies florestais e no desenvolvimento de
suas cadeias produtivas dentro da FloNA. Fala da luta de artesãos na Amazônia,
lutando por um espaço e pela instalação definitiva da Oficina de Artesanato Olho
da Mata na Escola de Artes e Saberes Florestais Jardim da Natureza. Fala das
jornadas, dificuldades, erros e acertos de quem luta pela educação em gestão de
floresta no Purus e vive cercado pelas águas dos rios, a 30km do centro urbano
mais próximo, Boca do Acre, deslocamento que se faz, em média, em 10h de
viagem de voadeira. Mas, fala também do brilho natural de mulheres guerreiras
na caminhada de décadas de descobertas e maravilhas como as que veremos na
mostra do artesanato do projeto Olho da Mata.
Como não poderia deixar de ser, me apresento também nesta abertura,
mostrando de que forma essa história se entrelaça à minha história de vida
e a transformação do meu ser e de toda uma visão de mundo que se ampliou
ao horizonte da vida que pulsa na floresta e que aconteceu em mim quando
conheci o Santo Daime, na Floresta Nacional do Purus, na Vila Céu do Mapiá,
em 1992.
A vida seguiu e, após trinta anos de jornada no caminho da floresta, das
medicinas vegetalistas amazônicas - que, no Brasil, tem como uma de suas
maiores expressões o Santo Daime e a sua organização de vida em comunidade
- aqui me encontro com a busca por um caminho de conhecimento, de um
pouco daqueles que passaram antes de nós neste chão do Purus, em alma e flor,
dos que trançaram palhas, teceram fios na tapera e que saudaram a luz dessa
alvorada, porque viram no sonho do padrinho e em sua comunidade o que
está expresso na união de duas plantas: jagube (Banisteriopsis caapi) e rainha
(Psicotrya viridis).
Este é um convite ao trabalho que é de todos nós: “meus irmãos se unindo
serão jagube em flor, comunidade na floresta, que São João tanto sonhou”. A
frase é de um hino recebido pelo poeta e padrinho da igreja Céu da Montanha,
em Visconde de Mauá, Alex Polari, no hinário Anunciação3. Esse hino diz muito
sobre essa transformação e o entendimento do ser como unidade, da expansão
da consciência, do que acontece na força uníssona dos cantos entoados sob o
3 O hinário Nova Anunciação foi recebido pelo padrinho Alex Polari, padrinho da igreja de Visconde de
Mauá (RJ).
« 27 »
efeito do Santo Daime4, do mesmo kahpí, conhecido das tribos enunciadas pelas
cuias iluminadas e pelo rio em sua canção, um fator de unidade com a floresta
e com o cosmo.
Nos caminhos do Santo Daime, do Kahpí, da Ayahuasca ou yagé, resgatei a
minha amazonidade e caboclice, o que me inspirou a viver na mata, no contexto
de ser uma das fundadoras da Comunidade do Santo Daime na Área de Proteção
Ambiental (APA) do Tarumã, na cidade de Manaus. Vimos desde o início dos
anos 90, participando e promovendo eventos, ritos e cerimônias em torno
do uso do Santo Daime, entre os quais o Encontro Xamânico Tecnologias do
Sagrado, em 1999; o Encontro do Xamanismo à Ciência, em 2001; o Encontro de
Xamanismo Guarani, em 2003; o Encontro de Xamanismo Siberiano, em 2007; e
vários outros com pajés, kumuãs e bayás do alto rio Negro, alto rio Javari, alto
rio Solimões e do Acre, entre eles Davi Kopenawa, Benke Pianko, Raimundo
Vaz, Kedácery Moreira, Higino Tenório e Gabriel Gentil. Xamãs da Colômbia, do
Peru, da Sibéria e dos Estados Unidos, entre eles, o líder indígena Aurelio Diaz
Tekpankalli, que também se fez presente.
Os eventos resultaram na fundação do Tekowa Taru’imã, espaço de realização
de ritos e cerimônias sistematizadas no calendário Guarani, com práticas de
intercâmbio com as culturas indígenas locais. Formamos um grupo de estudos
e trabalhos sob a coordenação da minha filha, Juliana Belota e do Ricardo Sá,
com calendários indígenas, o que resultou em produções artísticas, como o
CD de música étnica NGi’Ã TA NGUTAKÉEGÜ - União dos Povos, em Tikuna,
envolvendo cinco etnias: Tikuna, Tukano, Desana, Tariano e Sateré-Mawé5; e a
montagem da peça teatral “As Casas do Tempo: uma releitura do Mito Tukâno da
Criação”, Prêmio Edital de Montagem da Secretaria de Estado de Cultura/AM.
Além disso, realizamos diversos mercados culturais, BazArtes e feiras artesanais
com a apresentação de produtos da Vila Ceú do Mapiá, entre eles, o artesanato.
Vivi na comunidade de Vila Céu do Mapiá pelo período de um ano, quando
trabalhei na Escola Cruzeiro do Céu como professora. Desde que conheci o
Santo Daime, em 1991, sempre estive em contato com a vila, conectada com
a comunidade na sua, na nossa caminhada. O livro “Olho da Mata: manejo
do cipó-titica e sementes nativas na FloNA do Purus” é mais um passo nesse
sentido e, como disse no início, é resultado da experiência de vida que me leva
até o Mapiá. Reúne aspectos fundamentais da doutrina e da FloNA e perpassa
« 29 »
gestora do projeto Curumim&Cunhatã, entre os Apurinã, que no sexto capítulo
faz uma cronologia das principais ações do projeto.
O propósito deste livro “Olho da mata: manejo do cipó-titica e sementes
nativas na FloNA do Purus” é fazer um breve registro do artesanato, passando
pela trajetória da mestra artesã, Arlete Maciel, fundadora do projeto em 1990,
em Rio Branco, na comunidade do padrinho Sebastião Mota de Melo, a Colônia
Cinco Mil, passando por todo o seu percurso de intercâmbio com as comunidades
do Santo Daime em Boca do Acre, na Vila Céu do Mapiá, nos Estorrões, no
Juruá, ao lado do padrinho Alfredo Gregório de Melo6 e junto aos Apurinã, no
baixo Purus. Atualmente, em parceria com Christiana Braconnot, coordenadora
da Oficina de Beneficiamento de Sementes da comunidade Vila Céu Estorrões,
Arlete Maciel e o projeto Olho da Mata, desenvolvem coleções de produtos do
artesanato, calcados no manejo do tucum e do cipó-titica.
Como não poderia deixar de ser, inicio o livro contando um pouco sobre o
meu contato com a Vila Céu do Mapiá e com o projeto Olho da Mata. Falo sobre
a jornada inicial do percurso de chegada na Floresta Nacional que, ao longo dos
anos, visito sempre e compartilho alguns bons momentos, além do período em
que cheguei a morar na vila, dando aula na Escola Cruzeiro do Céu, pela Seduc/
AM.
Enfim, este livro não abrange toda a experiência de revitalização do cipó-
titica e sementes nativas, na FloNA do Purus, mas é uma parte significativa dela
a partir da ótica do projeto Olho da Mata, centrado na narrativa de vivência e
trajetória da mestre artesã, Arlete Maciel, no resgate dos saberes tradicionais
localizados na vila e/ou no entorno dela, na bacia Purus-Juruá. É voltado à
caminhada das artesãs (os), à construção de um projeto de artesanato em Vila
Céu do Mapiá, ao manejo do cipó-titica e das sementes nativas, às suas dores,
sabores e esperanças. Ganha destaque a artista plástica Karina Henestrosa, que
vem investindo e desenvolvendo um efetivo trabalho de formação na área da
educação em artes plásticas com a mestre artesã, Arlete Maciel, no Jardim da
Natureza.
A ideia inicial do livro partiu da necessidade de interagir com a comunidade
neste momento de pandemia, mobilizando artistas, artesãos e jovens protagonistas
da comunidade em uma dimensão de esforços da Lei Aldir Blanc, destinada a
atender artistas de localidades longínquas do Amazonas. Esta produção também
resulta de uma ação em parceria com a Secretaria Estadual de Cultura, com
o município de Pauini, mais especificamente, na FloNA do Purus, uma forma
de ampliar a capilaridade e os horizontes dos povos da floresta, sobretudo em
6 Alfredo Gregório de Melo é filho do padrinho Sebastião Mota de Melo, atualmente líder
espiritual e comunitário da Vila Céu do Mapiá.
« 30 »
relação aos eixos de ação da secretaria, das culturas caboclas e ribeirinhas.
Vale ressaltar que este livro é um um traço de memória do processo de uso e
preservação dos recursos florestais não madeireiros nessa comunidade, que é
objeto de preservação da memória ancestral do uso do Kahpí7 ou ayahuasca,
base de diversas culturas étnicas amazônicas.
9 A Vila Céu do Mapiá, fundada em 1983 por Sebastião Mota de Melo e outras famílias,
como a de Manuel Corrente da Silva, Paulo Carneiro da Silva, está situada nas cabeceiras
do Igarapé Mapiá, a 30 km do Rio Purus, na Mesorregião do Sul Amazonense, entre a
Microrregião do Purus e a Microrregião da Boca do Acre, no município de Pauini. A vila
localiza-se dentro da Reserva Nacional do Inauini, Pauini - uma das mais preservadas áreas
da Amazônia ocidental brasileira. Em 1990, com a aprovação da comunidade, o governo
brasileiro criou com o Decreto n° 96.190, de 21 de junho de 1988, a Floresta Nacional do
Purus, numa área de 256.000 ha, tendo a Vila Céu do Mapiá como uma espécie de capital.
Fonte: Wikipédia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Vila_C%C3%A9u_do_
Mapi%C3%A1. Acesso em: 23 mar. 2021.
« 32 »
núcleos comunitários localizados na boca e ao longo do igarapé Mapiá, além de
algumas colocações no rio Purus.
Fizemos a viagem de Rio Branco a Boca do Acre de ônibus. Uma aventura. O
ônibus estava bem lotado, mas esse não era o problema. A viagem foi silenciosa,
bem do jeito caboclo. Todos estavam sentados, mas junto com alguns passageiros
iam galinhas, alimentos e até um bode, entre outros pertences. O ônibus era
o famoso pinga-pinga, porque era usado por moradores da área rural como
transporte para ir de uma locação a outra. Em cada parada descia um tanto e
subia outro tanto de gente. Na divisa entre o Acre e Amazonas, fizemos uma
parada, era o posto fiscal. Saímos todos do ônibus para revista e cada um tinha
que carregar sua mala para verificação. Tudo uma grande novidade para mim e
para meus filhos. Não havia carregadores. Nós tínhamos que dar conta de nós e
dos nossos pertences, embaixo de um sol de meio dia, entre pessoas e animais.
A viagem durou cerca de oito horas. Chegamos em Boca do Acre exaustos,
querendo e merecendo um bom banho. Para nossa alegria, conseguimos um
simpático hotel pousada, o Hotel Rosas, em madeira colorida, estilo palafita.
Uma coisa linda, todo colorido, com dois pisos e um avarandado aos fundos
que dava para o rio Purus. Tinha somente um banheiro por andar para atender
a todos os hóspedes, mas era bem limpinho, bem cuidado. A maravilha foi a
caldeirada de tucunaré servida no jantar pelo restaurante ao lado. Dormimos.
Pela manhã, orientada pelos mapienses, compramos capas de chuva, toalhas de
banho, mosquiteiros e alguns apetrechos para seguir viagem. Havia um armazém
da comunidade onde abastecemos o barco. Era do Alex Pereira, compadre dos
irmãos daimistas, onde fizemos um rancho para compartilhar com a família com
a qual iríamos nos hospedar.
Ainda pela manhã, pegamos a Ariramba, uma canoa rabeta, a última
construída por nosso líder espiritual, Sebastião Mota de Melo, e viajamos com
D. Regina Pereira, moradora da comunidade, que acompanhou o Padrinho
Sebastião desde a antiga comunidade, a Colônia Cinco Mil. Ela residia e ainda
reside na antiga casa do Padrinho Sebastião, uma casa grande, ligada por um
corredor com a casa onde morava outrora o atual líder do Santo Daime, Padrinho
Alfredo Gregório de Melo, com sua família, e Pedro Gregório de Melo, também
com sua família, filhos do padrinho Sebastião.
Durante a viagem, dona Regina, que aí já era minha madrinha, também
ia cuidando de todos nós. Quando a fome apertou, ela abriu uma lata com
farofa de frango e dividiu entre nós. Logo me convidou para ficar hospedada na
casa dela, ao lado da casa do Padrinho Alfredo. Aceitei de pronto o convite. A
casa era linda, muito agradável, na chegada da Vila, onde eram recepcionados
« 33 »
os visitantes. Dona Regina e seus filhos, Ronaldo Pereira e Sheila Rocha nos
receberam com acolhimento afetuoso.
A viagem pelo rio Purus até a boca do Igarapé Mapiá foi tranquila. O
tempo era de chuva e uma neblina suave caía sobre nós, que, silenciosos,
apreciávamos a paisagem. Eram várias canoas com as famílias navegando no rio
Purus, retornando para a Vila Céu do Mapiá, após o Centenário. Uma belíssima
paisagem! A chuva engrossou, mas todos nós ficamos encolhidinhos na canoa,
cobertos por uma lona e bem tranquilos no seguimento da viagem. Logo, a
chuva serenou e chegamos na primeira colocação do igarapé Mapiá, a Fazenda
São Sebastião.
Já estava anoitecendo. Cada um subiu com sua bagagem e meu filho André
Luiz, com 12 anos de idade, assumiu a responsabilidade do transporte das
malas. O barranco estava bem escorregadio e André, quase chegando em cima
do barranco, escorregou e deslizou barranco abaixo com as malas. Juliano e Lila,
amigos de Brasília, da Igreja Céu do Planalto, centro daimista onde fui fardada,
em 1992, me ajudaram a agasalhar os meninos na igreja, onde os viajantes
armavam suas redes.
Maria dormiu numa caminha embaixo da rede de Lila, e André n’outra
caminha, embaixo da rede do Juliano, todos com mosquiteiro. Eu ainda não
sabia direito aonde eu ia dormir até o momento da chegada do líder espiritual
da comunidade, Francisco Corrente (o tio Chiquinho), amado por todos que o
conheceram. Ele me levou até a sua casa e apresentou-me à sua esposa, Iolanda,
que me convidou para pousar ali, na casa deles. Arrumaram um cantinho
para o meu pernoite. Tudo arrumado, tomamos banho na cacimba, com mais
outras mulheres do grupo, todos com lanternas na mão. Na Cacimba, conheci a
Raimunda Corrente, companheira de todas as horas e pessoa de fineza admirável.
Acordamos pela manhã, após um pequeno desjejum com boas bananas e um
pouco de farofa de jabá. Nos despedimos, tudo era encantador e muito diferente
ao redor daquele que era um povo da floresta. Seguimos viagem passando por
várias colocações, incluindo uma Cachoeira, locação do Padrinho Valdete, onde
iria voltar posteriormente, até chegarmos a Vila Céu do Mapiá.
Já era o dia 23 de dezembro do ano de 1992. Passamos nosso primeiro Natal,
a noite todinha cantando o Hinário do Mestre Irineu, dentro do Igarapé Mapiá,
na floresta, com todos os seus encantos. Para mim foi uma grande emoção estar
na beira do Purus, na Floresta Nacional, numa vila, em vivência de comunhão
com a floresta, nesse dia. Um profundo encontro com a natureza e com o meu
próprio ‘eu divino’. Um lindo “presente de natal” cantar o hinário do mestre
Raimundo Irineu Serra com minha família, na noite de natal, com grandes
revelações da rainha da floresta.
« 34 »
No dia 25, após o hinário, fomos convidados a comer juntos um bolo com o
grupo de Brasília - como é comum nesses festivais da doutrina, quando ocorre
um grande encontro de buscadores e seguidores de todos os estados do Brasil
e de diversos lugares do mundo, as pessoas se encontram para comer juntos e
passar as horas. Alessandra Lucena, Daniela Leal e a atriz Gilda Ferraz, do Rio
de Janeiro, já moravam na comunidade havia algum tempo.
Foi maravilhosa nossa estadia na vila. Logo conheci o Vô Corrente (Manoel
Corrente), soldado da borracha, conselheiro e mestre ensinador da arte de plantar,
e suas filhas, Francisca Corrente, Dalvina e Albertina, além de Maria Eugenia,
sua discípula, mineira que morava na vila com a sua filha Rita. Conheci a nossa
matriarca, madrinha Rita Gregório de Melo, seus filhos, padrinho Valdete, Zé
Mota, Pedro Mota, Isabel, Neves, Marlene e Iracema; e madrinha Júlia Gregório,
responsável por manter a tradição dos rituais, e seus filhos; conheci a madrinha
Sílvia, Jaci, mãe da Glorinha, os filhos e filhas da madrinha Cristina, a madrinha
Maria Brilhante e seus filhos; conheci a italiana Marina, que logo me colocou
uma enxada na mão para trabalhar em sua horta; a artista plástica Verônica, a
Tôca, a Vó Biná, mãe da Lúcia Arruda e da professora, Cláudia Arruda; e muitas
outras pessoas gentis e amorosas que habitam a vila.
Tive o primeiro contato com a Escola Cruzeiro do Céu na época em que ainda
não era reconhecida pela Secretaria de Educação. Como professora da Secretaria
de Educação, tomei como propósito o trabalho de reconhecimento e oficialização
da escola, hoje Escola Estadual Cruzeiro do Céu, onde, posteriormente, trabalhei
como professora pela Secretaria de Estadual de Educação (Seduc/AM).
A vila conta também com a cozinha geral, hoje Cozinha da Soberania, e
posto de saúde. Este, na época, era administrado pelos médicos José Luiz e
Daniel Lopes Argentino, enfermeiro e acupunturista que atendia a comunidade.
A saúde dos moradores da vila era cuidada especialmente pelas plantas,
remédios caseiros das nossas tradições, embora fossem capazes de realizar
atendimentos ambulatoriais e suprir até emergências. Conheci o seu João
Baé; Maria Alice Freire 10 (dos caboclos11), como era chamada, fundadora do
10 Maria Alice Freire liderou o processo de fundação do Centro Medicina Floresta, iniciado em
1990 por um grupo de mulheres e jovens, com sede na Vila Céu do Mapiá. O CMF adquiriu
personalidade jurídica em 1997 e, a partir de então, ampliou seus horizontes, passando a
interagir com outros atores sociais, desenvolvendo parcerias tanto na Amazônia quanto no
cenário brasileiro e internacional. Fonte: Centro Medicina da Floresta. Disponível em: https://
www.floraisdaamazonia.com.br/sobre-instituto. Acesso em: 28 fev. 2021.
11 Iniciou seu caminho espiritual na linha da Umbanda, na integração das tradições indígenas
americanas, africanas e cristãs. [...] Continuando a seguir as pegadas de seus ancestrais e sua
guia espiritual, foi levada à Amazônia, com o propósito de aprofundar sua iniciação com a
bebida sagrada tradicional dos povos originarios da Amazônia. Viveu 23 anos no interior da
floresta, na vila Céu do Mapiá, onde trabalhou na integração das linhas do Santo Daime e da
« 35 »
Centro de Medicina da Floresta; o sociólogo Lúcio Mortimer, que organizava os
mutirões da comunidade, um dos fundadores da Rádio Jagube. Passei 30 dias na
comunidade. Meus filhos se sentiram felizes, andavam livres pela comunidade,
fizeram vários amigos e, quando retornei, minha filha Maria de Jesus pediu
para ficar na comunidade até o final de suas férias escolares. Conversei com
nossa matriarca madrinha Rita e ela imediatamente concordou. Maria ficou de
dezembro ao final de fevereiro.
Esse foi o meu primeiro encontro com a Vila Céu do Mapiá. Nessa época,
não circulava dinheiro dentro da vila. A base da alimentação era mandioca,
jerimum, taioba, rapadura, ovos das galinhas que os moradores criavam. O
arroz e o feijão eram produzidos numa colocação no rio Purus, pelo padrinho
Nel (Manoel Gregório da Silva), irmão da Madrinha Rita e marido da Madrinha
Cristina. Da cidade de Boca do Acre vinham complementações como biscoitos,
leite, óleo, café etc., através da cooperativa.
No decorrer dos anos, todos os meus filhos visitaram a vila e participaram de
alguma forma da arte cabocla de viver dos moradores da vila. Meu filho Marcelo
Augusto, nos dias que esteve na vila, vivenciou o início da obra da construção
da casa do nosso líder espiritual, padrinho Alfredo; André Luiz tornou-se um
violeiro, estudioso dos hinos, tendo como mestre o Tiê Veríssimo e o Roberval
Raulino, filho da madrinha Cristina. Sempre estivemos muito próximos. Eles
também fizeram muitas visitas a Manaus para tratar da saúde e de assuntos da
comunidade junto ao governo.
Voltei várias vezes à comunidade na década de 90 e, nessas viagens, fui
conhecendo um pouco mais. Visitei o Paraíso, a colocação do seu Pedro Zacarias,
mestre na arte de fazer canoa e artesanato com cipó-titica, e sua esposa Francisca
Corrente, com quem, anos depois, morei quando estava trabalhando como
professora na Escola Cruzeiro do Céu. Banhei-me nas águas frias do Repartição.
Atravessei a mata, o alagado e as tucandeiras, que me deram as boas-vindas,
igarapés de águas frias. Ouvi o esturro da onça, o roçado, levada por Jussara,
neta de Francisca Corrente. Subi o igarapé Repartição até o Paraíso, na canoa da
Francisca, onde banhei-me em águas profundas, frias.
Na década de 90, o artesanato era realizado informalmente na vila. Havia a
Casa de Costura sob a direção da Tereza, uma portuguesa que escolheu viver na
comunidade, ensinando a arte de costurar e de fazer não só as fardas utilizadas
nos rituais do Santo Daime, mas também o crochê, o tricô e o tear. Havia a
Casa de Ofício, onde alguns artesãos trabalhavam com resíduos de madeira,
« 37 »
« 38 »
O cipó-titica no Amazonas:
conhecimento, importância e manejo
Carlos Durigan
O cipó-titica
Para muitas regiões do Brasil, titica é um termo com um significado
pejorativo e se refere a algo sem valor, desprezível, e assim está registrado em
tantos dicionários. Na Amazônia, cipó-titica é o nome de uma planta de grande
valor, e quanto mais se torna conhecida, mais se entendem os motivos para tal.
Referência entre tantas culturas indígenas e não indígenas, registrada
na literatura histórica, etnográfica e científica, ainda se tem dificuldades em
conhecê-la na sua plenitude, inclusive em relação à sua origem e significado de
seu nome. Durante pesquisas em campo, a curiosidade me levou a questionar
muita gente sobre tantos aspectos do cipó-titica, incluindo o significado ou a
origem desse nome, tão usado largamente em toda a região.
O que consegui dos mais antigos é que titica seria referência à forma de
descascar, esfregando ou dando uma leve torcida no fio para que sua casca
se solte. Assim tenho entendido a origem do seu nome desde então, um cipó,
como assim são chamadas as plantas que têm caules e/ou raízes pendentes
das árvores na floresta, mas diferenciando-se por suas características de uso e
formas de processamento (DURIGAN, 1998; DURIGAN; CARVALHO, 2004).
« 39 »
Outro ponto é que não existe apenas uma espécie de cipó-titica e estas
são geralmente identificadas por manejadores locais, conforme algumas
características que as distinguem. Para quem vive e conhece a Amazônia, é
comum encontrar nomes diferentes para uma mesma planta, ou mesmo
variações de nomes quando há alguma característica que se diferencia de outra.
Sendo o cipó-titica um nome comum para muitas espécies de plantas, algumas
mudanças nas características das plantas geraram nomes diferenciados e que
fazem a distinção de dois grupos de espécies: o cipó-titica, que possui suas
raízes mais flexíveis e finas e são mais fáceis de processar; e o cipó timbó-açu
ou titicão, que são os cipós-titica que possuem raízes mais grossas e menos
flexíveis. Ambos os grupos têm sua forma de processamento e uso distintos.
Essas especificidades serão tratadas mais adiante.
Na minha experiência com conhecedores e manejadores das plantas
no Amazonas, concebem-se dois grandes grupos de cipó-titica. Outras
características são conhecidas e observadas por esses manejadores, como folhas
mais ou menos estreitas, plantas que formam touceiras maiores, inflorescências
mais longas, mudança de tom
nas cores das flores, enfim, uma
série de outras características que
podem ser usadas para identificar
as etnoespécies, de um modo geral.
Encontrar plantas de cipó-titica
floridas ou frutificando é difícil
e demanda esforço e paciência.
Convivi com muitos manejadores
de cipó que relatavam não conhecer
suas flores, frutos ou sementes.
Quando conversávamos sobre
germinação da planta, muitos
recorriam a um mito de origem
bem interessante. Em muitas
culturas amazônidas, o cipó-titica
é gerado pela formiga tucandeira
que, ao morrer presa a um tronco,
seu corpo se transforma na planta
e suas pernas em suas raízes.
Com essa base mitológica, muitos
manejadores buscavam explicar
sua germinação.
« 40 »
Essa relação é muito interessante e, durante
muitos anos, atuando em trabalhos na floresta
na companhia de manejadores e, também, de
cientistas de diversas áreas, registrei não apenas
tucandeiras, mas diversos insetos mortos sobre
troncos com pequenos fios brotando de seus corpos.
Investigando mais a fundo, constatei que se tratava
de um fenômeno não raro na região, quando fungos
do gênero Cordyceps atacam insetos e estes, ao
morrerem, têm sobre seus corpos emissões de hifas
ou pequenos filamentos. Assim, pude associar o mito
da origem do cipó à transformação da tucandeira,
fenômeno já registrado na literatura (ANDRADE, 1980).
Do ponto de vista da ciência da sociedade envolvente, o cipó-titica é
classificado como parte de um grupo de espécies do gênero Heteropsis, que
pertence à família botânica das aráceas (Araceae). As aráceas são plantas
herbáceas e que apresentam uma grande variedade de formas de vida. São bem
conhecidas globalmente pelo uso que se faz de algumas espécies, servindo como
alimento (é o caso do inhame – Colocasia esculenta) e para o cultivo ornamental
(como o antúrio – Anthurium andreanum), dentre outros usos.
Representantes da família botânica Araceae podem ser encontrados em
quase todo o planeta e com grande representatividade em ambientes tropicais.
Na Amazônia, já são registradas centenas de espécies de aráceas. O gênero
Heteropsis foi, por muito tempo, um quase desconhecido para a ciência global,
visto que sua diversidade de espécies por muito tempo não era bem conhecida.
Há décadas, cientistas se esforçam para descrever as diferentes espécies já
inventariadas e entender a sua variabilidade, buscando classificá-las de forma
coerente. Somente há alguns anos que um melhor registro foi concluído por um
grupo de cientistas liderados por uma botânica do INPA (Instituto Nacional de
Pesquisas da Amazônia), responsável pelo avanço nesse conhecimento. O grupo
classificou até o momento 18 espécies e uma variedade de plantas do gênero
Heteropsis (SOARES et al., 2019).
Apesar de distintas, algumas características, história natural e comportamento
dessas espécies são similares a todas, assim como já observavam manejadores
e conhecedores tradicionais. Por esse motivo, destacarei esses aspectos gerais,
comuns a todas as espécies e etnoespécies observadas.
O cipó-titica ocorre em toda a região amazônica e está associado às florestas
de terra firme íntegras. Muito provavelmente, isso se deve à coevolução dessa
espécie e de outras nesse tipo de ambiente. Uma característica do desenvolvimento
« 41 »
da planta é que, em uma fase inicial, a planta germina no solo da floresta e
busca por uma outra planta que será o seu suporte durante a vida. Sua ligação
com o solo da mata é permanente, desde o momento da germinação, e, apesar
de seu crescimento vertical sobre um tronco arbóreo, a planta atinge a altura do
dossel da floresta, ultrapassando, em muitos casos, os 20 metros de altura. Ela
se mantém conectada ao solo por suas longas raízes aéreas (PLOWDEN; UHL;
OLIVEIRA, 2003; DURIGAN; CARVALHO, 2004).
O cipó-titica é uma planta hemiepífita, isto é, sua forma de vida depende de
uma árvore suporte para se prender e da sua ligação com o solo através de raízes
alimentares. A planta do cipó-titica tem sua germinação no chão da floresta e,
durante seu crescimento, desenvolve-se como um ramo flageliforme que busca
um tronco onde se prende por raízes de sustentação.
As plantas em geral, na sua fase inicial de vida, ao germinar, crescem em
direção à luz. O cipó-titica, na sua fase inicial de vida, busca por sombra, ou
seja, busca por um tronco para se fixar. Esse fenômeno é conhecido no meio
científico como eskototropismo e é observado em muitas aráceas. No momento
em que seu ramo se fixa a um tronco, a planta assume a busca por luz, fenômeno
conhecido como heliotropismo. No seu crescimento vertical em busca de luz,
agarra-se firmemente ao tronco e, durante sua subida, vai gerando raízes aéreas
alimentares, cuja finalidade é nutrir e hidratar a planta.
A partir do amadurecimento da planta e à medida que vai se distanciando
do solo no seu crescimento, mais e mais raízes aéreas vão se formando. Quando
a planta atinge a copa da árvore hospedeira, ela já conta com dezenas de raízes.
Pude encontrar em trabalhos de campo plantas de cipó-titica com mais de 40
raízes alimentares (DURIGAN, 1998; DURIGAN; CARVALHO, 2004; PLOWDEN;
UHL; OLIVEIRA, 2003; SOARES; MAYO; GRIBEL, 2013). Suas flores e frutos
surgem em ramos horizontais laterais que vão brotando ao longo de seu caule.
As flores são formadas por uma espádice semienvolta em uma espata e seus
frutos surgem na espádice, que é um tipo de inflorescência em formato de espiga.
O cipó-titica parece ter uma relação forte também com várias espécies
animais. Essas espécies o utilizam como fonte de alimento e geram um
comportamento na planta em resposta às diferentes predações que sofre. Suas
raízes aéreas costumam ser atacadas por besouros da família Curculionidae. A
resposta da planta a isso é a capacidade regenerativa das suas raízes aéreas, que
formam protuberâncias (nós). A partir desse fenômeno, novos segmentos de
raízes se formam. Suas flores e frutos são muito atacados por diversos insetos e
até vertebrados, como primatas e marsupiais, o que pode explicar a dificuldade
de se encontrar na floresta plantas floridas ou com frutos.
« 42 »
Tantas características singulares fazem do cipó-titica um grupo de espécie
de plantas muito especial. Sua importância vem sendo destacada pelos povos
amazônicos há gerações.
« 44 »
do conceito e da prática do manejo de cipó-titica. Assim, os estudos que, desde
então, têm sido feitos sobre o cipó-titica, além dos modelos propostos de manejo
sustentável para a sua produção, foram gerados nesse espírito.
Atualmente, Amapá e Amazonas são os únicos estados que, até hoje,
lançaram mecanismos legais e normativos visando à proteção e ao manejo das
espécies de cipó-titica exploradas. No entanto, a falta de práticas de controle e
monitoramento das atividades, e a pressão da demanda continuam causando
problemas para a conservação das espécies (SCIPIONI et al., 2012).
Manejadores e coletores tradicionais do cipó-titica já relatavam uma
característica importante da planta que permitia seu manejo em bases
sustentáveis. A retirada apenas de parte dos fios (ou raízes aéreas) de uma
planta dava à mesma a possibilidade de se manter viva e ainda ter o potencial
de voltar a produzir fios que seriam coletados em atividades futuras.
Acompanhei diversas atividades de coleta de cipó-titica e sempre me era
relatado que uma área explorada só poderia voltar a ser cultivada não menos
que dois anos após. Esse conhecimento foi a base dos trabalhos que buscaram
medir e monitorar a sobrevivência e a regeneração das plantas de cipó-titica
exploradas.
O poder regenerativo das raízes alimentares do cipó-titica, como já
mencionado, ocorre naturalmente, visto o grande número de animais e insetos
que predam suas plantas. No caso das raízes, essa característica constitui a
potencialidade para o manejo em bases sustentáveis. Garantindo a sobrevivência
das plantas exploradas, consegue-se que as mesmas sigam o seu ciclo de
vida produzindo sementes e novas plantas, favorecendo, após alguns anos, a
reutilização de fibras de plantas já manejadas.
No entanto, essa capacidade regenerativa foi mais observada em raízes fortes
ou maduras, raízes já bem estabelecidas e que são facilmente identificadas pelos
manejadores por sua firmeza e resistência da casca. Raízes imaturas ou com fios
verdes não possuem o mesmo poder regenerativo dos fios maduros. Além de
não serem idealmente úteis, sua coleta pode levar a planta manejada à morte
(HOFFMAN, 1997; PLOWDEN; UHL; OLIVEIRA, 2003; DURIGAN; CARVALHO,
2004; SCIPIONI et al., 2012).
Essa base de conhecimento gerou a receita básica do manejo proposto nos
mecanismos legais e normativos existentes. Apesar de apresentarem algumas
variações, buscam basicamente incentivar boas práticas de manejo e possibilitar
a sobrevivência das plantas exploradas, assim como o potencial de manejos
futuros em áreas já utilizadas.
Limitarei a apresentar aqui as regras aplicáveis à exploração do cipó-titica,
preconizadas pela Instrução Normativa do Amazonas (AMAZONAS, 2008), que
« 45 »
estabeleceu conceitos de boas práticas de manejo para o cipó-titica e que entendo
como uma base relevante para se efetuar o manejo em bases sustentáveis. A
saber:
- Coletar apenas fios maduros, sendo deixados fios verdes ou imaturos e
que estejam emaranhados no tronco da árvore hospedeira; deixar um
percentual de fios maduros, os quais não devem ser coletados;
- Plantas com poucos fios são plantas jovens e que ainda em processo de
estabelecimento, por isso não devem ser alvo de extração;
- Utilização de técnicas alternativas para o puxão dos fios, dando preferência
ao uso de instrumentos de corte ou podões;
- A coleta de fios deve ser de 50% dos fios maduros registrados em plantas
com menos de 20 fios maduros e 2/3 para plantas com mais de 20 desses
fios;
- À área explorada deve ser dado um pousio de 3 anos para atividades de
coleta de cipó-titica.
Na época da construção dessa normativa, uma sugestão levantada dizia
respeito ao fato de que essas propostas seriam adotadas como um manejo
experimental. Por esse motivo, um monitoramento das atividades de manejo
também deveria ser realizado, até mesmo para testar as boas práticas propostas
e a forma de contribuição para a sustentabilidade da atividade.
O potencial de manejo do cipó-titica o coloca como uma planta estratégica
no modelo de uso múltiplo de produtos da floresta. Além disso, a presença
do cipó-titica numa floresta de terra firme é um forte indicador de sanidade e
integridade dessa floresta. Uma floresta de terra firme amazônica saudável tem
cipó-titica.
O desafio maior que se coloca atualmente é como melhorar as formas de ex-
ploração dessa planta, resgatando o seu real valor originário, já destacado pelos
povos amazônicos indígenas e não indígenas. O cipó-titica bem manejado pode
ser a base de uma cadeia comercial baseada na produção de produtos artesanais
de alto valor agregado e de reais benefícios às comunidades que o respeitam e
o sabem valorizar.
Referências
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ANDRADE, C. F. S de. Epizootia natural causada por Cordyceps unilateralis (Hypocreales,
Euascomycetes) em adultos de Camponatus sp. (Hymenoptera, Formicidae) na
região de Manaus, Amazonas. Brasil. Acta Amazonica, v. 10, n. 3, p. 671-677, 1980.
CARVALHO, A. C. A.; EULER, A. C.; PINTO, E. R.; COSTA, J. B. P.; LIRA-GUEDES, A. C.
Cipó-titica: Recurso florestal não madeireiro importante para a economia do Amapá.
In: ENCONTRO LATINO-AMERICANO DE UNIVERSIDADES SUSTENTÁVEIS, 2.,
2015, Porto Alegre, RS. Anais [...]. Porto Alegre, RS: [s. n.], 2015.
DURIGAN C. C.; CARVALHO C. V. de. O extrativismo de cipós (Heteropsis spp., Araceae)
no Parque Nacional do Jaú. In: BORGES, S. H.; IWANAGA, S.; DURIGAN, C. C.;
PINHEIRO, M. R. (Eds.). Janelas para a biodiversidade no Parque Nacional do
Jaú: uma estratégia para o estudo da biodiversidade na Amazônia. Manaus, AM:
Fundação Vitória Amazônica, 2004. cap. 15, p. 231-245.
DURIGAN, C. C. Biologia e extrativismo do cipó-titica (Heteropsis spp. – Araceae):
estudo para avaliação dos impactos da coleta sobre a vegetação de terra firme no
Parque Nacional do Jaú. 1998. 52f. Dissertação (Mestrado em Ciências Biológicas)
– Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Manaus, AM, 1998.
HOFFMAN, B. The biology and use of nibbi Heteropsis flexuosa (Araceae): the source
of an aerial root fiber product in Guyana. 1997. 148f. Thesis (Master’s) - Florida
International University, Miami, 1997.
PLOWDEN C.; UHL, C.; OLIVEIRA, F. A. The ecology and harvest potential of titica
vine roots (Heteropsis flexuosa: Araceae) in the eastern Brazilian Amazon. Forest
Ecology and Management, Amsterdam, v. 182, n. 1-3, p. 59–73, 2003.
POHL, L. Relatório sobre a oficina de cipó-titica e treinamento para realização de
inventários de áreas de extração de cipó-titica no contexto do Projeto USUCIPÓ -
Uso Sustentável do Cipó Titica do Rio Castanha. [S. l.]: ACIRC – FOIRN – Federação
das Organizações Indígenas do Rio Negro, 2009.
SCIPIONI, M. C.; ALVES, C. G.; DURIGAN, C. C.; MORAIS, M. L. C. S. Exploração e
manejo do cipó-titica (Heteropsis spp.). Ambiência Guarapuava, v. 8, n. 1 p. 139-
153, 2012.
SOARES, M. L.; MAYO, S. J.; GRIBEL, R. A Preliminary Taxonomic Revision of Heteropsis
(Araceae). Systematic Botany, v. 38, n. 4, p. 925-974, 2013.
« 47 »
Manejo da vida:
cipó-titica e sementes nativas
na Vila Céu do Mapiá
Juliana Belota
Nós da Amazônia ainda somos peões de uma língua e de uma cultura que
retarda, em séculos, a formação de valores orgânicos que tomem a sabença
étnica, aproveite as sementes, tomem como processo histórico e estabeleça
de uma vez por todas o âmago, o fulcro e a essência de uma literatura
verdadeiramente nossa (TUFIC, 2010, p. 17).
Purus, plano de manejo – Diagnóstico e caracterização. Brasília, DF: ICMBio, 2009a. v. I.)
13 Uma agência de desenvolvimento local que atua com foco na inovação e na sustentabilidade.
Com ações focadas na mobilização de recursos como estratégia de desenvolvimento
institucional, une a criação e implementação de projetos sustentáveis. O instituto tem como
missão promover a sustentabilidade da vida comunitária, contribuindo para transformar a
EcoVila Céu do Mapiá num modelo demonstrativo de sustentabilidade e soberania. (IDARIS.
Sobre o Idaris. Disponível em: https://www.idaris.com.br/. Acesso em: 29 mar. 3021).
14 Localizada na área rural da cidade de Rio Branco, estado do Acre, a comunidade era formada
por um grupo de seringueiros e trabalhadores rurais motivados e unidos pela tradição
espiritual do Santo Daime, e organizados sob a liderança e presença inspiradora de Sebastião
Mota de Melo, o Padrinho Sebastião (1920-1990). (AMVCM. Sobre a Vila Céu do Mapiá.
[2004]. Disponível em: http://vilaceudomapia.org.br/comunidade/. Acesso em: 29 mar. 2021.
15 Sebastião Mota de Melo nasceu em Eirunepé, estado do Amazonas, no dia 07 de outubro de
1920. Desde 1975 é chamado pelos integrantes da comunidade rural de “padrinho”, palavra
que expressa respeito e reconhecimento das suas qualidades de mestre espiritual, além de
colocar a pessoa que assim o chama na condição de seu “afilhado” e protegido, que vai ser
conduzido espiritualmente (FROES, 2019, p. 42).
« 49 »
Daime16, doutrina sincrética de origem pré-colombiana17, cristã e afrodescendente,
que surgiu no início do século XX e cujo fundador foi o Mestre Raimundo Irineu
Serra18.
O projeto surgiu no intuito de dar continuidade ao que vinha sendo desen-
volvido já há algum tempo, no âmbito da comunidade fundada pelo padrinho
23 FROES, Vera (org). Linha do Tucum: Artesanato da Amazônia. Rio de Janeiro, RJ: Instituto
de Estudos da Cultura Amazônica, 2010.
24 A linha da lealdade é uma referência à linha do tucum. Por volta de 1959, Mestre
Irineu recebeu o Hino “108 - Linha do Tucum” (ver hino abaixo). Aqui a palavra tucum
possivelmente refere-se a uma palmeira (Acrocomia Officinalis) cheia de espinhos, encontrada
no Maranhão. O tucunzeiro, que também é muito comum em diversas outras regiões do
Brasil, apresenta na cultura afro-indígena maranhense relações estreitas com pelo menos dois
grandes grupos de entidades espirituais: a família de Légua Boji e a família dos Currupiras.
Estas são formadas por encantados violentos que costumam aplicar castigos impiedosos em
pessoas que, por qualquer razão, os venham desagradar. Uma das suas punições favoritas
seria fazer suas vítimas entrarem em touceiras de tucum, onde ficariam presas nos espinhos.
No universo afro-indígena maranhense, o tucum é também considerado o local de moradia
dos Curupiras. Entre os pajés de Cururupu-MA, o tucum, além de ser usado em remédios,
pode funcionar como uma espécie de “depurador” espiritual e o tucunzeiro é utilizado como
local onde os pajés depositam os feitiços e substâncias malignas retiradas do corpo dos
doentes. Assim, no complexo cultural afro--indígena maranhense, o tucum é um símbolo
rico em significados relativos ao poder sobrenatural e à magia. (MOREIRA; MacRAE, 2011, p.
273).
« 53 »
atender à comercialização, fruto de parceria comercial, em Florianópolis. A
comunidade tradicionalmente já produzia utensílios domésticos, como bolsas,
leques, vassouras e paneiros, e utilizava o cipó-titica na construção para amarrar
estruturas de casas, substituindo o prego.
O cipó-titica é tradicionalmente utilizado na comunidade para a construção
de mutás e andaimes, destinados a pegar e a carregar a caça, e para aplicação
de kambô. Tradicionalmente, grupos indígenas brasileiros, como os Katukina,
Kaxinawá e Yawanawá, entre outros, usam o Kambô em limpezas espirituais e
orgânicas que tonificam o sistema imunológico.
Em 2013, uma parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID) ampliou o enfoque na produção de peças a partir do cipó-titica. O BID
apoiou a realização de oficinas para a formação e qualificação de vinte alunos
na cadeia produtiva, além da multiplicação da técnica artesanal para os usos
múltiplos do cipó-titica. Quatro eixos de ação foram desenvolvidos: protagonis-
mo juvenil no resgate das técnicas de manuseio do cipó a partir do engajamento
com gerações de anciãos, mateiros e artesãos da Vila Céu do Mapiá, do Igarapé
Mapiá e do rio Purus; aprimoramento do plano de manejo do cipó-titica (Hete-
ropsis flexuosa); melhoria da infraestrutura física da Escola de Arte e Saberes
Florestais Jardim da Natureza; e aquisição de materiais e realização das oficinas
de capacitação e produção.
Esses quatro eixos de criação favoreceram o aumento da variação de produ-
tos oriundos do cipó-titica, confeccionados na Vila Céu do Mapiá. Dentre esses
produtos estavam chapéus, cestos, peneiras, tipitis (usados para tirar a água da
massa da macaxeira e fazer o biju) e jamaxins (tipo mochila) (MORAIS; MA-
CIEL; HENESTROSA, 2013 apud SOUZA, 2016, p. 64).
Após dez anos, o número de espécies identificadas e utilizadas na produção
do artesanato na vila mais que dobrou. Um levantamento mais recente identifi-
cou trinta e quatro espécies: Castanha ouriço (Bertholletia excelsa); Jarina (Phy-
telephas macrocarpa); Tucum (Astrocarvum chambira), Açaí nativo ou solteiro
« 54 »
(Euterpe precatória); Açaí de planta ou de touceira (Euterpe oleracea Mart.);
Uricuri (Attalea ohalerata); Jaci (Attalea butyracea), Aricuri (Cocos coronata);
Murumuru (Astrocaryum murumuru Mart); lnaiá (Maximiliana regia Mart ou
Maximiliana maripa); Cocão (Erythroxylum deciduum); Paxiúba (lriartea def-
toidea); Paxiubinha (Socratea exorrhiza); Patoá (Oenocarpus bataua Mart.);
Côco Marajá (Bactris acanthocarpa); Mumbaca ou Maraiá-Açú (Astrocaryum
gynacanthum ou Bactrís); Jauari (Astrocaryum jauari); Lágrima de N. Senho-
ra (Coix lacryma-jobi); Sororoca (Phenakospermum guianense), Sororoquinha
(Xanthosoma pubescens); Helicônia (Metallica); Cabaceira (Crescentia cujete);
Jatobá (Hymenaea courbaril); Mucunã (Mucuna rostrate); Mulungu (Ormosia
coccinea ou Parida multijuga); Cumari (C.baccatum var. praetermissum); Sibi-
piruna (Caesalpinia peltophoriodes); Corrimboque (todos os tipos); Taperibá25
(Cassia leptocarpa); Marajá vareta (Bactris simplicifrons); Olho de Boi (menor)
(Leucanthemum sylvaticum); Uxirana (Sacoglottis amazônica); Sabão de maca-
co (Sapindus saponaria).
a quantidade de cipó titica por hectare na FloNA do Purus foi indicada nos
igarapés Repartição, Prato Raso, Areia Branca e Gato. No igarapé Repartição,
na Várzea, foram encontradas 4 plantas por hectare; na Terra Firme, 6
plantas por hectare. No igarapé Prato Raso, na Várzea, foram encontradas
1,5 plantas por hectare e, na Terra Firme, 6; no igarapé Areia Branca, na
Várzea, foram encontradas 5 plantas por hectare e, na Terra Firme, 12; no
igarapé Gato, não foram encontradas plantas na Várzea, e na Terra Firme 14
plantas por hectare foram encontradas.
27 Esse nome é comum a várias espécies da família das Sapindáceas, todas trepadeiras lenhosas
(CORRÊA, 1975 apud FERRAZ, 2010, p. 55).
28 CORRÊA, 1975 apud FERRAZ, 2010, p. 55.
« 57 »
mais resistentes dentro d’água. Servem para fazer chapéus, balaios, etc. O pó da
raiz é empregado como drástico29.
A comercialização específica do cipó-titica e cipó-timbó na comunidade
teve seu ápice em 2008, após terem sido realizados os primeiros estudos sobre
o cipó-titica na Vila Céu do Mapiá, junto ao mateiro Adelson Paes30. Foram
desenvolvidas coleções para comercialização, em Florianópolis. O principal
produto comercializado pela comunidade foi o filtro dos sonhos de cipó-titica
e palha de buriti. Esse foi um momento em que as atividades se intensificaram
tanto em Vila Céu do Mapiá quanto na comunidade Céu dos Estorrões, no Juruá.
Os filtros de sonhos foram produzidos na Vila Céu do Mapiá e os colares e
pulseiras de tucum no Juruá. “Eu trabalhava lá e cá, em uma comunidade e na
outra”, afirma Arlete Maciel.
Em 2017, em parceria com a Escola de Arte e Saberes Florestais Jardim da
Natureza, teve início o programa Jovem Aprendiz, que atuou na formação de
Mais que isso, é uma região de intimidade com o Divino, habitat natural
de uma enorme força e energia espiritual, que se manteve incólume até
os nossos dias. Cada pulsação de vida que há nela gera no homem um
efeito profundamente terapêutico, antecipa uma grande felicidade que
poderá vir nesse novo tempo, se a consciência do homem puder se
expandir e sobrepujar a sua destrutividade (POLARI, 1992, p. 15).
« 59 »
recentes mostram que centenas de espécies vegetais (tidas como silvestres na-
turais) predominantes nesse ambiente são, na verdade, frutos da ação humana
(MENDES DOS SANTOS apud CARDOSO, 2010).
“Fazer o manejo florestal é algo simples, especialmente para os ribeirinhos,
seringueiros, quilombolas e indígenas que nasceram na floresta” (VIANA, 2006,
p. 136). Para o autor, o aproveitamento da reconhecida “tecnologia de ponta
cabocla” deve ser destinado ao enfrentamento das transformações para a sus-
tentabilidade e governança da Amazônia.
34 MACIEL, Arlete. Arlete Maciel: depoimento [mar. 2021]. Entrevistador: Juliana Belota. Mapiá,
2021. 1 arquivo .mp3 (1h20).
« 61 »
construiu, como contrapartida do projeto, as instalações de duas choupanas de
palha para salas de beneficiamento e montagem.
Com a alagação, em 1997, a oficina foi desabitada e o projeto passou a fun-
cionar na Fazenda São Sebastião, na entrada do igarapé Mapiá, de onde iniciou
os primeiros passos da instalação da oficina de beneficiamento na Vila Céu do
Mapiá. Um dos principais problemas enfrentados pelo projeto, na Vila, é a falta
de energia elétrica. O programa do governo federal “Luz para todos” não chegou
à comunidade.
Até 2017, o projeto funcionou nas adjacências da Escola Cruzeiro do
Céu. Em 2018, parte do projeto passou a funcionar no Jardim da Natureza,
onde instalou uma sala de montagem. Atualmente, com o avanço da pandemia
no Brasil, o projeto tem produção em escala comunitária, individual, na casa
dos artesãos. As obras das salas de beneficiamento e para o motor gerador são
parte das metas do projeto, que pretende, além disso, dar continuidade aos
estudos para identificação de espécies; organizar um inventário das sementes
já identificadas; fazer o mapeamento das principais espécies na área do manejo
comunitário, de modo a quantificar com mais precisão o potencial do estoque
existente; e aumentar a escala de produção destinada ao incremento do processo
de certificação florestal.
Referências
« 62 »
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« 63 »
Sustentabilidade no Purus
Boris Marioni
« 66 »
A região do médio Purus é conhecida pela alta abundância de fauna,
especialmente das tartarugas de água doce (KEMENES; PEZZUTI, 2007). Os
quelônios são historicamente consumidos na bacia amazônica e toda a calha
do rio Purus não é uma exceção (BRASIL, 2009a, b ou c). Somente no ano de
2018 foi estimado que, aproximadamente, 1.7 milhões de indivíduos adultos,
principalmente das espécies Podocnemis expensa (tartaruga da Amazônia), P.
unifilis (tracajá) e P. sexturbeculata (iaça), foram consumidos nos municípios do
estado do Amazonas, sendo Manaus (40%) e Manacapuru (15%) os locais de
maior consumo (CHAVES et al., 2020; AMAZONAS, 2020).
Nas cidades menores do interior, como Beruri, Pauini e Canutama, todas na
calha do Purus, foram encontradas altas frequências no consumo de quelônios.
Cerca de 75% das casas declararam consumir a carne regularmente e estima-
se que dez indivíduos são consumidos anualmente em cada família (CHAVES
et al., 2020). Os ovos dessas espécies são também amplamente consumidos e
comercializados ao longo da calha do rio, apesar das ações de fiscalização das
autoridades ambientais estaduais e federais.
Muitas famílias consideram a fauna uma fonte importante de alimento e renda,
mas não percebem o seu valor ecológico (CHAVES; MONROE; SIEVING, 2019).
Graças à criação de várias unidades de conservação no decorrer dos últimos 30
anos, além do envolvimento das comunidades locais na conservação e proteção
das principais praias de desova, a estratégia que vem sendo implementada tem
um relativo sucesso em muitos locais da Amazônia (Projeto de Quelônios da
Amazônia- Centro de Conservação e Manejo de Répteis e Anfíbios - IBAMA).
« 67 »
extensas de várzea, sendo que a maior parte do cultivado é para consumo próprio.
Somente os produtos com melhor preço e liquidez são comercializados pelos
diversos atravessadores da região, como banana ou farinha (DEUS; MAZUREK;
VENTICINQUE, 2010). Por exemplo, mais de 100 toneladas de banana são
comercializadas anualmente nos municípios de Beruri e Tapauá.
A flora das florestas nas margens do Purus e do interflúvio Purus-Juruá
podem conter espécies ainda ignotas à ciência. A região é ainda pouco conhecida
em função do grande vazio de coletas botânicas. Em um levantamento
florístico realizado em 2005 na FloNA do Purus, foram amostrados cerca de
200 indivíduos, distribuídos em 67 famílias botânicas, sendo que 18 indivíduos
ficaram totalmente indeterminados (BRASIL, 2009a, b ou c).
O extrativismo de produtos não madeireiros é realizado nos ecossistemas de
terra firme e de várzea. No âmbito estadual, a andiroba (Carapa guianensis) e a
copaíba-mari-mari (Copaifera multijuga), encontradas no levantamento florístico
realizado (AMAZONAS, 2010), são as espécies protegidas e imunes a corte (Dec.
est. AM nº 25044 de 01/06/2005). Com base em levantamentos realizados em
2005 na comunidade Vila do Céu, foram identificadas 12 espécies que possuem
grande uso e importância para os moradores, além de mostrar potencial para
a geração de renda. Outras espécies podem ser usadas para fins medicinais,
alimentícios, artesanato e construção civil, assim como em cultos religiosos
ou como ceva para caça (BRASIL, 2009a, b ou c). Normalmente, os produtos
oriundos do extrativismo são para consumo próprio ou para comercialização.
Os moradores utilizam uma grande variedade de produtos entre outros óleos,
gomas/látex, resinas, raízes, frutos, cascas, cipós, palhas e fibras. No geral, o
extrativismo não representa um elemento forte na renda familiar, sendo uma
atividade mais voltada à subsistência com pouca ligação ao mercado, exceto para
a castanha e o açaí. Atualmente, uma parte do açaí é comercializada na forma de
frutos recém-coletados nas árvores. Outra parte pode ser vendida já beneficiada
na forma de vinho (ou suco de açaí), mas a logística do armazenamento e
transporte refrigerado não permitem que os produtos sejam vendidos nos
centros urbanos mais próximos. Os atravessadores pagam no saco de 50 kg
de açaí um preço baixo, fazendo com que os ganhos dos comunitários sejam
mínimos (AMAZONAS, 2020). Na região da FloNA, os principais produtos não
madeireiros utilizados pelas comunidades são a seringa, a castanha e o cipó-
jagube (BRASIL, 2009a, b ou c).
A extração madeireira ocorre ao longo das margens do rio Purus,
principalmente com a finalidade de construir casas, sedes comunitárias, igrejas
e galpões. A comercialização ilegal de madeira causa um grande impacto nas
espécies exploradas, que são retiradas através da construção das jangadas para o
« 68 »
transporte fluvial ou processadas em serrarias ilegais nos municípios maiores. A
exploração das espécies em áreas de várzea se dá com a madeira em tora, sem a
necessidade de beneficiamento. Em contrapartida, as espécies de terra firme são
comercializadas na forma de prancha e, portanto, necessitam de um trabalho
mais especializado, além de um esforço maior para a retirada do material (DEUS;
MAZUREK; VENTICINQUE, 2010).
O estudo de impacto ambiental e seu respectivo relatório (EIA/RIMA),
elaborado para subsidiar o licenciamento ambiental da BR-317, identificaram
apenas três espécies arbóreas ameaçadas na região de estudo (AMAZONAS,
2010), sendo elas a castanheira (Bertholletia excelsa), a seringueira (Hevea
brasiliensis) e a ucuúba (Virola surinamensis).
Independente do produto ou da localidade, devido às características logísticas
da região, como a falta de estradas e a alta dependência das vias fluviais, o
escoamento da maior parte da produção pode ser feito por meio dos barcos
recreios. Por conta da relativa regularidade de suas viagens e rotas definidas,
esses barqueiros sustentam relações comerciais mais estreitas com várias
famílias ribeirinhas, caracterizando em certos casos uma relação de patrão e
empregado (AMAZONAS, 2020).
O morador adquire a preços superfaturados seus insumos básicos ou gêneros
de primeira necessidade antes da atividade extrativista e sempre a crédito. Às
vezes, por intermédio do aviamento, o pagamento é realizado em seguida,
após a troca direta da produção (peixe, castanha, semente, etc..). É comum
a intervenção dos “moradores compradores”, normalmente proprietários de
pequenos comércios nas comunidades.
35 MELO, Alfredo Gregório de. Nova Era. Hinário Nova Era. Ribeirão Preto, SP: Editora Rainha,
« 69 »
Sobre o Purus, vale sempre lembrar que, como afirma Mendes dos Santos
e Aparício, “foi talvez a maior estrada por onde passavam e repassavam há
muitos séculos as tribos mais remotas do extremo do continente” (CUNHA,
[1906], 2011, p. 192 apud MENDES DOS SANTOS; APARÍCIO, 2016, p. 7). A
frase é de Euclides da Cunha, o chefe da Comissão Mista Brasileiro Peruana de
reconhecimento do alto Purus, responsável pelo estabelecimento das fronteiras
entre ambos os países. Euclides da Cunha reconheceu que nesse rio havia um
Brasil à parte, “parece inteiramente estranho à nossa história” (CUNHA [2006],
2011, p. 173 apud MENDES DOS SANTOS; APARÍCIO, 2016, p. 7).
2012. p. 2.
36 Grupos menores que se segmentam e são historicamente associados a um território Apurinã.
Essas parentelas circulavam intensamente por uma vasta rede de caminhos e varadouros,
« 70 »
que mantinham uma prática de exploração da biodiversidade florestal para
fins alimentares baseada na coleta, dispensando a abertura de roçados37
(MENDES DOS SANTOS, 2016, p. 34).
A partir de uma análise das relações entre os povos nessa região, o autor
constata a falta de fronteiras rígidas, incluindo as etnográficas e as hidrográficas,
o que revela quão alargadas e ramificadas eram e são essas relações. “Tal são
seus incontestáveis rios e igarapés, caminhos e varadouros que conectam seus
habitantes” (MENDES DOS SANTOS; APARÍCIO, 2016, p. 10).
A extensão dessa rede também alcança coletivos de outras famílias
linguísticas, Apurinã e Manchineri (Aruak), katukina, kanamari e os povos de
língua pano. “São grupos cuja interação com os arawa se torna constitutiva”.
“Esses circuitos Arawa vivem atualmente um momento de vitalidade nos seus
fluxos de comunicação e intercâmbio” (MENDES DOS SANTOS; APARÍCIO,
2016, p. 11).
Segundo Mendes dos Santos e Aparício (2016), os Arawa manifestam hoje
um movimento de intenso intercâmbio social, ritual e político, como se observa
nas inúmeras assembleias que convocam “parentes” de todas as aldeias, ou no
processo crescente de indigenização das cidades de Tapauá, Canutama, Lábrea e
Pauini, município onde fica localizada a FloNA do Purus, no Amazonas.
Para os autores, já nos relatos dos primeiros viajantes e expedicionários
que navegavam pelo Purus, é surpreendente a presença e a interação entre os
muitos grupos indígenas ao longo de suas margens e de seus tributários, “sendo
possível montar um catálogo que ultrapassa duas dezenas de povos, entre ao
quais, além dos já citados aqui os Caripuna, Catauari, Canarari, Cipó, Caruhety,
Jubery, Juma, Mamori, Pamorari, Paru, Quarurá, Tará, Uaipuçá, Uatanary, entre
outros” (MENDES DOS SANTOS; APARÍCIO, 2016).
vivendo distante dos rios e da várzea, preferindo as cabeceiras dos igarapés (Cf. FACUNDES
et al. e VIRTANEN apud MENDES DOS SANTOS, 2016, p. 31).
37 Disseminados por toda a vasta Bacia do Purus, essas parentelas mantinham seus espaços
de domínio por meio do manejo e da exploração dos mais variados ambientes da floresta,
de várzea, igapó e de terra firme. Diferentemente do modelo de corte e queima para a
implantação de roças, o que se praticava era predominantemente a “coleta”, forma por
excelência de usufruto da biodiversidade disponível na floresta. Não apenas de frutos
sazonais maduros, mas a busca de espécies vegetais para a elaboração de subprodutos
que acompanhariam os alimentos de origem animal (animais de caça, peixes e quelônios),
reconhecidamente abundantes nos rios, várzeas e florestas da Bacia do Purus (MENDES DOS
SANTOS, 2016, p. 21).
« 71 »
Coutinho (1862), Chandless (1964) e Schultz e Chiara (1955) demonstram
que o novelo das redes Arawa se esticou até as terras altas do continente
sul-americano: “Por intermédio das bacias hidrográficas havia um intenso
intercâmbio Cultural, especialmente por intermédio dos Manchineri em estreita
ligação com o Ucayali” (apud MENDES DOS SANTOS; APARÍCIO, 2016, p. 13).
Mendes dos Santos e Aparício (2016, p. 23) afirmam que, num contexto de
manejo da floresta, as palmeiras ocuparam um lugar privilegiado, com destaque
para o babaçu (Attalea Speciosa Mart. Ex Spreng), a pupunha (Bactris gasipae
Kunth), o açaí (Euterpe precatória), o buriti (Mauritia flexuosa L.f.), o tucumã
(Astrocaryum aculea Mart.). “Delas eram explorados, para fins alimentares,
tanto o fruto quanto o palmito, dos quais eram obtidos a polpa (massa) e a
goma”. Isto sem falar no artesanato.
Antes não tinha mandioca e nem macaxeira a farinha era de babaçu. Tiravam
goma também do babaçu pra fazer beiju e comer. Depois que começaram
a andar pelas bandas do Purus, começaram a ver os não indígenas e os
roçados, e falaram com eles para pedir maniva, macaxeira e terçado para
poder plantar na aldeia. (Relatório do curso de agricultura indígena no Purus:
Mitologia e História, 2015, p. 18 apud MENDES DOS SANTOS; APARÍCIO,
2016, p. 34).
Aparício (2010) e Mendes dos Santos (2016) afirmam que foi após a ECO-
92 que houve a consolidação do socioambientalismo brasileiro e o impulso,
na Amazônia, de um panorama de intervenções em que a conservação da
biodiversidade integrava a defesa e o reconhecimento dos denominados “povos
da floresta”. Acerca dos processos que passaram a caracterizar, na atualidade,
o novo cenário do Purus indígena: a crise da organização formal após um
processo criativo de articulação; a irrupção do seringueiro como novo sujeito
político regional, com direitos e conquistas territoriais inéditas; a presença de
novos atores - como os artesãos na FloNA do Purus, dos quais vamos falar mais
adiante - a consolidação da cidade como “território indígena”; e o panorama
global de valorização das florestas, derivado do alerta planetário pela mudança
do clima, com incidências cada vez mais próximas dos âmbitos indígenas locais
da bacia do Purus.
« 72 »
“Esses povos da floresta são formados por sujeitos políticos e portadores
de um patrimônio de conhecimento definitivo sobre a proteção do bioma
amazônico” (APARÍCIO, 2010, p. 5). A comunidade intencional, tradicional,
Vila Céu do Mapiá integra essa população assim denominada, formada por ex-
seringueiros, soldados da borracha, que acompanharam o padrinho Sebastião
em sua saga de disseminação da doutrina do Santo Daime, desde a sua partida
do Acre nos anos 80. O Plano de Manejo da comunidade foi elaborado em
2009, pelo ICMBio em conjunto com a comunidade Vila Céu do Mapiá e as
comunidades da FloNA Mapiá-Ianuiní. Embora o manejo na FloNA permaneça
em muitos aspectos com alguns produtos sendo manejados em pequena escala,
o manejo da vida é uma realidade para essas populações amazônicas.
É fato que o Brasil sequer regulamentou o sequestro de carbono sobre suas
florestas até o momento. Segundo Viana (2006, p. 136), a Amazônia pode e
deve fazer uso do sequestro de carbono, que pode ser uma “estratégia para a
recuperação e conservação florestal em bacias hidrográficas degradadas”. Em
um recente seminário realizado em Lábrea, em 2009, Aparício (2016) cita as
palavras de João Baiano, liderança Apurinã, da TI Caititu:
eu fico observando o urubu e o serviço que ele faz para nós e para as nossas
florestas. Ele é como funcionário público. Nós também somos como o
urubu: cuidamos da natureza, isso faz bem para todo mundo, mas ninguém
nos paga por isso (APARÍCIO, 2016, p. 123).
« 73 »
margem esquerda do rio Inauini; a Norte-Noroeste com a Terra Indígena Inauini/
Teuini e margem direita do rio Teuini; e de Nordeste a Sudeste com a margem
esquerda do rio Purus e terras particulares. O limite natural entre a Floresta
Nacional do Purus e a Mapiá-Inauini é feito pelo rio Inauini. Pertence à Bacia
Hidrográfica do Rio Purus e se estende latitudinalmente entre as coordenadas
geográficas 08° 01’ 40” S a 08º 34’ 47” S e longitudinalmente 68º 04’ 09” W a
67º 16’ 23” W (BRASIL, 2009c p. 61).
A Vila Céu do Mapiá é, por assim dizer, “uma comunidade bastante peculiar,
junto ao centro geométrico do polígono desta Unidade de Conservação, próximo
às cabeceiras do igarapé Mapiá”. Assim o Plano de Manejo da Unidade38 se refere
à comunidade Vila Céu do Mapiá, epicentro da FloNA do Purus39. Segundo o
Plano de Manejo, a FloNA surgiu como estratégia de conservação do vale do
rio Purus, que dá o nome da Unidade e que abriga a Vila Céu do Mapiá e as
comunidades tradicionais ribeirinhas da margem esquerda do rio Inauini.
Formada por populações tradicionais amazônicas, seringueiros e pessoas
provenientes dos centros urbanos, as quais foram reassentadas pelo Incra, em
1982/83, a comunidade é reconhecida no plano de manejo como uma comuni-
dade tradicional que adquire um viés intencional e se organiza, na atualidade,
a partir do exercício da religião do Santo Daime. “Um movimento espiritualista
autóctone da Amazônia que se baseia num conhecimento etnobotânico ances-
tral da Floresta”.
41 Lavoura Branca: termo regional que designa cultura agrícola em escala familiar de macaxeira, arroz,
milho, feijão, etc. (BRASIL, 2009a, p. 217).
42 Marreteiro: comerciante em embarcações que navega pelos rios da Amazônia vendendo
produtos industrializados para as populações ribeirinhas a preços altos e adquirindo produtos
regionais a preços baixos.
« 75 »
na terra firme e aproveitam as praias na vazante do rio para cultivo. Na existência
de excedente, realizam a troca por gêneros de primeira necessidade com os
marreteiros ou comercializam nos municípios próximos e na Vila Céu do Mapiá.
De acordo com o Programa de Desenvolvimento Comunitário (PDC), no
início da ocupação da Vila Céu do Mapiá, o uso da terra era coletivo. O plantio
realizava-se numa área comum e os alimentos eram produzidos numa cozinha
coletiva. Com o crescimento populacional da vila, entre outros fatores, esse
modelo de uso comunal da terra e dos bens de produção foi extinto (BRASIL,
2009a, p. 208).
Dias Jr. (2005 apud BRASIL, 2009a, p. 213) cita que, nos primeiros anos de
ocupação da vila, existia uma produção coletiva de agricultura de subsistência,
atividade associada ao extrativismo da seringa e da castanha para consumo e
geração de renda à comunidade. Após vinte anos de permanência no local e com
o crescimento populacional, os moradores já não utilizam as mesmas fontes
de rendas. De acordo com os dados gerados na pesquisa, constatou-se que as
famílias que produziram borracha não realizam essa atividade há mais de 16
anos.
Em relação ao extrativismo da castanha, 84% das famílias declararam não
coletar. Entre os que disseram fazer a coleta, 36% utilizam as árvores próximas
à sua moradia e 64% utilizam outras áreas de coleta, como as citadas: Antimary,
Santo Antônio, Nova Vida, floresta e roçado ao longo do Igarapé Mapiá (BRASIL,
2009a, p. 213).
Os dados relativos à coleta, utilização e comercialização de sementes são
expressivos: 16% das famílias referem coletar uma variedade de sementes, como:
Mulungu (Erythrina verna), Andiroba (Carapa guianensis Aubl.), Corrimboque
(todos os tipos), Paxiúba (Socratea exorrhiza), Patoá (Oenocarpus bataua), Açaí
(Euterpe oleracea Mart), Tucumã (Astrocaryum aculeatum), Jarina (Phytelephas
macrocarpa), Jatobá (Hymenaea sp), Lágrima de Nossa Senhora (Coix lacryma-
jobi L.), que são sementes destinadas à confecção de artesanato (Idem).
Quanto à extração de madeira, cerca de 86% das famílias disseram que não
desenvolvem a prática, enquanto que 14% fazem extração de madeiras para
construção de casas e canoas. Em relação a essa prática, os moradores citaram a
retirada de madeiras, como: Itaúba (Mezilaurus itauba), Canelão (Ocotea spp.)
Guariúba (Clarisia racemosa Ruiz & Pav., Moraceae), Cuieira (Crescentia cujete),
Jitó (Guarea kunthiana), Marupá (Simarouba amara Aubl.), Abiorana (Pouteria
lasiocarpa), Supucaia (Lecythis pisonis), Maçaranduba (Manilkara huberi),
Cedro (Cedrela fissilis), Copiúba (Goupia glabra Aubl.), Corrimboque (Cariniana
domestica Mart.) e Angelim (Hyemenolobium petraeum Ducke) (Ibidem).
« 76 »
Conforme os dados levantados para o plano de manejo43, a extração de
óleos vegetais é feita por 6% das famílias, sendo os mais citados a copaíba, a
andiroba, a pupunha e o patauá. Os moradores informaram que a área é escassa
de animais em decorrência do fluxo de barcos no igarapé. A caça é atividade
citada por 16% das famílias. As espécies caçadas mais citadas foram: paca,
veado, porco, anta, cutia, tatu e o mutum. Em relação à pesca, a atividade é
praticada por 40% das famílias. As espécies mais citadas foram: piau, piaba,
matrinchã, pacu, sardinha, cará, pirapitinga, mandim, dourado, cuiu, surubim e
piranha. Do total, 96% pescam nos igarapés Mapiá e Repartição, enquanto 4%
pescam no rio Purus.
A caça e a pesca são realizadas independentemente do período do ano e
estão vinculadas à necessidade. Não há identificação de comércio de animais
silvestres na área.
Artesanato e sustentabilidade
Sobre a sustentabilidade do projeto Olho da Mata, Arlete Maciel diz: “quando
se vai estudar um pé de onde vem uma semente, até os bichos que se alimentam
deste pé de fruta, fazem parte da pesquisa” (informação verbal).
45 Cooperar. IDH Vila Céu do Mapiá. Disponível em: www.amazonia.com.br. Acesso em: 23 jan.
2021.
46 APURINÃ. Apurinã: depoimento [mar. 2021]. Entrevistador: Graça Mitoso. Smartphone, 2021.
1 arquivo .mp3 (50 min).
« 78 »
com o tucumã, o buruti, o patoá, o pequi, o uxi, o muru-muru, o urucuri e a
castanha, extraíndo o óleo e com as sementes fazem na aldeia o artesanato
manual. “A gente já está plantando semente de cacau também. A extração é feita
na Cooperar”. (informação verbal47).
O açaí é trocado com artesãos que beneficiam as sementes e, em troca,
recebem o açaí. “As outras sementes a gente fura manualmente. Inventamos
uma maquininha manual que faz o açaí, só que é um processo lento e não temos
produção em quantidade”, afirma Elisângela.
Segundo ela, cada família que trabalha com artesanato ensina seus filhos,
que passam os ensinamentos para os netos, e assim vai continuando. “A gente
vende nas feiras, mais em Rio Branco quando é convidado, e para algumas
pessoas que passam na nossa aldeia a gente também vende”.
47 SOUZA, Elisângela de. Artesanato na Aldeia Kamikuã [jan. 2021]. Entrevistador: Graça
Mitoso. Smartphone, 2021. 1 arquivo .mp3 (1h30).
« 79 »
porque não tem produção e tendo isso, melhora muito pra nós (informação
verbal48).
Ponto estratégico
O padrinho Alferdo Gregório de Melo define o Céu do Mapiá como um ponto
estratégico para o desenvolvimento não só da comunidade como da FloNA.
“Nossa comunidade já tem um nome mundial, uma ecovila que trabalha nesse
sentido do progresso, então é uma grande representação progressista de artistas,
de artesãos e de boa notícia”, diz.
A primeira expansão, para ele, é a doutrina. “O trabalho da expansão
espiritual, da parte doutrinária, e a ligação com vários pontos no Brasil e no
exterior, isto é o primeiro ponto de expansão, porque daí é que vem a frente de
outros programas e projetos”, diz e acrescenta:
A frente dos artesãos, com o bom artesanato, expande através da busca pelo
melhoramento desse produto. Assim também a preservação propriamente
dita do Mapiá, por respeitarmos a natureza, por preservarmos a sua
biodiversidade, também temos aí uma frente de expansão. Somos um povo
que representa a Floresta, e que trabalha com o melhoramento, o crescimento
dessa comunidade através do extrativismo (informação verbal49).
Sobre o projeto Olho da Mata, Melo afirma: “este e muitos outros que a gente
tem buscado, mas que não tem ainda acontecido, como os projetos de turismo,
relacionados à canoagem e ao arborismo, são frentes que precisam expandir
na comunidade”. Destaca o padrinho, “o que temos hoje, além do artesanato,
são os trabalhos de carpintaria e de marcenaria, que também envolvem a parte
da farinhada, daquilo que é o básico, a segurança alimentar, dentro do nosso
pequeno povo, da nossa pequena capacidade de expansão”, diz e acrescenta:
48 SOUZA, Elisângela de. Artesanato na Aldeia Kamikuã [jan. 2021]. Entrevistador: Graça
Mitoso. Smartphone, 2021. 1 arquivo .mp3 (1h30).
49 MELO, Alfredo. C aminhos para a sustentabilidade na Vila Céu do Mapiá [mês. 2021].
Entrevistador: Juliana Belota. Smartphone, 2021. 1 arquivo .mp3 (1h30).
« 80 »
Referências
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film Historia, 1979. ISBN 92-5-000780-9.
« 82 »
Cadeia de afetos
Maria Oiticica
« 87 »
era comum turistas aparecerem por lá, “mas que nunca voltavam...”. Aquela
conversa não saiu da minha cabeça.
Voltei para o Rio e, dois anos depois, fui procurada pela empresa francesa
para fazer uma parceria, o projeto Arte Solidária Michelin, com moradoras das
comunidades de Ituberá, Tabocas e Jatimane, composta por descendentes de
quilombolas. Era um sonho a ser realizado. Acontece que o projeto, uma troca
de conhecimentos com as artesãs locais, seria todo presencial. Já estava de ma-
las prontas, animada com a ideia desse intercâmbio fantástico, com a troca de
saberes de nossa equipe com aquelas mulheres talentosas, quando veio a pan-
demia da Covid-19. No começo, ficamos sem saber o que fazer, como todos os
brasileiros, mas logo decidimos realizar tudo de forma virtual.
Conseguimos realizar o projeto, mais que isso, estabelecer um vínculo
emocional com os atores locais – as artesãs –, que cocriaram conosco a coleção
Arte Solidária. Essa coleção entrou no nosso catálogo, com lucro revertido para
essas comunidades e, possivelmente, entrará no nosso escopo de exportação.
Essa foi uma experiência que sintetiza bem a minha concepção pessoal de
sucesso. A parte comercial é importante para a sobrevivência da Maria Oiticica
Biojoias, mas não é o principal. Por esse motivo, aceitei o convite da minha
irmã Graça Mitoso para contar aqui a minha história, para que fique claro como
o artesanato e a economia criativa têm um forte impacto na vida das pessoas,
principalmente nas comunidades mais longínquas, gerando renda e inclusão
social.
Descobri, com o passar do tempo, que a empresa tem uma razão maior de
existir, por isso atravessamos tantas intempéries. Essa razão é o que chamo de
Cadeia Produtiva de Afetos, que abraça famílias, especialmente as mulheres; que
fortalece etnias, dentro das nossas humildes possibilidades; que faz pequenas
economias girarem; que cuida, preserva e enaltece a floresta; e que representa,
por fim, o melhor do DNA brasileiro, a nossa parte bonita, criativa e solidária, a
qual o Mundo aprendeu a amar.
« 88 »
Perspectiva ecológica:
vozes artesãs
Graça Mitoso
« 90 »
de fontes externas, tais como aposentadoria, projetos de desenvolvimento,
vínculos empregatícios, doações, entre outros, atualmente integram os ciclos
econômicos da Vila. O parentesco e a religião são as bases agregadoras do
conjunto de moradores da Floresta Nacional. Como a intenção da população
local é protagonizar uma experiência de convívio harmonizado com a Floresta
Amazônica, em geral, pode-se tornar de grande interesse para a Política Nacional
de Meio Ambiente e, em particular, para as Florestas Nacionais (Idem).
Embora a regularização fundiária da área e os planos de turismo de base
comunitária não estejam definidos, a população da FloNA está espacializada
na casa ritual (igreja e Estrela da Mata), nos jardins medicinais, na floresta, na
roça, e na Escola de Arte e Saberes Florestais Jardim da Natureza. O turismo
desenvolvido na comunidade, no âmbito da conservação, conduz a uma ampla
diversidade de saberes que se auto conduzem a partir do eixo da própria
sociodiversidade.
O artesanato da Vila Céu do Mapiá é constituído pelo movimento de um
povo original do Purus e por uma rede de trocas de conhecimentos relacionadas
ao fenômeno da expansão dos usos da ayahuasca como medicina sagrada,
advinda dos conhecimentos tradicionais dos povos ancestrais que habitam
toda a extensão do rio Purus. Mais específicamente, relacionado aos grupos
Apurinã do médio e baixo rio Purus, que impulsionam o remanejamento de
conhecimentos ancestrais de fibras vegetais, como o Carrapixo e o Tucum, as
sementes e cipós, práticas que vinham se perdendo na comunidade.
Desde a década de 90, a parceria com os Apurinã se estende para além
do campo do ensino-aprendizagem indígena, chegando a adentrar o campo da
governança local. Atualmente, há dirigentes Apurinã atuando na Cooperativa
Extrativista do Médio Purus (Cooperar). É também constituído pela presença de
moradores intencionais que vieram na companhia do pad. Sebastião, em sua
saga desde a Colônia Cinco Mil50, passando pelo Seringal Rio do Ouro, em 1980,
até chegar no seringal Vila Céu do Mapiá, que se tornou o centro de irradiação
da doutrina do Santo Daime. Um povo, que vive em torno a religião, com
tradições próprias, mantendo suas formas de trabalho, e assegurando instrução
e orientação para seus filhos, prestando-se assistência e ajuda mútua.
50 Ver: FROES, Vera. Santo Daime, cultura amazônica. História de Juramidam. 3. ed. São
Paulo, SP: Yagé, 2019.
« 91 »
de artesanato Ripi Iaiá51 passou a contar com um estatuto elaborado pelos
artesãos, demonstrando a organização e a seriedade com que era encarada
essa atividade (FROES, 2019, p. 60).
« 93 »
Vozes artesãs
Adriano Grione
Sou italiano, tenho 68 anos. Sou descendente
de família de artesãos que mexiam com madeira
e móveis. Eu sempre estive ligado no artesanato,
acompanho o movimento desde a década de
70, quando fundamos o grupo de artesanato da
Colônia Cinco Mil, o Ripi Iaiá. Sempre apreciei o
bom artesanato, visitei mercados, lojas, procurei
me aprofundar nos materiais amazônicos e nas
técnicas de manuseio. Quando cheguei no Brasil, na
Amazônia, além de mercados e feiras, visitava cada
artesão nas praças e ruas. A Amazônia, em 1978,
realmente, não tinha muito organizada a produção do artesanato. Em Manaus,
havia mais artesanato indígena, cestaria, coisas de utilidade, não era como
biojoia. Era muito bonito, mas não tinha muito incentivo. Chegando ao Acre,
não tinha nada de artesanato, tinha apenas uma lojinha de artesanato indígena,
no aeroporto.
A Cinco Mil era um lugar que abrigava muitos artesãos que acompanhavam
o padrinho Sebastião, no santo Daime. Era um berço de bons artesãos que
trabalhavam com todo tipo de coisas: madeira, pintura, etc. O Acre começou a
desenvolver o artesanato daí. O pessoal vindo, ensinando aos outros e divulgando.
Foi um período de alto potencial para o artesanato. O SEBRAE incentivou, deu
ferramentas para nós. Nós éramos os principais atores do artesanato e criamos,
então, a Associação Acreana de Artesãos (Asaarte).
O artesanato do Acre ficou forte e reconhecido no Brasil. Passamos a produzir
para exposição em vários estados: Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. A
beleza das sementes atraía. A subipurina, o mulungu e a jarina. Também havia
as peças de madeira, fazíamos escultura, souvenirs. Estávamos no paraíso das
sementes. Muita matéria prima à disposição e tinha o grupo da agricultura que
interagia com o grupo de artesãos. O artesanato até resolveu o problema da
cozinha geral, onde fazíamos o artesanato. Hoje, no Acre o artesanato diminuiu.
Quando eu cheguei em Boca do Acre, eu era o único artesão, tinha outros
que faziam colher de pau, mas eram poucos. Então, comecei a furar semente. Em
pouco tempo, os jovens se aproximaram. Eram uns doze. Um furava a semente,
« 94 »
outro lixava, produzíamos e mandávamos para o Acre e para fora. Uns viraram
artesãos, outros professores. Os jovens agradecem até hoje.
Hoje, trabalhamos em parceria com os Apurinã. Aprendi muito com eles.
A técnica de fazer arco, lança, a lança de haste do pé da pupunha. Aprendi a
trabalhar com o tucumã e aprendi muita coisa sobre a simbologia das palmeiras,
relacionada à proteção na Floresta. O tucumã, por exemplo, é uma planta
considerada de muita proteção. Até a fibra eles tiram do olho da palha verde. E
esse aprendizado foi que me fez fincar o pé na floresta e aprender e aprender.
« 95 »
Foi isso que aconteceu comigo. Mas, quando voltou o projeto do cipó-titica,
aqui no Jardim da Natureza, na comunidade do Santo Daime, a gente começou a
resgatar. O cipó tem um segredo, porque o cipó tem isso: a gente tirou da mata,
tem que usar, não pode deixar embolado, atrasa a vida da gente. Ele é vivo, é a
transformação de um inseto, um ser vivo da mata e isso acontece.
Quando comecei a trabalhar com o cipó, eu tinha 22 ou 23 anos. Aqui no
jardim nós fizemos paneiro com a D. Maria Sena, uma anciã do Purus. Ela
veio dar aula aqui, e eu fiquei me revezando aqui e na beira do Purus, onde
eu ajudava a minha filha a apanhar feijão. Também aprendi a tecer vassoura
com uma turma grande, com pessoas de fora. Até estrangeiros e uma turma da
cozinha esteve aqui para tecer cabeça de vassoura. Eu dou aula, sou professora
de abano. A Maria Damião, anciã da comunidade, é professora de vassoura. As
meninas daqui aprenderam a tecer a cabeça da vassoura.
Maria Damião
Quando eu cheguei no Mapiá foi pelo bem da saúde.
Foi muito bom conhecer o Mapiá e receber a cura. Eu
comecei a trabalhar com o cipó-titica porque eu aprendi
com meu pai no seringal. É muito bom trabalhar com
o cipó-titica. Mas eu só sei fazer vassoura de cipó-titica
e também quando eu vou na mata eu conheço o cipó-
titica. Eu sei diferenciar um cipó do outro. Eu não sei
falar muito não, então um cheiro para vocês.
Fabiana Rocha
Vou falar sobre o jardim da natureza, sobre o
desenvolvimento do jardim. Entrou um grupo muito
bom de trabalhar, uma professora muito atenciosa
que desenvolveu a gente para trabalhar na pintura. A
gente pintou blusas, cuias, rolinhas de pau que meu
pai tirou da mata, muito bacana para a gente pintar.
Aprendemos a ir na mata tirar o cipó-titica. O cipó-
titica é um cipó muito bom de trabalhar, faz filtro de
sonhos, vassourinhas, faz vários tipos de artesanato se você souber desenvolver.
Também aprendi a fazer doces de manga, caju, goiaba, muitas frutas, que a
gente corta e deixa só as polpas, que vão para o fogão de lenha e para o forno.
« 96 »
As professoras foram muito dedicadas com a gente. Desenvolvemos muitas
coisas no Jardim, foi muito legal porque nós somos umas jovens que precisam
de recurso, de desenvolver isso dentro da gente, aproveitar essa oportunidade
que o padrinho Alfredo nos deu da gente trabalhar neste lugar a Escola de Arte
e Saberes Florestais Jardim da Natureza.
Então, a gente deve levar para frente isso, porque é uma oportunidade muito
especial de trabalhar com a floresta e o artesanato no projeto Olho da Mata. É
o que a gente tem para trabalhar é coisa da terra. O jardim é um lar abençoado,
então só me resta agradecer a todos e todas que receberam a gente no Jardim
com muito amor e carinho.
Quero levar isso para frente, para o resto da minha vida, jamais esquecer.
É muito bom trabalhar com pintura, com o cipó-titica, com a linha do tucum,
que fazemos pulseira, macramê, colar, vários artesanatos. Quero agradecer pela
oportunidade.
« 97 »
artesanato e fui gostando. Já trabalhei com mulungu, semente de açaí, patoá e
outras.
Fazemos terços, pulseiras, filtros de sonhos e espelhos com moldura em
fibra, sementes e cipós. O material passa pelo beneficiamento, é tingido, lixado,
furado e beneficiado. Acompanhei o tingimento após ter feito tudo, tirado
inclusive o bagaço, das sementes de açaí. Eu não sei muito sobre as histórias
das sementes, a gente não aprofundava muito sobre as histórias das sementes,
a gente aprofundava mais nos benefícios do que a gente podia fazer com ela. A
expectativa é de que dê certo, que a gente consiga fazer um bom artesanato e
produzir.
« 98 »
ver as nossas obras, as artes que a gente faz. A gente usa sementes, cipós, linhas
e madeiras, pinta e faz muita coisa bonita. Isso para mim é uma coisa muito boa.
O livro sobre o projeto Olho da Mata explica um pouco essa história. Assim,
para mim o “olho da mata” mostra tudo que tem na mata, as sementes, as coisas
da mata mesmo. A mata tem muitos olhos de bichos e esses bichos, as árvores
e nós somos os olhos da mata.
Emanoela Corrente
O Jardim da Natureza para mim foi uma escola,
uma escola mesmo. No Jardim, eu aprendi a tecer
com a linha do tucum, fazer crochê, macramê
e aprendi, também, a fazer doce de goiaba com
jambú e carambola com cacau. A gente torra,
faz o doce com açúcar caramelizado. Aprendi a
pintar, e a ter mais educação. Quando fui para o
Jardim aprendi muito da educação, do trabalho
em conjunto. Aprendi a pintura com a professora,
Karina Henestrosa. Agradeço muito a ela, a Arlete
Maciel, tudo o que aprendi sobre o artesanato.
Aprendi com os tchai sobre as ervas, as medicinas. É
muito bom ir todo dia trabalhar no Jardim, ter alguma coisa para fazer. Aprendi
muita coisa que eu não sabia, a fazer colorau, mudas de cupuaçu, trabalhar
com as sementes, trabalhar com as plantas, limpar o terreiro do Jardim, olhar as
plantinhas lá, várias variedades de plantas e ervas. Agradeço muito. Às minhas
amigas, companheiras do Jardim: Iris, a Maria José, a Tai Lin, a Fabiana, e a
Diana. E também a Maria Clara e a Camila, todas as minhas amigas. Era muito
bom trabalhar no Jardim da Natureza, naquele espaço, naquela leveza, agradeço
a nossa amiga de fogão, a tia Mariazinha Corrente.
É muito bom esses novos meninos que vão entrar aí. Porque agora eu tenho
um filho, e sem uma creche, fica mais complicado. Mas com certeza, quero fazer
tudo para dar certo, que eu tenha tempo e que meu filho possa estar lá quando
crescer. Esse é o meu sonho.
« 99 »
Damião Rocha Mendes
(Damião Curica)
Sou um mateiro aqui do Mapiá. Conheço um pouco
da floresta, conheço um pouco de artesanato. De
tudo eu conheço um pouco, desde a erva medicinal,
as ervas de serrar e as sementes. Conheço de tudo
um pouquinho, até as medicinais conheço um pouco
também e passo um pouco para alguns amigos também
ver e me acompanhar no mato e vou buscar onde tiver.
O meu conhecimento, o pouco que tenho, porque
a mata, a natureza, tem muitas ervas e a gente conhece um pouco, e o pouco
que a gente conhece é bom, mas vai descobrindo mais, aprendendo uns com
os outros. Vamos descobrindo mais, aprendendo mais a técnica, para que serve,
isso é muito bom para nós. Eu acho isso muito importante. Eu cheguei aqui faz
muito tempo já, fui aprender um tanto com o Manuel Vieira, um pajé do mato
que eu andei muito com ele aqui e com os companheiros que havia por aqui
também, o Mario Reges que já foi para a banda de lá e nós estamos aqui levando
a vida e vamos procurando entender mais o significado dessas ervas medicinais
que a gente tem, que são muito boas para nós todos.
Eu cheguei aqui com a mulher adoentada, ela ficou ruim da cabeça e se
curou no Daime. Cheguei aqui, graças a Deus, que a gente está aqui ainda,
construí a família, meus filhos estão todos adultos, já sou avô. Estou por aqui,
eu gosto de ficar por aqui, eu gosto da natureza e gosto também de tomar o
Santo Daime porque foi e é muito bom para a minha vida. A todos aqueles
que tomam e prestam atenção, tem um significado, que pode tirar do caminho
errado e botar no certo. Basta prestar atenção porque a maldade está dentro
de cada um, cada um ganha seu prêmio, a força divina. Só nos resta procurar
agradecer e confiar na força. Eu aqui vou levando.
O projeto do cipó-titica, desde que começaram a trabalhar com ele no
artesanato, me pediram orientação porque eu já conheço mesmo, desde jovem
conheço o cipó-titica e fui tirar para os companheiros trabalharem. Eu conheci
o cipó-titica com meus tios, meu avô, tirando, fazendo paneiro, vassoura,
jamanxim, balaio, tudo eles faziam. Aí eu peguei entendimento e, hoje em dia,
está na minha cabeça ainda. Sei fazer o paneiro e as vassouras, os outros ainda
não peguei.
Eu reconheço na mata o cipó-titica, o timbó e o ambé. Conheço quase todos
os cipós, poucos são os que eu não conheço, porque tem vários tipos de cipós,
« 100 »
de várias qualidades. Do artesanato eu conheço todos eles, os que servem e
as sementes conheço desde as palmeiras aos paus, as árvores, quase todas.
As sementes a gente colhia algumas vezes um pouquinho. Agora, estamos
colhendo mais. A gente colhe cupiuba, maçaranduba e vamos colher mais para o
artesanato e para fazer mudas também. E vamos levando para frente, confiando
que a gente vai ter mais vida em cima desse chão e mais entendimento para
cada um de nós. Que o balanço está forte, mas é isso mesmo, toda vida foi meio
forte e cada vez está apurando mais, a gente sabe disso.
Para o artesanato paxiubinha, paxiubão, mulungu, maçaranduba e tem o
caroço de uru que também serve para o artesanato, o uxi que serve para fazer
cortina. Esses três que são os caroços mais usados, mas os próprios para fazer
cortina são o açaí, o mulungu e a paxiubinha. Esses três e o marajá. E tem a raiz
que a gente faz piteira da raiz também.
Sobre a formiga virar cipó. Isso aí tem, porque ela morre e as pernas vão
enraizando, daí vira a toceira, um cipó e vai se multiplicando. Ela vira um fungo,
fica toda branca, o fungo vira cipó, ela morre lá em cima pregada e o cipó desce e
toca no chão e vira o cipó ambé e o cipó-titica também, tudo vira das tucandeiras
e outras formigas também. A borboleta também não é um casulozinho? O casulo
pode virar uma borboleta, pode virar uma broca, um pedaço de pau, pode virar
uma bruxa, tudo tem significado, e tem umas coisas que se vira casulo, as outras
vão, picam e ela morde, aí ela morre, se gera ali e vira outro bicho, um bicho que
morre, mas não morre ele se regenera. A natureza tem tudo.
Trabalhar com o artesanato, as sementes e o cipó-titica foi uma experiência
única porque nem todo mundo tem essa oportunidade e eu aprendi muita coisa
que eu não sabia, que eu achei que eu não era capaz de fazer e foi muito bom
para mim ver que tenho essa capacidade.
« 101 »
que a gente faz no Jardim da Natureza. Tem uns que dizem: ah, eu não vou
pra lá, por causa disso ou daquilo, porque é chato. Mas, não é, a gente vai para
lá e a gente aprende muita coisa, trabalha, se comunica com outras pessoas, e
é isso, eu acho que eu vou me sentir muito alegre em poder ver isso. Agora a
dificuldade de eu trabalhar no Jardim da Natureza é porque eu tenho um filho e
ele é muito novo. Para eu ir daqui até lá e não ter quem cuide dele, não dá. Eu
também estou estudando em casa e tenho tarefas de casa para fazer, então para
eu ir para o Jardim da Natureza, nesse momento, não dá. Eu tenho um sonho,
com certeza, quero terminar meus estudos, fazer uma faculdade, e trabalhar no
Jardim da Natureza.
Tainá Silva
Sou aprendiz do Jardim da Natureza,
tenho 16 anos e para mim é uma experiência
muito boa aprender a trabalhar com os
materiais da floresta, no Céu do Mapiá.
Ver essa história contada num livro como
o “Olho da mata: manejo do cipó-titica e
sementes nativas na FloNA do Purus” é muito legal porque eu nunca participei
de nada assim, então para mim, está sendo uma experiência boa. Eu tenho
dificuldade de ir para o Jardim da Natureza agora. Eu acho melhor trabalhar
em casa, porque eu tenho uma filha e eu não vou poder passar o dia todo lá
trabalhando. Mas, eu posso fazer em casa, porque eu aprendi a fazer o artesanato
no Jardim. Tenho o sonho de ajudar mais o Jardim da Natureza, fazer uma
cozinha nova e de ter babá para as crianças, para podermos ir, levar as crianças
e poder fazer as coisas sem elas ficarem aperreando ou com a minha mãe em
casa.
« 102 »
dá até gente se você quiser. Trabalhei muito com esse cipó, mas o que aprendi
sobre ele, eu aprendi uma boa parte com os indígenas, outra parte com o meu
pai, ele era profissional.
Realmente com Sebastião Mota eu não mexi com o cipó-titica. Eu mexi
muito com o barco, mas o padrinho não tinha acesso ao cipó, ele tinha acesso
aos conhecimentos sobre barcos. O que eu aprendi sobre o cipó foi com meu
pai e com a herança dos indígenas. Minha vida aqui ao lado do Sebastião
Mota foi aprendendo sobre barcos. Mas quando eu cheguei aqui, eu já fazia
barcos, eu aprendi com meu pai, aprendi com meus tios. Eu era menino, mas eu
peguei de tudo. Quando eu trabalhei com o companheiro Sebastião Mota, eu fui
premiado para fazer barcos. Ele engraçou-se de mim e não tinha outro, era eu e
era eu mesmo. Então, eu trabalhei com barcos desde 1983 até 1990, direto com
barcos. Eu fiz 85 barcos, tudo passado pela minha mão, junto com ele e meus
companheiros. Tinha o seu Eduardo, e tinha o Matiole e várias outras pessoas
que iam de passagem, mas definitivo só eu mesmo.
Então, esse foi o meu desenvolvimento. Fiz mais de 85 barcos. Comecei a
serrar em 1976, lá na Cinco Mil, para fazer a primeira igreja. Quem começou
a serrar foi eu e o João corrente, serramos 3100 peças de madeira para fazer
a igreja. Quando eu saí da serraria foi direto para fazer barcos. Toda a minha
função aqui dentro dessa comunidade foi serrar e fazer barco, eu não tinha
tempo nem de me coçar. Eu fazia barcos, eu fazia remos, cabos de machado,
cabos de terçado, tudo ali era comigo, não tinha dessa não, eu nunca rejeitei
nada. E minha história é curta, eu não tenho muito o que falar, mas se aproveitar
o que eu digo já está bom, você vai no além e volta com essas poucas palavras
que eu falei.
« 103 »
Me ensinaram muitas coisas. Nessa época não trabalhávamos com as sementes.
Esse conhecimento estava mais para as pessoas antigas, que trabalhavam com
isso há muito tempo.
Esse círculo por onde eu andava não tinha tanto esses senhores e senhoras
que trabalhavam com as sementes. Quando eu vim para o Mapiá, encontrei com
pessoas que sabiam trabalhar com sementes e que me passaram o conhecimento,
como a mestre artesã, Arlete Maciel. Antes, eu já tinha ligação com as sementes
só que comprava as sementes já prontas em Rio Branco. Quando conheci o
Daime, vi que o artesanato tem a ver com a natureza e seu foco é o uso das
sementes nativas. Eu fazia artesanato com macramê e com arame, mas a semente
me fez ter mais vontade de trabalhar com artesanato.
Eu não tinha contato com nenhuma casa de artesão em Rio Branco, porque
eu estava em outra situação, estava ainda buscando alguma ideia do que fazer.
Na Cinco Mil, eu comecei a conhecer um pouco do artesanato em termos gerais,
mas no Mapiá, eu comecei a produzir mais, desde 2012. Morei na Cinco Mil
durante cinco anos, desde 2016/17, e vim pro Mapiá. Eu conheci o trabalho da
Arlete dentro do Jardim da Natureza, ela viu que eu estava vindo, que eu sabia
um pouco de artesanato e me convidou para participar. Ela me abriu as portas
para ensinar o básico para as meninas – o que é um filtro, uma pulseira, a ter
uma manualidade básica, para depois passar para uma etapa mais elaborada.
Comecei a fazer os filtros procurando usar as sementes, o que tem na
natureza. Eu queria já a um tempo vir para o Mapiá, sabendo que aqui havia
pessoas que guardavam esse conhecimento do cipó-titica e das sementes. Os
artesãos mais velhos, poderiam passar esse conhecimento. Aí eu conheci D.
Marlene, que sabia um pouco do cipó e tudo, e a Arlete, que já estava com
essa ideia também de restaurar todo esse conhecimento do cipó que é muito
importante.
Então, começamos a sistematizar esses conhecimentos que são ancestrais,
para usar isto com sustentabilidade. Não dá para trazer nada da rua, que chega
até a poluir, então quanto mais 100% natural for, mais legal porque realmente
mostra que não precisamos de outras coisas.
Em 2019, o jardim deu uma parada, teve esse intervalo pela reforma.
Estavam acontecendo vários grupos de jovens aprendizes, as meninas estavam
aprendendo muitas coisas, aprendendo a pintar, a trabalhar com macramê, com
as sementes. Foi muito bom esse processo que passamos. Deu esse intervalo e
agora estamos com esse intuito de retomar as atividades.
O primeiro contato que eu tive com o cipó-titica foi o aprendizado do processo
de colheita. Descascamos e fizemos todo o processo. Em 2020, já trabalhando
com cipó-titica, produzimos cestos para o centenário do padrinho Sebastião
« 104 »
Mota de Melo por encomenda. E o que queremos é continuar trabalhando,
agregando mais pessoas. O artesanato é uma saída para ajudar as pessoas e se
ajudar também.
Para dar continuidade ao artesanato é preciso um material que demande um
pouco de energia, como o boliboli que lixa. Tem uns que furam também, que são
muito importantes para quem trabalha com as sementes. A gente tem muitos
recursos, muitas sementes, e ainda há muito desperdício de recurso, por falta
de lixas, máquinas para descascar e furar. Falta uma oficina de beneficiamento
propriamente dita, com estufa e estante para facilitar a secagem, enfim. Há
abundância de açaí, mulungu, paxiuba, tem um que não é uma semente, mas
dá muito aqui, que é o marajá, o coquinho urucuri, o uxi que a semente é
muito linda. O uxi, por exemplo, precisa de uma máquina que corte em rodela.
Se pode fazer várias coisas com uma máquina que corta, outro tipo de arte e
acabamento. Então, precisamos da oficina de beneficiamento que, no momento,
é improvisada e, por isso, funciona nas casas das artesãs.
Referências
AMVCM. Vila Céu do Mapiá. [2019]. Disponível em: http://vilaceudomapia.org.br/
amvcm/sobre-amvcm/. Acesso em: 22 abr. 2021.
APARÍCIO, Miguel. Panorama contemporâneo do Purus Indígena. In: SANTOS, Gilton
Mendes dos (org.). Álbum Purus. Manaus, AM: EDUA, 2011. p. 113-130.
BRASIL. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Floresta Nacional
do Purus, plano de manejo – Diagnóstico e caracterização. Brasília, DF: ICMBio,
2009a. v. I.
BRASIL. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Plano de Manejo
da Floresta Nacional do Purus. Sumário Executivo. Brasília, DF: ICMBio, 2009b.
v. III.
FROES, Vera. Santo Daime - cultura amazônica: história do povo Juramidam. 3. ed. São
Paulo, SP: Yagé, 2019.
MITOSO, Ribamar. Prefácio. In: TUFIC, Jorge. Amazônia: o massacre e o legado.
Fortaleza, CE: Expressão Gráfica Editora, 2010.
PLANO de Desenvolvimento Comunitário da Vila Céu do Mapiá. AMVCM, 2004.
SNUC. Sistema Nacional de Unidades de Conservação. [2021]. Disponível em: https://
antigo.mma.gov.br/areas-protegidas/unidades-de-conservacao/sistema-nacional-
de-ucs-snuc.html. Acesso em: 25 maio. 2021.
TUFIC, Jorge. Amazônia: o massacre e o legado. Fortaleza, CE: Expressão Gráfica
Editora, 2010.
VIANA, Virgílio. As florestas e o desenvolvimento sustentável na Amazônia. Manaus,
AM: Editora Valer, 2006.
« 105 »
O artesanato Olho da Mata
Arlete Maciel
55 O gênero Heteropsis, família das Aráceas, é recorrente no Brasil, Guiana, Venezuela e Peru. O
titica é um cipó hemi-epífito, ou seja, germina no chão e sobe para a copa das árvores onde a
planta mãe do cipó se estabelece (SHANLEY, 2005 apud FERRAZ, 2010, p. 52).
« 108 »
Acre), João Arruda, que é morador da comunidade. Com o objetivo de promover
um encontro de artesãos no médio Purus, com grupos locais, tais como o
projeto Olho da Mata, o Centro de Medicina da Floresta, a Saúde Ambiental,
representantes da Fazenda São Sebastião, de Boca do Acre, da aldeia Kamikuã,
aldeia Centrinho e da Associação de Apoio ao Agroextrativista de Ipixuna, do
rio Juruá, envolvendo as cidades de Pauini e Boca do Acre, experienciou-se uma
iniciativa pioneira de articulação do artesanato local.
Em 2013, com o patrocínio do Centro Cultural do Banco Interamericano
de Desenvolvimento/Programa de Desenvolvimento Cultural, fortaleceu-se o
processo de manejo do cipó-titica com troca de saberes entre comunidades,
oficinas de capacitação e produção e obras no espaço físico. Ao todo, seis
mulheres, três homens e quinze jovens foram diretamente envolvidos nas
oficinas e assumiram funções de oficineiras (os), mateiras (os), serviços de
apoio e aprendizes.
O projeto se estendeu e, em 2016, teve início o projeto Jovens Aprendizes, no
Jardim da Natureza, com o objetivo de que os jovens tivessem a possibilidade
de fazer arte e aproveitar os recursos da natureza. O projeto começou com cinco
jovens bolsistas e quinze não bolsistas, iniciadas nas oficinas de artesanato
com macramê e sementes, pintura em madeiras reaproveitadas, produção de
alimentos orgânicos e o remanejamento cultural do cipó-titica.
Com instrutores voluntários, o primeiro ano aconteceu com doações de
pessoas que ajudavam na gestão e logística do projeto e o apoio comunitário,
sobretudo do líder Alfredo Gregório de Melo, que supriu com doações de
alimentos as oficinas durante um ano. Com o lucro da venda das produções, no
« 109 »
primeiro ano do projeto, os alunos foram pagos e os gastos cobertos. Os alunos
passaram a receber a porcentagem da sua produção.
As oficinas de cipó-titica compreendem desde as colheitas até o aprendizado
dos trançados do cipó na produção de vassourinhas, leques, paneiros, entre
outros objetos e utensílios, uma arte lembrada por poucos moradores idosos da
comunidade que vem passando o conhecimento para os mais jovens. Vale citar a
presença de anciãs (os) da comunidade, como da mestre artesã, Marlene Gomes,
com amplo conhecimento sobre o cipó-titica; do mestre artesão e mateiro,
Aderson Paes; do mestre artesão, feitor de canoas, Pedro Zacarias, e do mateiro
Manoel Tomás, as quais foram fundamentais para o projeto.
Apesar da ampla disponibilidade de recursos na floresta, o conhecimento
sobre os processos de coleta, armazenagem e trançados com o cipó-titica vinha
se tornando escasso no entorno da vila, restando pouquíssimas famílias que
guardavam a memória das técnicas de manejo tradicional do cipó. “Esse trabalho
de remanejamento do cipó-titica se deu num processo harmonioso, onde além
de todo o aprendizado, as vivências em torno de um conhecimento que perpassa
várias gerações da comunidade foram fundamentais para as ações de educação
ambiental e revigoramento da cultura local”, diz Karina Henestrosa, uma das
gestoras do projeto.
Atualmente, o couro vegetal é também usado para a confecção do artesanato
nas oficinas. Usa-se o produto feito com o látex das seringueiras, extraído por
trabalhadores (as) locais de forma sustentável; o processamento do látex e da
produção das lâminas (couro vegetal) é também realizado na comunidade. Essa
« 110 »
é uma matéria-prima fabricada localmente, pelos artesãos Wílson Manzoni e
Cristina Santos, que integram o grupo de artesãos da Vila Céu do Mapiá.
Entre as sementes, a uxirana, o mucunã, a jarina, o tucumã e o açaí são os
mais beneficiados. A semente mais comercializada na Vila é a semente do açaí,
natural e tingido. Dos pigmentos naturais usados para tingir as sementes e as
linhas, os principais são o urucum, o jenipapo, a curcuma e o jagube. É comum
o uso de madeiras da região para a confecção de pequenas peças, como terços
e biojoias.
O produto com maior comercialização pelo projeto é o filtro dos sonhos, um
produto híbrido de culturas nativas norte-americanas e as culturas hippie e/ou
neo-hippie, que adentram as comunidades, através da rede de neoxamanismo,
ascendente nas últimas décadas, no circuito das redes neo-ayahuasqueiras,
que surgem no Brasil, em meados do século XX e alavancam um processo de
disseminação das culturas tradicionais amazônicas, a partir dos anos 80, com
o projeto de expansão da doutrina do Santo Daime, pelo padrinho Sebastião
Mota de Melo, um dos sucessores do Mestre Raimundo Irineu Serra, após a sua
passagem em 1972.
O projeto já produziu mais de três mil filtros de sonhos para atender ao processo
de comercialização, desenvolvido de modo mais intenso em Florianópolis. A
circulação dos produtos do projeto Olho da Mata é relacionada ao circuito de
movimentos dos festivais com calendário anual, que ocorre concomitantemente
não só na Vila Céu do Mapiá, mas em todos os centros do Brasil e do mundo,
momento em que há um grande encontro das igrejas do Santo Daime.
« 111 »
Com a parceria com a pintora e mestre artesã, Karina Henestrosa, no ano
2000, iniciou-se a coleta de discos de madeira, como Amapá e Roxim, entre
outras, que são reaproveitadas, tiradas de galhos de árvores caídas nas trilhas do
Jardim da Natureza. As oficinas de pintura trabalham também sobre mandalas
feitas de talos, sementes e cascas de pau. Além disso, iniciou-se também a
produção de camisas pintadas com motivos de natureza.
O artesanato de sementes com macramê tecido na linha do tucum é um dos
pilares das oficinas de artesanato. Entre os resultados das oficinas, o projeto
Jovens Aprendizes e a ampliação e reforma da Escola de Artes e Saberes Florestais,
que possibilitou o avanço da estruturação do projeto, com inauguração da sala
de montagem, na Escola de Arte e Saberes Florestais Jardim da Natureza, em
2019, com apoio do Instituto Nova Era, é um dos destaques.
A chegada do novo Sars-CoV-2, brecou um pouco este processo de atividades
no Jardim da Natureza, em 2020. Contudo, as artesãs deram continuidade em
suas residências e, com o incentivo da Lei Aldir Blanc, através do Programa
Cultura Criativa, do Governo do Estado, Ministério do Turismo, Secretaria
especial de Cultura, Fundo Nacional de Cultura, foi possível reabrir e manter o
Jardim e restabelecer um programa de oficinas para o segundo semestre de 2021.
Alimentação tradicional
Além das oficinas de artesanato, ocorrem também, no Jardim da Natureza,
as oficinas de alimentos, cujo objetivo é reavivar a alimentação tradicional dos
povos da floresta na comunidade e não deixar estragar as frutas da estação,
com o fabrico de doces, frutas em calda, frutas cristalizadas, cacau de diferentes
formas, colorau e cúrcuma. Os estudos sobre Pancs estão em estágio inicial,
« 112 »
mas boa parte das Pancs disponíveis foi incorporada às refeições no Jardim da
Natureza.
O grupo de artesãos que interage no projeto é formado por homens,
mulheres e jovens, os quais são capacitados para o beneficiamento de sementes,
manejo de cipós, tecelagem de fibras e montagem de peças (artigos esotéricos,
biojoias, acessórios como bolsas, cintos, entre outros), nas quais são aplicadas
diferentes técnicas: tear, macramê, trançado com sementes e crochê. O uso de
linhas de algodão e de cera é um fenômeno também mais recente entre os
antigos moradores do Purus, chega no Jardim da Natureza a partir do processo
de intercâmbio com outros estados do Brasil e do mundo.
O projeto reúne várias gerações de uma mesma família, descendentes de
mestres de saberes tradicionais, entre eles a agricultura e o artesanato. Avós,
filhos e netos trabalham na transmissão dos conhecimentos e no resgate da
memória dentro do contexto do projeto Olho da Mata. Com o incremento e
a maior viabilidade na produção do artesanato do cipó-titica, o número de
artesãos especialistas nessa produção mais que dobrou, saindo de três famílias
para cerca de vinte, entre as quais estão envolvidas famílias das aldeias Kamikuã
e Centrinho. O conhecimento foi expandido através de oficinas realizadas em
parceria entre o Instituto de Socioeconomia Solidária (ISES) e o Idaris, que
atualmente é parceiro do projeto no Jardim da Natureza.
A parceria resultou numa consultoria para a produção de um produto piloto,
mostra e comercialização dos artesanatos produzidos pelo projeto Olho da Mata.
Foi elaborado um kit com cinco produtos artesanais selecionados: a) terço com
bolsinha de couro vegetal; b) chaveiro de linha de tucum e sementes; c) filtro
dos sonhos (cipó-titica); d) cabaças; e 5) telas e camisas pintadas a mão.
O intercâmbio com artistas de outras localidades do Brasil possibilitou a
extensão das oficinas, abrangendo o artesanato com técnicas de pintura em
tecido e madeira, produção de camisetas, rolinhas de madeira, bolsas de pano e
cuias de cabaça coité. Como resultado da expansão, houve a entrada de recursos
pela comercialização dos artigos produzidos e foi criado um estoque de produtos
para a loja.
O tingimento com resíduos do cipó Kahpí (Banisteriopsis caapi), cipó que
é utilizado no feitio do Santo Daime, foi desenvolvido a partir de uma técnica
inovadora em degradê, utilizando o resíduo do Santo Daime, chamado Pignol.
É uma tecnologia exclusiva da comunidade do Juruá, desenvolvida em parceria
com o projeto Olho da Mata.
« 113 »
com esse novo universo de conhecimento. Fui viver nos Estorrões em 2012,
primeiramente como professora da Escola Municipal Céu do Juruá, e em
2018, passei a atuar como coordenadora criativa dentro da oficina, com
o Projeto Educacional de Biodesign, dando continuidade ao belo trabalho
iniciado pela Arlete (informação verbal56).
Considerações acerca do
projeto Olho da Mata
O projeto Olho da Mata tem o objetivo de gerar produtos biodegradáveis que
não representem riscos aos ciclos de vida na floresta, contribuindo para uma
via de desenvolvimento sustentável. Se cada vez mais vivemos sob a ameaça
permanente de sucessivas crises ambientais geradas por modelos predatórios
de desenvolvimento, projetos como este constituem importantes embriões e se-
mentes de novas mentalidades que se abrem para possibilidades reais de pro-
duzir riqueza no contexto e nos limites da sustentabilidade da região em que
vivemos e do planeta que todos e todas nós habitamos (ABREU; NUNES, 2012).
Este projeto realiza-se no espaço Jardim da Natureza: escola de artes e
saberes florestais, a qual, por meio do princípio educativo do trabalho artesanal,
propicia a valorização do conhecimento produzido pelas populações tradicionais
que vivem na FloNA do Purus. Tais experiências também contribuem para o
debate acerca da Educação do Campo na Amazônia, uma vez que são os próprios
trabalhadores e trabalhadoras que, conjuntamente, planejam e executam o
trabalho artesanal a partir de produtos florestais não madeireiros.
Ferraz (2010) e Souza et al. (2016) desenvolveram pesquisas científicas
com foco em experiências educacionais focadas na gestão de florestas, na
« 115 »
Referências
ALMEIDA, Maria de Fátima Henrique de. Santo A447s Daime: a colônia Cinco Mil e a
contracultura (1977-1983). 2002. 113f. Dissertação (Mestrado em História do Brasil)
- Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco,
Recife.
FERRAZ, Miguel Mader. Apoio técnico ao grupo de artesanato de produtos florestais
da FloNA do Purus, Amazônia Ocidental, Brasil: um subsídio à criação de uma
oficina-escola. 2010. TCC (Graduação em Engenharia Florestal) – Universidade
Federal de Viçosa, Viçosa, 2010.
FROES, Vera (org.). Linha do tucum: artesanato da Amazônia. Rio de Janeiro, RJ:
Instituto de Estudos da Cultura Amazônica, 2010.
MITOSO, Ribamar. Nome do capítulo. In: TUFIC, Jorge. Amazônia: o massacre e o
legado. Fortaleza, CE: Expressão Gráfica Editora, 2010.
PROJETO Oficina Escola Jardim da Natureza: jovem aprendiz. Vila Céu do Mapiá, AM:
2017.
RELATÓRIO BID. Projeto Oficina-Escola de Artesanato Jardim da Natureza Vila Céu
do Mapiá, Pauini, Amazonas-Brasil. Vila Céu do Mapiá, AM: [s. n.], ano.
RELATÓRIO de acompanhamento de projetos. Programa AmaGaia. Programa de apoio à
sustentabilidade na Vila Céu do Mapiá. Vila Céu do Mapiá, AM: [s. n.], 2019.
RELATÓRIO do Intercâmbio de Artesãos de Boca do Acre e Pauini-AM. Pauini, 2013.
RELATÓRIO Oficina de Produção: jardim da natureza. Programa AmaGaia, 2019.
RELATÓRIO Projeto Oficina Escola Jardim da Natureza: jovem aprendiz. Vila Céu do
Mapiá, 2018.
TUFIC, Jorge. Amazônia: o massacre e o legado. Fortaleza, CE: Expressão Gráfica
Editora, 2010.
« 116 »
Até breve
O “Olho da mata: manejo do cipó-titica e sementes nativas na FloNA do Pu-
rus” é um livro que surge neste momento de crise da pandemia do Sars-CoV-2
(Covid-19) para gerar um movimento de articulação com a comunidade Vila Céu
do Mapiá, na FloNA do Purus, e lançar um produto que possa mostrar o artesa-
nato produzido pelo projeto Olho da Mata.
A abordagem acerca dos processos em torno da produção do artesanato
na Vila Céu do Mapiá e do sistema de governança instituído para geri-lo,
envolvendo o Mosaico de UC’s e TI’s nos vales do Purus e Juruá, incentivados
pelas comunidades Vila Céu do Mapiá e Vila Céu dos Estorrões revela um traço
cultural alinhado com as culturas tradicionais e autóctones da Amazônia, que
estabelecem uma rede de relações de troca e governança na gestão de sistemas
florestais. Essa rede se expande para outros lugares do Brasil e do mundo, e luta
pelo fortalecimento, sobretudo, de uma escola de saberes florestais e das cadeias
produtivas, no manejo de produtos florestais madeireiros e não madeireiros,
enfrentando problemas na vida prática do dia-a-dia, como os gargalos com o
fornecimento de energia elétrica para algumas regiões da Amazônia e o acesso
à comunicação, internet, telefones, etc.
O projeto revela também uma grande articulação do terceiro setor, envolvendo
diversas organizações, de diferentes estados no Brasil, mas com gargalos de
articulação em amplos setores governamentais e não-governamentais, dentro do
próprio estado do Amazonas, o que aumenta a importância de ações como a do
Programa Cultura Criativa – 2020/Lei Aldir Blanc – Prêmio Encontro das Artes
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do Governo do Estado do Amazonas, com apoio do Governo Federal – Ministério
do Turismo – Secretaria Especial da Cultura, Fundo Nacional de Cultura.
No entanto, as principais revelações do projeto são a garra e a coragem dessa
brava gente que habita o interior das florestas, investindo toda a sua vida na
crença de que a floresta em pé é o único caminho a seguir. Uma gente para a qual
cada passo tem gosto de vitória e que avança na construção de uma proposta de
vida diferenciada, gerenciando alternativas e viabilizando manejos da própria
vida. Tudo isso numa perspectiva ecológica de transformação de valores, do
mercado, da ideia de cultura, buscando na fonte o entrelaçamento do local com
o global contemporâneo, pois o intuito é a sobrevivência dos povos da floresta.
Sobre estes, os denominados “povos da floresta” vemos, ao nos aproximar
que fazem parte de uma realidade de vida mais abrangente. O projeto Olho da
Mata descortina a beleza de uma vida na floresta, com seus encantos, onde
mulheres e homens vivem no sagrado da mata, colhendo o que a natureza oferta
generosamente, respeitando os ciclos de vida, vivificando tradições e saberes
ancestrais.
Consideramos que neste momento de transformação planetária, quando
cada um de nós volta-se para o âmago da vida, este livro vem despertar um
sentimento de gratidão a esses guardiões e guardiãs da floresta. Esperamos que
eles continuem sendo um incentivo aos que se preocupam com a presevação da
floresta e da vida.
Que este livro traga alegria e esperança de vencermos a crise planetária
em que nos encontramos, vislumbrando novas possibilidades de sobrevivência
humana na terra, no esplendor do trabalho das(os) anciãs(os), dos jovens
aprendizes e inovadores neste novo tempo, nesta nova era.
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