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Olho da mata:

manejo do cipó-titica
e sementes nativas
na FloNA do Purus

Manaus, 2021
Copyright© Graça Maria Mitoso da Silva

Projeto Olho da mata: manejo do cipó titica Fotografias


e sementes nativas na Flona do Purus. Leônide Príncipe (págs. 1, 7, 8, 11, 13, 15,
26 e 117), Alexandre Pazuello, Marcelo Orue
Coordenadora Geral
(págs. 83, 84 e 85)
Graça Maria Mitoso da Silva
Produtora Executiva Ilustrações
Juliana Mitoso Belota Tai Lin Iuri da Silva (capa)
Zeca Nazaré (página 38)
Identidade visual
Dênis Maerlant Mapas
Projeto do Artesanato Olho da Mata Boris Marioni (págs. 17 e 73)
Arlete Maciel
Colaboração
Pesquisadores Karina Hernestrosa, Joana Rosa, Nina Lyz,
Carlos César Durigan, Boris Marioni, Graça Guaraciara Melo, Rosália Massula, Mariana
Maria Mitoso da Silva, Juliana Mitoso Belota, Oliveira, Silvino Melo, Manoel Corrente,
Maria de Jesus Belota Moreno, Arlete Maciel, Kézia Marinho
Maria Oiticica.
Projeto Gráfico
Participação Tito Fernandes
Alfredo Gregório de Melo, Arlete Maciel, Nina Lys,
Karina Henestrosa, Nancy Ketz, Pedro Figueira do Revisão de Texto
Nascimento, Adriano Grione, Elizângela Vieira Juliana Lobo
de Souza (Patakyru) Apurinã, Maria José Rocha,
Marlene Gomes de Olivveira, Maria Tomáz da
Silva, Fabiana Rocha, Diana Tomás da Silva,
Maria Clara Oliveira Ferreiro, Iris Daniela da
Silva, Emanoela Reinaldo da Silva, Damião Rocha
Mendes, Carliane Avelino da Silva, Tainá Silva
Oliveira, Taciana de Matos Souza.

Ficha catalográfica

S586
Olho da mata: manejo do cipó-titica e sementes nativas na FloNA do Purus/
Organizadora: Graça Maria Mitoso da Silva. --- Manaus, 2021.
118 p.: il, color.
ISBN: 978-65-00-33130-1

1. Meio ambiente. 2. Manejo. 3. Sustentabilidade.


CDD 333.72
Instituições que apoiam
e são parceiras
AMVCM EMFLORES
Associação dos Moradores da Vila Céu do Encontro de Mulheres da Floresta
Mapiá
FloNA do Purus
BASA Floresta Nacional do Purus
Banco da Amazônia
FONEC
CEFLURIS Fórum Nacional de Educação do Campo
Centro Eclético da Fluente Luz Universal
Raimundo Irineu Serra GEPEC
Grupo de Estudos e Pesquisa em
CGEC Educação do Campo
Coordenação Geral de Educação do
Campo GEPERUAZ
Grupo de Estudos e Pesquisas em
CNBB Educação do Campo na Amazônia
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
IBAMA
CNUMAD Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e
Comissão das Nações Unidas para o Meio dos Recursos Naturais Renováveis
Ambiente e Desenvolvimento
IBGE
CMF Instituto Brasileiro de Geografia e
Centro Medicina da Floresta Estatística

CONEC ICEFLU
Comissão Nacional de Educação do Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz
Campo Universal

CONTAG ICMBio
Confederação Nacional dos Instituto Chico Mendes para a
Conservação da Biodiversidade
Trabalhadores na Agricultura
IDARIS
COOPERAR
Instituto de Desenvolvimento Ambiental
Cooperativa Agroextrativista do Mapiá e
Raimundo Irineu Serra
Médio Purus
INCRA
CTA
Instituto Nacional de Colonização e
Centro de Trabalhadores da Amazônia
Reforma Agrária
EDUCAMPO
ISAViçosa
Núcleo de Estudos e Pesquisas em
Instituto Socioambiental de Viçosa
Educação do Campo e Sustentabilidade
ITERAM RESEX
Instituto de Terras da Amazonas Reserva Extrativista

MEB SNUC
Movimento de Educação de Base Sistema Nacional de Unidades de
Conservação
MEC
Ministério de Educação e Cultura UFOP
Universidade Federal de Ouro Preto
MST
Movimento dos Trabalhadores Rurais UFPA
Sem-Terra Universidade Federal do Pará

NEPAM UFSCar
Núcleo de Estudos Pró-Amazônia Universidade Federal de São Carlos

OEJN UFV
Oficina-Escola Jardim da Natureza Universidade Federal de Viçosa

ONG UNB
Organização Não Governamental Universidade de Brasília

PDC UNESCO
Plano de Desenvolvimento Comunitário Organização das Nações Unidas para
Educação, Ciência e Cultura
PRONERA
Programa Nacional de Educação na UNICEF
Reforma Agrária Fundo das Nações Unidas para a Infância

SECADI USP
Secretaria de Educação Continuada, Universidade de São Paulo
Alfabetização, Diversidade e Inclusão
WCS
SEDUC Associação Conservação da Vida Silvestre
Secretaria de Estado da Educação e
Qualidade de Ensino do Amazonas WWF
World Wide Fund for Nature
STR
Sindicato dos Trabalhadores Rurais

SUDAM
Superintendência de Desenvolvimento da
Amazônia
Sumário

Agradecimentos 6
A vez, a voz e o voto do Olho da Mata 10
Educação florestal hoje e sempre 11
Prefácio 13
Apresentação 15
Relato oral 18
Entre sementes e cipós 26
O cipó-titica no Amazonas: conhecimento, importância e manejo 38
Manejo da vida: cipó-titica e sementes nativas na Vila Céu do Mapiá 48
Sustentabilidade no Purus 64
Cadeia de afetos 83
Perspectiva ecológica: vozes artesãs 89
O artesanato Olho da Mata 106
Até breve 117
Agradecimentos

Agradeço primeiramente a Deus e à vida pela jornada. Agradeço a trilha


aberta no Olho da Mata, um projeto para a rede “Floresta em Pé”. Agradeço
especialmente ao Programa Cultura Criativa – 2020/Lei Aldir Blanc, Prêmio
Encontro das Artes do Governo do Estado do Amazonas, com apoio do Governo
Federal, Mistério do Turismo, Secretaria Especial da Cultura, Fundo Nacional de
Cultura, pela oportunidade de realizar este projeto.
Agradeço imensamente ao líder comunitário, Alfredo Gregório de Melo,
pela parceria, incentivo e pela disponibilização do acervo da Escola de Arte e
Saberes Florestais Jardim da Natureza, sem o qual não seria possível realizar
esta pesquisa.
Agradeço à mestre artesã, Arlete Maciel, por ter acreditado na proposta e
construído junto as plataformas de trabalho. Dado o momento de pandemia e
a impossibilidade de estar presente na Vila, seu trabalho foi fundamental para
o movimento de articulação e pesquisa que resultam neste livro. Agradeço à
esquipe do projeto no Céu do Mapiá, a doutora em Políticas Públicas, Estratégias
e Desenvolvimento, Nina Lys; à jornalista, Kézia Lima Marinho; a artista plástica
Tai Lin Yura pela ilustração da capa; a artista plástica Karina Henestrosa, por ter
sido um canal aberto de comunicação e fonte de pesquisa; e ao produtor local do
projeto, Silvino Melo, seu apoio foi essencial para a reabertura e movimentação
na Escola de Arte e Saberes Florestais, Jardim da Natureza, na Vila céu do
Mapiá. Minha gratidão a todos.
Agradeço à artesã e vice-presidente da Cooperativa Agroextrativista do Mapiá
e Médio Purus (Cooperar), Elizângela Vieira de Souza (Patakyro), Apurinã, por
ter passado longas horas em conversas comigo ao telefone.
Agradeço ao mestre artesão, Pedro Figueira do Nascimento (Pedro Zacarias),
contemporâneo do Padrinho Sebastião, feitor de canoas, por mesmo de tão longe
ter dedicado sábias palavras ao projeto.
Agradeço a todas as artesãs (os) que, com alegria, participaram do projeto
disponibilizando seu tempo na condução das entrevistas, compartilhando seus
saberes e fazeres na floresta: Adriano Grione, Marlene Gomes de Oliveira,
Damião Rocha Mendes (Damião Curica, que além de artesão, é mateiro), Maria
Mota Queiroz, Maria José Rocha, Fabiana Rocha, Diana da Silva, Maria Clara
Oliveira Ferreiro, Iris Daniela da Silva, Emanuela Reinaldo da Silva, Diana Tomás
da Silva, Tainá da Silva Oliveira e Tarciana Matos.

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Agradeço pelo apoio ao Instituto de Desenvolvimento Ambiental Raimundo
Irineu Serra – IDARIS, à Associação dos Moradores da Vila Céu do Mapiá
(AMVCM), à Rádio Jagube e ao Canal Jagube.
Agradeço à equipe do projeto Olho da Mata que, num mínimo espaço de
tempo, conseguiu articular-se num trabalho dinâmico e participativo, que
favoreceu a nossa convivência e a conclusão do livro.
Agradeço aos pesquisadores que atuaram na elaboração dos artigos: ao
geógrafo e ambientalista, diretor da WCS Brasil, Carlos César Durigan; ao
mestre em Ciências, doutor em Biologia de Água Doce e Pesca do Interior, Boris
Marioni; e a designer de biojoias, Maria Oiticica, gratidão por compartilharem
seus conhecimentos.
Agradeço carinhosamente ao jornalista e poeta, membro da Academia
Brasileira de Letras do Estado do Amazonas, Aldísio Filgueiras, que abrilhantou
e coroou nosso trabalho com sua visão crítica e certeira sobre os processos
vivenciados na Amazônia brasileira.
Agradeço ao meu irmão, José Ribamar Mitoso, escritor, professor e doutor
da Universidade Federal do Amazonas, pelo conceito de desglobalização sempre
presente nas suas novelas, nos seus contos, poemas e no seu teatro.
Um agradecimento especial às minhas filhas, Juliana Belota e Maria Belota,
pelo apoio incondicional dado ao projeto; agradeço ao coordenador de mídia
visual do projeto, Dênis Maerlant, por lançar seu olhar ao projeto; à coordenadora
de mídias sociais, Jackeline Monteiro; à artista plástica que assina a arte da
capa, Tai Lin Iuri da Silva; ao artista plástico, Zeca Nazaré, pela ilustração do
livro; ao Bóris Marioni, pela elaboração dos mapas; e aos fotógrafos, Leônide
Príncipe e Alex Pazuello, que disponibilizaram seus acervos.
Agradeço, finalmente, a toda equipe do projeto Olho da Mata pela cuidadosa
condução dos fazimentos do projeto até a execução do livro e aos meus filhos
Marcelo Augusto e André Luiz, que sempre me apoiaram em todas as minhas
iniciativas.

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A vez, a voz e o voto do
Olho da Mata
Aldísio Filgueiras
Poeta, jornalista, membro da Academia
Amazonense de Letras

A Amazônia nunca deixou de ser contemporânea às idades da humanidade.


Preconceitos à parte, os povos que habitavam essa região já eram
modernos, enquanto a Europa ciscava, em busca do fio da meada que ajudasse
a construir o labirinto pensamental da sua arrogância supremacista e justificar,
em nome de deuses e reis e leis seus domínios de sete mares.
Quanto mais nós, também, ciscamos nesse território, à procura de
esclarecimento para o que nossa ignorância chama de mistério e diz que “foi
boto, sinhá” que nos fez e faz esconder nossas responsabilidades, mais indícios
dessa contemporânea modernidade (ou moderna contemporaneidade, vamos
pensar, vamos pensar) vêm à tona com a complexa historicidade “arquivada”
nos sambaquis, nos tesos com que a engenharia dos amazônidas (que nem eram
assim chamados) controlava as cheias e reorientava as águas para o transporte
ou as fazendas pesqueiras (que nem eram chamadas assim) etc. etc. etc. etc.
(vamos estudar, vamos estudar, vamos estudar).
Uma economia solidária. Um comércio intenso, de “mercado livre” e
“multinacional” (quantos idiomas de quantos povos diferentes habitavam a

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Amazônia que ainda não era Amazônia nem propriedade de ninguém?). Uma
diplomacia cujo exemplo pode matar de vergonha os chanceleres de hoje, se
vergonha fosse o insumo da ética e da política dos chanceleres de hoje.
Essas realidades tão antigas quanto contemporâneas têm permanecido vivas,
apesar da contínua e reiterada violência que a República Federativa do Brasil
dedica à região e àqueles sobreviventes que a mantêm brasileira, até hoje. A
capilaridade que sustenta a comunicação entre essa herança cultural e política
está dispersa, mas não menos conectada. Graça Maria Mitoso e sua filha Juliana
estão entre os muitos e diferentes integrantes dessa frente de resistência. Trata-
se de sobrevivência, não de um humano, que eventualmente se perde, mas de
uma humanidade, que se recusa organicamente a deixar de existir, uma história
e uma cultura.
A edição, em boa hora, deste “Olho da mata: manejo do cipó-titica e sementes
nativas na FloNA do Purus”, retrata experiências dela e de seus companheiros e
companheiras na Floresta Nacional do Purus. Não só ali, no entanto. A herança
cultural referida está infestada de contribuições das culturais globais. Graça vem
de uma vivência de bisavós e avós indígenas e africanos, avô vidente, de mãe
católica praticante, mas amiga de mães de santo de umbanda e candomblé;
anexe-se uma infância com um quintal cheio de animais domésticos, o que hoje
seria crime federal, pois esses animais deixaram de ser domésticos (jabutis,
macacos, papagaios, araras, periquitos, tartarugas e tracajás, preguiças e até
galinhas, gatos e cachorros, todos de estimação).
A essa “bagagem” de convivências, Graça Maria juntou estudos de
educação, comunicação e informática, na Itália; foi funcionária do Tribunal
do Trabalho, professora no interior e na capital do Amazonas. Ou seja, Graça
jamais deixou de pagar impostos municipais, estaduais e federais, como a
maioria dos brasileiros que trabalham. E no entanto, essa qualidade que ela
e a sua família compartilham como espiritualidade esteve sempre presente
em todas as suas atividades. A Floresta Amazônica jamais foi um vazio e um
silêncio. Suas experiências sempre se trocaram por todos os meios, agora, com
recursos do rádio, da internet, das redes sociais, distribuindo produtos culturais
e informativos criados dentro das comunidades que são várias e diferenciadas.
Se existe um território de democracia dentro da pátria amada Brasil, ele está
plenamente tipificado na Amazônia.
A rádio Jagube – voz da integração mapiense, vai repercutir o manejo do
cipó-titica e das sementes nativas do rio Purus. E as vozes de Juliana e Graça
Maria darão a dicção e a sintaxe desse evento, da mesma maneira como tratam
da bicharada na floresta, teatro radiofônico que concorre com a instantaneidade
das informações de que as redes antissociais bombardeiam as comunidades e as
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aldeias com a evangelização da doutrina de um progresso, que nunca fez bem a
ninguém, muito pelo contrário.
A Amazônia nunca esteve ausente e está cada vez mais frequente na aldeia
global, mas sua integridade deve-se a esse “trabalho de formiga”, incansável de
salvar sementes nativas e seu uso medicinal. Laboratórios estrangeiros faturam
bilhões de dólares com esse mesmo material usado tradicionalmente pelos povos
da região, mas não respeitado pela “cultura superior” e branca das academias
do litoral atlântico. Desde o Império, pelo menos, o Brasil contraiu uma dívida
com a Amazônia que jamais conseguirá pagar. O desprezo da república de faz de
conta do Brasil para com as populações amazônicas não tem dobrado o ânimo
de viver dessa gente. Agora mesmo um Instituto de Biotecnologia da Amazônia,
criado há 20 anos, está inativo. Nem Manaus, e os governos estadual e federal
não sabem sequer como resolver a burocracia da paternidade da criatura,
que poderia estar à frente do combate à Covid-19. Que tal o cipó-titica? Não
é suficientemente agro para interessar à China, como a soja? Além de vender
madeira em toras, o que interessa à pátria amada Brasil?
É a Graça de Marias e Julianas, e de professoras como Amanda Ayres,
de empates como os de Chico Mendes, o sacrifício de religiosas como a
estadunidense Dorothy Stang, assassinada pelos grileiros de terra e donos de
cartório no Pará, jornalistas perseguidos até pela Justiça, como o paraense Lúcio
Flávio Pino... A lista de combatentes assassinados não caberia em 10 volumes
das listas telefônicas de Nova York e São Paulo, juntas.
O cipó-titica vai dar o que falar e, provavelmente, algum laboratório não
brasileiro se interessará por ele, e ficará muito mais rico com ele. Mas deve se
apressar, porque existe uma guerra não declarada do governo do Brasil contra a
Amazônia, e cada árvore tombada leva consigo os milhares de mistérios que a
nossa orgulhosa ignorância prefere trocar por um hambúrguer do McDonald’s,
sem perder o sono. Eu tenho muito orgulho de ser filho de uma Amazônia que
se põe no mapa com essa gente, por essa gente, como essa gente. É graças a
gente assim que ainda existe uma espécie humana neste planeta. É gente assim
que está na mira dos fuzis da República Federativa do Brasil. O povo do futuro.

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Educação florestal
hoje e sempre
Alfredo Gregório de Melo

D eus nos salve, em nome de Jesus e da Virgem Mãe, Nossa Senhora da


Conceição! Que o nosso divino Mestre nos dê sempre luz e compreensão.
Desejo que todos os nossos irmãos e irmãs e a quem possa interessar, tenham
a oportunidade de compreender o valor deste trabalho. Este livro é um produto
da Escola de Artes e Saberes Florestais Jardim da Natureza, juntamente com o
projeto Olho da Mata.
Quando criei o setor do Jardim da Natureza, tive o pensamento e a indicação
da nossa parte espiritual. É um local onde sempre se realizam as curas com o
Santo Daime, com as reuniões, com as concentrações, com as nossas entidades
e, também, para fomentar o respeito à biodiversidade e para respeitar a natureza.
Ter um local sagrado para todas as formas de educação e melhoramento espiritual
e material envolve sabedoria, cura e, também, mediunidade. Esse é um local que
levou até o nome de Tronqueira da Mata Mota.
O Jardim da Natureza vem há um tempo dando apoio à nossa comunidade,
nossas famílias, nossas crianças. Também já recebemos pessoas de outras
comunidades, de outros lugares, de outras cidades com o mesmo propósito de
valorizar os ensinamentos do Jardim da Natureza, que abrangem desde a casa

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dos setores que ali foram criadas para apoio até as grandes caminhadas. Essas
caminhadas fazem parte do nosso retiro espiritual e das aulas de reconhecimento
de árvores, ervas, cipós, sementes medicinais e, também, de artesanatos.
O projeto da Oficina de Artesanato Olho da Mata tem a grande força e
interesse da nossa irmã e mestre artesã, Arlete Maciel, e de pessoas que vêm
abrilhantando e fortificando o projeto do Jardim da Natureza. Esse local é palco
de muitas coisas boas para os nossos jovens, nossos artistas, nossos artesãos e
para todo o nosso povo do Céu do Mapiá. É um espaço de estudos espirituais,
um local de desenvolvimento mediúnico, ou seja, um estudo da matéria e do
espírito. E falando em espírito, a natureza é um grande espírito criador, uma
grande mãe criadora e daí vem esta sabedoria, esta explicação.
Através de uma forma ou de outra, estamos contidos neste livro,
neste projeto. Estamos dando a nossa humilde contribuição para este produto
verdadeiro e que revela uma compreensão melhor do poder da mata, da floresta,
da selva. Que este livro seja uma luz para buscar mais coisas boas, sempre na
continuação do agora e na continuação com os nossos jovens, com nossas novas
gerações. Que essas pessoas possam perpetuar o respeito à biodiversidade e o
respeito à natureza em geral. Portanto, reitero que este livro traz boas histórias e
que estas devem ser apreciadas para que outras melhores possam ser produzidas.
Fica aqui essa afirmação e o viva ao nosso esforço, sobretudo neste momento de
isolamento social, na produção deste livro.

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Prefácio

Graça Mitoso
Professora de Língua Portuguesa, Servidora Pública Federal Aposentada, Estudiosa dos Saberes/
Fazeres da Floresta e Organizadora do Livro

“Olho da mata: manejo do cipó-titica e sementes nativas na FloNA do


Purus” é um livro, um projeto, uma vivência e uma estratégia da cultura popular
amazônica. Veja bem, leitora. Veja bem, leitor. Vamos devagar. Existe cultura
popular amazônica. Não se apoquente antes da explicação. Evite a postura
misológica que no século V a. C. foi criticada por Sócrates porque pregava o
preconceito contra o conhecimento filosófico-científico, contra o raciocínio,
contra o argumento e contra as palavras.
Livro, projeto, vivência e estratégia pertencem à cultura popular amazônica
sim, e não somente porque nasceram nas entranhas desse espaço geopolítico
da grande floresta tropical úmida, mas porque nasceram de parte da população
trabalhadora e intelectualizada, da floresta e da cidade, e, portanto, de fazeres e
saberes que são parte dos interesses de sobrevivência sustentável das camadas
populares. Esses fazeres e saberes não fazem parte dos interesses financeiro,
industrial, mercantil ou agronegocista das grandes corporações nacionais e
transnacionais, as quais privatizaram a floresta. É cultura popular amazônica
nesse sentido.

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O livro é a expressão do projeto e das vivências dessa estratégia de certa
cultura popular amazônica. Nos seus nove capítulos, escritos por diferentes
pessoas, o(a) leitor(a) encontrará uma estratégia nativa de produção econômica
sustentável, a qual se destina a transformar a matéria-prima da floresta sem
depredá-la, agregando valor aos produtos dessa atividade econômica sem
transformá-los em commodities para o mercado financeiro internacional.
Há também, é verdade, a intenção de colocar os produtos como resultado
do trabalho cooperativo em um comércio de escala internacional, mas como
instrumento justo de sobrevivência e não de exploração das populações nativas.
O projeto é nativo.
Os capítulos foram escritos por profissionais como professores, artesãos,
jornalistas, psicólogos, designers, acadêmicos. Se não são profissionais de
nascença, são de vivência. Todos amazônicos e todas amazônicas. De nascença
e sabença. Também estão agregados e enraizados até a sola do pé no solo da
cultura popular da Amazônia.
Os temas que compõem os capítulos do livro lhe dão unidade estrutural e
são basicamente em torno do cipó-titica e das sementes da floresta amazônica,
com considerações acerca de seus valores de uso e troca para a sustentabilidade
das populações nativas em vários níveis. Ademais, são reflexões do pensamento
social amazônico, inclusive autobiográficas sobre esses fazeres e saberes. Isso
torna o livro uma expressão das vivências, do projeto e da estratégia da cultura
popular. A expressão da cultura particular, inclusive religiosa, das populações
nativas da Floresta Nacional do Purus e de suas articulações urbanas.
As autoras e os autores estão no sumário e suas sintéticas biografias estão
publicadas no livro. Não cabe aqui na apresentação falar sobre elas e eles.
Também não serei estraga-prazer e não darei spoiler sobre o conteúdo de cada
texto. Suponho que nesses breves parágrafos eu possa ter apresentado o que
todas, todos e todes encontrarão nesta publicação.
A mensagem do livro é de cooperação, inclusão, criatividade e qualidade de
vida.
Não é um livro antiglobalização no sentido de uma globalização enquanto
comércio internacional justo e democrático entre povos e nações, mas está
dentro do conceito de “desglobalização”, criado pela literatura de ficção de
José Ribamar Mitoso, cujos contos e novelas revelam o cotidiano dos atos
de recuperação da sustentabilidade e das identidades culturais dos povos da
Amazônia. Tal fenômeno também ocorre em toda a América Latina, na África e
na Ásia, após a globalização unilateral, responsável pela privatização dos bens
da natureza e pela destruição de muitas culturas tradicionais desses continentes.

Boa leitura!

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Apresentação
Arlete Maciel, por Nancy Katz

M eu primeiro encontro com o Amazonas aconteceu no ano 2002. Com


22 anos, conheci o Santo Daime na minha cidade natal, Rosário,
Argentina, e pouco tempo depois empreendi uma viagem ao Céu do Mapiá.
Naquela época, eu já fazia bijouterias com fios de metal e pedras, e assim
sustentava minhas viagens por sudamérica.
No Mapiá, conheci a Maria Arlete Maciel Furtado, natural de Boca do Acre,
Amazonas. Técnica na arte de transformar sementes de palmeiras e árvores
em um material precioso para a confecção de biojoias e objetos de decoração.
Imediatamente me apaixonei pelas sementes e comecei a trabalhar com Arlete
no projeto da oficina de artesanato da comunidade.
Através do trabalho com as sementes, Arlete também me ensinou sobre as
diferentes espécies de árvores e palmeiras, os usos regulares, as tradições locais,
os tempos de colheita, os métodos de secagem e beneficimento de cada uma
das sementes e coquinhos. As sementes tem também propiedades curativas e
mágicas, tradições e crenças que provém do conhecimento tracional das culturas
indígenas, como assim também usos ornamentais.
Como matéria prima para o artesanato, as sementes da floresta amazônica
possuem uma beleza extraordinária, que faz as pessoas ficarem admiradas da
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precisão dos padrões criativos da natureza. Com certeza se trata de um patrimô-
nio ecológico único da biodiversidade da floresta tropical.
Passei vários anos no Céu do Mapiá, descobrindo a floresta e estudando as
artes do “Jardim da Natureza”, trabalhando e convivendo com Arlete, que além
de ser uma ótima professora e uma grande artista, virou minha melhor amiga e
sempre zelou por mim como Mãe.
No ano 2005, a Arlete foi convidada pelo Padrinho Alfredo a desenvolver e
ensinar o trabalho do artesanato amazônico na comunidade dos Estorrões, no
Céu do Juruá e eu tive a sorte de poder acompanhar como parte da equipe. Esse
foi o começo do Projeto “A Linha do Tucum”.
Quero dizer que o legado que a Arlete me entregou através das sementes, na
Amazônia, é o maior presente que já recebi. Até hoje trabalho com as sementes,
e elas sempre me levam de volta para dentro das matas, naquela sensação de
paz e harmonia que a floresta tem, lembrando do valor das nossas árvores, e o
valor da Amazônia para o mundo.
Mas, além de tudo, através dos anos de aventuras no Céu do Mapiá, na
Marizia, no Céu do Juruá, e outros tantos lares onde andei, Arlete me ensinou
valores fundamentais da vida através da pessoa que ela é: alegre sempre, tra-
balhando e criando, abrindo as portas da casa e do coração para todos, lutando
com muita fé, firmeza e perseverança, achando conforto, força e inspiração no
encanto das matas verdes.

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Relato oral

Arlete Maciel, por Maria Belota

*Este texto é um relato oral transformado para a linguagem escrita,


na forma original da fala, com a sintaxe original de uma cabocla da
floresta, Maria Arlete Maciel Furtado, artesã.

Nasci em 07 de junho de 1959, no seringal chamado Praia dos Paus, no


lado esquerdo do rio Purus, alto Purus. Meu pai, Raimundo Maciel de Souza,
era agricultor, seringueiro, artesão, feitor de canoa e pescador. Minha mãe, Rai-
munda Maciel Furtado, era dona de casa e agricultora. Tinha o dom da arte de
bordar e fazer crochê.
Antes de chegar em Boca do Acre, por volta dos meus seis para oito anos,
fomos para o seringal Cortiço, do lado direito do Purus, mais próximo de Boca
do Acre. Depois, fomos para um seringal chamado Cametá. Moramos na beira
de um lago. Lá meu pai construiu um barco grande, todo serrado com serra
manual, aquelas que ficam um embaixo e outro em cima, puxando a serra.
Também serrou toda a madeira da casa que foi posteriormente construída em
Boca do Acre.
Moramos dois anos neste barco, em São Paulo, que fica do outro lado de
Boca do Acre, porque a água era mais limpa. Era a família do meu pai e do irmão
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dele, totalizando nove crianças, dentre as quais eu era a mais velha. Lá que a
gente aprendeu o ABC.
Aos 22 anos, grávida do meu segundo filho Jeferson, fui trabalhar de babá
do filho da minha tia em Rio Branco-AC. Trabalhava meio período, no outro par-
ticipava de uma oficina no SESC, que ensinava as mães a fazer o enxoval do seu
filho. Cada mãe fazia dois enxovais, um para seu filho e outro para ser doado
a uma mãe carente. Nesse mesmo local, havia um pequeno grupo de teatro, fiz
amizade com essas pessoas. Comecei a me relacionar com o pessoal da arte. No
Serviço Social do Comércio (Sesc), durante a gravidez do meu segundo filho,
aprendi também serigrafia.
Nesse momento, chegava no Acre os fazendeiros do Sul. O teatro era ativis-
ta, fazia manifestações em prol da floresta. Através de uma pessoa do teatro,
conheci o Santo Daime na Colônia Cinco Mil. Em 1981, nasceu meu segundo
filho. O pessoal da Cinco Mil tinha uma lojinha no centro da cidade em frente ao
Palácio Rio Branco, onde expunha as camisas “Lembrança do Acre”.
Em 1987, fui morar na Colônia Cinco Mil (comunidade do Santo Daime, lo-
calizada na periferia de Rio Branco, liderada pelo seringueiro Padrinho Sebastião
Mota de Melo). Ali já tinha uma forma de conseguir um sustento (o artesanato e
a horta). A comunidade recebia um grande número de hippies artesãos que bus-
cavam conhecer a ayahuasca, o que possibilitava uma troca de saberes. Havia
uma grande produção de artesanato.
O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae)
doou algumas ferramentas para a Colônia e ofereceu um stand na feirinha de
artesanato em frente ao Palácio Rio Branco. Eram somente quatro barraquinhas.
Quem tomava conta dessa lojinha era o Geraldo Bill. Todo artesão que chegava
expunha seus produtos na lojinha.
Nessa época, o Wilson Manzoni, já trabalhava com a seringa, morava no
Mapiá, mas tinha uma “defumadeira” na Cinco Mil que facilitava o corte da
seringa e a confecção de sapatos e bolsas. Foi o Tio Chiquinho (Francisco
Corrente) que organizou o grupo de artesãos da Cinco Mil. Com a venda do
artesanato, ele organizou a cozinha geral. A renda na Colônia era tirada da horta
e do artesanato.
Nesse tempo, o artesanato que havia no Acre era produzido pelos índios,
bem rústico, pois eles não tinham maquinário. A Cinco Mil foi o berço do
artesanato que existe hoje em Rio Branco. A Colônia Cinco Mil foi uma grande
escola. Nessa época, passavam muitas pessoas por lá, havia muito intercâmbio.
Todo domingo era realizada uma exposição numa feira em Rio Branco, em frente
ao estádio Rio Branco. Depois tivemos uma lojinha num espaço que se chamava
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Kaxinauá, no centro de Rio Branco. Eu fazia artesanato, serigrafia, pigmento,
granola, ia me virando.
O artesanato tem a sua onda, veio a cerâmica, depois o latão e a gente foi
acompanhando. A cerâmica vinha da Bolívia e do Peru. Nós pintávamos. Nessa
época, já vinha semente do Mapiá. A primeira pessoa a trazer essa semente foi
Zezé Corrente. Misturávamos semente com a cerâmica. Geraldo Bill, artesão
antigo, trazia semente. Fazíamos cortinas com desenho de araras, tucanos,
lembranças do Acre. Quem fazia o desenho era o Jorge Zuloaga. Fazíamos com
bambu até o Geraldo Bill trazer o marajá, essa vareta que tem diferentes tons
e é muito valiosa para nós, pois oferece possibilidades de desenhos com os
contrastes. Nesse momento, já tinha uma troca de matéria-prima entre a Cinco
Mil e a Vila Céu do Mapiá.
Nessa troca de saberes aprendi com os hippies a mexer com arame, tear
e o macramé. Era uma escola. O padrinho Alfredo Gregório de Melo, hoje o
atual dirigente da igreja Centro Eclético Fluente Luz Universal – Santo Daime/
Vila Céu do Mapiá - sempre apoiou o artesanato. Estávamos nos organizando
para a Eco-92, quando decidi fazer um artesanato mais ecológico possível.
Neste tempo, o Chico Mendes falava sobre a importância de nos organizarmos.
Agradeço ao Santo Daime e ao Chico Mendes que me fizeram acreditar que a
floresta é autossustentável, ver o meu valor como cabocla, e ver a natureza de
outra forma.
Em 1990, tive hanseníase, fiz quimioterapia, foram dois anos fazendo
tratamento. Estudei para técnica em Dermatologia, e aprofundei sobre a doença.
Em 1992, fui convidada pelo prefeito Dr. José Costa, de Boca do Acre, para
trabalhar lá. Achei bom, queria ficar mais perto da minha família. Cheguei
em Boca do Acre e comecei a trabalhar como técnica em Dermatologia e fui
trabalhando no projeto Curumim&Cunhantã, na aldeia Kamicuã, com os
índios Apurinã, chegando a ser coordenadora geral do projeto. Esse projeto foi
implantado pela prefeitura e sediado na minha casa.
Foi muito interessante, fizemos o resgate do trabalho com a semente do
tucumã, usada por eles no artesanato, na proteção, na extração de óleo e na
alimentação. O desenvolvimento desse trabalho com os jovens foi uma volta à
minha cultura e à minha origem. Foi um bom o estudo baseado no conhecimento
tradicional junto aos jovens indígenas.
Com o fim do projeto Curumim&Cunhantã, pude focar mais nas atividades
de artesanato envolvendo os jovens aprendizes do bairro São Paulo, em Boca do
Acre. Nessa época, fiz uma parceria com o Roberto Márcio Lages, pai do meu filho,
Antônio Francesco Maciel Lages. Essa parceria possibilitou a implementação de
uma oficina de beneficiamento, no km 45.
« 20 »
Fizemos o trabalho de Educação Ambiental com os Apurinã, que matavam
os macacos para fazer colar com os dentes deles. Começamos a trabalhar com
o replantio das sementes, a conscientização. Comecei a escutar histórias das
sementes, umas servem para remédio e outras como amuleto. Esse trabalho
aconteceu no beiradão do Purus, com os índios Apurinã, na aldeia Kamicuã.
Foi neste momento que tornamos a oficina mais profissional. O Roberto Lages
pesquisou e fez adaptações em maquinários para trabalharmos com as sementes.
Ele levou este mostruário para Belo Horizonte e fez muito sucesso. Participamos
em duas exposições na Alemanha. Entramos para a biojoia.
Havia dificuldade de comunicação. Era difícil o escoamento. O Roberto fun-
dou uma escola em Belo Horizonte: a Verde Escola. Eu beneficiava as sementes
em Boca do Acre, no Bairro São Paulo, e a parte da montagem era realizada em
Belo Horizonte. Eu ia para lá e participávamos das exposições Mãos de Minas.
Foi crescendo. A década de 90 foi o auge das sementes. Convidei o Adriano Grio-
ne para trabalhar em Boca do Acre. Nessa época, a gente trabalhava com a linha
retirada da envira (cipó) do carrapicho, Acanthospermum australe.
Em 1997, houve uma grande alagação em Boca do Acre. Eu estava trabalhando
também na área da saúde, socorrendo os ribeirinhos, quando minha oficina
foi para debaixo d’água. Nessa época, eu desgostei, perdi todas as sementes,
as espécies de plantas e árvores que havia replantado no quintal. Eu já havia
terminado meu tratamento e tinha planos de ir para o Mapiá. Foi nesse momento
que decidi ir para a fazenda São Sebastião, junto com o Francisco Corrente
(Tio Chiquinho). Fui para a colocação Marizia. Meu irmão Manoel Furtado,
conhecido com Byd, já estava lá.
No final de 1997, cheguei na fazenda São Sebastião com o propósito de
trabalhar a agrofloresta e, também, com a coleta de semente para ser beneficiada,
em Boca do Acre. Como eu trabalhava na área da saúde, cheguei na fazenda
trabalhando como agente de saúde, e participei da fundação do posto de saúde.
O tio Chiquinho (Francisco Corrente, líder da comunidade Fazenda São
Sebastião, igarapé Mapiá) era Agente Florestal do Instituto Brasileiro de
Recursos Florestais e Meio Ambiente (Ibama). Ensinava as pessoas sobre como
plantar nas capoeiras das antigas fazendas. No lugar determinado para cultivar
os alimentos, a mata era derrubada, plantávamos o arroz e o milho. Depois,
tínhamos o roçado com macaxeira, as árvores frutíferas e as madeiras de lei.
Enquanto colhíamos as macaxeiras, essas plantas iam crescendo. Colhíamos as
frutas até que as mudas das árvores cresciam, as fruteiras morriam e acontecia
a sucessão natural. Nos aceiros dos roçados (região entorno da área de plantio)
plantávamos o jagube. O tio Chiquinho gostava de plantar o jagube perto do
ingá. Ele dizia que quando o jagube cobria o pé de ingá e este morria, o jagube
« 21 »
estava no ponto de ser colhido. Além disso, nós alimentávamos os macacos. Era
muito difícil colher um ingá, pois os macacos o comiam primeiro.
Falar do Chico Corrente dá caderno, né? Na fazenda, eles tinham uma
grande plantação de banana para a produção de banana passa. Igualmente à
minha oficina, a fábrica de banana passa foi para debaixo d’água. Praticamente,
todas as plantações eram feitas na beira do igarapé Mapiá, na várzea. Havia
poucos roçados em terra firme. Depois dessa alagação, ele começou a plantar
em terra firme. Era um homem que durante toda a vida foi assim, ia pelos
caminhos achando sementes, queria saber do que eram. Ele juntava as sementes
de madeira de lei, fazia a sementeira e replantava. Ele sempre dizia que “quem
planta colhe”. Era um grande incentivador da agrofloresta. As plantações
começavam na biqueira da casa dele.
Neste tempo, tinha o vô Gildo Gomes Santos, esposo da Alda Figueira. Ele
era um mateiro, um agente florestal. Ele ensinava sobre as ervas medicinais, as
madeiras que serviam para remédio. Eles ensinavam muita coisa, tudo que um
agricultor precisava saber: colher e armazenar a semente, plantar no mês e na
lua certa.
Na colocação Maresia, eu trabalhava com agrofloresta, sempre beneficiando
semente em Boca do Acre. Vendia no Mapiá esse artesanato que produzia
sozinha. Depois da Eco-92, abriu no mundo essa conscientização de trabalhar
na agrofloresta. A gente tinha convicção de que podia viver com autossustento
da floresta.
O tio Chiquinho toda a vida apoiou e organizou o artesanato na Colônia
Cinco Mil e me incentivou, dava maior força para o meu trabalho com os
Apurinã. Ele juntava sementes na fazenda, trazia para mim e divulgava o meu
trabalho. Com o projeto Curumim&Cunhantã, houve uma grande aproximação
com esses indígenas. Os índios gostavam muito dele. Todo ano tinha a festa
Xingané. Esse é o nome de uma dança tradicional indígena que os Apurinã
fazem. Participam índios de várias etnias. O tio Chiquinho sempre foi convidado
e sempre frequentou essa festa. Ele retribuía o convite com a sua presença, com
doação de alimentos e ainda convidava outras pessoas. Passávamos a noite na
festa tomando Santo Daime e cheirando rapé, tomando caiçuma, comendo peixe
na brasa.
Por volta de 1999, entrei no projeto de couro vegetal com Wilson Manzoni.
Entrei na área da saúde. Fizemos uma formação de agente de saúde, em três
meses, em Rio Branco. Entramos como seringueiros para dar assistência à saúde
dos seringueiros. Trabalhei no rio Inauiní. Formamos uma associação chamada
Associação dos Produtores de Artesanato e Seringa (APAS). Eram três viagens
por ano ao rio Inauiní. Fizemos o trabalho de saneamento básico. Entraram
« 22 »
várias pessoas do Mapiá, com quem trabalhei três anos nesse projeto. Também
trabalhei no rio Purus, onde tínhamos estufas para a realização desse trabalho
com o couro vegetal. Nessas viagens, eu coletava sementes, pesquisava e
estudava através dos livros, onde aprendia os nomes científicos e as utilidades,
pois não havia internet.
Fiquei na fazenda de 1997 ao ano 2000. Meu filho Francesco morava com
o pai em Belo Horizonte, onde também faziam artesanato. A Verde Escola
continuava crescendo. O Roberto Lages participava de muitas exposições no
Brasil e no exterior. No ano 2000, meu filho havia acabado de fazer um curso
de biojoia para trabalhar com prata e voltado para o Mapiá. Eu ainda estava na
fazenda, na colocação Marizia.
Em meados de 2001, a voadeira do padrinho Alfredo quebrou na minha
colocação. Eu contei minha história e ele fez o convite para que eu fosse ao
Mapiá e levasse as minhas máquinas, que estavam guardadas em Boca do
Acre, para trabalhar com os jovens e organizar a produção de artesanato nessa
localidade, onde estava muito solta. Cada um fazia e vendia individualmente.
A comunidade Vila Céu do Mapiá havia acabado de ganhar da prefeitura um
grande motor de luz. Aceitei o convite. O primeiro lugar onde as máquinas
foram assentadas foi na varanda da casa do vô Corrente, pois na frente da casa
dele estava o motor de luz, o qual abastecia a igreja e a vila. Ficamos lá por seis
meses, de janeiro a junho de 2002.
Depois conseguimos ampliar a casa de ofício dos homens com o apoio da
APAS, a qual tinha dois módulos: a oficina dos homens e a oficina das mulheres.
Coloquei as máquinas na oficina dos homens, onde funcionamos de 2002 até
2003. Juntamos os artesãos (eu, Karina Henestrosa, Dario Ibaceta, Nancy Katz
e outros colaboradores) e articulamos uma feirinha nos festivais, na praça da
vila. Entretanto, tínhamos dificuldade de apresentar nosso trabalho no final do
ano, por conta do período de chuva na nossa região. O padrinho Alfredo sugeriu
que fosse feito uma varanda na cozinha geral para que pudéssemos expor o
artesanato. As feiras ficaram mais organizadas. Era uma varanda (uma puxada
de palha).
Nessa época, o Jardim da Natureza era chamado Terreiro do Padrinho Alfredo.
Havia o terreiro da madrinha Cristina Raulino e o Estrela da Mata, do padrinho
Valdete Gregório de Melo, irmão do padrinho Alfredo. O padrinho Alfredo,
desde a década de 90, já fazia neste terreiro um trabalho de conscientização
ecológica, educação ambiental. Ele era e continua sendo o professor. Realizava
as caminhadas nas trilhas duas vezes ao ano. Ensinava para que servia cada
espécie de árvore. A Karina Henestrosa, parceira do projeto Olho da Mata, no
Jardim da Natureza, iniciou as oficinas de pintura e organizou as placas de
« 23 »
identificação das trilhas de interpretação, com os nomes das árvores, no Jardim.
O Manuel Tomás ajudou nesta identificação. Hoje, as trilhas estão identificadas.
O setor do artesanato já estava mais organizado, havia um espaço para os
artistas realizarem o seu trabalho. O padrinho Alfredo havia construído umas
casas de palha, no Jardim da Natureza, para receber os visitantes do festival que
iriam participar da virada do milênio, no ano 2000. Lá já tinham as oficinas de
aprendizagem do paú, adubo orgânico da floresta.
Comecei a trabalhar no jardim da natureza, fui convidada pela Janine
Augusta Dardot e pela Lucia Arruda para oferecer aos visitantes uma vivência no
Jardim da Natureza. Caminhávamos nas trilhas, eu explicava sobre as sementes,
fazíamos a coleta das mesmas e realizávamos o trabalho de arte-terapia. Como
arte educadora, eu trabalho sempre a consciência de deixar as sementes para os
pássaros e animais, para a terra mesmo, para que a espécie continue.
Toda segunda, dia de mutirão, eu sempre ia para o Jardim da Natureza
trabalhar na coleta de sementes e na produção das mudas. Os homens levavam
as mudas e replantavam nos antigos roçados, nas capoeiras. Isso era em 2001 -
2002. De lá para cá, sempre teve esse movimento: fazer as mudas para plantar
nos antigos roçados. A Lúcia colhia paú e fazia as mudas nos saquinhos. Esse
também era um trabalho de reciclagem de lata. Plantávamos mudas de jagube
e plantas nativas.
Em 2003, o padrinho Alfredo e a Beth Mendes me convidaram para fazer nos
Estorrões, Juruá, um levantamento/mapeamento das sementes que eu conhecia
e utilizava no artesanato. Eu trabalhei de 2003 até 2008 entre o Juruá e o Mapiá.
Foram cinco anos até o projeto “Linha do Tucum: projeto socioambiental no
vale do rio Juruá”, ser contemplado em edital da Petrobrás. Eu estava no Rio de
Janeiro, a convite da Vera Froes para um tratamento e saiu o edital. O projeto
foi desenvolvido em parceria com o Instituto de Estudos Culturais e Ambientais
(IECAM).
A implantação do projeto disseminou a técnica ancestral de fiação da linha
do tucum e capacitou um grupo de artesãos, no reconhecimento da matéria-
prima em outras comunidades, favorecendo o desenvolvimento de um estudo
agroflorestal em maior escala e garantindo o equilíbrio agroecológico da
atividade extrativista. Esse processo possibilitou novas parcerias comerciais
com a produção do artesanato do tucum. Envolvemos os índios Katukina que
retiravam a linha do tucum e as anciãs dos Estorrões, que tingiam e fiavam
a linha. Em seguida, aprovamos um projeto pelo Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), no Jardim da Natureza, para estruturação de uma
cozinha. E, finalmente, atualmente, deu-se início a um levantamento dos
projetos prioritários da comunidade Vila Céu do Mapiá, onde o artesanato está
« 24 »
inserido com destaque. Contudo, com a crise da pandemia do Covid-19, houve
uma mudança de ritmo da produção, as artesãs passaram a produzir em casa,
onde tem outros afazeres. A Lei Aldir Blanc conseguiu mobilizar e estabelecer
uma dinâmica de volta ao Jardim neste momento de pandemia. Muitas são as
experiências apresentadas acima neste histórico de vida, como vocês verão a
relação artesanato-floresta perpassa toda a minha trajetória de vida e, como diz
o hino1 do padrinho Alfredo, a floresta é o centro do nosso vigor.

Da floresta eu recebo
Força para trabalhar
Da floresta eu tenho tudo
Tudo, tudo, Deus me dá.

É um primor a floresta
da maneira que é feita
Com amor se harmoniza
E deixa a Terra satisfeita2.

1 Os hinos do Santo Daime não são concebidos pelos seguidores da religião como “composi-
ções musicais”, mas “presentes” entregues por entidades sobrenaturais para que com essas
canções os fardados possam percorrer o caminho rumo à salvação e a iluminação do espí-
rito. Desde o surgimento da doutrina até os dias de hoje, os hinos são descritos, em falas e
nas próprias poesias, como “presentes, flores, prendas, prêmios e tesouros. (REHEN, Lucas
Kastrup. Presentes do astral in REHEN, Lucas Kastrup F. “Recebido e ofertado: a natureza
dos hinos na religião do Santo Daime”. Rio de Janeiro, Dissertação de Mestrado em Ciências
Sociais, UERJ, 2007a).
2 DA FLORESTA. Hino 14. Hinário O Cruzeirinho. Pad. Alfredo Gregório de Melo.
« 25 »
Entre sementes
e cipós
Graça Mitoso

O projeto de publicação do livro


“Olho da mata: manejo do cipó-titica e
sementes nativas na FloNA do Purus”
nasceu de uma conversa com a mestre
artesã, Arlete Maciel, sobre a Lei Aldir
Blanc e a comunidade. Pensávamos em
como movimentar o grupo de artesãos
da comunidade e propor um produto do
projeto Olho da Mata. Partimos rumo à
história do artesanato que nasce junto
à ideia de comunidade do padrinho
Sebastião, na Colônia Cinco Mil, no Acre.
O “Olho da mata: manejo do cipó-
titica e sementes nativas na FloNA do
Purus” é uma narrativa centrada na
trajetória da mestre artesã, Arlete Maciel,
uma guerreira da força que a floresta tem.
Sua trajetória se entrelaça com a trajetória
de construção da própria comunidade.
Arlete Maciel acompanha o artesanato
da semente, incentivado pelo padrinho
Sebastião Mota de Melo, desde o início
da década de 80, na Colônia Cinco Mil,
no Acre, onde começa a se estabelecer,
junto à Ripi Iaiá, Oficina de Artesanato
da Colônia Cinco Mil, e à Associação
Acreana de Artesãos (Asarte). Segue de
volta à Boca do Acre, onde expande o
projeto do artesanato para o baixo Purus,
estabelecendo uma rede de troca de
conhecimentos com os povos indígenas
Apurinã, onde inicia um processo de

« 26 »
governança, junto à prefeitura de Boca do Acre, que resulta hoje na expansão do
artesanato local, e no assento de indígenas na Cooperativa Extrativista do Médio
Purus (Cooperar).
Trata sobretudo do processo de desenvolvimento do artesanato na FloNA do
Purus, por este grupo de artesãos, que entra para a Vila Céu do Mapiá em 1997 e
vem desde lá atuando no manejo de espécies florestais e no desenvolvimento de
suas cadeias produtivas dentro da FloNA. Fala da luta de artesãos na Amazônia,
lutando por um espaço e pela instalação definitiva da Oficina de Artesanato Olho
da Mata na Escola de Artes e Saberes Florestais Jardim da Natureza. Fala das
jornadas, dificuldades, erros e acertos de quem luta pela educação em gestão de
floresta no Purus e vive cercado pelas águas dos rios, a 30km do centro urbano
mais próximo, Boca do Acre, deslocamento que se faz, em média, em 10h de
viagem de voadeira. Mas, fala também do brilho natural de mulheres guerreiras
na caminhada de décadas de descobertas e maravilhas como as que veremos na
mostra do artesanato do projeto Olho da Mata.
Como não poderia deixar de ser, me apresento também nesta abertura,
mostrando de que forma essa história se entrelaça à minha história de vida
e a transformação do meu ser e de toda uma visão de mundo que se ampliou
ao horizonte da vida que pulsa na floresta e que aconteceu em mim quando
conheci o Santo Daime, na Floresta Nacional do Purus, na Vila Céu do Mapiá,
em 1992.
A vida seguiu e, após trinta anos de jornada no caminho da floresta, das
medicinas vegetalistas amazônicas - que, no Brasil, tem como uma de suas
maiores expressões o Santo Daime e a sua organização de vida em comunidade
- aqui me encontro com a busca por um caminho de conhecimento, de um
pouco daqueles que passaram antes de nós neste chão do Purus, em alma e flor,
dos que trançaram palhas, teceram fios na tapera e que saudaram a luz dessa
alvorada, porque viram no sonho do padrinho e em sua comunidade o que
está expresso na união de duas plantas: jagube (Banisteriopsis caapi) e rainha
(Psicotrya viridis).
Este é um convite ao trabalho que é de todos nós: “meus irmãos se unindo
serão jagube em flor, comunidade na floresta, que São João tanto sonhou”. A
frase é de um hino recebido pelo poeta e padrinho da igreja Céu da Montanha,
em Visconde de Mauá, Alex Polari, no hinário Anunciação3. Esse hino diz muito
sobre essa transformação e o entendimento do ser como unidade, da expansão
da consciência, do que acontece na força uníssona dos cantos entoados sob o

3 O hinário Nova Anunciação foi recebido pelo padrinho Alex Polari, padrinho da igreja de Visconde de
Mauá (RJ).
« 27 »
efeito do Santo Daime4, do mesmo kahpí, conhecido das tribos enunciadas pelas
cuias iluminadas e pelo rio em sua canção, um fator de unidade com a floresta
e com o cosmo.
Nos caminhos do Santo Daime, do Kahpí, da Ayahuasca ou yagé, resgatei a
minha amazonidade e caboclice, o que me inspirou a viver na mata, no contexto
de ser uma das fundadoras da Comunidade do Santo Daime na Área de Proteção
Ambiental (APA) do Tarumã, na cidade de Manaus. Vimos desde o início dos
anos 90, participando e promovendo eventos, ritos e cerimônias em torno
do uso do Santo Daime, entre os quais o Encontro Xamânico Tecnologias do
Sagrado, em 1999; o Encontro do Xamanismo à Ciência, em 2001; o Encontro de
Xamanismo Guarani, em 2003; o Encontro de Xamanismo Siberiano, em 2007; e
vários outros com pajés, kumuãs e bayás do alto rio Negro, alto rio Javari, alto
rio Solimões e do Acre, entre eles Davi Kopenawa, Benke Pianko, Raimundo
Vaz, Kedácery Moreira, Higino Tenório e Gabriel Gentil. Xamãs da Colômbia, do
Peru, da Sibéria e dos Estados Unidos, entre eles, o líder indígena Aurelio Diaz
Tekpankalli, que também se fez presente.
Os eventos resultaram na fundação do Tekowa Taru’imã, espaço de realização
de ritos e cerimônias sistematizadas no calendário Guarani, com práticas de
intercâmbio com as culturas indígenas locais. Formamos um grupo de estudos
e trabalhos sob a coordenação da minha filha, Juliana Belota e do Ricardo Sá,
com calendários indígenas, o que resultou em produções artísticas, como o
CD de música étnica NGi’Ã TA NGUTAKÉEGÜ - União dos Povos, em Tikuna,
envolvendo cinco etnias: Tikuna, Tukano, Desana, Tariano e Sateré-Mawé5; e a
montagem da peça teatral “As Casas do Tempo: uma releitura do Mito Tukâno da
Criação”, Prêmio Edital de Montagem da Secretaria de Estado de Cultura/AM.
Além disso, realizamos diversos mercados culturais, BazArtes e feiras artesanais
com a apresentação de produtos da Vila Ceú do Mapiá, entre eles, o artesanato.
Vivi na comunidade de Vila Céu do Mapiá pelo período de um ano, quando
trabalhei na Escola Cruzeiro do Céu como professora. Desde que conheci o
Santo Daime, em 1991, sempre estive em contato com a vila, conectada com
a comunidade na sua, na nossa caminhada. O livro “Olho da Mata: manejo
do cipó-titica e sementes nativas na FloNA do Purus” é mais um passo nesse
sentido e, como disse no início, é resultado da experiência de vida que me leva
até o Mapiá. Reúne aspectos fundamentais da doutrina e da FloNA e perpassa

4 Líquido ocre-amargo, feito a partir de um cipó (Banisteriopsis caapi) e de uma folha


(Psychotria viridis), que existem naturalmente na floresta amazônica, é conhecido por nomes
e é utilizado pelas sociedades indígenas em rituais xamanísticos e de cura. (COUTO, 1989, p.
21).
5 O CD foi selecionado para apresentação no Espaço Brasil, no Ano do Brasil na França (2005).
« 28 »
relações, caminhos e parcerias, a busca pelo conhecimento que está por trás
das tramas, entrelinhas e entrelaçamentos dos cipós, lianas, palhas, sementes e
raízes dos povos tradicionais do Purus. No conjunto dessa trajetória do projeto
Olho da Mata, fundado pela mestre artesã, Arlete Maciel, sua trajetória de
pesquisa, voltada ao aproveitamento dos recursos florestais não madeireiros,
vamos nos aproximar das fases do projeto no decorrer da sua história e conhecer
um pouco das dificuldades econômicas e culturais, que também fazem parte da
constituição deste trabalho.
O livro está organizado a partir da reunião de atores da comunidade, da
liderança social da Arlete Maciel, da liderança espiritual e comunitária do
padrinho Alfredo Gregório de Melo. Inicia com o prefácio do poeta, escritor e
jornalista, membro da Academia Amazonense de Letras, Aldísio Filgueiras; o
prefácio e apresentação da professora, design em sustentabilidade, Graça Mitoso,
organizadora e proponente do livro no Edital nº 07/2020 - Concurso-Prêmio
Encontro das Artes - Lei Aldir Blanc - literatura, que tem por objetivo promover
ações emergenciais de enfrentamento ao SARS-CoV-2 (Covid-19), promovido
pelo Governo Federal, Secretaria Estadual de Cultura e Conselho Estadual de
Cultura; as apresentações do líder espiritual e comunitário, padrinho Alfredo
Gregório de Melo, que faz a abertura do livro; e da mestre artesã, Arlete Maciel,
assinada pela artista Israelita e professora, Nancy Katz, junto à neuropsicóloga
Maria Belota, que faz uma breve biografia da mestre artesã.
São autores convidados, pesquisadores, ambientalistas que atuam na
Amazônia. Dentre eles, o geógrafo, ambientalista e diretor da World Conservation
Society (WCS), Carlos César Durigan, que no primeiro capítulo aborda o tema:
“O cipó-titica no Amazonas: conhecimento, importância e manejo”; a jornalista
e socióloga, pesquisadora colaboradora do Rede Fauna, Juliana Belota, que no
segundo capítulo fala sobre “Manejo da vida: cipó-titica e sementes nativas na
Vila Céu do Mapiá”; o ecólogo, ambientalista, aluno de doutorado egresso do
Programa de Pós-Graduação Biologia de Água Doce e Pesca do Interior (BADPI-
INPA), Boris Marioni, que faz um relato sobre “Sustentabilidade no Purus”; a
design de biojoias, Maria Oiticica, proprietária da marca Maria Oiticica Biojoias
que, no quarto capítulo faz um relato da experiência de sucesso com a marca
Maria Oiticica Biojoias, no Rio de Janeiro, com o tema “A história da Maria
Oiticica Biojoias”; Graça Mitoso, com atuação na Escola Cruzeiro do Céu, Na
vila Céu do Mapiá, na FloNA, que reúne vozes artesãs no quinto capítulo, com
o tema “Perspectiva ecológica: vozes artesãs”, traçando um painel dos artesãos
do projeto Olho da Mata e revelando um pouco sobre o seu protagonismo na
FloNA; e a mestre artesã, Arlete Maciel, fundadora do projeto Olho da Mata e

« 29 »
gestora do projeto Curumim&Cunhatã, entre os Apurinã, que no sexto capítulo
faz uma cronologia das principais ações do projeto.
O propósito deste livro “Olho da mata: manejo do cipó-titica e sementes
nativas na FloNA do Purus” é fazer um breve registro do artesanato, passando
pela trajetória da mestra artesã, Arlete Maciel, fundadora do projeto em 1990,
em Rio Branco, na comunidade do padrinho Sebastião Mota de Melo, a Colônia
Cinco Mil, passando por todo o seu percurso de intercâmbio com as comunidades
do Santo Daime em Boca do Acre, na Vila Céu do Mapiá, nos Estorrões, no
Juruá, ao lado do padrinho Alfredo Gregório de Melo6 e junto aos Apurinã, no
baixo Purus. Atualmente, em parceria com Christiana Braconnot, coordenadora
da Oficina de Beneficiamento de Sementes da comunidade Vila Céu Estorrões,
Arlete Maciel e o projeto Olho da Mata, desenvolvem coleções de produtos do
artesanato, calcados no manejo do tucum e do cipó-titica.
Como não poderia deixar de ser, inicio o livro contando um pouco sobre o
meu contato com a Vila Céu do Mapiá e com o projeto Olho da Mata. Falo sobre
a jornada inicial do percurso de chegada na Floresta Nacional que, ao longo dos
anos, visito sempre e compartilho alguns bons momentos, além do período em
que cheguei a morar na vila, dando aula na Escola Cruzeiro do Céu, pela Seduc/
AM.
Enfim, este livro não abrange toda a experiência de revitalização do cipó-
titica e sementes nativas, na FloNA do Purus, mas é uma parte significativa dela
a partir da ótica do projeto Olho da Mata, centrado na narrativa de vivência e
trajetória da mestre artesã, Arlete Maciel, no resgate dos saberes tradicionais
localizados na vila e/ou no entorno dela, na bacia Purus-Juruá. É voltado à
caminhada das artesãs (os), à construção de um projeto de artesanato em Vila
Céu do Mapiá, ao manejo do cipó-titica e das sementes nativas, às suas dores,
sabores e esperanças. Ganha destaque a artista plástica Karina Henestrosa, que
vem investindo e desenvolvendo um efetivo trabalho de formação na área da
educação em artes plásticas com a mestre artesã, Arlete Maciel, no Jardim da
Natureza.
A ideia inicial do livro partiu da necessidade de interagir com a comunidade
neste momento de pandemia, mobilizando artistas, artesãos e jovens protagonistas
da comunidade em uma dimensão de esforços da Lei Aldir Blanc, destinada a
atender artistas de localidades longínquas do Amazonas. Esta produção também
resulta de uma ação em parceria com a Secretaria Estadual de Cultura, com
o município de Pauini, mais especificamente, na FloNA do Purus, uma forma
de ampliar a capilaridade e os horizontes dos povos da floresta, sobretudo em
6 Alfredo Gregório de Melo é filho do padrinho Sebastião Mota de Melo, atualmente líder
espiritual e comunitário da Vila Céu do Mapiá.
« 30 »
relação aos eixos de ação da secretaria, das culturas caboclas e ribeirinhas.
Vale ressaltar que este livro é um um traço de memória do processo de uso e
preservação dos recursos florestais não madeireiros nessa comunidade, que é
objeto de preservação da memória ancestral do uso do Kahpí7 ou ayahuasca,
base de diversas culturas étnicas amazônicas.

Meu encontro com a Vila Céu do Mapiá


Começo este trabalho narrando o meu encontro com a Vila Céu do Mapiá,
em dezembro de 1992, quando da minha viagem ao Acre para o centenário do
Mestre Irineu, no Alto Santo, em Rio Branco. Foi ali, naqueles lindos festejos,
que conheci de modo especial a madrinha Cristina Raulino, moradora da Vila
Céu do Mapiá, líder espiritual da Doutrina do Santo Daime, de quem recebi o
convite para entrar no Mapiá logo após o Centenário. Tive uma grande alegria
ao conhecer aquela senhora que, com brandura e amor, enchia-me de confiança
e firmeza para seguir adiante.
Consagrei o Santo Daime pela primeira vez, levada pela minha filha Juliana,
em outubro de 1991. Havia passado por Manaus uma comitiva do padrinho
Alfredo, acompanhada pelo padrinho Manoel Gregório de Melo, sua filha
Ruthlene, o psicólogo Luiz Fernando, sua esposa Lúcia Arruda, e o Daniel Lopes,
médico acupunturista, argentino. O trabalho foi na casa do diretor de teatro,
cenógrafo e ator Nonato Tavares (Shamindra), que havia recém-chegado da
Índia, do Rajneeshpurã (Ahsram do mestre espiritualista, Rajneesh8), conduzido
por Beatriz Carvalho (Ma Prem Rama) e Marcio Porto dos Santos (Amrit Jalal),
todos três sannyasins, acompanhados de outros discípulos do Osho na ocasião.
Os três se conheceram na Índia e vieram juntos para Manaus, com o objetivo de
abrir um centro do Santo Daime. Na época, o que havia era uma ‘semente’, uma
clareira na mata, na rua Caravelle, Tarumã, onde, depois, veio a se constituir
a igreja do Santo Daime em Manaus, Centro Eclético da Fluente Luz Universal
Manoel Gregório da Silva (CEFLUMAGRES), do qual fui uma das fundadoras e
a primeira presidente.

7 Kahpí. As medicinas do tabaco, do kahpí e do Ipadú são os alimentos da criação, no banco


dos criadores, na Casa da Terra. (Séribhi, Gabriel Gentil, 2000).
8 Rajneeshpuram é a comunidade religiosa intencional no condado de Wasco, Oregon,
incorporada como uma cidade entre 1981 e 1988. Sua população consistia inteiramente de
Sannyasins, seguidores do mestre espiritual Rajneesh, mais tarde conhecido como Osho
Irradiando Luz. Disponível em https://irradiandoluz.com.br/2018/04/osho-rajneeshpuram-
eua.html. Acesso em: 04 abr. 2021.
« 31 »
O Santo Daime foi um marco na minha vida, transformou a minha existência
e me possibilitou uma nova maneira de ser e estar no mundo. Ele amalgama
todo um projeto de vida voltado à sustentabilidade ambiental para a educação
e a arte, na comunidade.
O centenário do Mestre Raimundo Irineu Serra foi um aprofundamento
espiritual, um despertar das minhas raízes amazônicas, do meu ser, da minha
ancestralidade. Reuniam-se na ocasião a Colônia Cinco Mil, igreja fundada pelo
padrinho Sebastião Mota de Melo, e a Barquinha, igreja fundada pelo mestre
Daniel Pereira de Matos, no Alto Santo, lugar onde ocorreram as comemorações
do Centenário, reunindo todas as igrejas ayahuasqueiras do Acre e de outros
estados. Estavam presentes várias lideranças de segmentos ayahuasqueiros
distintos, além das lideranças da Comunidade de Vila Céu do Mapiá, como o
nosso líder espiritual, padrinho Alfredo Gregório de Melo e sua comitiva, do
padrinho Alex Polari, líder comunitário do Céu da Montanha, em Mauá, do
antropólogo, padrinho, Fernando La Roque, líder da comunidade do Céu do
Planalto, entre outros.
A convite da Madrinha Cristina, resolvi que esticaria a viagem até o Céu
do Mapiá. Senti o chamado para conhecer a vila onde estava sediada a atual
comunidade fundada pelo padrinho Sebastião. Junto com meus dois filhos
gêmeos de 13 anos de Idade, André Luiz e Maria de Jesus, segui adiante até o
Município de Boca do Acre (6 horas de viagem), de ônibus, para depois viajarmos
de rabeta pelo rio Purus, entrando no igarapé Mapiá.
A Vila Céu do Mapiá9, localizada a 30h de viagem fluvial da sede do município
de Pauini, está localizada na Floresta Nacional do Purus (FloNA do Purus), na
zona rural do Município de Pauini. A vila ocupa uma bifurcação do igarapé
Mapiá e fica distante dos centros urbanos. A capital mais próxima é Rio Branco,
no Acre, que fica a dois dias de viagem da Vila, dependendo da estação do ano.
A comunidade é formada por ex-seringueiros, filhos de soldados da borracha,
ribeirinhos, a maioria agricultores familiares e seguidores do Santo Daime e do
padrinho Sebastião de outras localidades do Brasil e do mundo. Atualmente, a
comunidade conta com cerca de 1000 moradores distribuídos entre a vila, três

9 A Vila Céu do Mapiá, fundada em 1983 por Sebastião Mota de Melo e outras famílias,
como a de Manuel Corrente da Silva, Paulo Carneiro da Silva, está situada nas cabeceiras
do Igarapé Mapiá, a 30 km do Rio Purus, na Mesorregião do Sul Amazonense, entre a
Microrregião do Purus e a Microrregião da Boca do Acre, no município de Pauini. A vila
localiza-se dentro da Reserva Nacional do Inauini, Pauini - uma das mais preservadas áreas
da Amazônia ocidental brasileira. Em 1990, com a aprovação da comunidade, o governo
brasileiro criou com o Decreto n° 96.190, de 21 de junho de 1988, a Floresta Nacional do
Purus, numa área de 256.000 ha, tendo a Vila Céu do Mapiá como uma espécie de capital.
Fonte: Wikipédia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Vila_C%C3%A9u_do_
Mapi%C3%A1. Acesso em: 23 mar. 2021.
« 32 »
núcleos comunitários localizados na boca e ao longo do igarapé Mapiá, além de
algumas colocações no rio Purus.
Fizemos a viagem de Rio Branco a Boca do Acre de ônibus. Uma aventura. O
ônibus estava bem lotado, mas esse não era o problema. A viagem foi silenciosa,
bem do jeito caboclo. Todos estavam sentados, mas junto com alguns passageiros
iam galinhas, alimentos e até um bode, entre outros pertences. O ônibus era
o famoso pinga-pinga, porque era usado por moradores da área rural como
transporte para ir de uma locação a outra. Em cada parada descia um tanto e
subia outro tanto de gente. Na divisa entre o Acre e Amazonas, fizemos uma
parada, era o posto fiscal. Saímos todos do ônibus para revista e cada um tinha
que carregar sua mala para verificação. Tudo uma grande novidade para mim e
para meus filhos. Não havia carregadores. Nós tínhamos que dar conta de nós e
dos nossos pertences, embaixo de um sol de meio dia, entre pessoas e animais.
A viagem durou cerca de oito horas. Chegamos em Boca do Acre exaustos,
querendo e merecendo um bom banho. Para nossa alegria, conseguimos um
simpático hotel pousada, o Hotel Rosas, em madeira colorida, estilo palafita.
Uma coisa linda, todo colorido, com dois pisos e um avarandado aos fundos
que dava para o rio Purus. Tinha somente um banheiro por andar para atender
a todos os hóspedes, mas era bem limpinho, bem cuidado. A maravilha foi a
caldeirada de tucunaré servida no jantar pelo restaurante ao lado. Dormimos.
Pela manhã, orientada pelos mapienses, compramos capas de chuva, toalhas de
banho, mosquiteiros e alguns apetrechos para seguir viagem. Havia um armazém
da comunidade onde abastecemos o barco. Era do Alex Pereira, compadre dos
irmãos daimistas, onde fizemos um rancho para compartilhar com a família com
a qual iríamos nos hospedar.
Ainda pela manhã, pegamos a Ariramba, uma canoa rabeta, a última
construída por nosso líder espiritual, Sebastião Mota de Melo, e viajamos com
D. Regina Pereira, moradora da comunidade, que acompanhou o Padrinho
Sebastião desde a antiga comunidade, a Colônia Cinco Mil. Ela residia e ainda
reside na antiga casa do Padrinho Sebastião, uma casa grande, ligada por um
corredor com a casa onde morava outrora o atual líder do Santo Daime, Padrinho
Alfredo Gregório de Melo, com sua família, e Pedro Gregório de Melo, também
com sua família, filhos do padrinho Sebastião.
Durante a viagem, dona Regina, que aí já era minha madrinha, também
ia cuidando de todos nós. Quando a fome apertou, ela abriu uma lata com
farofa de frango e dividiu entre nós. Logo me convidou para ficar hospedada na
casa dela, ao lado da casa do Padrinho Alfredo. Aceitei de pronto o convite. A
casa era linda, muito agradável, na chegada da Vila, onde eram recepcionados

« 33 »
os visitantes. Dona Regina e seus filhos, Ronaldo Pereira e Sheila Rocha nos
receberam com acolhimento afetuoso.
A viagem pelo rio Purus até a boca do Igarapé Mapiá foi tranquila. O
tempo era de chuva e uma neblina suave caía sobre nós, que, silenciosos,
apreciávamos a paisagem. Eram várias canoas com as famílias navegando no rio
Purus, retornando para a Vila Céu do Mapiá, após o Centenário. Uma belíssima
paisagem! A chuva engrossou, mas todos nós ficamos encolhidinhos na canoa,
cobertos por uma lona e bem tranquilos no seguimento da viagem. Logo, a
chuva serenou e chegamos na primeira colocação do igarapé Mapiá, a Fazenda
São Sebastião.
Já estava anoitecendo. Cada um subiu com sua bagagem e meu filho André
Luiz, com 12 anos de idade, assumiu a responsabilidade do transporte das
malas. O barranco estava bem escorregadio e André, quase chegando em cima
do barranco, escorregou e deslizou barranco abaixo com as malas. Juliano e Lila,
amigos de Brasília, da Igreja Céu do Planalto, centro daimista onde fui fardada,
em 1992, me ajudaram a agasalhar os meninos na igreja, onde os viajantes
armavam suas redes.
Maria dormiu numa caminha embaixo da rede de Lila, e André n’outra
caminha, embaixo da rede do Juliano, todos com mosquiteiro. Eu ainda não
sabia direito aonde eu ia dormir até o momento da chegada do líder espiritual
da comunidade, Francisco Corrente (o tio Chiquinho), amado por todos que o
conheceram. Ele me levou até a sua casa e apresentou-me à sua esposa, Iolanda,
que me convidou para pousar ali, na casa deles. Arrumaram um cantinho
para o meu pernoite. Tudo arrumado, tomamos banho na cacimba, com mais
outras mulheres do grupo, todos com lanternas na mão. Na Cacimba, conheci a
Raimunda Corrente, companheira de todas as horas e pessoa de fineza admirável.
Acordamos pela manhã, após um pequeno desjejum com boas bananas e um
pouco de farofa de jabá. Nos despedimos, tudo era encantador e muito diferente
ao redor daquele que era um povo da floresta. Seguimos viagem passando por
várias colocações, incluindo uma Cachoeira, locação do Padrinho Valdete, onde
iria voltar posteriormente, até chegarmos a Vila Céu do Mapiá.
Já era o dia 23 de dezembro do ano de 1992. Passamos nosso primeiro Natal,
a noite todinha cantando o Hinário do Mestre Irineu, dentro do Igarapé Mapiá,
na floresta, com todos os seus encantos. Para mim foi uma grande emoção estar
na beira do Purus, na Floresta Nacional, numa vila, em vivência de comunhão
com a floresta, nesse dia. Um profundo encontro com a natureza e com o meu
próprio ‘eu divino’. Um lindo “presente de natal” cantar o hinário do mestre
Raimundo Irineu Serra com minha família, na noite de natal, com grandes
revelações da rainha da floresta.
« 34 »
No dia 25, após o hinário, fomos convidados a comer juntos um bolo com o
grupo de Brasília - como é comum nesses festivais da doutrina, quando ocorre
um grande encontro de buscadores e seguidores de todos os estados do Brasil
e de diversos lugares do mundo, as pessoas se encontram para comer juntos e
passar as horas. Alessandra Lucena, Daniela Leal e a atriz Gilda Ferraz, do Rio
de Janeiro, já moravam na comunidade havia algum tempo.
Foi maravilhosa nossa estadia na vila. Logo conheci o Vô Corrente (Manoel
Corrente), soldado da borracha, conselheiro e mestre ensinador da arte de plantar,
e suas filhas, Francisca Corrente, Dalvina e Albertina, além de Maria Eugenia,
sua discípula, mineira que morava na vila com a sua filha Rita. Conheci a nossa
matriarca, madrinha Rita Gregório de Melo, seus filhos, padrinho Valdete, Zé
Mota, Pedro Mota, Isabel, Neves, Marlene e Iracema; e madrinha Júlia Gregório,
responsável por manter a tradição dos rituais, e seus filhos; conheci a madrinha
Sílvia, Jaci, mãe da Glorinha, os filhos e filhas da madrinha Cristina, a madrinha
Maria Brilhante e seus filhos; conheci a italiana Marina, que logo me colocou
uma enxada na mão para trabalhar em sua horta; a artista plástica Verônica, a
Tôca, a Vó Biná, mãe da Lúcia Arruda e da professora, Cláudia Arruda; e muitas
outras pessoas gentis e amorosas que habitam a vila.
Tive o primeiro contato com a Escola Cruzeiro do Céu na época em que ainda
não era reconhecida pela Secretaria de Educação. Como professora da Secretaria
de Educação, tomei como propósito o trabalho de reconhecimento e oficialização
da escola, hoje Escola Estadual Cruzeiro do Céu, onde, posteriormente, trabalhei
como professora pela Secretaria de Estadual de Educação (Seduc/AM).
A vila conta também com a cozinha geral, hoje Cozinha da Soberania, e
posto de saúde. Este, na época, era administrado pelos médicos José Luiz e
Daniel Lopes Argentino, enfermeiro e acupunturista que atendia a comunidade.
A saúde dos moradores da vila era cuidada especialmente pelas plantas,
remédios caseiros das nossas tradições, embora fossem capazes de realizar
atendimentos ambulatoriais e suprir até emergências. Conheci o seu João
Baé; Maria Alice Freire 10 (dos caboclos11), como era chamada, fundadora do

10 Maria Alice Freire liderou o processo de fundação do Centro Medicina Floresta, iniciado em
1990 por um grupo de mulheres e jovens, com sede na Vila Céu do Mapiá. O CMF adquiriu
personalidade jurídica em 1997 e, a partir de então, ampliou seus horizontes, passando a
interagir com outros atores sociais, desenvolvendo parcerias tanto na Amazônia quanto no
cenário brasileiro e internacional. Fonte: Centro Medicina da Floresta. Disponível em: https://
www.floraisdaamazonia.com.br/sobre-instituto. Acesso em: 28 fev. 2021.
11 Iniciou seu caminho espiritual na linha da Umbanda, na integração das tradições indígenas
americanas, africanas e cristãs. [...] Continuando a seguir as pegadas de seus ancestrais e sua
guia espiritual, foi levada à Amazônia, com o propósito de aprofundar sua iniciação com a
bebida sagrada tradicional dos povos originarios da Amazônia. Viveu 23 anos no interior da
floresta, na vila Céu do Mapiá, onde trabalhou na integração das linhas do Santo Daime e da
« 35 »
Centro de Medicina da Floresta; o sociólogo Lúcio Mortimer, que organizava os
mutirões da comunidade, um dos fundadores da Rádio Jagube. Passei 30 dias na
comunidade. Meus filhos se sentiram felizes, andavam livres pela comunidade,
fizeram vários amigos e, quando retornei, minha filha Maria de Jesus pediu
para ficar na comunidade até o final de suas férias escolares. Conversei com
nossa matriarca madrinha Rita e ela imediatamente concordou. Maria ficou de
dezembro ao final de fevereiro.
Esse foi o meu primeiro encontro com a Vila Céu do Mapiá. Nessa época,
não circulava dinheiro dentro da vila. A base da alimentação era mandioca,
jerimum, taioba, rapadura, ovos das galinhas que os moradores criavam. O
arroz e o feijão eram produzidos numa colocação no rio Purus, pelo padrinho
Nel (Manoel Gregório da Silva), irmão da Madrinha Rita e marido da Madrinha
Cristina. Da cidade de Boca do Acre vinham complementações como biscoitos,
leite, óleo, café etc., através da cooperativa.
No decorrer dos anos, todos os meus filhos visitaram a vila e participaram de
alguma forma da arte cabocla de viver dos moradores da vila. Meu filho Marcelo
Augusto, nos dias que esteve na vila, vivenciou o início da obra da construção
da casa do nosso líder espiritual, padrinho Alfredo; André Luiz tornou-se um
violeiro, estudioso dos hinos, tendo como mestre o Tiê Veríssimo e o Roberval
Raulino, filho da madrinha Cristina. Sempre estivemos muito próximos. Eles
também fizeram muitas visitas a Manaus para tratar da saúde e de assuntos da
comunidade junto ao governo.
Voltei várias vezes à comunidade na década de 90 e, nessas viagens, fui
conhecendo um pouco mais. Visitei o Paraíso, a colocação do seu Pedro Zacarias,
mestre na arte de fazer canoa e artesanato com cipó-titica, e sua esposa Francisca
Corrente, com quem, anos depois, morei quando estava trabalhando como
professora na Escola Cruzeiro do Céu. Banhei-me nas águas frias do Repartição.
Atravessei a mata, o alagado e as tucandeiras, que me deram as boas-vindas,
igarapés de águas frias. Ouvi o esturro da onça, o roçado, levada por Jussara,
neta de Francisca Corrente. Subi o igarapé Repartição até o Paraíso, na canoa da
Francisca, onde banhei-me em águas profundas, frias.
Na década de 90, o artesanato era realizado informalmente na vila. Havia a
Casa de Costura sob a direção da Tereza, uma portuguesa que escolheu viver na
comunidade, ensinando a arte de costurar e de fazer não só as fardas utilizadas
nos rituais do Santo Daime, mas também o crochê, o tricô e o tear. Havia a
Casa de Ofício, onde alguns artesãos trabalhavam com resíduos de madeira,

Umbanda. Fonte: Escola Shinkyiu Dojoh. Disponível em: https://www.escolashinkyudojoh.


com.br/escola-shinkyu-dojoh/equipe/professores-convidados-especiais/maria-alice-campos-
freire/. Acesso em: 29 fev. 2021.
« 36 »
incluindo o sr. Manoel Morais e Dario Ibaceta. Adriano Grione e Arlete Maciel
já trabalhavam com sementes e produziam artesanato em Rio Branco e Boca
do Acre. O seu Pedro Zacarias trabalhava com tecelagem, com palha e cipós,
produzindo cestos e outros utensílios. Produzia também canoas, arte que vem
dos primórdios da comunidade, feita pelo padrinho Sebastião e seu Pedro
Zacarias, no Paraíso.
Em 1998, com a Escola de Arte e Saberes Florestais Jardim da Natureza
criada pelo padrinho Alfredo Gregório de Melo, com apoio de trabalhos
voluntários, doações e parcerias dos vários visitantes da vila, abre-se o espaço
para o desenvolvimento de atividades e estudos voltados às formas alternativas
de uso das espécies nativas, beneficiamento de frutas, extração artesanal de
óleos, identificação de espécies e orquidário.
A educação ambiental é a base de todas as atividades da Escola de Arte
e Saberes Florestais Jardim da Natureza, onde funciona a Oficina-Escola do
projeto Olho da Mata. A Escola atua em um programa destinado à gestão dos
recursos florestais não madeireiros.
Em 2005, retornei ao Mapiá, por um período de um ano, e fui lotada na
Escola Cruzeiro do Céu, pela Seduc. Participei como professora das primeiras
reuniões na elaboração do plano de manejo, atuando juntamente com meus
alunos de várias oficinas.
Nesse período, vivi na casa da mad. Francisca Corrente, filha do Vô Corrente,
uma madrinha que atua na fiscalização dos trabalhos da igreja e do terreiro.
Descíamos pela manhã até o Igarapé Repartição para lavar roupa; encontrávamos
sua irmã, a Madrinha Maria Corrente, e lavávamos a roupa enquanto papeávamos
e banhávamos nas águas frias do igarapé.
Subíamos o barranco carregando os baldes para estender a roupa na parte
de cima do barranco, próximo da casa. Depois, já ia me organizando para ir
à escola. À tardinha, fazíamos a oração com a madrinha Júlia no túmulo do
padrinho Sebastião, ou passávamos na casa da madrinha Rita para agradecer a
Deus por mais um dia.

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« 38 »
O cipó-titica no Amazonas:
conhecimento, importância e manejo
Carlos Durigan

O cipó-titica
Para muitas regiões do Brasil, titica é um termo com um significado
pejorativo e se refere a algo sem valor, desprezível, e assim está registrado em
tantos dicionários. Na Amazônia, cipó-titica é o nome de uma planta de grande
valor, e quanto mais se torna conhecida, mais se entendem os motivos para tal.
Referência entre tantas culturas indígenas e não indígenas, registrada
na literatura histórica, etnográfica e científica, ainda se tem dificuldades em
conhecê-la na sua plenitude, inclusive em relação à sua origem e significado de
seu nome. Durante pesquisas em campo, a curiosidade me levou a questionar
muita gente sobre tantos aspectos do cipó-titica, incluindo o significado ou a
origem desse nome, tão usado largamente em toda a região.
O que consegui dos mais antigos é que titica seria referência à forma de
descascar, esfregando ou dando uma leve torcida no fio para que sua casca
se solte. Assim tenho entendido a origem do seu nome desde então, um cipó,
como assim são chamadas as plantas que têm caules e/ou raízes pendentes
das árvores na floresta, mas diferenciando-se por suas características de uso e
formas de processamento (DURIGAN, 1998; DURIGAN; CARVALHO, 2004).
« 39 »
Outro ponto é que não existe apenas uma espécie de cipó-titica e estas
são geralmente identificadas por manejadores locais, conforme algumas
características que as distinguem. Para quem vive e conhece a Amazônia, é
comum encontrar nomes diferentes para uma mesma planta, ou mesmo
variações de nomes quando há alguma característica que se diferencia de outra.
Sendo o cipó-titica um nome comum para muitas espécies de plantas, algumas
mudanças nas características das plantas geraram nomes diferenciados e que
fazem a distinção de dois grupos de espécies: o cipó-titica, que possui suas
raízes mais flexíveis e finas e são mais fáceis de processar; e o cipó timbó-açu
ou titicão, que são os cipós-titica que possuem raízes mais grossas e menos
flexíveis. Ambos os grupos têm sua forma de processamento e uso distintos.
Essas especificidades serão tratadas mais adiante.
Na minha experiência com conhecedores e manejadores das plantas
no Amazonas, concebem-se dois grandes grupos de cipó-titica. Outras
características são conhecidas e observadas por esses manejadores, como folhas
mais ou menos estreitas, plantas que formam touceiras maiores, inflorescências
mais longas, mudança de tom
nas cores das flores, enfim, uma
série de outras características que
podem ser usadas para identificar
as etnoespécies, de um modo geral.
Encontrar plantas de cipó-titica
floridas ou frutificando é difícil
e demanda esforço e paciência.
Convivi com muitos manejadores
de cipó que relatavam não conhecer
suas flores, frutos ou sementes.
Quando conversávamos sobre
germinação da planta, muitos
recorriam a um mito de origem
bem interessante. Em muitas
culturas amazônidas, o cipó-titica
é gerado pela formiga tucandeira
que, ao morrer presa a um tronco,
seu corpo se transforma na planta
e suas pernas em suas raízes.
Com essa base mitológica, muitos
manejadores buscavam explicar
sua germinação.
« 40 »
Essa relação é muito interessante e, durante
muitos anos, atuando em trabalhos na floresta
na companhia de manejadores e, também, de
cientistas de diversas áreas, registrei não apenas
tucandeiras, mas diversos insetos mortos sobre
troncos com pequenos fios brotando de seus corpos.
Investigando mais a fundo, constatei que se tratava
de um fenômeno não raro na região, quando fungos
do gênero Cordyceps atacam insetos e estes, ao
morrerem, têm sobre seus corpos emissões de hifas
ou pequenos filamentos. Assim, pude associar o mito
da origem do cipó à transformação da tucandeira,
fenômeno já registrado na literatura (ANDRADE, 1980).
Do ponto de vista da ciência da sociedade envolvente, o cipó-titica é
classificado como parte de um grupo de espécies do gênero Heteropsis, que
pertence à família botânica das aráceas (Araceae). As aráceas são plantas
herbáceas e que apresentam uma grande variedade de formas de vida. São bem
conhecidas globalmente pelo uso que se faz de algumas espécies, servindo como
alimento (é o caso do inhame – Colocasia esculenta) e para o cultivo ornamental
(como o antúrio – Anthurium andreanum), dentre outros usos.
Representantes da família botânica Araceae podem ser encontrados em
quase todo o planeta e com grande representatividade em ambientes tropicais.
Na Amazônia, já são registradas centenas de espécies de aráceas. O gênero
Heteropsis foi, por muito tempo, um quase desconhecido para a ciência global,
visto que sua diversidade de espécies por muito tempo não era bem conhecida.
Há décadas, cientistas se esforçam para descrever as diferentes espécies já
inventariadas e entender a sua variabilidade, buscando classificá-las de forma
coerente. Somente há alguns anos que um melhor registro foi concluído por um
grupo de cientistas liderados por uma botânica do INPA (Instituto Nacional de
Pesquisas da Amazônia), responsável pelo avanço nesse conhecimento. O grupo
classificou até o momento 18 espécies e uma variedade de plantas do gênero
Heteropsis (SOARES et al., 2019).
Apesar de distintas, algumas características, história natural e comportamento
dessas espécies são similares a todas, assim como já observavam manejadores
e conhecedores tradicionais. Por esse motivo, destacarei esses aspectos gerais,
comuns a todas as espécies e etnoespécies observadas.
O cipó-titica ocorre em toda a região amazônica e está associado às florestas
de terra firme íntegras. Muito provavelmente, isso se deve à coevolução dessa
espécie e de outras nesse tipo de ambiente. Uma característica do desenvolvimento
« 41 »
da planta é que, em uma fase inicial, a planta germina no solo da floresta e
busca por uma outra planta que será o seu suporte durante a vida. Sua ligação
com o solo da mata é permanente, desde o momento da germinação, e, apesar
de seu crescimento vertical sobre um tronco arbóreo, a planta atinge a altura do
dossel da floresta, ultrapassando, em muitos casos, os 20 metros de altura. Ela
se mantém conectada ao solo por suas longas raízes aéreas (PLOWDEN; UHL;
OLIVEIRA, 2003; DURIGAN; CARVALHO, 2004).
O cipó-titica é uma planta hemiepífita, isto é, sua forma de vida depende de
uma árvore suporte para se prender e da sua ligação com o solo através de raízes
alimentares. A planta do cipó-titica tem sua germinação no chão da floresta e,
durante seu crescimento, desenvolve-se como um ramo flageliforme que busca
um tronco onde se prende por raízes de sustentação.
As plantas em geral, na sua fase inicial de vida, ao germinar, crescem em
direção à luz. O cipó-titica, na sua fase inicial de vida, busca por sombra, ou
seja, busca por um tronco para se fixar. Esse fenômeno é conhecido no meio
científico como eskototropismo e é observado em muitas aráceas. No momento
em que seu ramo se fixa a um tronco, a planta assume a busca por luz, fenômeno
conhecido como heliotropismo. No seu crescimento vertical em busca de luz,
agarra-se firmemente ao tronco e, durante sua subida, vai gerando raízes aéreas
alimentares, cuja finalidade é nutrir e hidratar a planta.
A partir do amadurecimento da planta e à medida que vai se distanciando
do solo no seu crescimento, mais e mais raízes aéreas vão se formando. Quando
a planta atinge a copa da árvore hospedeira, ela já conta com dezenas de raízes.
Pude encontrar em trabalhos de campo plantas de cipó-titica com mais de 40
raízes alimentares (DURIGAN, 1998; DURIGAN; CARVALHO, 2004; PLOWDEN;
UHL; OLIVEIRA, 2003; SOARES; MAYO; GRIBEL, 2013). Suas flores e frutos
surgem em ramos horizontais laterais que vão brotando ao longo de seu caule.
As flores são formadas por uma espádice semienvolta em uma espata e seus
frutos surgem na espádice, que é um tipo de inflorescência em formato de espiga.
O cipó-titica parece ter uma relação forte também com várias espécies
animais. Essas espécies o utilizam como fonte de alimento e geram um
comportamento na planta em resposta às diferentes predações que sofre. Suas
raízes aéreas costumam ser atacadas por besouros da família Curculionidae. A
resposta da planta a isso é a capacidade regenerativa das suas raízes aéreas, que
formam protuberâncias (nós). A partir desse fenômeno, novos segmentos de
raízes se formam. Suas flores e frutos são muito atacados por diversos insetos e
até vertebrados, como primatas e marsupiais, o que pode explicar a dificuldade
de se encontrar na floresta plantas floridas ou com frutos.
« 42 »
Tantas características singulares fazem do cipó-titica um grupo de espécie
de plantas muito especial. Sua importância vem sendo destacada pelos povos
amazônicos há gerações.

Do uso tradicional à crescente


demanda comercial
Fibra de grande resistência, o cipó-titica é comumente utilizado por diversas
culturas amazônicas para a produção de utensílios diversos, como cestarias,
armadilhas para peixes, vassouras e ainda serve de amarração de estruturas. Já
foi muito utilizado como matéria essencial para a construção de moradias.
Seu uso é amplamente difundido entre as centenas de culturas indígenas
amazônicas e foi bem assimilado pelas populações
não indígenas assentadas na região ao longo
dos últimos séculos. Por muito tempo, foi
abundantemente encontrado nas florestas de terra
firme, onde é comum a sua ocorrência. No entanto,
a estruturação de cadeias produtivas comerciais na
região, é mais forte a partir do início do século XX,
quando comerciantes urbanos perceberam o seu
potencial de uso na movelaria, o que levou a um
crescimento gradual da sua exploração. Ao mesmo
tempo em que o uso no dia a dia das comunidades
foi sendo reduzido devido à substituição por outros
materiais, o cipó-titica passou também a figurar
como um dos produtos extrativistas das cadeias de aviamento espalhadas por
toda a região para fins de abastecimento de pequenas indústrias moveleiras e
de vassouras (PLOWDEN; UHL; OLIVEIRA, 2003; DURIGAN; CARVALHO, 2004;
SCIPIONI et al., 2015).
A transformação do cipó-titica em um produto comercial gerou uma forte
pressão de exploração. Tanto pelas suas características biológicas quanto pela
forma de exploração sem o manejo adequado, constatou-se a diminuição da
população da planta em muitas regiões, principalmente nas últimas décadas.
Logo, o cipó-titica passou a figurar como o principal produto extrativista de
mercado para muitas comunidades.
Em várias comunidades indígenas e não indígenas da região, é comum a
prática do manejo do cipó-titica. Sabe-se que a retirada da totalidade de suas
raízes para o uso leva a planta à morte, por isso, em várias culturas existem
« 43 »
recomendações para que se deixem fios de raízes nas plantas exploradas, assim
elas permanecem vivas e podem voltar a produzir mais fios para o uso. Esse
conhecimento tradicional foi norteador para os estudos científicos e acadêmicos,
responsáveis pela identificação do potencial de manejo sustentável do cipó-titica
para fins comerciais.
Historicamente, relatos dão conta do uso versátil do cipó-titica para diversos
fins. Na cestaria, povos indígenas o têm como uma matéria-prima nobre e
produzem com ela cestos que podem durar décadas. Esse é o caso do cesto
cargueiro dos Hupda do rio Negro e dos aturás dos Yanomami, entre tantos
outros povos. Armadilhas de peixes em corredeiras fortíssimas do alto rio Negro
têm suas estruturas amarradas com cipó-titica, assim como grandes malocas
tinham suas estruturas fixadas também com a fibra.
O uso do cipó-titica na indústria moveleira ganhou força a partir dos anos 50
e 60, e, desde então, essa planta tem sido muito procurada por artesãos não só
da Amazônia, mas de outras regiões, como Sul e Sudeste do país. O cipó-titica é
um substituto de outras fibras vegetais, como a do vime e do ratan na produção
de objetos e móveis.
Infelizmente, a cadeia comercial do cipó-titica se estabeleceu apenas
atendendo à demanda crescente, mas sem propor ou definir práticas de manejo
para esse fim. Grandes extensões de florestas passaram a ser vasculhadas em
busca de cipós e, na maioria dos casos, a velha prática de manejo tradicional
deixou de ser utilizada, ocasionando a escassez do cipó-titica em muitas regiões.

Caminhos para o manejo


Nos anos 90, algumas frentes de estudos se abriram no sentido de buscar a
organização do conhecimento sobre o cipó-titica para que propostas de manejo,
em bases sustentáveis, pudessem ser construídas. À época, já existiam trabalhos
sendo realizados na construção da sustentabilidade do extrativismo vegetal da
floresta e junto a povos amazônicos indígenas e não indígenas. O objetivo era
identificar formas de valorização do uso tradicional da floresta e seus recursos.
Destacaram-se nesses anos o incentivo à exploração dos chamados produtos
florestais não madeireiros, incluindo as fibras vegetais, que ganharam muito
destaque pelo seu potencial (PLOWDEN; UHL; OLIVEIRA, 2003; DURIGAN,
1998; DURIGAN; CARVALHO, 2004; HOFFMAN, 1997).
Muitos trabalhos também foram desenvolvidos para valorizar o conhecimento
tradicional dos povos da floresta, entre eles ações de pesquisa participativa que
integravam diferentes conhecimentos tradicionais e científicos na construção

« 44 »
do conceito e da prática do manejo de cipó-titica. Assim, os estudos que, desde
então, têm sido feitos sobre o cipó-titica, além dos modelos propostos de manejo
sustentável para a sua produção, foram gerados nesse espírito.
Atualmente, Amapá e Amazonas são os únicos estados que, até hoje,
lançaram mecanismos legais e normativos visando à proteção e ao manejo das
espécies de cipó-titica exploradas. No entanto, a falta de práticas de controle e
monitoramento das atividades, e a pressão da demanda continuam causando
problemas para a conservação das espécies (SCIPIONI et al., 2012).
Manejadores e coletores tradicionais do cipó-titica já relatavam uma
característica importante da planta que permitia seu manejo em bases
sustentáveis. A retirada apenas de parte dos fios (ou raízes aéreas) de uma
planta dava à mesma a possibilidade de se manter viva e ainda ter o potencial
de voltar a produzir fios que seriam coletados em atividades futuras.
Acompanhei diversas atividades de coleta de cipó-titica e sempre me era
relatado que uma área explorada só poderia voltar a ser cultivada não menos
que dois anos após. Esse conhecimento foi a base dos trabalhos que buscaram
medir e monitorar a sobrevivência e a regeneração das plantas de cipó-titica
exploradas.
O poder regenerativo das raízes alimentares do cipó-titica, como já
mencionado, ocorre naturalmente, visto o grande número de animais e insetos
que predam suas plantas. No caso das raízes, essa característica constitui a
potencialidade para o manejo em bases sustentáveis. Garantindo a sobrevivência
das plantas exploradas, consegue-se que as mesmas sigam o seu ciclo de
vida produzindo sementes e novas plantas, favorecendo, após alguns anos, a
reutilização de fibras de plantas já manejadas.
No entanto, essa capacidade regenerativa foi mais observada em raízes fortes
ou maduras, raízes já bem estabelecidas e que são facilmente identificadas pelos
manejadores por sua firmeza e resistência da casca. Raízes imaturas ou com fios
verdes não possuem o mesmo poder regenerativo dos fios maduros. Além de
não serem idealmente úteis, sua coleta pode levar a planta manejada à morte
(HOFFMAN, 1997; PLOWDEN; UHL; OLIVEIRA, 2003; DURIGAN; CARVALHO,
2004; SCIPIONI et al., 2012).
Essa base de conhecimento gerou a receita básica do manejo proposto nos
mecanismos legais e normativos existentes. Apesar de apresentarem algumas
variações, buscam basicamente incentivar boas práticas de manejo e possibilitar
a sobrevivência das plantas exploradas, assim como o potencial de manejos
futuros em áreas já utilizadas.
Limitarei a apresentar aqui as regras aplicáveis à exploração do cipó-titica,
preconizadas pela Instrução Normativa do Amazonas (AMAZONAS, 2008), que
« 45 »
estabeleceu conceitos de boas práticas de manejo para o cipó-titica e que entendo
como uma base relevante para se efetuar o manejo em bases sustentáveis. A
saber:
- Coletar apenas fios maduros, sendo deixados fios verdes ou imaturos e
que estejam emaranhados no tronco da árvore hospedeira; deixar um
percentual de fios maduros, os quais não devem ser coletados;
- Plantas com poucos fios são plantas jovens e que ainda em processo de
estabelecimento, por isso não devem ser alvo de extração;
- Utilização de técnicas alternativas para o puxão dos fios, dando preferência
ao uso de instrumentos de corte ou podões;
- A coleta de fios deve ser de 50% dos fios maduros registrados em plantas
com menos de 20 fios maduros e 2/3 para plantas com mais de 20 desses
fios;
- À área explorada deve ser dado um pousio de 3 anos para atividades de
coleta de cipó-titica.
Na época da construção dessa normativa, uma sugestão levantada dizia
respeito ao fato de que essas propostas seriam adotadas como um manejo
experimental. Por esse motivo, um monitoramento das atividades de manejo
também deveria ser realizado, até mesmo para testar as boas práticas propostas
e a forma de contribuição para a sustentabilidade da atividade.
O potencial de manejo do cipó-titica o coloca como uma planta estratégica
no modelo de uso múltiplo de produtos da floresta. Além disso, a presença
do cipó-titica numa floresta de terra firme é um forte indicador de sanidade e
integridade dessa floresta. Uma floresta de terra firme amazônica saudável tem
cipó-titica.
O desafio maior que se coloca atualmente é como melhorar as formas de ex-
ploração dessa planta, resgatando o seu real valor originário, já destacado pelos
povos amazônicos indígenas e não indígenas. O cipó-titica bem manejado pode
ser a base de uma cadeia comercial baseada na produção de produtos artesanais
de alto valor agregado e de reais benefícios às comunidades que o respeitam e
o sabem valorizar.

Referências

AMAZONAS. Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas.


Instrução Normativa de manejo do cipó-titica. Manaus, AM: SDS, 2008.

« 46 »
ANDRADE, C. F. S de. Epizootia natural causada por Cordyceps unilateralis (Hypocreales,
Euascomycetes) em adultos de Camponatus sp. (Hymenoptera, Formicidae) na
região de Manaus, Amazonas. Brasil. Acta Amazonica, v. 10, n. 3, p. 671-677, 1980.
CARVALHO, A. C. A.; EULER, A. C.; PINTO, E. R.; COSTA, J. B. P.; LIRA-GUEDES, A. C.
Cipó-titica: Recurso florestal não madeireiro importante para a economia do Amapá.
In: ENCONTRO LATINO-AMERICANO DE UNIVERSIDADES SUSTENTÁVEIS, 2.,
2015, Porto Alegre, RS. Anais [...]. Porto Alegre, RS: [s. n.], 2015.
DURIGAN C. C.; CARVALHO C. V. de. O extrativismo de cipós (Heteropsis spp., Araceae)
no Parque Nacional do Jaú. In: BORGES, S. H.; IWANAGA, S.; DURIGAN, C. C.;
PINHEIRO, M. R. (Eds.). Janelas para a biodiversidade no Parque Nacional do
Jaú: uma estratégia para o estudo da biodiversidade na Amazônia. Manaus, AM:
Fundação Vitória Amazônica, 2004. cap. 15, p. 231-245.
DURIGAN, C. C. Biologia e extrativismo do cipó-titica (Heteropsis spp. – Araceae):
estudo para avaliação dos impactos da coleta sobre a vegetação de terra firme no
Parque Nacional do Jaú. 1998. 52f. Dissertação (Mestrado em Ciências Biológicas)
– Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Manaus, AM, 1998.
HOFFMAN, B. The biology and use of nibbi Heteropsis flexuosa (Araceae): the source
of an aerial root fiber product in Guyana. 1997. 148f. Thesis (Master’s) - Florida
International University, Miami, 1997.
PLOWDEN C.; UHL, C.; OLIVEIRA, F. A. The ecology and harvest potential of titica
vine roots (Heteropsis flexuosa: Araceae) in the eastern Brazilian Amazon. Forest
Ecology and Management, Amsterdam, v. 182, n. 1-3, p. 59–73, 2003.
POHL, L. Relatório sobre a oficina de cipó-titica e treinamento para realização de
inventários de áreas de extração de cipó-titica no contexto do Projeto USUCIPÓ -
Uso Sustentável do Cipó Titica do Rio Castanha. [S. l.]: ACIRC – FOIRN – Federação
das Organizações Indígenas do Rio Negro, 2009.
SCIPIONI, M. C.; ALVES, C. G.; DURIGAN, C. C.; MORAIS, M. L. C. S. Exploração e
manejo do cipó-titica (Heteropsis spp.). Ambiência Guarapuava, v. 8, n. 1 p. 139-
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SOARES, M. L.; MAYO, S. J.; GRIBEL, R. A Preliminary Taxonomic Revision of Heteropsis
(Araceae). Systematic Botany, v. 38, n. 4, p. 925-974, 2013.

« 47 »
Manejo da vida:
cipó-titica e sementes nativas
na Vila Céu do Mapiá
Juliana Belota

Nós da Amazônia ainda somos peões de uma língua e de uma cultura que
retarda, em séculos, a formação de valores orgânicos que tomem a sabença
étnica, aproveite as sementes, tomem como processo histórico e estabeleça
de uma vez por todas o âmago, o fulcro e a essência de uma literatura
verdadeiramente nossa (TUFIC, 2010, p. 17).

O manejo do cipó-titica e sementes nativas na Ecovila Vila Céu do Mapiá,


comunidade ribeirinha, tradicional, com viés intencional, fundada em 1982, lo-
calizada na FloNA do Purus12, área protegida com 256 mil hectares, no sudoeste
12 A Floresta Nacional do Purus (FLONA do Purus) foi criada pelo Decreto n° 96.190, de 21 de
junho de 1988. É uma Unidade de Conservação de uso sustentável, localizada na Amazônia
Ocidental. Está inteiramente situada no município de Pauini, no sudoeste do Estado do
Amazonas, no chamado Arco do Desmatamento. Situa-se na margem esquerda do rio
Inauini, iniciando a partir da foz do igarapé Solidão, estendendo-se a montante no referido
rio. A Unidade apresenta os seguintes limites e confrontações: a Sul-Sudoeste com a margem
esquerda do rio Inauini; a Norte-Noroeste com a Terra Indígena Inauini/Teuini e margem
direita do rio Teuini; e de Nordeste a Sudeste com a margem esquerda do rio Purus e terras
a quem de direito, que ocupam essa margem. É contígua à Floresta Nacional Mapiá-Inauini,
dela separada pelo rio Inauini. Pertence à Bacia Hidrográfica do rio Purus, se estende entre
as latitudes 08° 01’ 40” S e 08º 34’ 47” S e entre as longitudes 68º 04’ 09” W e 67º 16’ 23”
W. (BRASIL. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Floresta Nacional do
« 48 »
do estado do Amazonas, município de Pauini, Brasil, é uma experiência do
projeto Olho da Mata, um projeto de beneficiamento de resíduos florestais não
madeireiros - os Produtos Florestais Não Madeireiros (PFNM’s), com atual sede
na Escola de Arte e Saberes Florestais Jardim da Natureza, a qual foi fundada
em 1998.
A Escola de Arte e Saberes Florestais Jardim da Natureza funciona como um
museu a céu aberto, onde abrigam-se o Instituto de Desenvolvimento Ambiental
Raimundo Irineu Serra (IDARIS)13 e o projeto Olho da Mata, sob a coordenação
da mestre artesã, Arlete Maciel. “O projeto Olho da Mata é um projeto de
beneficiamento de resíduos da floresta, tudo que a gente encontra, desde talos,
sementes, fibras, tudo quanto é resto de madeira, folhas, cipó, transforma-se em
arte junto com os jovens”, afirma a mestre artesã, Arlete Maciel.
O projeto Olho da Mata teve início nos anos 90 com a pesquisa sobre a
sustentabilidade, na comunidade Colônia Cinco Mil14, fundada em 1974, pelo
padrinho Sebastião Mota de Melo15, um dos fundadores da doutrina do Santo

Purus, plano de manejo – Diagnóstico e caracterização. Brasília, DF: ICMBio, 2009a. v. I.)
13 Uma agência de desenvolvimento local que atua com foco na inovação e na sustentabilidade.
Com ações focadas na mobilização de recursos como estratégia de desenvolvimento
institucional, une a criação e implementação de projetos sustentáveis. O instituto tem como
missão promover a sustentabilidade da vida comunitária, contribuindo para transformar a
EcoVila Céu do Mapiá num modelo demonstrativo de sustentabilidade e soberania. (IDARIS.
Sobre o Idaris. Disponível em: https://www.idaris.com.br/. Acesso em: 29 mar. 3021).
14 Localizada na área rural da cidade de Rio Branco, estado do Acre, a comunidade era formada
por um grupo de seringueiros e trabalhadores rurais motivados e unidos pela tradição
espiritual do Santo Daime, e organizados sob a liderança e presença inspiradora de Sebastião
Mota de Melo, o Padrinho Sebastião (1920-1990). (AMVCM. Sobre a Vila Céu do Mapiá.
[2004]. Disponível em: http://vilaceudomapia.org.br/comunidade/. Acesso em: 29 mar. 2021.
15 Sebastião Mota de Melo nasceu em Eirunepé, estado do Amazonas, no dia 07 de outubro de
1920. Desde 1975 é chamado pelos integrantes da comunidade rural de “padrinho”, palavra
que expressa respeito e reconhecimento das suas qualidades de mestre espiritual, além de
colocar a pessoa que assim o chama na condição de seu “afilhado” e protegido, que vai ser
conduzido espiritualmente (FROES, 2019, p. 42).
« 49 »
Daime16, doutrina sincrética de origem pré-colombiana17, cristã e afrodescendente,
que surgiu no início do século XX e cujo fundador foi o Mestre Raimundo Irineu
Serra18.
O projeto surgiu no intuito de dar continuidade ao que vinha sendo desen-
volvido já há algum tempo, no âmbito da comunidade fundada pelo padrinho

16 Historicamente, é a primeira religião ayahuasqueira criada pelo ex-seringueiro Raimundo


Irineu Serra — o Mestre Irineu — no início de 1930, na periferia da cidade de Rio Branco,
no então território federal do Acre. Uma das explicações mais comuns para a designação
“Daime”, entre os adeptos dessa religião, é que ela se refere às invocações que são dirigidas
à própria bebida — ou melhor, ao ser espiritual presente na beberagem. Luna (1986)
argumenta que o surgimento de um conjunto de práticas e crenças caboclas ou mestiças em
torno do uso da ayahuasca, na Amazônia, se deu justamente através do contato entre os
“caucheiros” e grupos indígenas e populações ribeirinhas diversas já bastante influenciadas
por uma evangelização cristã. Goulart (2004) afirma que a relação entre as religiões
ayahuasqueiras e a cultura seringueira cabocla da Amazônia se dá num nível profundo. Luna
(1986) afirma que, sobretudo os períodos de exploração da borracha, impulsionaram um
intenso intercâmbio cultural entre diferentes grupos e etnias que ocupavam a selva peruana,
bem como toda a extensão da bacia do Alto Amazonas. O autor conclui que a bebida
aparecia, assim, para essa população seringueira, como um remédio para todos os males,
do corpo e do espírito. Outros estudiosos fazem comentários similares, como Nunes Pereira,
que chama a ayahuasca de “Yerba del Cauchero” (1979). Luna diz, ainda, que essa tradição
vegetalista ayahuasqueira teria surgido há cerca de duzentos anos, havendo vários tipos
de vegetalismos, procedentes de diferentes sentidos migratórios e envolvendo populações
distintas (LUNA, 1986, 2002 apud GOULART, 2004). Assim, por exemplo, as migrações
vindas de Cuzco, passando pelo Vale de Urubamba ou do oriente equatoriano, seriam
igualmente importantes na formação do complexo vegetalista, que se caracterizaria, portanto,
por componentes do universo da selva amazônica, do andino e de aspectos advindos das
missões cristãs. La Roque (1989) observa que o uso ritual da bebida se dá desde o interior
amazônico, pelas sociedades indígenas: kampa, kulina, jaminawá, kaxinauá, marubo,
etc. até a zona rural e urbana das cidades de Porto Velho e Rio Branco, onde se verifica a
dominante cultural e seringueira fortemente influenciada pela cultura ameríndia, estabelecida
na tradição do extrativismo. Segundo La Roque, a área da ayahuasca cresce em uma extensa
área correspondente aos sistemas geográficos do Orenoco e do Amazonas. Inclui os territórios
atuais da Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia e Brasil. Cresce espontaneamente
nas zonas boscosas ou selváticas onde há abundantes precipitações fluviais e alta humidade
atmosférica. (PLUTARCO, 1996, p. 118 apud LA ROQUE, 1989, p. 16).
17 Remonta ao tempo mítico das culturas primevas amazônicas o uso da bebida composta pelo
cipó banisteriopsis caapi e pela folha psycotria viridis, também conhecida como ayahuasca,
yagé, caapi, kahpí, daime, vegetal, entre outros nomes (LABATE, 2004). “A vinha torcendo o
yagé, o kana ramificado e o cordão umbilical são todos concebidos como ‘caminhos’ (ma)”,
e que “a característica especial de um caminho é que, embora possa torcer, por sua vez, leva
a um ponto determinado, neste caso, a fonte de vida e crescimento” (HUGH-JONES, 1979
Apud, BELOTA p.75).
18 Neto de escravos que, no início do século XX, migrou do Maranhão para o Acre, onde se
estabeleceu e desempenhou vários ofícios: da extração de borracha à atividade policial.
Nos arredores de Rio Branco passou a desenvolver atividades de cunho espiritualista e de
medicina popular, utilizando-se da ayahuasca, bebida de fortes características psicoativas.
Em 1930 fundou um centro religioso: o Santo Daime ou Daime, como é mais conhecido. A
comunidade rural que estabeleceu acolheu inúmeros imigrantes e seringueiros expulsos da
floresta devido ao colapso da economia da borracha (MacRAE, 2011, p. 20).
« 50 »
Sebastião. “Já desde a sua fundação, o projeto Olho da Mata vem se envolvendo
com os jovens, sempre no intuito de contribuir com a sua formação, na missão
de valorizar os Produtos Florestais Não Madeireiros e investir na conscientiza-
ção ambiental”, afirma a mestre artesã Arlete Maciel, fundadora do projeto.
Atualmente, o projeto Olho da Mata é sediado na Escola de Arte e Saberes
Florestais Jardim da Natureza, um espaço comunitário que visa promover a va-
lorização da cultura amazônica “pela pesquisa, pela multiplicação de técnicas
artesanais e pelos costumes alimentares regionais, através de um trabalho coleti-
vo protagonizado por mulheres e jovens, que se fortalece tanto como um espaço
educador como de produção” (IDARIS, 2021, não paginado19).
Nele desenvolvem-se oficinas de capacitação e produção de artesanatos, pin-
tura, mudário e plantio de espécies nativas, beneficiamento de frutas e semen-
tes, extração artesanal de óleos, tingimento natural, identificação de espécies,
orquidário, atividades de conscientização ecológica para crianças e jovens, entre
outras atividades.
A Escola de Arte e Saberes Florestais Jardim da Natureza nasceu em parceria
com a Escola Estadual Cruzeiro do Céu, atuando no desenvolvimento de estudos
e atividades centradas em formas alternativas de educação e geração de renda
(MORAIS, 2013 apud SOUZA, 2016, p. 65). O estudo do patrimônio de cultura
imaterial, relacionado aos saberes ancestrais dos povos indígenas que habitaram
originalmente o Purus, é uma vertente tanto da Escola de Arte e Saberes Flores-
tais quanto do projeto Olho da Mata. Em sua trajetória, desde 1995, o projeto
vem estabelecendo com os povos indígenas da etnia Apurinã, no baixo rio Pu-
rus, uma parceria de trabalho e troca de conhecimentos. Essa parceria resulta na
atuação conjunta dos Apurinã, hoje, dentro da Cooperativa Agroextrativista do
Mapiá e Médio Purus (Cooperar)20, onde a líder Apurinã, Elisângela Vieira de
Souza, atua como vice-presidente.
Em 1995, o projeto Olho da Mata, através de uma parceria com a Prefeitu-
ra de Boca do Acre, deu início ao projeto Curumim&Cunhantã, um projeto de
capacitação para beneficiamento de sementes nas aldeias Apurinã, Kamikuã e
Centrinho. Desde esse momento, o projeto vem estabelecendo relação de troca

19 INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO AMBIENTAL RAIMUNDO IRINEU SERRA. Programa


AmaGaia. Projeto Oficina Escola Jardim da Natureza. [2018]. Disponível em: https://www.
idaris.com.br/. Acesso em: 29 mar. 2021.
20 A Cooperativa Agroextrativista do Mapiá e Médio Purus (Cooperar) foi fundada por um grupo
de 21 extrativistas do Igarapé Mapiá, região do médio rio Purus, no município de Pauini
(sul do Amazonas), a partir da execução de um projeto da Associação de Moradores da Vila
Céu do Mapiá – AMVCM, junto ao Ministério do Meio Ambiente. Sua finalidade básica é
promover atividades produtivas sustentáveis (Relatório do Intercâmbio de Artesãos de Boca
do Acre e Pauini, AM, 2011).
« 51 »
e parceria com o universo indígena da Bacia do Purus, reconhecida como lócus
de uma rede de relações de troca de conhecimento entre as populações que ha-
bitam a região. Para Aparício (2010), a configuração da ocupação indígena no
Purus passa pelo que denomina de “Corredor Arawa”.

Se prolonga no interflúvio Juruá-Purus desde os Deni até os Paumari, do


lago Manissuã, e de um “Corredor Apurinã”, que se situa numa espécie de
paralelo ao sul do anterior, desde o igarapé Capana até Tauamirim. Outras
sociedades indígenas fazem parte da “paisagem cultural” do Purus e tem
interagido historicamente com os grupos de língua Arawa e com os Apurinã:
os povos de língua Katukina/Kanamari (principalmente os Kanamari do rio
Juruá, os Katukina do rio Cuniuá e os Katawixi do rio Mari, atualmente
isolados) e os Juma kagwahiva do igarapé Içuã, afluente do rio Mucuim. Os
povos Deni, Jarawara, Banawa, Jamamadi, Suruaha, Hi Merimã, Mamori,
Paumari, Kanamanti. Kamadeni e Kulina integram a família linguística
Arawa no sudoeste do Amazonas (APARÍCIO, 2010, p. 114).

Entre a Floresta Nacional Mapiá-Inauiní, a Vila Céu do Mapiá e a Vila Ecológica


Céu dos Estorrões21 há um circuito de relações de troca de conhecimentos que
inclui o aprimoramento das técnicas de manuseio das fibras vegetais e do trançado
oriundo dos povos originários das bacias Purus - Juruá. Uma figura central no
processo de organização social para a realização de projetos em parceria com os
povos indígenas, no baixo Purus, a mestre artesã Arlete Maciel, além de ter dado
início ao intercâmbio, com os Apurinã, no baixo Purus, conduziu à pesquisa
para inventário das técnicas de manuseio da linha do tucum, no vale do Juruá,
onde estabeleceu circuitos de constantes visitas, em intercâmbios, para troca de
conhecimentos e sementes, no aprimoramento das técnicas de beneficiamento
de sementes e de manejo da linha do tucum.

Eu trabalhava com a semente, mas sempre buscando a fibra e foi algo


que sempre busquei, o conhecimento das fibras vegetais. Na verdade, o
primeiro encontro foi com a fibra do carrapixo, com os Apurinã, no projeto
Curumim&Cunhantã. Depois disso, a convite do padrinho Alfredo, em
2004, fui dar início ao processo de manuseio da linha do Tucum, através da
instalação de uma oficina de beneficiamento no Juruá (informação verbal22).

Em 2008, mais um desafio: ampliar a formação no Juruá no âmbito do projeto


Linha do Tucum, aprovado pela Petrobras e Lei Rouanet, e realizado em parceria
com o Instituto de Estudos Culturais e Ambientais (IECAM) e a historiadora e
etnobotânica, Vera Froes. O projeto resultou no aprimoramento do manuseio da
linha do tucum, na comunidade Vila Ecológica Céu dos Estorrões, ex-seringal

21 Fundada pelo padrinho Alfredo Gregório de Melo, em 1996.


22 MACIEL, Arlete. Arlete Maciel: depoimento [mar. 2021]. Entrevistador: Juliana Belota. Boca
do Acre. 2021. 1 arquivo .mp3 (1h20).
« 52 »
Adélia, colocação Estorrões, município de Ipixuna, AM23. Na época, o manejo da
linha pôde ser feito na comunidade, mas para beneficiar as sementes de açaí em
grande quantidade foi instalada uma oficina de beneficiamento na Associação
de Apoio ao Agroextrativismo de Ipixuna (AAAI).
O projeto resultou em uma série de produtos multimídia do Projeto Linha
do Tucum: o lançamento do Livro “Linha do Tucum”; a exposição de artesanato
do Juruá; e o filme “A linha da lealdade”24, lançado pelo IECAM. Mais de vinte
artesãos foram iniciados nas técnicas de uso e feitio da linha, assim como no
processo de beneficiamento de sementes. Ainda desse projeto resultou uma
exposição na biblioteca da Universidade da Floresta, em Rio Branco, e outra no
Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
O cipó-titica, neste momento, se tornou um dos principais focos do
artesanato na Vila Céu do Mapiá, onde é utilizado para a confecção de filtros
de sonhos e objetos decorativos em geral (FERRAZ, 2010). Tal confecção visa

23 FROES, Vera (org). Linha do Tucum: Artesanato da Amazônia. Rio de Janeiro, RJ: Instituto
de Estudos da Cultura Amazônica, 2010.
24 A linha da lealdade é uma referência à linha do tucum. Por volta de 1959, Mestre
Irineu recebeu o Hino “108 - Linha do Tucum” (ver hino abaixo). Aqui a palavra tucum
possivelmente refere-se a uma palmeira (Acrocomia Officinalis) cheia de espinhos, encontrada
no Maranhão. O tucunzeiro, que também é muito comum em diversas outras regiões do
Brasil, apresenta na cultura afro-indígena maranhense relações estreitas com pelo menos dois
grandes grupos de entidades espirituais: a família de Légua Boji e a família dos Currupiras.
Estas são formadas por encantados violentos que costumam aplicar castigos impiedosos em
pessoas que, por qualquer razão, os venham desagradar. Uma das suas punições favoritas
seria fazer suas vítimas entrarem em touceiras de tucum, onde ficariam presas nos espinhos.
No universo afro-indígena maranhense, o tucum é também considerado o local de moradia
dos Curupiras. Entre os pajés de Cururupu-MA, o tucum, além de ser usado em remédios,
pode funcionar como uma espécie de “depurador” espiritual e o tucunzeiro é utilizado como
local onde os pajés depositam os feitiços e substâncias malignas retiradas do corpo dos
doentes. Assim, no complexo cultural afro--indígena maranhense, o tucum é um símbolo
rico em significados relativos ao poder sobrenatural e à magia. (MOREIRA; MacRAE, 2011, p.
273).
« 53 »
atender à comercialização, fruto de parceria comercial, em Florianópolis. A
comunidade tradicionalmente já produzia utensílios domésticos, como bolsas,
leques, vassouras e paneiros, e utilizava o cipó-titica na construção para amarrar
estruturas de casas, substituindo o prego.
O cipó-titica é tradicionalmente utilizado na comunidade para a construção
de mutás e andaimes, destinados a pegar e a carregar a caça, e para aplicação
de kambô. Tradicionalmente, grupos indígenas brasileiros, como os Katukina,
Kaxinawá e Yawanawá, entre outros, usam o Kambô em limpezas espirituais e
orgânicas que tonificam o sistema imunológico.
Em 2013, uma parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID) ampliou o enfoque na produção de peças a partir do cipó-titica. O BID
apoiou a realização de oficinas para a formação e qualificação de vinte alunos
na cadeia produtiva, além da multiplicação da técnica artesanal para os usos
múltiplos do cipó-titica. Quatro eixos de ação foram desenvolvidos: protagonis-
mo juvenil no resgate das técnicas de manuseio do cipó a partir do engajamento
com gerações de anciãos, mateiros e artesãos da Vila Céu do Mapiá, do Igarapé
Mapiá e do rio Purus; aprimoramento do plano de manejo do cipó-titica (Hete-
ropsis flexuosa); melhoria da infraestrutura física da Escola de Arte e Saberes
Florestais Jardim da Natureza; e aquisição de materiais e realização das oficinas
de capacitação e produção.
Esses quatro eixos de criação favoreceram o aumento da variação de produ-
tos oriundos do cipó-titica, confeccionados na Vila Céu do Mapiá. Dentre esses
produtos estavam chapéus, cestos, peneiras, tipitis (usados para tirar a água da
massa da macaxeira e fazer o biju) e jamaxins (tipo mochila) (MORAIS; MA-
CIEL; HENESTROSA, 2013 apud SOUZA, 2016, p. 64).
Após dez anos, o número de espécies identificadas e utilizadas na produção
do artesanato na vila mais que dobrou. Um levantamento mais recente identifi-
cou trinta e quatro espécies: Castanha ouriço (Bertholletia excelsa); Jarina (Phy-
telephas macrocarpa); Tucum (Astrocarvum chambira), Açaí nativo ou solteiro
« 54 »
(Euterpe precatória); Açaí de planta ou de touceira (Euterpe oleracea Mart.);
Uricuri (Attalea ohalerata); Jaci (Attalea butyracea), Aricuri (Cocos coronata);
Murumuru (Astrocaryum murumuru Mart); lnaiá (Maximiliana regia Mart ou
Maximiliana maripa); Cocão (Erythroxylum deciduum); Paxiúba (lriartea def-
toidea); Paxiubinha (Socratea exorrhiza); Patoá (Oenocarpus bataua Mart.);
Côco Marajá (Bactris acanthocarpa); Mumbaca ou Maraiá-Açú (Astrocaryum
gynacanthum ou Bactrís); Jauari (Astrocaryum jauari); Lágrima de N. Senho-
ra (Coix lacryma-jobi); Sororoca (Phenakospermum guianense), Sororoquinha
(Xanthosoma pubescens); Helicônia (Metallica); Cabaceira (Crescentia cujete);
Jatobá (Hymenaea courbaril); Mucunã (Mucuna rostrate); Mulungu (Ormosia
coccinea ou Parida multijuga); Cumari (C.baccatum var. praetermissum); Sibi-
piruna (Caesalpinia peltophoriodes); Corrimboque (todos os tipos); Taperibá25
(Cassia leptocarpa); Marajá vareta (Bactris simplicifrons); Olho de Boi (menor)
(Leucanthemum sylvaticum); Uxirana (Sacoglottis amazônica); Sabão de maca-
co (Sapindus saponaria).

As espécies listadas são encontradas ocorrendo naturalmente na FLONA do


Purus, exceto a jarina e o “açaí de touceira”. Na Vila Céu do Mapiá também
ocorre o plantio de várias dessas espécies em alguns sistemas agroflorestais.
Além dessas espécies, o grupo de artesãos da Vila Céu do Mapiá utiliza outras
em menor proporção, até mesmo algumas sementes de espécies que não são
nativas da FloNA do Purus, as quais são obtidas em outras comunidades da
região, principalmente através da troca (FERRAZ, 2010, p. 30).

Na FloNA do Purus, o cipó foi encontrado em maior quantidade em terra fir-


me do que na várzea. “O cipó-titica prefere se hospedar em árvores de florestas
maduras, não gosta de espécies pioneiras e daquelas com casca muito fina ou
muito grossa. Além disso, o cipó não se dá bem com fogo, pois morre facilmente
e não consegue se recuperar” (SOUZA, 2004 apud FERRAZ, 2010, p. 52).

Analisando o padrão de distribuição do cipó nas áreas, parte-se da


informação inicial dada pelos coletores de que a distribuição do cipó-titica
não se apresenta de forma uniforme, podendo haver áreas com indivíduos
dispersos e áreas que apresentam alta concentração de plantas (DURIGAN;
SOUZA, 2004 apud FERRAZ, 2010, p. 52).

Sobre a época em que o cipó-titica floresce e frutifica, autores (SHANLEY,


2005; FERRAZ, 2010; DURIGAN, 2012; SCIPIONI; SOUZA, 2004; ALVES, 2012;
MORAIS et al., 2012) afirmam que esse período é bem diferente em cada parte
da Amazônia. No entanto, na maioria dos estados, a floração acontece entre os
meses de setembro e maio, e a frutificação ocorre entre os meses de março e

25 Os artesãos a chamam de balseira.


« 55 »
novembro. A germinação demora cerca de nove meses e o crescimento dura dez
anos até a idade adulta.
No Purus, acredita-se que a formiga tucandeira se metamorfoseia no cipó-
titica. É uma informação passada de forma oral, de geração a geração, e que faz
parte do imaginário da população local. A anciã, artesã, tecelã do cipó-titica,
Marlene Gomes de Oliveira, diz: “Eu já vi. O pessoal todo diz que é a tucandeira.
Eu já vi que é a tucandeira mesmo, vi o início dela saindo, as perninhas, agora
não prestei atenção se era o cipó mesmo, mas todo mundo afirma que é o cipó
e eu acredito que seja mesmo” (informação verbal26).
Sobre esse acontecimento, Durigan e Castilho (2004, p. 235) revelam:

as raízes alimentares de Heteropsis apresentam um alto potencial


regenerativo, observado inicialmente em indivíduos cujas raízes alimentares
foram perfuradas pela ação de brocas (espécie não identificada de besouro,
ordem Coleoptera). Nesse caso, a raiz alimentar perfurada é capaz de
regenerar-se e de apresentar uma ramificação logo acima do ponto perfurado
pelo inseto, dando origem a uma nova raiz. É muito comum as raízes
apresentarem pontos onde há um aumento na espessura, formando nódulos
de onde surgem essas ramificações. Essa capacidade foi também observada
em alguns casos durante a coleta, sendo que do ponto onde a raiz se rompe
há o aparecimento de um novo ápice.

Na vila, os estudos para o manejo da espécie acontecem de forma


organizada e cooperativa. O projeto Olho da Mata é parceiro da Cooperativa
Agroextrativista do Mapiá e Médio Purus (Cooperar) e do Idaris. O trabalho
é realizado na Escola de Arte e Saberes Florestais Jardim da Natureza e tem o
objetivo de reavivar os conhecimentos tradicionais e organizar um acervo com
esses conhecimentos ameaçados de extinção pelas forças homogeneizadoras do
capitalismo transnacional (IDARIS, 2010).
O potencial do cipó-titica foi quantificado na pesquisa desenvolvida por Fer-
raz (2010, p. 55):

a quantidade de cipó titica por hectare na FloNA do Purus foi indicada nos
igarapés Repartição, Prato Raso, Areia Branca e Gato. No igarapé Repartição,
na Várzea, foram encontradas 4 plantas por hectare; na Terra Firme, 6
plantas por hectare. No igarapé Prato Raso, na Várzea, foram encontradas
1,5 plantas por hectare e, na Terra Firme, 6; no igarapé Areia Branca, na
Várzea, foram encontradas 5 plantas por hectare e, na Terra Firme, 12; no
igarapé Gato, não foram encontradas plantas na Várzea, e na Terra Firme 14
plantas por hectare foram encontradas.

Consta nas pesquisas realizadas sobre a coleta do cipó-titica na vila que


as raízes são puxadas de uma a uma. Retira-se apenas as que já atingiram o
26 OLIVEIRA, Marlene Gomes. Depoimento [mar. 2021]. Entrevistador: Nina Lys. Céu do Mapiá,
2021. 1 arquivo .mp3 (1h00).
« 56 »
solo e que estejam firmes ao serem
dobradas, em particular quando o fio
está maduro. Quando o fio está verde,
não é coletado. “Deve-se coletar o
cipó-titica em épocas de noites escuras
(da lua nova a quarto crescente),
pois em época de lua cheia ocorre a
presença de brocas, sendo que o cipó
quebra quando é dobrado, devido à
presença de furos” (SHANLEY, 2005
apud FERRAZ, 2010, p. 53).
O autor também afirma que
são estabelecidas zonas de extração
onde as raízes são coletadas em
sistemas de rotação. Essa prática faz
com que os cipós não se esgotem
e que seja aproveitado o máximo
possível de cipós das áreas que serão
derrubadas (roçados, pastos, casas).
O cipó Timbó Açu27 (Philodendron
sp.), planta da família das Aráceas, é
uma espécie também encontrada na
Vila. A planta emite longas raízes
adventícias consideradas “cipós”, as quais podem alcançar dezenas de metros
(CORRÊA, 1975 apud FERRAZ, 2010, p. 55). Alguns moradores da Vila Céu do
Mapiá utilizam esse cipó na confecção de vassouras, peneiras, paneiros, cestos,
etc. O mesmo também é usado para tinguijar (envenenar) os peixes.
São plantas ornamentais de caule grosso e folhoso no ápice, que conser-
vam as cicatrizes das folhas antigas, vegetam sobre o solo ou sobre árvores, e
possuem folhas coriáceas. O fruto é uma baga amarelo-avermelhada, cilíndrica,
pouco maior que um grão de milho28.
As raízes adventícias, que oferecem a particularidade de serem mais resis-
tentes quando lascadas do que inteiras, têm largo emprego nas construções ru-
rais, servindo para amarrar ripas e moirões, substituindo os pregos; servem para
o fabrico de vassouras e de cordas grosseiras, especiais para amarrar canoas; são

27 Esse nome é comum a várias espécies da família das Sapindáceas, todas trepadeiras lenhosas
(CORRÊA, 1975 apud FERRAZ, 2010, p. 55).
28 CORRÊA, 1975 apud FERRAZ, 2010, p. 55.
« 57 »
mais resistentes dentro d’água. Servem para fazer chapéus, balaios, etc. O pó da
raiz é empregado como drástico29.
A comercialização específica do cipó-titica e cipó-timbó na comunidade
teve seu ápice em 2008, após terem sido realizados os primeiros estudos sobre
o cipó-titica na Vila Céu do Mapiá, junto ao mateiro Adelson Paes30. Foram
desenvolvidas coleções para comercialização, em Florianópolis. O principal
produto comercializado pela comunidade foi o filtro dos sonhos de cipó-titica
e palha de buriti. Esse foi um momento em que as atividades se intensificaram
tanto em Vila Céu do Mapiá quanto na comunidade Céu dos Estorrões, no Juruá.
Os filtros de sonhos foram produzidos na Vila Céu do Mapiá e os colares e
pulseiras de tucum no Juruá. “Eu trabalhava lá e cá, em uma comunidade e na
outra”, afirma Arlete Maciel.
Em 2017, em parceria com a Escola de Arte e Saberes Florestais Jardim da
Natureza, teve início o programa Jovem Aprendiz, que atuou na formação de

29 Venenoso para os peixes. Idem.


30 “Um dos maiores conhecedores do cipó-titica, na Vila Céu do Mapiá”. Fica a homenagem in
memorian do projeto Olho da Mata ao mateiro, Adelson Paes” (MACIEL, 2021. Homenagem
ao mateiro do projeto Olho da Mata, Adelson Paz).
« 58 »
jovens e na profissionalização de artesãos especialistas em filtro de sonhos e
outros produtos provenientes do cipó-titica. As oficinas de beneficiamento do
projeto funcionaram concomitantemente entre o Mapiá, Juruá e Boca do Acre.

Governança e sabença cabocla


Ribamar Mitoso, no prefácio do livro “Amazônia: o massacre e o legado”,
de Jorge Tufic, chama a atenção para o legado espiritual da Amazônia, que tra-
duz como sendo “um linguajar” ou “sabença cabocla”, algo de uma ordem de
grandeza muito maior que o patrimônio material expresso na própria floresta
amazônica. Lançando um outro olhar sobre a Floresta Amazônica, o escritor
Aléx Polari, em seu “Guia da Floresta” (1992), afirma que a floresta não é só um
imenso regulador do clima no mundo e um fantástico jardim zoológico natural,
ou um rico reservatório de madeiras nobres e de notáveis espécies vegetais.

Mais que isso, é uma região de intimidade com o Divino, habitat natural
de uma enorme força e energia espiritual, que se manteve incólume até
os nossos dias. Cada pulsação de vida que há nela gera no homem um
efeito profundamente terapêutico, antecipa uma grande felicidade que
poderá vir nesse novo tempo, se a consciência do homem puder se
expandir e sobrepujar a sua destrutividade (POLARI, 1992, p. 15).

O que se sabe hoje é que a Amazônia não é apenas um ecossistema que


deve sua existência e característica ao mero acaso da ação da natureza. Estudos

« 59 »
recentes mostram que centenas de espécies vegetais (tidas como silvestres na-
turais) predominantes nesse ambiente são, na verdade, frutos da ação humana
(MENDES DOS SANTOS apud CARDOSO, 2010).
“Fazer o manejo florestal é algo simples, especialmente para os ribeirinhos,
seringueiros, quilombolas e indígenas que nasceram na floresta” (VIANA, 2006,
p. 136). Para o autor, o aproveitamento da reconhecida “tecnologia de ponta
cabocla” deve ser destinado ao enfrentamento das transformações para a sus-
tentabilidade e governança da Amazônia.

A Bacia Amazônica é uma região considerada chave e única globalmente:


em termos locais, continental e global, esta região hospeda um leque
enorme de serviços ambientais, diversidade cultural e atividades
econômicas. Governar essas múltiplas dimensões em meio às pressões
socioambientais, mudanças climáticas é um dos desafios mais prementes
e preocupantes para a sustentabilidade. Enquanto soluções com aval
do governo são comumente vistas como rotas para a sustentabilidade,
muitas das iniciativas de manejo florestal sustentável na Amazônia são
de indivíduos (cidadãos) ou da coletividade (FUTEMMA, [2021], não
paginado31).

O primeiro grande desafio do projeto Olho da Mata se deu em 1992, quando


seus representantes foram convidados a participar da II Conferência das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92). “O grupo de artesãos
da Colônia Cinco Mil já vinha trabalhando com a conscientização ecológica,
quando a Secretaria do Estado de Cultura do Acre fez o convite para fazer uma
exposição na ECO-92”, diz Arlete. O projeto Olho da Mata já tinha assento na
Associação dos Artesãos de Rio Branco e com a parceria com o Instituto de
Estudos da Cultura Amazônica (IECAM)32, fundado pela historiadora, Vera
Froes, junto a erveiros do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Boca do Acre33,
pôde expor seus produtos durante a conferência.
A apresentação dos produtos na ECO-92 resultou em um avanço na
expansão do projeto no Brasil e no exterior. Com a impossibilidade de atender
à demanda, o processo de parceria para a produção de acessórios, com fins de
comercialização na Alemanha, um dos focos de expansão do projeto à época,

31 FUTEMMA, Celia Regina Tomiko. Governança da Amazônia para viabilizar transformações


para a sustentabilidade. Campinas, SP: NEPAM, [2021]. Disponível em: https://www.
nepam.unicamp.br/governanca-da-amazonia-para-viabilizar-transformacoes-para-a-
sustentabilidade/. Acesso em: 26 fev. 2021.
32 À época, a sigla era assim denominada. Atualmente, o instituto ampliou seu escopo
de atuação e passou a chamar-se Instituto de Estudos Culturais e Ambientais - IECAM.
Disponível em: http://www.iecam.org.br/. Acesso em: 31 mar. 2021.
33 Atualmente, o IECAM mantém parceria com o National Botanical Research Institute (NBRI),
em Lucknow, na Índia (FROES, 2019).
« 60 »
não pôde continuar. “As grandes dificuldades em escoar o produto nos fizeram
dar um passo atrás”, conta Arlete.
Daí nasceu o projeto Curumim&Cunhantã, em 1995. Um projeto realizado
com os Apurinã, no baixo Purus. A meta era capacitar jovens indígenas e caboclos.
Esse foi o início de um estudo mais aprofundado sobre a produção de biojoias
e de uma parceria com o projeto Verde Escola, em Belo Horizonte, coordenado
pelo mestre artesão, Roberto Lages, o qual envolveu meninos de rua no trabalho
com o beneficiamento de sementes, com foco no tucumã. Parte do projeto ficou
funcionando em Boca do Acre, com a turma do Curumim&Cunhantã, integrando
jovens Apurinã e caboclos na parte do beneficiamento, e a outra parte passou
a funcionar em Belo Horizonte. O projeto resultou na participação em diversas
exposições, entre elas, durante três anos seguidos, a Mãos de Minas. Ao final
desse período, o projeto foi convidado a participar de um vídeo feito para uma
Campanha da Fraternidade sobre o tema Amazônia.
As miçangas de tucumã são uma especialidade dos Apurinã e foi o
principal produto comercializado em Belo Horizonte. “Fui convidada por eles
a dar capacitação, com a tecnologia dos maquinários - até então, os Apurinã
trabalhavam apenas no processo manual - e aprendi muito sobre as sementes”,
diz Arlete. Já nesse período, deu-se uma expansão de conhecimentos e
oportunidades: os índios ampliando o processo de beneficiamento das sementes
e a Arlete aperfeiçoando o conhecimento sobre as sementes, partindo para o
início do estudo com as fibras, na época, a fibra do carrapicho.

Do beneficiamento à montagem, tudo começou com a busca do conhecimento,


pelo saber como identificar o que é uma palmeira, uma leguminosa, uma
grande árvore, um cipó, uma madeira de lei, de onde se tira, para depois
colher e beneficiar (lixar, polir, desidratar, hidratar, pigmentar, serrar, furar).
A criação acontece desde quando estamos beneficiando, a semente é que se
mostra ou a gente mesmo, de tanto trabalhar com ela, já vai entrando no
processo criativo. Tendo muito material, muita variedade, a criação vem à
tona (informação verbal34).

Já residindo em Boca do Acre, no bairro São Paulo, na várzea do Purus, pró-


ximo à aldeia Apurinã, na terra firme, local onde o projeto foi estabelecido, fo-
ram dadas as primeiras capacitações para o beneficiamento de sementes. Como
na aldeia não havia energia elétrica, a partir de uma parceria com a prefeitura de
Boca do Acre, a experiência foi se ampliando para a área da montagem, quando
as ações passaram a acontecer na várzea, na casa da artesã, onde a prefeitura

34 MACIEL, Arlete. Arlete Maciel: depoimento [mar. 2021]. Entrevistador: Juliana Belota. Mapiá,
2021. 1 arquivo .mp3 (1h20).
« 61 »
construiu, como contrapartida do projeto, as instalações de duas choupanas de
palha para salas de beneficiamento e montagem.
Com a alagação, em 1997, a oficina foi desabitada e o projeto passou a fun-
cionar na Fazenda São Sebastião, na entrada do igarapé Mapiá, de onde iniciou
os primeiros passos da instalação da oficina de beneficiamento na Vila Céu do
Mapiá. Um dos principais problemas enfrentados pelo projeto, na Vila, é a falta
de energia elétrica. O programa do governo federal “Luz para todos” não chegou
à comunidade.
Até 2017, o projeto funcionou nas adjacências da Escola Cruzeiro do
Céu. Em 2018, parte do projeto passou a funcionar no Jardim da Natureza,
onde instalou uma sala de montagem. Atualmente, com o avanço da pandemia
no Brasil, o projeto tem produção em escala comunitária, individual, na casa
dos artesãos. As obras das salas de beneficiamento e para o motor gerador são
parte das metas do projeto, que pretende, além disso, dar continuidade aos
estudos para identificação de espécies; organizar um inventário das sementes
já identificadas; fazer o mapeamento das principais espécies na área do manejo
comunitário, de modo a quantificar com mais precisão o potencial do estoque
existente; e aumentar a escala de produção destinada ao incremento do processo
de certificação florestal.

Referências

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Céu do Mapiá. 2004. Disponível em: http://vilaceudomapia.org.br/comunidade/.
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Calendário Desâna no Tupé. 2012. 201f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) –
Universidade Federal do Amazonas, Manaus, AM, 2012. Disponível em: https://
tede.ufam.edu.br/handle/tede/3924 Acesso em: 05 maio 2021.
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CARDOSO, Thiago Mota. O Saber Biodiverso: práticas e conhecimentos na agricultura
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« 62 »
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GOULART, Sandra Lucia. Contrastes e continuidades em uma tradição Amazônica: as
religiões da Ayahuasca. Campinas, SP: [s. n.], 2004.
FERRAZ, Miguel. Apoio técnico ao grupo de artesanato de produtos florestais da
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oficina-escola. Viçosa, MG: Universidade Federal de Viçosa, 2010.
FROES, Vera (org). Linha do Tucum: artesanato da Amazônia. Rio de Janeiro, RJ:
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FROES, Vera. Santo Daime - cultura amazônica: história do povo Juramidam. 3. ed. São
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Fortaleza, CE: Expressão Gráfica Editora, 2010.
MOREIRA, Paulo; MacRAE, Edward. Eu venho de longe: Mestre Irineu e seus
companheiros. Salvador, BA: EDUFBA, 2011.
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VIANA, Virgílio. As florestas e o desenvolvimento sustentável na Amazônia. Manaus,
AM: Editora Valer, 2006.

« 63 »
Sustentabilidade no Purus
Boris Marioni

O rio Purus nasce nos Andes do Peru e percorre 2.960 km (ZIESLER;


ARDIZZONE, 1979) até desembocar no rio Solimões, aproximadamente 200km a
oeste da cidade de Manaus, sendo o terceiro maior afluente em volume de água.
O clima dominante na região é tropical chuvoso, com temperatura média do mês
mais frio sempre superior a 18°C (BRASIL, 1976). Na parte ocidental-meridional
da Amazônia, onde se localiza a FloNA Purus, acontece um fenômeno climático
chamado localmente de friagem, pelo qual as temperaturas podem alcançar
mínimas perto de 10°C devido à entrada de massa polar atlântica na atmosfera
durante alguns dias do ano (FISCH; MARENGO; NOBRE, 1998).
Ainda em termos climáticos, ao longo do ano existe um período seco de
curta duração, mas, de maneira geral, as chuvas e a temperatura sofrem poucas
variações anuais, mantendo-se em nível relativamente elevado. A precipitação
média anual está entre 2000 e 2250 mm/ano. Esse clima de temperatura cons-
tantemente alta e chuvas abundantes favorece o desenvolvimento de vegetação
megatérmica (plantas que se desenvolvem em altas temperaturas).
Os povoados não indígenas mais antigos a se instalar ao longo do rio
Purus datam do início do século XX e relacionam-se com a disponibilidade e
consequente exploração de determinados recursos naturais, comercialmente
importantes naquela época. Alguns locais eram mais antigos e já funcionavam
como portos de lenha, entrepostos de castanha e/ou seringa. Na primeira
« 64 »
metade do século passado, a seringa e a pesca figuraram como as razões mais
importantes para a fixação de população na região, seguida pela castanha-do-
Brasil, juta e malva (DEUS; MAZUREK; VENTICINQUE, 2010).
Gradativamente, os emigrantes, principalmente oriundos do nordeste
brasileiro, se apropriaram do espaço nas margens do rio Purus, tornando-as
produtivas em castanha-do-Brasil (Bertholletia excelsa), cacau (Theobroma
cacao), peles de animais silvestres e, além disso, na exploração de recursos
pesqueiros, tais como pirarucu (Arapaima gigas), peixe boi (Trichechus inunguis)
e quelônios.
A riqueza e a diversidade biológica e cultural do rio Purus, além da
importância econômica de seus recursos naturais em relação a outros rios
amazônicos, já eram exaltadas nos registros dos primeiros viajantes (CUNHA,
1905), cuja fartura vertiginosa dos tabuleiros de tartarugas, dos pirarucus e
peixes-boi impressionou seus narradores.
O Amazonas é, atualmente, o estado brasileiro com maior cobertura florestal,
porém vem sendo ameaçado constantemente pela grilagem de terras e pelo
avanço da fronteira agrícola. Estudos conduzidos nos anos 40 já apontavam
a necessidade de maior controle dos recursos pesqueiros no baixo Purus, por
conta da pesca descontrolada (NUNES-PEREIRA, 1943). Nas décadas de 1960 e
1970, a preocupação crescente com a exploração ilegal e predatória de madeira
na Amazônia despertou as autoridades públicas para a necessidade de buscar
alternativas capazes de atenuar essa situação (BRASIL, 2009a, b ou c).
Nesse contexto foram criadas as primeiras Unidades de Conservação na região
norte com diferentes níveis de proteção total ou consentimento de uso sustentável
(BRASIL, 2000). As áreas protegidas atuam em duas dimensões e tentam juntar
objetivos sociais com a proteção do meio ambiente, que, quando é eficaz, tende
a inibir as ações ilegais. Essas reservas legais favorecem o reconhecimento da
importância dos modos de vida tradicionais de seus moradores e, por outro lado,
valorizam a importância que a biodiversidade tem na manutenção e na melhoria
das condições de vida dos povos ribeirinhos.

Cadeia produtiva aquática


A pesca é a principal atividade produtiva no baixo rio Purus, realizada
de forma artesanal e durante o ano todo, seja para fins de subsistência e/ou
comerciais. Embora as espécies pescadas, os métodos de pesca e as áreas de
exploração variem de acordo com o ciclo hidrológico, a pesca é praticada pelos
« 65 »
moradores locais, bem como pela frota pesqueira comercial de cidades próximas,
como Manacapuru e Manaus (SEMA, 2020).
O consumo de peixes na região amazônica é considerado um dos maiores
do mundo, sendo a média per-capita em torno de 800g/dia (FAO, 2011). O peixe
é, portanto, a principal fonte de proteína animal para milhares de famílias
moradoras das áreas rurais do Amazonas, mas também da capital, Manaus.
A alta dependência reflete-se na sobre-exploração de algumas espécies, como
tambaqui, pirarucu e alguns grandes bagres.
O pirarucu sempre foi um dos recursos aquáticos mais importantes no
passado. Essa situação se manteve até que o declínio populacional da espécie
se volveu evidente, tornando o seu comércio economicamente insustentável.
Atualmente, com exceção das áreas regulamentadas para o manejo da espécie,
a pesca do pirarucu está proibida no estado durante o ano todo (IBAMA, 2004).
A sobre-exploração pode se tornar também uma ameaça para outras espécies
comerciais, como tambaqui (Colossoma macropomum), tucunaré (Cichla spp) e
bagres (Pimelodidae).
A pesca de peixes ornamentais com fins comerciais é mais difundida na
bacia do rio Negro (CHAO et al., 2001), mas tem também uma importância
considerável em algumas regiões do Purus. Várias espécies de Corydoras spp
ou acara disco (Symphisodon aequifascatus) são comercializadas especialmente
durante a estação seca, entre julho e janeiro (DEUS; MAZUREK; VENTICINQUE,
2010).

« 66 »
A região do médio Purus é conhecida pela alta abundância de fauna,
especialmente das tartarugas de água doce (KEMENES; PEZZUTI, 2007). Os
quelônios são historicamente consumidos na bacia amazônica e toda a calha
do rio Purus não é uma exceção (BRASIL, 2009a, b ou c). Somente no ano de
2018 foi estimado que, aproximadamente, 1.7 milhões de indivíduos adultos,
principalmente das espécies Podocnemis expensa (tartaruga da Amazônia), P.
unifilis (tracajá) e P. sexturbeculata (iaça), foram consumidos nos municípios do
estado do Amazonas, sendo Manaus (40%) e Manacapuru (15%) os locais de
maior consumo (CHAVES et al., 2020; AMAZONAS, 2020).
Nas cidades menores do interior, como Beruri, Pauini e Canutama, todas na
calha do Purus, foram encontradas altas frequências no consumo de quelônios.
Cerca de 75% das casas declararam consumir a carne regularmente e estima-
se que dez indivíduos são consumidos anualmente em cada família (CHAVES
et al., 2020). Os ovos dessas espécies são também amplamente consumidos e
comercializados ao longo da calha do rio, apesar das ações de fiscalização das
autoridades ambientais estaduais e federais.
Muitas famílias consideram a fauna uma fonte importante de alimento e renda,
mas não percebem o seu valor ecológico (CHAVES; MONROE; SIEVING, 2019).
Graças à criação de várias unidades de conservação no decorrer dos últimos 30
anos, além do envolvimento das comunidades locais na conservação e proteção
das principais praias de desova, a estratégia que vem sendo implementada tem
um relativo sucesso em muitos locais da Amazônia (Projeto de Quelônios da
Amazônia- Centro de Conservação e Manejo de Répteis e Anfíbios - IBAMA).

Cadeia produtiva terrestre


Os sistemas mais tradicionais de produção agropecuária são o extrativismo,
a roça e a criação de animais domésticos. Esses sistemas estão presentes em
praticamente todas as comunidades ribeirinhas. Essa última atividade serve
também como estratégia para minimizar os impactos gerados pela caça de fauna
silvestre, além de fonte de renda alternativa (SEMA, 2020).
Em ambiente de terra firme, o uso do solo começa no período que precede as
chuvas, quando a mata está mais propícia à abertura de clareiras, característica
do plantio de mandioca ou de outras espécies. As espécies de ciclo curto,
produzidas em até um ano, são as principais variedades comercializadas na
região, como mandioca, macaxeira, banana e melancia, além das plantas de
canteiros, como os temperos (BRASIL, 2009a, b ou c). Apesar disso, a agricultura
não é a principal fonte de renda no baixo rio Purus, caracterizado por áreas

« 67 »
extensas de várzea, sendo que a maior parte do cultivado é para consumo próprio.
Somente os produtos com melhor preço e liquidez são comercializados pelos
diversos atravessadores da região, como banana ou farinha (DEUS; MAZUREK;
VENTICINQUE, 2010). Por exemplo, mais de 100 toneladas de banana são
comercializadas anualmente nos municípios de Beruri e Tapauá.
A flora das florestas nas margens do Purus e do interflúvio Purus-Juruá
podem conter espécies ainda ignotas à ciência. A região é ainda pouco conhecida
em função do grande vazio de coletas botânicas. Em um levantamento
florístico realizado em 2005 na FloNA do Purus, foram amostrados cerca de
200 indivíduos, distribuídos em 67 famílias botânicas, sendo que 18 indivíduos
ficaram totalmente indeterminados (BRASIL, 2009a, b ou c).
O extrativismo de produtos não madeireiros é realizado nos ecossistemas de
terra firme e de várzea. No âmbito estadual, a andiroba (Carapa guianensis) e a
copaíba-mari-mari (Copaifera multijuga), encontradas no levantamento florístico
realizado (AMAZONAS, 2010), são as espécies protegidas e imunes a corte (Dec.
est. AM nº 25044 de 01/06/2005). Com base em levantamentos realizados em
2005 na comunidade Vila do Céu, foram identificadas 12 espécies que possuem
grande uso e importância para os moradores, além de mostrar potencial para
a geração de renda. Outras espécies podem ser usadas para fins medicinais,
alimentícios, artesanato e construção civil, assim como em cultos religiosos
ou como ceva para caça (BRASIL, 2009a, b ou c). Normalmente, os produtos
oriundos do extrativismo são para consumo próprio ou para comercialização.
Os moradores utilizam uma grande variedade de produtos entre outros óleos,
gomas/látex, resinas, raízes, frutos, cascas, cipós, palhas e fibras. No geral, o
extrativismo não representa um elemento forte na renda familiar, sendo uma
atividade mais voltada à subsistência com pouca ligação ao mercado, exceto para
a castanha e o açaí. Atualmente, uma parte do açaí é comercializada na forma de
frutos recém-coletados nas árvores. Outra parte pode ser vendida já beneficiada
na forma de vinho (ou suco de açaí), mas a logística do armazenamento e
transporte refrigerado não permitem que os produtos sejam vendidos nos
centros urbanos mais próximos. Os atravessadores pagam no saco de 50 kg
de açaí um preço baixo, fazendo com que os ganhos dos comunitários sejam
mínimos (AMAZONAS, 2020). Na região da FloNA, os principais produtos não
madeireiros utilizados pelas comunidades são a seringa, a castanha e o cipó-
jagube (BRASIL, 2009a, b ou c).
A extração madeireira ocorre ao longo das margens do rio Purus,
principalmente com a finalidade de construir casas, sedes comunitárias, igrejas
e galpões. A comercialização ilegal de madeira causa um grande impacto nas
espécies exploradas, que são retiradas através da construção das jangadas para o
« 68 »
transporte fluvial ou processadas em serrarias ilegais nos municípios maiores. A
exploração das espécies em áreas de várzea se dá com a madeira em tora, sem a
necessidade de beneficiamento. Em contrapartida, as espécies de terra firme são
comercializadas na forma de prancha e, portanto, necessitam de um trabalho
mais especializado, além de um esforço maior para a retirada do material (DEUS;
MAZUREK; VENTICINQUE, 2010).
O estudo de impacto ambiental e seu respectivo relatório (EIA/RIMA),
elaborado para subsidiar o licenciamento ambiental da BR-317, identificaram
apenas três espécies arbóreas ameaçadas na região de estudo (AMAZONAS,
2010), sendo elas a castanheira (Bertholletia excelsa), a seringueira (Hevea
brasiliensis) e a ucuúba (Virola surinamensis).
Independente do produto ou da localidade, devido às características logísticas
da região, como a falta de estradas e a alta dependência das vias fluviais, o
escoamento da maior parte da produção pode ser feito por meio dos barcos
recreios. Por conta da relativa regularidade de suas viagens e rotas definidas,
esses barqueiros sustentam relações comerciais mais estreitas com várias
famílias ribeirinhas, caracterizando em certos casos uma relação de patrão e
empregado (AMAZONAS, 2020).
O morador adquire a preços superfaturados seus insumos básicos ou gêneros
de primeira necessidade antes da atividade extrativista e sempre a crédito. Às
vezes, por intermédio do aviamento, o pagamento é realizado em seguida,
após a troca direta da produção (peixe, castanha, semente, etc..). É comum
a intervenção dos “moradores compradores”, normalmente proprietários de
pequenos comércios nas comunidades.

Vila Céu do Mapiá:


caminhos para a sustentabilidade

Eu convido os meus irmãos


Se alegrar na nossa festa
Esquecer a ilusão
E se firmar bem na Floresta

Na Floresta temos tudo


Ela, Mamãe e Papai
Toda fonte de riqueza
A Natureza e muito mais

(Padrinho Alfredo Gregório de Melo, Nova Era)35.

35 MELO, Alfredo Gregório de. Nova Era. Hinário Nova Era. Ribeirão Preto, SP: Editora Rainha,
« 69 »
Sobre o Purus, vale sempre lembrar que, como afirma Mendes dos Santos
e Aparício, “foi talvez a maior estrada por onde passavam e repassavam há
muitos séculos as tribos mais remotas do extremo do continente” (CUNHA,
[1906], 2011, p. 192 apud MENDES DOS SANTOS; APARÍCIO, 2016, p. 7). A
frase é de Euclides da Cunha, o chefe da Comissão Mista Brasileiro Peruana de
reconhecimento do alto Purus, responsável pelo estabelecimento das fronteiras
entre ambos os países. Euclides da Cunha reconheceu que nesse rio havia um
Brasil à parte, “parece inteiramente estranho à nossa história” (CUNHA [2006],
2011, p. 173 apud MENDES DOS SANTOS; APARÍCIO, 2016, p. 7).

Havia um fluxo intenso de grupos indígenas, conectados por uma vasta


rede de igarapés e varadouros, [...] que testemunhou as transformações
que começaram a surgir na paisagem desta região da Amazônia ocidental.
(SANTOS; APARÍCIO, 2016, p. 7).

Gow (2006, p. 451 apud MENDES DOS SANTOS; APARÍCIO, 2016, p. 7)


cita sobre o “jogo de encontros e desencontros” entre os povos indígenas e
o avanço da empresa extrativista, a qual, já desde os Piro, vivenciava a
introdução dos patrões da borracha na extensa rede de trocas do Purus, as redes
reconhecidamente Arawa. Fazem parte da família Arawa os Kulina, Kamadeni,
Jamamadi ocidentais, os Deni, os Jamamadi orientais, os Banawa, os Jarawara,
os Suruwaha, os Paumari e os isolado Hi Merima do rio Piranhas (MENDES DOS
SANTOS; APARÍCIO, 2016, p. 10).
Sobre a mudança de paisagem na região do médio Purus, sobretudo no
período transcorrido entre o momento em que o usufruto da paisagem nativa
era dos povos indígenas estabelecidos na região, que utilizavam a floresta sem
agricultura, Goes Neves, afirma: “desde o Holoceno Médio na Amazônia, como
projeta a arqueologia, há registros da tradição oral dos grupos do Purus que
revelam haver populações menos adensadas e numerosas, baseadas no uso da
floresta sem agricultura” (MENDES DOS SANTOS; APARÍCIO, 2016; NEVES et
al., 2012).
O advento do extrativismo na região é reconhecido como fator de intervenção
da paisagem ancestral dos povos originários do médio Purus. Santos (2016)
assinala o caso particular do estabelecimento da roça de corte e queima.

De maneira simplificada, podemos dizer que, tradicionalmente, o médio


Purus era habitado pelos numerosos e diferentes grupos (parentelas)36,

2012. p. 2.
36 Grupos menores que se segmentam e são historicamente associados a um território Apurinã.
Essas parentelas circulavam intensamente por uma vasta rede de caminhos e varadouros,
« 70 »
que mantinham uma prática de exploração da biodiversidade florestal para
fins alimentares baseada na coleta, dispensando a abertura de roçados37
(MENDES DOS SANTOS, 2016, p. 34).

A partir de uma análise das relações entre os povos nessa região, o autor
constata a falta de fronteiras rígidas, incluindo as etnográficas e as hidrográficas,
o que revela quão alargadas e ramificadas eram e são essas relações. “Tal são
seus incontestáveis rios e igarapés, caminhos e varadouros que conectam seus
habitantes” (MENDES DOS SANTOS; APARÍCIO, 2016, p. 10).
A extensão dessa rede também alcança coletivos de outras famílias
linguísticas, Apurinã e Manchineri (Aruak), katukina, kanamari e os povos de
língua pano. “São grupos cuja interação com os arawa se torna constitutiva”.
“Esses circuitos Arawa vivem atualmente um momento de vitalidade nos seus
fluxos de comunicação e intercâmbio” (MENDES DOS SANTOS; APARÍCIO,
2016, p. 11).
Segundo Mendes dos Santos e Aparício (2016), os Arawa manifestam hoje
um movimento de intenso intercâmbio social, ritual e político, como se observa
nas inúmeras assembleias que convocam “parentes” de todas as aldeias, ou no
processo crescente de indigenização das cidades de Tapauá, Canutama, Lábrea e
Pauini, município onde fica localizada a FloNA do Purus, no Amazonas.
Para os autores, já nos relatos dos primeiros viajantes e expedicionários
que navegavam pelo Purus, é surpreendente a presença e a interação entre os
muitos grupos indígenas ao longo de suas margens e de seus tributários, “sendo
possível montar um catálogo que ultrapassa duas dezenas de povos, entre ao
quais, além dos já citados aqui os Caripuna, Catauari, Canarari, Cipó, Caruhety,
Jubery, Juma, Mamori, Pamorari, Paru, Quarurá, Tará, Uaipuçá, Uatanary, entre
outros” (MENDES DOS SANTOS; APARÍCIO, 2016).

Em viagens pelo Purus, nos anos 1950 e 1951, o casal de antropólogos,


Schultz e Chiara (1955) chama a atenção para a grande mobilidade dos
índios pelo alto Purus e Juruá através de seus tributários Envira e Tarauacá
(MENDES DOS SANTOS; APARÍCIO, 2016, p. 12).

vivendo distante dos rios e da várzea, preferindo as cabeceiras dos igarapés (Cf. FACUNDES
et al. e VIRTANEN apud MENDES DOS SANTOS, 2016, p. 31).
37 Disseminados por toda a vasta Bacia do Purus, essas parentelas mantinham seus espaços
de domínio por meio do manejo e da exploração dos mais variados ambientes da floresta,
de várzea, igapó e de terra firme. Diferentemente do modelo de corte e queima para a
implantação de roças, o que se praticava era predominantemente a “coleta”, forma por
excelência de usufruto da biodiversidade disponível na floresta. Não apenas de frutos
sazonais maduros, mas a busca de espécies vegetais para a elaboração de subprodutos
que acompanhariam os alimentos de origem animal (animais de caça, peixes e quelônios),
reconhecidamente abundantes nos rios, várzeas e florestas da Bacia do Purus (MENDES DOS
SANTOS, 2016, p. 21).
« 71 »
Coutinho (1862), Chandless (1964) e Schultz e Chiara (1955) demonstram
que o novelo das redes Arawa se esticou até as terras altas do continente
sul-americano: “Por intermédio das bacias hidrográficas havia um intenso
intercâmbio Cultural, especialmente por intermédio dos Manchineri em estreita
ligação com o Ucayali” (apud MENDES DOS SANTOS; APARÍCIO, 2016, p. 13).

Diferentemente do modelo de corte e queima para a implantação de roças,


o que se praticava era predominantemente a “coleta”, forma por excelência
de usufruto da biodiversidade disponível da floresta, não apenas de frutos
sazonais maduros, mas a busca de espécies vegetais para a elaboração de
subprodutos que acompanhariam os alimentos de origem animal (caça, peixe
e quelônios) reconhecidamente abundantes nos rios, várzeas e florestas da
Bacia do Purus (MENDES DOS SANTOS; APARÍCIO, 2016, p. 23).

Mendes dos Santos e Aparício (2016, p. 23) afirmam que, num contexto de
manejo da floresta, as palmeiras ocuparam um lugar privilegiado, com destaque
para o babaçu (Attalea Speciosa Mart. Ex Spreng), a pupunha (Bactris gasipae
Kunth), o açaí (Euterpe precatória), o buriti (Mauritia flexuosa L.f.), o tucumã
(Astrocaryum aculea Mart.). “Delas eram explorados, para fins alimentares,
tanto o fruto quanto o palmito, dos quais eram obtidos a polpa (massa) e a
goma”. Isto sem falar no artesanato.

Antes não tinha mandioca e nem macaxeira a farinha era de babaçu. Tiravam
goma também do babaçu pra fazer beiju e comer. Depois que começaram
a andar pelas bandas do Purus, começaram a ver os não indígenas e os
roçados, e falaram com eles para pedir maniva, macaxeira e terçado para
poder plantar na aldeia. (Relatório do curso de agricultura indígena no Purus:
Mitologia e História, 2015, p. 18 apud MENDES DOS SANTOS; APARÍCIO,
2016, p. 34).

Aparício (2010) e Mendes dos Santos (2016) afirmam que foi após a ECO-
92 que houve a consolidação do socioambientalismo brasileiro e o impulso,
na Amazônia, de um panorama de intervenções em que a conservação da
biodiversidade integrava a defesa e o reconhecimento dos denominados “povos
da floresta”. Acerca dos processos que passaram a caracterizar, na atualidade,
o novo cenário do Purus indígena: a crise da organização formal após um
processo criativo de articulação; a irrupção do seringueiro como novo sujeito
político regional, com direitos e conquistas territoriais inéditas; a presença de
novos atores - como os artesãos na FloNA do Purus, dos quais vamos falar mais
adiante - a consolidação da cidade como “território indígena”; e o panorama
global de valorização das florestas, derivado do alerta planetário pela mudança
do clima, com incidências cada vez mais próximas dos âmbitos indígenas locais
da bacia do Purus.

« 72 »
“Esses povos da floresta são formados por sujeitos políticos e portadores
de um patrimônio de conhecimento definitivo sobre a proteção do bioma
amazônico” (APARÍCIO, 2010, p. 5). A comunidade intencional, tradicional,
Vila Céu do Mapiá integra essa população assim denominada, formada por ex-
seringueiros, soldados da borracha, que acompanharam o padrinho Sebastião
em sua saga de disseminação da doutrina do Santo Daime, desde a sua partida
do Acre nos anos 80. O Plano de Manejo da comunidade foi elaborado em
2009, pelo ICMBio em conjunto com a comunidade Vila Céu do Mapiá e as
comunidades da FloNA Mapiá-Ianuiní. Embora o manejo na FloNA permaneça
em muitos aspectos com alguns produtos sendo manejados em pequena escala,
o manejo da vida é uma realidade para essas populações amazônicas.
É fato que o Brasil sequer regulamentou o sequestro de carbono sobre suas
florestas até o momento. Segundo Viana (2006, p. 136), a Amazônia pode e
deve fazer uso do sequestro de carbono, que pode ser uma “estratégia para a
recuperação e conservação florestal em bacias hidrográficas degradadas”. Em
um recente seminário realizado em Lábrea, em 2009, Aparício (2016) cita as
palavras de João Baiano, liderança Apurinã, da TI Caititu:

eu fico observando o urubu e o serviço que ele faz para nós e para as nossas
florestas. Ele é como funcionário público. Nós também somos como o
urubu: cuidamos da natureza, isso faz bem para todo mundo, mas ninguém
nos paga por isso (APARÍCIO, 2016, p. 123).

Criada em 1989, pelo Decreto Federal nº 96.190, a Floresta Nacional do Purus


é uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável, com uma área de 256.116
hectares de extensão e um perímetro de 376,82 km, localizada na Amazônia
Ocidental, no município de Pauini, no estado do Amazonas. Situa-se na margem
esquerda do rio Inauini, iniciando a partir da foz do igarapé Solidão, no ponto de
coordenadas geográficas a 8°32’42” S e 67°27’36 W, estendendo-se a montante
do referido rio, com os seguintes limites e confrontações: a Sul-Sudoeste com a

« 73 »
margem esquerda do rio Inauini; a Norte-Noroeste com a Terra Indígena Inauini/
Teuini e margem direita do rio Teuini; e de Nordeste a Sudeste com a margem
esquerda do rio Purus e terras particulares. O limite natural entre a Floresta
Nacional do Purus e a Mapiá-Inauini é feito pelo rio Inauini. Pertence à Bacia
Hidrográfica do Rio Purus e se estende latitudinalmente entre as coordenadas
geográficas 08° 01’ 40” S a 08º 34’ 47” S e longitudinalmente 68º 04’ 09” W a
67º 16’ 23” W (BRASIL, 2009c p. 61).
A Vila Céu do Mapiá é, por assim dizer, “uma comunidade bastante peculiar,
junto ao centro geométrico do polígono desta Unidade de Conservação, próximo
às cabeceiras do igarapé Mapiá”. Assim o Plano de Manejo da Unidade38 se refere
à comunidade Vila Céu do Mapiá, epicentro da FloNA do Purus39. Segundo o
Plano de Manejo, a FloNA surgiu como estratégia de conservação do vale do
rio Purus, que dá o nome da Unidade e que abriga a Vila Céu do Mapiá e as
comunidades tradicionais ribeirinhas da margem esquerda do rio Inauini.
Formada por populações tradicionais amazônicas, seringueiros e pessoas
provenientes dos centros urbanos, as quais foram reassentadas pelo Incra, em
1982/83, a comunidade é reconhecida no plano de manejo como uma comuni-
dade tradicional que adquire um viés intencional e se organiza, na atualidade,
a partir do exercício da religião do Santo Daime. “Um movimento espiritualista
autóctone da Amazônia que se baseia num conhecimento etnobotânico ances-
tral da Floresta”.

A comunidade tinha desde sua origem, a vocação declarada de atrair adeptos


para realizar uma experiência antropoecológica peculiar: reunir um povo
para viver dentro da floresta, em devoção a floresta. [...]. Uma comunidade
florestal atípica [...]. Uma situação criada por acaso, mas historicamente
estabelecida, trouxe para a Floresta Nacional do Purus, um aspecto que lhe
distingue das demais unidades do sistema: o trabalho de preservação de um
patrimônio etnobotânico ancestral da Amazônia (BRASIL, 2009c, p. 24)40.

O plano de manejo afirma que a comunidade possui fatores culturais pe-


culiares interessantes à Política Nacional do Meio Ambiente. De acordo com o
plano:

38 BRASIL. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Floresta Nacional do


Purus, plano de manejo – Diagnóstico e caracterização. Brasília, DF: ICMBio, 2009a. v. I.
Disponível em: https://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/imgs-unidades-coservacao/
flona_purus.pdf. Acesso em: 25 jan. 2021.
39 A FloNA do Purus é localizada totalmente no município de Pauini, no estado do Amazonas,
no chamado Arco do Desmatamento ou do Povoamento Adensado. Foi criada durante a
gestão do governo José Sarney, no Programa Nossa Natureza, em 1988, pelo Decreto nº
96.190, no dia 21 de junho de 1988. Tem uma área de 256.000 hectares.
40 ICMBio. Sumário executivo. Vol. I. 2009.
« 74 »
estabelece uma significância especial para a FloNA do Purus, no âmbito
do sistema nacional de conservação: a preservação especial de uma
herança etnobotânica ancestral da floresta amazônica. Esta significância
especial da FloNA traz intrínseca, portanto, a vocação que também foi
legada fortuitamente pelo seu processo histórico de criação: constituir um
Laboratório Socioambiental, onde possam ser realizadas experiências para
um convívio mais harmonizado e sustentável entre o homem e a Amazônia,
conforme já vem acontecendo na área (BRASIL, 2009c, p. 24).

A base econômica da população residente na Floresta Nacional do Purus


é composta pelas atividades extrativistas, agrícolas e pecuária, caracterizada
por uma pequena produção destinada ao sustento familiar e ao comércio do
excedente (BRASIL, 2009c).
Na Vila Céu do Mapiá, alguns moradores cultivam roçados de lavoura
branca41 e frutíferas. Outros preferem fazer roçados ao longo do igarapé, como
meio de suprir suas necessidades, embora predomine o consumo de produtos
industrializados. Os moradores que ocupam a área ao longo do Igarapé Mapiá
cultivam lavoura branca, jagube (banisteriopsis caapi) e rainha (Psycotria
viridis), utilizadas no feitio do Santo Daime. O cultivo dessas duas plantas visa
suprir as necessidades da comunidade local, dos moradores da Vila Céu do
Mapiá e de centros afiliados (BRASIL, 2009a).
Os moradores localizados ao longo do rio Inauini têm como atividade principal
a agricultura de subsistência e a venda do excedente da produção, realizada
através da troca por gêneros de primeira necessidade com o marreteiro42, ou no
comércio dos municípios próximos. Na área foram identificados moradores que
complementam a renda com a venda de madeira. Os moradores do entorno,
habitantes das margens do rio Purus, desenvolvem agricultura de subsistência

41 Lavoura Branca: termo regional que designa cultura agrícola em escala familiar de macaxeira, arroz,
milho, feijão, etc. (BRASIL, 2009a, p. 217).
42 Marreteiro: comerciante em embarcações que navega pelos rios da Amazônia vendendo
produtos industrializados para as populações ribeirinhas a preços altos e adquirindo produtos
regionais a preços baixos.
« 75 »
na terra firme e aproveitam as praias na vazante do rio para cultivo. Na existência
de excedente, realizam a troca por gêneros de primeira necessidade com os
marreteiros ou comercializam nos municípios próximos e na Vila Céu do Mapiá.
De acordo com o Programa de Desenvolvimento Comunitário (PDC), no
início da ocupação da Vila Céu do Mapiá, o uso da terra era coletivo. O plantio
realizava-se numa área comum e os alimentos eram produzidos numa cozinha
coletiva. Com o crescimento populacional da vila, entre outros fatores, esse
modelo de uso comunal da terra e dos bens de produção foi extinto (BRASIL,
2009a, p. 208).
Dias Jr. (2005 apud BRASIL, 2009a, p. 213) cita que, nos primeiros anos de
ocupação da vila, existia uma produção coletiva de agricultura de subsistência,
atividade associada ao extrativismo da seringa e da castanha para consumo e
geração de renda à comunidade. Após vinte anos de permanência no local e com
o crescimento populacional, os moradores já não utilizam as mesmas fontes
de rendas. De acordo com os dados gerados na pesquisa, constatou-se que as
famílias que produziram borracha não realizam essa atividade há mais de 16
anos.
Em relação ao extrativismo da castanha, 84% das famílias declararam não
coletar. Entre os que disseram fazer a coleta, 36% utilizam as árvores próximas
à sua moradia e 64% utilizam outras áreas de coleta, como as citadas: Antimary,
Santo Antônio, Nova Vida, floresta e roçado ao longo do Igarapé Mapiá (BRASIL,
2009a, p. 213).
Os dados relativos à coleta, utilização e comercialização de sementes são
expressivos: 16% das famílias referem coletar uma variedade de sementes, como:
Mulungu (Erythrina verna), Andiroba (Carapa guianensis Aubl.), Corrimboque
(todos os tipos), Paxiúba (Socratea exorrhiza), Patoá (Oenocarpus bataua), Açaí
(Euterpe oleracea Mart), Tucumã (Astrocaryum aculeatum), Jarina (Phytelephas
macrocarpa), Jatobá (Hymenaea sp), Lágrima de Nossa Senhora (Coix lacryma-
jobi L.), que são sementes destinadas à confecção de artesanato (Idem).
Quanto à extração de madeira, cerca de 86% das famílias disseram que não
desenvolvem a prática, enquanto que 14% fazem extração de madeiras para
construção de casas e canoas. Em relação a essa prática, os moradores citaram a
retirada de madeiras, como: Itaúba (Mezilaurus itauba), Canelão (Ocotea spp.)
Guariúba (Clarisia racemosa Ruiz & Pav., Moraceae), Cuieira (Crescentia cujete),
Jitó (Guarea kunthiana), Marupá (Simarouba amara Aubl.), Abiorana (Pouteria
lasiocarpa), Supucaia (Lecythis pisonis), Maçaranduba (Manilkara huberi),
Cedro (Cedrela fissilis), Copiúba (Goupia glabra Aubl.), Corrimboque (Cariniana
domestica Mart.) e Angelim (Hyemenolobium petraeum Ducke) (Ibidem).

« 76 »
Conforme os dados levantados para o plano de manejo43, a extração de
óleos vegetais é feita por 6% das famílias, sendo os mais citados a copaíba, a
andiroba, a pupunha e o patauá. Os moradores informaram que a área é escassa
de animais em decorrência do fluxo de barcos no igarapé. A caça é atividade
citada por 16% das famílias. As espécies caçadas mais citadas foram: paca,
veado, porco, anta, cutia, tatu e o mutum. Em relação à pesca, a atividade é
praticada por 40% das famílias. As espécies mais citadas foram: piau, piaba,
matrinchã, pacu, sardinha, cará, pirapitinga, mandim, dourado, cuiu, surubim e
piranha. Do total, 96% pescam nos igarapés Mapiá e Repartição, enquanto 4%
pescam no rio Purus.
A caça e a pesca são realizadas independentemente do período do ano e
estão vinculadas à necessidade. Não há identificação de comércio de animais
silvestres na área.
Artesanato e sustentabilidade
Sobre a sustentabilidade do projeto Olho da Mata, Arlete Maciel diz: “quando
se vai estudar um pé de onde vem uma semente, até os bichos que se alimentam
deste pé de fruta, fazem parte da pesquisa” (informação verbal).

Em torno da semente, há ciclo de vida e toda uma cadeia de bichos que


se alimentam dela. E tudo é importante, saber se são pássaros, roedores,
peixes, para que serve a semente, a raiz, o caule, enfim, é preciso fazer
todo um estudo da floresta para poder a gente chegar a um ponto de ter a
sustentabilidade (informação verbal44).

O projeto tem como meta atuar no desenvolvimento da cadeia produtiva


das sementes nativas e no resgate do cipó-titica na comunidade Vila Céu
do Mapiá. Seu principal eixo de atuação é o desenvolvimento de programas
profissionalizantes, destinados aos jovens e às mulheres, voltados à cultura
local. O sonho, afirma Arlete Maciel, é estabelecer a cadeia comercial do projeto.
A comercialização direta dos produtos do projeto Olho da Mata se dá,
prioritariamente, nos períodos de visitação à comunidade, nos festivais e
caminhadas que fazem parte da agenda do festival, tendo como ponto de partida
o Jardim da Natureza.

43 BRASIL. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Floresta Nacional do


Purus, plano de manejo – Diagnóstico e caracterização. Brasília, DF: ICMBio, 2009a. v. I.
Disponível em: https://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/imgs-unidades-coservacao/
flona_purus.pdf. Acesso em: 26 jan. 2021.
44 MACIEL, Arlete. Arlete Maciel: depoimento [mar. 2021]. Entrevistador: Juliana Belota.
Smartphone, 2021. 1 arquivo .mp3 (40 min.).
« 77 »
Espaço de exposições, feiras e atividades relacionadas à comunhão com o
Santo Daime, a Escola de Arte e Saberes Florestais Jardim da Natureza começou
com stand de exposição dos produtos. Atualmente, há um Centro de Convivência
e visitação da vila e a sala de montagem do projeto. O próximo passo será a
construção da oficina de beneficiamento.
São parceiros diretos do projeto o Instituto de Desenvolvimento Ambiental
Raimundo Irineu Serra (IDARIS) e a Cooperativa Agroextrativista do Mapiá e
Médio Purus (Cooperar), fundada por um grupo de 21 extrativistas da região
do médio Purus, em 2003, com sede na Comunidade Céu do Mapiá. Sua área
operacional se estende pela região do entorno do rio Purus, no Baixo Amazonas,
reunindo mais de 300 cooperados em um espaço marcado por um mosaico de
proteção ambiental e que integra florestas nacionais, terras indígenas e reservas
extrativistas.
A Cooperativa mantém em Boca do Acre uma fábrica para desidratação
de frutas com fornos de secagem e usina de óleos vegetais, com produção
de óleo de andiroba, castanha, tucumã, patoá e gergelim. A Cooperar possui
certificação orgânica do cacau nativo (em sistemas agroflorestais) e trabalha na
regularização fundiária da região, com 65 comunidades ribeirinhas. Segundo
dados da Cooperar, a região apresenta um dos piores índices de Desenvolvimento
Humano (IDH) do país (IBGE, 2013). As populações do médio Purus vivem em
situação de vulnerabilidade socioeconômica45.
Na FloNa do Purus, algumas comunidades mantém a tradição do cipó-titica,
dentre elas os Apurinã, com cinco aldeias: Kamicuã, Aldeia Praia Nova, Aldeia
Ka Te Espero, Aldeia Centrinho, Aldeia Inawa e outras aldeias. A presidente da
Cooperar, Elizângela Vieira de Souza, Apurinã da Aldeia Kamicuã, afirma que,
por causa do desmatamento, o cipó se tornou cada vez mais raro.

As sementes que nós trabalhamos com o artesanato são o açaí, patoá,


abacaba, o mulungu, tucumã, a jarina e o marajá com a semente. O cipó é
o titica, a envira da malva, a palha do tucumã, o buriti, e a tala do uarumã
que é uma palmeira. A gente trabalha com a envira e a gente trabalha com o
manejo. Com o caule da pupunha que a gente faz a lança e o arco grande e
pequeno. Com o cipó-titica a gente faz o paneiro e o cesto grande e pequeno,
e da tala do arumã agente faz a peneira (informação verbal46).

Segundo Elisângela, vinte famílias na aldeia trabalham para a cooperativa. Os


frutos são entregues para a Cooperar. Os Apurinã da aldeia Kamikuã trabalham

45 Cooperar. IDH Vila Céu do Mapiá. Disponível em: www.amazonia.com.br. Acesso em: 23 jan.
2021.
46 APURINÃ. Apurinã: depoimento [mar. 2021]. Entrevistador: Graça Mitoso. Smartphone, 2021.
1 arquivo .mp3 (50 min).
« 78 »
com o tucumã, o buruti, o patoá, o pequi, o uxi, o muru-muru, o urucuri e a
castanha, extraíndo o óleo e com as sementes fazem na aldeia o artesanato
manual. “A gente já está plantando semente de cacau também. A extração é feita
na Cooperar”. (informação verbal47).
O açaí é trocado com artesãos que beneficiam as sementes e, em troca,
recebem o açaí. “As outras sementes a gente fura manualmente. Inventamos
uma maquininha manual que faz o açaí, só que é um processo lento e não temos
produção em quantidade”, afirma Elisângela.
Segundo ela, cada família que trabalha com artesanato ensina seus filhos,
que passam os ensinamentos para os netos, e assim vai continuando. “A gente
vende nas feiras, mais em Rio Branco quando é convidado, e para algumas
pessoas que passam na nossa aldeia a gente também vende”.

O nosso sonho é a gente ter um espaço para trabalhar e guardar nossas


máquinas, ter os maquinários para a gente trabalhar com nosso grupo,
porque a gente trabalha ainda como no tempo antigo do nosso avô, do
nosso pai, de modo manual. Mas, os jovens estão esmorecidos, não querem
mais trabalhar tanto de modo manual. É um trabalho que não rende muito,

47 SOUZA, Elisângela de. Artesanato na Aldeia Kamikuã [jan. 2021]. Entrevistador: Graça
Mitoso. Smartphone, 2021. 1 arquivo .mp3 (1h30).
« 79 »
porque não tem produção e tendo isso, melhora muito pra nós (informação
verbal48).

Ponto estratégico
O padrinho Alferdo Gregório de Melo define o Céu do Mapiá como um ponto
estratégico para o desenvolvimento não só da comunidade como da FloNA.
“Nossa comunidade já tem um nome mundial, uma ecovila que trabalha nesse
sentido do progresso, então é uma grande representação progressista de artistas,
de artesãos e de boa notícia”, diz.
A primeira expansão, para ele, é a doutrina. “O trabalho da expansão
espiritual, da parte doutrinária, e a ligação com vários pontos no Brasil e no
exterior, isto é o primeiro ponto de expansão, porque daí é que vem a frente de
outros programas e projetos”, diz e acrescenta:

A frente dos artesãos, com o bom artesanato, expande através da busca pelo
melhoramento desse produto. Assim também a preservação propriamente
dita do Mapiá, por respeitarmos a natureza, por preservarmos a sua
biodiversidade, também temos aí uma frente de expansão. Somos um povo
que representa a Floresta, e que trabalha com o melhoramento, o crescimento
dessa comunidade através do extrativismo (informação verbal49).

Sobre o projeto Olho da Mata, Melo afirma: “este e muitos outros que a gente
tem buscado, mas que não tem ainda acontecido, como os projetos de turismo,
relacionados à canoagem e ao arborismo, são frentes que precisam expandir
na comunidade”. Destaca o padrinho, “o que temos hoje, além do artesanato,
são os trabalhos de carpintaria e de marcenaria, que também envolvem a parte
da farinhada, daquilo que é o básico, a segurança alimentar, dentro do nosso
pequeno povo, da nossa pequena capacidade de expansão”, diz e acrescenta:

O que eu tenho feito mesmo, através do Jardim da Natureza são as aulas


da parte ecológica, do conhecimento das madeiras de lei, das madeiras
medicinais, madeiras de chás, essas coisas assim e mais a implementação
das sementes. Acreditamos que as sementes são uma das principais fontes
alternativas de expansão da comunidade.

48 SOUZA, Elisângela de. Artesanato na Aldeia Kamikuã [jan. 2021]. Entrevistador: Graça
Mitoso. Smartphone, 2021. 1 arquivo .mp3 (1h30).
49 MELO, Alfredo. C aminhos para a sustentabilidade na Vila Céu do Mapiá [mês. 2021].
Entrevistador: Juliana Belota. Smartphone, 2021. 1 arquivo .mp3 (1h30).
« 80 »
Referências

AMAZONAS. Secretaria do Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.


Sumário da proposta de zoneamento ecológico económico da sub-região do
Purus. Manaus, AM: SDS, 2010. p. 137.
AMAZONAS. Secretaria do Meio Ambiente do Estado do Amazonas. Plano de gestão da
Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus. Manaus, AM: SEMA,
2020. vols. 1 e 2. Série Técnica, Plano de Gestão.
APARÍCIO, Miguel. Panorama contemporâneo no Purus Indígena in Álbum Purus/
organização Gílton Mendes dos Santos, Manaus: EDUA, 2011.
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geologia, geomorfologia, pedologia, vegetação e uso potencial da terra. Rio de
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« 82 »
Cadeia de afetos
Maria Oiticica

A história da Maria Oiticica Biojoias, a qual compreendi tempos depois da


criação da minha empresa, está diretamente ligada à minha infância em uma
Manaus do final dos anos 1940 e início dos 1950, que se misturava e dialogava
com a floresta. Meu pai, Sergio Lopes da Silva, era um comerciante tradicional
da selva e dos rios amazônicos.
Ele tinha um barco chamado “Sergipe” e passava meses embarcado. Sua rota
principal era o rio Purus. Em um primeiro momento, ele era contratado pelos
poderosos de Manaus para trazer o látex do interior; era apenas um empregado
mesmo. Mais adiante, com o desinteresse pela borracha brasileira, ele se tornou
um comerciante que, muitas vezes, trazia pessoas doentes, amigos que fazia em
suas viagens e que precisavam se tratar na cidade. Ele levava panos coloridos,
remédios, colônias e outros produtos mais. Essas peças eram encomendas do
pessoal que trabalhava nos seringais. Na volta, ele trazia, basicamente, alimentos.
Por conta de sermos uma família simples, de poucos recursos, as idas e
vindas de nosso pai eram momentos especiais, até porque era no “Sergipe” que
chegavam os nossos brinquedos infantis. Eram frutos como o tucumã, cujos
caroços eram transformados em botões, em peças de jogos. Fazíamos coleções
de sementes. Tínhamos no quintal um parque de diversões, tudo feito com
pneus reciclados. Eram balanços, gangorras, barras. Tratores eram feitos com
latas de leite recheadas de terra. Tudo se transformava.
« 83 »
Falo sobre minha infância porque, como
já disse, anos depois, fui compreender a
importância dessa fase no meu processo
criativo. Casei-me muito nova com meu
primeiro marido, Ivan, um carioca, e, em
1967, com apenas 19 anos, fui para o Rio de
Janeiro. No Rio, tive meus dois filhos, Pedro
e João. Além da missão maternal, tive um
atelier de costura durante muitos anos, em
casa. Depois abri uma confecção por pouco
tempo, ocasião em que lojas sofisticadas como
a Biba encomendavam peças diferenciadas,
incluindo os meus trabalhos de patchwork.
Sempre fui da labuta.
Em 1984, já separada, voltei para Manaus,
onde reencontrei e me casei com o meu atual
marido, Cesar Oiticica. Nesse meu retorno,
cursei a faculdade de Jornalismo, me formei já com 40 anos e trabalhei na área
de Comunicação.
Em 1996, perdi o meu filho mais velho, Pedro, e isso me fez repensar a
minha história. Eu precisava caminhar e absorver aquela dor. Em 2002, com a
decisão do Cesar de voltar ao Rio de Janeiro, comecei a pensar em algo para
fazer depois que eu me aposentasse, algo para o futuro que me desse prazer, que
me alimentasse a alma. Durante esse processo, precisei presentear uma amiga
americana. Tive a ideia, então, de dar algo que representasse a minha região.
Fui até o Mercado Municipal, à loja dos Waimiri-Atroari, e me deparei com
muitas daquelas sementes da minha infância, com fios e palhas maravilhosos.
Aqueles materiais atiçaram a minha imaginação, o meu olhar artístico. Pronto,
a sementinha da criação começou a ser regada.
Comprei algumas sementes, além de fios naturais, ferragens e alicates.
Montei uma pulseira e mandei uma mensagem para essa amiga, falando sobre
o material e sobre os cuidados necessários com a peça. Sem me dar conta,
mudava o rumo da minha história. A partir dali, ainda em Manaus, não parei
mais de criar, de estudar sobre cada semente.
Quando desembarquei no Rio, já trazia uma quantidade enorme de materiais,
de peças prontas e em desenvolvimento. Foi a partir daí que eu compreendi que
já tinha o combustível para seguir adiante na vida.
Passei a pesquisar novas matérias-primas e pigmentos naturais – não só da
Amazônia, mas também da Mata Atlântica e do Cerrado – e a vender, em casa
« 84 »
mesmo, o que produzia. A aceitação foi grande e precisei abrir um ateliê com
apenas uma artesã. Ao contratar uma segunda funcionária, a empresa precisou
ser criada. Registrei-a com o nome de Tururi Artesanato Ltda., mas, tempos
depois, ao sair uma matéria sobre o meu trabalho no jornal O Globo, o meu
nome prevaleceu e assim nasceu a Maria Oiticica Biojoias.
Em 2005, em busca de visibilidade, decidi apostar em um quiosque no
Shopping Rio Sul, em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro. Percebi, no entanto,
que o público desse estabelecimento não tinha identificação com a marca. Desisti
e fechei, pouco mais de um ano depois. Em 2006, abri uma loja na Galeria Fórum
de Ipanema, onde pude identificar melhor o perfil das pessoas que desejavam
esse tipo de produto tão específico.
Em dezembro desse mesmo ano, abri
a loja no Shopping Leblon. Ali estava
realmente o meu público. Foi então
que a marca deslanchou.
Costumo dizer que o conceito
de sustentabilidade, ou de
desenvolvimento sustentável, está
atrelado à marca desde a sua criação,
antes mesmo de eu saber direito o
significado desses termos. Eu era
sustentável sem saber. Sempre busquei
conciliar as necessidades econômicas,
sociais e ambientais sem comprometer
o futuro de quaisquer uma dessas
demandas. Essas três vertentes devem
caminhar juntas. Como impulsor
da inovação, de novas tecnologias
e da abertura de novos mercados, o
desenvolvimento sustentável fortalece
o modelo empresarial atual, que é
baseado em ambiente de competitividade global.
Nossa empresa, e eu digo “nossa” porque o trabalho em equipe é fundamental
na minha atividade, utiliza, desde sempre, materiais que respeitam critérios de
sustentabilidade e de comércio justo - tais como cuidados com a procedência da
matéria-prima, impacto do processo produtivo no meio ambiente, certificação de
comunidades que trabalham o manejo sustentável e que não utilizam o trabalho
escravo ou subescravo, além do resgate e preservação da diversidade e tradições
culturais. Desde o início, inserimo-nos em uma cadeia produtiva responsável,
« 85 »
procuramos parceiros em comunidades conscientes que privilegiam o manejo
florestal sustentável. São etnias indígenas, grupos familiares, desaldeados,
mulheres em situação de vulnerabilidade.
Essas parcerias são fundamentais em nosso processo produtivo, que
é essencialmente artesanal. Cada semente tem a sua especificidade, a sua
sazonalidade, o seu tempo na natureza. É importante falar aqui que nada
que utilizamos é arrancado da floresta. Os catadores, ponto de partida dessa
cadeia produtiva, têm um papel fundamental no processo, pois são profundos
conhecedores das matas. A partir do material coletado é que a roda começa a
girar e também o aquecimento da economia local.
Somos uma empresa de pequeno porte, artesanal e trabalhamos muito isso
com nossos clientes. Somos o lado fraco da corda de um mercado competitivo,
mas temos a nosso favor exatamente o fato de realizarmos um lindo, pioneiro e
brasileiríssimo trabalho. Precisamos mostrar sempre todo o processo de feitura
de cada peça, assim como as técnicas que desenvolvemos durante quase 20 anos
de tingimento e de esterilização, que evitam os desagradáveis “bichinhos”, já
que trabalhamos com matéria orgânica. Semente é vida.
É preciso lembrar também que cada semente tem características próprias
de tingimento, tamanhos variáveis, tempo de coleta e de secagem. Tudo isso
posto, podemos afirmar que, e esse é o nosso diferencial, nenhuma peça é igual
a outra.
Dentre as dezenas de sementes e cascas que utilizamos, a maioria vem da
Região Norte, como a jarina - nosso marfim vegetal, por sua consistência e
beleza –; o açaí, em suas diversas versões; o inajá (Attalea maripa); o tucumã
(Astrocaryum aculeatum), a paxiúba (Socratea exorrhiza); o morototó (Schefflera
morototoni); a flor de babaçu (Attalea ssp;) o murumuru (Astrocaryum
murumuru) ; a espata de palmeira conhecida como canoinha, entre outras.
As fibras também são elementos fundamentais da nossa atividade. Com
a palha de arumã e os fios de tucum e de buriti, fazemos colares, brincos e
pulseiras.
Desde o início, a nossa produção é concentrada no Rio de Janeiro, em nosso
ateliê. Trabalhamos com um grupo de artesãs, algumas delas oriundas de projetos
sociais que realizamos em nossa trajetória, como o Novos Caminhos, em parceria
com o Instituto Fernandes Figueira. Esse projeto abriga mães vulneráveis, sem
renda, que acompanham, às vezes por meses, os filhos doentes no hospital.
Muito do nosso aprendizado foi adquirido pelo caminho. O novo consumidor
está atento e consciente, e isso acaba impondo novas regras às empresas que
partem para a criação de soluções personalizadas. É esse o espaço que hoje
ocupamos. Resumindo, trabalhamos no resgate de uma cultura ancestral com
« 86 »
matéria-prima natural e que era tradicionalmente usada como adorno pelas
civilizações da floresta. Há também o conceito de atitude ética, no qual a
responsabilidade social e ambiental é o foco principal. A marca traduz o meu
pensamento como designer.
Temos, hoje, em abril de 2021, três lojas físicas no Rio de Janeiro: no
Shopping Leblon, no Aeroporto Internacional Tom Jobim e em Búzios, além da
nossa loja virtual (loja.mariaoiticica.com.br). Temos também representantes da
nossa marca em diversos pontos do país.
Desde a confecção da nossa primeira peça, trabalhamos, como já dissemos
aqui, com o foco na sustentabilidade e na brasilidade. O mercado exportador
sempre foi, e sempre será, acredito muito nisso, um mercado que valoriza
o que temos de melhor e que também nos faz brasileiros: o DNA da nossa
criatividade e da nossa inovação; o DNA de um país que é um dos mais ricos
do mundo em biodiversidade, que possui uma diversidade cultural belíssima e
que é rico também por ter uma Economia Criativa diferenciada. Não oferecer
esses atributos de brasilidade ao mercado exportador é uma cegueira enorme. O
mercado exportador sempre esteve no nosso radar. Com a crise e a retração do
consumo interno, aprofundamos ainda mais a exportação na empresa. Hoje é
imperativo exportar, trata-se de uma questão de sobrevivência.
Depois de pesquisar, identificamos potenciais canais de distribuição e
fechamos algumas grandes parcerias nos últimos anos. A principal delas foi com a
concept store Casa Pau-Brasil, em Lisboa, Portugal, que tem uma curadoria voltada
à brasilidade, com total identidade em relação aos nossos valores e estratégias.
Essa parceria começou em 2017 e nos rendeu um projeto de licenciamento da
marca, o qual abriu caminhos para o mercado europeu. Já estivemos também
em outros pontos importantes, como na loja de departamentos Macy´s e no
Whitney Museum of American Art, ambos em Nova York.
Nesse mesmo ano de 2017, fui convidada, com outros expoentes de
diversas áreas, incluindo a gastronomia, artes plásticas e moda, para conhecer
o Programa Michelin Ouro Verde Bahia, um dos principais projetos de
desenvolvimento sustentável do grupo francês. De lá, voltei com a ideia de uma
coleção, denominada “Origens”, criada a partir dessa visita. O reencontro com
as seringueiras, mais uma vez, me remeteu à infância em Manaus e ao meu pai.
Contudo, outro fato também marcou essa visita. Curiosa que sou, pedi
para conhecer as comunidades do entorno da reserva, que fica na região Sul da
Bahia, pouco abaixo de Ilhéus. Em uma delas, que não me recordo qual, pedi
para fotografar uma senhora linda, que desfiava um feixe enorme de palha de
piaçava. Como resposta, ouvi que tudo bem, que eu poderia fotografar, que

« 87 »
era comum turistas aparecerem por lá, “mas que nunca voltavam...”. Aquela
conversa não saiu da minha cabeça.
Voltei para o Rio e, dois anos depois, fui procurada pela empresa francesa
para fazer uma parceria, o projeto Arte Solidária Michelin, com moradoras das
comunidades de Ituberá, Tabocas e Jatimane, composta por descendentes de
quilombolas. Era um sonho a ser realizado. Acontece que o projeto, uma troca
de conhecimentos com as artesãs locais, seria todo presencial. Já estava de ma-
las prontas, animada com a ideia desse intercâmbio fantástico, com a troca de
saberes de nossa equipe com aquelas mulheres talentosas, quando veio a pan-
demia da Covid-19. No começo, ficamos sem saber o que fazer, como todos os
brasileiros, mas logo decidimos realizar tudo de forma virtual.
Conseguimos realizar o projeto, mais que isso, estabelecer um vínculo
emocional com os atores locais – as artesãs –, que cocriaram conosco a coleção
Arte Solidária. Essa coleção entrou no nosso catálogo, com lucro revertido para
essas comunidades e, possivelmente, entrará no nosso escopo de exportação.
Essa foi uma experiência que sintetiza bem a minha concepção pessoal de
sucesso. A parte comercial é importante para a sobrevivência da Maria Oiticica
Biojoias, mas não é o principal. Por esse motivo, aceitei o convite da minha
irmã Graça Mitoso para contar aqui a minha história, para que fique claro como
o artesanato e a economia criativa têm um forte impacto na vida das pessoas,
principalmente nas comunidades mais longínquas, gerando renda e inclusão
social.
Descobri, com o passar do tempo, que a empresa tem uma razão maior de
existir, por isso atravessamos tantas intempéries. Essa razão é o que chamo de
Cadeia Produtiva de Afetos, que abraça famílias, especialmente as mulheres; que
fortalece etnias, dentro das nossas humildes possibilidades; que faz pequenas
economias girarem; que cuida, preserva e enaltece a floresta; e que representa,
por fim, o melhor do DNA brasileiro, a nossa parte bonita, criativa e solidária, a
qual o Mundo aprendeu a amar.

« 88 »
Perspectiva ecológica:
vozes artesãs
Graça Mitoso

A Amazônia é uma vasta superfície de terra, matas e rios, em parte formada


por um conjunto de coisas que lhe são características, entre as quais, o índio
e o caboco. (MITOSO, 2010, não paginado).

Este capítulo representa a possibilidade de um contato, ainda que através da


fala das artesãs (os), com a Vila Céu do Mapiá, que é expressão do que chama-
mos de “povos da floresta” ou de gente que escolheu interagir com ela de um
modo muito especial, vivendo-a sistematicamente e entendendo a sua ecologia.
A Vila Céu do Mapiá abriga o projeto Olho da Mata e o grupo de artesãos que
interage com o projeto. Centenas de moradores vivem no interior ou no entorno
da comunidade e sobrevivem do extrativismo e da agricultura de subsistência.
Grande parte dessa população é descendente dos chamados “Soldados da Borra-
cha”, que migraram de várias regiões do país, principalmente do Nordeste, atraí-
dos pelos incentivos governamentais para aumentar a produção de borracha dos
aliados durante a Segunda Guerra Mundial (ICMBio, 2009).
As populações residentes nas áreas da Vila Céu do Mapiá, habitam a Floresta
Nacional, Igarapé Mapiá, margem esquerda do rio Inauiní e margem esquerda
do rio Purus (da Boca do rio Inauiní até o local denominado Praia Grande). Do
ponto de vista da sociodiversidade, a bacia do rio Purus é caracterizada por uma
« 89 »
intensa rede de intercâmbios que constitui a história dos fluxos sociais regionais
(APARÍCIO, 2010).
A promulgação da Lei nº 9.985, que institui o Sistema Nacional de Unidades
de Conservação (SNUC), no ano 2000, é um marco na história da conservação,
no país. A estratégia adotada para a conservação de florestas no Brasil, até a
criação do SNUC era a criação de parques e outras unidades de proteção inte-
gral. Um modelo norte-americano: parques sem gente, baseados no pressuposto
de que qualquer convivência humana é inconciliável com a conservação de
florestas (VIANA, 2006). Com o SNUC, surgem as Reservas extrativistas, Flores-
tas Nacionais e Reservas de desenvolvimento sustentável, todas unidades que
contemplam as populações tradicionais. Este foi um fenômeno que contribuiu
para a reconfiguração territorial da região do médio Purus, situada no arco do
desmatamento no sul da Amazônia.
Foram a partir daí reconhecidos direitos fundiários historicamente negados
às populações extrativistas, grupo social que, junto com os povos indígenas, ti-
nha se caracterizado desde o século 19 por um grau extremo de vulnerabilidade,
exclusão social e impossibilidade de acesso à plena cidadania.

As garantias fundiárias para as populações tradicionais projetam a insurgência


dos seringueiros, dos extrativistas, como novo sujeito político, com
protagonismo inusitado na rede sociopolítica e no “universo de cidadania”
do rio Purus. O processo contemporâneo não consiste apenas na formação
de um novo mosaico espacial na cartografia do médio Purus, e sim num
novo mosaico de emergência da sociodiversidade regional, que alcança assim
uma conquista sem precedentes no que diz respeito a direitos territoriais
(APARÍCIO, 2010, p. 118).

A população residente na Floresta Nacional do Purus é constituída princi-


palmente por dois grupos distintos de ocupação ocorrida através de processos
diferentes (ICMBio, 2009). Um processo foi protagonizado por famílias remanes-
centes do processo histórico de colonização da Amazônia, impulsionado pelo
ciclo econômico da exploração da borracha a partir de meados do século XIX.
São extrativistas ligados por laços de parentesco, estabelecendo relações pró-
prias. Outro grupo representativo na área é formado por moradores oriundos do
processo de ocupação dirigido pelo Incra, na década de 80, que assentou cerca
de 300 pessoas ao longo do igarapé Mapiá (BRASIL, 2009c).
Os dados indicam uma população de, aproximadamente, 948 pessoas
residentes na Unidade. No entorno estudado existem cerca de 412. Os moradores
estão localizados predominantemente nas margens dos rios e igarapés, sendo
o barco o principal meio de transporte. Já as principais fontes de renda são:
a agricultura e o extrativismo vegetal. A prestação de serviços e os recursos

« 90 »
de fontes externas, tais como aposentadoria, projetos de desenvolvimento,
vínculos empregatícios, doações, entre outros, atualmente integram os ciclos
econômicos da Vila. O parentesco e a religião são as bases agregadoras do
conjunto de moradores da Floresta Nacional. Como a intenção da população
local é protagonizar uma experiência de convívio harmonizado com a Floresta
Amazônica, em geral, pode-se tornar de grande interesse para a Política Nacional
de Meio Ambiente e, em particular, para as Florestas Nacionais (Idem).
Embora a regularização fundiária da área e os planos de turismo de base
comunitária não estejam definidos, a população da FloNA está espacializada
na casa ritual (igreja e Estrela da Mata), nos jardins medicinais, na floresta, na
roça, e na Escola de Arte e Saberes Florestais Jardim da Natureza. O turismo
desenvolvido na comunidade, no âmbito da conservação, conduz a uma ampla
diversidade de saberes que se auto conduzem a partir do eixo da própria
sociodiversidade.
O artesanato da Vila Céu do Mapiá é constituído pelo movimento de um
povo original do Purus e por uma rede de trocas de conhecimentos relacionadas
ao fenômeno da expansão dos usos da ayahuasca como medicina sagrada,
advinda dos conhecimentos tradicionais dos povos ancestrais que habitam
toda a extensão do rio Purus. Mais específicamente, relacionado aos grupos
Apurinã do médio e baixo rio Purus, que impulsionam o remanejamento de
conhecimentos ancestrais de fibras vegetais, como o Carrapixo e o Tucum, as
sementes e cipós, práticas que vinham se perdendo na comunidade.
Desde a década de 90, a parceria com os Apurinã se estende para além
do campo do ensino-aprendizagem indígena, chegando a adentrar o campo da
governança local. Atualmente, há dirigentes Apurinã atuando na Cooperativa
Extrativista do Médio Purus (Cooperar). É também constituído pela presença de
moradores intencionais que vieram na companhia do pad. Sebastião, em sua
saga desde a Colônia Cinco Mil50, passando pelo Seringal Rio do Ouro, em 1980,
até chegar no seringal Vila Céu do Mapiá, que se tornou o centro de irradiação
da doutrina do Santo Daime. Um povo, que vive em torno a religião, com
tradições próprias, mantendo suas formas de trabalho, e assegurando instrução
e orientação para seus filhos, prestando-se assistência e ajuda mútua.

O artesanato foi um setor que se incorporou à produção comunitária com a


chegada dos artesãos. Como essas pessoas não sabiam lidar com o trabalho
mais pesado na agricultura, foram se organizando e, em pouco tempo, o
artesanato feito para ser vendido em Rio Branco, apresentou resultados
financeiros consideráveis para a economia da Colônia Cinco Mil. O material
era adquirido e distribuído para os artesãos pelo chefe do setor. A Oficina

50 Ver: FROES, Vera. Santo Daime, cultura amazônica. História de Juramidam. 3. ed. São
Paulo, SP: Yagé, 2019.
« 91 »
de artesanato Ripi Iaiá51 passou a contar com um estatuto elaborado pelos
artesãos, demonstrando a organização e a seriedade com que era encarada
essa atividade (FROES, 2019, p. 60).

Eles firmaram seu trabalho no uso sustentável de produtos florestais não


madeireiros: óleos, frutos, sementes, folhas, raízes cascas e resinas, tais como
açaí, andiroba, castanhas, cipó-titica e muitas outras sementes. Por conseguinte,
seguiram pesquisando novos materiais, juntando saberes, organizando-se,
construindo um grupo de artesanato que vem se empenhando no resgate dos
saberes ancestrais, desde a colheita até o beneficiamento da matéria-prima. O
resultado foi o reconhecimento das espécies na floresta, o resgate dos usos de
cipós, (titica, ambé), design e montagem de peças artesanais, pintura em madeira,
em sementes e em tela, adequando-se às novas técnicas de beneficiamento e
manejo de sementes e cipós.

Estamos fazendo reflorestamento das espécies valorizadas pelo artesanato.


Já replantamos o tucum, o tucumã, o açaí, a bacaba, o patauá, a paxiubinha,
o paxiubão, o marajá, entre outros. Isso é o que eu tenho feito, através do
Jardim da Natureza, onde são dadas aulas da parte ecológica (informação
verbal52).

O aperfeiçoamento desses estudos levou a um modelo de uso e conservação


da natureza na região, incentivando a manufatura de produtos madeireiros e não
madeireiros de forma sustentável, aumentando a renda familiar e a qualidade
de vida na vila e no entorno das populações ribeirinhas. Vale ressaltar que a
educação ambiental é a base de todas as oficinas existentes hoje na Escola de
Arte e Saberes Florestais Jardim da Natureza, envolvendo manejo florestal.
A comunidade, por sua vez, maneja com sabedoria os recursos naturais da
floresta, sempre deixando uma parte para o alimento dos animais, com cultivo
de algumas espécies utilizadas e o início de um banco de dados de sementes que
fazem parte da formação do patrimônio genético da região.
Em março de 2003, foi realizada, na Vila Céu do Mapiá, uma oficina
patrocinada pela WWF Brasil, com técnicos de organizações não governamentais.
Em razão de articulações promovidas pela comunidade local, a WWF havia
lançado no orçamento referente à 2002/2003, atividades de apoio à construção
do Plano de Manejo da Floresta Nacional do Purus. Técnicos da WWF, Instituto
Nawa e CTA reuniram-se, então, durante três dias com lideranças da comunidade
local, sensibilizando-lhe para temas como o Sistema Nacional de Unidades de
51 Ripi Iaiá era o nome do grupo de artesãos liderados pelo mestre artesão, Adriano Grione, na
Colônia Cinco Mil, na década de 90. (MACIEL, Arlete. Conversa pessoal. Smartphone. Data:
24 maio 2021).
52 MELO, Alfredo Gregório de. Expansão do artesanato. Conversa Pessoal. Smartphone. 23 mar. 2021.
« 92 »
Conservação - SNUC, Plano de Manejo e Conselho de Gestão. Deliberou-se que
a comunidade deveria se preparar para o processo de construção do Plano de
Manejo da Floresta Nacional. Decidiu-se priorizar a elaboração de um Plano
de Desenvolvimento Comunitário (PDC), para ser posteriormente incorporado
ao Plano de Manejo, quando este fosse elaborado. Assim, foi dado início a
um processo de planejamento participativo patrocinado pela WWF com apoio
técnico de Instituto Nawa e CTA, além de outras assessorias especialmente
contratadas. Nesse processo, ao longo de um ano e meio, foram treinados cerca
de vinte agentes comunitários em técnicas de pedagogia social, facilitação
de reuniões comunitárias, mobilização social, etc. Promoveram-se diversas
oficinas, trabalhos de campo, reuniões de bairro e capacitações de membros
daquela comunidade da Floresta Nacional, resultando, como principal produto,
o documento intitulado Plano de Desenvolvimento Comunitário da Vila Céu do
Mapiá, datado de junho de 2004.

« 93 »
Vozes artesãs

Adriano Grione
Sou italiano, tenho 68 anos. Sou descendente
de família de artesãos que mexiam com madeira
e móveis. Eu sempre estive ligado no artesanato,
acompanho o movimento desde a década de
70, quando fundamos o grupo de artesanato da
Colônia Cinco Mil, o Ripi Iaiá. Sempre apreciei o
bom artesanato, visitei mercados, lojas, procurei
me aprofundar nos materiais amazônicos e nas
técnicas de manuseio. Quando cheguei no Brasil, na
Amazônia, além de mercados e feiras, visitava cada
artesão nas praças e ruas. A Amazônia, em 1978,
realmente, não tinha muito organizada a produção do artesanato. Em Manaus,
havia mais artesanato indígena, cestaria, coisas de utilidade, não era como
biojoia. Era muito bonito, mas não tinha muito incentivo. Chegando ao Acre,
não tinha nada de artesanato, tinha apenas uma lojinha de artesanato indígena,
no aeroporto.
A Cinco Mil era um lugar que abrigava muitos artesãos que acompanhavam
o padrinho Sebastião, no santo Daime. Era um berço de bons artesãos que
trabalhavam com todo tipo de coisas: madeira, pintura, etc. O Acre começou a
desenvolver o artesanato daí. O pessoal vindo, ensinando aos outros e divulgando.
Foi um período de alto potencial para o artesanato. O SEBRAE incentivou, deu
ferramentas para nós. Nós éramos os principais atores do artesanato e criamos,
então, a Associação Acreana de Artesãos (Asaarte).
O artesanato do Acre ficou forte e reconhecido no Brasil. Passamos a produzir
para exposição em vários estados: Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. A
beleza das sementes atraía. A subipurina, o mulungu e a jarina. Também havia
as peças de madeira, fazíamos escultura, souvenirs. Estávamos no paraíso das
sementes. Muita matéria prima à disposição e tinha o grupo da agricultura que
interagia com o grupo de artesãos. O artesanato até resolveu o problema da
cozinha geral, onde fazíamos o artesanato. Hoje, no Acre o artesanato diminuiu.
Quando eu cheguei em Boca do Acre, eu era o único artesão, tinha outros
que faziam colher de pau, mas eram poucos. Então, comecei a furar semente. Em
pouco tempo, os jovens se aproximaram. Eram uns doze. Um furava a semente,

« 94 »
outro lixava, produzíamos e mandávamos para o Acre e para fora. Uns viraram
artesãos, outros professores. Os jovens agradecem até hoje.
Hoje, trabalhamos em parceria com os Apurinã. Aprendi muito com eles.
A técnica de fazer arco, lança, a lança de haste do pé da pupunha. Aprendi a
trabalhar com o tucumã e aprendi muita coisa sobre a simbologia das palmeiras,
relacionada à proteção na Floresta. O tucumã, por exemplo, é uma planta
considerada de muita proteção. Até a fibra eles tiram do olho da palha verde. E
esse aprendizado foi que me fez fincar o pé na floresta e aprender e aprender.

Maria José Rocha


Sou Maria José Rocha, trabalho no projeto
Olho da Mata há três anos. Aprendi a pintar,
trabalhar com as sementes, a fazer terço de
sementes e a linha do tucum. Trabalho com
macramê. Faço filtro dos sonhos com o cipó-titica
e aprendi a fazer doces. Aprendi a plantar a rainha
(Psychotria viridis), que cultivamos no terreiro.
O aprendizado com artesanato é divertido e é lá
onde encontramos o convívio mais próximo no
aprendizado, no Jardim da Natureza. Algumas obras minhas já foram vendidas
fora da comunidade, nas igrejas: quadros e espelhos (de cipó-titica).

Marlene Gomes de Oliveira


Nasci dentro do rio Pauini e batalhei muito lá
por dentro. Tive uma família e vim aqui para a beira
do Purus. Agora, estou aqui no Céu do Mapiá com
a irmandade do Santo Daime, sempre habitando
pela floresta e batalhando pela floresta e pela vida
nativa, como nativa mesmo, vivendo da floresta. Aí
que continuei a vida, não tinha onde comprar nada.
A gente se virava era da mata mesmo. Tudo que se
tinha, a gente usou. Quando a gente passou a usar
o cipó-titica, a minha mãe fazia paneiro, ela sabia fazer paneiro, peneira, mas
eu não aprendi a fazer paneiro. Eu tinha muita vontade de aprender a fazer
paneiro, mas abano eu aprendi. Aquilo que a gente aprende, se não botar em
prática, a gente perde.

« 95 »
Foi isso que aconteceu comigo. Mas, quando voltou o projeto do cipó-titica,
aqui no Jardim da Natureza, na comunidade do Santo Daime, a gente começou a
resgatar. O cipó tem um segredo, porque o cipó tem isso: a gente tirou da mata,
tem que usar, não pode deixar embolado, atrasa a vida da gente. Ele é vivo, é a
transformação de um inseto, um ser vivo da mata e isso acontece.
Quando comecei a trabalhar com o cipó, eu tinha 22 ou 23 anos. Aqui no
jardim nós fizemos paneiro com a D. Maria Sena, uma anciã do Purus. Ela
veio dar aula aqui, e eu fiquei me revezando aqui e na beira do Purus, onde
eu ajudava a minha filha a apanhar feijão. Também aprendi a tecer vassoura
com uma turma grande, com pessoas de fora. Até estrangeiros e uma turma da
cozinha esteve aqui para tecer cabeça de vassoura. Eu dou aula, sou professora
de abano. A Maria Damião, anciã da comunidade, é professora de vassoura. As
meninas daqui aprenderam a tecer a cabeça da vassoura.

Maria Damião
Quando eu cheguei no Mapiá foi pelo bem da saúde.
Foi muito bom conhecer o Mapiá e receber a cura. Eu
comecei a trabalhar com o cipó-titica porque eu aprendi
com meu pai no seringal. É muito bom trabalhar com
o cipó-titica. Mas eu só sei fazer vassoura de cipó-titica
e também quando eu vou na mata eu conheço o cipó-
titica. Eu sei diferenciar um cipó do outro. Eu não sei
falar muito não, então um cheiro para vocês.

Fabiana Rocha
Vou falar sobre o jardim da natureza, sobre o
desenvolvimento do jardim. Entrou um grupo muito
bom de trabalhar, uma professora muito atenciosa
que desenvolveu a gente para trabalhar na pintura. A
gente pintou blusas, cuias, rolinhas de pau que meu
pai tirou da mata, muito bacana para a gente pintar.
Aprendemos a ir na mata tirar o cipó-titica. O cipó-
titica é um cipó muito bom de trabalhar, faz filtro de
sonhos, vassourinhas, faz vários tipos de artesanato se você souber desenvolver.
Também aprendi a fazer doces de manga, caju, goiaba, muitas frutas, que a
gente corta e deixa só as polpas, que vão para o fogão de lenha e para o forno.

« 96 »
As professoras foram muito dedicadas com a gente. Desenvolvemos muitas
coisas no Jardim, foi muito legal porque nós somos umas jovens que precisam
de recurso, de desenvolver isso dentro da gente, aproveitar essa oportunidade
que o padrinho Alfredo nos deu da gente trabalhar neste lugar a Escola de Arte
e Saberes Florestais Jardim da Natureza.
Então, a gente deve levar para frente isso, porque é uma oportunidade muito
especial de trabalhar com a floresta e o artesanato no projeto Olho da Mata. É
o que a gente tem para trabalhar é coisa da terra. O jardim é um lar abençoado,
então só me resta agradecer a todos e todas que receberam a gente no Jardim
com muito amor e carinho.
Quero levar isso para frente, para o resto da minha vida, jamais esquecer.
É muito bom trabalhar com pintura, com o cipó-titica, com a linha do tucum,
que fazemos pulseira, macramê, colar, vários artesanatos. Quero agradecer pela
oportunidade.

Diana Tomás da Silva


Tenho 16 anos, comecei a trabalhar no
jardim com 12 anos de idade. Eu trabalhava no
voluntariado mesmo. Eu entrei só por diversão,
achava legal, muito interessante o que eles
faziam lá. Eu costumava fazer muitos filtros
dos sonhos com cipó-titica, pintava plaquinhas,
desenhava, e fazia pulseiras de macramê.
A gente estava acostumada a fazer muitos chaveiros com sementes e usava
bastante mulungu. Eu queria ter aprendido a usar o cipó-titica com meu avô,
mas quando ele começou a fazer isso eu era muito pequena, eu não lembro
muito, mas ele me ensinou umas coisas. A minha mãe sabe um pouco mais, e eu
estou resgatando este saber agora. Eu também sou auxiliar de dentista, trabalho
no Centro de Medicina da Floresta e sou babá aqui.

Maria Clara Oliveira Ferreiro


Meu nome é Maria Clara, eu tenho 17 anos, meu
pai Waldo Ferreiro é argentino e minha mãe, Maria
Eunice, mora no Céu do Mapiá. Trabalho no Jardim
da Natureza há três anos. Comecei me interessando
pelas aulas de pintura, aí fui me envolvendo com o

« 97 »
artesanato e fui gostando. Já trabalhei com mulungu, semente de açaí, patoá e
outras.
Fazemos terços, pulseiras, filtros de sonhos e espelhos com moldura em
fibra, sementes e cipós. O material passa pelo beneficiamento, é tingido, lixado,
furado e beneficiado. Acompanhei o tingimento após ter feito tudo, tirado
inclusive o bagaço, das sementes de açaí. Eu não sei muito sobre as histórias
das sementes, a gente não aprofundava muito sobre as histórias das sementes,
a gente aprofundava mais nos benefícios do que a gente podia fazer com ela. A
expectativa é de que dê certo, que a gente consiga fazer um bom artesanato e
produzir.

Iris Daniele da Silva


Eu aprendi a fazer colorau, aprendi a fazer doces,
de goiaba, cupuaçu, aprendi a pintar, a trabalhar
com o cipó-titica e com a linha do tucum. Aprendi
a mexer no terreiro e trabalhar com crochê. Antes
eu não sabia fazer nada de artesanato. O Jardim da
Natureza para mim é uma escola. Eu comecei eu
tinha 12 anos, sem ganhar nada mesmo, só para
aprender.
A professora de pintura é a Karina Henestrosa. Ela nos ajudou muito. Um dia
ela perguntou: tu queres aprender? Eu disse quero. Depois eu comecei a ganhar
um pouquinho mais, eu sempre gostei muito do Jardim, considero uma escola
para mim, eu comecei do zero junto com as meninas no fogão de lenha. Agora
já está um pouco mais adiantado. Com a obra agora, graças a Deus, nós estamos
com um telhado novo. Antes nosso telhado era todo furado, quando vinha a
chuva era aquela história, mas nós estamos terminando a obra, ainda falta a
cozinha e o banheiro, mas vai saindo devagarinho.
É isso o jardim da Natureza, é tudo para nós. Aprendemos a trabalhar com
arte, artesanato e tem a parte espiritual também. A gente chega de manhã,
acende uma vela lá fora e reza. E é isso o Jardim, ele veio para ensinar a fazer
pintura, crochê, e macramê e filtros dos sonhos. Uma das coisas que gostei de
aprender foi a fazer o doce de colorau e o óleo de colorau.
Eu nasci e me criei aqui no Mapiá, meus pais também. Mas meus avós são
do Acre. São 17 anos dentro da doutrina e do Céu do Mapiá. Eu quero que o
Jardim da Natureza expanda mesmo para tudo que é canto e para todo mundo

« 98 »
ver as nossas obras, as artes que a gente faz. A gente usa sementes, cipós, linhas
e madeiras, pinta e faz muita coisa bonita. Isso para mim é uma coisa muito boa.
O livro sobre o projeto Olho da Mata explica um pouco essa história. Assim,
para mim o “olho da mata” mostra tudo que tem na mata, as sementes, as coisas
da mata mesmo. A mata tem muitos olhos de bichos e esses bichos, as árvores
e nós somos os olhos da mata.
Emanoela Corrente
O Jardim da Natureza para mim foi uma escola,
uma escola mesmo. No Jardim, eu aprendi a tecer
com a linha do tucum, fazer crochê, macramê
e aprendi, também, a fazer doce de goiaba com
jambú e carambola com cacau. A gente torra,
faz o doce com açúcar caramelizado. Aprendi a
pintar, e a ter mais educação. Quando fui para o
Jardim aprendi muito da educação, do trabalho
em conjunto. Aprendi a pintura com a professora,
Karina Henestrosa. Agradeço muito a ela, a Arlete
Maciel, tudo o que aprendi sobre o artesanato.
Aprendi com os tchai sobre as ervas, as medicinas. É
muito bom ir todo dia trabalhar no Jardim, ter alguma coisa para fazer. Aprendi
muita coisa que eu não sabia, a fazer colorau, mudas de cupuaçu, trabalhar
com as sementes, trabalhar com as plantas, limpar o terreiro do Jardim, olhar as
plantinhas lá, várias variedades de plantas e ervas. Agradeço muito. Às minhas
amigas, companheiras do Jardim: Iris, a Maria José, a Tai Lin, a Fabiana, e a
Diana. E também a Maria Clara e a Camila, todas as minhas amigas. Era muito
bom trabalhar no Jardim da Natureza, naquele espaço, naquela leveza, agradeço
a nossa amiga de fogão, a tia Mariazinha Corrente.
É muito bom esses novos meninos que vão entrar aí. Porque agora eu tenho
um filho, e sem uma creche, fica mais complicado. Mas com certeza, quero fazer
tudo para dar certo, que eu tenha tempo e que meu filho possa estar lá quando
crescer. Esse é o meu sonho.

« 99 »
Damião Rocha Mendes
(Damião Curica)
Sou um mateiro aqui do Mapiá. Conheço um pouco
da floresta, conheço um pouco de artesanato. De
tudo eu conheço um pouco, desde a erva medicinal,
as ervas de serrar e as sementes. Conheço de tudo
um pouquinho, até as medicinais conheço um pouco
também e passo um pouco para alguns amigos também
ver e me acompanhar no mato e vou buscar onde tiver.
O meu conhecimento, o pouco que tenho, porque
a mata, a natureza, tem muitas ervas e a gente conhece um pouco, e o pouco
que a gente conhece é bom, mas vai descobrindo mais, aprendendo uns com
os outros. Vamos descobrindo mais, aprendendo mais a técnica, para que serve,
isso é muito bom para nós. Eu acho isso muito importante. Eu cheguei aqui faz
muito tempo já, fui aprender um tanto com o Manuel Vieira, um pajé do mato
que eu andei muito com ele aqui e com os companheiros que havia por aqui
também, o Mario Reges que já foi para a banda de lá e nós estamos aqui levando
a vida e vamos procurando entender mais o significado dessas ervas medicinais
que a gente tem, que são muito boas para nós todos.
Eu cheguei aqui com a mulher adoentada, ela ficou ruim da cabeça e se
curou no Daime. Cheguei aqui, graças a Deus, que a gente está aqui ainda,
construí a família, meus filhos estão todos adultos, já sou avô. Estou por aqui,
eu gosto de ficar por aqui, eu gosto da natureza e gosto também de tomar o
Santo Daime porque foi e é muito bom para a minha vida. A todos aqueles
que tomam e prestam atenção, tem um significado, que pode tirar do caminho
errado e botar no certo. Basta prestar atenção porque a maldade está dentro
de cada um, cada um ganha seu prêmio, a força divina. Só nos resta procurar
agradecer e confiar na força. Eu aqui vou levando.
O projeto do cipó-titica, desde que começaram a trabalhar com ele no
artesanato, me pediram orientação porque eu já conheço mesmo, desde jovem
conheço o cipó-titica e fui tirar para os companheiros trabalharem. Eu conheci
o cipó-titica com meus tios, meu avô, tirando, fazendo paneiro, vassoura,
jamanxim, balaio, tudo eles faziam. Aí eu peguei entendimento e, hoje em dia,
está na minha cabeça ainda. Sei fazer o paneiro e as vassouras, os outros ainda
não peguei.
Eu reconheço na mata o cipó-titica, o timbó e o ambé. Conheço quase todos
os cipós, poucos são os que eu não conheço, porque tem vários tipos de cipós,

« 100 »
de várias qualidades. Do artesanato eu conheço todos eles, os que servem e
as sementes conheço desde as palmeiras aos paus, as árvores, quase todas.
As sementes a gente colhia algumas vezes um pouquinho. Agora, estamos
colhendo mais. A gente colhe cupiuba, maçaranduba e vamos colher mais para o
artesanato e para fazer mudas também. E vamos levando para frente, confiando
que a gente vai ter mais vida em cima desse chão e mais entendimento para
cada um de nós. Que o balanço está forte, mas é isso mesmo, toda vida foi meio
forte e cada vez está apurando mais, a gente sabe disso.
Para o artesanato paxiubinha, paxiubão, mulungu, maçaranduba e tem o
caroço de uru que também serve para o artesanato, o uxi que serve para fazer
cortina. Esses três que são os caroços mais usados, mas os próprios para fazer
cortina são o açaí, o mulungu e a paxiubinha. Esses três e o marajá. E tem a raiz
que a gente faz piteira da raiz também.
Sobre a formiga virar cipó. Isso aí tem, porque ela morre e as pernas vão
enraizando, daí vira a toceira, um cipó e vai se multiplicando. Ela vira um fungo,
fica toda branca, o fungo vira cipó, ela morre lá em cima pregada e o cipó desce e
toca no chão e vira o cipó ambé e o cipó-titica também, tudo vira das tucandeiras
e outras formigas também. A borboleta também não é um casulozinho? O casulo
pode virar uma borboleta, pode virar uma broca, um pedaço de pau, pode virar
uma bruxa, tudo tem significado, e tem umas coisas que se vira casulo, as outras
vão, picam e ela morde, aí ela morre, se gera ali e vira outro bicho, um bicho que
morre, mas não morre ele se regenera. A natureza tem tudo.
Trabalhar com o artesanato, as sementes e o cipó-titica foi uma experiência
única porque nem todo mundo tem essa oportunidade e eu aprendi muita coisa
que eu não sabia, que eu achei que eu não era capaz de fazer e foi muito bom
para mim ver que tenho essa capacidade.

Tarliane Avelino da Silva


Tenho 16 anos e estudo no Ensino Médio,
primeiro ano do ensino médio. Sou jovem aprendiz
do Jardim da Natureza. Para mim, ver essa história
contada em um livro como o “Olho da mata: manejo
do cipó-titica e sementes nativas na FloNA do Purus”,
é motivo de alegria. Eu vou ficar muito contente, que
muitas pessoas vão poder ver e querer aprender como
eu mesma aprendi. Vão querer estudar as mesmas
coisas, muitos jovens que não sabem muito bem o

« 101 »
que a gente faz no Jardim da Natureza. Tem uns que dizem: ah, eu não vou
pra lá, por causa disso ou daquilo, porque é chato. Mas, não é, a gente vai para
lá e a gente aprende muita coisa, trabalha, se comunica com outras pessoas, e
é isso, eu acho que eu vou me sentir muito alegre em poder ver isso. Agora a
dificuldade de eu trabalhar no Jardim da Natureza é porque eu tenho um filho e
ele é muito novo. Para eu ir daqui até lá e não ter quem cuide dele, não dá. Eu
também estou estudando em casa e tenho tarefas de casa para fazer, então para
eu ir para o Jardim da Natureza, nesse momento, não dá. Eu tenho um sonho,
com certeza, quero terminar meus estudos, fazer uma faculdade, e trabalhar no
Jardim da Natureza.

Tainá Silva
Sou aprendiz do Jardim da Natureza,
tenho 16 anos e para mim é uma experiência
muito boa aprender a trabalhar com os
materiais da floresta, no Céu do Mapiá.
Ver essa história contada num livro como
o “Olho da mata: manejo do cipó-titica e
sementes nativas na FloNA do Purus” é muito legal porque eu nunca participei
de nada assim, então para mim, está sendo uma experiência boa. Eu tenho
dificuldade de ir para o Jardim da Natureza agora. Eu acho melhor trabalhar
em casa, porque eu tenho uma filha e eu não vou poder passar o dia todo lá
trabalhando. Mas, eu posso fazer em casa, porque eu aprendi a fazer o artesanato
no Jardim. Tenho o sonho de ajudar mais o Jardim da Natureza, fazer uma
cozinha nova e de ter babá para as crianças, para podermos ir, levar as crianças
e poder fazer as coisas sem elas ficarem aperreando ou com a minha mãe em
casa.

Pedro Figueira do Nascimento


O que tenho para falar são poucas palavras,
porque realmente eu andei muito e trabalhei
pouco. Do cipó-titica o que eu conheço, eu
falo: o cipó-titica é um cipó que realmente
dentro da floresta, ele é o rei, o rei dos cipós,
o rei mago. Então, esse cipó-titica ele dá muita
coisa, dá vassoura, dá paneiro, dá peneira, ele

« 102 »
dá até gente se você quiser. Trabalhei muito com esse cipó, mas o que aprendi
sobre ele, eu aprendi uma boa parte com os indígenas, outra parte com o meu
pai, ele era profissional.
Realmente com Sebastião Mota eu não mexi com o cipó-titica. Eu mexi
muito com o barco, mas o padrinho não tinha acesso ao cipó, ele tinha acesso
aos conhecimentos sobre barcos. O que eu aprendi sobre o cipó foi com meu
pai e com a herança dos indígenas. Minha vida aqui ao lado do Sebastião
Mota foi aprendendo sobre barcos. Mas quando eu cheguei aqui, eu já fazia
barcos, eu aprendi com meu pai, aprendi com meus tios. Eu era menino, mas eu
peguei de tudo. Quando eu trabalhei com o companheiro Sebastião Mota, eu fui
premiado para fazer barcos. Ele engraçou-se de mim e não tinha outro, era eu e
era eu mesmo. Então, eu trabalhei com barcos desde 1983 até 1990, direto com
barcos. Eu fiz 85 barcos, tudo passado pela minha mão, junto com ele e meus
companheiros. Tinha o seu Eduardo, e tinha o Matiole e várias outras pessoas
que iam de passagem, mas definitivo só eu mesmo.
Então, esse foi o meu desenvolvimento. Fiz mais de 85 barcos. Comecei a
serrar em 1976, lá na Cinco Mil, para fazer a primeira igreja. Quem começou
a serrar foi eu e o João corrente, serramos 3100 peças de madeira para fazer
a igreja. Quando eu saí da serraria foi direto para fazer barcos. Toda a minha
função aqui dentro dessa comunidade foi serrar e fazer barco, eu não tinha
tempo nem de me coçar. Eu fazia barcos, eu fazia remos, cabos de machado,
cabos de terçado, tudo ali era comigo, não tinha dessa não, eu nunca rejeitei
nada. E minha história é curta, eu não tenho muito o que falar, mas se aproveitar
o que eu digo já está bom, você vai no além e volta com essas poucas palavras
que eu falei.

Tarciana Matos de Souza


Tenho 26 anos. Nasci em Cruzeiro do Sul/Acre,
sou casada, tenho um filho de seis anos, Xavier de
Matos. Bem pequena, vim morar em Rio Branco,
fui criada aí. Minha família toda em Cruzeiro
do Sul. Quando eu conheci o Santo Daime aos
18 anos, foi na Colônia Cinco Mil. Lá havia a
passagem de muitas pessoas, viajantes, que viviam
do artesanato, de malabares, etc. Vinha muitos
argentinos, chilenos, venezuelanos, enfim, esse
pessoal que viaja por aí a conhecer e viver disso.

« 103 »
Me ensinaram muitas coisas. Nessa época não trabalhávamos com as sementes.
Esse conhecimento estava mais para as pessoas antigas, que trabalhavam com
isso há muito tempo.
Esse círculo por onde eu andava não tinha tanto esses senhores e senhoras
que trabalhavam com as sementes. Quando eu vim para o Mapiá, encontrei com
pessoas que sabiam trabalhar com sementes e que me passaram o conhecimento,
como a mestre artesã, Arlete Maciel. Antes, eu já tinha ligação com as sementes
só que comprava as sementes já prontas em Rio Branco. Quando conheci o
Daime, vi que o artesanato tem a ver com a natureza e seu foco é o uso das
sementes nativas. Eu fazia artesanato com macramê e com arame, mas a semente
me fez ter mais vontade de trabalhar com artesanato.
Eu não tinha contato com nenhuma casa de artesão em Rio Branco, porque
eu estava em outra situação, estava ainda buscando alguma ideia do que fazer.
Na Cinco Mil, eu comecei a conhecer um pouco do artesanato em termos gerais,
mas no Mapiá, eu comecei a produzir mais, desde 2012. Morei na Cinco Mil
durante cinco anos, desde 2016/17, e vim pro Mapiá. Eu conheci o trabalho da
Arlete dentro do Jardim da Natureza, ela viu que eu estava vindo, que eu sabia
um pouco de artesanato e me convidou para participar. Ela me abriu as portas
para ensinar o básico para as meninas – o que é um filtro, uma pulseira, a ter
uma manualidade básica, para depois passar para uma etapa mais elaborada.
Comecei a fazer os filtros procurando usar as sementes, o que tem na
natureza. Eu queria já a um tempo vir para o Mapiá, sabendo que aqui havia
pessoas que guardavam esse conhecimento do cipó-titica e das sementes. Os
artesãos mais velhos, poderiam passar esse conhecimento. Aí eu conheci D.
Marlene, que sabia um pouco do cipó e tudo, e a Arlete, que já estava com
essa ideia também de restaurar todo esse conhecimento do cipó que é muito
importante.
Então, começamos a sistematizar esses conhecimentos que são ancestrais,
para usar isto com sustentabilidade. Não dá para trazer nada da rua, que chega
até a poluir, então quanto mais 100% natural for, mais legal porque realmente
mostra que não precisamos de outras coisas.
Em 2019, o jardim deu uma parada, teve esse intervalo pela reforma.
Estavam acontecendo vários grupos de jovens aprendizes, as meninas estavam
aprendendo muitas coisas, aprendendo a pintar, a trabalhar com macramê, com
as sementes. Foi muito bom esse processo que passamos. Deu esse intervalo e
agora estamos com esse intuito de retomar as atividades.
O primeiro contato que eu tive com o cipó-titica foi o aprendizado do processo
de colheita. Descascamos e fizemos todo o processo. Em 2020, já trabalhando
com cipó-titica, produzimos cestos para o centenário do padrinho Sebastião
« 104 »
Mota de Melo por encomenda. E o que queremos é continuar trabalhando,
agregando mais pessoas. O artesanato é uma saída para ajudar as pessoas e se
ajudar também.
Para dar continuidade ao artesanato é preciso um material que demande um
pouco de energia, como o boliboli que lixa. Tem uns que furam também, que são
muito importantes para quem trabalha com as sementes. A gente tem muitos
recursos, muitas sementes, e ainda há muito desperdício de recurso, por falta
de lixas, máquinas para descascar e furar. Falta uma oficina de beneficiamento
propriamente dita, com estufa e estante para facilitar a secagem, enfim. Há
abundância de açaí, mulungu, paxiuba, tem um que não é uma semente, mas
dá muito aqui, que é o marajá, o coquinho urucuri, o uxi que a semente é
muito linda. O uxi, por exemplo, precisa de uma máquina que corte em rodela.
Se pode fazer várias coisas com uma máquina que corta, outro tipo de arte e
acabamento. Então, precisamos da oficina de beneficiamento que, no momento,
é improvisada e, por isso, funciona nas casas das artesãs.
Referências
AMVCM. Vila Céu do Mapiá. [2019]. Disponível em: http://vilaceudomapia.org.br/
amvcm/sobre-amvcm/. Acesso em: 22 abr. 2021.
APARÍCIO, Miguel. Panorama contemporâneo do Purus Indígena. In: SANTOS, Gilton
Mendes dos (org.). Álbum Purus. Manaus, AM: EDUA, 2011. p. 113-130.
BRASIL. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Floresta Nacional
do Purus, plano de manejo – Diagnóstico e caracterização. Brasília, DF: ICMBio,
2009a. v. I.
BRASIL. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Plano de Manejo
da Floresta Nacional do Purus. Sumário Executivo. Brasília, DF: ICMBio, 2009b.
v. III.
FROES, Vera. Santo Daime - cultura amazônica: história do povo Juramidam. 3. ed. São
Paulo, SP: Yagé, 2019.
MITOSO, Ribamar. Prefácio. In: TUFIC, Jorge. Amazônia: o massacre e o legado.
Fortaleza, CE: Expressão Gráfica Editora, 2010.
PLANO de Desenvolvimento Comunitário da Vila Céu do Mapiá. AMVCM, 2004.
SNUC. Sistema Nacional de Unidades de Conservação. [2021]. Disponível em: https://
antigo.mma.gov.br/areas-protegidas/unidades-de-conservacao/sistema-nacional-
de-ucs-snuc.html. Acesso em: 25 maio. 2021.
TUFIC, Jorge. Amazônia: o massacre e o legado. Fortaleza, CE: Expressão Gráfica
Editora, 2010.
VIANA, Virgílio. As florestas e o desenvolvimento sustentável na Amazônia. Manaus,
AM: Editora Valer, 2006.

« 105 »
O artesanato Olho da Mata
Arlete Maciel

É impossível reverter o contato entre tradição e modernidade, pelo menos


temos o direito (tradicional, diga-se) de defender de que forma. Tufic tem
uma proposta: primeiro é preciso que a cultura conte a história, que não
sejam inimigas. E para isso, a cultura do escritor é fundamental: mostrar
à modernidade, a origem da nossa tradição, da nossa história e da nossa
tradição oral. (MITOSO, 2010, p. XX).

O projeto Olho da Mata é resultado da valorização dos produtos florestais


não madeireiros, da educação patrimonial, da conscientização ambiental,
do protagonismo juvenil e da inclusão social na comunidade Vila Céu do
Mapiá. Organiza-se em torno do estudo, coleta, beneficiamento e produção do
artesanato. São beneficiados resíduos florestais, incluindo talos, sementes, fibras,
todo o resto de madeira, folhas e cipós. É um projeto piloto da cadeia produtiva
das sementes e fibras vegetais, a qual interage com o manejo florestal53 e o
aproveitamento de recursos para geração dos denominados Produtos Florestais
53 O manejo florestal é uma alternativa e solução para a exploração dos recursos da floresta
de forma sustentável de maneira a suprir a demanda, garantindo a conservação dos
remanescentes florestais que incrementam a cadeia produtiva dos Produtos Florestais
Não Madeireiros (PFNMs) e contribuem para aumentar a renda de muitas famílias.
(CENTRAL FLORESTAL. Produtos Florestais Não Madeireiros. Disponível em: http://www.
centralflorestal.com.br/2017/05/produtos-florestais-nao-madeireiros.html. Acesso em: 22
maio 2021.
« 106 »
Não Madeireiros (PFNM), na comunidade Vila Céu do Mapiá, e conta com o
apoio dos mateiros(as), que conhecem as espécies botânicas de múltiplos usos
para o artesanato, a medicina e a culinária.
Acontece a partir da organização e coordenação da mestre artesã, Arlete
Maciel, que aprendeu com Chico Mendes a pensar a governança do artesanato
e a trabalhar com cooperativas e associações na Colônia Cinco Mil, Rio Branco,
em 1987, na comunidade intencional do padrinho Sebastião Mota de Melo, orga-
nizada em torno do Centro Eclético da Fluente Luz Universal, Raimundo Irineu
Serra (Cefluris), no Acre.
No Amazonas, a partir de 1992, o projeto iniciou uma jornada de trocas
de experiências e conhecimentos através da parceria com as aldeias Apurinã
Kamikuã e Centrinho, na terra-firme, no baixo rio Purus, onde desenvolveu
um intenso trabalho no ensino-aprendizagem das técnicas de manuseio e
beneficiamento das sementes de tucumã e da fibra do carrapixo. Através da
Prefeitura de Boca do Acre, o trabalho foi expandido para a estruturação de salas
de beneficiamento e montagem em Boca do Acre, na Várzea.
Foi lá que a apresentação do artesanato do projeto Olho da Mata foi or-
ganizada para ser vista durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), conhecida como Rio-92. Na ocasião,
foi instaurada a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), que instituiu um
conjunto de planos de ações planetárias para conter a contínua perda da biodi-
versidade e promover seu uso sustentável.
Com a cheia de 1997, que inundou a oficina de beneficiamento do projeto,
Arlete mudou-se para a FloNA do Purus, instalando-se às margens do igarapé
Mapiá, na Fazenda São Sebastião, onde atuou em parceria com o padrinho Chico
Corrente, no período em que, após o boom da Eco-92, o projeto se expandiu para
a realização de exposições no Brasil e no exterior, tais como: eventos ecológicos
na Alemanha e atividades em calendário anual da Verde Escola, em Belo
Horizonte. O projeto teve destaque nas exposições Mãos de Minas, chegando a
participar de Campanha da Fraternidade com o tema “Amazônia”.
A operação de oficinas em Boca do Acre foi mantida, por conta dos gargalos
do abastecimento de energia elétrica em toda a FloNA do Purus. Atualmente,
o centro de produção atual do projeto passou a ser a comunidade Vila Céu
do Mapiá – a qual a partir de meados da década de 90, passa a fazer parte do
circuito de movimentação do projeto Olho da Mata. As exposições do projeto
ocorrem anualmente, desde o ano 2000. A partir da década de 80, um grande
número de turistas visitantes chegou à Vila nos períodos de festivais54.
54 AMVCM. Expansão. [2019]. Disponível em http://vilaceudomapia.org.br/comunidade/santo-
daime/expansao/. Acesso em: 24 maio 2021.
« 107 »
Em 2009, o projeto iniciou uma
parceria com a Escola Cruzeiro do
Céu, na Vila Céu do Mapiá, onde foi
instalada oficina de beneficiamento
num dos pavimentos da escola,
com funcionamento de um motor
gerador de energia elétrica. A
parceria resultou na formação de
uma geração de jovens protagonistas Igreja da Colônia Cinco Mil
na produção do artesanato, a partir
de produtos florestais não madeireiros. Uma lojinha, embaixo da Associação dos
Moradores da Vila Céu do Mapiá (AMVCM), foi montada no centro da Vila para
a comercialização desses produtos da comunidade. Atualmente, nos festivais, há
gestão de um stand de produtos do artesanato na praça no centro da Vila, onde
acontece uma feira de artesanato.
Em meados dos anos 90, foram fundados o Instituto de Desenvolvimento
Ambiental Raimundo Irineu Serra (Idaris) (1997) e a Escola de Artes e Saberes
Florestais Jardim da Natureza (1998), o que ampliou a visibilidade do projeto
na vila e as possibilidades de comercialização dos produtos. É dos trabalhos
no Jardim da Natureza que partem para as caminhadas na mata. O principal
produto do artesanato já comercializado dentro da Vila é o cipó-titica (Heteropsis
spp.)55, que teve seu uso resgatado e seu conhecimento expandido nos últimos
14 anos.
O projeto iniciou uma experiência de produzir em larga escala com o
cipó-titica em 2007 e 2008, quando exportou para Florianópolis produtos de
brindes, elaborados com o cipó-titica e pulseiras e colares em linha do tucum,
confeccionados a partir de novas técnicas de tingimento com o cipó Kahpí. Os
brindes foram comercializados em pacotes para uma fábrica de camisetas e
pijamas. Esse foi um impulso na produção não só de filtros de sonhos feitos
de cipó-titica, palhas de buriti e sementes de açaí, mas no aprimoramento dos
processos de beneficiamento da linha do tucum.
Em 2011, através do Idaris e da Escola de Arte e Saberes Florestais Jardim
da Natureza, o projeto iniciou uma parceria com o Encontro de Mulheres da
Floresta (EMFLORES), a Cooperativa Agroextrativista do Mapiá e Médio Purus
(Cooperar), a Instituição Alemã GIZ para o Intercâmbio de Artesãos da Floresta.
O intercâmbio teve a idealização do engenheiro florestal do IDAM (Boca do

55 O gênero Heteropsis, família das Aráceas, é recorrente no Brasil, Guiana, Venezuela e Peru. O
titica é um cipó hemi-epífito, ou seja, germina no chão e sobe para a copa das árvores onde a
planta mãe do cipó se estabelece (SHANLEY, 2005 apud FERRAZ, 2010, p. 52).
« 108 »
Acre), João Arruda, que é morador da comunidade. Com o objetivo de promover
um encontro de artesãos no médio Purus, com grupos locais, tais como o
projeto Olho da Mata, o Centro de Medicina da Floresta, a Saúde Ambiental,
representantes da Fazenda São Sebastião, de Boca do Acre, da aldeia Kamikuã,
aldeia Centrinho e da Associação de Apoio ao Agroextrativista de Ipixuna, do
rio Juruá, envolvendo as cidades de Pauini e Boca do Acre, experienciou-se uma
iniciativa pioneira de articulação do artesanato local.
Em 2013, com o patrocínio do Centro Cultural do Banco Interamericano
de Desenvolvimento/Programa de Desenvolvimento Cultural, fortaleceu-se o
processo de manejo do cipó-titica com troca de saberes entre comunidades,
oficinas de capacitação e produção e obras no espaço físico. Ao todo, seis
mulheres, três homens e quinze jovens foram diretamente envolvidos nas
oficinas e assumiram funções de oficineiras (os), mateiras (os), serviços de
apoio e aprendizes.
O projeto se estendeu e, em 2016, teve início o projeto Jovens Aprendizes, no
Jardim da Natureza, com o objetivo de que os jovens tivessem a possibilidade
de fazer arte e aproveitar os recursos da natureza. O projeto começou com cinco
jovens bolsistas e quinze não bolsistas, iniciadas nas oficinas de artesanato
com macramê e sementes, pintura em madeiras reaproveitadas, produção de
alimentos orgânicos e o remanejamento cultural do cipó-titica.
Com instrutores voluntários, o primeiro ano aconteceu com doações de
pessoas que ajudavam na gestão e logística do projeto e o apoio comunitário,
sobretudo do líder Alfredo Gregório de Melo, que supriu com doações de
alimentos as oficinas durante um ano. Com o lucro da venda das produções, no
« 109 »
primeiro ano do projeto, os alunos foram pagos e os gastos cobertos. Os alunos
passaram a receber a porcentagem da sua produção.
As oficinas de cipó-titica compreendem desde as colheitas até o aprendizado
dos trançados do cipó na produção de vassourinhas, leques, paneiros, entre
outros objetos e utensílios, uma arte lembrada por poucos moradores idosos da
comunidade que vem passando o conhecimento para os mais jovens. Vale citar a
presença de anciãs (os) da comunidade, como da mestre artesã, Marlene Gomes,
com amplo conhecimento sobre o cipó-titica; do mestre artesão e mateiro,
Aderson Paes; do mestre artesão, feitor de canoas, Pedro Zacarias, e do mateiro
Manoel Tomás, as quais foram fundamentais para o projeto.
Apesar da ampla disponibilidade de recursos na floresta, o conhecimento
sobre os processos de coleta, armazenagem e trançados com o cipó-titica vinha
se tornando escasso no entorno da vila, restando pouquíssimas famílias que
guardavam a memória das técnicas de manejo tradicional do cipó. “Esse trabalho
de remanejamento do cipó-titica se deu num processo harmonioso, onde além
de todo o aprendizado, as vivências em torno de um conhecimento que perpassa
várias gerações da comunidade foram fundamentais para as ações de educação
ambiental e revigoramento da cultura local”, diz Karina Henestrosa, uma das
gestoras do projeto.
Atualmente, o couro vegetal é também usado para a confecção do artesanato
nas oficinas. Usa-se o produto feito com o látex das seringueiras, extraído por
trabalhadores (as) locais de forma sustentável; o processamento do látex e da
produção das lâminas (couro vegetal) é também realizado na comunidade. Essa

« 110 »
é uma matéria-prima fabricada localmente, pelos artesãos Wílson Manzoni e
Cristina Santos, que integram o grupo de artesãos da Vila Céu do Mapiá.
Entre as sementes, a uxirana, o mucunã, a jarina, o tucumã e o açaí são os
mais beneficiados. A semente mais comercializada na Vila é a semente do açaí,
natural e tingido. Dos pigmentos naturais usados para tingir as sementes e as
linhas, os principais são o urucum, o jenipapo, a curcuma e o jagube. É comum
o uso de madeiras da região para a confecção de pequenas peças, como terços
e biojoias.
O produto com maior comercialização pelo projeto é o filtro dos sonhos, um
produto híbrido de culturas nativas norte-americanas e as culturas hippie e/ou
neo-hippie, que adentram as comunidades, através da rede de neoxamanismo,
ascendente nas últimas décadas, no circuito das redes neo-ayahuasqueiras,
que surgem no Brasil, em meados do século XX e alavancam um processo de
disseminação das culturas tradicionais amazônicas, a partir dos anos 80, com
o projeto de expansão da doutrina do Santo Daime, pelo padrinho Sebastião
Mota de Melo, um dos sucessores do Mestre Raimundo Irineu Serra, após a sua
passagem em 1972.
O projeto já produziu mais de três mil filtros de sonhos para atender ao processo
de comercialização, desenvolvido de modo mais intenso em Florianópolis. A
circulação dos produtos do projeto Olho da Mata é relacionada ao circuito de
movimentos dos festivais com calendário anual, que ocorre concomitantemente
não só na Vila Céu do Mapiá, mas em todos os centros do Brasil e do mundo,
momento em que há um grande encontro das igrejas do Santo Daime.

« 111 »
Com a parceria com a pintora e mestre artesã, Karina Henestrosa, no ano
2000, iniciou-se a coleta de discos de madeira, como Amapá e Roxim, entre
outras, que são reaproveitadas, tiradas de galhos de árvores caídas nas trilhas do
Jardim da Natureza. As oficinas de pintura trabalham também sobre mandalas
feitas de talos, sementes e cascas de pau. Além disso, iniciou-se também a
produção de camisas pintadas com motivos de natureza.
O artesanato de sementes com macramê tecido na linha do tucum é um dos
pilares das oficinas de artesanato. Entre os resultados das oficinas, o projeto
Jovens Aprendizes e a ampliação e reforma da Escola de Artes e Saberes Florestais,
que possibilitou o avanço da estruturação do projeto, com inauguração da sala
de montagem, na Escola de Arte e Saberes Florestais Jardim da Natureza, em
2019, com apoio do Instituto Nova Era, é um dos destaques.
A chegada do novo Sars-CoV-2, brecou um pouco este processo de atividades
no Jardim da Natureza, em 2020. Contudo, as artesãs deram continuidade em
suas residências e, com o incentivo da Lei Aldir Blanc, através do Programa
Cultura Criativa, do Governo do Estado, Ministério do Turismo, Secretaria
especial de Cultura, Fundo Nacional de Cultura, foi possível reabrir e manter o
Jardim e restabelecer um programa de oficinas para o segundo semestre de 2021.

Alimentação tradicional
Além das oficinas de artesanato, ocorrem também, no Jardim da Natureza,
as oficinas de alimentos, cujo objetivo é reavivar a alimentação tradicional dos
povos da floresta na comunidade e não deixar estragar as frutas da estação,
com o fabrico de doces, frutas em calda, frutas cristalizadas, cacau de diferentes
formas, colorau e cúrcuma. Os estudos sobre Pancs estão em estágio inicial,
« 112 »
mas boa parte das Pancs disponíveis foi incorporada às refeições no Jardim da
Natureza.
O grupo de artesãos que interage no projeto é formado por homens,
mulheres e jovens, os quais são capacitados para o beneficiamento de sementes,
manejo de cipós, tecelagem de fibras e montagem de peças (artigos esotéricos,
biojoias, acessórios como bolsas, cintos, entre outros), nas quais são aplicadas
diferentes técnicas: tear, macramê, trançado com sementes e crochê. O uso de
linhas de algodão e de cera é um fenômeno também mais recente entre os
antigos moradores do Purus, chega no Jardim da Natureza a partir do processo
de intercâmbio com outros estados do Brasil e do mundo.
O projeto reúne várias gerações de uma mesma família, descendentes de
mestres de saberes tradicionais, entre eles a agricultura e o artesanato. Avós,
filhos e netos trabalham na transmissão dos conhecimentos e no resgate da
memória dentro do contexto do projeto Olho da Mata. Com o incremento e
a maior viabilidade na produção do artesanato do cipó-titica, o número de
artesãos especialistas nessa produção mais que dobrou, saindo de três famílias
para cerca de vinte, entre as quais estão envolvidas famílias das aldeias Kamikuã
e Centrinho. O conhecimento foi expandido através de oficinas realizadas em
parceria entre o Instituto de Socioeconomia Solidária (ISES) e o Idaris, que
atualmente é parceiro do projeto no Jardim da Natureza.
A parceria resultou numa consultoria para a produção de um produto piloto,
mostra e comercialização dos artesanatos produzidos pelo projeto Olho da Mata.
Foi elaborado um kit com cinco produtos artesanais selecionados: a) terço com
bolsinha de couro vegetal; b) chaveiro de linha de tucum e sementes; c) filtro
dos sonhos (cipó-titica); d) cabaças; e 5) telas e camisas pintadas a mão.
O intercâmbio com artistas de outras localidades do Brasil possibilitou a
extensão das oficinas, abrangendo o artesanato com técnicas de pintura em
tecido e madeira, produção de camisetas, rolinhas de madeira, bolsas de pano e
cuias de cabaça coité. Como resultado da expansão, houve a entrada de recursos
pela comercialização dos artigos produzidos e foi criado um estoque de produtos
para a loja.
O tingimento com resíduos do cipó Kahpí (Banisteriopsis caapi), cipó que
é utilizado no feitio do Santo Daime, foi desenvolvido a partir de uma técnica
inovadora em degradê, utilizando o resíduo do Santo Daime, chamado Pignol.
É uma tecnologia exclusiva da comunidade do Juruá, desenvolvida em parceria
com o projeto Olho da Mata.

Arlete Maciel foi a grande precursora e idealizadora do artesanato no


Juruá. Já vinha desenvolvendo artesanato e preparando a oficina cinco
anos antes do Projeto Linha do Tucum. Como designer, eu fiquei encantada

« 113 »
com esse novo universo de conhecimento. Fui viver nos Estorrões em 2012,
primeiramente como professora da Escola Municipal Céu do Juruá, e em
2018, passei a atuar como coordenadora criativa dentro da oficina, com
o Projeto Educacional de Biodesign, dando continuidade ao belo trabalho
iniciado pela Arlete (informação verbal56).

Em 2019, criou-se a Oficina de Aprendizes de Crochê com não bolsistas. A


Oficina de Pintura também foi ampliada e houve um incremento na identificação
de árvores e a formação de guias destinadas às trilhas do Jardim, incorporando
mais aprendizes. Os artesanatos das oficinas foram vendidos na lojinha de
artesanato, no chapéu de palha de uma das oficineiras, a artesã, Cristina Santos
e na Feira do Produtor, que acontece na praça da Vila e pela internet.
Como já foi citado acima, a autonomia em relação à energia elétrica é um
dos grandes gargalos do projeto. No momento, está sendo orçada a colocação de
placas solares para oficina de beneficiamento. Há grande insolação que pode e
deve ser aproveitada para geração de energia.

Considerações acerca do
projeto Olho da Mata
O projeto Olho da Mata tem o objetivo de gerar produtos biodegradáveis que
não representem riscos aos ciclos de vida na floresta, contribuindo para uma
via de desenvolvimento sustentável. Se cada vez mais vivemos sob a ameaça
permanente de sucessivas crises ambientais geradas por modelos predatórios
de desenvolvimento, projetos como este constituem importantes embriões e se-
mentes de novas mentalidades que se abrem para possibilidades reais de pro-
duzir riqueza no contexto e nos limites da sustentabilidade da região em que
vivemos e do planeta que todos e todas nós habitamos (ABREU; NUNES, 2012).
Este projeto realiza-se no espaço Jardim da Natureza: escola de artes e
saberes florestais, a qual, por meio do princípio educativo do trabalho artesanal,
propicia a valorização do conhecimento produzido pelas populações tradicionais
que vivem na FloNA do Purus. Tais experiências também contribuem para o
debate acerca da Educação do Campo na Amazônia, uma vez que são os próprios
trabalhadores e trabalhadoras que, conjuntamente, planejam e executam o
trabalho artesanal a partir de produtos florestais não madeireiros.
Ferraz (2010) e Souza et al. (2016) desenvolveram pesquisas científicas
com foco em experiências educacionais focadas na gestão de florestas, na

56 BRACONNOT, Christiana. Christiana Braconnot: depoimento [mar. 202 1]. Entrevistador:


Juliana Belota.
« 114 »
Vila Céu do Mapiá. Os autores reiteram as experiências na comunidade como
propostas educacionais de construção de identidades, valores, memória
coletiva e valorização e respeito aos povos que vivem na Amazônia, rural e
ribeirinha, da Vila Céu do Mapiá, FloNA do Purus, localizada no chamado Arco
do Desmatamento e Unidades de Conservação UCs do entorno, Terra Indígena
Inauini/Teuini e a Floresta Mapiá-Inauini.

As espécies vegetais utilizadas no projeto do


artesanato Olho da Mata

« 115 »
Referências
ALMEIDA, Maria de Fátima Henrique de. Santo A447s Daime: a colônia Cinco Mil e a
contracultura (1977-1983). 2002. 113f. Dissertação (Mestrado em História do Brasil)
- Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco,
Recife.
FERRAZ, Miguel Mader. Apoio técnico ao grupo de artesanato de produtos florestais
da FloNA do Purus, Amazônia Ocidental, Brasil: um subsídio à criação de uma
oficina-escola. 2010. TCC (Graduação em Engenharia Florestal) – Universidade
Federal de Viçosa, Viçosa, 2010.
FROES, Vera (org.). Linha do tucum: artesanato da Amazônia. Rio de Janeiro, RJ:
Instituto de Estudos da Cultura Amazônica, 2010.
MITOSO, Ribamar. Nome do capítulo. In: TUFIC, Jorge. Amazônia: o massacre e o
legado. Fortaleza, CE: Expressão Gráfica Editora, 2010.
PROJETO Oficina Escola Jardim da Natureza: jovem aprendiz. Vila Céu do Mapiá, AM:
2017.
RELATÓRIO BID. Projeto Oficina-Escola de Artesanato Jardim da Natureza Vila Céu
do Mapiá, Pauini, Amazonas-Brasil. Vila Céu do Mapiá, AM: [s. n.], ano.
RELATÓRIO de acompanhamento de projetos. Programa AmaGaia. Programa de apoio à
sustentabilidade na Vila Céu do Mapiá. Vila Céu do Mapiá, AM: [s. n.], 2019.
RELATÓRIO do Intercâmbio de Artesãos de Boca do Acre e Pauini-AM. Pauini, 2013.
RELATÓRIO Oficina de Produção: jardim da natureza. Programa AmaGaia, 2019.
RELATÓRIO Projeto Oficina Escola Jardim da Natureza: jovem aprendiz. Vila Céu do
Mapiá, 2018.
TUFIC, Jorge. Amazônia: o massacre e o legado. Fortaleza, CE: Expressão Gráfica
Editora, 2010.

« 116 »
Até breve
O “Olho da mata: manejo do cipó-titica e sementes nativas na FloNA do Pu-
rus” é um livro que surge neste momento de crise da pandemia do Sars-CoV-2
(Covid-19) para gerar um movimento de articulação com a comunidade Vila Céu
do Mapiá, na FloNA do Purus, e lançar um produto que possa mostrar o artesa-
nato produzido pelo projeto Olho da Mata.
A abordagem acerca dos processos em torno da produção do artesanato
na Vila Céu do Mapiá e do sistema de governança instituído para geri-lo,
envolvendo o Mosaico de UC’s e TI’s nos vales do Purus e Juruá, incentivados
pelas comunidades Vila Céu do Mapiá e Vila Céu dos Estorrões revela um traço
cultural alinhado com as culturas tradicionais e autóctones da Amazônia, que
estabelecem uma rede de relações de troca e governança na gestão de sistemas
florestais. Essa rede se expande para outros lugares do Brasil e do mundo, e luta
pelo fortalecimento, sobretudo, de uma escola de saberes florestais e das cadeias
produtivas, no manejo de produtos florestais madeireiros e não madeireiros,
enfrentando problemas na vida prática do dia-a-dia, como os gargalos com o
fornecimento de energia elétrica para algumas regiões da Amazônia e o acesso
à comunicação, internet, telefones, etc.
O projeto revela também uma grande articulação do terceiro setor, envolvendo
diversas organizações, de diferentes estados no Brasil, mas com gargalos de
articulação em amplos setores governamentais e não-governamentais, dentro do
próprio estado do Amazonas, o que aumenta a importância de ações como a do
Programa Cultura Criativa – 2020/Lei Aldir Blanc – Prêmio Encontro das Artes
« 117 »
do Governo do Estado do Amazonas, com apoio do Governo Federal – Ministério
do Turismo – Secretaria Especial da Cultura, Fundo Nacional de Cultura.
No entanto, as principais revelações do projeto são a garra e a coragem dessa
brava gente que habita o interior das florestas, investindo toda a sua vida na
crença de que a floresta em pé é o único caminho a seguir. Uma gente para a qual
cada passo tem gosto de vitória e que avança na construção de uma proposta de
vida diferenciada, gerenciando alternativas e viabilizando manejos da própria
vida. Tudo isso numa perspectiva ecológica de transformação de valores, do
mercado, da ideia de cultura, buscando na fonte o entrelaçamento do local com
o global contemporâneo, pois o intuito é a sobrevivência dos povos da floresta.
Sobre estes, os denominados “povos da floresta” vemos, ao nos aproximar
que fazem parte de uma realidade de vida mais abrangente. O projeto Olho da
Mata descortina a beleza de uma vida na floresta, com seus encantos, onde
mulheres e homens vivem no sagrado da mata, colhendo o que a natureza oferta
generosamente, respeitando os ciclos de vida, vivificando tradições e saberes
ancestrais.
Consideramos que neste momento de transformação planetária, quando
cada um de nós volta-se para o âmago da vida, este livro vem despertar um
sentimento de gratidão a esses guardiões e guardiãs da floresta. Esperamos que
eles continuem sendo um incentivo aos que se preocupam com a presevação da
floresta e da vida.
Que este livro traga alegria e esperança de vencermos a crise planetária
em que nos encontramos, vislumbrando novas possibilidades de sobrevivência
humana na terra, no esplendor do trabalho das(os) anciãs(os), dos jovens
aprendizes e inovadores neste novo tempo, nesta nova era.

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