Artigo sobre o livro de António Manuel Venda (Monchique, 1968), O Sorriso Enigmático do Javali (Quetzal, 2010).
NOGUEIRA, Adriana (2010), «No tempo em que os animais quase falavam», jornal Postal do Algarve, suplemento Cultura.Sul. 6 de agosto, p.13
Artigo sobre o livro de António Manuel Venda (Monchique, 1968), O Sorriso Enigmático do Javali (Quetzal, 2010).
NOGUEIRA, Adriana (2010), «No tempo em que os animais quase falavam», jornal Postal do Algarve, suplemento Cultura.Sul. 6 de agosto, p.13
Artigo sobre o livro de António Manuel Venda (Monchique, 1968), O Sorriso Enigmático do Javali (Quetzal, 2010).
NOGUEIRA, Adriana (2010), «No tempo em que os animais quase falavam», jornal Postal do Algarve, suplemento Cultura.Sul. 6 de agosto, p.13
O último livro de António Manuel Venda (Monchique, 1968), O Sorriso
Enigmático do Javali (Quetzal, 2010), tem como subtítulo «Primeiras aventuras do pequeno Tukie» e conta as histórias deste menino, uma criança espontânea, curiosa e feliz. Tukie é o único ser humano que tem, efectivamente, um nome, nos 12 contos por que é constituído o livro (que não ultrapassa as 100 páginas). E esta opção faz sentido, pois as personagens principais são os animais: a gata Malhas, o gato Palonsiño ou a gineta Gina. As histórias são variadas, com humor, tendo como fio condutor aquela família, composta pelo menino, pelo «pai do pequeno Tukie», pela «mãe» e por «a bebé». A diversidade também se faz sentir através da alternância do ponto de vista do narrador: numa história vemos o mundo pelo olhar da criança (sabemos o que sabe, ignoramos o que ignora e aprendemos ao mesmo tempo que ele); noutra, vemos o mundo pela objectiva de uma máquina fotográfica que nos reflecte um real alternativo; noutra ainda, é o pai do pequeno Tukie que nos recebe nas memórias da sua infância. Múltiplos olhares que nos envolvem e nos tornam participantes das narrativas. António Manuel Venda começa muitas vezes estes seus contos com frases sem os verbos expressos, numa escrita sincopada, de subentendidos e de cumplicidades, que nos cria expectativas e suspense, obrigando-nos a saborear a leitura, embalados pelo seu ritmo: «As limpezas. Mas não as limpezas, por exemplo, da casa» (p.45); «Viagens à noite. O pai do pequeno Tukie fazia muitas assim» (p. 53); «Uma correria. O dia todo numa correria. Foi o que o pai do pequeno Tukie contou quando estavam a caminho da praia» (p.63). Também usa com frequência a digressão, levando-nos para outras gentes, outros bichos, outras histórias, sem, contudo, nos fazer perder o fio à meada. E assim somos enriquecidos pelas vizinhas Pata Larga e Perdizita (pp.11-12), sensibilizamo-nos com um dogue argentino entubado num veterinário (p.20) ou deixamo-nos fascinar pelas divagações sobre uma velha oliveira (p.46). Este livro fala de livros, numa clara vontade de realçar a importância que estes têm para melhor compreendermos o mundo: «voltou com um livro sobre animais da região. […] Folheou o livro e, quando estava já nas páginas onde apareciam alguns gatos-bravos ouviu o pai dizer-lhe que era uma gineta. O pequeno Tukie procurou a página correspondente às ginetas e quando a encontrou percebeu como eram quase iguais, a da imagem do livro e a que estava escondida no alpendre» (p.28). E se uns livros nos são úteis para adquirir conhecimento prático, outros estimulam-nos a imaginação: «O pequeno Tukie lembrou-se de ver nos livros os canhões dos barcos dos piratas com umas bolas pretas ao lado. As balas dos canhões. E se os pássaros bombardeassem o monte com balas de canhão como as que usavam os piratas dos livros?» (p.41) Porém, as referências não são sempre genéricas, pois há autores nomeados, quer porque servem a criação do imaginário («a menos que fosse, por exemplo, um gigante como os anões dos livros de uma escritora espanhola chamada Rosa Montero, anões como os desses livros só que ao contrário. Anões enormes, de tamanho gigante» - p.46), quer porque o mote é o mesmo, como o poema do brasileiro Manoel de Barros (pp.101- 102), quer porque se encaixam nas recordações das personagens (como as memórias de juventude do pai do pequeno Tukie): «Lembrou-se de muitos anos antes, de ver nos livros de cowboys do Tex Willer os chapéus inutilizados… Muitas vezes acontecia, uma bala furava o chapéu, num tiroteio, a um dos companheiros do Tex Willer, que tinha o famoso nome de Kit Carson» (p.82). Para os que gostam de saber o grau de matéria autobiográfica que se encontra nos livros, António Manuel Venda satisfaz a curiosidade nas apresentações que tem feito da obra, como aconteceu em Monchique, no passado mês de Junho, explicando que, mais do que na experiência que tem com o seu filho, o pequeno Tukie baseou-se na sua própria experiência de infância. Nós acreditamos, mas o autor não consegue deixar de ser também o pai do rapazinho, como se dois universos paralelos (na linha ficcional que tanto agrada a Tukie e ao pai – cf. «8. A borboleta do imperador Ming»), um do passado e outro do presente, se tivessem entrecruzado. Será que aqui não se (com)fundem o autor com a personagem? Esta, um escritor, pensa, a propósito do calor que se fazia sentir: «O mesmo, ou quase o mesmo, lembrava-se, do calor da noite de fogo que tinha vivido uns anos antes, o incêndio na serra da sua infância, que tinha metido num pequeno romance.» (p. 85). Quem tem acompanhado a já extensa obra de António Manuel Venda (que se iniciou, em 1996, com o fantástico Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade) reconhecerá a referência ao livro anterior, de 2009, Uma noite com o fogo (também editado pela Quetzal), que relata a devastação que a serra de Monchique sofreu com os fogos que a assolaram em 2003 e 2004. É «O Sorriso Enigmático do Javali», então, um livro para crianças? Tal como a mesma natureza é percebida por pai e filho de forma diferente, eu diria que é um livro para adultos que as crianças podem ler.