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No tempo em que os animais quase falavam

O último livro de António Manuel Venda (Monchique, 1968), O Sorriso


Enigmático do Javali (Quetzal, 2010), tem como subtítulo «Primeiras aventuras do
pequeno Tukie» e conta as histórias deste menino, uma criança espontânea, curiosa e
feliz.
Tukie é o único ser humano que tem, efectivamente, um nome, nos 12 contos
por que é constituído o livro (que não ultrapassa as 100 páginas). E esta opção faz
sentido, pois as personagens principais são os animais: a gata Malhas, o gato Palonsiño
ou a gineta Gina.
As histórias são variadas, com humor, tendo como fio condutor aquela família,
composta pelo menino, pelo «pai do pequeno Tukie», pela «mãe» e por «a bebé». A
diversidade também se faz sentir através da alternância do ponto de vista do narrador:
numa história vemos o mundo pelo olhar da criança (sabemos o que sabe, ignoramos o
que ignora e aprendemos ao mesmo tempo que ele); noutra, vemos o mundo pela
objectiva de uma máquina fotográfica que nos reflecte um real alternativo; noutra ainda,
é o pai do pequeno Tukie que nos recebe nas memórias da sua infância. Múltiplos
olhares que nos envolvem e nos tornam participantes das narrativas.
António Manuel Venda começa muitas vezes estes seus contos com frases sem
os verbos expressos, numa escrita sincopada, de subentendidos e de cumplicidades, que
nos cria expectativas e suspense, obrigando-nos a saborear a leitura, embalados pelo seu
ritmo: «As limpezas. Mas não as limpezas, por exemplo, da casa» (p.45); «Viagens à
noite. O pai do pequeno Tukie fazia muitas assim» (p. 53); «Uma correria. O dia todo
numa correria. Foi o que o pai do pequeno Tukie contou quando estavam a caminho da
praia» (p.63). Também usa com frequência a digressão, levando-nos para outras gentes,
outros bichos, outras histórias, sem, contudo, nos fazer perder o fio à meada. E assim
somos enriquecidos pelas vizinhas Pata Larga e Perdizita (pp.11-12), sensibilizamo-nos
com um dogue argentino entubado num veterinário (p.20) ou deixamo-nos fascinar
pelas divagações sobre uma velha oliveira (p.46).
Este livro fala de livros, numa clara vontade de realçar a importância que estes
têm para melhor compreendermos o mundo: «voltou com um livro sobre animais da
região. […] Folheou o livro e, quando estava já nas páginas onde apareciam alguns
gatos-bravos ouviu o pai dizer-lhe que era uma gineta. O pequeno Tukie procurou a
página correspondente às ginetas e quando a encontrou percebeu como eram quase
iguais, a da imagem do livro e a que estava escondida no alpendre» (p.28).
E se uns livros nos são úteis para adquirir conhecimento prático, outros
estimulam-nos a imaginação: «O pequeno Tukie lembrou-se de ver nos livros os
canhões dos barcos dos piratas com umas bolas pretas ao lado. As balas dos canhões. E
se os pássaros bombardeassem o monte com balas de canhão como as que usavam os
piratas dos livros?» (p.41)
Porém, as referências não são sempre genéricas, pois há autores nomeados, quer
porque servem a criação do imaginário («a menos que fosse, por exemplo, um gigante
como os anões dos livros de uma escritora espanhola chamada Rosa Montero, anões
como os desses livros só que ao contrário. Anões enormes, de tamanho gigante» - p.46),
quer porque o mote é o mesmo, como o poema do brasileiro Manoel de Barros (pp.101-
102), quer porque se encaixam nas recordações das personagens (como as memórias de
juventude do pai do pequeno Tukie): «Lembrou-se de muitos anos antes, de ver nos
livros de cowboys do Tex Willer os chapéus inutilizados… Muitas vezes acontecia, uma
bala furava o chapéu, num tiroteio, a um dos companheiros do Tex Willer, que tinha o
famoso nome de Kit Carson» (p.82).
Para os que gostam de saber o grau de matéria autobiográfica que se encontra
nos livros, António Manuel Venda satisfaz a curiosidade nas apresentações que tem
feito da obra, como aconteceu em Monchique, no passado mês de Junho, explicando
que, mais do que na experiência que tem com o seu filho, o pequeno Tukie baseou-se na
sua própria experiência de infância. Nós acreditamos, mas o autor não consegue deixar
de ser também o pai do rapazinho, como se dois universos paralelos (na linha ficcional
que tanto agrada a Tukie e ao pai – cf. «8. A borboleta do imperador Ming»), um do
passado e outro do presente, se tivessem entrecruzado. Será que aqui não se
(com)fundem o autor com a personagem? Esta, um escritor, pensa, a propósito do calor
que se fazia sentir: «O mesmo, ou quase o mesmo, lembrava-se, do calor da noite de
fogo que tinha vivido uns anos antes, o incêndio na serra da sua infância, que tinha
metido num pequeno romance.» (p. 85). Quem tem acompanhado a já extensa obra de
António Manuel Venda (que se iniciou, em 1996, com o fantástico Quando o Presidente
da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade) reconhecerá a referência ao
livro anterior, de 2009, Uma noite com o fogo (também editado pela Quetzal), que relata
a devastação que a serra de Monchique sofreu com os fogos que a assolaram em 2003 e
2004.
É «O Sorriso Enigmático do Javali», então, um livro para crianças? Tal como a
mesma natureza é percebida por pai e filho de forma diferente, eu diria que é um livro
para adultos que as crianças podem ler.

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