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Nós Matamos o Cão Tinhoso (1964) – Luís Bernando Honwana

A obra, publicada em 1964, constitui-se em uma coletânea de contos que foi lançada quando iniciava-se o
movimento organizado de luta armada pela libertação de Moçambique do domínio colonial português.

No conto que dá nome ao livro de Honwana, a história gira em torno de um cachorro que não é visto da mesma
maneira como os outros animais da redondeza. O Cão Tinhoso é associado aos excluídos da sociedade; no
entanto, é na expressão do olhar daquele bicho sem nome que se encontra a maior demonstração das marcas
deixadas pela violência do silêncio, como se observa no trecho:

“O Cão Tinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham brilho nenhum, mas eram enormes e estavam sempre cheios
de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho. Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma
pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer” (HONWANA,).

A relação entre o medo transmitido pelo olhar e a presença do “pedir sem querer dizer”, frase repetida inúmeras
vezes, serve como uma alegoria para a ameaça que o sujeito pós-colonial representa para os governantes, mas que
ao mesmo tempo está atrelada ao medo do indivíduo de dar voz às suas verdadeiras necessidades por receio de
qual será o resultado de seu ato de rebeldia. Pensando no contexto histórico de Moçambique, o Cão Tinhoso,
aquela que o defende fielmente (somente Isaura), aqueles que o querem morto (como o administrador) e aqueles
que não têm certeza do que devem fazer (como Ginho) são a exposição do conflito entre o desejo pela liberdade e o
receio de não saber o que está reservado para a nação caso ela se torne livre. O medo da descolonização ligado à
autonomia da colônia cria uma mentalidade que se propaga, mais uma vez associada ao comportamento animal,
como aquela que é vivenciada pelos rebanhos, nos quais o gado caminha um atrás do outro a caminho do
matadouro. É esse o discurso utilizado pelo Senhor Duarte da Veterinária para convencer os meninos a fazerem o
trabalho sujo, que é matar o Cão Tinhoso, em seu lugar:

“Sim, sei que vocês gostam de dar uns tiritos às rolas e aos coelhos, mesmo sem terem licença de uso e porte de
arma, para não falar na licença de caça, e vocês sabem que se são apanhados por mim ou por um fiscal de caça,
chupam uns meses de prisão que se lixam. Mas deixa lá que eu não levo a mal nem digo a ninguém que vocês
usam – as armas dos vossos pais ilegalmente. Eu só quero que não me façam essas coisas mesmo debaixo do
nariz, porque tenho responsabilidades, vocês sabem. Eu não levo isso a mal, porque conheço bem a malta, mas isto
não é para ser espalhado por aí, vocês não acham?” (HONWANA)

Por trás da fala do Senhor Duarte, está a coação do discurso colonial que violenta o sujeito ao impor quais devem
ser as atitudes do sujeito colonizado para o “seu próprio bem”. A chantagem feita pelo veterinário é somente uma
entre tantas utilizadas para justificar a perpetuação da desigualdade e a violência da soberania do conquistador no
período colonial. Ginho, aquele que se encontra em uma encruzilhada, tem que escolher entre pertencer ao grupo,
atirando no cão para provar que é homem, ou proteger o animal e assim desestabilizar a prevalência do discurso
coercitivo colonial, se apresentando como um rebelde que é um risco para a solidez das relações pós-coloniais:

Eu tenho medo, desculpa-me Cão Tinhoso – eu disse aquilo tão baixinho que só o Cão Tinhoso me podia ouvir – eu
tenho medo, Cão Tinhoso. – Eu vou pedir isso ao Quim e à malta, e eles deixam com certeza, e eu levo-te e trato-te
e depois vais outra vez dormir para as camas de poeira das galinhas do Senhor Professor. Eu vou pedir ao Quim e
à malta e eles deixam. Mas não me olhes como se eu tivesse culpa, Cão Tinhoso! Desculpa, mas eu tenho medo
dos teus olhos...” (HONWANA)

O desfecho do Cão Tinhoso é a morte. Em mais uma situação, não há como fugir do que foi determinado pelo poder
colonial, mesmo que não haja explicação plausível para essa decisão. A conversa final entre Ginho e Quim mostra
como eles tentam acalmar a própria consciência transferindo a culpa por suas ações, seja para o administrador,
para o veterinário, ou até para os outros cães:

“– Eles não queriam brincar com o Cão Tinhoso” (HONWANA)

No entanto, é a consciência que se preserva no “não dito” que precisa ser enfrentada para que haja a possibilidade
de transformação da sociedade marcada pela violência da imposição do discurso colonial, promovendo um avanço
na criação de um discurso descolonizador.

(Lidiana de Moraes, University of Miami)


No conto seguinte, “Inventário de Imóveis e Jacentes”, somos apresentados à típica família moçambicana e sua
residência. Honwana, através dos olhos de mais um jovem personagem-narrador, expõe os cômodos da casa, os
móveis, a alimentação, como são servidas as refeições, tudo de forma bastante simples. Não obstante,
descobrimos que o pai do narrador já foi presidiário e que está doente, o que nos faz levantar algumas
questões: seria uma prisão política por conta de uma possível militância do pai do narrador do conto? Está
doente por causa de trabalhos forçados? Ou teria sofrido tortura na cadeia? Essa narrativa, ainda que simples,
permite o levantamento de importantes questões, pois “faz com que o leitor entre no território do não dito, daquilo
que o conto não relata, da verdadeira situação que não está a ser contada” (HERNÁNDEZ, 2015, p. 99).

Já em “Dina”, a completa exploração e humilhação dos trabalhadores nas machambas. Madala, personagem
principal desse conto, sofre com a idade, com o trabalho forçado nas plantações moçambicanas e com o sol
escaldante a intensificar suas enfermidades. A riqueza e fertilidade da terra se sobressaem. Mas a ideia de uma
riqueza nacional explorada pelo estrangeiro fica igualmente nítida. O capataz, além de explorar os trabalhadores na
machamba, acaba explorando sexualmente a filha de Madala, que aparecera no acampamento para ver seu pai
no intervalo do almoço. Madala não reage, não fala nada, nem quando seus companheiros oferecem ajuda.
Entretanto, não significa que ele foi indiferente àquela situação, visto que,

A revolta, ainda que não verbalizada, se materializa em gestos contidos e fica expressa até na maneira como o
autor articula o diálogo do personagem principal com a natureza. Uma figura metafórica recorrente no conto ‘Dina’ é
o manuseio da planta arrancada pelo Madala nos seus momentos de maior tensão (SANTANA, 2014, p. 18-19).

De acordo com Isaías Santana (2014, p. 18), Honwana “acaba por mostrar que, embora o oprimido aceite a
imposição, ele tem plena consciência do direito que lhe está sendo tirado ou do valor social que está sendo
corrompido”. O desrespeito ao idoso e à mulher por parte do colonialista é evidente.

Em “A Velhota”, outra situação degradante é revelada quando o narrador-personagem conta seu sofrimento
por apanhar e ser vítima de preconceitos constantemente. Tinha que manter a aparência quando chegava a sua
casa por causa da responsabilidade em cuidar da “velhota e dos miúdos”:

Eu não consegui bater o tipo porque ele era todos os outros, e exatamente com isso que ele me bateu. [...] Eu
precisava ir para casa. Ia comer arroz e caril de amendoim como eles queriam que fizesse, mas não para
encher a barriga. Eu precisava de ir para casa para encher meus ouvidos de berros, os olhos de miséria e a
consciência de arroz com caril de amendoim (HONWANA, 2014, p. 80).

No fim do conto, ele confessa essa situação para a velhota, após os miúdos terem ido dormir, ao passo em que ela
retruca “quem foi? Mas isso não é tudo, tu tremes...”. O jovem responde: “Sim, isso não é tudo. E até não é nada.
Eles fizeram-me pequenino e conseguem que eu me sinta pequenino. Sim, é isso. Isso é que é tudo”. A
velhota como se não soubesse do que ele estava falando: “Bem, acho que o melhor é não querer saber disso para
nada, porque não percebo nada do que tu dizes...” (HONWANA, 2014, p. 83).

Fica nítido para o leitor o contraste entre a inconformação do jovem e a resignação e falta de apoio de quem
deveria ampará-lo. O conto “Papá, Cobra e Eu” descreve a tensa relação social entre colonizador e
colonizado, visto que, quando Lobo, cachorro do Sr. Castro, é morto após ser picado por uma cobra no quintal do
Sr. Tchembene, sobram ameaças por parte do colono, que desconsidera o fato de serem vizinhos e se conhecerem
“há tanto tempo” (HONWANA, 2014, p. 96).

Um detalhe interessante nessa narrativa é que Lobo está no grupo de cães que destrata o Cão-Tinhosoo que é
indicativo de que eram representantes dos colonizadores.

“As Mãos dos Pretos”, um dos contos mais conhecidos de Honwana, traz à tona a questão do racismo quando, mais
uma vez, uma criança se lança a narrar e atuar no conto. Esse recurso narrativo é predominante na coletânea.

A busca da explicação do porquê de as palmas das mãos dos pretos serem mais claras que o resto do corpo faz o
pequeno narrador encontrar várias versões, sempre com tons racistas, não percebidos por ele. A mãe do narrador é
quem dá a ele e ao leitor a explicação mais plausível, que celebra a igualdade entre os seres humanos: “Deus
fez os pretos porque tinha de os haver” (HONWANA, 2014, p. 102) . Depois se arrependeu por que os “outros
homens se riam deles e levavam-nos para as casas deles para os por a servir como escravos ou pouco mais”
(HONWANA, 2014, p. 102). Deste modo, fez com que as mãos dos pretos ficassem iguais as mãos dos outros
homens “para mostrar que o que os homens fazem, é feito por mãos iguais” (HONWANA, 2014, p. 102).
Por fim, o conto “Nhiguitimo” mostra como o colonialista faz de tudo para que o colonizado não melhore de vida,
negando qualquer possibilidade de ascensão social. O colonizador, como diz Albert Memmi, “se transformou em
usurpador, pois criou um espaço para si e tomou o do habitante; se impôs privilégios em prejuízo de quem os tem
direito. Se tornou um privilegiado e um privilegiado não legítimo” (MEMMI, 2007, p. 42). O personagem Vírgula Oito,
por exemplo, trabalha na machamba do Rodrigues, mas ele tem a sua própria machamba e faz planos para
aumentar seu negócio. Contudo, Rodrigues faz de tudo para prejudicá-lo, condenando-o à morte para que
outras pessoas não se inspirassem no seu crescimento.

Zidelmar Alves Santos (UFBA)

O conto “Nhinguitimo” apresenta o enfoque de questões como o comodismo, a conscientização e a revolta. O


personagem principal é Alexandre Vírgula Oito Massinga, um jovem negro indígena que trabalha como empregado,
cultivando as roças alheias e que também tem sua própria plantação de milho em uma área ainda não demarcada.
Vírgula Oito vê a possibilidade de sua plantação render muitos lucros, pois o nhinguitimo (tempestade com fortes
ventos vindos do sul) não prejudicaria sua roça (por ela estar do outro lado do rio, protegida pelas árvores),
atingindo apenas as grandes plantações dos brancos. Com isso, o jovem vislumbra a possibilidade de se tornar um
“patrão”, comprar maquinários, aumentar a produção, casar-se, enfim, melhorar sua condição de vida. Ocorre,
porém, que a sua terra é tomada pelos colonizadores, e Vírgula Oito é expulso com sua família. Todos os sonhos
construídos são solapados. O discurso que justifica a expulsão pelos brancos colonizadores está na fala do dono do
bar que é o ponto de encontro dos homens da vila:

Senhor administrador, se eu insisti nisto é só porque me custa ver uma terra tão rica a ser desperdiçada pelos
pretos, [...] e sempre lhe digo que esta vila podia ter melhor sorte se se desse um pouco mais de atenção às
pretensões das suas gentes [...] Senhor administrador, eu sempre confiei na clarividência com que Vossa
Excelência dirige superiormente os interesses das populações neste momento conturbado [...]. (HONWANA, 1985,
p. 153)

O discurso que justifica a ação de tomar as terras dos “pretos” está pautado na falta de habilidade e falta de
conhecimento que levam ao desperdício da terra, no sentido de produzir na mesma e de auferir lucro. Ressalta-se o
modo como a expressão “pelos pretos” marca a generalização, na qual não é apenas um “preto” que desperdiça a
terra, mas todos os indivíduos pertencentes a essa etnia são avaliados como sem conhecimento ou sem habilidade
para trabalhar com a terra, logo, não podem ter a posse, restando a eles o trabalho como empregados dos brancos
colonizadores, considerados agricultores hábeis.

(...)

A opressão e a passividade, de um lado, e a conscientização e revolta, de outro, são explorados por Honwana
através da relação de Vírgula Oito com seus amigos.

Massinga... Ouve, eu acredito nisso tudo que tu dizes que vais fazer... [...] Sabes... Eu não sei se eles não ficarão
zangados por tu teres tanto dinheiro... Eles são capazes de não gostar disso... Eles não vão permitir que tenhas
tanto dinheiro... [...] Eles são capazes de não gostar, Massinga... [...] Eles são capazes de não gostar ... É que tu és
capaz de ter mais dinheiro do que o enfermeiro e o intérprete, os assimilados... [...]. (HONWANA, 1985, p. 152)

A caracterização da impossibilidade da ascensão social, da subordinação econômica, da impossibilidade de ter as


mesmas condições e direitos está exposta através do pronome “eles”, o agente repressor, os brancos, os
portadores do poder, os que ditam as regras, incutida na mentalidade dos amigos de Vírgula oito. A ascensão
econômica – ter dinheiro – de Vírgula Oito é o fato que pode despertar a ira (deles), porém, ao mesmo tempo,
desconstrói o discurso em que os “pretos” não teriam conhecimento necessário para trabalhar na terra, que somente
a desperdiçariam, não podendo, dessa forma, ter o controle ou a posse dela.

Na reprodução do discurso do colonizador na fala do oprimido, ou da impossibilidade de transpô-lo, o autor


apresenta um paradoxo, uma possibilidade de oposição ao mesmo discurso, algo que destoa da generalização
imposta e apresentada como verdadeira. Se Vírgula Oito pode despertar a ambição, inveja dos brancos pela
possibilidade de talvez ter muito dinheiro, isto quer dizer que ele não desperdiça a terra, conseguiria obter lucro em
quantidade maior que os brancos. Logo, o discurso até então proferido pelos colonizadores não está pautado na
verdade. Ao responder às ponderações dos seus interlocutores, Vírgula Oito argumenta:

Mas por que é que vocês pensam que eles se hão de zangar? [...] Eu não mato nem roubo; como o que ganho no
trabalho; gasto o dinheiro com a minha família; pago o imposto... Pago aos meus trabalhadores... Como é que eles
se podem zangar? (HONWANA, 1985, p. 152).

À primeira vista, a argumentação do protagonista parece ingênua, por não estar compreendendo as regras
impostas. Pode-se, porém, inferir que, ao apresentar os motivos pelo quais ele não pode ser repreendido pelos
colonizadores, está presente nessa fala a resistência à noção de inferiorização, de objeto, de incivilizado, pois, se
ele, Vírgula Oito, arca com todos os seus compromissos e deveres, não tem por que ser retaliado. Não existe, nesse
caso, espaço para a aceitação do discurso do “outro/objeto”, prevalecendo, sim, o sujeito agente, responsável pelo
seu destino. Ocorre, porém, que, após ter as suas terras tomadas, o sentimento que era de certeza de não poder
ser tocado pela ambição dos colonizadores, de não ser repreendido, cede espaço à revolta.

Nesse contexto, Vírgula Oito transforma-se em louco, criminoso, pois acaba, durante um acesso de revolta,
matando um dos seus amigos. A fala do seu patrão revela e reforça o sentido da relação sujeito/objeto, em que a
“coisa”, “o animal” que atrapalha o andamento do cotidiano deve ser extirpado, eliminado:

“[...] Homens, Peguem em armas, e vamos abater esse negro antes que ele mate mais gente! Vamos depressa
antes que aconteça qualquer coisa de muito mau nesta vila!... Meu Deus!...” (HONWANA, 1985, p. 160)

Os termos “homens”, “abater” e “negro” demonstram a desumanização de Vírgula Oito, a selvageria, como se ele
representasse uma fera selvagem a rondar e atacar os campos tomados por ovelhas indefesas. Na realidade, o
período demarcado por constantes tensões entre colonizados e colonizadores não poderia ceder espaço para
qualquer manifestação que destoasse dos rígidos padrões estabelecidos. Nesse caso, “abater” Vírgula Oito era a
melhor opção, a melhor maneira de demonstrar como seriam tratados os indivíduos que causassem alguma
instabilidade social.

As últimas frases do conto, na fala de um narrador-personagem, reforçam a necessidade de mudança nas relações
presentes até então:

Caramba, como que é possível haver tipos como eu? Enquanto eu matava rolas e jogava ao sete-e-meio
aconteciam uma data de coisas e eu nem me impressionava! Nada, ficava na mesma, fazia que não era comigo...
[...] Poça, aquilo tinha que mudar! (HONWANA, 1985, p. 160).

O narrador, também um jovem, que vive a jogar sete-e-meio, a confraternizar com as prostitutas da vila, a matar
pombas nas plantações, ao acompanhar, narrar os desdobramentos que marcam a história de Vírgula Oito, chega à
noção de que algo deve ser feito: “Poça, aquilo tinha que mudar!” (HONWANA, 1985, p. 160). É na passagem do
conformismo à revolta que o colonizado tratado como objeto percebe-se sujeito, percebe-se oprimido e vislumbra a
necessidade da revolução.

Luís Carlos de Oliveira (UEL)

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