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Este é da minha biblioteca!

Quando estiver a ler este texto já poderá ter participado no encontro promovido pela Câmara
Municipal de Loulé, dia 11 de Janeiro, subordinado ao tema: «Existe uma escrita do sul?». Também
eu espero poder lá ter estado, mas, entretanto, aqui vos deixo a minha reflexão, que não versa sobre
nenhum dos intervenientes – que muito aprecio – do referido encontro, mas sobre outro: Rogério
Silva. Isto, porque já uma vez me tive de pôr a pergunta «o que é um escritor regional?».
Tudo aconteceu há uns anos, quando procurava o último livro de José Carlos Fernandes,
(insigne autor de banda desenhada que, por acaso, é de Loulé, e de quem hei-de falar neste espaço).
A situação foi a seguinte: tinha-me dirigido a uma livraria em Faro, daquelas que pertencem
a uma cadeia de livrarias, e perguntei se tinham o referido livro (devia ser um dos volume de A Pior
Banda do Mundo). Como a funcionária não estivesse a localizar o autor, eu acrescentei «ele até é
daqui, de Loulé». Foi então que ouvi a resposta mais espantosa: «Ah, então não temos. Nós não
temos escritores regionais».

O que é um escritor regional?


Escritores regionais? O que é um escritor regional? Um escritor provinciano?
Será que Aquilino Ribeiro foi um escritor provinciano, por os seus escritos estarem cheios
de provincianismos?
E Mia Couto, conceituado escritor moçambicano, que refaz a língua portuguesa em cada
linha?
Até que ponto a linguagem pode limitar a expansão ou a «exportação» de um autor?
Paul Auster é de Nova Iorque, situa as suas histórias em Nova Iorque (o que é normal, pois é
a terra que conhece melhor), usa gíria nova-iorquina. É Paul Auster um escritor regional?
A maioria dos romances está impregnada de referências, quer literárias, quer artísticas, quer
históricas... enfim, uma obra de arte literária não surge sem referência. O seu autor,
necessariamente, está integrado num contexto sociocultural, para não dizer também económico, que
determina as suas escolhas estilísticas, na busca, normalmente, de um estilo próprio, cognoscível
para quem o lê, ou/e na inserção numa corrente literária com a qual se identifique. E, como dizia
Aquilino Ribeiro, «Em literatura o estilo é como o álcool para os corpos embalsamados: conserva-
a».
Tomo, então, o exemplo do autor acima referido, natural de Tavira, que usa esta sua terra, o
Algarve, numa escolha deliberada deste espaço geográfico e cultural, com uma intenção
programática de preservação daquilo que lhe é típico, identificativo, daquilo que faz com que se
pense e entenda esta região como pertença sua/de quem de lá (cá) é.

Fonte Salgada, de Rogério Silva


Rogério Silva publicou o seu último livro, Fonte Salgada, em Fevereiro de 2008, na editora
Gente Singular e é a esta obra específica que me vou referir.
Fonte Salgada é uma colectânea de contos onde o autor recupera uma linguagem regional
algarvia, se bem que não exclua outras influências linguísticas, como galicismos (métier),
italianismos (garbo), latinismos (normalmente referentes a termos jurídicos, área que o autor
conhece bem, pela sua profissão de advogado) e anglicismos (match). Aliás, os seus contos são
muito variados, quase tanto como os seus narradores. Dependendo de quem conta a história, assim a
linguagem muda.
Confesso que usei várias vezes o dicionário Houaiss (tenho uma utilíssima versão
electrónica) para entender o sentido de algumas palavras. Umas eram formas populares, outras
antigas, outras regionalismos (como cóia, por cróia, ou larada). Outras não estavam registadas
(baldeado – amalucado). Algumas deduzi-as pelo sentido (almareado por mareado), outras nem
por isso (como palaio, que parece ser um tipo de alimento, mas quem não sabe – como eu – fica na
mesma)…
Alguns dos contos podem tornar-se quase incompreensíveis se quisermos entender tudo,
mas, como o meu pai me aconselhou a fazer na altura em que comecei a ler Camilo (aos 11 anos,
não o deixando descansar, ao perguntar-lhe insistentemente «Ó pai, o que quer dizer isto…?»), o
melhor é ir lendo e «tirar pelo sentido». Mesmo não compreendendo a totalidade, «sentimos» que é
bonito e coisa boa. Façam o exercício de ler (em voz alta, para a família, por exemplo) o conto «Zé
Frescata» (pp.209-215).
Que traz Rogério Silva a mais, além da linguagem (o que, só por si, não seria pouco)? Teresa
Rita Lopes responde a isto, no prefácio, «se o tempero é algarvio, o manjar é português».
O autor preserva um conhecimento de uma realidade que, a alguns de nós, passa ao lado,
mas não é de desprezar na compreensão das gentes e da sua mentalidade, como é o da diferença
entre a serra e o mar, a visão que outros têm da gente de cá, a vida de trabalho a que aqui se assistia:
«sentia desprezo pelos serrenhos, pela fala mazorra trocando o ou pelo om (som da serra, som
serrenho), pelo cheiro entranhado a esteva que exalavam das roupas e dos cabelo» (p.92); «Que
nunca tinha servido. Entre as gentes da baixa-mar isso não era costume, nem os patrões as
aceitavam pela ruim fama que tinham» (p.186); (um padre transmontano) «tinha nos algarvios uma
descrença atávica caldeada no preconceito religioso e histórico que os taxava de agarenos, relapsos
à cruz de Cristo, mouros sem lei e sem fé» (p.101); «louçã e solta, livre e insubmissa, atributos que
sempre pensou comporem o carácter das gentes do mar. Via-lhe nos olhos claros a cor da areia da
praia [se fosse alentejana diria o dourado das espigas, provavelmente], no cabelo espesso a
coloração crestada e a forma riça das moitas dos sapais; sentia o cheiro da ria, desprendendo-se da
mancha pardacenta com que o lodo lhe cobria os pés (…) daquele corpo de mulher do sul, de talhe
trigueiro e meão. (p.183); «vidas sustidas por nós e atilhos delidos que no mar, na ria, nas obras e
nas fábricas de conservas (…)».

«até um que tinha a mania dos versos a comparara a um figo pingo-de-mel


maduro»
Deixo-vos com uma das mais saborosas delícias algaravias (conto «Malvados Figos!», pp. 63-65):
«figuinho temporão que amadurece ao rés da estrada»; «aos alvores de São João, quando o lampo
cachopeiro intumescia e começava a expor o brilhozinho guloso»; «o figueiral abundava de
castelhano e bêbera luzindo no seu tom castanho-escuro, e de coito pequenote de pedir meças ao
mel»; «e empanturrou-se como nunca do sortido mais precioso quer de brancos quer de pretos».
E termino com um conselho sábio do narrador: «figos quentes dá dor de barriga ou figo ainda
inchado rebenta os lábios».

Diziam os antigos

São puros mentirosos todos os que pretendem fazer crer que, se não se entregam ao estudo, é por
causa dos seus inúmeros afazeres. Na realidade, tais afazeres são um pretexto, sãai afazeres
empolado por gente que se quer fingir ocupada! Eu sou um homem livre, inteiramente livre, e ond
quer que esteja, tenho todo o tempo à minha disposição. Não me entrego aos afazeres, presto-me a
eles, quanto muito, e não me ponho à procura de ocasiões para perder tempo.
Séneca, Cartas a Lucílio, 62. Edição da Fundação Calouste Gulbenkian.

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