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DISCIPLINA: HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA

AUTOR: PROFESSOR DOUTOR CARLOS HEROLD JUNIOR


INÍCIO DO CURRÍCULO LATTES

Pós-Doutorado em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina


(UFSC/2011). Pós-Doutorado em Educação pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR/2009). Doutorado em Educação pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR/2006). Mestrado em Educação pela Universidade Estadual de
Maringá (UEM/2000). Graduação em Educação Física pela Universidade
Estadual de Maringá (UEM/1995).
Profissionalmente, atua como professor universitário desde o ano de 1999,
quando ingressou no Departamento de Pedagogia da Universidade Estadual do
Centro-Oeste (UNICENTRO, Guarapuava). Em 2013, passou a trabalhar no
Departamento de Educação Física da Universidade Estadual de Maringá (UEM)
e hoje leciona as disciplinas de Didática em Educação Física e Lutas e Análise
dos Dados Qualitativos em Educação Física.

Para informações mais detalhadas sobre sua atuação profissional, pesquisas e


publicações, acesse seu currículo, disponível no endereço a seguir:

Link: http://lattes.cnpq.br/9723444517016722

FIM DO CURRÍCULO LATTES


INÍCIO DA APRESENTAÇÃO GERAL

Caro(a) aluno(a), ao escolhermos determinada profissão tomamos uma


importante decisão. Tal decisão gera muitas consequências, dizendo muito do
que já somos e, sobretudo, muito daquilo que seremos em muitas dimensões de
nossa vida, para além da dimensão profissional
Ao folhear este livro sobre a “História da Educação Física”, você indica a
escolha por conhecer de um modo mais aprofundado um universo ligado ao
ensino das variadas práticas corporais e de seu ensino. Digo mais aprofundado
pois, para muitos de nós, não faltam recordações nem “conhecimentos” sobre a
natureza do envolvimento com essas práticas: nas escolas e fora delas, nós
brincamos, jogamos, treinamos. Adultos, preocupamo-nos com nossa saúde,
com nossa aparência ou apenas nos divertimos com essas atividades. Enfim, é
muito improvável que alguém, na condição de iniciar qualquer curso
universitário, não possua algum conhecimento sobre as atividades associadas
ao universo das práticas corporais. É a história delas que estudaremos.
Antes de entrarmos na reflexão sobre essa história, é importante você ter
claro que as diferentes disciplinas do curso proporcionam variados olhares sobre
o conjunto de atividades citadas anteriormente e as perspectivas de trabalho com
elas. Sabemos que quando olhamos algo de um lugar, vemos algumas coisas
mais claramente, enquanto outras são totalmente negligenciadas ou têm sua
visão atrapalhada por alguma coisa que se interpõe entre nosso olhar e aquilo
que queremos ver. Quando optamos por estudar o universo das práticas
corporais e sua presença na escola por meio de um viés histórico, é importante
reconhecer que isso nos trará a condição de olhar a escola, as práticas corporais,
os professores e os alunos nas aulas de aula de educação física de um modo
mais complexo. Enxergaremos coisas que não eram percebidas antes. Com este
estudo, espero que você passe a verificar que, nas milhares de aulas de
educação física - nas quais professores e alunos se relacionam, todos os dias,
país afora, em uma sucessão de fatos, problemas e expectativas do dia a dia
escolar - há uma história a ser estudada, conhecida e produzida. Uma história
percebida como lupa, como um telescópio, a capacitar seu olhar para enxergar,
atentamente, tanto as nuances quanto os horizontes mais amplos. Com essas
lentes, que você saiba da existência de um caminho percorrido por professores
e alunos de outras épocas que levou até o contexto em que vivemos, o qual
merece ser alvo da atenção daqueles que darão vida a essa história, daqui para
frente.
Demonstrar as vantagens de se conhecer a história da educação física
não deve secundarizar o reconhecimento de que esse olhar não consegue ver
tudo, e muito do que se vê na reconstrução desse caminho não tem a clareza
que gostaríamos. Talvez você experimente, durante a rica gama de disciplinas
que serão oferecidas em seu curso, que conhecer as coisas de uma forma mais
clara também produz “escuridões”. No caso da história da educação física, será
mostrado que, embora ela tenha ajudado todo um campo do conhecimento a se
conhecer melhor e propor alternativas a alguns de seus problemas, ela,
constantemente, tem suas observações refeitas, da mesma maneira que tem a
importância de seu olhar questionada. Espero mostrar que o valor do estudo da
história da educação física também acontece por evidenciar que as
competências, as experiências e a sabedoria acumuladas com o passar do
tempo devem ser, sempre, regradas, limitadas, continuamente postas em
dúvida. Dúvidas que aumentam na mesma proporção de uma curiosa avidez, e,
certamente, cultivá-las nos dará a capacidade de encontrar não apenas
soluções, mas novos problemas, novos desafios e limites. Sem esse cultivo
intelectual, as aulas educação física continuarão apenas a ser aquilo que são
para quem não estuda tal campo: crianças e jovens indo para a quadra e
voltando para a sala de aula depois de “jogarem bola” ou “suarem a camisa”.
Admirar belezas e se espantar com absurdos, insuspeitos para muitos olhos, é
a condição à qual aspira este livro sobre a História da Educação Física.
Essa intenção de estudar a história da educação física será composta de
cinco unidades. Na primeira, explico algumas características da análise histórica
e busco aprofundar as considerações sobre a importância desse estudo no
curso. Na segunda unidade veremos que, em diferentes períodos, homens e
mulheres entendiam e sentiam diferentemente seu corpo e o corpo dos outros.
Na unidade III o foco é práticas corporais. A próxima unidade evidencia
diferentes modos como muitas das práticas corporais ainda hoje existentes
surgiram e eram avaliadas, sendo estudada, também, sua importância no lazer,
na cultura e na educação. Na quarta unidade veremos que, embora a educação,
o corpo e as práticas corporais tenham raízes profundas na história da
humanidade, a escola e a disciplina de educação física são invenções mais
recentes, e são elas, no processo de sua construção, que iremos entender.
Focaremos esse processo também no contexto brasileiro, na última unidade.
Acredito que, com o apoio dessa trajetória, você perceberá e entenderá muito
daquilo que experimentou como aluno da educação básica e aquilo que poderá
fazer como professor(a) de educação física. Ótimos estudos!

FIM DA APRESENTAÇÃO GERAL


INÍCIO DA FOLHA DE ABERTURA

TÍTULO DA UNIDADE 1: O CONHECIMENTO HISTÓRICO E O PROFESSOR


DE EDUCAÇÃO FÍSICA

Objetivos de Aprendizagem

● Sublinhar que a formação profissional em educação física possui uma


história.
● Evidenciar a importância de se estudar história em um curso de educação
física.
● Estudar os principais assuntos abordados quando se estuda a história da
educação física.
● Ponderar as possibilidades e as dificuldades na produção do
conhecimento histórico em educação física.
● Analisar a história da produção do conhecimento histórico em educação
física.

Plano de Estudo

A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:

● Tópico 1: Tem história em um curso de educação física?


● Tópico 2: A importância do conhecimento histórico para o professor de
educação física.
● Tópico 3: O que se estuda na história da educação física?
● Tópico 4: Como se produz o conhecimento histórico sobre a educação
física?
● Tópico 5: A história da educação física também tem uma história.

FIM DA FOLHA DE ABERTURA


INÍCIO DA INTRODUÇÃO: Assim como conhecemos pela prática muitas das
atividades corporais e muito de seu ensino na escola por termos sido alunos,
também temos alguma familiaridade com o ato de começar estudando algum
assunto abordando sua história. O hábito tem o seu valor, afinal, como ocorre
em todos os hábitos que possuímos, ele caracteriza-se por ser um automatismo
que nos liberta para pensarmos em coisas mais interessantes.
O que faremos nesta unidade, todavia, é nos preocuparmos menos com
o que compraremos no mercado e mais com a caminhada que até lá nos leva.
Ou seja, o alvo das reflexões nos próximos tópicos é a “caminhada” histórica que
realizaremos nas próximas unidades, pensando na sucessão de seus passos,
na velocidade desses passos e nos cuidados que devemos ter para chegar onde
queremos, sem muitos tropeços e desvios no caminho. Nosso destino final é
“enchermos a nossa sacola” com tudo aquilo que precisamos para pensar nas
práticas corporais e na educação física escolar historicamente.
Realizar essa postura intelectual de pensar os passos de um tipo de
reflexão antes de se abordar o conteúdo da própria reflexão é algo bastante
importante, embora demande algum zelo e esforço. Do mesmo modo que a
caminhada fica um pouco mais lenta quando deliberamos a sucessão dos gestos
que nos levam à frente, analisar a “análise histórica” demandará algumas voltas,
alguns passos para trás, algumas paradas que podem gerar impaciência aos
mais apressados. Entretanto, depois de feita a reflexão sobre o até então
“automático” gesto de “saber o aconteceu”, iniciaremos o estudo da história em
melhores condições para se apreciar a beleza, os detalhes e as lacunas da
história que será analisada, coisas que não víamos devido à pressa com que
caminhávamos. Realizar a promessa de pensar as características de uma
determinada forma e de encarar os assuntos educacionais passa pela busca de
algumas respostas: quais as razões e as maneiras de se estudar história em um
curso de educação física? Bons estudos! FIM DA INTRODUÇÃO.

INÍCIO DO TÓPICO 1: TEM HISTÓRIA EM UM CURSO DE EDUCAÇÃO


FÍSICA?

Caro(a) aluno(a), quando vemos as diferentes instituições de ensino


superior divulgarem seus cursos de educação física, comumente essa
divulgação é associada a imagens de acadêmicos jogando ou praticando algum
tipo de atividade corporal sob a supervisão de um professor. É compreensível
que assim seja, pois, de fato, durante um curso de educação física, são
momentos bastante relevantes aqueles em que executamos e passamos a
conhecer diferentes formas de movimentação corporal. Mesmo que não seja
essa a intenção desses atos publicitários, é corriqueiro o espanto de alguns
acadêmicos quando se deparam com outra rotina. Em alguns, gera-se alguma
surpresa o fato de que, ao lado da tão divulgada e apreciada prática de
atividades, os cursos de educação física possuam, também, uma grande
quantidade de disciplinas cujo empenho manifesta-se na forma de leitura e
redação de textos, na participação de aulas expositivas e discussões sobre
variados temas.
Para alguns acadêmicos, todavia, isso não é uma surpresa. Afinal, muitos
procuram os cursos de educação física devido à grande experiência prática que
possuem nos variados campos das atividades corporais e, por isso,
ansiosamente aguardam e, corretamente, cobram um curso com uma boa carga
horária de conteúdos científicos e culturais que incrementem sua formação. Na
atualidade, de forma geral, os cursos atendem a essa demanda, colocando em
suas matrizes curriculares disciplinas de diferentes áreas do conhecimento.
Entretanto, apesar da variedade de áreas de conhecimento presentes nas
matrizes curriculares dos cursos de educação física, é comum se caracterizarem
por uma maior visibilidade e presença de disciplinas cuja vinculação acadêmica
encontra-se nas ciências biológicas e da saúde. Fisiologia, anatomia,
bioquímica, nutrição, biomecânica, entre outros, são importantes campos de
estudo que, historicamente, têm marcado o ramo de educação física. Há boas e
justas razões para isso, e elas poderão ser entendidas mais a frente neste livro.
Por ora, essa constatação deve apenas nos ajudar a marcar que, ladeando
essas disciplinas de cunho biológico, as disciplinas vinculadas aos campos da
pedagogia e das ciências humanas e sociais, da filosofia e da história também
se fazem presentes, embora não sejam por elas que um curso de educação
física seja reconhecido. Sublinho que a presença dessas últimas disciplinas nas
matrizes curriculares não é algo que passou a acontecer apenas nos últimos
anos. Desde o início dos processos sistemáticos de formação profissional no
campo da educação física no Brasil, a partir de 1920, é possível verificar a
presença de disciplinas que abordavam a história. Porém a história “ocupava um
lugar menor e gozava de um prestígio intermediário, já que embora fosse teórica
era não-médica” (MELO, 1999, p. 22).
Temos, então uma situação bastante curiosa: ao ingressarmos em um
curso de educação física tomamos contato com algumas tradições. Mencionei
duas: a que o reduz às práticas corporais e uma outra que enxerga o curso de
educação física como relacionado ao campo das ciências biológicas. Digo
curiosa, pois, nenhuma dessas tradições é equivocada por elas mesmas. Elas
têm sua importância na formação dos professores de educação física e não
precisam ser assumidas como erradas ou até mentirosas. A tentativa daqueles
que têm pesquisado a formação profissional de educação física e daqueles que
nela ingressam é refletir sobre as razões dessa realidade se manifestar com tais
tradições, visando encontrar espaços para que essa formação se aprimore,
incorporando outras matrizes disciplinares para serem estudadas e conhecidas
por todos.
Essa tentativa vem sendo feita de modo mais intenso nos últimos 30 ou
40 anos no campo da educação física e, entre outras coisas, redundou na
publicação de um documento que direciona ou que guia as instituições de ensino
superior quando elas criam cursos de educação física. Trata-se da Resolução
n.º 07 do Conselho Nacional de Educação, de 2004. Ela institui as diretrizes
curriculares nacionais para os cursos de educação física (BRASIL, 2004).
Importante para a reflexão desse tópico é o que lemos no artigo 4 do documento
e que nos ajuda a entender o fato de você estar folheando as primeiras páginas
de um livro sobre história da educação física:

O curso de graduação em Educação Física deverá assegurar uma


formação generalista, humanista e crítica, qualificadora da intervenção
acadêmico-profissional, fundamentada no rigor científico, na reflexão
filosófica e na conduta ética (BRASIL, 2004, p. 1).

Tão importante quanto o parágrafo que acabo de citar é o primeiro inciso


desse mesmo parágrafo. Nele, se endossa a necessidade das duas tradições
mencionadas anteriormente se conjugarem a um outro conjunto de reflexões,
pautadas em conhecimentos advindos das ciência humanas, da filosofia e da
história:
O graduado em Educação Física deverá estar qualificado para analisar
criticamente a realidade social, para nela intervir acadêmica e
profissionalmente por meio das diferentes manifestações e expressões
do movimento humano, visando a formação, a ampliação e o
enriquecimento cultural das pessoas, para aumentar as possibilidades
de adoção de um estilo de vida fisicamente ativo e saudável (BRASIL,
2004, p. 1).

Interessante verificarmos que esse “dever ser” de um curso de educação


física, ao lado de enfatizar o rigor científico, prioriza, também, uma formação
“generalista, humanista e crítica”, sustentada na “reflexão filosófica e na conduta
ética” (BRASIL, 2004, p. 1).
Caminhando para o mesmo sentido, vemos no artigo 6 das mesmas
diretrizes serem mencionadas “competências de natureza político-social” e
“ético-moral” em igual pé de igualdade com as “competências técnico-
profissionais e científicas”. Nessa análise, elas formam a “concepção nuclear do
projeto pedagógico de formação do graduado em educação física” (BRASIL,
2004, p. 2).
Tudo isso deve ser mantido a sua frente, sobretudo, se for considerado
que você está iniciando sua informação. Durante sua trajetória no curso, é
importante não perder de vista que o rigor científico é um dos componentes que
se materializam no veio fortemente biologizante das matrizes curriculares dos
cursos de educação física. Sendo ele um traço muito valioso desses cursos, o
fomento de uma formação crítica, que capacite aos acadêmicos refletirem
filosoficamente e eticamente suas problemáticas formativas, também o é. Isso
demanda a presença de outras formas de reflexão. Nesse caso, as que se
vinculam às ciências humanas, sociais e históricas. No documento que está
servindo de base a estas reflexões, essas outras formas de reflexão realizam-se
na matriz curricular quando ela aborda a “dimensão do conhecimento” que trata
a “relação ser-humano e sociedade” (BRASIL, 2004, p. 3). Essas considerações
evidenciam que você escolheu um campo profissional que está se submetendo
a um processo de ampliação de suas práticas formativas. Apesar de algumas
antigas práticas ainda estarem presentes, muitas delas por terem, ainda, seu
valor, a elas agregam-se outras concepções. Por meio delas realiza-se a defesa
de que os futuros professores de educação física devem ser formados com um
olhar mais matizado e mais competente para visualizar coisas que antes não
eram tomadas como importantes. Um olhar que dê condições de pensar a
relação ser-humano e sociedade para além das formas usuais ou cotidianas que
temos feito por estarmos vivos e sermos inteligentes, e que continuarão a ser
feitas quando pensarmos em outras dimensões da vida social para a qual não
somos, sistematicamente, formados. Por esse motivo o estudo atento, também
em um curso de educação física, de disciplinas que possuam relação com a
sociologia, antropologia, filosofia e história. Por esse motivo, a resposta à
pergunta que intitula este item é: sim, tem história no curso de educação física!
E você aprenderá um pouco mais sobre as características deste estudo nos itens
seguintes. FIM DO TÓPICO 1.

INÍCIO DO TÓPICO 2: A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO HISTÓRICO


PARA O PROFESSOR DE EDUCAÇÃO FÍSICA

Na atualidade, o vocábulo “conhecimento” tem sido alvo de grande


atenção. Quando falamos “conhecimento”, dificilmente a ele associamos ideias
negativas, problemas ou perda de tempo. É o contrário que ocorre: é muito
corrente o raciocínio que atribui ao conhecimento a possibilidade de solução de
todos os nossos problemas sociais. Essa crença, geralmente, associa,
unilateralmente, o conhecimento a “conhecimento científico”
Do mesmo modo como ocorre com muitos assuntos, não podemos,
simplesmente, descartar a assertiva, atribuindo a ela o resultado de um delírio.
O que há algum tempo se concorda é a necessidade de relativizarmos o peso
dessa defesa da ciência como condição única de superação de muitas limitações
sociais, verificando outras variáveis - as políticas e as éticas, por exemplo -,
igualmente importantes para a análise e superação de desafios sociais,
econômicos e morais. A quem defende esse tipo de posicionamento, uma
justificativa para tanto é o fato de que uma postura menos ufanista em relação à
produção e difusão do conhecimento científico possibilitaria uma postura
intelectual mais atenta à complexidade não apenas sobre os assuntos que se
quer conhecidos, mas sobre a nossa capacidade e limites de conhecer essas
mesmas coisas.
A quem se dedica à produção e difusão do conhecimento histórico, essas
questões são de fundamental importância. Em primeiro lugar, atribuir à produção
e à difusão do conhecimento científico a possibilidade de uma evolução social
caracteriza como importante apenas o conhecimento diretamente útil. Em
segundo lugar, essa utilidade é, constantemente, entendida como mensurável,
captada matematicamente, deixando de lado contradições valorativas, sociais e
políticas, tomadas, assim, como subjetivas, não relevantes e até geradoras de
dificuldades ao conhecimento exato daquilo que nos aflige. Aos historiadores e
aos estudiosos da história da educação física, tratam-se de posicionamentos que
geram muita dificuldade, sobretudo pelo fato de essa ótica deixar bastante difícil
a resposta às seguintes indagações: para que serve a história? Qual a utilidade
da história para o enfrentamento dos problemas atuais? Qual o valor da história
para quem trabalhará como professor de educação física? Historiadores de um
modo geral e pesquisadores e professores de história da educação física têm se
ocupado dessas questões. Vamos, então, analisar algumas tentativas de
respondê-las.
Para pensarmos de forma mais atenta na questão da utilidade e da
objetividade do conhecimento histórico, um caminho interessante é voltar nossa
atenção para uma obra de grande valor no campo da história: “Apologia da
História”, de March Bloch (2001). Quando fazemos uma apologia, fazemos não
apenas a defesa ou o elogio de algo, mas fazemos isso de uma forma
apaixonada, intensa. March Bloch fez isso enquanto estava preso pelo exército
alemão, no contexto da II Guerra Mundial. O livro se inicia de um modo bastante
ilustrativo para o começo de um curso de graduação que tem sua atenção
voltada para um campo de atuação relativamente distante das inquietações de
um historiador. Inicia Bloch:

‘Papai, então me explica para que serve a história’. Assim um garoto,


de quem gosto muito, interrogava há poucos anos um pai historiador.
[...] Alguns, provavelmente, julgarão sua formulação ingênua. Parece-
me, ao contrário, mais que pertinente. O problema que ela coloca, com
a incisiva objetividade dessa idade implacável, não é nada menos do
que a da legitimidade da história. Eis portanto o historiador chamado a
prestar contas (BLOCH, 2001, p. 41).

Bloch, então, passa a construir algumas reflexões, iniciando-as pela


constatação de que a história exerce uma atração muito forte nas pessoas. Com
efeito, para além dos esforços acadêmicos feitos nas universidades, mas muito
relacionadas ao que nelas é produzido, há uma enormidade de livros sobre fatos,
personalidades, curiosidades extraídas dos mais diferentes tempos. Mas o
historiador francês não perde a paciência e reconhece que “uma ciência nos
parecerá sempre ter algo de incompleto se não nos ajudar, cedo ou tarde, a viver
melhor” (BLOCH, 2001, p. 45). Essa ajuda é proporcionada pelo conhecimento
produzido pelo historiador, considerando-o como uma possibilidade, como um
“esforço para conhecer melhor” (BLOCH, 2001, p. 46).
Nesse esforço, porém, Bloch não desconsidera que a história é uma
“ciência na infância” (BLOCH, 2001, p. 47). Essa advertência não deve ser
tomada como um reconhecimento de que quando a vida adulta chegar, ela
poderá conhecer todas as problemáticas que hoje (ou ainda nos anos em que
escreveu Bloch) são “desesperadamente refratárias a um conhecimento
racional” (BLOCH, 2001, p. 47). Dito de outro modo, é importante reconhecer
que a possibilidade de pensarmos melhor a nós mesmos e, por isso, assumir a
utilidade da história, não leva à necessidade de os historiadores tomarem seu
conhecimento como um conhecimento menor ou menos “científico”. Afinal, se
“toda ciência, tomada isoladamente, não significa senão um fragmento do
universal rumo ao conhecimento” (BLOCH, 2001, p. 50), o conhecimento
histórico é importante, é útil, justamente por produzir um conhecimento que,
assim como a criança, questiona todos os assuntos concernentes aos seres
humanos em sociedade, com a mesma postura “implacável”, com a mesma
“curiosidade de um rapazola” (BLOCH, 2001, p. 43). Por isso, Bloch faz sua
Apologia, que pode ser sintetizada na passagem a seguir:

Não sentimos mais a obrigação de buscar impor a todos os objetos do


conhecimento um modelo intelectual uniforme, inspirado nas ciências
da natureza física, uma vez que até nelas esse gabarito deixou de ser
integralmente aplicado. Não sabemos ainda muito bem o que um dia
serão as ciências do homem. Sabemos que para existirem - mesmo
continuando, evidentemente, a obedecer às regras fundamentais da
razão - não precisarão renunciar à sua originalidade, nem ter vergonha
dela (BLOCH, 2001, p. 49).

Vamos nos atentar para a relevância dessa afirmação para se pensar nas
possibilidades do conhecimento histórico em um curso de educação física. Em
primeiro lugar, Bloch (2001) nos evidencia que, aos estudarmos dimensões da
vida societária, a precisão comumente associada à ciência não é nem possível
e nem desejável. Ele afirma, inclusive, que nem nos limites das ciências que se
aproximam do tradicional cânone das ciências exatas e das ciências biológicas,
isso já não vinha acontecendo em sua época. Ao observar isso para o campo da
história e com isso justificar sua importância intelectual para se evitar o “horror
das responsabilidades” (BLOCH, 2001, p. 46), ou seja, para se querer impactar
positivamente a vida que se vive, Bloch gera outro impacto para quem pensa na
formação em educação física: mais um estímulo para se reconhecer que as já
citadas tradições formativas no campo da educação física, aproximadas às tais
ciências exatas e biológicas, podem ser entendidas e superadas naquilo em que
elas são limitadas. Trazer para a educação física os “perpétuos
arrependimentos” do conhecimento histórico e dos historiadores será um passo
gigantesco para todos aqueles, cientistas, historiadores e professores de
educação física, possam de “maneira mais segura”, “orientar racionalmente seus
esforços” (BLOCH, 2001, p. 49).
Perpetuamente arrepender-se do conhecimento que produz, ou seja,
justificar, renovadamente, a relevância e o limite da reflexão histórica, é uma
postura muito rica, necessária e recorrente nos pesquisadores da história da
educação física. Em muitas oportunidades eles se voltam a essa questão,
estimulando-nos e, com certeza, buscando estímulos para eles mesmos, na
tarefa de “orientar racionalmente seus esforços” (BLOCH, 2001, p. 49). Melo
(1999), ao introduzir um livro ao qual recorreremos com frequência no
desenvolvimento de nossas reflexões, endossa o valor da reflexão sobre a
importância da história, quando pensada em curso de formação inicial em
educação física:

Por que temos que estudar história em um curso de graduação em


Educação Física? É possível que esta pergunta já tenha sido diversas
vezes pronunciada entre alguns estudantes e professores dos diversos
cursos superiores ligados à formação do professor de Educação Física
espalhados pelo Brasil. Afinal, em que o estudo da história estaria a
contribuir na formação do futuro professor? Haveria realmente espaço
e necessidade de uma disciplina específica para estudos dessa
natureza? (MELO, 1999, p. 19).

Treze anos depois que foram publicadas essas dúvidas, outra


pesquisadora que será bastante citada neste livro, Goellner (2012) redigiu um
texto com a mesma característica: argumentar a importância sobre a história da
educação física na formação dos futuros professores deste campo.
Compreensível é que o mesmo tom problematizador que lemos no texto de Melo
(1999) também marque o artigo de Goellner (2012) já no seu início:

Por que estudar História no curso de formação em Educação Física?


Que aplicabilidade o conhecimento histórico tem na atuação cotidiana
dos seus professores e professoras? Com tantas informações
disponibilizadas pelas novas tecnologias de informação, porque é
necessário ler autores clássicos da área? Se a Educação Física é uma
área voltada para a saúde, a performance e a educação corporal de
crianças, jovens e adultos, o que interessa o conhecimento histórico?
(GOELLNER, 2012, p. 37).

A estratégia que adoto para evidenciar a importância de estudarmos


história da educação física nas páginas que se seguem é inspirada nesses
pesquisadores. Ao compreendermos a razão das perguntas que os alunos, na
sua implacável objetividade, nos colocam, damos a ela sua importância. As
perguntas são repetidas, é posto em evidência que elas são justas, mas,
igualmente, a dúvida colocada explicita um desconhecimento a ser encarado,
qual seja: as características e a importância de estudarmos história.
Em primeiro lugar, vale sinalizar essas hesitações de todos aqueles que
começam a estudar a “história de alguma coisa” quando têm mais interesse no
“alguma coisa” e não no “história”, explica-se pela persistência de uma
concepção de história bastante simplificada. Essa simplificação, na maioria dos
casos, persiste no avanço dos anos escolares e, talvez, justamente por esse
avanço, essa concepção simplista tenha lançado raízes tão profundas no
entendimento de muitos. Lee (2006), ao estudar a maneira como alunos da
educação básica e do ensino médio entendem o passado, enxerga algumas
características que, acredito, nos ajudam a entender a recorrência dos
questionamentos apresentados anteriormente pelos pesquisadores da história
da educação física. Em primeiro lugar, Lee (2006) nota que é comum a
compreensão de que “o passado é como uma paisagem distante, atrás de nós,
simplesmente fora do alcance, fixa e eterna” (LEE, 2000, p. 137). Por isso, o
único conhecimento possível desse tempo distante só se alcança via
testemunhas. Isso acaba por levar à concepção de que estudar e aprender
história reduzir-se-ia à absorção de testemunhos fidedignos, trazidos pelo
professor e pelos livros utilizados por ele.
Muitos estudantes, então, operam com um conjunto de ideias que
funcionam bem na vida cotidiana, mas que tornam a história
impossível. Porque há um passado permanente, somente uma
consideração verdadeira pode ser feita. O passado consiste de eventos
testemunháveis, então as afirmações dos historiadores sobre “o que
aconteceu” são como depoimentos de testemunhos de segunda mão
(LEE, 2006, p. 139).

Contrariamente a essas concepções, Lee (2006) evidencia que o passado


não é imutável. Na realidade, as visões sobre ele são constantemente alteradas,
gerando um processo contínuo de revisão, de questionamento de verdades e
reelaboração de explicações. Nesse sentido, o conhecimento histórico não
deveria ser assumido como cópia do passado, como algo resolvido de uma vez
por todas. Hobsbawn (2007) nos ajuda a entender como isso é possível. Mesmo
que não possamos deixar de verificar que muitas das coisas hoje são como são
devido ao passado que tiveram, o raciocínio oposto também é verdadeiro: o
conhecimento que temos do passado é dependente dos problemas e das
condições que temos no presente. Isso é dito pelo historiador da seguinte forma:

O “homem” era a chave para a anatomia do macaco. Claro que não se


trata de um procedimento anti-histórico. Implica que o passado não
pode ser entendido exclusiva ou primordialmente em seus próprios
termos: não só porque ele é parte de um processo histórico, mas
também porque somente esse processo histórico nos capacitou a
analisar e compreender coisas relativas a esse processo e ao passado
(HOBSBAWN, 2007, p. 173).

Essas considerações evidenciam de modo bastante interessante que, ao


estudarmos história, a todo momento o modo como esse conhecimento é
produzido é trazido à baila. Lee (2006), ao fazer o diagnóstico que apresentei
anteriormente, também verifica que, naquelas concepções de passado que
inviabilizam uma concepção de “literacia histórica”, “a pergunta ‘como sabemos?’
simplesmente não surge (LEE, 2006, p. 137). Ora, voltamos à característica que
dá à história, no entender de Bloch (2001), ao mesmo tempo, seu limite e seu
potencial. Não por acaso, essa relação entre conhecimento histórico e como
esse conhecimento histórico é produzido é algo que também aparece nas
justificativas dadas por Melo (1999) e Goellner (2012), quando justificam a
história da educação física como reflexão valiosa aos futuros professores.
Para Melo (1999, p. 26), o estudo da história da educação possibilita a
quem pensa no assunto a “possibilidade de aprender a compreender
historicamente um problema”. Mas o que isso significa? Significa muitas coisas,
algumas delas enfatizadas de modo persuasivo pelo autor. Em primeiro lugar,
ao estudarmos o passado de algum fenômeno, assunto ou campo profissional,
podemos pensar no fato de aquelas pessoas terem feito escolhas - algumas
difíceis - entre as possibilidades que para eles existiam. Além disso, podemos
entender que muitas das possibilidades a serem escolhidas existiam por serem
resultantes, por serem consequências de escolhas anteriormente feitas. Dito de
outro modo, compreendemos que “o que temos atualmente foi construído e não
fruto exclusivo do acaso, tampouco estava escrito em um ‘livro dos destinos’”
(MELO, 1999, p. 24). Exemplificando essa “utilidade” da história da educação
física, imagine pensar na seguinte problemática: a partir de quando as aulas de
educação física na escola passaram a ser tão relacionadas com as quatro
modalidades desportivas, como muitos de nós conhecemos? Pensar
historicamente nessa questão remete-nos a olhar para momentos em que isso
não acontecia, para momentos em que as “obviedades” e os “erros” eram outros,
com o objetivo de captar uma realidade deixando de existir em nome de outra.
Nessa transformação, não apenas as escolhas dos professores são importantes,
mas o valores sociais que passaram a vigorar, configurações político-ideológicas
que ganharam espaço, incrementos tecnológicos, surgimento de novas práticas
que foram abraçadas por muitas pessoas.
Para resumir, “pensar historicamente” é a capacidade de pensar os
assuntos que nos interessam como construções humanas no tempo. É a
capacidade de verificar que as pessoas que existiram antes de nós e que
trabalharam com questões semelhantes às nossas encontraram soluções para
os mesmos problemas, viram problemas onde hoje vemos soluções. Ou que
viram problemas onde hoje não vemos nada que indique a existência de algo
que, inacreditavelmente, deu muita dor de cabeça em outros momentos. De
algum modo, estudar história se torna uma espécie de laboratório onde se
ponderam as possibilidades e os limites humanos em fazer seus gestos e
pensamentos produzirem os resultados esperados. “Como eles lidaram com
isso?”, “Como eu lido com isso?”, “Por que eles se ocupavam com aquilo?”, ou
“Por que eles não perdiam tempo com que algo que nos ocupa?”, tratam-se de
questões que fazemos a todo tempo quando estudamos história.
Goellner (2012, p. 37) segue um caminho semelhante quando afirma que
“[...] a História contribui para conhecer o presente e a nós mesmos”. Ela
aprofunda alguns dos pontos que elenquei quando apresentei as justificativas de
Melo (1999) sobre as razões de estudarmos a história da educação física.
Goellner (2012) lista uma série de questionamentos que você não dever perder
de vista ao ler esta e as unidades subsequentes:

Como, então, formar profissionais sem sensibilizá-los para a


percepção de que tudo tem história, inclusive o corpo e sua
movimentação? Como qualificá-los a atuar no campo da saúde, do
esporte, da educação e do lazer sem que tenham condições de
entender que os discursos e as práticas que circulam no entorno
desses campos não foram sempre os mesmos e que são
constantemente modificados e ressignificados? (GOELLNER, 2012, p.
37).

Nas próprias perguntas já temos importantes indícios para que possamos


“sensibilizar os alunos dos cursos de graduação a estudar história” (GOELLNER,
2012, p. 37), oferecendo respostas e, portanto, justificativas a esse estudo. A
autora vai ao encontro do posicionamento de Melo (1999) quando defende que
a grande “utilidade” e também a grande “beleza” de estudarmos história é o fato
de abordarmos as intenções, os problemas e as ações das pessoas que viveram
em outros tempos. Também concordam entre si os autores que, quando fazemos
isso, ao mesmo tempo em que conhecemos um “outro contexto” damos um
passo importantíssimo para conhecermos o contexto em que vivemos, e isso por
outra razão que não apenas pelo fato de agirmos e pensarmos em
circunstâncias, com valores e raciocínios que herdamos, como tradição,
daqueles que nos antecederam. Conhecemos melhor o nosso contexto quando
estudamos história, pois só a estudamos quando nos colocamos questões a
serem respondidas. Essas questões surgem devido aos desafios que
enfrentamos em nosso cotidiano. Elas surgem, pois percebemos nossa
hesitação no modo de abordar problemas importantes que atrapalham as ações
que tínhamos planejado, levando-nos ao esforço de entender melhor a situação.
Esse melhor entendimento, é necessário sublinhar, não se refere apenas
ao entendimento que devemos ter na hora de tomarmos nossas decisões
profissionais na escola, por exemplo. Pensar historicamente impacta o
entendimento da nossa própria forma de pensar nossas problemáticas, gerando
consequências muito valiosas ao campo da pesquisa que existe, prioritariamente
no Brasil, na universidade. Taborda de Oliveira (2015), ao criticar a forma
imponente com que a tradição do olhar biologizante existe na educação física e
moldar um modo corrente e único de se pensar em nossas questões, aponta a
reflexão histórica como fundamental para superar esse limite. Vamos ler uma
das passagens onde o autor faz isso, veementemente:

Parece claro que reconhecer a dimensão histórica desse processo


poderia significar um abalo nas estruturas autorreferentes que
sustentam a partilha do conhecimento do campo da educação física, o
que redundaria no reconhecimento da legitimidade dos outros para
auferir recursos, poder e lugares de profissionalização. Ou seja, abriria-
se uma fratura na corporação, que seria obrigada a admitir a
multiplicidade de possibilidades de produção do conhecimento, os
múltiplos regimes de verdade que convivem na ambiência acadêmica
e a necessidade de estabelecimento de uma atitude dialógica menos
prepotente e mais colaborativa no plano das investigações em e sobre
a educação física no Brasil. Ora, as regularidades históricas, venham
de onde vier, não são atemporais e invariáveis e são pautadas em
disputas por status, recursos e poder profissional, algo
subliminarmente, mas nunca publicamente, reconhecido (TABORDA
DE OLIVEIRA, 2015, p. 213).

Desejo que você note, caro(a) aluno(a), que estudar os assuntos da


educação física historicamente impacta, ao mesmo tempo em que resulta, na
necessidade de entendermos nossos hábitos intelectuais. Muitos desses hábitos
podem seguir em frente. Outros deverão ser deixados para trás. Temos aqui um
exemplo da situação mais comum quando estudamos história: aprende-se que
as coisas nem sempre foram do jeito que são. Elas foram construídas e, por isso,
podem ser mudadas, aperfeiçoadas ou abandonadas.
Se essa percepção do modo como o estudo do passado traz resultados
ao presente é fundamental, igualmente importante é o raciocínio inverso:
chegamos a um ponto em que poderíamos afirmar que é o presente que explica
o passado. Se a afirmação não inviabiliza o entendimento mais corriqueiro, mas
ainda válido, de que estudamos história para conhecer os caminhos que nos
trouxeram até aquilo que hoje somos, a assertiva acrescenta, mais uma vez, a
problemática da produção do conhecimento histórico em nosso estudo: muito do
que vemos no passado explica-se por aquilo que vivemos no presente.
Nesse ponto, três exemplos ajudarão você a entender melhor tal ideia.
Nos dias de hoje, um campo de estudo histórico muito interessante e importante
é o campo que se detém na investigação sobre a história das mulheres.
Interessante notar que esse campo de estudos desenvolve-se de modo paralelo
às mudanças sociais, econômicas e políticas que deram existência ao processo
e à luta das mulheres pela vida em um mundo mais igualitário em todos os
aspectos. Até então, eram comuns os estudos históricos que afirmavam que, em
muitas dimensões da vida social, ou em quase todas, a presença feminina tinha
sido desprezível, ou que muitos dos valores e práticas atribuídos a homens e a
mulheres eram uma herança longínqua da história. O incômodo gerado pelas
lutas, a necessidade de melhor se aparelhar a elas, entendendo contra o que se
lutava e como poder-se-ia, afinal, ser construído um mundo em que as mulheres,
por exemplo, pudessem sentir mais ambição pela carreira profissional e menos
pelo destino da maternidade, fez com que muitas análises históricas surgissem,
mostrando que muitas das coisas que assumimos como naturais no que diz
respeito aos lugares até então ocupados pelas mulheres, longe de serem uma
obra do acaso ou da natureza, foram uma construção histórica. Emblemático
dessa consequência é o livro de Elisabeth Badinter, cujo título já explicita o modo
como uma determinada parte do passado da história feminina passou a ser vista
de outro modo: “Um amor conquistado: o mito do amor materno” (BADINTER,
1985).
Um segundo exemplo pode ser encontrado quando pensamos no
surgimento de toda uma especialidade do estudo histórico voltada à educação.
A história da educação passou a agregar uma maior quantidade de pessoas
interessadas nela, justamente no momento em que a sociedade, durante o
século XIX e início do século XX, assistiu ao fenômeno conhecido como
“escolarização da sociedade”. Ou seja, por motivos que você entenderá mais a
frente, naquele período a escola passou a ser o espaço educacional
preponderante em termos sociais e culturais. De início, trata-se aí de algo
bastante complicado de entender, haja vista que, para nós, é difícil imaginar um
momento em que a escola não fosse obrigatória, que não fosse pensada para
todos os membros da sociedade e que até mesmo não fosse voltada igualmente
aos meninos e às meninas. Todavia, o que nos interessa agora é verificar que
os esforços para fazer a escola ser frequentada por todas as crianças
encontraram muitos problemas e muitas resistências. Não foi fácil, igualmente,
gerar um ambiente pedagógico propício ao aprendizado em um contexto em que
muitas crianças da mesma idade estivessem reunidas em torno de um único
professor. Justamente quando esses problemas afligiam as sociedades na
realização de seus planejamentos educacionais, muitas pessoas buscaram
entender o contexto educacional historicamente. Compreenda que, apesar de
ser algo contraintuitivo, buscar entender o passado quando o presente se mostra
pleno em desafios não é tergiversar o que deve ser feito. Ou seja, se se tratar de
um problema que nos garanta algum tempo, nessa ótica um bom modo de atacá-
lo seria olhá-lo indiretamente, voltando os olhos para outro lugar, mas mantendo
o pensamento e o coração naquilo que devo e quero fazer, imediatamente.
O terceiro exemplo ilustra de forma bastante clara o modo como
problemas imediatos estão na cabeça do historiador.
A década de 1980 foi o período em que o campo da educação física
iniciou uma reflexão sobre sua estrutura acadêmica e, sobretudo, sobre as
justificativas que explicavam sua presença na escola. Em um processo
conhecido na área como “Crise da Educação Física” (MEDINA, 1983),
professores de educação física e pesquisadores buscaram entender e propor
novos objetivos para guiar a ação pedagógica do professor de educação física
na escola.
A efervescência foi grande, materializada na publicação de livros e de
artigos, bem como no surgimento de numerosos eventos em que se discutiam a
questão. De um modo geral, havia um sentimento de grande insatisfação por
parte de muitos professores de educação física ao constatarem que, na escola,
a disciplina tinha se transformado no ensino e na prática de esportes, sobretudo
as já citadas quatro modalidades coletivas. A insatisfação sustentava-se na
incapacidade deste cenário em fornecer justificativas pedagógicas afinadas à
estrutura escolar, para que a sociedade passasse a perceber de forma clara que
a educação física, assim como os outros componentes curriculares, tinha
“autonomia pedagógica” (BRACHT, 1992). Valter Bracht (1992) foi um dos
principais interlocutores nesse debate. Essa importância podemos perceber na
veemência com que ele se expressava ao diagnosticar um dos fundamentos da
“crise da educação física”:

Mais uma vez a Educação Física assume os códigos de uma outra


instituição, e de tal forma que temos então, não o esporte da escola e
sim o esporte na escola, o que indica sua subordinação aos
códigos/sentido da instituição esportiva. O esporte na escola é um
braço prolongado da própria instituição esportiva. Os códigos da
instituição esportiva podem ser resumidos em: princípio do rendimento
atlético-desportivo, competição, comparação de rendimentos e
recordes, regulamentação rígida, sucesso esportivo e sinônimo de
vitória, racionalização de meios e técnicas. O que pode ser observado
é a transplantação reflexa destes códigos do esporte para a Educação
Física (BRACHT, 1992, p. 22).

A citação, em sua integralidade, é muito importante para tudo o que


aconteceu no campo da educação física escolar desde então. Mas para a
discussão que estamos fazendo sobre a importância da história da educação
física, sugiro que você preste especial atenção às palavras “Mais uma vez…”.
Note que elas indicam um processo de continuidade, de repetição de algo que
já vinha acontecendo há um bom tempo. A expressão denota que o autor está
clamando a necessidade de uma mudança, de uma ruptura com uma situação
avaliada como indesejável, a ser superada. Essas primeiras palavras são sinais
bastante evidentes da forma como aqueles professores pensavam as urgências
que enfrentavam na hora de explicar a importância da educação física escolar:
eles buscavam no passado, na história da ação pedagógica dos professores de
educação física que tinham vivido as décadas anteriores, fundamentos para se
explicar o conjunto de problemas contra os quais lutavam. No texto de Bracht
(1992) que estamos analisando, em muitas passagens explicita-se essa postura
de descrever um presente a ser mudado por aquilo que ele carrega das tradições
herdadas. Na citação a seguir, quando o autor fala sobre a educação física na
história, salta aos olhos o fato de ele buscar exprimir uma realidade que se
empenhava em mudar:

Mas não somente os métodos ginásticos de inspiração militar foram,


principalmente nas quatro primeiras décadas de nosso século, levados
à escola, como também os próprios instrutores ou ‘aplicadores’ dos
métodos. Ora, a preparação militar inclui historicamente a exercitação
corporal com o objetivo do desenvolvimento da aptidão física e do que
se convencionou chamar de ‘formação do caráter’ – auto-disciplina,
hábitos higiênicos, capacidade de suportar a dor, coragem, respeito à
hierarquia (BRACHT, 1992, p. 20).

Dizendo de outra maneira, é muito interessante para as reflexões deste


livro que, justamente em um momento em que se buscava respostas a desafios
do tempo em que se vivia, os professores de educação física lançaram seus
olhares ao passado, buscando condições privilegiadas para pensarem em suas
questões. Tratava-se, com certeza, de uma estratégia intelectual que não visava,
apenas, buscar algo a ser refutado no presente, tomada como plena de vícios e
erros. Buscava-se com essa postura perspectivar uma presença acadêmica e
escolar que possibilitasse a condição de evidenciar que a ação profissional e
pedagógica dos professores de educação física era consciente de suas
possibilidades e de suas limitações. De forma resumida, esse esforço, ao mesmo
tempo, foi causa e resultado do importante conjunto de estudos históricos no
campo da educação física, do esporte e do lazer que começaram a surgir. Esses
estudos foram tão importantes que vamos nos debruçar sobre eles daqui a
algumas páginas. Graças a esse conjunto de estudos, você lê este livro sobre a
história da educação física.
Entendida a importância de se estudar a história de forma geral e da
educação física de modo particular, sugiro que pensemos em uma questão
primordial nisso tudo: o que estudamos, quando estudamos história da educação
física? FIM DO TÓPICO 2.

INÍCIO DO TÓPICO 3: O QUE SE ESTUDA NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO


FÍSICA?

Se os professores de história, a exemplo de Bloch (2001), sentem-se um


pouco embaraçados na hora responderem “Para que serve a história?”, uma
questão cuja mistura de obviedade de complexidade causa algum espanto nos
estudantes, quando começam a construir uma reflexão de matiz histórico: “O que
estudar quando estudamos história?” ou, no caso deste livro, “O que se estuda
na história da educação física?”
Assim como foi feito no item anterior, antes de responder a questão em
sua totalidade, sugiro que olhemos para o modo como os historiadores pensam
nessa problemática a partir dos desafios que enfrentam na hora de responderem
dúvidas tão importantes como esta. Do mesmo modo, também, Bloch (2001) nos
apoiará nessa reflexão. Para respondermos a pergunta sobre o conteúdo que se
estuda/aprende nos cursos de história, leiamos alguns momentos de “Apologia
da História” em que o historiador francês nos mostra o “objeto da história”:

[...] o objeto da história é, por natureza, o homem. Digamos melhor: os


homens. Mais que o singular, favorável à abstração, o plural, que é
modo gramatical da relatividade, convém a uma ciência da diversidade.
Por trás do grandes vestígios sensíveis da paisagem, (artefatos ou
máquinas), por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as
instituições aparentemente mais desligadas daqueles que a criaram,
são os homens que a história quer capturar. Quem não conseguir isso
será apenas, no máximo, um serviçal da erudição. Já o bom historiador
se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que
ali está a sua caça (BLOCH, 2001, p. 54).

Não satisfeito com essa definição, mais à frente o autor complementa a


definição, afirmando que a história se trata de uma “ciência dos homens, no
tempo” (BLOCH, 2001, p. 55).
Há algumas coisas a serem bem entendidas na reflexão anterior. Acredito
que você tenha notado que Bloch (2001) usa o plural de homem, “homens”, pois
ele afirma que estudar história é, necessidade, estudar a diversidade. Quando
ele nos mostra que o olhar do historiador quer ver “por trás” dos objetos, dos
escritos, das instituições, enfim, para onde se dirige o olhar, entende-se a
presença humana nesses “artefatos”. Além disso, Bloch (2001) cuida de advertir
que essa busca pelas intenções, realizações, problemas, hesitações e belezas
da humanidade dos homens se dá atrelada à ideia de que tudo isso existe no
tempo, ou seja, foram artefatos construídos em um determinado momento e que
em outros momentos foram transformados, extintos ou abandonados. Ao pensar
em um gesto, nobre ou maléfico, importante ou banal para o historiador, ele só
“julgará ter prestado conta disso depois de ter fixado, com precisão, seu
momento na curva dos destinos tanto do homem que foi seu herói como da
civilização que teve como atmosfera” (BLOCH, 2001, p. 55). Se assim como o
“ogro” o historiador vai atrás da “carne humana” que lhe interessa,
diferentemente do assombroso animal, ele tenta avaliar as razões que levaram
as “vítimas” a estarem onde estão. Sem buscar esse conhecimento relativo aos
motivos que podem explicar a presença ou a ausência humana nessa “floresta
do tempo”, aquele que se aventura a estudar história torna-se, apenas, um
“serviçal da erudição” (BLOCH, 2001, p. 54), um “útil antiquário” (BLOCH, 2001,
p. 66). Embora mantenha alguma utilidade, esse serviçal, esse antiquário
apaixonado por datas e eventos comemorativos, esquece que “o frêmito da vida
humana, que exige um duríssimo esforço de imaginação para ser restituído aos
velhos textos, é (aqui) diretamente perceptível a nossos sentidos (BLOCH, 2001,
p. 66). Ao virar as costas para o “frêmito da vida humana”, agir-se-á mais
“sensatamente renunciando ao de historiador” (BLOCH, 2011, p. 66).
Vou sublinhar o ponto que vejo como central neste momento: embora
estejamos acostumados a encarar o estudo da história como sinônimo de datas,
descrição de sequência de eventos, nomes de líderes políticos e religiosos,
embora essas informações sejam importantes para muitas coisas quando
estudamos um determinado tempo, elas são apenas uma pequena parte daquilo
que podemos saber quando nos debruçamos e consumimos esforços e tempo
para estudar um determinado período. Bloch (2001) nos ajuda a entender que o
objeto do estudo da história é a busca pela compreensão dos esforços envidados
pela humanidade ao se fazer, com poderes e fraquezas, na mesma medida com
que eles nos constituem. Ou seja, são homens e mulheres querendo conhecer
homens e mulheres, igualmente humanos, mas que manifestavam essa
humanidade de formas diferentes por viverem em “outras florestas”, ou em
outros tempos. E ainda mais importante que isso é o modo como essa questão
de valor intelectual relaciona-se com o “aqui e agora” não apenas da sociedade
na qual nos inserimos, mas no que você e eu somos, hoje. A beleza e a clareza
com as quais Bloch (2001) registra esse pensamento é algo remarcável:

Na verdade, conscientemente ou não, é sempre as nossas


experiências cotidianas que, para nuançá-las onde se deve, atribuímos
matizes novos, em última análise os elementos, que nos servem para
reconstituir o passado: os próprios nomes que usamos a fim de
caracterizar os estados de alma desaparecidos, as formas
evanescidas, que sentido teriam para nós se não houvéssemos antes
visto homens viverem? Vale mais (cem vezes) substituir essa
impregnação instintiva por uma observação voluntária e controlada
(BLOCH, 2001, p. 66).

É importante repetir que tanto a redação deste livro quando a sua leitura
é uma tentativa de colaborar na valorização dessa impregnação instintiva que
nos leva a querer conhecer o passado desde que nos percebemos como seres
humanos. Todavia, trata-se de se buscar uma maneira que nos capacite a fazê-
lo por meio de uma observação voluntária e controlada, ou seja, lendo e
pesquisando sistematicamente historiadores que versam sobre dimensões da tal
“humanidade do homem” que nos interessam.
Em nosso caso, sabemos que o interesse está calcado em investigarmos
a educação física, historicamente. Então, conforme o que foi discutido
anteriormente, é importante que você tenha claro que, na imensidão de assuntos
a serem estudados pelos historiadores, este livro e os estudos de história da
educação física abarcam uma parcela bem específica da vida social e cultural.
Antes de seguir em frente, uma lembrança deve ser feita. O título deste
livro, história da educação física, foi dado em razão de ser esse o título da
disciplina na qual você irá estudá-lo. Porém, é crucial que não se perca de vista
o termo “educação física” tem uma acepção larga para englobar práticas que
recebem outras denominações. Para ilustrarmos os assuntos que são estudados
sobre a denominação “história da educação física”, lanço mão da existência de
um evento específico, dedicado a esse estudo. Trata-se do Congresso Brasileiro
de História do Esporte, Lazer e Educação Física. No ano de 2016, sua décima
quarta edição aconteceu em Campinas e teve como tema central “Esporte e a
Educação na História”. Quando os eventos acadêmicos acontecem, eles reúnem
pesquisadores de uma determinada área do conhecimento para debaterem
temas, ao mesmo tempo, específicos, mas que possam interessar a todos os
especialistas de algum modo. No caso da história da educação física, o tema
“Esporte e Educação na História” norteia a preferência por determinados tipos
de trabalhos e estudos que se aproximem daquilo que é o alvo da discussão do
congresso. Para que a comunidade de pesquisadores, professores e alunos
tenha ciência do eixo reflexivo das discussões, é redigida uma apresentação,
que oferece uma descrição e explicação do assunto e de sua relevância para o
avanço da pesquisa. Convido você a ler um trecho dessa apresentação para que
possamos discuti-la nos parágrafos seguintes:

O tema eleito concebe a Educação como um conjunto de processos


culturais amplos que implicam conhecimento e prática dos usos e
costumes de uma sociedade, tendo como finalidade introduzir
indivíduos e grupos em distintas esferas da vida pública. Não se trata,
aqui, exclusivamente, da educação realizada no interior da instituição
escolar, com seus programas, atividades e procedimentos próprios;
ritmos e tempos; arquiteturas, mobiliário e tudo o que compõe sua rica
cultura material, mesmo que tudo isso possa ser também objeto da
delimitação temática deste evento. Trata-se aqui de problematizar e
historicizar o lugar do Esporte, da Educação Física e do Lazer na
configuração, constituição e efetiva realização de distintos, amplos e
extensos processos educativos (escolares ou não) que constituem as
modernas sociedades. Nesta perspectiva poderíamos afirmar que o
esporte, a educação física e o lazer educam, pois, ao criarem regras e
comportamentos comuns, usos comuns do corpo, induzindo indivíduos
a cuidarem de si, e, nesse movimento, a protegerem-se de suas
próprias forças e impulsos, contribuem para a assegurar a vida em
sociedade e as trocas entre as gerações (XVI CHELEF, 2016, on-line)1.
Em primeiro lugar, observe que, ao proporem o tema “Esporte e Educação
na História”, os organizadores veem essa temática como algo valioso tanto na
atualidade quando em diferentes momentos do passado. Nesse caso, espera-se
receber estudos que focalizem essa relação em outros períodos que não o
nosso, em diferentes lugares e com a atenção voltada a diferentes aspectos.
Quais deles, segundo a apresentação do evento? É sublinhado que “educação”
não será entendida como algo que acontece apenas na escola, embora a
educação que lá ocorrera não seja posta de lado. Essa advertência é importante.
Afinal, boa parte do estímulo que se oferece à prática dos esportes não se
sustenta nos benefícios formativos que eles providenciam às crianças e aos
jovens? Quais eram esses benefícios, em outras épocas? Quem divulgava esses
benefícios e como essa divulgação ocorria? Quais consequências que essa
busca gerava na forma como as pessoas se relacionavam com seu corpo e com
o corpo dos outros? Nessa relação, nessa prática educativa e recreativa, quais
eram os objetos, as roupas e lugares em que os grupos se reuniam para realizar
essas atividades? De que modo os diferentes governos em diferentes níveis
(federal, estadual e municipal) estimularam determinadas práticas e barraram
outras tantas? No final das contas, poderíamos perguntar: de que forma pensar
e praticar o esporte educacionalmente possibilitou condições fundamentais para
que as diferentes sociedades, nas quais esses pensamentos e práticas
existiram, reproduzam-se ou se transformem? Acredito que esse rol de
questões, construído a partir de um importante evento na área de educação
física, possa ter deixado alguma clareza sobre a grande variedade e importância
dos temas que podem ser discutidos em um curso de história da educação física.
Você verá que a estrutura das unidades seguintes a esta primeira foi construída
com muitos desses questionamentos postos, como se fossem mapas para os
caminhos que percorro.

INÍCIO DO SAIBA MAIS: Se estudar aspectos históricos relativos aos esportes


e ao lazer é um dos momentos marcantes no curso de formação inicial em
educação física, o mesmo vale dizer para a educação física na educação básica.
Em todas as regulamentações e diretrizes curriculares do componente curricular
educação física, ensinar os alunos a pensarem historicamente os esportes, a
ginástica, os jogos, as lutas, a dança e o lazer é defendido como uma das
principais colaborações dos professores de educação física à educação das
crianças e jovens. Esse é um aspecto muito interessante dos cursos de formação
de professores: ao mesmo tempo em que você amplia seus horizontes
conhecendo dimensões da realidade até então desapercebidas, é necessário
não esquecer que essa ampliação cultural deverá capacitar os licenciandos para
processarem esse conhecimento, transformando-o em temas de ensino para o
seu trabalho como professor nas escolas. Fonte: o autor, baseado em Unesp
(DARIDO, [2016], on-line)2. FIM SAIBA MAIS. FIM DO TÓPICO 3.

INÍCIO DO TÓPICO 4: COMO SE PRODUZ CONHECIMENTO SOBRE A


EDUCAÇÃO FÍSICA?

Caro(a) aluno(a), se temos muitos questionamentos, é justo almejar que


se inicie a construção de respostas para eles. Tudo aquilo que você lerá e
pensará neste livro sobre a história da educação física é o resultado de
pesquisas realizadas há algumas décadas. Essas pesquisas produziram e
produzem a gama de conhecimentos e de novos questionamentos que, como
vimos anteriormente, são responsáveis por nos proporcionar olhares renovados
não apenas sobre o passado de um campo profissional, mas para os desafios
que ele enfrenta em sua atualidade.
O que faremos neste tópico é refletir sobre algumas questões básicas
relativas à produção do conhecimento histórico. Para mantermos o hábito
analítico que adotei neste livro, inicialmente vamos verificar como essa produção
do conhecimento ocorre no campo mais amplo da história, pois é partir dele que
boa parte da pesquisa histórica que hoje existe vem se pautando. Feito isso,
volta-se a estudar a educação física e o conhecimento histórico que hoje é
produzido nesse campo.
Vimos, há alguns parágrafos, que os historiadores reconhecem que a
beleza e a importância do conhecimento que produzem são justificadas pelo fato
de se reportarem à ação dos homens no tempo. Essa vinculação a uma
determinada temporalidade lança como desafio as condições existentes para
que um conjunto de ações, pensamentos ou eventos seja narrado de um modo
a produzir um conhecimento que possibilite aos consumidores desse
conhecimento alguma segurança sobre aquilo que leem e ensinam, no caso dos
professores. Paul Veyne é autor de um livro chamado “Como se escreve a
história” (VEYNE, 1998). Embora ele fale que a história é uma “narrativa
verídica”, é importante ter claro que entre essa narrativa e a experiência que se
teve de um determinado ato ou evento há uma grande distância. Ou seja, a
esperança de se ter uma narrativa totalmente fidedigna ao objeto da narração é
algo já assumido como horizonte inalcançável por parte de quem escreve
história. Veyne (1998) toma como exemplo a Batalha de Waterloo, para mostrar
que no bojo desse evento as percepções sobre os incontáveis gestos, sobre os
momentos mais decisivos e relacionados ao desfecho da derrota ou da vitória,
há um abismo compreensível entre a experiência e a reflexão sobre a
experiência vivida por todos os envolvidos. Explicando esse ponto de outro
modo, a experiência dos diferentes atores que deram vida à batalha em questão
é dificilmente alcançada, em sua plenitude, por qualquer reflexão a ser feita
sobre ela, mesmo que essa reflexão ocorresse imediatamente após a batalha ter
acontecido. Um soldado raso, um general, um civil, alguém que teve um ente
querido morto ou um familiar que vê seu parente retornando para casa depois
dos confrontos, cada uma dessas pessoas teria uma percepção, uma sensação
diferente. Isso nos faz perceber que a “história pode ser narrada em primeira ou
na terceira pessoa” (VEYNE, 1998, p. 18). Dito de outro modo, as experiências
são diferentes e, obviamente, a reflexão sobre elas será muito diversa, gerando
assim narrativas díspares. Ainda assim, essa miríade de olhares é fundamental
para que possamos conceber a Batalha de Waterloo, ou qualquer outra coisa na
história, como existente e cognoscível.
Ora, ainda assim fica a dúvida: disso deve-se concluir que produzir uma
“narrativa verídica” é algo impossível, levando-nos a ver nesses esforços de
pesquisa dos historiadores um mero mosaico de opiniões? Mesmo que essa
compreensão seja recorrente, o que leva muitos a criticarem ainda mais a
história como campo do conhecimento, produzir conhecimento histórico é um ato
intelectual diferente da criação literária, embora seja a ela relacionada. A
literatura, que assim como a história consegue fazer com que “um século caiba
em uma página” (VEYNE, 1998, p. 18), também lida com a dificuldade de
retratar, interessantemente, um determinado tempo. Todavia, se na literatura a
“defasagem que sempre separa a experiência vivida da reflexão sobre a
narrativa” gera “experiências estéticas interessantes”; para o historiador a
clareza desse distanciamento gera a salutar “descoberta de um limite” (VEYNE,
1998, p. 18). Em uma passagem bastante esclarecedora sobre o fato desse
limite não ser um desqualificador desse conhecimento, lemos:
O campo da história é, pois, inteiramente indeterminado, com uma
única exceção: é preciso que tudo o que nele se inclua tenha,
realmente, acontecido. Quanto ao resto, que a textura do campo seja
cerrada ou rala, completa ou lacunar, não importa; uma página da
Revolução Francesa tem uma trama suficientemente cerrada para que
a lógica dos acontecimentos seja, quase completamente,
compreensível e para que um Maquiavel ou Trotsky tivesse podido tirar
dela toda uma arte da política; no entanto, uma página de história do
Antigo Oriente, que se reduz a uns poucos dados cronológicos e
contém tudo o que se sabe de um ou dois impérios, dos quais só restou
o nome, ainda assim é história (VEYNE, 1998, p. 25).

Essa insegurança, essa lida cotidiana com um pensamento exposto ao


seu “limite”, impede que o historiador conheça o passado diretamente, mas o
conheça apenas por pequenas partes que lhe chegam do tempo estudado que
ele tem acesso. Para narrar o passado o historiador depende de documentos
produzidos no contexto estudado, a fornecer-lhe indícios que o permitam exercer
sua reflexão apoiado na concretude disso que se chama de “fontes primárias”:
“A história é, em essência, conhecimento por meio de documentos” (VEYNE,
1998, p. 18). Todavia, é importante que a produção desse conhecimento não
trate apenas de encontrar uma grande quantidade de documentos sobre um
determinado assunto: é necessário o historiador colocar esses documentos para
dialogarem entre si, exercendo sua capacidade de questioná-los, dando-lhes
condições de tornar uma temática compreensível ao leitor.
Você deve prestar atenção ao fato de que produzir conhecimento histórico
é um diálogo entre a capacidade do historiador em formular perguntas
perspicazes e buscar documentos para construir respostas a partir dos
documentos que encontrar. É essa capacidade que gera uma “superfície
tranquilizadora da narrativa” (VEYNE, 1998, p. 26), levando os leitores e verem
nesse conhecimento de “natureza lacunar” um “verdadeiro reflexo”.
No campo dos estudos históricos produzidos na educação física, Melo
(1999, p. 42) identifica a necessidade dos pesquisadores pautarem-se em
pressupostos que afastem as narrativas históricas “dos estudos excessivamente
descritivos [...] e [da] carência de evidências documentais”. Como resultado, os
analistas da história da educação física se preocuparam com o fato de muitos
dos estudos produzidos até a década 1980 serem escritos de um modo
distanciado dos procedimentos e cuidados metodológicos. Esses cuidados
podem ser sumarizados nas ponderações feitas a partir da reflexão de Veyne
(1998).
Assume-se que advertências como as feitas por Melo (1999) levaram os
estudos históricos do campo da educação física a experimentarem uma
“renovação historiográfica” (TABORDA DE OLIVEIRA, 2007, p. 117). Porém,
Taborda de Oliveira (2007) não poupa críticas a esse movimento, notando que
mesmo existindo em um contexto atento e com um olhar mais voltado à
renovação dos modos de se abordar a história bem como de seus objetos de
estudo, existe paralelamente “permanência dos marcos políticos, econômicos ou
intelectuais da datação” (TABORDA DE OLIVEIRA, 2007, p. 123).
De qualquer modo, em que pese essas advertências e críticas, sempre
necessárias a todos que produzem conhecimento, é importante reconhecer que
hoje há uma produção historiográfica interessante, rica e variada no campo da
educação física, superando os tradicionais escritos que primavam apenas pela
listagem de nomes, datas, eventos e/ou sua relação com os marcos políticos
(império, república etc.) do mundo sócio-histórico que circunda os fenômenos
estudados.
Para termos uma ideia da riqueza da reflexão histórica atinente à
educação física e às práticas corporais, proponho que olhemos mais
proximamente o conteúdo e o funcionamento dos Centros de Memória voltados
ao esporte e à educação física, existentes no país. Tratam-se de instituições que
recebem, organizam, classificam e disponibilizam o acesso a documentos
relacionados a um determinado tema para pesquisadores. Nesse caso, tratam-
se de documentos importantes para a construção de análises históricas sobre
questões valiosas à educação física. Em 2013, o Centro de Memória da
Educação Física, do Esporte e do Lazer (CEMEF) da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), organizou uma coletânea (LINHALES; NASCIMENTO,
2013) onde se pode ter uma ideia dos tipos de documentos que lá estão e,
consequentemente, do teor das pesquisas, tendo por base o conjunto
documental sob a guarda da instituição.
Os arquivos pessoais doados por professores que trabalharam na Escola
de Educação Física da UFMG e também por ex-alunos da instituição é um
conjunto documental bastante variado. Em primeiro lugar, registra-se que são
documentos doados, muitas vezes, por familiares dos professores. Os itens que
compõem esse acervo são variados: tratam-se de livros, correspondências,
planos de aula, fotografias, certificados, etc. Além da curiosidade gerada por tais
documentos, há o impacto de eles terem sido gerados no fomento de
problemáticas a serem investigadas. Linhales, Cunha e Fonseca (2013)
sublinham o que pode ser analisado nesses vestígios, ponderando questões
suscitadas aos pesquisadores durante o procedimento de organização do
acervo:

[...] os arquivos pessoais constituem também significações reveladoras


de laços e vínculos sociais, redes de pertencimento e formação das
quais os indivíduos fizeram parte. Ou seja, o modo como cada uma
marca seu percurso próprio e, ao mesmo tempo, desvenda elementos
que compõem uma história social da Educação Física [...] (LINHALES;
CUNHA; FONSECA, 2013, p. 73).

Quando falamos em documentos, dificilmente imaginaríamos que os


objetos também são assumidos como tais. Associamos documentos à escrita,
ao texto. O acervo de objetos do CEMEF-UFMG é composto, em sua maioria,
por instrumentos científicos de toda natureza, relacionados à medição de
variadas grandezas associadas ao esporte e ao exercício. Ao nos confrontarmos
com esse tipo documental, a dúvida que surge é relativa ao que fazer com ele
em termos analíticos, perspectivando os modos com os quais se pode construir
análises históricas. Para tanto, o seguinte esclarecimento é importante:

[...] é necessário pensar no alargamento do rol documental, refletindo


sobre a construção mais equilibrada de fontes. A análise feita aqui
permitiu fazer a relação entre o instrumento e a constituição de
conhecimentos relacionados à Antropologia, Medicina, História Natural
e Educação Física. Aqui, não se trata de dar preponderância ou não
ao documento escrito, mas entender a cultura material tridimensional
como um manancial que pode nos dar informações não acessíveis por
fontes escritas, e concebê-las dentro de um intercâmbio recíproco
entre as duas possibilidade de obtenção de informação (GOMES;
BRAGHINI, 2013, p. 97).

Igualmente importantes na hora de acessarmos outras temporalidades


que não a nossa, são as fotografias. No CEMEF-UFMG há 1622 fotografias
disponíveis para consulta (MORENO, SEGANTINI, 2013, p. 112). Contrariando
um determinado senso comum que enxerga nas fotografias um “retrato fiel” de
um outro tempo, os historiadores que pesquisam temas relacionados à educação
física, ao esporte e ao lazer buscam verificar nas fotos não apenas aquilo que
eles diretamente mostram, mas outros detalhes, como o enquadramento
escolhido pelo fotógrafo, o arranjo dos fotografados, as razões que levaram à
fotografia em questão, bem como os diferentes modos com que as pessoas
executavam esse ato de legar à posteridade um registro de um fato, de um
evento ou de uma pessoa. As autoras explicitam o potencial analítico gerado
pelas fotografias quando, ao concluírem suas reflexões, ponderam o valor desse
“documento”:

Fotografias ampliam nosso olhar para facetas dos processos


educacionais recaídos sobre o corpo, percebidos nas maneiras de
vestir, nos gestos, nas práticas autorizadas, no que fica de fora da
imagem. Através da fotografia podem-se captar as maneiras como o
corpo se apresenta nos espaços destinados às práticas corporais, os
modos autorizados do corpo estar presente nas instituições de ensino
da Educação Física. O potencial das fotografias está também em
decifrar os discursos subliminares às imagens: eugênicos,
civilizadores, modernos, cívicos, higiênicos (MORENO; SEGANTINI,
2013, p. 114).

Seguindo esse trajeto de ampliação daquilo que serve de apoio


documental aos estudiosos da história da educação física, os registros de
filmagens apresentam-se como outra possibilidade importante. De modo
comparável ao que ocorre com a fotografia, na análise desse material o
pesquisador deverá se ater ao contexto em que foi produzido o material, o
público a quem estava voltado, bem como as potencialidades técnicas existentes
e efetivamente usadas na produção das imagens. Por conta dessa razão, “o filme
pode tornar-se um documento para a pesquisa histórica, na medida em que
articula ao contexto histórico e social que o produziu um conjunto de elementos
intrínsecos à própria expressão cinematográfica” (KURNIS apud FREITAS;
LINHALES, 2013, p. 117).
Outras formas de documentos têm sido utilizadas pelos pesquisadores.
Jornais, cinema e entrevistas com pessoas que viveram no contexto que se quer
estudar são exemplos da variedade documental encontrada pelos historiadores
e que alimentam suas pesquisas. Desse ponto de vista, quem vai estudar história
da educação física, do lazer e do esporte, ao interessar-se pela multifacetada
capacidade humana de criar, transformar e dar significado às práticas corporais,
aos prazeres corporais e ao cuidado com o corpo, necessita de meios que
permitam que essa reflexão aconteça.
Essa noção ampliada de documento (FARIA FILHO, VIDAL e PAULILO,
2004) é algo já reconhecido como fundamental aos historiadores de todos os
campos, e, igualmente, pelos historiadores que voltam sua atenção às
problemáticas da educação física. Entretanto, esse ampliação nem sempre foi
assumida como necessária ou possível. Isso porque hoje o que se pratica como
procedimento incontornável de produção do conhecimento é o resultado do
questionamento de uma determinada tradição construída por gerações de
professores de educação física interessados e redatores e livros da educação
física. Para finalizar este tópico, convido você a conhecer um pouco dessa
tradição. Afinal, você já percebeu que dar um passo para trás é uma atitude sábia
para quem pretende ir para frente. FIM DO TÓPICO 4.

INÍCIO DO TÓPICO 5: A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA TAMBÉM TEM


UMA HISTÓRIA

Ao propor a importância de entendermos nossos desafios historicamente,


somos, então, levados ao estudo de um conhecimento que já vem sendo
elaborado por pessoas que viveram e pensaram antes que estivéssemos em
condições de o fazer. No caso do conteúdo deste livro sobre a história da
educação física, muitas das informações e das reflexões que estão aqui e que
você lê e lerá nas próximas páginas são resultado de um acúmulo e, também,
de sucessivas mudanças na forma como o conhecimento histórico foi elaborado
e divulgado no interior de nosso campo. Resumindo o ponto com o qual encerro
esta unidade, a história da educação física também é uma história que desde o
início do século XX até a atualidade mudou o modo com o qual o conhecimento
histórico foi produzido e divulgado sobre o campo da educação física, dos
esportes e do lazer, e tem experimentado mudanças em seus procedimentos e
concepções. Ter conhecimento sobre esse processo de mudança, o que esse
conhecimento era e deixou de ser, é o grande objetivo deste momento. Com ele,
compreenderemos que “pensar historicamente” implica aplicar esse pensamento
aos esforços investigativos na hora em que eles produzem sua “narrativa
verídica” (VEYNE, 1998).
Faremos essa reflexão buscando, mais uma vez, o apoio das análises
feitas por Melo (1999). Nessas análises, a história da educação pode ser vista a
partir de características intelectuais agrupadas em quatro fases.
A primeira fase compreende as primeiras décadas do século XX. Não
havia naquele momento uma produção bibliográfica sistemática em torno da
questão. O grande ímpeto que levou aos poucos livros existentes sobre esse
olhar histórico em relação à educação física foi o de trazer informações relativas
ao seu passado, sem a preocupação em fazer essa retomada com a busca por
documentos ou por qualquer outro procedimento sistematizado de pesquisa.
Melo (1999), embora cite outros livros relacionados à história do esporte,
sublinha que característicos desse primeiro momento foram os livros de
Laurentino Lopes Bonorino, intitulado “Histórico da Educação Física”, e também
as análises espalhadas nos escritos de Fernando de Azevedo. De acordo com
Melo (1999, p. 35), é possível verificar nesse conjunto de reflexões da primeira
fase “perspectivas historiográficas de seu tempo”, a saber, o fato de aquelas
reflexões se apoiarem em marcos cronológicos externos à educação física, em
que, por exemplo, esta era pensada a partir do regime político vigente (império,
república, etc.). Soma-se a esse traço a ênfase na positividade das informações,
com um objetivo memorialista de reunir nomes e datas “marcantes” no que tange
às práticas corporais e a educação por elas obtida. Sobre essa fase, afirma Melo
(1999):
Os autores, no entanto, não pareciam querer defender ou provar nada,
mas simplesmente guardar fatos e datas para que não se perdessem
no tempo. [...] De fato, este tipo de obra, ligada à história dos esportes,
escrita por não acadêmicos e sem outra preocupação do que o
resguardo de informações, até hoje pode ser encontrada, inclusive com
características semelhantes às de então (MELO, 1999, p. 35).

Para ilustrar a forma como a história era abordada nessa fase, vale a pena
nos determos à obra “A poesia do corpo ou a gymnastica escolar: sua história e
seu valor”, publicada em 1915 e escrita por Fernando de Azevedo. Verifica-se
que no título a história recebe uma grande atenção, embora no livro os
apontamentos efetivamente históricos resumam-se a sete páginas, das 215 que
possui a obra. Nas páginas em que fala da “gymnastica através do tempo”,
Azevedo (1915, p. 24) inicia uma exposição com a história egípcia, passando
pela China, Grécia, Roma, Idade Média e Renascimento. O autor estuda o
desenvolvimento de métodos ginásticos no século XVIII e XIX para afirmar que,
no momento em que ele vivia, a “gymnastica (era) na prática uma das maiores
aspirações, como na teoria um dos problemas mais estudados na idade
contemporânea” (AZEVEDO, 1915, p. 30). É fundamental que seja
compreendido que a ida a “outras civilizações” serviu para endossar aquilo que
Azevedo via como verdade em sua época, deixando-nos a vívida impressão que
o uso da história teve o objetivo de endossar algo que ele queria argumentar
como incontestável: o valor da ginástica.
O marco utilizado para definir a existência de uma segunda fase na
produção historiográfica da educação física é a obra de Inezil Penna Marinho
(1915-1985). A quantidade de livros, textos, artigos produzida por Marinho, bem
como a qualidade teórica de suas reflexões, o colocam não apenas como o
“maior estudioso da história da educação física e do esporte no Brasil” (MELO,
1999, p. 35), mas como um de seus “maiores intelectuais (DALBEN, 2011, p.
59). Nos últimos anos, a trajetória de Inezil Penna Marinho tem recebido bastante
atenção de pesquisadores interessados no desenvolvimento histórico da
educação física, em virtude da sua prolífica atuação como professor, escritor e
pesquisador com foco dirigido à cultura física.
No que diz respeito à análise histórica realizada por Marinho, Melo (1999)
nota que pela primeira vez a pesquisa em história sobre a educação física
assumiu a característica de não ser mera compiladora de reflexões ou opiniões
de terceiros. Marinho empreendeu uma rotina de levantamento de documentos,
rotina essa bastante aproximada ao que se presumia ser a produção do
conhecimento histórico sustentada “no levantamento de fatos, datas, nomes,
sem a preocupação de análise crítica do material encontrado” (MELO, 1999, p.
36). A existência de uma reflexão historiográfica bastante aprimorada em Inezil
Penna Marinho podemos verificar em um discurso por ele pronunciado,
publicado em 1958, onde o professor preocupa-se com a relação entre ensino e
pesquisa na formação dos professores de educação física:

O importante do estudo da história não é a memorização dos fatos e


datas, não é a fixação daquilo que os compêndios, formalizaram e,
algumas vezes, até padronizaram. Como professor de história desejo
suscitar em meus alunos o interesse que os leve à investigação dos
fatos, ao aproveitamento das experiências por outros povos, a
interpretação dos dados oferecidos à sua razão (MARINHO apud
MELO, 1999, p. 38).
Perceba que os objetivos desta primeira unidade são ecos daquilo que
dizia Marinho na década de 1950. Afinal o que ele está pensando na citação
anterior? Ele estava bastante preocupado com a importância da história na
formação dos alunos. Para isso, ao mesmo tempo em que é ponderada a
preocupação com o ensino dessa especialidade, ele manifesta uma concepção
de história e de conhecimento que sustentava os levantamentos e as pesquisa
que fazia.
A terceira fase demarcada por Melo (1999) é a que passou a existir na
década de 1980 e que teve grande representatividade no livro “Educação Física
no Brasil: a história que não se conta”, escrito por Lino Castellani Filho e
publicado em 1988. O próprio título do livro deixa entrever um dos objetivos de
Castellani Filho (1988): discutir problemáticas que não foram discutidas até
aquele momento, nos estudos históricos sobre a educação física. O interesse
maior do autor era demonstrar o modo como a história da educação física
brasileira esteve alinhada aos interesses econômicos e políticos das classes
dominantes, em uma abordagem que se caracterizava como marxista e
repudiava a tentativa de se fazer uma análise que não assumisse a luta política
como norte da ação dos professores de educação física. Não há como deixar de
reconhecer que esse livro exerceu grande influência no momento em que foi
publicado e nas décadas seguintes, o que foi ajudado por ter sido publicado em
momento de grande intensidade das discussões que buscavam pensar o papel
da educação física na sociedade e, sobretudo, na escola. Isso coloca em
evidência, mais uma vez, o modo como a busca pela história não é uma atitude
desinteressada, inócua a quem deve tomar decisões, imediatamente.
Melo (1999), muito embora reconheça esse valor, não deixa de criticar a
obra de Castellani Filho (1988). Em que pese Castellani Filho (1988) ter
“significado uma importante mudança de enfoque” (MELO, 1999, p. 39), ao se
estudar o modo como o livro composto, em termos, de metodologia do trabalho
de pesquisa histórica, verificou-se que a adoção de uma perspectiva marxista
não significou uma ruptura com o modo tradicional de produzir história no campo
da educação física. Melo (1999) é contundente quando elabora sua crítica,
afirmando:
A periodização continua a se submeter a especificidades exteriores ao
objeto, além de referendarem uma impressão de continuidade e
linearidade sempre tão presente em todas as fases anteriores; a
história é entendida como responsável por explicar linearmente o
presente, fato agravado por uma compreensão que parte do presente
com hipóteses traçadas já basicamente confirmadas, o que
praticamente faz forjar no passado os elementos necessários para
provar a hipótese inicial; a exasperação da crítica ao caráter
documental-factual das obras anteriores findou por muitas vezes no
dispensar de dados, fatos e nomes, tão importantes em qualquer
estudo historiográfico (MELO, 1999, p. 39).

Essas críticas feitas à terceira fase já sinalizam as características da


produção historiográfica existente no campo da educação física desde então.
Melo (1999) não fala em uma quarta fase, mas penso que poderíamos enxergar
no conjunto de estudos produzidos na atualidade uma tentativa de superar os
problemas metodológicos observados. Trata-se de um desafio ainda em curso,
que tem contado com a aproximação dos pesquisadores de nosso campo aos
debates existentes no campo da história. De algum modo, a tentativa que fiz nas
reflexões desenvolvidas nesta unidade existem por conta de meus esforços em
acompanhar essas mudanças. Trata-se de um empenho que avalio ser pleno de
resultados interessantes para colaborar na continuidade das pesquisas que
objetivam entender as práticas corporais e a educação que nelas se baseia, a
partir de uma ótica histórica.

INÍCIO DO REFLITA: A Educação Física tem sido utilizada politicamente como


uma arma a serviço de projetos que nem sempre apontam na direção das
conquistas de melhores condições existenciais para todos, de verdadeira
democracia política, social e econômica. Fonte: João Paulo S. Medina. FIM DO
REFLITA.

INÍCIO DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS: Prezado(a) aluno(a), nesta primeira


unidade propus uma caminhada mais lenta para pensarmos, mais detidamente,
nas características da reflexão histórica voltada à educação física e aos
esportes. Eliminar os automatismos desse gesto de querer saber o passado das
coisas, tão corriqueiro e, por isso mesmo desconhecido, dá a ele um potencial
que antes não era notado. Embora o curso de educação física para alguns se
relacione à prática de atividades corporais ou ao estudo de anatomia e fisiologia,
nele também se coloca como necessidade estudarmos a história dos desafios
científicos e profissionais enfrentados por professores que viveram e atuaram
antes de nós.
Nessa simples atitude de voltar nossa atenção para outras épocas, há
cuidados e reflexões que buscam justificar a relevância de o conhecimento
histórico continuar a ser produzido e ensinado. Produzido por pesquisadores que
são formados para tanto, ensinado por professores que também recebem uma
formação específica para isso, todos lidando com uma forma de pensamento
plena de fragilidades, mesmo assim, e justamente por essa possibilidade de
gerar vários olhares sobre o mesmo objeto, muito significativo para o
entendimento não apenas do passado, mas de nós mesmos. O desafio de lidar
com a característica lacunar do conhecimento histórico, levou ao
desenvolvimento de procedimentos de pesquisa histórica que hoje são adotados
também por professores de educação física. Você viu que o estudo da história
da educação física também tem uma história, sendo uma atitude intelectual que
vem nos acompanhando com o passar do anos e submetendo-se a mudanças
importantes. Perceba que mudança e transformação são palavras-chave em um
campo intelectual normalmente despreciado por se acreditar que ele lide com
algo pronto, acabado, morto, enterrado, de uma vez por todas. Não é isso, não
é? Por essa razão há bastante coisa a ser estudada nessa história. FIM DAS
CONSIDERAÇÕES FINAIS.

INÍCIO DAS ATIVIDADES DE ESTUDO

1) A partir das reflexões desenvolvidas nesta unidade, como justificar a


importância de se estudar história em um curso de educação física?

2) Pondere algumas características do conhecimento histórico.

3) Qual a importância dos documentos para a pesquisa histórica?

4) Diferencie as quatro fases da produção historiográfica no campo da


educação física.

5) A partir da leitura da apresentação redigida por Medina ao livro “Educação


Física no Brasil: a história que não se conta”, especifique o modo como a
história é vista por Castellani Filho (1988).
FIM DAS ATIVIDADES DE ESTUDO.
INÍCIO DA LEITURA COMPLEMENTAR: Discussões sobre o documento na
produção historiográfica são tema de muitas publicações, de trabalhos
apresentados em eventos científicos, num esforço claro de compreensão sobre
a pluralidade dos documentos disponíveis para a pesquisa histórica, suas
características, possibilidades de exploração, acessibilidade, entre outros
aspectos. [...] Utilizemos a clássica estratégia da consulta aos dicionários.
Segundo o Dicionário Aurélio, documento significa “qualquer base de
conhecimento, fixada materialmente e disposta de maneira que se possa utilizar
para consulta, estudo, prova etc.”, sendo também “escritura destinada a
comprovar um fato”. Já fonte apresenta vários significados: “aquilo que origina
ou produz; origem, causa”. Também “procedência, proveniência, origem”. E
ainda “que fornece informação sobre determinado tema”. Quanto a testemunho,
significa “depoimento”, “prova, testemunha”, mas também “indício, vestígio”. [...]
Embora haja pontos em comum em todas essas definições, pode-se ver como
elas não têm exatamente o mesmo significado, estando, contudo,
profundamente relacionadas ao uso que delas - e das coisas que indicam - os
historiadores. [...] Cada vez mais nitidamente, a produção historiográfica
fundamenta-se pesadamente nos documentos, nas fontes que fornecem
informação. Menos na busca da prova e mais da construção de sentidos a partir
dos indícios; e, de maneira desejável, ancorada em algum instrumento de
análises de caráter mais conceitual. [...] Mas algo preocupa num cenário que
costumo chamar de “entusiasmo pelos documentos”. A clareza cada vez maior
acerca dos procedimentos da pesquisa histórica; o relativo vigor com que se
exige a atenção a esses procedimentos, sobretudo na formação acadêmica dos
pesquisadores; a crescente organização dos arquivos e a disponibilização cada
vez mais ampla de documentos conforme o avanço das tecnologias são
elementos que ajudam a alçar essa “matéria-prima” quase que à condição do
conhecimento histórico propriamente dito. [...] temos visto uma grande
concentração de esforços sobre os documentos que nem sempre se faz
acompanhar de equivalente análise e de construções explicativas e relacionais.
Fonte: Lima e Fonseca (2013, p.19-22). FIM DA LEITURA COMPLEMENTAR

INÍCIO DO MATERIAL COMPLEMENTAR - LIVRO


Título: Educação Física + humanas
Autor: Marco Paulo Stigger
Editora: Autores Associados
Ano: 2015
Sinopse: trata-se de uma coletânea em que pesquisadores do campo da
educação física brasileira evidenciam a importância das ciências humanas tanto
na formação inicial de professores quanto na pesquisa de diferentes temas
relacionados às práticas corporais e à educação física escolar.
Comentário: ao ler os capítulos do livro, além da importância de se estudar
filosofia, sociologia, antropologia e história nos curso de educação física, você
perceberá que a existência desses estudos lida com a luta por maior espaço
acadêmico nas instituições de ensino superior.
FIM DO MATERIAL COMPLEMENTAR - LIVRO

INÍCIO DO MATERIAL COMPLEMENTAR - FILME


Título: Narradores de Javé
Ano: 2004
Sinopse: um pequeno vilarejo tem seu sossegado dia a dia revolucionado
quando os moradores recebem a notícia que deverão se mudar pois o lugar em
que vivem será inundado para a construção de uma represa. Para evitar esse
desfecho, a única alternativa era mostrar a importância histórica da vila. Em torno
da construção dessa situação, o enredo do filme se desenrola.
Comentário: embora não trata, especificamente, sobre um tema da história da
educação física, ao assistir o filme você poderá pensar na importância e nas
dificuldades enfrentadas no momento em que se quer escrever uma narrativa
histórica.
FIM DO MATERIAL COMPLEMENTAR - FILME

INÍCIO DO MATERIAL COMPLEMENTAR - WEB


O Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte realiza o Congresso Brasileiro de
Ciências do Esporte a cada dois anos. Acesse o link a seguir e conheça os anais
dos eventos organizados a partir de 2005. Em cada um dos eventos há os
trabalhos do Grupo Temático de Trabalho (GTT’s) Memórias da Educação Física
do Esporte, em que há um bom número de trabalhos e pesquisas de variados
temas da história concernente aos assuntos deste livro.
Link: http://www.cbce.org.br/anais.php
FIM DO MATERIAL COMPLEMENTAR – WEB
INÍCIO DAS REFERÊNCIAS
AZEVEDO, F. de. A poesia do corpo ou a gymnastica escolar: sua história e
seu valor. Belo Horizonte: Imprensa Official do Estado de Minas, 1915.

BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro:


Nova Fronteira, 1985.

BLOCH, M. Apologia da história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001

BRACHT, V. Educação Física: a busca da autonomia pedagógica. In: Educação


Física e aprendizagem social. Porto Alegre: Magister, 1992. p. 15-32.

BRASIL. Resolução n.º 07, de 31 de março de 2004. Conselho Nacional de


Educação. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de
graduação em Educação Física, em nível superior de graduação plena. Câmara
de Educação Superior. Brasília-DF: Câmara de Educação Superior, 2004.

CASTELLANI FILHO, L. Educação física no Brasil: a história que não se conta.


Campinas-SP: Papirus, 1988.

DALBEN, A. Inezil Penna Marinho: formação de um intelectual da educação


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FARIA FILHO, L. M. de; VIDAL, D.; PAULILO, A. A cultura escolar como


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FREITAS, J. V.; LINHALES, M. A. Imagens em movimento: metodologia de


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GOELLNER, S. V. A importância do conhecimento na formação de professores


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GOMES, A. C. V.; BRAGHINI, K. M. Z. Potencialidades de pesquisa em história


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LIMA E FONSECA, T. N. de. História, memória e documentos. In: LINHALES, M.
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LINHALES, M. A.; NASCIMENTO, A. Organizando arquivos, produzindo


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TABORDA DE OLIVEIRA, M. A. O que a história da educação tem a dizer sobre


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(Org.). Educação Física + Humanas. Campinas-SP: Autores Associados, 2015.
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INÍCIO DAS REFERÊNCIAS ON-LINE


1 Em: <http://www.fef.unicamp.br/fef/chelef2016>. Acesso em: 27 Jun. 2016.

2 Em:

<http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/41549/1/01d19t03.pdf
>. Acesso em: 06 out 2016.

FIM DAS REFERÊNCIAS ON-LINE.


INÍCIO DO GABARITO
1) Estudar história da educação física, do esporte e do lazer é relevante,
pois, permite-nos apreender de modo mais atento as relações, ações e
valores profissionais com as necessidades e as contradições da
sociedade de um determinado tempo.

2) O conhecimento histórico caracteriza-se pela impossibilidade de ser livre


de lacunas e totalmente isento de influências socioculturais de quem o
produz. Esses traços, por sua vez, dão a esse conhecimento sua
importância, afinal, ele realiza em si mesmo a condição de ponderar o que
podemos e o não podemos conhecer sobre nós mesmos.

3) É a partir dos documentos produzidos em determinada época que


podemos acessá-la e pensá-la. Nesse sentido, a pesquisa histórica
consiste na busca e na análise crítica dos diferentes tipos de documentos
que nos permitem costurar reflexões sobre diferentes aspectos da vida
social e cultural de outros tempos que não o nosso.

4) A partir da análise de Melo (1999), a história da educação física é


composta por quatro momentos. No primeiro, tratou-se de redigir
apontamentos históricos a partir de comentários extraídos de livros de
filosofia, sobretudo. No segundo, caracterizado pela ação de Inezil Penna
Marinho, passou-se a acumular informações buscadas em fontes
primárias, reunidas linearmente em uma linha do tempo. A terceira
marcou-se pela influência do marxismo, em uma leitura da realidade de
característica marxista que segundarizou o levantamento documental na
construção das reflexões. Por fim, a última fase é caracterizada pela
aproximação dos historiadores da educação às discussões teórico-
metodológicas existentes no campo da história.

5) Considerando a apresentação de Medina no livro de Castellani Filho


(1988), vemos que este busca na história a demonstração de que por trás
de cada aula de educação física realiza-se um amplo processo de
reprodução das desigualdades sociais e injustiças políticas,
características incontornáveis do capitalismo.
FIM DO GABARITO.
INÍCIO DA FOLHA DE ABERTURA

TÍTULO DA UNIDADE 2: PENSANDO O CORPO NA HISTÓRIA

Objetivos de Aprendizagem

● Pensar na atribuição de valores culturais ao corpo.


● Sublinhar a importância do corpo em muitas questões filosóficas.
● Analisar diferentes modos de perceber o próprio corpo na história.
● Estudar variadas visões dirigidas ao corpo em diferentes períodos
históricos.
● Avaliar percepções conflitantes em relação à corporeidade em outras
épocas.

Plano de Estudo

A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:

● Tópico 1: O corpo não é apenas sua anatomia


● Tópico 2: A filosofia começa e continua...no corpo
● Tópico 3: Eu tenho um corpo ou sou um corpo? Os muitos eus e os
muitos corpos que existiram na história
● Tópico 4: Os ódios e os amores devotados ao corpo na história
● Tópico 5: Prazeres e deveres no cuidado com o corpo

FIM DA FOLHA DE ABERTURA.


INÍCIO DA INTRODUÇÃO: Caro(a) aluno(a), não há muitas dificuldades em
perceber que cursos de educação física dão bastante atenção ao corpo. Afinal,
se fizermos o esforço de lembrar de alguns anúncios sobre os outros cursos, em
muitas deles são mostrados pessoas conversando, sentadas à frente de um
computador, desenhando, misturando substâncias, lendo livros em bibliotecas,
cuidando de plantas, etc. Obviamente, em todas essas imagens, vemos corpos.
Quero, apenas, sublinhar a diferença no que diz respeito ao “envolvimento
corporal”: nessa diferença, entendemos em algumas imagens que certas
pessoas estão pensando enquanto outras estão, apenas, movimentando-se.

Isso pode ser ainda mais facilmente percebido na escola. Nela, os lugares,
os tempos e os modos, alternadamente, voltam a atenção ora ao pensamento,
ora ao corpo, conforme boa parte das rotinas que caracterizam essa instituição.
Sabemos que o corpo ocupa um lugar, merece atenção, ou seja, tem alguma
importância. Todavia, esse valor deve ser pensado, pois ele se realiza na
alternância entre momentos corporais e momentos mentais. Olhemos,
historicamente, o corpo. A percepção atenta ao corpo é tão arraigada em nosso
cotidiano que, aparentemente, ela não deveria gerar o trabalho de entendê-la,
para além de vivê-la.
Nesta unidade, ao estudar o corpo na história, pretendo convencer você
a pensar o contrário. Teremos como ponto de partida um duplo entendimento:
em primeiro lugar, esse valor atribuído ao corpo no mundo contemporâneo não
está isento de contradições e limites no que tange à consideração da dimensão
corpórea dos homens e das mulheres. Em segundo lugar, a partir do conjunto
dessas contradições que hoje vivemos em relação a nossa condição corporal,
pode-se verificar na história que, em muitos aspectos, o corpo recebeu diferentes
olhares e mobilizou variadas práticas, com modos e intensidade também
dessemelhantes. Bons estudos! FIM DA INTRODUÇÃO.

INÍCIO DO TÓPICO 1: O CORPO NÃO É APENAS SUA ANATOMIA

Faço a você uma advertência: a afirmação de haver muitas outras coisas


no corpo além de sua própria anatomia pode soar um tanto quanto estranha. E
isso não apenas pelo fato de percebermos o corpo dos outros e o nosso próprio
pela forma geral que eles têm. Percepção essa que também se constrói em
olhares que buscam detalhes ou partes, que tiramos da integralidade corporal
para uma gama variada de interesses. Do mesmo modo que digo ser alguém
bonito ou bonita, consigo dizer que alguém tem uma pele bonita, belas mãos,
um cabelo deslumbrante ou qualquer outra parte não tão atraente.
Será percebida alguma estranheza na crença de o corpo ser mais que
sua anatomia, sobretudo quando você começar a estudá-lo, sistematicamente,
no decorrer de seu curso. Lembre-se que esse estudo é um dos pontos mais
característicos dos cursos de educação física não apenas hoje, mas também em
sua história. Com certeza, a sensação que muitos acadêmicos tinham e ainda
têm quando mergulham no fascinante mundo dos estudos anatômicos é a de um
espanto com a quantidade de detalhes passíveis de reflexão e de denominação
presentes em qualquer parte do corpo que venha a ser estudada. Para piorar ou
deixar a surpresa ainda mais arrebatadora, sempre nos chega aos ouvidos que,
em outros cursos da área de saúde, a carga horária e o detalhamento dos
estudos nesse campo são ainda maiores.
Se falamos em anatomia, é inevitável não pensarmos na importância e na
energia que consumimos para entender o funcionamento do conjunto de nossos
órgãos. Folhear os atlas de anatomia mais detalhados só não proporciona mais
momentos de reconhecimento de nossa ignorância do que aqueles que
experimentamos quando entramos nos meandros da fisiologia humana. A
imensidão do território intelectual a ser conquistado, conforme vamos pensando
na integração dos diferentes sistemas que compõem nosso organismo, aumenta
proporcionalmente o prazer que sentimos ao perceber que os esforços dos
nossos estudos vão nos capacitando a entender cada vez mais sobre cada gesto
que executamos.
Reitero o que já pensamos: mesmo os limites anatômicos do corpo já
fizeram muita tinta ser consumida em milhares e milhares de páginas. Se
deixarmos nossas aulas de anatomia e fisiologia das universidades e entrarmos
em consultórios médicos, fisioterápicos, nos consultórios de nutricionistas e
fonoaudiológicos, veremos em cada uma dessas especialidades, bem como em
suas subespecialidades, que o volume de informação fica cada vez maior. Se
assumirmos que cada uma dessas áreas e de suas ramificações elabora
procedimentos para lidar com diferentes aspectos e problemas que dizem
respeito a nossa anatomia e nossa fisiologia, de fato, concluiremos que entender
o corpo humano como célula, tecidos, órgãos e o arranjo desses elementos a
gerar algum “funcionamento” já é algo bastante razoável, para dizer o mínimo.
Essa sucessão de espantos causados pela gigantesca quantidade de
informações pauta-se na ideia de que o corpo é algo natural, dotado de forças e
limites naturais. Por serem mecanismos estáveis e invariáveis nos humanos,
excetuando-se em casos atípicos, eles tornam concreta a ideia de uma natureza
humana, cuja anatomia é a mais visível das provas. Não é a únicas, pois há
aquelas provas que não vemos. Afinal, mesmo aquilo que chamamos de
“instinto” é também assumido como natural. Eles não são detectáveis nas formas
dos corpos, mas em muitas coisas que fazemos com ele: ao lado de nossas
necessidades vitais - como comer, beber, não sentir frio ou calor, a reprodução
-, há o medo, a raiva, a tristeza, a dor, enfim, uma gama de sensações assumidas
como universais e incontornáveis, bastando estar vivo para fazê-las ou senti-las.
Em que pese todas essas considerações apontem para elementos que já dão ao
corpo a condição de ser um assunto intrigante e extenso em sua própria
natureza, sabemos que há algum tempo nem mesmo essa natureza é assumida
como imutável, expandindo ainda mais os limites anatômicos.
Kuper (1996) pergunta se hoje somos todos darwinianos, referindo-se à
importância da teoria elaborada por Charles Darwin. A pergunta denota que,
apesar do caráter controverso na teoria para muitos, ela pode ser considerada
uma das maiores realizações intelectuais da humanidade. Dos numerosos
impactos gerados pelas ideias de Darwin, um dos principais é a concepção de
que a “natureza humana” não nasceu pronta por ser resultante de um processo
evolutivo. Da teoria da evolução das espécies depreende-se uma determinada
perspectiva histórica de que até a variedade de espécies surge como resultado
de um processo aleatório de construção. Interessante notar que, ao apoiar essa
impactante constatação, Darwin reconhece que “Man still bears in his bodily
frame the indelible stamp of his lowly origin” (DARWIN apud KUPER, 1996, p. 4).
Com isso, Darwin não afirma uma dissolução da ideia de uma natureza
anatômica. Pelo contrário, ele a fortalece por afirmar que essa nossa anatomia
e as das demais espécies não possuem limites tão claros. Mesmo no âmbito dos
limites corporais, as consequências para o nosso entendimento corporal e
daquilo que nos faz seres humanos é grande, conforme afirma um importante
estudioso da história de nossa espécie:

Evidenciar que os seres humanos tem sua vida e adaptações


prefiguradas e paralelas a dos animais - está na base da dúvida sobre
a realidade do limite moral que nos separam das feras. A grande
questão é saber se tememos ou aceitamos a dissolução dessa fronteira
(KINGDON, 2003, p. 33).

Você percebeu que já estamos dando um olhar mais histórico àquilo que
assumíamos como imutável: o nosso corpo. Há muitas controvérsias e debates
sobre isso. Um aprofundamento em tal assunto escapa ao objetivo deste livro. A
utilidade de mencioná-lo é outra: evidenciar que a abordagem histórica que
fazemos no âmbito dos cursos de educação física é mais aproximada do estudo
das maneiras como esses “limites anatômicos” são vistos, utilizados, entendidos
e percebidos pelas pessoas em diferentes épocas.

Início da descrição da imagem:


Legenda: sem legenda

Descrição: A imagem mostra o famoso desenho de Leonardo da Vinci, o


“Homem Vitruviano”, também conhecido como “Cânone das Proporções”. É um
desenho da figura humana masculina nua, em que são apresentadas duas
posições sobrepostas desenhados dentro de um círculo e um quadrado. A figura
masculina é vista de frente, em uma das posições ele está ereto com as pernas
juntas e estendidas, e os braços estão estendidos cada um para o seu respectivo
lado no nível dos ombros, e na outra posição suas pernas estão estendidas e
separadas, e seus braços estão estendidos acima do nível dos ombros em
diagonal.

Fonte: sem fonte

Fim da descrição da imagem.


Essa delimitação é importante para separarmos a nossa abordagem
histórica da importante abordagem evolucionista. Mesmo reconhecendo que
esses nossos atuais limites têm “apenas” 35.000 anos e que ainda estejam em
um lento, silencioso, mas incontrolável processo de adaptação e/ou evolução,
não são eles que nos ocuparão. Para nós, é mais importante verificar que uma
“história do corpo” é uma história que busca entender no passado o modo como
nossa “natureza” gerou reflexões, acusações e práticas, em alguns casos muito
diferentes das nossas. Dito de outra maneira, nós temos a mesma estrutura
corporal que tiveram os antigos gregos, os medievais, os homens modernos e
os nossos avós. Entretanto, em cada uma dessas épocas, do ponto de vista dos
sentimentos gerados e percebidos por essa estrutura, bem como do valor social
dado para ela, poderíamos dizer que houve muitos outros corpos e muitos outros
olhares para ele.
Para ilustrarmos que muitos dos olhares que hoje damos ao corpo não
existiram desde sempre, vale a pena voltarmos nossa atenção para o processo
de construção de um modo de conceber o corpo, que possibilitou a gigantesca
quantidade de informações que hoje temos sobre ele: estudar anatomia, ensinar
anatomia, produzir o conhecimento relativo a nossa anatomia, apesar de sua
óbvia importância para a história da medicina, para a atualidade e, conforme já
vimos, para os cursos de formação em educação física, são práticas que têm
apenas quatro ou cinco séculos. Parece muito, mas lembre-se dos já citados
35.000 anos de vida do homo sapiens, além das muitas outras sociedades e
épocas que simplesmente ignoraram esse tipo de abordagem anatômica do
corpo. Podemos começar a entender que um dos fatos mais marcantes para
percebermos que o corpo tem mais do que sua anatomia é, justamente, entender
como surge o estudo dessas “formas”.
É possível perceber em nosso cotidiano alguns dos elementos que
marcaram o processo de surgimento e desenvolvimento dos estudos sobre a
anatomia nos séculos XVI e XVII. Para muitos acadêmicos que iniciam seus
estudos em cursos da área de ciências da saúde, as primeiras aulas de anatomia
não são momentos de grande tranquilidade ou de um despertar do conhecimento
científico. Frequentemente testemunha-se o desajeito, o medo, o nojo e a
resistência dos acadêmicos não apenas ao cheiro dos laboratórios, mas à
presença dos cadáveres e ao seu manuseio. Não pretendo explicar ou justificar
essas sensações, mas elas são importantes para a nossa reflexão em dois
pontos: grosso modo, frequentemente esses acadêmicos e essas acadêmicas
sentem algum desconforto com as aulas de anatomia ou pela abjeção gerada
pelo corpo sem vida, pela textura das diferentes partes expostas; ou, então, a
resistência tem uma característica mais religiosa ou sentimental, um
constrangimento por se mexer naqueles corpos humanos postos em condição
de objetos manipuláveis, situação essa sentida como oposta à humanidade.
Mesmo para quem tem menos sensibilidade, é difícil não se pegar dando azo a
reflexões como essas.
Todavia não se questiona, nos dia de hoje, a relevância desses espaços
formativos que são os laboratórios de anatomia. É inconcebível qualquer
profissional sair de sua formação inicial em nível superior sem conhecimentos
importantes sobre as diferentes estruturas corporais. Se somarmos a isso as
regulamentações existentes para possibilitar que cadáveres estejam disponíveis
para esse estudo, verificamos que os estudos de anatomia são parte constituinte
de nosso cotidiano.
Convido-lhe a pensar o processo histórico que levou a essa
“naturalidade”, a essa quase necessidade que temos de conhecer o corpo de
forma detalhada. A ideia é verificarmos que não apenas a possibilidade de
profissionais acessarem, visualmente, o interior corporal, mas o fato de muitas
tecnologias de imagem com as quais médicos e pacientes podem visualizar o
que acontece lá dentro, são resultantes de um imenso conjunto de esforços que
tocam o surgimento de um panorama cultural e científico nos séculos XV e XVI.
O que eu proponho a você é prestar atenção às modificações socioculturais que
existiram nesse momento que tornaram possível, realizável e necessário o gesto
de olhar o corpo em seus detalhes. Insisto: essas modificações podem ser
tomadas como o indício de que uma outra forma de entender o corpo humano
estava nascendo e que ela teve impactos profundos não apenas nos
desdobramentos médico-científicos dos séculos seguintes, mas, do mesmo
modo, na maneira como os homens e as mulheres passaram a ver sua
humanidade.
Durante esse período da história ocidental, a sociedade europeia vivia um
intenso momento de transição. Em vários pontos de vista, muitos setores da
sociedade questionavam opiniões, instituições; outros setores defendiam
estruturas sociais, políticas e religiosas tradicionais, gerando, assim, um grande
debate em torno dos rumos da sociedade. Se isso não é muito diferente do que
ocorre em todos os outros momentos da história, é algo reconhecido a grande
intensidade e velocidade com que essa discussão passou a existir no processo
conhecido como transição da sociedade feudal à sociedade capitalista. Tratam-
se de transformações gestadas e nascidas no curso de cinco ou seis séculos,
mas que conheceram suas consequências mais marcantes a partir dos séculos
XV e XVI, consolidando-se no XVII e XVIII.
As mudanças econômicas e políticas que foram se processando na
estrutura feudal da sociedade europeia e o surgimento de uma nova forma de
organização social, ao mesmo tempo, estimularam e foram estimuladas por uma
nova concepção relativa à humanidade dos homens e das mulheres. Essa nova
concepção reposicionou a percepção humana sobre si mesma em muitos
aspectos.
O primeiro deles que vale a pena ser considerado é que, paulatinamente,
foi tomando força e volume uma grande atenção às capacidades humanas de
pensar e entender a si mesmo e o mundo a sua volta. A herança intelectual típica
da idade média, pautada na desconfiança dessas capacidades e na sua
subjugação em relação à autoridade da Igreja Católica, foi se tornando alvo de
críticas. Interessante verificarmos que uma mudança tão radical possa ter
ocorrido. Com efeito, a postura intelectual de pensar mais e mais
aprofundadamente sobre todos os aspectos da vida, além de ter desabrochado,
foi algo que aconteceu com uma qualidade bem diferente da que então existia:
tratou-se de revisitar a tradição intelectual existente e dominante nos últimos dez
séculos em nome de uma outra postura. Essa postura advogava o grande
potencial existente em cada ser humano para entender e perguntar, potencial
com o qual homens e mulheres tinham sido agraciados por Deus. Note você que,
de uma postura intelectual menos ativa justificada na autoridade de Deus, a
sociedade a partir dos séculos XIII e XIV vai se tornando mais simpática a uma
postura oposta, justificando as capacidades para tanto como presentes que nos
foram dados por Deus. Embora esse processo não tenha ocorrido de um modo
tranquilo ou rápido, foi se consolidando de uma maneira a relacionar a vida
humana não à aceitação passiva de um pensamento consolidado pela tradição,
mas a um pensamento que deveria ser justificado pela razão e por sua
adequação aos fatos.
Muito relacionado a esse despontar de uma postura intelectual que busca
eliminar as autoridades religiosas e o teocentrismo a elas ligado, é importante
ter claro que igualmente fundamental foi o despontar de um processo de
individualização, em que as pessoas passaram a discernir limites mais claros
entre sua individualidade e as demais pessoas e instituições com as quais se
relacionavam. Para nós, é algo bizarro imaginar que em alguns momentos essa
percepção possa não ter existido, mas conforme a sociedade avançava rumo ao
mundo moderno do capitalismo, assistiu-se ao florescimento de um sentimento
mais claro sobre si mesmo, em que “minhas características” são tomadas como
aquilo que “me” tornam único e especial perante todo o resto do mundo.
Digno de nota é o modo como essas duas grandes novidades se
alimentam. Se de um lado percebo e enalteço a capacidade humana de pensar
os problemas e as belezas do mundo de um modo autônomo e cada mais
aprofundado, paralelamente a consideração dessa capacidade vai reforçando o
apreço que tenho por mim mesmo. É compreensível, pois de algum modo os
limites do mundo são resultantes desse olhar e desse pensamento que nada
deixam intocados. O inverso também é verdadeiro: a admiração que cada
indivíduo passa a ter por si mesmo e a defesa de que essa admiração é um traço
tipicamente humano, torna a busca por conhecimento algo relacionado a própria
felicidade, a produção de uma vida mais plena, assim percebida no gozo dessas
capacidades.
O caminho que levou esse conjunto de transformações culturais a uma
nova percepção corporal não foi reto, livre de debates, idas e vindas. Todavia
chegou onde hoje estamos: nosso corpo é visto, escrutinado, comparado,
dissecado em seus mínimos detalhes.
Um teórico dos estudos sobre corpo, David Le Breton (2003a) nos explica
que o processo que levou ao “homem anatomizado” foi de grande importância
em um duplo aspecto: levar à riqueza e amplitude do conhecimento corporal as
quais fiz menção anteriormente, além de ter contribuído para uma das posturas
filosóficas mais relevantes para o desenvolvimento da ciência, a saber: a
“distinção feita entre o corpo e a pessoa humana” (LE BRETON, 2003a, p. 46).
Isso também foi fundamental para que o conhecimento anatômico se
aprofundasse em ritmo aceleradíssimo.
Para entender essa relação, é necessário considerar que, no início da
idade moderna, essa separação entre “pessoa e corpo” não havia. Essa
inexistência gerava muito constrangimento na possibilidade de considerar que,
no corpo morto, a “pessoa” não estava mais “lá”. Ou seja, os limites demarcados
pela pele não seriam, nessa ótica, rompidos sem proporcionar grandes choques
morais e religiosos. Le Breton (2003a) é claro quando afirma: “Com os
anatomistas, o corpo deixa de se esgotar na significação da presença humana.
O corpo é posto entre parênteses, dissociado do homem, ele é estudado ele
mesmo, como uma realidade autônoma” (LE BRETON, 2003a, p. 48). Por essa
razão, os primeiros anatomistas foram considerados “iconoclastas”. Afinal, o
choque dos dogmas cristãos produzido pela lâmina do bisturi chegava ao ponto
religioso central: abrir o que agora passa a ser considerado um cadáver, algo
sem vida, condenado a desaparecer, inviabilizava um dos pontos de apoio da
ideia de ressurreição: “Deixar o corpo em pedaços é destruir a integridade
humana, é arriscar-se a comprometer a perspectiva da ressureição” (LE
BRETON, 2003a, p. 48). Outra passagem das reflexões de Le Breton vale a pena
ser lida para você dimensionar a revolução cultural a que estava sendo
submetido o corpo humano com o desenvolvimento do “olhar anatômico”:

Os anatomistas partem para a conquista do segredo da carne,


indiferentes às tradições, às proibições, relativamente livres no que
concerne à religião, eles penetram no microcosmo com a mesma
independência de espírito que Galileu ao invocar um traço matemática
no espaço milenar da Revelação (LE BRETON, 2003a, p. 53).

Dito de outra maneira, o lugar do homem no universo estava sendo


reformulado pelos avanços no conhecimento do “muito grande”, sobre o planeta,
o universo, etc. O mesmo espírito científico invadia o espaço do “muito pequeno”,
penetrando cada vez mais fundo nos nossos tecidos corporais para conhecê-los,
oferecendo-os à vista de todos. O “milagre de Deus” passou a ser abordado
pelos anatomistas em um processo que colocou a materialidade corporal
exposta, ato possível pelas mudanças socioculturais então experimentadas.
Mudanças que fizeram o corpo receber outra atenção e desempenhar papéis
societários antes inexistentes. Por essa razão, a análise histórica, com a
perspicácia da análise anatômica, demonstra que atribuímos aos olhares que
damos ao corpo muitos significados. FIM DO TÓPICO 1.

INÍCIO DO TÓPICO 2: A FILOSOFIA COMEÇA… E CONTINUA NO CORPO

Superada um pouco da surpresa de se estudar história em um curso de


educação física, podemos mergulhar de uma forma mais plena na reflexão sobre
o processo histórico que, de alguma forma, sustenta aquele sentimento inicial de
espanto. Ou seja, por que facilmente entendemos que há uma separação entre
movimentar-se corporalmente e o pensamento que fazemos sobre esses
movimentos?
Você lembra que fiz menção às propagandas sobre cursos de educação
física no início da primeira unidade. Foi visto, também, que é até concebível para
muitos entender cientificamente diversos aspectos das práticas corporais e do
trato profissional com elas. O espectro de especialidades científicas que lançam
luzes à fisiologia humana no momento em que executamos diversas atividades
é amplo. Além disso, pesquisadores dessas áreas aprofundam cada vez mais o
conhecimento que se tem da quase totalidade corpórea do homem. Muitas
pesquisas foram feitas desde os primeiros anatomistas nos séculos XV e XVI.
Diversas áreas biomédicas floresceram, estudos bioquímicos levaram a drogas
mais precisas e eficientes na ação de numerosos problemas de saúde que nos
afligem. Ou seja, compreendemos que, se há uma dimensão intelectual com
presença marcante no campo da educação física, essa é a dimensão que explica
o funcionamento corporal. O que nos interessa agora é pensarmos que essa
“reflexão científica” sobre o corpo e seus movimentos assenta-se na
necessidade de assumir que há uma reflexão sobre o corpo que o entende como
objeto, como algo a ser conhecido. Uma reflexão que o trata como um assunto
do pensamento por ser muito diferente desse mesmo pensamento. Trata-se de
uma obviedade? Talvez não.
Nos itens anteriores tem sido feita a tentativa de evidenciar que outros
campos intelectuais são incontornáveis na formação profissional em educação
física. Pensar historicamente é a ação que demarca um desses campos. Além
disso, vimos que ela é uma reflexão que evidencia a historicidade de
praticamente tudo que, normalmente, é assumido como não possuidor de
história. Ou, para ficarmos no âmbito do corpo, algo possuidor de uma história
reduzida ao processo de evolução de uma natureza, tal como nos explica
Charles Darwin.
Ao se assumir que o corpo também tem uma história ligada aos modo
como ele é percebido, uma das primeiras questões que deve nos chamar a
atenção é a seguinte: a clara separação entre movimentar-se e pensar que se
manifesta no modo como concebemos o que vem a ser pensamento, corpo e
suas relações, ocupou pensadores em outras épocas e ainda inquieta muitos
estudiosos. Para olharmos essa questão mais proximamente, vamos adotar o
procedimento que sustenta este livro: vamos pensá-la historicamente.
Se a problemática é a relação entre o corpo e o pensamento, acredito
valer a pena estudarmos o processo de surgimento da filosofia que ocorreu na
sociedade grega em volta dos séculos V e IV a.C. Normalmente, assumimos os
estudos em filosofia como algo demasiadamente distante dos problemas
práticos e concretos. Não é incomum termos uma imagem negativa dos filósofos,
como pessoas alheias à realidade em que vivem, apegadas que são ao “mundo
das ideias”. Essa (des)consideração da filosofia deve ser questionada, caso você
queira entender os assuntos concernentes à educação física.
Em primeiro lugar, é importante você ter claro que o surgimento da
filosofia na Grécia Clássica não deve nos fazer esquecer que a sociedade grega
recebia influências de muitas outras culturas que, ao seu modo, pensavam em
suas problemáticas a partir de suas próprias condições. Fundamental nesse
processo de surgimento de uma nova forma de pensar, racional por excelência,
e que dá à Grécia o tão citado status de “Berço da Civilização Ocidental”, foi o
fato de a filosofia ser uma nova postura perante a vida individual e social gestada
a partir de transformações históricas tocantes à sociedade, à economia, à
percepção que os gregos tinham deles mesmos e, sobretudo, à política.
Esse último aspecto deve ser mantido muito próximo na hora de você
pensar as razões que levaram ao surgimento da reflexão filosófica. A
consideração do aspecto político da questão não deve ser subestimado. O
desenvolvimento da pólis como forma social da sociedade que cria a filosofia
colocou em questão a necessidade de se pensar no aspecto fundamental de
toda sociedade política: o uso do diálogo para deliberação dos rumos da
“cidade”. Parece algo trivial, mas não é. Em sociedades não políticas, esse
elemento discutido das decisões não se faz sentir. Na política, as decisões são
pensadas e tomadas a partir da capacidade argumentativa dos cidadãos.
Interessante verificar o modo como essa necessidade atinente à condução dos
assuntos concretos da vida comunitária colocou como necessidade e
possibilidade uma reflexão que levasse a sociedade a tomar boas decisões,
livremente adotadas depois da deliberação dos partícipes.
Para atingir essa necessidade de bem pensar os rumos da cidade, foi
imprescindível a nascente filosofia ponderar a relação dos cidadãos com as leis,
com a formação dos futuros cidadãos, as possibilidades de comportamentos
corretos e do sentido a ser dado à vida por esses comportamentos. Nessa
avaliação, entender o modo como diferentes sentimentos e capacidades
humanas se relacionavam e se opunham foi um passo incontornável. Nesse
ponto o processo de nascimento da filosofia traz elementos bastante
interessantes para pensarmos o corpo e seu relacionamento com as demais
capacidades humanas, sobretudo o pensamento racional. Como nos ensinam
Braunstein e Pépin (1999, p. 13), a maneira como os gregos pensaram o corpo
“depende estreitamente do seu sistema de pensamento, fundado na noção de
racionalidade e harmonia”. Para o alcance dessa racionalidade, o corpo é visto
apenas como um instrumento. Ele é o que deve ser superado para que a alma
alcance a verdade que se busca nos debates filosóficos e políticos.

Se o corpo constitui um problema para os filósofos gregos, é porque


lhes apareceu como a soma de uma longa e difícil luta entre dois
princípios: um, em relação com a racionalidade, o inteligível porque
material; o outro, em relação com o sensível, por estar ligado ao
mundo além. O corpo definiu-se como uma dualidade, corpo-alma,
do mesmo modo que a humanidade se divide em filósofo e não
filósofo, o homem vive pelo espírito e o que vive pelos sentidos. [...]
Só a alma retém a sua atenção, detentora do conhecimento único, só
ela pode levar à verdade, ao não esquecimento (BRAUSTEIN;
PÉPIN, 1999, p. 21).

Essa nascente dualidade, por sua vez, não deve ser concebida como uma
simples relação de desprezo em relação ao corpo, algo que foi muito marcante
nos séculos que se sucederam à construção do domínio da Igreja Católica e que
se consolidou a partir do século IV d.C.. É interessante observar que,
diferentemente do que ocorrera durante a Idade Média, a Antiguidade Clássica
sustentou-se em uma “complementaridade, mais do que sobre a oposição do
inteligível e do sensível” (BRAUSTEIN; PÉPIN, 1999, p. 23). Com efeito,
entendemos que o lugar do corpo e sua relação com o pensamento não é fácil.
Platão, em um de seus diálogos, afirma que o corpo é o “túmulo” da alma. Mesmo
assim, há elementos na história grega que nos permitem afirmar um
relacionamento entre elementos estéticos, eróticos e intelectuais.

A verdadeira sabedoria, traduzida pela beleza, residia mais uma vez


no equilíbrio da personalidade. A maneira como os gregos percebiam
esse equilíbrio transparece na importância que davam ao Eros, cujo
sentido de “amor” se estende bem para lá do desejo físico, para incluir,
também a paixão intelectual e espiritual (BRAUSTEIN e PÉPIN, 1999,
p. 25).

Para apreendermos a importância do pensamento que lemos na citação,


lembremo-nos da profusão de corpos belos que nos vêm à mente quando
pensamos na estatuária feita pelos gregos e na importância que possuía o corpo
nu para a sociedade grega. Nudez cuja exibição era privilégio dos cidadãos, que
tinham seus corpos treinados no ginásio por meio de práticas que estudaremos
na próxima unidade.
De qualquer modo, perceba que o dito “berço” da civilização traz em si
elementos que nos fazem pensar na relevância da dimensão intelectiva e
corpórea do homem. A dificuldade é entender como essas dimensões são
consideradas em diferentes momentos, sem esquecer que em uma mesma
realidade pode haver modos diferenciados de avaliar o corpo. Há alguns anos
isso me fez analisar a presença do corpo na história grega, enxergando nela uma
contraposição entre a necessidade do cultivo intelectual imprescindível ao
mundo político e o elogio da força e da aparência física como traços constituintes
de uma sociedade agonística e guerreira. Ao realizar tal análise, marquei essa
contraposição, deixando superlativas duas partes corporais: de um lado a “língua
grande”, de quem fala, argumenta e elabora seu argumento por meio da retórica;
e de outro o “ombro largo”, que simboliza a força dos atletas e dos guerreiros
como figuras elogiadas na estrutura sociocultural grega. Xenófanes, vivendo no
período de 540 a 470 a.C., explicita um registro elucidativo da desconfiança que
a valorização do corpo gerava em parte dos gregos:
Não é justo preferir a força à verdadeira sabedoria. Se há na cidade
um bom pugilista ou um bom atleta distinguido no Pentatlon, na luta ou
na corrida - que é a mais importante das provas atléticas nas
competições entre os homens - nem por isto estará, por ele, melhor
governada (XENÓFANES apud HEROLD JUNIOR, 2007, p. 100).

A intenção é fazer que fique claro para você, querido(a) aluno(a), que o
nascimento de uma sociedade política baseada na reflexão e argumentação
racional dos problemas da pólis colocou em evidência a dimensão corporal do
homem. Esse destaque se deu pela negação dessa dimensão em nome da
inteligência e do discurso, do mesmo modo que levou muitos a defenderem como
incontornável e necessária a reflexão sobre o corpo para se aprimorar a
capacidade de se conhecer a verdade e tomar boas decisões conectadas a
aspectos estéticos e eróticos da vida. Desse ponto de vista, a sociedade grega
clássica é um alvo de reflexões muito importante para pensarmos na história do
corpo e das práticas educacionais a ele associadas. No momento em que as
bases intelectuais ocidentais se formavam, podemos ver nesse mesmo processo
de formação que o corpo fornecia muitos dos motivos que levaram à empreitada
filosófica e política. Mais uma vez, Braustein e Pépin (1999) nos explicam o valor
que possuía o corpo para os gregos:

Daí decorre o conceito do corpo humano onde a própria ideia de desmesura


está excluída, porque, mais do que qualquer defeito, ela se opunha ao ideal
de harmonia matemática e de disciplina do indivíduo. Os gregos
condenavam-na no plano moral tanto como a temiam no plano. A
desmesura chocava-os política, moral e esteticamente. [...] Assim, ter um
corpo belo, um corpo são, depende antes de mais nada de uma profunda
serenidade em perfeita correspondência com a harmonia do universo. [...]
Sem dúvida que é porque o cosmos se apresenta como um conjunto de
corpos, produto de uma actividade humana ou da natureza, que a ordem e
a organização devem trazer estabilidade e coesão. O corpo humano é a
reprodução orgânica desse conjunto. Por extensão, podemos dizer que o
corpo político são é aquele cujos corpos constituintes se completam,
funcionam e se reúnem perfeitamente, sem nenhuma disfunção
(BRAUSTEIN e PÉPIN, 1999, p. 18).

Essa longa citação ajuda você a compreender o fato de que, na


construção do imenso e belo edifício artístico, filosófico e político da sociedade
grega, o corpo humano ofereceu motivos relevantes para o entendimento da
concatenação e das rupturas existentes entre o homem, a natureza e a
sociedade. Como integrar esses três âmbitos foi o que levou ao nascimento da
filosofia. É a partir do corpo que ela nasce. Sem as dúvidas provocadas pelas
mudanças corporais, pelas vontades que por elas sentimos, pela percepção do
mundo que temos por intermédio de suas estruturas, o pensamento não teria
ampliado os horizontes do modo como ocorreu a partir do século V a.C. Como
poderiam dizer Braunstein e Pépin (1999), esses horizontes extrapolaram, em
muito, os limites do corpo humano. Mas a força e o ímpeto para esse rompimento
enraizam-se no corpo. Por isso, as belas obras do pensamento começam e
terminam nos contornos corporais que, sabemos, constroem-se não apenas em
sua anatomia, mas nos modos como os percebemos. Entender esses modos é
o que podemos considerar como meio do estudo da história.

INÍCIO DO SAIBA MAIS: Estudar historicamente o corpo é uma postura que não
deixa intocada, nem mesmo, uma de nossas mais certas percepções: as
diferenças anatômicas que nos capacitam a afirmar a existências dos sexos.
Thomas Laqueur (2001) ao falar sobre a invenção do sexo, explica que até o
século XVIII não havia a concepção que afirmava haver uma diferença entre
homens e mulheres. Até então, assumia-se que as mulheres seriam aquelas que
teriam ficado no meio do caminho do processo de desenvolvimento que levava
ao desenvolvimento total do ser humano, materializado na conformação
anatômica masculina. Nesse ponto também, o desenvolvimento da anatomia, da
medicina e da obstetrícia foi fundamental para afirmar que homens e mulheres
são diferentes. Há que se reconhecer a positividade dessa constatação. Todavia,
não deve ser posto de lado que ela fortaleceu muitos discursos pseudo-
científicos a atribuir às mulheres uma “condição natural” ligada à maternidade.
Tudo isso endossa a constatação de que o entendimento que se tem sobre o
corpo é histórico e não pode ser reduzido ao aspecto científico. Afinal, nesse
aspecto também, penetram muitas compreensões culturais e políticas que
caracterizam uma determinada sociedade que vê e avalia o corpo humano a
partir dessas compreensões. Fonte: o autor, baseado em Laqueur (2001). FIM
DO SAIBA MAIS. FIM DO TÓPICO 2.

INÍCIO DO TÓPICO 3: EU TENHO UM CORPO OU SOU UM CORPO? OS


MUITOS EUS E OS MUITOS CORPOS QUE EXISTIRAM NA HISTÓRIA

Caro(a) aluno(a), nos itens anteriores foram abordados alguns pontos


para nos ajudar a entender diferentes modos com os quais o corpo foi visto,
avaliado e percebido em outros momentos da história. Tão acostumados que
estamos a lidar com o nosso corpo que assumi a necessidade de fazer um
esforço para tentar entender essa obviedade, deixando de enxergar nela algo
inevitável ou existente desde sempre.
O primeiro passo foi percebermos que nem mesmo a natureza corporal
está imune à passagem do tempo, afinal, até essa “natureza” é resultante de um
processo de adaptação e transformação disso que hoje somos em termos
corpóreos. O segundo passo, dado quase simultaneamente ao primeiro, foi
percebermos que, ao olharmos corpos, percebemos coisas que não se reduzem
ao dado visto, apesar de nele se apoiarem. Ou seja, o modo como avaliamos,
sentimos desejo ou repulsa por determinados corpos, objetos e atitudes, é
dependente dos valores sociais, culturais e políticos vigentes em um mesmo
momento e compartilhados por todos que dão vida ao convívio social, palco onde
a atenção ao corpo ocorre.
Além dessas constatações, foi abordada outra obviedade, evidenciando
que, historicamente, os limites assumidos como inquestionáveis podem ser
problematizados: ao estudarmos um pouco da sociedade grega, vimos que o
reconhecimento normalmente atribuído às conquistas culturais, artísticas e
intelectuais, não deve ser visto como o resultado de uma negação à dimensão
corpórea dos homens e das mulheres. O contrário é que foi defendido, com o
intuito de entender que a oposição entre as ideias e o corpo, entre o ideal e o
real, entre o abstrato e o concreto, longe de ser uma diminuição da relevância
do corpo em relação à mente, é resultante de uma complexa sinergia. Complexa,
pois ela é um dos pontos que ainda vêm exigindo grande atenção de muitos
cientistas e filósofos, embora cotidianamente a mencionada conexão não seja
assumida como existente ou importante.
Nesse item continuaremos a aprofundar nossa reflexão sobre o corpo na
história, pensando outra obviedade, buscando entendê-la em seu processo de
construção. Muito relacionada à separação entre o mundo das ideias e do corpo
é a separação entre o “eu” e o corpo. É esta separação que nos permite dizer
que temos um corpo, ou “eu gosto do meu corpo”. Mais uma vez vale a
advertência: tratam-se de usos cristalizados no cotidiano e com quais
resolvemos muitos problemas do dia a dia. O que se quer é entender isso que
tanto fazemos, ou essas expressões que tanto dizemos, pondo em destaque que
elas foram construídas em outros momentos históricos e que foram importantes
para a superação de muitas posturas filosóficas e culturais não mais condizentes
com o mundo que, então, nascia. Nos próximos parágrafos vamos ver como o
corpo passou a ser objeto de uma determinada forma de pensamento a partir
dos séculos XV e XVI, que marcam o início da idade moderna.
De algum modo, já comentamos sobre esse período da história quando
falamos do florescimento da anatomia. Com efeito, o fato de uma determinada
sociedade passar a enxergar como necessário e normal dissecar cadáveres é
um indício importante para nos ajudar a entender a separação entre o “eu”, a
subjetividade, a sensação de ser uma pessoa, de um lado; e a materialidade
corporal, do outro.
Quando estudamos história, acostumamo-nos a entender as sociedades
em constante processo de mudança e transformação. Mudanças que ocorrem
ora mais rapidamente, ora mais lentamente, mas perceptíveis em todas as
épocas e lugares. Entretanto, é tranquilamente aceito que o processo de
transição do feudalismo ao capitalismo aconteceu em um ritmo e uma
profundidade que fizeram muitos aspectos da vida societária tornarem-se muito
diferentes do que eram nos séculos precedentes.
Nos séculos XV, XVI e XVII surgiram novas maneiras de se entender
praticamente tudo. Passou-se a advogar uma nova forma de se pensar a
natureza, a política, a religião, a educação e, obviamente, a composição do
próprio homem. Na conjunção dessas novas posturas perante a vida que
marcaram o surgimento da modernidade, uma nova maneira de se entender o
corpo surgiu.
Vimos que na Grécia a tensão entre corpo e pensamento existia, mas o
mencionado tensionamento considerava uma certa estética da vida, em que
essa separação era dificilmente vivenciada. Estudamos que essa consideração
da sinergia das dimensões humanas não era tranquila ou inquestionável, mas
marcou aquele momento histórico.
De um modo diferente em muitos aspectos, alguma inseparabilidade entre
corpo e reflexão também pode ser vista no homem medieval. A importância do
corpo, visto como fonte dos pecados e a tentativa de diminuí-lo, reprimi-lo e
subjugá-lo à fé cristã, não deixava de lado a importância dessa dimensão
corpórea do homem nos ritos eclesiásticos. Afinal, assumia-se que era por meio
do corpo controlado que a fé poderia se manifestar e se ampliar, explicitando
uma assunção de que o cristão não se separava de seu corpo no seu longo e
difícil caminho que levava até a religação com Deus. Para o medieval religar-se
a Deus passava pelo esforço diário de desligar-se dos pecados causados pelas
vontades, pela tentação associada à carne.
Sublinho a grande diferença que existiu no modo como os gregos da
Antiguidade Clássica e os medievais experimentaram seus corpos. Mas esculpir
estátuas de belos corpos, admirar com olhar cheio de desejo um corpo nu ou
castigar o próprio corpo, ou queimar transgressores em espetáculos, sob um
determinado ponto de vista, é a mesma coisa: enxergar no corpo o locus de
realização daquilo que os outros e nós somos. Eles eram seus corpos. Os corpos
eram eles.
Com a crise dos valores típicos do mundo feudal, assistimos a
transformações sócio-históricas que levaram ao capitalismo. Forjou-se um outro
conjunto de posturas, de mentalidades e de visões de mundo que começaram
por construir nossa capacidade de nos pensarmos como diferentes, ou como
proprietários de um objeto: o corpo. Com essa capacidade, o corpo deixa de
caracterizar a particularidade de cada indivíduo, bem como sua vinculação à
humanidade, caracterização essa que passou a ser privilégio do pensamento e
da razão.
Vamos pensar e entender como essa separação se tornou possível, como
ela se relacionou com outros aspectos da vida sociocultural dos séculos XVI e
XVII, bem como o impacto que ela gerou nas questões culturais e educacionais
tanto interessam futuros professores de educação física.
Um elemento importante para nos ajudar a entender as transformações
que nos interessam nesse momento foi pautado nas críticas à autoridade da
Igreja, sobretudo quando esta tentava explicar as grandes questões atinentes à
natureza e ao homem e sua relação com Deus. Essa autoridade, que estava
sendo cada vez mais criticada, fazia suas afirmações, defendia suas verdades a
partir de uma determinada tradição, tomada como inquestionável, como não
suscetível de crítica. Isso, evidentemente, inviabilizava qualquer possibilidade de
se construir explicações diferentes, mais satisfatórias a quem não se contentava
com a maneira de se explicar a natureza e o lugar do homem nela.
No interior da afirmação dessa antiga autoridade, foi se fortalecendo a
defesa de outros modos de se conhecer e pensar as problemáticas a serem
conhecidas. Essa novidade apoiava-se na crença de que as afirmações eram
feitas por meio de uma autoridade, carência de evidências empíricas
observáveis. Além disso, passou-se a advogar que o conhecimento não deveria
se adequar a qualquer tipo de tradição, mas que deveria espelhar a natureza,
independentemente das preferências de quem elaborava as explicações. De
fato, uma das principais críticas feitas ao modo de conhecer que existiu antes do
advento da ciência moderna foi sua parcialidade, sua incapacidade de gerar
afirmações inquestionáveis, exatas e produtoras de consequências benéficas
justamente pela imprecisão com que eram feitas.
Perceba o nascimento da ciência, entendida como uma forma de
conhecimento que produziu numerosas consequências, justamente pelo modo
como passou a ser produzida: baseada na experimentação e no método.
Fundamentais nessa construção foram os pensamentos de Francis Bacon
(1984) e René Descartes (1979). Na construção da ciência moderna, foi
necessário fazer-se frente àqueles que diziam ser o suficiente um bom
argumento. Bacon (1984) contrapunha essa posição, afirmando:

O intelecto, deixado a si mesmo, na mente sóbria, paciente e grave,


sobretudo se não está impedida pelas doutrinas recebidas, tenta algo
na outra via, na verdadeira, mas com escasso proveito. Porque o
intelecto não regulado e sem apoio é irregular e de todo inábil para
superar a obscuridade das coisas (BACON, 1984 [1620], p. 17).

Essa desconfiança do intelecto humano levou à busca de instrumentos


que potencializassem a capacidade humana de ver e entender aquilo que queria.
A citação seguinte é bastante conhecida no campo da filosofia, por ilustrar a
forma como o caminho que levou ao método científico foi se pavimentando:

E, se nos acusam de arrogantes, cumpre-nos observar que isso seria


verdadeiro de alguém que pretendesse traçar uma linha reta ou um
círculo, melhor que algum outro, servindo-se apenas da segurança das
mãos e do bom golpe de vista. No caso, haveria uma comparação de
capacidade. Mas se alguém afirma poder traçar uma linha mais reta e
um círculo mais perfeito servindo-se da régua e do compasso, em
comparação a alguém que faça uso apenas das mãos e da vista, esse
com certeza não seria um jactancioso. O que ora dizemos não se refere
somente aos nossos primeiros esforços e tentativas, mas também aos
dos que se seguiram com os mesmos propósitos. Pois o nosso método
de descoberta das ciências quase que iguala os engenhos e não deixa
muita margem à excelência individual, pois tudo submete a regras
rígidas e demonstrações (BACON, 1984 [1620], p. 83).

É possível notar que o traço distintivo da ciência como forma de


conhecimento era o fato de ela ser produzida por meio de instrumentos, por meio
de métodos que diminuíam as influências das fragilidades humanas que
impediam a elaboração de conclusões, “claras e distintas”, como defendia
Descartes (1979). Este, aliás, redigiu o “Discurso do Método”, para demonstrar
que havia encontrado um procedimento que o dava a segurança “de usar em
tudo minha razão, se não perfeitamente, ao menos o melhor que eu pudesse…”
(DESCARTES, 1979 [1637], p. 40). Nesse raciocínio, a perfeição no uso da
razão não existia, pois, como afirma o próprio Descartes em outro trabalho de
grande importância na história da filosofia ocidental, a razão existe unida a um
corpo que não deixa de atrapalhá-la no momento em que ela realiza operações
para descobrir o que deseja. Por esse motivo, o nascimento do método científico
colocou o corpo em um lugar de bastante suspeição, conforme nos ajudar a
pensar Valter Bracht:

Nas teorias do conhecimento da modernidade, que têm sua expressão


máxima no chamado método científico (a ciência moderna), o corpo ou
a dimensão corpórea do homem aparece como um elemento
perturbador que precisa ser controlado pelo estabelecimento de um
procedimento rigoroso (BRACHT, 1999, p. 71).

Para que a reflexão evidencie a forma como um novo entendimento se


faz sobre nosso corpo, note que está em jogo a capacidade de bem
conhecermos as coisas. Esse esforço não é novidade no século XVI, mas o
modo como o problema fora resolvido é o que nos interessa. Descartes (1979),
nas “Meditações”, reconhece que o problema tocava em uma tradicional maneira
de se entender o que são os homens e o que eles poderiam conhecer: “é quase
impossível desfazer-se tão prontamente de uma antiga opinião” (DESCARTES,
1979 [1641], p. 98). Mas qual seria a “nova opinião” a ser abraçada por
Descartes?

[...] só concebemos os corpos pela faculdade de entender em nós


existente e não pela imaginação e nem pelos sentidos, e que não os
conhecemos de os ver ou de tocá-los, mas somente por concebê-los
pelo pensamento, reconheço que nada há mais fácil de conhecer do
que meu espírito (DESCARTES, 1979 [1641], p. 98).

Para o filósofo, é essa capacidade racional que diferencia o homem de


qualquer outra coisa existente, além de ser ela a portadora daquilo que me
diferencia dos outros homens, de um modo significativo. Afinal, quando olho para
as outras pessoas, percebo diferenças entre nossos corpos, mas esses, sem a
faculdade de entender, são “res extensa” (DESCARTES, 1979), são objetos,
como são as pedras, as árvores e os outros animais. Esse modo de entender a
presença corporal do homem levará à concepção do “corpo-máquina” que será
desenvolvida nos séculos posteriores, mas encontra em Descartes e no
processo de florescimento da ciência moderna seu momento fundador.
Temos, assim, uma sociedade que nascia, que propunha uma nova forma
de conhecimento que pretende instrumentalizar o entendimento humano com um
método que diminui a influência do “corpo-máquina” no momento em que faço
aquilo que me distingue como ser humano: pensar. Compreende-se por esse
raciocínio a razão da dissecação anatômica por nós abordada há algumas
páginas, expandir-se nesse mesmo momento: o cadáver, não mais possuidor
daquilo que nos faz humanos, o entendimento, a razão, pode ser dissecado,
fracionado, aberto, exposto, tocado, sem qualquer constrangimento. Aquilo fez
parte de uma pessoa, e, em cima da bancada para ser estudado, tem o mesmo
estatuto de uma planta ou de qualquer outro objeto a ser conhecido pela
experimentação científica.
Os impactos disso para a ciência foram sabidamente gigantescos. O
mesmo ocorreu para as práticas educacionais: falar em uma “educação física”,
ao lado de uma “educação intelectual” tornou-se algo mais fácil. Além disso,
conforme o conhecimento anatômico se expandia, a parte corporal da educação
foi recebendo defensores na mesma medida em que se entendeu de forma
científica os diferentes processos existentes e necessários para a manutenção
da vida. Manipular essas variáveis, seja por meio de corridas ou por meio de
cirurgias, tornou-se possível em um momento em que as sociedades foram
assumindo como importante que os indivíduos, entre outras coisas, deveriam
cuidar de seus corpos. E essa decisão foi, racionalmente, tomada por um “novo
eu”, a partir de dados científicos que foram se acumulando. A forma como nós
percebemos, donos de nossos corpos, foi primordial para que tenhamos nas
escolas um momento dedicado à “educação física”.
Essa percepção dualista sobre o homem, desde o século XVII tem sido
objeto de numerosos e intensos debates entre filósofos e cientistas. A posição
cartesiana de que nosso corpo é apenas uma máquina, e como tal deve ser
conhecida, recebeu muitas críticas e ainda tem sido refutada de muitas formas.
De qualquer modo, observa-se que essa concepção do “corpo-máquina” e de
que podemos conhecer apenas seu “funcionamento” deu ao campo da educação
física muitas de suas características, sobretudo na construção das matrizes
disciplinares preferencialmente estudadas nos variados processos de formação.
Por esse motivo, focalizar o corpo sob um ponto de vista histórico proporciona
condições para entender muito daquilo que você encontrará no curso e no
exercício da profissão. FIM DO TÓPICO 3.

INÍCIO DO TÓPICO 4: OS ÓDIOS E OS AMORES DEVOTADOS AO CORPO


NA HISTÓRIA

Ao desnaturalizar a forma como concebemos o corpo humano,


percebemos muitas questões e problemas, além dos meramente biológicos,
anatômicos e fisiológicos. Conforme ficou claro nos itens anteriores, embora
esses problemas atinentes à natureza do corpo já ofereçam desafios complexos
a todos aqueles que querem estudá-lo, essa complexidade não nos deve levar
a esquecer que, a tal materialidade formada por células e tecidos, agregam-se
modos muito variados de entendê-la. Entender esses modos é um dos objetivos
mais interessantes a serem alcançados por uma reflexão que tematize a história
da educação física.
A necessidade de fazermos esse esforço analítico para vermos no corpo
coisas que extrapolem sua anatomia já é compreendida por você. Afinal, desde
o florescimento da ciência moderna e seus princípios metodológicos pautados
na experimentação e no reconhecimento da diferença entre o pensamento e a
extensão, entre a razão e o corpo, a forma preponderante de conhecermos o
corpo é a avaliação cuidadosa dessa “máquina”. Como toda “máquina”, o corpo
deve ser desmontado em suas menores partes, as quais devem ser vistas,
medidas, isoladas em seu funcionamento. Enfim, a ciência anatômica
proporcionou uma fonte muito rica de conhecimento que, sabidamente, levou a
muitas possibilidades médicas impensáveis em sociedades nas quais o corpo e
a razão eram inseparáveis. Por isso, ao analisar a matriz curricular de seu curso,
a importante ênfase biologizante dos cursos de educação será compreendida
por você enquanto uma construção histórica que traz para os dias de hoje o
processo de construção da própria ciência e seu olhar matematizante ao corpo
e à educação que dele se ocupa.
Se a alternância entre momentos históricos nos quais o “eu” e o corpo não
se diferenciavam, com momentos em que se pode afirmar que “tenho um corpo”,
trouxe consequências científicas e filosóficas de primeira ordem, há uma outra
maneira de olharmos o corpo para além da sua anatomia, que também foi e
ainda é muito relevante, em termos históricos. Seja como elemento constituinte
da humanidade ou como objeto a ser conhecido pela razão que escrutina um
objeto, em diferentes sociedades, de diferentes épocas, ora alternaram-se, ora
combinaram-se ódios e amores dispensados ao corpo. Por ódios e amores,
refiro-me a variadas maneiras de enxergar em nossa materialidade corporal ou
algo a ser cuidado ou algo a ser desprezado.
Antes de analisarmos a questão historicamente, sublinho a necessidade
de pensarmos na combinação entre diferentes formas de valorizar o corpo na
história. O modo mais usual é entendermos sentimentos opostos sobre o corpo
como pertencentes a momentos diferentes. Nesse raciocínio, a uma época que
tivesse devotado grande devoção ao corpo, sucederia outra em que o corpo teria
sido, apenas, odiado ou desqualificado. As análises que fizemos nos itens
anteriores, aliás, de alguma maneira, deixam entrever a necessidade de
evitarmos tal postura. A Grécia Clássica, por exemplo, é vista por alguns
estudiosos como o momento em que a razão filosófica teria feito sua aparição
pela anulação da dimensão corpórea. Para outros, teria sido aquela sociedade
o tempo que possuiu um horizonte ainda não alcançado no que diz respeito à
educação física.
Essa ambiguidade pode ser vista, também, em um período da história
normalmente associado à depreciação corporal: a Idade Média. Le Goff e Truong
(2010), ao estudarem o corpo nesse momento da história da humanidade,
fazem-nos perceber a maneira contraditória com o que o corpo era percebido. E
isso sem esquecermos que estamos falando de um momento em que as
questões religiosas tinham grande relevância na organização da sociedade. No
seio dessas questões, abordadas a partir de uma perspectiva cristã-católica, o
corpo era tomado como fonte dos pecados, contra os quais deveria lutar o devoto
em seu caminho rumo à correta adoração de seu Deus. Todavia, mostram os
historiadores, não podemos tomar os discursos religiosos como as únicas fontes
de compreensão de um determinado “ódio” ao corpo. Eles nos mostram que
durante toda a Idade Média, ao lado de discursos e práticas que denegriam a
nossa “carne”, havia uma vida cotidiana em que essa mesma “carne” era
desfrutada pelos cristãos de um modo mais intenso do que aquele que
presumiríamos ser, se nos ativéssemos apenas aos pensamentos que atribuíam
energias pecaminosas às vontades que surgem do corpo.
O mesmo pode ser dito em relação ao avanço da ciência moderna e dos
desdobramentos da ciência anatômica. A atenção dedicada ao cadáver,
dissecado zelosa e habilmente pelo anatomista, é um indicativo de uma
diminuição ou de uma elevação do lugar do corpo na vida social? Tanto para os
gregos quando para os modernos, a resposta é ambígua. Sobre a problemática
do corpo no início da época moderna, Herold Junior (2004) afirma:

Momento de "liberação" ou "valorização"! Essa assertiva [...] ser vista


com suspeita, permitindo verificar que, nos albores da idade moderna,
o corpo foi alvo, também, de uma “vigilância", de um
"esquadrinhamento", de um "controle" não vivenciados pelos medievos
(HEROLD JUNIOR, 2004, p. 222).

A ambiguidade em relação ao corpo que leva a avaliações e


considerações contrastantes a ele é uma questão que tem ocupado muitos
filósofos há um bom tempo. Se tenho me esforçado em demonstrar que na
história do pensamento filosófico o lugar do corpo é ambíguo, não podemos
esquecer que contra ele levantaram-se muitas vozes, ocasionando em muitas
suspeitas contra o corpo. Emblemático, nesse sentido, foi o que discutimos sobre
o desenvolvimento da ciência moderna. Bracht (1999) nos ajudou a perceber
que, ênfase da nascente ciência no concreto, no mensurável, ela se construiu
com uma desconfiança muito grande sobre aquilo que percebemos pelo “nosso
corpo”.
Essa percepção, por sua vez, levou a numerosas e importantes defesas
sobre o papel do corpo na construção de todas as nossas conquistas culturais,
intelectuais e artísticas. Nesse sentido, alguns autores e ideias elaboradas no
século XIX são importantes para pensarmos na existência de uma reflexão que
dê ao corpo uma importância diferente daquela que é dada pelo olhar anatômico.

Início da descrição da imagem:


Legenda: sem legenda

Descrição: A imagem mostra uma foto colorida em tons avermelhados e roxo


de uma mulher realizando alongamentos ao ar livre à beira de um rio, ela está
com o pé direito apoiado no chão, sua perna direita está estendida, e a perna
esquerda semiflexionada para cima, a fronte do tronco está paralela ao chão,
seu braço esquerdo está estendido à frente e o direito estendido para cima e
atrás, com a mão segurando o pé esquerdo.

Fonte: sem fonte

Fim da descrição da imagem.

Um dos pensadores mais controversos da história filosófica foi Karl Marx.


Entre muitas questões tocadas por sua reflexão, está a valorizada feita por Marx
no que tange ao trabalho. Para ele, era essa “atividade”, esse “fazer”, o ponto
mais importante para entendermos muitos impasses filosóficos que há séculos
incomodavam os pensadores e políticos. Ao explicar a sociedade capitalista pela
luta de classes que se desenrola no campo produtivo da riqueza necessária à
sobrevivência da sociedade, Marx defende que é o trabalho o ato caracterizador
da humanidade do homem. Desse ponto de vista, filosofia, política, artes,
educação, momentos dedicados ao “mundo das ideias”, são práticas sociais
dependentes da inescapável necessidade de atender ao que ele chama de
“primeiro ato histórico”.

Para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia,


vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a
reprodução dos meios para a satisfação dessas necessidades, a
produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato
histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje,
assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada
hora, simplesmente para manter os homens vivos (MARX e ENGELS,
2007, p, 33).

Note que há nessa reflexão construída por Marx um componente muito


próximo e consequente do desenvolvimento científico moderno. A saber, uma
tentativa de dar aos fatos, e não às ideias, ou ao que pensamos sobre os fatos,
elementos primordiais para entendermos o mundo social construído,
socialmente, por homens e mulheres. E nesse sentido, a atenção que hoje
damos ao corpo é uma resultante dessa tentativa. É o que tento deixar claro,
quando afirmo que:

Os autores do Manifesto do Partido Comunista estão mostrando que a


prática, o concreto, o corporal, a reprodução da existência, enfim, todas
as coisas vistas como baixas ou irrelevantes para o mundo “celestial”
da reflexão filosófica e do pensamento em geral, devem ser
consideradas para explicar variadas dimensões da vida social. Sem
esquecer diferenças metodológicas e temáticas existentes, não
haveria semelhanças de grande calibre entre essas intenções do
marxismo e o esforço dos estudiosos do corpo em mostrar sua
importância para vida hodierna e histórica das diferentes sociedades?
(HEROLD JUNIOR, 2009, p. 219).

Outra ponderação filosófica importante para pensarmos nos lugares


ocupados pelo corpo humano na história encontramos em Friedrich Nietzsche.
Elaborando um dos pensamentos mais inquietantes da filosofia ocidental, esse
filósofo colocou o corpo em um lugar central no conjunto de suas ideias. Afinal,
ao fazer a crítica a todas as pretensões metafísicas que passaram a existir desde
a antiguidade grega, Nietzsche (2012) viu no conjunto dessas pretensões o ódio
a que tenho me referido ao falar sobre o corpo na história. Em um de seus livros
mais lidos, “Assim falava Zaratustra”, há um capítulo, cujo título é “Dos que
desprezam o corpo”. Nietzsche tece suas críticas à filosofia, evidenciando a
importância do corpo, da seguinte forma:

Aos que desprezam o corpo quero dizer a minha opinião. O que devem
fazer não é mudar de preceito, mas simplesmente despedirem-se do
seu próprio corpo, e por conseguinte, ficarem mudos. “Eu sou corpo e
alma” - assim fala a criança. - E por que se não há de falar como as
crianças? Mas o que está desperto e atento diz: - “Tudo é corpo e nada
mais; a alma é apenas nome de qualquer coisa do corpo”. O corpo é
uma razão em ponto grande, uma multiplicidade com um só sentido,
uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor (NIETZSCHE, 2012,
p. 43).
Trata-se de uma afirmação contundente que pretende ter o efeito de
colocar em destaque algo visto como, habitualmente, posto em segundo ou até
terceiro lugar. Entretanto, essa luta entre posicionar algo em posição primária ou
secundária, na pior das hipóteses, é um endosso daquilo que se procura
esconder. Por essa razão, em meados do século XX, Adorno e Horkheimer
(1985, p. 215) afirmaram: “Sob a história conhecida da Europa corre,
subterrânea, uma outra história”. Eles diagnosticam na história da civilização o
lugar dos “instintos e paixões humanas” que manifesta-se no “interesse pelo
corpo”, que eles caracterizam pela díade “amor-ódio”. Foi essa caracterização
que levou à estrutura da reflexão deste item. Afinal, ela tem uma importância
inegável na hora de entendermos o corpo tanto em sua história quanto na
atualidade na qual vivemos e pensamos.
Os dois filósofos alemães viveram em uma sociedade em que o corpo já
contava com uma gama de práticas e olhares que assumiram como necessários
os cuidados que levaram o século XX a vivenciar uma “revolução somática”
(JENSEN, 2013). Ou seja, Adorno e Horkheimer conseguiram captar que na
história os diferentes modos com que se pensa e se percebe o corpo são
ambíguos. Essa ambiguidade é também perceptível em contextos muito
preocupados com o corpo e suas práticas, tal como é nosso próprio contexto.
Em ponderações que nos ajudam a pensar nossas atuais dificuldades de
entendermos o lugar do corpo em diferentes esferas sociais, Adorno e
Horkheimer (1985, p. 217) reconhecem: “Na civilização ocidental e
provavelmente em toda a civilização, o corpo é tabu, objeto de atração e
repulsão”. Nessa reflexão, o já mencionado “interesse pelo corpo” é resultado do
“auto-rebaixamento do homem ao corpus”, ao cadáver, tornando-o “objeto de
dominação, de matéria bruta” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 217), algo
que já vimos como paralelo à ampliação da capacidade científica de entender o
corpo.
A sociedade na qual vivemos ainda é passível de ser pensada por essa
tensão entre amor e ódio, no que diz respeito ao corpo. Conseguiríamos, depois
dessas análises, afirmar que a mencionada “revolução somática” na qual
passamos a viver no século XX é uma expressão de interesse pelo corpo,
finalmente liberada a atenção sempre dada a ele pelos “deprezadores do corpo”
criticados por Nietzsche. Por outro lado, o cultivo do corpo, tão alardeado em
nosso cotidiano, já não seria um indício de que passamos a vê-lo como relevante
para a construção de uma vida com mais significado? Reconhecer essa
ambiguidade, na ausência de respostas contundentes para ela, já é um avanço.
Ao lidar com tal ambiguidade, conhecer um pouco da história relacionada ao
corpo é um dos procedimentos que nos possibilitam perspectivar uma lida mais
clara com os dilemas que emanam do fato de, ao mesmo tempo, termos e
sermos corpo. FIM DO TÓPICO 4.

INÍCIO DO TÓPICO 5: PRAZERES E DEVERES NO CUIDADO COM O CORPO

Depreende-se da leitura dos quatro tópicos anteriores a importância que


o corpo possuiu e possui em termos individuais e sociais. Mesmo que em alguns
momentos o corpo seja avaliado negativamente, não se colocou em questão a
necessidade de nos ocuparmos dele. Aliás, foi um dos pontos que recebeu maior
atenção das reflexões anteriores o fato de discursos desqualificadores em
relação ao corpo não significarem que ele era irrelevante para a sociedade onde
esses discursos foram produzidos.
A julgar pelo mundo no qual vivemos, parece ser muito distante a
existência de pensamentos e práticas que busquem diminuir o valor do corpo
naquilo que somos. A sociedade contemporânea é reconhecida por muitos
analistas como uma época que dá ao corpo, à sua saúde e à sua aparência uma
grande atenção. Le Breton (2003b) reconhece que, na atualidade, o corpo se
transformou naquilo que eram as ideias, as posições políticas e filosóficas:
reconhece-se, mais facilmente, a pessoa como portadora e veiculadora de
valores e signos sociais muito mais por sua “composição corporal” e menos
sobre o que ela fala de si mesma. Se você lembrar que a ciência moderna
caracterizou-se por separar o homem de seu corpo, é inevitável a constatação
de estarmos, em muitos aspectos, corrigindo o “erro de Descartes” (DAMÁSIO,
2012).
Com efeito, no mundo atual, não apenas os remédios, os cremes, as
vitaminas e outros artefatos farmacológicos ou médicos estão à disposição das
pessoas. Há todo um conjunto de práticas terapêuticas, massagens, meditações,
práticas corporais alternativas que buscam realizar, plenamente, todas as
possibilidades corpóreas, alcançando algo que Adorno e Horkheimer (1985, p.
218) afirmavam não ser possível: “Não se pode mais reconverter o corpo físico
(Körper) no corpo vivo (Leib)”. Os dois filósofos alemães, que pensavam na
sociedade nas décadas de 1940 e 1950, já adiantam um impasse que nos ajuda
a considerar a presença e a importância do corpo no mundo atual. Ao
verificarem, acertadamente, o peso da ciência na forma como o corpo é posto
em uma espécie de pedestal nas relações cotidianas, mais uma vez a tensão
amor-ódio em relação ao corpo é perceptível e definida por eles por uma ânsia
mensuradora, que, seguindo os passos da ciência moderna, quantifica a
existência e o modo como experimentamos nosso corpo.

Ela [a busca pela saúde] transformou o passeio em movimento e os


alimentos em calorias, de maneira análoga à significação da floresta
viva na língua inglesa e francesa pelo mesmo nome que significa
também ‘madeira’. Com as taxas de mortalidade, a sociedade degrada
a vida a um processo químico (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p.
219).

Perceba que nessas críticas, ao modo como o corpo vinha sendo


valorizado, está explícita a constatação de que a importância dada ao corpo não
significa, necessariamente, o alcance de um estado de superação das históricas
subjugações as quais foram postas o corpo, seus movimentos e suas sensações.
Por outro lado, a adesão das pessoas a esses cuidados evidenciam que essas
observações críticas, feitas também por outros analistas depois de Adorno e
Horkheimer (1985), não têm impedido que se busquem os prazeres oriundos dos
cuidados ao corpo. Mesmo que eles se tornem uma espécie de dever, uma
obrigação, gerando, por sua vez, muita ansiedade e frustração.
Uma sensação muito comum quando nos deparamos com algumas das
dificuldades que essa centralidade do corpo proporciona é nos esforçarmos para
verificar o processo de construção do conjunto de valores, conhecimentos e
práticas associadas ao cuidado corporal. Do que vimos até agora, pode-se inferir
a facilidade com que encontraríamos outras épocas, bastante recuadas, homens
e mulheres buscando meios para adequar seus corpos aos padrões de beleza
reinantes no mundo em que viviam.
No item anterior, fiz menção ao que Jensen (2013) chama de “revolução
somática”. Ele estudou, especificamente, a sociedade alemã nas décadas de
1920 e 1930 para perceber que, em muitas dimensões sociais daquela
sociedade, a valorização do corpo se devia não apenas à expansão de práticas
corporais, praticantes e organizações burocráticas que se organizavam, como
federações e assemelhados. Ele notou, também, o aumento da quantidade de
pessoas interessadas em assistir aos variados eventos desportivos que
passaram a acontecer. Outra conclusão muito interessante do livro de Jensen
(2013) foi notar que que a expansão de variadas modalidades desportivas e do
público consumidor dessas práticas foi possível, ao mesmo tempo em que
possibilitou uma nova forma de se relacionar com o corpo. Por isso ele enxerga
uma revolução somática, na qual ver corpos bonitos, atléticos, bronzeados, do
mesmo modo que ambicionar ter corpo com essas características impulsionou a
expansão de um estilo de vida ativo, ligado ao cultivo de valências físicas e da
aparência corporal.
Vale notar um impacto muito relevante proporcionado pela expansão
desse olhar atento ao corpo: ele foi absorvido tanto por homens quando por
mulheres. Jensen (2013) nos explica que, na sociedade alemã, essa ascensão
do corpo a um lugar de destaque subverteu alguns papéis tradicionalmente
atribuídos aos homens e às mulheres. Aos homens, que antes se interessavam
apenas pelo cultivo da força e da resistência, emblematizadas na ética guerreira,
agregou-se a preocupação com a aparência corporal, passível de ser admirada
pela harmonia, pelos músculos trabalhados, sem menção a qualquer utilidade
prática para a força, conquistada em horas dedicadas ao treinamento. Se a
ligação masculina com a força é uma continuidade do que já existia do ponto de
vista da histórica construção de gênero, perceba que a inquietação estética, até
então atribuída às mulheres, passou a fazer parte do horizonte cotidiano dos
homens.
Algo semelhante ocorre com as mulheres. Conforme uma nova
sensibilidade corporal ia sendo construída, aumentou o número de mulheres
realizando práticas corporais anteriormente assumidas apenas por homens.
Consequentemente, a imagem de uma mulher mais musculosa, mais bronzeada,
ativa e preocupada também com sua performance foi, paulatinamente, tornando-
se algo menos raro de ser visto. É importante não perdermos de vista que,
nessas transformações que homens e mulheres iam experimentando e
realizando, houve discursos que buscavam normatizar o que seria o ideal
corporal para homens e mulheres. Essas normativas mantiveram sua
importância, mas quando o assunto foi o usufruto que pode ser proporcionado
pelo corpo, esses discursos reguladores tiveram seus poderes limitados e as
pessoas encontravam maneiras de apropriarem-se de seus corpos com o fito de
construir sua identidade. E é essa a grande questão que vai sendo colocada ao
longo do século XX: a identidade das pessoas vai dependendo, cada vez mais,
daquilo que sentiam e faziam com seus corpos.
O mesmo processo de valorização do corpo e dos cuidados associados a
ele também podem ser visto no Brasil, desde as primeiras décadas do século
XX. Sevcenko (2012, p. 576), ao estudar desdobramentos históricos observáveis
no Rio de Janeiro nos anos de 1920, observa a existência de uma “nova ética do
corpo em ação”. Chamou a atenção do historiador que uma certa propensão à
atividade e à exibição do corpo tivessem passado a compor traços mais
característicos da sociedade carioca. Entre outras razões, essa visibilidade do
corpo o levou a ver nos anos em questão a existência de uma “capital radiante”,
em que se inaugurava uma nova forma de vida.
O cuidado com corpo e a concretização dessa “nova ética” corporal foi
muito estimulada pelas mudanças no vestuário. Soares (2011) diagnostica o
nascimento de uma nova percepção corporal pelo modo com que as pessoas
passaram a valorizar determinadas roupas, em detrimento de outras. Importante
nesse raciocínio foi a primazia do conforto, elegância e eficiência, pontos que
foram muito conectados com o nascimento de um estilo desportivo de ser, com
roupas, práticas corporais e olhares interessados para tudo isso. Vivia-se anos:

[...] bastante férteis na composição de uma nova sensibilidade urbana


acolhedora de uma diversidade e intensidade de práticas corporais que
afirmam e confirmam outros comportamentos, outros gestos, em outras
palavras, novas maneiras de viver (SOARES, 2011, p. 3).

Nessa fertilidade de cuidados sobre o corpo e o que nele tocava, o


raciocínio médico-higiênico foi importante. Fundamental na realização desse
raciocínio foi a justificativa de que as roupas deveriam ser mais leves, deixar
mais partes do corpo expostas ao sol, tudo com o objetivo de aproximá-lo de
uma natureza, afastada, também, pelo peso dos antigos vestuários. Nesse
sentido, é importante reconhecer a existência de uma “educação do corpo e dos
comportamentos associado ao modo de vestir-se” (SOARES, 2011, p. 22). A
defesa do conforto, do bem-estar e da leveza ao se vestir fortalecia, estimulada
pela necessidade de dar liberdade aos movimentos, deixar a pele respirar. Em
suma, perceba que, no conjunto desses posicionamentos, os cuidados do corpo
avolumavam-se, impactando desde visões de mundo até nossos pequenos
gestos do dia a dia, como se vestir.
Vale a pena registrar que, paralelamente ao surgimento dessas
inquietações concernentes à roupa, houve toda um defesa da importância da
água, do sol, da natureza, enfim, assumida como fonte de saúde e bem estar
corporais. É das primeiras décadas do século XX o desenvolvimento do hábito
de ir à praia, banhar-se no sol, curtir a areia, ou seja, essa ideia de comunhão
com uma determinada paisagem cultural, algo ainda hoje muito defendido e
percebido por muitos de nós, que dava seus primeiros sinais. O fortalecimento
dessas práticas, associadas a novos hábitos vestimentares, forjou no início do
século XX a mencionada revolução somática (JENSEN, 2013) também na
sociedade brasileira.
Isso podemos constatar na forma como diversas práticas de
embelezamento foram adotadas por mulheres, mas também por homens, desde
esse período. Sant´Anna (2014) estudou a história da beleza no Brasil. Trata-se
de uma inquietação existente em outras sociedade e outras épocas, mas que
ganhou intensidade incomparável no momento que estamos estudando,
justamente pela forma como o corpo passou a ser visto, socialmente.
Emblemática dessa nova visão é a relevância que passou a ter o
“embelezamento”, como nos explica autora:

[...] a transformação do embelezamento em gênero de primeira


necessidade marcou profundamente o século. Foi quando ornamentar-
se deixou de ser um gesto moralmente suspeito ou típico de uma
minoria mundana para se transformar em direito de pobres e ricos,
jovens e idosos. Misturado ao milenar sonho de rejuvenescer, o
embelezamento virou uma prova de amor por si mesmo e pela vida -
não somente um dever, mas um merecido prazer; não simplesmente
um truque para ser amado, mas uma técnica para se sentir adequado,
limpo e decente. E, ainda, a história do embelezamento habita zonas
do imaginário ligadas à minar vontade de se livrar da doença e escapar
da morte. Trata-se, portanto, de um tema revelador das maneiras de
lidar com coisas consideradas tão supérfluas quanto essenciais, tanto
belas, quanto feias (SANT’ANNA, 2014, p. 16).

É imperativo atentar-se para o peso de algumas palavras na longa citação


anterior. O que passou a ser o corpo a partir do século XX? Um “direito”, um
“amor por si mesmo”, um “dever”, um “merecido prazer”. “Supérfluo”? Sim. Mas,
“essencial”, também. É difícil deixar de enxergar nessa história do corpo a
construção de um longo caminho que chega até nós, até você, e à nossa decisão
de estudarmos, mais detalhadamente, os assuntos que nos interessam em um
curso de educação física.

INÍCIO DO REFLITA: Para os senhores da Grécia e do feudalismo, a relação


com o corpo ainda era determinada pela habilidade e destreza pessoal como
condição da dominação. O cuidado com o corpo tinha, ingenuamente, uma
finalidade social. O kalos kagathos (o belo e bom) só em parte era uma
aparência. Fonte: Theodor Adorno e Max Horkheimer. FIM DO REFLITA.

INÍCIO DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS: Prezado(a) aluno(a), o corpo é um


dos principais objetos de análise quando pensamos em muitos aspectos da
vida cultural, social e política.

A intimidade com que nos relacionamos com o nosso próprio corpo e com
o corpo dos outros coloca alguns desafios quando ambicionamos pensar esse
conjunto de relações. Como pensar algo tão pessoal, tão íntimo, de um modo a
conseguir estabelecer um diálogo interessante e produtor de novos
entendimentos partilhados com vistas a esclarecer assuntos e resolver
problemas que afligem uma época? Dito de outro modo, como é possível uma
história do corpo? Esse desafio não tem impedido muitos historiadores de se
ocuparem da questão. O empenho desses historiadores, como você já sabe,
sustenta-se no fato de o corpo ser uma questão de grande importância nos dias
de hoje, gerando o ímpeto de pensá-la em outras épocas.
Realizar esse ímpeto, ir àqueles que muito escreveram sobre muitas
coisas e perceber que o corpo era uma de suas preocupações a ladear outras,
é um ato muito interessante para percebermos a historicidade do corpo,
superando a recorrente visão que o associa a uma imutável natureza. Esta
unidade pretende ter evidenciado alguns resultados que podemos extrair de tal
reflexão. As diferentes maneiras de valorizarmos ou odiarmos o corpo, pensá-lo
como inextricavelmente ligado às conquistas espirituais da humanidade, ou
posto como obstáculo a essas conquistas, partícipe das variadas formas com
que homens e mulheres entenderam-se a si mesmo em outras sociedades,
geradora de práticas voltadas ao seu cuidado, enfim, estudar o corpo sob um
ponto de vista histórico é um esforço relevante, sobretudo para quem pretende
atuar profissionalmente com aspectos pedagógicos ligados às igualmente
numerosas práticas voltadas a esses cuidados. É para algumas dessas práticas
que voltaremos nossa atenção na próxima unidade. FIM DAS
CONSIDERAÇÕES FINAIS.

INÍCIO DAS ATIVIDADES DE ESTUDO

1) Relacione o desenvolvimento da ciência moderna com o modo com que


o corpo passou a ser visto.

2) Ao analisar a sociedade grega clássica, como podemos pensar de modo


relacional o nascimento da filosofia e a história do corpo?

3) Qual é o incremento intelectual proporcionado pelos estudos históricos


sobre o corpo?

4) De que modo o “interesse pelo corpo” que vemos na história é marcado


pela tensão entre amor e ódio, como dizem Adorno e Horkheimer (1985)?

5) Como podemos enxergar a tensão anteriormente mencionada nos


variados procedimentos voltados ao cuidado com o corpo?

FIM DAS ATIVIDADES DE ESTUDO.

INÍCIO DA LEITURA COMPLEMENTAR: A HISTÓRIA E OS MODELOS DE


CORPO
1. As três faces do corpo: Inúmeras são as maneiras de se referir ao corpo e
de habitá-Io; inúmeras são as maneiras de representá-Io e de lhe dar forma; é a
dispersão desses indícios possíveis que impressiona inicialmente. Um olhar
mais profundo revela como a diversidade dos territórios do corpo é abundante
no seio de cada cultura e de cada época: a competência do ortopedista não é
comparável à do artista, do mesmo modo que a prática do esportista não é a do
mímico ou do ator. Mecânica, energia, expressão e sensibilidade se repartem
numa multiplicidade de corpos, cada qual em sua singularidade, com seus
saberes, seus imaginários, seus domínios, até mesmo seus objetos. É
necessário medir essa abundância de referências corporais, essa variedade que
proíbe agrupá-Ias em uma mesma disciplina científica ou mesmo, dar-Ihes uma
coerência e uma unidade a priori. Podem-se distinguir pelo menos três grandes
faces da existência corporal: todas possuem seus próprios investimentos e
singularidades, e, é claro, sua própria história. A primeira é a do princípio da
eficácia: recursos técnicos que o corpo retira da mecânica e dos sistemas
orgânicos, ou seja, a sua capacidade de ação sobre os objetos. Pode-se pensar
aqui nas habilidades dos trabalhadores manuais e nos procedimentos físicos
quotidianos, como também nos saberes e nas práticas colocadas em jogo para
a manutenção do corpo, o aumento de sua resistência ou de seu poder, saúde,
higiene ou mesmo treinamentos corporais variados. A segunda destas faces é a
do princípio de propriedade: posse, pelo corpo, de um espaço e, nele, de um
território totalmente pessoal, ou seja, apropriação do ser no mais íntimo de si,
nos limites de sua dimensão biológica. Imaginem-se, portanto, as
representações das fronteiras corporais, daquilo que recobre o corpo - as
"muralhas da intimidade" - ou, ainda, os lugares a partir dos quais se definem as
violências e os atentados físicos. Esta face mostra-se de suma importância, pois
suas variantes históricas revelam deslocamentos de sensibilidade, que se
referem não somente à relação com o outro, mas, também, para consigo mesmo.
A terceira face é a do princípio de identidade: manifestação, pelo corpo, de uma
interiorização ou de um pertencimento que designa o sujeito, ou seja, o recurso
de mensagens e de trocas a partir de sinais e de expressões de natureza física.
Pode-se pensar aqui os recursos expressivos, a emissão de mensagens, a
emergência de um sentido voluntário ou involuntário. Nesta terceira face pode-
se pensar, ainda, nas manifestações de prazer e de dor reforçando a ancoragem
do sujeito.

2. O corpo e o objeto: Estas três faces demonstram o quanto a história do corpo


pode revelar-se heterogênea, mobilizar objetos muitas vezes diferentes, até
mesmo inconciliáveis. É mais em direção à prudência epistemológica e
metodológica que ela deveria, então, conduzir. Esta história, porém, poderia
tornar-se mais legítima ao captar um objeto com precisão: objeto que outras
abordagens tiveram dificuldade em apreender, objeto que revela aquilo que não
existiria, a não ser no momento e no lugar em que é captado. Mostrar, por
exemplo, com Le Goff (1967, p. 440), que a "civilização medieval é a civilização
do gesto", é abrir um campo de reflexão sem limites a respeito dos modos de
sociabilidade em via de solidificação e de diferenciação, assinalando ao mesmo
tempo os obstáculos e as inovações que implicam o lugar ainda muito marginal
da escrita; é dar uma densidade inédita às modalidades inteiramente corporais
dos juramentos e dos contratos, das solenidades remarcáveis ou dos usos muito
quotidianos; é ler esta tentativa antiga de inscrever no corpo um código ainda à
procura das suas transposições em signos escritos. A partir deste único
enunciado, um espaço difuso de práticas e de gestualidades anódinas torna-se
bruscamente relevante para acentuar a originalidade da sociedade da qual
surgem. No limite, a Idade Média existe "diferentemente", quando se leva em
consideração estas inscrições corporais que a importância - logo mais central -
da escrita permitirá deslocar. O corpo, dentro deste quadro preciso de um
intercâmbio específico e relacional, tornou-se, assim, um objeto suscetível de
esclarecer um mundo. Abundantes são os exemplos desses objetos corporais
que foram se tornando objetos "elucidativos" de uma época e de uma sociedade.
O investimento na construção de uma história do corpo consiste tanto em
recenseá-los quanto em explorá-los. Contudo, é necessário, às vezes, saber
tornar complexas as representações e desconfiar de nossos próprios esquemas
representativos, aqueles de homens e mulheres que pertencem à sociedade de
hoje. Fonte: Vigarello (2003, p. 22-23). FIM DA LEITURA COMPLEMENTAR.
INÍCIO DO MATERIAL COMPLEMENTAR - LIVRO
Título: Anatomias: uma história cultural do corpo humano
Autor: Hugh Aldersey-Williams
Editora: Record
Ano: 2016
Sinopse: a partir de exemplos tirados da literatura, filosofia e história, o autor
aborda como as visões sobre o corpo humano são devedoras do tempo em que
foram criadas. Na segunda parte, o autor estuda partes e órgãos específicos,
cruzando de modo esclarecedor conhecimentos oriundos da anatomia e
fisiologia com os conhecimentos das ciências humanas, filosofia e história.
FIM DO MATERIAL COMPLEMENTAR – LIVRO

INÍCIO DO MATERIAL COMPLEMENTAR - FILME


Título: Gattaca
Ano: 1997
Sinopse: trata-se de uma ficção científica em que o poder controlador da ciência
faz frente às fragilidades corporais humanas. Essa força científica é desafiada,
justamente, por essas fragilidades. Afinal, são elas que deixam entreabertas as
portas para aquela sociedade se tornar mais humana.
FIM DO MATERIAL COMPLEMENTAR - FILME

INÍCIO DO MATERIAL COMPLEMENTAR - WEB


Apresentação: Na Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos está
disponível o acesso a muitas páginas do livro “De corporis humani fabrica”
(1543), de Andre Vesálio (1514-1564). A obra é fundante no desenvolvimento do
conhecimento anatômico que, como vimos, marcou o nascimento de um grande
interesse pelo corpo. Ainda assim, observe que nos desenho o corpo aparece
em contexto, ou seja, localizado no espaço, sinalizando que o processo de
objetificação científica, ou de isolamento da variável, ainda estava em curso.
Acesse confira! Link: <https://ceb.nlm.nih.gov/proj/ttp/vesaliusgallery.htm>.
FIM DO MATERIAL COMPLEMENTAR – WEB
INÍCIO DAS REFERÊNCIAS

ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 1985.

BACON, F. Novum organum ou as verdadeiras indicações acerca da


interpretação da natureza. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

BRACHT, V. A constituição das teorias pedagógicas da educação física.


Cadernos do CEDES (UNICAMP), Campinas-SP, v. 19, n. 48, p. 69-88, 1999.

BRAUSTEIN, F.; PÉPIN, F. O lugar do corpo na cultura ocidental. Lisboa:


Instituto Piaget, 1999.

DAMASIO, A. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. 12. ed.


São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

DESCARTES, R. Discurso do Método, Meditações, Objeções e Respostas,


As Paixões da Alma, Cartas. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

HEROLD JUNIOR, C. Corpo, educação e hominização: possibilidades de análise


a partir do materialismo histórico. Educere et Educare (Impresso), Cascavel-
PR, v. 4, n. 7, p. 203-221, jan./jun. 2009.

______. Corpo, pensamento educacional e práxis: a "teoria" e a "prática" da


Educação Física nos albores da modernidade. Acta Scientiarum. Human and
Social Sciences, Maringá-PR, v. 26, n. 2, p. 221-230, jul./dez. 2004.

______. "Ombros largos" x "língua grande": os projetos de educação do corpo


nas transformações da antiguidade grega. Publicatio UEPG. Ciências
Humanas, Ciências Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes
(Impresso), Ponta Grossa-PR, v. 15, n. 2, p. 95-103, 2007.

JENSEN, E. N. Body by Weimar: athletes, gender and German modernity. New


York: Oxford University Press, 2013.

KINGDON, J. Lowly origin: where, when, and why our ancestors first stood up.
Oxford: Princeton University Press, 2003.

KUPER, D. The chosen primate: human nature and cultural diversity. Harvard:
Harvard University Press, 1996.

LAQUEUR, T. W. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio


de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

LE BRETON, D. Anthropologie du corps et modernité. Paris: Presses


Universitaires de France, 2003a.

______. Adeus ao corpo. Campinas-SP: Papirus, 2003b.


LE GOFF, J.; TRUONG, N. Uma história do corpo na Idade Média. 2. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

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SANT´ANNA, D. B. História da beleza no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014.

SEVCENKO, N. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: ______.


(Org.). História da vida privada no Brasil – República: da Belle Époque à Era
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VIGARELLO, G. A história e os modelos de corpo. Pro-posições, Campinas-


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WILLIAMS, H. A. Anatomias: uma história cultural do corpo humano. Rio de


Janeiro: Record, 2016.

FIM DAS REFERÊNCIAS.

INÍCIO DO GABARITO

1) O desenvolvimento da ciência moderna, pautado na primazia do método


científico e na identificação da razão como traço distintivo do homem,
possibilitou que o corpo fosse tratado como máquina, à semelhança dos
outros animais.

2) Ao romperem com as explicações míticas até então predominantes, os


gregos construíram uma reflexão racional que tematizou e se sustentou
nos sentimentos enraizados no corpo.

3) Ao estudarmos a história do corpo, podemos perceber que nossa


dimensão corpórea não se reduz a uma natureza anatômica, mas
compreende os modos como a percebemos e a pensamos. Esses modos
foram diferentes em outros períodos da história. Estudá-los é uma
maneira de entender o corpo como o percebemos hoje.
4) Adorno e Horkheimer (1985) diagnosticam que na história das civilizações
o corpo sempre fora uma questão. Mesmo em períodos nos quais o corpo
foi cuidado com grande atenção, é possível verificar o incômodo gerado
pelo corpo, que sempre fragiliza nossa intenção de controlá-lo
racionalmente.

5) Se tomarmos o século XX como exemplo, o lugar central ocupado pelo


corpo e seu cuidado sinaliza uma tentativa mais intensa de controlar as
vontades e sentimentos que emanam do corpo. Se isso foi um elemento
importante para uma fruição não existente em outros momentos, também
se experimenta um certo mal-estar gerado pelo controle sobre o corpo,
que se amplia na mesma proporção de novas técnicas, produtos e
prescrições.
FIM DO GABARITO.
INÍCIO DA FOLHA DE ABERTURA

TÍTULO DA UNIDADE 3: OLHANDO HISTORICAMENTE AS PRÁTICAS


CORPORAIS

Objetivos de Aprendizagem

● Refletir historicamente sobre a grande variedade de práticas corporais.


● Avaliar questões históricas em torno do desenvolvimento da ginástica.
● Pensar na importância do lúdico na história da sociedade contemporânea.
● Entender a historicidade da importância do fenômeno desportivo.
● Abordar problemáticas relativas à formação das lutas e artes marciais.

Plano de Estudo

A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:

● Tópico 1: As muitas práticas corporais


● Tópico 2: A ginástica
● Tópico 3: Os jogos
● Tópico 4: O esporte
● Tópico 5: As lutas e as artes marciais

FIM DA FOLHA DE ABERTURA.


INÍCIO DA INTRODUÇÃO: Na trajetória até aqui percorrida, você percebeu,
caro(a) aluno(a), em primeiro lugar, que o conhecimento histórico tem uma
relação muito próxima com a realidade atual. Essa constatação foi evidenciada
em sua importância, pois ela sinaliza que os esforços analíticos dos historiadores
da educação física não são empreitadas de quem não está disposto a resolver
os muitos problemas imediatos que nos afligem. Ficou explícito que o contrário
é o correto: a nossa área enveredou pelo caminho das abordagens históricas
devido às urgências que passaram a incomodar os professores de educação lá
no início da década de 1980 e que, de algum modo, ainda são nossos
incômodos.
No segundo passo que juntos demos na ampliação de nosso olhar
histórico para as problemáticas profissionais da educação física, colocou-se em
destaque que o corpo humano também existe e existiu, historicamente.
Pensamos nos modos como essa mesma natureza e as percepções em relação
a ela vão se transformando, com o passar do tempo. Nessa ótica, até a tão
comum oposição entre pensamento e corpo pode ser problematizada. Vê-se o
valor da história para nos ajudar a entender que traços aparentemente óbvios da
vida individual e social nem sempre foram assim considerados. Também no
segundo passo coisas que atribuímos como traços do presente foram
evidenciadas como igualmente pertencentes a outras épocas. Viver
corporalmente é algo que nos acompanha há mais de um século.
Sabendo que boa parte da atuação profissional e pedagógica em
educação física ocorre em torno da ação pedagógico com esportes, exercícios,
ginásticas, lutas, jogos e dança, é oportuno voltarmos nossa atenção a essas
práticas. Com isso, a pretensão é entendermos como tais práticas passaram a
existir e contaram com o empenho de muitas pessoas em praticá-las e de outras
tantas em ensiná-las e divulgá-las por conta de variados benefícios a serem
conquistados por meio delas. Bons estudos! FIM DA INTRODUÇÃO.

INÍCIO DO TÓPICO 1: AS MUITAS PRÁTICAS CORPORAIS

Antes de considerarmos a história de práticas corporais abordadas pelo


trabalho profissional e pedagógico em educação física, é necessário termos
alguma clareza sobre o assunto. Além disso, é importante sabermos aquilo que
não será abordado nesse estudo. Desse ponto de vista, um esforço muito
recorrente nos empreendimentos científicos de forma geral e naqueles que são
feitos no campo da história e da história da educação física é estabelecer limites,
os mais definidos possíveis, entre aquilo que compõe o nosso assunto e aquilo
que fica de fora ou que extrapola o alcance da nossa atenção.
Interessante verificar que esse esforço em saber aquilo que nos interessa
em termos históricos tem uma relação muito próxima com conhecer os nossos
interesses no mundo atual. Você se lembra que esse foi um ponto muito
enfatizado na primeira unidade: pensar historicamente só é possível por
pensarmos o mundo no qual vivemos. Essa ênfase será útil a você na análise
que proponho logo a seguir. Para iniciar o estudo de uma história das práticas
corporais, proponho uma questão: dentre as muitas práticas corporais
existentes, o que explica que algumas sejam estudadas em um livro sobre
história da educação física e outras não?
A questão é aparentemente ingênua, mas tem sua importância.
Sobretudo se você considerar que, na unidade anterior, estudamos que os
próprios entendimentos sobre o que é corpo, o que é pensamento, a relação
entre eles mudam com o passar do tempo. O mesmo ocorre com os cuidados
que devotamos ao corpo, com as práticas que adotamos para moldá-lo a
determinados projetos sociais, culturais e religioso, enfim, a natureza corpórea
tem sua história marcada por uma tensão entre mudança e permanência.
Mudanças e permanências relativas aos modos como aquilo que fazemos com
os nossos corpos é visto e avaliado, de modos discrepantes em um mesmo
período histórico. Como resultado, ambicionar estudar a história da educação
física elegendo conhecer historicamente as práticas corporais deixa de ser algo
óbvio. E deixou de ser óbvio porque a complexidade da questão foi percebida
por professores que têm buscado pensá-la na atualidade. Vamos estudar um
pouco dessas tentativas de estabelecer limites.
Em um processo que será estudado em outros momentos do curso, a
partir de 1980 muitos professores de educação física passaram a se debater
para definir as razões que justificavam sua presença na escola. A intensidade
dos questionamentos foi tanta que acabou recebendo a denominação de “crise
da educação física”, um modo de se referir à constatação de que não havia muito
acordo sobre o que seria o assunto a ser abordado pelos professores de
educação física na escola. A resposta até então aceita sem maiores problemas,
o esporte, passou a não mais contar com a unanimidade que possuía.
Argumentava-se que essa ênfase esportiva era sentida em outros lugares da
sociedade e que na escola a presença dessa prática corporal não deveria se dar
sem questionamentos. Nessa reflexão, Bracht (1992) constatou que a educação
física não possuía autonomia pedagógica, afinal, o professor de educação física
tinha seus saberes, códigos e procedimentos ditados pelas instituições
desportivas e não pela pedagogia, pela didática, pela educação, em suma.
Somando-se ao empenho dos professores em fazerem frente a essa
situação, delimitar o conhecimento caracterizador da relevância pedagógica da
educação física aglutinou energias. Um dos resultados mais visíveis desses
esforços foi pensar esses limites em torno do passou a ser conhecido como
“cultura corporal”. Tendo como fonte as práticas produzidas socialmente, nessa
óptica defendia-se a existência de uma “seleção de conteúdos da educação
física” (SOARES, 1992, p. 63). Resultante da seleção é a cultura corporal que,
ao ser composta por esportes, jogos, ginásticas, danças e lutas, teria a:

[...] pretensão de possibilitar ao aluno da escola pública entender a


realidade social interpretando-a e explicando-a a partir dos seus
interesses de classe social. Isso quer dizer que cabe à escola promover
a apreensão da prática social (SOARES, 1992, p. 63).

Nessa discussão, é importante ser percebido que, ao tentarem encontrar


justificativas pedagógicas para a presença da educação física na escola, os
esportes, jogos, ginásticas, danças e lutas passaram a ser considerados
“práticas sociais”, “expressão corporal como linguagem” (SOARES, 1992, p. 62).
A grande questão dessa luta para se definir o conteúdo a ser abordado
pelos professores de educação física, mais uma vez, dava-se na tentativa de
superar o paradigma biológico, anatômico, fisiológico e reduzido à técnica
desportiva. Já ficou claro que é difícil essa tensão não ser mencionada nas
discussões sobre a história da educação física. Aliás, foi a explicitação desse
embate que levou ao estímulo para pesquisá-la historicamente, enxergando-a
em realidades que não apenas a nossa.
De qualquer maneira, essa busca conceitual em relação ao ser da
educação física se mostrou como um luta política e epistemológica, relacionada
aos modos como entendemos e ensinamos assuntos concernentes ao corpo, ao
movimento corporal existente em alguns contextos. Digo “em alguns contextos”
pois nem todos os movimentos corporais foram assumidos como interessantes
ou abordáveis pelos professores de educação física.
No ano de 2002, aconteceu na cidade de Natal o I Colóquio Brasileiro
sobre Epistemologia e Educação Física. Ao lado de ser um evento importante
por evidenciar a forma como as discussões filosóficas também são
empreendidas no campo da educação física, dele resultou um livro intitulado
“Epistemologia, saberes e práticas da educação” (NOBREGA, 2006).
Obviamente, um debate muito recorrente no evento foi a relação entre os
saberes das ciências de matriz biológica e os saberes das ciências de cunho
humanístico, histórico e filosófico. E muito dependente desse debate, dois
capítulos do livro versam sobre as dificuldades em determinar o objeto de
conhecimento da educação física. Um deles intitula-se “Educação Física e
critérios de organização do conhecimento” (MELO, 2006). Depois de perguntar-
se: “Corporeidade, cultura corporal, cultura de movimento ou cultura corporal de
movimento?” (MELO, 2006, p. 107), o autor endossa a problemática que tenho
tratado neste item, escrevendo o seguinte:

Observamos que nas últimas décadas, a Educação Física tem sido


alvo de reflexões filosóficas, pedagógicas, sociológicas, conceituais,
entre outras, que têm proporcionado grandes avanços no sentido de
delinear novas intervenções pedagógicas, bem como no fato de situá-
las como área acadêmica a partir de definições de seu objeto de estudo
(MELO, 2006, p. 107)

Chamo sua atenção para palavras importantes na citação, como “delinear


novas intervenções pedagógicas” e também “situá-las como área acadêmica”.
Elas evidenciam que socializar conhecimento na escola e produzir conhecimento
na universidade são processos diferentes, porém interligados. Para Melo (2006),
a clareza dessa ligação, a ser providenciada pelas reflexões filosóficas,
pedagógicas, sociológicas e históricas, é fundamental para as definições
relativas ao objeto estudo, perseguido pela pergunta elaborada por ele,
apresentada imediatamente anterior.
Bracht (2006) também toma a mesma pergunta como trampolim de suas
reflexões. Para o autor, o esforço a ser executado sobre a questão é romper os
limites da “conotação biológico-naturalista”, enxergando a educação física em
sua “necessária vinculação com a cultura” (BRACHT, 2006, p. 97). Por essa
razão, continua o autor:

[...] a melhor forma de nominar e caracterizar o objeto dessa prática


social que vimos chamando de Educação Física, é tomá-la como uma
forma de intervenção pedagógica a partir, e com diferentes práticas
corporais de movimento (BRACHT, 2006, p. 97).

Sabendo que o termo “práticas corporais de movimento” ainda deixaria


espaços para ambiguidades, Bracht (2006, p. 98) esclarece que se tratam de
práticas “realizadas no mundo do não trabalho - excluindo portanto, aquelas
ligadas diretamente ao trabalho e à reprodução”.
O que está em jogo nessa construção político-conceitual é, de um lado,
ampliar o entendimento de prática, corpo e práticas corporais, englobando
dimensões sociais, culturais e históricas. Interessante que, depois de ampliar
esse entendimento, o resultado é especificar, limitar, deixar de fora “práticas
corporais de movimento” que não seriam utilizadas na intervenção pedagógica
em educação física. Silva e Damiani (2005), ao tomarem as práticas corporais
como um item de pesquisa e de intervenção e demonstrarem sua preferência
por conceituar o conteúdo da educação física como “prática corporal” em
detrimento à “atividade física”, também demonstram o peso desse processo
duplo de ampliação/delimitação do entendimento para pensarmos o fazer
pedagógico dos professores de educação física. Ao colocarem suas
expectativas formativas, as autoras proporcionam condições interessantes para
que possamos proceder à análise histórica de práticas que, em diferentes
épocas, mesmo sem total consciência de seus participantes e divulgadores,
geraram uma experiência educativa. Essa experiência é tomada como
característica das práticas corporais a serem estudadas nos próximos itens, pois
elas, de algum modo, realizariam mais intensamente perspectivas educacionais
valiosas para a sociedade. Esse valor se concretizaria na possibilidade dessas
práticas de fomentarem significados mais legítimos na vida de quem as executa
por meio do desenvolvimento de uma necessária percepção da alteridade
daqueles com quem se divide, de muitas formas, os tempos e os espaços
durante a execução dessas mesmas práticas. Dito de outro modo, as práticas
corporais entendidas seriam meios imprescindíveis para nos aproximarmos, ao
mesmo tempo, dos outros e de nós mesmos.
Ao estudar as práticas corporais que propomos nos próximos itens,
concretizamos na abordagem histórica inquietações que levam professores
contemporâneos a olharem para a prática social e caracterizarem a “cultura
corporal de movimento” como uma cultura formada por ginástica, esporte, jogos,
lutas e dança. É com essa compreensão que, entre as muitas práticas corporais,
priorizamos os elementos anteriores, focalizando-os como práticas sociais, como
aglutinadoras de avaliações, percepções e perspectivas educacionais existentes
em diferentes épocas.
Ao focarmos essas avaliações, percepções e perspectivas, pretende-se
romper com um procedimento analítico muito comum quando se fala em história
das práticas anteriormente listadas: não serão o foco do estudo o nome de
atletas, a mudança de uma técnica esportiva a outra ou listagem de competições
e resultados obtidos pelo Brasil. Enfim, ao tomarmos a ginástica, o esporte, a
luta, a dança e os jogos como objetos de análise histórica, considerando-os
como “práticas corporais”, o objetivo é proporcionar condições para se entender
o modo como essas práticas foram ganhando a importância que hoje possuem
na vida de muitas pessoas, no valor econômico e cultural que em torno delas se
avolumam, e, sobretudo, entender a maneira como a prática de cada uma delas,
em diferentes épocas, veiculou valores e projetos sociopolíticos que foram
importantes à construção das sociedades nas quais existiram, bem como são
importantes para a existência de possibilidades pedagógicas para a educação
física na escola. FIM DO TÓPICO 1.

INÍCIO DO TÓPICO 2: A GINÁSTICA

É compreensível que muitos procurem os cursos de educação física


visando se capacitarem para trabalharem nas academias de ginástica. Afinal, em
um passeio pelo centro e pelos subúrbios das cidades, grandes, médias e
pequenas, é muito difícil não passarmos em frente de uma. O mais comum é
vermos várias.
As modalidades de ginástica que nelas encontramos são variadas. Com
música, apenas com aparelhos, com pesos, mais agitadas, mais tranquilas, a
expansão de academias de ginástica evidenciam o modo como o exercitar o
corpo, separando, alternadamente, as partes exercitadas, ganhou uma imensa
popularidade. Ou seja, a adesão à essas práticas denota parcializar o trabalho
muscular, as valências físicas a serem trabalhadas, enfim, pensar o corpo como
se ele fosse uma máquina é uma espécie de sabedoria que paira o dia a dia das
acadêmicas. Com isso, não estou secundarizando que muita desinformação,
incorreção, abuso de drogas e outras coisas vis não sejam feitas em nome do
corpo perfeito. Mas, como vimos na unidade anterior, esse culto ao corpo que
acontece nesses “templos” busca concretizar o olhar esquadrinhador e
parcializador da ciência em relação ao corpo humano. Nesse sentido, tanto as
ginásticas que vemos hoje existirem nas academias quanto as variadas
modalidades esportivas ginásticas são práticas que exemplificam de modo muito
claro a maneira como o “olhar científico” em relação ao corpo tem uma
importância muito grande no mundo atual.

Entretanto, essa quase obviedade nem sempre foi assim percebida. Ela
foi construída em um processo bastante interessante de ser estudado. Afinal, ao
nos debruçarmos nesse estudo, mais uma vez temos a possibilidade de perceber
um fato corriqueiro em sua complexidade, enxergando nos automatismos que
simbolizam sua importância o resultado de um movimento histórico que
evidenciou a importância do corpo, das práticas corporais e da reflexão sobre
elas para a sociedade.

Há algumas páginas, você verificou como o nascimento do mundo


moderno, em que a ciência floresceu como forma de conhecimento e o
capitalismo como modo de produção, implicou um novo olhar para o corpo.
Estudamos que esse novo olhar sobre o corpo não foi um elemento isolado ou
secundário ao nascimento de uma sociedade que fazia frente ao dogmatismo da
sociedade feudal. Tratava-se de uma verdadeira revolução social, em que novos
entendimentos sobre sociedade, os seres humanos, as instituições e sobre o
corpo estavam nascendo. Esse processo foi descrito como manifesto no
desenvolvimento da prática anatômica, elemento central e ao mesmo tempo
resultante do método científico.
Interessante verificar que foi muito relevante nessa colocação do corpo
humano como um dos pontos de apoio da transformação que acontecia um olhar
atento à forma como os gregos da época clássica concebiam a dimensão
corpórea do homem. Eram comuns os escritores dos séculos XVI, XVIII e XVIII
defenderem o valor do corpo em várias dimensões da vida societária, justificando
que essa importância era reconhecida pelos gregos. É no nascimento do mundo
moderno que “educação física” se torna uma expressão a ganhar cada vez mais
notoriedade. Para citar um exemplo, um filósofo tão importante no mundo
moderno como John Locke (1632-1704), ao escrever uma obra chamada
“Alguns pensamentos sobre a educação” (1693 [2012]), inicia suas reflexões
falando sobre a saúde, em parágrafos onde as referências ao mundo grego são
frequentes.

O termo “ginástica” vem de um verbo grego que, diferentemente do que


aconteceu no mundo moderno e do que acontece ainda hoje, não significa
“modalidade” ou “modalidades”. O verbo em questão significava algo mais
próximo de “treinamento”, “preparação” para um esforço. Preparação essa feita
com o corpo nu (gymnos). Essa transformação conceitual, aparentemente sem
importância, diz muito da força da ginástica do mundo atual, do mesmo modo
que nos ajuda a pensar na grande distância entre o mundo moderno e o mundo
grego, no que tange ao corpo.

Em primeiro lugar, é preciso enfatizar que o termo “educação física” não


existia na língua grega. A palavra grega para corpo é “soma”, o que deveria levar
esse olhar ao mundo grego por parte dos modernos mais proximamente a uma
“educação somática”. Physis, de onde veio a conotação moderna de “educação
física”, como nos ensina Silva (2001, p. 28), para os gregos significava uma
“identidade, uma irmandade entre todos seres” para quem a vida em comunidade
era fundamental. Para cimentar essa afinidade comunitária, política e ética à
physis, o “treinamento feito com o corpo nu” era fundamental:

É com tal perspectiva que é necessário perceber o incentivo à


ginástica, pois a prática corporal nunca é realizada apenas com a
finalidade de fortalecer o corpo e não aparece em separado da música,
assim como da filosofia e da política (SILVA, 2001, p. 30).
Muito diferente é a situação do mundo moderno e da sua educação física.
Silva (2001, p. 30) pondera: “É necessário diferenciar esta concepção ontológica
clássica daquele dualismo que se verá explicitar em Descartes” e que caracteriza
o olhar científico que vê no corpo algo a ser escrutinado pelo espírito, pelo olhar
científico. Olhar esse que será fundamental no isolamento de variáveis, como o
bom funcionamento da máquina, do organismo, assumidos como importantes
para a sociedade e para os indivíduos, mas tomados como diferentes e não
constituintes da razão humana que constrói a vida em sociedade, a linguagem,
as artes, etc.

É essa forma de entender o corpo que será fundamental na criação da


ginástica, tal como se passou a entendê-la a partir do século XVIII. Se essa visão
cientificista foi ganhando força a partir do século XVI, é importante não
desconsiderar que ela não foi se impondo de forma tranquila ou sem enfrentar
resistências. Afinal, o desencantamento do mundo foi um processo lento, difícil
e que implicava na reconstrução de olhares, algo dificilmente executável no
espaço temporal de poucas gerações. Isso é particularmente verdadeiro no que
diz respeito ao modo como as pessoas percebiam seus corpos e as atividades
que com ele faziam.

A ambição civilizatória que vai sendo fortalecida com a expansão desse


olhar científico em relação ao corpo é instrumentalizá-lo, conhecendo-o cada vez
mais, eliminando qualquer prática ou qualquer representação que impedisse a
maximização de suas forças. Soares (2002) define de um modo bastante claro
o perfil do mundo que estava se descortinando na modernidade:

Para o ideário burguês que se desejou universal, tudo teria utilidade,


nada podia ou devia ser desinteressado e a finalidade suprema das
ações se concentrava no lucro. Até nas exercitações físicas descobriu-
se um valor que se relacionava com a produção, quer na indústria, quer
na quantidade de filhos para servir ao capital e à pátria (SOARES,
2002, p. 58).

Enquadrar os ritmos existências na forma de vida urbana e industrial


encontrou resistência. Do ponto de vista corporal, fizeram frente à disciplina
necessária para a instauração desse novo mundo hábitos e práticas que iam de
encontro à seriedade e ao cálculo, os quais eram submetidos ao cotidiano dos
séculos XVII e XVIII. Soares (2002), ao pensar no desenvolvimento da nova ética
corporal baseada na ciência, verifica que qualquer prática marcada pelo lúdico,
pela inutilidade, pela alegria e pelo excesso contrariava o olhar burguês que se
lançava sobre o corpo. O que estava em jogo era a possibilidade de adequar as
práticas corporais ao ideal utilitário que se fortalecia. A desqualificação de
práticas circenses e acrobáticas operou-se na consideração dessas práticas,
expurgando-as, por meio da ciência, de tudo o que pudesse comprometer a
civilização que se colocava:

Ora, aquela agilidade demonstrada pelos acrobatas e funâmbulos


haveria de ser útil. Era preciso pensá-la fora daquele universo, que ao
olhar burguês se mostrava desregrado, ocioso e “quase” imoral, em
que nascera. Os acrobatas e funâmbulos eram a má consciência, o
irracional dos círculos científicos que elegiam a “ginástica científica”
como prática corporal capaz de contribuir na formação do corpo
civilizado (SOARES, 2002, p. 59).

A importância da ginástica justifica-se pela possibilidade de ser tomada


como prática corporal guiada pela racionalidade da ciência. Foi a ginástica que,
durante os séculos XVIII e XIX, concretizou a consideração científica sustentada
na dicotomia entre res pensante e res extensa. Foi a ginástica a prática que
inaugura no mundo moderno a possibilidade de uma educação do físico, distante
da educação somática que existiu na Grécia e foi superada pela expansão da
ciência. Foi esta, com suas medidas a determinar intensidades, ritmos e
amplitudes, que sustentou a expansão das diferentes escolas ginásticas que
surgem.

Ciência e técnica, como formas específicas de saber, determinarão os


ângulos corretos de cada alavanca que possui o corpo visto como
máquina; indicarão o quanto de força é preciso imprimir para um
impulso e um salto; quais as partes do corpo (totalmente
esquadrinhado) são mais resistentes. As atividades corporais então,
paulatinamente, são classificadas, analisadas e, meticulosamente,
redesenhadas pelas mãos dos homens de ciência (SOARES, 2002, p.
59).

Langlade e Langlade (1970) nos ajudam a enxergar o modo como esse


esquadrinhamento do corpo, que está na gênese e no desenvolvimento da
ginástica, manifestou-se em diferentes escolas de ginástica. Elas passaram a
ganhar notoriedade a partir do final do século XVIII, dando existência ao
movimento ginástico europeu. Eles falam em escola alemã, escola sueca e
escola francesa como as mais representativas, aquelas que aglutinaram
professores e participantes em torno de uma prática corporal que foi, certamente,
uma das responsáveis por muito do que hoje vemos sobre a atenção que se dá
ao corpo em diferentes aspectos da vida social. FIM DO TÓPICO 2.

INÍCIO DO TÓPICO 3: OS JOGOS

Do mesmo modo como ocorreu com as outras práticas corporais


estudadas neste livro, ao se apresentar uma abordagem histórica dos jogos,
serão buscados modos variados de conceber ou entender o que eram os jogos
e a importância que eles tinham em outros períodos da história. Não seria
possível neste livro estudarmos a história dos diferentes objetos e das muitas
práticas caracterizadas como lúdicas.
Diferentemente do que acontece com termos tais como esporte, lutas ou
ginástica, quando estudamos o jogo, devemos especificar aquilo de que
precisamente se trata ou, alternativamente, devemos reconhecer a variedade de
coisas que podem ser abordadas pelo tal termo. Tanto um caminho, como o
outro, apresenta possibilidades e dificuldades.
No campo da educação física escolar, uma das obras que mais
impactaram a consideração dos jogos como importantes a esse componente
curricular foi o livro “Educação de Corpo Inteiro”, publicado por João Batista
Freire em 1994. Ele inicia o item quatro da obra afirmando: “Existe muita
confusão a respeito dos termos brinquedo, brincadeira, jogo e esporte. As
definições dessas palavras em nossa língua pouco as diferenciam” (FREIRE,
1994, p. 116). Com efeito, você se lembra de que uma das imagens por mim
usadas pela introduzir o conteúdo deste livro foi a narração de acadêmicos
“jogando”. Naquela acepção, “jogo” confunde-se com a situação competitiva
gerada pela disputa em uma modalidade desportiva. Todavia, como nos
esclarece Kishimoto (2015), para pensarmos na importância do jogo na história
da infância e da educação é necessário sabermos que há diferenças entre
brinquedo, jogo e brincadeira.
Em primeiro lugar, devemos manter à nossa frente a pluralidade de fatos
que podem ser denominados de jogos ou estarem ao termo relacionados.
Denominam-se jogos, situações como disputar uma partida de xadrez,
um gato que empurra uma bola de lã, um tabuleiro com piões e uma
criança que brinca com boneca. Na partida de xadrez, há regras
externas que orientam as ações de cada jogador, tais ações
dependem, também, da estratégia do adversário. Entretanto, nunca se
tem a certeza do lance que será dado em cada passo do jogo. Esse
tipo de jogo serve para entreter amigos em momentos de lazer,
situação na qual predomina o prazer, a vontade de cada um participar
livremente da partida. Em disputa entre profissionais, dois parceiros
não jogam pelo prazer ou pela vontade de fazer, mas são obrigados
por circunstâncias como o trabalho ou a competição esportiva. Nesse
caso, pode-se chama-lo de jogo? (KISHIMOTO, 2015, p. 1).

Para deixar a situação ainda mais complexa e passível de uma reflexão


cuidadosa é que, aos confusos limites entre atividades, levando ao emprego de
um mesmo termo para diferentes práticas (ou o emprego de um termo a muitas
práticas), há a questão de saber a quem ou a qual faixa etária identificamos a
existência do jogo. Voltando, ainda mais uma vez, à imagem dos acadêmicos de
educação física que “jogam”, é fundamental não esquecermos que essa
tradicional imagem publicitária associada aos cursos de educação física, em
alguns momentos, causa algum incômodo: essas imagens deixam transparecer
que no curso não se estuda, não se trabalha, não se faz coisas sérias, apenas
“brincamos”, “passamos o tempo”. Nesse olhar, esses acadêmicos seriam
menos qualificados que os acadêmicos dos outros cursos, pois, aqui ainda
estaríamos a fazer coisas que fazíamos quando éramos crianças, em uma
imagem que atribui uma caráter pueril, ou seja, fácil, descompromissado, light,
aos cursos de educação física.
Nesse ponto, algumas reflexões de característica histórica podem nos
ajudar a pensar nessa situação de uma forma mais complexa. Em primeiro lugar,
essa desconsideração em relação ao lúdico é devedora de uma tradição social
que se construiu baseada na valorização do pragmático e do cálculo, em que
homens e mulheres são vistos como caracterizados pela razão, pelo trabalho e
pelo pensamento abstrato. De algum modo, você já acompanhou o processo de
construção dessa sociedade quando foi abordado o desenvolvimento da ciência
e o impacto que ela teve nas formas como a sociedade passou a pensar em si
mesma e também na natureza. Por outro lado, o século XX, em seus
desdobramentos históricos (nazismos, bombas atômicas, problemas ecológicos,
terrorismo) evidencia que a avaliação racionalizante das capacidades humanas
não encontra respaldo na realidade, passível de ser observada na história
daquilo que Eric Hobsbawn (1998) chamou de “longo século XX”.
Em segundo lugar, há todo um conjunto de análises culturais, históricas e
filosóficas que buscam evidenciar o lugar da dimensão lúdica, do jogo, na
construção dos laços sociais que, em última instância, dão existência à vida em
sociedade. Nesse sentido, bastante eloquente é o livro de Johan Huizinga (1872-
1945), Homo ludens (HUIZINGA, 2010), publicado em 1936. Já no início do seu
prefácio, podemos ler:

Em época mais otimista que a atual, nossa espécie recebeu a


designação de homo sapiens. Com o passar do tempo, acabamos por
compreender que afinal de contas não somos tão racionais quanto a
ingenuidade e o culto da razão do século XVIII nos fizeram supor, e
passou a ser de moda designar nossa espécie como homo faber.
Embora faber não seja uma definição do ser humano tão adequada
como sapiens, ela é, contudo, ainda menos apropriada que esta, visto
poder servir para designar grande número de animais. Mas existe uma
terceira função, que é verificada tanto na vida humana como na animal,
e é tão importante como o raciocínio e o fabrico de objetos: o jogo.
Creio que, depois de homo faber e talvez ao mesmo nível do homo
sapiens, a expressão homo ludens merece um lugar em nossa
nomenclatura (HUIZINGA, 2010, p. 1).

Peço que você dê mais um pouco de atenção a esse ponto: o livro do qual
a passagem foi retirada foi escrito no final da década de 1930, um dos momentos
mais dramáticos da história humana, que desembocou na morte de milhões de
pessoas. Huizinga (2010) enxerga no jogo, na dimensão lúdica das relações, o
traço mais marcante da humanidade: mais que pensar (lembremos da ciência e
da filosofia), mais que fazer (lembremos do trabalho, da grande indústria e
economia que se internacionalizava), é pelo jogo que “a civilização surge e se
desenvolve” (HUIZINGA, 2010, p. 1). Como podemos caracterizar esse elemento
tão importante? Kishimoto (2015), ao estudar o pensamento de Huizinga (2010),
define o jogo da seguinte maneira:

[...] o prazer demonstrado pelo jogador, o caráter “não-sério” da ação,


a liberdade do jogo e sua separação dos fenômenos do cotidiano, a
existência de regras, o caráter fictício ou representativo e a limitação
do jogo no tempo e no espaço (KISHIMOTO, 2015, p. 4).

Essas considerações nos ajudam a pensar a importância do jogo,


enquanto um artefato educacional. Embora não se deva perder de vista que “o
brinquedo tem sempre como referência a criança e não se confunde com a
miríade de significado que o termo jogo assume” (KISHIMOTO, 2015, p. 8), é
possível verificar que a crescente importância do jogo no meio educacional se
deu pelo surgimento da noção de infância e pela valorização das práticas
corporais como elementos educacionais. Nesse particular, não é irrelevante o
fato de em muitas línguas (inglesa, francesa e alemã...talvez haja outras) o verbo
para brincar e jogar ser o mesmo (play, jouer, spielen).
Se voltarmos os olhos para o nascimento da sociedade moderna, nos
séculos XV, XVI e XVII, notamos que o prazer do jogador passou a ser algo a
ser gerado pelos professores no momento de realizar seus ensinamentos. Para
termos um exemplo ilustrativo desse elogio do prazer no momento em que se
ensina-aprende, voltemos os olhos para Coménio (1592-1670), considerado o
“pai da didática”, que em 1638 escreveu o seguinte:

O processo seguro e excelente de instituir, em todas as comunidades de


qualquer reino cristão, cidades e aldeias, escolas tais que toda a juventude
de um e de outro sexo, sem excetuar ninguém em arte alguma, possa ser
formada nos estudos, educadas nos bons costumes, impregnada de piedade,
e, desta maneira, possa ser, nos anos da puberdade, instruída em tudo o que
diz respeito à vida presente e à futura, com economia de tempo e de fadiga,
com agrado e com solidez (COMÉNIO, 1985, p. 43).

Compreende-se, desse modo, que a ideia de ensinar com agrado esteve


relacionada ao fato de se defender que os professores guiados por uma didática
deveriam ensinar o que desejassem, captando uma determinada natureza
infantil que passava a ser avaliada fundamental à educação e inextricavelmente
ligada ao prazer, ao jogo e ao corpo. Elogios à liberdade de brincar, aos
“folguedos infantis”, marcaram muitos pensadores que tentaram dar à educação
uma característica mais moderna, tentativa essa que culminou na obra “Emílio
ou da Educação” de Jean-Jacques Rousseau (1992), publicada em 1758.
Lembre-se que é no século XVIII que a ginástica ganhou espaço pela
racionalização da movimentação corporal. Apesar de toda importância que essa
racionalização angariou no século XIX, a ela foram feitas muitas críticas,
principalmente quando aplicada às crianças. Nos livros de história são comuns
fotos de crianças enfileiradas, fazendo movimento sincronizados, com
expressões sérias, compenetradas. Mesmo com todas as tentativas de divulgar
os ambientes educacionais como organizados, essas fotos evidenciam todo um
trabalho pedagógico de docilização das crianças. Postura avaliada como
educativa por parte de alguns pedagogos. Mas na virada do século XX, muitas
críticas à ginástica e ao seu caráter demasiadamente sistemático foram se
avolumando, até o momento em que estudiosos passaram a endossar o valor de
reconhecer nos espaços educacionais as brincadeiras infantis, do mesmo modo
que o esporte, tanto um quanto o outro, carregados de ludicidade já vista como
extremamente valiosa na realização de projetos educacionais. São essas
algumas das razões que nos fazem verificar a posição ocupada pelos jogos no
campo da educação física. FIM DO TÓPICO 3.

INÍCIO DO TÓPICO 4: O ESPORTE

Abordar historicamente o esporte é uma oportunidade interessante para


verificarmos a maneira como a validade da história no incremento de nossa
capacidade de pensar, o que nos interessa hoje, reside na possibilidade de ela
nos fazer estranhar algo com o qual estamos inegavelmente acostumados.
A presença do esporte em nossa sociedade nos dias de hoje é algo facilmente
perceptível. Pensemos na importância que possuem os eventos desportivos.
Essa importância tem várias faces que nos fazem enxergar no esporte um
elemento incontornável para entendermos o mundo contemporâneo. Vigarello
(2002) diz que o esporte “incarna, caricaturalmente, a imagem do tempo atual
Por esse motivo, “mais que qualquer outra prática, o esporte revela nossas
sociedades” (VIGARELLO, 2002, p. 10).
O fascínio gerado por eventos como a Copa do Mundo de Futebol ou os
Jogos Olímpicos evidenciam que essa prática corporal consegue mobilizar
pessoas do mundo inteiro, tocando países possuidores de variadas estruturas
sociais e culturais. Soares e Vaz (2009) advertem que a importância desses
eventos manifesta-se no empenho dos países em participarem ou sediarem
essas competições. Ao lado da corrupção gerada nas votações em que se
escolhem as cidades-sede, os autores sublinham uma espécie de mercado
internacional de atletas de alto nível, em que atletas são naturalizados em outra
nacionalidade para viabializar a participação desses países nos jogos. Os
autores citam o exemplo de jogadores de vôlei de praia brasileiros que “se
tornaram” cidadãos da Geórgia para disputarem os jogos por lá, mesmo sem
nunca terem ido ao país que “representavam” (SOARES e VAZ, 2009, p. 482).
Tenistas chineses, corredores quenianos e jogadores de futebol brasileiros são
outros exemplos que nos permitem perceber a maneira como a participação
desses eventos é importantes. O curioso nesse processo é o caráter globalizado
desse mercado, servindo para fortalecer o sentimento nacional dos países que
buscam esses novos cidadãos. Soares e Vaz (2009) mostram que as instâncias
organizacionais desses eventos têm alguma consciência da importância do
esporte no fomento de sentimentos nacionalistas, sendo esses sentimentos um
dos estímulos à globalização do esporte, por sua vez. Com efeito, quando
assistimos às disputas, é muito difícil dissociarmos a paixão que se sente do país
que é representado pelo atleta em ação.
Se a importância do esporte enquanto um elemento forjador de
pertencimentos nacionais não é menosprezado, a importância econômica dessa
prática transcende os contratos estabelecidos entre países e atletas que são
escolhidos para participarem do jogos. Refiro-me ao mundo econômico que se
desenvolve em torno das competições.
Esse universo econômico pode ser vislumbrado facilmente no fato de a
produção e comercialização de roupas, equipamentos, alimentos e uma quase
infinidade de bens consumidos terem como apelo um certo estilo esportivo. É
fácil notar a visibilidade que possuem as diferentes marcas de produtos
esportivos que disputam entre si o gigantesco mercado que se constrói em torno
da performance dos atletas. Esses transformam-se em agentes publicitários de
camisetas, calçados, agasalhos, vitaminas, aparelhos eletrônicos, produtos de
beleza, gerando uma riqueza que não era existente até o fim do século XIX. O
século XX testemunhou o surgimento de um grande mercado proporcionado pela
atração que o esporte fomentou em escala planetária.
Outro modo de enxergamos o quão valioso é o esporte é a relação que
se estabelece entre os eventos desportivos e sua transmissão. Em primeiro
lugar, devemos perceber o papel que os avanços tecnológicos tiveram na
popularização do esporte, que, em sua configuração moderna, já nasceu em um
momento capaz de capturar imagens e veicula-las. Um exemplo muito ilustrativo
desse fato é a importância de “Olympia”, filme dirigido por Leni Riefensthal em
1936 e encomendado por Hitler. Ao assistirmos ao filme, ficam evidenciados
muitos dos enquadramentos que ainda hoje são utilizados pela transmissão de
imagens de jogos e competições, criando um cânone estético que,
indubitavelmente, foi fundamental para que o esporte se tornasse o que é. Por
conta de tudo isso, um dos momentos mais importantes dos megaeventos é o
direito de imagem, o direito de transmitir as contendas e analisá-las nos
programas esportivos por meio de repetições em diferentes velocidades dos
lances e jogadas mais importantes para o resultado que se obteve. Soares e Vaz
(2009) sintetizam o processo que analisei anteriormente em um questionamento
que evidencia o lugar do esporte na sociedade contemporânea:

A estrutura tecnológica (satélite, internet, transportes aéreos, etc.)


possibilitou novas compressões de tempo e espaço, formando novas
estruturas de relações virtuais e desterritorializadas que, por sua vez,
configuram novas subjetividades em nosso tempo. Nessa direção, o
esporte moderno ou qualquer outro bem simbólico não poderia deixar
de ser afetado por esse processo. Partindo desse princípio,
perguntamos: como o esporte moderno, que foi instituído
estruturalmente a partir da configuração dos Estados-nação e auxiliou
a fixar formas de subjetivação em torno das identidades nacionais, está
se adaptando aos processos de globalização em curso? (SOARES e
VAZ, 2009, p. 489).

Outro meio de averiguarmos a imponência com a qual o esporte toca a


vida das sociedades contemporâneas é por meio de seus impactos nos
processos de construção de subjetividades. Levar a vida na esportiva tornou-se,
há algum tempo, um sinal de sabedoria, colocando o esporte como uma prática
formativa em vários sentidos. O mais óbvio é a maneira como os atletas se
tornaram modelos a serem alcançados pelas crianças e jovens. Comumente,
são divulgadas iniciativas educacionais que têm no esporte seu ponto de apoio,
vendo nele a condição para o desenvolvimento de muitas capacidades
intelectuais, morais e sociais. São frequentes, por isso, narrativas em que a vida
de atleta, marcada por demonstrações de superação, coragem e respeito às
regras e aos companheiros ou concorrentes, que embalam as expectativas não
apenas das crianças e jovens, mas de pais, educadores e políticos.
Não há como separarmos a importância político-econômica do esporte de
sua relevância formativa de subjetividades no mundo atual. Todavia, se
quisermos entender o processo histórico que levou o esporte a se tornar um dos
elementos característicos de nossa sociedade, a separação é necessária. Ao
fazermos essa separação, constataremos que o esporte deve muito de sua força
às expectativas educacionais que aglutinou no século XIX e início do XX. Nesse
sentido, Mascarenhas (2009) deixa claro que para entendermos a história dos
esportes, a principal questão não é a sucessão e ou criação de diferentes
práticas desportivas, mas é a investigação do que passou a fazer essas práticas
serem desportivas, diferenciando-as, assim, das práticas então existentes. Essa
diferenciação, entre outras coisas, é marcada por características que definem o
que Mascarenhas (2009) chama de “campo desportivo”, que pode ser,
resumidamente, assim descrito:

a) Organiza-se em forma de clubes, federações, confederações e


outras entidades locais, nacionais e internacionais; b) Possui um
calendário próprio, já não mais sendo praticado estritamente de acordo
com outros tempos sociais. c) Envolve um corpo técnico especializado
cada vez maior (treinadores físicos, dirigentes, gestores, psicólogos,
médicos, entre muitos outros). d) Gera um enorme mercado ao seu
redor, que extrapola até mesmo o que a princípio poderia ser
considerado específico da prática esportiva (MASCARENHAS, 2009,
p. 513).

A análise de Mascarenhas (2009) nos ajuda a delinear características do


tal mundo esportivo, marcado, então, pela mobilização de muitas pessoas em
torno não apenas do consumo esportivo propriamente dito, mas, também, em
torno da sua realização prática. Isso engloba desde o atleta e seu treinador,
passando pelos responsáveis técnicos em transmiti-los, comentá-los e ensiná-
los, chegando até empresários que lucram fortunas no seu patrocínio e na
divulgação de seus produtos atrelados à imagem da vitória.
Desse modo, pensar historicamente o esporte significa responder a uma
questão colocada por Pierre Bourdieu (2002, p. 173), em 1978: “Como podemos
ser esportivos?”. Ao buscar respondê-la, ele pondera ser necessário
“primeiramente questionar as condições históricas e sociais de possibilidade
desse fenômeno social que nós aceitamos bem facilmente como se ele fosse
óbvio, o ‘esporte moderno’” (BOURDIEU, 2002, p. 174).
Um movimento analítico muito importante e igualmente difícil aos
pesquisadores do campo da história é buscar delimitar no processo de
construção de qualquer fenômeno pontos de ruptura e de continuidade na
relação entre algo que existia e algo que passou a existir. No caso do esporte,
Melo (2010) nos explica que a palavra sport já era usada na Inglaterra desde o
século XV, mas com sentidos diferentes aos do esporte moderno. Inicialmente,
no idioma francês, o vocábulo se relacionava à diversão, sendo que apenas no
século XVI sport passou a ser correlato de “jogo que envolve atividade física”
(MELO, 2010, p. 84), associando-se a uma prerrogativa aristocrática apenas no
século XVIII.
Mas é no século XIX que o sport conhece um momento de grande
importância para sua expansão. E isso se dá pela vinculação da ideia de
diversão com movimento corporal com a percepção de que ele seria uma “prática
de grande utilidade para educar e formar os jovens das elites que ocupariam os
espaços de liderança no Império Inglês” (MELO, 2010, p. 91). Ou seja, o esporte
moderno se diferenciou das práticas e jogos populares pela explícita vinculação
da movimentação corporal com projetos formativos socioculturais e políticos.
Essa afirmação também é devedora das análises de Bourdieu (2002). Ele afirma
que:

Parece indiscutível que a passagem do jogo ao esporte propriamente


dito tenha se efetivado nas grandes escolas reservadas às ‘elites’ da
sociedade burguesa, nas public schools inglesas onde os filhos da
aristocracia ou da grande burguesia apropriaram-se de um bom
número de jogos populares, ou seja vulgares, e os submeteram a uma
mudança, transformando-os em exercícios corporais (BOURDIEU,
2002, p. 177).

Com isso, essas práticas tornam-se sport, agora “concebido como uma
escola de coragem e de virilidade” (BOURDIEU, 2002, p. 179). A importância
desse processo é imensa para o assunto que estamos discutindo. Afinal,
podemos enxergá-lo em muitas realidades, inclusive no Brasil. Em que pese as
necessárias advertências contra a consideração que avalia o nascimento do
esporte como um fenômeno globalizado (SOARES e VAZ, 2009), não há como
negar que esse processo de esportivização da sociedade tocou muitas
realidades diferentes entre si em questões culturais e religiosas, mas que viram
no esporte uma prática importante em muitos aspectos. Destes aspectos, a
análise aqui feita endossa uma predominância das preocupações educacionais.
O mesmo ocorre no Brasil. A expansão dos esportes ocorreu de um modo
intenso, sobretudo no fim do século XIX e primeiras décadas do século XX.
Linhales (2009, p. 341), ao estudar a história esportiva no início do século XX,
constata que a “popularização do esporte e sua extensão às massas puseram
em relevo as preocupações com a mocidade e a infância”.
Quais práticas encarnavam esse conjunto de valores? Melo (2010) nos
mostra que foram Rugby, Boxe, Remo, passando pelo desenvolvimento dos
esportes coletivos e culminando no fato de se ter inventado o país do futebol
(HELAL, SOARES e LOVISOLO, 2001) que deram início ao que poderíamos
chamar de esportivização da sociedade. De qualquer modo, no momento em
que ser esportivo dava seus primeiros passos, o discurso educacional
preponderava sobre o espetáculo. Não é a isso que assistimos atualmente, não
é?

INÍCIO DO SAIBA MAIS: Se de um lado o nascimento da sociedade e a


importância que ela deu à análise científica do corpo foram fatos
importantíssimos para o surgimento de discursos e ideias favoráveis à adesão
de práticas corporais, é na virada do século XX que essas práticas passam a
ocupar um lugar de inegável destaque. Competições esportivas tornaram-se
mais frequentes, estudos sobre a importância de variadas formas de ginástica
buscavam convencer as pessoas a abraçarem uma vida com mais movimento.
Fundamental nessa revolução somática (JENSEN, 2013) foi a construção de um
olhar mais atento ao que se chamou de natureza: aproximar o homem da
natureza e distanciá-lo das artificialidades do mundo urbano fez com que
exposições ao sol, banhos de mar, roupas mais curtas e suar a camisa
passassem a compor o panorama comportamental moderno das grandes
cidades no mundo e no Brasil nas primeiras décadas do século XX. Fonte: o
autor, baseado em Soares (2016). INÍCIO DO SAIBA MAIS. FIM DO TÓPICO 4.

INÍCIO DO TÓPICO 5: AS LUTAS E AS ARTES MARCIAIS

No campo da educação física, há alguns anos, tem sido feita a tentativa


para melhor captar a importância cultural, esportiva e pedagógica das artes
marciais. Os desafios para o sucesso no alcance desse objetivo são grandes,
considerando a imensa quantidade de práticas e estilos dentro de uma mesma
modalidade.
Além dessa dificuldade nem um pouco negligenciável, há o fato de muitas
dessas práticas serem também esportes e terem uma organização burocrática
abrangente e participante em eventos esportivos em escala mundial. Mas não é
apenas pela presença em jogos olímpicos que as lutas têm conquistado bastante
visibilidade, mas pela pujança econômica construída em torno das disputas de
Artes Marciais Mistas (MMA), associadas à marca Ultimate Fighting
Championship (UFC), massivamente consumidas em escala mundial. Awi (2012)
mostra que a UFC se tornou uma marca que agrega mais valor que outras
marcas esportivas extremamente relevantes, como a Liga de Futebol Americano
(NFL) e a Liga Americana de Basquete (NBA). Os números são impressionantes:
“Seus eventos chegam pela televisão a seiscentos milhões de lares em 145
países e em 22 idiomas” (AWI, 2012, p. 20).

O maior trunfo do MMA está concentrado no que ele tem de mais


simples. É o esporte que mais se aproxima de uma briga real. Dois
caras dentro de uma jaula sem armas, com o mínimo de equipamentos.
Está acima de barreiras culturais e linguísticas (AWI, 2012, p. 21).

Outro meio que nos fez ter bastante contato com o mundo das lutas e das
artes marciais foi o cinema. Sobretudo, com a popularização de filmes de kung-
fu e de figuras emblemáticas, como Bruce Lee. Desde a década de 1970, as
narrativas envolvendo alunos, professores, lutadores e atletas de artes marciais
tornaram-se uma dos produtos da cultura pop mais característicos do mundo
contemporâneo. Diferentemente do que ocorre nos dias de hoje, o vínculo dessa
narrativa não se dava apenas pelo esporte, embora competições de artes
marciais e lutas sejam o palco para o desfile do guerreiro e suas qualidades
técnicas e, sobretudo, morais. Além disso, mesmo que o tal guerreiro, em muitos
filmes, materialize esse espírito em lutas de boxe, outro traço inegável dessas
produções era a veiculação de uma certa ligação entre artes marciais e o mundo
oriental. Nessa vinculação, história, religião e a cultura de diferentes povos do
oriente foram instrumentais na ligação dessas práticas corporais com a
construção da obediência, da disciplina, da concentração e da precisão.
Minha intenção é que você perceba que, ao abordarmos a história das
lutas e das artes marciais, lidamos com um conjunto imenso de práticas que,
assim como o esporte, beneficiou-se da expansão técnica dos meios de
comunicação. Além disso, são práticas que também tiveram sua amplitude
aumentada pela expansão do esporte, confundindo-se com ele em muitos
momentos. Por outro lado, há que se reparar em alguns traços que
particularizam as lutas e as artes marciais em relação ao esporte.
Foi visto no tópico anterior que percebemos como o desenvolvimento
histórico do esporte esteve ligado à promoção da movimentação corporal com
finalidades formativas. Foi nesse processo que a palavra sport deixou de se
associar a diversão, passando a ter uma conotação ligada ao fomento de
características morais a serem desenvolvidas por meio de diferentes práticas.
Vimos, também, que com o desenvolvimento do esporte em todo o século XX e
sua transformação em um espetáculo altamente rentável e mobilizador de
subjetividades, esse caráter ainda permanece um tanto quanto presente, mas de
forma bem menos característica e marcante como a que ocorrera no início, nas
primeiras décadas do século XX. Hoje, é razoável um garoto ou uma garota
iniciar a prática em determinada modalidade ambicionando se tornar tão
famoso(a) quanto algum de seus ídolos, embora muitos deles tenham muita
fama e um longo histórico de problemas pessoais e até criminais.
Esse processo também passa a acontecer na atualidade das lutas e artes
marciais, se pensarmos na popularidade dos eventos de MMA. Ainda assim,
mesmo com essa popularidade e essa identificação de pessoas que procuram
academias para construírem a condição de se espelharem em seus ídolos
midiáticos (frequentemente possuidores de inquestionável competência técnica
ladeada por questionável índole), a associação das artes marciais e das lutas
com o cultivo do equilíbrio, da disciplina, do respeito e da tranquilidade é algo
notório. Essa notoriedade é facilmente constatável quando pais, alunos e
professores falam sobre a prática que abraçaram, remetendo-a a uma tradição
filosófica antiga longínqua, dando uma aura de respeito e profundidade que não
conseguimos encontrar quando se fala do futebol, do voleibol, da natação ou de
qualquer outra modalidade.
E é sobre isso que eu gostaria de chamar sua atenção: como podemos
entender esse vínculo mais estreito entre as lutas e as artes marciais com
aspectos educativos? Se esse vínculo entre lutas, artes marciais e fomento de
variadas virtudes é importante, por quais razões essas práticas estão distantes
da escola, se comparadas ao futebol, voleibol, basquetebol e outros esportes
que dão às aulas de educação seus principais (ou, pelo menos, mais
recorrentes) conteúdos?
Neste momento há muitas pesquisas acontecendo para determinar as
razões que explicariam o fato de práticas corporais tão aproximadas de aspectos
formativos terem dificuldade de serem também práticas escolares. E isso sem
nos esquecermos da forte presença cultural que essas práticas possuem em
muitas sociedades desde 1970 em um processo que hoje alcança um patamar
de reconhecimento que, possivelmente, nunca tenha sido imaginado como
possível.
Para pensarmos historicamente esse conjunto de problemática que cerca
a expansão da relevância das lutas e das artes marciais, vamos retomar o
pensamento de Felipe Awi (2012, p. 21), citado anteriormente. Ele explica que o
sucesso do MMA justifica-se por ele se aproximar da briga real, desenrolada
entre homens “dentro de uma jaula sem armas”. Ou seja, se em todos os
esportes a ideia de “embate”, de “luta” é metafórica, ao abordarmos as artes
marciais a “luta”, a “briga”, a “contenda” torna-se real.
Nesse sentido é interessante observarmos o nome dado a esse conjunto
de modalidades em que a luta corporal é momento maior de sua importância - o
nome do deus da guerra na mitologia romana. Aliás, Marte diferentemente de
Ares - deus da guerra na mitologia grega -, era admirado pela nobreza e justiça
das guerras que fazia acontecer. Já Ares está mais ligado à guerra bestial, que
aconteceria pela expressa vontade de ver o sangue correr, pela satisfação de
quem promovia o ferimento ou a morte de seu inimigo. E isso levanta mais outra
questão: como podem, práticas associadas à guerra (mesmo que as justas,
inspiradas por Marte), terem conotação educacional e formativa?
O relacionamento entre guerra e educação é algo que tem ocupado a
reflexão feita em diferentes sociedades. O nosso hábito de pensar nos países do
oriente quando ouvimos falar em artes marciais dificulta visualizar que no
ocidente a “marcialidade” tem sido uma questão. Afirmando-a em sua
necessidade ou a negando como algo prejudicial e estúpido, é importante
lembrar que a Ilíada de Homero, obra primicial na história da literatura ocidental,
é uma narrativa guerreira em que a bravura e justiça dos personagens realizam-
se na guerra. Igualmente relevante que apenas alguns decênios à frente do
período no qual se acredita que Homero tenha composto seus poemas, outra
obra muito importante, “O trabalho e os dias de Hesíodo”, tenha refutado a guerra
em nome do trabalho. A questão que subjaz esse debate é saber o papel a ser
desempenhado pela guerra e pelo guerreiro, no difícil relacionamento entre o
trabalho e o trabalhador que produz a riqueza a ser conquistada ou
reconquistada pelo braço forte do guerreiro.
Ehrenreich (2000), depois de estudar as explicações normalmente dadas
ao fato dos homens lutarem entre si e estudar o século XX, um dos mais
sangrentos da história, constata: “No século XX, a guerra - e a disposição para
a guerra, tão integrada ao sentimento nacionalista - tinha se tornado a forma
unificadora de Estados, oferecendo aos homens um sentimento transcendental”
(EHRENREICH, 2000, p. 25). Para nos fazer enxergar a presença da guerra em
nossa história e no nosso cotidiano, Ehrenreich (2000, p. 25) diz: “Hoje, até em
tempo de paz o aspecto religioso da guerra se manifesta em toda parte”.
A relevância da guerra em nossa história não deixou intocadas as
questões formativas. Afinal, em diferentes períodos existiram elites guerreiras
(EHRENREICH, 2000) que forneceram modelos pedagógicos a serem
alcançados, sobretudo pelos meninos, levando-os a suportarem ritos de
passagem que os fizessem sentir capazes de enfrentar os perigos. Enxergando-
se como uma estirpe, guerreiros e esforços formativos para formar guerreiros
encontraram práticas e justificativas que ajudaram a sacralizar a guerra: o
menino tornado guerreiro e seus professores “consideraram a guerra como uma
empreitada heroica e até religiosa” (EHRENREICH, 2000, p. 157).
Embora os problemas e os sofrimentos gerados pelos combates; embora
o incremento tecnológico a dispensar, de modo crescente, a necessidade de
formação específica para soldados; embora a potência dos armamentos
tornasse a guerra cada vez mais mortífera; a guerra torna-se, na virada do século
XX, um grande artefato pedagógico. O raciocínio é relativamente simples: em
um mundo que dispensa o esforço físico para a sobrevivência, seja no trabalho,
seja na guerra, é por essa última que as virtudes serão transmitidas à juventude.
William James (2012), em 1910, ao buscar um equivalente moral da guerra,
disse o seguinte:

Nós devemos fazer com que novas energias e coragem deem


continuidade à virilidade a qual a guerra tão fervorosamente se apega.
As virtudes marciais devem ser um permanente cimento; intrepidez,
aversão à moleza, abnegação do interesse privado, obediência ao
comando, devem continuar a ser a rocha sobre a qual as nações se
constróem (JAMES, 2012, s.p.).

Essa defesa da moral da guerra vem de um filósofo que via nela um


anacronismo cravado no mundo já industrializado e urbano do início do século
XX.
Não é possível dizer que essa importância da guerra e dos exércitos não
tenha causado discordâncias e oposições, mas formar o guerreiro se tornou um
motivo catalisador de muitos discursos educacionais. Muitos deles aproximados
à educação física. Muitos deles fundamentais para o desenvolvimento das artes
marciais modernas e sua expansão mundo.
Quando falamos em artes marciais modernas pensamos na
transformação operada sobre um conjunto de práticas com finalidades concretas
em situações de combate. Essa transformação aproximou o cultivo de diferentes
técnicas ao cultivo de diferentes caminhos, praticamente, pelo fato de o culto a
guerra ser portador de virtudes marciais visíveis e relevante não nos campos de
batalha, mas no dia a dia de uma sociedade moderna.
Para ilustrar esse processo, o exemplo japonês é um caso esclarecedor.
Na última metade do século XIX, a sociedade japonesa passou por mudanças
culturais, econômicas e políticas que construíram uma nação aproximada e
conectada ao processo de expansão militarista e imperialista das potenciais
capitalistas europeias e americanas.
Isso fez com que aquela sociedade impusesse seus valores e suas prática
corporais a um intenso processo de revisão. Afinal, muitas delas não eram mais
condizentes com o novo mundo que se descortinava à medida que o país se
abria às pressões econômica, políticas e militares do ocidente. A modernização
do exército, que além de tornar irrelevante a presença dos antigos samurais,
aliada à modernização do sistema político e econômico, fez com que muitas
novas práticas educacionais fossem vistas como necessárias. A expansão da
escolarização obrigatória, ao lado de práticas educativas preocupadas com a
higiene do corpo, influenciaram, fortemente, o surgimento do “budo”, ou seja, o
desenvolvimento de um conjunto de valores que viam na guerra uma inspiração
para formar o “novo homem japonês”. De meras técnicas (jutsu), surgiram
caminhos (dô), em que práticas corporais foram ressignificadas com visões
altamente pedagogizantes. A importância de Jigoro Kano nessa ressignificação
é indiscutível, abrindo caminho não apenas para o ingresso do Judô nas escolas
japonesas, mas para sua expansão por todo o mundo já no início do século XX.
A importância de Kano para essa expansão das artes marciais reside no
fato de ele ter submetido antigas técnicas guerreiras a um processamento
pedagógico e científico, tornando-as passíveis de serem adjetivadas de
educacionais, científicas, provedoras de um desenvolvimento harmônico de suas
práticas. Tudo isso somado aos frutos morais a serem colhidos por meio de uma
prática sistemática, metodizada. Ora, estudaremos na próxima unidade que
discursos como esse também estavam presentes em muitos educadores
europeus e americanos que defendiam a importância de determinadas práticas
corporais na escola. Desse ponto de vista, verifique que o nosso hábito de
vermos exclusividade oriental o fomento das artes marciais pode ser
problematizado: oriente e ocidente parecem preocupar-se com questões
sociopolíticas semelhantes, todas elas dando às práticas corporais grande valor.

INÍCIO DO REFLITA: As práticas corporais sempre fazem parte do patrimônio


cultural de um povo, [...] sendo importantes ferramentas na construção de
identidades: de classe, de gênero, de etnia, ligadas à construção da ideia de
“nação”. Fonte: Mary Del Priore e Victor Andrade de Melo. FIM DO REFLITA.

INÍCIO DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS: Prezado(a) aluno(a), a grande


quantidade de práticas corporais hoje existente, bem como aquelas que
existiram em diferentes períodos da história, é um grande desafio analítico
quando se pretende conhecer o seu passado.
Nesta unidade você verificou que, ao lado dessa dificuldade nem um
pouco negligenciável, possibilidades de estudo bem interessantes se abrem, e a
movimentação corporal típica de cada uma dessas atividades agregam-se
modos de ver, perceber e avaliar cada uma dessas práticas. Poderíamos dizer
que são esses modos que explicam o fato de determinadas práticas serem
abordadas por determinados profissionais e não por outros.
Nas reflexões desenvolvidas nesta unidade a ideia de que o campo da
educação física lida com o que ficou conhecido como cultura corporal foi
importante. A relevância desse conceito reside, justamente, na possibilidade que
ele abre para estudarmos os esportes, as lutas, as ginásticas, os jogos e a dança
como práticas apenas existentes se conectadas aos contextos históricos em que
passaram a existir e que, sobretudo, foram praticadas e percebidas por
diferentes classes sociais e tempos também variados. Um traço importante na
sucessão dessas percepções é o fato de que a essas práticas, frequentemente,
atrelaram-se discursos que atribuíram a elas valores formativos a serem colhidos
por quem as pratica. Interessa para nós a dificuldade de verificar, nos momentos
em que se pensa essas práticas, reflexões que defendam ou tenham defendido
a adesão a elas, simplesmente, pelo prazer que elas proporcionam. É recorrente
os praticantes tornarem pública sua adesão a uma modalidade pelas
transformações intelectuais e morais que elas proporcionam em quem as
abraça. Essa característica impactou, fortemente, um conjunto imenso de
discussões sobre a possibilidade dessas práticas acontecerem no contexto
escolar. A história do componente curricular de educação física é devedora
desse traço. É essa história que estudaremos na próxima unidade. FIM DAS
CONSIDERAÇÕES FINAIS.

INÍCIO DAS ATIVIDADES DE ESTUDO

1) Pondere os conceitos que nos ajudam a pensar o campo de ação


profissional em torno das ações que fazemos corporalmente.

2) Qual a característica histórica que estimulou a expansão do esporte na


virada do século XX?

3) Analise a principal característica das diferentes escolas ginásticas que as


fizeram ter grande destaque durante o século XIX e início do XX.

4) Qual é o problema da comum oposição entre oriente x ocidente quando


pensamos o desenvolvimento e a expansão das artes marciais?

5) O que faz do jogo um elemento valioso para pensarmos a cultura?


FIM DAS ATIVIDADES DE ESTUDO.
INÍCIO DA LEITURA COMPLEMENTAR: Se no início do século XIX a
sistematização e especialização de certos discursos e práticas sobre a educação
dos corpos foi um assunto menor e relativamente insignificante, no final desse
século o panorama mudou dramaticamente. Nenhum ator social ousou rechaçar
a necessidade [...] do exercício físico para os meninos, meninas, jovens, adultos
e anciões. [...] A criação do “homo gymnasticus” foi caracterizado, delineado
esculpido como um corpo esforçado, eficiente, dócil, obediente, aplicado, ativo,
seguro, decidido, forte, vigoroso, voluntarioso, energético, aseado, útil, racional,
simétrico, destro, patriota e são. Todas essas características não apenas se
converteram em qualidades e normas de acção a se alcançar, produzindo um
fenômeno (´homo gymnasticus’) [...]. O meio predileto para sua concretização foi
o exercício físico, que impunha aos corpos tarefas repetitivas, diferenciadas e
graduadas, com o fim de maximizar a economia do movimento, seu ritmo e suas
intensidades. [...] Para além de algumas resistências o “homo gymnasticus”
dominou a cena corporal e se ergueu como um dos efeitos modernos melhor
pensado de uma forma cada vez mais complexa de administrar os corpos. Essa
invenção moderna, exalou fortes doses de modernidade criando, a partir da
autoafirmação de sua suposta “normalidade”, a existência de uma alteridade
representada por corpos indesejáveis e “imperfeitos”, tanto em sua forma e
aparência como em seus desejos e comportamentos. Dessa maneira, os corpo
indolentes, preguiçosos, ineficientes, desobedientes, indecisos, débeis, doentes,
frágeis, passivos, apáticos, temerosos, covardes, inúteis, improdutivos,
pusilânimes, afeminados (para os meninos), mais ou menos masculinizados
(para as meninas), irracionais, assimétricos, deformes (corpos mais ou menos
altos, mais ou menos baixos, mais ou menos gordos, mais ou menos fracos),
antipatriotas, sujos e enfermos foram considerados o limite simbólico e material
daquilo que não se podia franquear. Aqueles corpos, que resistiram ao ideal
ficcional representado pelo “homo gymnasticus”, tiveram que conviver com o
padecimento e foram automaticamente convertidos em corpos estigmatizados,
rechaçados e considerados como anormais e perigosos. De fato, foram
classificados como corpos enfermos, e inclusive, muitas vezes patologizados.
Fonte: Scharagrodsky (2011, p. 17-18). FIM DA LEITURA COMPLEMENTAR.
INÍCIO DO MATERIAL COMPLEMENTAR - LIVRO
Título: História do Esporte no Brasil
Autor: Mary Del Priore e Victor Andrade de Melo
Editora: Editora da Unesp
Ano: 2009
Sinopse: trata-se de uma coletânea que apresenta 17 capítulos que focalizam o
desenvolvimento do esporte no Brasil, abordando-o a partir do século XIX até a
atualidade.
FIM DO MATERIAL COMPLEMENTAR – LIVRO.

INÍCIO DO MATERIAL COMPLEMENTAR - FILME


Título: Olympia
Ano: 1938
Sinopse: documentário dirigido por Leni Riefenstahl (1902-2003) sobre os Jogos
Olímpicos de 1936, sediados em Berlim. O filme se notabilizou por ser o primeiro
feito sobre os jogos, criando modos de percepção da transmissão desportiva,
hoje comuns. Além disso, fica explícita a ligação do que se assiste ao momento
político da Alemanha, já sob a égide de Adolph Hitler.
FIM DO MATERIAL COMPLEMENTAR – FILME.

INÍCIO DO MATERIAL COMPLEMENTAR - WEB


Apresentação: a página do Museu do Futebol é muito valiosa pela variedade de
informações, imagens, vídeos e exposições virtuais que lá são organizadas.
Conforme lemos na reflexão de Del Priore e Melo (2009), o futebol é a história
brasileira, da mesma forma que a história brasileira é o futebol. Acesse e confira!
Link: http://www.museudofutebol.org.br
FIM DO MATERIAL COMPLEMENTAR – WEB.

INÍCIO DAS REFERÊNCIAS


AWI, F. Filho teu não foge à luta: como os lutadores brasileiros transformaram
o MMA em um fenômeno mundial. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012.

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Éditions du Seuil, 2002.

FIM DAS REFERÊNCIAS.

INÍCIO DO GABARITO
1) Prática corporal é um desses conceitos, na medida em que se delimita o
vasto leque de ações humanas, que envolvem a dimensão corpórea,
reduzindo-a aos jogos, esporte, lutas, ginástica e dança. O fato de essas
práticas não se reduzirem ao elemento gestual, mas englobarem valores
e intencionalidades, leva-nos a enxergá-las como cultura corporal, o
segundo conceito fundamental para entendermos a educação física
historicamente.

2) Importante na expansão do esporte foi relacioná-lo com perspectivas e


projetos educacionais. Desse modo o sport deixou de ser apenas
“divertimento”, significado original do termo.

3) A ginástica realizou em suas práticas o olhar cientificizante de dividir,


quantificar e parcializar a movimentação corporal. Com isso, a ginástica
se tornou uma prática corporal representativa da ideia de que se pode
controlar a natureza corpórea do mesmo modo que a ciência poderia
controle a natureza de uma forma geral.

4) Mesmo que não desconsideremos peculiaridades entre a cultura marcial


existente em cada região do mundo, a oposição oriente x ocidente
secundariza que ginástica, esporte e artes marciais, em suas conotações
modernas, têm origens, motivos e desenvolvimentos semelhantes.

5) Trata-se de sua característica desinteressada, livre e não sistematizada,


a cruzar culturas, e fundamental na construção de relações sociais que
dão origens a sociedades muito diferentes entre si. Ou seja, nessa ótica
o jogo seria uma elemento presente em vários tempos e lugares, ao
mesmo tempo moldado pelas particularidades dos diferentes arranjos
sociais existentes em outras épocas.

FIM DO GABARITO.

INÍCIO DA FOLHA DE ABERTURA


TÍTULO DA UNIDADE 4: EDUCAR É EDUCAR O CORPO: A ESCOLA E A
EDUCAÇÃO FÍSICA

Objetivos de Aprendizagem

● Diferenciar educação corporal e o componente curricular educação


física.
● Verificar o modo como a educação tem o corpo como o principal meio e
fim.
● Estudar as transformações históricas que levaram à escolarização das
práticas corporais.
● Analisar a importância que o corpo passou a ter na ciência educacional
durante o século XX.
● Ponderar a ausência/presença do corpo nas estruturas educacionais
contemporâneas.

Plano de Estudo

A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:

● Tópico 1: Educação corporal e educação física escolar


● Tópico 2: Educar o corpo na escola, para quê?
● Tópico 3: A educação física escolar tornar-se... escolar
● Tópico 4: As ciências da educação, o corpo e a educação física: o longo
século XX
● Tópico 5: O corpo tem lugar na escola?

INÍCIO DA FOLHA DE ABERTURA

INÍCIO DA INTRODUÇÃO: Caro(a) aluno(a), chegamos à unidade IV de nosso


passeio pela história da educação física. Ela abordará as problemática que
discutimos nas unidades anteriores, estudando-as em sua dimensão
explicitamente pedagógica. Digo que trataremos as dimensões explicitamente
pedagógicas, afinal observe que, em todas as unidades anteriores, mesmo que
não tenhamos falado diretamente da escola ou da educação, alguma pedagogia
esteve presente: na unidade, quando vimos as justificativas para o estudo da
história, não é fácil percebermos nos teóricos uma postura que busca nos
convencer sobre a importância desse estudo? Na unidade II, ao abordamos a
história sobre as diferentes visões sobre o corpo, não foi corrente a oscilação
entre visões que buscam ensinar as virtudes e os defeitos dessa dimensão
humana, guiando-nos na forma de agir com os outros e conosco mesmos? Na
abordagem de apenas algumas práticas corporais no meio da imensa variedade
das que existem, feita na unidade III, não ficou claro que boa parte dessas
práticas ganhou importância social e cultural devido aos apelos formativos que
a elas foram atribuídos?
Essa ligação do universo da cultura corporal com inquietações
educacionais tem um momento bastante rico no fomento de reflexões quando
estudamos os processos que levaram toda essa importância formativa do corpo
e das práticas corporais para o interior da escola. Por isso, o objetivo central
dessa unidade é refletir sobre esses processos, relacionando as transformações
históricas ligadas ao corpo e às práticas corporais com transformações que
aconteciam nas estruturas educacionais formais. Não é mera coincidência que
um momento privilegiado para essa reflexão compreenda o século XVIII, XIX e
as primeiras décadas do século XX. Nesses duzentos/trezentos anos, a escola
assumiu um importância que não possuía nos séculos anteriores. Mostraremos
que, na construção dessa importância, a escolarização das práticas corporais
desempenhou papéis não negligenciáveis. Vamos à escola!! Bons estudos! FIM
DA INTRODUÇÃO.

INÍCIO TÓPICO 1: EDUCAÇÃO CORPORAL E EDUCAÇÃO FÍSICA


ESCOLAR

Olhando para a realidade da qual participamos na atualidade,


percebemos, sem dificuldades, a presença de várias ações formativas sobre o
corpo. Isso acontece tanto fora da escola quanto no interior dessa instituição.
Fora dela, a profusão de discursos e práticas sobre a saúde, sobre a forma como
nosso bem-estar relaciona-se à forma como vemos os outros, colocou a
dimensão corporal em um lugar bastante valorizado, comparando-se com outros
tempos.

Da mesma maneira, assumimos com naturalidade o fato da paisagem


escolar ser formada não apenas por livros, salas de aula e os materiais que a
formam (cadeiras, quadros, computadores, etc.), mas por quadras, espaços
abertos, materiais esportivos e crianças se movimentando.

Tal naturalidade com esses dois momentos, todavia, não nos deve fazer
esquecer que problemas relacionados a eles também existem. Há críticos que
enxergam na atenção dada ao corpo um exagero, um sinal de decadência moral
e política da atualidade. Nessa ótica, o individualismo e a irresponsabilidade ética
poderiam ser explicados pelo culto ao corpo que, em casos extremos, leva à
problemas psicológicos bastante visíveis na atualidade.

A situação no mundo escolar também não é isenta de problemas. Embora


a naturalidade anteriormente observada aconteça, as críticas à educação física
que existe no mundo escolar são igualmente abundantes: critica-se a educação
física escolar por ela ser apenas um passa tempo, algo sem importância; por
outro lado ela também é negativamente observada por não realizar
possibilidades formativas, por não abranger outras práticas que não sejam as
modalidades esportivas coletivas. Muitos professores de educação física são
vistos como não professores, afinal não ensinariam nada, apenas como rolar
bola.

Esse rápido panorama do mundo atual tem sua história. Ou seja, ao


mesmo tempo em que ele é uma continuidade de ideias e procedimentos criados
em outras épocas, é marcado por características que o particularizam. Muitas
coisas acontecem nesses dois âmbitos - o da educação corporal e o da
educação física escolar -, por vivermos neste mundo, aqui e agora. Por isso,
voltamos a um ponto bastante sublinhado neste livro: tanto para entendermos o
que nos liga ao passado quanto aquilo que nos separa dele é fundamental. A
análise histórica é fundamental.
Para tanto, atente ao fato de que consideramos “educação corporal” e
“educação física escolar” como coisas diferentes, mesmo que estejam muito
relacionadas tanto na atualidade quanto na história.

A educação corporal é toda e qualquer atitude que tomamos em relação


ao corpo, visando adequá-lo, moldá-lo, deixando-o apto para realizar
determinadas ações ou atender a variadas expectativas. Nem sempre essa
educação realiza-se com procedimentos pedagógicos explícitos e intencionais,
acontecendo no bojo de nossas relações sociais, ora de modo imperceptível, ora
de modo mais agressivo e traumático. Exemplos que ilustram essa dimensão
educacional são numerosos: pensemos no empenho social colocado nos
processos que levam as crianças a se tornarem meninos ou meninas. Desde a
escolha das roupas, do jeito com que conversamos com essas crianças, dos
brinquedos com os quais as presenteamos, das expectativas que nelas
depositamos. Muitas vezes, essa educação não ocorre de forma irrefletida:
afinal, já não ouvimos falar de muito sofrimento quando se obriga ou se agride
meninos e meninas que agem, que se vestem ou falam de um modo que foge
ao rumo dito normal das coisas?

Outro exemplo a evidenciar o cotidiano trabalho de educação corporal que


acontece com todos nós, ao mesmo tempo em que nós impetramos a quem se
relaciona conosco, diz respeito ao modo como usamos o volume da nossa voz
e a maneira como nos locomovemos em lugares com muitas pessoas, para citar
apenas duas situações. Como aprendemos o modo e a intensidade com a qual
conversamos com os outros? Quando fazemos isso, nosso olhar não deve ser
de determinadas maneiras, para evitarmos ou a sensação de sermos desatentos
(se olhamos para outros lugares durante a conversa), ou a percepção de termos
segundas intenções se olhamos fixamente nos olhos de nosso interlocutor?

Tudo isso acontece em nossa vida cotidiana e, obviamente, adentra a


escola. Nessa perspectiva, a educação corporal sempre esteve presente nas
diferentes estruturas educacionais formais que existiram na história. Todavia, ao
lado dessa prática formativa necessariamente corporal, existiram outras práticas
que, sistemática e detidamente, se ocuparam com os corpos das crianças e dos
jovens em instituições especificamente criadas para realizar a educação das
novas gerações. Entender esse ponto é incontornável, mas, para isso, alguns
cuidados são necessários. São cuidados importantes, pois ao lado de diferentes
reconhecimentos que as épocas atribuíram ao corpo, unem-se expectativas
educacionais, instituições a serem criadas para realizar essas expectativas e,
sobretudo, o fato de essas instituições serem pensadas e realizadas para
determinadas classes sociais em detrimento de outras. Para entender
historicamente esse processo, vamos estudar três momentos da educação
corporal da vida cotidiana nos quais foram pensadas práticas e instituições
formais para se educar o corpo infantil e juvenil.

O primeiro desses momentos é a já mencionada atenção dada ao corpo


na Antiguidade Grega. A palavra Escola deriva-se de skholé, que em grego
relaciona-se com o tempo livre do trabalho, necessário para o cultivo das
habilidades necessárias ao cidadão. Fundamentais nessa formação foram
ginásios e as palestras, locais específicos nos quais a juventude grega se
educava e se exercitava. Andrónikos (2004, p. 42) observa que desde os
períodos mais recuados da história grega antiga, chegando até Esparta e
Atenas: “Para o heleno antigo, o corpo humano tinha uma importância
extraordinária e, para atingir o seu desenvolvimento máximo, harmonia e
funcionamento efetivo, ele o treinava obstinada e sistematicamente desde a mais
tenra infância”.

O autor fala em “heleno antigo”, mas deve ser observado que nessa
categoria enquadrava-se apenas parcela reduzida daquelas sociedades. Afinal:

É preciso salientar também que todo o sistema educacional de Atenas


exigia gastos consideráveis. Por esse motivo, apenas as classes mais
abastadas tinham condições de arcar com a formação completa dos
jovens (ANDRÓNIKOS, 2004, p. 66).

Menos pela característica de ser voltada a uma reduzida parcela dos


helenos, e mais pelas rotinas e lugares em que acontecia, essa educação
corporal sistemática que vemos na Grécia Antiga distancia-se muito da
educação física escolar que hoje vemos. Além disso, a derivação de nossa
instituição escolar da skholé grega não deve fazer com que esqueçamos que,
institucionalmente, a educação grega era muito diferente da que passou a existir
nos séculos XIX e XX de nossa era.
Antes de abordar o que aconteceu nos século XIX e XX, vamos nos deter
um pouco em outro momento histórico pleno em desdobramentos para a história
da educação corporal institucionalizada: vamos estudar pensamentos, práticas
e instituições. Já estudamos um pouco desse momento nas unidades anteriores.
É nesse momento que a ciência moderna se desenvolve, dando ao corpo uma
grande consideração, pautada no que chamamos de olhar anatômico. Nas
páginas anteriores, também foi dito ter sido nesse momento que as crianças
passaram a ser vistas de uma maneira diferenciada, em um processo que
impactou enormemente a educação. Não é à toa que, a partir dos séculos XVI e
XVII, muitos livros sobre educação passaram a ser escritos e publicados,
endossando a ideia de que a sociedade que então nascia era assumida como
fruto de uma educação racional.

Nesse momento da história, as instituições educacionais com


características mais aproximada disso que entendemos por escola passaram a
existir. A expansão dos colégios na Europa é um fato marcante. Dentre eles, os
Colégios Jesuítas merecem destaque. Embora esses colégios representem de
algum modo uma modernidade que nascia, não é neles que a educação corporal
sistemática tem seu lugar mais visível. É no âmbito familiar, extraescolar, que
muitas práticas e atividades corporais passaram a ser defendidas como
fundamentais à educação da juventude. Tomemos como exemplo dessa
situação o também já mencionado livro “Alguns pensamentos sobre a
educação”, escrito por John Locke (1632-1704) em 1693 ([2012]). O livro se inicia
com um capítulo sobre a saúde, em que são descritos cuidados que vão desde
a alimentação, passando pelo uso das roupas e chegando à necessidade de
exercícios, natação e procedimentos relativos à higiene. Sem eles, avaliava o
filósofo, o “jovem cavalheiro” não conseguiria ser formado para um lugar de
excelência no mundo. Esse lugar, para Locke (1693 [2012]), relacionava-se
muito fortemente com a manutenção e ampliação das riquezas que o jovem
receberia de sua família. Por isso, essa forma educacional não era pensada para
aqueles que não teriam a skholé (tempo livre) necessária para tanto. Ou seja,
educar sistematicamente o corpo era, também nesse momento, uma
prerrogativa de classe. Afinal, aos filhos dos trabalhadores a educação
aconteceria no trabalho produtivo junto com os pais. No momento em que o
capitalismo nascia, podemos ver nesse traço a realização clara da condição
proletária: ser possuidor, apenas, de sua prole.

Essa tendência de valorizar a educação corporal sistemática para uma


determinada classe social vai se alterar apenas no século XIX e no início do
século XX. É um momento de muitas mudanças sociais, oriundas,
principalmente, do processo de crise e expansão planetária das relações
socioeconômicas capitalistas. Do ponto de vista da história educacional, dois
fenômenos nos são muito valiosos: em primeiro lugar, o imenso conjunto de
debates que aconteceram em vários países do mundo, sobre a necessidade de
uma educação pública, laica, universal e obrigatória. Ou seja, pela primeira vez
na história educacional, não sem problemas, retrocessos e resultados diferentes
que podemos observar em muitos países, as estruturas educacionais, sobretudo
a escola, tornam-se passíveis de serem frequentadas também pelos filhos
daqueles que não possuíam a skholé, o tempo livre necessário para serem alvos
de uma educação sistemática. O segundo fenômeno, muito dependente do
primeiro, é o que Faria Filho (2003) chama de escolarização do social, que
podemos entender da seguinte maneira: “O processo e a paulatina produção de
referências sociais tendo a escola ou a forma escolar de socialização e
transmissão do conhecimento, como eixo articulador de seus sentidos e
significados” (FARIA FILHO, 2003, p. 78). Dito de outro modo, estamos vendo
nesse período da história educacional a produção da centralidade que passou a
ter o mundo escolar na educação das crianças. Centralidade essa sustentada na
ideia de obrigatoriedade educacional, legalmente instituída e voltada a todas as
crianças da sociedade.

Esse processo, que aqui descrevo em suas generalidades, aconteceu


com diferentes ritmos e resultados em variados países do mundo em todos os
continentes. Ao lado do processo que fez com que a escola se tornasse
potencialmente acessível a muitas pessoas que antes a ela não tinha acesso, é
importante verificar que, para a realização dessa imensa tarefa de ampliação, a
escola se transformou pedagogicamente, arquitetonicamente, na composição de
seus profissionais, assumindo uma feição bastante parecida com a que
testemunhamos hoje.
Se você se lembrar que boa parte das práticas corporais estavam
assistindo a uma expansão no mesmo período, conforme vimos na unidade
anterior, é fácil compreendermos no interior desses dois processos (a expansão
da escola e a expansão da cultura physica) que muitos esforços aconteceram
para inserir na escola práticas avaliadas como importantes na realização de
ambições educacionais. Grosso modo, é isso que nos permite dizer que, no
mesmo momento em que as sociedades se escolarizam, a escola também
começa a adotar práticas pedagógicas que, com o passar dos anos, aglutinaram-
se na formação do que hoje conhecemos como educação física escolar.

INÍCIO DO SAIBA MAIS: No conjunto de mudanças pedagógicas


experimentadas no momento de expansão da escola para todos e da inclusão
de práticas corporais como educação física em seu interior, uma mudança na
composição do aluno impactou não apenas o funcionamento da escola, mas
muita coisa que acontecia fora dela: conforme a escola pública, laica, gratuita e
obrigatória ganhava espaço nas sociedades, o dia a dia escolar passou a
acontecer com meninos e meninas dividindo o mesmo espaço. Além da novidade
daquilo que o século XIX chama de “educação promíscua” (palavra que possuía
conotação diferente da conotação atual), há que ser sublinhado que a relevância
da educação feminina também conheceu grande impulso.

Nessa educação feminina que passava a ser alvo de grande inquietação, o papel
das práticas corporais como elemento educativo também foi uma problemática
abordada. Não dá para negar que muitas justificativas para essas práticas
educacionais ancoravam-se no fortalecimento dos tradicionais papéis sociais
que atrelavam a mulher ao âmbito do lar e da maternidade. Todavia, não se
duvida que, naquele momento, essa democratização da educação exerceu
muitos impactos nos avanços que hoje temos em relação à igualdade efetiva
entre homens e mulheres. Fonte: o autor, baseado em Antonovicz e Herold
Junior (2012). FIM DO SAIBA MAIS. FIM DO TÓPICO 1.

INÍCIO DO TÓPICO 2: EDUCAR O CORPO NA ESCOLA, PARA QUÊ?


As transformações históricas e pedagógicas que aconteceram e que
levaram a escola a ser um direito de todos foram profundas e intensas.
Igualmente importantes foram essas transformações para possibilitarem que, no
interior dessa nova instituição, práticas corporais tivessem espaço, tempo e
pessoas habilitadas para conduzi-las. Dito de outra maneira, existiram bons
motivos que podem nos ajudar a entender a energia despendida por vários
países em empreender essas mudanças, dando à educação corporal sistemática
dentro da escola para a toda sociedade o seu impulso inicial. Impulso esse que,
vale a pena repetir, redundou nas aulas de educação física que hoje temos em
nossas escolas. Herold Junior (2006) aborda essa mesma problemática,
afirmando o seguinte:

[...] de pensada inicialmente para a educação privada dos filhos das


famílias abastadas, a educação do corpo foi amplamente divulgada e
efetivada na escola pública do século XIX. Mas essa mudança de uma
educação física doméstica para uma efetivada em um espaço público
não se deu de forma evolutiva. Foi preciso a existência de condições
históricas determinadas para que se instaurasse um longo e acirrado
debate sobre a extensão das práticas corporais de uma forma universal
(HEROLD JUNIOR, 2006, p. 44).

Deve ficar bastante claro a você, caro(a) aluno(a), que estamos lidando
com um momento muito importante da história educacional. Conforme vimos nos
parágrafos anteriores, nem a educação formal, nem as práticas formativas
sistemáticas atinentes ao corpo, eram pensadas e voltadas a todos os membros
da sociedade. Com o nascimento da sociedade moderna nos séculos XV e XVI,
sob a égide do capitalismo, ao mesmo tempo em que o fosso econômico entre
classes sociais se ampliou, do ponto de vista político, operaram-se
transformações que levaram a várias lutas pela construção de Estados
representativos, baseados na igualdade política entre cidadãos. A Revolução
Francesa de 1789 é o evento-chave desse processo.

Para a concretização desse Estado, a educação a ser ministrada para


todos os cidadãos tornou-se um ponto bastante discutido. Foi assumido que a
igualdade política em um mundo de desigualdade econômica não seria possível
sem uma educação política que possibilitasse as condições intelectuais e morais
necessárias para a coesão desse novo estado de coisas, difícil de ser mantido
pelas tensões sociais que se ampliavam.

Interessante verificarmos que, nessa luta por construir as justificativas e


as estruturas educacionais capazes de absorver, também, os filhos das classes
trabalhadoras, o corpo tornou-se um assunto importante e, assim, visto como
necessariamente educável nas estruturas institucionais que se expandiam.
Considerar o corpo como objeto de uma educação sistemática pode ser
entendido se olharmos o panorama cultural do século XIX e compreendermos
alguns desdobramentos que explicam esse olhar pedagógico para o corpo.

Em primeiro lugar, vale observar que a situação social gerada pelo


desenvolvimento do capitalismo industrial criou bastante preocupação. De um
lado as revoluções industriais que aconteceram no fim do século XVIII e início
do século XIX, ao mesmo tempo em que ampliaram a produção de riqueza,
levaram a uma degradação corporal da classe trabalhadora. Para uma
sociedade que se construiu ao redor da dignidade do trabalho, a situação de
miséria e de aviltamento dos trabalhadores tornou-se uma problemática. Soma-
se a essa questão o processo de urbanização experimentado nos países centrais
do capitalismo, gerando aglomerações que tornaram essas constatações ainda
mais gritantes. Sobretudo, se for levado em conta que, em vários países,
pressões pelo voto universal estavam sendo vencedoras, gerando muita
insegurança nas classes dominantes. Como educar, integralmente, esse novo
cidadão, considerado cheio de vícios, doenças e sentimentos que poderiam levar
à destruição social? Repare que políticos, burguesia e demais estratos sociais
participantes das estruturas de poder daquele tempo possuíam uma visão
bastante negativa de trabalhadores, camponeses e de todos aqueles que
ficavam à margem das promessas de fartura do mundo industrial.

Ao lado dessas importantes variáveis históricas sociopolíticas, devem ser


mencionadas questões que tocaram a criação de novas visões sobre o corpo
que vinham de desdobramento de descobertas científicas que aconteceram no
século XIX. Mesmo que não tenha sido a intenção de Darwin, sua teoria sobre a
origem e a evolução das espécies impactou posições simpáticas à ideia de
educar corpos sistematicamente. Afinal, se os fracos ficam no meio do caminho,
tratava-se de cultivar, fortalecer, aperfeiçoar, criar condições de sobrevivência
que tornassem um povo mais capaz que outro. Esse ideário, conhecido como
“darwinismo social”, fundamenta explicações que buscavam oferecer
entendimentos sobre as diferenças entre classes sociais, entre países, entre
culturas, dando ao corpo uma centralidade inegável na hora de justificar
privilégios socioeconômicos e políticos, assim como as vias legítimas para
ascender à possibilidade de gozá-los. A partir do corpo e por meio dele, chegar-
se-ia a uma sociedade mais pacífica no que tange aos conflitos internos e a um
país mais pujante e capaz de conquistar inimigos, incapazes de fazer frente a
um corpo social robusto e educado. Interessante verificarmos que uma das
principais obras educacionais escritas nesse momento foi composta por Herbert
Spencer (1820-1903), um dos responsáveis pela divulgação do “darwinismo
social”. A obra em questão é “Da educação intellectual, moral e physica”, de
1863. Depois de criticar que ainda no seu tempo muitos ocupavam-se mais da
saúde de seus animais do que da própria (ele se referia aos nobres e
endinheirados, possuidores de belos animais), o autor afirma que “a primeira
condição da prosperidade nacional é que a nação seja constituída de bons
animais” (SPENCER, 1886, p. 205). O trocadilho é interessante, pois ele queria
lembrar ao seus contemporâneos que é pela educação physica que
desenvolveríamos as forças depositadas em nossa natureza corpórea, em nossa
animalidade. Por isso entendemos seu pensamento quando afirma, de um modo
que se tornou corrente aos defensores da educação corporal praticada dentro
da escola, o seguinte:

Torna-se pois de uma importancia particular o educar as crianças de


modo que não só estejam aptas para sustentar a luta intelectual que
as espera mas que possam também suportar fisicamente a excessiva
fadiga a que serão submetidas (SPENCER, 1886, p. 206).

Para Spencer (1886, p. 206), educar fisicamente era colocar a “escola de


acordo com as verdades da ciência moderna”. Nas partes finais de seu livro,
lemos outra ponderação que nos faz captar um pouco da atmosfera pedagógica
e cultural que estava pavimentando o caminho que levou algumas práticas
corporais para dentro da escola:
Os que, na preocupação exclusiva de desenvolver o espírito, descuram
os interesses do corpo, não se lembram de que o bom êxito neste
mundo depende mais da energia do que dos conhecimentos
adquiridos, e de que arruinar a constituição com o excesso de trabalho
intelectual é ir procurar a própria derrota. A vontade forte, a infatigável
atividade, devidas ao vigor fisico, compensam em grande latitude até
as importantes lacunas da educação; e, quando se reúnem a esta
cultura suficiente que é possível obter sem sacrificar a saúde,
asseguram a quem as possui uma vitória fácil sobre os concorrentes
enfraquecidos por um excesso de estudo, muito embora eles fossem
prodígios de ciência (SPENCER, 1886, p. 263).

Mesmo que o autor apresente suas ideias de um modo a nos fazer


perceber que havia uma luta contra posicionamentos contrários, ou seja, havia
aqueles que pensassem serem as práticas corporais algo inútil, é necessário
destacar que posturas semelhantes a de Spencer caracterizaram o período que
estamos analisando: século XIX e início do XX.

Quando estudamos história, é importante perceber que cada realidade


apresenta nuances e particularidades que são fundamentais para a construção
de um panorama explicativo acurado. Todavia, tão importante quanto essa
consideração, é fundamental você não perder a visão de totalidade de um
processo que aconteceu em vários países de um modo interessantemente
similar. Scharagdrosky (2011), na apresentação de sua obra, verifica que os
capítulos que formam a coletânea por ele organizada abordam em 15 países as:

[...] práticas, saberes e discursos que possibilitaram a emergência da


educação física escolar e das demais formas de educação corporal
ligadas a ela (ginásticas, exercícios físico ativos, jogos, esportes,
colônias escolares, excursões, etc (SCHARAGDROSKY, 2011, p. 15).

Dito de outra maneira, você deve se esforçar para perceber que está
estudando um período em que muitas realidades culturais e econômicas
diferentes entre si estavam muito empenhadas em levar à escola rotinas
educacionais que tivessem o corpo como foco principal. FIM DO TÓPICO 2.

INÍCIO DO TÓPICO 3: A EDUCAÇÃO FÍSICA TORNA-SE… ESCOLAR


Caro(a) aluno(a), já vimos nas páginas anteriores que a expressão
“educação física” foi uma novidade se considerarmos a presença das práticas
corporais na cultura grega antiga. Se concepções da antiguidade tivessem
permanecido intocadas no decorrer dos séculos, “educação somática” seria algo
bem mais aproximada do athleta grego.
“Educação física” é uma expressão em que o termo “física” adjetiva ou
qualifica a educação. No mundo moderno que passou a existir depois dos
séculos XV, XVI e XVII, vimos que o corpo passou a ser identificado como a
natureza circundante, tornando-se objeto, passível de ser medido, mensurado,
então, cognoscível por meio da quantificação da realidade (CROSBY, 1999).
Diferente do intelecto e da moral - dimensões humanas que foram tomados como
não abordáveis pela ciência -, o corpo passou a ser alvo, assim, de uma
educação específica - a educação física. Um registro importante da utilização
dessa expressão encontramos no também já mencionado livro de John Locke
sobre a educação.
Esses esclarecimentos são importantes, pois estamos estudando nesta
unidade os processos que levaram essa educação (a educação física) para
dentro da escola. Ou seja, é necessário você saber que, embora esteja
reconstruindo a trajetória que nos traz até as aulas do componente curricular da
educação básica chamado educação física, no século XIX e até as primeiras
décadas do século XX essa educação se fazia presente e conhecida pelo
denominação da prática que concretizava essa educação. No caso que estamos
focalizando, a ginástica foi a prática que, em diferentes lugares, passou a povoar
os currículos da nascente escola de massas.
O ingresso da ginástica ao mundo escolar aconteceu por uma série de
motivos que devem ser ponderados para se verificar que isso não aconteceu de
forma óbvia, sem discussão e sem desentendimentos. Afinal, se no século XIX
já havia um grande número de práticas e maneiras de se relacionar com ela,
para efetivar a existência da dita educação física na escola, o esforço foi
pedagogizar, ou seja, analisar as práticas disponíveis e verificar quais delas
seriam passíveis de aproveitamento no mundo escolar que se transformava e se
expandia.
Nesse ponto, vou pedir para que abramos um parêntese. Voltarei a falar
sobre essa pedagogização das práticas corporais depois de pensar com você as
transformações pedagógicas que aconteciam no mundo escolar, mundo esse
que recebeu em seu interior a educação física.
Se havia escolas antes dos séculos XIX e XX, é somente a partir desses
séculos que a escola assume características que lembram, bastante, a escola
que todos nós conhecemos. Em primeiro lugar, com a educação tendo sido
alçada à condição de direito e obrigação de todos, a quantidade e a organização
das escolas mudaram, imensamente.
No que diz respeito à quantidade, é fácil perceber que os poucos colégios
existentes até então para os filhos daqueles que tinham condição de pagar por
uma educação formal, eram insuficientes para receber, também, os filhos da
classe trabalhadora. Iniciou-se em vários países nos anos oitocentos e
novecentos a construção dos sistemas nacionais de ensino. Cada país que tinha
colocado a educação como direito de seus cidadãos e como obrigação do Estado
viu-se na necessidade de criar escolas e organizá-las para que as crianças a
partir de uma determinada idade passassem a frequentá-las. O aumento na
quantidade de alunos e de escolas colocou a problemática relativa ao número
de professores capazes de suprir a demanda por educação que passou a existir
no período. Se a necessidade de formar professores estimularam a ampliação
das escolas normais, outros processos colaboraram para abordar esse
problema. Um exemplo muito interessante e capaz de nos fazer perceber um
traço muito visível das escolas na atualidade é o que se conhece como
feminização do corpo docente, por meio da qual um número cada vez maior de
mulheres passou a se ocupar da atividade docente das escolas.
Outra mudança que penso ser interessante abordar nesse parêntese que
abri anteriormente é o desenvolvimento da seriação escolar. Até os séculos XVIII
e XIX, as escolas funcionavam sem a conhecida divisão de seus alunos por
faixas etárias semelhantes, por séries. A adoção desse procedimento casa-se
ao contexto de ampliação da demanda por educação escolar, estipulando uma
incontornável necessidade de organizar da forma mais racional possível o aluno
para se promover a necessária eficiência a uma instituição custeada pelos cofres
públicos e tornada mais complexa pelo afluxo de crianças oriundas de espaços
familiares muito distantes do mundo letrado.
A seriação, de fato, possibilitou uma maior organização do cotidiano
escolar. Ela leva ao surgimento da ideia de classe, que vai galgando,
paulatinamente, níveis mais aprofundados de conhecimento. Mas a seriação e a
criação desse ambiente social chamado classe também trouxeram novos
problemas. Problemas metodológicos, pois a reunião de crianças de mesma
idade possibilitou um ensino simultâneo, em que o professor ensina o mesmo
conteúdo a todas as crianças ao mesmo tempo. Ora, sabemos que nem todos
aprendem nos mesmos ritmos e com a mesma intensidade. Além disso, a
reunião de crianças da mesma idade gerou o desafio de o professor ser mais
interessante do que o colega ao lado. Esse conjunto de mudanças levou à
necessidade de uma profissionalização docente, se entendermos nessa
expressão (muito em voga na atualidade) o fato de os professores passarem a
necessitar de um conjunto de conhecimentos para viabilizar o ensino, ao lado do
conhecimento do assunto a ser ensinado. Atenção: vamos fechar o parêntese
neste ponto e voltar a falar sobre o fato de a educação corporal sistemática
tornar-se escolar.
A escola transformou-se para atender à necessidade de escolarizar a
todos. No interior dessas transformações, o ingresso das práticas corporais com
finalidade educacional é um traço marcante. Repare uma coisa importante: a
prática de uma educação física nasce no mesmo momento da escola pensada
como uma instituição educacional a ser frequentada pelos filhos oriundos de
todas as classes sociais.
Do mesmo modo que a escola teve que se transformar para tornar essa
ideia concreta, a educação a ser obtida por meio de práticas corporais no interior
da escola foi alvo de muitas reflexões pedagógicas.
A necessidade dessas reflexões dava-se, pois, ao longo da história de
muitas épocas diferentes. Vemos que no cotidiano de muitas classes sociais
havia práticas corporais que existiam com os mais variados objetivos. Lazer e
divertimentos eram os principais, o que podia ser visto tanto nas classes
economicamente abastadas quanto nas classes que viviam de seu trabalho.
Em cima dessa cultura de práticas corporais se deu a discussão sobre as
maneiras com as quais deveria acontecer a educação corporal no interior da
escola de massas. O principal problema para realizar essa intenção era verificar
quais dessas práticas eram educativas e quais existiam apenas para o deleite
imediato de seus praticantes - por exemplo, aquelas que chamavam a atenção
por suas acrobacias e performances. Bruhns (1999) mostra que no século XIX
as demonstrações de características circenses tornaram-se muito criticadas. A
crítica justificava-se pelo olhar pedagógico, que via nesses usos do corpo feitos
pelos acrobatas um desvirtuamento, uma espécie de aberração exibicionista que
nada agregava à formação física, moral e intelectual de seus praticantes.
Fundamental nessa análise é o fato de esses exibicionistas sustentarem-se,
economicamente, dessas demonstrações, ou seja, eram trabalhadores.
Outro alvo de crítica por parte daqueles que pensavam na inclusão das
práticas corporais no interior da escola era o chamado atletismo. Essa
denominação pejorativa era dada a toda prática de assumir um caráter
meramente competitivo, levando pessoas e grupos a reunirem-se para
assistirem aos embates para seu mero entretenimento. Note que no século XIX
e início do século XIX a imagem do atleta como portador de virtudes ainda não
existia. O que estava sendo buscado era uma abordagem educativa às práticas
corporais, abordagem essa que deveria ser descolada de qualquer utilidade
prática imediata. Ou seja, não era uma técnica a ser ensinada pelo objetivo de
se fazer algo mais rápido, ou executar um movimento mais difícil ou bonito. A
questão a ser respondida era: determinada prática corporal é capaz de colaborar
na educação dos cidadãos? Estudar essa questão me levou a concluir o
seguinte:

A dimensão corporal da educação deveria ser adjetivada como


educação física, diferente das práticas corporais arraigadas que,
afeitas a um individualismo e sensualismo desagregadores, eram
concebidas como instrução física (HEROLD JUNIOR, 2005, p. 244).

Estava em jogo a oposição entre “instrução física” x “educação física”


sendo essa a preferida por parte de teóricos e pedagogos que pensavam a
educação que deveria acontecer dentro das escolas. É muito interessante
verificarmos o modo como as práticas corporais passaram a ser alvo da
discussão educacional. Se verificarmos que no mesmo período, conforme
estudamos na unidade anterior, a ginástica e o esporte estavam se
desenvolvendo com conotações aproximadas à ciência e à educação, constata-
se um processo em que muitas das práticas corporais e da adesão a elas que
hoje assistimos em nosso cotidiano foram se costurando como um grande
projeto educacional que visava a instauração de um projeto de coesão social que
via a possibilidade de a escola educar o corpo infantil e educar por meio do corpo
infantil. Nesse prisma, o corpo, explicitamente, deixa de ser uma preocupação
individual para se tornar alvo de inquietação pública, política. Para subsidiar esse
pensamento, peço-lhe que leia uma das conclusões às quais chego em outro
estudo:

A crença na educação formativa do cidadão como panacéia social está


expressa na importância educativa atribuída por esses educadores às
atividades corporais, tanto na formação desse homem, se aplicada
corretamente, ou na destruição social, caso os preceitos a serem
adotados não o sejam pelo crivo "educativo". Longe de uma mera
preocupação com o "desenvolvimento da aptidão física" e com
aspectos higiênicos e eugênicos, as atividades físicas foram pensadas
em sua importância educacional. A atividade pela atividade, ou
somente para aumento da força e flexibilidade, era, ao contrário, aquilo
que deveria ser rechaçado. As práticas corporais foram consideradas
e colocadas no interior da nascente escola pública pelo
reconhecimento cabal da sua relevância na formação do cidadão, do
indivíduo responsável também em seus comportamentos e
pensamentos. Havia, por parte dos proponentes da Educação Física,
um projeto social, tendo em vista os fatos e suas consequências. O
corpo e sua educação escolar foram componentes de extrema
relevância desse projeto sócio-histórico (HEROLD JUNIOR, 2004, p.
174).

Como resultado dessas considerações de característica pedagógica


feitas pelos envolvidos nos debates que então ocorriam, verifica-se que a prática
corporal que mais se aproximou dessa ambição de educar fisicamente foi a
ginástica. Discutiu-se bastante quais das variadas escolas ginásticas
proporcionavam a educação mais próxima do que se ambicionava, mas a
possibilidade de dividir, controlar e medir os movimentos foi fundamental para
dar a essa prática o adjetivo de racional, educativa, sendo por meio dela que,
inicialmente, a educação física existiu nas escolas. E essa existência
materializou-se inclusive na denominação: gymnastica era o modo com que se
reconhecia que, em determinada instituição, existia uma educação física
racionalmente colocada para proporcionar a formação integral do cidadão. FIM
DO TÓPICO 3.

INÍCIO DO TÓPICO 4: AS CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO, O CORPO E A


EDUCAÇÃO FÍSICA: O LONGO SÉCULO XX
Para aqueles que se interessam em conhecer desdobramentos históricos
do mundo contemporâneo, o historiador inglês Eric Hobsbawm é fundamental.
Em sua numerosa e importante obra, há o livro chamado “Era dos Extremos”
(HOBSBAWN, 1994). Nela, o historiador avalia o século XX, por ele chamado de
longo. Longo pela intensidade e profundidade das mudanças, pelo drama de
suas guerras e, sobretudo, por muitos de nossos problemas e modos de
enxergar as realidades sociopolítica e cultural gestadas nesse momento.
Para você que está aprendendo a pensar no campo pedagógico e profissional
da educação física, o século XX também possui uma quantidade imensa de
variáveis que devem ser conhecidas nos impactos que elas possuem para
muitas situações e contextos profissionais comuns no campo da educação física.
Em primeiro lugar, vale observar que, na virada do século XX, o processo
de escolarização social (FARIA FILHO et al., 2004) se ampliou e, em escala
planetária, fez com que o acesso à escola se universalizasse. Obviamente,
nesse ponto é importante não esquecermos que ainda há países ou localidades
para quem os benefícios do mundo escolar estão muito distantes. Ainda assim,
é fácil encontrarmos dados mostrando que realizar a ideia de educação como
um direito de todos e um dever do Estado é algo concreto. Uma realidade que
sinaliza a centralidade que a escola passou a ter para os processos formativos
do mundo contemporâneo. E não se esqueça: essa centralidade não se deu sem
embates, discordâncias e resistências. Para termos uma ideia dessas
dificuldades, é valioso considerar que nas primeiras décadas nas quais enviar
as crianças para a escola se tornou uma obrigação para pais, muitos recusavam-
se a enviar seus filhos para elas. Muitos acreditavam que a educação era
prerrogativa privada, muitos defendiam que uma escola laica era algo
abominável para as concepções cristãs e havia aqueles que pensavam que a
educação escolar não deveria ser oferecida aos trabalhadores. E isso não era
uma consideração apenas das classes dominantes, mas uma posição corrente
em muitos lares nos quais os pais empregavam seus filhos no trabalho produtivo.
Dito de outra maneira, o aprendizado necessário para tornar a ida à escola um
hábito e uma possibilidade concreta foi longo, penoso, com direito a retrocessos
e críticas. Mesmo assim, ele aconteceu.
Paralelamente a essas dificuldades de características mais políticas e
ideológicas, fundamental para tal situação foi o enfrentamento das dificuldades
pedagógicas geradas pela frequência massiva de crianças. Do ponto de vista
pedagógico, vimos que a escola se transforma para tornar o novo dia a dia
escolar possível. Nessa transformação, vale sublinhar a formação e a ampliação
de uma reflexão sistemática, de pesquisa científica sobre os problemas e as
possibilidades da escola popular.
Os desafios gerados pela nova realidade educacional no mundo
construído nos século XIX e XX levou ao florescimento das Ciências da
Educação. Tratam-se de especialidades científicas que passaram a se ocupar
dos problemas e da inovação do contexto escolar com vistas a realizar uma
ambição didática que remonta ao século XVII de Comênio: ensinar mais, melhor,
mais rapidamente e com prazer.
A necessidade dessa reflexão se fez sentir, pois passadas as primeiras
décadas de escolarização obrigatória, o painel pintado por aqueles que
avaliavam o mundo escolar não era animador. As escolas passaram a ser vistas
como enfadonhas, amedrontadoras, incompetentes na tarefa de bem ensinar e
educar. Seus professores foram questionados sobre a correção e seus
procedimentos, e os assuntos ensinados tomados como irrelevantes do ponto
de vista educacional. Os móveis, os materiais, as instalações nas quais
funcionava a escola… parece não ter havido dimensão do mundo escolar que
tenha ficado sem receber o olhar reprovador. Esse olhar se fazia fortalecer pela
recorrência com que dados foram produzidos, demonstrando dificuldades
estruturais experimentadas por muitos países que buscaram universalizar a
educação.
Estudos em psicologia da educação, filosofia da educação, sociologia da
educação, história da educação, didática e biologia educacional, surgiram e
ganharam espaços em universidades e em centros de pesquisa, indicando que
a questão educacional se tornara algo muito relevante para o enfrentamento e
entendimento dos problemas sociais que então existiam ou passaram existir.
O público escolar passou a ser alvo de investigações cada mais vez mais
detalhadas. O que se buscava era entender melhor os alunos para fornecer-lhes
uma educação que, em seus procedimentos, fosse menos empírica e
cientificamente embasada. Exemplificando o resultado desse empenho, temos
os estudos de Stanley Hall (1846-1926), explicando o comportamento
adolescente. Jean Piaget (1896-1980) na década de 1930 já iniciava a sua
importantíssima obra ao explicar como se desenvolvem, intelectualmente, as
crianças em seus diferentes estágios. Pierre Bovet (1878-1965) produzia
elementos muitos importantes para constatar que as crianças tinham na
competição e nas disputas e lutas entre si não um elementos de indisciplina ou
um traço a ser educado, mas uma característica incontornável da natureza
infantil a ser aproveitada pela escola para melhor ensiná-las e educá-las de um
modo a vencer os complexos desafios formativos que se impunham no mundo
escolar e só por meio dele poderiam ser encarados.
Esse conjunto de estudos científicos produzidos direta ou indiretamente
ligados ao campo educacional levaram à formação de críticas e proposições que
visaram dar à escola uma nova característica. A força desse empenho foi tanta
que estudiosos o denominam de “movimento renovador”, de “escolanovismo”,
de “escola nova”. Note que todas essas denominações, claramente laudatórias
ou elogiosas, foram produzidas no calor das críticas às estruturas escolares
existentes, adjetivadas de “escola tradicional”, aquela que ensinava uma prática
destituída de qualquer embasamento científico mais profundo. Embora essa
visão possa ser problematizada pelo fato de se sustentar em embates
pedagógicos marcados pela polarização de visões diferentes do que deveria ser
a instituição escolar, foi ela que ganhou notoriedade e impactou modos de
entender a educação vista como necessária à nova escola.
Fechando o foco na questão específica da educação corporal sistemática
existente na escola, esse conjunto de reflexões políticas, pedagógicas e
científicas impactou enormemente a educação física. Com o desenvolvimento
de análises psicológicas relativas à natureza infantil e aos modos corretos de se
relacionar a ela, assiste-se a uma grande valorização de práticas até então
pejorativamente adjetivadas de infantis. O jogo e a brincadeira, antes vistos
apenas como meros passatempos, ausentes de qualquer intencionalidade
pedagógica, passaram a ocupar uma inegável centralidade pedagógica não
apenas na educação física, mas na pedagogia de forma geral. Na pedagogia de
forma geral, pois o ensino passou a ser considerado como mais efetivo se
abarcasse o lúdico, a experiência infantil autêntica. A educação, pelo menos nos
livros dos estudiosos influenciados pelo escolanovismo, ganhou uma
característica mais prática, com as crianças fazendo objetos, manipulando-os,
colorindo-os, conversando sobre eles. A ambição pedagógica era afastar a
escola das rotinas tradicionais em que um professor fazia sua palestra para
crianças imobilizadas em suas cadeiras.
No campo específico da educação física que acontecia nas escolas, essa
nova consideração pedagógica levou a uma crítica ao predomínio da ginástica
como prática formativa. O caráter controlado, medido, ritmado, controlado
externamente por um professor que apenas impunha formas de movimentação,
paulatinamente, recebeu outra avaliação. De exemplo maior do caráter
educativo que poderia ter a movimentação corporal, passou-se a crítica à
distância entre essa prática e os anseios dos jovens e das crianças. Em seu
lugar, os jogos e esporte. No que diz respeito aos jogos, lembre-se que, quando
falamos sobre eles na unidade anterior, fiz menção a Johan Huizinga e ao livro
“Homo Ludens”. Ou seja, essa valorização do jogo não vinha apenas do campo
pedagógico e escolar. No que diz respeito ao esporte, é interessante o fato de
uma prática ganhar espaço social de forma tão acelerada, passando de uma
forma cultural local e socialmente específica de uma classe, ganhando ares de
possibilidade educacional. Essa possibilidade, no caso da educação física,
marcou-a de modo profundo, se considerarmos a maneira como ela se tornou
quase que sinônimo de aulas de educação física. Aqui tem um ponto muito
interessante para verificarmos a importância de estudarmos a história da
educação física: note que está se construindo um traço pedagógico das aulas de
educação física que na atualidade se configura em um dos grandes desafios
desse componente curricular. Você aprenderá durante o curso que o esporte não
é e não deve ser o único conteúdo das aulas que vier a ministrar nas escolas.
FIM DO TÓPICO 4.

INÍCIO DO TÓPICO 5: O CORPO TEM LUGAR NA ESCOLA?

Conforme os problemas pedagógicos da educação física escolar na


atualidade venham a ser estudados por você, será fácil perceber que muitas
dificuldades encontradas pelos professores de educação física no
desenvolvimento de seu trabalho são explicadas pela posição secundária do
corpo e de sua educação, se comparadas à preocupação que temos para
ensinar o conteúdo da maioria dos outros componentes, conceituais por
excelência. É uma explicação intrigante, se considerarmos que ela deixa
entrever que a escola não reconhece, plenamente, as práticas corporais na
escola, não dando-lhes o espaço que, defendemos, elas deveriam ter. Um
exemplo bastante elucidativo desse posicionamento podemos ler em um livro
que exerceu (e ainda exerce, em minha avaliação) grande influência no campo
da educação física escolar. Trata-se do já mencionado “Educação de corpo
inteiro”, de João Batista Freire. No início do livro, ele diz:

Às vezes falta visão ao sistema escolar, às vezes faltam escrúpulos. É


difícil explicar a imobilidade a que são submetidas as crianças quando
entram na escola. Mesmo se fosse possível provar (e não é) que uma
pessoa aprende melhor quando está imóvel e em silêncio, isso não
poderia ser imposto, desde o primeiro dia de aula, de forma subida e
violente. Dá para imaginar o que representa para uma criança, que
passou sete anos se movimentando, ser subitamente “amarrada” e
“amordaçada” para, como se diz, “aprender” o que é, para ela, uma
linguagem, às vezes, totalmente estranha? A linguagem da imobilidade
e do silêncio? Seria o mesmo que pegar um professor idoso, que há
muito deixou de praticar atividades físicas, a não ser as mais triviais, e
obrigá-lo a correr por alguns quilômetros em ritmo acelerado. A
violência seria idêntica. O interessante é que nós, professores, não
suportamos a mobilidade da criança, mas queremos que ela suporte
nossa imobilidade (FREIRE, 1994, p. 12).

É explícita e contundente a crítica feita por Freire (1994) não apenas à


escola enquanto uma instituição que não conhece aqueles que são o seu
principal alvo, mas críticas aos professores e a sua ignorância, que imporiam a
violência da imobilidade às crianças. Nessa ótica, crianças, corpo e movimento
são colocados como sinônimos, reverberando ideias pedagógicas que você já
verificou serem características da nova escola e defendidas por todo o século
XX, posicionando-se contra a escola tradicional. Fica fácil perceber, também,
que ainda nos dias de hoje essa nova escola parece não ter se concretizado se
considerarmos as palavras de Freire (1994). Antes disso, temos a percepção de
que é o ensino tradicional que prevalece se considerarmos as ácidas críticas do
excerto lido.
Embora a citação anterior deixe entrever uma resposta negativa à
questão com a qual finalizo esta unidade, ou seja, o corpo não tem lugar na
escola, avalio como interessante pensá-la sob uma perspectiva histórica. Esse
procedimento relativiza a contundência da negatividade apontada com a
eloquência do exemplo anterior. Por outro lado, uma resposta positiva será
mostrada como um opção duvidosa. Com efeito, mesmo com a necessidade de
tomarmos decisões e oferecermos respostas aos problemas que nos afligem, o
zelo de quem pensa nas coisas com muito cuidado obriga o analista a esperar,
um pouco mais, para pronunciar seus vereditos!
Como você pôde perceber nos itens anteriores, a intensidade dos debates
sobre a inclusão das práticas corporais na escola nos faz entender que é apenas
a partir do século XIX que a educação física ganha um espaço importante nas
estruturas escolares. Explorando ainda um pouco mais o que foi dito, sobretudo
no item anterior, sublinho que as defesas sobre a pedagogização das práticas
corporais não foram vozes unânimes no cenário educacional. Havia, de fato,
uma grande desconfiança não apenas sobre a valia da escola a ser oferecida
para todos os membros da sociedade, mas duvidava-se sobre a necessidade de
trazer para seu interior o cuidado com a natureza corporal.
Sabemos que, na época clássica da antiguidade grega, skholé era o
tempo livre considerado como valioso para um aprimoramento do cidadão que
se sustentava não apenas na relevante capacidade argumentativa, mas também
na dimensão estética e atlética do corpo treinado. Importante nessa reflexão é o
fato de a escola, tomada como um lugar específico de formação da infância e da
juventude, a partir da idade média ter se transformado em um lugar em que a
dimensão intelectual ganhou proeminência. Essa ênfase na educação intelectual
continuou a marcar as escolas que existiam na época moderna, apesar da
existência de muitos filósofos que advogassem a importância da educação física.
Lembremos aqui a já citada ênfase de John Locke na questão. Todavia, a ênfase
dada pelo filósofo inglês à educação física era voltada à educação que acontecia
no seio familiar, e não a que tinha lugar nos colégios nos séculos XVII. Por essa
razão, é muito marcante e relevante para nós o que aconteceu no século XIX e
XX, tanto em termos pedagógicos que dizem respeito não apenas às
transformações ocorridas na escola, quanto no que diz respeito às
transformações que levaram à institucionalização da educação física por meio
da presença da ginástica na escola.
A relevância das transformações que levaram à presença da educação
física como prática escolar não deve nos levar a pensar que o corpo é abordado
na escola apenas por meio disso que hoje chamamos de componente curricular.
Por essa razão a minha insistência em construir um entendimento no qual você,
querido(a) aluno(a) saiba diferenciar educação corporal de educação física.
Se a educação física, entendida como lugar e espaço de práticas
voltadas, sistematicamente, ao esporte, passou a ser pensada para todos e
todas apenas no século XIX, a educação corporal existiu na educação de todas
as outras épocas e sociedades. Essa afirmação vale, inclusive, para aqueles que
defendiam a irrelevância do corpo, o seu caráter pecaminoso/libidinal, ou mesmo
para aqueles que, ao constatarem que a força e a resistência corporal não eram
mais necessárias à sobrevivência do homem, cuidavam apenas do
desenvolvimento da inteligência. Isso podemos ver claramente não em discursos
educacionais, mas em estratégias disciplinadoras que caracterizam a rotina não
apenas da escola atual, mas das escolas em outras épocas e da educação que
também ocorre fora delas. Desse ponto de vista, a educação corporal é algo
sempre presente e muito eficaz para o alcance de muitos resultados educativos.
Essas reflexões são importantes para esboçarmos respostas à questão
que intitula esta parte da unidade. Afinal, elas nos sinalizam que o corpo sempre
esteve presente, ou sempre teve espaço e tempos a ele dedicados. Mas o
estudo do que estava acontecendo na escola e a presença que o corpo passou
a ter nela a partir do século XIX colocou um elemento histórico novo e
revolucionário: ele inaugura um momento em que educação corporal e educação
física escolar ladeiam-se, em um tempo em que tanto a escola quanto as práticas
corporais ganharam muita atenção e esforços sociopolíticos envidados por
muitos setores sociais e educacionais para efetivarem sua importância.
Efetivação essa que se mostrou plena em dificuldades durante a história do
longo século XX. São elas que explicam desconfianças em relação ao poder da
escola, quando as práticas corporais das crianças e dos jovens são pensadas
pedagogicamente. Mesmo que a luta encampada por Freire (1994) deva ser
posta em perspectiva história para se compreender que ela nasce junto com a
própria escola popular e foi por ela suas características possibilitadas, devemos
reconhecer que a história nos mostra que essa luta por definirmos o espaço das
práticas corporais na escola e na educação de forma geral é de inegável valor
para que a escola e os demais espaços educacionais sejam valorizadas,
sobretudo pelos alunos que a frequentam.
Deve ser observado que à escola, em nível mundial, tem se dirigido
muitas críticas que, frequentemente, dão conta de sua defasagem em relação
ao mundo que se descortinou no início do século XXI, em relação à presença
massiva de novas tecnologias que subvertem modos rotineiros de se lidar com
o conhecimento a ser transmitido. Do mesmo modo, as práticas corporais, o
lazer, a saúde e o bem-estar individual e social das pessoas têm se costurado
como elementos muito dependentes entre si. Entender como esses elementos
que colocam o corpo no centro da atenção do mundo contemporâneo
relacionam-se com o futuro e o passado da instituição escolar é uma reflexão da
qual não podem fugir os professores de educação física. Nunca é demais repetir:
a coragem para pensá-la tem no estudo da história uma de suas principais
fontes.

INÍCIO DO REFLITA: Essa escola, que nasceu e se expandiu nos séculos XVIII
e XIX, construiu em seu interior as bases pedagógicas do que hoje conhecemos
como educação física escolar. FIM DO REFLITA.

INÍCIO DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS: Prezado(a) aluno(a), chegamos ao


final da penúltima unidade deste livro, percebendo que corpo, práticas corporais,
objetivos educacionais e instituições educacionais possuem uma relação
passível de ser investigada e entendida historicamente. Consoante ao ímpeto
que me leva a escrevê-lo e você a procurar um curso superior de educação física
que lhe possibilitou lê-lo, mais uma vez nossos olhares se voltam para o que a
história das práticas corporais, da educação corporal e da educação física
escolar realizaram de um modo que tem caracterizado nossas reflexões.
Partimos de problemas pedagógicos e culturais enfrentados por nós nos
dias de hoje, indo a um determinado tempo distante do nosso, cronologicamente,
e percebemos, na tensão entre diferenças e semelhanças entre outros contextos
e o nosso, que muitos assuntos aparentemente simples e não enigmáticos
mudam de feição. Afinal, se a importância da escola é algo que muitos não
questionam e outros afirmam, simplesmente, não existir, as análises evidenciam
que devemos verificar que essa importância nem sempre existiu, e, do mesmo
modo, afirmar sua inutilidade no tempo é abrir mão de pensá-la atentamente,
como fizeram aqueles que a criaram nos séculos XVIII, XIX e início do século
XX.
O mesmo pode ser dito em respeito à presença das práticas corporais na
rotina escolar: se de um lado, hoje, muitos duvidam do valor e do potencial
pedagógico das aulas de educação física, vimos que essas dúvidas também
existiram no momento em que foram construídas as bases que formam o
conjunto de procedimentos didáticos, os assuntos e os professores que dão vida
a esse componente curricular na escola.

A relevância dessa discussão pode ser atestada pelo fato de ela ter
existido, praticamente, em todos os países do mundo que encontravam-se em
condição sócio-histórica de escolarizar seus cidadãos. Abordada a generalidade
desse processo, caminhamos para o encerramento de nosso passeio histórico
pela educação física, focalizando, de um modo mais detalhado, como a
construção da educação física escolar foi discutida e quais os desafios que ela
enfrentou no contexto brasileiro. FIM DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS.

INÍCIO DAS ATIVIDADES DE ESTUDO

1) Diferencie educação corporal de educação física escolar.

2) De que maneira as práticas corporais passaram a ser avaliadas no século


XIX?

3) Especifique as características que fazem a escola que surgiu nos século


XVIII, XIX e XX ser diferente das configurações escolares precedentes.

4) A escolarização da sociedade que ocorreu na virada do século XX teve


qual impacto para a história da educação física?

5) Ao falarmos do período em que estudamos, qual o cuidado que devemos


ter ao falar de educação física na escola?
FIM DAS ATIVIDADES DE ESTUDO.

INÍCIO DA LEITURA COMPLEMENTAR: Parece-nos haver uma dimensão


ainda pouco explorada nos estudos históricos relativos ao processo de
escolarização primária ou elementar. Trata-se daquilo que chamamos de
educação do corpo, uma das marcas mais tangíveis da difusão mundial da
educação primária entre as décadas finais do século XIX e as primeiras décadas
do século XX. Para sua realização, contribuíram discursos, dispositivos, práticas
e saberes distintos em seu conteúdo e origem. Em trabalhos recentes, diferentes
autores têm procurado lançar luzes sobre essa temática, e têm mostrado como
os estudos sobre a história da educação do corpo se encontram entrelaçados a
outras temáticas ou problemas de pesquisa, tais como: a educação dos sentidos
e das sensibilidades, os rituais disciplinares, as prescrições científicas, etc. -
desdobramentos que fazem do corpo o lugar que abriga, rejeita, recebe, devolve,
silencia ou anuncia a abundância de encontros com a natureza e com a cultura
realizados pelos sujeitos.

Para dimensionar o olhar sobre tais peculiaridades, basta nos remetermos às


preocupações com a definição de espaços e tempos apropriados ao projeto de
escolarização, ao conjunto de formulações que refletiram sobre a higiene, a
saúde, o cansaço ou o divertimento dos escolares, à disposição dos chamados
utensis - materiais e equipamentos básicos, necessários para o fazer cotidiano
nas escolas -, aos debates sobre os efeitos formativos da aplicação de castigos
corporais ou sua impropriedade, à retórica da necessidade de disciplinar
comportamentos infantis e ao desenvolvimento de diferentes rotinas e rituais.
Por certo, todos esses elementos deram ênfase e visibilidade às dimensões de
um projeto de formação moral, intelectual, e não só corporal. Nos propósitos
deste trabalho, abordamos prioritariamente o lento engendramento de algumas
disciplinas escolares e outras práticas educativas realizadas na escola e em seu
entorno, algumas com impressionante permanência. Tendo a educação do corpo
como escopo básico, essas disciplinas e práticas delinearam um verdadeiro
projeto de intervenção cultural.

Se esse projeto cultural comporta permanências, comporta também


deslocamentos. Se ocorreram variações no trato pedagógico com os corpos
infantis - tanto nos discursos quanto nas práticas -, houve também a
consolidação de uma ideia de civilidade que se fortalecia: a instituição de um
ordenamento cultural capaz de afirmar que é possível e necessário educar as
crianças e seus corpos. Temos aqui regras básicas que continuam a influenciar.
Trata-se de algo que funda, baliza e expressa sentidos da história da educação
na medida em que se repete e se modifica. São regras que se manifestarão nas
proposições pedagógicas que, no Brasil, ganharam relevo no fim do século XIX
e na primeira metade do século XX. Fonte: Taborda de Oliveira e Linhales (2011,
p. 389). FIM DA LEITURA COMPLEMENTAR.

INÍCIO DO MATERIAL COMPLEMENTAR - LIVRO


Título: A educação física e a criação dos sistemas nacionais de ensino
Autor: Carlos Herold Junior e Zélia Leonel
Editora: EDUEM
Ano: 2010
Sinopse: trata-se de uma versão de dissertação de mestrado. Muitas das
reflexões desenvolvidas nesta unidade são estudadas no livro de forma mais
detalhada.
FIM DO MATERIAL COMPLEMENTAR – LIVRO.

INÍCIO DO MATERIAL COMPLEMENTAR - FILME


Título: Tarja Branca
Ano: 2014
Sinopse: trata-se de um documentário que explora a importância do lúdico na
vida de crianças e adultos.
Comentário: não fala, diretamente, da escola e da educação física, mas nos
ajuda a pensar parte relevante de discursos e práticas que foram divulgados
durante todo o século sobre a importância da educação em reconhecer
características inatas à infância e à juventude. Nessa natureza, o jogo e o
brinquedo, são vistos como essencialmente corporais.
FIM DO MATERIAL COMPLEMENTAR – FILME.

INÍCIO DO MATERIAL COMPLEMENTAR – WEB


Apresentação: Na página do Centro de Referência Mário Covas há muitas
informações, vídeos e revistas sobre a educação de um modo geral e, também,
sobre a história da educação. Acesse e confira!
Link: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/
FIM DO MATERIAL COMPLEMENTAR – WEB.
INÍCIO DAS REFERÊNCIAS

ANDRÓNIKOS, M. O papel do atletismo na educação dos jovens. In: YALOURIS,


N. Os jogos olímpicos na Grécia Antiga: Olímpia Antiga e os Jogos Olímpicos.
São Paulo: Odysseus, 2004. p. 39-68.

ANTONOVICZ, S.; HEROLD JUNIOR, C. O corpo da docência: a mulher e a


constituição do ensino normal em Guarapuava (1930-1960). 1. ed. Curitiba:
Edunicentro - Fundação Araucária, 2012.

BRUHNS, H. T. O corpo parceiro e o corpo adversário. Campinas-SP:


Papirus, 1999.

CROSBY, A. W. A mensuração da realidade. São Paulo: Editora da Unesp,


1999.

FARIA FILHO, L. M. de; et al. A cultura escolar como categoria de análise e como
campo de investigação na história da educação brasileira. Educação e
Pesquisa, São Paulo, v. 30, n. 1, p. 139-159, jan./abr. 2004.

______. O processo de escolarização em Minas Gerais: questões teórico-


metodológicas e perspectivas de pesquisa. In: VEIGA, C. G. e FONSECA, T. N.
de L. e (Orgs). História e historiografia da educação no Brasil. Belo Horizonte:
Autêntica, 2003. p. 77 - 97.

FREIRE, J. B. Educação de corpo de inteiro: teoria e prática da educação


física. São Paulo: Scipione, 1994.

HEROLD JUNIOR, C. A educação física no pensamento educacional moderno


no contexto francês do século XVIII. Analecta (UNICENTRO), Guarapuava-PR,
v. 7, p. 43-55, 2006.

______. Da instrução à educação do corpo: o caráter público da educação física


e a luta pela modernização do Brasil no século XIX (1880-1925). Educar em
Revista, Curitiba, n. 25, p. 237-255, 2005.

______. A educação física na crise do capitalismo no século XIX. Teoria e


Prática da Educação, Maringá-PR, v. 7 n. 2, p. 163-172, 2004.

HOBSBAWM, E. A era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

LOCK, J. Alguns pensamentos sobre a educação. Coimbra - Portugal:


Almedina, 2012.

SCHARAGRODSKY, P. (Org.) La invención del “homo gymnasticus”:


fragmentos históricos sobre la educación de los cuerpos em movimento em
occidente. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2011.
SPENCER, H. Da educação intellectual, moral e physica. Lisboa: Empreza
Litteraria Fluminense, 1886.

TABORDA DE OLIVEIRA, M. A.; LINHALES, M. A. Pensar a educação do corpo


na e para a escola: indícios no debate educacional brasileiro (1882-1927).
Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v.16, n. 47, p. 389-408,
maio/ago. 2011.

FIM DAS REFERÊNCIAS.

INÍCIO DO GABARITO

1) Educação corporal refere-se a processos que acontecem em toda a vida


cotidiana e que impactam a nossa maneira de pensar, perceber e usar
nosso corpo. Já a educação física escolar denomina práticas pedagógicas
específicas executadas na escola a serem feitas sobre e por meio do
corpo.

2) As práticas corporais foram pensadas a partir de seu potencial


pedagógico a ser aproveitado na escola.

3) A escola que passou a existir nesse momento foi pensada como


instituição a ser frequentada por todos os filhos das diferentes classes
sociais então existentes. Para isso acontecer, a instituição escolar se
reorganizou, passando a funcionar em espaços específicos, seriando
seus alunos e demandando novas abordagens metodológicas por parte
de seus professores.

4) Foi no processo de escolarização da sociedade que as práticas corporais


passaram a ter lugar no interior das escolas. Essa presença foi
fundamental para o processo de expansão das práticas corporais em
geral, voltadas ao lazer, à saúde e à competição esportiva.

5) No período compreendido pelos séculos XVIII, XIX e início do século XX,


a presença das práticas corporais na escola não se dava pela
denominação educação física e sim, mais comumente, pela denominação
de ginástica. Nesse período, o termo educação física referia-se apenas à
necessidade de educar o corpo e por meio do corpo.

FIM DO GABARITO.
INÍCIO DA FOLHA DE ABERTURA

TÍTULO DA UNIDADE 5: A EDUCAÇÃO FÍSICA NA HISTÓRIA DA ESCOLA


BRASILEIRA

Objetivos de Aprendizagem

● Discutir a importância educacional das práticas corporais na educação


brasileira no século XIX e início do século XX.
● Verificar as configurações pedagógicas que deram vida à educação física
à luz da escolarização ocorrida no Brasil.
● Avaliar a história das práticas e instituições voltadas à formação de
professores de educação física para atuarem na educação básica.
● Estudar as alterações legais e pedagógicas que existiram na educação
física brasileira durante o século XX.
● Ponderar desafios contemporâneos a serem enfrentados pela educação
física escolar brasileira.

Plano de Estudo

A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:

● Tópico 1: Escola e educação física na passagem ao século XX: muitos


pensamentos e uma realidade
● Tópico 2: Discutindo a presença das práticas corporais na escola
brasileira: pluralidade de modelos
● Tópico 3: Formando professores de educação física: o que fica dessa
história?
● Tópico 4: Os caminhos até nós: como a educação física escolar se
tornou o que é?
● Tópico 5: Educação física e escola: pensando futuros ao pensarmos
passados

FIM DA FOLHA DE ABERTURA


INÍCIO DA INTRODUÇÃO: Caro(a) aluno(a), daremos o último dos passos de
nossa caminhada pela história da educação física. A essa altura do trajeto,
acredito que você já tenha percebido muitos detalhes na paisagem, antes
desconhecidos. Afinal, até este momento discutimos a importância do
conhecimento história e sua riqueza na formação de professores de educação.
Na unidade II vimos que o nosso corpo é alvo de diferentes olhares, valorizando-
o ou diminuindo-o conforme a época que estudamos e a classe social cujas
ideias e representações estudamos. O mesmo ocorre com as práticas corporais,
para as quais um olhar histórico possibilita a verificação de que sobre elas muitas
coisas importantes, em termos sociopolíticos, têm sido pensadas. Foi estudado,
igualmente, que tamanho valor fez com que boa parte das instituições
educacionais e práticas pedagógicas fossem devedoras dos modos como a
corporeidade infantil e juvenil fora avaliada, ora como condição ora como
problema para o alcance de objetivos educacionais.
Por tudo isso, este último passo, certamente, será influenciado pelo
conhecimento construído na trajetória até aqui caminhada. Apesar da sensação
de um esforço despendido deixar o passeio mais pesado na medida que se
avança, a experiência obtida pelo que passou e a curiosidade por ver o fim deste
primeiro caminho percorrido no campo da história da educação física dará
energias extras para abordarmos, nesta unidade V, a escolarização das práticas
corporais na história educacional brasileira. Como o processo que estudamos na
unidade IV, analiticamente pautado na generalidade de pensamentos, fatos e
instituições passíveis de serem encontradas em boa parte do mundo nos século
XIX e XX, materializou-se no Brasil? De que maneira particularidades históricas
de nosso país influenciaram ou foram influenciadas pelas discussões
educacionais que aqui ocorreram no período que estamos analizando?
Ajeite, confortavelmente, a bagagem acumulada até aqui, respire fundo e
aperte o passo para conhecermos a importância da educação física escolar na
história educacional do Brasil. Bons estudos! FIM DA INTRODUÇÃO.
INÍCIO DO TÓPICO 1: ESCOLA E EDUCAÇÃO FÍSICA NA PASSAGEM AO
SÉCULO XX: MUITOS PENSAMENTOS E UMA REALIDADE

Para construir um entendimento sobre os papéis e os diferentes níveis de


importância que teve a educação física na escola brasileira, sugiro que você
reflita comigo um pouco da história educacional de nosso país. Penso ser válido
esse pequeno desvio, pois, ao voltarmos à nossa rota, teremos condições de
percorrê-la de um modo mais certo, compreendendo boa parte de suas curvas
sinuosas, dos trechos mais acidentados e do destino ao qual ela nos leva.

Para isso, uma postura muito importante a ser cultivada é a ponderação


sobre o valor que possuiu a educação na história brasileira. É muito comum,
quando se quer explicar os problemas que hoje existem, atribuir aos políticos,
aos pedagogos e demais autoridades ligadas ao mundo educacional do passado
a culpa por aquilo contra o que nós, sabiamente, lutamos com pleno
conhecimento de causa. O tom um tanto quanto irônico dessa afirmação não
duvida das nossas dificuldades educacionais hoje existentes, muito menos do
denodo com que muitas pessoas tentam superá-las nos seus respectivos
campos de atuação. O tom irônico dirige-se a uma visão simplificada da história
educacional. Visão essa que, comumente, afirma que a educação não teria
recebido a importância que deveria, o que, nessa ótica, teria levado ao fato de
termos professores despreparados, escolas mal equipadas, políticas
educacionais pouco exitosas, etc.

Ao olharmos a história da educacional brasileira, deparamo-nos com


questões bastante importante sendo debatidas, divergências agudas sobre os
rumos a serem tomados pela escola; lutas intensas sobre a ampliação do direito
educacional e de seu apoio por parte do Estado; do mesmo modo que é possível
encontrar aqueles que, sem negar a importância da educação, vão defendê-la
como uma prerrogativa privada das famílias, vendo como prejudicial a
interferência política no seu interior.

Não deve ser esquecida na ponderação sobre a história educacional no


Brasil a marcante presença da Igreja Católica como agente educacional, iniciada
com a atuação da Companhia de Jesus e, depois da expulsão dessa ordem em
1759, com a ação de outras congregações e irmandades. Mas foi com a
expulsão da companhia que uma determinada ação do Estado pôde ser vista na
realidade brasileira. Inicialmente, ela foi marcada pela criação das Aulas Régias
por parte do Marquês de Pombal. Todavia, foi com a proclamação da
Independência do Brasil em 1822 que temos um marco importante para
pensarmos na expansão da educação na sociedade brasileira.

Avolumam-se ali, efetivamente, um conjunto de discussões e decisões


sobre o papel da educação na construção de um país que clamava pela
liberdade ao romper o pacto colonial, mas que continuou a conviver com o
trabalho escravo até 1888. De qualquer modo, estava aberta a problemática de
construir uma nação, de dar azo a um sentimento nacional que, apesar de forte
o suficiente para estimular a ruptura com Portugal, ainda não possuía a pujança
necessária para fazer frente aos desafios impostos pelo que era necessário ao
país para se integrar à economia e à política internacional de um modo
independente.

Em termos educacionais, essa preocupação manifestou-se, em 1827, na


criação da primeira regulamentação brasileira especificamente educacional, que
estipulou ser a educação um direito dos cidadãos. Vale observar que essa
cidadania não era uma prerrogativa de boa parte daqueles que aqui habitavam
no século XIX. Não apenas pelo fato de parcela relevante desses brasileiros
serem escravos, mas também pelo fato de haver critérios econômicos que
possibilitassem a condição política de cidadão. Atente-se à complexidade dessa
situação!

Mesmo que essa condição tenha diminuído, em muito, o alcance de


qualquer discussão educacional por limitar o número de possuidores dos tais
direitos educacionais, as limitações materiais para a expansão da escola
impediam que mesmo os cidadãos tivessem escolas em número suficiente para
atender às suas necessidades culturais e econômicas.

Esses limites materiais da educação brasileira iam sendo constatados na


igual medida de preocupações sobre o que eram e sobre o que deveriam ser os
brasileiros. Paralelamente ao esforço educacional de abordar essa dúvida, a
preocupação higiênica foi importante. É isso que nos diz Soares (1994), quando
afirma:
No Brasil, por volta da segunda década do século XIX, já em momento
posterior à conquista de sua independência, é desencadeado um
vigoroso projeto de eugenização da população brasileira. Este projeto
se coloca como possibilidade de alteração de um quadro onde a
metade da população do Brasil era constituída de escravos negros,
índice que permanece até por volta de 1850, quando para uma
população de 5.520.000 pessoas livres, encontram-se 2.500.000
negros (SOARES, 1994, p. 89).

Soares (1994) fala de uma pedagogia higiênica existente no Brasil


durante o século, enfatizando que essa inquietação, nos anos que se seguiram
à Proclamação da Independência, reduziram a “família de elite agrária, num
primeiro momento, e a família burguesa citadina, num segundo” (SOARES,
1994, p. 91). Essa situação vai se alterar apenas com os desdobramentos da
história cultural, política e econômica brasileira que levaram a sociedade a
questionar a viabilidade do trabalho escravo e a estrutura política imperial,
levando ao fato de “o discurso normativo e disciplinador da higiene” se estender
“à toda população, ou seja, quando o trabalho assalariado se torna
preponderante” (SOARES, 1994, p. 91). Podemos pensar na necessidade de
ampliação desse discurso disciplinador analisando-o e tendo como anteparo as
discussões levadas à cabo sobre a abolição da escravatura. A partir da década
de 1860, a problemática ficou cada vez mais evidente, impactando a questão
educacional de um modo mais direto. Ao ser avaliada a situação econômica e
educacional do país, passou-se a atribuir à educação a “tarefa de formar o novo
tipo de trabalhador para assegurar que a passagem se desse de forma gradual
e segura, evitando-se eventuais prejuízos aos proprietários de terras e de
escravos que dominavam a economia do país” (SAVIANI, 2007, p. 159).

Início da descrição da imagem:


Legenda: Família e Escravos no Brasil.

Descrição: A imagem mostra uma pintura colorida do século 19 de uma família


branca seguida por escravos negros no Brasil. À frente está a família branca com
roupas típicas europeias, primeiro está um homem seguido por duas crianças,
uma menina maior e um menino menor, e mais duas mulheres. Um pouco mais
atrás está a família de escravos, há uma menina, uma mulher segurando um
bebê branco no colo, e um homem. No fundo da pintura há uma casa típica do
período colonial.
Fonte: CHAMBERLAIN, 1822, on-line. Disponível em:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Familia_e_escravos_Brasil_1822.jpg?u
selang=pt-br. Acesso em: 17 out 2016.
Fim da descrição da imagem.

Explorando ainda um pouco mais o desenho do contexto educacional


brasileiro, ao lado dessas questões culturais e econômicas que estimulavam
uma atenção à ampliação da oferta educacional, temos também a conjuntura
política. O questionamento à ordem imperial, a passagem a uma ordem
republicana, a formação de cidadãos brasileiros a partir de ex-escravos e
também de imigrantes, sobretudo europeus, fizeram com que as questões
educacionais tivessem sua relevância aumentada, aglutinando ideias, propostas
e, também, os desafios a serem superados por contexto econômico dependente
dos países capitalistas centrais:

Nesse sentido, o papel atribuído à educação escolar era criar uma


unidade nacional em torno da qual cada indivíduo, que havia
abandonado sua antiga relação de dependência, seja com a natureza
pródiga, ou com o seu senhor, fosse mobilizado a trabalhar mais em
nome do progresso da nação. [...] acreditava-se na escola para formar
essa alma nacional que levaria ao grau de modernização alcançado
pelos países centrais (SCHELBAUER, 1998, p. 137).

Esse conjunto de debates e problemáticas erigido no desenvolvimento da


história brasileira durante o século XIX deu à questão da educação física uma
importância palpável. Tanto para a questão produtiva relacionada ao trabalho,
passando pela observância higiênica das famílias, chegando à formação da
incipiente nacionalidade republicana, é possível perceber que, ao lado da
reivindicação de mais escolas que realizassem a possibilidade de todos terem
nela lugar, havia a reivindicação de se educar fisicamente a população. Ao
lermos os artigos, livros, documentos e imagens produzidas nesse contexto, a
percepção de o corpo individual ganhar uma importância sociopolítica no Brasil
é algo que nos faz ver o esforço da sociedade brasileira em se escolarizar. E ao
fazê-lo, a educação corporal e sua escolarização foram partes inerentes no
processo. Nesse ponto é importante voltarmos à discussão que aborda, de um
lado, a presença da educação corporal na sociedade e na escola, diferenciando-
a dos processos específicos que chamaríamos de educação física. Falando em
primeiro lugar dos processos mais amplos e retomando advertências feitas na
unidade anterior, Taborda de Oliveira et al. (2003) fazem uma explicação que é
importante você considerar para entender de um modo mais aprofundado a
crescente presença do corpo nas estruturas escolares que, não sem
dificuldades, ampliava-se:

[...] em práticas corporais escolares estamos nos referindo a um


conjunto de manifestações intraescolares que indicam ou podem
indicar as formas como foi concebida ao longo do tempo a
escolarização e o seu papel na formação humana. Essas práticas
podem bem estar assentadas na organização do tempo e do espaço
escolares [...] (por exemplo, na disposição das cadeiras, no mobiliário,
na definição de espaços de acordo com funções específicas), como na
própria manifestação corporal dos agentes escolares (punições,
gestualidade etc.) e chegando às manifestações corporais –
autônomas ou tuteladas – dos alunos (brincadeiras, formas de
comportamento, atividades, etc.). Portanto, as práticas corporais
escolares incluem e superam aquelas práticas ou atividades afeitas
apenas à Educação Física (TABORDA DE OLIVEIRA apud TABORDA
DE OLIVEIRA et al., 2003, p. 7).

Taborda de Oliveira et. al. (2003), ao fazerem essa identificação,


oferecem elementos para que pensemos na relevância do corpo e dos diferentes
procedimentos educacionais a ele voltados para o contexto brasileiro de então.
Por conta disso, o corpo, sua educação e sua escolarização ocuparam
intelectuais e políticos atuantes naqueles momentos. As defesas em relação à
educação corporal e sua presença sistemática escolar era apresentada como
uma espécie de verdade inquestionável (HEROLD JUNIOR, 2005). Rui Barbosa
foi um dos intelectuais e políticos com grande envolvimento na questão
educacional da juventude e que possuía um vasto leque de informações sobre
o que estava sendo discutido em várias parte do mundo, em termos
pedagógicos. Em uma de suas passagens mais conhecidas, escrita em 1882,
ao falar sobre a educação física, pondera: “Não pretendemos formar acrobatas
nem Hércules, mas desenvolver na criança o quantum necessário ao equilíbrio
da vida humana, a felicidade da alma, a preservação da pátria e a dignidade da
espécie” (BARBOSA apud HEROLD JUNIOR, 2005, p. 245).

Início da descrição da imagem:


Legenda: Rui Barbosa.

Descrição: Fotografia em preto e branco de Rui Barbosa. Ele está com uma
camisa branca e um terno preto, seu cabelo e bigode são brancos e usa um
pequeno óculos com formato oval.
Fonte: DIAZ, [1923], on-line. Disponível em:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Rui_Barbosa.jpg?uselang=pt-br.
Acesso em: 17 out 2016.
Fim da descrição da imagem.

Outro modo de enxergarmos a maneira como a questão da educação


física foi ganhando espaço nas últimas décadas do século XIX é analisar os
anais do Congresso de Instrução, que aconteceria no Rio de Janeiro, em 1883.
A reunião acabou por não acontecer, muito embora as teses que seriam
apresentadas tenham sido publicadas. Nele, professores, políticos e outros
grupos ligados ao mundo educacional reuniriam-se para verificarem o modo
como a educação estava sendo encarada e quais as mudanças avaliadas como
importantes. Um dos congressistas, ao escrever sobre a educação física, é claro
na apresentação de justificativas que a tomavam como um elemento
incontornável do período, em termos pedagógicos:

A tendência que esta (a criança) tem para opor-se à quietação, é uma força
latente que a natureza faz atuar em seu organismo com o fim de auxiliar o
desentorpecimento, o desembaraço, o crescimento harmônico e simultâneo
de todas as suas faculdades physicas e não physicas, e a natureza não
consente que se infrinjam impunemente suas leis. Se quisermos sopear
aquela força, condenando a puerícia à imobilidade, a natureza vinga-se,
vinga-se também a meninada (CONGRESSO DE INSTRUCÇÃO apud
HEROLD JUNIOR, 2005, p. 251).
Ao lermos apenas algumas das numerosas manifestações em defesa da
educação física na escola a ser frequentada por todos os cidadãos, tem-se a
impressão de que estamos lidando com um fato amplamente aceito por parte de
toda a sociedade e que teria sido implantado, imediatamente, naquele momento.
Porém, não é esse o cenário: mesmo com as defesas da escola e da educação
física em seu interior, a concretização plena desse ideário passou a se
concretizar de um modo mais visível apenas a partir de 1930. Até os anos 30,
prevaleceram diferentes procedimentos sobre a educação física escolar,
procedimentos esses criados, individualmente, em cada Estado, imprimindo a
essa dimensão educacional uma variedade de práticas e rotinas, muito longe,
portanto da ambicionada unidade em torno de uma verdade inquestionável.
Fernando de Azevedo (s.d.), em uma reedição de uma obra inicialmente
publicada em 1915, teceu um panorama que nos faz pensar nos problemas
enfrentados pela educação física escolar:

Um dos mais salutares temas de meditação, que se antolham aos


poderes públicos e educadores preocupados com os problemas, a cuja
solução se ligam os efeitos, benéficos ou prejudiciais, dum sistema
educativo, é o estado da cultura física em nossas escolas, em geral, e
o modo como no Brasil é administrada a educação física. Realmente é
difícil encontrar um país, em que esteja menos vulgarizada a noção do
verdadeiro papel que compete à educação física (AZEVEDO, s.d., p.
149).

É importante verificar nessa citação o problema da cultura física, não a


cultura física em si, mas a pedagogização de sua prática na instituição escolar.
Para ajudar você a entender essa problemática é importante levar em conta que
a questão não residia, apenas, no estado da cultura física, mas na forma como
a educação pública, obrigatória, laica e gratuita vinha se construindo no Brasil.
No próximo item vamos analisar, mais detidamente, alguns detalhes dessa
construção, atentando-nos para o modo como o desenvolvimento histórico-
educacional brasileiro delimitou algumas características e possibilidades da
expansão da educação física escolar.

FIM DO TÓPICO 1.
INÍCIO DO TÓPICO 2: DISCUTINDO A PRESENÇA DAS PRÁTICAS
CORPORAIS NA ESCOLA BRASILEIRA: PLURALIDADE DE MODELOS

Início da descrição da imagem:


Legenda: Escola Municipal Ada Sant’ Anna da Silveira.

Descrição: Fotografia em preto e branco da Escola Municipal Ada Sant’ Anna


da Silveira. A Escola é uma construção de madeira, em cima do batente da porta
há uma placa com os dizeres, “Escola Municipal”, do lado esquerdo há uma
bandeira do Brasil. Na frente da escola, na porta, está uma professora junto com
uma turma de aproximadamente 33 crianças estando os meninos concentrados
no lado esquerdo e as meninas no lado direito. As crianças estão uniformizadas,
os meninos de bermuda, camisa branca e gravata, as meninas de saia, camisa
branca, gravata e um laço branco na cabeça.
Fonte: WIKIMEDIA COMMONS, 1927, on-line. Disponível em:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:EMAda3.jpg?uselang=pt-br. Acesso
em: 17 out
2016.
Fim da descrição da imagem.

Caro(a) aluno(a), quando estudamos os fenômenos que nos interessam


sob um ponto de vista histórico, um dos desafios é realizar uma ponderação
precisa sobre a presença das deliberações individuais no âmbito da coletividade
em que elas existem, do mesmo modo que se quer saber como uma determinada
coletividade ou conjunto de valores sociais compartilhados levam os indivíduos
a pensarem e a agirem de determinadas maneiras, e não de outras.

No caso da história da educação física essa reflexão tem seu valor, pois,
um dos grandes objetivos de estudá-la é verificar que o corpo, as práticas
corporais e a educação que delas surge são passíveis de serem entendidas por
terem acontecido em um determinado momento possuidor de valores
socioculturais, políticos e econômicos diferentes da época em que vivemos.
Todavia, para acessá-los e conhecê-los, obtendo, assim, condições para
entender melhor o assunto que estudamos, é fundamental nos atermos ao
pensamento de alguns personagens que desempenharam papel fundamental na
história que nos interessa. Esse é o caso de Fernando de Azevedo.

Ao lado da grande relevância desse educador paulista para a história


educacional brasileira como um todo, para a educação física e sua inserção na
escola seu pensamento e sua análise do contexto brasileiro foram fundamentais.
A obra que citamos anteriormente foi resultado de um concurso por ele prestado
para uma vaga de professor de educação física em Belo Horizonte. Mesmo não
tendo sido aprovado, a obra ficou como a primeira e uma das mais contundentes
análises empreendidas sobre o assunto no momento em que foi escrita, assim
como continua a ser há cem anos, considerando que o concurso mencionado
aconteceu em 1915.

No item anterior você percebeu que, apesar das defesas em relação à


importância da educação física escolar ser apresentada como uma verdade
científica inquestionável na ordem dos assuntos sociais e políticos do Brasil no
fim do século XIX e início do século XX, os analistas da questão, entre eles Rui
Barbosa e Fernando de Azevedo, avaliavam que aquelas defesas não teriam
produzido os resultados esperados. É importante não perder de vista que, aos
problemas relativos a essa questão específica da educação física, somavam-se
problemas estruturais da educação brasileira. Ao explicar esse conjunto de
desafios e problemas educacionais, um fator foi posto em destaque: uma
determinação do ato adicional à constituição de 1823, ato esse publicado em
1834 em que “o governo central desobrigou-se de cuidar das escolas primárias
e secundárias transferindo essa incumbência para os governos provinciais”
(SAVIANI, 2008, p. 129).

Ao avaliar a história educacional brasileira e seus problemas nos anos de


1920 e 1930, Fernando de Azevedo fundou uma tradição explicativa que atribui
ao referido ato o fato de o Estado brasileiro ter dificuldades (que ainda existem)
em assumir a educação como direito de todos e de providenciar as condições
materiais e pedagógicas para realizá-lo. Para ele, o referido ato “foi uma das
maiores aberrações na evolução política imperial” (AZEVEDO, 1971 p. 574). A
assim chamada aberração levou à seguinte situação:

O Ensino público estava condenado a não ter organização, quebradas


como foram as suas articulações e paralisado o centro diretor nacional,
donde se devia propagar às instituições escolares dos vários graus
uma política de educação, e a que competir coordenar, num sistema,
as forças e instituições civilizadoras, esparsas pelo território nacional
(AZEVEDO, 1971, p. 574).

A força dessas ideias e a penetração retórica de Fernando de Azevedo


na abertura de um caminho explicativo para os limites educacionais brasileiros,
porém, devem ser consideradas com atenção. Afinal, como diz Saviani (2008, p.
129), “não se pode atribuir ao Ato Adicional a responsabilidade pela não
realização das aspirações educacionais no século XX”. Essa “tendência
frequente na historiografia educacional” (SAVIANI, 2008, p. 129) deveria levar
em conta as particularidades sociais, políticas e econômicas do momento em
que o ato foi instituído, particularidades essas que deixaram de existir nos anos
finais do século XIX e início do XX. De qualquer modo, ficou a cargo das
Assembleias Provinciais (no Império) e das Assembleias Legislativas (nas
primeiras décadas da República) lidar com a crescente constatação dos
problemas e das possibilidades educacionais, pensadas como uma necessidade
de um país independente, economicamente integrado ao capitalismo
internacional e com aspirações políticas liberais. Foram essas transformações
que possibilitaram a sociedade do período a ver na questão educacional um
ponto de reflexão necessário, o que podemos observar, mais uma vez, pelo tom
da crítica de Fernando de Azevedo:

A educação teria de arrastar-se, através de todo o século XIX,


inorganizada, anárquica, incessantemente desagregada. Entre o
ensino primário e o secundário não há pontes ou articulações: são dois
mundos que se orientam, cada um na sua direção. As escolas de
primeiras letras, como as instituições de ensino médio, em geral
ancoradas na rotina (AZEVEDO, 1971, p. 576).

Com esse pensamento, é necessário provocar outro: em que isso nos


ajuda a entender a história da educação física na escola que existiu no final do
século XIX e início do XX? Resposta: mesmo com a constante lamentação de
que a educação física não recebia a importância que deveria, ao estudarmos a
história da educação das diferentes províncias/Estados brasileiros, notamos
esforços que evidenciam um processo crescente de escolarização das práticas
corporais. Mesmo sem a unidade nacional pretendida por Azevedo e sem a força
que essa escolarização poderia ter caso tivesse sido uniformizada por uma ação
que minimizasse impossibilidades regionais para sua concretização (suposições
essas que devem ser questionadas à medida que estudamos um período
histórico, buscando nele suas necessidades, sem projetarmos para outras
épocas as nossas próprias necessidades), a problemática da educação física
escolar foi sendo abordada de forma cada vez mais regular, produzindo, com
isso, uma variedade de modelos e justificativas pedagógicas que acabavam por
se unir em um ponto fundamental: cada Estado, a seu modo, reconhecia a
importância formativa a ser atribuída à pedagogização das práticas corporais.

Para ilustrar esse processo variado de escolarização das práticas


corporais, sugiro conhecermos alguns desdobramentos desse assunto em
alguns Estados brasileiros.

Tarcísio Mauro Vago (2010) estudou a história da educação e educação


física mineira. Ao fazê-lo, ele nota que a decadência do ciclo econômico baseado
na exploração do ouro demandou uma mudança do eixo econômico e cultural,
que se deslocou da cidade de Ouro Preto para a capital mineira, Belo Horizonte.
Essa mudança provocou muitas outras no cotidiano de um “pacato arraial” que
se tornou uma “vitrina para a República” (VAGO, 2010, p. 16). A vida social,
política e econômica que acontecia no novo regime fez com que muitos setores
sociais pensassem a respeito das mudanças necessárias para a realização da,
assim vista, incontornável “ambição civilizatória” a ser assumida pela escola.
Nessa ótica, ela deveria “receber as crianças pobres e fazer delas cidadãos”
(VAGO, 2010, p. 19).
Início da descrição da imagem:
Legenda: Em Modestino Gonçalves.

Descrição: Fotografia em preto e branco em Modestino Gonçalves de um grupo


de pessoas e uma turma escolar observando uma apresentação de uma banda.
É possível visualizar duas bandeiras. O evento acontece na rua, em frente de
edificações urbanas com a arquitetura típicas do período colonial.
Fonte: WIKIMEDIA COMMONS, [1906], on-line. Disponível em:
<https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Em_modestino_gon%C3%A7alves.jp
g?uselang= pt-br>. Acesso em: 17 out 2016.
Fim da descrição da imagem.

No conjunto dessas transformações, em 1906 foi decretada uma reforma


do ensino primário que colocou os Grupos Escolares como instituições escolares
centrais de um novo contexto que deu à educação a ser oferecida pela escola o
eixo central dos variados processos formativos, até então prerrogativa das
famílias. Mas os problemas logo se fizeram sentir: apesar das justificativas para
as mudanças focarem as classes populares como principais beneficiárias, não
foram as crianças pobres as principais frequentadoras dessas instituições
modelares. Perceba que se trata de um problema bastante sério, considerando
que o discurso político que justificou a passagem ao modelo republicano
pautava-se na ideia de ampliação da cidadania e de igualdade. Ou seja, apesar
de a nova cultura escolar ser vista como construtora dessa igualdade de
oportunidades, justamente ela evidenciava em seu dia a dia as contradições de
uma igualdade política cimentada em um mundo de grandes disparidades
sociais e econômicas.

Outro problema observado por Vago (2010) ao lado dessa característica


excludente da forma escolar que se impunha, era o fato de ela não ser aceita
com tranquilidade por pais, alunos e os próprios professores. Vago (2010)
explica, com bastante clareza, os problemas gerados pela obrigatoriedade
escolar no contexto mineiro no início do século XX:
Ora, se muitos pais não estavam enviando seus filhos à escola, é
porque não estavam convencidos da necessidade dela ou, mais
especificamente, da necessidade de conhecimento que ela veiculava
para os afazeres mais imediatos das famílias. As famílias tinham
dificuldade de liberar os meninos que atuavam como mão de obra na
lavoura, seja em pequenas propriedades da família, seja como
empregados em outras propriedades, porque desse trabalho dependia
certo equilíbrio em suas despesas. No caso das meninas, era difícil não
tê-las como ajudantes nas tarefas domésticas (VAGO, 2010, p. 26).

Perceba que nessa afirmação temos elementos históricos bastante significativos


para refletirmos sobre as dificuldades enfrentadas pela expansão do mundo
educacional formal, elementos que vão além da falta de vontade política
comumente atribuída aos que viveram em um determinado passado para realizar
aquilo que nós queríamos que eles fizessem! De qualquer maneira, em que pese
essas dificuldades, a sociedade mineira se escolarizou nesse período, fazendo
com que a escola se tornasse a grande detentora de uma necessária prioridade:
mudar hábitos arraigados, esparramar a ciência para sustentar a moralidade,
algo a ser feito em um cotidiano escolar em que “o corpo dos alunos foi colocado
no centro das práticas escolares” com o objetivo de “constituí-lo, ou reconstituí-
lo, racionalmente [...]” (VAGO, 2010, p. 28).

Com o desenrolar dessas mudanças que deram à escola centralidade,


peço-lhe que se atente à importância que teve o corpo na expansão do mundo
escolar. Vago (2010) retoma a necessidade de diferenciarmos a educação
corporal materializada da necessária educação physica que era vista como
importante à escola e que não deveria se restringir a um único momento
específico das práticas pedagógicas, tal como uma disciplina escolar. Todavia,
o pesquisador mineiro nos adverte que foi na escolarização da sociedade
mineira que pudemos enxergar o “nascimento de uma disciplina escolar” (VAGO,
2010, p. 30), o que é analisado por ele da seguinte maneira:

O aparecimento dessa nova forma escolar foi, de fato, determinante


para a constituição paulatina da Ginástica como disciplina do programa
de ensino [...]. A Gymnastica foi produzida como um dispositivo central
para a pretendida educação physica das crianças. Sua inserção nas
práticas de escolas primárias de Belo Horizonte fundamentou-se,
dentre outras razões, na crença em suas possibilidades de transformar
os corpos das crianças, representados como raquíticos, débeis, fracos,
em desejados corpos sadios, belos robustos e fortes. Esperava-se dela
uma participação decisiva no processo de constituição de corpos
infantis (VAGO, 2010, p. 31).
Se focalizarmos a escolarização da ginástica como momento fundante de
uma disciplina escolar, temos no estado do Paraná um cenário parecido, apesar
de suas particularidades. O contexto paranaense enfrentou, assim como o
mineiro, a necessidade de adaptar-se aos novos rumos políticos e à urgência de
integrar sua economia à modernização. Nesses embates, a educação foi uma
problemática recorrente, fazendo com que o Paraná também envidasse esforços
para escolarizar sua sociedade. Como em muitos outros estados, fez isso
lutando contra limites materiais compreensíveis a um contexto marcado por
constantes pressões oriundas da ampliação da demanda escolar.

Putcha (2007), ao estudar a escolarização da ginástica no contexto


paranaense do início do século XX, observa que de 1882 a 1921, em
documentos legais tocantes ao ensino (regulamentos de instrução pública,
portarias, códigos de ensino e programas de ensino), apenas 1 de 11
documentos não mencionam a ginástica como elemento a ser praticado nas
escolas do Paraná (PUTCHA, 2007, p. 52). Ao concluir seu estudo, oferece mais
uma base para percebermos a maneira como o nascimento da escola moderna
e as bases da educação física escolar foram importantes, uma para a outra:

A partir das reformas efetuadas na instrução pública primária paranaense


localizamos um processo de afirmação da gymnastica, principalmente em
decorrência da implantação do ensino seriado. Além do tempo, espaço,
conteúdos, métodos e objetivos que foram considerados ao longo das
reformas anteriores, com a implementação do ensino seriado e como advento
dos grupos escolares esta passou a contar com um instrutor exclusivo. A
possibilidade de reunir os alunos de diferentes séries para que juntos
pudessem realizar os exercícios gymnasticos só foi possível com este tipo de
organização do ensino primário (PUTCHA, 2007, p. 103).

Dos dois exemplos estudados acima (Paraná e Minas Gerais),


evidenciam-se o fato de, em diferentes estados brasileiros, a forma escolar
pautada nos Grupos Escolares caracterizarem a necessidade de as sociedades
se escolarizarem. Além disso, notamos que em todas elas o corpo individual dos
alunos tornou-se uma preocupação pública, estimulando não apenas práticas de
educação corporal que abordaram a corporalidade infantil de forma indireta
(construção de espaços mais amplos, móveis escolares, uso de uniformes, etc.),
mas, principalmente, a criação de um momento específico de educar o corpo
dos alunos: a educação physica passava, lentamente e dependente de
particularidades de cada região em que era debatida e criada, a ser entendida,
vista e praticada como disciplina escolar.

Como tornar a educação e a educação física questões passíveis de serem


pensadas sistemicamente, gerando uniformidade de planejamento e execução
em todo o país? Qual o papel do estado na determinação dos direitos e dos
deveres educacionais gerais, assim como os atinentes à educação física?

Durante a década de 1920 e 1930 isso foi bastante discutido,


paralelamente à expansão da escola organizada no âmbito da realidade de cada
um dos estados. Isso mudará e gerará impactos importantes para a educação
física escolar. Mas antes de abordar a criação de um sistema nacional de ensino
que, também, organizaria a educação corporal sistemática a ser realizada pela
escola brasileira, vamos abordar outra questão diretamente impactada pelo fato
de as práticas corporais e sua escolarização, no período que estamos
estudando, darem seus passos Brasil a fora: vamos nos deter na forma como a
maior exigência de professores levou à construção das primeiras estruturas e
instituições formativas desses profissionais. FIM DO TÓPICO 2.

INÍCIO DO TÓPICO 3: FORMANDO PROFESSORES DE EDUCAÇÃO


FÍSICA: O QUE FICA DESSA HISTÓRIA?

Início da descrição da imagem:


Legenda: Minerva UFRJ.

Descrição: A imagem mostra o brasão da Universidade Federal do Rio de


Janeiro (UFRJ), ou Universidade do Brasil. O símbolo da Universidade é a deusa
romana Minerva.
Fonte: WIKIMEDIA COMMON, 2010, on-line.
<https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Minerva_UFRJ.jpg?uselang=pt-br>.
Acesso em: 17 out 2016.
Fim da descrição da imagem.

Para todos nós, na atualidade, não são necessárias muitas reflexões


sobre a importância de buscarmos uma formação acadêmica para atuarmos em
profissões ligadas à educação e à saúde. Quando é tomada a decisão sobre o
trabalho em qualquer um desses campos, automaticamente iniciamos a busca
por um curso em nível superior. Durante os estudos, são ensinadas não apenas
questões técnicas relativas à profissão escolhida, mas dimensões éticas, sociais
e históricas de um determinado grupo profissional. Aliás, é o que estamos
fazendo neste momento, desde o início deste livro. No caso da educação física
como campo de atuação, o raciocínio básico que justifica a necessidade de uma
formação profissional sistematizada e publicamente reconhecida por meio do
recebimento de um diploma, é o fato de se assumir que o trabalho pedagógico,
recreativo, esportivo, assim como o trabalho ligado à busca por mais qualidade
de vida por meio das práticas corporais, demanda cuidados e procedimentos que
não se aprendem apenas repetindo aquilo que é feito por outros atuantes da
áreas.

Além disso, ao ingressar no ensino superior em educação física, você


verá, caso ainda não tenha percebido, que os professores possuem diferentes
especialidades, construídas em uma sequência de estudos realizada após sua
graduação, em nível de especialização, mestrado e doutorado. Para tanto, além
de aprofundarem seu próprio conhecimento absorvendo a bagagem intelectual
produzida sobre aquilo que lhes interessa, esses professores, ao objetivarem
formar novos profissionais, também produziram novos conhecimentos ao
concluírem os diferentes níveis de sua formação pós-graduada. Esses
conhecimentos foram e são avaliados, discutidos e, igualmente, são utilizados
por outros cientistas em seus próprios trabalhos de pesquisa. Dizendo tudo isso
de um modo mais direto: a educação física, hoje, é um campo profissional e um
campo acadêmico bastante regulamentado, com suas tradições e exigências.
Elas devem ser atendidas por aqueles que ambicionam trabalhar ou pesquisar
assuntos atinentes a ela. Mesmo que existam problemas e debates intensos
sobre a solidez das bases dessa formação profissional e da produção de
conhecimento elaborado pelo conjunto desses professores/pesquisadores, deve
ser notado o avanço que isso significou, tomando como parâmetro o empenho e
o caminho percorrido para se construir essa grande e complexa estrutura
profissional e científica da qual você se aproximou desde que iniciou seu curso
de graduação em educação física.

Esses esclarecimentos servem para enfatizar a importância do que


faremos nas próximas páginas: desenvolveremos uma reflexão sobre a trajetória
que trouxe essa condição até nós. Vamos estudar alguns pontos desse caminho,
para que sejam percebidos alguns momentos da construção desse edifício
profissional e acadêmico que é a área de educação física.

Inicialmente, para pensarmos em alguns elementos da história da


formação profissional em educação física, deve ser considerado que a
necessidade dessa formação se deu em um momento em que se cruzaram três
ordens de problemáticas formativas.

Em primeiro lugar, já vimos que no século XIX e nas primeiras décadas


do século XX houve uma grande expansão de práticas corporais. Vimos,
também, que essas práticas foram absorvidas por muitas realidades culturais
diferenciadas entre si, mas que, ao pensarem nas ginásticas, nos jogos, nas
lutas e nos esportes, atribuíram significados socioculturais e educacionais para
endossar e justificar, publicamente, aquilo que faziam, corporalmente. Defesas
sobre a importância do aprimoramento da higiene, sobre o aperfeiçoamento de
uma raça, sobre o fortalecimento da virilidade e a redefinição da feminilidade,
foram alguns dos elementos que fizeram muitas pessoas estudarem e
pesquisarem as formas corretas de se praticar aqueles elementos, bem como
descrever os resultados a serem obtidos por uma prática racional. Essa
racionalidade encontrou na ciência seu grande suporte, enfatizando que os
resultados benéficos que se esperava alcançar apenas seriam alcançados se
praticantes e aqueles que iniciavam/ensinavam/coordenavam as seções em que
isso ocorria tivessem sólida formação.
Início da descrição da imagem:
Legenda: Brasil - Copa América 1919.

Descrição: Fotografia em preto e branco da seleção brasileira de futebol na


Copa América de 1919. Os onze jogadores estão com o uniforme da seleção
brasileira, seis jogadores estão em pé e cinco agachados, posicionados para a
foto.
Fonte: WIKIMEDIA COMMON, 1919, on-line. Disponível em:
<https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Brazil-CopaAmerica-
1919.jpg?uselang=pt--br>. Acesso em: 17 out 2016.
Fim da descrição da imagem.

Consequentemente, surgiram estudos científicos sobre o movimento


humano, que eram elaborados e publicados em forma de livros. A demanda para
o consumo desse tipo de estudo só aumentava no início do século XX. No Brasil,
Sevcenko (2012) observa no Rio de Janeiro uma ética do corpo e da ação em
que as pessoas assumiam a ginástica e, cada vez mais, o esporte como práticas
importantes em seu dia a dia. É compreensível que, em tal contexto, com
pessoas ensinando as modalidades que passavam a ser cada vez mais
buscadas, levantou-se a questão de saber quem eram essas pessoas que
ensinavam essa nova ética baseada na exercitação corporal. Além disso,
inquietante também foi a dúvida sobre o que elas deveriam saber para lidar com
os desafios que seriam tão importantes de serem vencidos, a julgar pelo impacto
que eles teriam na formação de uma nação forte.

Início da descrição da imagem:


Legenda: Pavilhão.
Descrição: Fotografia em preto e branco do Pavilhão de regatas na Avenida
Beira Mar na Praia de Botafogo, no Rio de Janeiro, ao fundo da foto é possível
ver o Pão de Açúcar.
Fonte: WIKIMEDIA COMMONS, 1907, on-line. Disponível em:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Pavilh%C3%A3o_de_regatas_na_Ave
nida_Beira_Mar.jpg?uselang=pt-br. Acesso em: 17 out 2016.
Fim da descrição da imagem.

Ao lado do florescimento da importância da cultura physica em boa parte


do Brasil nos anos 1920, importante para o desenvolvimento de práticas e
instituições formativas relacionadas à educação física foi a expansão do mundo
escolar. Foi estudado no tópico anterior que isso acontecia em muitos estados
brasileiros, da mesma maneira que foi visto que no interior dessa escola a
ginástica foi vista como necessária para a realização do novo ideário educativo
a ser concretizado não apenas para as famílias da elite, mas, principalmente,
para os filhos das classes trabalhadoras. Essa realidade fez com que os estados
brasileiros que expandiam sua rede escolar (o que faziam, na maioria dos casos,
com grandes dificuldades e com um ritmo menor do que o desejado) discutissem
soluções para suprirem as escolas que surgiam com um professorado capaz de
resolver, a contento, os novos desafios que se impunham. Saviani (2008)
endossa essa reflexão, afirmando:

A partir [...] do século XIX, a necessidade de universalizar a instrução


elementar conduziu à organização dos sistemas nacionais de ensino.
Estes, concebidos como um conjunto amplo constituído por grande
número de escolas organizadas segundo um mesmo padrão, viram-se
diante do problema de formar professores, também em grande de
escala, para atuar nas referidas escolas (SAVIANI, 2008, p. 08).

No século XIX e nas primeiras décadas do século XX, os primeiros passos


dados no sentido de uma formação de professores eram dados, prioritariamente,
nas escolas normais, de nível secundário. Conforme os problemas educacionais
se ampliaram, infelizmente, em um ritmo maior que a ampliação das escolas
existentes, ainda assim, a formação de professores foi se tornando uma
problemática cada vez mais discutida. A partir da década de 1930, a formação
em nível secundário foi considerada como insuficiente para as novas exigências
pedagógicas, levando a um amplo processo de discussão e medidas que criaram
o “espaço acadêmico dos estudos educacionais” (SAVIANI, 2008, p. 18),
colocando a formação dos professores que atuariam na educação básica para o
interior das universidades.

A terceira ordem de problemática formativa diz respeito, justamente, às


universidades. Diferentemente do que ocorreram com os países de colonização
espanhola, no Brasil o desenvolvimento do ensino superior aconteceu e se
acelerou tardiamente. Apenas na década de 1930 que a base da estrutura
universitária se instaura e, em seu interior, a formação de professores, tanto os
professores em geral quanto os professores de educação física. No caso dos
professores de outras disciplinas escolares, Saviani (2008) demonstra a
existência de muitos debates sobre o lugar da educação no ensino superior. As
incertezas sobre essa localização dava-se pelas tensões entre defensores de
uma formação do professorado mais aproximada às especificidades
educacionais, integrando formação teórica e formação profissional voltadas às
exigências pedagógicas, em que a produção do conhecimento acontecesse
paralelamente e imbricadamente com os desafios didáticos e metodológicos da
escola; e os defensores de uma formação meramente profissionalizante do
professorado, fazendo Saviani (2008) constatar que, neste último caso, “separa-
se o profissional do cientista” (SAVIANI, 2008, p. 39). Para verificarmos as
dificuldades existentes na história educacional brasileira, foi essa última opção a
que foi prevalente nos embates político-pedagógicos que existiram na Era
Vargas, lançando, com isso, as primeiras bases da formação superior para
professores da educação básica, ajudando-nos a entender alguns dos desafios
que ainda hoje existem.

Vistas as três ordens de problemáticas apresentadas para que você


compreenda a trajetória da formação profissional em educação física, passemos,
então, a estudá-la em alguns pontos.

Com a expansão das práticas corporais e o conjunto de discursos a


justificar a adesão a essa prática, mesmo em um contexto em que não havia um
profissional disponível, algumas pessoas se incumbiram dessa nova tarefa que
surgia. Essas pessoas encontravam nas instituições então disponíveis seu
estímulo e os modelos a serem seguidos para tornarem real a importância da
educação physica. No fim do século XIX e início do século XX, essas instituições
que tinham na educação physica um ponto de grande interesse eram o exército
e as faculdades de medicina. Melo (1996, p. 25) afirma que ao lado da ênfase
prática dada à formação dos militares, as faculdades de medicina oferecia o
“aporte teórico” da “cultura physica” através das teses que eram defendidas no
interior sobre a saúde a importância dos exercícios corporais em seu fomento.

Se a produção de discursos sobre a importância das práticas corporais


para a saúde e para a moralidade da população era fundamental, por sua vez,
ela não era algo feito apenas pelos médicos. Era feita pelos médicos a
sustentação científica dos impactos fisiológicos das práticas, porém, a questão
educacional e formativa a ser influenciada pela educação physica ocorria por
meio da escrita e fala de políticos e pedagogos. De um modo muito visível, a
importância higiênica e eugênica das práticas corporais reverberava em toda
sociedade e provinha de várias origens.

Todavia, a condução prática dessas atividades, sua organização e


propagação cotidiana foi assumida, indiscutivelmente, pelos militares. Castellani
Filho (1988) lembra-nos que a Academia Real Militar passou a existir no Brasil
já em 1810. Em 1860 o método alemão de ginástica foi introduzido no país. Melo
(1996) observa que, em 1881, é nomeado como primeiro professor de ginástica
da Escola Normal do Rio de Janeiro o Capitão Ataliba Fernandes. Embora desde
1905 se falasse da necessidade de se criar escolas civis de educação física,
foram as escolas militares que se instalavam. Em 1909 foi fundada a Escola de
Educação Física da Força Policial; na década de 1920, no Rio de Janeiro, o
Centro Militar de Educação Física (CASTELLANI FILHO, 1988).

Castellani Filho (1988) mostra que o Centro Militar de Educação Física foi
importante. Afinal, ele tinha como objetivo adotar novos métodos de educação
física. Foi por intermédio desse centro que, em 1929, em um curso provisório,
os primeiros civis receberam formação em educação física, concretizando a
“presença marcante dos militares na formação dos primeiros professores civis
de Educação Física, em nosso meio…” (CASTELLANI FILHO, 1988, p. 34).
Importante nessa narrativa é você considerar que foi desse Centro que se
originou a Escola de Educação Física do Exército, em 1933, cuja
regulamentação permitia a frequência de civis. Ou seja, formar professores de
educação física e ser professor de educação física remetia a um perfil atitudinal
muito próximo da autoridade de um sargento a comandar seus soldados.

Entretanto, os problemas ainda continuavam pela falta de professores


qualificados para atender à demanda por educação física que vinha tanto de
clubes quanto das escolas que, lembre-se, expandiam-se em número. Em 1938
foi oferecido um curso de emergência para diminuir essa carência, consolidando
uma atmosfera favorável da Escola Nacional de Educação Física e Desportos,
na Universidade do Brasil (que em 1965 tornou-se a Universidade Federal do
Rio de Janeiro).

Feita essa exposição, vamos tentar costurar uma unidade em todo esse
conjunto de fatos e instituições, para que tenhamos o cerne da problemática com
a qual inicia-se a formação de professores de educação na história educacional
brasileira.

Para tanto, sublinho algo que já foi mencionado nas páginas e unidades
anteriores: as primeiras décadas do século XX caracterizam-se pela colocação
da educação obrigatória e da educação física em um lugar de destaque, se
considerados períodos históricos anteriores. Além disso, passou a existir maior
demanda tanto de professores em geral quanto de técnicos, especialistas e
professores de educação física.

O fato de a escola e da educação física serem consideradas como


desafios importantes para a história educacional brasileira não deve nos fazer
esquecer que, no relacionamento entre esses dois campos de ação, embora
relacionados em muitos aspectos, havia alguns elementos que os afastavam.

Ficou explícita a relação entre a expansão da educação física e o exército.


Essa relação, todavia, era alvo de alguma desconfiança dos meios educacionais
que participavam, ativamente, dos debates e das instituições que gerenciam a
expansão da educação pública no Brasil. Cito como exemplo o posicionamento
da Associação Brasileira de Educação (ABE), fundada em 1922, e com grande
papel nos debates educacionais de então. Na virada da década de 30, a ABE
posicionou-se contra a presença do Exército na determinação de um método de
educação física, afirmando ser esse um “problema educativo” (CASTELLANI
FILHO, 1988, p. 75) que não seria da alçada dos militares. O fato de a ABE ver
na problemática da educação algo importante pode ser percebido em sua
iniciativa de organizar um de seus concorridos Congressos Brasileiros de
Educação, o de 1935, tendo como tema a educação física.

Com efeito, é importante ponderar que havia não apenas no Brasil, mas
em muitos lugares do mundo, uma tentativa de separar a escola da caserna.
Essa presença militar nos meios educacionais foi alvo de muitas críticas. Se a
presença dos militares era, historicamente, importante no mundo educacional,
ela era mais incômoda quando consideramos a educação física brasileira. O fato
de os professores de educação física serem formados em escolas do exército -
além da presença dos militares nas primeiras escolas civis de formação em
educação física -, contribuiu, entre outras coisas, para que a formação do
professorado em geral trilhasse caminhos diferentes da formação dos
professores de educação física.

Também pesava na construção dessa diferença entre a formação de


professores e a formação de professores de educação física e influência médica
na divulgação dos conhecimentos relativos aos avanços da fisiologia e
biomecânica a serem aplicados aos futuros professores. A prevalência dos
conhecimentos de característica biomédica nos currículos dos primeiros cursos
apoiava-se em uma consideração científica que dava ao corpo a conotação de
máquina, a ser medida e desmontada, retomando influências sentidas desde o
processo de nascimento e consolidação da ciência anatômica. Com isso, os
professores de educação física, ao serem formados, recebiam grande carga de
conhecimentos dessa matriz científica, sendo que a formação em questões
pedagógicas era bem mais reduzida, contando com pequenos número de
disciplinas e uma carga horária amplamente inferior se comparada com a que
era despendida com biologia, bioquímica e fisiologia.

Essas considerações têm sua importância, pois elas nos ajudam a


pensar, historicamente, uma constante percepção que existe na escola sobre os
professores de educação física. Enquanto os outros professores seriam, de fato,
professores, por terem algo a ensinar, um conhecimento a transmitir, os
professores de educação física não seriam professores plenos, nesse tradicional
sentido da docência. Os professores de educação física são tomados como
conhecedores do corpo humano, responsáveis por colocarem as crianças para
se mexerem, mas, não, aprenderem.

Do ponto de vista histórico, o processo de formação de professores em


geral e dos professores de educação física em particular teve alguns
distanciamentos. Sobre isso, Melo (1996, p. 31) nos lembra um fato interessante:
na década de 1930, a educação física era a única disciplina que possuía uma
seção especial no Ministério da Educação e Saúde. O que é algo interessante
pelo reconhecimento que dava a esse nascente campo é o endosso de uma
visão mecanicista de corpo e de saúde, que afastava os professores de
educação do trabalho diretamente pedagógico no também nascente mundo
escolar. Afinal, por outro lado, quando foi criada a Faculdade Nacional de
Filosofia, apenas a área de educação ficou de fora de seu campo de
abrangência, que compreendia todas as outras licenciaturas. Dito de outra
maneira: em seus primeiros momentos, a formação de professores de educação
física passou ao largo dos conhecimentos pedagógicos necessários à ação
pedagógica. Desse ponto de vista, nosso ingresso no mundo escolar foi menos
como professores e mais como uma mistura de sargento-médico a dar ordens e
a fazer prescrições de movimento. Ou seja, ao se relacionar com os alunos, essa
consideração da educação física escolar como atividade do corpo demandava o
conhecimento anátomo-fisiológico do movimento em questão e… autoridade
que se manifestava no comando e na contagem do ritmo. Ora, mesmo com os
problemas observados por Saviani (2008) na formação dos professores em
geral, conhecimentos pedagógicos então existentes eram bem mais complexos
que esses transmitidos aos professores das demais disciplinas.

Para concluir este tópico, ao responder a pergunta título dele, (o que fica
dessa formação?) sublinho que essa ida aos primeiros processos de formação
profissional em educação física evidencia um dos desafios que hoje
enfrentamos: formar professores de educação física integrados aos saberes, aos
procedimentos e aos objetivos da educação básica brasileira. E, para tanto,
pedagogia, psicologia da educação, didática, políticas públicas educacionais,
filosofia da educação e... história da educação (e educação física) são tão
importantes quanto os também necessários conhecimentos a serem obtidos com
os estudos a serem feitos nas disciplinas da área de saúde. FIM DO TÓPICO 3.

INÍCIO DO TÓPICO 4: OS CAMINHOS ATÉ NÓS: COMO A EDUCAÇÃO


FÍSICA ESCOLAR SE TORNOU O QUE É?

Início da descrição da imagem:


Legenda: Revolução de 1930.

Descrição: Fotografia em preto e branco da comitiva de Getúlio Vargas na


Revolução de 1930. No centro da foto está Getúlio Vargas, cercado por militares
e pela população em geral.
Fonte: JANSSON, 1930, on-line. Disponível em:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Revolu%C3%A7%C3%A3o_de_1930.j
pg. Acesso em: 17 out 2016.
Fim da descrição da imagem.

Nos itens anteriores foram estudados dois elementos que avalio


fundamentais para conhecermos a história da educação física no Brasil: 1) as
ideias e as ações que levaram as práticas corporais para o interior da escola,
tanto a educação do corpo presente no dia a dia escolar quanto a disciplina
escolar, o componente curricular para utilizarmos uma linguagem da atualidade.
Além desse ponto, foi focalizada a 2) base das discussões e das primeiras
instituições que se ocuparam de pensar e formar os primeiros profissionais para
atuarem com a educação física.

O que busco agora é levar você a refletir sobre algumas consequências


disso que foi abordado. Sugiro que pensemos nos caminhos que se abriram nas
décadas seguintes e que chegaram à realidade na qual vivemos hoje.
Os dois pontos estudados anteriormente, a escolarização da educação
física e o início de uma formação profissional sistemática em educação física
foram impactados pelo mesmo processo: nas décadas que se seguiram à de
1930, no interior do processo de complexificação econômica baseada na
integração (ou dependência) econômica brasileira ao capital internacional, a
educação e a educação física deixaram de ser assuntos regionalizados,
tornando-se alvo de regulamentações nacionais, válidas em todo o país. Chamo
sua atenção para essa mudança: mesmo que ela tenha acontecido no âmbito
político, gerando a sensação de que, concretamente, nada mudou, essa
passagem da reflexão educacional dos estados para a União é fundamental. Ela
impacta a possibilidade de direitos serem debatidos e efetivados nos diferentes
instrumentos legais que regem a educação, sendo crucial, sobretudo, para os
filhos daqueles que não podem pagar escolas particulares.

Vamos visualizar esse processo ligado à educação física, verificando


como ela foi tratada em um conjunto importante de dispositivos constitucionais e
de regulamentações específicas que a abordaram depois de 1930.

Castellani Filho (1988) lembra-nos que na Constituição de 1934 não


houve uma menção explícita à educação física. Entretanto, a “necessidade de
estimular a educação higiênica” (CASTELLANI FILHO, 1988, p. 81) foi citada.
Todavia, nas discussões sobre o Plano Nacional de Educação, previsto pela
Constituição de 1934, a educação física é defendida como parte necessária do
“sistema escolar” (BELTRAMI, 2006, p. 45).

Em 1937 temos o Estado Novo, instaurado por Vargas. No mesmo dia em


que ocorre o golpe de Estado, 10 de novembro de 1937, uma nova constituição
é outorgada. Na constituição de 1937, em seu artigo 131, define-se a educação
física como obrigatória “em todas as escolas primárias, normais e secundárias”
(BELTRAMI, 2006, p. 81), o que foi regulamentado pelo Decreto-Lei 2072 de
1940. No artigo 4. o decreto à educação física é colocado como um elemento
fundamental no fortalecimento da saúde, a ser conseguido por meio de ginástica
e esportes adequados às “condições de cada sexo” (BELTRAMI, 2006, p. 91).

Com o fim do Estado Novo em 1945, iniciou-se a discussão para uma


nova constituição. Com a promulgação da Constituição de 1946, abriu-se o
processo de discussão das Leis de Diretrizes e Bases, aprovada em 1961. Nela,
a educação física é mencionada no artigo 22, que foi regulamentado pelo
Decreto 58.130 de 1966. Essa regulamentação deve ser sublinhada, pois é a
primeira regulamentação com alcance nacional para determinar os objetivos e
como deveriam funcionar as aulas de educação física. No artigo 1 do referido
documento, vemos o alcance do decreto:

Art.1. A educação física, prática educativa tornada obrigatória pelo art.


22 da Lei de Diretrizes e Bases, para os alunos dos cursos primário e
médio, até a idade de 18 anos, tem por objetivo aproveitar e dirigir as
forças do indivíduo - físicas, morais, intelectuais e sociais - de maneira
a utilizá-las na sua totalidade, e neutralizar, na medida do possível, as
condições do educando e do meio (BRASIL apud BELTRAMI, 2006, p.
65).

Não deve ser perdido de vista que tal regulamentação tem importância
em um cenário histórico em que o estado teve grandes dificuldades de assumir
responsabilidades educacionais. Todavia, colocar a educação física escolar
como obrigatória, de modo uniforme, a todo o país teve pouca ressonância
prática, levando Beltrami (2006) a fazer a seguinte análise, depois de mostrar os
esforços havidos na década de 1960 para se instaurar, legalmente, a
obrigatoriedade da educação física:

Ainda permaneciam os problemas quanto às condições materiais e


quanto aos recursos humanos qualificados. De qualquer forma, de
acordo com os defensores da educação física no sistema escolar, esse
quando ainda não era satisfatório, porque não havia critério para
fiscalização e não havia um organismo com poderes para tal. Os
mentores e profissionais da educação física buscavam um espaço de
poder e este só poderia acontecer a partir de uma organismo forte,
respaldado por um Estado Forte (BELTRAMI, 2006, p. 66).

No momento em que essas regulamentações sobre a educação física


eram criadas, a sociedade brasileira já vivia no regime de ditadura militar. Em
1969, o Ato Institucional n.º 5 tirou direitos políticos e liberdades civis,
caracterizando a linha dura do regime que existiu até o início da década de 1980.
Foi na vigência desse ato que foi publicado o Decreto-Lei n.º 705 de 1969,
colocando a educação física como obrigatória em todos os níveis da educação
brasileira, inclusive no ensino superior. Esse decreto foi regulamento pelo
Decreto n.º 69.450 de 1971. De acordo com Beltrami, com esse decreto se
“encerra uma etapa significativa da implantação da Educação Física no sistema
escolar” (BELTRAMI, 2006, p. 83).

No âmbito da formação de professores, em 1969 o Conselho Federal de


Educação publica a resolução n.º 69, que instituiu o currículo mínimo dos cursos
de educação física. Por currículo mínimo deve ser compreendida uma lista de
disciplinas e suas respectivas cargas horárias que deveriam estar presentes em
todos os cursos. Rangel-Betti e Betti (1996) chamam o currículo que passou a
prevalecer nesse momento de tradicional-esportivo, por eles descrito da seguinte
maneira:

Há separação entre teoria e prática. Teoria é o conteúdo apresentado


na sala de aula (qualquer que seja ele), prática é a atividade na piscina,
quadra, pista, etc. A ênfase teórica se dá nas disciplinas da área
biológica/psicológica: fisiologia, biologia, psicologia, etc. Este modelo
iniciou-se ao final da década de 60 e consolidou-se na década de 70,
acompanhando a expansão dos cursos superiores em Educação
Física no Brasil e a "esportivização" da Educação Física (RANGEL-
BETTI e BETTI, 1996, p. 10).

Mesmo com as mudanças provocadas pela resolução do Conselho


Federal de Educação n.º 03 de 1987, que criou a formação em educação física
em bacharelado e extinguiu o currículo mínimo, vale reconhecer que é de 2004
uma resolução do Conselho Nacional de Educação, Resolução n.º 7, importante
para pensarmos tanto na história da educação física quanto em sua configuração
na atualidade. Esse documento já foi citado na primeira unidade deste livro. Ele
sinaliza uma ruptura com a tradição por nós estudada quando, por exemplo,
lemos alguns de seus artigos:

Art. 4º O curso de graduação em Educação Física deverá assegurar


uma formação generalista, humanista e crítica, qualificadora da
intervenção acadêmico-profissional, fundamentada no rigor científico,
na reflexão filosófica e na conduta ética. § 1º O graduado em Educação
Física deverá estar qualificado para analisar criticamente a realidade
social, para nela intervir acadêmica e profissionalmente por meio das
diferentes manifestações e expressões do movimento humano,
visando a formação, a ampliação e o enriquecimento cultural das
pessoas, para aumentar as possibilidades de adoção de um estilo de
vida fisicamente ativo e saudável. § 2º O Professor da Educação
Básica, licenciatura plena em Educação Física, deverá estar
qualificado para a docência deste componente curricular na educação
básica, tendo como referência a legislação própria do Conselho
Nacional de Educação, bem como as orientações específicas para esta
formação tratadas nesta Resolução (BRASIL, 2004, p. 1).

Ao ler esses artigos e se lembrar da constante menção feita à prevalência


da matriz esportiva e biologizante na educação física, sugiro que pense na
ruptura por mim sinalizada há algumas linhas. Essa ruptura chega por meio dos
caminhos percorridos pelo conjunto de discussões sobre a presença da
educação física na escola e a formação de professores para realizarem essa
tarefa.

Para pensar a forma como isso nos impacta na atualidade, vamos para a
última parte do livro, ponderando, então, os horizontes que se abrem e as
barreiras que se interpõem entre nós e aquilo que queremos alcançar. FIM DO
TÓPICO 4.

INÍCIO DO TÓPICO 5: EDUCAÇÃO FÍSICA E ESCOLA: PENSANDO


FUTUROS AO PENSARMOS PASSADOS

A história da educação física escolar confunde-se com a história da escola


como a conhecemos. Vimos que a escolarização se deu ao lado da
escolarização das práticas corporais. Por isso, ao estudar esse processo no
contexto brasileiro foi necessário relacionar a história das perspectivas e dos
desafios enfrentados pela expansão da escola em nosso país.

Uma das maiores dificuldades na expansão tanto da escola quanto da


educação física em seu interior, foi o longo caminho percorrido lentamente até
termos essas duas instituições colocadas como obrigatórias para todos os
brasileiros e brasileiras. Interessante verificar que isso se deu mesmo com uma
grande quantidade de políticos, pensadores e intelectuais colocando como
inquestionáveis tanto a escola quanto a importância dela educar fisicamente.

Ao lado desse longo processo concretização institucional mais geral, a


escolarização da educação física enfrentou outros desafios: como uma prática
defendida pelo seu potencial moralizante, educativo, higienizador; como uma
disciplina escolar avaliada como fundamental para a realização de qualquer
ambição educativa, sempre tem enfrentado a resistência de várias ordens para
ser encarada como uma disciplina escolar igual às outras?

Essa dúvida foi sendo construída como importante para muitas gerações
de professores de educação física. Durante as décadas de 1980 e 1990, essa
problemática atingiu um nível de inquietude agudo, gerando um processo de
questionamentos e proposições pedagógicas que acabou nominado de “crise da
educação física”. Tentando sintetizar a intensidade desse período histórico para
a educação física, poderíamos entendê-lo como uma tentativa de se encontrar
justificativas pedagogicamente viáveis para explicar a importância dos
professores de educação física na escola. Se for lembrado o caminho histórico
que percorremos, esse esforço não existiu em outros períodos: o que houve
foram afirmações que sempre consideravam a educação física possuidora de
uma importância inquestionável.

Um dos pontos centrais da problemática a partir de 1980 era tornar o


professor de educação física, de fato, professor, deixando-o de relacioná-lo com
outros perfis profissionais que lhe foram sendo atribuídos no decorrer da história
por nós estudada. Valter Bracht (1992), em um dos textos mais importantes
dessa reflexão levada a cabo por toda nossa área ou campo profissional,
sintetiza um dos horizontes que passaram a ser buscados:

Os professores não operam a diferenciação dos papéis de treinador e


professor, em parte, porque a própria Educação Física, não tendo
autonomia ou identidade pedagógica, não fornece um referencial, um
conjunto fundamentado e institucionalizado de expectativas de
comportamento. Isto é, a própria definição do papel do professor de
Educação Física inexiste (BRACHT, 1992, p. 23).

Lembre-se que uma das consequências de todo esse debate foi a


incursão de pesquisadores no campo da educação, das ciências humanas, da
filosofia e da história. O livro que você está lendo é uma resultante daquelas
inquietações de professores que, ao pensarem o papel da educação física na
escola, ampliaram o leque de áreas de conhecimento a subsidiar
encaminhamentos para a intervenção em diferentes espaços, sobretudo, na
escola.
Certamente, a crise da educação física influenciou o modo como a
educação física foi disposta na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) 9.394 de 1996.
No Artigo 26, que versa sobre os currículos da educação básica, há o Inciso 3,
no qual lemos: “A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola,
é componente curricular obrigatório da educação básica [...]” (BRASIL, 1996,
s.p). Atente-se para a importância dessa determinação legal, à luz dos estudos
históricos que fizemos: pela primeira vez na história da educação física escolar,
ela é considerada como um componente curricular, assim como os outros
componentes trabalhados na educação básica. A educação física, com isso,
deixa de ser assumida, pela maior regulamentação educacional do país, como
uma atividade, como uma recreação, ou um meio para desenvolver valências
físicas ou psicomotoras. Pela LDB 9.394/96, a educação física trata-se de um
conjunto de estudos que aborda um determinado conhecimento para a formação
cidadã e produtiva dos alunos.

Paralelamente ao desenvolvimento desse avanço legal obtido para a


educação física escolar, foram elaboradas propostas para a organização do
trabalho pedagógico dos professores de educação física nas escolas, visando
realizar essa nova condição. Essas propostas, desde o final da década de 1980
e durante a década de 1990, ficaram conhecidas como tendências da educação
física ou abordagens pedagógicas da educação física. Não estudaremos essas
tendências individualmente neste momento, pois elas serão alvo de reflexão em
outras disciplinas do curso.

Todavia, sobre essas abordagens, neste momento, creio que possa ser
considerado o seguinte: apesar da relevância desse conjunto de debates, de
investigações, propostas e avanços legais; apesar do empenho com que se tem
lutado para efetivar uma educação física escolar que se afaste da tradição
médica, militar e desportiva que marcou as práticas desse componente curricular
na história, os problemas persistem. Ao avaliarem a realidade pedagógica das
aulas de educação física a partir de meados dos anos 2000, alguns estudos têm
verificado que esse grande edifício intelectual e legal da educação física que
surgiu depois de sua notória crise ainda não teria impactado o cotidiano de
alunos e professores. Caparroz e Bracht (2007), ao fazerem essa constatação,
iniciam um artigo narrando a seguinte situação:
Temos nos deparado, com frequência cada vez maior, com
depoimentos e/ ou indagações sobre como realizar e organizar o
trabalho docente em educação física na escola. Ex-alunos da
licenciatura apontam dificuldades em relação ao trabalho que
desenvolvem. Recentemente, para citar um exemplo, uma professora
(ex-aluna do curso de educação física oferecido por nossa instituição)
comentava sobre a prova de um concurso público para seleção de
professores de educação física, dizendo que havia ido muito bem e que
estava feliz por tal, mas que, ao mesmo tempo, estava preocupada
com a materialização da sua prática pedagógica. Em seus dizeres: “Eu
sei tudo o que caiu no concurso, em relação às abordagens, mas não
sei como concretizar isso na minha prática pedagógica na escola”
(CAPARROZ; BRACHT, 2007, p. 22).

Como explicar essa situação? Não bastaria aos professores conhecerem


as abordagens e terem o respaldo de uma lei que equaliza a educação física aos
demais componentes curriculares para que ministrem boas aulas? Será que a
crise da educação física ainda não passou, apesar de quase 40 anos de debates
sobre o seu papel na escola?

Para deixar a busca por respostas a essas questões ainda mais intrigante,
aponta-se que uma das maiores fontes de dificuldades para concretizar as
propostas existentes vem não apenas de muitos professores de educação física,
mas dos próprios alunos e dirigentes educacionais que, imersos em uma
tradição sobre o que é a educação física na escola, repudiam qualquer
intencionalidade pedagógica que não seja relacionada ao esporte
(principalmente, às modalidades coletivas comumente praticadas).

INÍCIO DO SAIBA MAIS: Uma consequência positiva da crise da educação


física foi a ampliação do leque de assuntos a serem trabalhados nas aulas de
educação física. É corriqueira a nossa memória sobre as aulas de educação
física na escola limitarem-se ao ensino (ou, mais precisamente, à prática) de
futebol, handebol, voleibol e basquetebol. Na década de 1990 ganhou força a
expressão “cultura corporal”, que foi assumida como conceito a definir o conjunto
de assuntos a serem abordados, pedagogicamente, pelo professor de educação
física. Diferentemente do que vimos em nossa abordagem história, buscou-se
construir um trabalho pedagógico que não se prendesse a um grupo de práticas,
como ocorrera com a ginástica no início do século XX e com o esporte depois da
década de 1960. Ao lado do esporte e da ginástica, as lutas, a dança, os jogos
foram outros elementos que entraram no horizonte pedagógico dos professores
no momento de preparar e efetivar suas aulas. Fonte: o autor, baseado em
Soares (1992). FIM DO SAIBA MAIS.

Deve, ainda, ser considerado que, em nosso contexto, essas novas


dificuldades da educação física acontecem em um momento que apresenta
algumas rupturas com os períodos por nós estudados. Em primeiro lugar, hoje
temos ampliado de uma forma inigualável a importância cultural, econômica,
recreativa e social do esporte e das práticas corporais. Embora os dados
relativos ao sedentarismo mundial ainda preocupem, os cuidados com o corpo e
a presença do corpo na definição daquilo que as pessoas pensam delas mesmas
e dos outros supera, em muito, a “ética da ação” diagnosticada por Sevcenko
(2012) nas primeiras décadas do século XX. Ou seja, na atualidade a tal ética se
tornou um imperativo, uma obrigação.

Ao lado dessa constatação, verificamos que a escola não conta com a


mesma adesão. Se a escola se expande na sociedade brasileira carregando
muitas promessas políticas, econômicas e civilizatórias nela depositadas, essas
esperanças perderam força. Tornaram-se comuns as críticas ao descompasso
da escola em relação ao mundo contemporâneo, sua incapacidade de formar a
juventude que nasceu digital, levando, também, grande descrença sobre a
importância e a autoridade dos professores na construção de uma sociedade do
conhecimento.

Durante as reflexões que fizemos, insisti na necessidade de entrelaçar a


escola e a educação física escolar para explicá-las, mutuamente, no processo
de desenvolvimento histórico de suas práticas e das lutas que as levaram a se
tornarem direito de todos os cidadãos e cidadãs. Por quais razões esses direitos,
hoje, têm dificuldades de serem vistos como tais? Por que são eles tomados
como obrigações que pararam no tempo e não oferecem razões para justificar
sua imposição? O que explica o fato de a educação física escolar ter dificuldade
de transformar suas práticas, apesar de o corpo e seus cuidados serem assuntos
cotidianamente debatidos por pessoas de diferentes idades e classes sociais?
Se eu tivesse essas respostas, eu não hesitaria em escrever mais alguns
parágrafos para oferecê-las a você, caro(a) aluno(a). Não as tenho. Que elas
estimulem você a continuar seus estudos. A mim, elas me dão força para
pesquisar e ensinar história da educação física.

INÍCIO DO REFLITA: [...] muitas vezes, a cultura escolar restringe o


entendimento da educação do corpo à realização de movimentos mecânicos e
repetitivos, reduzindo as aulas de Educação Física à atividade catártica ou
meramente complementar a outras disciplinas. Fonte: Marcus Aurélio Taborda
de Oliveira, Luciane Paiva Alves de Oliveira e Alexandre Fernandez Vaz. FIM
DO REFLITA. FIM DO TÓPICO 5.

INÍCIO CONSIDERAÇÕES FINAIS: Prezado(a) aluno(a), nesta unidade


voltamos as lentes da abordagem histórica para as diferentes problemáticas que
envolveram a construção de muitos elementos que possibilitaram aquilo que é a
nossa principal preocupação em um curso de licenciatura em educação física:
professores, alunos, conteúdos, espaços e tempos dedicados às aulas de
educação física dentro do sistema nacional de ensino no Brasil.

Um dos pontos bastante enfatizados foi o processo que possibilitou o fato de


essa estrutura ser coordenada nacionalmente, gerando, assim, um “sistema
válido para todos os estados. Importante verificar nessa análise que impulsos
importantes à educação física aconteceram em momentos ditatoriais de nossa
história política, notadamente durante o Estado Novo de Vargas e a Ditadura
Militar deflagrada em 1964. Mas não apenas isso: você também teve a
oportunidade de notar que, como resultado da Constituição da 1988, a LDB
9.394 de 1996, pela primeira vez na história educacional brasileira, fez com que
a presença da educação física na escola se justificasse pelo fato de ela ser
educacionalmente relevante, e não por formar o homem forte, a mulher saudável,
o futuro soldado ou transformar o país em potência olímpica. Tratam-se de perfis
recorrentemente colocados como objetivos à educação física e que a afastaram
do trabalho pedagógico realizado pelos outros componentes curriculares.

Por fim, depois de analisada essa trajetória, você pôde perceber que os desafios
ainda existem. Embora, se considerarmos a formação dos futuros professores e
a inserção legal da educação física no âmbito da educação brasileira, muitos
avanços foram conquistados, problemas didáticos e pedagógicos persistem:
como fazer com que no cotidiano escolar uma educação física se integre na
proposta pedagógica da escola efetivamente e não apenas legalmente? Mais
uma vez, como fizemos frequentemente neste livro, encerramos um conjunto de
reflexões históricas com condições de fazer perguntas importantes. Esta
questão, em particular, acompanhará você durante toda sua jornada formativa
neste curso. FIM DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS.

INÍCIO DAS ATIVIDADES DE ESTUDO.

1) Do ponto de vista político, caracterize a maneira como aconteceram as


primeiras ações para escolarizar a educação física no Brasil.

2) As primeiras escolas destinadas a formarem professores de educação


desenvolveram-se em um processo paralelo a quais outras duas
instituições educacionais?

3) Pondere a importância do exército e a das faculdades de medicina na


expansão da educação física brasileira.

4) O que significou para a história da educação física no Brasil a LDB 9.394


de 1996?

5) Considerando a história que foi estudada, bem como desdobramentos


político-pedagógicos do presente, comente os desafios a serem vencidos
pela educação física escolar.

FIM DAS ATIVIDADES DE ESTUDO.

INÍCIO DA LEITURA COMPLEMENTAR: A Educação Física (EF) como


disciplina escolar passa por um processo de transformação do qual todos somos,
senão protagonistas, espectadores. Alguns há mais tempo, outros menos,
convivemos com um processo de transformação que consideramos sem
precedentes na história desta atividade pedagógica. Processo ao qual,
entendemos, não se tem prestado a suficiente atenção. Parece possível afirmar
que, em linhas gerais, o século XX presenciou, nas sociedades ocidentais, a
consolidação da EF na escola sustentada no conhecimento médico-biológico e
orientada pela ideia de que sua função principal era a promoção da saúde,
articulada discursivamente como uma ideia genérica de educação integral do
homem no sentido do desenvolvimento de todas as suas potencialidades [...].
Nesse caminho, e de forma mais intensa a partir da metade do século passado,
a EF estabeleceu uma relação simbiótica com o esporte, por meio da qual esse
fenômeno, em sua forma institucionalizada, acabou sendo praticamente
hegemônico nas aulas de EF. A tal ponto de, no senso comum, ser plenamente
possível confundir EF escolar com prática esportiva, [...]. Esse processo, que
ficou conhecido como a esportivização da EF escolar e que foi hegemônico
durante várias décadas, passou a ser questionado no transcurso dos anos de
1980 a partir daquilo que ficou conhecido como movimento renovador da EF
brasileira. Movimento este que impulsionou mudanças em diversas dimensões
de nossa área.

Particularmente no que respeita ao campo educacional, questionou-se o


paradigma de aptidão física e esportiva que sustentava de forma extensiva as
práticas pedagógicas da EF nos pátios escolares. Sem poder neste texto alongar
essa descrição, podemos apontar que, entre outras iniciativas, o movimento
renovador entendeu que uma das ações necessárias para transformar a EF seria
“elevá-la” à condição de disciplina escolar, tirando-a da categoria de mera
atividade.

Em outras palavras, é da mão do movimento renovador que se coloca, talvez,


pela primeira vez, um conjunto de questões que não faziam parte das
preocupações da tradição desta área, e que balizam as teorias pedagógicas
quando buscam legitimar um componente curricular num projeto educacional.
Questões como:

1. Por que esta disciplina deve compor o currículo da escola?


2. Quais são seus objetivos?
3. Quais são seus conteúdos?
4. Como são sistematizados os conteúdos ao longo dos diferentes níveis de
ensino?
5. Como esses conteúdos devem ser ensinados?
6. Como avaliar seu ensino?
Nesse contexto, parece lógico perguntar o que significou a incorporação desses
questionamentos teórico-pedagógicos para o campo das preocupações e do
fazer da EF. Segundo nossa percepção, a inclusão dessas preocupações na
área imprimiu uma mudança de tal magnitude que é possível comparar esse
fenômeno a um ponto de inflexão na qual a trajetória da EF faz uma quebra
definitiva com sua tradição legitimadora. É dizer que aquilo que nos sustentava
como área no plano da legitimidade autoatribuída ruiu, e não temos como voltar
atrás, como esquecer essa inflexão. Fonte: González e Fensterseifer (2009,
p.10-11). FIM DA LEITURA COMPLEMENTAR

INÍCIO DO MATERIAL COMPLEMENTAR - LIVRO


Título: Metodologia do Ensino da Educação Física
Autor: Carmen Lúcia Soares et all.
Editora: Cortez
Ano: 1992
Sinopse: publicado em 1992, o livro aproxima o ensino da educação física da
abordagem histórico-crítica. Nas reflexões, o conceito de cultura corporal torna-
se estruturante para o que os autores entendem ser o objetivo da educação física
escolar. Isso é feito a partir de uma consideração do que ela foi na história
educacional brasileira.
Comentário: muitas das reflexões desenvolvidas por mim apoiam-se nas ideias
contidas no livro sugerido. Mais conhecido como “Coletivo de Autores”, a obra
impactou não apenas cursos de licenciatura em todo o país, mas muitas das
regulamentações legais que foram elaboradas, sobretudo diretrizes curriculares
nacionais e estaduais.
INÍCIO DO MATERIAL COMPLEMENTAR - LIVRO

INÍCIO DO MATERIAL COMPLEMENTAR - FILME


Título: Educação Proibida
Ano: 2012
Sinopse: relata experiências inovadoras, tendo como pano de fundo críticas à
estrutura escolar, tal como existe hoje e que passou a existir a partir do século
XIX.
Comentário: o documentário não fala, especificamente, sobre a educação física,
muito menos foca o contexto brasileiro. Mas ele é interessante por permitir
visualizar a maneira como a escola é hoje criticada. Se a educação física
brasileira tem lutado para estar dentro da escola de uma forma pedagogicamente
legítima, a que se atentar que essa escola para a qual tentamos ter a tal
legitimidade tem sido, ela também, considerada como não legítima para o tempo
no qual vivemos.
FIM DO MATERIAL COMPLEMENTAR - FILME

INÍCIO DO MATERIAL COMPLEMENTAR - WEB


O endereço a seguir levará você ao Centro de Memória do Esporte da Escola de
Educação Física (CEME) da UFRGS. Nele, há grande quantidade de
informações sobre a história do esporte, da educação física e do lazer. Além
disso, há livros publicados pelo CEME, com acesso gratuito. Confira!
Link: <http://www.ufrgs.br/ceme/site/>.
FIM DO MATERIAL COMPLEMENTAR – WEB

INÍCIO DAS REFERÊNCIAS

AZEVEDO, F. de. A cultura brasileira. 5. ed. São Paulo: Melhoramentos /


Editora da USP, 1971.

______. Da educação física. 3. ed. São Paulo: Edições Melhoramentos, s.d.

BELTRAMI, D. M. A educação física na política educacional do Brasil pós-


64. Maringá-PR: EDUEM, 2006.

BRACHT, V. Educação Física: a busca da autonomia pedagógica. In: Educação


Física e aprendizagem social. Porto Alegre: Magister, 1992. p.15-32.

BRASIL. Lei n.º 9394. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.


Brasília-DF, 20 de dezembro de 1996.

______. Resolução n.º 7 da Câmara de Ensino Superior do Conselho


Federal de Educação. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os
cursos de graduação em Educação Física, em nível superior de graduação
plena. Brasília-DF, 31 de março de 2004.

CAPARROZ, F. E.; BRACHT, V. O tempo e o lugar de uma didática da educação


física, Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Florianópolis, v. 28, n. 2, p.
21-37, jan. 2007.

CASTELLANI FILHO, L. Educação física no Brasil: uma história que não se


conta. Campinas-SP: Papirus, 1988.

GONZÁLEZ, F. J.; FENSTERSEIFER, P. E. Entre o "não mais" e o "ainda não":


pensando saídas do não lugar da EF Escolar II. Cadernos de Formação RBCE,
Curitiba, v. 1, n. 1, p. 9-24, set. 2009.

HEROLD JUNIOR, C. Da instrução à educação do corpo: o caráter público da


educação física e a luta pela modernização do Brasil no século XIX (1880-1925).
Educar em Revista, Curitiba, v. 25, p. 237-255, 2005.
MELO, V. A. Escola nacional de educação física em desportos: uma possível
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2008.

VAGO, T. M. Histórias de educação física na escola. Belo Horizonte: Mazza,


2010.

FIM DAS REFERÊNCIAS.


INÍCIO DAS REFERÊNCIAS ON-LINE
1 Em:
<https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Luiza_Marchioro_e_alunos.jpg?usela
ng=pt-br>. Acesso em: 17 out. 2016.

2 Em:

<https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Familia_e_escravos_Brasil_1822.jpg?
uselang=pt-br>. Acesso em: 17 out 2016.

3 Em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Rui_Barbosa.jpg?uselang=pt-
br>. Acesso em: 17 out 2016.

4<https://commons.wikimedia.org/wiki/File:EMAda3.jpg?uselang=pt-br>.
Acesso em: 17 out 2016.

5 Em:

<https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Em_modestino_gon%C3%A7alves.jp
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6Em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Minerva_UFRJ.jpg?uselang=pt-
br>. Acesso em: 17 out 2016.

7Em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Brazil-CopaAmerica-
1919.jpg?uselang=pt-br>. Acesso em: 17 out 2016.

8 Em:

<https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Pavilh%C3%A3o_de_regatas_na_Av
enida_Beira_Mar.jpg?uselang=pt-br>. Acesso em: 17 out 2016.

9 Em:
<https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Revolu%C3%A7%C3%A3o_de_1930.
jpg>. Acesso em: 17 out 2016.

FIM DAS REFERÊNCIAS ON-LINE.


INÍCIO DO GABARITO

1) As primeiras iniciativas de escolarização da educação física foram feitas


no âmbito dos estados brasileiros.

2) Paralelamente à expansão da escola e à criação das primeiras


universidades, as primeiras escolas de educação física foram criadas
para atenderem à crescente demanda de professores qualificados.

3) Das faculdades de medicina vieram as justificativas teóricas sobre a


importância da educação física para a saúde da população. Do exército
vieram os procedimentos e primeiros responsáveis por realizarem o valor
dos diferentes métodos de ginástica para seus praticantes.

4) Significou a passagem da educação física escolar, antes entendida como


mera atividade corporal, à condição de componente curricular da
educação básica em situação de igualdade pedagógica com os demais
componentes.

5) Apesar dos avanços legais e pedagógicos que assistimos nas últimas


décadas na história da educação física escolar, constata-se que a
situação do componente no cotidiano escolar ainda se mantém,
relativamente, inalterado. Ou seja, as aulas continuam a se basear no
predomínio esportivo e na falta de intencionalidade pedagógica de muitos
professores, muitos dos quais não conseguem efetivar as diferentes
proposições pedagógicas que aprenderam em sua formação inicial.
INÍCIO DO GABARITO.
INÍCIO DA CONCLUSÃO GERAL

Caro(a) aluno(a), ao chegar ao final deste livro lembro-lhe que minha


expectativa é ter colaborado para mostrar uma pequena parte do valor que o
estudo da história da educação física pode ter. Um valor que não se justifica,
apenas, na utilidade que ela possui em iluminar problemas da atualidade, muitas
vezes, nem identificados como tais, mas, igualmente importante, por nos
possibilitar conhecer a história de nossa sociedade e de outras verificando e
estudando a educação e as práticas corporais em outras épocas.

Para isso demos cinco passos, em cada uma das unidades deste livro: 1)
conhecemos as particularidades do conhecimento histórico; 2) pensamos o
corpo humano como historicamente percebido, cuidado e educado; 3) vimos que
às diferentes práticas corporais ligam-se valores formativos de diferentes ordens;
4) por essa razão, a escolarização das sociedades contemporâneas se
caracterizou pela presença da educação física no interior da escola; 5) o mesmo
ocorrendo no Brasil, em um processo que se deu durante o século XX,
culminando no fato de a educação física se tornar um componente curricular da
educação básica.

Ao encerrarmos algumas das unidades, muitas dúvidas ficavam,


resultantes das reflexões que foram feitas. E essa é uma grande contribuição do
estudo da história da educação física a você. Na continuidade de seu curso, na
sucessão de disciplinas e discussões das quais participar, lembre-se que, ao
produzir conhecimento histórico e ao estudar a história de qualquer dimensão da
vida social, lidamos com um conhecimento ao mesmo tempo exigente, cativante
e tateante. Ele demanda cuidado ao se buscar e apresentar conclusões, mesmo
depois de uma atenção meticulosa que damos, por um bom período de tempo,
apenas àquilo de que gostamos muito. Mas, também, é um conhecimento que
gera um delicioso ímpeto para saber mais sobre o que nos interessa, criando,
com isso, novos interesses.

Que a leitura deste livro tenha feito você experimentar, um pouco, dessa
atenção e desse ímpeto. De minha parte, redigi-lo acalentando essa
possibilidade foi um grande prazer! FIM DA CONCLUSÃO GERAL.

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