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MASARYKOVA UNIVERZITA

FILOZOFICKÁ FAKULTA

ÚSTAV ROMÁNSKÝCH JAZYKŮ A LITERATUR

Portugalský jazyk a literatura

Lenka Zemanová

A vida e a obra de Caetano Veloso

na época do tropicalismo

Bakalářská diplomová práce

Vedoucí práce: Mgr. et Mgr. Vlastimil Váně

2009
Prohlašuji, že jsem diplomovou práci vypracovala samostatně
s využitím pramenů uvedených na příslušném místě.
Tištěná verze práce je shodná s její verzí elektronickou.

……………………………………………
Na tomto místě bych chtěla poděkovat
Mgr. et Mgr. Vlastimilu Váňovi
za veškerou pomoc, věnovaný čas a podnětné rady.
ÍNDICE

1. INTRODUÇÃO.............................................................................................. 6
2. BIOGRAFIA DE CAETANO VELOSO.................................................... 8
2.1 Gilberto Gil – o principal companheiro de Caetano Veloso na época ...... 9
3. A CARACTERÍSTICA DO MOVIMENTO TROPICALISTA ............. 10
3.1. A situação política durante o tropicalismo ............................................... 11
3.2 O surgimento do nome do movimento, a época inicial ............................ 12
4. CAETANO VELOSO E A SUA ACTUAÇÃO
ARTÍSTICA DURANTE O TEMPO DO TROPICALISMO ................ 15
4.1 Os Festivais de Música Popular Brasileira ............................................... 15
4.2 O show na boate Sucata ............................................................................ 19
4.3 O programa Divino, Maravilhoso ............................................................. 21
4.3.1 A sua passagem pelas drogas .................................................. 23
5. O NOVO ACTO E AS SUAS CONSEQUÊNCIAS ................................ 25
5.1 A prisão ...................................................................................................... 25
5.1.1 O interrogatório principal ......................................................... 27
5.2 A prisão «domiciliar» ................................................................................ 28
5.2.1 A sua actividade artística em Salvador ..................................... 29
5.2.2 O show da despedida ................................................................ 30
6. NO EXÍLIO ................................................................................................. 32
7. DE VOLTA NO BRASIL ........................................................................... 34
8. CONCLUSÃO ............................................................................................. 35
9. BIBLIOGRAFIA ........................................................................................ 36
APÊNDICE ................................................................................................... 38
Caetano é uma luz, um dos artistas mais importantes da minha geração e do Brasil
de sempre. Essa luz não iluminou apenas a música brasileira, mas também os
nossos cinema, teatro, poesia e até a vida quotidiana dos brasileiros.

Cacá Diegues, cineasta


1. INTRODUÇÃO

A cultura brasileira, com a sua variedade e originalidade, certamente pertence


entre as culturas mais ricas do mundo. A parte mais importante da cultura deste país
exótico, ou digamos, a que é mais característica do povo brasileiro, é a música.
A música brasileira tem passado por grande desenvolvimento e não há
dúvidas que no futuro ainda poderá oferecer muito da sua riqueza para todos os
gostos.
Eu pessoalmente tenho interesse em cultura e música brasileira já há muito
tempo, mas o meu primeiro contacto com cantor Caetano Veloso foi só dois anos
atrás, quando ouvi por acaso uma sua canção. Comecei a interessar-me tanto pela sua
obra como pela sua vida.
O tempo do tropicalismo1 era a época marcante na sua vida. No passado, o
movimento, apesar de não ser muito conhecido fora do Brasil, foi uma das coisas
mais relevantes para a evolução da música. Naquela época Caetano estava ainda no
princípio da carreira, mas conseguiu com sucesso dirigir o movimento tropicalista e
instaurar assim uma nova atitude na música popular brasileira, que até hoje inspirou
muitos artistas.2

Este trabalho dedica-se propriamente ao decurso do movimento tropicalista,


enfocando-se à vida e à obra de Caetano Veloso como líder principal do movimento.
Nos primeiros capítulos vamos explicar as características do tropicalismo e o
contexto político que levou com a parte considerável ao seu surgimento.
Logo vamos prosseguir ao próprio cantor, descrevendo a sua actuação artística
durante os anos principais, os de 1967 e 1968.
O capítulo seguinte dedicamos à sua estadia na prisão e no exílio, que chegou
como o resultado lógico depois das suas provocações e comportamento contra o
régime político daquela época.
1
Algumas fontes usam a palavra tropicalismo com a letra maiúscula - «Tropicalismo», mas o termo já
passou a ser muito comum, por isso as duas formas são admissíveis.
2
David Byrne, Beck (inspirando gravou uma canção chamada «Tropicalia»), Kurt Cobain etc. –
Fonte: FARIA, Daniel: O Tropicalismo 'é lindo!' [online].[citado 2009-05-05]
Disponível em WWW:
http://www.revistaparadoxo.com/materia.php?ido=4770

-6-
Finalmente, o último capítulo vamos dedicar à sua volta ao Brasil depois de
algum tempo vivido em Londres.
No espaço de todo o trabalho, ocupamo-nos não só com os factos, mas
também os tentamos de enriquecer dos próprios sentimentos e das opiniões de
Caetano Veloso para podermos perceber de forma ainda mais larga a sua
personalidade e o seu modo do comportamento.

-7-
2. BIOGRAFIA DE CAETANO VELOSO

Caetano Emanuel Viana Teles Veloso – cantor, compositor, escritor – nasceu


a 7 de Agosto de 1942 em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, como o filho de
José Teles Veloso, que trabalhava como Funcionário público do Departamento de
Correios e Telégrafos, e de Claudionor Vianna Teles Veloso, que ficou mais
conhecida como dona Canô. Tem sete irmãos – Nicinha, Clara, Mabel, Irene,
Rodrigo, Roberto e a mais conhecida Maria Bethânia (cujo nome foi escolhido por ele
por causa de uma valsa do compositor pernambucano Capiba).
Desde a sua infância demonstrou interesse pela música, pintura, e depois
também pelo cinema. Em 1952 gravou «Feitiço da Vila» e «Mãezinha Querida»
acompanhado ao piano por sua irmã mais velha, Nicinha. Esta gravação ainda não
teve intenção profissional. Em 1956 morou durante curto período em Guadalupe, no
Rio de Janeiro. Aqui frequentou o auditório da Radio Nacional – era palco de
apresentações dos maiores ídolos musicais brasileiros da época. Em 1959 conheceu o
trabalho do músico João Gilberto através do LP «Chega de Saudade». Este músico
mais influenciou sua trajetória artística:

«No João, parece que é tudo mais justo, necessário: melodia, as vogais, as
consoantes, os sentimentos, o respeito por aquela forma, que ele reconheceu ali,
o jeito daquelas coisas se expressarem esteticamente. João traduz a canção.» 3
(Songbook Caetano Veloso vol.1)

Em 1960, depois de ter concluido o curso ginasial, mudou-se com a família


para Salvador, onde concluiu o ensino médio. Entre 1960 e 1962 escreveu críticas de
cinema para o Diário de notícias. Nesta época também aprendeu a tocar violão e
começou a cantar com a irmã Maria Bethânia em bares de Salvador. Em 1963
ingressou na Faculdade de Filosofia da Universidade de Bahia. Neste ano conheceu o
seu ídolo que já conhecia pela TV, Gilberto Gil, e tornou-se o amigo dele. Também
conheceu Gal Costa (chamada ainda da Maria da Graça) e Tom Zé. Casou-se com a
baiana Dedé Gadelha em 21 de Novembro de 1967. No dia 22 de Novembro de 1972

3
Caetano Veloso, Biografia [online].[citado 2009-03-15]
Disponível em WWW:
http://www.dicionariompb.com.br/detalhe.asp?nome=Caetano+Veloso&tabela=T_FORM_A&qdetalhe=b
io

-8-
nasceu o primeiro filho deles, Moreno Veloso. No dia 7 de Janeiro de 1979 Júlia, que
morreu dias depois. Em 1986, já separado de Dedé Veloso, começou a viver com a
carioca Paula Lavigne. Com ela teve mais dois filhos – Zeca Lavigne Veloso, nascido
no dia 7 de Março de 1992, e Tom Lavigne Veloso, nascido em 25 de Janeiro de 1997
em Salvador.

2.1 Gilberto Gil – o principal companheiro de Caetano Veloso na época

«Caetano! Venha ver aquele preto que você gosta!» Assim a mãe de Caetano
chamava-lhe, quando o Gilberto Gil, em 1962 surgia na televisão. Caetano estava
com 20 anos, e ficava impressionado ao ver Gil dedilhar o violão. Ouvir o mestre da
Bossa Nova pela primeira vez tivera o efeito duma revelação grande na vida do
Caetano. Conheceram-se pessoalmente em 1963. Principalmente a admiração por
João Gilberto surgiu como um definitivo ponto da identidade entre os dois.
Gilberto Gil, sem dúvidas, não é menos importante do que o próprio criador
do Tropicalismo Caetano Veloso. Quase toda a época passaram os dois cantores
juntos, propagando o movimento. Por isso vamos dedicar um pouco de espaço
também a vida dele.
Gilberto Passos Gil Moreira nasceu em 26 de Junho de 1942 em Salvador.
Três semanas depois, segiu junto com o seu pai, o doutor José Gil Moreira e a sua
mãe, a professora primária Claudina para Ituaço, no interior da Bahía. Formou-se em
Administração, mas desde cedo já demonstrava interesse pela música. Quando
resolveu seguir o caminho da música popular, escolheu o violão. Um compacto duplo
gravado em 1963 foi o início da sua trajetória de sucesso na música popular
brasileira.
Junto com o Caetano foi preso e acabou exilado em Londres. No início de
1972 retornou ao Brasil. No final dos anos 80, teve sua primeira experiência como
político, tornando-se vereador em Salvador.
O definitivo reconhecimento internacional foi em 1998, quando Gil obteve o
Prêmio Grammy de melhor disco de World Music por «Quanta Gente Veio Ver».
Em 2002 tornou-se Ministro da Cultura de governo de Luís Início Lula da
Silva. Hoje em dia segue compondo e fazendo shows.

-9-
3. A CARACTERÍSTICA DO MOVIMENTO TROPICALISTA

Tropicalismo foi um movimento musical que teve lugar entre 1967 e 1968
pautado pela intervenção crítico-musical no cenário cultural brasileiro liderado pelo
Caetano Veloso. Os outros participantes foram Gilberto Gil e Tom Zé, os poetas
Torquato Neto e Capinam, os maestros de formação erudita Rogério Duprat,
Damiano Cozzella e Júlio Medaglia, o grupo Os Mutantes, a cantora Gal Costa e o
artista plástico Rogério Duarte, entre outros artistas.
A música brasileira pós-Bossa Nova e a definição da qualidade musical no
país estavam cada vez mais dominadas pelas posições tradicionais ou nacionalistas de
movimentos cujas ideas foram orientadas à esquerda. Contra essas tendências, os
tropicalistas procuraram universalizar a linguagem da música popular brasileira
incluindo elementos da cultura jovem mundial, como o rock, a psicodelia, a guitarra
eléctrica. As idéias tropicalistas acabaram impulsionando a modernização não só da
música, mas também da própria cultura nacional.
O fundamento é estético. O movimento foi uma estética de vanguarda, queria
que a arte evoluísse. O tropicalismo renovou também a letra da música, seguindo das
tradições dos grandes compositores da Bossa Nova e incluindo novas referências e
informações do seu tempo. Misturou rock mais bossa nova, mais samba, mais bolero,
mais rumba. Sua atuação quebrou as barreiras que permaneciam no país – pop x
folclore, alta cultura x cultura de massas, tradição x vanguarda.
Além dos discos antológicos, que foram produzidos, também a televisão foi
outro remédio fundamental de atuação de grupo – principalmente os Festivais de
Música Popular da época.
Na visão tropicalista, não há uma verdade que o compositor tem de anunciar.
Caso haver, ela não é conhecida. A realidade está fragmentada, há múltiplos
estímulos, factores novos, e o compositor encontra-se perplexo.4
A tropicália transformou os critérios de gosto não só quanto à música e à
política, mas também ao comportamento, ao sexo, ao corpo e ao vestuário. A
contracultura hippie foi assimilada, com a moda dos cabelos longos e das roupas
coloridas e berrantes.

4
Tropicalismo na ditadura [online].[citado 2009-03-15]
Disponível em WWW:
http://www.scribd.com/doc/3965513/PORTUGUES-Tropicalismo-na-Ditadura

- 10 -
O movimento durou pouco mais de um ano e acabou reprimido pelo governo
militar. Porém, a cultura do país já estava marcada para sempre pela descoberta dos
trópicos.

3.1 A situação política durante a época do tropicalismo

Para entendermos melhor o surgimento do movimento tropicalista,


explicamos agora aqui em poucas palavras a situação política do país daquela época.
Em 1964 o Brasil foi influenciado pela Guerra Fria – disputa entre as
superpotências dos Estados Unidos e da União Soviética, que alimentava conflitos na
América Latina e no país.
Em 1959 a Revolução Cubana transformou Fidel Castro e Che Guevara em
heróis internacionais e atiçou a pressão do bloco capitalista sobre os países do terceiro
mundo. Segundo a opinião de Luiz Carlos Maciel, esta revolução foi o que mais
marcou a geração – «Foi uma revolução audaciosa, justa, juvenil, romântica – enfim,
tudo o que sonhávamos.»5
O presidente João Goulart propôs uma série de reformas para atenuar o grave
problema da desigualdade social e as pressões políticas que vinha sofrendo dos
movimentos de esquerda. Contra tais propostas, formou-se um movimento da direita
e da parte da sociedade que preconizavam uma modernização conservadora. Elites
dominantes perceberam os sintomas que podiam resultar em uma possível ruptura
com a política de manipulação de massas – dia 31 de Março de 1964 concretizaram o
Golpe de Estado. O presidente foi depusido e os militares ganharam o poder. O Golpe
apoiado pelos americanos rompeu o frágil jogo democrático brasileiro. Castelo
Branco tornou-se o primeiro general-presidente ditatorial. Ele queria limpar o Brasil
do esquerdismo e da corrupção para poder entregá-lo às modernidades do livre
mercado. Num ambiente estudantil, que foi altamente politizado, a música popular
funcionava como arena de decisões importantes para a cultura brasileira tão como
para a própria soberania nacional. Costa e Silva, seu substituto, governou o país de
1967 a 1969.

5
MACIEL, Luiz Carlos: Geração em transe: memórias do tempo do tropicalismo – Nova Fronteira: Rio
de Janeiro, 1996, op.cit., p.31

- 11 -
Até 1968, movimentos e intelectuais de esquerda podiam agir livremente, só
com pequenos problemas com a censura. A política fazia-se presente em todas as
áreas – teatro, cinema, artes plásticas.
A partir de 1967, no campo da música, houve confrontos entre os artistas
nacionalistas de esquerda e os vanguardistas do tropicalismo, que se manifestaram
contra o autoritarismo e a desigualdade social. Para os tropicalistas, entender a cultura
de massas tinha tanta importância quanto entender as massas revolucionárias.
As tensões no país chegaram ao máximo em 1968. Intesificaram-se as greves
operárias e manifestações estudantis. Com o crescimento da oposição, Costa e Silva,
na época pressionado pela extrema direita, respondeu com o endurecimento político.
Em 13 de Dezembro, o Ato Institucional N° 5 decretou o fim das liberdades civis e de
expressão – até ano 1984, quando o general João Figueiredo deixa a presidência do
país.

3.2 O surgimento do nome do movimento, a época inicial

O tropicalismo foi influenciado pela exposição do artista Hélio Oiticica


Tropicália do Abril de ano 1967, exposta no Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro, da qual tirou o nome e a fundamentação teórica.
Era um ambiente formado por dois penetráveis, cercados por areia, brita e
plantas tropicais, labirinto cheio dos vegetais e pássaros.
Hélio radicalizava na teoria o projecto de miscigenação cultural e valorização
do genuinamente brasileiro. Criticou o consumo imediato e impensado do
tropicalismo.6
Caetano viu esta exposição e resolveu colocar o nome «Tropicália» em uma
das suas composições. Depois, o nome tropicalismo foi derivado. Citamos agora as
palavras de Caetano sobre o nome do movimento:

6
MACIEL, Luiz Carlos: Geração em transe: memórias do tempo do tropicalismo – Nova Fronteira: Rio
de Janeiro, 1996, p.196

- 12 -
«[...]me soa não apenas mais bonito: ele me é preferível por não se confundir
com o "luso-tropicalismo" de Gilberto Freyre (algo muito mais respeitável) ou
com o mero estudo das doenças tropicais, além de estar livre desse sufixo ismo,
o qual, justamente por ser redutor, facilita a divulgação com status de
movimento do ideário e do repertório criados.» 7

O segundo disco de Caetano apresenta as canções «Tropicália» e «Alegria,


alegria», e na capa traz a figura de Caetano rodeada por cores e flores. As canções
compostas há mais tempo, mas ajustavam-se perfeitamente ao espírito tropicalista.
O texto de «Tropicália» mistura o automatismo surrealista e a prosa
jornalística. Caetano usa tal linguagem para construir uma alegoria musical que
comenta a conjuntura cultural em geral e o estado da música popular em particular8:

sobre a cabeça os aviões


sob os meus pés os caminhões
aponta contra os chapadões meu nariz
eu organizo o movimento
eu organizo o carnaval
eu inauguro o monumento
no planalto central do país
viva a bossa sa sa
viva a palhoça ça ça ça ça ...

Em 20 de Agosto de 1967, Caetano deixava evidente sua ansiedade por


novidades no cenário da música popular brasileira em uma entrevista:

7
Caetano Veloso em: Tropicália – um projecto de Ana de Oliveira [online].[citado 2009-03-26]
Disponível em WWW:
http://tropicalia.uol.com.br/site/internas/verd_onome.html
8
PERRONE, Charles A.: Letras e letras da MPB – Elo Editora e Distribuidora Ltda.: Rio de Janeiro,
1988, p.68

- 13 -
«Acho que a música brasileira , depois da bossa nova, ficou discutindo tudo que
a bossa nova propôs, mas não saiu dessa esfera, não aconteceu nada maior. Eu,
pessoalmente, sinto necessidade de violência. Acho que não pé pra gente ficar se
acariciando. Me sinto mal já de estar ouvindo a gente sempre dizer que o samba
é bonito e sempre refaz o nosso espírito. Me sinto meio triste com essas coisas e
tenho vontade de violentar isso de alguma maneira. É a única que me permite
suportar e aceitar a idéia de manter uma carreira musical, porque uma coisa é
inegável: a música é a arte mais viva em todo o mundo. O que acho é que a
música tem sido utilizada muito pra gente se manter enganado e eu não quero
mais. Quero que a gente saiba mesmo, que a gente engula e veja que a gente está
num país que não pode nem falar de si mesmo. A gente tem que passar a
vergonha toda pra poder arrebentar as coisas.» 9

Numa outra entrevista Caetano declara, que a gente falava sobre a necessidade
de um movimento de renovação da música popular brasileira já no ano 1966. Gil
tinha feito umas reuniões no Rio com os outros compositores e músicos para tentar
trasmitir o novo modo de ver. Mas o pessoal não entendeu. Caetano também
conversava com os outros músicos sobre a falta de capacidade de aventura do criador
de música popular no Brasil, sobre os resguardos dentro do mundo de bom gosto e do
politicamente correcto na época, também sobre o preconceito contra o rock. Os outros
embora não se interessassem tanto em princípio, tinham uma vitalidade para descobrir
as coisas novas.10

9
Caetano Veloso em: CALADO, Carlos: Tropicália: a história de uma revolução musical – Editora 34
Ltda.: São Paulo, 1997, op.cit., p.117
10
Tropicália – um projecto de Ana de Oliveira [online].[citado 2009-03-26]
Disponível em WWW:
http://tropicalia.uol.com.br/site/internas/entr_caetano.php

- 14 -
4. CAETANO VELOSO E A SUA ACTUAÇÃO ARTÍSTICA DURANTE
O TEMPO DO TROPICALISMO

4.1 Os Festivais de Música Popular Brasileira

Na década dos anos 60, o Brasil vivia uma grande efervescência cultural. Uma
ponta-de-lança mais importante era a música. Os primeiros ídolos da televisão foram
por isso músicos e cantores. Nesse período foram também criados, pela TV Record,
os Festivais de Música Popular Brasileira. Marcaram a história da música brasileira –
pela comoção que instauraram, pelas discussões que detonaram, pelo espaço que
ocuparam em meio à ditadura e principalmente através desses espaços o movimento
tropicalista pôde eclodir com todo o seu arrojo.
Alguns festivais foram especialmente marcantes, como o de ano de 1967.
Caetano queria compor algo especial, uma canção que pretendia ser uma espécie de
manifesto, uma síntese pessoal das conversas e discussões sobre os novos rumos
estéticos da música popular brasileira.
Decidiu que no festival de 1967 deflagraria, junto com o Gil, a revolução.
Queria compor uma canção que fosse fácil de aprender por parte dos espectadores do
festival, mas ao mesmo tempo caracterizasse a nova atitude que queriam inaugurar.11
O resultado foi a canção «Alegria, alegria» apresentada no terceiro Festival de
MPB12 de TV Record de São Paulo. Classificou-se, para desgosto de muitos, em
quarto lugar.
Toda apresentação da canção nova foi muito rápida. Os Beat Boys, o grupo
argentino de rock, acompanhando o Caetano, surgiram no palco do Teatro Paramount,
com guitarras e cabelões. Iniciou-se uma vaia que o Caetano interrompi entrando em
cena, com uma expressão muito irada, antes que o seu nome fosse anunciado. Isso
assustou locutores, directores, produtores e público. A entrada de Caetano foi ainda
mais chocante, porque o seu vestido era diferente de todos os cantores, músicos e
apresentadores – tinha um terno xadrez e uma camisa laranja. O público aplaudiu
euforicamente, e o próprio Caetano ficou surpreendido com a rápida mudança de

11
VELOSO, Caetano: Verdade tropical – Companhia das Letras: São Paulo, 1997, p.166
12
«Música popular brasileira» em forma abreviada.

- 15 -
atitude do público, que primeiro ficou, por causa do susto, quieto. Neste momento
inaugurou-se o tropicalismo. Cresceram os desafetos, a violência da platéia.
Imediatamente após do festival, «Alegria alegria» era tocada nas rádios de
todo o país. Transformou-se em hit, ultrapassou a marca de 100 mil cópias vendidas.
A base rítmica da canção foi a tradicional marcha, mas o acompanhamento
musical, como já mencionámos, foi feito por um grupo pop. Nos festivais existia o
preconceito contra os instrumentos eléctricos, pela maioria eram vistos como uma
manifestação de alienação ou de sentimento antinacionalista. A instrumentação dada
por Caetano foi uma declaração, relacionada ao refrão, que podia soar como um
desafio: «eu vou, por que não?».13
A letra da canção era completamente inovadora para a MPB. Na letra
podemos destacar dois aspectos fundamentais para a compreensão das tendências do
tropicalismo – a crítica aos intelectuais de esquerda14:

por entre fotos e nomes


sem livros e sem fuzil
sem fome, sem telefone
no coração do Brasil

que pode ser vista como a crítica às «grandes palavras» dos intelectuais, que não se
tornaram reais.
O outro aspecto é a presença dos meios de comunicação de massa15:

ela nem sabe, até pensei


em cantar na televisão

Caetano começou a ser tratado como um popstar. O novo ídolo era recontado
em superlativos na grande parte da imprensa: «Caetano Veloso, o homem de maior
prestígio no mundo de arte no momento» (O Sol); «o maior ídolo da platéia paulista»
(Última Hora); «a personalidade mais discutida da música popular» (Manchete); «o

13
PERRONE, Charles A.: Letras e letras da MPB – Elo Editora e Distribuidora Ltda.: Rio de Janeiro,
1988, p.63
14
Ibid
15
Ibid

- 16 -
letrista de maior imaginação criadora» (Tribuna da Imprensa); «o líder de uma
juventude que procura novos caminhos» (Fatos & Fotos); «verdadeiro revolucionário
de nossa música» (Notícias Populares).16

Dia 9 de Abril de 1968 Caetano era o astro principal da Discoteca do


Chacrinha, o anárquico programa de auditório de Abelardo «Chacrinha» Barbosa da
TV Globo no Rio de Janeiro. Por causa daquela noite, que foi anunciada como Noite
da Banana, estava a vestir um camisolão estampado com bananas estilizadas. Além
de cantar sua «Tropicália», escolheu também algo perfeito para a ocasião – a
marchinha «Yes, nós temos bananas» (de Braguinha e Alberto Ribeiro). O sucesso
desta primeira show provocou mais uma noite dedicada aos tropicalistas. Caetano, Gil
e os Mutantes passaram a ser atrações frequentes nos programas de Chacrinha.
Os tropicalistas procuravam também alguma coisa que não fosse séria, alguma
coisa que sacudisse a estrutura mental européia que os dominava. Chacrinha era
«isso», era uma personagem que apresentava uma característica da cultura brasileira,
que é a habilidade de transformar situações sérias em situações risíveis.17

O outro festival importante foi a 15 de Setembro de 1968 em São Paulo –


Festival Internacional da Canção. Aqui Caetano apresentou sua canção «É proibido
proibir», e sofreu uma vaia inimaginável. No ano anterior, apresentando «Alegria,
alegria», já havia utilizado o acompanhamento de guitarras eléctricas – naquele tempo
representou um passo adiante no processo evolutivo da música dos tropicalistas – mas
o impacto do totalmente novo não permitiu uma reacção adversa do público, que
também se calhar neste tempo não considerou a sua música tão direccionada contra o
regime.
Ao contrário, com «É proibido proibir» a plateia já esperava «o estilo»
politicamente incorrecto, acompanhando por guitarras eléctricas de novo, e o recebeu
agressivamente mal. A apresentação desta canção transformou-se num happening.
Quando os Mutantes começaram a tocar a introdução da música, a plateia já atirava
ovos, tomates e pedaços da madeira contra o palco. Desta reacção do público

16
CALADO, Carlos: Tropicália: a história de uma revolução musical – Editora 34 Ltda.: São Paulo,
1997, p.150
17
CYNTRÃO, Sylvia Helena: A forma da festa – tropicalismo: a explosão e os seus estilhaços – Editora
Universidade de Brasília: São Paulo, 2000, p.78

- 17 -
podemos observar que a plateia já sabia muito bem quem ia vaiar, no show não era
provocada pelo momento.
O Caetano apareceu vestido com roupas de plástico, colares exóticos e bolas
do papel. Entrou em cena rebolando, fazendo uma dança erótica, que lembrava uma
relação sexual. A plateia ficou escandalizada e deu as costas para o palco. Os
Mutantes reagiram imediatamente – sem parar de tocar, viraram as costas para o
público.
Caetano fez um longo discurso, que quase não se podia ouvir pelo barulho
dentro do teatro. Citamos agora alguns fragmentos importantes do seu discurso:

«Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm
coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que vocês não
teriam coragem de aplaudir no ano passado! São a mesma juventude que vão
sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não
estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada [...] Gilberto Gil está
comigo, para nós acabarmos com o festival e com toda a imbecilidade que reina
no Brasil. Acabar com tudo isso de uma vez. Nós só entramos no festival pra
isso. Não é Gil? Não fingimos. Não fingimos aqui que desconhecemos o que
seja festival, não. Ninguém nunca me ouviu falar assim. Entendeu? Eu só queria
dizer isso, baby. Sabe como é? Nós, eu e ele, tivemos coragem de entrar em
todas as estruturas e sair de todas. E vocês? Se vocês forem... se vocês, em
política, forem como são em estética, estamos feitos! ...»18

O Caetano próprio manifestou-se que este show era possivelmente a mais


bem-sucedida peça do tropicalismo. A que melhor expunha os interesses estéticos e a
capacidade de realização dos tropicalistas.19

«É proibido proibir» é uma das composições mais interessantes de Caetano


Veloso. Foi feita por sugestão de Guilherme Araújo, que foi o empresário dele, sob
inspiração dos acontecimentos em Paris de Maio de 1968, onde os estudantes

18
Caetano Veloso em: Tropicália – um projecto de Ana de Oliveira [online].[citado 2009-04-02]
Disponível em WWW:
http://tropicalia.uol.com.br/site/internas/proibido.php, op.cit.
19
VELOSO, Caetano: Verdade tropical – Companhia das Letras: São Paulo, 1997, p.304

- 18 -
escreviam palavras de ordem nas paredes dos muros. Uma destas foi: «É proibido
proibir».
Nesta canção Caetano verifica a afirmação repressiva dos valores
estabelecidos pela estrutura social vigente – restrições sexuais familiares («A mãe da
virgem diz que não»), à manipulação das consciências da economia capitalista de
consumo («E o anúncio da televisão»), à codificação da ideologia dominante numa
superestrutura jurídica e formal («Estava escrito no portão»), ao cerceamento da
liberdade artística através da estética tradicional («E o maestro ergueu o dedo»), ao
policiamento organizado dos interesses de classe dominante («E além da porta há o
porteiro»). Tal tese do estabelecimento é sintetizada numa nota musical a que
corresponde a palavra «sim» («E eu digo sim») A estrofe acaba com o refrão negador:
«E eu digo não» / E eu digo não ao não / E eu digo é proibido proibir». 20
Caetano também recusa as restrições sexuais («Me dê um beijo meu amor») e
convoca ao protesto geral, com uma evocação às manifestações estudantis em Paris
(«Eles estão nos esperando» / «Os automóveis ardem em chamas»), ele edifica às
palavras de ordem do espírito anárquico dessas manifestações que propõem uma
reformulação radical de todos os valores estabelecidos («Derrubar as prateleiras / as
estantes / as estátuas / as vidraças / louças / livros»).21
A canção tem sua força. Sua importância liga-se muito ao contexto em que
vivia a geração, ao questionamento de valores e crenças que propunhavam na época.22

4.2 O show na boate Sucata

Caetano ganhou o sucesso popular graças aos Festivais da Canção de São


Paulo. Também a primeira explosão dos baianos foi nesta cidade. Mas o primeiro
grande show dos tropicalistas aconteceu no Rio, na boate Sucata.
O show foi anunciado assim – «Um espectáculo violento, diferente de tudo
que já foi feito».23 Neste show, Caetano, Gilberto Gil e os Mutantes mostraram a
resposta aos festivais, que tinham favorecido a redundância tradicional, em

20
MACIEL, Luiz Carlos: Geração em transe: memórias do tempo do tropicalismo – Nova Fronteira: Rio
de Janeiro, 1996, p.201-202
21
Ibid
22
Ibid
23
CALADO, Carlos: Tropicália: a história de uma revolução musical – Editora 34 Ltda.: São Paulo,
1997, op.cit., p.229

- 19 -
detrimento de vanguarda tropicalista. O show mostrou com clareza que eles estavam
a fim de levar às últimas consequências a sua actual posição de vanguarda.
O espectáculo era construído com inteligência destinado a envolver
progressivamente o espectador. No palco pequeno foram instaladas duas bandeiras,
com as inscrições «Yes, nós temos bananas» e «Seja marginal, seja héroi» (seguindo
uma outra obra de Hélio Oiticica, criada em homenagem ao bandido Cara de Cavalo,
já exposta em outras ocasiões).24
Primeiro, entravam os Mutantes, com sua alegre ironia. Depois, o Gilberto Gil
subiu ao palco. Com ele iniciavam-se os primeiros choques, a entrada de Caetano
ficava então preparada. Começava a cantar quietamente sua canção «Saudosismo»,
composta havia poucos dias, acompanhando-se de um violão. No fim, cantava alguns
versos da canção de João Gilberto «Chega de Saudade». Cantava cada vez mais alto,
até ficar berrando no palco. Logo a seguir explodiam as guitarras eléctricas dos
Mutantes.
O surpreendente foi, que a plateia participava de alguma forma também. Além
de aplaudir, alguns iam até o palco para dançar ou cantar. Mas havia também
espectadores mais agressivos que na impossibilidade de entrarem na boate carregando
tomates e ovos, jogavam cubos de gélo e água sobre o palco.
O Caetano foi depois acusado de ter cantado o Hino Nacional durante um dos
shows, enxertando versos ofensivos às Forças Armadas.25 O cantor manifestou-se na
forma que se segue:26

«Os militares devem lembrar-se de que o Hino Nacional não é um hino de


guerra, nem uma canção militar, mas uma civil, feita para os civis, e que pode
ser cantado em qualquer lugar. Nós estamos fazendo um show na Sucata e nesse
show acontecem muitas coisas, mas uma coisa que não aconteceu foi o Hino
Nacional. Não cantei o Hino Nacional durante a Passeata dos Cem Mil. Prefiro
músicas líricas a hinos patrióticos.» 27

24
CALADO, Carlos: Tropicália: a história de uma revolução musical – Editora 34 Ltda.: São Paulo,
1997, p.229
25
Idem, p.232
26
Ibid
27
Caetano Veloso em: Ibid, op.cit.

- 20 -
4.3 O programa Divino, Maravilhoso

Durante a epóca da Sucata, os tropicalistas conseguiram obter um espaço


próprio na TV Tupi, o programa Divino, Maravilhoso. A concepção geral e o roteiro
estavam por conta de Caetano, com a colaboração de Gil. Cada programa era
idealizado como um happening.
Quase tudo era definido no próprio dia da gravação, poucas horas antes de ser
transmitido ao vivo. O primeiro programa foi ao ar em 28 de Outubro de 1968, às 21
horas.
«Este é um som livre! É mutante, não pode parar!»28 festejou Caetano logo
depois de cantar «Saudosismo». Para os padrões da televisão brasileira o roupa de
Caetano já era bastante para chocar a maioria dos espectadores – um casaco militar
desabotoado, que deixava à mostra o peito nu, colar de dentes, jeans e sandálias de
franciscano. Cantando logo a seguir uma outra canção, «Baby», junto com os
Mutantes, Caetano repetiu os gritos que incomodavam a platéia já durante os shows
de Sucata. Na penúltima canção de show a anarquia já estava absoluta. A última
canção cantada era «É proibido proibir», Caetano cantou-a a deitado no chão.
Este foi sem dúvidas o programa mais anárquico que a TV brasileira já exibira
até aquele dia. Até alguns técnicos de emissora não entendiam como a censora do
Departamento de Polícia Federal não cortara nada daquelas loucuras depois de ter
assistido ao ensaio.
Os cenários do programa eram modificados a cada semana, e os happenings
continuavam. Num deles, Caetano criou uma grande jaula, que ocupou quase toda a
cena. Dentro das grades, que foi construídas com madeira, o elenco do programa
representou uma espécie de hippies. O finale da noite ficou por conta de Caetano. Ele
próprio quebrou as grades da jaula, cantando «Um Leão Está Solto nas Ruas» (a canção
bem sucedida de Roberto Carlos).

Exactamente um ano após as vaias provocadas por «Alegria Alegria» e


«Domingo no Parque», o tradicional Festival de Música Popular Brasileira da TV
Record mudou – em 13 de Novembro de 1968 parecia que os tropicalistas tinham
tomado o poder no país da MPB. Das 18 canções tocadas naquela noite, pelo menos 10

28
Caetano Veloso em: CALADO, Carlos: Tropicália: a história de uma revolução musical – Editora 34
Ltda.: São Paulo, 1997, op.cit., p.235

- 21 -
estavam acompanhadas com guitarras eléctricas. Os intérpretes vestiam roupas
extravagantes e pareciam ter saído de uma festa tropicalista. Até uma antiga adversária
de Caetano, Gil e Mutantes, a chefe de torcida Telé Cardim, disse: «Foi uma fabricação
em massa de tropicalismo. Ninguém quis reconhecer as inovações do baianos, e agora
todos procuram imitá-los: nas roupas, nos sons, nas palavras. Mas imitam mal». 29

Numa outra parte do programa regular Divino, Maravilhoso, na noite de 23 de


Dezembro de 1968, Caetano escolheu para cantar uma das músicas do baiano Assis
Valente «Boas Festas». Cantando-a, apontava um revólver para a própria cabeça:

Anoiteceu
O sino gemeu
Agente ficou
Feliz a rezar
(...)
Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem

Gabus Mendes, responsável pela edição de imagens do programa, usou todos os


recursos disponíveis para evitar que o revólver aparecesse no vídeo em primeiro plano.
Sabia bem, que uma cena tão forte poderia provocar algum problema maior do que as
cartas indignadas de espectadores e autoridades, que já continuavam a chegar à
emissora.
Mas Caetano tinha para esta cena uma explicação bem consistente. A imagem
dramática, cantando uma canção que ironizava o espírito natálico, revelava também a
essência da poesia de Assis Valente – o compositor baiano, negro e bissexual,
realmente se suicidou, aos 47 anos de idade, em 1958, tomando goles de formicida
numa garrafa de guaraná.30

29
Telé Cardim em: CALADO, Carlos: Tropicália: a história de uma revolução musical – Editora 34
Ltda.: São Paulo, 1997, op.cit., p.242
30
Idem, p.251

- 22 -
Por causa de provocações desse tipo no programa não era surpresa que logo nas
primeiras semanas já se comentava que o Divino, Maravilhoso tinha seus dias contados.
O auditório da TV Tupi era frequentado por policias à paisana, o que ainda mais
contribuia para mal-estar dos tropicalistas. Todos tinham consciência de que a qualquer
momento poderiam ter problemas com a polícia.
«O importante é que se discutiu o que nós fizemos. O fundamental é que fizemos
o que nos deu na cabeça»31 revelou Caetano numa entrevista do Jornal da Tarde. O
réporter também se interessava por os novos projectos do compositor para o ano
seguinte. Caetano, apesar de ter mostrado a incerteza, entre os seus planos mencionou
trocar São Paulo pelo Rio de Janeiro, talvez morar por um tempo no exterior, e também
realizar o antigo sonho de dirigir seu primeiro filme. A respeito do programa Divino,
Maravilhoso, o programa ainda continuaria por mais cinco semanas, o período que
faltava para terminar o contrato assinado com a TV Tupi. Ninguém sabia ainda, se o
contracto seria renovado. Ironicamente, o único plano do compositor, que se realizou
meses depois, foi o de morar no exterior.32

4.3.1 A sua passagem pelas drogas

Durante a época do sucesso e do próprio programa na TV Caetano também


entrou em contacto com as drogas, mas encarava-as com muita reserva (ao contrário do
Gil, que já fumava maconha com frequência). Sua primeira e única experiência em
Salvador, mais de um ano antes, tinha sido terrível. Uma amiga norte-americana deu-
lhe um cigarro de um fumo muito forte. Sem saber que isso era muito, Caetano fumou o
cigarro inteiro. Não entendia porque não sentia nenhuma reacção diferente. Mas logo a
seguir, já com o corpo amortecido e coração disparado começou a sentir-se muito mal.
O efeito da erva durou quase seis horas. Caetano achava que iria a morrer, e depois
prometeu a si mesmo que nunca mais fumaria aquilo.
Um dia Gil apareceu em seu apartamento com uma garrafa de auasca – uma
bebida alucinógena da Amazônia preparada de ramos e folhas do caapi, usada pelos
índios peruanos há séculos em rituais. Serviu a cada um a quantidade recomendada –

31
Caetano Veloso em: CALADO, Carlos: Tropicália: a história de uma revolução musical – Editora 34
Ltda.: São Paulo, 1997, op.cit., p.253
32
Ibid

- 23 -
pouco mais de meio copo. É claro que Caetano a princípio recusou, porque não queria
passar por aquela experiência assustadora outra vez. Gil, tentando convencê-lo,
argumentou: «Eu entendo porque você sofreu tanto, Caetano. Eu gosto de maconha,
mas ela realmente dá um tapa em você. Com isso aqui, você não vai ficar tonto, nem
distante do mundo. Você ganha a capacidade de alucinar, mas não perde a sua
vigília».33
Como ele estava ali entre os seus amigos, diante do único copo de auasca que
não era desvaziado, tomou a coragem e engoleu todo o conteúdo. Caetano estava à
espera dos efeitos. Realmente nada aconteceu de comparável ao tapa da maconha.
Começou a achar cómica a música do Pink Floyd que estava a tocar no toca-discos.
Também logo a carpete de náilon do quarto do som apresentou o seu modo peculiar,
tanto como o tapete de nylon. Caetano teve sensação de saber de forma exacta como
aqueles cores se manifestavam a partir de cada um dos fios do tapete. Era também
interessante que os efeitos levaram-no a ver os amigos de um modo diferente. Teve a
impressão de poder compreender o ser de cada uma daquelas pessoas, assim que o
sentimento que o ligou a elas. Começou a ver alguns pontos de luz coloridos, e tudo lhe
parecia simétrico, sentiu felicidade.
A volta à consciência foi terrível e demorou algum tempo. Caetano achava que
nunca mais se reencontraria, que teria enloquecido definitivamente. Não podia
reconhecer os seus amigos, até o seu reflexo no espelho. Só no dia seguinte tudo
voltou-se a forma normal. Apesar disso, Caetano ficou com a definitiva sensação de
que nunca mais foi a mesma pessoa. Nas semanas seguintes, comandando as gravações
do programa Divino, Maravilhoso continuou com esta impressão. Mesmo enquanto
trabalhava ao lado dos seus amigos pensava que não fazia mais parte daquele universo
e sentia se vivendo como que um palmo acima de tudo o que existe. Como ele próprio
disse: «Na verdade, algo de essencial mudou em mim a partir daquela noite».34

33
Gilberto Gil em: CALADO, Carlos: Tropicália: a história de uma revolução musical – Editora 34
Ltda.: São Paulo, 1997, op.cit., p.240
34
VELOSO, Caetano: Verdade tropical – Companhia das Letras: São Paulo, 1997, op.cit., p.329

- 24 -
5. O NOVO ACTO E AS SUAS CONSEQUÊNCIAS

Dia 13 de Dezembro de 1968, um golpe interno no governo militar lançou o


Acto Institucional N° 5 – dando poderes à polícia de invadir domocílios e instaurando
um regime policial truculento. Também deflagraram-se as primeiras prisões de
intelectuais e activistas, cassações políticas, actos da censura.
Naquela época Caetano estava em Salvador por uns dias, e viajou para São
Paulo mesmo no dia 13. Logo a seguir chegou sabendo o que tinha ocorrido. O
humorista Jô Soares disse-lhe que tinha ouvido que corria entre os militares uma lista
de nomes de artistas da Record (onde ele trabalhava e Caetano com Gil havia pouco
também) da qual constavam o nome de Gil e de Caetano entre as possíveis pessoas para
interrogatórios.
Dia 27 de Dezembro, Caetano e Gil foram presos. «É claro que nem Gil nem eu
imaginávamos que seriamos presos. Não havia expectativa de que nada de grave
pudesse acontecer connosco»35 confessou Caetano. Não tinham muito por que pensar
que os militares quereriam lhes prender, já estavam habituados a hostilizações por parte
da esquerda. Por isso, quando os policiais chegaram até a casa de Caetano, ele
imaginou que lhe só estavam levando para uma conversa com algum oficial.
Mas na verdade, a possibilidade de ser preso já havia alguns meses, desde que o
grupo tropicalista começasse a radicalizar mais suas provocações. O perigo era mais
evidente no episódio da canção «É proibido proibir», quando todo o grupo foi agredido
pela furiosa plateia com tomates e ovos. Nas últimas semanas daquela época, a situação
tornou-se quase insuportável. Eram criticados diariamente na média ou por colegas do
meio artístico.

5.1 A prisão

Dia 27 de Dezembro de 1968, depois de passarem algumas horas no Ministério


da Guerra, Caetano e Gil foram despachados para o quartel da Polícia do Exército. Aí
ficaram trancafiados em duas solitárias minúsculas. Deprimidos, passaram dessa

35
VELOSO, Caetano: Verdade tropical – Companhia das Letras: São Paulo, 1997, op.cit., p.349

- 25 -
maneira também a noite de ano-novo. Durante aquela primeira semana não comeram
nada, só alguns pedaços de pau.
Caetano podia atenuar a angústia e o medo lendo. Com sorte conseguiu receber
dois romances, que foram introduzidos em sua cela clandestinamente, por um coronel
rebelde.
Depois desta uma semana foram ambos trancados para outro quartel da Polícia
do Exército, em Deodoro, na zona oeste. Ficaram em celas colectivas, conseguiram
então ter até uma conversa, embora muito precária.
Durante a época vivida no prisão, Caetano identificava-se com a afirmação de
um criminoso que tinha lido numa entrevista: «Às vezes eu acho que nasci aqui, que
sempre vivi aqui, que o mundo lá fora, tudo o que eu vivi, só existe na minha
cabeça».36 Ao Caetano, o apartamento de São Paulo, o seu casamento com Dedé, a
Bahia, os estúdis de gravação, os palcos de auditórios, tudo lhe parecia desprovido da
realidade.37
Também começou a sentir-se incapaz de mostrar os sentimentos. Os dias dele
pareciam na forma que se segue – dormia muito cedo a noite, era acordado por
soldados pela manhã, passava a manhã inteira sentado no cobertor, no meio dia, depois
do almoço adormecia outra vez por algum tempo. Ele descreve a situação assim: «O
meu sono de presidiário era um sono triste e infalível do qual eu emergia sem nenhum
resíduo de sonho.» 38
Um dia até pensou que ia a morrer. Segundo o comportamento dos soldados e
da atmosfera no ar pensava que ia a acontecer algo horível, que iam fazer alguma coisa
física com ele. Mas o objectivo verdadeiro foi levar-lhe à barbearia do quartel. Logo a
seguir sentiu a imensa alegria que não ia a morrer, mas foi empanada pela constatação
do ridículo deprimente de tudo aquilo. O corte do cabelo era, para eles, mas não para
Caetano, um assassinato simbólico. «Se eu tivesse pensado em cabelo, teria
imediatamente adivinhado o que ia se passar, e não teria tido medo de que me
matassem» 39, confessou Caetano.

36
VELOSO, Caetano: Verdade tropical – Companhia das Letras: São Paulo, 1997, op.cit., p.349
37
Ibid
38
Idem, op.cit., p.363
39
Idem, op.cit., p.382

- 26 -
5.1.1 O interrogatório principal

Em meados de Janeiro de 1978, os dois cantores foram transferidos, já


definitivamente separados, para diferentes quartéis do Regimento de Pára-quedistas, em
Deodoro. Foram detidos em celas individuais, maiores que as solitárias da Polícia do
Exército.
Aqui foi Caetano interrogado pela primeira vez. O comandante fez o que pôde
para encontrar alguma informação falsa nos seus depoimentos. Primeiro, quis saber
tudo sobre a sua família. Durante os seguintes interrogatórios, o comandante perguntou
detalhes sobre toda a vida de Caetano.
O que é importante, também finalmente entrou no que deveria ser a justificativa
formal para o Caetano estar preso – o episódio na boate Sucata, envolvendo a obra de
Hélio Oiticica, com a bandeira com a inscrição «Seja Marginal, Seja Héroi». O show
foi depois suspendido. A história da interdição da Sucata por causa desta bandeira
correu de boca em boca e é possível que agarrando a essa palavra «bandeira» um
apresentador de rádio e televisão de São Paulo, Randal Juliano, criou uma versão
fantasiosa em que os tropicalistas apareciam enrolados na bandeira nacional e cantavam
o Hino Nacional enxertado de palavrões. Atitudes como essa eram usuais no programa
de Randal Juliano, e como os tropicalistas não tinham assistido a sua fala contra eles,
não a deram muita importância. Agora o comandante informava que esse locutor tinha
se dirigindo aos militares pedindo punição para eles.
Caetano ficou surpreendido com que os oficiais não tivessem tentado verificar a
veracidade dessas acusações, as quais ele mesmo podia provar serem falsas. Deu ao
major as nomes das pessoas que podiam provar a sua versão dos factos (Ricardo
Amaral, o dono da boate e Pelé, o discotecário – ambos eram presentes ao show todas
as noites).40
As versões de ambos confirmavam a de Caetano em todos os detalhes. Isso
mudou totalmente o tratamento que recebia no quartel. Podia ter visitas semanais,
obteve permissão para comer a mesma comida dos oficiais e as vezes também podia
ouvir rádio. Do major obteve a promessa da liberadade dentro de dois ou três dias, mas

40
VELOSO, Caetano: Verdade tropical – Companhia das Letras: São Paulo, 1997, p.397

- 27 -
os superiores do major não pensavam da mesma maneira, ou ainda não tivessem
decidido o que fazer. Caetano ficou ainda mais um mês na prisão.

Nos dias finais na prisão, Caetano compôs uma canção, inspirando-se com o
nome de sua irmã mais nova:

Eu quero ir minha gente


Eu não sou daqui
Eu não tenho nada
Quero ver Irene rir
Quero ver Irene dar sua risada.

Quando chegou o dia da libertação, Caetano e Gil foram levados para Salvador.
Antes de ter saído ficaram sabendo que estavam terminantemente proibidos de deixar a
Cidade de Salvador e que tinham de se apresentar diariamente à Polícia Federal. Caso
contrário voltariam para a cela.
Em total ficaram presos cerca de dois meses. Durante aquela época o
comportamento do Caetano era totalmente diverso do de Gil. Era caladão, deprimido
com a situação, descobria que o sofrimento não serve para absolutamente nada. Gil, ao
contrário, pedia uma violão e cantava e tocava toda a noite, também seu
comportamento e temperamento mudaram para melhor e para sempre.

5.2 A prisão «domiciliar»

Quando permaneceram confinados em Salvador, Caetano e Gil ficaram


proibidos de dar entrevistas, fazer shows, apresentar-se em rádios e TVs.
Depois de passar quatro meses em Salvador, Caetano junto com Gil foram
convidados a deixar o país. Porque não tinham direito a aparições públicas, não
ganhávam dinheiro suficiente para sustentar as famílias. O coronel Luís Artur (a quem
tinham tido de lhes apresentar diariamente durante o período do confiamento)

- 28 -
encontrou como a solução a sua saída do país. O exílio foi a solução que lhe parecia
inteligente.
Como também não tinham dinheiro para comprar as passagens e financiar as
estadias dos primeiros meses, o coronel convenceu as autoridades mais altas de que
precisavam fazer uma apresentação em Salvador para conseguir esse dinheiro
assegurando que não fariam dela uma incitação à subversão.
O público mal notava a sua ausência nos palcos e na TV. A jornalista Marisa
Alvarez Lima veio a Salvador fazer uma reportagem em que Caetano aparecia
fotografado e em cujo texto apenas se dizia misteriosamente que Caetano estava em
Salvador e parecia triste.41

5.2.1 A sua actividade artística em Salvador

Nesse meio tempo Caetano, assim como Gil, fez um disco. Como não podia ir
ao Rio de Janeiro ou ao São Paulo, fez as gravações num estúdio pequeno de Salvador,
apenas com a violão. As fitas foram enviadas para São Paulo ou Rio para que Rogério
Duprat adicionasse baixo, bateria e orquestra. Não havia proibição de radiodifusão das
músicas deles.
O LP de Caetano com o nome «Caetano Veloso» não conseguia esconder a
tristeza e a depressão que o autor tinha vivido durante os seis meses que precederam a
gravação. O disco começa pela versão de «Carolina», a popular canção de Chico
Buarque42, que Caetano decidiu gravar ao ver crianças pobres de Salvador cantarem-na
em um programa de caloiros.43
A atmosfera de melancolia dominava quase todo o álbum (apesar da euforia
carnavalesca da canção «Atrás do Trio Eléctrico») especialmente em faixas como «The
Empty Boat» – uma das primeiras canções em inglês de Caetano, o fado «Os
Argonautas», a versão de «Chuvas de Verão» de Fernando Lobo.

41
VELOSO, Caetano: Verdade tropical – Companhia das Letras: São Paulo, 1997, p.416-417
42
Compositor, cantor, escritor brasileiro. Na época da ditadura militar no Brasil exilou-se na Itália. Um
dos artistas mais activos na luta pela democratização do Brasil.
Fonte: Biografia de Chico Buarque [online].[citado 2009-05-09]
Disponível em WWW:
http://www.dicionariompb.com.br/
43
CALADO, Carlos: Tropicália: a história de uma revolução musical – Editora 34 Ltda.: São Paulo,
1997, p.260

- 29 -
5.2.2 O show da despedida

O show da despedida no Teatro Castro Alves dia 20 de Julho de 1969 foi a


primeira aparição dos dois tropicalistas num palco, desde as gravações do programa
Divino, Maravilhoso, em Dezembro de 1968. Em total haviam três exibições de show, e
todo o programa ficou registrado no disco «Barra 69».

«Oportunamente apresentaremos para vocês algo mais... mais... mais... mais...


sei lá... algo mais divertido – disse o palhaço vaiado. Assim esperamos – disse a
platéia, já agora morrendo de rir. O grande sucesso do palhaço. Esta e outras
histórias não serão contadas agora porque não há tempo» 44

escreveu Caetano, assumindo assim sua tristeza publicamente, em um texto pequeno


feito para o programa do show de despedida.
A atmosfera no teatro era bastanta festiva. Caetano e Gil, além de recordarem
sucessos tropicalistas, como «Alegria Alegria», «Tropicália», «Domingo no Parque»,
também ofereceram à animada platéia uma prévia dos novos discos, os quais Rogério
Duprat estava a finalizar em São Paulo. Entre as figuras notáveis, presentes ao show,
eram o poeta Augusto de Campos ou escritor Jorge Amado.
No final, Gil fechava o show cantando «Aquele Abraço», uma samba que foi
apresentada em público pela primeira vez nesse show. Esta canção fez Caetano a chorar
– por causa do brilho e fluência das frases, da evidência de que se tratava de uma
canção popular do sucesso inevitável, do sentimento de amor e perdão, e sobretudo
porque se dirigiu directamente ao Rio de Janeiro, a cidade que Caetano sinta tão
intimamente sua por causa da estada de um ano entre os treze e os catorze anos. No
show, o público também foi tomado pela música, cantando-a junto com Gil como se já
a conhecesse de muito tempo. Parecia ser um canto de despedida do Brasil.

«Aquele Abraço era, nesse sentido, o oposto do meu estado de espírito, e eu


entendia comovido, do fundo do poço da depressão, que aquele era o único
modo de assumir um tom de bola para frente sem forçar nenhuma barra. Nunca
esta canção deixará de ter, para mim, uma importância afectiva [...]» 45

44
Caetano Veloso em: CALADO, Carlos: Tropicália: a história de uma revolução musical – Editora 34
Ltda.: São Paulo, 1997, op.cit., p.260
45
VELOSO, Caetano: Verdade tropical – Companhia das Letras: São Paulo, 1997, op.cit., p.419

- 30 -
proclamou Caetano.

- 31 -
6. NO EXÍLIO

Dia 28 de Julho de 1969, Caetano partiu para Lisboa, e segiu o seu caminho,
junto com o Gil, até Londres. Na véspera do seu dia da partida ainda fez uma
entrevista para o Última Hora, onde deu a sua opinião sobre a situação do movimento
e a acção dos tropicalistas daquela época:

«Sei que o movimento que a gente começou está influenciado meio mundo.
Mais dia, menos dia, era inevitável que aqui também se começasse a utilizar
uma linguagem nova. Isso demonstra que estávamos certos e que o que
fazíamos, aquela confusão toda, era um acontecimento natural no processo
musical brasileiro. Quanto ao Tropicalismo, ainda não posso falar muita coisa. É
claro que ele mantém raízes. O fato é que Gal Costa se tornou a mais importante
cantora brasileira a partir dele e eu acho que isso já compensa. Se o
Tropicalismo passou, eu não sei, mas acho que, ele continua, e do modo certo,
com Gal.» 46

Primeiro, os dois cantores ficaram hospedados por alguns dias num hotel em
Sothampton, depois mudaram-se para bairro de Chelsea, numa casa de três
pavimentos. Logo o ambiente da casa era muito parecido como no apartamento de
Caetano e Dedé em São Paulo. Os amigos visitavam-lhes frequentamente, e assim
criou-se lá uma comunidade brasileira. Por isso, Caetano falou principalmente
português, mas também estudou inglês.
Fez um disco com composições como «London London» – sobre a solidão
dos dias vividos no outro pais, ou «If You Hold a Stone» – na letra desta canção
confessou o seu próprio sentimento da vida no exílio: «Eu não vim aqui para ser
feliz». Ele próprio não gostou de LP por causa da depressão pelo qual passava – não
se podia acostumar a frio e chuva e achava Londres escura e feia. Até parou de
compor durante alguns meses, porque não viu mais sentido em fazer música fora do
Brasil.
Depois de sete meses passados na Inglaterra Caetano e Gil fizeram juntos um
primeiro show, na primeira semana de Março de 1970. O show teve sucesso, mas os

46
Caetano Veloso em: CALADO, Carlos: Tropicália: a história de uma revolução musical – Editora 34
Ltda.: São Paulo, 1997, op.cit., p.264

- 32 -
críticos sugeriram que os cantores ainda não estavam familiarizados com o gosto
europeu.
Em relação com o Gil, Caetano não se envolveu tanto em Londres com a cena
musical. Entre os artistas de que ele gostou mais, foram Jimi Hendrix, Richie Havens
e os Rolling Stones. Mas os concertos de rock levou-lhe a sentir as saudades do
Carnaval da Bahia.
Depois de viver um ano e meio fora do país, as autoridades militares
permitiram ao Caetano fazer uma visita no Brasil – foi dia 7 de Janeiro de 1971.
Desembarcou no Rio de Janeiro, mas a recepção que obteve foi muito «fria». Logo
foi acompanhado pelos policiais e depois interrogado durante seis horas. Os militares
intimidaram e chantagearam-lhe. No fim estabeleceram os mandados - Caetano
poderia dar entrevistas só por escrita, não tinha permissão de raspar a barba ou cortar
o cabelo durante sua visita e teria de fazer uma apresentação na TV determinada por
os militares – foi dia 4 de Fevereiro, na TV Globo. Caetano cantou só uma samba.
Ainda por cima, durante o seu estágio, ele com a sua mulher estavam
espionados todo o tempo. Três dias depois do show na TV voltaram para Londres.
Conhecendo a situação no Brasil, Caetano mudou os seus planos de voltar em breve
para o seu país.
No extrangeiro, Caetano ainda lançou novo disco pela Famous Records no
início de Julho. Formou uma banda, junto com os artistas brasileiros os quais
convidou para Londres. Apresentou-se também na Suíça, Holanda e França.
Um dia recebeu o convite do mestre da bossa nova João Gilberto participar no
seu programa especial no Brasil. Apesar de não querer voltar tão cedo para o Brasil,
decidiu finalmente tomar parte do programa. Dia 8 de Agosto de 1971 chegou ao
Brasil, e ficou surpreendido ao ser recebido com sorrisos, inclusive pelas autoridades.
Para o show escolheu as canções novas londrinas. Caetano voltou para Londres com o
muito melhor sentimento, e já com os planos de voltar.

- 33 -
7. DE VOLTA NO BRASIL

Dia 11 de Janeiro de 1972 Caetano desembarcou no Brasil, com os planos de


ficar definitivamente no país.
Logo a seguir já começou a sua primeira turnê pelo Brasil, depois do exílio,
no palco do Teatro João Caetano. A sua imagem que mostrou ao público era diferente
– não era o Caetano agressivo e provocante dos tempos dos tropicalistas, mas quieto,
tocando violão ao apresentar as suas canções. De Londres voltou como um cantor
profissional de música popular brasileira. Também aprendeu dominar o nervosismo e
em geral a sua imagem era mais segura de si. Assim chegou à sua decisão dedicar-se
à música como profissional. Numa entrevista disse:

«Eu não quero assumir nenhum tipo de liderança. Quero só cantar as minhas
músicas, para as pessoas verem que continuamos cantando e trabalhando. Não
existe nenhuma esperança de organizar as pessoas em torno de um ideal
comum.» 47

declarando assim que não voltou ao país com a intenção de resgatar o papel de líder
que tinha na época do tropicalismo.

47
Caetano Veloso em: CALADO, Carlos: Tropicália: a história de uma revolução musical – Editora 34
Ltda.: São Paulo, 1997, op.cit., p.288

- 34 -
8. CONCLUSÃO

Quase quarenta anos após o surgimento do tropicalismo, os efeitos do próprio


movimento são persistentes mais do que os próprios criadores e também aqueles que
só o consideravam como um assunto temporário podiam imaginar. Perduram até hoje,
e como já mencionámos, inspirando outros compositores e cantores.

O objectivo deste trabalho foi esboçar a época do movimento tropicalista,


concentrando-se principalmente à actuação de Caetano Veloso, dando assim o
conhecimento da parte da cultura brasileira ainda não geralmente bem conhecida.
No início cantor assumiu a posição principal entre os outros artistas, liderando
todo o movimento. Apesar de ter propagado a atitude contra o régime e por isso
estando numa posição de rebelde, a sua actuação em frente do público era ainda
tímida. Mas mesmo assim consegiu manter bem o seu posto e ganhou muitos
simpatizantes. Ao seu sucesso ainda atribuiram sem dúvidas seu carisma, talento de
exprimir-se pela música e a sua capacidade de conquistar a maioria para os seus
objectivos.
A estadia na prisão e os meses passados no exílio eram os tempos menos
felizes na sua vida. Apesar de ter vivido esta época difícil, ultrapassou a crise e a sua
personalidade ficou ainda mais forte.
Caetano, depois de voltar para o seu país, foi rapidamente integrado entre as
maiores estrelas da área artística. Nos shows já parecia mais maduro e auto-suficiente.
Desde este tempo, já nunca mais saíu de cena. Até nestes dias continua produzir
discos e shows com regularidade. Sem dúvidas pertence entre os maiores artistas não
só da música popular brasileira assim como de todas as artes do Brasil.

Graças deste trabalho eu pessoalmente tive a oportunidade de conhecer mais


profundamente a vida e a obra deste cantor, também como a época da história do Brasil.
A comparação dos novos conhecimentos com com as experiências auténticas
contadas pelo próprio Caetano fez-me entender ainda melhor a sua música e o seu
comportamento na época do tropicalismo.

- 35 -
9. BIBLIOGRAFIA

CALADO, Carlos: Tropicália: a história de uma revolução musical – Editora 34 Ltda.:


São Paulo, 1997

CYNTRÃO, Sylvia Helena: A forma da festa – tropicalismo: a explosão e os seus


estilhaços – Editora Universidade de Brasília: São Paulo, 2000

MACIEL, Luiz Carlos: Geração em transe: memórias do tempo do tropicalismo –


Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1996

PERRONE, Charles A.: Letras e letras da MPB – Elo Editora e Distribuidora Ltda.:
Rio de Janeiro, 1988

VELOSO, Caetano: Verdade tropical – Companhia das Letras: São Paulo, 1997

Fontes da Internet:

As letras de Caetano Veloso [online].[citado 2009-05-05]


Disponível em: WWW:
<http://www.lyrics-songs.com/>

Biografia de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque [online].[citado 2009-05-09]


Disponivel em WWW:
<http://www.dicionariompb.com.br/>

FARIA, Daniel: O Tropicalismo 'é lindo!' [online].[citado 2009-05-05]


Disponível em WWW:
<http://www.revistaparadoxo.com/materia.php?ido=4770>

Tropicália – um projecto de Ana de Oliveira [online].[citado 2009-04-02]


Disponível em WWW:
<http://tropicalia.uol.com.br/site/internas/index.php>

- 36 -
Tropicalismo na ditadura [online].[citado 2009-03-15]
Disponível em WWW:
< http://www.scribd.com/doc/3965513/PORTUGUES-Tropicalismo-na-Ditadura>

A citação introdutiva de Cacá Diegues [online].[citado 2009-05-09]


Disponível em WWW:
<http://www.casadobruxo.com.br/poesia/c/cv_esp04.htm>

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APÊNDICE

As letras das principais canções de CaetanoVeloso, mencionadas neste trabalho,


dispostas alfabeticamente:

1) Alegria, Alegria
2) Através Do Trio Eléctrico
3) É proibido proibir
4) If You Hold A Stone
5) London London
6) The Empty Boat
7) Tropicália

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1) Alegria, Alegria

Caminhando contra o vento


Sem lenço e sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou...

O sol se reparte em crimes


Espaçonaves, guerrilhas
Em cardinales bonitas
Eu vou...

Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot...

O sol nas bancas de revista


Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia
Eu vou...

Por entre fotos e nomes


Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou
Por que não, por que não...

Ela pensa em casamento


E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço e sem documento,
Eu vou...

Eu tomo uma coca-cola


Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou...

Por entre fotos e nomes


Sem livros e sem fuzil

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Sem fome, sem telefone
No coração do Brasil...

Ela nem sabe até pensei


Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou...

Sem lenço, sem documento


Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo, amor
Eu vou...

Por que não, por que não...


Por que não, por que não...
Por que não, por que não...
Por que não, por que não...

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2) Atrás Do Trio Eléctrico

Atrás do trio elétrico


Só não vai quem já morreu
Quem já botou pra rachar
Aprendeu, que é do outro lado
Do lado de lá do lado
Que é lá do lado de lá

O sol é seu
O som é meu
Quero morrer
Quero morrer já

O som é seu
O sol é meu
Quero viver
Quero viver lá

Nem quero saber se o diabo


Nasceu, foi na bahi ...
Foi na bahia
O trio elétrico
O sol rompeu
No meio-dia
No meio-dia

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3) É Proibido Proibir

A mãe da virgem diz que não


E o anúncio da televisão
E estava escrito no portão
E o maestro ergueu o dedo
E além da porta
Há o porteiro, sim...

E eu digo não
E eu digo não ao não
Eu digo: É!
Proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir...

Me dê um beijo meu amor


Eles estão nos esperando
Os automóveis ardem em chamas
Derrubar as prateleiras
As estantes, as estátuas
As vidraças, louças
Livros, sim...

(falado)
Cai no areal na hora adversa que Deus concede aos seus
para o intervalo em que esteja a alma imersa em sonhos
que são Deus.
Que importa o areal, a morte, a desventura, se com Deus
me guardei
É o que me sonhei, que eterno dura e esse que regressarei.

E eu digo sim
E eu digo não ao não
E eu digo: É!
Proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir

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É proibido proibir...

Me dê um beijo meu amor


Eles estão nos esperando
Os automóveis ardem em chamas
Derrubar as prateleiras
As estátuas, as estantes
As vidraças, louças
Livros, sim...

E eu digo sim
E eu digo não ao não
E eu digo: É!
Proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir...

- 43 -
4) If You Hold A Stone

If you hold a stone, hold it in your hand


If you feel the weight, you’ll never be late
To understand
But if you hold the stone, hold it in your hand
If you feel the weight, you’ll never be late
To understand

If you hold a stone, marinheiro só


Hold it in your hand, marinheiro só
If you feel the weight, marinheiro só
you’ll never be late, marinheiro só
To understand…

Mas eu não sou daqui


Marinheiro só
Eu não tenho amor
Eu sou da Bahia
De São Salvador
Eu não vim aqui
Para ser feliz
Cadê meu sol dourado
E cadê as coisas do meu país

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5) London London

I'm wandering round and round, nowhere to go


I'm lonely in London, London is lovely so
I cross the streets without fear
Everybody keeps the way clear
I know I know no one here to say hello
I know they keep the way clear
I am lonely in London without fear
I'm wandering round and round, nowhere to go
While my eyes go looking for flying saucers in the sky (2x)
Oh Sunday, Monday, Autumn pass by me
And people hurry on so peacefully
A group approaches a policeman
He seems so pleased to please them
It's good at least, to live and I agree
He seems so pleased, at least
And it's so good to live in peace
And Sunday, Monday, years, and I agree

While my eyes go looking for flying saucers in the sky (2x)


I choose no face to look at, choose no way
I just happen to be here, and it's ok

Green grass, blue eyes, grey sky (2x)


God bless silent pain and happiness
I came around to say yes, and I say

While my eyes go looking for flying saucers in the sky

- 45 -
6) The Empty Boat

From the stern to the bow


Oh; my boat is empty
Yes, my heart is empty
From the hole to the how

From the rudder to the sail


Oh my boat is empty
Yes, my hand is empty
From the wrist to the nail

From the ocean to the bay


Oh, the sand is clean
Oh, my mind is clean
From the night to the day

From the stern to the bow


Oh, my boat is empty
Oh, my head is empty
From the nape to the brow

From the east to the west


Oh, the stream is long
Yes, my dream is wrong
From the birth to the death

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7) Tropicália

Sobre a cabeça os aviões


Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões
Meu nariz
Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento
No planalto central do país...

Viva a bossa
Sa, sa
Viva a palhoça
Ca, ça, ça, ça...(2x)

O monumento
É de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde
Atrás da verde mata
O luar do sertão
O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga
Estreita e torta
E no joelho uma criança
Sorridente, feia e morta
Estende a mão...

Viva a mata
Ta, ta
Viva a mulata
Ta, ta, ta, ta...(2x)

No pátio interno há uma piscina


Com água azul de Amaralina
Coqueiro, brisa
E fala nordestina
E faróis
Na mão direita tem uma roseira

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Autenticando eterna primavera
E no jardim os urubus passeiam
A tarde inteira
Entre os girassóis...

Viva Maria
Ia, ia
Viva a Bahia
Ia, ia, ia, ia...(2x)

No pulso esquerdo o bang-bang


Em suas veias corre
Muito pouco sangue
Mas seu coração
Balança um samba de tamborim
Emite acordes dissonantes
Pelos cinco mil alto-falantes
Senhoras e senhores
Ele põe os olhos grandes
Sobre mim...

Viva Iracema
Ma, ma
Viva Ipanema
Ma, ma, ma, ma...(2x)

Domingo é o fino-da-bossa
Segunda-feira está na fossa
Terça-feira vai à roça
Porém!
O monumento é bem moderno
Não disse nada do modelo
Do meu terno
Que tudo mais vá pro inferno
Meu bem!
Que tudo mais vá pro inferno
Meu bem!...

Viva a banda
Da, da

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Carmem Miranda
Da, da, da, da...(3x)

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