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A privação de sentido origina um tipo de neurose

que Freud e Adler não haviam identificado, e que é a forma de sofrimento


psíquico mais disseminada no mundo de hoje: a neurose noogênica, isto é, de
causa espiritual, marcada pelo sentimento de absurdo e vacuidade. A análise
existencial é a redescoberta da lógica por trás do absurdo, a reconquista do
estatuto espiritual humano que torna a vida digna de ser vivida. A logoterapia é a
técnica psicoterápica que faz da análise existencial uma ferramenta prática para
a cura das neuroses noogênicas.

Como entramos no curso da história num momento em que as culturas que


nos serviam de fontes já se encontravam elas próprias num estado avançado de
decomposição entrópica, perdendo cada vez mais de vista as intuições originárias
e enrijecendo-se num formalismo do qual agora tentam desesperadamente sair
mediante a decomposição geral das formas (como um homem que, cansado de
tentar em vão compreender um livro, passa a rasgá-lo na esperança de da sua
decomposição física obter a sua quintessência), toda a história da nossa cultura é
a do eco de um eco, da sombra de uma sombra. Todos sabemos disso e temos
vergonha disso. Procuramos inutilmente aliviar essa má consciência lançando as
culpas no econômico (o que já é reflexo de uma ilusão, portanto duplamente
periférico), ou então apegando-nos à quantidade e declarando que o volume de
uma produção irrelevante e repetitiva é prova de nossa “criatividade”.

Toda aspiração nacional de tornar-se “grande potência” com uma base


cultural tão nula está condenada, de antemão, seja ao fracasso, seja a um
sucesso que se tornará, caso alcançado, um flagelo para a humanidade, obrigada
a curvar-se ante a força bruta de novos bárbaros que nem sequer têm um senso
próprio de orientação na história onde interferem cegamente.

Língua, religião e alta cultura são os únicos componentes de uma nação que
podem sobreviver quando ela chega ao término da sua duração histórica. São os
valores universais, que, por servirem a toda a humanidade e não somente ao
povo em que se originaram, justificam que ele seja lembrado e admirado por
outros povos. A economia e as instituições são apenas o suporte, local e
temporário, de que a nação se utiliza para seguir vivendo enquanto gera os
símbolos nos quais sua imagem permanecerá quando ela própria já não existir.

Mas, se esses elementos podem servir à humanidade, é porque serviram


eminentemente ao povo que os criou; e lhe serviram porque não traduziam
somente suas preferências e idiossincrasias, e sim uma adaptação feliz à ordem
do real. A essa adaptação chamamos “veracidade” — um valor supralocal e
transportável por excelência. As criações de um povo podem servir a outros
povos porque trazem em si uma veracidade, uma compreensão da realidade —
sobretudo da realidade humana — que vale para além de toda condição histórica
e étnica determinada.

Nenhum povo ascendeu ao primado econômico e político para somente


depois se dedicar a interesses superiores. O inverso é que é verdadeiro: a
afirmação das capacidades nacionais naqueles três domínios antecede as
realizações político-econômicas.

A França foi o centro cultural da Europa muito antes das pompas de Luís XIV.
Os ingleses, antes de se apoderar dos sete mares, foram os supremos
fornecedores de santos e eruditos para a Igreja. A Alemanha foi o foco
irradiador da Reforma e em seguida o centro intelectual do mundo — com Kant,
Hegel e Schelling — antes mesmo de constituir-se como nação. Os EUA tinham
três séculos de religião devota e de valiosa cultura literária e filosófica antes de
lançar-se à aventura industrial que os elevou ao cume da prosperidade. Os
escandinavos tiveram santos, filósofos e poetas antes do carvão e do aço. O poder
islâmico, então, foi de alto a baixo criatura da religião — religião que seria
inconcebível se não tivesse encontrado, como legado da tradição poética, a língua
poderosa e sutil em que se registraram os versículos do Corão. E não é nada
alheio ao destino de espanhóis e portugueses, rapidamente afastados do centro
para a periferia da História, o fato de terem alcançado o sucesso e a riqueza da
noite para o dia, sem possuir uma força de iniciativa intelectual equiparável ao
poder material conquistado.

As escolhas, dizia L. Szondi, fazem o destino. Escolhendo o imediato e o


material acima de tudo, o povo brasileiro embotou sua inteligência, estreitou seu
horizonte de consciência e condenou-se à ruína perpétua.

Ora, a condição mais óbvia para o desenvolvimento da inteligência é a


organização do saber.

Nesse sentido, os movimentos de “libertação” e de “independência”, que


cortaram nossas ligações com as raízes europeias, não nos libertaram senão da
base mesma da nossa autodefesa, para nos deixar, inermes e sonsos, à mercê das
perturbadoras casualidades da mídia e da moda. Roubaram-nos o mapa do
mundo, para nos deixar perdidos no meio de um deserto onde é preciso
recomeçar sempre o caminho, de novo e de novo, para não chegar a parte
alguma. Destituíram-nos do senso da hierarquia e das proporções, para nos tornar
escravos de debates viciados e conjeturações ociosas que não nos deixam pensar
nem agir.

Esse tipo de reformador cultural deslumbrado, que, sem uma autêntica visão
universal das coisas e movido somente pela comichão de atualismo, quando não
pela ânsia de épater le bourgeois, se mete a destruir valores que não
compreende, é a praga mais nefasta que pode se abater sobre uma cultura em
formação, induzindo-a a destruir as bases em que começava a se erguer e não
pondo em seu lugar senão pseudovalores efêmeros cuja rápida substituição
abrirá cada vez mais, sob os pés dela, o abismo sem fim das dúvidas ociosas e
das perguntas cretinas.

Se queremos preservar e desenvolver a inteligência do nosso povo, em vez de


a esfarelar em tagarelice estéril, o que temos de importar não é a novidade: é
toda a História, é todo o passado humano. Temos de espalhar pelas ruas, pelos
cartazes, pelos monumentos, pelas livrarias e pelas escolas as lições de Lao-Tsé e
Pitágoras, Vitrúvio e Pacioli, Aristóteles e Platão, Homero e Dante, Virgílio e
Shânkara, Rûmi e Ibn ‘Arabi, Tomás e Boaventura.

Quem, antes de fortalecer a inteligência juvenil com esse tipo de alimento, a


perturba e debilita com novidades indigeríveis, é nada menos que um molestador
de menores, um estuprador espiritual. E, se o faz com intuito político ou
comercial, o crime tem ainda o agravante do motivo torpe.

A alta cultura simplesmente desapareceu do Brasil — desapareceu tão


completamente que já ninguém dá pela sua falta.

Um exemplo talvez ajude. Não conheço um só membro das nossas elites que
não tenha opiniões sobre a política norte-americana. A base dessas opiniões é o
que leem nos jornais e veem na TV. Acontece que o instrumento básico do
debate político nos EUA é o livro, não o artigo de jornal, o comentário televisivo
ou a entrevista de rádio. Não há aqui uma só ideia ou proposta política que, antes
de chegar aos meios de comunicação de massas, não tenha se formalizado em
livro, demarcando as fronteiras do debate que, nessas condições, é sempre
pertinente e claro. Também não há um só desses livros que, em prazo breve, não
seja respondido por outros livros, condensando e ao mesmo tempo aprofundando
a discussão em vez de limitá-la às reações superficiais do primeiro momento

Neste país você não pode pedir emprego e muito menos dinheiro emprestado a
um conhecido sem que ele instantaneamente assuma ares paternais e comece a
lhe dar conselhos, a ralhar com você chamando-o de irresponsável, leviano e
miolo-mole.

Meu pai era um sujeito relaxado, que às vezes ia de pijama receber as visitas.
Mas chamava de “senhor” cada mendigo que o abordava na rua, e sem que ele
me dissesse uma palavra aprendi que o homem em dificuldades necessitava de
mais demonstrações de respeito do que as pessoas em situação normal.
O dr. Samuel Johnson, escritor maravilhoso e antepassado setecentista dos
modernos conservadores, dizia que o teste definitivo de uma civilização está na
sua maneira de tratar os pobres. Na sua época, ninguém tivera ainda a ideia
brilhante de desvencilhar-se deles entregando-os aos cuidados da burocracia
estatal. Essa ideia, mesmo que não seja levada à prática, já vale por um teste:
mostra que a sociedade não sabe o que fazer com os pobres, não quer trato direto
com eles e preferiria reduzi-los a mais um item abstrato, invisível e inodoro do
orçamento estatal. Acha isso mais higiênico do que enfiar a mão no bolso quando
pedem uma esmolinha e infinitamente mais palatável do que ter de conversar
com eles quando têm o desplante de puxar papo na rua com Sua Excelência o
contribuinte. Na verdade, o cidadão moderno desejaria chutar todas as suas
responsabilidades para o Estado: não quer proteger sua casa, mas ser protegido
pela polícia; não quer educar-se para educar seus filhos, mas entregá-los a
técnicos que os transformarão em robôs politicamente corretos; não quer decidir
o que come, o que bebe, o que fuma ou deixa de fumar: quer que a burocracia
médica lhe imponha a receita pronta; não quer crescer, ter consciência, ser livre
e responsável: quer um pai estatal que o carregue no colo e contra o qual ainda
possa fazer birra, batendo o pezinho na defesa dos seus “direitos”.

Essa civilização já se julgou a si mesma: constituída de moleques egoístas e


covardes, não é capaz de se defender. Ao primeiro safanão mais forte, vindo dos
comunistas, dos radicais islâmicos ou dos autonomeados governantes do mundo,
põe-se de joelhos abjurando lealdades milenares e prontificando-se a
transformar-se no que o novo patrão deseje.

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