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Impaciência tem sido um dos efeitos colaterais do frenesi das redes sociais | Donna 17/12/2023, 07:49

Impaciência tem sido um dos efeitos


colaterais do frenesi das redes
sociais
Interrompemos a fala dos outros, amamos e
odiamos por impulso e não conseguimos assistir a
um reels até o fim
15/12/2023 - 09h00min

Olhos esbugalhados, sem piscar, para não perder nada do que acontece: me veio agora a cena aflitiva de outro
clássico do cinema, "Laranja Mecânica".Gilmar Fraga / Agencia RBS

Redes sociais. Venho percebendo que minha estafa vem também desse
lugar. O cansaço não é proveniente apenas do excesso de
compromissos, mas do movimento de uma única parte do meu corpo:
o dedo indicador que conduz, na vertical, a rolagem das postagens
do feed, e na horizontal, a sequência de stories. Um único dedo
promovendo a anarquia destrutiva dos sentidos. Em um minuto sinto
compaixão, e no outro, cobiça. Um minuto de informação, e no seguinte,
espanto. Sentimentos fragmentados pelo vício em consumir tudo sem
sentir o gosto.

É o fim da experiência completa. Apenas caquinhos de um universo


craquelado. O domínio sobre o aparelho em nossas mãos tornou-se
ilusório diante da ansiedade crônica: queremos mais e mais deste quase
nada com filtro.

Pílulas de sabedoria, edição de programas, pedaços de podcasts, frases


soltas, conhecimento mastigado. Tudo muito prático, uma bandeja de
aperitivos. A integralidade ruiu. A vida rarefeita vai passando pela janela
do celular em rapidez supersônica, como as cenas do clássico

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Impaciência tem sido um dos efeitos colaterais do frenesi das redes sociais | Donna 17/12/2023, 07:49

Koyaanisqatsi, filme que há 40 anos já denunciava o nosso colapso diante


da pressa.

Alta velocidade gera adrenalina, mas também desespero: a que momento


surgirá o muro contra o qual nos chocaremos? O medo se mistura ao
desejo de que esse muro exista mesmo e nos pare. Suplica-se por uma
via de escape dessa ciranda frenética. De repente, a vontade é de não
mais saber, não mais conhecer, não ser encontrado pelos sites de venda –
interrupção do fluxo contínuo. Abandonar as redes seria uma opção de
livramento, mas um suicídio metafórico: o sujeito desconectado será
ainda considerado um ser vivo?

Olhos esbugalhados, sem piscar, para não perder nada do que acontece:
me veio agora a cena aflitiva de outro clássico do cinema, Laranja
Mecânica, em que o personagem Alex é impedido, por pinças metálicas,
de fechar os olhos. O objetivo é fazê-lo se acostumar com o que ele não
pediu para ver, até que ele perca o senso crítico e a profundidade,
tornando-se mais um objeto a serviço dos interesses de quem detém o
poder. E o poder tem nome. Dinheiro.

A impaciência tem sido um dos efeitos colaterais desse frenesi.


Interrompemos a fala dos outros, amamos e odiamos por impulso e não
conseguimos assistir a um reels até o fim. E assim, humilhados pela nossa
própria inquietação, seguimos fazendo de conta que é possível se tornar
mais sábio e atualizado, apenas acelerando o dedo indicador, enquanto
reduzimos a zero nossa concentração. Quantos livros você leu este
ano?

Sem coragem para desembarcar deste trem-bala, mantenho meus perfis


operantes, já que a tecnologia facilita a divulgação do meu trabalho. Mas
contra o esgotamento da alma, só a nostalgia me ampara.

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