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Rousseau e Voltaire: duas perspectivas Rousseau and Voltaire: two
para a história moderna perspectives for modern history
Priscila Rossinetti Rufinoni !
Professora-adjunta !
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Departamento de Filosofia UnB !
Resumo: Este artigo procura pensar qual a Abstract: This paper shows how important
importância da noção de “liberdade” para the concept of ‘freedom” to the concept of
o conceito de história em Rousseau e ‘history” in Rousseau and Voltaire. In both
Voltaire. Em ambas as perspectivas de approaches, the modern history follows of
abordagem, a história moderna segue uma the teleological standards or there is a
space for political action?
norma teleológica ou há um espaço para a
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ação política?
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Palavras-chave: História, Rousseau, Keywords: Rousseau, Voltaire, freedom of
the action
Voltaire, liberdade de ação
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Rousseau e Voltaire: duas perspectivas para a história moderna
que assim procedem seriam como um realidade histórica, interessa pensar o que
homem que chegasse à praia e dissesse ao não é "natural", o que é parte de um
mar: outrora banhavas Águas-mortas, contrato, ou seja, como se estabelece a
Frejus, Ravena, Ferrara. Retorna sociedade civil. A única sociedade "natural"
imediatamente para lá! (VOLTAIRE, é a família, ainda assim constituída
1987: 203-209).1 "naturalmente" apenas durante o período
! em que os filhos necessitam dos pais. Se
Mesmo levando em conta o tom polemista não há sociedade natural, não há direito
do Dicionário Filosófico de Voltaire, cujo natural: "a ordem social, porém, é um
verbete "Lei Natural" chega a nomear direito sagrado que serve de base a todos
"Jean-Jacques" como um dos "pais da os outros. Tal direito, no entanto, não se
Igreja moderna", evangelista ou bel-esprit origina na natureza: funda-se, portanto, em
disposto a contrariar o senso comum no convenções." (ROUSSEAU, 1987: 22-23).
que diz respeito à propriedade e à indústria Se todos os laços civis são convencionados,
como imprescindíveis para o desenvolvimento da do ponto de vista do direito, e não dos
humanidade, é claro o posicionamento do fatos, Rousseau pode pensar se é ou não
autor contra a perspectiva histórica da legítima a escravidão, o poder instituído e a
decadência, tanto quanto contra a propriedade sem recorrer ao exemplo
perspectiva da redenção cristã. E mais, ao factual: a história deve ser julgada segundo
brincar com o duplo nome de evangelistas o direito, e não o contrário. Tomar a
de seu rival, Jean-Jacques, Voltaire associa a escravidão como legítima porque assim
história cristã à história deste "animal bem vemos na realidade é um bom exemplo de
insociável", Rousseau.2 Redenção ou como tomar o efeito pela causa, e
decadências, ambas as perspectivas para estabelecer o direito pelo fato:
Voltaire não levam em conta senão !
preconceitos "religiosos", obscurantistas, Aristóteles tinha razão, mas tomava o
que escondem a luminosidade das efeito pela causa. Todo homem nascido
industrias humanas quando libertas das na escravidão, nasce para ela; nada
superstições. mais certo. Os escravos tudo perdem
! sob seus grilhões, até o desejo de escapar
Rousseau realmente faz alusão a uma deles [...] Se há, pois, escravos pela
espécie de Idade do Ouro, localizada fora natureza, é porque houve escravos
da "história civil", mas, se esse mundo contra a natureza (ROUSSEAU,
mítico é bastante trabalhado nos dois 1987: 24-25).
Discursos, não é o tema do Contrato Social. !
No Contrato, Rousseau trata como irrelevante Já no Emílio, a história não é fonte de
ter ou não existido tal período de inocência exemplos morais, é esse pano de fundo
humana, pois o tema foi abordado no para o estudo dos "homens como são" a
Discurso sobre a desigualdade, não importa sua fim de pensar as "leis como podem ser":
"através dela Emílio poderá ver os homens um deserto para a liberdade e a virtude do
de longe, em outros tempos e lugares [...] corpo social. Pensar antes no produto da
Observando o espetáculo do mundo dos divisão – as lindas cidades – é tomar o fato
homens através da história, ele será um pelo direito. Quanto mais desigual é uma
espectador sem interesse e sem paixão, sociedade, mas ela se afasta, naquela escala
como juiz, e não como cúmplice ou estabelecida no Contrato, das leis de direito
acusador" (SOUZA, 2001: 48). De fora da em direção às leis estabelecidas segundo a
sociedade, de qualquer sociedade, o homem contingência dos interesses particulares,
pode julgar sem interesse particular; como estabelecidas segundo os fatos. Cidades
esse ponto de vista não existe antes da industriosas, desenvolvimentos científicos e
sociedade, ou seja, como não há para artísticos não passam, então, de "guirlandas
Rousseau uma "humanidade" anterior ao de flores sobre cadeias de ferro".
contrato social, a reflexão já pressupõe o !
fim do estado de natureza, o Contrato quer Pela perspectiva do direito, a liberdade em
ser um texto para refletir, uma escala de Rousseau é definida e circunscrita pelo
gradação para "indagar se pode existir, na espaço político; ser livre, passada a
ordem civil, alguma regra de administração primeira época ingênua, é o homem seguir,
legítima e segura, tomando os homens como como cidadão, as leis criadas por ele
são e as leis como podem ser" (ROUSSEAU, mesmo, por sua vontade subsumida à
1987: 21). vontade geral, como soberano. Qualquer
! perigo para a vontade geral soberana –
Ao estabelecer como um dos princípios quaisquer desigualdades internas no corpo
universais de justiça a legitimidade das social – afeta a liberdade de todos os
posses, Voltaire acusa Rousseau de não cidadãos. Assim, podemos julgar pela
reconhecer, contra o que o mundo inteiro escala do Contrato o grau de liberdade nas
leva a sério, esse direito natural à propriedade sociedades históricas (e Rousseau faz várias
e seus efeitos benéficos. "Pois, em lugar de alusões aos exemplos factuais), sem precisar
ir estragar o terreno do vizinho sensato e recorrer às "aparências" de liberdade (caso
industrioso, só teria de imitá-lo, e, cada pai da Inglaterra), de progresso científico ou
de família tendo seguido este exemplo, uma artístico; sem tomar o fato – dado sempre
linda cidade logo se teria formado" (VOLTAIR, obscurecido por suas "cores", suas
1987: 130).3 Com as premissas do Contrato "máscaras" – como ponto de partida.
Social, Rousseau poderia responder às Voltaire, ao definir liberdade já define uma
acusações de Voltaire no verbete "Lei perspectiva diversa de visar a história:
Natural": não há propriedade privada "liberdade é unicamente o poder de
instituída como "lei natural"; e mais, se o agir" (VOLTAIRE, 1987: 75)4; ou, como
avanço da propriedade privada e a divisão fica claro no diálogo do verbete "Liberdade"
de trabalhos que essa "diferença" entre os do Dicionário Filosófico:
homens veio a acarretar é o solo fértil para !
todas as artes e as ciências, para as A – Em que consiste pois a vossa
industriosas cidades, na medida inversa, é liberdade senão no poder que a vossa
5 Cartas Inglesas.
6 Cartas Inglesas.
7 Cartas Inglesas.
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Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea
Brasília, vol 2, nº 1, 2014.
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Rousseau e Voltaire: duas perspectivas para a história moderna
decadência, também para Rousseau, como para apartada das luzes da razão; e o déspota
Voltaire, não há uma norma incondicionada esclarecido pode também ser o rei
guiada seja pela Providência, seja pelo sanguinário, há sombras mesmo no
Progresso, pelo menos não para a otimismo cosmopolita; há sempre um
"sociedade artificial"; se as sociedades vão monstro de obscurantismo, as várias
caminhar irremediavelmente para a cabeças da "infame", incitando aos
decadência, ainda há uma instância ativa, homens, à razão, tomarem seu lugar na
uma "arte" humana e racional capaz de arena da história. Por outro lado, do ponto
constituir corpos artificiais mais ou menos de vista de observador desinteressado e
robustos, mais ou menos afeitos a protelar pessimista da história, dessa história da
o fim inevitável. É uma "arte" essa descrita decadência, Rousseau também vislumbra,
idealmente no Contrato, uma arte de na derrocada de uma sociedade civil, uma
equilibrar harmonicamente as tensões das nova juventude do homem, de onde ele
vontades particulares e enfeixá-las na pode trazer novamente a força revolucionária
vontade geral: da mudança social:
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Não depende dos homens prolongar a Épocas violentas, nas quais as revoluções
própria vida, mas depende deles prolongar fazem sobre os povos aquilo que algumas
a do Estado pelo tempo que for possível, crises fazem sobre os indivíduos; em que
dando-lhe a melhor constituição que possa horror do passado toma o lugar do
ter (ROUSSEAU, 1897: 102). esquecimento, e o Estado, abrasado por
! guerras civis, renasce, por assim dizer, das
Uma arte que, fora do âmbito ideal do suas cinzas e retoma o vigor da juventude,
Contrato, precisa levar em conta costumes e saindo dos braços da morte (ROUSSEAU,
fatos, ou seja, o grau de "civilidade", de 1897: 102).
"desnaturação" de uma sociedade: assim !
age Rousseau ao fazer leis para a Polônia. Assim, à própria crítica de que tudo não
O próprio Rousseau, lembra-nos Milton passa de uma secularização da tópica
Meira do Nascimento, escreve no início do agostiniana, opõem-se um embate com
Contrato "se fosse príncipe ou legislador, épocas violentas, guerras civis, ciclos de
não perderia meu tempo dizendo o que desenvolvimento, ou o que Adorno chama
deve ser feito; haveria de fazê-lo ou calar- de “mergulho no empírico”. Não há como
me". Ou seja, "quando se impõe uma ação pensar uma noção de progresso, desde a
ao nível da prática política concreta, a sua primeira proto-história em Agostinho,
pergunta mais adequada não é sobre o que sem pensar em uma razão que se destaca
devemos fazer, mas sobre o que podemos da natureza não só para dominá-la, mas
fazer” (NASCIMENTO, 1988: 120). também – em um movimento dialético –
! para voltar à ela e torná-la outra, concreta.
Se, para Rousseau, todas as sociedades O progresso, portanto, mesmo em sua
decaem, para Voltaire, mesmo durante o forma mais instrumental, precisa ser um
mais luminoso século de progresso, há sol no horizonte do pensamento, sua
limites, há uma parcela da população ainda forma “histórica” – acusá-lo de meramente
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Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea
Brasília, vol 2, nº 1, 2014.
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Rousseau e Voltaire: duas perspectivas para a história moderna
8 Como discute Adorno, tomada em uma visada unilateral, a noção de progresso aparece ora como
“crença”, ora como ideologia instrumental. A noção que nos interessa, entretanto, é aquela em que “o
conceito de progresso é dialético no rigoroso sentido não-metafórico do termo, de que a razão, seu órgão,
é uma; de que nela não convivem justapostas uma camada dominadora da natureza e uma reconciliadora,
mas ambas compartilham todas as suas determinações” ADORNO, “Progresso”, In: Lua Nova , nª 27, p.
227. Ou seja, facticidade e racionalidade são as duas faces dialéticas do movimento em questão.
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Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea
Brasília, vol 2, nº 2, 2014.
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Priscila Rufinoni !