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Rousseau e Voltaire: duas perspectivas Rousseau and Voltaire: two
para a história moderna perspectives for modern history
Priscila Rossinetti Rufinoni !
Professora-adjunta !
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Departamento de Filosofia UnB !
Resumo: Este artigo procura pensar qual a Abstract: This paper shows how important
importância da noção de “liberdade” para the concept of ‘freedom” to the concept of
o conceito de história em Rousseau e ‘history” in Rousseau and Voltaire. In both
Voltaire. Em ambas as perspectivas de approaches, the modern history follows of
abordagem, a história moderna segue uma the teleological standards or there is a
space for political action?
norma teleológica ou há um espaço para a
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ação política?
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Palavras-chave: História, Rousseau, Keywords: Rousseau, Voltaire, freedom of
the action
Voltaire, liberdade de ação
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Rousseau e Voltaire: duas perspectivas para a história moderna

! gradação que se dá no tempo, em uma


! visada histórica – da Antiguidade para o
! mundo moderno –, passível também de ser
! percebida, como em um microcosmo,
! entre os homens reais nos graus de
! "civilidade" das comunidades contemporâneas.
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! Voltaire, em suas reflexões sobre a história,
! reconhece-a como instrumento de desvelamento,
! apesar de suas origens fabulosas: "a História é
"...existe um encontro secreto, marcado entre as a narração de fatos verdadeiros, ao contrário
gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra da fábula, narração de fatos considerados
está a nossa espera. Nesse caso, como a cada falsos". E ela é, assim, útil ao desenvolvimento
geração, foi-nos concedida uma frágil força humano, pois "nos mostra nossos direitos e
messiânica para a qual o passado dirige um apelo. deveres sem ter a aparência de nos querer
Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O ensiná-los". Como para Rousseau, não é o
materialismo histórico sabe disso" historiador de Voltaire um pintor de
(BENJAMIN, Sobre o conceito de história, "retratos fortemente coloridos", nem um
Tese 2) comerciante de "verdades", não lhe é lícito
! revelar detalhes sem influências nos
Ao pensar sobre as vantagens do estudo da negócios públicos apenas pelo gosto da
história no Emílio, Rousseau escolhe a sátira. "É preciso admitir que a maioria dos
historiografia da Antiguidade: história escritores de anedotas é mais indiscreta do
melhor, de homens melhores, pois que útil. Mas, que dizer dos compiladores
"essencial", anterior à degradação então em insolentes que, fazendo da maledicência
curso na "modernidade". Ao contrário dos mérito, imprimem e vendem escândalos
homens antigos, não há homens modernos como se estivessem vendendo peixe?".
exemplares, todos se parecem porque Mas, se Voltaire reconhece esse sentido
aceitam a "aparência", a máscara, o puro "pedagógico" da história, reconhece
"retrato colorido", não nos mostrando seus também um uso "doutrinário", cristão, que
atos, mas os véus do discurso que encobrem, vê exemplos nos atos dos santos, lendo
obscurecem. Não há necessidade de pelo enfoque bíblico todos os acontecimentos,
"História" para povos que se parecem, que fazendo-os culminar em uma "providência
se repetem, como não há retrato de divina". Uma história feita de santos e
homens sem fisionomia: na era moderna, a marcada por uma Idade do Ouro perdida
própria história é apenas uma máscara de (seja ela localizada na Bíblia ou na
interesse, um aspecto ilusório, artificial, um Antiguidade). Para Voltaire,
"retrato fortemente colorido". Opondo-se !
à máscara civilizada, Rousseau, como atualmente usa-se a história de um modo
Montaigne, quer um "retrato segundo a muito esquisito. Desenterram-se constituições
natureza", encontrado entre os antigos, na suspeitas e mal compreendidas, datando da
história escrita; entre os aldeões mais que época de Dagoberto, e quer-se que voltem a
entre os citadinos, no mundo real. O vigorar mais os costumes, os direitos, as
desenvolvimento humano mostra-nos uma prerrogativas de antanho. Os historiadores
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que assim procedem seriam como um realidade histórica, interessa pensar o que
homem que chegasse à praia e dissesse ao não é "natural", o que é parte de um
mar: outrora banhavas Águas-mortas, contrato, ou seja, como se estabelece a
Frejus, Ravena, Ferrara. Retorna sociedade civil. A única sociedade "natural"
imediatamente para lá! (VOLTAIRE, é a família, ainda assim constituída
1987: 203-209).1 "naturalmente" apenas durante o período
! em que os filhos necessitam dos pais. Se
Mesmo levando em conta o tom polemista não há sociedade natural, não há direito
do Dicionário Filosófico de Voltaire, cujo natural: "a ordem social, porém, é um
verbete "Lei Natural" chega a nomear direito sagrado que serve de base a todos
"Jean-Jacques" como um dos "pais da os outros. Tal direito, no entanto, não se
Igreja moderna", evangelista ou bel-esprit origina na natureza: funda-se, portanto, em
disposto a contrariar o senso comum no convenções." (ROUSSEAU, 1987: 22-23).
que diz respeito à propriedade e à indústria Se todos os laços civis são convencionados,
como imprescindíveis para o desenvolvimento da do ponto de vista do direito, e não dos
humanidade, é claro o posicionamento do fatos, Rousseau pode pensar se é ou não
autor contra a perspectiva histórica da legítima a escravidão, o poder instituído e a
decadência, tanto quanto contra a propriedade sem recorrer ao exemplo
perspectiva da redenção cristã. E mais, ao factual: a história deve ser julgada segundo
brincar com o duplo nome de evangelistas o direito, e não o contrário. Tomar a
de seu rival, Jean-Jacques, Voltaire associa a escravidão como legítima porque assim
história cristã à história deste "animal bem vemos na realidade é um bom exemplo de
insociável", Rousseau.2 Redenção ou como tomar o efeito pela causa, e
decadências, ambas as perspectivas para estabelecer o direito pelo fato:
Voltaire não levam em conta senão !
preconceitos "religiosos", obscurantistas, Aristóteles tinha razão, mas tomava o
que escondem a luminosidade das efeito pela causa. Todo homem nascido
industrias humanas quando libertas das na escravidão, nasce para ela; nada
superstições. mais certo. Os escravos tudo perdem
! sob seus grilhões, até o desejo de escapar
Rousseau realmente faz alusão a uma deles [...] Se há, pois, escravos pela
espécie de Idade do Ouro, localizada fora natureza, é porque houve escravos
da "história civil", mas, se esse mundo contra a natureza (ROUSSEAU,
mítico é bastante trabalhado nos dois 1987: 24-25).
Discursos, não é o tema do Contrato Social. !
No Contrato, Rousseau trata como irrelevante Já no Emílio, a história não é fonte de
ter ou não existido tal período de inocência exemplos morais, é esse pano de fundo
humana, pois o tema foi abordado no para o estudo dos "homens como são" a
Discurso sobre a desigualdade, não importa sua fim de pensar as "leis como podem ser":

1 No Dicionário Filosófico, verbete "História".


2 Idem, verbete "Lei Natural", pp. 230-231.
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Rousseau e Voltaire: duas perspectivas para a história moderna

"através dela Emílio poderá ver os homens um deserto para a liberdade e a virtude do
de longe, em outros tempos e lugares [...] corpo social. Pensar antes no produto da
Observando o espetáculo do mundo dos divisão – as lindas cidades – é tomar o fato
homens através da história, ele será um pelo direito. Quanto mais desigual é uma
espectador sem interesse e sem paixão, sociedade, mas ela se afasta, naquela escala
como juiz, e não como cúmplice ou estabelecida no Contrato, das leis de direito
acusador" (SOUZA, 2001: 48). De fora da em direção às leis estabelecidas segundo a
sociedade, de qualquer sociedade, o homem contingência dos interesses particulares,
pode julgar sem interesse particular; como estabelecidas segundo os fatos. Cidades
esse ponto de vista não existe antes da industriosas, desenvolvimentos científicos e
sociedade, ou seja, como não há para artísticos não passam, então, de "guirlandas
Rousseau uma "humanidade" anterior ao de flores sobre cadeias de ferro".
contrato social, a reflexão já pressupõe o !
fim do estado de natureza, o Contrato quer Pela perspectiva do direito, a liberdade em
ser um texto para refletir, uma escala de Rousseau é definida e circunscrita pelo
gradação para "indagar se pode existir, na espaço político; ser livre, passada a
ordem civil, alguma regra de administração primeira época ingênua, é o homem seguir,
legítima e segura, tomando os homens como como cidadão, as leis criadas por ele
são e as leis como podem ser" (ROUSSEAU, mesmo, por sua vontade subsumida à
1987: 21). vontade geral, como soberano. Qualquer
! perigo para a vontade geral soberana –
Ao estabelecer como um dos princípios quaisquer desigualdades internas no corpo
universais de justiça a legitimidade das social – afeta a liberdade de todos os
posses, Voltaire acusa Rousseau de não cidadãos. Assim, podemos julgar pela
reconhecer, contra o que o mundo inteiro escala do Contrato o grau de liberdade nas
leva a sério, esse direito natural à propriedade sociedades históricas (e Rousseau faz várias
e seus efeitos benéficos. "Pois, em lugar de alusões aos exemplos factuais), sem precisar
ir estragar o terreno do vizinho sensato e recorrer às "aparências" de liberdade (caso
industrioso, só teria de imitá-lo, e, cada pai da Inglaterra), de progresso científico ou
de família tendo seguido este exemplo, uma artístico; sem tomar o fato – dado sempre
linda cidade logo se teria formado" (VOLTAIR, obscurecido por suas "cores", suas
1987: 130).3 Com as premissas do Contrato "máscaras" – como ponto de partida.
Social, Rousseau poderia responder às Voltaire, ao definir liberdade já define uma
acusações de Voltaire no verbete "Lei perspectiva diversa de visar a história:
Natural": não há propriedade privada "liberdade é unicamente o poder de
instituída como "lei natural"; e mais, se o agir" (VOLTAIRE, 1987: 75)4; ou, como
avanço da propriedade privada e a divisão fica claro no diálogo do verbete "Liberdade"
de trabalhos que essa "diferença" entre os do Dicionário Filosófico:
homens veio a acarretar é o solo fértil para !
todas as artes e as ciências, para as A – Em que consiste pois a vossa
industriosas cidades, na medida inversa, é liberdade senão no poder que a vossa

3 . Dicionário Filosófico, verbete "Lei Natural".


4 . Tratado de Metafísica.
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individualidade exerceu ao fazer o que do poder real e a participação "sem


vossa vontade exigia com absoluta confusão" do povo – "a nação inglesa é a
necessidade? única na terra que chegou a regulamentar o
B – Estais a embaraçar-me; a liberdade poder dos reis resistindo-lhes" (VOLTAIRE,
não é, pois, senão o poder de fazer o que 1987: 13)6 –; e, em seu comércio, a
quero? prosperidade. Neste último caso, os
A– Refleti e vede se a liberdade pode ser industriosos ingleses são mais ricos, mais
entendida de outra maneira. livres que seus vizinhos, porque, por uma
B – Nesse caso, o meu cão de caça é tão circularidade, prosperidade gera liberdade e
livre como eu; tem necessariamente de liberdade, mais prosperidade: "enriquecendo
correr quando avista uma lebre e o poder os cidadãos ingleses, o comércio contribuiu
de correr se não estiver mal das pernas. para torná-los mais livres, e, por sua vez, a
Portanto, nada tenho de superior ao meu liberdade ampliou o comércio. A grandeza
cão e vós reduzis-me à condição dos do Estado veio como conseqüência" (VOLTAIRE,
animais. 1987: 16)7. Fica claro, neste trecho, que
A – Eis os pobres sofismas dos pobres Voltaire dá prioridade à instância material e
sofistas que vos instruíram. Eis que ficais cultural, aos costumes, à liberdade
doente só de verdes livre como o vosso cão. individual de ação, em detrimento daquela
E então? Não vos assemelhas ao vosso cão liberdade civil de Rousseau. Não há
em tantas coisas? A fome, a sede, o prevalência do espaço político no
despertar, o dormir, os cinco sentidos não pensamento de Voltaire: a grandeza do
são comuns em vós e em vosso cão? Estado, a grandeza propriamente política, é
Desejaríeis ter olfato sem ter nariz? Por "conseqüência" de um mundo no qual a
que desejais ter liberdade de maneira propriedade gera riquezas e igualdade, é
diferente da dele? (VOLTAIRE, 1987: conseqüência daquelas industriosas cidades
237). geradas pelo progresso da cultura.
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Liberdade é liberdade de ação. Por que A importância da história, deste outro
desejaria o homem uma forma mais ponto de vista de Voltaire, é estudar os
"teológica" de ser livre? No âmbito factual, ciclos de progresso, de prosperidade
um país onde vigora a liberdade é aquele cultural pelos quais passou a humanidade;
no qual há espaço para agir sem coerções e o estudo da história moderna, do
excessivas. Para Voltaire, o povo inglês é "renascimento das artes e das ciências" até
exemplo de povo livre, pois vigora em seus a contemporaneidade, mais produtivo do
costumes a tolerância religiosa – "um que se debruçar sobre a Antiguidade, sobre
inglês, como homem livre, vai para o céu uma história ainda fabulosa, obscura,
pelo caminho que lhe agradar" (VOLTAIRE, aquela que Rousseau prescreve aos jovens
1987: 9)5; em seu governo, a regulação sábia no Emílio. A diferença entre "história

5 Cartas Inglesas.
6 Cartas Inglesas.
7 Cartas Inglesas.

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Rousseau e Voltaire: duas perspectivas para a história moderna

fabulosa" (a antiga) e "história filosófica" (a argumento sobre a importância do


moderna) feita por Voltaire é a oposição comércio para a liberdade: séculos
entre narração supersticiosa e narrativa progressistas geram espíritos mais refinados
esclarecida, não entre essência e máscara, cujas ações tolerantes e industriosas
entre uma época ingênua e melhor e um impulsionam o progresso. Mas, nesse
mundo de homens mascarados pelo movimento circular não há uma norma
refinamento cultural, um mundo onde teleológica laicizada, "uma 'crença' na
guirlandas de flores escondem grilhões inevitabilidade do progresso. O progresso é valor
como pensa Rousseau. Em Le Siècle de Louis a ser realizado pela ação humana" (SOUZA,
XIV, Voltaire acredita que este foi o século 2001: 149). Um valor cultural, idealista,
"mais esclarecido que existiu", coroando os buscado pela liberdade.
ciclos de progresso da história – o século de !
Péricles, o de Augusto, o do Renascimento Como para Rousseau esse acúmulo de
Italiano: se a história não é sempre "progressiva", "cultura", essa proliferação das "artes" é
havendo ciclos de "obscurantismo" que podem apenas uma das máscaras da escravidão,
retornar, o progresso parece ser cumulativo. em sua história não há progresso, mas
O quarto século luminoso da história, decadência constante. Todas as sociedades
aquele de Luís XIV, é o que chegou à tendem a distanciar-se cada vez mais da
maior perfeição, pois as artes cultivadas ingenuidade primordial e do primeiro
pelo rei penetram os espíritos, refinando- contrato firmado, movidas pelas tensões
os. A verdade não está mais apenas com os internas entre as vontades particulares e a
Médicis, os Augustos e Alexandres, "mas a razão vontade geral, tensões ainda mais agravadas
humana em geral se aperfeiçoou" (VOLTAIRE, pela desigualdade que dá a partes do corpo
1957: 3). Uma grande revolução espraiada tanto social mais poder, mais força particular.
nas artes, quanto nos espíritos, nos Assim, a história da Antiguidade narra a
costumes, nos governos. vida de homens exemplares; a história
! moderna, pinta os retratos "artísticos" da
Alguns autores vêem nesse ciclo descrito desigualdade: o processo de aperfeiçoamento
por Voltaire uma laicização da história cultural que para Voltaire é "esclarecimento"
cristã agostiniana, trocando-se apenas a dos espíritos, para Rousseau é "desnaturação":
"Providência" pelo "Progresso": em ambas !
as versões, a história é normativa e O corpo político, como o corpo do homem,
teleológica. Mas, se a história para Voltaire começa a morrer desde o nascimento e traz
é feita de ciclos que se somam em um em si mesmo as causas de sua destruição.
aperfeiçoamento constante, estes séculos Mas um ou outro podem ter uma
luminosos não são necessários, são constituição mais ou menos robusta e capaz
contingentes, condicionados, os sucessos de conservá-lo por mais ou menos tempo. A
demandam aquela liberdade de ação, constituição do homem é obra da natureza, a
demandam, portanto, o trabalho dos do Estado, obra de arte. (ROUSSEAU,
séculos no cultivo de espíritos menos 1987:102).
bárbaros e mais esclarecidos capazes de !
guiarem-se em direção à cultura, à Uma outra laicização da história agostiniana,
tolerância e à prosperidade material. só que em direção oposta à da redenção?
Circularidade parecida com aquela do Apesar dessa linha declinante em direção à
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decadência, também para Rousseau, como para apartada das luzes da razão; e o déspota
Voltaire, não há uma norma incondicionada esclarecido pode também ser o rei
guiada seja pela Providência, seja pelo sanguinário, há sombras mesmo no
Progresso, pelo menos não para a otimismo cosmopolita; há sempre um
"sociedade artificial"; se as sociedades vão monstro de obscurantismo, as várias
caminhar irremediavelmente para a cabeças da "infame", incitando aos
decadência, ainda há uma instância ativa, homens, à razão, tomarem seu lugar na
uma "arte" humana e racional capaz de arena da história. Por outro lado, do ponto
constituir corpos artificiais mais ou menos de vista de observador desinteressado e
robustos, mais ou menos afeitos a protelar pessimista da história, dessa história da
o fim inevitável. É uma "arte" essa descrita decadência, Rousseau também vislumbra,
idealmente no Contrato, uma arte de na derrocada de uma sociedade civil, uma
equilibrar harmonicamente as tensões das nova juventude do homem, de onde ele
vontades particulares e enfeixá-las na pode trazer novamente a força revolucionária
vontade geral: da mudança social:
! !
Não depende dos homens prolongar a Épocas violentas, nas quais as revoluções
própria vida, mas depende deles prolongar fazem sobre os povos aquilo que algumas
a do Estado pelo tempo que for possível, crises fazem sobre os indivíduos; em que
dando-lhe a melhor constituição que possa horror do passado toma o lugar do
ter (ROUSSEAU, 1897: 102). esquecimento, e o Estado, abrasado por
! guerras civis, renasce, por assim dizer, das
Uma arte que, fora do âmbito ideal do suas cinzas e retoma o vigor da juventude,
Contrato, precisa levar em conta costumes e saindo dos braços da morte (ROUSSEAU,
fatos, ou seja, o grau de "civilidade", de 1897: 102).
"desnaturação" de uma sociedade: assim !
age Rousseau ao fazer leis para a Polônia. Assim, à própria crítica de que tudo não
O próprio Rousseau, lembra-nos Milton passa de uma secularização da tópica
Meira do Nascimento, escreve no início do agostiniana, opõem-se um embate com
Contrato "se fosse príncipe ou legislador, épocas violentas, guerras civis, ciclos de
não perderia meu tempo dizendo o que desenvolvimento, ou o que Adorno chama
deve ser feito; haveria de fazê-lo ou calar- de “mergulho no empírico”. Não há como
me". Ou seja, "quando se impõe uma ação pensar uma noção de progresso, desde a
ao nível da prática política concreta, a sua primeira proto-história em Agostinho,
pergunta mais adequada não é sobre o que sem pensar em uma razão que se destaca
devemos fazer, mas sobre o que podemos da natureza não só para dominá-la, mas
fazer” (NASCIMENTO, 1988: 120). também – em um movimento dialético –
! para voltar à ela e torná-la outra, concreta.
Se, para Rousseau, todas as sociedades O progresso, portanto, mesmo em sua
decaem, para Voltaire, mesmo durante o forma mais instrumental, precisa ser um
mais luminoso século de progresso, há sol no horizonte do pensamento, sua
limites, há uma parcela da população ainda forma “histórica” – acusá-lo de meramente
!
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Rousseau e Voltaire: duas perspectivas para a história moderna

supersticioso ou positivista é recair em uma espontâneo”, mas esquece que, desde


positividade, aquela da contingência pétrea Agostinho, a própria interioridade é
e factual, ainda maior e mais irremediável, historicamente constituída, pois “a
plano de objetividade esquecida da razão subjetividade móvel não pode ser concebida
que a põe como objeto. Já em Agostinho, de fora da trama social”. Exatamente quando
é a entrada do factual, do histórico no a Cidade de Deus separa de si uma cidade dos
curso teleológico da redenção que abre homens, a interioridade configura-se como função
espaço à dualidade, à necessidade de uma histórica externa à graça (ADORNO, 1992:
razão humana como motor da história, 230).
portanto, há nesse caminho tanto o lastro !
– que Adorno chamará de mítico – com a Opostas, as duas perspectivas da história
natureza, quanto a “irresistível secularização” avançadas por Rousseau e Voltaire podem
da noção de progresso, pois o que se ser entendidas à luz de Adorno. Assim, não
desenvolve no tempo necessariamente se nos parecem apenas laicizações da
“enreda no empírico”. Tal noção não pode se redenção cristã, em sua interpretação mais
dar apenas na subjetividade, na interioridade simplista, pois em ambas as visões há
orante (ou cognoscente), pois “sem a brechas para a ação, para a "liberdade", seja
sociedade, sua ideia [a de progresso] seria ela a autodeterminação de Rousseau, ou a
inteiramente vazia, todos os seus elementos possibilidade de agir de Voltaire. Existe
derivam dela” (ADORNO, 1992: 222). uma "frágil força" de mudança. Em ambas
! as filosofias da história vive uma vontade
Acusar também o “progresso” de mera de romper com a norma da linha reta em
crença, nunca confirmada pela história – ou direção ao fim dos tempos marcados por
se podemos dizer, julgar o direito pelo fato, uma graça exterior ao móvel humano,
como vimos em Rousseau – é uma investida romper com o continuum; vive uma reflexão
muito mais do século XIX que do século histórica sob perspectiva humana, como
XVIII; século XIX no qual a burguesia construção humana, como "artifício", para
sedimentada em suas relações já estáticas, o bem e para o mal. Os críticos da noção
acusa o operariado do congelamento a que de história como progresso criada no
ela, enquanto classe então estabelecida, século de Rousseau e Voltaire – noção
submeteu a dialética ulterior do progresso. As depois, no século XIX, transformada em
críticas são, então, contraditórias, pois nivelam ideologia, em norma positivista8 – não
as posições tensas de onde se originaram as deixaram de notar que esse uso novo, esse
próprias condições de possibilidade das uso "comprometido" das narrativas
perspectivas críticas. A ideia de interioridade, históricas cujas perspectivas, política em
por exemplo, que seria um corretivo avançado Rousseau, cultural em Voltaire, afastam-se
pelos existencialismos à noção de progresso, lentamente tanto da Providência quanto do
busca um “conceito ontológico de subjetivismo

8 Como discute Adorno, tomada em uma visada unilateral, a noção de progresso aparece ora como
“crença”, ora como ideologia instrumental. A noção que nos interessa, entretanto, é aquela em que “o
conceito de progresso é dialético no rigoroso sentido não-metafórico do termo, de que a razão, seu órgão,
é uma; de que nela não convivem justapostas uma camada dominadora da natureza e uma reconciliadora,
mas ambas compartilham todas as suas determinações” ADORNO, “Progresso”, In: Lua Nova , nª 27, p.
227. Ou seja, facticidade e racionalidade são as duas faces dialéticas do movimento em questão.
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destino cíclico, podia estar carregado de !


possibilidades revolucionárias: Referências Bibliográficas:
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A história é objeto de uma construção cujo ADORNO, Theodor W. “Progresso”, In:
lugar não é o tempo vazio e homogêneo, Lua Nova, nº 27, São Paulo, dez
mas um tempo saturado de ‘agoras'. 1992.
Assim, a Roma antiga era para !
Robespierre um passado carregado de BENJAMIN, Walter, "Sobre o conceito de
'agoras', que ele fez explodir do continuum história", In: Obras escolhidas – magia e
da história. A Revolução francesa se via técnica, arte e política. 3ªed. Trad. Sérgio
como uma Roma ressurreta. Paulo Rouanet. São Paulo:
! Brasiliense, 1987.
A história não precisa ser um tempo e !
espaço homogeneamente constituído, uma NASCIMENTO, Milton M. "O Contrato
linha em direção a algo, os momentos social – entre a escala e o programa".
podem ser pensados em sua constituição In: Revista Discurso. São Paulo, nº 17,
própria. E essa visada, quando se dá na 1988.
arena das classes dominadas pode ser "o !
salto, sob o céu livre da história, é o salto SOUZA, Maria das Graças de. Ilustração e
dialético da Revolução, como o concebeu História, o pensamento sobre a história no
Marx”. (BENJAMIN, 1987: 229-230). iluminismo francês. São Paulo: Discurso
! editorial, 2001.
! !
! ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato
! S o c i a l . Tr a d . L o u r d e s S a n t o s
! Machado. In: Os Pensadores. São
! Paulo: Nova Cultural, 1987.
! !
! VOLTAIRE. Os Pensadores. Trad. Bruno de
! Ponte et al. São Paulo: Nova Cultural,
! 1987.
! !
! __________.Le Siècle de Louis XIV. Paris:
! Garnier, 1957 (vol. I).
! !
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