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Vivar, Fabián; Barros, Lucas (2021).

“Superfícies reencantadas: análise prático-teórica


da curta-metragem “Há Uma Profeta nas Olaias, tenham cuidado!”. Interact. Revista
Online de Arte, Cultura e Tecnologia. Objetos encontrados como prática de Pesquisa. N.
35. Novembro. Universidade Nova de Lisboa. FSCH: Lisboa.

Título:

Superfícies reencantadas: análise prático-teórica da curta-metragem “Há Uma


Profeta nas Olaias, tenham cuidado!”

Resumo:

O presente artigo se aprofunda no estudo da construção do ficcional a partir de


objetos encontrados de uma maneira prático-teórica. Utilizando como base a curta-
metragem HÁ UMA PROFETA NAS OLAIAS, TENHAM CUIDADO!, de Lucas
Camargo de Barros (2021) 1, propomos dissecar o objeto fílmico, problematizar suas
implicações diante do real para, em seguida, reinseri-lo no mundo. Em paralelo à análise
do processo criativo que envolve um dos autores deste artigo, propomos uma maneira de
dissolver essa narrativa em outros tempos e espaços. Ao infiltrar com outras histórias e
objetos a ferramenta cartográfica hegemônica GoogleMaps, buscamos subverter e
reocupar esse espaço virtual de modo a reencantar superfícies através da sombra da
Profeta.

Palavras-chave:
Arquivo em movimento – arqueologias ficcionais – territorialidade/identidade – contra-
cartografias.

Introdução

“Há uma profeta nas Olaias, tenham cuidado!” é uma curta-metragem dirigida por
Lucas Camargo de Barros (co-autor deste artigo). Realizada em Lisboa, nas vésperas do
primeiro confinamento da COVID-19 em Março de 2020, a narrativa parte de uma

1 Realizado por Barros e com assistência de realização de Vivar, o filme teve a sua estreia mundial em julho
de 2021 durante o 32º FIDMarseille (França).
1
imagem de arquivo em movimento depositada na Cinemateca Portuguesa para se
expandir para outros imaginários. Entendemos o filme como uma não-história
(Chakrabarty, 2000), tecida a partir de materiais de arquivo colocados em três camadas
principais em fricção: imagens de arquivo “Incursões Monárquicas” (1911), disponíveis
na Cinemateca Portuguesa, memórias da história pessoal do realizador (Aumont 2001) e
a narrativa da personagem central chamada de A Brasileira. Em colaboração com as
atrizes Josefa Pereira e Anapaula Cersnick, além da equipa técnica-artística, a história
desta mulher rompe tempos e espaços e contribui para problematizar a exclusão gerada
pelo sistema sexo-gênero (Lugones 2014). A narrativa inicia-se em 1911, após a
implantação da República Portuguesa e o processo de secularização do Estado ganha
força. A Brasileira faz milagres na Zona das Olaias, em Lisboa, e é perseguida por sua fé
não-normativa. Atravessada pela busca de uma bebê perdida, acontece um encontro
amoroso entre duas mulheres e uma ânsia de vida diante da morte, fazendo a curta-
metragem viajar do início do século XX para o século XXI onde o afeto ganha espírito e
uma nova carne.
Neste artigo, ao passo que problematizamos a ideia de arquivo, propomos também
criar uma extensão geo-virtual da narrativa com a navegação num mapa que recompõe os
resquícios da Profeta pela zona das Olaias.
[https://www.google.com/maps/d/u/0/edit?mid=14j3Qlc_AE7SwtihB9N1R4M5bp0locOV-
&ll=5.679627238252994%2C-7.940645413949461&z=3 ]

Arquivos encontrados e reencantados

O material de arquivo central deste trabalho é intitulado “Incursões Monárquicas”


e é uma obra de autor desconhecido, depositado na Cinemateca Portuguesa com duração
de 12 minutos, rodado em um 35 mm preto e branco silencioso. Barros se deparou com
estas imagens em suas pesquisas sobre esse período tão importante da história moderna
portuguesa com um objetivo de questionar a dimensão de “institucionalização do
arquivo” (Mbembe 2002). Trata-se de problematizar as narrativas, imaginários e lógicas
de estatalidade que impõem às técnicas de arquivamento, mesmo quando elas tentam
desafiar os discursos oficiais.
Existe uma intencionalidade etnográfica e arqueológica na manipulação dos
arquivos utilizados. Analiticamente, este processo contribui a imaginar outros tempos e
histórias possíveis e é um processo de cura ritual para o autor e a sua memória pessoal.

2
Daí que ele inclui simbologia, drama e uma trama que se afasta do lugar asséptico onde
descansam os arquivos históricos, dando movimento e recriando a memória corporal e
territorial.
Os processos de secularização do Estado Português foram marcantes e até hoje se
fazem presentes na cidade de Lisboa (grandes e importantes construções como a Escola
de Belas Artes e o antigo Convento de Chelas [
https://www.google.com/maps/d/u/0/edit?mid=14j3Qlc_AE7SwtihB9N1R4M5bp0locO
V-&ll=5.679627238252994%2C-7.940645413949461&z=3 ] foram desapropriadas com
a extinção das ordens religiosas em 1834 2). A conexão profunda, promíscua e por vezes
criminosa do Estado Português com a Igreja Católica foi um elemento histórico que
rasgou a subjetividade de sujeitos e sujeitas ao longo de séculos 3.
O filme revela um processo de colonização corpo-territorial, representando
mecanismos de despojo e violência que deixou feridas nesta personagem-corpo chamada
de A Brasileira (não fortuitamente seu nome já diz sobre seu lugar de alteridade). O
colonialismo enquanto uma estrutura vigente e complexa obriga a entender os processos
de desenraizamento das nossas realidades, impondo-se em nossa situação diaspórica e
transformando os significados de viver em sociedades ainda coloniais na Europa.
Portanto, a Profeta, originária do Brasil, representa uma de tantas histórias silenciada pelo
colonialismo português, onde tal influência mostrou-se extremadamente violenta —seja
no genocídio indígena e negro ou no controle dos corpos femininos-. Nas palavras de
Federici:

Por trás da nova filosofia encontramos a vasta iniciativa do Estado, a partir da qual o que os
filósofos classificaram como “irracional” foi considerado crime. Esta intervenção estatal foi
o “subtexto” necessário da filosofia mecanicista. O “saber” apenas pode converter-se em
“poder” se conseguir fazer cumprir suas prescrições. Isso significa que o corpo mecânico, o
corpo-máquina, não poderia ter se convertido em modelo de comportamento social sem a
destruição, por parte do Estado, de uma ampla gama de crenças pré-capitalistas, práticas e
sujeitos sociais cuja existência contradiz a regulação do comportamento corporal prometido
pela filosofia mecanicista. É por isso que, em plena Era da Razão -a idade do ceticismo e da
dúvida metódica-, encontramos um ataque feroz ao corpo, firmemente apoiado por muitos
dos que subscreveram a nova doutrina (Federici 2011, 217).

2 A extinção das ordens religiosas em Portugal ocorreu no contexto da consolidação do Liberalismo no


país, ao final da Guerra Civil Portuguesa (1828-1834).
3 O processo de laicização do Estado, desde a nossa perspetiva, é um dos mitos não concluídos da

modernidade ocidental. Ao longo da história ele nunca foi uma realidade, pelo contrário, a grande parte das
políticas e organizações dos Estados ocidentais respondem às necessidades de uma religião única. O
laicismo serviu também para apagar outras formas de espiritualidade de matriz indígena e africana em
contextos pós-coloniais (Cfr. Dussel 1980; Santos 2013).
3
A Brasileira não existe nos arquivos oficiais do Estado ou na biblioteca colonial
(Mudimbe 1988). Mas a necessidade de construí-la nesta narrativa, marcada por afetos e
poderes mágicos proibidos, é um gesto de subversão da própria história (Chakrabarty
2000); (Guha 1999); (Spivak 1988). Para além desta metodologia de ficcionalização
etnográfica dessa personagem, é importante dizer que outras tantas mulheres viveram um
processo correlato e, de fato, sofreram nas mãos da Inquisição. Rosa Egipcíaca (1719 –
1778) foi uma delas. Mulher nascida na África e sequestrada como escrava para o Brasil,
nos chama a atenção por sua trajetória de subversão do corpo e espírito diante das regras
católicas. A magia, desejo e perseguição de sua história (pelo menos a oficial), ecoam na
história de nossa Profeta - veja a biografia de Rosa Egipcíaca disponível no mapa.
[https://www.google.com/maps/d/u/0/edit?mid=14j3Qlc_AE7SwtihB9N1R4M5bp0loc
OV-&usp=sharing]
Reconhecemos a potencialidade e porosidade que o pensamento ficcional
proporciona na prática cinematográfica, não só ao valorizar o conhecimento crítico e
situado, sobretudo pela sua capacidade de reinvenção. Existe nessa intermediação da
História e de nosso olhar um esforço em “iniciar conversas não inocentes por meio de
dispositivos protéticos, incluindo nossas tecnologias de visualização” (Haraway 1988,
594). Deste modo, as personagens no filme, enquanto agentes da história, são capazes de
narrar outras versões que estão além da divisão, da vitimização, da invisibilidade e da
carência que servem para reconstruir arquivos e memórias pessoais e coletivas.
Na entrevista realizada para o festival FIDMarseille, Barros detalha parte deste
processo criativo micropolítico:

Nathan Letoré: A história é narrada como um conto infantil mas com “sobretítulos” ao
invés dos intertítulos clássicos. Porque escolheste esse formato específico?

Barros: Na verdade este filme é um documento sobre minha dificuldade de relação com
minha própria sobrinha. Eu em Portugal, ela no Brasil. E também nasce a partir de uma
vontade de registrar a zona das Olaias onde vivi meu primeiro ano em Lisboa. Da minha
janela via aquele espaço habitado por memórias que rondavam minha cabeça e que eu
queria poder contar para a Nina, minha interlocutora neste conto. Mas era difícil. Ela tão
pequena, ainda não entendia que o tio estava tão longe. Portanto, os “sobretítulos”
funcionam como mediadores dessa não-relação. E, diferente dos filmes silenciosos do
início do cinema, não queria que eles rompessem o filme com as telas pretas e textos.
Interessa-me mais a sobreposição, a invasão e a contaminação dessas vozes através da
palavra escrita, gráfica, imagética. Talvez assim ela pudesse me escutar melhor.
[https://fidmarseille.org/en/interview/]

4
Aqui fica claro o gesto central do filme: trata-se de destituir a hierarquia que a
história hegemônica tenta impor à vida das pessoas. Colocar o corpo da personagem em
meio às imagens das Incursões Monárquicas é, na prática, reencantar esse objeto
encontrado com outras camadas historiográficas com o objetivo de descolonizá-lo e
devolvê-lo ao curso da história com outra forma. O cinema, em especial, consegue com
a montagem construtivista criar outro significado a partir de um mesmo significante ao
colidir uma imagem com a alteridade. Assim, é importante frisar as decisões formais do
autor, como aquela que remete a um primeiro cinema silencioso e que atravessa uma
tradição soviética até a obra de C. T. Dreyer. Nesse sentido, Barros afirma:

Queria criar uma anti-história, reapropriar esse território das Olaias, misturando imagens
de arquivo antigo e outros “inéditos” (a relação entre arquivo real e ficcional para mim
não faz sentido). Utilizar esses artifícios que a história do cinema construiu me
interessava para, em alguma medida, poder negá-lo. O filme é uma história polifônica de
gêneros, formatos, artifícios, elementos. É quase uma conversa entre tempos, espaços
numa tentativa de alcançar aquela bebê que vivia em outro
lugar.[https://fidmarseille.org/en/interview/ ]

Nessa vontade de criar uma anti-história, fica evidente a maneira com que olhamos
para o objeto encontrado. Compreendemos que objetos de arquivo não estão apenas
presentes em matérias históricas -fotos, vídeos ou qualquer outra fisicalidade midiática-.
Na verdade, consideramos que o arquivo pode ser encontrado no mundo também de
maneira muito mais ampla e muito menos concreta. Por exemplo, acreditamos no arquivo
que criamos, em colaboração com a artista Josefa Pereira, na construção do corpo da
Profeta. Neste pequeno conto, os arquivos em movimento não estão limitados ao filme
de arquivo, pelo contrário, a grande potência exala a partir de outras formas de
expressividade tais como a música, rituais, sentimentos, discursos, e outras práticas não
verbais fundamentais para contar essa anti-história silenciada da Profeta. É através de
métodos mnemônicos difusos do realizador que eles são colocados em movimento na
ficção com o objetivo não só de contar um passado, mas de colocá-lo dentro da linha da
contemporaneidade. Sobre o processo de decantação de outras narrativas a partir de
escombros de memória, Barros afirma:

É importante frisar que eu, como brasileiro imigrante, me posiciono como estrangeiro
nesta área e mesmo neste período da história portuguesa. Neste pequeno filme, interessa-
me uma re-habitação de narrativas e territórios a partir da imagem. Queria fazer um filme
de anti-história, a partir de assombrações desse espaço. Quando utilizo imagens de 1911
e a narração que aterra o espectador em um tempo e espaço, é justamente para depois
poder flanar por outras zonas. Para isso, lanço mão de elementos da história hegemônica

5
sobre a transição da Monarquia para a República e uma negação do catolicismo como um
projeto (que logo depois retornou com toda força perversa na ditadura do Estado Novo).
Mas faço isso para então poder rasgar tudo - pois esse é um filme de afetos, não de
história. [https://fidmarseille.org/en/interview/ ]

Imagens reencarnadas

Com este filme, propomos uma espécie de abdução deste material de arquivo.
“Incursões monárquicas” pouco ou nada tem a ver com o contexto criado neste filme. O
deslocamento do seu contexto original 4 e a montagem justaposta com novas imagens de
arquivo, acaba por subverter seu significado. Não nos interessa o dado histórico preciso,
mas sim seu processo. Assim, ao ressignificar essas imagens propomos criar um conflito
entre a violência das imagens militarizadas com aquela da Brasileira em busca de afeto.
Desta maneira, o filme acaba por recriar o seu próprio arquivo em movimento dando
corpo, voz e poder a uma lenda de uma profeta que circula por esta zona de Lisboa. Barros
prossegue:

E sinto que a zona das Olaias e do vale de Chelas, região onde o filme foi rodado, é como
um território de transição entre uma Lisboa contemporânea (gentrificada, turística) e
outra que insiste em resistir (periférica, invisível). É uma área que mistura edifícios kitsch
e outras habitações sociais funcionais, em meio a construções que datam da Idade Média
e até ruínas romanas. Toda essa história coexiste neste vale e invadiu a janela do meu
quarto. Mas creio que este não é um filme para aprender o que é este espaço (eu, como
estrangeiro, acho que nunca consegui compreendê-lo totalmente). Este filme é apenas
uma tentativa de apreender essas não memórias e tentar rasgar, com amor, todas essas
distâncias. [ https://fidmarseille.org/en/interview/ ]

É neste rasgar do objeto encontrado reencantado que talvez resida o cerne de nosso
gesto. Segundo Diana Taylor, romper com o poder epistêmico e explicativo da cultura
eurocentrada - visual ou textual - é uma tarefa importante, não com o objetivo de apagar
a sua contribuição, mas para poder visualizar a estrutura de poder que invisibiliza a
diversidade de “cenários como paradigmas de criação de significado que estruturam
ambientes sociais, comportamentos e resultados potenciais” (Taylor 2003, 29).
Assim, o filme responde à necessidade de escutar as pequenas vozes, pensamentos
e racionalidades da história. Assim como nos parece ser d’A Profeta que, caracterizada
pelo seu lugar “da diferença” em diferentes contextos onto-epistemológicos, tem uma

4
As Incursões Monárquicas aconteceram um ano após a instauração da República no Estado Português
em 1910. Entre Outubro e Junho de 1912, as forças monárquicas fizeram duas incursões no solo
português que foram fortemente combatidas pelas vitoriosas tropas republicanas (Cfr. Moreira 2019).
6
grande potencialidade de agência e transformação. Trata-se de um procedimento
metodológico que possibilita construir uma história em plural. Assim, “dar voz e
aprender a ouvir as vozes silenciadas pela sua radical diferença, assume uma importância
crucial neste processo de tradução, uma forma de não cair nas armadilhas geradas pelo
indigenismo ou do essencialismo” (Meneses 2016, 21). Segundo o curador Nicolas
Feodoroff, “de um plano a outro, há magia em ação aqui, causando um curto-circuito nos
séculos. Jogando livremente com cores e cenários, Lucas Camargo de Barros nos oferece
uma fábula de repressão e suas possíveis rotas de fuga, em forma de homenagem ao
cinema mudo.”
[https://fidmarseille.org/en/film/a-prophet-is-among-us-watch-outha-uma-profeta-na-
olaias-tenham-cuidado/ ]
A Profeta das Olaias, neste sentido, é um arquivo diferente, um meta-texto onde
podem ser encontradas epistemologias não-ditas, produto dos silêncios gerados pelas
feridas coloniais no corpo e no pensamento dessas mulheres que sofrem as marcas do
capitalismo, colonialismo e heteropatriarcado. Utiliza subjetividades que contribuem para
imaginar novos objetos, espaços e expressividades. O procedimento etnográfico utilizado
procura, de fato, a desexotização de uma profeta com capacidade de trazer crianças para
a vida. A sua capacidade de sobrevivência “além mar” em tempos de apagamento das
outras práticas e formas de racionalidade e afetividade.

Superfícies reencantadas

“Eu não tenho medo.


nem do amor,
nem dos mortos.”

Afirma a criança interlocutora deste filme. A decisão em ter como ouvinte uma
criança acaba por subverter profundamente o caráter técnico ou histórico do primeiro ato
do filme. Para as crianças, não há compromisso com o real. Tampouco há nessas imagens.
O compromisso aqui é o de tentar reencarnar essas imagens com elementos extra-
fílmicos, principalmente nascidos do encontro de traumas, vivências, experiências
artísticas entre a tríade que se formou entre Barros, Pereira e Cesnirk. A bebê que chora
é de fato inspirada pela sobrinha que não nasceu de Barros (irmã de Nina, que escuta a
história), mas são também os filhos que Pereira e Cesnirk não tiveram ou que a sociedade
patriarcal pressiona a ter. Os elementos mágicos que povoam o filme atuam como uma
7
maneira de tentar dar luz e corpo a esses traumas. O trabalho da banda sonora (composta
a um oceano de distância por Maria do Mar em Portugal e Pedro Santiago no Brasil)
também remete a um cinema antigo.
O interesse deste artigo, finalmente, é contribuir com uma reflexão mais plural
sobre um processo de fabulação de objetos e superfícies encontrados em uma
reencarnação de espíritos/afetos desaparecidos (hooks e Hall, 2018). Assim assumimos
que:
Os objetos são projetos de fronteira. Mas as fronteiras mudam de dentro; os limites são
muito complicados. As fronteiras que contêm provisoriamente permanecem geradoras,
produtivas de significados e corpos. A localização (avistamento) de limites é uma prática
arriscada (Haraway 1988, 595).

Propomos continuar escavando como o rastro desta mulher poderia contaminar


outros tempos e espaços. Propomos uma manipulação do mapa das Olaias. Apoiando-nos
no caráter virtual e interativo desta publicação, convidamos o leitor e leitora a embarcar
em uma estranha arqueologia que a lançará na zona habitada pela Brasileira.

Considerações finais

Neste artigo tivemos como ponto de partida o processo de dissecação do objeto


fílmico, cujo objetivo foi inseri-lo no mundo. Procuramos uma construção arqueológica
ficcional a partir de arquivos encontrados, algumas vezes objetos concretos e outras nem
tanto, um procedimento metodológico que nos desafiou a fazer uma definição mais ampla
e complexa do termo arquivo para poder interpretar e ter uma leitura dessa realidade.
Dessa forma conseguimos colocar esses “objetos achados” em diálogo com os processos
de memorização individual e coletiva, tal como podem ser vistos no filme estudado.
Interferindo nos processos cartográficos, frequentemente marcados pela violência
das guerras territoriais e o sucessivo apagamento de identidades desviantes, propomos
estender a magia da Profeta para lugares insuspeitos. Interessa-nos reencantar e
reapropriar os territórios urbanos sempre tomados por uma lógica hegemônica-branca-
ocidental. Essa relação entre território e identidade vem a problematizar o processo de
urbanização/espacialidade/territorialidade na Lisboa contemporânea. Assim:

Não há identidade sem territorialidade, que não seja a vívida consciência de ter um lugar
e ser dono dele, seja por nascimento, por conquista ou pelo fato de ter se estabelecido em
um dado local e este ter se tornado parte de sua auto-representação. A territorialidade par
excellence é a localidade, ou seja, a casa, o pequeno espaço e o estado herdado, em que
relações próximas e diretas são reforçadas pelo pertencimento a uma genealogia comum,

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à mesma matriz, real ou suposta, que serve como base para o espaço cívico (Mbembe
2001, 193).

Partindo do pressuposto que todo o mapa é mediado por uma virtualidade,


propomos uma intervenção no mapa da zona das Olaias. A partir da navegação, o público-
arqueólogo vai aos poucos adentrando no universo contaminado por ficção e realidade
onde finalmente identidades desviantes como A Brasileira, negadas sistematicamente
pela história hegemônica (Bhambra 2014), podem voltar à vida e reocupar o mundo
através de uma contra-cartografia.

Referências:

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9
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FILMOGRAFIA

Camargo de Barros, Lucas. (2021). Há uma profeta nas Olaias, tenham cuidado!. 08
minutos, 4K, 35mm. São Paulo, Lisboa: Fratura Filmes.

Autor Desconhecido. Incursões Monárquicas. (1911). 12 minutos, 35 mm, PB, sem som.
Lisboa: Cinemateca Portuguesa.

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