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ReSumo
Abordamos aqui a percepção do cinema como portador de atributos re-
ligiosos na sociedade atual a partir do deslocamento da religião na pós-
-modernidade. Nosso objetivo é entender como o cinema se apropriou
de elementos religiosos e ocupou espaços que as estruturas religiosas
tradicionais não ocuparam. Acreditamos que as estruturas religiosas tra-
dicionais perderam a capacidade comunicativa ao fecharem-se contra
a modernidade após a secularização religiosa no século XVI, enquanto
surgiam novos atores sociais como o cinema, que, no caso em tese, arti-
culou a realidade semi-imaginária humana a narrativas místicas (mágicas,
nos termos de Edgar Morin) para tratar de categorias transcendentes. Os
resultados não são conclusivos.
Palavras-chave: cinema; religião; magia; cultura visual; narrativas
AbStRACt
The paper addresses the perception of cinema from religion displacement
in postmodernity as the bearer of religious attributes in today’s socie-
ty. Our objective is to understand how cinema appropriated religious
elements and occupied spaces where traditional religious structures did
not occupy. We believe that traditional religious structures have lost the
ability to communicate to shut against modernity after the religious se-
cularization in the sixteenth century, as appeared new social actors such
introdução
Em nossa pesquisa com imagem e religião nos deparamos com o
cinema investido de aspectos basicamente religiosos na sociedade atual.
Por isso abordaremos aqui a relação entre cinema e religião a partir do
deslocamento das experiências religiosas para outras áreas que não as
tradicionalmente dominadas pelas instituições. Analisaremos os aspectos
religiosos que o cinema assumiu enquanto esfera social.
A secularização histórica ocorrida após as guerras de religião na
Europa do século XVI obrigou as estruturas eclesiásticas a recolherem-
-se ao âmbito privado, encerrando suas atividades como controladoras
oficiais da religião pública – que passa a ser plural e diversificada – e
da sociedade; a partir desta ruptura os indivíduos passaram a ter liber-
dade para ter ou não uma religião e a própria religiosidade passou a
ter várias formas. A perda de capacidade comunicacional dos sistemas
religiosos tradicionais tornou possível a emergência de novas esferas
que assumiram gradualmente as funções religiosas, como a economia,
por exemplo.
Ao tratarmos de cinema aqui estaremos enfocando-o como meio
religioso – isto é, como propiciador de uma experiência religiosa – que
comunica uma mensagem transcendente – ou seja, religa determinados
grupos sociais a um horizonte de sentido. Utilizaremos como ponto de
partida a reflexão de Edgar Morin (1970) sobre o cinema como portador
de magia, isto é, como espaço/evento onde a realidade semi-imaginária
da ficção visual proporciona uma experiência estética de imersão da
assistência na trama que se desenvolve. A princípio isso é próprio da
maioria dos gêneros cinematográficos, embora alguns deles permaneçam
como simples recurso lúdico social. Outros gêneros, como a filmogra-
fia épica, apresentam enredos carregados de simbologia mítica-mística
assemelhando-se às narrativas fundantes das religiões. O deslocamento
do religioso na sociedade contemporânea será analisado a partir da
contribuição de Julio Cezar Moreira (2008). Por fim, observaremos
Cinema e magia
Invento surgido em uma época de grande crença no racionalismo
e cientificismo, o cinema foi recebido não apenas como um triunfo da
técnica, mas como uma janela para o mágico em um tempo em que as
estruturas religiosas tradicionais encontravam-se fechadas ao mundo
moderno e até mesmo em atitude de recusa a ele. O encanto da imagem
aparentemente sempre existiu para os seres humanos desde que percebe-
ram a potencialidade da narrativa visual como sistema de comunicação
com os homens e com os deuses, como se nota na antiquíssima arte
rupestre encontrada nas cavernas de Sulawesi (Indonésia, com cerca
de 42 mil anos de idade), Altamira (Espanha, cerca de 30 mil anos),
e Serra da Capivara (Piauí). Ao observar as primeiras manifestações
pictóricas humanas é possível perceber que o fascínio com a imagem
já se revestia de contornos rituais, como se a representação pictográfica
pudesse conter, abrigar ou manipular a essência dos seres representados.
A cultura humana é fundada sobre a visualidade, isto é, o imaginário
humano é basicamente visual.
Talvez por isso as mídias imagéticas , como o cinema, por exem-
plo, monopolizem tanta atenção. A imersão que o cinema proporciona
à sociedade é comparável a do sonho durante o transcurso do repouso
ou da catarse de um ritual penitencial ou de exorcismo. Como o sonho,
os filmes constituem uma sintaxe à parte, um universo de referências
distinto do universo quotidiano, que só com muito esforço pode ser
chamado de “real”, já que os outros universos “irreais” também estão,
na verdade, dentro da mesma percepção do imaginário humano, como
a matemática ou a música, por exemplo. Como nos rituais de grupos
religiosos-midiáticos católicos e pentecostais, alguns filmes permitem
uma catarse quase em termos semi-hipnóticos. Basta ver como as pesso-
as saem diferentes após uma sessão de cura carismática ou da exibição
de um filme bastante aguardado. Como em muitos cultos místicos o
cinema resgata a visão primitiva do mundo; quando a trama envolve a
deslocamento do religioso
A modernidade trouxe consigo novas formas de se lidar com a reli-
gião. Sob muitos pontos de vista isso representou o declínio das institui-
ções religiosas, mas sob outros, foi uma oportunidade de fortalecimento
de antigas estruturas. Por muito tempo foram discutidos temas como
Rituais, expressões e festas são realizadas com intensidade fora das igre-
jas e fora dos cultos dominicais, seja nas festas, nos desfiles de escolas
de samba, nos estádios de futebol, nas academias de ginástica, no uso das
vestes da moda e outros locais inusitados. Enquanto a prédica dominical
sobrevive a custo, mensagens em power point, preces e correntes lotam
nossas caixas de mensagem na internet e o transcendente trespassa os
anúncios publicitários. Lei e evangelho, denúncia e anúncio, desfilam nas
telas de cinema, rodam nas músicas dos mp3, nos vídeos do Youtube.
Enquanto a ideia de comunidade eclesial atrai cada vez menos pessoas,
milhares de comunidades surgem a cada segundo nos mais diferentes
espaços virtuais (ADAM, 2010, p. 106).
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Informações mais precisas sobre este movimento religioso podem ser obtidas no endereço
http://www.templeofthejediorder.org/.
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De acordo com esta notícia seriam contabilizados cerca de 400 mil membros do Jedismo
apenas no Reino Unido: http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1089403-5602,00-
IGREJA+JEDI+VIRA+MODA+NA+POLICIA+ESCOCESA.html.
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Embora o número tenha sido constatado oficialmente, é provável que muitas pessoas
tenham declarado ser membros apenas como forma de protesto, embora à época a mídia
houvesse mostrado pessoas que eram “adeptas sinceras”: http://entretenimento.uol.com.br/
ultnot/2011/12/20/ordem-jedi-e-escolhida-como-religiao-por-mais-de-15-mil-tchecos.jhtm.
Se, por um lado, a experiência religiosa tal como vivenciada pelo homem
religioso não se vê devidamente traduzida pela linguagem, por outro lado,
ela é representada pelo mesmo sujeito por meio de imagens, diálogos e
sussurros internos, gestos e palavras, mesmo que em línguas indecifráveis
(NOGUEIRA, 2013, p. 443).
Referências
ADAM, Julio Cezar. Religião e culto em 3D: o filme Avatar como vivência
religiosa e as implicações disso para a Teologia Prática. estudos teológicos,
v. 50, n. 1, p. 102-115 (jan./jun. 2010). Disponível em: http://periodicos.est.
edu.br/index.php/estudos_teologicos/article/viewArticle/46
BERGER, Peter. A dessecularização do mundo: uma visão global. Religião e
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Moyers. 14 ed. São Paulo, Associação Palas Athena, 1996.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Trad. 3º
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ELIADE, Mircea. mito e Realidade. Trad. Pola Civelli. 2º Ed. São Paulo:
Editora Perspectiva, 2013.
MOREIRA, Alberto da Silva. O deslocamento do religioso no mundo contem-
porâneo. estudos de Religião, Ano XXII, n. 34, 70-83, jan/jun. 2008.
MORIN, Edgar. o cinema ou o homem imaginário: ensaio de antropologia.
Trad. Antônio-Pedro Vasconcelos. Lisboa: Moraes editores, 1970.
NOGUEIRA, Paulo A. S. Linguagens Religiosas: Origem, estrutura e dinâ-
micas. In PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank. (Org.). Compêndio de
Ciência da Religião. 1º Ed. São Paulo: Paulinas: Paulus, 2013.