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Tempo e Eternidade em Santo Agostinho: A Concepção Agostiniana como Modelo à

Vivência do Tempo Cronológico na Sociedade Atual.

Anderson de Andrade Freitas1

Resumo
O presente artigo busca apresentar de maneira clara e objetiva as noções sobre os conceitos de
tempo e eternidade exploradas por Santo Agostinho, filósofo medieval do séc. IV. A
metodologia escolhida é definida pela explanação categórica do pensamento do filósofo em
sua obra Confissões e posterior comentário, embasado em conceitos de outros pensadores e
cientistas da área. A topicalização utilizada visa um olhar geral do leitor sobre os conceitos de
tempo e eternidade, descrevidos isoladamente, de modo a propiciar um melhor entendimento
das partes mais importantes de cada conceito. Em seguida, o material traça um paralelo entre
as noções agostinianas já citadas e a vivência do tempo pelo homem moderno. Para isso usa
da descrição de todas as etapas do processo de construção da vivência do tempo pela
sociedade, perpassando por cada período histórico de mais relevância e encerrando com a
situação atual. Diante disso, busca incluir o pensamento agostiniano no certame atual, de
maneira a apresenta-lo como modelo e suporte ao homem hodierno, explicando como cada
conceito do pensamento de Santo Agostinho pode contribuir para a construção de uma melhor
vivência da cronologia ainda nos dias atuais.
Palavras-chave: Santo Agostinho. Tempo. Eternidade. Deus. Criação.

Abstract
This article seeks to present in a clear and objective way the notions about the concepts of
time and eternity explored by St. Augustine, a medieval philosopher of the fourth century.
The chosen methodology is defined by the categorical explanation of the philosopher's
thought in his book Confessions and subsequent commentary, based on concepts of other
commentators and scientists of the area. The topicalization used aims at a general look of the
reader on the concepts of time and eternity, described in isolation, in order to provide a better
understanding of the most important parts of each concept. Then, the material draws a parallel
between the Augustinian notions already mentioned and the experience of time by modern
man. For this, he uses the description from all the stages of the process of construction of the
experience of time by society, passing through each historical period of more relevance and
ending with the current situation. In view of this, it seeks to include Augustinian thought in
the current event, in order to present it as a model and support for today's man, explaining
how each concept of the thought of St. Augustine can contribute to the construction of a better
experience of chronology even today.
Keywords: Saint Ausgustine. Time. Eternity. God. Creation.

1
Graduando do curso livre de Filosofia pelo Centro de Estudos Acadêmicos do Seminário diocesano São João
Maria Vianney, em Campina Grande, PB. Orientador: Prof. Pe. Joseque Borges. E-mail:
anderson.andrade122013@hotmail.com.
1. Introdução
A concepção de Santo Agostinho sobre o tempo, apresentada no Livro XI de sua obra
Confissões trata-se de um dos temas de suma importância no entendimento de seu pensamento
sobre a Criação. O presente escrito tem por objetivo apresentar uma análise categórica das
noções de Eternidade e Tempo postuladas pelo bispo de Hipona, revolucionando o
pensamento até então vigente entre os de seu tempo. Ademais, visa agregar ao modo como a
sociedade atual trata a vivência do tempo cronológico as benesses advindas de tão profundo
pensamento, que não se encerra em eficácia no tempo histórico de seu autor, mas continua a
oferecer benefícios aos que se propõem a buscar entender o que disse Santo Agostinho sobre
o Tempo e a Eternidade.

2. Doutrina agostiniana sobre o Tempo e a Eternidade


A compreensão do conceito de tempo em Santo Agostinho 2 perpassa primeiramente
pela noção sobre o evento da Criação, a partir do qual postulou a ideia de temporalidade como
criatura. Em primeiro plano Agostinho, ainda sob influência da doutrina de Maniqueu 3,
considerava a Criação como um fragmento da substância luminosa de Deus, que, separada,
deu origem a tudo. Daí surge a problemática da redução da substância de Deus, uma vez que o
que é eterno e imutável teria de tornar-se temporal e sujeito à mutabilidade.

Diante disso, em contrapartida a essa problemática, postulou sobre a Criação ex nihilo -


isto é, do nada-.

2
Uma vez que o registro categórico do pensamento de Santo Agostinho em suas obras -sobretudo Confissões-
está intimamente ligado às fases de sua vida, antes de voltar o pensamento à obra, é necessário um olhar
histórico sobre o pensador, visando propiciar o melhor entendimento de suas ideias e evitar qualquer tipo de
anacronismos ou incoerências. Diante disso, Aurélio Agostinho nasceu a 354 em Tagasta, pequena cidade da
Numídia, na África. Seu pai, Patrício, era pagão, já sua mãe, Mônica, era cristã fervorosa. Após iniciar seu
ensino básico na própria Tagasta, seguiu a Cartago, onde estudou retórica; estudando, sobretudo, a Cícero. Em
384 transferiu-se para Roma, na qual permaneceu pouco tempo, seguindo a Milão, na qual assumiu o cargo de
professor. Entre 384 e 386 amadureceu sua conversão ao cristianismo, sendo batizado em 387 pelo bispo
Ambrósio, o qual teve considerável importância no processo de cristianização do jovem Agostinho. Voltando a
Tagasta, fundou uma comunidade religiosa, sendo notado pela fama de santidade. Em 391 foi ordenado
sacerdote em Hipona, cidade na qual, após ser consagrado bispo em 395, travou intensas batalhas apologéticas
contra os cismáticos e heréticos de seu tempo. Desse pequeno povoado africano produziu as obras que viriam
a ser baluartes à filosofia cristã, marcando uma nova etapa de apogeu da Patrística. Além disso, é notória a
divisão da vida de Santo Agostinho em etapas, nas quais deu-se o desenrolar da construção de seu
pensamento. Aos 28 de agosto de 430, Agostinho morreu em Hipona, enquanto Genserico e seus vândalos
sitiavam a cidade. (REALE; ANTISERI, 2007)
3
Trata-se do maniqueísmo, religião herética fundada pelo persa Mani no século III. Dentre suas ideias estavam
o vivo racionalismo; um materialismo bem marcado; um dualismo radical na concepção do bem e do mal,
entendidos não apenas como princípios morais, mas também como princípios ontológicos e cósmicos. Sobre
eles, Agostinho afirmou em sua obra Contra as heresias: os maniqueístas, escreve, afirmaram “a existência de
dois princípios diversos e adversos entre si, mas, ao mesmo tempo, eternos e coeternos [...] e, seguindo outros
heréticos antigos, imaginaram duas naturezas e substâncias, a do bem e a do mal” [...] Mani era oriental e,
como tal, abria amplo espaço para fantasia e imaginação. (REALE; ANTISERI, 2007)
Deus não é como um artesão que, considerando uma forma qualquer em seu
pensamento, a impõe à matéria que ele tem à sua disposição (argila, pedra,
madeira etc.). Ao contrário, as diversas matérias que o artesão humano
encontra à sua disposição, Deus foi que, as fez. O que o ato criador significa
é, portanto, a produção do ser daquilo que é, e essa produção é possível
unicamente para Deus, porque somente ele é o Ser: quid enim est, nisi quia
tu est? Assim, sem qualquer matéria preexistente, Deus quis que as coisas
fossem e elas foram; isso é precisamente o que se denomina criar ex nihilo.4

Sob a ótica do pensamento de Gilson (2006), admite-se a criação do nada como mais
válida, uma vez que parte da presciência de Deus e não interfere na substância eterna,
descartando o problema substancial advindo da doutrina maniqueísta. As coisas foram criadas
simplesmente pela vontade de Deus e, na perspectiva medieval, buscar alguma resposta além
disso concorre ao fracasso. Ademais, diante do pensamento sobre a Criação, surge um
questionamento: “O que fazia Deus antes de criar?” A partir disso surgem as noções sobre a
eternidade, uma noção completamente distinta à temporalidade e que trata da substância de
Deus e de sua discrepância à temporalidade.

2.1 A Eternidade: O que vem antes da Criação


Antes de tratar de definições sobre o tempo - que surgiu a partir da Criação -,
Agostinho dedica alguns poucos tópicos de sua obra 5 para tratar sobre a eternidade, atributo
divino anterior à própria Criação, na verdade separado de qualquer noção de temporalidade,
uma vez que as noções cronológicas não a comportam. Em primeiro plano, Santo Agostinho
fala escreve sobre a Eternidade a partir da palavra eterna de Deus; em seguida, trata da
Eternidade do Verbo; ainda sobre o tema, discorre à luz do questionamento “Que fazia Deus
antes de criar o céu e a terra?”, traçando, em seguida, a diferença entre as noções de tempo e
eternidade e, por fim, responde ao questionamento supracitado dando início à doutrina sobre o
tempo.

Ao levantar o questionamento sobre onde Deus estava antes da Criação, Agostinho


evidencia a diferença entre tempo e eternidade a partir da própria criação do tempo no
gênesis. Sobre isso, Gilson afirma em sua obra sobre a filosofia cristã: “Sendo Deus eterno,
ou seja, transcendente ao tempo, e nós outros temporais, é-nos impossível resolver o problema
das relações entre tempo e eternidade”6. À luz do pensamento do autor em questão, apreende-
se que compreender a eternidade será sempre uma realidade inacessível ao imanente, mutável
4
GILSON, 2006, p. 358
5
Trata-se dos primeiros tópicos do XI Livro da obra “Confissões”, dedicado à reflexão sobre o Gênesis
6
GILSON, 2003, p. 176
e efêmero. Todavia, ao falar sobre a Palavra eterna de Deus, o Verbo eterno, Agostinho traça
características desse sistema no qual a temporalidade é ausente, uma vez que nele foi criada.

Diante disso, ao tratar sobre a eternidade à luz do Verbo, no 6º ponto do Livro XI de


Confissões, Santo Agostinho põe em evidência a diferença entre a natureza das palavras
temporais que regem a imanência - regida por conjuntos linguísticos - e a Palavra eterna de
Deus. Em primeiro plano, ele tece comentários sobre as palavras temporais: “[...] todavia,
aquela voz ressoou e se extinguiu teve um princípio e um fim [...] portanto, é claro e óbvio
que essa voz foi produzida pelo movimento de uma criatura, intérprete temporal da tua
vontade divina”7. Sendo assim, a palavra humana é caracterizada por uma temporalidade, um
princípio -movido pela vontade de Deus- e um ocaso, encerrando-se e nunca mais sendo
repetida, uma vez que só há o presente. O conjunto de princípios linguísticos que rege o
tempo é, portanto, passageiro e irrepetível.

Indo de encontro às palavras temporais está a Palavra divina, a mesma Palavra pela qual
tudo foi criado na gênese do Universo. Tal Palavra não é proferida por um corpo material,
uma vez que se existisse um corpo mecânico que a proferisse, teria de ter sido criado por
Deus. É uma palavra, portanto, eterna, ausente de noções mecânicas e cronológicas; trata-se
do Verbo. Sobre isso, dentre as noções sobre a eternidade, está a desse Verbo que é
pronunciado eternamente, sem conter uma sucessão de palavras distintas, mas formado pelas
mesmas palavras sendo proferidas simultaneamente e eternamente, insubmissas à corrupção,
uma vez que não têm em si noções temporais.

Tu nos chamas então a compreender o Deus Verbo que é Deus contigo [...]
Na tua Palavra nada aparece e desaparece, por que é realmente imortal e
eterna. Com esta palavra, que é eterna como tu, (grifo meu) enuncias a um só
tempo e eternamente tudo o que dizes. E tudo o que dizes que se faça
realiza-se.8

Assim, depreende-se ser o Verbo, participante na natureza divina. Pois, além de imortal
e eterno, dá potência e cumprimento aos desígnios de Deus na imanência e em sua criação.

Destarte, ao responder ao questionamento “que fazia Deus antes de criar o céu e a


terra?” Agostinho admite o surgimento de incontáveis dúvidas sobre a possível resposta e,
assim, sustenta a atemporalidade da vontade de Deus, uma vez que nada seria criado se antes

7
AGOSTINHO, 2014, p. 330
8
AGOSTINHO, 2014, p. 333
não existisse a vontade do Criador9. Desse modo, a vontade de Deus pertence, portanto, à
substância d’Ele. Não surgiu, mas está presente na transcendência, que é eterna. Não houve
um momento no qual Deus escolheu criar um mundo, no qual surgiu a vontade que viria a ser
a força motriz da Criação (uma vez que isso traria em si noções de mutabilidade e
temporalidade, por si só incongruentes a Deus), mas essa força, por fazer parte de Deus,
estava sempre presente e incólume.

Ademais, ao tratar das diferenças entre o tempo e a eternidade, Agostinho usa da


oposição entre a mobilidade do tempo e a estabilidade da eternidade, jamais compreendidos
pelo homem para traçar um paralelo entre o divino e o criado.

[...]ó Sabedoria de Deus[...] eles se esforçam tanto para conhecer as coisas


eternas, mas o pensamento deles vagueia ainda na agitação das realidades
passadas e futuras. Quem poderá deter esse pensamento e fixa-lo um
instante, a fim de que colha por um momento o esplendor da tua sempre
imutável eternidade, e veja como não se pode estabelecer um confronto com
o tempo sempre móvel.”10

Através de sua colocação, Santo Agostinho introduz a noção de que no tempo somente
o presente é válido. A preocupação com as realidades do pretérito e do vindouro afastam o
homem do conhecimento do que é eterno. Somente ao prender-se em um momento singular,
fixando um pensamento, o homem tem acesso à clara distinção entre a mutabilidade
cronológica e a constância do que é eterno. O Santo afirma o constante estado de presente da
eternidade, que não contém noções passadas ou futuras, sempre estagnado em sua perfeição.

A fim de concluir suas noções diretas sobre a eternidade, Agostinho enfim responde ao
questionamento do paradeiro de Deus antes da Criação. Em resposta, afirma que Deus nada
fazia. Após afastar-se de respostas especulatórias de origem na ignorância religiosa ou de um
conformismo ao afirmar que não se pode conhecer aquilo que não se sabe, responde que Deus
nada fazia antes da Criação. Tal afirmação tem origem na lógica de que se Deus fizesse
alguma coisa, por lógica o fruto disso seria uma criatura. Portanto, de maneira muito simples,
não havia outra criatura antes da primeira. Assim, Deus nada fazia antes de criar todas as
coisas.

Assim, é inconciliável afirmar qualquer semelhança entre as ideias de tempo e


eternidade. Sobre as noções de eternidade, Gilson afirma:
9
AGOSTINHO, 2014, p. 335
10
AGOSTINHO, 2014, p. 336
[...] nós fracassamos na nossa tentativa de estabelecermos uma representação
distinta da relação que une o tempo à eternidade, porque agora se trata de
comparar dois modos de duração heterogêneos, fundados sob dois modos de
ser heterogêneos, dos quais um, o de Deus, nos escapa quase
completamente: nós, submissos até em nosso pensamento à lei do devir, não
poderíamos representar para nós o modo de ser do permanente.11
Assim, é inquestionável afirmar a ineficácia de uma busca completa por todas as
definições sobre o tempo e a eternidade, uma vez que são noções opostas e, em grande parte,
inacessíveis ao homem em compreensão. No entanto, Agostinho conseguiu lançar mão da
ignorância para postular sobre a eternidade todas as noções acima expostas. Ele completou a
façanha de explicar algo até então ignorado por temor. Sendo assim, é indubitável a
contribuição da noção agostiniana de eternidade à própria noção de tempo, uma vez que
estabelecem complementariedade.

Dando fim às reflexões sobre o anterior à criação e a noção de eternidade enquanto


atributo transcendente, resta compreender, a partir da criação, o tempo, criatura primeira que,
em si, contém tudo o mais que da criação saiu.

2.2. O Tempo, criatura que abarca todas as outras

Tendo já refletido sobre as noções de eternidade, voltemos o olhar às noções


agostinianas de tempo, que constituem a segunda parte de O Homem e o Tempo. Sobre isso, a
partir do questionamento “que fazia Deus antes de criar o céu e a terra?”, Santo Agostinho
dá início à sua explanação sobre o tempo. Primeiramente traça as incongruências entre tempo
e eternidade, separando completamente as duas noções. Em seguida, situa o surgimento do
tempo, como iremos ver adiante. Ademais, destrincha o conceito de tempo, falando sobre o
passado, presente e futuro e a possibilidade ou não de sua medição. Em todas essas noções,
Santo Agostinho detêm-se à compreensão exclusiva do tempo como criatura e crivo de
diferenciação entre o que pertence à imanência -isto é, o que foi criado- e o que está na
substância de Deus, que participa da eternidade.

Como já vimos, o tempo é criatura, uma vez que brotou do evento no qual surgiram
todas as outras coisas. No entanto, é necessário perceber que todas as coisas são abarcadas por
ele, uma vez que tudo o que veio a partir do evento criador está contido na cronologia. Sobre

11
GILSON, 2006, p. 362.
isso, Santo Agostinho afirma: “Não houve portanto (sic) um tempo em que nada fizeste,
porque o próprio tempo foi feito por ti. E não há um tempo eterno contigo, porque tu és
estável, e se o tempo fosse estável não seria tempo” 12. Assim, o tempo inicia com a Criação e
sua instabilidade e mutabilidade abarcam todas as coisas, uma vez que, se não abarcasse,
existiria algo fora de Deus que participaria de sua substância, o que é absurdo.

Ademais, ao afirmar que as criaturas saíram do nada – ex nihilo – em um só momento,


deve-se observar na morfologia do termo “momento” a indicação de um substantivo de
temporalidade, o que caracteriza um primeiro acesso à noção de cronologia a partir da
Criação. O próprio ato de fazer algo compreende, por intuição, noções de espaço-tempo.
Assim, a partir do momento em que as coisas foram feitas, o tempo -enquanto criatura- passou
a dominar tudo o que junto dele foi criado.

Ao concatenar as noções de presente, passado e futuro à existência do que foi, é e será,


Santo Agostinho atrela a percepção das três divisões do tempo ao aspecto psicológico da
percepção. O Santo afirma:

Mas como é que diminui e se consome o futuro que ainda não existe? Ou
ainda: como é que cresce o passado que já não existe, a não ser pela
existência dos três momentos no espírito que os realiza: expectativa, atenção
e lembrança? [...] Portanto, não é o tempo futuro que é longo, pois não
existe, mas o longo futuro é a longa espera do futuro. Também não é longo o
tempo passado inexistente, mas o longo passado é a longa recordação do
passado.13

Assim, o tempo subintende mutabilidade através dos termos “antes”, “agora” e


“depois”. No entanto, esses três momentos dependem da perspectiva de quem os observa ao
esperar, prestar atenção ou recordar, respectivamente.

Outrossim, sobre a noção de tempo em Santo Agostinho, observa-se a negação do


presente e do passado por si mesmos, mas o atrelam ao presente, ao afirmar: “Seria talvez
mais justo dizer que os tempos são três, isto é, o presente dos fatos passados, o presente dos
fatos presentes, o presente dos fatos futuros. E estes três tempos estão na mente e não os vejo
em outro lugar.”14 Desse modo, ele define a percepção do passado no presente como a
12
AGOSTINHO, 2014, p. 338
13
AGOSTINHO, 2014, p. 355
14
AGOSTINHO, 2014, p. 344
memória; a percepção do presente em si mesmo como a visão e a percepção do futuro no
presente como a espera. Somente essas três percepções existem, e se realizam na distensão da
vida interior do homem, que busca entender a própria temporalidade. Assim, não há tempos
passados nem futuros, e sim percepções da consciência sobre si mesma.

O pensamento agostiniano sobre o tempo revolucionou a percepção até então vigente


no tempo histórico em que se situou tão grande santo e filósofo, aderindo à concepção de
tempo o status de “criatura primordial”, no sentido de que contem em si todas as outras e,
além disso, agregando sua percepção à própria consciência do ser. Sendo assim, resta
entender a pertinência do pensamento de Santo Agostinho sobre o tempo após mais de um
milênio de sua postulação.

3. A vivência do tempo cronológico pela sociedade atual

De fato, a contribuição do pensamento de Santo Agostinho sobre o tempo e a eternidade


no período histórico em que viveu é inquestionável. Antes dele, ninguém havia se proposto a
teorizar sobre um tema tão abstrato e de fácil dispersão como o tempo. Ao falar sobre essa
questão, o santo revolucionou a linha de pensamento até então vigente e, além disso, deu
embasamento a toda corrente de pensamento sobre o tempo posterior à sua. Indubitavelmente
a sociedade dos sécs. IV e V e, ainda, de todo o medievo colheu abundantemente os frutos do
pensamento de Santo Agostinho sobre o tempo. No entanto, urge refletir de que forma na
sociedade atual a categorização do tempo em Santo Agostinho pode servir de modelo e
amparo à vivência cronológica dezesseis séculos após o tempo de seu autor e qual a
pertinência de, ainda nos dias hodiernos estudar um pensamento advindo de tão distante
período histórico.

Em primeiro plano, cabe uma análise sobre o modo com o qual a sociedade atual vive o
tempo, à luz do processo de construção dessa vivência ao longo dos períodos históricos.
Primeiramente, a própria sociedade de Santo Agostinho, o medievo: De acordo com o
pensamento desse mesmo santo, o tempo é tido como dom divino, dessa forma, o homem
jamais poderia controla-lo, uma vez que seria um atributo de Deus. Tal pensamento norteou o
modo de viver o tempo na Idade Média, marcado pela busca da obediência ao “tempo de
Deus” -ou seja, à vontade de Deus, enunciada por Santo Agostinho- uma tentativa de
semelhança ao Kairós15. De fato, priorizava-se a vivência do tempo presente, pois nele estaria
a oportunidade de obedecer aos planos de Deus. O passado reservava-se à memória e o futuro,
à vontade de Deus.

Em consonância, a ética protestante de Calvino 16 se apoderou do termo Kairós e tomou-


o como o tempo oportuno, ou melhor, o tempo da oportunidade -de trabalhar e de lucrar- uma
vez que o lucro estaria atrelado à salvação. Ademais, o sociólogo Weber (2006) ao estudar os
quakers -ceita protestante criada por George Fox-, descreve a noção doutrinária desse grupo
baseada no pensamento de que cada hora desperdiçada -ou seja, fora do trabalho- seria uma
hora afastada do serviço de Deus. Diante disso, percebe-se que preocupação do homem em
cumprir totalmente o tempo segundo seus conceitos sobre Deus, o afasta do discernimento e,
logo, do cumprimento da vontade de Deus.

Passando ao período Renascentista, com o advento do antropocentrismo, o tempo


passou a ser vivido não mais de acordo com o crivo da vontade de Deus, mas a partir do
próprio homem e de suas necessidades, seguindo sempre o racionalismo e o cientificismo em
contraposição à Igreja. Assim, há uma quebra na noção agostiniana de tempo, uma vez que a
própria ciência abre espaço à preocupação com o futuro, por exemplo.

Destarte, chegada a 1ª Revolução Industrial, o tempo ganha uma nova característica:


passa a ser vivido em prol do capital, desprezando o bem-estar do proletário em função do
lucro do empregador com fim último. A partir desse período, principalmente chegado o século
XX, a sociedade em processo de globalização assume um novo ritmo, o tempo passa a ser
vivido de acordo com as demandas da sociedade.

Passado o séc. XX, essa aceleração do tempo ganha novo vigor com a Revolução
Técnico-Científica-Informacional. A humanidade passa a depender de modo crescente da
tecnologia para o desenvolvimento do cotidiano nos grandes centros urbanos e, agora, o
tempo torna-se deus dos homens, uma vez que se tornam escravos de uma agenda a ser
cumprida. Diante disso, o mal aproveitamento do tempo é irreparável e as relações sociais
sofrem diretamente com essa concepção de tempo, gerando, como enunciou o sociólogo
contemporâneo Bauman (2007), uma sociedade de relações líquidas, fluidamente instáveis,
feitas para serem quebradas.

15
O Kairós enquanto estrutura temporal não reflete o passado ou antecede o futuro. Kairós é o melhor instante
no presente (grifo meu). Ele representa um tempo não absoluto, contínuo ou linear, ao contrário do que
propõe a concepção newtoniana refletida no tempo cronológico, socialmente estabelecido (ZERUBAVEL, 1982)
16
Líder religioso, uma das figuras proeminentes da reforma protestante (WEBER, 2006)
Diante desse cenário, nota-se uma incongruência indubitável entre o modo como a
sociedade atual vive sua cronologia e a forma como pensou Santo Agostinho. O tempo
corrido da atualidade não se encaixa na serenidade da concepção agostiniana, que pode -e
deve- contribuir tanto para uma melhor vivência do tempo na sociedade hodierna. A
pertinência do estudo do pensamento de Santo Agostinho nos dias atuais se dá pelo fato de
apresentar uma maneira de viver o tempo genuinamente, dando intervalos para cada fator,
fazendo do tempo um auxiliador da vivência do homem moderno, em contraposição à
escravidão sofrida na atualidade, na qual o tempo sufoca a vivência genuína das relações do
mesmo homem. Na realidade, cada conceito de Santo Agostinho tem algo a oferecer à
sociedade atual: a vivência do passado enquanto memória pode ajudar a sociedade a aprender
com os erros de seu passado; o futuro como antecipação serve de auxílio na reflexão sobre o
“amanhã” e nas possibilidades de ação de cada sociedade e, sobretudo, a vivência do presente
deve ensinar a sociedade a viver suas relações de maneira genuína sólida. Tornando, assim, o
tempo, artífice de relações e não destruídos delas e dando novo -e sempre atual- vigor à teoria
de Santo Agostinho.

4. Considerações Finais

Portanto, é válido reconhecer que o pensamento agostiniano sobre o tempo e a


eternidade, expresso no Livro XI de sua obra Confissões, indubitavelmente teve sua influência
positiva legitimada ao longo dos séculos, não sendo atoa o fato da perpetuação de tais noções
ao longo de quase dois milênios. De fato, em uma sociedade como a medieval, marcada pela
busca do cumprimento da vontade de Deus, Santo Agostinho haveria de ter seu protagonismo
chancelado. Ademais, refratando a ótica do santo aos fatos do tempo corrente e ao modo
como a sociedade atual busca viver o tempo cronológico -de maneira comprovadamente
desvirtuosa e ineficaz-, nota-se, mais do que nunca, a urgência de uma reflexão à luz da teoria
cronológica de Santo Agostinho, uma vez que não é pequena a relevância desse tema e não é
ignorável o auxílio que tal pensamento pode prestar à sociedade atual no tocante a uma nova
forma de viver o tempo, que adeque o pensamento de Santo Agostinho às demandas do tempo
hodierno. Por fim, cada um dos pontos apresentados pelo santo em sua obra pode -e deve- ser
tomado como base numa reflexão sobre o modo de viver a cronologia, em prol de uma nova
maneira de viver o tempo atual virtuosamente, de acordo com a ótica agostiniana.
REFERÊNCIAS
BOEHNER, P; GILSON, Etienne. História da filosofia cristã: desde às origens até Nicolau
de Cusa, 8a edição, Petrópolis, Vozes, 2003.
CARDOSO, Giovani. Tempo e Eternidade em Santo Agostinho. Revista Filogênese. São
Paulo. Vol. 3, nº 1, 81-91, 2010.

GILSON, E. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. São Paulo: Discurso Editorial;


Paulus, 2006.

REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. Vol. 1.


10. Ed. São Paulo: Paulus, 2007.

SANTO AGOSTINHO, S. Confissões. São Paulo: Paulus, 2014.

‌ EBER, M. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. [s.l.] Madrid Fundación


W
Bbva Santiago De Compostela Univ, 2006.

‌ ERUBAVEL, E. The Standardization of Time: A Sociohistorical Perspective. Disponível


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em: <https://www.journals.uchicago.edu/doi/epdf/10.1086/227631>. Acesso em: 20 out.
2023.

ZYGMUNT BAUMAN. Tempos líquidos. Rio De Janeiro (Rj): Zahar, 2007.


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