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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA (UNICURITIBA)

CURSO DE GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS

LUIZ FELIPE PEREIRA NEVES

A GUERRA DO IÊMEN E A TEORIA DE KENNETH N. WALTZ

CURITIBA

2022
LUIZ FELIPE PEREIRA NEVES

A GUERRA DO IÊMEN E A TEORIA DE KENNETH N. WALTZ

Trabalho apresentado ao Centro Universitário Curitiba


(Unicuritiba), como requisito para obtenção do título de
bacharel em Relações Internacionais.

Orientador: Profa. Me. Natali Hoff.

CURITIBA

2022
LUIZ FELIPE PEREIRA NEVES

A GUERRA DO IÊMEN E A TEORIA DE KENNETH N. WALTZ

Este Trabalho de conclusão de curso foi julgado


adequado à obtenção do título de Bacharel em Relações
Internacionais e aprovado em sua forma final pelo Curso
de Relações Internacionais do Centro Universitário
Curitiba (Unicuritiba)

Curitiba, 09 de dezembro de 2022

Profa. Me. e orientadora Natali Laise Zamboni Hoff, Me.

Unicuritiba

Prof. Dr. Rafael Mandagaran Gallo

Unicuritiba

Prof. Dr. Andrew Patrick Traumann

Unicuritiba
Dedico este trabalho ao meu querido e amado
avô, Arno Buzzi, que nos deixou neste ano.
Serei eternamente grato por todo amor e carinho
que você me deu e pelo vasto conhecimento que
você me proporcionou. Sei que onde quer que
você esteja, estará sempre torcendo por mim e
por toda nossa família. Muito obrigado por tudo
vozão.
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente meus pais, Luiz e Jane, que sempre me motivaram a seguir
todos os meus sonhos e ambições, sempre me dando todo o suporte afetuoso, mental
e financeiro... serei eternamente grato aos meus amados pais...

Agradeço imensamente ao querido Alcione, pessoa que entrou em nossas vidas


apenas para somar e deixar nossos dias ainda mais felizes. Como eu sempre digo,
meu segundo pai...

Agradeço toda a minha família, nomeadamente: meus tios Borges, Frega, André,
Eduardo e Damião; minhas tias Fabiana, Deise, Cassiana, Cristina e Géssica; minhas
avós Dalva e Rosina; minha bisa Lucinda; minhas primas Isabella, Isadora, Yasmin,
Marina, Laura, Luana, Rebeca, Amanda e Giovana; e meus primos Marcelo, Gabriel,
Breno e Estevão. Sem a presença destas queridas pessoas que eu tanto amo, minha
vida não possuiria sentido algum...

Agradeço também aos irmãos que a vida me proporcionou ao longo dos anos: João,
Leonardo, Matheus, Andrei, Lucas, Lipe e Eduardo, os quais estavam presentes em
todas as aventuras de minha vida, nos momentos mais engraçados e nos mais
perigosos, aprendendo juntos como a vida funciona. Sem eles meus dias não teriam
sido a mesma coisa...

Agradeço meus queridos amigos e companheiros de curso, Raul, Rhian, Josepe, Gui
Barba e Gui Padre; sem suas divertidas companhias, os quatro anos de faculdade não
teriam sido fáceis...

Agradeço todos os queridos e competentes professores que estiveram conosco


durante toda esta jornada acadêmica, com especiais menções à minha orientadora,
Professora Natali, cuja ajuda nesta reta final foi de imprescindível importância para a
conclusão deste trabalho (inclusive usando algumas horas de seu feriado para ler
meus rascunhos), e ao Professor Rafael, que com suas aulas e conversas mudou
para sempre minha visão sobre o mundo...

E, por fim, agradecimentos especiais ao meu querido avô Arno, que nos deixou em
setembro deste ano, e ao meu também falecido avô Luiz Roberto, que será sempre
lembrado pelas diversas memórias felizes que me proporcionou.
RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar a Guerra do Iêmen pela ótica da teoria
neorrealista de Kenneth N. Waltz. O estudo preocupa-se em analisar se mesmo após
mais de quarenta anos da escrita da obra “Teoria das Relações Internacionais” (1979),
sua teoria de Relações Internacionais ainda é capaz de explicar um conflito moderno
como o do Iêmen. Considerada pela Organização das Nações Unidas como uma das
maiores crises humanitárias do planeta, o Iêmen tornou-se um cenário de guerra entre
potências regionais como Arábia Saudita e Irã. As diversas intervenções estrangeiras
no conflito são somadas à uma grande gama de atores domésticos lutando entre si
por poder e influência, fazendo do conflito uma guerra catastrófica e digna de estudo.
Para alcançar o objetivo proposto, primeiramente a teoria de Waltz é explicada em
seus principais pontos e conceitos; em seguida, a história política do Iêmen é escrita
desde o século XVI até a Guerra Civil de 1994, proporcionando ferramentas para o
melhor entendimento do Estado árabe; o conflito atual é então explicado de acordo
com os conhecimentos históricos e pela situação política atual; por fim, a análise sobre
a capacidade de explicação de Waltz é realizada.

Palavras-chave: Iêmen; Waltz; Guerra; Relações Internacionais; Neorrealismo;


Oriente Médio.
ABSTRACT

The present work aims to analyze the Yemen War from the perspective of Kenneth N.
Waltz’s neorealist theory. The study is concerned with analyzing whether even after
more than forty years of writing the work “Theory of International Relations” (1979), his
theory of International Relations is still capable of explaining a modern conflict such as
the one in Yemen. Considered by the United Nations as one of the biggest
humanitarian crises on the planet, Yemen has become a scene of war between
regional powers such as Saudi Arabia and Iran. The various foreign interventions in
the conflict are added to a wide range of domestic actors fighting each other for power
and influence, making the conflict a catastrophic war worthy of study. To reach the
proposed objective, firstly Waltz’s theory is explained in its main points and concepts;
then, Yemen’s political history is written from the 16th century to the 1994 Civil War,
providing tools for a better understanding of the Arab state; the current conflict is then
explained according to historical knowledge and the current political situation; finally,
the analysis of Waltz’s explanatory capacity is carried out.

Keywords: Yemen; Waltz; War; International Relations; Neorealism; Middle East.


LISTA DE FIGURAS E TABELAS

Figura 1.1 – Níveis dos sistemas internacionais..........................................................15

Tabela 1.1 – Definição da estrutura em 3 partes........................................................24

Figura 2.1 – Iêmen......................................................................................................32

Figura 2.2 – Regiões do Iêmen...................................................................................34

Figura 2.3 – Protetorados Ocidental e Oriental de Áden............................................45

Figura 2.4 – República Árabe do Iêmen e Federação da Arábia do Sul.....................45

Figura 2.5 – Iêmen do Norte e Iêmen do Sul..............................................................47

Figura 2.6 – Reservatórios petrolíferos de Marib-Shabwa..........................................55


LISTA DE SIGLAS

CCA – Conselho de Cooperação Árabe

CCG – Conselho de Cooperação do Golfo

CIA – Central Intelligence Agency

FLISO – Frente para a Libertação do Iêmen do Sul Ocupado

FLN – Frente de Libertação Nacional

ONU – Organização das Nações Unidas


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..............................................................................................................11

1. TEORIA DE KENNETH N. WALTZ…………………………………………………....13

1.1 ESTRUTURA INTERNA E EXTERNA..................................................................17

1.1.1 Princípios ordenadores......................................................................................19

1.1.2 Especificação das funções de unidades diferenciadas......................................21

1.1.3 Distribuição da capacidade das unidades..........................................................23

1.2 ANARQUIA DO SISTEMA....................................................................................24

1.2.1 Violência interna e externa.................................................................................24

1.2.2 Interdependência e integração...........................................................................26

1.2.3 Estruturas e estratégias.....................................................................................28

1.3 BALANÇA DE PODER..........................................................................................29

2. HISTÓRIA DO IÊMEN............................................................................................32

2.1 GEOGRAFIA E POPULAÇÃO DO IÊMEN............................................................33

2.2 IÊMEN ATÉ 1918..................................................................................................35

2.3 IÊMEN ENTRE 1918 E 1970.................................................................................40

2.3.1 Guerra Civil do Iêmen do Norte (1962-1970)......................................................47

2.4 IÊMEN ENTRE 1970 E 1990.................................................................................50

2.5 IÊMEN ENTRE 1990 E 1994.................................................................................54

3. GUERRA DO IÊMEN E A TEORIA DE KENNETH N. WALTZ...............................61

3.1 IÊMEN APÓS A GUERRA CIVIL ATÉ A PRIMAVERA ÁRABE.............................61

3.2 PRIMAVERA ÁRABE E GUERRA........................................................................65

3.2.1 Disputa Saudi-Iraniana no Iêmen.......................................................................69


3.3 TEORIA DE WALTZ E A GUERRA DO IÊMEN.....................................................71

CONCLUSÃO ............................................................................................................78

REFERÊNCIAS..........................................................................................................79
11

INTRODUÇÃO

Kenneth N. Waltz é um autor norte-americano considerado um dos maiores teóricos


da Escola Realista das Relações Internacionais.1 Sua obra, considerada como
“neorrealista”, difere de seus antecessores realistas pois traz consigo conceitos
estruturais de sistema, como é visto no capítulo 1.

Para um breve resumo de sua vida acadêmica, Waltz nasceu em 1924, obteve seu
Mestrado na Universidade de Columbia em 1950, se tornou Doutor pela mesma
universidade em 1954, e passou a lecionar Ciência Política nas universidades de
Berkeley, Harvard e Brandeis (GRIFFITHS; ROACH; SOLOMON, 2009).

O presente trabalho, portanto, tem como objetivo analisar se sua teoria de Relações
Internacionais contida na obra “Teoria das Relações Internacionais”, de 1979, ainda é
capaz, depois de mais de 40 anos, de explicar um conflito atual, nomeadamente, a
Guerra do Iêmen.

Para tal tarefa, no capítulo 1 sua obra é analisada diante de suas principais
características e conceitos. No capítulo 2, a história política do Iêmen é retratada
desde o século XVI até 1994, pois seu estudo proporciona ferramentas para o melhor
entendimento da lógica de funcionamento daquele país. Por fim, no capítulo 3, finaliza-
se a história do Iêmen explicando os processos políticos que desde 1994 levaram ao
conflito geral em 2014, terrível guerra que dura até os dias de hoje. Ao final do mesmo
capítulo o conflito é analisado pelas lentes de Waltz e a hipótese do trabalho é posta
à prova.

Delineado o objetivo do estudo, é importante ter algo em mente sobre o presente


trabalho: no início dos extensos capítulos introdutórios de sua obra, Waltz embarca
em uma grande discussão sobre a diferença de leis e teorias, assim como o que é
uma teoria e qual o seu papel para o estudioso e para o campo científico. O estudo
realizado aqui não discute tais problemáticas conceituais acerca da ciência e de seus

1 As visões teóricas realistas das Relações Internacionais têm como base 4 princípios: 1) Os Estados
são os principais atores das Relações Internacionais; 2) Os Estados são atores unitários; 3) Os Estados
são essencialmente racionais; 4) Há uma hierarquia entre os assuntos importantes de Relações
Internacionais (“High Politics” – assuntos relacionados à segurança nacional, e “Low Politics” –
assuntos domésticos, como economia e áreas afins.) (SARFATI, 2005, pgs. 38, 39)
12

métodos, porém utiliza uma frase de Waltz como cerne para o objetivo final: “De
teorias, perguntamos: “Qual é o seu poder explicativo?” (WALTZ, 1979, p. 19)

Sendo assim, não é o intuito do trabalho proporcionar uma crítica valorativa sobre a
teoria neorrealista de Waltz. Seguindo sua diferenciação sobre teorias e leis, parte-se
do fato de que enquanto leis não explicam verdadeiramente fenômenos passíveis de
observação (apenas os descrevem e, portanto, são verdadeiras e imutáveis), teorias
e conceitos teóricos não são nem falsos e nem verdadeiros, não são passíveis de se
enxergar diretamente pelos sentidos e são frutos tanto da correlação de diversas leis
como da própria criatividade do autor (WALTZ, 1979). Deste modo, não é encontrada
na conclusão do presente estudo uma resposta positiva ou negativa sobre a
veracidade da teoria proposta por Waltz. O que é discutido, como dito anteriormente,
é o poder explicativo da teoria de Waltz em um determinado conflito; no caso, a Guerra
Civil do Iêmen.

“Quer seja com base na antiga ou moderna mecânica, a elevada correlação


entre impulso e movimento é verdadeira. Mas como pode ser explicada?
Estes factos mantiveram-se constantes; as teorias aceites como adequadas
para a sua explicação mudaram radicalmente. As leis são ‘factos de
observação’; as teorias são ‘processos especulativos introduzidos para
explicá-las’. Os resultados experimentais são permanentes; as teorias,
mesmo bem sustentadas, podem não durar. As leis mantêm-se, as teorias
vão e vêm.” (WALTZ, 1979 p. 19, 20)

O objetivo do estudo realizado torna-se muito interessante, pois concluirá se mesmo


após mais de quarenta anos, sua aclamada teoria ainda é capaz de explicar um
conflito moderno como a Guerra do Iêmen. Mas, como já dito anteriormente, caso a
resposta for negativa, sua teoria sobre as relações internacionais não será invalidada
ou mesmo criticada, pois uma teoria tem seu poder assentado:

“[...] no número de anteriores generalizações empíricas díspares e leis que


podiam ser agrupadas num sistema explanatório, e no número e amplitude
de novas hipóteses geradas ou sugeridas pela teoria, hipóteses que por sua
vez levaram a novas leis experimentais”

Sem contar na imensidade de teorias surgidas posteriormente a Waltz que beberam


de sua grande influência no campo de estudo da política internacional, este trabalho
observa o encaixe da teoria de Waltz em apenas um fenômeno observável (a Guerra
Civil do Iêmen). Mesmo que se conclua que sua teoria não o explique de forma
satisfatória, encaixá-la em apenas um conflito não é suficiente para invalidá-la. A
análise se dá apenas pelo questionamento: sua teoria consegue explicar o conflito?
Depois de quatro décadas, ela ainda é cientificamente forte?
13

1 TEORIA DE KENNETH N. WALTZ

Neste capítulo, a teoria neorrealista de Waltz é explicada de acordo com os


seus principais pontos e conceitos e com base em sua obra “Teoria das Relações
Internacionais”, de 1979. O estudo de sua tese é de suma importância para o presente
trabalho, já que é impossível descobrir se o conflito iemenita pode ou não ser
explicado pelas suas lentes se não as conhecer.

Primeiramente, se faz necessário ilustrar o funcionamento e a lógica da teoria


de relações internacionais de Kenneth N. Waltz (WALTZ, 2002). Diferentemente das
teorias reducionistas (ou, como Waltz as chama, “analíticas”) em voga na época de
sua fundamentação, Waltz propõe uma teoria de cunho sistêmico. Mas o que são
teorias reducionistas e sistêmicas, e qual a diferença entre elas?

Resumidamente, teorias reducionistas são aquelas em que “o todo é entendido


conhecendo os atributos e as interações de suas partes” (WALTZ, 2002, p. 35). Já as
sistêmicas são aquelas em que se pressupõem a existência de uma estrutura
internacional, a qual se relaciona e opera em conjunto com as interações entre as
partes, ou, dito em outras palavras, entre as unidades. De acordo com o próprio autor:

As teorias das relações internacionais que concentrem as causas no nível


individual ou nacional são reducionistas; as teorias que concebem as causas
como operando também ao nível internacional são sistémicas. (WALTZ,
2002, p. 35)

Waltz apresenta em um de seus exemplos de abordagens reducionistas nas


relações internacionais as teorias sobre Imperialismo de John A. Hobson (1902) e
Lênin (1917). Segundo Hobson e, posteriormente, Lênin as relações internacionais da
segunda metade do século XIX e do início do século XX se davam por efeito do
capitalismo das grandes potências da época, como Grã-Bretanha, França, Alemanha,
Áustria-Hungria, Itália e Japão (WALTZ, 2002). A situação econômica destes países
era a causa primária do imperialismo exercido por eles na Ásia e na África, visto que
eles necessitavam de novos territórios para escoar os seus excedentes produtivos.
Dito de outra forma, a situação econômica interna dos Estados os levava
imperativamente às guerras por novas colônias e, portanto, o sistema internacional
(se é que é possível, na visão destes autores, chamar de sistema) era criado pelas
suas condições de produção internas.
14

O problema de abordagens como esta, segundo Waltz, é de que não é factível


acreditar que a situação interna dos Estados – no caso, o auge do capitalismo
industrial – e as consequentes interações entre eles sejam os únicos causadores das
relações internacionais. Caso fosse assim, impérios antigos da antiguidade como a
Pérsia, a Macedônia ou Roma não existiriam, já que o capitalismo não existia ainda
naqueles tempos. O autor deixa claro que o comportamento imperialista das grandes
potências sempre existiu ao longo da história, não sendo possível creditá-lo ao
capitalismo dos séculos XIX e XX. É claro que o imperialismo da Antiguidade difere
do imperialismo moderno em diversos aspectos, mas a lógica é a mesma: busca por
territórios em prol do crescimento econômico, político e militar. O Imperialismo seria,
então, produto do último estágio do capitalismo, ou seria produto do avanço dos
grandes e mais poderosos Estados em cada uma das épocas da história? Este fato
levanta a questão de que mesmo atores totalmente diferentes, em épocas diferentes,
com sistemas políticos e econômicos diferentes, se comportam de forma semelhante
no cenário internacional.

Esta continuidade de padrões de comportamento externo de atores políticos


internacionais totalmente diferentes um dos outros, e em contextos também
totalmente diferentes, leva ao descrédito teorias que supõem as vontades de cada
unidade do todo internacional como as únicas responsáveis pelo modo de
funcionamento das relações internacionais (WALTZ, 2002). Se fosse este o caso,
Estados de épocas diferentes teriam como consequência de suas ações ambientes
muito diferentes uns dos outros, o que historicamente não é provado, visto a histórica
continuidade das guerras, da diplomacia e do comércio, para citar apenas alguns
exemplos.

“Internacionalmente, estados diferentes produziram resultados quer similares


quer diferentes, e estados similares produziram resultados quer diferentes
quer similares. As mesmas causas algumas vezes levam a efeitos diferentes,
e os mesmos efeitos algumas vezes derivam de causas diferentes. Somos
levados a suspeitar que as explicações reducionistas das relações
internacionais são insuficientes e que as abordagens analíticas devem dar
lugar a abordagens sistémicas.” (WALTZ, 2002, p. 59)

Deste modo, é possível perceber que existe algo além das simples ações e
interações entre os Estados nas relações internacionais. Este algo além é proposto
por Waltz como sendo a estrutura do sistema. Para o autor (WALTZ, 2002), existem
dois níveis em dado sistema internacional: o primeiro seria a estrutura, ou o próprio
nível sistêmico, o qual torna possível pensar as unidades como partes de um conjunto,
15

algo mais do que uma mera coleção de atores. O segundo seria composto pelas
próprias unidades em interação entre si.

Figura 1.1 – Níveis dos sistemas internacionais

Fonte: WALTZ, 2002, p. 63

Uma teoria sistêmica, portanto, tem como objetivo mostrar como os dois níveis
do sistema internacional operam e interagem entre si, sempre levando em conta a
demarcação entre cada um deles, já que só é possível “perguntar como A e B se
afetam mutualmente, e continuar procurando uma resposta, se A e B puderem ser
mantidos distintos” (WALTZ, 2002, p. 63). Segundo Waltz, muitos autores anteriores
a ele já tentavam instituir uma teoria sistêmica das relações internacionais, mas caíam
em erro ao confundir os dois níveis (WALTZ, 2002). Fatos consumados como produtos
do sistema eram facilmente explicados como frutos da política interna das unidades.
É claro que cada Estado chega a políticas e decide sobre ações “de acordo com os
seus próprios processos internos, mas as suas decisões são moldadas pela presença
de outros Estados, assim como pelas interações com eles” (WALTZ, 2002, p. 95).

A estrutura do sistema funciona, deste modo, “como uma força constrangedora


e ordeira nas unidades em interação dentro dele” (WALTZ, 2002, p. 104). As teorias
sistêmicas, portanto, explicam as:

“[...] forças às quais as unidades estão sujeitas. A partir delas, podemos inferir
algumas coisas sobre o comportamento esperado e o destino das unidades:
nomeadamente, como terão de competir e ajustar-se umas às outras, se
pretendem sobreviver e florescer. Uma vez que a dinâmica de um sistema
limita a liberdade das suas unidades, o seu comportamento e as resultantes
do seu comportamento tornam-se previsíveis. Como esperamos que as
firmas respondam a mercados diferentemente estruturados, e os estados a
sistemas político-internacionais diferentemente estruturados? Estas questões
teóricas requerem que entendamos as firmas como firmas, e os estados
como estados, sem dar atenção a diferenças entre eles. As questões são
então respondidas por referência ao posicionamento das unidades no seu
sistema e não por referência às suas qualidades internas. As teorias
sistémicas explicam por que motivo diferentes unidades se comportam
similarmente e, apesar das suas variações, produzem resultantes que se
enquadram nos limites esperados.” (WALTZ, 2002, p. 104)
16

É um pouco difícil visualizar a estrutura de um determinado sistema, visto que


ela não existe fisicamente na realidade. Tomemos, então, o exemplo de Waltz sobre
as vestimentas de adolescentes:

“Ninguém diz a todos os adolescentes de uma dada escola ou cidade para se


vestirem de forma semelhantes, mas a maioria fá-lo. Fazem-no, de facto,
apesar de muitas pessoas – os seus pais – estarem constantemente a dizer-
lhes para não o fazerem. De formas espontâneas e informais, as sociedades
estabelecem normas de comportamento.” (WALTZ, 2002, p. 109)

Com o exemplo acima, é possível vislumbrar os dois níveis operando


separadamente em dado sistema: os adolescentes têm suas próprias qualidades e
personalidades e, portanto, agem de acordo com elas; mas ao mesmo tempo que
agem de acordo com suas próprias características, suas qualidades parecem ser
constrangidas por algo “invisível”, por uma estrutura resultante das interações entre
diversos adolescentes. Assim, os níveis são afetados mutuamente, sendo a estrutura
moldada de acordo com as características gerais das unidades e a ação de cada
unidade moldada pelo todo, pela estrutura.

Gustave Le Bon, em sua obra sobre o comportamento de multidões, atesta:

“A mais pungente particularidade apresentada por uma multidão é o seguinte:


quem quer que sejam os indivíduos que a componham, quer o seu modo de
vida, as suas ocupações, a sua personalidade, ou a sua inteligência sejam
parecidos ou não, o facto de eles terem sido transformados numa multidão
dá-lhes uma espécie de mente coletiva que os faz sentir, pensar e agir numa
forma bastante diferente daquela que cada indivíduo no meio deles iria sentir,
pensar e agir se estivesse isolado”. (tradução em WALTZ, 2002, p. 108) 2

Seguindo a citação de Le Bon e usando-a com relação às relações


internacionais, não seria possível compreendê-las levando em conta somente as
características e propósitos de cada Estado, pois a forma como eles estão
organizados também afeta seus comportamentos e suas interações: novamente, a
estrutura do sistema trabalhando!

A próxima seção é dedicada ao aprofundamento do conceito de estrutura.

2 “The most striking peculiarity presented by a psychological crowd is the following: Whoever be the
individuals that compose it, however like or unlike be their mode of life, their occupations, their character,
or their intelligence, the fact that they have been transformed into a crowd puts them in a possession of
a sort of collective mind which makes them feel, think, and act in a manner quite different from that in
which each individual of them would feel, think, and act were he in a state of isolation.” (LE BON, 2009,
p. 30) (original, em inglês)
17

1.1 ESTRUTURA INTERNA E EXTERNA

Demonstrada a estrutura do sistema, o próximo passo será defini-la. De acordo


com Waltz, para se definir uma estrutura deve-se:

“[...] deixar de lado, ou pelo menos abstrair-se das características das


unidades, do seu comportamento, e das suas interacções. Por que motivo
têm estes assuntos, obviamente importantes, de ser omitidos? Eles têm de
ser omitidos de forma a que possamos distinguir entre variáveis ao nível das
unidades e variáveis ao nível do sistema.” (WALTZ, 2002, p. 114)

Como visto na citação acima, para se enxergar melhor a estrutura e seus


efeitos, sua definição deve ser devidamente separada das unidades para que não haja
confusões entre mudanças a níveis sistêmicos e mudanças a nível das partes.

Mas como é possível fazer isso se a estrutura não existe de fato? Se ela
depende das partes e as partes dependem dela? Waltz sugere que é possível
observar a estrutura se o pesquisador ignorar as relações entre as unidades, suas
personalidades e seus comportamentos, e concentrar seus estudos na posição que
cada unidade ocupa em relação as outras:

“Definir uma estrutura requer ignorar como as unidades se relacionam entre


si (como elas interagem) e concentrar a atenção na sua posição umas em
relação às outras (como estão organizadas ou posicionadas). [...] Como as
unidades se colocam umas em relação às outras, a forma como são
organizadas ou posicionadas, não é uma propriedade das unidades. A
disposição das unidades é uma propriedade do sistema.” (WALTZ, 2002, p.
115)

Portanto, conhecendo a disposição das unidades, conhece-se a estrutura do


sistema.

O interessante do conceito de estrutura para Waltz é que ele não se aplica


somente ao contexto externo, mas também ao contexto interno, embora haja algumas
diferenças que serão discutidas em breve. Um exemplo da estrutura política interna
em operação pode ser descrito comparando os sistemas políticos da Grã-Bretanha e
dos Estados Unidos: Por que as respostas e ações internacionais do governo britânico
parecem demorar mais do que as do governo norte-americano, mesmo o Primeiro-
Ministro da Inglaterra tendo formalmente mais poderes e liberdade para governar do
que o Presidente dos Estados Unidos? A resposta é dada pela natureza da estrutura
da política interna britânica, a qual é mais constrangedora que a dos Estados Unidos.
Mesmo sendo teoricamente mais livres para governar, os Primeiros-Ministros do
Estado europeu têm suas ações constrangidas pelos seus partidos e pelo resto do
18

Parlamento, sendo na prática impossível para cada um deles liderar o país de acordo
com suas próprias ideias e com “mãos de ferro”, sem o perigo de algumas facções de
seus partidos se rebelarem e os tirarem da liderança. Mesmo com poderes formais
mais amplos se comparados aos dos chefes de Estado dos Estados Unidos, muita
cautela é necessária na condução da política britânica. É claro que as ações do
Presidente norte-americano também são de certa maneira constrangidas pelo
Congresso ou pela Suprema Corte, mas mesmo assim eles acabam possuindo mais
liberdade de ação do que seus pares ingleses.

O exemplo acima mostra as estruturas funcionando em nível interno: segundo


Waltz, a única explicação para tal fato – os líderes britânicos terem menos liberdade
de ação do que os norte-americanos, mesmo teoricamente possuindo mais poder para
tal – é a de que as unidades políticas dos dois países estão justapostas e organizadas
diferentemente, afetando assim a estrutura dos dois sistemas e os impelindo a
diferentes modos de ação internacional:

“Na Grã-Bretanha e na América os poderes legislativo e executivo são


diferentemente justapostos e organizados. Na Inglaterra estão fundidos; na
América estão separados e, de muitas formas, colocados um em oposição ao
outro. As diferenças na distribuição do poder e da autoridade entre agências
formais e informais afectam o poder dos chefes do governo e ajudam a que
se responsabilizem pelas diferenças persistentes na sua actuação.” (WALTZ,
2002, p. 118)

Novamente, a “estrutura é definida pela disposição das suas partes” (WALTZ,


2002, p. 115). Deste modo, a imperatividade de se definir a estrutura à parte das
unidades se torna mais latente, visto que evita o erro comum de se confundir causas
particulares com causas sistêmicas: “Apenas as mudanças de disposição são
mudanças estruturais” (WALTZ, 2002, p. 115). Pensando desta maneira, é possível
mostrar que a cotidiana ineficiência internacional inglesa não se dá por conta da
fraqueza de seus líderes (as unidades), mas sim por conta da forma como suas
instituições políticas estão dispostas (a estrutura), constrangendo a linha de ação de
quem está no poder.

Mas mesmo existindo também uma estrutura internamente aos Estados, ela
difere muito da estrutura político-internacional (estrutura externa):

“As partes dos sistemas políticos internos têm relações de superioridade e


subordinação. Alguns devem comandar; outros devem obedecer. Os
sistemas internos são centralizados e hierárquicos. As partes dos sistemas
político-internacionais têm relações de cooperação. Formalmente cada um é
igual aos outros. Nenhum deve comandar; nenhum deve obedecer. Os
19

sistemas internacionais são estruturas claramente diferentes, de facto, são o


contrário uns dos outros. As estruturas políticas internas têm instituições
governamentais e os cargos como as suas contrapartidas concretas. A
política internacional, em contraste, tem sido chamada ‘política na ausência
de governo’.” (WALTZ, 2002, p. 125)

O fragmento de texto acima deixa claro o pensamento que Waltz, sendo um


autor com raízes da escola realista das Relações Internacionais, tinha sobre a política
internacional: para ele, ela é anárquica. Mas se ela é anárquica, não há nenhum
princípio ordenador, nenhuma organização formal nas relações internacionais. Como
então pode existir uma estrutura regendo o sistema político internacional?

Para responder a pergunta acima, será necessário aprofundar um pouco mais


a definição de estrutura de Waltz. Para o autor, conhecer a disposição das unidades
é imprescindível para a definição de estrutura, mas não suficiente. Waltz nos dá mais
três termos para a definição e o melhor deslumbramento das estruturas: 1) Princípios
ordenadores; 2) Especificação das funções de unidades formalmente diferenciadas;
3) Distribuição das capacidades das unidades (WALTZ, 2002).

1.1.1 Princípios ordenadores

Este primeiro passo consegue dar uma resposta plausível para a (des)ordem
da política internacional e responder a pergunta anteriormente colocada.

Waltz (WALTZ, 2002) sugere que para entender a questão, se analise a política
internacional de forma semelhante a qual os economistas adeptos do laissez-faire,
popularizado por Adam Smith, enxergam o mercado. A teoria econômica liberal, que
tem como “pai fundador” a obra de Smith, “A Riqueza das Nações”, explicava os
mercados como sendo o princípio ordeiro das relações econômicas entre os diversos
atores de uma dada sociedade. Dito isto, todos os atores econômicos interagem no
mercado sempre visando seus próprios interesses, ou seja, de forma individualista e
egoísta. Segundo Smith (WALTZ, 2002), de alguma forma, as ações de cada um
destes atores impelidos pelo mercado a competir entre si para maximizar seus lucros,
levam a harmonia econômica, mesmo cada um deles lutando por interesses distintos
e muitas vezes antagônicos. A verdade é que estes atores econômicos acabam por
cooperar entre si sem querer, pois são impelidos pelo mercado a isso. Nenhum dono
de panificadora é louco o bastante para subir seus preços de um dia para a noite em
busca de mais lucros e, consequentemente, maior satisfação pessoal, pois ele sabe
20

que seus pares donos de panificadoras não irão fazer isto; sua ambição por lucros
maiores iria acabar por deixá-lo sem lucro algum. Assim, o mercado atua como um
constrangimento às ações do dono de panificadora, assim como as estruturas atuam
constrangendo a ação das unidades, ou, dos Estados.

A noção de mercados é uma ótima analogia para a compreensão das estruturas


político-internacionais de Waltz, visto que eles também não são visíveis, não existem
fisicamente na prática, mas são mais fáceis de se entender devido a consagrada
popularidade de Smith. A substituição dos atores econômicos pelos Estados, e dos
mercados pela estrutura político-internacional funcionam perfeitamente.

“Os sistemas políticos internacionais, como os mercados económicos, são


formados pela cooperação de unidades egoístas. As estruturas internacionais
são definidas em termos das unidades políticas primárias de uma dada era,
sejam elas cidades-estado, impérios, ou nações. As estruturas emergem da
coexistência dos estados. Nenhum estado tenciona participar na formação de
uma estrutura pela qual, ele e outros, serão constrangidos. Os sistemas
políticos internacionais, como os mercados econômicos, são originariamente
individualistas, gerados espontaneamente e involuntários. Em ambos os
sistemas, as estruturas são formadas pela cooperação das suas unidades.
Se essas unidades vivem, prosperam, ou morrem, depende dos seus próprios
esforços. Ambos os sistemas são formados e mantidos num princípio de auto-
ajuda3 que se aplica às unidades.” (WALTZ, 2002, p. 129)

Os Estados, da mesma forma como qualquer empresa, podem comportar-se


como quiser: os empresários são livres para aumentar seus preços de forma
exorbitante ou diminuí-los bruscamente quando quiserem; mas se fizerem isto, não
sobreviverão, pois os padrões de comportamento inseridos pelo mercado dizem que
será assim. Analogamente, os Estados podem se comportar da maneira como
quiserem internacionalmente, mas serão constrangidos por padrões de
comportamento: “Podemos comportar-nos como quisermos. No entanto, os padrões
de comportamento emergem e eles derivam dos constrangimentos estruturais do
sistema” (WALTZ, 2002, p. 131). Sendo a sobrevivência um pré-requisito para o
alcance de qualquer outro objetivo que um Estado possa ter (WALTZ, 2002), eles não
agirão de forma a pôr em risco a sua existência, são constrangidos pela estrutura
internacional.

Portanto, conclui-se, segundo Waltz, que é sim possível as relações


internacionais serem anárquicas e, ao mesmo tempo, possuírem um princípio
ordenador chamado de estrutura.

3 Um sistema de auto-ajuda é baseado no interesse próprio das unidades. (WALTZ, 2002)


21

1.1.2 Especificação das funções de unidades diferenciadas

Este termo serve mais para a definição da estrutura interna do que para a
definição da estrutura externa, visto que internamente as unidades são diferenciadas,
cada uma exercendo determinada função (ex.: poder legislativo, poder executivo,
poder judiciário...) e hierarquizadas (ex.: Parlamentares, Presidente, juízes...).
Internacionalmente, isto não acontece:

“Os estados que são as unidades dos sistemas político-internacionais não


são formalmente diferenciados pelas funções que desempenham. A anarquia
impõe relações de coordenação entre as unidades de um sistema, e isso
implica a sua semelhança.” (WALTZ, 2002, p. 132)

Sendo assim, as estruturas internacionais variam apenas de acordo com


mudanças nos termos 1 e 3 (princípios ordenadores e distribuição das capacidades
das unidades) (WALTZ, 2002). Todavia, a explicação deste termo (especificação das
funções) torna-se importante para o entendimento da estrutura internacional quando
a questão sobre quais atores são considerados unidades do sistema é posta à mesa.

O autor pergunta-se: por qual motivo os Estados, semelhantes entre si em


termos anárquicos, são escolhidos na teoria como unidades do sistema internacional?
No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, período em que Waltz escreve sua
teoria, as relações internacionais já eram marcadas por diversos atores não estatais,
os quais de acordo com muitos especialistas daquela época já possuíam o mesmo
poder ou eram quase tão fortes quanto os Estados. Por que então não os incluir como
unidades do sistema? Eles provavelmente não seriam tão semelhantes como os
Estados são entre si visto a inexistência de diversos atributos estatais, como a
soberania por exemplo. Waltz, mostrando novamente suas raízes realistas, responde:

“[...] as estruturas são definidas não por todos os actores que florescem
dentro delas mas pelos mais importantes. Ao definirmos a estrutura de um
sistema escolhemos um ou alguns dos muitos objectos que compõem o
sistema e definimos a sua estrutura mediante esses objectos.” (WALTZ,
2002, p. 132)

O autor não nega em nenhum momento que haja atores não estatais
importantes na política internacional; ao contrário, ele afirma que sim, existem muitos
e cada vez em maior número (WALTZ, 2002). Mas segundo ele, não são relevantes
do ponto de vista estrutural do sistema, visto que suas diferentes funções dentro do
sistema não têm poder de definir a estrutura internacional. Segundo o autor, querendo
ou não, estes atores não-estatais são possibilitados de agir apenas pela aceitação
22

dos próprios Estados. O autor deixa claro a sua concepção “Estadocentrista” das
relações internacionais ao afirmar:

“Enquanto os estados mais importantes forem os actores mais importantes,


a estrutura das relações internacionais é definida em função deles. [...]
Apesar de eles poderem escolher interferir pouco nos assuntos dos actores
que não são estados por longos períodos de tempo, os estados, no entanto,
estabelecem as condições da relação, quer permitindo passivamente que
regras informais se desenvolvam ou intervindo activamente para mudar as
regras que já não os servem. Na hora do aperto, os estados refazem as
regras segundo as quais os outros actores operam.” (WALTZ, 2002, p. 134)

Para o autor, só faria sentido considerar os atores não estatais como unidades
do sistema caso eles tivessem se desenvolvido “ao ponto de rivalizarem ou
ultrapassarem as grandes potências, e não apenas alguns dos estados menores”
(WALTZ, 2002, p. 134), como de fato já acontecia na época. Isto porque as interações
entre unidades só possuem força o suficiente para agirem na estrutura do sistema se
as unidades do sistema forem relevantes. Para ele, não adiantaria realizar uma teoria
de relações internacionais focada nas interações entre as unidades de menor porte
do sistema:

“Em teoria sistémica, estrutura é uma noção generativa; e a estrutura de um


sistema é gerada pelas interacções das suas principais partes. [...] Será tão
ridículo construir uma teoria das relações internacionais baseada na Malásia
e na Costa Rica, como construir uma teoria económica de competição
oligopolista baseada nas firmas menores de um sector de uma economia. Os
destinos de todos os estados e de todas as firmas num sistema são muito
mais afectados pelos actos e pelas interacções dos maiores do que dos
menores.” (WALTZ, 2002, p. 105)

O autor ainda completa:

“Focarmo-nos nas grandes potências não é perder de vista as mais


pequenas. A preocupação com as relações internacionais como um sistema
requer uma concentração nos estados que fazem a maior diferença. Uma
teoria geral de relações internacionais é necessariamente baseada nas
grandes potências.” (WALTZ, 2002, p. 105)

Ainda assim, algumas pessoas podem se perguntar: Waltz não considera em


sua teoria atores não estatais pois além deles não possuírem força suficiente para
operarem na estrutura do sistema, diferem em muitos aspectos dos Estados,
principalmente pela inexistência de soberania; mas dizer que todos os Estados
operam como unidades semelhantes não seria também errôneo visto a grande
diferença de alguns em relação aos outros? Seria mesmo possível países como
Uganda e Tibete serem considerados semelhantes a países como Estados Unidos ou
China?
23

Waltz considera que sim, todos os Estados são semelhantes entre si e por isto
devem ser tidos como as unidades do sistema. São semelhantes pois todos possuem
soberania. Todos são livres para decidirem por si mesmos como irão enfrentar os seus
problemas internos e externos, incluindo a escolha por procurar ou não assistência de
outros, mesmo que isto limite sua liberdade de ação (WALTZ, 2002). Segundo o autor,
a confusão entre o conceito de soberania e a capacidade de cada Estado de chegar
sozinho aos seus objetivos é a causa para tal falso pensamento. Cada unidade do
sistema, ou cada Estado, possui capacidades diferentes para alcançar seus desejos,
mas mesmo assim ainda são livres para tentá-lo, fato que não acontece com os atores
não estatais, já que sempre precisam do aval dos Estados para seu funcionamento.

A ideia de capacidades de cada unidade do sistema nos leva ao terceiro termo


citado por Waltz para a melhor compreensão das estruturas.

1.1.3 Distribuição da capacidade das unidades

Como visto anteriormente, a distribuição de capacidades das unidades, assim


como o princípio ordenador, tem o poder de alterar a estrutura de um sistema. Para
exemplificar, digamos que exista um sistema internacional multipolar onde seis
Estados possuem força suficiente para se destacarem dos demais. Digamos que em
certo ponto da história estes seis Estados se dividam em duas alianças, três em cada.
O sistema passou de multipolar para bipolar? Segundo Waltz, não. Não passou para
um sistema bipolar pois dos seis países, não existem dois que tenham capacidades
mais elevadas que os outros quatro. O sistema ainda é multipolar pois todos ainda
são iguais em suas capacidades, apenas se juntaram em grupos opostos. Caso dois
deles houvessem evoluído a ponto dos outros não mais conseguirem competir, ou,
dito de outra forma, se suas capacidades tivessem aumentado em relação a dos
outros, aí sim teríamos uma mudança de estrutura.

A seguir, a tabela 1.1 apresenta de forma resumida cada um dos termos


descritos aqui:
24

Tabela 1.1: Definição da estrutura em 3 partes:


1) Princípios ordenadores. As estruturas são definidas de acordo com o
princípio pelo qual um sistema é ordenado.
Os sistemas são transformados se um
princípio ordenador substituir outro. Passar
de um domínio anárquico para um hierárquico
é passar de um sistema para outro.
2) Especificação das funções de As estruturas são definidas pela
unidades formalmente diferenciadas. especificação das funções de unidades
diferenciadas. Os sistemas hierárquicos
mudam se as funções forem diferentemente
definidas e distribuídas. Para os sistemas
anárquicos, o critério da mudança sistêmica
derivado desta segunda parte da definição
desaparece, uma vez que o sistema é
composto por unidades semelhantes.
3) Distribuição da capacidade das As estruturas são definidas pela distribuição
unidades. das capacidades pelas várias unidades.
Mudanças nesta distribuição são mudanças
de sistema quer o sistema seja anárquico ou
hierárquico.

Fonte: WALTZ, 2002, p. 142

1.2 ANARQUIA DO SISTEMA

Definida a estrutura do sistema político-internacional, é preciso agora


aprofundar o estudo da ideia de anarquia de Waltz. Como já foi visto, o sistema
político-internacional é anárquico mesmo possuindo uma estrutura que de certa forma
ordena suas unidades. Também já foi visto que não há problema algum em observar
o sistema internacional desta maneira, visto que os conceitos de anarquia e ordem
dentro de uma estrutura não são contrários como parecem à primeira vista.

O passo seguinte agora, portanto, é, segundo Waltz, “examinar as


características da anarquia e as expectativas acerca dos resultados associados com
os domínios anárquicos” (WALTZ, 2002, p. 143).

1.2.1 Violência interna e externa

Segundo Waltz, não é possível esperar que a estrutura anárquica do sistema


internacional leve a anarquia ao seu significado literário, ou seja, sinônimo de caos e
violência. Neste sentido, é importante ter em mente a analogia da estrutura político-
internacional com o livre mercado de Adam Smith descrita anteriormente.
25

Caso a anarquia da estrutura internacional fosse realmente pautada em caos e


em violência, não seria possível distinguir a nível sistêmico os domínios externo e
interno. Vejamos o exemplo de conflitos internos em determinados Estados: quantos
milhões de pessoas já morreram ou sofreram brutalidades em guerras civis ou nos
mais variados conflitos que ocorrem dentro das fronteiras dos Estados? A Rebelião
de Taiping4 na China, a Guerra Civil Norte-Americana5 e o Genocídio Ruandês6 são
apenas alguns exemplos. Segundo Waltz (WALTZ, 2002), todos os governantes
devem levar em conta que a qualquer momento seus súditos podem usar do recurso
da força para resistir às suas ações ou para os depor. O fato é que “nenhuma ordem
humana é à prova de violência” (WALTZ, 2002, p. 145). Os conflitos internos provam
que mesmo possuindo unidades dispostas de maneira diferenciada e hierarquizada
nas suas estruturas internas – as quais não são anárquicas – os sistemas internos
podem também ser levados ao conflito generalizado. Para exemplificar melhor, tome-
se como exemplo as famílias: é muito difícil uma família que, via de regra, é formada
por indivíduos que nutrem um carinho especial entre si, não ter nenhum tipo de
conflito. Estes conflitos podem nunca evoluir para a violência, mas eles estão lá, eles
existem e podem eventualmente ferir fisicamente algum de seus participantes.

Desta maneira, é possível observar que os conflitos e as guerras do sistema


internacional não são causados pela natureza anárquica de suas estruturas, visto a
existência igual de conflitos nas estruturas hierarquizadas internas dos Estados.

“O uso da força, ou o medo constante do seu uso não constituem base


suficiente para distinguir assuntos internacionais de internos. Se o uso
possível e real da força marcam as ordens internacionais e internas, então
não pode ser delineada nenhuma distinção duradoura entre os dois domínios
em termos do uso ou não da força. Nenhuma ordem humana é à prova de
violência.” (WALTZ, 2002, p. 145)

A grande diferença da violência interna da violência externa, portanto, não se


dá pela natureza anárquica ou hierarquizada de suas estruturas, mas pelos diferentes
modos de organização do uso da força:

“Nacional como internacionalmente, o contacto gera conflito e, às vezes,


resulta em violência. A diferença entre política nacional e internacional reside
não no uso da força, mas nos diferentes modos de organização para fazer

4 Guerra Civil travada na China entre os anos de 1850 e 1864 entre a dinastia Qing e o Reino Celestial
Taiping. O conflito teve mais de 20 milhões de mortos.
5 Guerra Civil travada nos Estados Unidos entre os anos de 1861 e 1865 entre os estados do Norte e

os estados do Sul do país. O conflito teve em torno de 600.000 e 700.000 vítimas fatais.
6 Genocídio cometido pelo povo hutu contra o povo tutsi em Ruanda no ano de 1994. Estima-se que o

conflito tenha tido quase 800.000 mortos.


26

alguma coisa em relação a esse uso. [...] um governo efectivo tem um


monopólio no uso legítimo da força, e legítimo aqui significa que os agentes
públicos estão organizados para evitar e para conter o uso privado da força.
Os cidadãos não precisam de se preparar para se defender. As agências
públicas fazem-no. Um sistema político interno não é um sistema de auto-
ajuda. O sistema internacional é.” (WALTZ, 2002, p. 145)

Sendo as estruturas anárquicas ou não, segundo Waltz a natureza humana


tende ao conflito. O que diferencia a violência interna da externa não é anarquia
internacional, mas a forma como os recursos ao uso da força são organizados pelas
estruturas.

1.2.2 Interdependência e integração

Interdependência e integração são outros dois conceitos que ajudam a


entender a anarquia internacional.

Para Waltz, “o significado político de interdependência varia dependendo se um


domínio é organizado, com relações de autoridade específicas e estabelecidas, ou se
permanece formalmente desorganizado” (WALTZ, 2002, p. 145). Dito de outra forma,
a interdependência entre as unidades no sistema internacional é diferente da
interdependência no sistema nacional.

No nível nacional, as unidades são dispostas diferenciadamente e


hierarquicamente e, deste modo, são livres para se especializarem em determinados
campos. Waltz cita o exemplo simples de dois estados norte-americanos: “o Kansas
depende de Washington para ter proteção e regulamentação e Washington depende
do Kansas para ter carne e trigo” (WALTZ, 2002, p. 146). O Kansas, como um dos
entes políticos da federação e estando devidamente seguro dentro do pacto federativo
norte-americano, não enxerga nenhum problema em especializar-se na produção de
carne e trigo e acabar por se tornar dependente dos outros estados norte-americanos
em outras áreas pois isto não o fará deixar de existir. Lucrando com a carne e com o
trigo, o Kansas continua tendo êxito em perseguir “seus próprios interesses sem se
preocupar em desenvolver os meios de manutenção da sua identidade e preservação
da sua segurança perante os outros” (WALTZ, 2002, p. 146).

Já no contexto internacional anárquico as coisas são diferentes: como as


unidades são dispostas de forma indiferenciada e semelhante, a especialização de
tarefas não é tão forte como no contexto interno. Waltz defende que sim, pode existir
27

uma tal divisão do trabalho entre os Estados pois eles diferem muito no que diz
respeito às suas capacidades. Mas, no entanto, esta divisão entre nações é
“irrelevante em comparação com a altamente articulada divisão do trabalho dentro
delas” (WALTZ, 2002, p. 147).

“Num ambiente anárquico, as unidades semelhantes cooperam. Em meios


hierarquizados, unidades diferentes interagem. Num ambiente anárquico, as
unidades são funcionalmente similares e tendem a manter-se assim. As
unidades semelhantes trabalham para manter uma certa independência e
podem até lutar pela autarcia7. Num meio hierarquizado, as unidades são
diferenciadas, e tendem a aumentar a extensão da sua especialização.”
(WALTZ, 2002, p. 146)

Por ter o conceito de interdependência significados diferentes quando visto do


ponto de vista interno e quando visto do ponto de vista internacional, Waltz decide por
utilizar dois nomes diferentes: a interdependência descreve a condição entre as
nações, enquanto a integração descreve a condição dentro das nações. Deste modo,
interdependência descreve a relação entre as unidades em um ambiente anárquico e
a integração descreve a relação entre as unidades em um ambiente hierarquizado.

De acordo com Waltz (WALTZ, 2002), a estrutura anárquica do sistema


internacional impele os Estados à interdependência e não à integração por dois
motivos. O primeiro deles é a questão dos ganhos possíveis que cada um pode ter.
Os Estados sempre se preocupam com uma divisão dos ganhos maiores para seus
pares do que para si mesmos. Diferentemente de unidades de um sistema
hierarquizado, que pensam se “irão todos ganhar”, os Estados como unidades de um
sistema anárquico pensam em “quem irá ganhar mais”. Mesmo que em determinada
troca um Estado também ganhe, os ganhos maiores dos outros Estados podem
transformar-se em combustível para o aumento de suas capacidades, as quais podem
tornar-se um perigo aos seus interesses e à sua sobrevivência no sistema: “[...] a
condição de insegurança – no mínimo, a incerteza de um relação às futuras intenções
e ações do outro – trabalha contra a sua cooperação” (WALTZ, 2002, p. 147).
Importante ressaltar que em nenhum momento Waltz defende que Estados são
avessos à cooperação entre si. Como já mencionado, a divisão de tarefas entre eles
existe, mas é irrelevante perto da integração dos sistemas internos.

O segundo motivo que impele os Estados à interdependência e não à


integração é referente a própria independência de cada unidade: os Estados “se

7 Autarcia: sociedade que, do ponto de vista econômico, se basta a si mesma.


28

preocupa(m) para que não se torne(m) dependente(s) de outros através de esforços


cooperativos e trocas de bens e serviços” (WALTZ, 2002, p. 149). Nenhum Estado
quer depender totalmente de outros. Todos tentam ser o mínimo possível
dependentes dentro de suas próprias capacidades.

“Num ambiente desorganizado o incentivo de cada unidade é pôr-se numa


posição de ser capaz de tomar conta de si mesma, uma vez que não pode
contar com mais ninguém para fazê-lo. O imperativo internacional é ‘toma
conta de ti mesmo’!” (WALTZ, 2002, pgs. 149, 150)

A especialização vista em um sistema formalmente organizado se torna fraca


internacionalmente pois vai contra os imperativos anárquicos internacionais.

1.2.3 Estruturas e estratégias

Outra característica dos sistemas anárquicos, segundo Waltz, é a dificuldade


que paira sobre as unidades do sistema em atingir objetivos previamente delineados
racionalmente.

Waltz (WALTZ, 2002) novamente faz uma analogia ao pensamento econômico:


suponha que uma empresa faz um comunicado aos consumidores lhes dizendo que
um de seus produtos irá ter a produção cortada temporariamente. Todos os indivíduos
sabem que a melhor escolha coletiva seria se cada um comprasse menos do produto,
pois assim haveria uma distribuição equitativa e todos sairiam ganhando. Mas como
quem comprar diversas unidades do produto e estocá-los em casa sairá melhor que
os outros, todos o fazem, mesmo que a decisão seja terrível para a grande maioria.

Em uma estrutura anárquica, os Estados podem até racionalizar quais ações


seriam as melhores para a coletividade, mas alcançar esses objetivos é inviável. Se
qualquer um dos consumidores acima descritos escolher por comprar pouco do
produto pelo bem-comum e esperar que os outros também façam a escolha certa,
acabará se prejudicando. Além de se prejudicar, sua ação isolada não alterará o bem-
estar comum, pois os estoques irão acabar por força da maioria, ele comprando ou
não.

“[...] a busca do interesse próprio produz resultados colectivos que ninguém


quer, contudo os indivíduos ao comportarem-se diferentemente irão
prejudicar-se sem alterarem as resultantes. [...] Não posso seguir
sensatamente alguns cursos de acção a não ser que tu também os sigas, e
tu e eu não podemos sensatamente segui-los a não ser que esteamos muito
seguros de que muitos outros também o farão.” (WALTZ, 2002, p. 151)
29

O trecho acima mostra o quão difícil é para as unidades de um sistema alcançar


objetivos benéficos para a coletividade. Os constrangimentos da estrutura anárquica
fazem com que seja muito complicado atingir políticas coletivas para o bem-comum.
O problema climático e os arsenais nucleares exemplificam na prática esta dificuldade.
E isto também explica a histórica continuidade da anarquia internacional:

“[...] o comportamento racional, dados os constrangimentos estruturais, não


leva aos resultados desejados. Com cada país impelido a tomar conta de si
mesmo, ninguém pode tomar conta do sistema.” (WALTZ, 2002, p. 153)

Para Waltz, a única solução para tais problemas estruturais seria uma mudança
na própria estrutura (WALTZ, 2002).

O conceito de anarquia pode ser finalizado com mais uma característica: a


estrutura anárquica de auto-ajuda impele os Estados a competirem entre si e, desta
maneira, comportarem-se como verdadeiros competidores: “se imitarão uns aos
outros e se tornarão socializados no sistema” (WALTZ, 2002, p. 178).

1.3 BALANÇA DE PODER

Explicados os conceitos de estrutura e anarquia, o próximo e último passo para


compreender a teoria de Waltz é entender a balança de poder internacional.

De acordo com os constrangimentos estruturais e a anarquia internacional, os


Estados agem de formas parecidas repetidamente. Mas quais são os resultados
destas ações? A balança de poder surge, então, na tentativa de explicá-los:

“Os constrangimentos estruturais explicam por que motivo os métodos são


repetidamente usados apesar das diferenças nas pessoas e nos estados que
os usam. A teoria da balança de poder tenta explicar o resultado que tais
métodos produzem.” (WALTZ, 2002, p. 163)

A teoria da balança de poder, contudo, não foi criada por Waltz. O conceito já
existia e já circulava nos meios acadêmicos entre os autores ligados à escola realista
das Relações Internacionais. Mas, segundo Waltz, nenhum destes autores havia
concluído de forma certeira como as balanças de poder funcionavam pelo simples fato
de nunca terem se atentado aos constrangimentos impostos às unidades pela
estrutura anárquica do sistema.

Normalmente, os autores realistas concluíam que a balança de poder era


formada pela vontade dos Estados de se contrabalancearem gerando, então, um
30

ambiente internacional mais seguro. A política externa norte-americana encabeçada


por Henry Kissinger8 é um exemplo deste pensamento. Waltz, de maneira diferente,
acredita que as balanças de poder surgem quer os Estados queiram, quer não:

“Diferentemente da concepção voluntária, Kenneth Waltz enxerga a


balança de poder como um atributo do sistema, quer os Estados desejem que
ela ocorra, quer não.” (VIOTTI; KAUPPI, 2012, p. 60, tradução própria). 9

Mas o que seria a balança de poder? De acordo com Waltz, ela é a resultante
das “ações descoordenadas dos Estados” (WALTZ, 2002, p. 170). Podemos imaginar
a balança de poder como o resultado do equilíbrio entre os Estados de um
determinado sistema. Não necessariamente todos os Estados, mas aqueles que são
os grandes e mais poderosos “players” do sistema político-internacional. Estando eles
equilibrados entre si, os Estados menores penderão para algum dos lados da balança.

Segundo Waltz, as balanças de poder surgem por meio de apenas dois


requisitos: o primeiro, que a ordem do sistema seja anárquica; o segundo, que suas
unidades desejem a sobrevivência (WALTZ, 2002).

Com os sistemas sendo anárquicos e movidos pelo princípio da auto-ajuda, os


Estados não possuem nenhum ente maior que os protejam contra os perigos que
pairam sobre suas próprias existências. Caso não ajudem a si mesmos, equilibrando
seu peso ao outros ou mesmo os ultrapassando, irão sucumbir ao sistema anárquico.
Mais uma vez, a analogia econômica é de bom grado: uma empresa, caso não abaixe
seus preços em dado momento em que todas as suas concorrentes também
baixaram, poderá correr o risco de ir à falência. Esta empresa não quer abaixar os
seus preços, visto que sua margem de lucro diminuirá, mas a estrutura do sistema (o
mercado) a impele a isso e, portanto, terá que diminuir sua receita e se equilibrar às
outras empresas.

Esta analogia ajuda muito a explicar o motivo pelo qual Waltz não acredita que
as balanças de poder surjam pela vontade dos Estados: os Estados são novamente
constrangidos pela estrutura do sistema, a qual os movimenta para a criação destas
balanças. É claro que terá momentos em que Estados desejarão sim que balanças
surjam (a aliança entre Estados Unidos, Grã-Bretanha e União Soviética), mas isto

8 Conselheiro de Segurança Nacional e Secretário de Estado dos Estados Unidos nas presidências de
Richard Nixon e Gerald Ford.
9 “In contrast to this voluntarist conception is that of Kenneth Waltz, who sees the balance of power as

an attribute of the system of states that will occur whether it is willed or not.” (original, em inglês)
31

não quer dizer que elas surjam pelas suas vontades. Para Waltz, as vontades podem
ir de acordo com as balanças, ou não.

“A teoria da balança de poder diz explicar um resultado (a formação


recorrente de balanças de poder), que pode não estar de acordo com as
intenções de qualquer das unidades cujas acções se combinam para produzir
esse resultado. Forjar e manter uma balança pode ser o objectivo de um ou
mais estados, mas também pode não o ser.” (WALTZ, 2002, p. 166)

Vista a teoria das Relações Internacionais de Waltz, o próximo capítulo tem


como objetivo analisar a história iemenita. O estudo histórico do Estado possibilita o
entendimento de diversos aspectos culturais e políticos do Iêmen, os quais se
traduzem em ferramentas utilizadas no capítulo 3 para se compreender o conflito atual
e possibilitar a correta análise sobre o poder de explicação da teoria de Waltz naquele
país.
32

2. HISTÓRIA DO IÊMEN

O Estado do Iêmen localiza-se em uma região milenar da Península Arábica.


Segundo Clark (CLARK, 2010), os antigos romanos conheciam o território do atual
Iêmen como a “Arabia Felix”, ou, traduzindo para o português, como Arábia Fértil ou
Arábia Feliz. O povo que lá vivia sempre foi visto como evoluído pelas civilizações da
antiguidade. Sua localização geográfica também o ajudou ao longo dos milênios:

“Historicamente apoiou reinos poderosos e teve sua história refletida na arte


e na arquitetura extensa e bem desenvolvida. Além disso, várias civilizações
que governaram o território a partir de 1.000 a.C. prosperaram devido ao
comércio de especiarias, visto que o Iêmen serviu como rota da Índia,
fornecendo ao Egito, Roma e Grécia itens como mirra e incenso.” (SANTOS,
2020, p. 27)

Sua localização geográfica é mostrada na figura 2.1:


Figura 2.1 Iêmen

Fonte: BBC, 2022

Atualmente, no entanto, o país enfrenta um intenso conflito que não parece ter
prazo para acabar. Conflitos entre diversos atores nacionais, grupos terroristas
armados e rivalidades entre potências estrangeiras como Arábia Saudita e Irã
contribuem para sua continuidade. A guerra, ao longo dos anos, destruiu sua
infraestrutura, deixou seu sistema de saúde em ruínas, contribuiu para a quase
extinção do saneamento básico e tornou doenças contagiosas uma característica
33

comum ao povo (RIBEIRO, 2020). Desta maneira, foi gerada uma das mais sérias
crises humanitárias do mundo, com milhões de pessoas passando fome:

“a ONU estima que 60% da população enfrenta problemas em relação a


alimentação, por não saber quando vão poder se alimentar novamente, ou
seja, existem 17 milhões de pessoas em alto risco de insegurança alimentar.”
(RIBEIRO, 2020, p. 23)

Dito isto, o presente capítulo trata da história do país e tem como intuito
possibilitar a geração de ferramentas para se compreender a interminável guerra que
assola o Estado do Iêmen, retratada no capítulo 3. Para entender os motivos que
implodiram o país ao conflito, se faz necessária uma compreensão histórica sobre
como o país foi formado. Conhecendo os processos políticos que o país vivenciou
desde as ocupações otomana e britânica, torna-se mais fácil a análise das
características do conflito atual, assim como suas causas. Para atingir tal tarefa,
primeiramente é apresentada sua posição geográfica e, em seguida, a história do país
dividida por períodos (século XVI-1918; 1918-1970; 1970-1990; e 1990-1994).

2.1 GEOGRAFIA E POPULAÇÃO DO IÊMEN

O Iêmen é um país árabe localizado ao Sul da Península Arábica. O Estado


tem suas fronteiras delimitadas ao Norte com a Arábia Saudita e ao Leste com Omã.
A Oeste, tem sua costa banhada pelo Mar Vermelho e ao Sul pelo Golfo de Áden.
Pouco mais de 5.000 quilômetros o distanciam dos países africanos de Djibuti e
Eritreia, os quais são separados do Iêmen pelo famoso Estreito de Bab-el-Mandeb,
uma das mais importantes passagens para o comércio internacional de petróleo. Os
navios carregados com o hidrocarboneto advindos de países como Kuwait, Catar,
Bahrein, Emirados Árabes Unidos, Omã e Irã necessitam passar tanto pelo Golfo de
Áden como pelo Estreito de Bab-el-Mandeb para chegar ao Canal de Suez e adentrar
o Mar Mediterrâneo à fim de chegar aos consumidores finais europeus. Segundo
Santos, apenas em 2018 foi contabilizado um “trânsito de 6,2 milhões de barris por
dia de petróleo bruto, condensado e produtos de petróleo refinado em direção à
Europa” (SANTOS, 2020, p. 43) pelo território marítimo iemenita, o que mostra a
grande importância do Iêmen no cenário geopolítico internacional.

Uma característica importantíssima do Iêmen que molda toda sua história


política é o seu relevo: sendo um Estado em grande parte montanhoso, sempre foi
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muito complicado para os invasores dominarem completamente suas tribos


espalhadas pelas diversas montanhas da região – a média de elevação no Iêmen é
de 2.000 metros. Excetuando-se suas faixas costeiras de terra e alguns desertos em
seu interior, o país é constituído basicamente por planaltos. Para fins de melhor
compreensão de sua história e de seu conflito, o Iêmen será separado em 3 regiões:
O Tihama, o Norte e o Sul. O Tihama é a faixa de terra da Península Arábica costeira
ao Mar Vermelho, uma das poucas áreas planas do país. O Norte e o Sul não
correspondem exatamente ao que seria o Norte e o Sul geográficos do Iêmen: a
separação é baseada tanto em sua história política como na natureza de sua
população. Na figura 2.2 o Tihama corresponde à letra “A”, o Norte à letra “B” e o Sul
à letra “C”:

Figura 2.2 Regiões do Iêmen

Fonte: BBC, 2022 (Edição própria)

O Iêmen tem uma população de mais de 31.000.000 de pessoas


(WORLDOMETERS, 2022), as quais são majoritariamente adeptas do Islã. Mas a
população é dividida por duas diferentes escolas do Islamismo: o Zaidismo e o
Xafeísmo. O Zaidismo é uma vertente xiita, enquanto o Xafeísmo é uma vertente
sunita. A maior divergência de entendimento do Islã entre xiitas e sunitas em geral diz
respeito à legitimidade do sucessor de Maomé como líder islâmico. Os sunitas
formaram-se em torno do grupo que defendia Abu Bakr, sogro de Maomé, como seu
sucessor; por outro lado, os xiitas surgiram em torno do grupo que defendia Ali ibn Abi
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Talib, genro e primo de Maomé como o próximo líder islâmico, visto que Talib
compartilhava do mesmo sangue do profeta (DYER; TOBEY, 2016). Após séculos a
divergência formou diversas escolas de pensamento, sendo exemplos os já citados
Zaidismo e Xafeísmo. Dito isto, a população do Sul e do Tihama é composta
majoritariamente por sunitas xafeístas, enquanto a população do Norte é
caracterizada pela sua maioria xiita zaidista. No geral, os xiitas são em menor número
(quase um terço da população), mas detém mais poder político, como é mostrado nas
próximas seções.

Desta maneira, é possível completar a caracterização das regiões: a região “A”,


de Tihama, é caracterizada por ser uma planície e por ter a maioria de sua população
adepta do sunismo; a região “B”, do Norte, é extremamente montanhosa e tem sua
população majoritariamente seguindo a vertente xiita; já a região “C”, do Sul, é
composta tanto por planícies (em suas faixas costeiras) como por planaltos (no
interior), e sua população é em maior número sunita.

Para finalizar a seção, o entendimento sobre as divisões étnicas do Iêmen


também se faz extremamente importante. O Estado não é caracterizado por uma
população homogênea, pelo contrário. Desde a Antiguidade o território que hoje faz
parte do Iêmen é composto por diversas tribos, cada uma com seus líderes, fato que
até os dias de hoje se faz presente no Estado. A estrutura societária do Iêmen é, em
primeiro lugar, tribal. A formação do Estado iemenita não excluiu as divergências e os
diferentes interesses das tribos que o formam.

2.2 IÊMEN ATÉ 1918

As tribos do Norte iemenita nunca foram autossuficientes. Por viverem em


montanhas, sempre precisaram fazer incursões ao litoral do Iêmen para a conquista
de recursos essenciais à sua sobrevivência. No século XVI, quando os otomanos
chegaram pela primeira vez à costa do Iêmen por meio do Mar Vermelho, foram
recebidos com entusiasmo pelas tribos que viviam na região de Tihama, já que os
estrangeiros poderiam os proteger das tribos do Norte. Mas não foi o que aconteceu,
os otomanos logo mostraram que não seriam salvadores de ninguém. Nem mesmo
as diferenças religiosas bastaram para que os otomanos decidissem juntar todas as
36

tribos do Norte, do Sul e do Tihama em uma só província satélite do Império (CLARK,


2010).

Mas a resistência das tribos do Norte era tão violenta e forte, e o território era
tão inóspito e de difícil acesso, que o Império Turco-Otomano decidiu deixá-las
independentes, diferentemente da região Sul e costeira. Um acordo entre o Sultão
otomano e Mutahhar, um dos líderes das tribos xiitas do Norte, decidiu que os poderes
tribais da região Norte iemenita reconheciam o poder otomano sobre o restante do
território, e em troca o Sultão reconhecia as suas lealdades e existências
independentes formais. A situação não agradou nem um pouco as tribos do Sul e do
Tihama, as quais esperavam com entusiasmo a presença otomana para as
protegerem. O entusiasmo inicial acabou por se tornar tristeza pela perda total de suas
independências (CLARK, 2010)

Porém, 13 anos após o acordo entre os otomanos e as tribos do Norte, a


diminuição da receita otomana que vinha das regiões Sul e a influência cada vez maior
dos portugueses e franceses na região fizeram com que o Sultão mudasse de ideia e
resolvesse conquistar todo o território iemenita, incluindo as tribos do Norte. O Iêmen,
na época, era muito importante estrategicamente para os muçulmanos turcos pois
servia como uma “porta” para as cidades sagradas de Meca e Medina, atualmente
partes da Arábia Saudita. Com o Império saindo vitorioso da nova empreitada, o Iêmen
termina o século XVI totalmente controlado pelo Sultão otomano (CLARK, 2010)

No entanto, a partir do século XVII, a importância da região para os turcos foi


perdendo o tamanho, visto a preocupação maior do Império no cenário europeu. Em
1609 a Companhia das Índias Orientais Britânicas constrói o seu primeiro posto
avançado de comércio no porto de Moca, que na época era importantíssimo para o
comércio de café, o produto iemenita mais popular internacionalmente daqueles
tempos. Segundo Clark, este foi o início da dominação britânica, a qual seria pior que
a otomana.

“Os iemenitas demoraram para perceber, mas as embarcações


britânicas e holandesas que lotavam o porto de Moca para comprar
café no início do século XVII representavam uma ameaça à longo
prazo muito maior para sua prosperidade e independência do que
qualquer exército otomano que tentava subjugar suas preciosas terras
montanhosas. Os comerciantes da Companhia Britânica das Índias
Orientais chegaram pela primeira vez à Moca em janeiro de 1609, vinte
37

e três anos antes dos turcos abandonarem o Iêmen.” (CLARK, 2010, p.


20, tradução própria) 10

Por outro lado, o interesse britânico no território começava a aumentar, visto os


lucros cada vez maiores que o comércio de café proporcionava. Assim, em 1618 a
Companhia Britânica recebe a permissão do Sultanato otomano para não apenas
comercializar o café em Moca, mas para também produzi-lo no local: “Em 1618, o
governo otomano garantiu permissão a ambos ingleses e holandeses para
estabelecer suas ‘fábricas’ em Moca.” (CLARK, 2010, p.21, tradução própria)11. Como
percebido nas duas citações acima, os holandeses também faziam presença na
região, mas o presente trabalho não discute seu papel, visto sua coadjuvante
importância em relação aos ingleses.

Em 1632, os otomanos, considerando o cenário geoestratégico europeu mais


importante que a Ásia, abandonam completamente o Iêmen. O poder sobre o território
ficou então novamente divido sob o comando das diversas tribos da região. A região
do Norte ficou sob poder dos imames12 xiitas. A região Sul e a costa do Mar Vermelho
ficaram divididas entre diversas tribos sunitas. A Grã-Bretanha ainda não tinha
pretensões de controle do território, sua presença apenas comercial e produtora já
bastava ao governo de Londres naquele momento. O atual Iêmen, portanto, tinha em
sua parte Norte um califado bem-organizado sob comando xiita, e sua parte Sul
dividida entre diversas tribos sunitas. Importante ressaltar que o Norte mantinha tribos
sunitas sob o seu comando na costa do Mar Vermelho, as quais possibilitavam a sua
sobrevivência econômica por meio do comércio cafeeiro com os britânicos (CLARK,
2010).

Todavia, a partir do século XIX, o interesse britânico no Iêmen começa a


aumentar cada vez mais. A derrota de Napoleão para os ingleses possibilitou que a
Grã-Bretanha deixasse de se preocupar exclusivamente com a segurança da Índia e
pudesse mirar sua atenção para outras partes da Ásia. O Iêmen, então, passou a ser

10 “Yemenis were slow to realize it, but the British and Dutch vessels crowding into Mocha to buy coffee
in the early seventeenth century represented a far greater long-term threat to their prosperity and
independence than any Ottoman army intent on subjugating their precious highlands. English East India
Company Merchants had First put in to Ottoman Mocha in January 1609, twenty-three years before the
Turks abandoned Yemen.” (original, em inglês)
11 “In 1618, the Porte had granted permission to both the English and Dutch to establish their ‘factories’

in Mocha”. (original, em inglês)


12 Título religioso que os líderes tribais xiitas recebiam; além de liderarem suas tribos, eram sacerdotes

e determinavam a vida cotidiana da população de acordo com suas interpretações do Corão.


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visto como uma possível base para os navios ingleses se reabastecerem na metade
de seus trajetos de Mumbai até Suez. Deste modo, em 1837 o governo britânico
acorda com o sheik13 de Áden a compra daquela cidade portuária. O sheik era contra
a venda, mas sabia que se não a vendesse, o líder egípcio – que visava o comércio
de café – a qualquer momento poderia atacá-la e dominá-la sem pagar nada em troca;
era melhor então receber algo dos britânicos. Contudo, o acordo foi traído por facções
anti-britânicas da cidade, e um conflito conjunto entre Áden e outras tribos ao seu
redor se iniciou contra os ingleses. Um pouco mais de um ano depois, em 1839 a Grã-
Bretanha sai vitoriosa, conquistando formalmente o porto de Áden e iniciando seu
domínio da região Sul do território iemenita (CLARK, 2010).

O domínio inglês no Sul do país foi aumentando meses após meses, com cada
vez mais tribos sob seu controle. Este fato chamou a atenção otomana novamente,
duzentos anos depois de sua retirada da região: “[...] a expansão da presença britânica
no Sul ditava uma correspondente ‘política de enfrentamento’ por parte dos
otomanos.” (CLARK, 2010, p. 38, tradução própria)14. Para contrabalancear o poder
britânico, o Império Otomano retorna ao Iêmen e conquista a cidade de Sanaa, no
Norte, em 1849. Em 1872 os otomanos anexam oficialmente o Norte do Iêmen ao
mesmo tempo em que a Grã-Bretanha anuncia a criação de um protetorado na região
Sul:

“[...] em 1872 a região norte foi anexada oficialmente como uma província
cliente do Império Otomano e, nesse mesmo ano, a região centro-sul foi
designada como Protetorado de Áden, sob a égide do Império Britânico.”
(SILVA, 2022, p. 46)

Contudo, diferentemente do domínio britânico, que teve se não o apoio, mas o


relativo respaldo da população do Sul depois de instalado, a presença otomana no
Norte nunca foi tolerada pelos imames. Ao contrário dos britânicos que respeitavam a
população local, os turcos voltaram ao Iêmen como verdadeiros déspotas, tanto no
que diz respeito à vida cotidiana do povo iemenita como no quesito financeiro. A
população tribal do Norte começou a sentir-se verdadeiramente roubada pela
presença do Império. A situação de descontentamento é bem retratada pelo

13Os sheiks eram os líderes de cada tribo.


14“[…] the expanding British presence in the South was dictating a correspondingly ‘forward policy’ on
the Ottomans’ part.” (original, em inglês)
39

missionário norte-americano Samuel Marinus Zwemer, que viajou pelo Iêmen na


época:

“O campesinato é roubado pelos soldados em seu caminho até o mercado,


pelos coletores alfandegários nos portões de cada cidade e pelos impostos
recolhidos adicionalmente. [...] Não é de se surpreender que lemos sobre
rebeliões no Iêmen, e nem mesmo que um intenso ódio contra, simplesmente
os nomes de turcos, viva em cada árabe.” (ZWEMER, 1900, p. 69, tradução
própria)15

Mesmo com a imensa presença otomana – em 1911 mais de 50.000 soldados


do Império estavam em Sanaa e nos seus arredores (CLARK, 2010) – o Norte nunca
se rendeu totalmente aos conquistadores estrangeiros, utilizando durante toda a
segunda metade do século XIX e início do século XX táticas de guerrilha contra seus
invasores. Até que em 1911, o líder imame Yahya Muhammad Hamid ed-Din propõe
um acordo com o Sultão turco:

“Em troca do reconhecimento formal de seu controle sobre os planaltos


Zaidistas, ele poderia concordar em dispensar os títulos de Califa e de
‘Comandante dos Fiéis’ os quais até aquele momento haviam colocado todos
os imames Zaidistas em competição direta com o Sultão otomano. Em troca,
ele seria livre para substituir em seus domínios os otomanos no que tange ao
monitoramento da lei da sharia, à escolha de seus próprios juízes e à coleta
de impostos. Os turcos continuariam com o controle sobre o Tihama e sobre
grande parte do planalto Sul, incluindo a cidade de Taiz, e continuariam
responsáveis pela defesa externa do Iêmen.” (CLARK, 2010, pgs. 43, 44,
tradução própria).16

O acordo para os turcos era bom, visto o demasiado gasto que o Império tinha
para lutar contra as tribos do Norte em territórios montanhosos e de difícil acesso.
Acordadas as partes, novamente os xiitas do Norte mantinham sua independência.
Os turcos então ficaram com o domínio direto de algumas cidades perto da fronteira
com o Protetorado Britânico de Áden e dos portos de Tihama.

Porém, após o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, o Império Otomano


ruiu. Seus territórios foram divididos em sua grande maioria entre França e Inglaterra,
sendo uma das exceções o Iêmen. Assim, após sua derrota, o imame Yahya herda as

15 “The peasantry are robbed by the soldiers on their way to market, by the customs collector at the gate
of each city and by the tax gatherer in addition. […] No wonder we read of rebellions in Yemen, and no
wonder that intense hatred lives in every Arab against the very name of Turk.” (original, em inglês)
16 “In exchange for formal recognition of his control over the Zaydi highlands he could agree to dispense

with titles of Caliph and ‘Commander of the Faithful’ which had hitherto placed all Zaydi imams in direct
competition with the Ottoman sultans. In return, he would be free to replace Ottoman with sharia law in
his domains, to select his own judges and collect his own taxes. The Turks would remain in control over
Tihama and much of the southern highlands including the city of Taiz and retain responsibility for
Yemen’s external defense.” (original, em inglês)
40

terras sob domínio otomano no Norte do Iêmen e se torna líder do primeiro Estado
independente na Península Arábica.

“Quando o Império Otomano colapsou em 1918, ele estava, portanto, bem


colocado para preencher o vácuo de poder deixado para trás, estendendo
então sua liderança para Oeste até Tihama, e ao Sul até as fronteiras dos
protetorados britânicos. [...] o imame Yahya emergiu então como o líder do
primeiro Estado independente da Península Arábica, em grande parte pela
falta de competidores, visto que não havia nenhuma potência pronta e
desejando assumir responsabilidades imperiais na área.” (CLARK, 2010, pgs.
44, 45, tradução própria.)17

A porção Norte do território iemenita, em conjunto com o Tihama e agora sob o


controle de Yahya, seria conhecida como Reino Mutawakkilita do Iêmen, com capital
em Sanaa. A região Sul do território continuaria sob o poder do Protetorado Britânico
de Áden.

2.3 IÊMEN ENTRE 1918 E 1970

O imame Yahya é uma figura controversa na história do Iêmen. Ao mesmo


tempo considerado por muitos xiitas modernos um grande líder nos tempos de seu
reinado, a maior parte da população sunita o vê como um dos símbolos da pobreza e
da falta de desenvolvimento atual do país (CLARK, 2010). Enquanto os outros
Estados da península arábica prosperaram economicamente durante o passar do
século XX – em grande parte às custas do petróleo – e exerceram papeis
fundamentais na política internacional, o Iêmen continuou como um Estado pobre e à
parte do cenário político mundial, principalmente pelas ações dos governos de Yahya
e de seus sucessores.

Yahya governou o Reino do Iêmen – que incluía além da região Norte, o Tihama
– durante 30 anos, de 1918 até 1948. Para ele, era seu dever como líder xiita
resguardar o povo iemenita dos perigos da modernidade advindos do “contágio”
estrangeiro (CLARK, 2010). Por exemplo: Yahya recusou uma oferta de dois milhões
de dólares de uma companhia norte-americana para a exploração de petróleo em seu
território e recusou conceder permissão à empresa Ford para construir estradas no

17“When the Ottoman Empire collapsed in 1918 he was therefore well placed to fill the vacuum left
behind, extending his rule west to the Tihama and south to the borders of the British protectorates. […]
Imam Yahya emerged as the ruler of the first independent state on the Arabian Peninsula largely by
default, inasmuch as there was no power ready and willing to assume imperial responsibilities in the
area.” (original, em inglês)
41

país em troca da compra de seus modelos automotivos. Quando questionado por um


holandês quais motivos o levaram a tomar tais decisões, ele respondeu: “Você pode
me dizer quantos milhões iria me custar para me livrar deles depois?”18 (CLARK, 2010,
p. 51, tradução própria)

Quanto à sua política externa, o Reino continuaria totalmente isolado dos outros
países se não fosse pelo trabalho de Raghib Bey, um diplomata iemenita que ganhou
a confiança de Yahya para conduzir suas relações exteriores nas décadas de 1930 e
1940. Observando muito bem o contexto do fim da Primeira Guerra Mundial, Raghib
percebeu que um país pobre como o Iêmen só poderia conseguir manter alianças com
Estados que não estivessem extremamente preocupados em receber algo em troca.
O Reino do Iêmen então aproxima-se de governos totalitários da época, como Itália,
Alemanha e Japão (CLARK, 2010), que desejavam aumentar suas órbitas de
influência. Além de receber materiais bélicos dos italianos e novas escolas de aviação
dos alemães, Yahya construiu a primeira mesquita de Tóquio como prova da boa
relação entre ele e o governo imperial japonês. Mas nenhuma destas alianças
proporcionava melhorias na qualidade de vida da população e nem à infraestrutura e
desenvolvimento do país.

Além do descontentamento popular pelo atraso de desenvolvimento do Reino,


Yahya foi aos poucos minando sua influência perante diversas importantes lideranças
tribais da região por dois principais motivos: a nomeação de seu filho Ahmad como
futuro sucessor (Ahmad não era popular na região) e a construção de um exército
próprio, deixando de lado a proteção militar tradicionalmente realizada pelas tribos.
Sendo assim, a partir da década de 1940 o imame é obrigado a lidar com diversos
protestos populares para deixar a liderança do país, reprimindo violentamente todos.
Em 1948, contudo, ele é assassinado por um grupo de ativistas de Sanaa
influenciados pela Irmandade Muçulmana19 do Egito. Os assassinos tentavam
promover um golpe de Estado e impedir que Ahmad chegasse ao poder. Acabaram
falhando, pois assim que Ahmad soube do assassinato, fugiu de Sanaa em direção a
Taiz, cidade a qual nomeou como a nova capital do Reino do Iêmen. Após alguns
dias, Ahmad consegue prender e decapitar todos os assassinos de seu pai; mas

18“Can you tell me how many millions it would cost me to be rid of them again?” (original, em inglês)
19Organização egípcia fundada por Hassan el Banna e influenciada pelo ideologia de Sayyid Qutb. É
considerada como o berço dos atuais movimentos radicais islâmicos (KEPEL, 2003).
42

mesmo assim, nunca mais voltou para Sanaa, visto que a cidade se tornara um reduto
de dissidentes e rebeldes contrários ao governo (CLARK, 2010).

O governo de Ahmad não foi muito diferente do de seu pai, até pior inclusive,
visto que em momento algum o novo imame obteve o apoio total da população, a qual
lhe apelidou de “al-Djinn”, o Demônio (CLARK, 2010). Além de herdar a ideia de seu
predecessor na qual era sua missão fechar as portas do Reino do Iêmen para a
modernidade e influências estrangeiras, a população não viu nenhum avanço em
termos de qualidade de vida durante seu reinado. Mesmo sendo um pouco mais ativo
internacionalmente que seu pai (realizou acordos com diversos países do contexto da
Guerra Fria, como China, União Soviética, Iugoslávia e Estados Unidos), seu governo
ainda era considerado extremamente fechado para qualquer investimento estrangeiro.
A única exceção foi sua grande aproximação com o Egito, comandado pelo Presidente
Gamal Abdel Nasser. As falas de Nasser defendendo um nacionalismo árabe e uma
maior aproximação entre os países de religião muçulmana, prendiam o interesse tanto
de Ahmad como da população jovem iemenita, que ouvia todos os dias com
entusiasmo a rádio egípcia “Vozes dos Árabes”:

“Muito mais atraente para todos os iemenitas do que o capitalismo do


Ocidente ou o comunismo do Oriente era o nacionalismo árabe não-alinhado
egípcio de Gamal Abdel Nasser, disseminado de forma emocionante pelos
modernos e portáteis rádios que chegavam ao Iêmen livre de impostos pelo
Porto de Áden durante a década de 1950. Um iemenita relembrou para mim
que, enquanto sua família bem-educada de juízes sintonizava a BBC para
ouvir notícias, eles sintonizavam ‘A Voz dos Árabes’ do Cairo para
entretenimento, excitação.” (CLARK, 2010, p. 60, tradução própria) 20

Deste modo, em 1958 Ahmad se junta à República Árabe Unida (república


criada por Nasser e composta por Egito e Síria) na Confederação dos Estados Árabes
Unidos (República Árabe Unida e Reino do Iêmen). Mas apenas quatro anos depois,
em 1962, Ahmad retira o Iêmen da confederação depois de diversas divergências
entre ele e Nasser (Ahmad percebeu que o nacionalismo árabe defendido era muito
maior do que a defesa da manutenção do Islamismo). Tal episódio é aqui descrito pois
a influência da ideologia de Nasser inflamou a população do Iêmen, tanto da região
Norte como da região Sul, como será comentado em breve. O exemplo egípcio

20“Much more appealing to all Yemenis than either the West’s capitalism or the East’s communism […]
was Egypt’s Gamal Abdul Nasser’s non-aligned Arab Nationalism, thrillingly disseminated by the new-
fangled and portable transitor radios that were finding their way from Aden’s duty-free port to Yemen by
the mid-1950s. One Yemeni recalled for me that while his educated qadhi family turned in to the BBC
for news, they looked to Cairo’s Voice of the Arabs for entertainment, for excitement.” (original, em
inglês)
43

colocava não só a eficácia de Ahmad como governante em cheque, mas também toda
a estrutura política do país, ou, dito de outras forma, a instituição dos imames como
governantes. A grande insatisfação popular com o modelo de governo também
aumentou pela personalidade cruel de Ahmad (o imame prendeu, enforcou e
decapitou centenas de dissidentes), pelo aumento dos impostos nas cidades do
Tihama e pela nomeação de seu filho Badr como herdeiro (CLARK, 2010). A história
parecia se repetir, apenas com uma diferença: além do sucessor escolhido ser
impopular perante a opinião pública, naquele momento as pessoas estavam
descrentes no governo de qualquer imame que subisse ao poder. Entre 1955 e 1961
foram contabilizadas oito tentativas de assassinato contra Ahmad, o que mostra a
força da ideologia de Nasser na população. A última destas tentativas teve relativo
êxito: no fim de 1961 Ahmad precisou ir ao hospital fazer alguns exames de rotina;
enquanto realizava um raio x, um dos enfermeiros atirou diversas vezes contra o
imame. Ahmad sobreviveu, mas ficou de cama até sua morte, em setembro do ano
seguinte (CLARK, 2010).

O reinado de seu filho Badr durou apenas uma semana. Em 1962 um golpe de
Estado liderado pelo Coronel Abdullah al-Sallal extinguiu o domínio imame do Reino
do Iêmen e implantou uma república, conhecida como a República Árabe do Iêmen.
Al-Sallal fazia parte do movimento dos “Oficiais Livres”, constituído por militares que
durante o governo de Ahmad foram enviados ao Iraque e ao Egito para obter
treinamento, mas acabaram voltando com ideais republicanos e nacionalistas
(CLARK, 2010). No mesmo ano, uma guerra civil que duraria até 1970 implode na
nova República, conflito que será comentado na subseção 2.3.1.

Enquanto a região Norte do território iemenita e o Tihama se tornavam agora a


República Árabe do Iêmen, a região Sul ainda estava sob o domínio britânico. Mesmo
com as ondas de descolonização afetando os impérios francês e inglês após a
Segunda Guerra Mundial, o Protetorado Britânico de Áden ainda se mantinha firme.
Por duas razões: a primeira era estratégica, visto a importância de Áden e seu porto
para as empresas petrolíferas britânicas; a segunda era a relativa boa relação mantida
pelos ingleses com as tribos à sua volta (CLARK, 2010), relações que não tiveram
muitos atritos até a década de 1960.

A partir do ano de 1955 a Coroa Britânica permitiu aos iemenitas de seu


protetorado que trabalhavam em empresas inglesas a se organizarem em sindicatos.
44

A ideia do governo era aumentar ainda mais a boa relação com os habitantes locais,
deixando-os mais à vontade para discutirem sobre suas condições de trabalho. Mas
a partir da década de 1960 o Protetorado se viu infestado de diversas greves,
principalmente nas refinarias da British Petroleum e no Porto de Áden, fato
extremamente prejudicial para os interesses econômicos ingleses (CLARK, 2010).
Além do mais, as ações dos sindicatos começaram a objetivar o fim do domínio
colonial inglês: “[...] o crescente dinamismo dos sindicatos foi centralizado para um
ativismo político que visava o fim do domínio colonial.”21 (CLARK, 2010, p. 76,
tradução própria). Para piorar, o nacionalismo de Nasser também começou a se fazer
presente na população do protetorado britânico, assim como visto no exemplo dos
iemenitas do Norte.

Tendo em mente os recentes acontecimentos em Sanaa (a derrubada do


governo), a Inglaterra se viu forçada a tomar medidas para evitar que o mesmo
acontecesse em Áden. Desde que Nasser subiu ao poder egípcio, Inglaterra e França
o consideravam como uma espécie de novo Hitler. A declaração do ex-Primeiro-
Ministro francês Guy Mollet sobre sua atuação conjunta com os ingleses contra
Nasser em Suez, em 1956, deixa clara esta visão: “Deixar aquele aventureiro se
desenvolver, aquele Hitler em pequena escala, seria muito arriscado. Seria não
assumir nossas responsabilidades.”22 (LEFEBVRE, 2010, p. 11, tradução própria)

Assim, em 1962 o Ministro de Defesa britânico Harold Watkinson, por ordens


da Coroa, anuncia que Áden seria designada como a sede permanente do Comando
Britânico do Oriente Médio e, no ano seguinte, institui a Federação da Arábia do Sul
(CLARK, 2010). A Federação, na realidade, já existia desde abril de 1962, mas
englobava apenas as tribos em volta de Áden – havia sido formada como uma
tentativa britânica de dar mais independência para aquelas populações e evitar mais
greves. A grande novidade em 1963 foi sua fusão com a cidade de Áden. O poder
britânico, juridicamente, se afrouxava. Mas na prática ainda continuava muito forte,
fato que resultou na grande impopularidade da Federação. Para compreender melhor
a Federação da Arábia do Sul, é preciso realizar uma pausa na história e explicar algo
sobre o presente trabalho: o Protetora Britânico de Áden, desde 1918, era separado

21 “[...] the union’s growing dynamism was channeled into a political activism that aimed at an end to
colonial rule.” (original, em inglês)
22 “Laisser se dévelloper cet aventurier, cet Hitler au petit pied, c’était trop risque. C’était ne pas assumer

nos responsabilités.” (original, em francês)


45

em dois por motivos administrativos: o Protetorado Britânico de Áden Ocidental e o


Protetorado Britânico de Áden Oriental, como mostra a figura 2.3:

Figura 2.3 Protetorados Ocidental e Oriental de Áden

Fonte: IONITA, 2022

Contudo, a diferenciação dos dois protetorados não é importante para o intuito


do texto, ou seja, para a compreensão dos motivos atuais do conflito iemenita, e por
isto foi deixada de lado. Todavia, neste momento, como a Federação da Arábia do Sul
foi instituída na região Ocidental do protetorado, esta pequena explicação se fez
necessária para evitar indagações ao se observar os mapas apresentados. Importante
ressaltar também que, quando a Federação da Arábia do Sul foi fundada em 1963, o
antigo Protetorado Oriental foi renomeado para Protetorado da Arábia do Sul.

Dito isto, o território que é hoje o Estado do Iêmen ficou dividido em 1963 entre
a República Árabe do Iêmen, administrada pelo Coronel al-Sallal, e a Federação da
Arábia do Sul, administrada conjuntamente com o Protetorado da Arábia do Sul pela
Grã-Bretanha. É possível observar a divisão do território na figura 2.4:

Figura 2.4 República Árabe do Iêmen e Federação da Arábia do Sul

Fonte: IONITA, 2022


46

Retornando à história, a situação britânica no Sul do Iêmen não melhorou após


a criação da Federação da Arábia do Sul; ao contrário, foi de mal a pior. As investidas
contra o exército inglês se iniciaram ainda em 1963, na região de Radfan, ao norte de
Áden, e logo espalharam-se para as outras cidades da Federação, inclusive para a
capital Áden (CLARK, 2010).

As investidas contra os britânicos eram orquestradas por duas organizações


recém-criadas: a Frente de Liberação Nacional (FLN) e a Frente para a Libertação do
Iêmen do Sul Ocupado (FLISO)23. As duas organizações eram compostas por
iemenitas que estudaram no Cairo e abstraíram noções nacionalistas e marxistas de
governo, sendo ambas financiadas pelo governo egípcio.

Os ataques na forma de guerrilhas eram feitos quase diariamente a soldados,


funcionários do governo e a cidadãos ingleses em praticamente todo o território
colonial, tornando a continuidade da presença britânica insustentável. Desta maneira,
em 1966 a Coroa Britânica declara que evacuaria sua base de Áden e permitiria que
sua colônia alcançasse a independência até 1968 (CLARK, 2010). Mas a declaração
não fez com que as organizações insurgentes parassem os ataques. A situação piorou
ainda mais com o fim da Guerra dos Seis Dias, a qual Israel saiu vitorioso perante os
árabes. A proximidade entre os governos de Londres e de Tel-Aviv aumentou ainda
mais a vontade popular de expulsar os ingleses de seu território. Foi criado, inclusive,
o seguinte slogan para fomentar as ações guerrilheiras perante a população: “Uma
bala contra a Inglaterra é uma bala contra Israel” (CLARK, 2010, p. 86, tradução
própria).24

Deste modo, a Inglaterra abandonou o Iêmen antes do previsto, em novembro


de 1967. Uma forte competição entre a FLN e a FLISO se iniciou para o controle
político do país, mas Londres reconheceu internacionalmente que a FLN tinha a
legitimidade do poder (CLARK, 2010). No dia 29 de novembro, a República
Democrática Popular do Iêmen é criada, tendo sua administração nas mãos de
integrantes marxistas da FLN. Deste modo, o território iemenita termina o ano de 1967

23 Em inglês, National Liberation Front (NLF) e Front for the Liberation of Occupied South Yemen
(FLOSY).
24 “A bullet against Britain is a bullet against Israel.” (original, em inglês)
47

dividido entre duas repúblicas independentes (a República Árabe do Iêmen, ao Norte;


e a República Democrática Popular do Iêmen, ao Sul), como mostrado na figura 2.5:

Figura 2.5 República Árabe do Iêmen e República Democrática Popular do Iêmen

Fonte: OLIVEIRA, 2022

Para finalizar, é preciso decidir quais os termos usados na sequência do


trabalho para a diferenciação das duas repúblicas. Como seus nomes oficiais são
muito compridos, o presente trabalho, a partir de agora, se refere à República Árabe
do Iêmen como “Iêmen do Norte”, e à República Democrática Popular do Iêmen como
“Iêmen do Sul”.

2.3.1 Guerra Civil do Iêmen do Norte (1962-1970)

Na seção 2.3 foi dito que após a derrubada do governo de Badr, o Coronel al-
Sallal levou à cabo um golpe de Estado, extinguindo a monarquia imame e instituindo
a República Árabe do Iêmen, ou, o Iêmen do Norte. Porém, por interferências
externas, o golpe criou um conflito que durou mais de 7 anos. O episódio é muito
importante pois foi a primeira vez que potências regionais modernas interferiram
diretamente no Iêmen. Enquanto atualmente o Estado é palco de lutas hegemônicas
entre Arábia Saudita e Irã, naquela época lutavam por poder na região Arábia Saudita
e Egito.

Diferentemente de seus sucessores Yahya e Ahmad, que morreram por conta


de ataques contra suas vidas, Badr não foi assassinado. Os soldados de al-Sallal
48

tentaram o matar em seu palácio em Sanaa, mas o imame conseguiu fugir e se


refugiar na Arábia Saudita. Apenas três dias após o golpe, ainda enquanto Badr estava
em sua rota de fuga para o vizinho saudita, Nasser enviou o representante da
Assembleia Nacional do Egito, Anwar Al Sadat (que se tornaria mais tarde seu
sucessor no poder) para Sanaa.

O interesse egípcio no sucesso da recém-criada República era imenso. Mesmo


com seus ideais árabes nacionalistas difundidos grandemente pela população dos
países árabes, seu prestígio internacional estava abalado após o fracasso da
República Árabe Unida. Em sua visão hegemônica de poder, uma nova república
árabe bem-sucedida apoiada pelo seu governo seria um exemplo para o resto do
mundo de que seus ideais nacionalistas funcionavam (CLARK, 2010). Assim, uma
semana após o golpe de al-Sallal, são enviados 5.000 soldados do Exército egípcio
para o Iêmen com o intuito de manter o novo governo estável.

Mas o que Nasser não esperava era a postura de diversos países que temiam
pela sua crescente influência. Os governos de Arábia Saudita, Inglaterra, França,
Jordânia, Irã e Israel, temendo a presença egípcia no Iêmen do Norte, começaram a
enviar armas e dinheiro para algumas tribos xiitas que ainda defendiam a legitimidade
de Badr no poder.

“Nos seguintes cinco anos, Arábia Saudita, Inglaterra, França, Jordânia, Irã e
até Israel tentaram neutralizar a presença egípcia na Península Arábica
enviando dinheiro, know-how e armas para o Imame e seus defensores. [...]
mercenários foram enviados para a região, munidos de dinheiro e armas
sauditas, para alavancar o esforço de guerra dos defensores de Badr.”
(CLARK, 2010, p. 91, tradução própria)25

Mas não foi dito na seção anterior que a população não estava contente com o
governo imame? A explicação encontra-se na estrutura tribal iemenita: a maioria da
população não queria mais ser governada por um governo religioso xiita; mas diversas
tribos mais conservadoras ainda acreditavam no poder dos imames e não demoraram
para iniciar ataques guerrilheiros contra o novo governo. Apoiados massivamente por
capital e armamento sauditas, não reconheceram o poder de al-Sallal, causando uma
guerra que duraria até 1970: de um lado, o exército egípcio e as forças de al-Sallal, e

25“For the next five years, Saudi Arabia, Britain, France, Jordan, Iran and even Israel tried to counteract
the Egyptian push onto the Arabian Peninsula by funneling cash, know-how and arms to the Imam and
his Royalists. […] mercenaries were dispatched to the region, flush with Saudi money and arms, to
bolster the Royalist war effort.” (original, em inglês)
49

do outro, as diversas tribos xiitas que apoiavam Badr, financiadas em grande parte
pela Arábia Saudita.

Do ponto de vista saudita, o maior defensor de Badr, a presença de Nasser em


sua fronteira sul era devastadora. O governo monárquico seguia uma linha de
pensamento islâmica wahhabita, a qual surgiu por grande influência da Irmandade
Muçulmana egípcia, grupo considerado terrorista por Nasser desde a década de 1950
(KEPEL, 2003). A monarquia via com desprezo o nacionalismo de Nasser e, além
disso, fazia parte do bloco internacional antagônico ao do Egito: a Guerra Fria, entre
Estados Unidos e União Soviética, dividiu os Estados em dois blocos de influência, e
a Arábia Saudita, um dos maiores parceiros comerciais dos norte-americanos, não
poderia deixar o governo de Nasser, aliado dos soviéticos, passar a ter influência na
Península Arábica.

Nasser então se afundou em uma guerra a qual não poderia ganhar. Em 1965,
o número de soldados egípcios em território iemenita era de 55.000, uma quantidade
inexpressiva na prática se levar em conta a natureza da guerra. Os soldados egípcios
não conheciam o terreno, estavam acostumados a lutar em desertos, não em
montanhas (a temperatura podia chegar a 50 graus no Tihama, enquanto nas
montanhas poderia cair até -5 graus) e não conseguiam enfrentar as táticas de
guerrilha das tribos iemenitas, muito menos com seu poderoso arsenal concedido pela
Arábia Saudita. Estima-se que mais de 20.000 egípcios morreram no Iêmen entre
1962 e 1967, quase metade dos 55.000 enviados (CLARK, 2010).

Vendo sua situação militar extremamente fragilizada, Nasser instituiu uma


polícia secreta iemenita e começou a fazer uso de armas químicas nos conflitos. As
diversas torturas, prisões e assassinatos que a polícia de Nasser cometeu contra a
população e os vários ataques aéreos com agentes químicos inflou a opinião pública
do Iêmen contra os egípcios e contra al-Sallal, acusado de permitir tais atrocidades
contra seu próprio povo. Para piorar, o ataque israelita à Península do Sinai, em 1967,
escancarou a insatisfação dos próprios egípcios em relação ao Iêmen, visto que um
terço de seu exército estava em terras estrangeiras no momento em que Israel atacou.
A presença de Nasser, então, tornou-se insustentável, e o Presidente abandonou o
país ainda em 1967. Al-Sallal, que se encontrava em Moscou para as celebrações da
Revolução Russa, exilou-se no Iraque (CLARK, 2010).
50

O governo ficou nas mãos de al-Iryani e do General al-Amri, que lutaram por
contra própria até 1969 contra os apoiadores de Badr. Os dois eram contra as
interferências não só egípcias, mas também sauditas no Iêmen do Norte. Defendiam
que a República não deveria permitir a presença militar de nenhum Estado
estrangeiro, não importando a sua ideologia. Em 1970 os dois fecharam um acordo
de reconciliação com as tribos xiitas defensoras de Badr e restituíram a união do
Estado. Tanto sunitas do Tihama como xiitas do Norte aceitaram de bom grado o novo
governo conciliador. Badr, derrotado, se mudou para Londres depois do governo
saudita reconhecer a legitimidade de al-Iryani no poder. Para a Arábia Saudita,
qualquer governo no Iêmen do Norte que enxergasse a interferência egípcia como
prejudicial era bem-visto.

2.4 IÊMEN ENTRE 1970 E 1990

Entre 1970 e 1978 o Iêmen do Norte teve 3 diferentes presidentes, al-Iryani


(1970-1974), al-Hamdi (1974-1977) e al-Ghashmi (1977-1978). O presente trabalho
não discute a fundo cada um destes governos, visto que não são importantes para o
objetivo final. São importantes, porém, algumas de suas características gerais. Al-
Iryani foi o único dentre os três que não foi assassinado, fugindo em 1973 para a Síria.
O exílio de al-Iryani e o assassinato de al-Hamdi sublinham novamente as
consequências da estrutura tribal do Iêmen: “Governar o Iêmen é tão perigoso e
delicado como dançar sobre a cabeça de cobras” (CLARK, 2010, p. 5, tradução
própria)26. A frase atribuída a Saleh, Presidente do Iêmen que é retratado nas
próximas seções do trabalho, ilustra bem tal estrutura política. Não é fácil para nenhum
líder governar o país, inclusive nos dias de hoje, principalmente pela falta de unidade
entre a população dividida em clãs tribais lutando entre si por influência e poder. Al-
Iryani se exilou temendo pela sua vida visto os diferentes interesses das diversas
tribos xiitas do Norte e do governo, enquanto al-Hamdi, mesmo governando de forma
modernizadora, populista e desenvolvimentista, foi assassinado pelos líderes tribais
do Norte que sentiram estar perdendo suas influências políticas.

“O obstáculo mais sério eram as tribos: acostumadas em cobrar e explorar


as áreas sunitas mais produtivas do país para seus próprios lucros, elas não

26 “[...] rulling Yemen is as delicate and dangerous as dancing on the heads of snakes.” (original, em
inglês)
51

aceitavam de bom-grado uma nova e moderna ordem que ameaçava sua


antiga hegemonia.” (CLARK, 2010, p. 102, tradução própria)27

Al-Ghashmi, diferentemente de seus antecessores, foi assassinado por


consequência das relações do Iêmen do Norte com seu vizinho, Iêmen do Sul.

Como já dito, os governos de cada um dos listados no parágrafo anterior não


são estudados aqui profundamente, mas duas características gerais dos três são
importantes: suas relações com o Iêmen do Sul e a interferência de potências
externas no Iêmen do Norte durante o período.

Desde 1970, os governos do Iêmen do Norte e do Iêmen do Sul iniciaram


conversas sobre uma possível unificação no futuro. O Iêmen do Sul, que era
controlado pelas FLN de ideologia marxista, era apoiado e financiado pela União
Soviética, que via o Porto de Áden como geograficamente muito importante. No ponto
de vista saudita, uma possível unificação entre os dois países poderia trazer a
influência soviética para mais perto de suas fronteiras, possibilidade inconcebível
tanto para o governo monárquico como para os Estados Unidos, seu maior parceiro
econômico no contexto bipolar da Guerra Fria. Sendo assim, em 1972 os sauditas
iniciaram novamente o envio de armas e dinheiro para diversas tribos xiitas do Norte,
as incentivando a atacar o vizinho marxista (CLARK, 2010). Os interesses sauditas
foram consumados e em setembro do mesmo ano um conflito civil se iniciou entre as
duas repúblicas, o qual durou apenas duas semanas. A curta guerra foi fácil de ser
contornada visto a bom relação que al-Iryani possuía ainda no começo de seu governo
com os xiitas do país. Seu papel conciliador mais uma vez foi posto à prova e
confirmado. Ao fim das hostilidades, as conversas sobre a unificação se mantiveram
para o horror dos norte-americanos e da monarquia saudita, que temendo pelo futuro
das negociações, continuou enviando clandestinamente dinheiro e armas a algumas
tribos ao longo dos seguintes anos.

O cenário da Guerra Fria também fez com que a Arábia Saudita, além de armar
informalmente tribos, também enviasse grandes quantidades de dinheiro ao próprio
governo do Iêmen do Norte, objetivando sua permanência na órbita Ocidental. Apenas
durante o governo de al-Ghashmi, o Iêmen do Norte recebeu mais de 570 milhões de

27“The most serious obstacle was the tribes: accustomed as they were to stipends and exploiting the
more productive Sunni areas of the country for their income, they did not take kindly to the threat posed
by a new, modern order to their age-old hegemony.” (original, em inglês)
52

dólares de seu vizinho, um valor exorbitante para a época (CLARK, 2010). Mas para
alcançar o “sucesso” em manter a República do Norte sob influência ocidental, foram
necessárias intervenções pontuais, como o apoio ao assassinato de al-Hamdi, que
além de haver perdido o suporte dos xiitas do Norte, havia aumentado o nível das
negociações de unificação com o Iêmen do Sul. A palavra “sucesso” foi colocada entre
aspas anteriormente pois o Iêmen do Norte era sim mais influenciado pela órbita
Ocidental do que pela Oriental, mas o próprio governo dizia fazer parte do Movimento
Não Alinhado da Guerra Fria, também mantendo acordos de cooperação com a União
Soviética.

Por fim, como já mencionado, o assassinato de al-Ghashmi se deu por um


conflito político do Iêmen do Sul. Em uma das reuniões sobre a possível futura
unificação entre os dois países (reuniões que aconteciam a cada seis meses), al-
Ghashmi foi morto em seu palácio pelo enviado diplomático do Sul. Em realidade,
como foi posteriormente descoberto, o representante não era quem o governo
marxista havia de fato enviado para o Iêmen do Norte, mas um impostor pago pela
oposição do governo (CLARK, 2010). Uma luta ideológica se dava no plano interno
daquele Estado, visto que uma facção das FLN defendia um governo ligado aos ideais
soviéticos marxistas, enquanto a facção dirigente possuía uma visão de Estado
parecida com o maoísmo chinês. O assassinato de al-Ghashmi fez o Tenente-Coronel
Ali Abdullah Saleh, figura importantíssima para a história do Iêmen, subir ao poder.

Em 1979, um ano após a morte de al-Ghashmi, as duas repúblicas iniciaram


mais um conflito armado devido à tensão que se gerou após a morte do ex-Presidente
do Iêmen do Norte. Estados Unidos e Arábia Saudita enviaram diversos tanques,
assim como mísseis antitanques, para Sanaa com o intuito de proteger o país contra
os comunistas do Sul:

“Os Estados Unidos [...] foram estimulados à ação apavorados pelos recentes
conflitos na fronteira; quantos vistos em conjunto com a recente subida ao
poder do Xá no Irã, se tornava claro que a União Soviética tinha grandes
planos para o Oriente Médio. Um porta-aviões adentrou o Golfo de Áden e
imensos aviões de carga carregados com tanques e mísseis antitanques,
pagos pela Arábia Saudita, voaram para Sanaa.” (CLARK, 2010, p. 112,
tradução própria)28

28“The United States [...] was galvanized into action, terrified that this border skirmishing, when viewed
alongside the recent toppling of the Shah in Iran, was a sure sign that, via its proxy, south Yemen, the
USSR had grand designs on the entire Middle East. An American aircraft carrier steamed into the Gulf
53

Mas da mesma forma que o conflito anterior, a paz foi restaurada em


pouquíssimo tempo, em pouco mais de um mês após o início das hostilidades. A boa
diplomacia de Saleh, somada aos recentes acordos de Camp David que levaram ao
Tratado de Paz entre Egito e Israel (1979), devastando a sociedade árabe
internacional e aproximando seus governos (não por interesses comuns, mas pela
infelicidade mútua), fizeram com que as duas partes voltassem para suas amistosas
relações.

Apesar de continuarem mantendo negociações sobre uma possível unificação


futura durante a década de 1980, o Iêmen ainda parecia estar longe de uma real
possibilidade de se tornar unitário. As negociações eram mais simbólicas – com o
intuito de mostrar às suas respectivas populações que esforços estavam sendo feitos
para unir todos os iemenitas em um só grande Estado – do que reais. Diversos
obstáculos práticos, como a imensa pobreza do Sul marxista e as diferentes visões
para o futuro de um possível Iêmen unificado atrapalhavam a viabilidade do projeto.
As tribos xiitas, que apoiaram Saleh durante quase todo o seu governo (1978-1990),
visto a grande importância que o Presidente lhes concedeu tanto no Exército como
também no comércio, viam os marxistas do Sul como infiéis, inclusive os
demonizando. Enquanto isso, os marxistas do Sul que comandavam o Estado
sonhavam em um dia transpor suas ideologias para as tribos do Norte (CLARK, 2010).

Mas um fato que mudou os rumos das duas repúblicas e as colocou em uma
posição cada vez mais perto da futura unificação foi a Guerra Civil no Iêmen do Sul,
de 1986. Da mesma maneira como já visto em seu vizinho do Norte, o Iêmen do Sul
também era marcado por diferenças tribais. Apesar de serem todas sunitas, também
lutavam por poder no país. Em janeiro de 1986, Abd al-Fattah Ismail, antigo Presidente
do Partido Socialista Iemenita, entrou em conflito com Ali Nasir Muhammad, que
comandava o partido na época. Existiam divergências ideológicas entre os dois, é
verdade, mas a principal causa do conflito pelo poder foi tribal. Os dois vinham de
tribos diferentes da região, as quais lutavam entre si há tempos por maior influência.
O interessante é que depois de uma semana de intensos e sangrentos conflitos entre
as duas facções (em um período de 7 dias, quase 6.000 pessoas morreram e 60.000

of Aden and gigantic cargo planes flew in and out of Sanaa loaded with tanks and anti-tank missiles,
paid for by Saudi Arabia.” (original, em inglês)
54

fugiram para o Iêmen do Norte e para Omã), nem Ismail conseguiu tomar o poder,
pois faleceu, nem Ali Nasir continuou na presidência, pois também foi morto durante
a guerra (CLARK, 2010). Contudo, a facção de Ismail saiu vitoriosa, e Ali Salim al-
Bidh, aliado de Ismail e um marxista considerado como parte da facção política linha-
dura do Partido Socialista do Iêmen tomou o poder em Áden.

2.5 IÊMEN ENTRE 1990 E 1994

No dia 22 de maio de 1990 o Iêmen do Norte e o Iêmen do Sul se unificam em


um só Estado, a República do Iêmen. Mas como isto aconteceu? Na seção anterior
foi dito que Al-Bidh, um marxista linha-dura, estava no governo do Sul e que as tribos
xiitas defensoras de Saleh viam com maus-olhos os “infiéis” do Sul. A unificação
surpreendeu inclusive o Embaixador norte-americano em Áden, que “tinha opinião
confiante de que a unificação estava ‘a pelo menos 50 anos de distância’” (CLARK,
2010, p. 130, tradução própria)29. Contudo, existem quatro explicações razoáveis para
a criação do Iêmen moderno em 1990.

A primeira delas é quanto ao governo do Iêmen do Sul. Mesmo com o linha-


dura al-Bidh no poder, as instituições perderam muita força após a Guerra Civil de
1986. Liderar formalmente o país e suas diferentes tribos já não era uma tarefa
simples, já que os falecimentos de Ismail e Ali Nasir criaram um vácuo quanto a
legitimidade das organizações públicas.

A segunda explicação é a descoberta de petróleo na região transfronteiriça


conhecida como Marib-Shabwa, que ia desde a cidade de Marib (localizada então no
Iêmen do Norte) até a região de Shabwa (localizada na época no Iêmen do Sul). A
figura 1.6 ilustra, com um círculo vermelho, a região onde foram localizados os
reservatórios:

29 “[...] had confidently opined that unification was ‘at least fifty years away’.” (original, em inglês)
55

Figura 2.6 Reservatório petrolífero de Marib-Shabwa30

Fonte: MIDDLEEASTEYE, 2022

A descoberta fez com que crescessem a ansiedade de ambos os governos por


mais receitas advindas daquele recurso natural. O exemplo de seus vizinhos da
Península Arábica, que enriqueceram devido a exploração do hidrocarboneto, fizeram
com que Saleh e al-Bidh acordassem, em 1988, que a região se tornasse
desmilitarizada e tivesse um status neutro, não possuindo nem o Iêmen do Norte e
nem o do Sul soberania total sobre sua área (CLARK, 2010). As novas receitas eram
ainda mais importantes para o Iêmen do Sul, visto a sua economia totalmente
defasada e atrasada em relação a do Norte. A queda da União Soviética, no ano
seguinte, piorou ainda mais a situação econômica do país, abrindo ainda mais
margem para a unificação, visto que um só governo poderia administrar melhor os
recursos compartilhados e possibilitaria mais ganhos para suas empobrecidas
cidades.

A terceira explicação pode ser encontrada na situação política do Presidente


Saleh, que após ter utilizado o Exército Nacional para acabar com disputas entre tribos
xiitas no Norte de Sanaa, acabou minando sua reputação perante elas. Saleh
necessitava urgentemente de um projeto populista que garantisse sua permanência
no poder por meio da popularidade. A unificação entre todos os iemenitas servia bem

30Lembrar que tal região, até 1990, ficava exatamente na fronteira entre as duas Repúblicas (ver fig.
2.5)
56

aos seus propósitos, principalmente com relação ao apoio das tribos sunitas do
Tihama.

Por fim, a quarta explicação se explica à nível internacional. Saddam Hussein,


Presidente do Iraque na época, se considerava o sucessor de Nasser, defendendo
fortemente uma maior união pan-arábica na Península sobre sua liderança. Logo,
ultrapassou o Egito, tornando-se o principal rival da monarquia saudita. Em 1989,
Hussein cria o Conselho de Cooperação Árabe (CCA) para contrabalancear a
influência que a Arábia Saudita mantinha na região por meio do Conselho de
Cooperação do Golfo (CCG). Faziam parte da nova instituição com liderança iraquiana
o Egito, a Jordânia e o Iêmen do Norte (CLARK, 2010). Mas por que Saleh, que sabia
por experiência própria o quanto a monarquia saudita era capaz de interferir
militarmente e economicamente em seu país quando quisesse, seguiu Hussein nesta
empreitada? Justamente por este motivo. Seu objetivo era se afastar da Arábia
Saudita, não importando os meios. Aproveitando-se do poder regional iraquiano,
Saleh poderia deixar de ser tão dependente economicamente da monarquia, tendo
como nova principal parceria o “visionário” Saddam Hussein. Enquanto a Arábia
Saudita ainda via com maus-olhos a unificação do Iêmen, Hussein motivou Saleh para
isto. No ponto de vista do Presidente iraquiano, quanto mais iemenitas se juntassem
a sua nova aliança, maior seria o poder contra os sauditas.

Descritas as possíveis explicações para a unificação, em novembro de 1989


Saleh viaja para Áden para celebrar o aniversário de independência do Iêmen do Sul
sobre os ingleses. Ao chegar, inicia de imediato as negociações com al-Bidh para a
unificação. Al-Bidh e os demais líderes tribais do país não gostaram muito da ideia
pois achavam que era uma ação precipitada. Para eles, o mais racional seria criar
primeiramente uma federação entre as duas repúblicas. Mas Saleh conseguiu os
convencer. Foi acordado que a vice-presidência do futuro Estado seria um posto
exclusivo dos habitantes da região Sul, assim como as lideranças dos Ministérios de
Comércio e de Petróleo. O Primeiro-Ministro inicial do Estado também seria do Sul e
a promessa de eleições democráticas livres também foi colocada na mesa. Foi
decidido também que o processo de unificação deveria ser rápido, no máximo dentro
de seis meses, visto o perigo da monarquia saudita interferir visando minar o projeto
(CLARK, 2010).
57

Contudo, a unificação foi realizada de forma negligente. Um exemplo eram as


Forças Armadas, as quais não foram devidamente fundidas pois nenhum dos dois
lados confiava o bastante no outro para renunciar à sua proteção bélica. As intenções
de comprometimento com o projeto se viram fracas tanto no Sul como no Norte, fato
que afetaria anos depois a política da República do Iêmen (CLARK, 2010).

Em maio de 1990, portanto, surge no cenário internacional a República do


Iêmen, liderada por Saleh na presidência e al-Bidh como Vice-Presidente. Mas os
problemas começaram logo em seguida. Em agosto do mesmo ano, Hussein invade
o Kuwait, desencadeando um conflito que durou quase sete meses entre o Iraque e
uma coalizão de países liderada pelos Estados Unidos e composta por Kuwait, Arábia
Saudita, Egito, França e Grã-Bretanha. Saleh, durante a crise, cometeu um erro
diplomático que afetaria muito seu governo posteriormente. Afirmando sua aliança
com o regime iraquiano, não condenou e nem apoiou a invasão. Acreditava que a
crise deveria ser resolvida por meio de uma solução árabe e não com tropas norte-
americanas (que tanto defenderam Israel contra os mesmos árabes), na região:

“O Presidente Saleh não apoiou e nem condenou a agressão de Saddam ao


Kuwait, mas os iemenitas estavam aborrecidos pela maneira como a Arábia
Saudita, guardiã de lugares sagrados do Islã, recebia impiedosamente forças
norte-americanas infiéis em seu território para a invasão [...] Saleh preferiu
uma ‘solução árabe’ para a crise invés de uma solução internacional das
Nações Unidas, o que dadas as circunstâncias significava ficar ao lado do
Iraque.” (CLARK, 2010, p. 136, tradução própria)31

Diferentemente do Egito, que deserdou sua aliança com Hussein visando


maiores fontes de receita com os Estados Unidos, Saleh continuou firme e forte em
sua postura de não condenação à invasão.

Sua posição logo rendeu frutos indesejados à economia do país recém-criado.


A Arábia Saudita, em 19 de setembro de 1990, decidiu que todos os iemenitas em seu
território tinham um mês para fechar seus negócios no país, vender seus bens e voltar
ao Iêmen – quase 800.000 iemenitas viviam no país vizinho e enviavam dinheiro
periodicamente ao Iêmen. Além das medidas da monarquia do Golfo renderem um
prejuízo de 1,5 bilhões de dólares ao governo de Saleh, quase um milhão de iemenitas

31 “President Salih neither applauded nor condoned Saddam’s aggression against Kuwait, but Yemenis
were disgusted by the way Saudi Arabia, the keeper of Islam’s holy places, was impiously welcoming
infidel American forces onto her soil in the build-up to invasion […] Saleh favored an ‘Arab solution’
rather than an international United Nations solution to the crises which, in the circumstances, amounted
to taking Iraq’s side.” (original, em inglês)
58

voltaram ao país desempregados e sem ter como ganhar dinheiro. O governo passou
a utilizar quase metade do orçamento nacional com auxílios a estas pessoas (CLARK,
2010).

Dois meses depois, foi a vez dos norte-americanos sancionarem Saleh. Em 29


de novembro, a Resolução 678 do Conselho de Segurança das Nações Unidas que
permitia a invasão norte-americana do Kuwait era votada. E por infortúnio o Iêmen
ocupava uma das cadeiras não-permanentes do Conselho. Mesmo após as terríveis
sanções sauditas à sua economia, Saleh não recuou e votou em conjunto com o
governo de Cuba contra a resolução. Três dias depois Washington cortou a ajuda de
70 milhões de dólares por ano ao país, aprofundando ainda mais a crise econômica
(CLARK, 2010).

Para piorar, a corrupção do governo Saleh era generalizada. As tribos do Norte


enriqueceram muito devido aos grandes fluxos de dinheiro desviados de Ministérios
controlados por pessoas ligado ao Presidente. Enquanto isso, o líderes políticos do
Sul sentiam-se injustiçados e com poderes diminutos em relação aos líderes do Norte,
fato que não estava previsto nos acordos de unificação que visavam a igualdade entre
Sul e Norte. Foi-se criando, inclusive, uma certa rivalidade entre as populações das
duas regiões do Iêmen, inclusive entre sunitas e seus pares. A máquina estatal, com
seus diversos Ministérios divididos entre lideranças do Sul e do Norte e seus
consequentes problemas de relacionamento, foi perdendo eficiência. O sonho de
enriquecer o país com os ganhos da exploração de petróleo tornaram-se também uma
falácia, visto que após a excitação inicial pela descoberta dos reservatórios
petrolíferos no país, descobriu-se que “as reservas correspondiam a meros 4 bilhões
de barris se comparados aos 261,5 bilhões de barris sauditas” (CLARK, 2010, p. 139,
tradução própria)32, ou seja, os iemenitas não ficariam ricos com o petróleo como seus
vizinhos. Tudo se encaminhava para mais uma Guerra Civil.

Assim, no dia 4 de maio de 1994 inicia-se o conflito entre as forças de Saleh e


as forças de al-Bidh. Como já comentado anteriormente, as forças armadas do Sul e
do Norte não se juntaram no processo de unificação: as do Sul continuaram leais a al-
Bidh e as do Norte a Saleh, fato que facilitou o início da guerra. Depois de diversos

32“[...] reserves amounted to a mere four billion barrels, compared with the Saudis’ 261.5 billion barrels.”
(original, em inglês)
59

ataques realizados pelos dois lados, no dia 21 de maio al-Bidh declarou a saída dos
territórios do Sul do Iêmen unificado, recriando o antigo Iêmen do Sul, mas com outro
nome: República Democrática do Iêmen.

Al-Bidh teve apoio declarado da Arábia Saudita, que enviou um valor


aproximado de 1 bilhão de dólares em armamentos para suas forças. A Arábia Saudita
não era contra os marxista do Sul, inclusive contra al-Bidh, seu antigo governante?
Sim, mas os tempos já eram diferentes. Após a queda da União Soviética o socialismo
já não era considerado uma grande ameaça, diferentemente da nova postura de
Saleh, que se aliou ao principal rival saudita da época, o Iraque. As anteriores
posições diplomáticas de Saleh minaram a confiança da monarquia saudita, que não
teve outra opção a não ser voltar-se para al-Bidh. Pelo outro lado, Saleh teve apoio
norte-americano. Mas os Estados Unidos não eram contra o governo de Saleh pelo
seu envolvimento com Hussein? Sim, mas uma desestabilização na região pela
criação de um novo Estado ao sul da Península atrapalharia o tráfego dos navios
petroleiros que passavam pelo Golfo de Áden e pelo Estreito de Bab-el-Mandeb,
afetando assim o comércio internacional:

“[...] o departamento de Estado do Estados Unidos deixou de lado sua


prioritária aliança com a Arábia Saudita e se declarou em favor de um Iêmen
unificado, simplesmente porque o reforço do status quo parecia a melhor
maneira de evitar a desestabilização da região e interromper o fluxo de três
milhões de barris de petróleo por dia pelo Estreito de Bab-el-Mandeb.”
(CLARK, 2010, p. 143, tradução própria)33

A postura norte-americana foi adotada também pela maioria das potências


mundiais, todas dependentes daquela rota do petróleo, postura esta que não apoiava
necessariamente Saleh, mas negava o reconhecimento do novo Estado declarado por
al-Bidh.

Dois meses após o início do conflito, as forças de Saleh saíram vitoriosas, al-
Bidh fugiu para Omã com alguns apoiadores e a República do Iêmen sobreviveu. Uma
novidade nos exércitos de Saleh foi a atividade conjunta com jihadistas veteranos da
Guerra do Afeganistão contra os soviéticos, todos afiliados a al-Qaeda, que dava seus
primeiros passos no Iêmen. A presença destes religiosos extremistas assustou a
população local de Áden, que de um dia para o outro se viu proibida de beber álcool

33[...] the US State Department set the priority of its alliance with Saudi Arabia to one side for a change
and declared itself in favors of a united Yemen, simply because a reinforcement of the status quo
seemed the best way to avoid destabilizing the region and disrupting the flow of a useful three million
barrels of oil a day through the Bab-al-Mandab.” (original, em inglês)
60

e de conversar com mulheres que não eram de suas famílias, assim como observar a
destruição da igreja anglicana da cidade. Saleh apoiava as ações dos extremistas, o
que se tornaria um grande problema para ele no futuro. Ao todo, a Guerra Civil de
1994 causou ao Iêmen quase 7.000 mortos, 8 bilhões de dólares e o imenso
ressentimento dos sunitas do Sul quanto às ações de Saleh, criando uma divisão no
país que perdura até os dias de hoje (CLARK, 2010).

O presente capítulo mostrou uma história concisa da política iemenita até o fim
do século XX. Sua explicação é de extrema importância para o entendimento do
conflito atual. A estrutura tribal do Iêmen, o poder e a corrupção das tribos xiitas do
Norte, a importância geográfica do país, os antecedentes do governo de Saleh, as
divisões entre Norte e Sul (assim como suas diferenças religiosas) e o surgimento da
atuação de movimentos jihadista no país foram bem explicados. No capítulo 3 se
tornam ferramentas extremamente úteis para explicar o conflito atual.
61

3. GUERRA DO IÊMEN E A TEORIA DE KENNETH N. WALTZ

O presente capítulo tem como objetivo mostrar como o atual conflito do Iêmen
se iniciou e analisar se é possível ou não explicá-lo de acordo com a teoria neorrealista
de Waltz, apresentada no capítulo 1. Visto todo o contexto histórico do país árabe
apresentado no capítulo 2, a compreensão do momento atual é facilitada.

3.1 IÊMEN APÓS A GUERRA CIVIL ATÉ A PRIMAVERA ÁRABE

Após a Guerra Civil de 1994, o Iêmen continuou sob comando de Saleh até o
ano de 2012. Ao todo, contando também seus anos de presidência do Iêmen do Norte
antes da unificação (1978-1990), Saleh liderou por quase 34 anos.

Seu governo no início do século XXI não foi capaz de melhorar a união política
dos iemenitas e muito menos a economia do Estado, possibilitando que a situação
culminasse em uma guerra generalizada em 2014, já após sua saída do governo.

Segundo o jornal Al Jazeera, estima-se que durante as três décadas que Saleh
ficou no poder tenham sido desviados do orçamento público do Iêmen uma quantia
entre 32 e 60 bilhões de dólares, grande parte deste valor extorquido por meio de
esquemas de corrupção liderados por Saleh envolvendo a extração de petróleo
(ALJAZEERA, 2015).

“Acredita-se que a origem dos fundos usados para gerar a riqueza de Ali
Abdullah Saleh venha em parte de suas práticas de corrupção como
Presidente do Iêmen, particularmente relacionadas com contratos de gás e
petróleo, nos quais ele supostamente pedia dinheiro em troca da concessão
de direitos exclusivos a empresas para a prospecção de gás e petróleo no
Iêmen.” (ALJAZEERA, 2015, tradução própria)34

Toda a fortuna de Saleh advinda da corrupção foi espalhada em bancos e


ativos em ao menos 20 países ao redor do mundo, o que dificultou as investigações.
Enquanto o governante iemenita, sua família e amigos próximos enriqueciam, a
população empobrecia mais a cada ano.

Saleh, durante praticamente todo o seu governo no século XXI não tinha o
apoio da população, nem das tribos sunitas do Sul e nem dos xiitas do Norte. A

34“The origin of the funds used to generate Ali Abdullah Saleh’s wealth is believed to be partly from his
corrupt practices as president of Yemen, particularly relating to gas and oil contracts where he reportedly
asked for money in exchange for granting companies exclusive rights to prospect for gas and oil in
Yemen.” (original, em inglês)
62

população do Sul, após a Guerra Civil de 1994, indignou-se com Saleh, principalmente
pelo apoio do Presidente aos grupos terroristas que invadiram Áden. A extrema
pobreza da região também não agradava nem um pouco, visto a antiga promessa de
enriquecimento devido às descobertas de petróleo na região; a unificação, neste
quesito, não adiantou em nada, já que grande parte do dinheiro ganho com as
reservas naturais iam para as contas bancárias do próprio Presidente e de sua família.
(CLARK, 2010). Em contrapartida, as tribos do Norte do Iêmen continuaram apoiando,
em sua maioria, o governo de Saleh até 2001, ano chave para a política internacional.

Antes de comentar os fatos que se seguiram a 2001, é importante haver uma


ressalva sobre o período que vai de 1994 até aquele ano. O período (1994-2001) não
é comentado de forma detalhada neste estudo, visto que não houve grandes
mudanças na economia ou na política iemenita. Saleh continuou governando um país
extremamente pobre, desviando dinheiro público para seus cofres pessoais e
favorecendo os interesses das tribos dos Nortes (suas únicas apoiadoras) em
detrimento da população do Sul, que a cada ano sentia-se mais excluída e injustiçada
(CLARK, 2010). O único fato novo no cenário iemenita no período foi a cada vez mais
crescente atuação da rede extremista islâmica al-Qaeda, tanto no Sul como no Norte,
com a relativa aprovação do governo de Saleh. Em realidade, não há como afirmar
que Saleh aprovava a atuação da organização, mas tampouco a proibia (CLARK,
2010), fato relevante para os seguintes eventos de 2001.

Em 11 de setembro de 2001, quatro aviões comerciais dos Estados Unidos


foram sequestrados por fundamentalistas islâmicos: dois deles colidiram com o World
Trade Center, em Nova York; um atingiu o Pentágono (sede do Departamento de
Defesa norte-americano) em Arlington, e o outro tinha por objetivo, acredita-se35, cair
sobre o Capitólio, lar do Congresso dos Estados Unidos em Washington D.C., mas
não logrou devido a ação dos próprios passageiros que recuperaram o controle da
aeronave (o avião acabou caindo no estado da Pennsylvania).

Após a declaração de autoria dos ataques pela al-Qaeda, iniciou-se o conjunto


de operações conhecidas como “Guerra ao Terror”, idealizadas pelo Presidente norte-
americano George W. Bush, que tinham como objetivo destruir as bases das

35Até hoje não se sabe se o alvo daquela aeronave era realmente o Capitólio, ou se era a Casa Branca.
A única certeza é de que objetivava a capital norte-americana.
63

organizações terroristas e impedir que ataques similares ao seu território acontecem


novamente. O início dos problemas de Saleh começara.

Desde 1994 o governo iemenita não aprovava e nem impedia a ação da al-
Qaeda em seu território. Saleh mantinha relações cordiais com o grupo desde seu
apoio contra al-Bidh durante a guerra (CLARK, 2010), mas a reação norte-americana
contra a organização, devida ao ataque em seu próprio território, colocava a relação
entre Saleh e os extremistas em cheque. Caso o Presidente continuasse permitindo a
livre atuação do grupo em seu território, poderia vir a sofrer fortes consequências
vindas da maior potência militar do planeta. Caso cortasse suas relações e ajudasse
os Estados Unidos a cumprir os seus objetivos na Guerra ao Terror, Saleh poderia
aumentar os laços com o Presidente Bush e receber mais fundos norte-americanos.
Foi o que aconteceu:

“A Guerra ao Terror do presidente George W. Bush foi um ganho econômico


inesperado para Saleh. Depois que as investigações revelaram uma conexão
entre o ramo da Al-Qaeda do Iêmen e os ataques de 11 de setembro, Saleh
recebeu um pacote de ajuda no valor de US$400 milhões em troca de
cooperação na caça à organização terrorista.” (SILVA, 2022, pgs. 51, 52)

Recebendo 400 milhões de dólares do governo Bush, Saleh permitiu a atuação


da CIA36 em operações de contraterrorismo no país. Apesar de naqueles anos os
Estados Unidos não terem atuado militarmente no Iêmen (sua atenção estava voltada
para o Afeganistão), já em 2002 um ataque realizado pelas forças de Saleh e
comandado pela inteligência norte-americana contra um reduto da al-Qaeda matou 6
pessoas, colocando um fim às relações do governo iemenita com a organização
(SILVA, 2022).

Dito isto, foi comentado anteriormente que os problemas de Saleh começaram


após o início da Guerra ao Terror do Presidente norte-americano Bush. A postura
contraofensiva dos Estados Unidos e o consequente acordo com o governo iemenita
para minar a atuação da al-Qaeda em seu território acabou por minar o único ponto
de apoio de Saleh no país, o Norte. Apesar da nova fonte de receitas, a postura de
Saleh em relação a al-Qaeda desagradou as tribos do Norte xiita, praticamente suas
únicas apoiadoras. Seus líderes viam com desdém a interferência dos “infiéis” norte-
americanos no país37. Saleh passou a ser visto como um traidor, um fantoche do

36
Central Intelligence Agency (Agência de Inteligência norte-americana).
37Ao longo do século XX, diversos grupos islâmicos começaram a sentir uma certa angústia em relação
ao Ocidente. O fim do Império Otomano após a Primeira Guerra Mundial e a consequente secularização
64

governo ocidental que tanto oprimia os árabes em favor dos judeus e do petróleo. Dito
isto, Saleh, após 2002 encontrou-se sem apoio da população, nem da do Sul e nem
da do Norte. Seu poder, entretanto, ainda se mantinha pela boa relação com seu
Exército, cujos comandantes participavam ativamente de seus esquemas de
corrupção (CLARK, 2010). Mas mesmo com o Exército do seu lado, os diversos
armamentos enviados pela Arábia Saudita ao longo dos anos anteriores às tribos do
Norte (como visto no capítulo 2), criavam um cenário cada vez maior de insegurança
no país.

Uma importante tribo xiita do Norte começou a se rebelar em 2004. Os Houthis,


como são conhecidos, eram liderados por Hussein Badreddin al-Houthi, um líder
religioso e político da região que mantinha fortes laços com o líder supremo iraniano,
Ali Khamenei, e com um dos líderes do grupo xiita libanês Hezbollah, Hassan
Nasrallah. Por ter vivido com sua família uma parte de sua vida na cidade iraniana de
Qom, criou laços fortes com os iranianos (MEMRI, 2009). Assim, alguns motivos como
a economia iemenita cada vez mais fragilizada devido a corrupção de Saleh, a perda
de poder político das tribos xiitas do país e a falta de atenção dada pelo governo a
questões religiosas, fizeram com que a família Houthi liderasse um movimento de
protestos na cidade de Sanaa, em 2004, contra Saleh:

“Uma questão importante é considerar que os Houthis tornaram-se uma


ameaça grave ao presidente a partir do momento em que protestavam,
cantavam e erguiam slogans anti-Estados Unidos e anti-Israel em Sanaa.
Além disso, a família Houthi liderava grande parte da oposição do norte do
Iêmen em detrimento da política externa, econômica e religiosa do regime em
vigor.” (SANTOS, 2020, p. 31)

Dito isto, no ano de 2004 se iniciaram as chamadas “Rebeliões Houthis”, ou,


“Guerras de Sanaa”, quando os rebeldes Houthis atacaram pela primeira vez a capital
iemenita. O conflito entre Houthis e governo durou até 2010, ano em que a Arábia
Saudita interveio diretamente no território. Após um ataque houthi a uma cidade
saudita na fronteira com o Iêmen, a monarquia mais poderosa do Golfo iniciou vários

da Turquia, na imagem do governo de Atatürk, iniciaram diversos protestos de intelectuais islâmicos ao


redor do mundo muçulmano contra a influência ocidental nos países árabes, sendo o maior exemplo
destes estudiosos Sayyid Qutb. Seus pensamentos influenciaram a criação da Irmandade Muçulmana
egípcia, predecessora de diversos movimentos islâmicos radicais atuais. Somaram-se a tais revoluções
intelectuais as ondas de descolonização do século XX, que enxergavam os antigos impérios europeus
como invasores ocidentais; a criação de Israel, vista por todos os árabes como uma catástrofe; e a
invasão soviética ao Afeganistão, de 1979, que inflou militarmente não só os afegãos, mas todo o
mundo islâmico contra a influência externa não-muçulmana. Entretanto, grande parte da influência
ocidental foi repassada para a imagem dos Estados Unidos, a grande potência capitalista e militar,
defensora do povo judeu e conquistadora de petróleo. (KEPEL, 2003)
65

ataques que acabaram levando a um cessar-fogo entre as partes. Mas como visto no
capítulo 2, a Arábia Saudita não havia apoiado al-Bidh, inimigo de Saleh durante a
Guerra Civil de 1994? Por que então apoiava seu governo desta vez? Pois agora os
sauditas tinham um novo inimigo na região: o Irã. Mas a relação entre as duas
potências regionais é explicada na próxima seção. Importante salientar também que
o conflito, nos seus 6 anos de duração, causou milhares de mortos e fez com que
milhares de pessoas fossem deslocadas de suas cidades, iniciando a grande crise
humanitária que pode ser observada atualmente.

Mas mesmo com o cessar-fogo obtido em 2010, as ações militares da Arábia


Saudita e a consequente internacionalização do conflito preocuparam a política
internacional. A participação direta saudita abria espaço para que o governo iraniano
também atuasse de forma direta, visto sua oposição à Arábia Saudita e seu apoio não-
declarado aos Houthis. Mas o Irã nada fez naquele momento. Ao fim de 2010, os
Houthis controlavam Sanaa, grande parte do território do Norte do país e possuíam
uma estrutura muito maior do que em 2004 (mais armas, mais rebeldes e mais
dinheiro). Saleh então foi obrigado a deslocar a capital iemenita para Áden.

3.2 PRIMAVERA ÁRABE E GUERRA

Entre dezembro de 2010 e janeiro de 2011, dezenas de manifestações


eclodiram nos países árabes contra seus governos autoritários e corruptos. Iniciando-
se na Tunísia, as manifestações derrubaram governos, iniciaram guerras civis (como
no caso do Iêmen) e propiciaram reformas governamentais:

“O fenômeno que eclodiu no final do ano de 2010 que ainda perdura,


denominado ‘Primavera Árabe’, iniciou-se com a Revolução de Jasmim, na
Tunísia. [...] Os movimentos populares árabes derrubaram ditadores tanto na
Tunísia (Zine el-Abidine Ben Ali), quanto no Egito (Hosni Mubarak) e na Líbia
(Muammar Qadaf). Os levantes se espalharam pelos países do Norte da
África: Argélia, Djibuti, Mauritânia, Marrocos, Sudão e Saara Ocidental; assim
como nos países do Golfo Pérsico: Arábia Saudita, Iêmen, Omã, Bahrein;
incluindo Iraque, Jordânia e Síria.” (BIJOS; SILVA, 2013, p. 59)

No caso do Iêmen, os principais motivos para tais manifestações se davam por


conta do estilo de governo de Saleh: corrupto e autoritário. “No Iêmen [...] os protestos
eram vistos como reflexos de um esgotamento da situação política e econômica do
país.” (SANTOS, 2020, p. 35) A situação da população era deplorável, principalmente
em relação ao desemprego e a desnutrição.
66

Contudo, diferentemente dos líderes da Tunísia e do Egito, que deixaram o


poder sem grandes ofensivas contra a população, Saleh, por meio de suas forças
armadas atuou para frear tais comportamentos caracterizados por ele como terroristas
contra seu governo. Estima-se que suas forças tenham matado até 2.000
manifestantes (SANTOS, 2020). A violência armada contra a população minou ainda
mais o poder de Saleh sobre o Iêmen, visto que diversos militares não concordaram
com suas ações, deixando de apoiar o Presidente iemenita:

“Os ataques a civis causaram uma ruptura política dentro das forças armadas
do Iêmen, com milhares de soldados e oficiais desertando do exército, a
exemplo do General Ali Muhsin (primo do presidente Saleh), que colocou as
suas unidades militares em prontidão para a defesa dos manifestantes
perante possíveis novas agressões das tropas leais a Saleh.” (SILVA, 2022,
p. 52)

Para piorar, a violência fortificou a organização do Sul iemenita conhecida como


al-Hirak, a qual defendia a separação do governo de Saleh e a volta do Estado do
Iêmen do Sul. Existindo desde 2007, fortaleceu-se durante as repressões contra a
população em 2011 devido a mais pessoas aderirem ao grupo, diminuindo ainda mais
o poder de Saleh na região (GARALLAH, 2013), e à crescente militarização do
movimento. A al-Qaeda, que ainda atuava fortemente no país, também intensificou
seus ataques, visto a instabilidade nacional.

Os Houthis, que tiveram papel fundamental durante os protestos, também


voltaram a lutar contra as forças de governo, fazendo com que Saleh, após ferir-se
em um ataque ao seu palácio presidencial, fugisse para a Arábia Saudita em busca
de tratamento médico (SANTOS, 2020). Em sua estada no vizinho árabe, foi
convencido pelos sauditas a transferir seu poder pacificamente por meio de um acordo
intermediado pelo Conselho de Cooperação do Golfo. A monarquia, observando a
inviabilidade do governo de Saleh em meio a tantas oposições, temia que o poder
cada vez maior dos Houthis no país pudesse alavancar o poder e influência iranianas
no Iêmen (o Irã iniciou o fornecimento de armas aos Houthis naquele ano, SANTOS,
2020). Assim, o acordo de novembro de 2011, apoiado pelo governo dos Estados
Unidos e pela União Europeia, garantia a Saleh imunidade e o cargo de chefe do maior
partido político do Iêmen, assim como repassava o governo ao seu Vice, Abd Rabbuh
Mansour al-Hadi, até que eleições livres fossem realizadas em fevereiro de 2012
(SANTOS, 2020; SILVA, 2022).
67

“A 23 de novembro de 2011, o Presidente Saleh assinou um acordo


elaborado pelo Conselho de Cooperação do Golfo (GCC) e apoiado pelos
Estados Unidos e pela União Europeia, onde transferiu, de imediato, o poder
ao seu Vice-Presidente Abdu Rabbuh Mansour Hadi. Em troca, foi oferecido
a Saleh e aos seus funcionários imunidade contra processos por crimes
cometidos durante a sua presidência.” (PEREIRA, 2020, p. 42)

Al-Hadi acabou permanecendo no poder após as eleições, as quais ganhou por


ser o único candidato devido ao boicote dos grupos de oposição.

“No começo de 2012, Hadi concorreu como o único candidato na campanha


presidencial do Iêmen, a qual foi boicotada pelos grupos de oposição,
incluindo os Houthis xiitas e o movimento separatista do Sul. Contudo, com
uma participação de 65% dos eleitores, Hadi tornou-se Presidente em uma
eleição semelhante a um referendo que foi apoiada pela comunidade
internacional.” (ALJAZEERA, 2017, tradução própria)38

O boicote às eleições aconteceu pela insatisfação com as medidas tomadas


por al-Hadi desde que chegara ao poder. Mesmo realizando reformas político-militares
como a dissolução da Guarda Republicana leal a Saleh, al-Hadi não conseguiu o apoio
da população Sul e nem dos Houthis. Diversas políticas realizadas pelo seu governo,
como a divisão das regiões Norte e Sul em diversas subdivisões, desagradaram tanto
os Houthis como o movimento Al-Hirak: “As mudanças propostas por al-Hadi geraram
uma ingovernabilidade no país, pois o presidente iemenita perdeu o apoio das elites
políticas e militares, e também de amplos setores da sociedade civil” (SILVA, 2022, p.
54).

A impopularidade do governo de al-Hadi trouxe Saleh de volta ao jogo político


iemenita. Mesmo após perder o apoio de diversos militares após as repressões à
população em 2011, Saleh ainda detinha influência sobre muitos deles. Sendo assim,
Saleh fez o improvável: aliou-se aos Houthis contra o governo de al-Hadi. A aliança
fazia sentido para as duas partes, visto que os Houthis tinham um grande poder militar
devido às doações iranianas, e Saleh ainda tinha o apoio de diversas alas do Exército
e da desmantelada Guarda Republicana (SILVA, 2022).

Com diversas forças políticas e militares divergentes no país (Houthis e Saleh


apoiados pelo Irã; al-Hadi e as tropas leais ao governo apoiados pela Arábia Saudita
e a comunidade internacional; o movimento al-Hirak independentista do Sul; e a
organização terrorista al-Qaeda), o conflito generalizado estava prestes a acontecer.

38“In early 2012, Hadi ran as the sole candidate in Yemen’s presidential campaign, which was boycotted
by the opposition groups, including the Shia Houthis and the separatist Southern Movement.
Nevertheless, with a 65% percent voter turnout, Hadi became president in a referendum-like election
that was supported by the international community.” (original, em inglês)
68

Em setembro de 2014 os Houthis conquistaram novamente a capital do país (após o


acordo de transição do governo Saleh para o de al-Hadi, a capital, que estava nas
mãos dos rebeldes, havia sido devolvida ao governo), fazendo com que a guerra civil
atual surgisse.

Os rebeldes Houthis conseguiram prender al-Hadi no ano seguinte, em 2015,


forçando-o a renunciar à presidência, mas o líder iemenita conseguiu fugir para a
Arábia Saudita, ignorar os pedidos de renúncia e ainda se declarar Presidente do
Iêmen em exílio. Suas tropas continuaram em território iemenita sendo apoiadas pela
Arábia Saudita e sua coalizão (Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Egito,
Marrocos, Jordânia, Sudão, Senegal, Estados Unidos, Grã-Bretanha e França)
(ALJAZEERA, 2018). Os governos norte-americano, britânico e francês não
participam militarmente do conflito, apenas auxiliam por meio de suas respectivas
inteligências, treinamentos e com o envio de armamentos.

Visto a dificuldade do terreno (ver capítulo 2) e as diversas forças em jogo, o


conflito continua até os dias de hoje, apenas com algumas mudanças. A primeira delas
é a de que Saleh, em 2017, foi assassinado pelos seus antigos aliados Houthis por
divergências de objetivos:

“Em 2017, a aliança pragmática do ex-presidente Saleh com os Houthis havia


sido desfeita, pois o estabelecimento baseado na premissa ‘o inimigo do meu
inimigo é meu amigo’ além de frágil, não considerava que ambos almejavam
o poder do território iemenita e que em algum momento, como nos velhos
tempos, o poder voltaria a ser disputado entre eles. [...] os dois lados
cooperaram apenas porque havia um descontentamento comum ao
presidente Hadi, mas a relação problemática e as inúmeras divergências não
tardaram a surgir.” (SANTOS, 2020, p. 44)

A segunda diferença é a de que em abril de 2022 al-Hadi desistiu de lutar e


deixou o governo nas mãos de Rashad al-Alimi, o qual alcançou um acordo de cessar-
fogo com os Houthis intermediado pelas Nações Unidas. Seu acordo caracterizou o
período mais longo sem hostilidades entre as partes desde o início do conflito, em
2014, mas após seu fim, em outubro, não foi renovado (ALJAZEERA, 2022). O conflito
continua até o momento de escrita do presente trabalho, envolvendo os Houthis e o
Irã, as forças governamentais e a coalizão saudita, o movimento separatista do Sul, e
a organização terrorista al-Qaeda.
69

3.2.1 Disputa Saudi-Iraniana no Iêmen

Na seção anterior as posições de Arábia Saudita e Irã foram diversas vezes


reafirmadas, mas uma explicação às suas causas não foi dada. A presente subseção
dedica-se a isto.

As relações entre os dois países nem sempre foram ruins. Entre a Segunda
Guerra Mundial e 1979, o governo do antigo Xá39 iraniano Mohammad Reza Pahlevi
mantinha boas relações com o Ocidente, inclusive com a Arábia Saudita. O ponto de
ruptura foi justamente em 1979, quando Pahlevi foi destronado pela Revolução
Islâmica liderada pelo Aiatolá Khomeini. Após a troca de regime, o Irã passou a ser
uma república teocrática islâmica, seguindo uma linha ideológica radical do
pensamento xiita (SILVA, 2022). Enquanto a monarquia saudita segue uma vertente
ideológica sunita conservadora (o chamado wahabismo, como visto no capítulo 2), os
dois países passaram a se enxergar como rivais na região.

Quando Khomeini subiu ao poder no Irã, a Arábia Saudita já exercia um forte


poder na região, fazendo com que o governo iraniano fosse obrigado a procurar
formas de contrabalancear tal poderio. Uma das maneiras encontradas foi o apoio a
movimentos revolucionários que se alinhassem à conduta do Irã frente à temas
negligenciados pelos sauditas:

“[...] o Irã voltava a sua atenção para a chamada ‘Arab Street’, que seriam
países árabes não necessariamente xiitas, mas que se alinhavam com a
conduta iraniana diante de temas negligenciados pelos sauditas, como por
exemplo, o conflito de palestinos e israelenses. O objetivo do Irã passou a ser
conquistas a confiança de tais países árabes para que a legitimidade dos
sauditas como liderança islâmica fosse minada.” (SANTOS, 2020, p. 46)

Além disso, o Irã realizou diversas propagandas contra a monarquia saudita ao


longo dos anos por meio de sua rádio de língua árabe que podia ser sintonizada em
toda a região do Oriente Médio, defendendo que “os regimes monárquicos presentes
no golfo não tinham embasamento no Al Corão, e portanto, eram regimes não-
islâmicos’ (SILVA, 2022, p. 35). Assim, os sauditas passaram a ver o Irã não somente
como um rival ideológico, mas também como uma ameaça a sua própria legitimidade
de poder na região.

39 Antigo título utilizado pelos monarcas da Pérsia e do Irã pré-Revolução Islâmica.


70

Por outro lado, na visão iraniana, a presença saudita também era e ainda é
considerada uma ameaça a sua existência. Dito isto, não demorou para que o Irã
passasse a “exportar” seus métodos revolucionários para outros países na tentativa
de aumentar seu prestígio e legitimidade na região, visando eventualmente
ultrapassar a Arábia Saudita como maior potência regional.

“[...] ao se estabelecer, o Irã republicano xiita tinha a necessidade da


obtenção de poder, pois o estado iraniano se encontrava fora dos grupos de
influência estadunidense e soviético, e a linha ideológica xiita iraniana ia
contra o sistema político das monarquias sunitas do Golfo Pérsico e contra o
republicanismo secular em países como Egito e Iraque. Então para não se
encontrar isolado dentro do Oriente Médio e sobe constante risco da
sobrevivência de seu regime, o Irã se inclinou a buscar a exportação do seu
modelo revolucionário, apoiando dezenas de movimentos de minorias xiitas
em diversos países no Oriente Médio.” (SILVA, 2022, p. 37)

Sendo assim, o temor saudita se faz verdadeiro visto a grande presença


iraniana em países como Iraque, Síria, Catar, Líbano e Palestina, presenças que
fazem do governo xiita o único capaz de contrabalancear o poder da Arábia Saudita.
E o temor iraniano também se faz verdadeiro, visto a influência saudita em países
como Jordânia, Omã, Bahrein, Kuwait e Egito, além da grande proximidade com os
norte-americanos, governo sujeito ao discurso de Khomeini de: “Morte à América,
morte a Israel, danem-se os judeus, vitória ao islã!” (SANTOS, 2020).

Desta maneira, o Iêmen se torna um local importantíssimo para a estratégia de


ambos os governos. Tendo o país uma localização de importância estratégica imensa
em meio ao tráfego mundial de petróleo, o Iêmen transforma-se em um ambiente
propício para os dois governos lutarem indiretamente pelo seu controle.

“Para o Irã, é uma oportunidade única que deve ser aproveitada para
promover seus interesses, afastar ou ao menos enfraquecer a influência
ocidental do Oriente Médio, gerando uma mudança no status quo capaz de
afetar diretamente os objetivos da política externa americana na região. Para
a Arábia Saudita, o fato de o Irã influenciar áreas como Damasco incentiva
um cuidado ainda maior para que o Iêmen permaneça sendo um aliado,
considerando que esse seria um fator crucial para a preservação de suas
fronteiras e interesses comerciais.” (SANTOS, 2020, p. 41)

Para finalizar, um possível governo Houthi no Iêmen poderia fazer com que o
Estreito de Bab-el-Mandeb fosse dominado pelo Irã e seus aliados (nomeadamente
China e Rússia) e fortalecer grupos como o Hezbollah e o Hamas40, inimigos tanto da
Arábia Saudita como dos Estados Unidos e de Israel (SANTOS, 2020). Uma eventual

40 Movimento islâmico político e armado atuante na Palestina.


71

tomada de poder Houthi do Iêmen poderia, assim, desestabilizar o equilíbrio da região,


coisa que não interessa nem um pouco aos sauditas.

Após explicar os motivos que propiciaram a eclosão da guerra iemenita e a


lógica das relações bilaterais entre Arábia Saudita e Irã, grandes atores envolvidos no
conflito, o estudo apresenta novamente a teoria de Waltz, desta vez aplicando-a no
contexto do Iêmen.

3.3 TEORIA DE WALTZ E A GUERRA DO IÊMEN

Na presente e última seção do trabalho é então finalmente realizada a análise


sobre a capacidade de explicação da teoria de Kenneth N. Waltz sobre o conflito
iemenita, momento em que a hipótese do trabalho é afirmada ou não.

Como visto no capítulo 1, Waltz pressupõe a existência de uma estrutura


anárquica internacional. Esta estrutura, ao mesmo tempo em que é determinada pelas
unidades em interação do sistema, também determina como estas unidades
interagem entre si (ver figura 1.1). A estrutura internacional, portanto, atua como um
agente determinante e constrangedor das ações de suas unidades, no caso, dos
Estados. Entretanto, segundo o autor, a estrutura internacional não pode ser
observada pela interação entre suas unidades, mas sim pela forma como estas
unidades estão dispostas entre si: conhecendo-se a disposição das unidades,
conhece-se o sistema. Um fator facilitador da compreensão da disposição das partes
é a distribuição de capacidades entre cada uma delas, como visto na seção 1.1.3. E
esta disposição, somada à natureza anárquica da estrutura internacional, faz com que
os Estados se contrabalanceiem, formando as chamadas Balanças de Poder.

No caso iemenita, a estrutura do sistema fica clara: o Iêmen, uma das unidades
do sistema internacional, está disposta no sistema internacional diferentemente de
seus vizinhos, Arábia Saudita e Irã, visto suas capacidades políticas, militares e
econômicas diferentes (bem menores). As relações entre estes países se darão,
obrigatoriamente, de acordo com esta disposição. Seguindo sua teoria, Waltz
provavelmente diria que as relações envolvendo Arábia Saudita e Iêmen seriam de
subordinação; mesmo sendo um Estado soberano, o Iêmen não teria forças para
competir com seu vizinho saudita, e a saída para o governo iemenita seria ou se juntar
72

ao vizinho, ou se juntar a outro ator forte o suficiente para lhe proteger; caso contrário,
poderia deixar de existir. Dito de outras formas, sobraria ao Iêmen escolher em qual
dos lados da balança de poder juntar-se, pois permanecer por si só provavelmente o
levaria à dominação saudita. A história iemenita deixa claro este dilema: escolhas
entre Egito ou Arábia Saudita, Iraque ou Arábia Saudita, Irã ou Arábia Saudita tiveram
que ser feitas ao longo da segunda metade do século XX e do início do século XXI.

Estas escolhas, por sua vez, geralmente são tomadas contra as reais vontades
dos governos. Waltz já dizia isto com relação à anarquia do sistema internacional:
sendo a estrutura internacional anárquica, os Estados são impelidos a determinados
comportamentos. Como no capítulo 1, a analogia com a estrutura econômica é
importante para esta compreensão: o livre-mercado não é tão livre assim; de fato,
teoricamente, todo empresário pode escolher fazer o que bem entender de acordo
com suas próprias vontades. Mas a estrutura do mercado lhe impedirá, constrangerá
sua gama de ações. Nenhum empresário racional, por exemplo, aumentaria seus
preços exorbitantemente, de um dia para a noite, apenas pela vontade de aumentar
seus lucros, pelo próprio desejo. Isto seria a mesma coisa que decretar falência, deixar
de existir, pois seus concorrentes continuariam vendendo a preços baixos e roubariam
sua clientela. Seu comportamento é, portanto, constrangido pela natureza do sistema.
Ele não quer vender a preços baixos, mas vende mesmo assim. E, segundo Waltz, a
mesma coisa acontece dentro da estrutura internacional.

No caso iemenita, por exemplo, o que explica as diferentes posições do


governo saudita ao longo dos anos? Primeiro, apoiava a destituída monarquia imame
de Badr contra as forças governamentais do Iêmen do Norte; depois, apoiava o
mesmo governo do Iêmen do Norte contra o Iêmen do Sul, na primeira guerra entre
os dois Estados; depois, apoiava al-Bidh, do Iêmen do Sul, contra o governo de Saleh,
do Iêmen do Norte; por fim, passou a apoiar o governo novamente, agora de al-Hadi,
contra os Houthis. Em todos estes casos, a Arábia Saudita não apoiou determinada
parte por vontade própria ou desejo. Ela foi impelida a isto. Citando o exemplo de seu
apoio a Badr, os sauditas não poderiam querer verdadeiramente apoiar a destituída
monarquia imame xiita. Apoiou, pois caso o governo de al-Sallal continuasse no poder,
o Egito, seu rival, iria aumentar a influência na região em detrimento da influência
saudita, gerando possíveis perdas ao Estado do Golfo.
73

E este efeito constrangedor da estrutura anárquica internacional pode ser visto


facilmente também no contexto atual: o governo saudita, por exemplo, não deve
querer por vontade própria liderar uma coalizão com mais de 10 países, gastando
bilhões de dólares por ano (dinheiro que poderia ser gasto de outras formas pela
monarquia dentro de seu próprio território) e colocando cidadãos de seu país em
perigo constante de morte. Mas ela é impelida a tais ações. O governo saudita é
impelido a participar ativamente da guerra para manter a balança de poder gerada
entre ele e o Irã equilibrada. Se a monarquia se abster do conflito, a balança penderá
para o lado iraniano, deixando o Irã mais forte e aumentando a ameaça à
sobrevivência saudita no cenário anárquico internacional. O mesmo se aplica ao
governo iraniano. Deste modo, as balanças de poder involuntárias de Waltz também
são confirmadas.

Até agora, portanto, a teoria de Waltz é capaz de explicar bem a ação de atores
estatais estrangeiros no conflito: a estrutura anárquica do sistema internacional impele
diferentes Estados (como no caso da Arábia Saudita e do Irã), a participarem
efetivamente da guerra em busca de seus próprios interesses. A omissão de qualquer
uma das partes no conflito poderia transformar-se em perigos para a própria existência
de cada uma delas. A teoria e suas noções de estrutura e anarquia também são
capazes de explicar satisfatoriamente as posições internacionais do governo iemenita.
O governo iemenita também é, como visto, impelido a aliar-se com potências maiores
(outras unidades do sistema), mesmo não o desejando, para assegurar sua
sobrevivência na anarquia internacional, de modo que as balanças de poder
involuntárias também se fazem presentes. A distribuição de capacidades entre o
Iêmen e as unidades do sistema geograficamente mais próximas a ele (Arábia Saudita
e Irã), fazem com que estes países, mesmo estando dispostos de forma semelhantes
na estrutura internacional, criem interações diferentes entre si. Por exemplo: a relação
saudi-iraniana se dá de modo mais igualitário, visto que suas capacidades estão
distribuídas de forma semelhante; a relação saudi-iemenita, por outro lado, se dá de
outro modo, com uma natureza de maior subordinação do Iêmen aos interesses
sauditas, visto as maiores capacidades sauditas; fato atestado na prática.

Entretanto, os problemas de aplicação da teoria de Waltz no contexto iemenita


começam a aparecer quando são considerados quais atores atuam no conflito.
74

No início do capítulo 2 foi dito que o conflito iemenita gerou uma das mais sérias
crises humanitárias da história. E nenhum organismo internacional têm poder ou
capacidade suficiente para freá-la. Duas citações de Ribeiro demonstram bem a
ineficácia dos organismos internacionais que tentam atuar no Iêmen:

“A atuação das Organizações Internacionais Não Governamentais no país


acaba por ser limitada devido aos conflitos existentes na região, sobretudo,
as coalizões sauditas dificultam o acesso dos materiais médicos necessários
para as OINGs no país, já que esses materiais passam através de locais com
liderança dos Houthis.” (RIBEIRO, 2020, p. 48)
“A falta de apoio dos Estados da sociedade internacional para com as OINGs
(no quesito segurança), que atuam e sofrem de ataques recorrentes é notória.
As vidas da população civil e de todos os voluntários da Organização estão
em risco e não existe uma movimentação para auxiliá-los ou para conterem
os ataques aos hospitais e postos de apoio. Tanto a MSF quanto a Cruz
Vermelha reiteram apelos constantes para garantias de proteção e
salvaguarda, mas continuam sofrendo ataques.” (RIBEIRO, 2020, pgs. 49,
50)

A Organização das Nações Unidas (ONU), que teria como dever acalmar os
ânimos de cada lado, colocando fim ao conflito e ao sofrimento da população, também
não é capaz. Sua eficácia depende da vontade dos Estados, como Waltz já defendia.
Se os Estados, os principais atores do sistema internacional e os únicos reconhecidos
por Waltz como unidades do sistema, não quiserem que estes organismos trabalhem,
eles não irão trabalhar. No presente capítulo foi dito que em abril de 2022, um acordo
de cessar-fogo foi intermediado pela ONU e alcançado. Mas em outubro foi extinto e
o conflito continuou, sem levar em conta o entendimento da ONU sobre isto, mas
apenas as vontades das partes envolvidas. O exemplo atesta que na Guerra do Iêmen
as organizações internacionais também não têm grande papel decisivo. Até aí tudo
bem, a teoria de Waltz se encaixa. Contudo, há uma exceção com a qual o autor não
contava na época de sua escrita: a al-Qaeda. O grupo terrorista pode sim ser
considerado uma organização internacional, pois atua em diversos países ao redor do
mundo, mas diferentemente do resto das organizações, sua atuação não depende da
vontade dos governos. Como atestado no caso do Iêmen, o grupo terrorista não
deixou de existir e nem mesmo de atuar depois de Saleh ter se voltado contra ele.
Sua atuação como agente desestabilizador durante os conflitos confirma que sua
atuação deixou de depender do Estado, passou a ter vida própria e capacidade de se
relacionar com as outras unidades do sistema, seja por meio de violência, seja por
meio de cooperação. A teoria de Waltz, portanto, não explica, em um primeiro
momento, a atuação e a importância da rede islâmica no conflito.
75

O próximo problema da aplicação da teoria de Waltz no Iêmen diz respeito aos


motivos que levaram à guerra generalizada do país. Como já visto, com relação às
explicações para a intervenção ou participação direta no conflito do Iêmen por
governos estrangeiros, a guerra pode ser respondida pela teoria. Porém, a pergunta
fica: mas porque realmente o conflito se iniciou? Após o capítulo 2 e as seções 3.1 e
3.2 do presente capítulo, é sabido que a guerra do Iêmen não se iniciou por ação
externa, ela foi fruto primordialmente da ingovernabilidade por parte do governo
iemenita e das diferentes identidades e interesses das sociedades que vivem nas
regiões Norte e Sul. A ação saudita e iraniana vieram posteriormente, quando o
conflito já acontecia. Suas ações ajudam a prolongá-lo é verdade, mas não são as
causas de sua existência. A teoria de Waltz, então, à primeira vista, se torna fraca em
seu poder explicativo, pois o conflito tem causas primordialmente domésticas. É um
conflito, acima de tudo, civil.

Os conflitos em geral, para Waltz, têm suas origens na estrutura anárquica do


sistema internacional, assim como as interações de cooperação e competição entre
os Estados. Mas no caso do Iêmen, o conflito tem sua origem na estrutura interna do
país, que teoricamente deveria ser hierarquizada. Mas para se haver uma estrutura
hierarquizada, segundo Waltz, é necessário que suas unidades estejam dispostas de
forma diferente uma das outras, com cada uma delas cumprindo determinada função,
ou seja, havendo entra elas relações de subordinação e hierarquização
(diferentemente do que ocorre no cenário anárquico).

Porém, no caso do Iêmen, é nítido e fácil de se perceber que as unidades de


sua estrutura doméstica não são mais subordinadas umas das outras e muito menos
atuam em um cenário hierárquico. Os Houthis controlando o Norte, o movimento al-
Hirak controlando grande parte do Sul, o governo controlando o Exército e apenas
algumas partes do país... as unidades deixaram de ser diferenciadas, deixaram de
possuir papéis especializados, deixaram de serem hierarquizadas. Tornaram-se
semelhantes, assim como acontece com os Estados. Suas disposições nos dão
indícios da natureza da estrutura doméstica iemenita, a qual pode ser considerada
anárquica de acordo com os conceitos utilizados por Waltz. Novamente: conhecendo-
se a disposição das unidades, conhece-se o sistema.

Observando cada um dos principais grupos domésticos atuantes no conflito


(Houthis, al-Hirak, o governo e a al-Qaeda), é fácil perceber que a distribuição de
76

capacidades entre eles é semelhante, assim como em um conflito entre dois Estados
soberanos. Nenhum destes atores mantém interações hierarquizadas entre si, ao
contrário, mantém interações anárquicas visto a sua distribuição semelhante, inclusive
no que diz respeito às suas capacidades bélicas. Após a perda total do controle
governamental em 2014, tais forças deixaram de cumprir um papel determinado para
cada uma delas, deixaram de estarem dispostas de forma diferente umas das outras.
A estrutura se tornou, de fato, anárquica, e as interações entre suas unidades
passaram a se dar da mesma maneira como se dão entre as unidades em um sistema
internacional: todas as partes lutando pela própria sobrevivência, pelos próprios
interesses e pelos próprios objetivos.

De acordo com a tabela 1.1, no capítulo 1, todas as provas de que houve uma
transformação estrutural se fazem presentes no Iêmen. Primeiramente, houve uma
mudança nas funções e nas distribuições das unidades no sistema doméstico
iemenita (termo 2). As diferentes unidades, desde 2001, foram deixando de lado suas
diferenças formais e se assemelhando cada vez mais (os Houthis, por exemplo, foram
cada vez mais se instituindo como um próprio governo, assemelhando-se ao próprio
governo oficial). Em segundo lugar, houve uma redistribuição das capacidades das
unidades (termo 3), pois desde 2004, as partes foram ganhando cada vez mais poder
entre a população (caso do al-Hirak no Sul e dos Houthis no Norte), mais poder
financeiro e mais poder bélico (caso dos Houthis, devido à ajuda iraniana), alterando
assim suas capacidades e as aproximando em termos de semelhança do governo.
Por fim (termo 1), a diferente distribuição de capacidade entre as unidades, assim
como a crescente semelhança entre elas, alterou a forma como elas estavam
dispostas na estrutura. Tal mudança na disposição mudou a lógica do princípio
ordenador, que passou de hierárquico para anárquico.

Desta forma, desde que seja considerado que a estrutura doméstica iemenita
tenha passado de uma estrutura hierárquica para uma estrutura anárquica, a teoria
de Waltz é válida para explicar o conflito. Quanto à al-Qaeda, um dos outros
problemas comentados anteriormente, sua identidade ou não como organização
internacional se torna irrelevante dentro do contexto iemenita neste caso, visto que
nem os Houthis e nem o movimento al-Hirak são Estados. Porém, mesmo assim,
todos acabam se tornando unidades partes de uma estrutura anárquica que buscam
sua própria sobrevivência e seus próprios interesses. Importante ressaltar que Waltz
77

considerava os Estados como os atores principais das relações internacionais, é


verdade. Mas os Estados são considerados por Waltz como únicas unidades da
estrutura internacional simplesmente pela natureza anárquica do sistema
internacional. Se for levado em conta que a estrutura iemenita tenha se tornado
anárquica, nada impede que outros atores sejam considerados unidades, da mesma
forma com que Waltz fazia suas analogias com o mercado econômico (ver capítulo 1).
Os agentes econômicos também não são Estados, mas podem ser considerados
unidades de um sistema anárquico.

Portanto, a teoria das Relações Internacionais pode ser considerada digna de


explicação ao conflito iemenita, desde que se conclua que a estrutura interna do Iêmen
tenha se tornado anárquica. Caso não seja tida como anárquica (mesmo com as
diversas provas vistas ao longo deste estudo) a teoria de Waltz falha em explicar os
motivos que levaram ao conflito e seus atores.
78

CONCLUSÃO

O presente trabalho teve como principal meta observar o conflito do Iêmen sob
a luz teórica de Kenneth N. Waltz e, desta forma, dizer se a teoria escrita pelo
aclamado autor neorrealista das Relações Internacionais continuaria possuindo poder
explicativo sobre um conflito moderno, mesmo depois de quarenta anos de sua
escrita.

Para tal tarefa, sua teoria foi estudada de acordo com sua obra, “Teoria de
Relações Internacionais”, de 1979, levando-se em conta seus principais pontos e
conceitos. Em seguida, foi estudada a história política iemenita, desde o século XVI
até os dias de hoje, assim como os motivos e a lógica de seu conflito atual. Por fim, a
teoria de Waltz foi novamente trazida, mas desta vez em conjunto com a situação de
guerra do Iêmen.

A conclusão que se tira deste trabalho é a de que, sim, a teoria de Waltz ainda
pode ser utilizada para explicar um conflito moderno como a Guerra do Iêmen. Mas
com uma ressalva: a teoria tem seu poder explicativo confirmado apenas se for
considerado que a estrutura doméstica do Iêmen passou de hierárquica para
anárquica. Caso contrário, a teoria de Waltz falha em explicar as razões de uma guerra
civil e os papéis de atores não-estatais no conflito, como organizações terroristas.

Vale destacar também que é possível que o presente trabalho não tenha tido
completo êxito em atestar se houve ou não uma mudança estrutural iemenita. Tal
tarefa demandaria um estudo mais minucioso e focado apenas neste complexo
objetivo.

Entretanto, quanto ao objetivo proposto, o estudo logrou atestar não só a


possibilidade de explicação da guerra pelas lentes de Waltz, como também a grande
relevância que o autor possui na academia de Relações Internacionais. Apenas pelo
fato de abrir-se a possibilidade de mais um estudo envolvendo seus conceitos de
anarquia e estrutura por meio desta pequena investigação, fica claro que
independentemente de sua validade ou não, sua teoria ainda pode levantar diversos
debates no canário acadêmico da área.
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