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CURITIBA
2022
LUIZ FELIPE PEREIRA NEVES
CURITIBA
2022
LUIZ FELIPE PEREIRA NEVES
Unicuritiba
Unicuritiba
Unicuritiba
Dedico este trabalho ao meu querido e amado
avô, Arno Buzzi, que nos deixou neste ano.
Serei eternamente grato por todo amor e carinho
que você me deu e pelo vasto conhecimento que
você me proporcionou. Sei que onde quer que
você esteja, estará sempre torcendo por mim e
por toda nossa família. Muito obrigado por tudo
vozão.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente meus pais, Luiz e Jane, que sempre me motivaram a seguir
todos os meus sonhos e ambições, sempre me dando todo o suporte afetuoso, mental
e financeiro... serei eternamente grato aos meus amados pais...
Agradeço toda a minha família, nomeadamente: meus tios Borges, Frega, André,
Eduardo e Damião; minhas tias Fabiana, Deise, Cassiana, Cristina e Géssica; minhas
avós Dalva e Rosina; minha bisa Lucinda; minhas primas Isabella, Isadora, Yasmin,
Marina, Laura, Luana, Rebeca, Amanda e Giovana; e meus primos Marcelo, Gabriel,
Breno e Estevão. Sem a presença destas queridas pessoas que eu tanto amo, minha
vida não possuiria sentido algum...
Agradeço também aos irmãos que a vida me proporcionou ao longo dos anos: João,
Leonardo, Matheus, Andrei, Lucas, Lipe e Eduardo, os quais estavam presentes em
todas as aventuras de minha vida, nos momentos mais engraçados e nos mais
perigosos, aprendendo juntos como a vida funciona. Sem eles meus dias não teriam
sido a mesma coisa...
Agradeço meus queridos amigos e companheiros de curso, Raul, Rhian, Josepe, Gui
Barba e Gui Padre; sem suas divertidas companhias, os quatro anos de faculdade não
teriam sido fáceis...
E, por fim, agradecimentos especiais ao meu querido avô Arno, que nos deixou em
setembro deste ano, e ao meu também falecido avô Luiz Roberto, que será sempre
lembrado pelas diversas memórias felizes que me proporcionou.
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo analisar a Guerra do Iêmen pela ótica da teoria
neorrealista de Kenneth N. Waltz. O estudo preocupa-se em analisar se mesmo após
mais de quarenta anos da escrita da obra “Teoria das Relações Internacionais” (1979),
sua teoria de Relações Internacionais ainda é capaz de explicar um conflito moderno
como o do Iêmen. Considerada pela Organização das Nações Unidas como uma das
maiores crises humanitárias do planeta, o Iêmen tornou-se um cenário de guerra entre
potências regionais como Arábia Saudita e Irã. As diversas intervenções estrangeiras
no conflito são somadas à uma grande gama de atores domésticos lutando entre si
por poder e influência, fazendo do conflito uma guerra catastrófica e digna de estudo.
Para alcançar o objetivo proposto, primeiramente a teoria de Waltz é explicada em
seus principais pontos e conceitos; em seguida, a história política do Iêmen é escrita
desde o século XVI até a Guerra Civil de 1994, proporcionando ferramentas para o
melhor entendimento do Estado árabe; o conflito atual é então explicado de acordo
com os conhecimentos históricos e pela situação política atual; por fim, a análise sobre
a capacidade de explicação de Waltz é realizada.
The present work aims to analyze the Yemen War from the perspective of Kenneth N.
Waltz’s neorealist theory. The study is concerned with analyzing whether even after
more than forty years of writing the work “Theory of International Relations” (1979), his
theory of International Relations is still capable of explaining a modern conflict such as
the one in Yemen. Considered by the United Nations as one of the biggest
humanitarian crises on the planet, Yemen has become a scene of war between
regional powers such as Saudi Arabia and Iran. The various foreign interventions in
the conflict are added to a wide range of domestic actors fighting each other for power
and influence, making the conflict a catastrophic war worthy of study. To reach the
proposed objective, firstly Waltz’s theory is explained in its main points and concepts;
then, Yemen’s political history is written from the 16th century to the 1994 Civil War,
providing tools for a better understanding of the Arab state; the current conflict is then
explained according to historical knowledge and the current political situation; finally,
the analysis of Waltz’s explanatory capacity is carried out.
INTRODUÇÃO ..............................................................................................................11
2. HISTÓRIA DO IÊMEN............................................................................................32
CONCLUSÃO ............................................................................................................78
REFERÊNCIAS..........................................................................................................79
11
INTRODUÇÃO
Para um breve resumo de sua vida acadêmica, Waltz nasceu em 1924, obteve seu
Mestrado na Universidade de Columbia em 1950, se tornou Doutor pela mesma
universidade em 1954, e passou a lecionar Ciência Política nas universidades de
Berkeley, Harvard e Brandeis (GRIFFITHS; ROACH; SOLOMON, 2009).
O presente trabalho, portanto, tem como objetivo analisar se sua teoria de Relações
Internacionais contida na obra “Teoria das Relações Internacionais”, de 1979, ainda é
capaz, depois de mais de 40 anos, de explicar um conflito atual, nomeadamente, a
Guerra do Iêmen.
Para tal tarefa, no capítulo 1 sua obra é analisada diante de suas principais
características e conceitos. No capítulo 2, a história política do Iêmen é retratada
desde o século XVI até 1994, pois seu estudo proporciona ferramentas para o melhor
entendimento da lógica de funcionamento daquele país. Por fim, no capítulo 3, finaliza-
se a história do Iêmen explicando os processos políticos que desde 1994 levaram ao
conflito geral em 2014, terrível guerra que dura até os dias de hoje. Ao final do mesmo
capítulo o conflito é analisado pelas lentes de Waltz e a hipótese do trabalho é posta
à prova.
1 As visões teóricas realistas das Relações Internacionais têm como base 4 princípios: 1) Os Estados
são os principais atores das Relações Internacionais; 2) Os Estados são atores unitários; 3) Os Estados
são essencialmente racionais; 4) Há uma hierarquia entre os assuntos importantes de Relações
Internacionais (“High Politics” – assuntos relacionados à segurança nacional, e “Low Politics” –
assuntos domésticos, como economia e áreas afins.) (SARFATI, 2005, pgs. 38, 39)
12
métodos, porém utiliza uma frase de Waltz como cerne para o objetivo final: “De
teorias, perguntamos: “Qual é o seu poder explicativo?” (WALTZ, 1979, p. 19)
Sendo assim, não é o intuito do trabalho proporcionar uma crítica valorativa sobre a
teoria neorrealista de Waltz. Seguindo sua diferenciação sobre teorias e leis, parte-se
do fato de que enquanto leis não explicam verdadeiramente fenômenos passíveis de
observação (apenas os descrevem e, portanto, são verdadeiras e imutáveis), teorias
e conceitos teóricos não são nem falsos e nem verdadeiros, não são passíveis de se
enxergar diretamente pelos sentidos e são frutos tanto da correlação de diversas leis
como da própria criatividade do autor (WALTZ, 1979). Deste modo, não é encontrada
na conclusão do presente estudo uma resposta positiva ou negativa sobre a
veracidade da teoria proposta por Waltz. O que é discutido, como dito anteriormente,
é o poder explicativo da teoria de Waltz em um determinado conflito; no caso, a Guerra
Civil do Iêmen.
Deste modo, é possível perceber que existe algo além das simples ações e
interações entre os Estados nas relações internacionais. Este algo além é proposto
por Waltz como sendo a estrutura do sistema. Para o autor (WALTZ, 2002), existem
dois níveis em dado sistema internacional: o primeiro seria a estrutura, ou o próprio
nível sistêmico, o qual torna possível pensar as unidades como partes de um conjunto,
15
algo mais do que uma mera coleção de atores. O segundo seria composto pelas
próprias unidades em interação entre si.
Uma teoria sistêmica, portanto, tem como objetivo mostrar como os dois níveis
do sistema internacional operam e interagem entre si, sempre levando em conta a
demarcação entre cada um deles, já que só é possível “perguntar como A e B se
afetam mutualmente, e continuar procurando uma resposta, se A e B puderem ser
mantidos distintos” (WALTZ, 2002, p. 63). Segundo Waltz, muitos autores anteriores
a ele já tentavam instituir uma teoria sistêmica das relações internacionais, mas caíam
em erro ao confundir os dois níveis (WALTZ, 2002). Fatos consumados como produtos
do sistema eram facilmente explicados como frutos da política interna das unidades.
É claro que cada Estado chega a políticas e decide sobre ações “de acordo com os
seus próprios processos internos, mas as suas decisões são moldadas pela presença
de outros Estados, assim como pelas interações com eles” (WALTZ, 2002, p. 95).
“[...] forças às quais as unidades estão sujeitas. A partir delas, podemos inferir
algumas coisas sobre o comportamento esperado e o destino das unidades:
nomeadamente, como terão de competir e ajustar-se umas às outras, se
pretendem sobreviver e florescer. Uma vez que a dinâmica de um sistema
limita a liberdade das suas unidades, o seu comportamento e as resultantes
do seu comportamento tornam-se previsíveis. Como esperamos que as
firmas respondam a mercados diferentemente estruturados, e os estados a
sistemas político-internacionais diferentemente estruturados? Estas questões
teóricas requerem que entendamos as firmas como firmas, e os estados
como estados, sem dar atenção a diferenças entre eles. As questões são
então respondidas por referência ao posicionamento das unidades no seu
sistema e não por referência às suas qualidades internas. As teorias
sistémicas explicam por que motivo diferentes unidades se comportam
similarmente e, apesar das suas variações, produzem resultantes que se
enquadram nos limites esperados.” (WALTZ, 2002, p. 104)
16
2 “The most striking peculiarity presented by a psychological crowd is the following: Whoever be the
individuals that compose it, however like or unlike be their mode of life, their occupations, their character,
or their intelligence, the fact that they have been transformed into a crowd puts them in a possession of
a sort of collective mind which makes them feel, think, and act in a manner quite different from that in
which each individual of them would feel, think, and act were he in a state of isolation.” (LE BON, 2009,
p. 30) (original, em inglês)
17
Mas como é possível fazer isso se a estrutura não existe de fato? Se ela
depende das partes e as partes dependem dela? Waltz sugere que é possível
observar a estrutura se o pesquisador ignorar as relações entre as unidades, suas
personalidades e seus comportamentos, e concentrar seus estudos na posição que
cada unidade ocupa em relação as outras:
Parlamento, sendo na prática impossível para cada um deles liderar o país de acordo
com suas próprias ideias e com “mãos de ferro”, sem o perigo de algumas facções de
seus partidos se rebelarem e os tirarem da liderança. Mesmo com poderes formais
mais amplos se comparados aos dos chefes de Estado dos Estados Unidos, muita
cautela é necessária na condução da política britânica. É claro que as ações do
Presidente norte-americano também são de certa maneira constrangidas pelo
Congresso ou pela Suprema Corte, mas mesmo assim eles acabam possuindo mais
liberdade de ação do que seus pares ingleses.
Mas mesmo existindo também uma estrutura internamente aos Estados, ela
difere muito da estrutura político-internacional (estrutura externa):
Este primeiro passo consegue dar uma resposta plausível para a (des)ordem
da política internacional e responder a pergunta anteriormente colocada.
Waltz (WALTZ, 2002) sugere que para entender a questão, se analise a política
internacional de forma semelhante a qual os economistas adeptos do laissez-faire,
popularizado por Adam Smith, enxergam o mercado. A teoria econômica liberal, que
tem como “pai fundador” a obra de Smith, “A Riqueza das Nações”, explicava os
mercados como sendo o princípio ordeiro das relações econômicas entre os diversos
atores de uma dada sociedade. Dito isto, todos os atores econômicos interagem no
mercado sempre visando seus próprios interesses, ou seja, de forma individualista e
egoísta. Segundo Smith (WALTZ, 2002), de alguma forma, as ações de cada um
destes atores impelidos pelo mercado a competir entre si para maximizar seus lucros,
levam a harmonia econômica, mesmo cada um deles lutando por interesses distintos
e muitas vezes antagônicos. A verdade é que estes atores econômicos acabam por
cooperar entre si sem querer, pois são impelidos pelo mercado a isso. Nenhum dono
de panificadora é louco o bastante para subir seus preços de um dia para a noite em
busca de mais lucros e, consequentemente, maior satisfação pessoal, pois ele sabe
20
que seus pares donos de panificadoras não irão fazer isto; sua ambição por lucros
maiores iria acabar por deixá-lo sem lucro algum. Assim, o mercado atua como um
constrangimento às ações do dono de panificadora, assim como as estruturas atuam
constrangendo a ação das unidades, ou, dos Estados.
Este termo serve mais para a definição da estrutura interna do que para a
definição da estrutura externa, visto que internamente as unidades são diferenciadas,
cada uma exercendo determinada função (ex.: poder legislativo, poder executivo,
poder judiciário...) e hierarquizadas (ex.: Parlamentares, Presidente, juízes...).
Internacionalmente, isto não acontece:
“[...] as estruturas são definidas não por todos os actores que florescem
dentro delas mas pelos mais importantes. Ao definirmos a estrutura de um
sistema escolhemos um ou alguns dos muitos objectos que compõem o
sistema e definimos a sua estrutura mediante esses objectos.” (WALTZ,
2002, p. 132)
O autor não nega em nenhum momento que haja atores não estatais
importantes na política internacional; ao contrário, ele afirma que sim, existem muitos
e cada vez em maior número (WALTZ, 2002). Mas segundo ele, não são relevantes
do ponto de vista estrutural do sistema, visto que suas diferentes funções dentro do
sistema não têm poder de definir a estrutura internacional. Segundo o autor, querendo
ou não, estes atores não-estatais são possibilitados de agir apenas pela aceitação
22
dos próprios Estados. O autor deixa claro a sua concepção “Estadocentrista” das
relações internacionais ao afirmar:
Para o autor, só faria sentido considerar os atores não estatais como unidades
do sistema caso eles tivessem se desenvolvido “ao ponto de rivalizarem ou
ultrapassarem as grandes potências, e não apenas alguns dos estados menores”
(WALTZ, 2002, p. 134), como de fato já acontecia na época. Isto porque as interações
entre unidades só possuem força o suficiente para agirem na estrutura do sistema se
as unidades do sistema forem relevantes. Para ele, não adiantaria realizar uma teoria
de relações internacionais focada nas interações entre as unidades de menor porte
do sistema:
Waltz considera que sim, todos os Estados são semelhantes entre si e por isto
devem ser tidos como as unidades do sistema. São semelhantes pois todos possuem
soberania. Todos são livres para decidirem por si mesmos como irão enfrentar os seus
problemas internos e externos, incluindo a escolha por procurar ou não assistência de
outros, mesmo que isto limite sua liberdade de ação (WALTZ, 2002). Segundo o autor,
a confusão entre o conceito de soberania e a capacidade de cada Estado de chegar
sozinho aos seus objetivos é a causa para tal falso pensamento. Cada unidade do
sistema, ou cada Estado, possui capacidades diferentes para alcançar seus desejos,
mas mesmo assim ainda são livres para tentá-lo, fato que não acontece com os atores
não estatais, já que sempre precisam do aval dos Estados para seu funcionamento.
4 Guerra Civil travada na China entre os anos de 1850 e 1864 entre a dinastia Qing e o Reino Celestial
Taiping. O conflito teve mais de 20 milhões de mortos.
5 Guerra Civil travada nos Estados Unidos entre os anos de 1861 e 1865 entre os estados do Norte e
os estados do Sul do país. O conflito teve em torno de 600.000 e 700.000 vítimas fatais.
6 Genocídio cometido pelo povo hutu contra o povo tutsi em Ruanda no ano de 1994. Estima-se que o
uma tal divisão do trabalho entre os Estados pois eles diferem muito no que diz
respeito às suas capacidades. Mas, no entanto, esta divisão entre nações é
“irrelevante em comparação com a altamente articulada divisão do trabalho dentro
delas” (WALTZ, 2002, p. 147).
Para Waltz, a única solução para tais problemas estruturais seria uma mudança
na própria estrutura (WALTZ, 2002).
A teoria da balança de poder, contudo, não foi criada por Waltz. O conceito já
existia e já circulava nos meios acadêmicos entre os autores ligados à escola realista
das Relações Internacionais. Mas, segundo Waltz, nenhum destes autores havia
concluído de forma certeira como as balanças de poder funcionavam pelo simples fato
de nunca terem se atentado aos constrangimentos impostos às unidades pela
estrutura anárquica do sistema.
Mas o que seria a balança de poder? De acordo com Waltz, ela é a resultante
das “ações descoordenadas dos Estados” (WALTZ, 2002, p. 170). Podemos imaginar
a balança de poder como o resultado do equilíbrio entre os Estados de um
determinado sistema. Não necessariamente todos os Estados, mas aqueles que são
os grandes e mais poderosos “players” do sistema político-internacional. Estando eles
equilibrados entre si, os Estados menores penderão para algum dos lados da balança.
Esta analogia ajuda muito a explicar o motivo pelo qual Waltz não acredita que
as balanças de poder surjam pela vontade dos Estados: os Estados são novamente
constrangidos pela estrutura do sistema, a qual os movimenta para a criação destas
balanças. É claro que terá momentos em que Estados desejarão sim que balanças
surjam (a aliança entre Estados Unidos, Grã-Bretanha e União Soviética), mas isto
8 Conselheiro de Segurança Nacional e Secretário de Estado dos Estados Unidos nas presidências de
Richard Nixon e Gerald Ford.
9 “In contrast to this voluntarist conception is that of Kenneth Waltz, who sees the balance of power as
an attribute of the system of states that will occur whether it is willed or not.” (original, em inglês)
31
não quer dizer que elas surjam pelas suas vontades. Para Waltz, as vontades podem
ir de acordo com as balanças, ou não.
2. HISTÓRIA DO IÊMEN
Atualmente, no entanto, o país enfrenta um intenso conflito que não parece ter
prazo para acabar. Conflitos entre diversos atores nacionais, grupos terroristas
armados e rivalidades entre potências estrangeiras como Arábia Saudita e Irã
contribuem para sua continuidade. A guerra, ao longo dos anos, destruiu sua
infraestrutura, deixou seu sistema de saúde em ruínas, contribuiu para a quase
extinção do saneamento básico e tornou doenças contagiosas uma característica
33
comum ao povo (RIBEIRO, 2020). Desta maneira, foi gerada uma das mais sérias
crises humanitárias do mundo, com milhões de pessoas passando fome:
Dito isto, o presente capítulo trata da história do país e tem como intuito
possibilitar a geração de ferramentas para se compreender a interminável guerra que
assola o Estado do Iêmen, retratada no capítulo 3. Para entender os motivos que
implodiram o país ao conflito, se faz necessária uma compreensão histórica sobre
como o país foi formado. Conhecendo os processos políticos que o país vivenciou
desde as ocupações otomana e britânica, torna-se mais fácil a análise das
características do conflito atual, assim como suas causas. Para atingir tal tarefa,
primeiramente é apresentada sua posição geográfica e, em seguida, a história do país
dividida por períodos (século XVI-1918; 1918-1970; 1970-1990; e 1990-1994).
Talib, genro e primo de Maomé como o próximo líder islâmico, visto que Talib
compartilhava do mesmo sangue do profeta (DYER; TOBEY, 2016). Após séculos a
divergência formou diversas escolas de pensamento, sendo exemplos os já citados
Zaidismo e Xafeísmo. Dito isto, a população do Sul e do Tihama é composta
majoritariamente por sunitas xafeístas, enquanto a população do Norte é
caracterizada pela sua maioria xiita zaidista. No geral, os xiitas são em menor número
(quase um terço da população), mas detém mais poder político, como é mostrado nas
próximas seções.
Mas a resistência das tribos do Norte era tão violenta e forte, e o território era
tão inóspito e de difícil acesso, que o Império Turco-Otomano decidiu deixá-las
independentes, diferentemente da região Sul e costeira. Um acordo entre o Sultão
otomano e Mutahhar, um dos líderes das tribos xiitas do Norte, decidiu que os poderes
tribais da região Norte iemenita reconheciam o poder otomano sobre o restante do
território, e em troca o Sultão reconhecia as suas lealdades e existências
independentes formais. A situação não agradou nem um pouco as tribos do Sul e do
Tihama, as quais esperavam com entusiasmo a presença otomana para as
protegerem. O entusiasmo inicial acabou por se tornar tristeza pela perda total de suas
independências (CLARK, 2010)
10 “Yemenis were slow to realize it, but the British and Dutch vessels crowding into Mocha to buy coffee
in the early seventeenth century represented a far greater long-term threat to their prosperity and
independence than any Ottoman army intent on subjugating their precious highlands. English East India
Company Merchants had First put in to Ottoman Mocha in January 1609, twenty-three years before the
Turks abandoned Yemen.” (original, em inglês)
11 “In 1618, the Porte had granted permission to both the English and Dutch to establish their ‘factories’
visto como uma possível base para os navios ingleses se reabastecerem na metade
de seus trajetos de Mumbai até Suez. Deste modo, em 1837 o governo britânico
acorda com o sheik13 de Áden a compra daquela cidade portuária. O sheik era contra
a venda, mas sabia que se não a vendesse, o líder egípcio – que visava o comércio
de café – a qualquer momento poderia atacá-la e dominá-la sem pagar nada em troca;
era melhor então receber algo dos britânicos. Contudo, o acordo foi traído por facções
anti-britânicas da cidade, e um conflito conjunto entre Áden e outras tribos ao seu
redor se iniciou contra os ingleses. Um pouco mais de um ano depois, em 1839 a Grã-
Bretanha sai vitoriosa, conquistando formalmente o porto de Áden e iniciando seu
domínio da região Sul do território iemenita (CLARK, 2010).
O domínio inglês no Sul do país foi aumentando meses após meses, com cada
vez mais tribos sob seu controle. Este fato chamou a atenção otomana novamente,
duzentos anos depois de sua retirada da região: “[...] a expansão da presença britânica
no Sul ditava uma correspondente ‘política de enfrentamento’ por parte dos
otomanos.” (CLARK, 2010, p. 38, tradução própria)14. Para contrabalancear o poder
britânico, o Império Otomano retorna ao Iêmen e conquista a cidade de Sanaa, no
Norte, em 1849. Em 1872 os otomanos anexam oficialmente o Norte do Iêmen ao
mesmo tempo em que a Grã-Bretanha anuncia a criação de um protetorado na região
Sul:
“[...] em 1872 a região norte foi anexada oficialmente como uma província
cliente do Império Otomano e, nesse mesmo ano, a região centro-sul foi
designada como Protetorado de Áden, sob a égide do Império Britânico.”
(SILVA, 2022, p. 46)
O acordo para os turcos era bom, visto o demasiado gasto que o Império tinha
para lutar contra as tribos do Norte em territórios montanhosos e de difícil acesso.
Acordadas as partes, novamente os xiitas do Norte mantinham sua independência.
Os turcos então ficaram com o domínio direto de algumas cidades perto da fronteira
com o Protetorado Britânico de Áden e dos portos de Tihama.
15 “The peasantry are robbed by the soldiers on their way to market, by the customs collector at the gate
of each city and by the tax gatherer in addition. […] No wonder we read of rebellions in Yemen, and no
wonder that intense hatred lives in every Arab against the very name of Turk.” (original, em inglês)
16 “In exchange for formal recognition of his control over the Zaydi highlands he could agree to dispense
with titles of Caliph and ‘Commander of the Faithful’ which had hitherto placed all Zaydi imams in direct
competition with the Ottoman sultans. In return, he would be free to replace Ottoman with sharia law in
his domains, to select his own judges and collect his own taxes. The Turks would remain in control over
Tihama and much of the southern highlands including the city of Taiz and retain responsibility for
Yemen’s external defense.” (original, em inglês)
40
terras sob domínio otomano no Norte do Iêmen e se torna líder do primeiro Estado
independente na Península Arábica.
Yahya governou o Reino do Iêmen – que incluía além da região Norte, o Tihama
– durante 30 anos, de 1918 até 1948. Para ele, era seu dever como líder xiita
resguardar o povo iemenita dos perigos da modernidade advindos do “contágio”
estrangeiro (CLARK, 2010). Por exemplo: Yahya recusou uma oferta de dois milhões
de dólares de uma companhia norte-americana para a exploração de petróleo em seu
território e recusou conceder permissão à empresa Ford para construir estradas no
17“When the Ottoman Empire collapsed in 1918 he was therefore well placed to fill the vacuum left
behind, extending his rule west to the Tihama and south to the borders of the British protectorates. […]
Imam Yahya emerged as the ruler of the first independent state on the Arabian Peninsula largely by
default, inasmuch as there was no power ready and willing to assume imperial responsibilities in the
area.” (original, em inglês)
41
Quanto à sua política externa, o Reino continuaria totalmente isolado dos outros
países se não fosse pelo trabalho de Raghib Bey, um diplomata iemenita que ganhou
a confiança de Yahya para conduzir suas relações exteriores nas décadas de 1930 e
1940. Observando muito bem o contexto do fim da Primeira Guerra Mundial, Raghib
percebeu que um país pobre como o Iêmen só poderia conseguir manter alianças com
Estados que não estivessem extremamente preocupados em receber algo em troca.
O Reino do Iêmen então aproxima-se de governos totalitários da época, como Itália,
Alemanha e Japão (CLARK, 2010), que desejavam aumentar suas órbitas de
influência. Além de receber materiais bélicos dos italianos e novas escolas de aviação
dos alemães, Yahya construiu a primeira mesquita de Tóquio como prova da boa
relação entre ele e o governo imperial japonês. Mas nenhuma destas alianças
proporcionava melhorias na qualidade de vida da população e nem à infraestrutura e
desenvolvimento do país.
18“Can you tell me how many millions it would cost me to be rid of them again?” (original, em inglês)
19Organização egípcia fundada por Hassan el Banna e influenciada pelo ideologia de Sayyid Qutb. É
considerada como o berço dos atuais movimentos radicais islâmicos (KEPEL, 2003).
42
mesmo assim, nunca mais voltou para Sanaa, visto que a cidade se tornara um reduto
de dissidentes e rebeldes contrários ao governo (CLARK, 2010).
O governo de Ahmad não foi muito diferente do de seu pai, até pior inclusive,
visto que em momento algum o novo imame obteve o apoio total da população, a qual
lhe apelidou de “al-Djinn”, o Demônio (CLARK, 2010). Além de herdar a ideia de seu
predecessor na qual era sua missão fechar as portas do Reino do Iêmen para a
modernidade e influências estrangeiras, a população não viu nenhum avanço em
termos de qualidade de vida durante seu reinado. Mesmo sendo um pouco mais ativo
internacionalmente que seu pai (realizou acordos com diversos países do contexto da
Guerra Fria, como China, União Soviética, Iugoslávia e Estados Unidos), seu governo
ainda era considerado extremamente fechado para qualquer investimento estrangeiro.
A única exceção foi sua grande aproximação com o Egito, comandado pelo Presidente
Gamal Abdel Nasser. As falas de Nasser defendendo um nacionalismo árabe e uma
maior aproximação entre os países de religião muçulmana, prendiam o interesse tanto
de Ahmad como da população jovem iemenita, que ouvia todos os dias com
entusiasmo a rádio egípcia “Vozes dos Árabes”:
20“Much more appealing to all Yemenis than either the West’s capitalism or the East’s communism […]
was Egypt’s Gamal Abdul Nasser’s non-aligned Arab Nationalism, thrillingly disseminated by the new-
fangled and portable transitor radios that were finding their way from Aden’s duty-free port to Yemen by
the mid-1950s. One Yemeni recalled for me that while his educated qadhi family turned in to the BBC
for news, they looked to Cairo’s Voice of the Arabs for entertainment, for excitement.” (original, em
inglês)
43
colocava não só a eficácia de Ahmad como governante em cheque, mas também toda
a estrutura política do país, ou, dito de outras forma, a instituição dos imames como
governantes. A grande insatisfação popular com o modelo de governo também
aumentou pela personalidade cruel de Ahmad (o imame prendeu, enforcou e
decapitou centenas de dissidentes), pelo aumento dos impostos nas cidades do
Tihama e pela nomeação de seu filho Badr como herdeiro (CLARK, 2010). A história
parecia se repetir, apenas com uma diferença: além do sucessor escolhido ser
impopular perante a opinião pública, naquele momento as pessoas estavam
descrentes no governo de qualquer imame que subisse ao poder. Entre 1955 e 1961
foram contabilizadas oito tentativas de assassinato contra Ahmad, o que mostra a
força da ideologia de Nasser na população. A última destas tentativas teve relativo
êxito: no fim de 1961 Ahmad precisou ir ao hospital fazer alguns exames de rotina;
enquanto realizava um raio x, um dos enfermeiros atirou diversas vezes contra o
imame. Ahmad sobreviveu, mas ficou de cama até sua morte, em setembro do ano
seguinte (CLARK, 2010).
O reinado de seu filho Badr durou apenas uma semana. Em 1962 um golpe de
Estado liderado pelo Coronel Abdullah al-Sallal extinguiu o domínio imame do Reino
do Iêmen e implantou uma república, conhecida como a República Árabe do Iêmen.
Al-Sallal fazia parte do movimento dos “Oficiais Livres”, constituído por militares que
durante o governo de Ahmad foram enviados ao Iraque e ao Egito para obter
treinamento, mas acabaram voltando com ideais republicanos e nacionalistas
(CLARK, 2010). No mesmo ano, uma guerra civil que duraria até 1970 implode na
nova República, conflito que será comentado na subseção 2.3.1.
A ideia do governo era aumentar ainda mais a boa relação com os habitantes locais,
deixando-os mais à vontade para discutirem sobre suas condições de trabalho. Mas
a partir da década de 1960 o Protetorado se viu infestado de diversas greves,
principalmente nas refinarias da British Petroleum e no Porto de Áden, fato
extremamente prejudicial para os interesses econômicos ingleses (CLARK, 2010).
Além do mais, as ações dos sindicatos começaram a objetivar o fim do domínio
colonial inglês: “[...] o crescente dinamismo dos sindicatos foi centralizado para um
ativismo político que visava o fim do domínio colonial.”21 (CLARK, 2010, p. 76,
tradução própria). Para piorar, o nacionalismo de Nasser também começou a se fazer
presente na população do protetorado britânico, assim como visto no exemplo dos
iemenitas do Norte.
21 “[...] the union’s growing dynamism was channeled into a political activism that aimed at an end to
colonial rule.” (original, em inglês)
22 “Laisser se dévelloper cet aventurier, cet Hitler au petit pied, c’était trop risque. C’était ne pas assumer
Dito isto, o território que é hoje o Estado do Iêmen ficou dividido em 1963 entre
a República Árabe do Iêmen, administrada pelo Coronel al-Sallal, e a Federação da
Arábia do Sul, administrada conjuntamente com o Protetorado da Arábia do Sul pela
Grã-Bretanha. É possível observar a divisão do território na figura 2.4:
23 Em inglês, National Liberation Front (NLF) e Front for the Liberation of Occupied South Yemen
(FLOSY).
24 “A bullet against Britain is a bullet against Israel.” (original, em inglês)
47
Na seção 2.3 foi dito que após a derrubada do governo de Badr, o Coronel al-
Sallal levou à cabo um golpe de Estado, extinguindo a monarquia imame e instituindo
a República Árabe do Iêmen, ou, o Iêmen do Norte. Porém, por interferências
externas, o golpe criou um conflito que durou mais de 7 anos. O episódio é muito
importante pois foi a primeira vez que potências regionais modernas interferiram
diretamente no Iêmen. Enquanto atualmente o Estado é palco de lutas hegemônicas
entre Arábia Saudita e Irã, naquela época lutavam por poder na região Arábia Saudita
e Egito.
Mas o que Nasser não esperava era a postura de diversos países que temiam
pela sua crescente influência. Os governos de Arábia Saudita, Inglaterra, França,
Jordânia, Irã e Israel, temendo a presença egípcia no Iêmen do Norte, começaram a
enviar armas e dinheiro para algumas tribos xiitas que ainda defendiam a legitimidade
de Badr no poder.
“Nos seguintes cinco anos, Arábia Saudita, Inglaterra, França, Jordânia, Irã e
até Israel tentaram neutralizar a presença egípcia na Península Arábica
enviando dinheiro, know-how e armas para o Imame e seus defensores. [...]
mercenários foram enviados para a região, munidos de dinheiro e armas
sauditas, para alavancar o esforço de guerra dos defensores de Badr.”
(CLARK, 2010, p. 91, tradução própria)25
Mas não foi dito na seção anterior que a população não estava contente com o
governo imame? A explicação encontra-se na estrutura tribal iemenita: a maioria da
população não queria mais ser governada por um governo religioso xiita; mas diversas
tribos mais conservadoras ainda acreditavam no poder dos imames e não demoraram
para iniciar ataques guerrilheiros contra o novo governo. Apoiados massivamente por
capital e armamento sauditas, não reconheceram o poder de al-Sallal, causando uma
guerra que duraria até 1970: de um lado, o exército egípcio e as forças de al-Sallal, e
25“For the next five years, Saudi Arabia, Britain, France, Jordan, Iran and even Israel tried to counteract
the Egyptian push onto the Arabian Peninsula by funneling cash, know-how and arms to the Imam and
his Royalists. […] mercenaries were dispatched to the region, flush with Saudi money and arms, to
bolster the Royalist war effort.” (original, em inglês)
49
do outro, as diversas tribos xiitas que apoiavam Badr, financiadas em grande parte
pela Arábia Saudita.
Nasser então se afundou em uma guerra a qual não poderia ganhar. Em 1965,
o número de soldados egípcios em território iemenita era de 55.000, uma quantidade
inexpressiva na prática se levar em conta a natureza da guerra. Os soldados egípcios
não conheciam o terreno, estavam acostumados a lutar em desertos, não em
montanhas (a temperatura podia chegar a 50 graus no Tihama, enquanto nas
montanhas poderia cair até -5 graus) e não conseguiam enfrentar as táticas de
guerrilha das tribos iemenitas, muito menos com seu poderoso arsenal concedido pela
Arábia Saudita. Estima-se que mais de 20.000 egípcios morreram no Iêmen entre
1962 e 1967, quase metade dos 55.000 enviados (CLARK, 2010).
O governo ficou nas mãos de al-Iryani e do General al-Amri, que lutaram por
contra própria até 1969 contra os apoiadores de Badr. Os dois eram contra as
interferências não só egípcias, mas também sauditas no Iêmen do Norte. Defendiam
que a República não deveria permitir a presença militar de nenhum Estado
estrangeiro, não importando a sua ideologia. Em 1970 os dois fecharam um acordo
de reconciliação com as tribos xiitas defensoras de Badr e restituíram a união do
Estado. Tanto sunitas do Tihama como xiitas do Norte aceitaram de bom grado o novo
governo conciliador. Badr, derrotado, se mudou para Londres depois do governo
saudita reconhecer a legitimidade de al-Iryani no poder. Para a Arábia Saudita,
qualquer governo no Iêmen do Norte que enxergasse a interferência egípcia como
prejudicial era bem-visto.
26 “[...] rulling Yemen is as delicate and dangerous as dancing on the heads of snakes.” (original, em
inglês)
51
O cenário da Guerra Fria também fez com que a Arábia Saudita, além de armar
informalmente tribos, também enviasse grandes quantidades de dinheiro ao próprio
governo do Iêmen do Norte, objetivando sua permanência na órbita Ocidental. Apenas
durante o governo de al-Ghashmi, o Iêmen do Norte recebeu mais de 570 milhões de
27“The most serious obstacle was the tribes: accustomed as they were to stipends and exploiting the
more productive Sunni areas of the country for their income, they did not take kindly to the threat posed
by a new, modern order to their age-old hegemony.” (original, em inglês)
52
dólares de seu vizinho, um valor exorbitante para a época (CLARK, 2010). Mas para
alcançar o “sucesso” em manter a República do Norte sob influência ocidental, foram
necessárias intervenções pontuais, como o apoio ao assassinato de al-Hamdi, que
além de haver perdido o suporte dos xiitas do Norte, havia aumentado o nível das
negociações de unificação com o Iêmen do Sul. A palavra “sucesso” foi colocada entre
aspas anteriormente pois o Iêmen do Norte era sim mais influenciado pela órbita
Ocidental do que pela Oriental, mas o próprio governo dizia fazer parte do Movimento
Não Alinhado da Guerra Fria, também mantendo acordos de cooperação com a União
Soviética.
“Os Estados Unidos [...] foram estimulados à ação apavorados pelos recentes
conflitos na fronteira; quantos vistos em conjunto com a recente subida ao
poder do Xá no Irã, se tornava claro que a União Soviética tinha grandes
planos para o Oriente Médio. Um porta-aviões adentrou o Golfo de Áden e
imensos aviões de carga carregados com tanques e mísseis antitanques,
pagos pela Arábia Saudita, voaram para Sanaa.” (CLARK, 2010, p. 112,
tradução própria)28
28“The United States [...] was galvanized into action, terrified that this border skirmishing, when viewed
alongside the recent toppling of the Shah in Iran, was a sure sign that, via its proxy, south Yemen, the
USSR had grand designs on the entire Middle East. An American aircraft carrier steamed into the Gulf
53
Mas um fato que mudou os rumos das duas repúblicas e as colocou em uma
posição cada vez mais perto da futura unificação foi a Guerra Civil no Iêmen do Sul,
de 1986. Da mesma maneira como já visto em seu vizinho do Norte, o Iêmen do Sul
também era marcado por diferenças tribais. Apesar de serem todas sunitas, também
lutavam por poder no país. Em janeiro de 1986, Abd al-Fattah Ismail, antigo Presidente
do Partido Socialista Iemenita, entrou em conflito com Ali Nasir Muhammad, que
comandava o partido na época. Existiam divergências ideológicas entre os dois, é
verdade, mas a principal causa do conflito pelo poder foi tribal. Os dois vinham de
tribos diferentes da região, as quais lutavam entre si há tempos por maior influência.
O interessante é que depois de uma semana de intensos e sangrentos conflitos entre
as duas facções (em um período de 7 dias, quase 6.000 pessoas morreram e 60.000
of Aden and gigantic cargo planes flew in and out of Sanaa loaded with tanks and anti-tank missiles,
paid for by Saudi Arabia.” (original, em inglês)
54
fugiram para o Iêmen do Norte e para Omã), nem Ismail conseguiu tomar o poder,
pois faleceu, nem Ali Nasir continuou na presidência, pois também foi morto durante
a guerra (CLARK, 2010). Contudo, a facção de Ismail saiu vitoriosa, e Ali Salim al-
Bidh, aliado de Ismail e um marxista considerado como parte da facção política linha-
dura do Partido Socialista do Iêmen tomou o poder em Áden.
29 “[...] had confidently opined that unification was ‘at least fifty years away’.” (original, em inglês)
55
30Lembrar que tal região, até 1990, ficava exatamente na fronteira entre as duas Repúblicas (ver fig.
2.5)
56
aos seus propósitos, principalmente com relação ao apoio das tribos sunitas do
Tihama.
31 “President Salih neither applauded nor condoned Saddam’s aggression against Kuwait, but Yemenis
were disgusted by the way Saudi Arabia, the keeper of Islam’s holy places, was impiously welcoming
infidel American forces onto her soil in the build-up to invasion […] Saleh favored an ‘Arab solution’
rather than an international United Nations solution to the crises which, in the circumstances, amounted
to taking Iraq’s side.” (original, em inglês)
58
voltaram ao país desempregados e sem ter como ganhar dinheiro. O governo passou
a utilizar quase metade do orçamento nacional com auxílios a estas pessoas (CLARK,
2010).
32“[...] reserves amounted to a mere four billion barrels, compared with the Saudis’ 261.5 billion barrels.”
(original, em inglês)
59
ataques realizados pelos dois lados, no dia 21 de maio al-Bidh declarou a saída dos
territórios do Sul do Iêmen unificado, recriando o antigo Iêmen do Sul, mas com outro
nome: República Democrática do Iêmen.
Dois meses após o início do conflito, as forças de Saleh saíram vitoriosas, al-
Bidh fugiu para Omã com alguns apoiadores e a República do Iêmen sobreviveu. Uma
novidade nos exércitos de Saleh foi a atividade conjunta com jihadistas veteranos da
Guerra do Afeganistão contra os soviéticos, todos afiliados a al-Qaeda, que dava seus
primeiros passos no Iêmen. A presença destes religiosos extremistas assustou a
população local de Áden, que de um dia para o outro se viu proibida de beber álcool
33[...] the US State Department set the priority of its alliance with Saudi Arabia to one side for a change
and declared itself in favors of a united Yemen, simply because a reinforcement of the status quo
seemed the best way to avoid destabilizing the region and disrupting the flow of a useful three million
barrels of oil a day through the Bab-al-Mandab.” (original, em inglês)
60
e de conversar com mulheres que não eram de suas famílias, assim como observar a
destruição da igreja anglicana da cidade. Saleh apoiava as ações dos extremistas, o
que se tornaria um grande problema para ele no futuro. Ao todo, a Guerra Civil de
1994 causou ao Iêmen quase 7.000 mortos, 8 bilhões de dólares e o imenso
ressentimento dos sunitas do Sul quanto às ações de Saleh, criando uma divisão no
país que perdura até os dias de hoje (CLARK, 2010).
O presente capítulo mostrou uma história concisa da política iemenita até o fim
do século XX. Sua explicação é de extrema importância para o entendimento do
conflito atual. A estrutura tribal do Iêmen, o poder e a corrupção das tribos xiitas do
Norte, a importância geográfica do país, os antecedentes do governo de Saleh, as
divisões entre Norte e Sul (assim como suas diferenças religiosas) e o surgimento da
atuação de movimentos jihadista no país foram bem explicados. No capítulo 3 se
tornam ferramentas extremamente úteis para explicar o conflito atual.
61
O presente capítulo tem como objetivo mostrar como o atual conflito do Iêmen
se iniciou e analisar se é possível ou não explicá-lo de acordo com a teoria neorrealista
de Waltz, apresentada no capítulo 1. Visto todo o contexto histórico do país árabe
apresentado no capítulo 2, a compreensão do momento atual é facilitada.
Após a Guerra Civil de 1994, o Iêmen continuou sob comando de Saleh até o
ano de 2012. Ao todo, contando também seus anos de presidência do Iêmen do Norte
antes da unificação (1978-1990), Saleh liderou por quase 34 anos.
Seu governo no início do século XXI não foi capaz de melhorar a união política
dos iemenitas e muito menos a economia do Estado, possibilitando que a situação
culminasse em uma guerra generalizada em 2014, já após sua saída do governo.
Segundo o jornal Al Jazeera, estima-se que durante as três décadas que Saleh
ficou no poder tenham sido desviados do orçamento público do Iêmen uma quantia
entre 32 e 60 bilhões de dólares, grande parte deste valor extorquido por meio de
esquemas de corrupção liderados por Saleh envolvendo a extração de petróleo
(ALJAZEERA, 2015).
“Acredita-se que a origem dos fundos usados para gerar a riqueza de Ali
Abdullah Saleh venha em parte de suas práticas de corrupção como
Presidente do Iêmen, particularmente relacionadas com contratos de gás e
petróleo, nos quais ele supostamente pedia dinheiro em troca da concessão
de direitos exclusivos a empresas para a prospecção de gás e petróleo no
Iêmen.” (ALJAZEERA, 2015, tradução própria)34
Saleh, durante praticamente todo o seu governo no século XXI não tinha o
apoio da população, nem das tribos sunitas do Sul e nem dos xiitas do Norte. A
34“The origin of the funds used to generate Ali Abdullah Saleh’s wealth is believed to be partly from his
corrupt practices as president of Yemen, particularly relating to gas and oil contracts where he reportedly
asked for money in exchange for granting companies exclusive rights to prospect for gas and oil in
Yemen.” (original, em inglês)
62
população do Sul, após a Guerra Civil de 1994, indignou-se com Saleh, principalmente
pelo apoio do Presidente aos grupos terroristas que invadiram Áden. A extrema
pobreza da região também não agradava nem um pouco, visto a antiga promessa de
enriquecimento devido às descobertas de petróleo na região; a unificação, neste
quesito, não adiantou em nada, já que grande parte do dinheiro ganho com as
reservas naturais iam para as contas bancárias do próprio Presidente e de sua família.
(CLARK, 2010). Em contrapartida, as tribos do Norte do Iêmen continuaram apoiando,
em sua maioria, o governo de Saleh até 2001, ano chave para a política internacional.
35Até hoje não se sabe se o alvo daquela aeronave era realmente o Capitólio, ou se era a Casa Branca.
A única certeza é de que objetivava a capital norte-americana.
63
Desde 1994 o governo iemenita não aprovava e nem impedia a ação da al-
Qaeda em seu território. Saleh mantinha relações cordiais com o grupo desde seu
apoio contra al-Bidh durante a guerra (CLARK, 2010), mas a reação norte-americana
contra a organização, devida ao ataque em seu próprio território, colocava a relação
entre Saleh e os extremistas em cheque. Caso o Presidente continuasse permitindo a
livre atuação do grupo em seu território, poderia vir a sofrer fortes consequências
vindas da maior potência militar do planeta. Caso cortasse suas relações e ajudasse
os Estados Unidos a cumprir os seus objetivos na Guerra ao Terror, Saleh poderia
aumentar os laços com o Presidente Bush e receber mais fundos norte-americanos.
Foi o que aconteceu:
36
Central Intelligence Agency (Agência de Inteligência norte-americana).
37Ao longo do século XX, diversos grupos islâmicos começaram a sentir uma certa angústia em relação
ao Ocidente. O fim do Império Otomano após a Primeira Guerra Mundial e a consequente secularização
64
governo ocidental que tanto oprimia os árabes em favor dos judeus e do petróleo. Dito
isto, Saleh, após 2002 encontrou-se sem apoio da população, nem da do Sul e nem
da do Norte. Seu poder, entretanto, ainda se mantinha pela boa relação com seu
Exército, cujos comandantes participavam ativamente de seus esquemas de
corrupção (CLARK, 2010). Mas mesmo com o Exército do seu lado, os diversos
armamentos enviados pela Arábia Saudita ao longo dos anos anteriores às tribos do
Norte (como visto no capítulo 2), criavam um cenário cada vez maior de insegurança
no país.
ataques que acabaram levando a um cessar-fogo entre as partes. Mas como visto no
capítulo 2, a Arábia Saudita não havia apoiado al-Bidh, inimigo de Saleh durante a
Guerra Civil de 1994? Por que então apoiava seu governo desta vez? Pois agora os
sauditas tinham um novo inimigo na região: o Irã. Mas a relação entre as duas
potências regionais é explicada na próxima seção. Importante salientar também que
o conflito, nos seus 6 anos de duração, causou milhares de mortos e fez com que
milhares de pessoas fossem deslocadas de suas cidades, iniciando a grande crise
humanitária que pode ser observada atualmente.
“Os ataques a civis causaram uma ruptura política dentro das forças armadas
do Iêmen, com milhares de soldados e oficiais desertando do exército, a
exemplo do General Ali Muhsin (primo do presidente Saleh), que colocou as
suas unidades militares em prontidão para a defesa dos manifestantes
perante possíveis novas agressões das tropas leais a Saleh.” (SILVA, 2022,
p. 52)
38“In early 2012, Hadi ran as the sole candidate in Yemen’s presidential campaign, which was boycotted
by the opposition groups, including the Shia Houthis and the separatist Southern Movement.
Nevertheless, with a 65% percent voter turnout, Hadi became president in a referendum-like election
that was supported by the international community.” (original, em inglês)
68
As relações entre os dois países nem sempre foram ruins. Entre a Segunda
Guerra Mundial e 1979, o governo do antigo Xá39 iraniano Mohammad Reza Pahlevi
mantinha boas relações com o Ocidente, inclusive com a Arábia Saudita. O ponto de
ruptura foi justamente em 1979, quando Pahlevi foi destronado pela Revolução
Islâmica liderada pelo Aiatolá Khomeini. Após a troca de regime, o Irã passou a ser
uma república teocrática islâmica, seguindo uma linha ideológica radical do
pensamento xiita (SILVA, 2022). Enquanto a monarquia saudita segue uma vertente
ideológica sunita conservadora (o chamado wahabismo, como visto no capítulo 2), os
dois países passaram a se enxergar como rivais na região.
“[...] o Irã voltava a sua atenção para a chamada ‘Arab Street’, que seriam
países árabes não necessariamente xiitas, mas que se alinhavam com a
conduta iraniana diante de temas negligenciados pelos sauditas, como por
exemplo, o conflito de palestinos e israelenses. O objetivo do Irã passou a ser
conquistas a confiança de tais países árabes para que a legitimidade dos
sauditas como liderança islâmica fosse minada.” (SANTOS, 2020, p. 46)
Por outro lado, na visão iraniana, a presença saudita também era e ainda é
considerada uma ameaça a sua existência. Dito isto, não demorou para que o Irã
passasse a “exportar” seus métodos revolucionários para outros países na tentativa
de aumentar seu prestígio e legitimidade na região, visando eventualmente
ultrapassar a Arábia Saudita como maior potência regional.
“Para o Irã, é uma oportunidade única que deve ser aproveitada para
promover seus interesses, afastar ou ao menos enfraquecer a influência
ocidental do Oriente Médio, gerando uma mudança no status quo capaz de
afetar diretamente os objetivos da política externa americana na região. Para
a Arábia Saudita, o fato de o Irã influenciar áreas como Damasco incentiva
um cuidado ainda maior para que o Iêmen permaneça sendo um aliado,
considerando que esse seria um fator crucial para a preservação de suas
fronteiras e interesses comerciais.” (SANTOS, 2020, p. 41)
Para finalizar, um possível governo Houthi no Iêmen poderia fazer com que o
Estreito de Bab-el-Mandeb fosse dominado pelo Irã e seus aliados (nomeadamente
China e Rússia) e fortalecer grupos como o Hezbollah e o Hamas40, inimigos tanto da
Arábia Saudita como dos Estados Unidos e de Israel (SANTOS, 2020). Uma eventual
No caso iemenita, a estrutura do sistema fica clara: o Iêmen, uma das unidades
do sistema internacional, está disposta no sistema internacional diferentemente de
seus vizinhos, Arábia Saudita e Irã, visto suas capacidades políticas, militares e
econômicas diferentes (bem menores). As relações entre estes países se darão,
obrigatoriamente, de acordo com esta disposição. Seguindo sua teoria, Waltz
provavelmente diria que as relações envolvendo Arábia Saudita e Iêmen seriam de
subordinação; mesmo sendo um Estado soberano, o Iêmen não teria forças para
competir com seu vizinho saudita, e a saída para o governo iemenita seria ou se juntar
72
ao vizinho, ou se juntar a outro ator forte o suficiente para lhe proteger; caso contrário,
poderia deixar de existir. Dito de outras formas, sobraria ao Iêmen escolher em qual
dos lados da balança de poder juntar-se, pois permanecer por si só provavelmente o
levaria à dominação saudita. A história iemenita deixa claro este dilema: escolhas
entre Egito ou Arábia Saudita, Iraque ou Arábia Saudita, Irã ou Arábia Saudita tiveram
que ser feitas ao longo da segunda metade do século XX e do início do século XXI.
Estas escolhas, por sua vez, geralmente são tomadas contra as reais vontades
dos governos. Waltz já dizia isto com relação à anarquia do sistema internacional:
sendo a estrutura internacional anárquica, os Estados são impelidos a determinados
comportamentos. Como no capítulo 1, a analogia com a estrutura econômica é
importante para esta compreensão: o livre-mercado não é tão livre assim; de fato,
teoricamente, todo empresário pode escolher fazer o que bem entender de acordo
com suas próprias vontades. Mas a estrutura do mercado lhe impedirá, constrangerá
sua gama de ações. Nenhum empresário racional, por exemplo, aumentaria seus
preços exorbitantemente, de um dia para a noite, apenas pela vontade de aumentar
seus lucros, pelo próprio desejo. Isto seria a mesma coisa que decretar falência, deixar
de existir, pois seus concorrentes continuariam vendendo a preços baixos e roubariam
sua clientela. Seu comportamento é, portanto, constrangido pela natureza do sistema.
Ele não quer vender a preços baixos, mas vende mesmo assim. E, segundo Waltz, a
mesma coisa acontece dentro da estrutura internacional.
Até agora, portanto, a teoria de Waltz é capaz de explicar bem a ação de atores
estatais estrangeiros no conflito: a estrutura anárquica do sistema internacional impele
diferentes Estados (como no caso da Arábia Saudita e do Irã), a participarem
efetivamente da guerra em busca de seus próprios interesses. A omissão de qualquer
uma das partes no conflito poderia transformar-se em perigos para a própria existência
de cada uma delas. A teoria e suas noções de estrutura e anarquia também são
capazes de explicar satisfatoriamente as posições internacionais do governo iemenita.
O governo iemenita também é, como visto, impelido a aliar-se com potências maiores
(outras unidades do sistema), mesmo não o desejando, para assegurar sua
sobrevivência na anarquia internacional, de modo que as balanças de poder
involuntárias também se fazem presentes. A distribuição de capacidades entre o
Iêmen e as unidades do sistema geograficamente mais próximas a ele (Arábia Saudita
e Irã), fazem com que estes países, mesmo estando dispostos de forma semelhantes
na estrutura internacional, criem interações diferentes entre si. Por exemplo: a relação
saudi-iraniana se dá de modo mais igualitário, visto que suas capacidades estão
distribuídas de forma semelhante; a relação saudi-iemenita, por outro lado, se dá de
outro modo, com uma natureza de maior subordinação do Iêmen aos interesses
sauditas, visto as maiores capacidades sauditas; fato atestado na prática.
No início do capítulo 2 foi dito que o conflito iemenita gerou uma das mais sérias
crises humanitárias da história. E nenhum organismo internacional têm poder ou
capacidade suficiente para freá-la. Duas citações de Ribeiro demonstram bem a
ineficácia dos organismos internacionais que tentam atuar no Iêmen:
A Organização das Nações Unidas (ONU), que teria como dever acalmar os
ânimos de cada lado, colocando fim ao conflito e ao sofrimento da população, também
não é capaz. Sua eficácia depende da vontade dos Estados, como Waltz já defendia.
Se os Estados, os principais atores do sistema internacional e os únicos reconhecidos
por Waltz como unidades do sistema, não quiserem que estes organismos trabalhem,
eles não irão trabalhar. No presente capítulo foi dito que em abril de 2022, um acordo
de cessar-fogo foi intermediado pela ONU e alcançado. Mas em outubro foi extinto e
o conflito continuou, sem levar em conta o entendimento da ONU sobre isto, mas
apenas as vontades das partes envolvidas. O exemplo atesta que na Guerra do Iêmen
as organizações internacionais também não têm grande papel decisivo. Até aí tudo
bem, a teoria de Waltz se encaixa. Contudo, há uma exceção com a qual o autor não
contava na época de sua escrita: a al-Qaeda. O grupo terrorista pode sim ser
considerado uma organização internacional, pois atua em diversos países ao redor do
mundo, mas diferentemente do resto das organizações, sua atuação não depende da
vontade dos governos. Como atestado no caso do Iêmen, o grupo terrorista não
deixou de existir e nem mesmo de atuar depois de Saleh ter se voltado contra ele.
Sua atuação como agente desestabilizador durante os conflitos confirma que sua
atuação deixou de depender do Estado, passou a ter vida própria e capacidade de se
relacionar com as outras unidades do sistema, seja por meio de violência, seja por
meio de cooperação. A teoria de Waltz, portanto, não explica, em um primeiro
momento, a atuação e a importância da rede islâmica no conflito.
75
capacidades entre eles é semelhante, assim como em um conflito entre dois Estados
soberanos. Nenhum destes atores mantém interações hierarquizadas entre si, ao
contrário, mantém interações anárquicas visto a sua distribuição semelhante, inclusive
no que diz respeito às suas capacidades bélicas. Após a perda total do controle
governamental em 2014, tais forças deixaram de cumprir um papel determinado para
cada uma delas, deixaram de estarem dispostas de forma diferente umas das outras.
A estrutura se tornou, de fato, anárquica, e as interações entre suas unidades
passaram a se dar da mesma maneira como se dão entre as unidades em um sistema
internacional: todas as partes lutando pela própria sobrevivência, pelos próprios
interesses e pelos próprios objetivos.
De acordo com a tabela 1.1, no capítulo 1, todas as provas de que houve uma
transformação estrutural se fazem presentes no Iêmen. Primeiramente, houve uma
mudança nas funções e nas distribuições das unidades no sistema doméstico
iemenita (termo 2). As diferentes unidades, desde 2001, foram deixando de lado suas
diferenças formais e se assemelhando cada vez mais (os Houthis, por exemplo, foram
cada vez mais se instituindo como um próprio governo, assemelhando-se ao próprio
governo oficial). Em segundo lugar, houve uma redistribuição das capacidades das
unidades (termo 3), pois desde 2004, as partes foram ganhando cada vez mais poder
entre a população (caso do al-Hirak no Sul e dos Houthis no Norte), mais poder
financeiro e mais poder bélico (caso dos Houthis, devido à ajuda iraniana), alterando
assim suas capacidades e as aproximando em termos de semelhança do governo.
Por fim (termo 1), a diferente distribuição de capacidade entre as unidades, assim
como a crescente semelhança entre elas, alterou a forma como elas estavam
dispostas na estrutura. Tal mudança na disposição mudou a lógica do princípio
ordenador, que passou de hierárquico para anárquico.
Desta forma, desde que seja considerado que a estrutura doméstica iemenita
tenha passado de uma estrutura hierárquica para uma estrutura anárquica, a teoria
de Waltz é válida para explicar o conflito. Quanto à al-Qaeda, um dos outros
problemas comentados anteriormente, sua identidade ou não como organização
internacional se torna irrelevante dentro do contexto iemenita neste caso, visto que
nem os Houthis e nem o movimento al-Hirak são Estados. Porém, mesmo assim,
todos acabam se tornando unidades partes de uma estrutura anárquica que buscam
sua própria sobrevivência e seus próprios interesses. Importante ressaltar que Waltz
77
CONCLUSÃO
O presente trabalho teve como principal meta observar o conflito do Iêmen sob
a luz teórica de Kenneth N. Waltz e, desta forma, dizer se a teoria escrita pelo
aclamado autor neorrealista das Relações Internacionais continuaria possuindo poder
explicativo sobre um conflito moderno, mesmo depois de quarenta anos de sua
escrita.
Para tal tarefa, sua teoria foi estudada de acordo com sua obra, “Teoria de
Relações Internacionais”, de 1979, levando-se em conta seus principais pontos e
conceitos. Em seguida, foi estudada a história política iemenita, desde o século XVI
até os dias de hoje, assim como os motivos e a lógica de seu conflito atual. Por fim, a
teoria de Waltz foi novamente trazida, mas desta vez em conjunto com a situação de
guerra do Iêmen.
A conclusão que se tira deste trabalho é a de que, sim, a teoria de Waltz ainda
pode ser utilizada para explicar um conflito moderno como a Guerra do Iêmen. Mas
com uma ressalva: a teoria tem seu poder explicativo confirmado apenas se for
considerado que a estrutura doméstica do Iêmen passou de hierárquica para
anárquica. Caso contrário, a teoria de Waltz falha em explicar as razões de uma guerra
civil e os papéis de atores não-estatais no conflito, como organizações terroristas.
Vale destacar também que é possível que o presente trabalho não tenha tido
completo êxito em atestar se houve ou não uma mudança estrutural iemenita. Tal
tarefa demandaria um estudo mais minucioso e focado apenas neste complexo
objetivo.
REFERÊNCIAS
ALJAZEERA. Yemen: From civil war to Ali Abdullah Saleh’s death. Al Jazeera, 5
dez. 2017. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2017/12/5/yemen-from-
civil-war-to-ali-abdullah-salehs-death. Acesso em: 13 nov. 2022
ALJAZEERA. Key facts about the war in Yemen. Al Jazeera, 25 mar. 2018.
Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2018/3/25/key-facts-about-the-war-
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