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FABIO SHIVA
a Ganesha
Que bom que você decidiu ler O Sincronicídio!
Logo você vai notar que este livro possui algumas características especiais:
os capítulos não seguem a ordem de numeração tradicional e são ilustrados por
diversas figuras de xadrez que acompanham citações do I Ching, o antigo
oráculo chinês também conhecido como O Livro das Mutações.
Você não precisa saber jogar xadrez ou possuir qualquer conhecimento
prévio sobre o I Ching para apreciar a história contada aqui. Se preferir, pode ler
este livro como qualquer outro que você já tenha lido. Caso deseje se
aprofundar na leitura, no entanto, pode ser útil saber um pouco mais sobre a
intenção do autor ao organizar os capítulos dessa maneira.
O Sincronicídio foi concebido como uma ponte literária entre o jogo do
xadrez e jogo do I Ching. E logo aparece a primeira conexão entre esses dois
universos aparentemente distintos: o tabuleiro de xadrez tem 64 casas, o
mesmo número dos hexagramas do I Ching. Não é por acaso, portanto, que o
livro é dividido em 64 capítulos.
Mas você não precisa dar excessiva importância a essas informações, que na
verdade representam apenas 1% da concepção deste livro. Nunca é demais
frisar que O Sincronicídio é acima de tudo um Romance Policial. Você não
precisa de nenhum conhecimento sobre I Ching ou xadrez para ler o livro como
uma simples e honesta história policial: um jogo intelectual, com mistérios a
serem solucionados pelo leitor jogador, que se propõe a ser mais esperto que o
detetive protagonista e desvendar primeiro as pistas apresentadas no decorrer da
trama.
Sob essa história mais aparente que é contada no livro, contudo, existe uma
outra, mais sutil. E daí a utilização do xadrez e do I Ching para escrever uma
história policial. Pois o grande fascínio do romance policial está, justamente, na
catarse dessa fome tão visceralmente humana, que é a fome de conhecimento.
O homem não é somente um “ser diante da morte”, como afirmou Heidegger,
como também um ser vivo diante do Universo, em busca de soluções para o
Grande Mistério. E a beleza do romance policial é simbolizar algo dessa busca
tão humana pela verdade.
SUMÁRIO
A DAMA DE FORA
Incidente na Suíte Nº 5
Capítulo 51 – Trovão
Capítulo 61 – Verdade Interior
Capítulo 3 – Dificuldade Inicial
Capítulo 50 – Caldeirão
Capítulo 41 – Diminuição
Capítulo 9 – Força do Fraco
Capítulo 45 – Ajuntamento
Incidente no Quarto 909
Capítulo 18 – Decadência
Capítulo 10 – Conduta
Capítulo 52 – Imobilidade
Capítulo 38 – Oposição
Capítulo 20 – Contemplação
Capítulo 7 – Exército
Capítulo 31 – Influência
Incidente no Salão 66 ½
Capítulo 27 – Alimento
Capítulo 56 – Viajante
Capítulo 42 – Aumento
Capítulo 22 – Beleza
Capítulo 53 – Desenvolvimento
Capítulo 44 – Encontro
Capítulo 54 – Noiva
O REI OCULTO
Crítica!
Capítulo 25 – Inocência
Capítulo 5 – Paciência
Capítulo 46 – Ascensão
Capítulo 43 – Resolução
Capítulo 4 – Inexperiência
Capítulo 33 – Retirada
Capítulo 16 – Entusiasmo
Ator!
Capítulo 17 – Seguir
Capítulo 19 – Aproximação
Capítulo 48 – Poço
Capítulo 13 – Fraternidade
Capítulo 23 – Desintegração
Capítulo 12 – Estagnação
Capítulo 8 – União
Autor!
Capítulo 37 – Família
Capítulo 55 – Plenitude
Capítulo 32 – Duração
Capítulo 34 – Grande Força
Capítulo 36 – Obscurecimento
Capítulo 2 – Receptividade
Capítulo 59 – Dispersão
MEIO DO JOGO
A Rebelião dos Cavalos
Capítulo 64 – Antes do Fim
Capítulo 62 – Preponderância do Pequeno
Capítulo 26 – Força do Forte
Capítulo 57 – Vento
Capítulo 58 – Alegria
Capítulo 60 – Limitação
Capítulo 63 – Depois do Fim
O Gambito do Bispo
Capítulo 35 – Progresso
Capítulo 29 – Perigo
Capítulo 15 – Humildade
Capítulo 6 – Confronto
Capítulo 39 – Obstáculo
Capítulo 40 – Liberação
Capítulo 21 – Mordida
Os Peões e as Torres
Capítulo 28 – Preponderância do Grande
Capítulo 30 – Luz
Capítulo 14 – Grandes Posses
Capítulo 1 – Criatividade
Capítulo 47 – Adversidade
Capítulo 49 – Revolução
Capítulo 11 – Paz
XEQUE-MATE
Capítulo 24 – Retorno
Não há meras coincidências.
Tudo é coincidência.
A DAMA DE FORA
O Trovão apavora por cem milhas, e mesmo assim ele não deixa cair
os apetrechos cerimoniais.
Trovão repetido: a imagem do Choque. O homem superior treme de medo, investiga a si
mesmo e coloca sua vida em ordem.
(I Ching, O Livro das Mutações – hexagrama 51)
Ele dormia inteiramente nu, sem saber que era o seu último sono.
Observando só o semblante adormecido, não seria fácil adivinhar a profissão de
policial. Na face do homem feito, recém-chegado à casa dos trinta anos, as
pálpebras cerradas acentuavam a sugestão de inteligência e sensibilidade. O tipo
de rosto que se esperaria encontrar em um pintor ou poeta.
O inspetor Alberto Teixeira dormia o sono dos justos. O peito largo
ressonava, indiferente às dores sofridas no passado, igualmente ignorante a
respeito das agruras do porvir.
Era o corpo desnudo que dava testemunho do homem de ação. Enfiado em
algum dos ternos baratos aos quais estava acostumado, sempre um número
acima, não deixava notar os músculos rijos, bem delineados, habituados à fadiga
e ao esforço, cultivados por exercícios. Era o corpo sem roupas que revelava
também as suas histórias de batalha, crivadas em cada cicatriz.
O homem estava bem no meio de um sonho. Era possível saber só de olhar
para ele. Pois isso também o corpo contava, esse delator incorrigível.
Mesmo sem a medição das ondas cerebrais, seria fácil dizer por dois sinais
fisiológicos evidentes a olho nu que Teixeira sonhava. O primeiro e notável
testemunho era dado pelo corpo cavernoso. O inspetor estava tendo uma
ereção. Aquilo era algo difícil de não ser notado. Realmente admirável, aquele
vigor tamanho. Provavelmente uma herança de família.
Era tal a potência ostentada pelo inspetor, que lhe conferia de imediato o
título de herói. De espada desembainhada e pulsante, sonhava que estava
acordado.
Como garantem os estudiosos do pênis, quando um homem está dormindo
e tem uma ereção isso é indício certo de que está na fase de sonhos do sono.
Não significa necessariamente que se trate de um sonho erótico. É muito
comum os homens terem ereções com os sonhos mais loucos.
Um indício mais sutil de que Teixeira sonhava eram as pálpebras, agitadas
pelo célere bailado das pupilas. Não foi à toa que os cientistas americanos
chamaram o período dos sonhos de sono R.E.M., de Rapid Eye Moviment,
movimento rápido dos olhos.
É de se perguntar se nos sonhos do inspetor haveria ou não uma mulher
nua agarrada às suas costelas, como uma pequena Eva ansiosa por voltar à terra
pátria. Pois no quarto abafado onde Teixeira fatalmente se encontraria ao
despertar, uma fêmea assim o agarrava. Uma mulher miúda, de corpo bem
feito, de menina-moça.
Chamava-se Janine. Também beirava os trinta. Era amante de Teixeira há
pouco mais de duas semanas. Mais parecia uma boneca de pano, arreganhada
ao abraçar um homem tão maior que ela, aparentemente entregue a um sono
sem sonhos. Acaso sonhasse, não seria uma ereção que a delataria. Quanto aos
olhos, estavam quase que totalmente cobertos pelos cabelos compridos e
escuros de Janine, que desciam do rosto da mulher para se esparramar pelo
tórax do policial. Os sonhos de uma mulher são geralmente mais bem
guardados que os dos homens.
Os dois enlaçados na cama poderiam muito bem ilustrar uma das páginas do
Kama Sutra. A diferença de tamanho era gritante. Um homem com lingam de
Cavalo e uma mulher com yoni de Corça. Um claro exemplo do que o Kama
Sutra chama de união altíssima. O problema era que assim, ao vivo e a cores, o
cavalo e a corça parecessem uma combinação um tanto desproporcional
demais. Talvez daí certo clima de incesto na cena, como se os dois não
pudessem ser outra coisa senão pai e filha. Um pai enorme e uma filhinha bem
pequenininha.
Incestuosos ou não, aqueles dois corpos haviam se entendido muito bem
por toda a noite. Disso não havia a menor dúvida. Foi realmente uma pena, do
ponto de vista do observador, que os rituais noturnos tenham transcorrido com
as luzes apagadas. Felizmente os registros não se resumiam ao vídeo e ao áudio.
Porque este se propõe a ser um relato o mais fiel possível do último dia de
Alberto Lino Teixeira, Inspetor de Polícia de Terceira Classe, lotado na
Delegacia de Homicídios do Município de Rio Santo, Brasil.
E também da noite que se seguiu. Dia e noite, branco e preto. Exatamente
como num tabuleiro. Peças dispostas, estratégias traçadas, para o bem e para o
mal havia começado: aquele era o dia marcado.
E o dia começou com um trovão.
Il Dottore. O Doutor. Houve época em que não era possível chamá-lo por
outro nome. Provavelmente ficaria ofendido comigo se soubesse dessa
comparação de seus pensamentos com os de Kant. Detestava ser comparado a
quem quer que fosse, por mais elogiosa que a intenção pudesse ser. Não
cansava de repetir que suas ideias eram originais e inéditas.
Era um tipo um tanto arrogante, o falecido Mario Bodoni. Se bem que
originais as ideias dele eram mesmo. Uma mistura de filosofia quântica,
matemática aplicada, misticismo oriental e autoajuda nazifascista. É claro que
eu nunca disse isso para ele. Mas suas ideias eram malucas e potencialmente
perigosas.
Tanto que acabaram ajudando a forjar o que algum repórter com senso
dramático não hesitaria em chamar de Império do Mal – no caso improvável de
que a verdade um dia viesse a público. Pois inéditas, de certa forma as ideias do
Dr. Bodoni continuavam sendo. Afinal, seu livro nunca foi oficialmente
publicado.
La Coincidenza, obra-prima porque única de Mario Bodoni, foi impressa por
uma gráfica em Milão, Itália, em data não informada em nenhum lugar do livro.
A impressão, ao que tudo indica, foi paga pelo próprio autor. Pouco mais de
cem páginas com letras pequenas, uma edição bem acabada, ainda que modesta.
Até onde se sabe, il Dottore mandou imprimir apenas trezentos exemplares.
Em abril de 1987, respondendo à chamada de um vizinho que reclamava do
mau cheiro, a polícia de Milão invadiu a residência de Bodoni. Lá encontrou o
homem morto há pelo menos duas semanas, com a cabeça estourada por um
tiro de espingarda. Ao menos nisso o corpo igualava-se ao de Hemingway.
Aparentemente, nenhum dos vizinhos se incomodou com o barulho do tiro.
Não ao ponto de ligar para a polícia. Motivo pelo qual os policiais tiveram que
lidar com um cadáver já em avançado estado de decomposição, o que somado à
destruição quase que total das feições pelo disparo em muito teria dificultado
uma identificação positiva. Mas o doutor teve a gentileza de assinar o bilhete de
suicídio, que deixou junto com alguns documentos que comprovavam a sua
identidade.
Em sua derradeira criação literária, Bodoni pedia perdão por seus pecados e
afirmava avançar esperançoso para o esquecimento. Havia também uma curiosa
menção a uma geladeira. Logo ocorreu a alguém investigar a cozinha. Dentro
da geladeira, disputando espaço com garrafas quase vazias e vegetais murchos,
jaziam os restos de um indivíduo que jamais chegou a ser identificado. A
respeito dele, foi possível descobrir apenas que era do sexo masculino, que
morrera jovem, que provavelmente fora do tipo caucasiano e que com toda
probabilidade havia sido considerado delicioso e/ou nutritivo pelo igualmente
falecido Mario Bodoni.
No apartamento foram encontrados exatamente cento e vinte e um
exemplares do livro La Coincidenza. Os livros estavam acondicionados em duas
caixas fechadas, com cinquenta exemplares em cada. Os vinte e um exemplares
restantes estavam empilhados em uma estante na sala. Em algum momento do
curto inquérito que se seguiu à morte de Bodoni, tanto as duas caixas quanto os
exemplares avulsos desapareceram sem deixar vestígios.
Se realmente foi de trezentos exemplares a tiragem, isso significa que o bom
doutor conseguiu distribuir ou ao menos também fazer sumir exatas cento e
setenta e nove cópias de seu livro.
Um desses livros foi parar a milhares de quilômetros e a décadas de
distância dos dias em que Bodoni, abancado em um canto de La Sirena, atraía
jovens universitários para uma rápida partida de xadrez com a promessa de
bebidas grátis após o décimo lance.
Esse exemplar, certamente uma das últimas cópias restantes, encontrava-se
não muito distante de Teixeira, bem seguro no cofre de certa propriedade em
um distinto bairro de Rio Santo. No decorrer das próximas horas, o inspetor
teria a oportunidade de examinar por si mesmo o conteúdo do cofre.
Naquele momento, no entanto, o inspetor Teixeira despertava ao som de
trovões em um dos apartamentos do prédio mais velho na rua Capitão
Gregório, no decadente bairro do Estado Novo, próximo do centro e de toda a
imundície da cidade. Naquele momento, como sujeito involuntário de la
coincidenza, o inspetor ilustrava uma das mais interessantes ideias contidas no
livro.
O teorema das pirâmides, como foi batizado pelo Dr. Bodoni, é descrito no
capítulo cinco de La Coincidenza. Parte do teorema pode ser representada
graficamente por um diagrama espaço-tempo (“s” para space e “t” para time):
Na sequência dos trovões dentro e fora do apartamento de Teixeira estava
em ação, como sempre, la coincidenza. Basta considerar T1 e T2 os dois trovões
da trilha sonora e T3 o trovão verdadeiro, e pronto. Temos entre T1 e T2 uma
coincidência de espaço, enquanto T2 e T3 formam uma coincidência de tempo. Uma
perfeita demonstração prática da ‘sombra’ no teorema das pirâmides.
Uma sombra pairava sobre o inspetor Teixeira, e era a sombra da morte. Só
ele ainda não sabia.
“Ainda não entendi o porquê dessa pressa toda. Você não só pega no
trabalho às nove?”
“Eu tenho um compromisso às oito. Com leite ou sem?”
“Puro, obrigada. Como é aquele ditado mesmo, preto como o diabo... e doce como
um beijo roubado.”
“Para com isso, Janine. Você sabe que eu não tenho tempo agora.”
“Como é o nome dela? Fala.”
“O nome dela? O nome de quem, Janine?”
“Desse seu compromisso.”
“Ficou doida? Acha que eu vou sair daqui pra encontrar uma mulher?”
“Eu não estou achando graça não, viu? Que compromisso é esse?”
“Olha, o pão ficou pronto. Bebe um pouco mais de laranjada.”
“Para de disfarçar, Alberto. Você vai contar ou não? Ou é alguma coisa do
serviço?”
“Não, não é nada disso. Quer dizer, de certa forma, sim. É uma espécie de
programa de treinamento que estou fazendo.”
“Um curso?”
“Mais ou menos, por aí.”
“Sobre o que é?”
“Autopercepção e aprimoramento inteligente.”
“Nossa, parece complicado. Mas você ficou zangado? Desculpe, meu bem,
eu não queria ficar enchendo seu saco. É que eu sou uma chata mesmo.”
“Você não é chata, minha linda. Não tem nada a ver com você. É esse
programa que já está me dando nos nervos.”
“É muito cansativo?”
“É irritante, isso sim. Você acredita que Varlene uma vez teve a coragem de
me perguntar...”
“Quem é Varlene?”
“Como?”
“Não se faça de sonso. Quem é essa Varlene?”
“Mas que coisa, Janine! Não é nada disso que você está pensando. Varlene é
a psicóloga encarregada do programa, a mulher mais intrometida que eu...”
“Ela é bonita? Fala pra mim, diz se ela é bonita.”
“Olha, quem já não está achando graça sou eu.”
“Fala se ela é bonita! Eu sabia que tinha alguma mulher no meio.”
“A Varlene é bonita sim, Janine. Na verdade, é um avião. E ainda fica
usando uma saia curtíssima em toda sessão, e faz questão de cruzar as pernas e
me mostrar a calcinha a cada dez minutos. Tem mais alguma coisa que você
queira saber?”
“...”
“Olha, não fica assim.”
“...”
“Você precisa aprender a controlar esse ciúme.”
“Me deixa, eu quero ler o jornal.”
“Toma seu café. Já está esfriando.”
“Não quero mais.”
“Está bem, se é o que você quer.”
“...”
“Deixa eu ver isso.”
“Ai, seu grosso! Não podia esperar eu terminar de ler? E o que é que você
está olhando aí, com essa cara? Só pode ser a foto de alguma dessas vagabundas
de biquíni.”
“Toma. Obrigado.”
“Mas é a foto de um homem!”
“Sim, eu também notei esse detalhe.”
“Bobo! Eu sei quem ele é, aquele ator, como é mesmo o nome dele?”
“Régis Vale. Ou, pelo menos, é como ele se chama agora.”
“Como assim? Você conhece ele, amor?”
“Com esse nome, não. Com o nome de Reginaldo de Souza Neto, no
entanto, esse mesmo homem foi preso como o assassino confesso de um
cidadão estrangeiro.”
“Não brinca.”
“Pois é. Só que isso aconteceu há o quê, dois anos atrás. É impressionante
como a justiça brasileira parece mesmo acreditar em uma rápida segunda
chance.”
“Nossa, Alberto! Você tem certeza de que é ele mesmo?”
“É claro que sim. Eu estava presente quando ele foi preso.”
“Que loucura! Agora eu lembrei, esse Régis Vale fez um dos operários em
Sorte no Amor. Ele é muito engraçado, você precisava ver!”
“Que ele é um bom ator, eu não tenho a menor dúvida.”
“Aqui está dizendo que ele está fazendo o maior sucesso na peça O
Sincronicídio. E está levando justamente no Noite de Reis. Nossa, eu tinha tanta
vontade de conhecer esse teatro, dizem que é lindo.”
“É. Acho que também vou querer assistir essa peça.”
“Mas como você pode ter tanta certeza de que o Régis Vale e esse tal
assassino são a mesma pessoa? Veja bem, Alberto, é somente uma foto no
jornal. E em preto e branco, ainda por cima. E também já se passou certo
tempo, não é mesmo? Como você pode estar tão seguro?”
“E como você pode ter certeza de que foi ele quem fez o operário na
novela?”
“Não é a mesma coisa, Alberto, e você sabe disso.”
“Assim como você sabe o que viu na novela, eu sei o que vi na vida real, ok?
Se eu não pudesse confiar em minha memória para essas coisas, jamais poderia
ser um policial.”
“Essa é boa! O Siqueira jamais diria isso, nunca vi um sujeito tão
esquecido.”
“Vamos manter o Siqueira fora disso, tudo bem?”
“Não esquente não, meu bem. Ele sabe que é corno, mas esquece.”
“Você perde muito sendo vulgar.”
“Eu. Tudo bem. Desculpe, Alberto, mas só eu sei o que eu passo.”
“Deixa pra lá. E por falar nisso, vamos embora que o seu marido já está
para chegar em casa.”
“Também não precisava falar assim. E além do mais, ele só pode ir pra casa
depois que passar o serviço pra você, ou já esqueceu?”
“...”
“Alberto, me desculpe. Eu tenho andado muito nervosa ultimamente, deve
ser a minha menstruação chegando.”
“Tudo bem. Esqueça isso.”
“Eu fiquei pensando nessa história do Régis Vale. Nossa, quem diria! O
assassino que virou ator.”
“Ele já era ator quando foi preso.”
“Mas como foi isso?”
“Ele era um morto de fome na época. Eu também não entendo como ele
saiu da prisão. O réu confesso do assassinato de um cidadão estrangeiro. Um zé
ninguém, um reles artista de rua, um campado qualquer. Era certo que iria
amargar o papel de presidiário por um longo, longo tempo. O mais provável
era que acabasse sendo morto na cadeia. Como ele foi solto tão cedo, nem faço
ideia.”
“E como é que foi chamado pra fazer uma novela?”
“Isso também é esquisito. E quando há duas esquisitices juntas, pode
apostar que há uma ligação entre elas.”
“Uma ligação? Como assim?”
“Isso eu pretendo descobrir.”
“Mas que interesse alguém teria em tirar um pobre diabo da prisão para
colocá-lo diante das câmeras de televisão? Nossa, até rimou.”
“É possível imaginar alguns motivos. Mas deixe isso pra lá. Quer uma
carona até o elevador?”
“Você sabe muito bem que não. Eu juro que já estou descendo, meu amor.
Mas não me deixe curiosa assim. O que você acha que pode estar por trás dessa
história do Régis Vale?”
“Eu não posso entrar em mais detalhes, minha linda. Só lhe digo que se
trata de algo grande. Esse, com certeza, não é um jogo para peixes pequenos.”
“Mas e quem seriam esses tubarões, então?”
“É claro que são os verdadeiros responsáveis pelo assassinato. Eles me
escaparam uma vez, mas ainda vou pegá-los.”
“Ai, eu me arrepio toda quando você fala assim!”
“Sinto-me honrado, senhora, em poder proteger e servir.”
“Quer saber de uma coisa? Dane-se o seu curso! Vem cá!”
“Janine, eu já falei que não dá. Uma coisa é chegar atrasado, outra coisa é
faltar a sessão. Não gosto nem de pensar nisso, em ficar devendo uma para a
Varlene.”
“Você fala como se ela te odiasse.”
“Quer saber de uma coisa? Isso até que é bem provável. Agora vai.”
“Está bem, está bem. Já estou indo. Você não está chateado comigo, está?”
“Eu não estou chateado, Janine, estou é ficando cada vez mais atrasado,
entendeu, meu bem?”
“Você vai querer me ver de novo, não vai?”
“Vou sim, e agora chega, Janine, eu preciso sair.”
“Você ainda me ama, não me ama?”
“Aproveita agora que não tem ninguém no corredor.”
“Diz que me ama, diz.”
“Depois a gente conversa, Janine.”
Da primeira vez que Teixeira ouviu falar do programa, a ideia pareceu bem
tentadora. Ele estava no auditório do quartel-general da PM. Era um dentre as
três centenas de homens e mulheres que lotavam o auditório, entre policiais
civis e militares. Havia até um pequeno grupo de bombeiros, o cáqui e o
vermelho de seus uniformes destacando-se no mar cinzento escuro dos PMs,
onde também sobressaíam as ilhas de cores frias das roupas do pessoal da Civil.
O inspetor podia imaginar o trabalho de montar aquelas turmas. Segundo o
comunicado oficial, praticamente todos os servidores públicos deveriam
comparecer a uma palestra como aquela no decorrer dos próximos meses.
O programa priorizava os profissionais que lidavam diretamente com a
população, tais como professores, médicos e policiais. A princípio não passava
de mais uma jogada de relações públicas do governo, mais uma de suas
campanhas agressivamente paternalistas. O esforço de imprimir uma imagem
parental era evidente nas siglas dos programas, obras infames de algum
arremedo de gênio: desde o bem sucedido Plano de Alfabetização Infantil – PAI
até a obscura Padronização dos Territórios Naturais – PATERNA. E agora,
pegando carona nessa tendência, chegava com tudo o Programa de AutoPercepção e
Aprimoramento Inteligente - PAPAI. Como qualquer projeto não essencial do
governo, o programa parecia dispor de verbas inesgotáveis. Pois o que
justificava um programa como o PAPAI aos olhos do povo é que a maior parte
do dinheiro vinha da iniciativa privada. As empresas que financiavam o projeto
recebiam um substancial desconto nos impostos. O governo e a sociedade
unidos para a melhoria dos serviços públicos. Ou algo assim.
Não que o inspetor Teixeira estivesse dando muita importância a essas siglas
e questões do poder público. Para ele, era suficiente que estivessem pagando a
sua hora extra.
Depois que as principais autoridades presentes fizeram seu discurso de
louvor ao programa, a palestra finalmente começou. O palestrante era um
homem negro e alto, muito bem vestido, dono de uma voz de veludo. Em
poucos minutos, Teixeira descobriu a contragosto que estava ficando
interessado.
“O PAPAI foi desenvolvido graças a avanços tecnológicos que seriam
considerados impossíveis há meros cinco anos”, dizia o palestrante, já certo de
que havia cativado mais uma plateia. Após uma breve pausa, enumerou:
“Nanotecnologia, mecânica quântica, biotecnologia e o que há de mais
moderno em praticamente todas as áreas do conhecimento humano. É desse
tipo de tecnologia que estamos falando.”
Era a deixa para a exibição de um vídeo institucional do PAPAI. O vídeo
tinha pouco menos de quinze minutos e mostrava profissionais de vários
setores dando depoimentos sobre como o programa foi fundamental para o
êxito em suas carreiras. O PAPAI servia para quase tudo: aumentar a eficiência
no trabalho, conseguir rapidamente promoções, lidar melhor com situações
estressantes. Havia até um enfermeiro bochechudo gabando-se de como o
programa incrementou seu desempenho sexual. Geralmente esse trecho final
do vídeo provocava risadas na audiência, e aquela vez não foi uma exceção.
E a melhor parte ainda estava por vir: todos os que fossem selecionados
para participar ainda seriam remunerados por isso. Quando o palestrante citou
o valor do abono mensal que os participantes receberiam, ouviu-se um nítido
murmurar no auditório. Embora não fosse uma quantia exorbitante, certamente
faria diferença no orçamento de qualquer policial honesto.
“É realmente uma pena”, e a exposição aproximava-se do clímax, o anzol
bem disfarçado pela exuberância da isca, “que nem todos possam fazer parte do
programa. É preciso que haja uma compatibilidade física e psicológica mínima
necessária. Por esse motivo, pedimos a todos que preencham os formulários e
respondam aos testes que estão sendo entregues por nossos assistentes.
Atenção: utilizem somente as canetas que estão sendo distribuídas junto com os
testes, pois elas possuem uma tinta especial para leitura ótica. Respostas com
qualquer outro tipo de caneta serão imediatamente descartadas do programa.”
O inspetor Teixeira não se animou ao saber do teste, mas afinal ele estava ali
a serviço. Eram cinco folhas crivadas de perguntas, frente e verso. A caneta que
lhe foi entregue não ajudava em nada a tarefa. Teixeira a achou pesada demais e
desconfortável no manuseio. Ficava arranhando sua mão enquanto ele escrevia.
Ao preencher aquelas páginas e mais páginas de charadas psicológicas, o
inspetor não tinha como desconfiar que durante todo o tempo da prova o seu
DNA estava sendo coletado, e que sutis medições de seu nível bioenergético
estavam sendo efetuadas. Tudo graças à bendita canetinha de testes. O
palestrante não estava exagerando quando mencionou a alta tecnologia
envolvida no programa.
Daí a recomendação de que somente as respostas marcadas com a caneta
fornecida junto com o questionário seriam válidas. Ao final do teste, todas as
canetas eram recolhidas. Cada caneta estava equipada com arestas ásperas na
empunhadura, que eram mais que suficientes para coletar diminutos fragmentos
de pele morta da mão do candidato durante as duas horas que durava o teste.
Um recurso primitivo e bem funcional. Mais sofisticado era o medidor
embutido em cada caneta, capaz de fazer uma leitura bem acurada da aura do
candidato durante o preenchimento do questionário. Esse era o verdadeiro teste.
Não que os questionários fossem apenas um disfarce, mero pretexto. Os
exames psicológicos ajudavam a traçar um perfil bem detalhado. Isso era de
grande valia na hora de determinar quem seria o profissional que iria
acompanhar cada participante selecionado durante a próxima fase. Varlene foi
escolhida para conduzir às sessões com Teixeira porque correspondia a um tipo
que foi avaliado como sexualmente atraente para ele.
Mas o inspetor não tinha nem como sonhar com isso. Ao final do teste,
quando devolveu a caneta e as folhas preenchidas, ele só pensava que ao menos
seria pago por aquele tempo. Depois que saiu do auditório não pensou mais no
assunto.
Ao cabo de uma semana, foi uma surpresa genuína descobrir que havia sido
aprovado. Do pessoal da Homicídios, só Teixeira foi recrutado. No dia
marcado para se apresentar em um de nossos escritórios, recebeu uma recepção
calorosa, com o primeiro cheque já sendo acenado diante de seu nariz. E assim
foi que ele acabou assinando uma papelada que deveria ter sido mais cauteloso
ao ler.
Outra surpresa teve Teixeira quando lhe pediram que colhesse uma amostra
de sangue, para testes adicionais. Ele achou um pouco estranho, mas
concordou sem oferecer resistência. Como poderia desconfiar? E assim foi
feito. A partir daquele momento, o rabo do inspetor Teixeira estava prometido
para o PAPAI. Ele não poderia ir a lugar algum sem que soubéssemos. Quem
não sabia era ele.
Não era tão ruim. Afinal, Teixeira estava sendo pago para se sentar no sofá
da Dra. Varlene Alberione durante uma hora por semana. E as cruzadas de
perna eram grátis.
A repulsa que crescia no inspetor, no entanto, não era de todo injustificada.
As perguntas formuladas pela psicóloga vinham se tornando mais e mais
inquietantes. Mas por incômodas que fossem, ele era obrigado a responder.
Teixeira estava amarrado pelo contrato. Uma vez iniciado o programa, o
participante que desistisse seria obrigado a pagar uma multa equivalente a cinco
salários do inspetor. Somem-se os impostos, e isso deixaria Teixeira com pouco
mais que o salário de um mês para passar um ano inteiro.
Varlene o tinha preso pelos bagos, e ambos sabiam disso. Durante os dois
meses que durava o tratamento, Teixeira tivera poucas oportunidades de
aprimoramento inteligente. A não ser, é claro, que se tratasse de aprender
técnicas de interrogatório. O inspetor não podia deixar de admirar a eficiência
na condução da psicóloga, que sempre acabava arrancando dele mais do que ele
queria dizer. Varlene havia sido bem treinada.
“Nós ainda estamos só começando, Alberto”, dizia Varlene, que sempre se
referia ao inspetor pelo primeiro nome. “Você verá como tudo parecerá
diferente depois que nós descobrirmos a sua verdade interior.”
Alguma coisa na forma como a psicóloga dizia isso deixava claro para
Teixeira: a descoberta da verdade interior era, necessariamente, um processo
árduo e espinhoso.
Finalmente Siqueira aceitou ir para casa. Depois que ele foi embora, o
inspetor Teixeira foi até a mesa que costumava usar quando estava na delegacia.
Havia três gavetas na mesa. Cada uma delas pertencia a um dos plantonistas
que se revezavam no uso da mesa. A gaveta de Teixeira era a do meio. O
inspetor retirou o seu chaveiro com canivete do bolso, escolheu uma chave
pequena dentre as que estavam dependuradas e com ela abriu a gaveta.
De dentro da gaveta, o inspetor retirou uma 765. A pistola estava dentro de
um coldre com duas tiras elásticas, que Teixeira prendeu no tornozelo
esquerdo, por debaixo da calça. Depois voltou a trancar a gaveta e guardou o
chaveiro no bolso. Durante toda a operação o olhar do inspetor manteve-se
fixo na porta, como se receasse a chegada de alguém.
CAPÍTULO 50 – CALDEIRÃO
Supremo sucesso.
Fogo sobre madeira: a imagem do Caldeirão. Assim o homem superior consolida seu destino
ao tornar a sua posição correta.
(I Ching – hexagrama 50)
É favorável empreender algo. Como isso pode ser feito? Pode-se usar dois
pequenos vasos para o sacrifício.
Ao pé da montanha, o lago: a imagem da Diminuição. Assim o homem superior controla sua
ira e refreia seus instintos.
(I Ching – hexagrama 41)
“Será que dá para desligar essa maldita joça?” Almeida teve que forçar a voz
para se fazer ouvir por cima do barulho.
Teixeira patinou pelo chão viscoso, banhado em vômito. Afinal chegou
perto da banheira o suficiente para empurrar o interruptor na parede. O ronco
do motor da hidromassagem parou de imediato, com um estalo seco. O
borbulhar na banheira também cessou, levando a ilusão de que os corpos se
mexiam. A morte pareceu mais definitiva, agora que o som e o movimento,
atributos dos vivos, não mais acrescentavam seu grotesco toque de zombaria à
cena.
O inspetor obrigou-se a observar mais detalhadamente o casal morto na
banheira. Realmente, não era uma cena nada bonita. O homem, um tipo
franzino, tinha a cabeça por cima do ombro, com a face voltada para o teto.
Das narinas, da boca entreaberta e até mesmo dos olhos saía uma secreção
coagulada, em uma horrenda e borrada maquiagem mortuária. Era mais uma
caricatura que um rosto, aquela face inchada e deformada, marcada de forma
tão brutal pela morte. Ainda assim, alguma coisa no rosto do homem morto
pareceu vagamente familiar a Teixeira.
O rosto da menina estava quase que totalmente coberto pelos cabelos lisos,
negros, emplastrados de vômito. Observando os pequenos botões dos seios em
formação emergindo daquela água podre, Teixeira calculou que ela devia ter
acabado de entrar na adolescência. Praticamente uma criança. O inspetor não
sentiu nenhum interesse em ver o rosto da morta.
Logo o gerente estava de volta. Ele abriu o rosto numa careta, feia tentativa
de sorriso.
“É só um instante até a Gorete passar o café. Enquanto isso, em que posso
servi-los?”
Teixeira franziu as sobrancelhas. “O senhor não se importa em ficar
gritando assim, dizendo que a polícia está no motel? Isso poderia assustar os
seus hóspedes.”
O sorriso forçado pareceu se congelar no rosto de Ranulfo. Depois de um
instante de hesitação, ele afinal pareceu se decidir. “Olha, é melhor eu ser
honesto com o senhor. Depois que eu liguei para os senhores, pedi a Gorete
para avisar aos clientes que estávamos aguardando uma breve visita da polícia.”
“E suponho que agora todos já foram embora, não é mesmo?”
“Bem, como os senhores demoraram um pouco”, lamentou Ranulfo, a
imagem da aflição. “Veja bem, doutor, um motel vive da privacidade que
oferece. Não havia motivo para expor nossos clientes a um constrangimento
desnecessário.”
“Um constrangimento desnecessário”, repetiu Teixeira. A própria
amabilidade do inspetor naquele momento indicava perigo, como nuvens se
agrupando antes da tempestade. O gerente ficou ainda mais nervoso.
“Veja bem, doutor, não é culpa de ninguém se esses dois resolveram vir se
matar bem aqui.”
“Quem encontrou os corpos? Foi o senhor?”
“A bem da verdade, sim. Quem entrou primeiro na suíte foi a camareira, do
Carmo. Mas ela não chegou a entrar no banheiro. Foi só ela abrir a porta do
quarto para ver que algo estava muito errado.” Ranulfo remexeu no cabelo. “A
camareira mandou me chamar. E eu acabei encontrando aquela desgraça.”
“Essa camareira. Onde está ela?”
“Acho que está descansando em um dos quartos. Ela ficou nervosa e
acabou passando mal. Ela está grávida, sabe?” Esta última informação foi
fornecida em um tom conspiratório, como se o gerente estivesse revelando um
grave defeito de sua funcionária.
“O senhor estava dizendo que a camareira mandou chamá-lo.”
“Pois então, doutor. Eu fui por dentro, pelo corredor de serviço. Quando
cheguei na suíte cinco, a do Carmo estava me esperando na porta, muito
nervosa. E aquele fedor horroroso, doutor, nunca senti uma catinga pior na
minha vida.”
“Prossiga.”
“Quando entrei no quarto, vi aquele vandalismo. Pois foi um ato de
vandalismo o que aqueles dois fizeram no quarto, uma depredação. O senhor
imagine o prejuízo.”
“Ao contrário”, disse Teixeira e repeliu a mão que Ranulfo estendia, em um
impensado gesto amigável, para tocar o ombro do policial. “Acho que o senhor
é quem ainda não faz ideia do tamanho do estrago.”
“Como assim?” O gerente parecia ter perdido a respiração. Sua voz
mostrava medo. “O que o senhor está querendo dizer?”
“Falamos sobre isso depois. Prossiga.”
O gerente não se atreveu a insistir. Ele disse, em um tom humilde: “Como
não havia ninguém no quarto, eu fui até o banheiro e abri a porta. Foi então
que eu vi os dois na banheira. O senhor me desculpe. Só de lembrar, sinto
ânsias.”
“A porta do banheiro estava fechada quando o senhor entrou no quarto?”
“Sim, estava. Por que o senhor pergunta?”
“Estava entreaberta quando nós subimos. Suponho que o senhor não
chegou a fechá-la ao sair. Mas isso não tem importância. O que eu vou lhe
perguntar agora, sim, é que é importante.”
Ranulfo balançou a cabeça, a imagem da atenção submissa.
Teixeira continuou: “Quando abriu a porta do banheiro e viu os corpos, o
senhor por acaso vomitou?”
“Quê?”
“O senhor vomitou dentro do quarto? É uma pergunta direta.”
“Não, senhor, é claro que não.”
“O senhor tem certeza? Talvez depois de ver os corpos, ao sair do banheiro,
no choque do momento.”
“Tenho certeza, doutor. Eu não teria porque mentir. Para falar a verdade,
foi eu ver aqueles dois na banheira para sair correndo do quarto. Nem teria
dado tempo para vomitar.”
“Tudo bem. Prossiga.”
“Depois eu saí, tranquei a porta e fui ligar para os senhores. Eu agi certo,
não agi?” A ansiedade do homem chegava a ser patética.
O inspetor Almeida havia até aquele momento limitado sua participação a
ficar encarando Ranulfo, a fim de deixá-lo ainda mais desconfortável. Almeida
era bom nisso. Quando fechava a cara, o homem dava a impressão de ser capaz
das maiores atrocidades. Quando abriu a boca, porém, estragou tudo: “O que
não foi certo foi deixar uma menor de idade entrar no motel.”
O gerente pareceu genuinamente surpreso. “Uma menor? Impossível. O Le
Barde não permite a entrada de menores.”
“Preste atenção, meu camarada. A menina nem tem peitos ainda.”
Teixeira suspirou. Ele estava guardando aquela informação para usar em um
momento mais conveniente. Antes queria dar mais corda para o gerente, talvez
ele mesmo acabasse se enforcando. Mas o que estava feito, estava feito.
“Infelizmente para o senhor, é verdade. Não se trata apenas de uma menor,
mas de uma criança. Uma menina morta.”
“Mas isso. O senhor está sugerindo que.” O rosto de Ranulfo ficou
levemente arroxeado. Ele deu um puxão no cabelo. “Um absurdo, doutor. O
Le Barde não permite a entrada de menores. Nós não somos coniventes com
essa onda de pedofilia. Senhores, eu tenho duas filhas adolescentes. Duas
filhas.”
Tanto Teixeira quanto Almeida estavam para dizer algo, mas esse foi o
momento escolhido por Gorete para trazer o café. Por um momento todos se
calaram, observando a mulher que se aproximava com a bandeja. Gorete era
toda amorenada, impressão causada principalmente pelos cabelos cortados
curtos, na altura do queixo, que ela pintava numa cor de cobre queimado. Um
tom muito próximo de sua pele, algo entre o café com leite e o leite com mel.
Não era exatamente espetacular, mas sempre uma mulher, uma fêmea em
condição e posição de ser observada. A cara não era feia. Talvez fosse um
pouco cheia na cintura. Seus maiores atrativos eram sem dúvida as coxas e,
possivelmente, o traseiro. Era questão de esperar até que levasse as xícaras
vazias embora.
No momento, Gorete contornava a viatura da polícia, equilibrando a
bandeja na mão e os sapatos de salto baixo no pátio molhado. Ela estacou,
indecisa, percebendo que interrompia algo. A um gesto brusco do gerente,
começou a servir o café pelos policiais. Ranulfo parecia ter recuperado um
pouco o autocontrole. “Gorete, estes senhores da polícia acreditam que nós
temos uma menor em um dos quartos. O que você tem a dizer sobre isso?”
Gorete estava servindo Teixeira. O seu olhar cruzou com o do inspetor por
um momento, antes que ela baixasse os olhos. “O Le Barde não permite a
entrada de menores.”
“Viram? Aí está.” A voz de Ranulfo era de triunfo, como se aquela frase
fosse a prova cabal de sua inocência.
Teixeira serviu-se de açúcar. “Obrigado, Gorete. Senhor Ranulfo, se o
senhor não se importa, nós faremos as perguntas daqui por diante.”
O gerente desmanchou-se. “Ora, mas é claro que... eu só queria... não pense
o senhor que...” A cada pausa, Ranulfo dava distraidamente um novo puxão no
cabelo. Não era de se admirar que o homem estivesse ficando careca.
Almeida preferiu o seu café puro, um café caubói, sem açúcar nem
adoçante. E a ocasião surgiu, antes do esperado, quando a recepcionista virou-
se para servir o café do gerente. Realmente um traseiro admirável, aquele de
Gorete. Os dois policiais talvez nem tenham percebido o quanto as mãos de
Ranulfo tremiam enquanto ele colocava cinco gotas de adoçante em seu café.
Os homens beberam o café em silêncio. Almeida foi o primeiro a terminar.
Ato contínuo, para desassossego de Teixeira, foi logo puxando um cigarro. O
gerente também devolveu a sua xícara. Agora que tinha as mãos livres, como
não possuía o nocivo hábito do fumo, continuou a puxar o cabelo. Por fim,
Teixeira terminou o seu café.
“Estava uma delícia. Obrigado.” A recepcionista limitou-se a curvar a
cabeça. Teixeira prosseguiu no tom amigável: “Você sabe dizer se a do Carmo
está passando melhor?”
Gorete pareceu surpreendida com a pergunta. “Espero que sim. Ela avisou
que ficaria repousando um pouco em um dos quartos.” A recepcionista lançou
um olhar de soslaio para o gerente.
“Eu soube que ela está grávida.”
“É verdade. De seis meses.”
“Eu vou querer vê-la depois. Escute, Gorete: Eu gostaria de saber a que
horas a suíte cinco foi ocupada.”
“Às oito e meia da noite de ontem.”
Foi a vez de Teixeira ficar surpreso com a pronta resposta. “Era você quem
estava na recepção?”
“Não, senhor. É que eu olhei no mapa de hóspedes de ontem quando
soube...” Gorete interrompeu a frase de súbito.
“Entendo. E quem estava na recepção nesse horário?”
“A Celeste, senhor.” Depois de curta hesitação.
“Você sabe onde ela está agora?”
A recepcionista limitou-se a sacudir a cabeça. O gerente aproximou-se dos
dois. Ele parecia tomado por um novo ânimo. Havia aparecido alguém em
quem colocar a culpa. “Eu tenho o telefone e o endereço da Celeste em meu
escritório. Ela vai ter que explicar essa história bem direitinho. Se os senhores
me dão licença, eu vou dizer para ela vir aqui agora mesmo.”
“Faça isso.” O inspetor Teixeira ergueu um dedo, pedindo que o gerente
esperasse. Teixeira tomou a bandeja do café das mãos de Gorete e passou-a
para o gerente. “Se o senhor não se importa. Eu gostaria de fazer mais algumas
perguntas à recepcionista.”
“Ora, como não.” Sem muita alternativa, Ranulfo aceitou a bandeja. A
travessia do pátio molhado até o escritório tornava-se agora para ele uma
aventura repleta de novos e imprevisíveis perigos. Depois de alguns passos
incertos, ele estacou diante da viatura. Pensava em como atravessar o espaço
entre o carro da polícia sem deixar cair a bandeja.
Como se notasse a hesitação do gerente, Teixeira disse para o outro policial:
“Você pode levar o carro lá para fora? Nosso pessoal já deve estar quase
chegando.”
“Com esse tempo?” Almeida ainda fumava o seu cigarro. “Vai sonhando.
Deve estar assim de acidente.”
Teixeira chegou mais perto do companheiro. Ele desejava falar em voz
baixa. “Almeida, é melhor tirar a viatura logo. Vai que o pessoal chega e
encontra o nosso carro atravancando a passagem. Quer arriscar? Você sabe
como são esses caras da perícia. Qualquer coisa, já vão fazer queixa ao
delegado.”
“Está bem.” Foi como se Almeida tivesse ouvido alguma palavra mágica.
Ele jogou o toco do cigarro no pátio e foi para o carro. Se Ranulfo pensou em
pedir uma rápida carona durante o trajeto de volta, não disse nada.
O pátio do Le Barde dificilmente permitiria a passagem de dois carros ao
mesmo tempo, ainda mais se tratando de um carro grande como o rabecão da
defesa civil. Para liberar o acesso, Almeida teria que levar a viatura para fora do
motel, uma vez que a alternativa seria estacionar na garagem de uma das suítes,
situação impensável, quando muito em breve o local estaria pululando de
outros policiais e, possivelmente, de repórteres. A lembrança da imprensa fez a
boca de Almeida coçar. Ele conhecia alguns jornalistas que sabiam se mostrar
gratos quando recebiam uma boa dica. Acabou entrando com a viatura na
garagem da suíte quatro, apenas para manobrar o carro, pois preferia sair de
frente.
Enquanto Almeida manobrava, Ranulfo avançou heroicamente, pouco a
pouco, passo a passo. Ele mostrava bem o quanto era um homem de escritório,
com seu sapato de solas lisas que pareciam deslizar pelo pátio molhado de
chuva.
Enfim sós, o policial e a recepcionista trocaram um rápido olhar e um breve
sorriso. “Acabo de notar que ainda não me apresentei. Meu nome é Alberto.”
O inspetor resistia a tudo, menos a um rabo de saia.
“A Celeste já está vindo para cá”, foi dizendo Ranulfo quando chegou
próximo o suficiente do inspetor Teixeira. Ele sequer olhou quando Gorete
passou por ele, de cabeça baixa, apressando um pouco o passo depois de cruzar
com o chefe, como geralmente fazem os conscienciosos funcionários
subalternos. Ao contrário de Almeida, que virou ostensivamente o pescoço
para apreciar o rebolado de Gorete. O corpo seguiu o pescoço, voltando-se
para o melhor espetáculo disponível no momento. Ele ficou parado, fumando,
de costas para Teixeira até que a recepcionista sumiu pela mesma porta que
Ranulfo havia utilizado para ir ao seu escritório. O gerente agora estava
dizendo, “Ela jurou de pé junto que não deixou nenhuma menor entrar,
doutor.”
Teixeira suspirou. Era nisso que dava a sabedoria de Almeida. “O senhor
tem certeza de que ela está mesmo vindo para cá?”
“Pode confiar, doutor. Eu conheço bem as minhas meninas.” Não havia
vestígio de conotação sexual em sua fala. A não ser, talvez, pelo ponto de vista
de que tudo sempre pode ser resumido ao sexo.
“E onde mora essa Celeste?”
“Perto de Nova Colômbia, eu acho.”
“Como assim, o senhor não sabe?”
“Bem, ela realmente mora em NC.” Ranulfo retornou ao bolso o lenço que
estivera usando para enxugar o rosto e a careca. Ele parecia ter se lavado na pia
do banheiro. Se tivesse esperado um pouco, poderia lavar o rosto na água da
chuva que em breve voltaria a cair. “Mas a Celeste é uma moça direita, doutor.
Trabalhadora. Deve ter acontecido algum engano, não é possível.”
O gerente havia feito uma conexão natural, ainda que pouco lógica, entre
Nova Colômbia e a criminalidade. Favela que tomou conta do asfalto, NC,
como era chamada, havia crescido a ponto de se tornar maior que muitos
bairros. Dos mais de trinta e cinco mil moradores de Nova Colômbia, na
verdade somente uma ínfima porção estava diretamente envolvida em
atividades criminosas. A imensa maioria dos moradores era até bastante útil à
sociedade de Rio Santo, preenchendo vagas onde quer que se trabalhasse muito
e se ganhasse pouco. Entranhado nos bolsões de miséria, porém, exercendo um
rigoroso comando sobre Nova Colômbia, florescia o poder paralelo do
narcotráfico, deflagrando as sementes de inúmeros outros crimes. Um poder
capaz até mesmo de suplantar a polícia. Nenhum policial se sentia confortável
ao entrar em NC. Por alguns lugares do bairro a polícia raramente passava, para
não dizer jamais.
Era por esse motivo que Ranulfo procurava desculpar a sua funcionária por
morar onde morava. Não que isso fosse necessário. Teixeira não era homem de
alimentar preconceitos. Ademais, o inspetor sabia o que era ter uma origem
humilde.
Por outro lado, era curiosa a mudança de humor do gerente.
Aparentemente, a conversa ao telefone com Celeste havia resgatado a sua
confiança. Ou talvez a longa caminhada através do pátio molhado tenha
restituído o seu equilíbrio, ambos abalados, a confiança e o equilíbrio, pela
trágica descoberta dos corpos.
Não era a morte dos dois, em si, o que preocupava Ranulfo. O gerente não
poderia ser responsabilizado pelo que as pessoas faziam dentro dos quartos.
Não havia motel onde não ocorressem homicídios e suicídios. Sexo e violência,
afinal, são dois conceitos que se tornam cada vez mais próximos na mente das
pessoas. Para isso é que temos a indústria do entretenimento.
O problema maior, para o gerente do motel, era a morte da menor. Ranulfo
sabia que seria crucificado se realmente houvesse uma criança morta em seu
motel. Ainda que ele conseguisse escapar do longo braço da lei, não haveria
como fugir das garras da imprensa. A pedofilia ainda conseguia assustar a classe
média, principal consumidora de jornais.
“Eu tenho certeza de que tudo será esclarecido quando a Celeste chegar,
doutor. O senhor vai ver. O Le Barde não permite a entrada de menores.” Dos
mecanismos de defesa da mente, a negação é um dos mais frequentemente
utilizados.
Teixeira sentiu uma súbita simpatia pelo gerente. “Imagino que essa
recepcionista deve levar quase uma hora para chegar até aqui, não é mesmo?”
“É por volta disso sim, senhor. Uns quarenta minutos.”
“Senhor Ranulfo, agradeço a sua cooperação. O senhor fique à vontade para
retornar aos seus afazeres. Peço-lhe apenas que me comunique imediatamente
qualquer anormalidade.”
“Pode deixar, doutor.” O gerente partiu de imediato, como se temesse que
Teixeira mudasse de ideia. Teve o cuidado de não olhar para o inspetor
Almeida quando passou por ele. Almeida veio para junto de Teixeira, a cara de
poucos amigos. Ele deu uma tragada no cigarro.
“Vai deixar o cara ficar circulando livremente?” A fumaça saía pela boca de
Almeida enquanto ele falava. Teixeira recuou.
“Chegue com esse seu cigarro para lá, Almeida. Não há problema algum em
deixar o gerente livre. O que ele pode fazer? Ele sabe que se fugir, será pior.”
“Não sei, não. Nós temos um flagrante aqui. Ou você já esqueceu que tem
uma menina morta na banheira lá em cima? Uma menor de idade, Teixeira.” O
inspetor Almeida gostava de prender pessoas. Isso era uma das coisas que mais
o atraíram para o serviço de polícia. “Se o Le Barde realmente não permitisse a
entrada de menores, talvez agora esses dois estivessem vivos.”
“Duvido muito. Se não fosse aqui, teria sido em outro lugar. E além do
mais, talvez a recepcionista não tenha notado que a menina era uma menor.”
“É claro que isso é o que ela vai dizer.”
“Prefiro esperar para conversar com ela para saber. Ela está vindo para cá,
você sabe.”
“Sim, eu ouvi.”
“Pois então. Quando ela chegar, conversamos com ela. Enquanto isso eu
vou ter uma palavrinha com a camareira, essa que entrou primeiro na suíte.”
“Quer que eu vá com você?”
“Não precisa. Fique aqui, por favor. Melhor você ficar, para receber o
pessoal da perícia caso eles cheguem por agora.”
Voltou a chover enquanto os dois homens conversavam, inicialmente um
chuvisco leve que agora começava a apertar. Almeida seguiu o colega de volta
para a garagem da suíte cinco para se proteger da chuva. Quando viu que
Teixeira avançava para o fundo da garagem, em direção à escada da suíte, disse:
“Mas onde você está indo, homem?”
“Vou dar a volta por dentro, que é mais rápido. Espere por mim aqui.”
O rei se aproxima de seu templo. Fazer grandes oferendas traz boa fortuna.
Acima da Terra, o Lago: a imagem do Ajuntamento. Assim o homem superior renova suas
armas de forma a encontrar-se com o inesperado.
(I Ching – hexagrama 45)
Teixeira foi falar com o pessoal da ambulância primeiro. “Há uma mulher
grávida com suspeita de sangramento. Ela está na suíte quatro. Vocês podem
utilizar o acesso da garagem. A porta lá em cima deve estar trancada, por isso
levem esta chave que eu peguei na recepção. Depois da escada, é a porta da
direita. A mulher está deitada na cama.” Após um segundo pensamento,
Teixeira acrescentou: “Ela é uma funcionária do motel. Obrigado.”
Enquanto despachava os dois homens da ambulância, o inspetor sentiu os
olhos de alguém cravados nele. Voltando-se, ele deu de cara com um homem
baixo, aparentando uns cinquenta anos, os cabelos negros rajados de grisalho.
A cabeça era longilínea, talvez um pouco comprida demais para alguém de sua
estatura, ou talvez as pernas é que fossem curtas. O fato é que alguma coisa
parecia fora de proporção na silhueta do homem que o observava debaixo de
um guarda-chuva negro.
“Professor Botelho”, disse Teixeira, à guisa de cumprimento.
“Olá. Alberto, não é isso?”
Além da função que exercia no instituto, Joaquim Botelho lecionava
medicina legal na mesma faculdade onde Teixeira estudou durante dois anos e
meio, antes de abandonar o curso de direito.
Os outros homens se agruparam ao redor do médico, os três da defesa civil
em suas capas de chuva e Pinto, o assistente, segurando um guarda-chuva
idêntico ao que abrigava Botelho. Houve um breve cumprimento, limitado a
olhares e acenos de cabeça, entre os que chegavam e os dois da polícia. Todos
ali já se conheciam de outros trabalhos.
Teixeira avançou alguns passos para fora da garagem da suíte quatro. Ele
entrou na chuva e apontou para a garagem seguinte, onde estava estacionado o
Corvenna preto. “Por aqui, senhores.”
Os bombeiros fizeram menção de segui-lo, mas foram detidos por um gesto
de Botelho. “O que esta ambulância está fazendo aqui? Eu vim periciar dois
óbitos. Ninguém falou nada a respeito de sobreviventes.” A julgar por suas
palavras, essa possibilidade o incomodava.
O inspetor retornou para o abrigo da garagem. “Uma funcionária do hotel
está grávida e teve um mal estar depois que os corpos foram descobertos.” O
tom de Teixeira era cordial na superfície, mas deixava escapar uma nota hostil.
“A funcionária encontra-se em repouso na suíte quatro. Os dois óbitos, sobre
os quais o senhor parece ter sido bem informado, ocorreram na suíte cinco,
essa aqui do lado. Agora, se os senhores tiverem a bondade de me
acompanhar.”
Almeida manteve-se à margem desse sutil conflito. Ele não se deu,
tampouco, ao trabalho de subir novamente até a suíte. Acendeu mais um
cigarro e ficou fumando de seu canto na garagem, observando os seis outros
homens do grupo passarem espremidos pelo Corvenna até chegar às escadas, a
pequena garagem superlotada com aquele amontoado de gente.
Pela terceira vez diante da porta da suíte cinco, Teixeira experimentou um
pânico fugaz, ao imaginar que pudesse ter entregue a chave errada para o
pessoal da ambulância. Em uma fração de segundo o inspetor visualizou a cena
completa. Ele balbuciando desculpas, descendo as escadas atrás dos
enfermeiros, que naquele momento já deveriam estar à sua procura, novas
desculpas, o sorriso amarelo, novamente subindo as escadas, de volta ao olhar
escrutinador do professor Joaquim Botelho.
“É impressionante o poder que conferimos a alguém quando lhe
chamamos professor”, pensou Teixeira, lutando contra aquele instante de
fraqueza. Por um momento ele havia recuado no tempo, para um passado mais
distante que a faculdade de direito. Teixeira havia escorregado, por um desses
imprevisíveis tobogãs da memória, para as salas de aula de sua infância, de volta
às calças curtas do colégio, às punições e repreensões inúteis, uma vez que ele,
aquele menino Alberto, seria sempre um rebelde incorrigível.
O inspetor sacudiu de uma vez as más recordações e enfiou a mão no bolso.
Claro que era a chave certa, com o cinco branco no losango azul. Teixeira
enfiou a chave maior na fechadura, abriu a porta e recuou um passo, como se
fizesse uma cortesia ao permitir que os outros entrassem primeiro. Ele disse
apenas: “Os dois estão na banheira.”
Foi Botelho quem primeiro sentiu a atmosfera que emanava da suíte cinco.
As narinas do médico se arregalaram, trêmulas, e por debaixo das sobrancelhas
franzidas seus olhos dardejaram indignação e surpresa na direção de Teixeira. O
inspetor, naquele momento, esforçava-se em aparentar indiferença, como se o
mau cheiro que saía da suíte não o incomodasse nem um pouco.
O sargento da defesa civil rompeu o impasse. “Roberto, eu avisei que não
era para você comer aquela salada de ovo.”
O sargento deu um tapa de leve no ombro de um dos dois soldados-
bombeiros. Os três riram. À sua maneira rude, preparavam-se para a dura tarefa
que tinham pela frente.
O perito finalmente avançou pela porta da suíte adentro, seguido pelo
fotógrafo e pelos homens da defesa civil. Teixeira fechava a comitiva. Pinto
sacou a câmera digital e começou a fotografar o quarto. Botelho seguiu
resolutamente até a porta do banheiro. Teixeira estava louco se pensava que
poderia bater um médico legista naquele jogo.
“Inter faeces et urinam nascimur”, disse Botelho. O professor era tirado a
filósofo. “E esses dois resolveram sair da vida do mesmo jeito que entraram.”
Pinto também entrou no banheiro, com a câmera em punho. Os bombeiros
foram atrás, soltando imprecações. Depois que fotos suficientes foram tiradas
dos dois na banheira, a um sinal de Botelho o sargento se aproximou. Era um
homem forte, corpulento. Chamava-se Hidelbrando. Dos soldados, o moreno
alto e dentuço chamava-se Dalton e o outro, cujos hábitos alimentares já foram
objeto de comentários, trazia o nome Roberto na jaqueta. Os dois ficaram
aguardando na soleira da porta, pois não havia como entrar mais gente no
banheiro.
O sargento Hidelbrando enfiou o punho enluvado em um saco plástico, que
prendeu logo abaixo do cotovelo. Passando o braço por cima do homem
morto, o sargento mergulhou a mão, assim embalada de improviso, na água
turva da banheira. Ele olhou para o teto enquanto tateava à procura da tampa
do ralo. Acaso o sargento voltasse o rosto para baixo, ficaria próximo o
suficiente para beijar o rosto do cadáver.
Finalmente a mão do sargento emergiu, pingando fezes do saco plástico que
a envolvia, segurando a tampa de metal que era atarraxada ao ralo da banheira.
Hidelbrando sacudiu a mão, enojado. Seria um verdadeiro milagre se aquela
merda toda escoasse sem entupir o ralo.
Enquanto isso, Teixeira examinava o frigobar. A chave menor abria um
armário com prateleiras de vidro na parte superior e o refrigerador para as
bebidas embaixo. Tanto as prateleiras quanto o frigobar estavam vazios, o que
não chegava a ser uma surpresa diante da profusão de comidas e bebidas
espalhadas pelo quarto do motel. O que Teixeira não esperava era encontrar o
que encontrou dentro do refrigerador. Na estante de cima, um retângulo
branco de papel sobre o branco do gelo.
Era um pouco menor que um cartão comum. Impresso em um dos lados,
em tinta vermelha, uma espécie de logotipo, com traços retos parecendo sugerir
as chaminés e os telhados de uma fábrica.
Não havia nome no cartão.
Nem bem entrou no quarto, o velho foi logo pedindo uma garrafa de
uísque. Ele gostava de beber. Depois da segunda dose, mais confortável, é que
foi cuidar de abrir a maleta preta. De dentro da mala retirou um envelope
cinzento. Enfiou a mão no envelope e apanhou o celular. O número para o
qual discou estava anotado em um cartão que também estava guardado no
mesmo envelope.
Uma voz atendeu após o terceiro toque:
“Parabéns, Doutor!” Era uma voz de homem, um agradável timbre de
barítono. “Pelo que vejo, a viagem foi um sucesso.”
“Fortunato?”
“Ele mesmo, Doutor! E então, tudo certo na viagem?”
“Sim. Estou na cidade.” O velho respondeu em português. Sua voz era
carregada de um forte sotaque estrangeiro, que até poderia passar por alemão.
“Tudo correu como planejado?”
“No final, sim.”
“O que houve?”
“Acho que fui descoberto.”
“Mas o que aconteceu?”
“Nada demais. Só fui convocado para uma reunião extraordinária do
Conselho. Exatamente na semana de minha viagem.”
“O Conselho? O que eles queriam?”
“Você acha que eu fiquei esperando para saber?” O velho deu uma
risadinha curta, quase um gemido. “Saí de lá assim que pude.”
“Genial, Doutor. Agora deve haver um exército à sua procura.”
“Deixe eles procurarem. Não vão encontrar nada.” Ele riu novamente,
denunciando o tanto de álcool no sangue. Ele falava muito bem o português
para um estrangeiro meio bêbado.
“O quê? Como assim?”
“Podemos dizer que o roque foi um sucesso.”
“O senhor experimentou em si mesmo.” Havia uma nota de incredulidade
na voz de barítono.
“Sim. E funcionou perfeitamente.”
“Tem certeza disso?”
“Eu estou aqui, não estou?”
“Então funciona.”
“Você tinha dúvidas?”
“Não, é claro que não. Mas sempre é bom ter certeza. E depois? Pegou o
dinheiro?”
“Sim.”
“E quanto ao roque? Está com a fórmula?”
“Sim. Carreguei a fórmula comigo quando saí de lá. Mas chega de tantas
perguntas. Agora faça sua parte.”
“Eu preciso de mais tempo. Talvez uns dois ou três dias.”
“O que houve?”
“Nada. Está tudo bem. É que algumas coisas levaram um tempo maior do
que esperávamos para serem resolvidas. Mais alguns dias e eu resolvo.”
“Não estou gostando nada disso.” O velho parecia ter mesmo ficado
zangado.
“Ei, calma. O que são dois dias? Três dias no máximo.”
“Você não disse que eu teria que esperar.”
“Não há nada demais nisso, eu já disse. O procedimento é esse mesmo.
Estamos do mesmo lado, sabia? Estou me arriscando muito por sua causa, caso
tenha esquecido.”
“Não. Você está se arriscando porque quer a fórmula do roque. E também
pelo dinheiro.” Na voz do velho, a palavra soou como dinêro.
“Pela honra do Rei e em defesa da Rainha, não é mesmo?”
“Eu não estou com humor para brincadeiras, Rogério.”
“Ficou louco?”
“Ora, mas o que...”
“Meu nome é Fortunato!”
“Sim.”
“Entendeu?”
“Sim. Desculpe.”
“O senhor não era descuidado assim quando nos conhecemos.”
“Também, você me deixou nervoso com essa história de esperar.”
“É por pouco tempo, eu garanto.”
“Eu não imaginava que o roque teria que aguentar tanto.”
“Então a fórmula não funciona.”
“Funciona, sim. Claro que funciona. Só que o risco aumenta com o tempo.
O efeito do roque não dura muito. Tenho que aplicar novamente a fórmula a
cada duas ou três horas. Não sei se poderei continuar assim indefinidamente. A
fórmula ainda está na fase experimental, caso você tenha esquecido. Se o roque
funcionasse por tempo indeterminado, afinal, eu não precisaria de você.”
“Eu vou cumprir a minha parte. Procure relaxar um pouco, está bem?”
“Você tem até amanhã, no máximo.”
“Vou tentar, mas não posso garantir nada.”
“É melhor mesmo que você tente, senão...”
“Senão o quê? Fala. Pode falar.”
“Não esqueça que eu ainda sou o seu preceptor.”
“O senhor é que parece estar esquecendo que abriu mão dos poderes que
possuía quando utilizou o seu precioso roque. Me ameaçar não vai adiantar
nada.”
“Não foi isso o que combinamos.”
“A vida é mudança e movimento.”
“Você é um canalha, sabia?”
“Tive um bom professor.”
“Como eu vou saber que você vai cumprir a sua parte?”
“Fique tranquilo, Doutor. O senhor sabe que eu só tenho a ganhar com o
seu desaparecimento.”
Depois de conversar por telefone com o filho que nunca vira, o velho
largou-se na poltrona do quarto de hotel. Logo mergulhava em um estado de
nostalgia alcoólica que avançou madrugada adentro.
A conversa com Henrique dificilmente teria sido considerada agradável. E
não era para menos. O rapaz tinha motivos para estar magoado.
Irene, a mãe de Henrique, trabalhava em um show de mulatas quando o
velho a conheceu. Nessa época ele não era um velho, mas um charmoso
estrangeiro de meia idade. Ele a amou o suficiente para fazer um filho nela e
prometer que iria registrá-lo com seu nome falso. Esse foi um dos maiores
erros do velho, confiar tanto na identidade de Harold Habbot.
Embora o velho e Irene nunca tivessem chegado a se casar, esse
relacionamento foi a coisa mais próxima que ele teve de uma família. Não
chegou a ser grande coisa. Quanto a Henrique, quando nasceu o pai já havia
sumido. Partiu em uma urgente e misteriosa viagem de negócios, e nunca mais
foi visto. Um cheque continuou sendo depositado todos os meses em uma
conta em nome de Henrique, religiosamente. Por esse motivo, Irene chegou a
registrar o filho com o sobrenome alemão, pela esperança de que Habbot
voltasse um dia. Mas fora os cheques, nunca mais houve nenhum outro tipo de
contato, nem que fosse por telefone ou carta.
Então, o reencontro de pai e filho graças à Internet, na descoberta ‘casual’
em um site de relacionamentos. Os contatos iniciais fluíram bem. Da troca de
recados passaram para os e-mails e finalmente tiveram a sua primeira conversa
por telefone. É de se lamentar que não existam registros dessa conversa,
primoroso exemplo que não deve ter sido das revelações, reviravoltas e
sentimentos catárticos, tais como enumerados por Aristóteles em sua Poética.
Primeiro, o pai ficou sabendo de mais detalhes sobre a morte da mãe,
ocorrida dois anos e meio antes. Depois, o filho ficou sabendo que o pai
também estava às portas da morte, vítima de leucemia, e que somente um
transplante de medula poderia salvar sua vida. O garoto não era burro, e logo
percebeu o real motivo para o retorno do pai pródigo, e que nada houvera de
acidental naquele encontro pela Internet. Sua reação não foi nem um pouco
amigável.
O velho já contava com isso, e lançou mão da única linguagem que
conhecia. Ofereceu ao filho trezentos mil dólares para que fosse seu doador de
medula. Ele teria oferecido mais, e só não o fez porque teve medo de que
Henrique recusasse por pensar que a proposta não era séria.
É claro que dinheiro nunca foi problema para alguém na linha de negócios
em que o velho atuava. Ainda mais quando se tratava de salvar a própria pele. E
em termos de dinheiro, ao menos, ele havia progredido bastante desde os
tempos de Bodoni.
A lembrança de il Dottore sempre provocava reações ambivalentes no velho.
Não que ele fosse uma pessoa sentimental, longe disso. Mas ninguém se livra
assim tão facilmente de recordações de uma vida inteira, especialmente em uma
noite de fossa quando a única companhia é a de uma garrafa.
Para se animar um pouco, o velho ficou pensando em seu roque bem
sucedido. O velho era totalmente maníaco pelo “jogo dos reis”, como ele
gostava de dizer. Não é de se admirar que ele tivesse batizado a sua pequena
invenção com um nome retirado do xadrez.
Até que o nome escolhido foi bem apropriado. Pois o roque é uma jogada
especial que permite ao enxadrista encastelar seu rei atrás da torre. E era bem
isso que o velho estava fazendo: brincando de se esconder da Fábrica.
Era só uma questão de tempo até que alguém chegasse a algo como o roque.
E se havia alguém capaz disso, esse alguém era o velho. Ele era um homem
inteligente. Por esse motivo é ainda mais admirável que tenha sido tão ingênuo
a ponto de continuar usando o nome de Harold Habbot daquela forma.
Na noite que passou em claro no hotel Émile, talvez o velho tenha pensado
nessa e em outras besteiras que cometeu. E a menor delas não foi, com toda a
certeza, a ligação que fez do celular, para o homem que ele chamou Rogério e
que chamava a si próprio Fortunato. Aquela ligação havia selado seu destino.
Quando finalmente foi dormir já era quase dia claro. Restavam somente uns
dois ou três dedos na garrafa de uísque. Ele não deveria beber tanto, ainda mais
naquela idade e com seus problemas de saúde.
Havia, claro, hábitos bem mais perigosos.
É claro que o delegado não atendeu o homem na hora. Aquele era o terceiro
que confessava a autoria do assassinato. E o caso mal completava uma semana.
E foi assim que o inspetor Teixeira, que estava de plantão no dia escolhido para
Régis Vale iniciar sua caminhada para o estrelato, acabou sendo designado para
colher o depoimento do homem dos jeans surrados.
O inspetor entrou mancando na sala de interrogatório. Amável, ele não foi.
Tampouco seria correto sugerir que tenha agido com hostilidade ou que a
qualquer momento tenha se excedido em seu papel de policial. Suas emoções
estavam sob firme controle.
O inspetor rapidamente levantou a ficha do homem, que poderia ser assim
resumida:
Nome: Reginaldo de Souza Neto.
Idade: 35 anos.
Profissão (1): ator. Afirmou estar participando dos ensaios de um grupo de
teatro. O grupo, ao que parece, não dispunha de muitos recursos, e a
remuneração dos atores seria feita somente na divisão da bilheteria. Ainda não
havia previsão para a estreia da montagem.
Profissão (2): michê. Para pagar o aluguel e as passagens de ônibus até o
local dos ensaios, afirmou se prostituir “ocasionalmente” no calçadão da praia
do Poeta, a poucas quadras do hotel Émile.
Segundo contou, Reginaldo estava fazendo ponto no calçadão quando foi
abordado por Harold Habbot. Ele foi descrito por Reginaldo como um senhor
de idade, estrangeiro, mas que falava bem o português. Foram direto para o
quarto no Émile, onde Habbot lhe ofereceu pó e uísque. Depois que haviam
bebido e cheirado bastante, Habbot lhe mostrou uma revista pornográfica,
dizendo que era “para servir de inspiração”. Depois retirou os apetrechos de
uma mala: o chicote, as algemas, o gigantesco pênis de plástico. O cinto,
Habbot retirou das próprias calças, o que fez com que caíssem abaixo dos
joelhos. Logo o velho estava inteiramente nu. Então usou o cinto para açoitar
Reginaldo, dizendo que era “para deixá-lo no estado de espírito adequado”.
Após cada cipoada do cinto, seguiram-se ameaças e insultos carregados de teor
racista e sexista. Com a cabeça cheia de pó e de dor, Reginaldo partiu com tudo
para cima do velho. Quando voltou a ter consciência de si, já havia se
transformado em um assassino.
O resto foi meio que inevitável. Reginaldo acabou sendo preso, e ainda
ganhou algumas escoriações e um olho roxo. Não haveria como Fantini não
ficar sabendo da história toda. No dia seguinte, Reginaldo de Souza Neto era
apresentado à imprensa como o assassino confesso de Harold Habbot.
Teixeira bem que tentou impedir. Ele não podia dizer que sabia quem havia
matado o velho sem contar detalhes que preferia manter em segredo. Por isso o
principal argumento utilizado pelo inspetor, e que, aliás, jamais chegou a ser
divulgado para a imprensa, era o de que, de acordo com as câmeras de
segurança no hotel Émile, Reginaldo não poderia ter cometido o crime.
O delegado Fantini, no entanto, descartou a objeção de Teixeira como sem
importância. As câmeras do hotel deviam ter ficado sem funcionar por alguns
momentos, justamente quando Reginaldo circulava pelas dependências do
Émile. Esta era a explicação mais provável. Uma simples falha técnica do
sistema de segurança do hotel.
Teixeira poderia ter dito que havia telefonado para o chefe da segurança do
Émile, Nestor, logo depois que Reginaldo foi preso. Nestor foi categórico ao
confirmar o que Teixeira já sabia: as câmeras funcionaram perfeitamente no dia
do crime. Não houve quedas de energia, picos de luz, falhas no funcionamento.
Naquele exato momento, a equipe de segurança do hotel deveria estar
repassando mais uma vez as gravações do dia fatídico, a pedido de Teixeira,
com o objetivo de encontrar alguém que correspondesse mesmo de leve à
descrição de Reginaldo de Souza Neto.
Seria um trabalho inútil, como Teixeira e o chefe da segurança bem sabiam.
Os dois já haviam assistido a cada segundo relevante daquelas gravações. As
câmeras registraram tudo o que havia para ser visto. Logo, era impossível que
Reginaldo tivesse cometido o crime, por mais desesperado que Fantini estivesse
para agarrar um culpado.
Teixeira poderia ter comentado sobre o telefonema para a segurança do
Émile, mas acabou desistindo. Nada do que Teixeira pudesse dizer ou fazer iria
alterar um simples fato. O delegado precisava de um bode expiatório. E eis que
um vinha parar em suas mãos, submisso como um cordeirinho.
O delegado Fantini, esse era só um pescoço marchando para a guilhotina. E
agora aparecia assim, do nada, a oportunidade de passar alguém à frente na fila.
Fantini fez o que era esperado.
Foi um dia parado. Um daqueles dias com cara de ressaca, com o céu feio,
cinzento, coberto de nuvens, derramando chuva fina e vento frio, chamando
vendaval. Um dia em que ninguém, se pudesse, sairia de casa.
Para Teixeira, o tempo estava perfeito. Era, afinal, seu dia de plantão. Ele
acendeu um cigarro e ficou exalando a fumaça com gosto.
O motivo para o inspetor pensar assim não era desprovido de lógica, e
poderia até ser considerado humanitário. Quanto pior o tempo, menos gente
nas ruas. Quanto menos gente, menos homicídios.
O trabalho como policial acabava levando uma pessoa a ver o mundo de
forma bastante peculiar. Isso era especialmente verdadeiro quando se tratava de
um policial dedicado como era Teixeira. E trabalho não faltava. Era
impressionante como apenas uma pequena parcela dos casos chegava a ser
solucionada. Não menos surpreendente era o quanto ele ainda se importava
com isso.
Tanto que, como em outras vezes durante plantões parados como aquele, o
inspetor estava vasculhando as pastas de velhos casos ainda não resolvidos, que
provavelmente nunca o seriam. Mas Teixeira não desistia facilmente. Quem
sabe se daquela vez, na enésima leitura de um relatório ou depoimento, talvez
algum novo fator aparecesse. Algum detalhe, algo sem aparente importância,
pacientemente aguardando até que lhe fosse dada a devida atenção.
Na opinião do inspetor Teixeira, tudo era uma questão de fazer as conexões
corretas entre os acontecimentos. “Tudo acontece por meio de relações de
causa e efeito”, anotou certa vez em um dos pequenos cadernos espiralados que
ele usava para todo tipo de finalidade, desde a lista da feira até detalhes de
alguma investigação ou mesmo pensamentos íntimos e reflexões. “Nada
acontece por acaso.”
Era sua crença inabalável que a investigação policial deveria ser a análise de
cada evidência à luz de suas possíveis causas e prováveis consequências. Isso
equivale a dizer que cada pedaço de informação, durante a investigação de um
crime, deveria ser encaixado no lugar certo do mosaico. A investigação policial,
de certa forma, era como o estudo de uma língua antiga e já esquecida, onde se
decifravam primeiro os caracteres e as palavras, para depois chegar às sentenças
e, finalmente, a uma gramática.
A ideia o agradou. Ele tirou o caderno espiralado do bolso interno do
casaco, abriu na primeira página em branco, anotou a data e a hora. Em seguida
escreveu, com sua letra feia e miúda, mas perfeitamente legível:
Não foi uma cena fácil de esquecer, a que os homens da polícia encontraram
ao cruzar a porta do quarto 909. O homicídio raramente é suave, mas havia
algo de especialmente repulsivo no modo como Harold Habbot teve seu
encontro com a morte.
O homem foi encontrado nu, deitado de bruços na cama. Aparentava
setenta anos ou mais, os cabelos totalmente brancos, o corpo velho e enrugado.
Suas mãos foram algemadas à cabeceira. As costas e a bunda branca e flácida
estavam marcadas por finas tiras vermelhas, como se a vítima tivesse sido
açoitada com força e repetidas vezes. Em alguns lugares havia pequenos pontos
escuros de sangue coagulado, onde a pele tinha se rompido.
O velho fora estrangulado e sufocado. Duas mortes pelo preço de uma.
Havia um cinto enrolado em seu pescoço. Era um cinto de couro preto,
adornado com tachas de metal prateado. Único utensílio de vestimenta do
homem morto, o cinto lhe conferia uma desdenhosa indignidade final.
Projetando-se da boca do cadáver, via-se a parte posterior de um imenso pênis
artificial. Pelo diâmetro da coisa era possível adivinhar-lhe o tamanho, bem
como inferir a sua participação na morte do velho. Pois tudo indicava que o
consolo havia penetrado profundamente goela abaixo, a ponto de obstruir a
passagem do ar pela garganta.
Na avaliação inicial do corpo, a morte foi estimada como tendo ocorrido
entre uma e duas horas antes da chegada dos policiais.
A revista que estava junto com o livro na maleta preta também era
importada, e trazia o título Wild At Ass impresso em letras garrafais, recheadas
de estrelas multicoloridas. A foto que ilustrava a capa mostrava dois homens
musculosos em uma arrojada cena de sexo.
Muito embora não pudesse ser considerado um especialista em pornografia
homossexual, o inspetor Teixeira imaginou que aquela revista seria considerada
agressiva também pela maioria dos gays. Quase não havia texto, e o pouco que
havia estava em inglês. Mas o que chamava a atenção mesmo eram as fotos.
Eram sequências coloridas e bastante realistas, com cenas de espancamentos,
torturas e outras práticas menos ortodoxas de sadomasoquismo. Além, é claro,
de closes da penetração dos objetos mais desproporcionais retos masculinos
adentro.
Em comparação com as fotos na revista, o corpo na cama parecia ainda
mais obsceno. Ele era um velho e estava morto. Duas palavras que, normalmente,
não estavam associadas ao sexo.
Com um misto de repugnância e mórbida curiosidade, o inspetor Teixeira
aproximou-se do cadáver. No ponto onde as pernas do velho se ligavam ao
tronco havia uma delatora mancha marrom, que havia se espalhado pelos finos
lençóis do hotel Émile. Como resultado do relaxamento final do esfíncter,
provocado pelo estrangulamento, o velho havia evacuado na cama.
Na base da coluna, bem na altura do cóccix, Teixeira descobriu um
ferimento diferente. Era um corte arredondado na pele, pouco menor que uma
moeda de um centavo. O inspetor ficou imaginando o que poderia ter
provocado aquela curiosa laceração.
Utilizando a ponta dos dedos enluvados, o inspetor entreabriu as nádegas
do homem morto. Ao contemplar a flor sangrenta e intumescida que era o ânus
do falecido Harold Habbot, Teixeira não teve dúvidas de que a vítima fora
recente e severamente sodomizada.
“Bicha nojenta.”
Neste sucinto comentário, o delegado Fantini havia sintetizado a sua opinião
sobre o caso do 909.
Os homens da perícia já haviam acabado de vasculhar o quarto em busca de
impressões digitais. Foi uma busca fadada ao fracasso: alguém tivera o cuidado
de limpar tudo com alguma flanela ou pedaço de pano. Não foram encontradas
nem mesmo as impressões da própria vítima.
Fantini assistia a tudo com um profundo ar de enfado e desgosto. A
homofobia, um fenômeno comum entre policiais, era bastante pronunciada no
delegado. Esse pequeno detalhe, que ninguém poderia prever, acabou gerando
uma guinada e tanto nos acontecimentos. Muito trabalho e planejamento foram
desperdiçados pela obtusidade de Fantini. O delegado não era muito de
sutilezas. Enfiou na cabeça desde o início que aquele era um crime de
homossexuais, uma bicha nojenta que matou a outra. Foi por conta dessa ideia
preconcebida do delegado Fantini, só para dizer o mínimo, que um jovem
dançarino foi morto a tiros, e um jovem ator conheceu o inferno antes da fama.
Teixeira, sem ter o que fazer, foi até a espaçosa varanda do quarto. Só a
varanda já era quase a metade do apartamento do inspetor. Situado no
penúltimo andar do hotel Émile, o quarto 909 oferecia uma bela visão da orla
de Rio Santo, praticamente de frente para a praia do Poeta. Teixeira fez correr a
porta de vidro e avançou para a varanda, onde se deixou ficar por alguns
instantes, organizando os pensamentos.
A maleta de executivo, dentre outras coisas, intrigava Teixeira. A outra mala
fora abandonada de qualquer jeito, revirada e saqueada. Por que então se dar ao
trabalho de acomodar tão cuidadosamente uma edição no original em alemão
do Fausto de Goethe e uma revista pornô, depois de aliviar a maleta do restante
de seu conteúdo?
E que conteúdo seria esse, afinal? A maleta era bem do tipo que se usava
para carregar documentos importantes, talvez um computador portátil ou
mesmo dinheiro vivo. A hipótese das drogas também não podia ser descartada.
Alguém da perícia descobriu diminutos grãos brancos no tampão da mesa de
vidro, já devidamente recolhidos para análise.
Foram encontrados também dois pequenos frascos de vidro em meio à
bagunça, ambos já quase vazios. A julgar pelos rótulos, um dos frascos
continha clorofórmio e o outro trazia cloridrato de cetamina, droga utilizada
como anestésico para cavalos, mas que também era bastante consumida pelos
jovens. Essa descoberta parecia reforçar a suspeita de que o crime estivesse
relacionado com drogas.
Se a morte do velho era o objetivo, por que exatamente dessa maneira? A
tortura sexual não era incomum em casos de execução.
Se o roubo era o motor do crime, no entanto, qual o sentido de chicotear e
enrabar o velho até a morte?
Essas e outras eram as muitas perguntas ainda sem resposta.
De volta ao quarto Teixeira quase chutou o telefone, que continuava caído
no chão. Graças ao aparelho, o corpo foi descoberto pouco depois de o crime
ser cometido. No momento em que o fone saiu do gancho, uma luzinha
começou a piscar no painel de chamadas do hotel. Um atendente na recepção
respondeu à chamada. Mas não havia ninguém do outro lado da linha. Depois
que o atendente desligou, percebeu que a extensão do 909 continuava
chamando. Logo uma camareira foi enviada ao quarto para verificar o
problema. Como ninguém respondeu à batida na porta, a camareira usou a sua
chave-mestra para entrar. No segundo depoimento que prestou à polícia,
depois que veio à tona a questão das câmeras de segurança, a camareira afirmou
categoricamente que encontrou a porta do 909 trancada. Em nenhum lugar do
quarto foi encontrada a chave.
Tomado por uma súbita urgência, Teixeira procurou o delegado:
“Com licença, doutor.”
“Pode falar, Teixeira.”
“Se o senhor não se importa, eu gostaria de verificar a listagem dos
hóspedes.”
“E para quê você quer fazer isso, posso saber?”
“Bem, talvez alguém tenha visto ou ouvido algo. E também...”
“E também o quê?”
“Para dizer a verdade, doutor, me ocorreu que o criminoso talvez esteja
ainda no hotel, hospedado em um dos quartos.”
“E baseado em quê você chegou a essa conclusão?”
“Não é bem uma conclusão. Apenas um palpite.”
“E com base nesse palpite é que você pretende interrogar os hóspedes?
Você tem noção do tipo de pessoa que se hospeda no Émile?”
“Sim, creio que sim.”
“Então pare de dizer tolices, está bem? Nem está parecendo você, Teixeira.”
“Não estou entendendo.”
“É claro que quem fez isso”, disse Fantini e apontou para o cadáver que no
momento era libertado das algemas que o prendiam à cama. “Não se hospedou
aqui. Vá por mim, nós vamos encontrar esse sujeitinho fazendo ponto na praia
do Poeta, ou então em alguma sauna gay.”
O clima poderia ter esquentado ainda mais, se esse não fosse o momento
escolhido pelo chefe da segurança do Émile para entrar em cena. Nestor era um
homem parrudo, com mais músculos do que banha, apesar de já ter passado
bastante dos cinquenta anos. Policial militar reformado, soube fazer o seu
caminho fora da corporação e atualmente chefiava a segurança de um dos
melhores hotéis da cidade. Quando a polícia chegou ao Émile, Nestor estava a
postos na recepção. Assim ficou conhecendo o delegado Fantini e foi por isso
que não perdeu tempo ao se dirigir diretamente a ele. Seu tom de voz era
respeitoso sem ser subserviente, mas alguma nota trêmula denunciava que o
homem estava menos calmo do que queria aparentar:
“Acho que o senhor vai gostar de dar uma olhada nas gravações.”
Intimamente aliviado pela interrupção, Fantini tentou demonstrar
aborrecimento: “Gravações? Que gravações?”
“Das câmeras de segurança”, respondeu Nestor. “Como eu expliquei
quando os senhores chegaram, nós temos uma câmera no corredor de cada
andar e mais cinco no saguão da recepção. Sem contar uma em cada elevador.
Nós temos câmeras em todas as partes do hotel. Menos, é claro, dentro dos
quartos.”
O chefe da segurança fez uma pausa para soltar um suspiro.
“Acabamos agora mesmo de assistir as gravações da câmera do nono andar.
Por isso vim falar diretamente com o senhor.”
“É mesmo?” Fantini lançou um olhar triunfante para Teixeira. “Então vocês
filmaram o camarada que cometeu o crime.”
“Na verdade, não.”
“O quê? Como assim?”
“Eu também estranhei. Por isso pensei que o senhor iria achar interessante
dar uma olhada nas gravações.”
A exasperação de Fantini era bem real agora. “E o que tem de tão
interessante nessas benditas gravações?”
A expressão de Nestor não se alterou. Mas sua voz saiu mais pausada do
que antes, cuidadosa. “De acordo com as gravações não houve crime, porque
não houve corpo.”
“O que você está dizendo? Isto não faz sentido.”
“Quando o corpo foi descoberto, o quarto tinha que estar vazio. E o morto
não pode estar morto, porque saiu bem vivo do quarto um pouco antes da
descoberta do corpo.”
“Mas o que significa isto?”
“Eu estava esperando que o senhor talvez pudesse explicar. Confesso que
eu não consegui entender nada.”
A ablução foi feita, mas ainda não as oferendas. Cheios de confiança, todos
olham para ele.
O Vento sopra sobre a Terra: a imagem da Contemplação. Assim os reis de antigamente
visitavam as regiões do mundo, contemplavam o povo e davam suas instruções.
(I Ching – hexagrama 20)
A sala da segurança poderia muito bem ser chamada de sala da tevê. Uma
tela dominava a parede principal, impondo-se à visão. No canto oposto, duas
cadeiras sugeriam que a sala era utilizada também para interrogatórios, mas esse
era um detalhe que mal se notava. Ao adentrar na sala o olho já era capturado
pela multiplicidade de imagens, mais de vinte pequenos quadrados dividindo a
tela. Em frente à tevê havia uma mesa e mais duas cadeiras. Uma delas estava
sendo ocupada por um homem que se levantou quando Nestor entrou na sala.
O ex-sargento cumprimentou o homem com um gesto mínimo de cabeça.
“Inspetor Teixeira, este é Ivan, que me ajuda aqui no controle operacional.”
Ao apertar a mão de Ivan, o inspetor teve uma surpresa. Embora não fosse
fisicamente imponente, havia algo que evocava perigo no porte miúdo daquele
homem de terno. Possuía a pele entre o marrom e o negro, qualquer idade entre
os vinte e os quarenta, os olhos duas diminutas frestas que nada revelavam ao
fitar de volta, em fria avaliação, os olhos do inspetor. Teixeira sentiu o corpo se
retesando, antecipando luta. Assim era o efeito causado por Ivan.
O chefe da segurança ofereceu uma cadeira ao inspetor e foi até o canto da
sala buscar outra para si. A quarta cadeira, uma de madeira, permaneceu
intocada. “Ivan, mostre o nono andar, por favor.”
Uma única imagem, enorme, substituiu as outras. Um corredor do hotel
apareceu na tela. Graças à estrutura retilínea do Émile, uma só câmera bastava
para cobrir todo o andar. Não havia ninguém à vista.
“Nós fizemos a visualização completa das imagens do nono andar”, disse
Nestor com uma ponta de orgulho. “O circuito interno de tevê do Émile é
muito bom, um dos mais avançados do mundo. Todos os melhores hotéis
estão usando. Para lhe falar a verdade, esse sistema...”
“Se não se importa, eu gostaria de assistir o quanto antes às imagens”,
cortou Teixeira.
Nestor limitou-se a acenar de leve com a cabeça. Não demonstrou ter ficado
ofendido. “Sim, é claro. Ivan, coloque no modo reprodução, por gentileza.”
Ivan ergueu o aparelho de controle remoto. Na tela apareceu o cardápio em
letras rosadas.
“Como eu estava dizendo”, retomou Nestor, “temos o levantamento de
toda a movimentação no corredor ao longo do dia de hoje. Por isso sugiro que
assista às gravações na sequência em que ocorreram.”
“Como preferir.”
O chefe da segurança puxou do bolso do casaco a folha de papel onde havia
anotado os horários. “Vamos começar às catorze e vinte. Antes disso, ninguém
entrou ou saiu do quarto.”
A mudança de luminosidade foi abrupta. Fora isso a imagem na tela parecia
a mesma. Então um homem apareceu no corredor, saído de um dos quartos, o
segundo a partir da câmera, obviamente o quarto 909.
A qualidade da imagem era realmente notável. Dava para ver com precisão
as roupas que o velho usava ao sair do quarto. Um terno esportivo
amarronzado por cima da camisa polo branca, esta por sua vez enfiada por
dentro da calça de pano clara, uma cor entre o bege e o cinza, nas meias a
mesma cor da calça e os sapatos em um tom e meio mais escuro.
Era possível ver até os fios alvíssimos do cabelo do velho balançando
enquanto ele andava, um pouco mais compridos do que o costumeiro em
alguém daquela idade.
Era ele, sem dúvida. O mesmo que estava agora sendo enfiado em um saco
preto, com um cinto enrolado no pescoço e totalmente nu. Era ele, sim. O
falecido Harold Habbot.
Teixeira ficou de olho fixo na tela até que o velho sumiu no elevador. “E
depois?”
O chefe da segurança consultou novamente o bloco de anotações. “A
próxima pessoa a entrar no quarto foi a camareira, às catorze e trinta e cinco.”
Ivan avançou até o ponto indicado para que o inspetor pudesse assistir à
chegada da mulher uniformizada empurrando o carrinho de serviço.
“E quanto ao hóspede do quarto? Para onde ele foi?”
“O senhor Habbot desceu até o térreo, passou na recepção para solicitar o
serviço de quarto e seguiu para o restaurante do hotel. Como ele voltou direto
para o quarto, podemos passar direto para essa parte.”
“Prossiga.”
“Só um momento. A camareira já vai sair do quarto. Chama-se Kelly. Eu
mesmo conversei com ela. Kelly garante que o quarto estava vazio quando ela
chegou para trocar os lençóis.”
“Foi ela quem encontrou o corpo, não foi?”
“Sim. Olhe, aí está ela.”
A tela mostrou a camareira saindo do 909, o carrinho na frente. Teixeira
disse: “Não estou entendendo essa ênfase na camareira.”
“O importante não é a camareira em si”, respondeu Nestor. “E sim o fato
de que não havia ninguém no quarto depois que a camareira saiu.”
“E qual a importância disso? O que você está querendo mostrar?”
“Você vai ver.”
Brancas avançam na segunda:
Contemplação através da brecha da porta. É propícia a perseverança de uma mulher.
Teixeira acordou com uma forte pressão na nuca. Ele descobria por
experiência própria como é perfeitamente possível sentir dor e dormência ao
mesmo tempo. Não existe contradição entre os termos. A dormência nada mais
é que uma dor que ainda não despertou.
Os olhos abriram-se a tempo de ver a seringa com agulha hipodérmica se
afastando. A visão da agulha por si só explicava a desagradável queimação se
espalhando do pescoço para as costas e para o rosto.
A mão que segurava a seringa pertencia à jovem supostamente indefesa que
o havia colocado a nocaute, a loira pelada do banheiro fingindo estar amarrada.
Sem nenhuma surpresa, pois seus sentimentos estavam como que embotados,
Teixeira viu que para transformar uma loira de cabelos curtos em uma morena
de cabelos compridos bastava uma simples peruca.
Quando notou que o inspetor havia despertado, Júlia sorriu.
Ela ergueu-se da beirada da cama, onde estivera sentada. Teixeira, é claro,
continuou deitado. Depois de deixar a seringa em uma bandeja na mesa com
tampo de vidro, Júlia postou-se ao lado de Joaquim, de pé aos pés da cama,
diante de Teixeira.
O olhar esgazeado de Teixeira vagou dela para ele e de volta para ela. O
inspetor piscou os olhos, tentando focar a vista.
Os dois eram muito parecidos, sem dúvida. O mesmo rosto com corpo de
homem e de mulher. Mas não era isso o que causava estranheza. A semelhança
não era perfeita. Havia uma coisa qualquer faltando, que não se conseguia
discernir com clareza, mas ainda assim se fazia sentir. Olhar para eles quando
estavam assim juntos era para deixar a cabeça tonta, algo que definitivamente
feria alguma lei fundamental da estética. Não é de se admirar que o inspetor se
sentisse ainda mais dopado do que já estava.
Kim tentou o mais que pôde parecer o univitelino de sua irmã. Mas há
limites até mesmo para a cirurgia plástica, maravilha de nossa era. Daí esse sutil
estranhamento, que não se explicava de imediato.
O casal estava vestido de negro, os dois usando uma malha fina e rente ao
corpo, como um uniforme, que lhes realçava ainda mais tanto a inexata
semelhança quanto as evidentes diferenças.
E foi só então que o inspetor finalmente tomou conhecimento de uma
curiosa inversão de papéis. Pois o rapaz de cueca samba-canção estava
inteiramente vestido. A moça nua do banheiro também estava vestida. Era ele,
Teixeira, quem estava pelado agora.
“O que vocês fizeram comigo?” E o inspetor fez uma nova descoberta. Ele
não estava conseguindo se mover. O próprio ato de falar exigia um grande
esforço.
“Nada demais, por enquanto”, disse Joaquim. Ele cruzou os braços de
encontro ao peito e começou a caminhar pelo quarto. “Você recebeu uma dose
de uma certa substância, considere um presentinho nosso.”
“O que vocês injetaram em mim?”
“E para que você precisa saber disso? Saber o nome da droga não vai te
ajudar em nada. É uma substância com um princípio ativo muito curioso. Tem
um nome mais comprido que meu pau, mas seus efeitos são muito
interessantes. Durante as próximas horas você não poderá se mexer, mas
continuará perfeitamente sensível a qualquer estímulo de dor.” Joaquim trocou
um rápido olhar com Júlia antes de prosseguir. “Ou de prazer.”
“Não precisa ter medo, chefinho Júnior”, disse Júlia, e sorriu mais uma vez
para Teixeira. “Amanhã você terá uma das piores ressacas de sua vida, apenas
isso. Isso na hipótese, é claro, de que exista um amanhã para você.”
Joaquim teve um súbito acesso de hilaridade. “Chefinho Júnior. Essa foi
boa.”
“O que vocês querem?” Grasnou Teixeira. Era como se houvesse uma lixa
em sua garganta.
“Vamos começar com você contando como é que chegou até nós.”
“Não foi difícil, com vocês dois brincando de assassino de cinema.”
“Fico feliz que você ainda tenha forças para bancar o espirituoso”, disse
Joaquim. “Você irá precisar delas.”
“Que tal falar sobre isso?” Júlia mostrou o cartão com o emblema da fábrica
que havia encontrado em um dos bolsos do inspetor.
“Que tal vocês falarem sobre isso? Para que tanta presepeira para apagar um
cara? Vocês andaram vendo filmes demais, crianças.”
Joaquim continuava andando de um lado para o outro do quarto. Parecia
uma fera enjaulada. “O restante da polícia já foi embora. Por que você ficou no
hotel?”
“Tive vontade.”
“Quem sabe que você está aqui?”
“Você quer dizer além de meu pessoal? Sem contar com o gerente do hotel,
acho que só a equipe de segurança. Eles devem estar batendo na porta a
qualquer momento.”
“Você está blefando.”
“Então espere para ver.” Se o inspetor apostou nisso, perdeu. Ninguém da
segurança deu as caras. Ivan, que estava monitorando as câmeras, jamais
reportou qualquer anormalidade observada na cobertura do hotel naquela noite.
Ao menos para Nestor, seu suposto patrão. Para os gêmeos, sim, foi que Ivan
fez um relatório completo. E graças ao que os gêmeos contaram para mim, foi
que pude reconstituir os passos de Teixeira em suas investigações no Émile.
Isso e também um pouco de imaginação, que nunca me faltou.
“Você está achando tudo muito engraçado, não é mesmo?” Joaquim parou
diante da mesa, onde os pertences do policial haviam sido colocados. Quando
se voltou, estava empunhando a ponto 40 do inspetor, a mesma que Teixeira
havia sacado bem debaixo da câmera da segurança. “O que você acha de ser
morto com a sua própria arma? Aliás, que tipo de tira é você que anda só com
uma arma?”
“Se uma arma só não basta para fazer o serviço...”
Joaquim atravessou a curta distância que o separava da cama e encostou o
cano da pistola na cabeça de Teixeira. “Eu só vou perguntar mais uma vez.
Como foi que você nos descobriu?”
“Se você quer mesmo saber, por que não faz aquele seu truque mais uma
vez? É só segurar a minha mão novamente.”
Joaquim afastou rapidamente a arma, como se tivesse ficado com medo do
contato com a pele de Teixeira. Logo em seguida caiu em si. Ficou com mais
raiva ainda quando viu que o outro estava rindo dele. O rapaz passou a pistola
para a outra mão e desferiu um soco na boca do policial. Não chegou a pegar
em cheio, mas lascou bem os lábios de Teixeira.
“Minha paciência está se esgotando. Como você sabia que nós ainda
estávamos no hotel?”
“Vocês não encontraram o que estavam procurando.”
“O que você quer dizer?” Havia surpresa e também uma nota de cautela na
voz de Joaquim.
“Eu faço ideia do que havia naquela maleta do velho e que vocês
surrupiaram. Aposto que a mocinha ali levou dentro da mochila.” A boca do
inspetor estava rubra de sangue.
Joaquim voltou a cruzar os braços, a pistola apontando para o teto. “Pois
muito bem, o que era então que estava na maleta?”
“Não eram drogas. Nem dinheiro. Nem joias.” Teixeira cuspiu de lado. A
baba sanguinolenta acabou escorrendo pelo seu ombro. “Aposto que era um
computador desses portáteis. Um notebook.”
Júlia e Joaquim trocaram um novo olhar, que não passou despercebido ao
inspetor. Ele continuou: “Mas o que vocês queriam não estava dentro do
computador.”
Júlia não se conteve. “Como você sabe disso?”
“Vocês estavam planejando voltar ao 909, não é? O criminoso sempre
retorna ao local do crime.” Teixeira deu um muxoxo. “Essa é velha até no
cinema.”
“Como você ficou sabendo?” Foi a vez de Júlia encetar um avanço na
direção de Teixeira. Apenas um passo, na verdade, antes que Joaquim
estendesse a mão para tocar seu braço, um pedido mudo de paciência.
O olhar de Teixeira encontrou o de Joaquim. O inspetor voltou ao ataque.
“Entrar lá novamente até que não seria difícil. Basta descer pela varanda, como
você já fez mais cedo. O que eu gostaria de saber é como você pretendia sair de
lá sem ser filmado pelas câmeras.”
“Nada que uma boa corda não resolva.”
“Não perca seu tempo. O que vocês procuram já está nas mãos da polícia.”
A consternação dos dois foi visível. Júlia levou as mãos aos cabelos e
Joaquim balançou a cabeça, contrariado. Teixeira insistiu:
“Pobrezinhos. Tanto trabalho para nada. Vocês assistiram a muitos filmes,
mas parece que não aprenderam a lição principal. O crime não compensa.” A
voz de Teixeira era pouco mais que um sussurro agora.
Foi a vez de Joaquim explodir. “Minha paciência se esgotou. Tirazinho
ordinário.”
“Vá em frente. Atire”, desafiou o inspetor. “Logo a polícia da cidade inteira
vai estar atrás de vocês.”
“Não”, Joaquim respirou fundo. “Eu não vou matar você.”
O jovem foi até a mesa e deixou a pistola em cima das roupas de Teixeira.
Ao se voltar novamente para encarar o inspetor, havia um brilho diferente em
seu olhar.
“Eu não vou matar você”, ele repetiu. “Tem muita coisa importante
envolvida, e eu não vou me arriscar a melar tudo com a morte de um tira sujo.”
“Vocês já melaram tudo, caso tenha esquecido.”
“Nós já vamos tirar esse sorrisinho besta da sua cara.” Joaquim trocou mais
um olhar com Júlia. O inspetor não gostou nem um pouco desse olhar. “Ou
melhor, nós vamos te dar um motivo para estar sorrindo assim.”
Brancas avançam na sexta:
A influência mostra-se na mandíbula, nas bochechas e na língua.
“Teixeira falando.”
Ele havia pedido que a ligação fosse transferida para a sala de plantão dos
inspetores, o que foi feito sob os protestos bem humorados e maliciosos do
soldado Guilherme.
“Inspetor Teixeira? Alberto Lino Teixeira?”
A voz da mulher do outro lado da linha realmente possuía algo de notável.
Um timbre aveludado e muito feminino, que a distinta nota de tensão tornava
ainda mais atraente. O inspetor não teria esquecido facilmente aquela voz, caso
tivesse ouvido antes.
“Ele mesmo. Quem está falando?”
“Meu Deus. Então é tudo verdade mesmo.”
“O que é verdade, dona? E qual é o seu nome?”
“Nós não temos muito tempo. Você precisa vir me encontrar. Já foi uma
loucura telefonar para a delegacia. Ele sempre sabe de tudo o que acontece na
delegacia.”
“Ele? Ele quem?”
“Meu marido.” A voz mal passava de um sussurro. “Mas o que é que eu
estou dizendo? Eu devo estar ficando louca mesmo. Doida varrida. Só pode.
Maluca, maluca.”
Parecia que a mulher falava mais para si mesma que para Teixeira. A nota de
tensão em sua voz havia se transformado em um poderoso acorde, onde o
medo era a dissonância predominante.
“Se a senhora não se acalmar um pouco, não terei como lhe ajudar.”
“Encontre-me na praça Cardeal Vilela. Eu estarei sentada em um dos
bancos. Você sabe onde fica?”
“Acho que sim. É um pouco longe daqui.”
“Eu andei até encontrar um lugar sobre o qual eu nunca tivesse lido. Ele
não poderia ter inventado uma cidade inteira, ou poderia? Tem que existir
algum local que até mesmo ele desconheça.”
“Me desculpe, mas a senhora não está falando coisa com coisa.”
“Por favor, venha depressa. Não sei quanto tempo ainda temos. Você virá,
não virá?” O tom era de súplica feminina, de apelo ao cavalheirismo.
“Mas eu nem sei o seu nome ainda. E muito menos o de seu marido todo-
poderoso.” Teixeira tentou brincar para diminuir o desconforto de se ver
envolvido em uma situação tão esdrúxula. Pois a verdade é que estava ficando
envolvido.
“Ah, mas ele sabe tudo sobre você. Isso eu garanto.” A mulher deu uma
risada seca, nervosa.
“Escute, por que a senhora não dá um pulo aqui na delegacia?”
“Eu não posso. Estou com medo.”
“Mas o que aconteceu, afinal?”
A mulher suspirou perceptivelmente antes de responder:
“Eu sei o que você procura, Alberto. Está bem aqui, dentro de mim.”
Dois minutos depois Teixeira já estava na rua, a caminho.
Quando o inspetor Almeida voltou do almoço, trazia uma sacola de papel
com o sanduíche encomendado por seu colega. Era um sanduíche de
salaminho, especialidade do Isidro, que permaneceu intocado até pouco depois
do anoitecer. Como Teixeira não voltava, Almeida resolveu dar fim à
prolongada paquera e devorou o sanduíche.
Aquecido pelas calorias extras, ele atendeu de boa vontade o telefone que
tocava em sua mesa.
A praça Cardeal Vilela ficava na periferia da cidade. Por algum motivo que
talvez fosse desconhecido até para ele mesmo, Teixeira decidiu ir com seu
triciclo.
Ele poderia ter pegado as chaves da viatura com Almeida, mas não o fez.
Caminhou dois quarteirões até a estação do metrô e pegou uma conexão que o
deixou perto de casa. Se tivesse tomado o trem no sentido contrário, e depois
outra conexão, teria chegado ao destino em pouco mais de vinte minutos.
Mas não. Ao chegar ao prédio onde morava, Teixeira foi direto para o
estacionamento. Ele trazia as chaves do triciclo junto com as da casa no mesmo
chaveiro.
O triciclo era uma máquina de quase quatro metros de comprimento em aço
cromado preto. A roda dianteira, projetada em vertiginoso ângulo aberto, dava
a impressão de que a qualquer momento iria se soltar do corpo do veículo. Na
pista, o efeito era o de acentuar a sensação de velocidade. Os guidões eram duas
serpentes que se elevavam acima da cabeça do piloto, que era obrigado a dirigir
com os braços levantados. Era assim que Teixeira gostava.
Motos e triciclos eram uma paixão antiga. Especialmente os triciclos. Na
verdade, Teixeira só se interessou por motos até que conseguiu montar o seu
primeiro triciclo, já iam dez anos. E há quase oito o inspetor fazia parte dos
Lobos da Estepe, um dos mais conhecidos moto clubes da cidade. Ele esperava
reunir-se com os outros Lobos durante o próximo fim de semana, quando
ocorreria uma convenção de motociclistas em Cachoeiro do Conde, cidade
serrana que ficava a menos de cem quilômetros de Rio Santo.
O triciclo de Teixeira levou quase meia hora para chegar à praça Cardeal
Vilela. Havia algumas pessoas transitando pela praça, mas não foi difícil
descobrir qual delas ele viera encontrar.
Era simplesmente a mulher mais linda que ele já havia visto.
CAPÍTULO 56 – VIAJANTE
“Você é muito melhor ao vivo”, ela disse depois de algum tempo. “Eu já
sabia que seu beijo era uma delícia. Só não pensava que fosse tanto.”
O inspetor ficou um pouco encabulado com um elogio assim tão direto.
“Ora, muito obrigado.”
“Se o beijo é assim, imagine o resto. Pelo que já sei de você, isso me dá até
medo.”
“Vamos esclarecer uma coisa. Tudo isso é muito lisonjeiro, mas nós nunca
nos vimos antes. Como é que você está dizendo que sabe tanto assim de mim?”
“Ah, Alberto.” Ágata sorriu e acarinhou o rosto do inspetor. “Você pode só
estar me conhecendo hoje, mas eu conheço você há muito tempo. Eu sei de cor
os principais crimes que desvendou, como a morte do comendador Gonçalves
e a morte da prostituta Sueli. Esse, então, é meu caso favorito.”
Teixeira ficou atônito. Ágata riu. Era mesmo cômica a expressão de surpresa
estampada no rosto do inspetor. Ela continuou:
“Sim, e sei de muito mais. Sei das mulheres que você amou, embora sejam
tantas que fica difícil manter a contagem. Cheguei a fazer uma média certa vez,
sabia? Deu quase três mulheres para cada assassinato que você resolveu. Você
não é fácil, Alberto!”
Ela fez que ia dar um tapa nele, de pura faceirice. Era evidente que estava se
divertindo naquele momento.
“Sei também de suas duas grandes paixões: música e motos.” Um rápido
olhar para a máquina de Teixeira, estacionada logo adiante, foi o suficiente para
Ágata logo emendar sorrindo: “Ou melhor dizendo: música e triciclos. Sei tanto
sobre você, Alberto. Sei que odeia televisão e que por isso não tem nenhuma
em casa.”
Teixeira parecia enfeitiçado. Ágata apertou a mão que estivera segurando a
dela todo esse tempo.
“Eu gostaria muito de conhecer o seu apartamento.” Ela olhou ao redor,
parecendo novamente apreensiva. “Eu me sentiria bem mais segura lá, com
você.”
O inspetor finalmente despertou:
“Qual é o problema? É o seu marido?”
“Nem me fale nele.”
“Ágata, me diga o que está acontecendo. Quem é você? Como sabe tanto
sobre mim?”
“Eu quero contar tudo. E vou contar. Mas não aqui. Estou me sentindo
muito exposta. Parece que tem alguém me vigiando.”
“Vamos para o meu apartamento, então.”
Uma fagulha pulsou no olhar de Ágata. “Você me leva?”
Não foi preciso insistir. No caminho de volta para casa, com Ágata sentada
atrás dele no triciclo, Teixeira poderia ter pensado na incongruência da trama,
na inverossimilhança dos fatos. Mas estava concentrado mesmo era no calor
das coxas de Ágata contra suas costas, no vento à sua frente e na pista que
faltava para chegar logo. Talvez se deixasse levar fácil demais. Quem poderia
culpá-lo?
Encontrar uma vaga quase na porta da churrascaria foi pura sorte. Pode-se
dizer que o resto todo foi bastante planejado.
Kim estacionou o W Sport cinza na calçada. O carro havia sido
encomendado dois dias antes, junto com o Corvenna preto utilizado no serviço
do Le Barde. Kim havia sido bem detalhista ao fazer o pedido do Corvenna,
pois queria um carro chamativo, que causasse o máximo de efeito. Quanto ao
veículo que utilizavam agora, o irmão de Júlia fizera apenas cinco exigências:
um bom motor e quatro portas.
Foi sorte ter encontrado a vaga, mas não somente. Dizem que sorte nada
mais é que estar preparado para a oportunidade. Kim estava ainda manobrando
o carro quando um adolescente negro se aproximou:
“Não pode parar aí, não.”
Sem muita sutileza, a mão do rapaz já escorregava para a linha da cintura,
por debaixo da camisa. Não era preciso um gênio da dedução para perceber que
se tratava de um dos soldados do morro do Urtigão, postado ali como
segurança.
Júlia abaixou o vidro de sua janela e endereçou ao jovem negro um sorriso
radiante:
“I intend to search your restaurant, Mr. Spade. I warn you that if you attempt to prevent
me I shall shoot you.”
Júlia falava o inglês com perfeição, fruto de seus anos passados nos Estados
Unidos. Kim também, embora com menos desenvoltura. Já a obsessão com
citações literárias era coisa só dela. Nunca vi Kim lendo nada além de revistas
em quadrinhos.
“Não entendi nada, gringa.”
Sempre sorrindo, Júlia fez sinal para que o jovem se aproximasse mais.
Quando ele fez o instintivo gesto de abaixar a cabeça para se aproximar da
janela do carro, um vigoroso golpe de baixo para cima o atingiu bem no queixo.
Ele ainda estava caindo quando Júlia saltou do carro. Ela virou o rapaz caído no
chão e cravou uma comprida agulha de metal em sua nuca, bem onde
terminava o crânio. A agulha perfurou o bulbo raquidiano, fazendo cessar a
respiração e os batimentos cardíacos. A morte foi instantânea e muito limpa,
com um mínimo de sangramento. De forma semelhante, mas geralmente não
tão precisa, eram abatidos os bois e vacas destinados a virar churrasco no Salão
66 ½.
Depois ela só precisou ajeitar levemente o cadáver na calçada. Caso algum
transeunte passasse por ali durante os poucos minutos que iria durar a
operação, não olharia duas vezes para o corpo caído. Era só mais um indigente
bêbado ou drogado, dentre tantos que infestavam a cidade. Júlia então voltou
para o carro e comandou a pessoa que estava sentada no banco de trás:
“Pode sair agora.”
Depois que o banco de trás ficou vago, Kim tirou o celular do bolso. Em
poucos instantes já estava acessando a minitevê. Os dois ficaram monitorando
o interior da churrascaria pela minitevê, com especial atenção para a disposição
dos convidados e garçons. Nada mais fácil: todos reunidos ao redor de uma
única mesa comprida. Os gêmeos trocaram um breve olhar e iniciaram os
preparativos finais. Júlia apanhou dois estojos, um dos quais passou para Kim.
Cada estojo continha uma submetralhadora de nove milímetros. Era uma
pena que o carregador só tivesse capacidade para trinta projéteis, o que tornava,
na prática, impossível alcançar a marca de seiscentos tiros por minuto
prometida pelo fabricante. Cinco carregadores cheios acompanhavam cada
estojo.
Depois de encaixar um dos carregadores na submetralhadora, os dois
prenderam os carregadores extras nos compartimentos do cinto. Passaram a
correia por cima do pescoço, para só então destravar a arma. Aguardaram mais
alguns instantes monitorando o interior do restaurante. Finalmente, no
momento propício, colocaram as máscaras e saíram do carro.
Eram treze à mesa. Luca havia acabado de notar este fato. Deveriam ser
catorze, mas um dos homens não pôde vir de última hora.
“Onde se enfiou o Murilo?”
“Está procurando a sobrinha”, respondeu Tisiu, o aniversariante. “Parece
que está sumida desde ontem. Ele passou lá em casa avisando que não poderia
vir hoje. A irmã dele está num desespero só.”
“Que sobrinha? A Ivonete?” Quis saber Zé Galo. Não era segredo para
ninguém do morro do Urtigão que ele andava de olho na sobrinha mais velha
de Murilo, que havia acabado de completar seus quinze anos.
“Não. Quem sumiu foi a mais nova, Belinha. Depois que saiu da escola,
ninguém mais viu.”
Luca limitou-se a ouvir em silêncio. Não era o momento de intervir. O mais
provável é que a menina tivesse escapulido com um enrabicho, algum
desmiolado que dentro em breve amaldiçoaria o dia em que sua mãe o pôs no
mundo, quando Murilo os encontrasse. Murilo não era nem de longe o mais
tranquilo dos capitães de Luca. Pavio curto desde menino. Luca o conhecia
bem, sendo os dois primos e compadres. Murilo deu a mais nova, justamente a
que andava sumida, para Luca batizar. E como o sumiço de sua afilhada era
pelo momento estritamente um assunto de família, o chefe do tráfico no morro
do Urtigão achou melhor erguer a tulipa de chope e fazer o brinde:
“Ao nosso Tisiu, que continue sendo um amigo fiel e o terror dos
inimigos.”
Doze copos foram erguidos em resposta. Era já uma tradição, o churrasco
em comemoração aos aniversários do bando. A novidade era estarem
comemorando no Salão 66 ½, casa recém-inaugurada e da qual Luca era sócio
majoritário. Extraoficialmente, é claro.
Luca considerava-se essencialmente um homem de negócios. Não era
nenhum selvagem sanguinário como aquele louco do Jorginho Príncipe. E um
almoço assim com seus homens, em meio a um clima cordial e um ambiente
elegante, ajudava a reforçar a imagem de negociante bem sucedido.
Não havia outros clientes no Salão. Cinco garçons revezavam-se para
manter pratos e copos sempre cheios, enquanto o gerente se desfazia em
rapapés e mesuras. Mais por hábito que por segurança, Luca havia ordenado
que o restaurante ficasse à sua inteira disposição durante toda a tarde. Uma
tabuleta foi afixada na porta, com a inscrição “FECHADO”. Esta simples
medida seria suficiente para restringir o acesso de outros comensais.
Mas não impediu de entrar uma mulher alta, bem vestida, bonitona. Luca
observou um dos garçons ir ao encontro da mulher. Era um garçom bem
baixinho, com cara de índio. Após ouvir por um instante, o garçom balançou a
cabeça e estendeu os braços, na clara intenção de conduzir a mulher de volta
até a porta da rua. Luca espremeu o lábio inferior entre os dedos e soltou um
assovio agudo, estridente. Todos os olhares voltaram-se para ele.
“Garçom” Luca fez sinal para que se aproximasse. O medo estampado no
rosto do homem era patético e vagamente repulsivo. “O que a moça deseja?”
“Ela pediu para usar o banheiro, mas eu já avisei que a casa está fechada,
senhor.”
“Ora, mas não faz mal nenhum abrir uma exceção, não é mesmo?” Luca
alteou a voz, fazia questão que a mulher soubesse que era ele quem mandava
por ali. “Ainda mais no caso de uma moça tão bonita.”
Ela retribuiu o sorriso que Luca lhe endereçou, agradeceu e seguiu na
direção indicada pelo garçom baixinho. O coitado ficou roxo de
constrangimento, quase da cor do vestido que a mulher usava.
Luca continuou sorrindo mesmo depois que ela entrou no banheiro. O
aniversário podia ser de Tisiu, mas aquele presente seria ele, Luca, quem iria
desembrulhar. A luxúria brilhava no sorriso do dono, em antecipação ao que já
se via fazendo com a mulher, que era mesmo uma cavalona. Quem mandou
ignorar o aviso na tabuleta? Pisou no Salão 66½, tem que pedir benção ao Luca
do Urtigão. Se a mulher ainda não sabia disso, iria descobrir em breve. O
melhor seria nem esperá-la voltar do banheiro.
Luca estava para se levantar e ir atrás dela quando notou que mais alguém
estava pisando no salão. Eram duas pessoas vestidas de negro.
Ao virar a página reparou em algo que até então não tinha visto:
JANINE SIQUEIRA: Ainda não entendi o porquê dessa pressa toda. Você não só
pega no trabalho às nove?
JANINE SIQUEIRA: Puro mesmo. Obrigada. Como é aquele ditado mesmo, preto
como o diabo e doce como um beijo roubado.
INSPETOR TEIXEIRA: Para com isso, Janine. Você sabe que eu não tenho tempo
agora.
MARIA CELESTE: Ela é só uma criança. Meu Deus. Eu juro que não sabia que
ela estava no carro. Juro.
INSPETOR TEIXEIRA: Eu preciso que você seja forte mais um pouco. Tudo
bem? O corpo do homem ainda está lá em cima?
Ágata havia insistido para ela mesma fazer a comida. Teixeira iria pedir uma
pizza, mas ela cismou que queria cozinhar.
“É o melhor remédio para quando me sinto um pouco ansiosa.” O pedido
foi servido junto com um sorriso encantador. “Se você não se importa que eu
bagunce sua cozinha, adoraria cozinhar para você.”
Teixeira não se importava, havia feito o mercado há poucos dias. A
despensa estava cheia.
“E é justo o tempo que leva para você dar uma lida com calma. É bom que
você leia o que está escrito aí.”
E assim foi feito. O inspetor ficou lendo a sua própria história enquanto
Ágata preparava o almoço dos dois. Quando finalmente ficou pronto, e tudo
cheirando tão bem, Teixeira descobriu que estava mesmo com muita fome.
“Isso está uma delícia.”
“Obrigada. Que bom que você gostou.”
Por um instante os dois ficaram simplesmente sorrindo um para o outro.
Era comida simples, na verdade: omelete, arroz e salada. Mas o resultado
final ficou bem acima do que as panelas da casa estavam acostumadas a
produzir.
O assunto do livro não foi mencionado enquanto durou a refeição.
Também não conseguiram muito falar sobre outras coisas. O almoço limitou-se
a silêncios e sorrisos, elogios à comida e mais sorrisos.
A beleza de Ágata era desconcertante, hipnotizante como o canto de uma
sereia. Ainda assim ela flagrou o olhar do inspetor fugindo de seus encantos,
vagando pelos cantos do apartamento, como se estivesse à procura de algo.
“O que você tanto olha?”
Teixeira bateu o olho nela. Disse calmamente:
“Procuro a escuta. Não é óbvio?”
“Escuta? Do que você está falando?”
“De que outro modo alguém poderia saber as coisas que eu disse hoje
mesmo, sentado aqui mesmo nessa cadeira.” Mas quando disse isso o inspetor
já estava com os dois pés no assento da cadeira, que ele havia arrastado para o
centro da sala, de forma a ficar diretamente abaixo do ventilador de teto.
Dependurado na cadeira, de canivete em punho, não levou muito tempo para
desmontar a base do ventilador que ficava afixada ao teto. Mas acabou se
decepcionando. “Nada.”
“Espere um pouco. Você está pensando que seu apartamento está
grampeado por causa do que leu no livro.”
“É claro que sim. Isso é o quê, alguma brincadeira? Uma pegadinha para a
tevê?”
“Ora, Alberto, é claro que não. Gostaria que você me ouvisse um pouco.”
“Estou ouvindo.”
“Pois não parece. Assim você vai botar a casa abaixo, Alberto! Tudo bem
que a casa é sua, mas eu tenho certeza de que assim você não vai encontrar o
que está procurando. Você não está entendendo.”
“O que é que eu não estou entendendo?”
“Sente um pouco primeiro. Por favor.”
“Está bem.” Mas logo o inspetor estava de pé novamente. “Você faz ideia
de quem é esse homem que aparece como autor do livro?”
“Quem escreveu o livro foi o meu marido.”
“Seu marido é Rogério Arcanjo Bastos?”
“...”
“Que houve? Você está bem?”
“Estou bem.”
“Você ficou pálida.”
“Por favor não repita esse nome, Alberto. Não suporto, tenho ânsias só de
ouvir. Sim, ele é o meu marido. Só não diga esse nome de novo, por favor.”
“Tudo bem, tudo bem. Fique tranquila, não vou falar o nome dele.”
“Esse homem me fez sofrer muito, você nem imagina. Mas você falou de
um jeito... como se o conhecesse.”
“Nunca estive com ele. Mas sei muito bem quem ele é.”
“Mas como pode isso? Como é que você sabe sobre meu marido?”
“Bem, eu não sabia que ele era seu marido. Mas depois podemos conversar
sobre isso. Você sabe onde ele está agora?”
“Em seu escritório dentro de casa, provavelmente. È onde ele passa a
maioria das tardes.” Ágata sorriu com amargura e acrescentou: “Daqui a pouco
estará na hora de servir o seu chá.”
“Vamos até lá.”
“Não é tão simples.”
“Se... o seu marido é o responsável por esse livro, eu quero ter uma
conversinha com ele. Fique tranquila: você não precisa ir comigo. Basta me
dizer o endereço dele.”
“É isso que você não está entendendo, Alberto. Não tem como você
encontrá-lo. Você está dentro, ele está fora.”
“Quê? Como assim, dentro e fora? Dentro e fora de onde?”
“Do livro, é claro.”
O sol da tarde entrava pela janela. Os dois estavam abraçados, nus, por cima
das almofadas da sala, para onde haviam retornado. Era a paródia patética de
um pós-coito que sequer começou. Ágata estava aconchegada no peito de
Teixeira, mas um músculo tenso em seu pescoço, que não permitia que soltasse
totalmente o peso da cabeça, denunciava que ela apenas fingia dormir.
O módulo de som tocava Ob-La-Di, Ob-La-Da, música solar dos Beatles que
se chocou cataclismicamente com o sombrio estado de espírito do inspetor
naquele momento. Uma música alegre, para quem está muito triste, frustrado
ou simplesmente puto da vida, pode parecer às vezes a mais cruel das
zombarias. E todas aquelas opções de humor aplicavam-se a Teixeira. Sentia-se
miserável.
De modo que foi com alívio que ele saudou um novo estímulo sobre o qual
sua mente pudesse se concentrar. Deitado como estava no chão da sala, o
inspetor captou com o rabo do olho um movimento por debaixo da fresta da
porta. Estreitando a vista para enxergar melhor, logo ele se convenceu de que
realmente havia alguém diante da porta, parado do lado de fora de seu
apartamento. Quem quer que fosse, já estava ali há algum tempo.
O primeiro pensamento de Teixeira foi que pudesse ser Janine na espreita,
certamente armando alguma turbulenta cena de ciúme. O inspetor continuou
espiando pela fresta e logo teve a impressão de que eram duas pessoas que
estavam à sua porta. Um pensamento se impôs à sua crença com força de lei: a
segunda pessoa só podia ser Siqueira, o marido de Janine.
O inspetor foi arrancado de seus devaneios quando notou o discreto porém
inegável movimento na maçaneta da porta. Alguém estava tentando entrar no
apartamento.
Ele reagiu com um segundo de atraso. Desvencilhou-se de Ágata e foi até
onde suas roupas estavam jogadas, do outro lado da sala. Procurava o coldre
com sua arma. Estava pendurado na cadeira, por baixo do casaco. Mas ele não
chegou a alcançá-lo.
“Parado! Eu não daria nem mais um passo, se fosse você.”
A voz grave era inconfundível. Teixeira voltou-se num sobressalto, sua face
estampando surpresa e ódio.
“Vocês!”
Se alguém não é como deveria, sofrerá infortúnio e nada do que fizer lhe será
válido.
Abaixo do Céu ribomba o Trovão: todas as coisas alcançam o estado natural de Inocência.
Assim os reis de antes, ricos em virtude e em harmonia com os tempos, acolhiam e nutriam
todos os seres.
(I Ching – hexagrama 25)
Era o início da noite. Teixeira acordou fustigado por uma dor de cabeça
intensa e malvada. Ele estava jogado por cima das almofadas de sua sala. Havia
sangue coagulado entranhado em seu couro cabeludo.
Reflexos retardatários fizeram com que seu corpo estremecesse, as pernas
chutando o ar, mecanismo de defesa com validade vencida. O movimento
brusco fez Teixeira sentir como se alguém houvesse enfiado um furador de gelo
em seu cérebro. O inspetor gemeu, imobilizado, enroscado em si mesmo, com
medo de que o menor gesto avivasse a dor.
Enquanto simplesmente respirava, Teixeira chegou a três conclusões
fundamentais.
1ª – Ele continuava vivo e em boas condições. A própria dor de cabeça era
um sinal de que seu organismo estava reagindo bem. Quando se leva uma
pancada na cabeça é natural sentir dor no local atingido. Se ele não estivesse
sentindo dor nenhuma, isso sim seria de se estranhar.
2ª – Ele continuava usando sua cueca. A mancha vermelha entre as pernas
que ele vislumbrou ao acordar não era sangue, louvados sejam os céus pelas
pequenas alegrias. Dessa vez não havia nenhum ferimento ali.
3ª – Ele estava só no apartamento. Depois do estardalhaço que fez ao
acordar e com tanto tempo de imobilidade e profundas reflexões, é certo que
alguém já teria aparecido ou ao menos feito algum tipo de barulho. E tudo era
silêncio na casa inteira.
Pensar em silêncio fez Teixeira imediatamente lembrar-se de seu amado
aparelho de som, vitimado por uma bala assassina. A indignação era justamente
o que ele precisava para conseguir se levantar do chão.
Logo Teixeira foi capaz de vistoriar o apartamento. Quase nada parecia estar
faltando. Por baixo do casaco que vestia uma das cadeiras, o coldre de
tornozelo com a 765 passou despercebido. Até a sua ponto 40 estava caída no
tapete, desdenhosamente abandonada, considerada fora de combate.
Exatamente como ele mesmo, Teixeira, havia sido colocado para escanteio.
Ele sabia que estava sozinho no apartamento, mas uma fagulha de esperança
só foi se extinguir depois que ele olhou no último cômodo. É claro que Ágata
não estava em lugar nenhum.
O tal livro também havia sumido.
Quando estava para sair de casa o inspetor notou, semicoberto por uma
almofada, o troféu de motociclismo que o havia atingido. Em um gesto
inconsciente levou a mão à cabeça para tocar o ferimento. Nada sério, mas não
doía menos por isso.
Ele agachou-se para apanhar a miniatura. Ficou aliviado ao constatar que
não havia sofrido danos. Devolveu o triciclo a seu lugar na estante e ficou
contemplando-o por um longo momento.
Não tinha jeito. Teixeira estava obrigado a admitir a verdade, por dolorosa
que fosse. A verdade a respeito de Ágata.
Ele havia aberto a guarda o suficiente para ser ferido. Mais do que a cabeça,
doía-lhe o coração.
CAPÍTULO 5 – PACIÊNCIA
É preciso ver o grande homem. Não tema. Partir rumo ao sul traz boa sorte.
Dentro da terra, cresce a madeira: a imagem da Ascensão. Assim o homem determinado
acumula pequenas coisas para obter algo grande e elevado.
(I Ching – hexagrama 46)
“Levante a saia.”
Varlene levou menos de um segundo para se recobrar da surpresa.
“Direto ao assunto, não é mesmo? Gosto disso.”
A psicóloga deixou o bloco de anotações atrás de si, sobre o assento, e
levantou-se da poltrona. Caminhou para Teixeira como se fosse beijá-lo, mas o
inspetor recuou um passo.
“Levante a saia”, ele repetiu, seco.
“Quer fazer o estilo durão, é?” Varlene não perdeu o rebolado. “Por mim,
tudo bem. Acho que estou mesmo merecendo.”
Sem dizer mais uma palavra, ela levou as mãos à altura do joelho e segurou a
barra da saia. Lenta e deliberadamente foi erguendo a saia até acima da cintura.
Mesmo à distância de alguns passos era possível perceber que seus pentelhos
eram finos e sedosos, nem ralos demais e tampouco espessos em excesso,
brotando macios do gordo monte pubiano. Os pequenos lábios adivinhavam-se
mais que se projetavam por entre as bochechas inchadas e felizes, carne bem
cuidada e alimentada.
Varlene ficou segurando a saia levantada, olhando diretamente nos olhos do
policial. Sua expressão era séria, quase solene, e seu olhar traduzia uma
expectativa infantil.
CAPÍTULO 43 – RESOLUÇÃO
Não sou eu quem procura o jovem tolo, ele é que me procura. Eu o informo.
Se ele pergunta duas ou três vezes, isso é inoportuno. Se ele importuna, eu não
respondo mais.
Água ao pé da montanha: a imagem da Inexperiência. Assim o homem superior alimenta
sua personalidade sendo perfeito em tudo o que faz.
(I Ching – hexagrama 4)
Varlene tentou de tudo para que o inspetor fizesse sexo com ela. Mas justiça
seja feita: ela não era nenhuma ninfomaníaca descontrolada. Estava apenas
fazendo a minha vontade, cumprindo as minhas ordens. O fracasso daquela
manhã havia me deixado nervoso. Ninguém sabia disso tão bem quanto a
psicóloga, que por conta do episódio do dedinho buliçoso havia acabado de sofrer
as mais severas admoestações.
Varlene geralmente reservava o último horário do dia para reuniões de
supervisão comigo. Não era incomum que depois da reunião eu a levasse para
jantar ou para algum outro programa. Naquela noite em particular eu planejava
que ela me acompanhasse na festa em minha casa logo mais. Mas só depois que
eu desse vazão a toda frustração e ira pela falha dela na contratação de Teixeira.
Passei a maior parte de minha última hora com Varlene espezinhando-a o
mais que pude. Se soubesse que aquela seria a última hora que passaríamos
juntos, teria agido de forma diferente. Se bem que se eu soubesse disso, ela não
teria morrido. Pois tudo afinal não passou de um acidente.
O fator que precipitou os acontecimentos foi o retorno de Teixeira ao
consultório. Quando a recepcionista anunciou que o inspetor estava na sala de
espera, a princípio achamos que aquele era um inesperado golpe de sorte.
Pensamos que ele estava de volta apenas para terminar os assuntos inacabados
durante a sessão da manhã. De certa forma, ele estava mesmo.
Teixeira voltou a si com um sobressalto. Ele chegou a ficar meio tonto por
alguns poucos segundos. Teve a impressão de ter ouvido um barulho surdo,
mas logo descartou essa informação como sem importância. O ruído parecia ter
vindo de fora do consultório, de detrás da parede com a pintura de Pollock. Ao
se levantar, notou que suas mãos estavam dormentes em consequência do
choque.
É sabido que as paredes da vagina emitem uma descarga de 244 milivolts no
momento do orgasmo. A informação caiu no gosto do público e ganhou larga
divulgação na Internet. O povo se diverte ao imaginar que cinco mulheres
gozando podem acender uma lâmpada.
Essa pequena peculiaridade elétrica do orgasmo feminino é como a maioria
das informações que chegam até as massas, no tocante aos avanços das ciências
e tecnologias. O público sempre acaba recebendo alguma peça de informação
que, por si, não possui nenhuma relevância prática (“a vagina gera 224 milivolts
durante o orgasmo”). Some-se a isso uma situação pitoresca, alguma anedota.
Quanto maior a sugestão do ridículo, melhor (“com quantas mulheres gozando
se acende uma lâmpada?”). O resultado é esse pastiche, placebo de cultura
inútil, uma comunicação saturada de apelo emocional vazio e totalmente
carente de valor informativo.
As informações realmente importantes ficam completamente fora do
alcance do populacho. Informação é poder. Informação é dinheiro. Pela vitória
do Rei e pela honra da Rainha.
Poucos são os que sabem das reais possibilidades energéticas do corpo
humano. Caso estivesse dentro de Varlene no momento do fatídico orgasmo,
Teixeira teria sido seguramente eletrocutado. Nesse caso a narrativa de suas
aventuras teria sofrido um encurtamento abrupto e pouco conclusivo. Sorte a
dele, talvez, ter recuado diante dos intempestivos avanços da mulher.
Ela agora jazia ao lado da poltrona, esparramada no chão, a saia levantada, a
blusa rasgada, as pernas escancaradas. Um leve cheiro de ozônio emanava do
corpo. Não foi preciso muito tempo para Teixeira se certificar de que Varlene
estava morta.
Depois que devolveu o telefone sem fio à sua base na mesa da recepção, o
inspetor direcionou um olhar encorajador para Shirlei Maquilanei:
“Pronto. A polícia já está a caminho. Quando eles chegarem, quero que
você conte tudo exatamente como aconteceu.”
“Como assim? O senhor vai me deixar aqui sozinha?”
“Não há nada a temer agora. Você ficará bem. Só lhe peço que não entre no
consultório e nem mexa em nada, está bem?”
A recepcionista sacudiu a cabeça com veemência. “Entrar lá? De jeito
nenhum.”
“Quando a polícia chegar, mostre também o aposento oculto anexo ao
banheiro e explique como nós o descobrimos.”
“O que foi aquilo que nós vimos na tela do computador?”
“Ainda não sei.” Quando estava na sala de controle, o inspetor resolveu o
enigma simplesmente desplugando a tomada do monitor. “Pensando bem,
talvez seja melhor você não mencionar nada a respeito dessa parte por
enquanto.”
Quebrou a cara o inspetor, se pensou que poderia confiar em Shirlei
Maquilanei. Tão logo teve a oportunidade já foi segredar à inspetora Fátima,
designada para atender à ocorrência. Só que a recepcionista quase pagou a
língua, pois quando a polícia tentou ligar os equipamentos, o resultado foi uma
discreta e ainda assim impressionante explosão. Ninguém ficou ferido, que não
chegava a tanto. Mas agora todo aquele equipamento não passava de sucata.
Brancas avançam na quinta:
Continuamente doente, e ainda assim não morre.
O SINCRONICÍDIO
Texto e direção: Wagner Tirol
Com Olívia Charlene, Régis Vale e grande elenco
Nunca ouvi falar nesse tal de Wagner Tirol. Mas a julgar pelo título da peça,
só posso crer que foi Júlia a sua grande musa inspiradora.
A cortina subiu. Tudo estava envolto na penumbra, mas uma luz mortiça
permitia distinguir a estranha estrutura que dominava o centro do palco. Um
grave zumbido se fazia ouvir como trilha sonora.
Pela reação das pessoas ao seu redor, Teixeira percebeu que aquele cenário
era novidade para elas também. Eram claros os sinais da expectativa que havia
naquele momento. O inspetor teve a impressão de que começava a assistir à
peça justo no ponto mais esperado.
A grande sombra no palco parecia ter mais de quatro metros de altura. Só
podia ser a tal esfinge pós-moderna citada no programa. A sugestão de movimento
justamente quando seu olhar passava por um ponto da semi-escuridão na base
da esfinge levou Teixeira a descobrir que havia uma pessoa ali. Nesse momento
uma voz em off se fez ouvir, uma voz profunda, cavernosa, cheia de efeitos. Era
provavelmente uma gravação:
“FIAT LUX!”
Algumas luzes se acenderam no centro do palco, exatamente para onde
Teixeira estava olhando. Um murmúrio de admiração imediatamente percorreu
a plateia.
O alvo dos holofotes era uma mulher nua. Estava acorrentada entre as duas
colunas que eram as pernas da esfinge. Parecia estar desmaiada, a cabeça
pendendo sobre o corpo, as pernas e os braços mantidos abertos em xis pelas
correntes que a prendiam pelos pulsos e tornozelos.
Agora era possível perceber que a esfinge era coberta por placas de um
material negro fosco. Sua forma parecia vagamente humana: cabeça, tronco e
pernas. A mulher amarrada entre elas começou a se mexer, como se naquele
momento voltasse a si. Logo estava se contorcendo em um pânico bastante
convincente, tentando se livrar das amarras que a prendiam.
“Onde estou? Que lugar é esse?” O timbre e a entonação evocavam o
arquétipo da fragilidade feminina. O Cavaleiro Solitário em Teixeira sentiu um
intenso e momentâneo impulso de pular em cima do palco para resgatar a
Donzela em Perigo.
Era uma personalidade do momento, aquela atriz nua. Até mesmo um total
alienado da tevê como o inspetor reconheceria as feições e as curvas de Olívia
Charlene. Agora ele conseguia ligar o nome à pessoa, pois havia visto uma foto
de Olívia há pouquíssimo tempo. Foi quando folheava uma revista sentado na
sala de espera de Varlene Alberione.
De acordo com a reportagem, Olívia Charlene foi a modelo escolhida para
uma ousada e muito bem sucedida campanha publicitária de sabonete íntimo.
Acima da breve nota impressa, havia uma exuberante foto colorida, onde ela
aparecia fazendo menção de retirar o diminuto biquíni que era todo o seu
sumário traje. “Sem medo da exposição”, dizia o colunista da revista, não sem certa
malícia: “Olívia Charlene mostra ao vivo no teatro o que o Brasil inteiro já viu na tevê”.
A voz grave em off voltou a ser ouvida:
“Aluna, tomadas um e dois: PÉS!”
As colunas que cercavam a mulher se iluminaram da metade para baixo, e
logo ficou evidente que as placas negro fosco eram na verdade telas de tevê. As
duas telas na base da coluna mostravam cada qual o close de um pé até a altura
do tornozelo, que era enlaçado por uma cadeia de metal.
A voz falou mais uma vez:
“Discípula, tomadas três e quatro: COXAS!”
As duas telas na metade superior de cada coluna se acenderam, mostrando
closes de pernas femininas, que faziam uma conexão bizarra com os pés
mostrados nas telas de baixo.
“Pupila, tomadas cinco e seis: GLÚTEOS!”
Mais duas telas se acenderam na base do que seria o tronco da esfinge. Cada
qual mostrava a metade de uma roliça e carnuda bunda. A cada tela que ia se
acendendo, após a estranheza inicial, o olhar não demorava a reconhecer os
closes ampliados da anatomia feminina como pertencentes ao corpo da mulher
que ainda se debatia na base da esfinge. Só então eram percebidas as webcams
instaladas de forma a cercar Olívia. Bastante engenhoso.
“Discente, tomadas sete e oito: PEITOS!”
Os seios ao menos a esfinge possuía no lugar certo. E eram os mesmos de
Olívia Charlene, só que agigantados. Cada teta da esfinge era do tamanho da
mulher inteira.
O som grave do sintetizador veio descendo alguns tons a cada nova tela
acesa, até alcançar uma frequência muito baixa, bem próxima do limiar da
audição humana. A mulher passou a se contorcer com mais veemência.
Agora restava apenas uma tela ainda desligada, a maior de todas, que
correspondia à cabeça da esfinge.
“Estudante, tomada nove: GENITAIS!”
Dominando a tela, o olhar e a consciência de todos surgiu, em toda sua
resplandecência, a imagem em close da vagina de Olívia Charlene. A grossa
penugem castanha contrastava vivamente com a brancura da pele e com o rosa
acinzentado dos pequenos lábios, que se projetavam para fora como uma
vizinha fofoqueira na janela. A cada vez que Olívia se debatia, em movimentos
que certamente haviam sido estudados, a imensa vagina televisiva dava um salto
para a frente, como se estivesse possuída por vontade própria e por um voraz
apetite ainda não saciado.
O inspetor Teixeira, e não somente ele, teve um momento de apreciação
pelos esforços que uma jovem e talentosa atriz estava disposta a fazer pela
glória do teatro nacional.
“Que lugar é este? O que estou fazendo aqui?” Ela voltou a dizer.
“AÇÃO!” Gritou a voz cavernosa em off.
Era a deixa para a entrada de Régis Vale. O grave timbre do sintetizador, já
quase imperceptível, subitamente se desdobrou em cinco oitavas, uma sinistra
cacofonia de melodias e ritmos, música para a dança do sinistro personagem
que avançava até a boca de cena.
“Parabéns, aprendiz.” Ele parecia maior do que o inspetor lembrava, mais
imponente. “Você já começa fazendo perguntas relevantes. Gosto disso. Não
foi à toa que foi você a escolhida.”
O ator usava um estranho costume. Pelo corte, tratava-se de um traje
refinado, algo como um smoking ou dinner jacket. Pela costura, no entanto,
parecia mais a roupa de um mendigo. O casaco e a calça eram feitos de
remendos, pedaços de tecidos de tons diferentes cosidos uns aos outros, como
em uma colcha de retalhos. Sem contar que o próprio tecido utilizado na roupa
parecia esquisito, como uma espécie de couro. A exótica gravata feita com uma
tatuagem de dragão era a maior pista. À medida que ia se movimentando pelo
palco, Régis dava a perceber outras pistas, até que afinal a mente assimilava o
material de que era feita a sua bizarra indumentária: uma marca de biquíni em
local bem visível, logo acima do bolso do peito. Uma outra tatuagem, de um
coração com um nome, costurada na parte de cima da ombreira. Dois mamilos
se projetando dos fundilhos da calça.
“Responderei às suas perguntas”, disse Régis com os dois punhos na
cintura, fazendo pose de homem forte. “Seja bem vinda, educanda, ao Templo
da Verdade. Você está aqui, como já deve ter se tornado óbvio, com o
propósito de aprender. E de ensinar também. Você irá aprender o segredo por
detrás de sua existência. E irá ensinar o sabor de sua carne.”
“Oh, meu Deus.” Olívia parecia de fato angustiada. “Você é aquele a quem
chamam de profeta. O profeta canibal.”
Régis fez um gesto de desprezo.
“A mídia necessita do melodrama. Eu permito que tenham sua diversão.
Minha vaidade não é afetada por títulos. Pode me chamar assim, se você
quiser.”
Olívia se contorceu em sua prisão.
“Eu sei quem você é! Você é um monstro, um assassino louco! Um serial
killer!”
“Serial killer! Mas que anacronismo de sua parte, minha cara aluna. Não sabe
que um termo como esse simplesmente não se aplica mais?” Régis avançou
dois passos na direção dela, fazendo-a se encolher como um coelho assustado.
A química entre os dois estava perfeita. Ele segurou a mulher nua pelos
cabelos, obrigando-a a erguer a cabeça. “Olhe ao seu redor. Você pensa que
toda essa estrutura existe unicamente para a minha satisfação? Estamos sendo
transmitidos ao vivo agora mesmo pela Internet. Gostaria de mandar um alô
para nossos assinantes?”
“O que você quer de mim? Meu marido...”
Régis deu um violento puxão nos cabelos dela. Mais da metade da plateia se
encolheu no assento.
“Esqueça seu marido. Ele será plenamente compensado. Quanto ao que eu
quero de você, é muito simples: eu só vou lhe fazer algumas perguntas. Se você
não souber alguma resposta, eu ajudo você a entender.”
O homem no palco se afastou dois passos e fez uma mesura exagerada.
“Fui batizado como Zamireb Samir. Você verá que minhas intenções são
estritamente pedagógicas. Tudo o que desejo é realmente educar. E aprender.”
“Não me mate.” A voz da mulher transmitia um gélido e crescente terror.
A dona da genitália mais comentada do Brasil era ainda por cima uma boa atriz.
“Por favor, não me mate.”
“Silêncio na classe. E agora, minha tenra estudante, vamos começar a
sabatina.” De um bolso interno do casaco, Régis retirou um imenso cutelo.
Parecia bem real à distância. “Decifro-te e te devoro.”
“Você!”
Régis Vale deu um pulo da cadeira quando seu olhar cruzou com o de
Teixeira através do espelho. Como protagonista masculino, o ator tinha direito
a um camarim exclusivo. Ele estava tirando a maquiagem quando o inspetor
entrou. Já estava despido pela metade do traje que parecia feito de pele humana.
Assim à curta distância, longe das luzes da ribalta, o casaco pendurado de
qualquer jeito na cadeira e a calça que o ator ainda usava perdiam a aura de
magia cenográfica e mostravam bem que não passavam de peças de uma
fantasia. Junto com o cheiro de incenso que impregnava o camarim, o inspetor
sentiu um suave odor de maconha.
“Olá, Reginaldo. Parabéns pela excelente atuação. A segunda sua que eu
vejo. Você está cada vez melhor.”
Teixeira estava sorrindo quando disse isso. Mas o ator estremeceu, como se
um vento frio tivesse passado pelo camarim.
Pretas avançam na primeira:
Aproximação conjunta. A perseverança é propícia.
“Ora, mas que surpresa! Inspetor Alberto, não é mesmo? O senhor perdoe a
minha reação, mas é que eu realmente não esperava vê-lo. O que o senhor
deseja? Por favor, sente-se! O senhor por acaso não guardaria ressentimentos,
naturalmente. É claro que não, mas que ideia! Afinal, durante aquele lamentável
incidente, quando movido pela ilusão eu fui levado a atacá-lo, o senhor bateu
bem mais em mim do que eu no senhor. Tem certeza de que não deseja se
sentar? E do que se trata, afinal? Estou começando a desconfiar que esta é
meramente uma visita social e que o senhor veio aqui só para me cumprimentar
pela atuação na peça. O senhor assistiu ao espetáculo? O que achou? Espero
que tenha gostado. Olívia está deslumbrante, não está? Estou amando trabalhar
com ela. E que corpo lindo que ela tem! Mas estou divagando, o senhor me
perdoe. É que eu me sinto um pouco elétrico, depois das apresentações fico
assim. É a energia do palco, da plateia, essa magia toda do teatro, o senhor sabe.
É um pouco como cheirar, o senhor me permita citar só para o efeito da
analogia, só que atuar é muito, muito melhor. Casa cheia todas as noites, um
sucesso absoluto, comentários em todos os jornais. Quem tem aplausos não
precisa de pó. É por isso que eu parei com tudo, estou completamente limpo.
As drogas não estavam me levando a nada. Demorei, mas percebi. O senhor
duvida? Não tenho nada em cima. Pode até me revistar, se quiser. É claro que
quando estou falando de drogas não me refiro à marijuana, que é uma coisa
completamente diferente. A maconha só está proibida como droga por um
equívoco que certamente será desfeito muito em breve. A ganja não é droga. É
uma planta de poder. Um canal para a elevação da consciência. O próprio
Sidarta sobreviveu com uma dieta de um grão de arroz e uma semente de
cânhamo por dia. Uma semente de cânhamo, o senhor veja bem. E foi assim
que ele alcançou a iluminação.”
Brancas avançam na terceira:
Aproximação confortável. Se ele for induzido a lamentar o que ocorreu, torna-se livre de
culpa.
“Eu já paguei meu Karma. O senhor pensa que eu não sofri? Hoje estou
bem, por misericórdia do Sublime Tathagata. Quem me vê assim não diz, mas
eu penei muito na cadeia. Conheci os infernos quentes e gelados durante aquele
tempo preso, convivi com animais e com fantasmas famintos. Fui muito
humilhado, até pensei em me matar. Aliás, até hoje não entendo como
sobrevivi lá dentro. Teve noite em que servi para mais de oito, passei a primeira
semana cagando sangue, o senhor me perdoe a expressão pouco elegante, mas
verdadeira. Sofri muito, só eu sei. E hoje, graças ao Sublime, a minha saúde é
perfeita. Só mesmo o Iluminado para me livrar de ter pego alguma coisa na
cadeia. Sofri sim, paguei os meus pecados. Cumpri meu Karma. E hoje trilho o
caminho do Dharma, pois o senhor veja bem, eu encontrei no budismo uma
justificativa para a minha existência. Descobri a origem do sofrimento. E não
foi algo que eu li em um livro, não senhor. Eu vivi tudo na própria carne,
experimentei na própria pele. Eu estava no fundo do poço quando descobri o
budismo. Tatuado nas costas de um companheiro de cela, em quem finalmente
encontrei algum abrigo, vi um desenho que me fascinou. O meu interesse por
sua tatuagem, aliás, foi o que acabou nos aproximando. Ele me explicou o
desenho. Era a roda da existência cíclica, um diagrama sobre a verdade da vida
cujo original foi traçado pelo próprio Buda. Imagine só, encontrar algo assim na
cadeia! Antes de matar alguém em uma briga de bar e ser preso por isso, meu
companheiro havia estudado com afinco as religiões orientais, e passou a me
explicar o significado do desenho. E observe o senhor, uma semana e meia
depois que eu comecei a aprender sobre a roda, recebi uma visita de meu
advogado. Ele trazia excelentes notícias: o julgamento havia sido anulado.
Segundo me contou, ele havia descoberto uma tecnicalidade que tornava
inválido todo o processo. Não deveria ser tão difícil assim conseguir provas
para me inocentar, afinal. Eu não poderia ter cometido o crime. Nem conhecia
a vítima. Tudo o que falei sobre o episódio na época aprendi lendo uma revista
de escândalos, e o resto preenchi com a minha imaginação. Mas na ocasião em
que conversei com o senhor na delegacia, quando o senhor me bateu tanto
depois que eu tentei agredi-lo, tudo bem que eu merecia, mas o senhor tem
uma mão pesada, hem! Sobretudo porque naquele momento eu realmente
acreditava no que estava dizendo. Eu realmente achava que era um assassino, o
senhor entende, não é mesmo? Aliás, posso tratá-lo por você, afinal devemos
ter praticamente a mesma idade, não é necessária tanta formalidade. Bom,
como eu ia dizendo, fui totalmente inocentado de todo o incidente. Até me
ofereceram um acordo, um bom acordo, praticamente implorando para que eu
não movesse nenhum processo, coisa e tal. Isso para você ver. No final acabei
sendo considerado uma vítima. Que é o que eu realmente fui, a vida inteira,
uma vítima. Namu Amida Butsu.”
A cidade pode ser mudada, mas não o poço. Ele não diminui nem aumenta. O
povo que passa retira água do poço. Se a corda se parte ou termina quase ao
alcançar a água, isso é um infortúnio.
Água sobre madeira: a imagem do Poço. Assim o homem superior encoraja as pessoas em
seus trabalhos, e as exorta a se ajudarem umas às outras.
(I Ching – hexagrama 48)
“Não-faço-a-mínima-ideia-a-respeito-do-que-você-está-falando.”
O ator levou a mão à têmpora e semicerrou os olhos. Era como se o esforço
de dizer aquelas palavras houvesse sido demais para ele.
“Chega de teatro, Reginaldo.” O inspetor deu um passo à frente, o que fez
com que o outro, sobressaltado, recuasse. “O show acabou, caso você não
tenha reparado.”
“Sinto muito, mas não sei o que posso fazer para ajudá-lo”, balbuciou Régis.
Ele se apoiou contra a parede. Sua fronte subitamente brilhava de suor.
“Ajudar a mim? Você só pode estar brincando.” Teixeira se aproximou mais,
encurralando Régis no fundo do camarim. Encostou a mão na parede, com o
braço atravessado cortando possíveis caminhos de fuga. “Se conseguir salvar o
próprio rabo, já pode se considerar um felizardo. As pessoas estão morrendo
para valer aí fora, você sabia? Jorginho Príncipe e Luca do Urtigão bateram as
botas. Os dois hoje, no mesmo dia. Foram descartados que nem peões. Por que
você acha que vão demonstrar alguma consideração especial no seu caso?”
“Eu não sei do que você está falando”, repetiu Régis. “Eu não tenho nada a
ver com esses dois criminosos, já disse que estou limpo. Não estou com nada
em cima. Me deixe em paz.”
Os dois estavam bem próximos um do outro. A cena sugeria uma certa
intimidade. Alguém que entrasse no camarim naquele instante poderia ser
levado a conclusões errôneas, e dificilmente iria adivinhar que aquilo que estava
vendo era um interrogatório policial. A lembrança de Kim era inevitável para o
inspetor naquele momento. Isso podia explicar a fala pouco articulada, nervosa,
sumamente emotiva de Teixeira. A proximidade de Régis parecia deixá-lo
abalado. O inspetor se afastou e deu as costas para o ator.
“Você ainda não entendeu. Eu não estou procurando encrenca para você.
Você não me interessa. Eu sei que você está envolvido, mas meu assunto não é
com você.” Teixeira virou o rosto para encarar Régis. Seus olhos faiscavam.
“Tudo o que eu quero é que você me diga como posso encontrar esse homem,
Rogério Arcanjo Bastos. Daí talvez eu deixe você em paz.”
“Você não tem o direito de me tratar desse jeito. Eu quero falar com o meu
advogado.”
Régis cobria os olhos com a mão. Dava a impressão de que pretendia
chorar.
“Isso mesmo. Ligue agora para o seu advogado”, desdenhou Teixeira.
“Chame a atenção para si mesmo. Deixe o seu patrão avisado de que eu estou
chegando perto dele. Ele não vai demorar a concluir que isso só pode estar
acontecendo através de você. É a conclusão óbvia, você não acha? Ao menos
para o tipo de gente que você chama de patrão.”
“Mas do que você está falando? Que patrão é esse, meu Deus?” A voz do
ator soou estrangulada, no limite. “Só pode estar havendo algum mal
entendido, não sei.”
“Então você agora não sabe mais quem é o seu patrão.”
“Se esse é algum tipo de assédio racista, eu lhe asseguro que.” Novamente
Régis se viu interrompido de súbito, mas dessa vez foi um gesto e o olhar
ameaçador de Teixeira em sua direção que cortou sua fala.
“Deixe de conversa, sujeito. Minha paciência se esgotou. Pode começar a
falar sobre a Fábrica.”
A ordem do inspetor caiu no silêncio. Quando Régis finalmente respondeu,
sua voz soou cansada, a voz de um homem velho.
“Creio que você está se referindo a esse cartão que me enviou agora há
pouco.” O ator estendeu a mão até o balcão do camarim, onde havia deixado o
cartão da Fábrica. Ao devolver o retângulo impresso para o inspetor, deu um
sorriso triste. “Pensei que fosse uma brincadeira de Pablo.”
“Quem é Pablo?”
“Ele não tem nada com essa história. Pablo é”, e só depois de uma pausa,
“um amigo meu.”
Isso foi dito de tal forma que não seria inconcebível que suas faces
estivessem sendo tomadas por um abrasador embaraço. Só pela voz, o homem
dava a impressão de estar ruborizando. Vá ser bom assim.
“Se o tal do Pablo não tem nada a ver com essa história, como é que você
reconheceu na hora o cartão da Fábrica?”
O inspetor brandiu o retângulo branco de papel diante dos olhos de Régis.
A sua ira parecia crescer como uma onda, pois num impulso atirou o cartão na
cara do outro. Não chegou a ferir. Assustou mais do que feriu. Mas poderia ter
ferido. E muito. Vai que pega em um olho.
A reação de Régis Vale poderia ser indicada para algum prêmio. O ator foi
sábio em querer desarmar Teixeira antes de tudo. Ele não teve pressa em
responder. Mas quando começou a falar não quis mais parar.
“Quando eu disse que meu amigo não tinha nada a ver com a história,
estava me referindo à minha prisão. Esse, afinal, só pode ser o verdadeiro
motivo para sua visita, para você querer falar comigo. Lamento que isso tudo
tenha acontecido, sei que fui um empecilho para você, que atrapalhei a sua
investigação. Peço que entenda que eu era um homem doente, não sabia direito
o que estava fazendo, muito confuso. Peço que você me perdoe por ter lhe
agredido, mesmo porque você me bateu muito mais depois. Eu sei. Eu sei que
estava merecendo. Mas já apanhei demais. Já sofri o bastante na prisão, lembre-
se de que eu nunca matei ninguém. Eu acreditava que havia matado, mas isso
foi uma loucura, e não um crime. E mesmo assim eu já paguei mais que o
suficiente, com juros. Hoje eu só quero cuidar honestamente de minha carreira.
Por isso eu peço, eu imploro que qualquer que seja a questão que você tenha
comigo, deixe para lá, me perdoe, sinceramente, ou então que me diga alguma
maneira pela qual eu possa compensá-lo.”
“Você falou, falou, mas não disse nada sobre o cartão.” A voz de Teixeira
estava impregnada de desdém, mas alguém que o conhecesse a fundo saberia
que o discurso de Régis não deixou de causar impressão.
“Para mim era apenas uma brincadeira de Pablo.” Nesse momento o ator
ousou até crescer um pouco a voz e sair do sussurro que vinha empregando.
Mas logo amenizou com um sorriso cansado. “Ele gosta de fazer joguinhos
assim. Enviar um cartão sem nada escrito, bancar o misterioso, esse tipo de
coisa. Isso é bem a cara de Pablo. Para ser sincero, eu nem reparei direito no
desenho.”
“Como não reparou, se na hora em que eu falei da Fábrica você pensou
logo no cartão?”
“Quando vi você falando de fábrica, foi que lembrei do desenho. Não havia
reparado conscientemente.” Régis sacudiu o ar com a mão. “De qualquer modo
isso não tem importância. Não sei que importância esse cartão tem para você,
me desculpe, mas não significa nada para mim. Trata-se, evidentemente, de um
mal entendido.”
“Você é que está se fingindo de desentendido. Não pense que me engana
não.”
Régis resolveu pagar para ver.
“Escute, inspetor Alberto: já tolerei essa sua atitude o suficiente. Eu não sou
obrigado a escutar suas ofensas. Já lhe expliquei tudo o que pude. Agora, se
você não se incomoda, por gentileza eu gostaria de ficar sozinho, preciso mudar
essa roupa. Entre outras coisas.”
Quase que Teixeira perdeu a fé. Mas foi só por um instante. Logo o inspetor
voltava ao ataque.
“Acho que conheci esse Pablo. Um sujeito alto, magro, bem brancão. Ele
sempre anda com uma menina que é a cara dele.”
“O Pablo que eu conheço é moreno, baixinho e barrigudo.”
“Ah, então eu devo ter confundido com outra pessoa. Já sei, é porque os
nomes são parecidos. O nome desse camarada de quem estou lhe falando é
Joaquim. Kim, para os amiguinhos.”
“Kim ou Joaquim, não tem nada a ver com Pablo. Os nomes não são
parecidos.”
“Você está certo. Por que será então que confundi os dois? Só pode ser
porque os dois são amigos seus, não é verdade? Pablo e Joaquim, seus dois
coleguinhas que gostam de ficar mandando cartões para as pessoas.”
“Eu juro que não sei do que você está falando.”
“Você é mesmo teimoso, Reginaldo. Não sabe que quem jura mente?”
“Agora chega. Ou você faz alguma acusação formal ou ponha-se daqui para
fora.”
“Não tenha tanta pressa. Você ainda não falou nada a respeito de seu outro
amigo. Rogério Arcanjo Bastos, lembra? Ou vai me dizer que não conhece ele
também?”
Brancas avançam na quarta:
O poço está sendo recuperado. Nenhuma culpa.
O ator levou pela terceira vez a mão até a fronte. A outra mão recuou até
encontrar apoio na parede. Teixeira suavizou um pouco o tom da voz:
“O que é que você tem, rapaz? Está esquisito.”
Régis baixou a mão do rosto para fazer um gesto pedindo paciência. Logo
depois voltou a cobrir os olhos. Afinal murmurou:
“Você me perdoe. Dor de cabeça. Terrível.”
Teixeira segurou o outro pelo cotovelo. “É melhor você sentar um pouco.”
A trégua havia sido estabelecida. O pequeno gesto de humanidade de
Teixeira operou milagres. Durante o breve instante de silêncio uma muda
camaradagem cresceu entre os dois homens. Régis fez um esforço para sorrir e
acenou de leve com a cabeça em reconhecimento a Teixeira.
“Acho que o pior já passou. Obrigado.”
“É melhor você ver isso.”
“Eu não sei o que aconteceu. Até agorinha há pouco eu estava super bem.
Essas pontadas vieram do nada. Umas pontadas lancinantes, bem aqui.” Régis
massageou um ponto logo acima da têmpora direita. “Nunca senti uma dor
assim, que coisa horrível. Mas agora passou. Namu Amida Butsu.”
Quando Régis botou os olhos em Kim, pensou que era só mais um filhinho
de papai querendo ser enrabado. O rapaz parou o carro um pouco adiante de
onde Régis estava e ficou esperando. Parecia quase jovem demais para dirigir.
“E aí, lindinho? Vamos curtir uma legal?”
Régis veio rebolando, usou uma voz provocante, apertou o pau por baixo da
calça jeans quando chegou diante da janela do motorista. Naquela noite ou em
qualquer outra ele teria preferido ser o passivo. Mas afinal também precisava
comer. Estava ali, principalmente, pela grana. Por isso caprichou na pose e no
estilo.
Quando o garoto falou, surpreendeu pela voz grave, que Régis achou sexy.
“O problema, lindinho, é que meu preço é mais caro que o seu. Como é que
você vai fazer para pagar a diferença?”
Régis deu meia-volta e saiu andando. Ele estava correndo de engraçadinhos.
E principalmente quando eram adolescentes riquinhos dirigindo carros
importados. Filhos da mãe assim sabiam ser bem perversos quando queriam.
“Espere! Eu estava brincando.” A mão que se projetou da janela do carro
segurava duas notas de cem.
Régis estacou na mesma hora. Avançou para pegar o dinheiro. No instante
em que tocou nas notas, sentiu sua mão ser enlaçada pelas mãos do rapaz.
Ficaram os dois por um instante assim, de mãos dadas, como se jurassem
amizade eterna. Ao lembrar-se depois daquele momento, Régis teve a
impressão de ter sentido um formigamento ao longo do braço. Antes de
libertar sua mão do meio das dele, o rapaz colocou a cara na janela, sorriu e
disse:
“Parabéns, você está contratado. Considere essa quantia um adiantamento.
Se você souber como me agradar, haverá algo bem melhor esperando.”
“O que pode ser melhor que dinheiro? Só se for mais dinheiro.”
“Isso você irá descobrir ou não, a depender de sua performance. Agora
entre no carro.”
Régis entrou no carro.
Fosse pelo acúmulo de dores a que estava sendo submetido e que minava a
sua vontade; fosse pela intensidade do tapa, que o reduzira à total submissão;
fosse ainda pelos tempos de ânus profissional, que o deixaram acostumado a
propostas como a que o inspetor fizera. Fosse qual fosse a explicação, o fato é
que Régis não hesitou em aceder. Em um lapso de tempo, já estava nu e de
costas para Teixeira. Desejoso de realçar a própria exuberância glútea, o ator
empinou a coluna e empalmou os quadris. Ele virou a cabeça e lançou um olhar
para Teixeira, um olhar oblíquo, enviesado.
“Ora, mas o que temos aqui.”
A moeda de cobre mal se destacava contra o tom da pele de Régis Vale, que
era da cor do chocolate meio amargo. Para se certificar de que estava mesmo
afixada na base da coluna, o inspetor teve que tocá-la.
“O quê, isso? Um sinal de nascença”, respondeu Régis. Ele arfava um
pouco. “Até que é bonitinho, né?”
“Se isso aqui é um sinal de nascença, você é o R2-D2, pois isso aqui foi
obviamente fabricado. É esse o negócio da tal Fábrica? Isso é o quê, um novo
tipo de droga?”
“Ai, meu Deus. Começamos a não fazer sentido de novo. Juro que não sei
do que você está falando. Mas que paranoia!”
“Você não sabe do que eu estou falando? Você não disse que a tal da
moedinha japonesa havia sido arrancada na prisão? O que é que isso está
fazendo aqui, então?”
“Ai. Seu bruto. Mas é claro que eu perdi a moeda na prisão. Isso é um sinal,
quantas vezes eu preciso repetir? Será que você ficou cego?”
“Cego, é? Pois eu vou esfregar o sinal na sua cara.”
“Mas o que é isto? Está louco! Pare, ouviu? Ai.”
Teixeira finalmente desistiu de tentar arrancar a moeda da bunda de Régis.
Por um momento os dois quedaram parados, ofegantes. Provavelmente foi
Régis quem riu primeiro. Mas se foi, logo estava sendo seguido pelo inspetor. A
situação era por demais ridícula.
Quando as gargalhadas finalmente cessaram, a tensão havia se dissipado.
Por fim, Teixeira disse: “Eu tive uma ideia. Vista-se. Precisamos ir.”
CAPÍTULO 23 – DESINTEGRAÇÃO
“Alguma de vocês sabe onde fica uma casa com a estátua de um golfinho no
jardim?”
Teixeira sentiu-se um pouco ridículo ao formular a pergunta em voz alta.
Ele caprichou um pouco mais no sorriso. Talvez tenha chegado a pensar em
puxar uma ou duas notas da carteira, para seguir o velho clichê do cinema,
como um estímulo para que as três mulheres diante dele fizessem um esforço
extra para se lembrar. Mas se pensou, do pensamento não passou. O salário de
policial não dava para essas extravagâncias e, além do mais, simplesmente não
era assim que a coisa funcionava. Se Teixeira tivesse mostrado sequer uma nota
de dez para uma daquelas garotas de programa, ela o teria ensinado a chegar em
qualquer lugar, aqui ou na China, fosse o endereço certo ou não.
Ele tampouco quis se identificar como policial. Havia outras abordagens.
Quando parou o triciclo, as três estavam envolvidas em uma acalorada
discussão. Talvez debatessem o excesso de oferta para a escassa demanda,
problema que a chegada dos dois homens parecia solucionar. O inspetor não
quis estragar tão assim de súbito a expectativa delas de lucro revelando que ele
estava ali a trabalho e que Régis, bem, esse estava mais para concorrência que
para clientela.
A ideia de perguntar às meninas no calçadão da praia do Poeta só ocorreu a
Teixeira depois que os dois estavam rodando a esmo já há um bom tempo.
Régis simplesmente não conseguia se lembrar onde ficava a tal casa para onde
Kim o levou. Os achaques de dor de cabeça o haviam debilitado. Logo que
percebeu que as pontadas eram causadas por ele mesmo, por seus próprios
pensamentos, Régis entrou em um estado de ansiedade definitivamente
patológico. Sua mente estava próxima de um curto-circuito.
O medo de ser picado de cobra pode conter um veneno pior do que a
própria picada. O resultado é que Régis ficou apavorado, pisando na ponta dos
pés no terreno tão íntimo das próprias memórias, que agora lhe pareciam tão
abjetamente aviltadas. Ainda assim, ele fez o que pôde:
“Era uma casa grande, bonita. Era casa mesmo, não era apartamento. Era
uma mansão, é isso. Uma mansão. Lembro que havia alguma espécie de jardim
na entrada da casa. Era um jardim bonito, tinha uma fonte com a escultura de
um golfinho. Quando passamos diante da fonte, Kim comentou que os
golfinhos, assim como os homens, também praticam o sexo só por prazer.”
Isso foi o máximo que Teixeira conseguiu arrancar dele. Depois disso, o
ator entrou em um mutismo obstinado, que o inspetor achou por bem
respeitar. E assim, munido com uma vaga descrição e a lembrança de uma
estátua de golfinho, foi parar na praia do Poeta, onde Régis estava quando foi
abordado pelo rapaz no carro importado. Ir indagar às putas poderia ser
encarado como desespero de causa. Mas Teixeira estava com sorte.
“Eu sei onde é”, sorriu para o inspetor a mais bonitinha das três, uma
morena de olhos achinesados. “Tem que dobrar ali no final da praia. Eu já fui a
uma festa nessa casa. Tem um golfinho no jardim, é uma casa engraçada. Ao
invés de anões, golfinhos. Sabia que os golfinhos adoram trepar?”
CAPÍTULO 12 – ESTAGNAÇÃO
Mas a bravura do inspetor não chegou nem a cinco metros. Mal deu alguns
passos e sentiu a vista escurecer. Teria desabado no chão não fosse a mão
amiga e providencial.
“Olá, mas para quê essa pressa? Não acha melhor esperar pela chegada da
ambulância? O senhor certamente está precisando de cuidados médicos.”
Quando conseguiu voltar a si, Teixeira ergueu os olhos para fitar o rosto do
homem que o havia amparado no momento certo, evitando o que poderia ter
sido uma queda feia.
“Você!”
“O senhor me conhece?”
O inspetor ficou sem fala por alguns instantes. Olhava estupefato para o
rapaz de cabelos compridos, bem apessoado. Finalmente Teixeira conseguiu se
aprumar e dizer: “Você sofreu um acidente de moto hoje de manhã, na rua
defronte onde eu moro. Eu ajudei a socorrer.”
O rapaz pareceu alarmado. Mas logo sorriu. “Acho que o senhor está
invertendo um pouco as coisas. Quem acabou de sofrer um acidente de moto
foi o senhor.”
“Moto, não. Moto, não. Triciclo.”
“Tudo bem, um acidente de triciclo, que seja. Não quis ofender. E desde
quando dirigir moto é ofensa? Eu mesmo piloto uma.”
O jovem falava de modo jocoso, mas era evidente que havia ficado um
tanto apreensivo. E seu desconforto só pareceu aumentar quando Teixeira
enunciou numa voz curiosamente desprovida de entonação: “Sim, eu sei que
você pilota. Uma TFX 650 preta com um camaleão aerografado no tanque.”
“Ei. Como sabe disso?”
O inspetor limitou-se a fitar o rapaz. Os dois ficaram se olhando por alguns
momentos. Quando o jovem voltou a falar, sua voz havia adquirido um tom
monocórdio, destituído de emoção.
“Onde foi mesmo que aconteceu esse acidente de moto que o senhor
mencionou?”
“Foi defronte a meu prédio, na rua Capitão Gregório, esquina com a
avenida Abelardo Lacerda. Um raio derrubou uma árvore bem na hora em que
você estava passando com sua moto.”
“Vou ficar longe dessa rua na manhã de hoje. Quer dizer, de agora em
diante.”
O rapaz sorriu, mas a persistente indagação no olhar do inspetor não
esvaeceu. Um minuto de mudo constrangimento foi interrompido pelo som de
sirenes ao longe. Teixeira começou a se afastar, mas continuava voltando a
cabeça para fitar o jovem de jaqueta e calça jeans que não resistiu a repetir:
“Mas que pressa é essa? A ambulância já está chegando, calma! O senhor
precisa ser medicado.”
“Eu preciso encontrar uma casa que tem um jardim que tem uma fonte que
tem uma escultura de golfinho.”
O rosto do rapaz se iluminou em um espontâneo sorriso. “Eu sei onde fica
essa casa! É bem pertinho daqui, uns dois quarteirões.” Como se ele achasse
necessária a explicação, acrescentou em seguida: “Eu ando bastante por aí,
acabo conhecendo todas essas ruas. Mas por que o senhor precisa encontrar
essa casa assim com tanta urgência?”
Teixeira normalmente teria abominado aquele gesto, mas no momento ele
tinha mesmo pressa. Abriu a aba do casaco para exibir ao mesmo tempo o seu
distintivo e a arma debaixo do braço. “Assunto de polícia. Como é que eu faço
para chegar nessa casa?”
A postura do rapaz não sofreu alteração visível diante da revelação de que
Teixeira era um policial. “É só continuar nessa rua e dobrar à esquerda na
primeira esquina, daí suba a ladeira até o fim. Essa casa é a última da rua. É uma
casa grande de três andares, bem vistosa, não tem como errar.”
“Agradeço.”
“Ora, não tem de quê.”
“Muito obrigado também por ter me socorrido ali atrás. Eu agradeço
sinceramente.”
“Mas não foi nada, por favor, nem pense nisso.” O rosto do jovem voltou a
se iluminar em um sorriso. “Se o senhor quiser, posso lhe dar uma carona até
lá. Eu estou de moto.”
“Não, obrigado. Acho que vou andando mesmo. Eu estou bem. Está
parecendo pior do que foi na verdade.” Os dois já haviam se afastado alguns
passos quando Teixeira voltou-se para dizer: “Sabia que você tem um gosto
muito estranho para música?”
De tudo o que aconteceu nesse dia, esse momento para mim foi um dos
mais misteriosos. Teixeira e o rapaz se entenderam. Só eu fiquei de fora. Fazer
o quê? Toda história tem uma parte que quem está contando não entende.
Não foi difícil encontrar a casa. Como ficava no topo da ladeira, foi
construída em terreno plano. Era cercada por um muro baixo com grades, que
permitia a visão do jardim. E lá estava a fonte, bem à vista, com a sua já tão
falada escultura de golfinho. Não era particularmente imponente ou graciosa,
em minha opinião. Apenas bonitinha.
O inspetor parou diante do portão da casa. Não havia ninguém ocupando a
guarita da segurança. Teixeira logo notou a câmera que o estava filmando.
Ficou por um tempo encarando a câmera, até que finalmente apertou o botão
do interfone. Nada aconteceu. Ele apertou novamente a campainha durante
algum tempo. Dessa vez, o inconfundível zumbido seguido de um estalido seco
fez notar que o portão menor, destinado ao acesso de pedestres, havia sido
aberto. Teixeira empurrou o portão e entrou.
Em uma noite normal, não teria sido tão fácil assim entrar na minha casa. É
que justamente naquela noite acontecia uma festa. Eu dava festas com muita
frequência. No mínimo uma, no máximo três por mês. As pessoas ficavam
espantadas com o quanto eu gastava, sem perceber que as coisas mais
importantes não têm preço. Que meus ilustres convivas continuassem se
empanturrando com a melhor carne e o vinho mais doce, com a droga mais
pura e o sexo mais depravado. Enquanto continuassem vindo às festas, isso só
queria dizer uma coisa: eles eram meus brinquedos.
E é por isso que eu dava essas festas: para me divertir com os meus
brinquedos. Bem cedo cansei das tramas mais elaboradas, pois davam muito
trabalho e só me desviavam do propósito erótico original do jogo.
Progressivamente fui deixando vir à tona a crua natureza do desejo. E foi assim
que as festas originais, verdadeiras pérolas do psicossexodrama, se é que tal
coisa existe, foram gradualmente transformando-se em surubas anônimas e
orgias indistintas. Sexo, sexo, sexo, sem o menor toque de personalidade,
admito sem pejo. Durante um bom tempo tive orgulho de que assim fosse. Mas
a verdade é que toda brincadeira chega um dia que enjoa. Não tenho vergonha
tampouco em assumir que aquele trepatrepa desgovernado também já estava
me entediando.
O mesmo não podia ser dito de meus alegres convidados, pois festa após
festa continuavam regalando-se de sexo, drogas e hors d’oeuvres com o mesmo
entusiasmo incansável de sempre. Para mim, assim estava ótimo. Ajudava a
manter a família unida.
Nem tudo eram flores. Um problema que logo se tornou evidente nas festas
foi o relaxamento da segurança. Todas as equipes de vigilância eram compostas
de pessoal contratado da Fábrica. Então não havia como deixá-los de fora da
festa. Normalmente eu fazia vista grossa, mas sabia que um dia isso iria acabar
custando caro.
Então Teixeira chegou diante do portão de minha casa, e não havia ninguém
na guarita do segurança. Ele apertou a campainha do interfone, e logo alguém
abriu a porta para que ele pudesse entrar.
Como isso pode ter acontecido? Um pequeno mistério doméstico pode não
intrigar tanto quanto os profundos enigmas universais, mas pode causar bem
mais aborrecimentos. Tudo considerado, só posso imaginar que tenha se
passado assim.
Aquela era uma noite de festa. Por esse motivo o segurança Adamastor, que
deveria estar na guarita do portão, no momento em que Teixeira chegou estava
enrabando ou sendo enrabado pelo novato gordinho do setor financeiro.
Decidi apelidá-lo Fred, por lembrar um pouco a figura do patriarca dos
Flintstones.
O que estava acontecendo entre os dois era mais comum do que se pensava,
menos do que poderia se esperar. As festas tinham por apanágio a
promiscuidade, a pluralidade e diversidade sexual total. Nesse contexto, a
monogamia era não somente de extremo mau gosto, mas também um gesto de
afronta e rebeldia diante do status quo. Ao menos em nosso mundo. Em meu
mundo.
Fazer sexo com alguém em separado, durante as festas, já era uma
excentricidade pouco tolerada. Afinal quem quisesse transar a dois ou mesmo a
três que fizesse isso em sua própria casa, não era para mixarias que eu dava
essas festas.
Ficar com a mesma pessoa durante duas festas seguidas seria uma conduta
francamente hostilizada, e o casal infrator estaria sujeito a ser ridicularizado
abertamente pelos outros participantes e até mesmo vitimado por brincadeiras
de gosto duvidoso.
Uma dupla que ousasse permanecer junta por três festas seguidas seria
tratada, pelo contrário, com o mais profundo desdém e indiferença. Esse seria o
mais seguro sinal de alerta para os que estavam ameaçados de exclusão social:
para fazer alguém entender a força do grupo, nada como uma muralha de
silêncio.
Se minha suposição estiver correta, como explicação mais provável para a
ausência de Adamastor em seu posto na guarita bem no início da festa, aquela
era a quarta vez seguida que meu segurança e o Fred do financeiro se
embolavam na grama, por assim dizer. Isso colocava os dois além da faixa
amarela, já não era nem mais namoro, era noivado com promessa de
casamento. Era um escândalo tão gritante, que a falta profissional de
Adamastor ausentando-se de seu posto, em comparação, parecia até menor. A
situação era realmente grave.
O fato de os dois envolvidos no romance serem homens não fazia a menor
diferença. Conceitos como hetero e homo simplesmente não se aplicavam. Eram
muito antiquados para descrever a hierarquia sexual existente na Fábrica.
Eu bem que deveria ter dado uma prensa no Adamastor! E esse novato
folgado não merecia menos. Surpreendente pensar que eu possa ter deixado as
coisas saírem do controle desse jeito. Mas agora isso não importa mais. É
passado.
Quanto à segunda parte do mistério de como Teixeira entrou fácil assim na
casa, a solução é bem óbvia. Além da guarita da segurança, o interfone externo
era conectado também, dentre outros pontos da casa, com a copa. A copa era
responsável pela liberação e entrada de mercadorias diversas, tais como os
inúmeros suprimentos necessários para a realização de uma festa. E sempre era
necessário mandar vir algo de última hora. Por isso é razoável supor que o
pessoal da copa estivesse atento ao interfone da rua. Já posso até ver Cesário, o
chefe da copa, observando no monitor a figura que olhava com petulância
diretamente para a câmera, um homem despenteado, com a roupa amassada e
rasgada, aparentemente sujo de sangue. A que conclusão imediatamente chega
nosso bravo Cesário? O homem rasgado e sujo é um convidado para a festa. E
sem hesitar abre a porta para que o sujeito entre. Típico.
É claro que não posso condenar Cesário, a julgar pelos convidados que
meus convidados ultimamente vinham trazendo. Mendigos, meninos de rua,
prostitutas do cais, atrações de circo, quanto mais exótico melhor. Cesário não
era realmente culpado, até porque essa não era a função dele. O que não podia
ser dito a respeito do segurança Adamastor. Esse me escapou. Ah se eu tivesse
pegado ele de jeito na época! Garanto que ele iria receber um belo de um chute
bem onde o Fred Flintstone adorava lamber.
Autor!
CAPÍTULO 37 – FAMÍLIA
O Rei atinge a Plenitude. Não fique triste. Seja como o sol ao meio-dia.
Tanto o trovão quanto o relâmpago: assim o homem superior decide processos penais e se
desincumbe de punições.
(I Ching – hexagrama 55)
“Olá, filho.”
Foi tudo o que me ocorreu dizer depois que desentalei da garganta o imenso
cacete de Armando, nosso gerente de informação.
Quando dei por mim ele já estava me encarando há nem sei quanto tempo,
esse homem vestido em andrajos ensanguentados e espantosamente parecido
comigo. Era a primeira vez que nos fitávamos nos olhos. Ele parecia bem
machucado. Olhava para mim como se fosse uma barata viva o que havia
acabado de sair de minha boca. Mas tirando essas e outras pequenas
dessemelhanças, e também uns quinze anos e a mesma quantia de quilos, era
como se eu estivesse me olhando no espelho.
Teixeira entrou no salão quando a putaria estava no auge. Imagine o quê,
umas sessenta, sessenta e cinco pessoas transando como loucas, umas por cima
das outras, como se o mundo fosse acabar antes do sol nascer. Estávamos no
salão romano, o meu preferido indisputável a qualquer momento. Por esse
motivo, e não sem uma dose de malícia, aquele espaço era também conhecido
como sala do chefe.
Todo nome diz alguma coisa, denuncia. Denominar é delatar, é também
trair. Quando chamei o aposento de salão romano, penso ter batizado com
bastante propriedade. Pois estava me referindo não somente aos bacanais aos
quais o salão era destinado. Havia também a decoração, a mobília, os leitos, as
almofadas, as cortinas, as mesas abarrotadas de iguarias e de toda sorte de
bebidas e drogas, a iluminação indireta do salão, ocultando ou disfarçando
habilidosamente qualquer evidência de tecnologia. Daí eu ter chamado de salão
romano. O nome tinha um propósito, caramba. Os romanos é que sabiam das
coisas.
Tais como transar degustando. As drogas e etílicos eu deixava para uso de
meus caríssimos convidados. O meu próprio apetite era bem mais modesto,
relativamente. O que fazia a minha cabeça na época era sexo indiscriminado
associado à ingestão de aves semicremadas: codorna grelhada, peito de peru
defumado, coxa de pato com laranja, coxinha de galinha, empadão de frango.
Era o que me fazia gozar naqueles tempos: a sinestesia. Comer e comer, prazer
por cima de prazer. Quanto ao motivo de minha predileção pela carne de aves,
jamais me interessou saber.
É que em matéria de prazer cada um sabe do seu, assim como cada qual é
que sabe quando, quanto e como lhe dói sua dor. Creio, como Sócrates, que o
prazer e a dor estão indissoluvelmente ligados. Em todo tanto de prazer existe
um tanto de dor. E vice-versa. Essa ideia me proporciona um magro consolo
face à ideia da morte, que é saber que ao menos um tanto se goza quando se
morre.
Sei que o tempero do sexo é a variedade. Por isso nas festas que eu dava
havia sempre dois outros salões funcionando simultaneamente. O salão
medieval destinava-se aos apreciadores de sadomasoquismo. E o salão espacial
destacava-se pela quantidade e diversidade dos mais inusitados apetrechos e
brinquedinhos eletrônicos. A minha estimativa era que entre trinta e cinquenta
pessoas estivessem naquele momento presentes em cada salão.
Não era uma suruba mixuruca qualquer. Minhas festas tinham classe,
imaginação, estilo. É por isso que algumas brincadeirinhas maldosas eu
simplesmente não admito. Não admito.
Falhei em perceber que o primeiro apelido que deram ao salão romano, sala
do chefe, já era em si uma afronta, já demonstrava uma petulância. Não devia ter
permitido a brincadeira. Pois logo veio outra pior, uma ofensa direta e pessoal.
Chamar o meu salão romano de bandejão.
A maldade desse apelido justificava-se pelo fato de não constar o bufê na
decoração dos outros dois aposentos. Não era o suficiente a bebida a rodo, não
bastava a droga liberada, a escória sempre encontrava um motivo para se
queixar, para ofender o éter com suas rudes tentativas de ironia. Cambada de
imbecis! Eram incapazes de perceber que uma bandeja com salgadinhos
simplesmente não combinava com uma masmorra medieval ou com uma nave
espacial.
Para isso existiam três ambientes diferentes. Quem gostava de um pouco de
tortura em seu sexo tinha o salão medieval para extravasar suas tendências de
forma sadia, em grupo. É claro que eventualmente ocorria o exagero e alguém
saía mais seriamente ferido. Mas todos entendiam que o risco fazia parte do
jogo. Embora a maioria dos contratados fosse bem jovem, ninguém ali era mais
criança. O mesmo podia ser dito a respeito dos usuais frequentadores do
terceiro salão. Os fetichistas e os tecnologicamente orientados não tinham do
que se queixar no salão espacial, onde dispunham de um acervo para tarado
nenhum botar defeito. E finalmente, para os que como eu preferiam a boa e
velha safadeza, e que também gostavam de um belisquinho antes, durante e
depois, para nós todos existia o salão romano. Todos podiam circular
livremente por qualquer um dos salões, não havia qualquer restrição quanto a
isso.
O apelido de bandejão era perverso e ingrato. Como os piores apelidos, que
grudam e nunca mais largam da gente. Ninguém ainda havia ousado se referir
dessa forma ao salão romano na minha presença. Isso me dava essa fraca defesa
contra a humilhação, que era fingir não saber de nada. É certo que a situação
não poderia continuar assim indefinidamente.
Bandejão, sobretudo por vir em sequência a sala do chefe, sugeria
grosseiramente que para que alguém pudesse comer algo em minha festa era
obrigado a transar por isso. Ao menos essa foi a minha interpretação quando
soube desse apelido ridículo.
Isso era obra de algum novato, certamente. Um precioso lampejo criativo de
algum geniozinho recém-desmamado, que não havia compreendido ainda a
extensão de seu cabresto. Doce inocência!
É claro que cada um tem que transar por sua comida! Isso é verdade dentro
e fora da Fábrica.
(Não que exista realmente algum lugar fora da Fábrica, ou pelo menos fora
de sua área de influência. A Fábrica opera em uma escala muito mais ampla que
boa parte das pessoas consideraria crível. Muita gente, por exemplo, até hoje
não acredita que o homem pousou na Lua.)
Mas a inocência não é desculpa para a ofensa. Em toda aquela casa imensa e
tão intensamente frequentada, naquele momento talvez doze jovens ânus ainda
não tivessem recebido minha atenção direta. Mas ninguém saía perdendo por
esperar.
Meia dúzia de garotas, talvez o mesmo tanto de rapazes, todos contratações
recentes que por um motivo ou outro eu ainda não havia conectado
pessoalmente. Só podia estar entre os doze o traidor.
Eu tinha certeza de que iria descobrir o autor do infame apelido. Tudo o
que eu precisava fazer era me inteirar a respeito dos novatos e novatas,
conhecer cada um deles pelo nome, ganhar a intimidade, fazer o que fosse
preciso.
Esse Armando, novato da equipe de informação, era simplesmente o
terceiro de minha lista. Quando o distingui no meio da massa de corpos que
copulavam, Soraia e Cristina, duas veteranas de seu setor, ocupavam-se em
lamber o membro teso e excepcionalmente grosso de Armando. Seu pênis mais
parecia um imenso tomate.
Sinceramente, Armando nem chegava a ser um suspeito. Sendo homem de
informação, ainda que novato, era inadmissível que cometesse um erro tão
grosseiro de julgamento. Era mais que razoável supor que não tivesse nada a
ver com o apelido. Eu é que havia resolvido apelidá-lo: Tomate. E assim do
simples nome se fez verbo. Pois foi só pensar em tomate que me deu vontade
de saborear.
Sem fazer muita cerimônia, juntei-me aos três. Ao reconhecerem quem eu
era, Cristina e Soraia se abriram em sorrisos, as duas vadias. Mas as minhas
atenções foram todas para Tomate. Sem dúvida a mais esperta e gananciosa,
Cristina logo me cedeu o lugar e se posicionou de forma a me prestar as
mesmas gentilezas que estava dispensando a Armando. Não fazia mais do que
sua obrigação. E nem saía perdendo nada. Pois nem só de tomate se compõe
uma dieta saudável. Mandioca também faz bem.
Já Soraia, menos esperta mas tão ambiciosa quanto, demorou um
pouquinho mais a perceber que eu não precisava de auxílio para cuidar de
Tomate. Mas que se dê crédito à sua submissão: docilmente acedeu em ajudar
Cristina em sua degustação de aipim.
E por falar em degustação, eu já estava quase pronto. A qualquer momento
iria querer penetrar ou ser penetrado. Ou ambos. E liberar a boca para mastigar
e engolir. Já estava estendendo a mão para a bandeja onde me aguardava o
faisão assado ao estilo indiano, cuja receita eu mesmo havia escolhido na
Internet.
Foi nesse momento que percebi meu filho todo ensanguentado e parado
bem na minha frente.
Para mim foi certamente uma cena de tragédia.
Imagino o que Aristóteles diria.
Tirei de dentro do cofre uma pequena bolsa de veludo preto, amarrada por
um cordão preto. Desamarrei o cordão e estendi o conteúdo da bolsa com as
mãos em concha, gesto inequivocamente prenhe das mais pacíficas intenções.
Havia cinco diamantes brilhantes como estrelas repousando em minhas mãos
estendidas, cada um deles um pequeno astro-rei de esplendor.
“Quero que fique com isto. Antes de dizer qualquer coisa, peço que me
escute. Eu soube que você existia há pouquíssimo tempo, não faz nem um mês.
Fiquei muito surpreso, pois sempre me disseram, bem, que sua mãe havia
abortado o bebê. Entenda que foi uma grande surpresa para mim, mas que me
deixou muito feliz. Estava me preparando para encontrar você. Esses
diamantes, separei para lhe dar. Sei que não compensam uma vida de ausência,
Alberto. Veja isso apenas como um começo. Um gesto de amizade.”
Os olhos de Teixeira também haviam adquirido um raro brilho. Como ele
não deu nenhum sinal de que iria aceitar, mas também não recusou em um
acesso de fúria ou coisa assim, deixei a bolsa de veludo preto em cima da mesa
de vidro diante dele. Esperava que fizesse um pouco de doce antes de embolsar
os diamantes. Já estava bem menos abatido, sentia a confiança voltando. E daí
que meu filho me pegou com a boca no tomate? Eu era um pai rico, e os ricos
têm direito a suas extravagâncias.
Quando Teixeira falou, foi como se estivesse acompanhando meus
pensamentos: “Pela quantidade de moedas em seu cofre, você deve ser o Tio
Patinhas.”
Eu havia inadvertidamente deixado a porta do cofre aberta. Esqueci que
Teixeira era capaz de ver as moedas. Nem eram tantas assim. Menos de
trezentas, empilhadas em grupos de dez e de vinte.
“Então quer dizer que você é o mandachuva por aqui”, continuou ele.
“Imagino que todas essas pessoas que vieram hoje para a sua festa do cabide
têm uma moeda dessas colada na bunda, não é verdade? Pelo menos todas as
bundas que eu vi tinham.”
“Você possui uma habilidade muito rara, Alberto. Só pode ter herdado de
mim. Ficaria muito espantado se eu dissesse que a maioria dessas pessoas que
você viu nos salões não consegue enxergar essas moedas?”
Teixeira avançou um passo em minha direção.
“E é isso o que lhe dá o direito de querer ser o rei dos fantoches? Essa
habilidade, como você diz? Diga-me uma coisa. Quantas pessoas em sua
festinha estão aqui hoje por vontade própria? Ou foram obrigadas a se
degradarem assim por conta dessas moedas que você guarda tão avidamente no
cofre? Aliás, que livro é aquele?”
De todas as perguntas que o inspetor fez, agarrei-me à última. Parecia a mais
segura. Tirei o livro do cofre e passei para ele.
Teixeira dividia-se entre o curioso e o desconfiado. Examinava o livro e a
todo momento me lançava olhares sombrios, como se me desafiasse a
questionar sua capacidade de entender italiano. Mas não era necessário
conhecer intimamente a língua de Dante para se fazer uma pergunta pertinente.
“O que esse livro tem para ficar guardado em um cofre?”
Era um exemplar de La Coincidenza.
“O valor é meramente afetivo. É a única lembrança que tenho de uma
viagem que fiz à Itália em minha juventude.”
Teixeira tinha que ler o nome escrito na capa: “Mario Bodoni? Nunca ouvi
falar.”
Velhos hábitos são difíceis de matar. Algum resquício do vício antigo
sempre fica. Permanece. Tal como o cocainômano que consegue parar de
cheirar e anos depois, ao ouvir a casual menção à cocaína em uma conversa
qualquer, não consegue evitar a delatora fungada, o franzir das narinas, a
palpitação muda das pálpebras, o clamor surdo da velha fome. Mesmo que a
linha tenha sido partida, o anzol, ou ao menos a cicatriz do anzol continua
pendurada na alma. Da mesma forma aconteceu comigo, ao ouvir pronunciado
em voz alta o nome de il Dottore. Anos e anos havia desde que aquelas palavras
me fizeram tremer pela última vez. Ainda assim, não consegui reprimir a careta
antecipatória da dor.
O inspetor notou o meu desconforto. “Algum problema? Parece que você
não gostou de ouvir o nome do autor do livro. Mario Bodoni.”
E novamente não pude conter o cesto, o tique denunciador. “Eu disse que
guardava o livro como uma recordação de minha juventude. Não disse que a
recordação era boa.”
Teixeira não era bobo. “Hoje mesmo eu vi uma reação parecida com essa
sua, só que bem mais intensa. A mesma coisa aconteceu com Régis Vale. Ele se
jogou no chão uivando de dor quando ouviu certo nome ser pronunciado.”
Eu necessitava de uma mudança radical na abordagem.
“Entenda, eu sofri uma espécie de condicionamento, uma lavagem cerebral.
Toda vez que ouvia esse nome em particular que você disse... sendo
pronunciado em voz alta, era como se eu estivesse morrendo. Uma dor
horrível, você não faz ideia.”
“Faço ideia, sim. Vi o que aconteceu com Régis Vale quando eu disse o seu
nome. Rogério Arcanjo Bastos.” Vendo que eu murmurava alguma coisa, ele
vociferou: “O que foi que você disse?”
“Nada de importante. Apenas uma velha máxima de Maquiavel: é melhor ser
temido que ser amado.”
“O que você está querendo dizer?”
“Esse condicionamento que eu mencionei serve a um propósito. Régis está
condicionado a sentir dor ao ouvir o meu nome... pela simples razão de que sou
o mestre dele. Fui eu o responsável por sua contratação. Da mesma forma, fui
contratado por... il Dottore.”
“Il Dottore?”
“Sim, é como o chamávamos. Não podíamos pronunciar o nome dele, você
entende. Então era assim que nos referíamos a ele. O Doutor. É um dos
personagens da commedia dell’arte, conhece?”
“Vamos voltar a essa história de contratação. Para a Fábrica.”
“Sim, esse é um nome tão bom quanto qualquer outro. A Fábrica.” Achei
que esse era um momento bom para tentar uma nova aproximação. “Espero
que você aprecie o fato de que estou me colocando inteiramente em suas mãos,
filho.”
“Já falei para não me chamar assim. Ainda quebro a sua cara.”
“Tudo bem, tudo bem. Desculpe, não era minha intenção.”
“Mas nem preciso sujar as mãos, não é mesmo? Se você estava dizendo a
verdade, bastam duas palavrinhas mágicas.”
Sacudi a cabeça. “Não me afeta mais do mesmo jeito. O condicionamento
vai enfraquecendo com o passar dos anos. E eu fui contratado há muito tempo.
Além disso”, e eu parei para fitá-lo nos olhos, sério. Não podia errar a mão
agora. “Sei que você não faria uma coisa dessas. Você é melhor que isso.”
“Não me tente”, ele tentou revidar, mas sua postura era menos agressiva.
Nunca subestime o poder de uma boa sugestão parental. Mesmo que mais de
três décadas atrasada. “Quanto ao ator que você contratou, ele também está
livre de seu condicionamento.”
“Como assim?”
“Está morto. E a morte é uma libertação, não é mesmo?”
Não precisei fingir surpresa. Eu nada sabia ainda. “Morto? Tem certeza?”
“Claro que sim.” Teixeira mostrou os trapos ensanguentados que estava
vestindo. “Está vendo esse sangue? A maior parte é dele.”
“Você o matou?”
“Não. Ele mesmo foi quem buscou o seu fim. E chega de falar dele. Quero
saber é da Fábrica.”
“E eu quero lhe contar tudo. Tudo, desde o início. Melhor nos sentarmos
um pouco. E que tal uma bebida? Uísque com gelo?”
CAPÍTULO 32 – DURAÇÃO
A perseverança é favorável.
O Trovão acima do Céu: a imagem da Grande Força. Assim o homem superior não trilha
caminhos que não estejam de acordo com a ordem estabelecida.
(I Ching – hexagrama 34)
Meu filho, o inspetor Teixeira, não quis beber comigo o excelente uísque
que eu lhe oferecia. Mas aceitou a água que servi bem à sua frente, não fosse ele
suspeitar que eu pretendia envenená-lo. Contudo a ideia me passou pela cabeça.
O próprio cuidado que tive ao servir a água demonstra isso.
Notei que sua mão tremia um pouco ao segurar o copo. Desgrenhado e sujo
de sangue como estava, era óbvio que havia acabado de sofrer um acidente.
“Você precisa de cuidados médicos. Urgentes.”
Ele limitou-se a balançar a cabeça em negativa. Fitava-me com o olhar fixo,
que começava a me incomodar. Resisti ao impulso de levantar da cadeira.
Apoiei as mãos no tampo da mesa, como se quisesse me assenhorear do fato de
estarmos, afinal, em minha própria casa, em meu território. Mas aquele olhar
dele era mesmo insistente.
“Não gostaria ao menos de limpar esses ferimentos, passar um antisséptico?
Talvez você queira usar o banheiro.”
“Você está mesmo ansioso para se ver livre de mim, não é mesmo? Não vai
ser assim tão fácil.” Quando Teixeira falou, sua voz estava surpreendentemente
firme. Menos para meu ouvido que já estava se tornando treinado em detectar
as menores inflexões no tom, variações de timbre e outros sinais reveladores na
voz do inspetor, de tanto assistir às sessões dele com Varlene. Eu já o conhecia
o suficiente para perceber que ainda não estava se sentindo tão seguro quanto
queria aparentar.
“Ei, calma no Brasil”, e ergui as mãos sorrindo, em um protesto bem
humorado. Eu o estava citando, mas ele não deu mostras de ter percebido.
“Não é nada disso que você está pensando. Só estou preocupado com você,
meu filho. Não vê que você está sangrando?”
“Me chame mais uma vez de filho, e não serei o único sangrando por aqui.”
“Peço que me perdoe. A sua chegada me pegou de surpresa. Você me
flagrou em uma situação muito embaraçosa...”
“Vamos manter essa parte fora da conversa. Eu não quero nem pensar
nisso. Foi uma cena muito feia. Não quero ter pesadelos quando for dormir.”
Teixeira começou falando ríspido, mas rapidamente soube converter a dose
extra de adrenalina para maior proveito de seu organismo. Ele acabou até
sorrindo sardonicamente.
“Não gostaria que você fizesse uma imagem errada de mim,” tentei.
“Não se preocupe com isso. Eu não ligo a mínima para você.”
Mergulhei em um silêncio ofendido. Teixeira também não disse nada por
um tempo. E então com gestos lentos, deliberados, ele estendeu a mão para
apanhar a bolsa de veludo sobre a mesa. Exultei intimamente ao vê-lo guardar
os diamantes no bolso. Mas algo no seu olhar não me permitia ficar totalmente
à vontade. Não era a expressão de quem havia acabado de ganhar uma fortuna.
E ele olhou bem nos meus olhos e disse:
“Sabe o que acabo de fazer?”
E então ficou claro para mim. Ou ao menos eu pensei que ficou. Achei que
era um ataque agudo de dor na consciência. Procurei cortar de antemão a
choradeira:
“Você simplesmente aceitou um presente de alguém que espera se tornar
seu amigo.”
Eu pensava que ele fosse falar alguma coisa sentimentaloide, alguma
ladainha do tipo acabo de vender a minha alma ou sinto como se estivesse cuspindo na
sepultura de minha mãe. Eu imaginava compreender bem o que ele estava
sentindo. Veio até minha casa como um anjo vingador e de repente, ao aceitar
os diamantes, percebeu que teria que enfiar as asas entre as pernas. Sorte a dele
que perder a dignidade só dói mesmo na primeira vez, depois a consciência
acostuma.
Eu estava crente que lia o inspetor Teixeira tão facilmente como se fosse o
horóscopo no jornal. Mas o que ele tinha na cabeça era algo bem diferente.
“Nada de presente. Nada de amigo. Acabo simplesmente de recolher as
evidências. E você acaba de cometer um grave delito. Tentativa de suborno a
um oficial da lei no cumprimento de seu dever. Considere-se preso em
flagrante.”
“Como é que é?”
“Vamos para a delegacia. Lá poderemos conversar bastante, não é isso o
que você quer? Além disso, você tem muito a explicar a respeito de umas
mortes que aconteceram hoje. E é por isso que eu vou cumprir o meu dever e
vou levar você preso.”
“Não seja ridículo.”
“E agradeça aos céus por isso. Agradeça por estar tão envolvido nas
investigações a ponto de seu nome ter sido praticamente esfregado na minha
cara durante boa parte do dia. É por isso que vou levar você para a delegacia.
Estou cumprindo meu dever.” Ele me olhou fundo nos olhos. “Não fosse por
isso, já teria enchido a sua cara de tiro.”
E foi naquele momento, senhoras e senhores, diante daquele olhar repleto
de intenções parricidas, que tive a minha epifania. Os acontecimentos do dia
finalmente começaram a fazer sentido.
“Foram os gêmeos, não foram? Eles que mandaram você. Até mim.”
Dizem que para que algo novo surja, algo velho precisa deixar de existir.
Não deixa de ser curioso que Sergente tenha desertado poucos meses antes de
Isaac começar a tomar forma em nossas vidas.
Desde que voltamos do Brasil, as coisas nunca mais foram as mesmas com
Sergente. Ele não me perdoou pelo incidente no Ciro. Praticamente se excluiu
de nosso grupo. Continuava cumprimentando Spagnolo ou Floyd quando
esbarrava com eles na Universidade de Milão, mas deixou de frequentar os
Olimpianos. Os outros me culparam pelo afastamento de Sergente. Mas acho
que no fundo nenhum de nós gostava muito dele, com a exceção de Floyd. Era
raro que sequer lembrássemos dele.
Um belo dia Floyd começou a estagiar em uma empresa de computação. A
empresa estava envolvida na criação de uma máquina jogadora de xadrez, que
seria a representante italiana no WCCC, o World Computer Chess Championship,
Campeonato Mundial de Xadrez para Computadores.
É claro que isso incendiou a nossa imaginação. Durante os seis meses que
durou o estágio de Floyd, os Olimpianos não tinham outro assunto. Foi uma
mais do que bem vinda novidade, algo que nos impulsionou, que nos ajudou a
esquecer de vez a deserção de Sergente.
O projeto era uma tentativa de extrapolação do computador Belle, que havia
vencido o campeonato de 1980. Belle havia sido uma inovação absoluta para a
época, o Einstein dos computadores jogadores de xadrez. Até então, as
melhores máquinas eram capazes de calcular em torno de cinco mil jogadas por
segundo. Belle podia processar cento e oitenta mil lances durante o mesmo
período. A meta do senhor Scacchino era chegar a trezentos mil cálculos por
segundo. Uma meta bastante ambiciosa. Só o nome do computador que eles
pretendiam criar é que não era dos mais originais.
O projeto chamava-se Scacchino, que era também o nome da empresa, e
igualmente o nome do dono. Era quase uma predestinação aquilo, pois scacchi
em italiano significa justamente xadrez. Floyd estava trabalhando diretamente
com a equipe responsável pelo projeto. Por isso tivemos acesso a todas as
informações importantes. Não que eu ou Rita chegássemos a entender grande
coisa daquele amontoado de dados técnicos que Floyd despejava sem parar
toda vez que nos encontrávamos. Mas Spagnolo compensava com vantagem
tudo o que não éramos capazes de compreender. Ele e Floyd conversavam por
horas e horas a respeito.
Mas foi da metade não exata de nosso recente quarteto que surgiu o
primeiro movimento que acabou levando a Isaac. Primeiro foi Rita, em uma de
nossas noites de bebedeira, quando ela resolveu comentar: “Algum de vocês já
leu o jornalzinho do clube de xadrez? Traz um artigo sobre o número 64. Há
algumas coincidências interessantes.” Rita começou a enumerar nos dedos.
“Além de ser o número de casas no tabuleiro de xadrez, sessenta e quatro é
também o número de hexagramas do I Ching, o número de posições sexuais do
Kama Sutra e o número de demônios listados no Dicionário Infernal.
Estranho, não? Me pergunto se existe alguma relação entre esses livros.”
Floyd soltou sua risada cavalar: “Bom, entre o Kama Sutra e o Dicionário
Infernal, tudo a ver. Mas e o pobre do I Ching? É só um inofensivo oráculo
chinês, coitado.”
Aquilo me deu um estalo. Já há algum tempo eu vinha pesquisando tudo o
que tivesse a ver com previsão do futuro: astrologia, runas, búzios, tarô, folhas
de chá, paranormais etc. etc. etc. Também já havia lido algo sobre o I Ching,
embora ainda não tivesse me aprofundado tanto quanto iria fazer em breve.
Mas já sabia o suficiente para dizer: “Vocês bem que podiam tentar aplicar de
alguma forma o I Ching nesse computador que estão construindo. Afinal ele é
baseado em um sistema binário, da mesma forma que os computadores, não é
mesmo?”
Spagnolo ficou imediatamente interessado: “Como é que é?”
“Cada hexagrama do I Ching é composto por seis linhas, certo? Pois bem,
cada linha possui uma polaridade, que pode ser positiva ou negativa. É
exatamente como no sistema binário, só que ao invés de chamar de 0 e 1, os
chineses chamaram de yin e yang, que são os polos negativo e positivo.”
A partir daí a conversa pegou fogo, alimentado por muitas canecas de vinho.
Fiquei feliz e orgulhoso por poder participar mais ativamente, ao invés de ficar
só escutando, como vinha fazendo quando o assunto era computadores.
Spagnolo parecia cada vez mais entusiasmado, e acabou contagiando a todos
nós. Quando já estávamos para sair, ele me perguntou:
“Onde posso saber mais a respeito desse I Ching?”
“Eu tenho um exemplar em casa. Empresto o meu.”
Passei o livro para ele no dia seguinte. Depois disso, Spagnolo praticamente
sumiu durante duas semanas. Quando encontrávamos Rita em La Sirena, ela
falava em um tom que era quase de acusação:
“Ele agora não sai mais do laboratório da faculdade. Está cismado com essa
história de I Ching que você inventou.”
Quando finalmente deu as caras, Spagnolo estava mais magro, com o rosto
encovado e os olhos brilhantes. Ele nem perdeu tempo em nos cumprimentar:
“Acho que é possível. É possível, sim.”
“Não vá me dizer que você quer que eu use o I Ching no Scacchino”,
zombou Floyd. “Nunca que eu teria coragem de sugerir isso para meu
supervisor. Ele cancelava o meu estágio na hora.”
“É muito melhor que isso”, atalhou Spagnolo. “Não estou falando em usar
o I Ching para ajudar uma máquina a jogar xadrez. E muito menos em passar
essa ideia para a empresa onde você trabalha.” Ele fez uma pausa e olhou
seriamente para cada um de nós antes de acrescentar: “Estou falando em nós
mesmos usarmos o I Ching e o xadrez combinados para construir uma
máquina capaz de prever o futuro.”
“Como?” Berramos eu, Floyd e Rita ao mesmo tempo.
“Parece loucura, mas acho que descobri uma maneira de fazer isso. Só que
vai custar muito dinheiro.”
O resto, como dizem, é história. Não sei como conseguimos conciliar os
estudos com a atividade frenética que nos tomou a todos durante todo o ano
seguinte. Floyd, pelo que me lembro, acabou tendo que trancar a maioria das
matérias. Ele e Spagnolo arcaram com a maior parte do trabalho duro. Eu e
Rita ficávamos na maior parte do tempo bisbilhotando e dando palpites que
geralmente sequer eram ouvidos. Não que eu estivesse me queixando. Esse foi
o período em que mais me aproximei de Rita.
O nome Isaac, sugestão de Floyd, foi aprovado unanimemente. A maior
parte da matemática e da programação envolvidas estava fora de meu alcance.
A base para tantos cálculos complexos, no entanto, foi até bem simples.
O que primeiro chamou a atenção de Spagnolo no I Ching foi a ideia
oriental de ciclos recorrentes, que se repetiriam na vida humana da mesma
forma que as estações do ano se repetem na vida do planeta. E depois foi o
conceito de linhas fixas e móveis.
“Cada um dos sessenta e quatro hexagramas do I Ching é formado por seis
linhas, e cada linha pode ser yin ou yang, como você bem observou, Fortunato.
Só que o I Ching representa um passo além do sistema binário. Porque as
linhas podem ser também fixas ou móveis. Ou, para usar outra terminologia,
podem ser novas ou velhas. Reparem.”
Spagnolo estava tão absorto em sua explanação que nem notou que estava
rabiscando na toalha de nossa mesa em La Sirena. Ele começou fazendo uma
linha contínua:
“Essa é uma representação de uma linha yang fixa ou nova. À medida que o
tempo passa, a linha envelhece e se torna móvel.”
Ele desenhou então um pequeno círculo no centro da linha:
“Ou seja, ela irá mudar para seu oposto e se transformar em uma linha yin.”
Desta vez ele traçou uma linha interrompida na toalha de mesa:
“A linha yin, por sua vez, ao envelhecer também ficará móvel, o que é
representado dessa forma.”
“Essa linha yin móvel irá se transformar em uma linha yang fixa,
completando o ciclo.”
“E agora vem a melhor parte. Olha o que acontece quando a terceira linha
também envelhece e muda.”
VENTO FORTE
GRANDE MERCADO
Se o homem superior empreende algo e tenta liderar, ele se perde. Se for capaz
de seguir, no entanto, encontrará orientação. É favorável encontrar amigos no
oeste e no sul, e perdê-los no leste e no norte.
A devotada Receptividade é uma condição da Terra. Assim age o homem superior e de nobre
caráter ao lidar com o mundo externo.
(I Ching – hexagrama 2)
SABEMOS DE TUDO
TEMOS PROPOSTA
LA SIRENA HOJE 15H
VÁ SOZINHO
PEIXE GRANDE
HOJE 19H
Eu conhecia bem aquela rua, que ficava próxima ao hotel onde eu estava.
Mas foi só ao chegar ao endereço indicado que percebi: para chegar a La Sirena,
bastava dobrar a próxima esquina.
Fiquei curioso com isso. Tanto que foi a primeira coisa que perguntei,
quando o próprio Bodoni abriu a porta: “Por que o senhor escolheu esse lugar,
tão perto de La Sirena?”
A pergunta pareceu agradá-lo. Seu olhar, tão sinistro para mim, adquiriu um
brilho mais ameno. “Eu moro aqui. Posso saber o motivo dessa pergunta?”
“Pensei que o senhor havia marcado o primeiro encontro em La Sirena
porque nós costumávamos frequentar o lugar. Mas estou vendo agora que não
passou de mera coincidência.”
Bodoni ergueu o indicador para me interromper, todo professoral. Não
pude evitar recuar um passo. Senti o rosto queimando ao notar que um fino
sorriso de desprezo se desenhava nos lábios de Bodoni. Ele disse simplesmente:
“Não há meras coincidências. Tudo é coincidência. Venha comigo.”
A casa de Mario Bodoni era marcada pela ausência da menor tentativa de
decoração. Funcional era a palavra de ordem. Os móveis pareciam novos e de
excelente qualidade. Mas não havia sequer um quadro na parede, uma
fotografia na estante, um vaso de flores sobre a mesa da sala, uma escultura ou
ao menos um bibelô em um canto qualquer. Era uma casa nua de adereços,
despida do menor indício de personalidade.
A única exceção era o aposento para o qual fui conduzido. Não poderia ser
maior o contraste. Era uma sala ampla e cheia de mobília, e tinha as paredes
tomadas por estantes abarrotadas de livros. Dominando o ambiente,
praticamente no centro da sala, havia uma mesinha sobre a qual repousava um
belo tabuleiro de xadrez, com as peças já dispostas na posição inicial. Bodoni
fez sinal para que eu ocupasse um dos dois bancos de madeira diante do
tabuleiro. Achei o banco muito espartano, pouco adequado para o xadrez, que
pede assentos mais confortáveis.
“Só um instante. Deixe-me ver. Ah, aqui está.” Ele apanhou um livro da
estante. “Independente do acerto que viermos a fazer hoje, eu quero presenteá-
lo com este livro. Acho que irá esclarecer um pouco suas ideias.”
Ele passou o fino volume para mim. Li o que estava escrito na capa: “A
Coincidência? Ora, mas foi o senhor quem escreveu o livro!”
“Sim, eu sou o autor.”
Bodoni inchou visivelmente ao dizer isso. Perguntei a mim mesmo se
poderia tirar algum proveito dessa vaidade dele.
“Então nesse caso eu gostaria de um autógrafo.”
Vi que ele foi pego de surpresa.
“Bem, por que não?” Bodoni pegou o livro de volta e sacou uma caneta do
bolso. Começou a escrever, mas logo parou e me olhou com uma expressão
curiosa. “Eu quase fazia a dedicatória para Fortunato. Mas esse nome faz parte
de uma brincadeira de adolescência, que não tem mais sentido agora. Dedicarei
ao jovem Rogério, que está prestes a se tornar um homem.”
Não gostei nem do tom nem das palavras. Mas recebi o livro de volta e
ainda agradeci, humilíssimo. “Obrigado, senhor Bodoni.”
“Senhor, não.” Ele ergueu mais uma vez o indicador. “Doutor Bodoni.”
“Obrigado, doutor Bodoni.”
“Diga-me uma coisa, rapaz. Quantos anos você tem mesmo?”
“Vinte e um”, eu disse. E era verdade em 1985. Hoje tenho mais idade que
tinha Bodoni nesse dia.
“Vinte e um”, repetiu Bodoni, como se estivesse saboreando um quitute. “E
o que você tem de bom a dizer a seu próprio respeito? O que você já fez de útil
na vida?”
A pergunta à queima roupa me pegou de surpresa. “Bem, estou cursando
jurisprudência na Universidade Bocconi. E antes disso estudei em um dos
melhores colégios preparatórios de Milão.”
Bodoni fez um gesto com a mão, como se afastasse de si algum odor
desagradável. “Besteira. Você está me falando de sua bunda, de onde seu
traseiro esteve sentado nos últimos anos. Isso não quer dizer nada. O que quero
saber é sobre sua cabeça. Ela presta para alguma coisa?”
“Penso que sim”, respondi um tanto ofendido.
“É isso o que vamos ver, meu rapaz. É isso o que vamos ver.”
Por um momento ele ficou apenas me olhando. E então franziu os lábios
naquele seu sorriso de caçador.
“Eu até que gostei da turminha de vocês, sabia? Vocês são jovens e bonitos,
parecem ter algum talento. Menos aquele bobalhão com cara de cavalo. Ele
estava destoando no grupo, você não concorda?”
Não tive palavras para responder. E nem precisava, pois a pergunta era
evidentemente retórica.
O doutor prosseguiu: “Gosto muito de seu país, sabia? Já estive no Brasil.
Conheci várias cidades. Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo, Recife. Você
nasceu em Rio Santo, não é mesmo? Essa eu ainda não conheci. Mas gostei
muito do Brasil, tive até vontade de me mudar para lá.”
“Então temos tudo para sermos amigos”, eu disse.
O olho de Bodoni brilhou novamente. “Que bom que você tem senso de
humor. Gosto disso. Nós vamos ser muito amigos, sim. Logo seu rabo vai ficar
muito amigo de meu pau.”
Ensaiei uma risada sem graça. Ele estava sorrindo, mas era o sorriso do
tubarão para a foca, o riso do crocodilo para o menino que toma banho na
beira do rio. “Vamos aos negócios. A multa de vocês foi calculada em dois
bilhões de liras. Dividindo por três, que é a parte que lhe cabe, dá seiscentos e
sessenta e seis milhões, seiscentos e sessenta e seis mil, seiscentos e sessenta e
seis liras. Curiosa essa quantia, não concorda?”
“Essa multa é um absurdo total”, protestei. “É inadmissível.”
Bodoni fechou a cara imediatamente. “Meu jovem, pensei que estivéssemos
nos entendendo. Pensei que você estivesse entendendo. Não precisa ficar, se não
está concordando. Não era nem para ter vindo. Fique à vontade para sair, se
achar que deve. Eu levo você até a porta da rua.”
Algo nessas palavras gelou o meu sangue ali mesmo. Lembro de ter dito,
num fio de voz: “Prossiga, por favor.”
Ele fez um gesto contrafeito, como se só a custo se convencesse a voltar a
me dirigir a palavra. Mas dava para ver que estava se divertindo, o sádico. Só
por aqueles cabelos compridos, o coroa já demonstrava gostar de efeitos
dramáticos.
“Pois então, garoto. Você tem o dinheiro?”
A quantia era exorbitante, ainda mais naquela época. Bodoni sabia muito
bem que eu não teria como pagar. Mesmo que eu vendesse tudo o que tinha,
mesmo que recorresse a meus pais, não seria o suficiente, nem de longe.
Diante de minhas explicações e justificativas, Bodoni permaneceu
impassível, o cenho levemente franzido. E assim ele continuou depois que eu
cantei a última linha da ladainha. Deixou que o silêncio pesasse bastante antes
de soltar um breve suspiro, para então dizer casualmente, como se a ideia
tivesse lhe ocorrido naquele momento, o velho sacripanta: “Vou lhe dar uma
chance de provar o seu valor.”
Ele olhou para o tabuleiro de xadrez que estava entre nós dois como se só
agora notasse sua existência. “Já jogou xadrez relâmpago?”
Fiz que sim com a cabeça. Era a modalidade preferida dos Olimpianos.
Cada partida de xadrez relâmpago dura no máximo dez minutos, sendo cinco
minutos para cada jogador. Isso permitia que disputássemos vários torneios
seguidos durante uma única noite de bebedeira em La Sirena. Bons tempos.
“Excelente!” Bodoni juntou as mãos de satisfação. “Portanto proponho o
seguinte, meu jovem Rogério: vamos disputar o seu débito para comigo em
uma partida de xadrez relâmpago.”
“Isso é sério?”
“Se você conseguir me derrotar no xadrez relâmpago, pode considerar sua
dívida totalmente quitada. Você estará livre para fazer o que quiser.”
“E se eu perder a partida?”
“Nesse caso você trabalha para mim até pagar o que me deve.”
“Em outras palavras, o senhor quer que eu vire seu escravo.”
“Não precisa ser assim. Você pode dar seu jeito e pagar o que deve. Ou
então pode cumprir pena em algum presídio federal. Eu não esperaria
clemência em seu julgamento. Aplicar golpes na bolsa é um crime muito grave,
ainda mais utilizando tecnologia roubada. Como estudante de Direito, você
deve saber que os crimes contra o patrimônio são punidos com muito mais
rigor que os crimes contra a vida. Mas o que são dez, quinze anos, quando se é
tão jovem? Você ainda terá muito tempo de sobra depois que sair da prisão. A
não ser, é claro, que aconteça algum acidente antes disso, nunca se sabe.”
Eu estava reduzido ao silêncio. Não tive sequer a coragem de encará-lo nos
olhos.
“E você também pode, simplesmente, me vencer em uma partida de xadrez
relâmpago. E então estará livre como um pássaro.”
“Até parece”, eu disse. Acabei não conseguindo me conter. “Que garantia
eu tenho?”
“Você tem a minha palavra como garantia. Ou não é suficiente?”
“Ora, imagine o senhor, é claro que sim. Não se trata disso, absolutamente.”
Resolvi apelar novamente para sua vaidade. “Pelo pouco que vi em La Sirena, o
senhor deve ser muito forte no xadrez. Acho que não tenho a mínima chance
de vencê-lo.”
A estratégia pareceu surtir efeito. Bodoni riu abertamente: “Isso lá é
verdade. Mas fique tranquilo. Sou um homem justo ao meu modo. Quero que
você considere o seguinte: vou lhe oferecer uma vantagem tão grande, mas tão
grande que por melhor que seja o meu jogo, você estará em igualdade de
condições comigo, se não acima. O que me diz?”
Eu não devia ter dito é nada. “Que vantagem é essa? Eu vou jogar com duas
rainhas ou algo assim?”
Doce inocência. Bodoni riu de novo: “Se você ainda não sabe direito o que
fazer com sua dama, duas só vão confundi-lo ainda mais. Não, meu caro rapaz.
Considere isso um pequeno capricho meu. Terá que confiar em minha palavra.
Sua vantagem sobre mim será imensa. Mas você só saberá que vantagem é essa
depois de aceitar o desafio.”
“Como posso aceitar uma proposta assim, no escuro?”
“Chega de conversa. Topa ou não topa jogar? Eu pensava que os brasileiros
fossem mais corajosos.”
Eu ainda hesitava. Devia é ter saído correndo. Bodoni ergueu o indicador,
avisando que aquela seria a cartada final: “Ora, vamos. Você não perde nada
por jogar. Não vai ficar pior do que já está. E pode ganhar tudo. Vai depender
de você. Não é possível que você jogue assim tão mal. E vai ter uma chance
verdadeira de sair ileso dessa, eu lhe garanto. A vantagem que eu vou ceder vai
equiparar nossas diferenças de habilidade e fazer as probabilidades ficarem a
seu favor. Você tem a minha palavra. E agora basta. É sim ou não?”
O que eu podia fazer, se não aceitar? Antes tivesse descarregado um
revólver em cima de Mario Bodoni, caso eu andasse armado.
“Ótimo”, disse Bodoni, e mostrou sua alegria juntando as mãos diante do
peito. Incrível como eu acabei pegando esse gesto dele, e como Varlene acabou
pegando de mim. E não só o gesto. “Creio que temos tudo de que precisamos
diante de nós. Está vendo esse relógio para xadrez? Garanto que é confiável.
Vamos ajustar nossos relógios para cinco minutos para cada.”
Subitamente tive a compreensão de que aquela não era a primeira vez que
Bodoni fazia aquilo. Nada havia de casual ou descuidado em seu
comportamento. Ele ergueu mais uma vez o indicador no ar, como o orador
pedindo a vez para falar em um debate. O que foi um pouco estranho, pois era
ele mesmo quem estava falando. Foi como se Bodoni fizesse um aparte para si
mesmo.
“Mas antes de começar a partida é preciso cumprir um procedimento de
rotina. Coisa bem simples e fácil.”
E outra vez sacudiu o indicador em riste, dessa vez como quem pede ao
interlocutor para aguardar um minuto. Levantou-se da poltrona e caminhou até
um ponto da sala que já havia chamado a minha atenção. Era um serviço de bar
completo, habilmente instalado entre as estantes cobertas de livros. Eu bem
que havia ficado de olho naquelas garrafas todas. Quando vi Bodoni
encaminhando-se para lá, imaginei que ele fosse propor um brinde ou algo
assim. Mas quando ele voltou trazia só um copo na mão, e o copo estava vazio.
“Está vendo aquela porta à sua direita? Ela conduz ao lavabo. Vá até lá e me
traga uma amostra de sua urina nesse copo.”
“Como é?”
“Tudo será explicado no seu devido tempo. Por ora, preciso que você urine
um pouco dentro desse copo, rapaz. É para uns exames. Nada demais, coisa de
rotina.”
“E desde quando é preciso exame de urina para se jogar xadrez? Não estou
entendendo.”
“Não tem nada a ver com a partida. Digamos que é uma pesquisa que estou
desenvolvendo, e espero contar com a sua cooperação.”
Eu não queria aceitar o copo que ele brandia em minha direção. Estava
achando aquilo muito bizarro. Mal podia imaginar que as esquisitices estavam
apenas começando.
“Ande logo com isso, rapaz. Eu não tenho o dia todo. Desse jeito as
preliminares vão durar mais que o jogo.” O doutor Mario Bodoni tinha uma
maneira muito peculiar de escolher as palavras. Ele praticamente me obrigou a
segurar o copo. Era um copo de vidro grosso, de boa qualidade, fabricado com
o intuito de receber os uísques mais caros. Dentro do banheiro, não tive
dificuldade em encher o copo com uma talagada de meu alambique particular.
Estava mesmo com a bexiga cheia. Bodoni estava me esperando na porta do
banheiro. Já foi tomando o copo de minha mão. “Não precisava tanto. Metade
disso seria mais que suficiente.”
Ele despejou a maior parte na pia do banheiro. Restava pouco mais que um
dedo de mijo no copo. Ele aproximou o copo de meu rosto e por um horrível
instante pensei que ele iria me obrigar a beber. Mas tudo o que ele disse foi:
“Cuspa.”
“O quê?” Eu estava bestificado.
“Não é para escarrar. Só um pouco de saliva, está entendendo? Não fique
me olhando com essa cara, rapazote. Cuspa logo, vamos. Pronto, está vendo,
não foi tão difícil. E nem doeu.”
“Para que o senhor quer isso?”
“É só uma mania inofensiva minha, não repare.” Ele largou o copo em uma
estante, como se já não tivesse a menor importância. “E então, estamos prontos
para o jogo?”
“O senhor ainda não disse que vantagem é essa que eu vou ter.”
Estávamos caminhando de volta para bancos diante do tabuleiro de xadrez,
mas estaquei quando ouvi a resposta de Bodoni:
“É muito simples. Eu vou chupar você enquanto estivermos jogando.”
“Espere aí. Isso já é demais.”
“Cale a boca e escute. Você está nas minhas mãos, garoto. Posso colocar
você atrás das grades, posso muito bem colocar você em uma gaveta do
necrotério junto com seu amiguinho dentuço, você está me entendendo? Estou
lhe oferecendo a chance de se livrar de tudo isso por no máximo dez minutos,
ou até menos, se você me vencer antes no xadrez. Ora, eu nem vou enxergar o
tabuleiro direito, vai ser uma sopa para você. Não é possível que você seja tão
ruim a ponto de não conseguir me derrotar nessas condições. E assim todos
ficam felizes. Você ganha sua liberdade. Eu ganho minha satisfação.”
“O senhor é um velho pervertido e degenerado.”
“Bondade sua. Desabotoe a calça, por gentileza.”
“Tem mais alguém em casa?” Me odiei por ter feito essa pergunta. Parecia
uma donzela medrosa. Exatamente o que eu era.
“Não se preocupe”, riu Bodoni. “Ninguém virá nos interromper.”
Ele foi até o tabuleiro e pegou duas peças. Voltou-se para mim com os
punhos fechados. “Escolha.”
Escolhi o punho esquerdo. Bodoni abriu a mão e me entregou um peão
preto. O punho direito ao se abrir revelou um peão branco. Ele parecia
satisfeito com o resultado do sorteio. Depois me perguntei se cheguei a ter
mesmo alguma chance de sair com as brancas. O sorteio pode ter sido só mais
um truque sujo.
“E agora você vai ficar quieto. Não vou lhe fazer nenhum mal. É só um
pequeno truque que quero lhe ensinar.”
Ele me fez ficar sentado no banco e postou-se às minhas costas. Suas mãos
vieram de cima para beliscar a ponta de minhas orelhas, não com violência, mas
de maneira firme e segura. E continuou apertando por um bom tempo minhas
duas orelhas, enquanto murmurava distraidamente o leitmotiv de No Salão do
Rei da Montanha de Grieg. Eu não sabia que música era essa na época. Fui
descobrir anos depois, ao assistir Peer Gynt no Teatro Municipal de São Paulo,
em uma de minhas frequentes viagens à Sampa na época. Quando a orquestra
começou a tocar No Salão do Rei da Montanha, passei tão mal que tive que sair do
recinto às pressas.
Bodoni ficou nessa uns cinco minutos, pressionando pontos em minha
orelha e cantarolando. Subitamente percebi qual era a sua intenção com aquela
manobra. Para minha grande surpresa, meu pau estava duro como madeira de
lei.
“Ora, mas o que temos aqui, um verdadeiro amante latino. Gostou de meu
truquezinho? Nem sempre funciona e nem com todo mundo. Mas com um
rapaz de vinte e um, vendendo saúde? É garantido.”
Ele finalmente largou as minhas orelhas. Sentou-se no chão à minha frente,
ao lado do tabuleiro. “E então? Podemos começar?”
Eu devolvi o peão preto que ainda estava na minha mão à sua casa no
tabuleiro. Respirei fundo e balancei a cabeça.
Bodoni não perdeu tempo. Ativou o relógio e imediatamente lançou o seu
peão do rei em e4. Ato contínuo, paralisou seu relógio e já estava de joelhos
diante de mim abocanhando meu pau, aquele homem que tinha idade para ser
meu pai. Fiquei sem reação por alguns segundos, até que lembrei que meu
relógio havia começado a correr no instante em que Bodoni paralisou o dele.
Respondi com e5. Eu mal havia tirado a mão do relógio e Bodoni já havia
avançado o seu cavalo do rei para f3. Reagi na mesma moeda, com o cavalo da
rainha em c6. Bodoni então ameaçou meu cavalo com o bispo em b5. Até aqui
uma tradicional abertura espanhola, à qual respondi com a defesa Morphy em
a6, jogando o peão da torre para cima do bispo. Bodoni de pronto recuou seu
bispo para a4, ainda com meu cavalo na mira. E não parou de me chupar nem
por um segundo.
Eu não entendia como ele estava conseguindo jogar. Devia acompanhar os
lances só pelo canto do olho. E ainda assim estava jogando bem melhor que eu,
mantendo a iniciativa com as brancas. Ao menos tive a pífia satisfação de ser o
primeiro a comer uma peça, poucos lances depois. Foi o mesmo peão com que
ele começou o jogo, e que arrebatei com meu cavalo quando o vi desprotegido.
Grande vantagem. Logo em seguida Bodoni também comeu um peão meu com
seu cavalo e com isso abriu caminho para sua dama finalmente entrar em cena.
“Xeque”, gorgolejou ele.
E a partir daí foi só ladeira abaixo. Para me defender do assédio, tive que
sacrificar um peão, uma torre, um cavalo, um bispo. Tempos depois, fiquei
abismado ao descobrir as semelhanças entre a partida que Bodoni e eu
disputamos e uma outra partida muito famosa. Foi a célebre disputa entre
Albert Einstein e Robert Oppenheimer, ocorrida na cidade de Princeton, nos
Estados Unidos, no ano de 1933.
Cheguei a pensar que Bodoni havia memorizado os lances da partida,
jogando como Einstein com as brancas. Mas logo descartei a ideia como
ridícula. Ele não tinha como prever que as minhas reações seriam tão parecidas
com as de Oppenheimer. Foi um magro consolo perceber essa afinidade. Não
há mérito nem alegria em igualar-se pela derrota. Hoje, considerando, vejo que
também por isso esse foi um episódio marcante em minha biografia. Não é
todo dia que você comete os mesmos erros que o cara que inventou a bomba
atômica.
Não fazia sentido Bodoni escolher justo aquela partida para decorar, logo
uma que acabou incompleta. Oppenheimer abandonou o jogo no vigésimo
quarto lance, depois de perder a dama e o seu segundo cavalo na sequência. Já
eu precisava continuar jogando. Com minhas defesas praticamente destroçadas,
desperdicei tempo precioso fazendo um movimento inútil. Andei com um dos
dois peões que eu ainda podia mexer para g5. Nem tive tempo de me amargurar
pela burrada. Bodoni moveu sua dama uma casa, de g7 para f7. Com isso,
passou a ameaçar diretamente minha torre remanescente em e8. Logo vi que
não havia como salvar a torre. Quando a fuga é impossível, o jeito é partir para
o ataque. Antes que a dama de Bodoni derrubasse minha torre, tomei dele o seu
último bispo. Estava ficando claro para mim o que Oppenheimer percebeu
antes. O mate aproximava-se rapidamente.
Tentei armar um desesperado plano de fuga, recuando com o meu rei para
b8. Minha patética intenção era fazer o rei dar a volta na última peça que me
restava além dos peões, um bispo que acabou ficando inerme até o fim da
batalha. Que não tardou a chegar.
Bodoni com sua torre remanescente deu um xeque em d8. Eu poderia
bloquear a torre com o bispo e acabar com meu rei acuado no canto que nem
um camundongo. Preferi manter o plano original e fui com o rei para a7,
aproveitando que o bispo em b7 me protegia da dama de Bodoni. Mas foi com
ela mesmo que ele veio para cima de mim, comendo um de meus três peões
que estavam bloqueados, esse em c5, e ao mesmo tempo ameaçando o rei em
a7. Só havia um movimento possível, que foi o que eu fiz, avançando o rei para
a6. Bodoni recuou a torre para d6, com um cheque ao qual eu só podia
responder entregando o bispo em c6. O bispo foi tomado pela rainha,
renovando o cheque. Fiz o único movimento que me restava, voltando com o
rei para a7, no que fui imediatamente perseguido pela torre em d7.
Meu último lance foi forçado: rei em b8. Só nesse momento crucial Bodoni
parou de me chupar. Ele fez uma pausa como se estivesse recuperando o
fôlego, levou a rainha para b7 e anunciou calmamente, olhando-me nos olhos
pela primeira vez desde que o jogo começara: “Xeque-mate.”
E voltou a sugar o meu pinto, como se isso fosse tudo o que lhe interessava
no mundo. Eu ainda estava aturdido, olhando para o tabuleiro sem querer
acreditar. E então senti um choque na base da coluna.
Aquele foi o exato momento de minha matrícula na Academia. Naquele
instante uma finíssima liga metálica penetrava a minha epiderme, atravessava o
tecido adiposo e o osso sacro para se enredar nos nervos da cauda equina, no
final da coluna.
Mas nem tive tempo de sentir dor. Foi como se uma onda de eletricidade
pura estivesse tomando conta de meu corpo. Tive um orgasmo simplesmente
avassalador, além de qualquer descrição, daqueles longos e intensos, tanto que a
gente pensa que a cabeça do pau vai estourar, que o coração não vai aguentar,
que a gente vai morrer, e não morre. Foi a segunda melhor gozada de minha
vida, e foi toda na boca daquele velho desgraçado. Ele não deixou escapar nem
uma só gota. E ainda lambeu os beiços.
“Sêmen”, ele enunciou simplesmente.
E então ele se levantou e aproximou seu rosto do meu a tal ponto que temi
que fosse querer me beijar. Mas o que ele fez foi pior. Deu uma lambida na
minha testa.
“Suor”, ele disse.
Eu estava totalmente sem reação. Nem liguei quando ele espetou meu dedo
com algum objeto pontudo, uma agulha ou alfinete, provavelmente. Logo em
seguida ele sugou a gota vermelha que brotou de meu dedo.
“Sangue”, disse Bodoni. Ele foi para perto da estante onde havia deixado o
copo de vidro. “As coisas que saem do corpo têm poder, meu rapaz. Sangue,
sêmen, suor, saliva e urina. Quatro s e um u.”
Ele ergueu o copo como se estivesse fazendo um brinde, e então emborcou
de um só gole o mijo e o cuspe dentro do copo.
“Agora, meu caro Rogério. Agora sim. Agora você é meu.”
Hoje em dia esse tipo de coisa não acontece mais. Não há lugar na Fábrica
para esse tipo barato de magia negra. Para falar a verdade, nunca cheguei a
saber por que Bodoni agiu dessa forma. Talvez ele desejasse aumentar ainda
mais o impacto psicológico sobre mim. Talvez, simplesmente, aquele ritual o
excitasse.
Naquele momento logo após o orgasmo eu estava totalmente indefeso. O
resultado imediato da ativação da moeda é um estado de completa passividade
física e psíquica, que dura cerca de meia hora. É o chamado período de
condicionamento, que nos dias atuais é conduzido por um profissional treinado.
Eu tive que me contentar com Mario Bodoni.
Embora eu mesmo tenha participado de algumas importantes contribuições
às técnicas de condicionamento, não me lembro de muita coisa de minha
experiência inicial com Bodoni. Ninguém se lembra de seu próprio
condicionamento.
A prática consiste, basicamente, em uma série de comandos verbais que são
registrados apenas na mente pré-consciente ou subconsciente. A pessoa não
chega a ter consciência de que foi condicionada. Cada comando verbal é como
um gatilho sonoro que ativa determinadas regiões do cérebro. Assim, certa
palavra ao ser pronunciada ativa o centro de prazer, outra provoca uma dor
intensa, outra ainda pode induzir a um furor homicida. Não sei a maioria das
palavras que Bodoni usou para me condicionar, só senti os efeitos delas durante
os longos anos que convivi com ele.
Mas sei que ele usou o próprio nome como gatilho para hiperexcitar uma
pequena região do cérebro conhecida como amígdalas, as principais reguladoras
do medo. É por isso que a cada vez que eu ouvia o nome Mario Bodoni, passava
mal horrivelmente. O que eu sentia nada mais era que um ataque agudo de
medo, pura e simplesmente.
Essa hiperexcitação das amígdalas é o procedimento final, que permite, por
assim dizer, fechar a última presilha da coleira da serpente. É através desse
processo, que se vale do medo e da dor, que Kundalini é definitivamente
capturada. O condicionamento feito com o nome do contratante, ou do mestre
no meu caso, é apenas um efeito secundário, mas de grande importância
psicológica. É mais ou menos como marcar o gado com o nome do dono, com
um ferro em brasa.
Bodoni não estava satisfeito: minha derrota ainda não era completa. Ele já
havia se tornado o meu dono, meu amo e senhor. Mas queria que não restasse a
menor dúvida a respeito.
E foi assim que tive o melhor orgasmo de minha vida, servindo de mulher
para o doutor Mario Bodoni. É algo que muda definitivamente as perspectivas
de um homem nascido e criado heterossexual, gozar desse jeito, tão
intensamente, pelo cu.
Me pergunto se Teixeira gozou assim com Kim.
CAPÍTULO 59 – DISPERSÃO
Por alguns instantes fiquei estupefato demais para dizer qualquer coisa.
Finalmente, porém, consegui articular:
“Você me libertou.”
Teixeira nada disse. Limitou-se a continuar me fitando com os olhos
inexpressivos, a moeda dourada ainda presa entre os dedos sujos de meu
sangue.
“Você me libertou”, voltei a dizer. “Graças a você, estou livre do jugo da
Fábrica.”
Teixeira continuava calado. Eu precisava falar mais, dar vazão aos meus
pensamentos naquele momento:
“Você não pode imaginar como é terrível não ser dono de sua própria
vontade. Meu Deus, só agora consigo pensar com clareza, depois de tantos
anos! Essas moedas são instrumentos terríveis. Elas dominam suas emoções,
suas aversões e desejos. Durante todos esses anos, nunca quis algo por mim
mesmo. Ganhei muito dinheiro, sim. Poder. Prestígio. Mas não passava de um
reles escravo, um robô subjugado. De que valem o dinheiro e o poder se você
não é livre para fazer o que quer? Maldita Fábrica. Roubou os anos mais
preciosos de minha vida. Mas agora estou livre para me vingar. Graças a você,
Alberto. Obrigado, meu filho.”
“Cale a boca!”
Pequenas coisas podem ser feitas; grandes coisas não deveriam ser feitas. O
pássaro leva a mensagem: Não é bom se esforçar para subir, é bom permanecer
abaixo.
Trovão sobre a Montanha: Assim em sua conduta o homem superior dá preponderância à
reverência. No luto dá preponderância ao pesar. Em seus gastos dá preponderância à
frugalidade.
(I Ching – hexagrama 62)
Foi por insistência de il Dottore que passamos apenas uma noite em Rio
Santo. Logo bem cedo na manhã seguinte de nossa chegada ao Brasil, já quis
encerrar a conta no hotel Émile e seguir direto para a fazenda de meu pai.
Bodoni estava paranoico ao extremo. Achava que estaríamos mais seguros
bem escondidos no meio do mato. Não era apenas o medo de ser descoberto
por Zambrini. Percebi que tinha medo até de mim. Medo do que aconteceria
quando eu conquistasse a minha moeda de prata. Por isso também aquela
pressa toda em sair da Itália, em deixar Rita e Spagnolo para trás. Só pude
entender isso melhor mais recentemente. Para saber lidar com uma moeda de
prata, é preciso ter uma moeda de ouro. Bodoni não havia sido ambicioso o
suficiente. Ficou acomodado com sua academia do sexo.
Afortunadamente meu pai não estava em casa. Estava em sessão na Câmara
dos Deputados em Brasília. Meu irmão mais velho o estava acompanhando.
Sempre foi mais fácil acomodar as coisas com minha mãe. Ela recebeu o
professor Habbot com toda a educação de uma dama rural. Valendo-se dessa
mesma educação, procurei evitar seus olhares inquisitivos. O que eu poderia
dizer? Minha família já sabia que eu havia ingressado em alguma espécie de
academia filosófica, e que por conta disso havia interrompido meus estudos na
Universidade Bocconi. Na época, meus pais fizeram o que lhes cabia fazer, e
cortaram a minha mesada. A medida não surtiu grandes efeitos, pois eu já
estava ganhando muito mais com Isaac. E agora eu retornava para casa, sem
nenhuma outra explicação a oferecer além de estar acompanhando meu
instrutor da academia em sua visita ao Brasil.
Não que fizesse muita diferença. Eu nunca tive muita importância para
meus pais. Era apenas o filho do meio, o estepe, o dispensável. Cabia a meu
irmão mais velho alimentar os sonhos de continuidade política de meu pai. E a
minha irmã caçula, que atualmente estava cursando medicina em Rio Santo,
cabia ser a mimada, a princesa, a mais querida. A mim cabia ser o filho
problema, o estorvo indesejável a ser despachado para a Europa e então
esquecido. Até então havia cumprido bem o meu papel. Mas por debaixo do
verniz de polidez com que minha mãe nos recebeu, pude ver que voltar assim
ao Brasil, sem avisar, não fazia parte do script que se esperava que eu seguisse.
No fundo, eu sei o que se passou pela cabeça de minha mãe. Sei o que ela
secretamente temia. Que eu fosse uma formiga de chuva, que cria asas para se
perder. Que eu tivesse sido seduzido e aliciado por aquele estrangeiro de fala
mansa, e que agora estivesse servindo com minha beleza e juventude aos
caprichos de um homem degenerado. Sei que isso passou pela cabeça dela. Pois
minha mãe não era burra. E isso tudo era apenas a verdade. Sei que minha mãe
soube de tudo, sem que eu dissesse uma única palavra. Coração de mãe não se
engana.
Bodoni atribuiu a minha contrariedade ao sentimentalismo latino. Para ele,
tudo estava correndo muito bem. Durante o jantar, ele conversou bastante com
minha mãe em inglês e até arriscou umas palavras em português. Quando
queria, il Dottore sabia ser encantador.
Essas foram as emoções de nosso primeiro dia na fazenda de meu pai. No
segundo dia, graças a uma cozinheira falastrona que se derreteu com os elogios
do charmoso professor alemão, ficamos sabendo da história da louca Joana.
A louca estava sendo mantida a ferros, sob vigilância armada. Estava presa
no casebre abandonado próximo aos estábulos, onde dormiam os cavalos
bravos e as éguas xucras. Aguardava a chegada do senhor deputado meu pai,
para lhe decidir o destino. Pois havia cometido um crime de morte.
Apesar de louca, era ainda bem jovem e muito bonita, como contou a
cozinheira. Foi vista perambulando pelas terras de meu pai, as vestes em
farrapos exibindo a sua nudez de novilha insana.
Um dos peões da fazenda não resistiu ao apelo da carne. Quis barranquear a
louca, como se fosse um bicho. Jogou a moça por cima de uma touceira e a
submeteu debaixo de tapa, como se bicho fosse. Quando estava saciando seus
instintos, descuidou-se por um segundo. A louca enfiou os dedos de unhas
compridas e sujas de terra nos seus olhos, e no instante seguinte cravou os
dentes em sua garganta. Quando a encontraram, ainda estava tentando sugar o
sangue do pescoço do peão morto.
“É para alimentar os meus bebês”, ela disse para os homens que a
encontram, com a cara toda lambuzada de sangue seco, como um zumbi na
noite dos mortos vivos.
Como o sinistro havia se dado dentro das terras de meu pai, o capataz
houve por bem abafar o caso, com a conivência das autoridades locais, e deixar
a louca presa ali mesmo na fazenda até que o deputado retornasse de Brasília.
Só que um imprevisto ou outro acabaram mantendo meu pai fora de casa por
mais tempo que o esperado. E nessa passaram-se três meses. O que estava
deixando as mulheres da cozinha alvoroçadas era a notícia que vinha correndo
de que a louca devia estar mesmo grávida. Desde que fora presa não teve regras
e havia quem já lhe enxergasse a barriga crescendo. Era um problema e tanto
que aguardava a chegada de meu pai.
Bodoni ficou imediatamente interessado pelo caso. Quis a todo custo visitar
a tal louca. Assegurou a minha mãe ser um perito em psiquiatria criminal,
estando por isso habilitado para prestar o auxílio necessário à família de seu
pupilo, em um momento tão delicado. E assim ficou acertado que naquela
mesma tarde o capataz conduziria o professor e eu até o casebre onde Joana
estava encarcerada.
Brancas avançam na segunda:
Ela passa pelo Avô e encontra a Avó. Ele não alcança o príncipe, mas encontra o seu
servidor. Sem culpa.
Mas só as teorias de Bose não eram suficientes para explicar as moedas. Era
preciso mais que isso para entender o seu funcionamento, para elucidar a
maneira como elas atuam na fisiologia e na psique humana, exacerbando e se
nutrindo da luxúria e da ganância, transformando cada vez mais a pessoa em
uma escrava de seus próprios desejos.
Quanto mais eu estudava, mais minha mente ficava cheia de dúvidas. Outro
mistério era a interação entre os diferentes tipos de moeda. Que força é essa da
prata, que a torna capaz de submeter o cobre? Quais seriam os inimagináveis
poderes do ouro? Como explicar o poder soberano que Bodoni continuava
exercendo sobre mim, mesmo à distância?
Não era apenas o medo de ser punido que me movia, que me compelia a
obedecer cegamente aos comandos e desmandos de il Dottore. A cada vez que
ele me mandava fazer algo, sentia como se minha felicidade pessoal dependesse
totalmente do bom cumprimento da tarefa. Hoje sei muito bem como funciona
a imposição da vontade. Mas na época eu era um simples peão. Não tinha
como saber.
O que eu sabia é que as moedas estavam vivas, e estabeleciam uma espécie
de simbiose com o portador. Por experiência própria eu já havia comprovado
que ao menos do ponto de vista estritamente fisiológico essa simbiose era
altamente vantajosa.
Saúde corporal, tônus muscular, vigor físico são fracas descrições da
transformação que se opera no organismo portador da moeda. Lembro que
uma das calouras de Bodoni em sua primeira semana de Academia descreveu
bem essa sensação: “É como se eu tivesse cheirado cocaína o tempo todo. E o
melhor de tudo é que a ressaca nunca bate!”
Essas reflexões não aconteceram de forma linear e sequencial. Foram antes
fragmentos de intuições, insights saltados e desconexos que fui montando em
um mosaico cada vez mais sinistro. Aos poucos, fui construindo uma imagem
que se tornou real demais para que pudesse ser negada.
Eu começava a suspeitar que as moedas não só estavam vivas, como eram
também inteligentes. Ou ao menos dotadas de uma firme vontade e de
obscuros propósitos.
Mas de onde viriam as moedas? Como uma criança contemplando o
repolho, a cegonha, as abelhinhas e o sexo, eu me perguntava qual seria a
verdadeira origem das moedas, qual o mistério apavorante daquela existência
que eu passara a reconhecer.
Eu não sabia como interpretar aquilo tudo. Havia lido em algum lugar que o
ouro e a prata surgem das explosões de Supernovas. Como é que o cobre iria se
transformar em prata, e esta em ouro?
Por outro lado, é bem conhecida a busca dos alquimistas pela pedra
filosofal, que seria capaz de transformar o chumbo em ouro. Será que essa
lenda nasceu de uma deturpação do processo de metamorfose das moedas?
Era incrível para o senso comum e impossível para o pensamento científico.
No entanto, as moedas eram reais. Mas o que seriam elas?
Seriam criaturas concebidas em laboratório, resultado de algum bizarro
experimento científico? Ou então seres alienígenas, introduzidos na Terra para
cumprir um plano maléfico? Seriam entes sobrenaturais, gerados por magia
negra?
Tudo era possível. Tudo era inconcebível. A julgar pelo passado de Bodoni,
qualquer hipótese era igualmente válida, igualmente inaceitável.
Em um rasgo de generosidade, il Dottore havia me colocado na pista de
Chandra Bose. Foi o que me despertou para o fato de que as moedas estavam
vivas. Todo o resto não passava de especulação.
Fausto Zambrini também havia oferecido uma pista importante. Com ele
aprendi que as moedas se alimentavam da ambição humana. Para conseguir a
prata, é preciso querê-la muito. Para alcançar Zambrini, eu precisava me tornar
como ele.
Dediquei-me de corpo e alma à tarefa de me transformar em um monstro
da cobiça, em um demônio da luxúria. Mas minha metamorfose não foi tão
aterradora quanto a de Spagnolo, nem tão nauseante quanto a de Rita.
Não tive dificuldades em estabelecer minhas operações no mercado local. A
bolsa de valores de Rio Santo não difere muito da de Milão. E a cada vez que
eu coletava os dividendos, separava religiosamente a parte que cabia a Bodoni.
Foi quando descobri que continuava sendo compelido a obedecer suas
instruções mesmo à distância. Meus contatos com ele eram pouco frequentes.
Contanto que o dinheiro continuasse entrando na conta, il Dottore estava
satisfeito. E eu estava enviando bastante dinheiro.
Isso me dava ao menos uma ilusão de liberdade. Eu era jovem,
financeiramente independente, estava bem de vida. Só visitava a família nas
raras e inevitáveis ocasiões sociais. Todo o meu tempo livre era gasto em sexo e
estudos sobre as propriedades dos metais. Pela primeira vez na vida, eu estava
realmente focado em um objetivo.
E foi então que teve início o processo que só posso chamar de gestação.
Primeiro os sintomas eram muito sutis para serem notados. Períodos de alta
agitação, quando eu sentia uma espécie de euforia indistinta, eram substituídos
por momentos intermináveis de letargia e marasmo, quando a menor tarefa
parecia um desafio insuperável. Tive febres e suores noturnos. Mudanças de
humor. E também uma estranha compulsão alimentar.
Adquiri o costume de ir pessoalmente ao mercado, e ficava vagando por
entre as prateleiras até sentir o súbito impulso de consumir quantidades
infinitas dessa ou daquela mercadoria em exposição. Certa vez devorei cinco
dúzias de ostras cruas. De outra, foi um saco de um quilo de sementes de
girassol.
Um belo dia acordei e havia acontecido. Não precisei olhar no espelho para
saber que a minha moeda era de prata. Mas é claro que fui correndo olhar. A
visão de minha própria bunda no espelho, ornada como estava por uma
medalha de puríssima prata, tomou-me de uma comoção tal que quando dei
por mim estava literalmente com o pau na mão. Friccionei o meu pênis duro e
aflito com a mão esquerda, enquanto a destra ocupava-se em acariciar a minha
recente e brilhante conquista argentina.
Não demorou muito para chegar o fim. E foi um verdadeiro apocalipse.
O prazer mais avassalador e a dor mais excruciante deram as mãos para um
bailado de fúria e êxtase. Eu não acreditava que fosse possível sentir tanta dor e
prazer ao mesmo tempo.
Ejaculei em câmara lenta, um gozo espesso, quase sólido, como se meu
pênis fosse um termômetro que houvesse estourado. O esperma não saía
branco, e sim avermelhado, um pouco mais escuro que a lava incandescente.
A princípio pensei que eu tivesse gozado sangue. Mas era algo bem diferente
o que havia saído de minhas entranhas.
Diante de meus olhos incrédulos, a gorda gota de cobre foi se solidificando
até assumir aquele formato tão familiar de uma moeda.
CAPÍTULO 57 – VENTO
Está claro que um dia aconteceria comigo o que aconteceu com il Dottore.
Cedo ou tarde os meus contratados, ao menos alguns deles, acabariam também
fazendo por merecer uma moeda de prata. Eu acreditava estar preparado. E o
meu plano provou ser correto.
Bodoni baseava seu poder unicamente na ascendência da prata sobre o
cobre. Era só disso que ele se valia para exercer sua vontade. Confiou
cegamente que seria sempre o cavalo de prata em seu harém de peões de cobre.
Que essa estratégia foi um erro ficou bem demonstrado quando Bodoni teve
que fugir de Zambrini com o rabo entre as pernas.
Eu, pelo contrário, consolidei a minha força utilizando o interesse próprio
de cada um. Construí um império porque dei mais liberdade a cada um para que
fizesse o seu melhor por mim. Apelei para a hipocrisia tão característica do ser
humano. Meus contratados podiam fingir que eram livres.
As pessoas que usavam as minhas moedas estavam todas trabalhando para
mim ou ganhando dinheiro comigo de alguma forma. Tive um cuidado especial
para evitar a coação e qualquer comando abrupto ou muito direto. Ninguém
precisava saber que era eu que mandava, contanto que eu fosse obedecido. O
melhor escravo é o que não percebe que é.
E o fruto desse meu cuidado foi que nenhum de meus contratados se sentia
obrigado a fazer o que fazia por mim. Todos achavam que estavam agindo por
interesse próprio. Faziam o que faziam só pelo dinheiro.
Enfim a prata começou a surgir. E os novos cavalos tornaram-se meus mais
úteis aliados. Como não havia motivos para que sua vontade se opusesse à
minha, eles continuaram fazendo tudo o que eu mandava, e até melhor que
antes. As contratações que fizeram, sempre sob minha supervisão, também
serviam indiretamente a mim.
Uma curiosidade antiga foi saciada quando pela primeira vez uma mulher
que contratei ganhou sua moeda de prata. Eu queria muito saber como ela faria
para botar para fora a moeda de cobre. E afinal descobri: como eu suspeitava,
as mulheres põem as moedas durante a menstruação. Um número
impressionante. Entre oito e doze moedas por dia a cada menstruação. Isso
significava uma capacidade de produção de até sessenta moedas por mês.
O que dava duas moedas por dia. Nenhum homem no mundo seria capaz
de cuspir duas moedas de cobre em um só dia. Ainda mais durante trinta dias
seguidos. Por outro lado, imagine o tamanho da enxaqueca e a fúria da TPM
geradas por tal monstruosa menstruação. Não é à toa que é bem menor a
proporção de mulheres que conquista a moeda prateada.
Mas por essas e outras eu sabia que minha posição tornava-se mais precária
a cada novo cavalo que surgia. Melhor que a maioria, eu havia aprendido a
nunca subestimar a ambição humana. Mas não cheguei a ficar preocupado. Eu
sentia que estava próxima a minha moeda de ouro.
Bodoni me mostrou que o ouro, assim como a prata, vem pelo mérito. A
lógica é essencialmente a mesma nos dois casos. Para merecer a prata, é preciso
ambição e tesão para gerar muitas moedas de cobre. Para ser merecedor do
ouro, é preciso garantir o florescimento das moedas de prata.
Il Dottore alcançou seu ouro em um lampejo criativo, ao inventar a
contratação in útero, por assim dizer. O meu ouro foi mais suado, mas não
menos brilhante. Eu havia criado um ambiente perfeito para a proliferação das
moedas. Eu havia inventado a Fábrica.
O dinheiro vai para quem faz o dinheiro crescer. O poder assenta bem na
mão dos poderosos. Mesmo na condição de cavalo, eu já havia me alçado à
posição de Rei. Só faltava a coroa de ouro.
Vibrei de satisfação ao notar os primeiros indícios. Febres, suores noturnos,
mudanças abruptas de humor. E os bizarros desejos alimentares. Passei um dia
inteiro comendo cebolas cruas.
Eu estava grávido de novo. E finalmente dei à luz uma gloriosa
circunferência dourada, onde antes havia só prata.
Meus novos poderes me deixaram exultante. Tornei-me capaz de captar os
estados emocionais das pessoas, e não somente de meus contratados. Com
esses, às vezes era quase como se eu pudesse ouvir os seus pensamentos.
Ficou também muito mais fácil impor a minha vontade sobre os outros. E o
apetite sexual ficou ainda mais aguçado.
Eu estava mais do que pronto para usufruir de meu próspero reinado. Mas
esse foi justamente o momento escolhido por Bodoni para retornar a Rio
Santo.
ROQUE.TXT
Confesso que minhas mãos tremiam de ansiedade quando por fim abri o
arquivo. Il Dottore havia digitado pouquíssimas palavras:
Velho filho de uma puta! Como xinguei o maldito. Era como se o estivesse
ouvindo dando gargalhadas no túmulo. Eu já sabia de antemão que a fórmula
seria inútil sem o mantra. E a única maneira de aprender o mantra era ouvir il
Dottore recitá-lo.
A não ser que ele tivesse deixado uma gravação. Tomado por essa ideia, fui
correndo checar mais uma vez o laptop de Bodoni. Pois já havia vasculhado
aquele computador de cabo a rabo. Além de uma espantosa coleção de fotos
amadoras de sexo, provavelmente capturadas na Internet, e dos programas
usuais, que pareciam não ter sido usados pois não havia nenhum arquivo salvo,
não havia mais muita coisa no HD.
Só uma pasta de músicas, à qual eu ainda não dera maiores atenções. Julguei
que Bodoni tivesse simplesmente transferido aquelas músicas do armazenador
portátil para o laptop, a fim de liberar espaço. Examinei novamente a lista de
músicas. Os arquivos estavam organizados em subpastas, todas com nomes de
óperas famosas, bem no gosto musical de il Dottore. Havia um único arquivo de
áudio salvo na pasta raiz. Em meio a tantas óperas, era o único trecho de uma
sinfonia. O título do arquivo era Ode an die Freude, o célebre poema de Schiller
cantado durante a Nona de Beethoven.
Movido por súbita intuição, cliquei no arquivo. A voz de Bodoni saiu
metálica dos alto-falantes:
“Olá, Rogério. Se você estiver ouvindo isso, é porque estou morto. Saiba que não guardo
rancores. Foi melhor desse jeito. Faça bom proveito do dinheiro que eu trouxe para você. Não
me foi de grande valia. Quanto ao mantra do Roque, receio que terá que descobri-lo por si
mesmo. Meu altruísmo não chega para tanto. Além do mais, não resisti ao impulso de lhe
passar a perna mais uma vez, meu caro pupilo, em nossa derradeira partida de xadrez. Não
se aborreça com as mesquinhas diversões de um homem velho. Você sempre foi especial para
mim, Rogério. Diga às crianças que as perdoo.”
Ninguém ficou chorando il Dottore por muito tempo. Duas semanas depois
do óbito, fui graciosamente convidado a visitar a cidade de Nova Iorque,
Estados Unidos. Eu havia sido convocado para uma reunião do Conselho.
Confesso que estava nervoso quando saltei do táxi diante daquele
imponente prédio na Quinta Avenida. O meu compromisso era na cobertura.
A porta do elevador dava de cara para o portentoso baixo-relevo com a
logomarca da CSG Enterprise. As iniciais vinham de Copper, Silver & Gold. Esse
foi o nome que os americanos deram para a Fábrica. O que tornava a
logomarca portentosa eram as três serpentes entrelaçadas.
Aguardei por uma hora e meia na recepção até ser chamado para a sala do
Conselho. O ambiente era luxuoso, de extremo bom gosto. As janelas davam
para o Central Park. Não impressionava menos por ser clichê.
Não cheguei a ficar sabendo o nome de nenhum dos membros do
Conselho. Nossa reunião durou menos de quinze minutos. E eles não se
dignaram a se apresentar. Eram três homens e uma mulher. Dos homens, dois
eram tipicamente americanos, de aparência agressiva e arrogante, um mais
branco que o outro. O terceiro homem possuía feições orientais, de
ascendência provavelmente nipônica. Não era menos arrogante e agressivo que
os outros dois. A mulher era uma afro-americana de beleza estonteante, por
quem imediatamente me apaixonei.
Nenhum dos quatro tinha mais de trinta anos. E já eram os donos do
mundo. Aqueles sim, eram os verdadeiros Olimpianos. Senti-me velho,
fracassado, fraco. Subitamente me vi na pele do falecido Mario Bodoni. Meu
inglês não era tão bom quanto o italiano, mas dava para o gasto. Aliás, não
precisava dizer muita coisa e sim escutar.
O primeiro a falar foi um dos caucasianos. Como eu não sabia o seu nome,
chamei-o de White. “Então, senhor Bastos. Tomamos conhecimento da
maneira como você lidou com nosso associado em comum, Anton Bandura.”
Antes que eu pudesse dizer algo, o segundo homem falou. Como era um
pouco mais pálido que o primeiro, batizei-o Whitemore. “Não desperdice o
nosso tempo tentando justificar suas ações. Foi um trabalho desajeitado, na
melhor das hipóteses. Ainda assim, você demonstrou o tipo de iniciativa que
esperamos encontrar em nossos associados. Por isso a pergunta é: está
preparado para assumir o lugar de seu antecessor, senhor Bastos?”
“Sim. É claro que sim.”
Isso desfez bastante a tensão. Os quatro ficaram satisfeitos ao ver que
poderíamos entrar em acordo, e eu mais que todos. O japonês empurrou uma
maleta em minha direção. Resolvi chamá-lo de Japonês. “Considere isso um
pequeno teste de desempenho. Dependendo de como se sair, senhor Bastos,
discutiremos suas novas atribuições.”
Abri a maleta. Nunca tinha visto tantas moedas de cobre. Devia haver pelo
menos duas mil delas, perfeitamente empilhadas dentro da maleta. Como eles
conseguiram produzir tantas? Eu supunha que aquela operação era apenas uma
dentre inúmeras outras que o Conselho devia ter em andamento ao redor do
mundo, e possivelmente até mesmo no Brasil. Se em cada uma delas estivessem
investindo aquele tanto de moedas, a quantidade final devia ser de ordem
astronômica. Fechei a maleta e a ergui de cima da mesa, tentando avaliar o seu
peso. Devia pesar mais de dez quilos.
Foi só aí que a mulher falou. Ao ouvir sua voz ricamente cultivada, não tive
dúvidas de que era ela mesmo quem dava a palavra final por ali. Decidi chamá-
la de Rainha Negra. “É pesada, sim. Mas não tanto quanto suas
responsabilidades agora para conosco.”
Obedecendo a um gesto quase imperceptível da Rainha Negra, o Japonês
explicou: “Utilizamos um índice para controlar operações como esta. O valor
de cada moeda é expresso em dólares americanos. A cotação varia com o
tempo, de acordo com o número de moedas em circulação.”
E então mandei a primeira bola para fora. Quis bancar o esperto e me
antecipei ao Japonês: “Entendi. Quanto mais moedas soltamos no mercado,
menor torna-se o valor de cada moeda individual.”
“Senhor Bastos”, disse a Rainha Negra, e só pelo modo como ela disse o
meu nome percebi que havia falado besteira. “É precisamente o contrário
disso.”
“Quanto mais pessoas estiverem usando as moedas, maior se torna o valor
de cada moeda”, disse Whitemore, como se estivesse recitando um trecho da
Bíblia. “Isto deveria ser óbvio. Não estamos tratando aqui de economia
doméstica para iniciantes, pelo bem de Cristo!”
“Não adianta. É preciso explicar tudo.” White exibiu os dentes brancos em
um sorriso superior. E começou a me passar a lição: “Senhor Bastos, por que
estamos confiando a você tantas moedas? Certamente não seria para que suas
ações fizessem o valor das moedas diminuir, você não concordaria? Nossos
interesses estão em expandir os negócios e aumentar o valor das moedas. E
como fazemos isso? Aumentando o número de pessoas que usam nossas
moedas. Pois a cada nova pessoa portando uma moeda, maior se torna nossa
capacidade de operação e influência. A cada nova moeda, ficamos maiores e
mais poderosos. E é por isso que a cotação da moeda em dólares sobe com o
aumento das moedas. Está tudo compreendido agora? E você tem certeza de
que está à altura da tarefa?”
Eu estava vexado, mas não queria transparecer isso: “Qual é a cotação atual
da moeda? Se vocês não se importam em dizer.”
Foi o Japonês quem respondeu: “Cada moeda está cotada em cerca de
quinhentos dólares. Talvez um pouco mais que isso.”
Senti uma moleza nos joelhos, a respiração ofegante. Se meus cálculos
estavam certos, havia mais de um milhão de dólares em moedas naquela maleta.
Meus pensamentos deviam ser óbvios, pois a Rainha Negra disse: “Esse é o
montante de nosso investimento inicial em suas operações. Faça-o retornar
para nós com um bom lucro, e então começaremos a fazer negócios de
verdade.”
Eu já estava de saída, mas não pude me conter. Precisava perguntar: “Há
algo que eu gostaria de saber. Quando terei a oportunidade de conhecer um dos
acionistas?”
“Que acionistas, senhor Bastos?” Quis saber a Rainha Negra.
“Bem, vocês sabem. As pessoas que realmente estão comandando o show.
Os portadores das moedas de roentgênio.”
Por um momento os quatro me fitaram em silêncio. Então, como se
obedecendo a um sinal secreto, caíram todos na gargalhada. Eles estavam rindo
da minha cara.
“Apreciamos o seu senso de humor, senhor Bastos”, disse por fim a mulher,
no tom inconfundível de quem estava me dispensando. “Se nos der licença
agora, temos outros compromissos a atender. Tenha um bom dia.”
Durante dois anos, essas foram as lembranças que tive de meu primeiro e
único encontro com o Conselho. Nem por um momento sequer questionei a
veracidade de minhas memórias, nem me pareceram estranhas suas evidentes
inverossimilhanças. Só depois da radical cirurgia de extração da moeda,
realizada em mim pelo inspetor Teixeira com o seu fiel canivete, foi que pude
notar que havia algo definitivamente estranho nessas recordações. Foi só então
que enxerguei o óbvio.
Como diriam os americanos, aquela história toda não passava de um monte
de merda de boi.
As minhas memórias foram editadas. Os fatos ocorreram de forma
ligeiramente diferente do que eu era capaz de lembrar. Detalhes essenciais
foram suprimidos. Pois o que aconteceu na realidade é que fui recondicionado.
Essa é a única explicação possível. Elementar, meu caro Bastos.
De que outra forma então explicar o que aconteceu em seguida?
Cheguei no Brasil com a maleta cheia de moedas. Nem sei como passei pela
alfândega. Obviamente algum esquema existia. E então qual foi o meu primeiro
ato? Entreguei a maleta para os gêmeos. A lógica dessa decisão me pareceu
irresistível na época. Era sem dúvida a melhor coisa a se fazer.
E para que os dois pudessem investir bem aquele tesouro em moedas de
cobre, confiei-lhes o total controle de minha rede de prostituição. Para mim,
aquela era uma sábia delegação de poderes. Acreditava realmente que era eu
quem estava no comando.
Os resultados foram esplêndidos, o que só confirmou o tino aparente de
minhas decisões. Recebi um comunicado do Conselho de que dessa vez a
remessa seria de dez mil moedas. Encarregar os gêmeos do transporte das
moedas, bem como de todos os contatos posteriores com o Conselho, foi o
passo seguinte e natural.
E assim fui abrindo mão de meus privilégios e responsabilidades em prol
dos gêmeos. Passei a ser o chefinho apenas nominalmente, se tanto. Uma coisa
curiosa foi que os gêmeos continuaram usando os meus códigos vocais pessoais
para o condicionamento dos novos contratados. Cada um desses milhares de
portadores de moedas sofreria irremediavelmente um intenso ataque de pânico
ao ouvir o meu nome ser pronunciado: Rogério Arcanjo Bastos. E sofreriam
mais do que achavam ser possível ao som de minha palavrinha mágica
particular: tonatufor. E assim por diante. Nunca entendi direito porque os
gêmeos agiram dessa forma. Talvez desejassem apenas manter a ilusão de que
era eu quem estava no comando. Talvez a sua esterilidade os impedisse também
de gerar os seus próprios códigos.
Eu mesmo é que não podia estar ligando menos para essas coisas. Todo o
meu tempo e energia eram insuficientes para um projeto que subitamente
adquiriu para mim uma importância vital. Era o Programa de AutoPercepção e
Aprimoramento Inteligente.
Hoje, depois que tudo terminou, vejo que o PAPAI era apenas um
escoadouro secundário para a enchente de moedas que os americanos
continuavam mandando para o Brasil. Uma vez que havia moedas de sobra,
começamos a contratar nos escalões de chefia intermediária e até pessoal
operacional, como se já não tivéssemos o bastante. Era esse o propósito do
PAPAI: capturar a arraia miúda. Os peixes realmente grandes estavam sendo
pescados por Júlia e Kim.
Mas para mim o programa era o centro do universo. Fiscalizava
pessoalmente cada detalhe da operação, infernizava os subalternos, exigia o
estrito cumprimento das normas. Eu havia iniciado um império. De uma hora
para a outra, fui rebaixado a chefe carcereiro burguês padrão. E o pior de tudo
é que nem me dei conta disso.
Quando graças ao programa fiquei sabendo que o inspetor Teixeira era meu
filho natural, atribuí a descoberta a uma coroação de meus esforços. Não tinha
porque ficar feliz com a novidade, mas exultei de triunfo. Convenci a mim
mesmo de que meus atos obedeciam unicamente a uma secreta e poderosa
intuição.
A verdade era bem outra. No que diz respeito a Alberto Teixeira, meus
passos estavam sendo guiados desde o início. A revelação de minha paternidade
não foi uma surpresa para a Fábrica. O evento fora descortinado pelo
computador Anson, com largas probabilidades. Eu é que nada sabia a respeito.
O fato de eu ter um filho era de grande interesse para a Fábrica. Mesmo
com tanta proliferação de moedas, continuavam sendo raros os que chegavam a
alcançar o ouro. Dentre esses, pouquíssimos tinham filhos.
Uma pista importante que tive ocorreu quando Júlia e Kim descobriram a
existência de Henrique Habbot, dias depois da morte de Bodoni. Júlia ficou
possessa:
“Nós tínhamos o mapa de El Dorado nas mãos. E você simplesmente deixou
o vento levar, chefinho. Por que não nos avisou que Bodoni tinha um filho?”
Eu jamais havia julgado necessário comentar sobre Henrique com os
gêmeos. Para falar a verdade, nem lembrava mais dele nem de Irene. Foi uma
total surpresa para mim também o encontro que Bodoni arquitetava ter com o
filho.
Esse episódio deveria ter me deixado desconfiado. E deixou mesmo. O
problema é que toda vez que eu começava a pensar no assunto sentia logo uma
terrível enxaqueca. O mesmo acontecia se eu tentava lembrar de mais detalhes
de minha ida a Nova Iorque, ou então se eu me pegava questionando o porquê
de conceder tanta força aos gêmeos. Em pouco tempo, minha mente passou a
evitar esses pensamentos dolorosos.
Na minha cabeça, eu era um dos mais bem sucedidos homens no mundo.
Não sabia que o meu sucesso consistia em construir eu mesmo o meu próprio
cadafalso. Se eu não sabia do mal, contudo, que mal havia? Em meu próprio
mundo, tudo estava bem.
É um pouco triste dizer isso. Mas esse período que passei como robô foi
um dos mais felizes de minha vida.
Hoje parece fácil ver como eu estava sendo manipulado pelos gêmeos. Essa
é a vantagem do presente ao elucidar o passado, tornando evidente o que estava
obscuro, trazendo à luz motivações ocultas e ações falseadas, revelando onde
foram plantadas as sementes pelos frutos que geraram.
A vantagem do passado é ser imutável. E a vantagem do futuro é a de não
passar de um sonho na mente dos homens.
É. Os vencedores escrevem a história. Aos perdedores, resta a filosofia.
Pois o fato é que os gêmeos estavam me passando a perna em grande estilo.
E eu pensando que sabia muito bem lidar com os dois. Como diria a peãozada
lá da fazenda de meu pai, enquanto eu ainda estava dando ração a bacorinho,
Kim e Júlia já estavam comendo torresmo.
Creio que o que me manteve vivo foi a minha condição de bispo. De todos
os meus contratados, não soube de nenhum que alcançou a moeda de ouro. Eu
era mais útil à Fábrica vivo que morto. Uma vez que minha liderança tornou-se
meramente figurativa, deixei de representar obstáculo para a ambição dos
gêmeos. Tampouco cometi ofensas capazes de suscitar neles o desejo de
vingança. Muito pelo contrário, pois muito mais frequentemente era eu a parte
ofendida. Não havia razão, portanto, para que eu fosse assassinado. Júlia e Kim
não iriam me matar só para preencher o tédio de uma tarde ociosa.
Tudo mudou com a descoberta de que Teixeira era meu filho. A partir daí,
minha vida não valia mais um tostão furado. Já minha morte poderia render um
carro-forte recheado de moedas. E foi assim que os gêmeos resolveram entrar
em ação.
Fiquei muitíssimo intrigado pelo fato de Júlia e Kim terem agendado o meu
sincronicídio para o mesmo dia em que decidi efetivar a contratação de
Teixeira. O que será que os gêmeos pretendiam, induzindo-me a mandar
Varlene usar o Cromomagnetoscópio com Teixeira justo naquele dia? Ou será
que tudo não passou de uma coincidência? Era para mim difícil crer nessa
hipótese.
O que teria acontecido se Varlene tivesse êxito em contratar Teixeira? Teria
isso colocado os planos sincronicidas de Júlia em suspenso? Pouco provável.
Fosse a contratação conduzida por Varlene ou Ágata, o resultado final teria
sido o mesmo. Teixeira estaria conectado à Fábrica. Fácil de prever, fácil de
manipular, fácil de controlar.
Tal como os fatos se deram, contudo, Varlene acabou atrapalhando Ágata, e
vice-versa. Teixeira continuava sendo uma incógnita tanto nas equações dos
gêmeos, quanto nas minhas. De pouco adiantava naquele momento a moeda
grudada em sua coluna: enquanto ele não gozasse, continuaria livre.
Não fosse por esse pequeno e crucial detalhe, até que os gêmeos se
prepararam direitinho.
Imagino que selecionaram Ágata dentre as inúmeras prostitutas de luxo de
uma de minhas casas, que eles agora comandavam. Provavelmente escolheram
Ágata pelo seu tipo físico, por estar muito próximo do que Teixeira considerava
o ideal de mulher.
Tornou-se óbvio que os gêmeos tiveram acesso ao perfil psicológico do
inspetor Teixeira, bem como a outras informações confidenciais do PAPAI.
Pois meu filho ficar com os quatro pneus arriados por uma mulher como ele
ficou, não seria por uma qualquer. Ágata foi muito bem escolhida. Bem
escolhida até demais.
Da mesma forma ficou evidente que Júlia e Kim conseguiram hackear meu
computador pessoal. De que outro jeito teriam conseguido produzir aquele
bizarro livro inacabado, A Morte do Inspetor Teixeira? Imagino que eles não
tiveram nenhum motivo especial para inventar essa história do livro. Devem ter
achado divertido zoar com o senso de realidade do inspetor.
A minitevê implantada em Teixeira estava configurada para gravar em modo
de transcrição automática. Essa é normalmente a configuração padrão. Isso
significa dizer que junto com os registros de vídeo, áudio e padrões energéticos,
um arquivo de texto era também gerado, contendo todas as palavras que
Teixeira disse ou que disseram perto dele. Os arquivos gerados normalmente
não passavam de páginas intermináveis de baboseira sem sentido para cada
meio parágrafo interessante. Mas nunca se sabe quando um arquivo desses
pode se tornar útil, o que foi demonstrado cabalmente por Júlia e Kim.
A julgar pelas ações e reações dos gêmeos nesse dia, creio que eles não
conseguiram ter acesso aos arquivos principais de áudio e vídeo. Mas
seguramente acessaram esses arquivos de backup de texto, com a transcrição
das falas. Só pode ter sido. Quanto à capa e ao acabamento, provavelmente já
deixaram tudo pré-formatado. E uma boa gráfica rápida fez a impressão do
livro em meia hora ou menos. Ainda assim, deve ter sido um cronograma
apertado editar e imprimir o livro em tempo hábil para que estivesse nas mãos
de Ágata no momento certo. Tudo bem ao gosto dos gêmeos.
Isso para não mencionar que os dois passaram a noite anterior em claro,
ocupados em monitorar o traficante Jorginho Príncipe e a menina Isabele
enquanto os dois se afogavam em uma banheira de excrementos.
A escolha das vítimas foi motivada com toda certeza pelo irreprimível e
distorcido senso estético de Júlia, que acreditava elevar o assassinato a uma
nobre arte só por enfeitá-lo com o aroma de eruditas citações literárias. O
objetivo principal do crime da Suíte V foi deflagrar o confronto entre duas
facções criminosas rivais. Com sua imaginação deviante, Júlia enxertou a
tragédia de Romeu e Julieta na guerra do narcotráfico. E a ideia nem era
original: ela copiou de um filme.
Desconheço que artifícios os gêmeos usaram para sequestrar Jorginho
Príncipe e a menina, mas não deve ter sido nada muito difícil. Isabele foi
decerto aliciada por alguma notícia falsa ou promessa tentadora na saída da
escola. O chefe do tráfico em Nova Colômbia pode ter dado mais trabalho, ou
talvez menos. Talvez tivesse bastado um convite insinuado de sexo fácil com a
linda patricinha loira. Afinal, tudo o que Júlia precisava era que ele entrasse no
carro. E ela era boa em convencer as pessoas.
Eu que o diga.
CAPÍTULO 63 – DEPOIS DO FIM
Esse negócio de matanças lucrativas não era para mim. Os gêmeos, pelo
contrário, nasceram para isso. Era a sua vocação natural, o seu chamado
místico. Eles nunca se sentiam tão realizados quanto depois de dar cabo da vida
de outro ser humano.
Talvez o fato de serem ambos estéreis tivesse a ver com toda aquela sede de
sangue. Júlia e Kim estavam paralisados na moeda de prata. Não havia como
progredirem até o ouro, pois não podiam gerar o cobre. E desconfio que da
mesma forma fossem incapazes de procriar através do sexo. Os dois eram
estéreis, como todos os híbridos. Talvez daí tenha vindo tanto ódio à vida.
E olha que eles começaram cedo. Quando vieram com Bodoni dos Estados
Unidos muito provavelmente já não eram virgens também em matéria de
homicídios. Pois com poucos meses que eles estavam sob meus cuidados tive
meu primeiro problema dessa natureza.
Um garoto morreu afogado na piscina da escola. Júlia e Kim estavam
brincando com ele. Não souberam explicar como ocorreu o acidente. Ninguém
esperava que o fizessem. Afinal eram apenas crianças.
Seis meses depois, a escola foi abalada por uma nova tragédia. Dessa vez foi
uma menina, que quebrou o pescoço ao cair do balanço na hora do recreio. Os
gêmeos estavam no mesmo brinquedo. Antes que os coleguinhas de turma e
professores começassem a somar dois mais dois, retirei Kim e sua irmã da
escola, alegando motivo de viagem urgente. Minha atitude não chegou a
despertar suspeitas, pois muitos pais estavam fazendo o mesmo.
Não precisei conversar com os gêmeos a respeito. Kim só precisava segurar
a minha mão para ficar sabendo o que eu estava pensando. Mas depois disso
eles ficaram mais cuidadosos. Aconteceram outros acidentes fatais nas escolas
por onde passaram, mas nunca houve a desconfiança de que os gêmeos
estivessem envolvidos. Por essa época Júlia já se tornara uma ávida leitora de
romances policiais, e chegara à conclusão de que o assassinato é muito mais
divertido quando ninguém desconfia do assassino.
E eu fazendo vista grossa, mudando os gêmeos de colégio sempre que
alguém morria. Não foram só colegas de turma. Em um dos colégios, a
professora de ciências e um faxineiro morreram depois de beber café com vidro
moído. Três outros professores foram hospitalizados em estado grave.
Fora isso, os dois nunca me deram trabalho com os estudos. Sempre
tiravam boas notas. Júlia era bastante estudiosa, e Kim um verdadeiro mestre da
cola. Ele só precisava sentar atrás do cdf da turma durante as provas, e dar um
jeito de encostar no colega sem que a professora notasse.
Mas foi um alívio quando os dois me comunicaram, aos catorze anos, que
não pretendiam continuar frequentando a escola. Não viam razão naquilo. E eu
muito menos.
Desde então passaram a viajar bastante, conhecendo o Brasil e o mundo.
Dinheiro para isso não faltava. Às vezes ficavam poucos dias fora. Mas também
passavam até meses seguidos viajando, para minha grande alegria. Isso ajudou a
tornar a nossa convivência aceitável.
Sei que passaram ao menos uma longa temporada na Índia, logo que
completaram dezesseis. Foi por essa época que Kim começou com as cirurgias
para ficar mais parecido com a irmã. A primeira que ele fez foi até discreta:
limitou-se a copiar a pinta de Júlia acima dos lábios.
Na Índia, os dois refizeram os passos de Bodoni e foram além.
Mergulharam de cabeça no chamado Caminho da Mão Esquerda. Voltaram
eufóricos, cheios de novidades. Ainda estávamos no estacionamento do
aeroporto quando eles me mostraram um dos novos truques que haviam
aprendido. Fizeram isso de uma forma bem infantil: me dando língua. Fiquei
estarrecido com aquelas línguas descomunais, com o dobro do tamanho de uma
língua normal. Foi então que Júlia me contou sobre a técnica secreta de Khechari
Mudra.
“Mas para que vocês quiseram aprender uma coisa dessas?”
“Ora, chefinho, não é óbvio?” Júlia respondeu com um sorriso que nada
tinha de infantil e que gelou meus bagos na hora. “Fizemos isso para obter
poderes.”
Foi nessas viagens também que os dois fizeram os primeiros contatos com
grupos neonazistas na Europa. Quando estavam em Rio Santo, passavam mais
tempo na rua que em casa. Eu imaginava que se divertiam caçando putas e
mendigos. Não seriam os únicos adolescentes ricos da cidade fazendo isso.
Esse talento para o sangue eu nunca tive. Mas não chegava a me horrorizar
com as matanças dos gêmeos. Desde o tempo de Bodoni, já tinha visto muita
coisa. Não me sentia capaz de matar, mas não me incomodava conviver com
dois assassinos.
Até o dia do sincronicídio, só estive envolvido diretamente em uma morte, a
de Bodoni. E mesmo assim o meu papel foi bastante secundário. Tudo o que
fiz foi sugerir a ideia para os gêmeos.
Mas aquele dia que começou com trovões estava destinado a me
transformar em um matador de uma vez por todas. Varlene foi a primeira
pessoa que matei com minhas próprias mãos. Pois ao ativar o loop de
orgasmos, assassinei-a tão seguramente quanto se tivesse disparado contra ela
uma arma de fogo.
É mesmo verdade o que disse Agatha Christie em um de seus livros: é fácil
matar. Não me custou muito ser o agente causador da morte de Varlene
Alberione. Como se não bastasse, poucas horas depois já estava pronto para
cometer meu segundo homicídio.
Comecei tarde demais a minha carreira de assassino. Pois não tenho dúvida
de que um dos fatores que me fizeram ser preterido pelo Conselho foi essa
minha baixa predisposição para os crimes de morte. Tirando a sede de sangue,
eu preenchia todos os requisitos. Era ambicioso, sexualmente hiperativo e sabia
fazer o dinheiro procriar feito coelho. Havia conquistado a minha moeda de
ouro.
Mas para os novos tempos que estavam chegando, não era o suficiente. Os
gêmeos, sim, tinham o que era preciso.
Só depois de tudo terminado, remoendo meus pensamentos, é que fui
divisando o plano que secretamente movia as engrenagens da Fábrica. Primeiro,
era necessário haver um número grande de pessoas usando as moedas. Só assim
era possível por em execução um sincronicídio.
O suposto sincronicídio de Bodoni só existiu na imaginação e prepotência
de Júlia. Não passou de um assassinato complicado. Embora as consequências
tenham sido grandes, nenhum lucro direto foi gerado. Além disso, essas
repercussões da morte de Bodoni foram mais um fruto da incompetência do
delegado Fantini que da perícia dos assassinos.
Mas o episódio serviu a um propósito. A morte de il Dottore mostrou para o
Conselho o potencial dos gêmeos. E foi assim que fiquei para trás e perdi o
bonde da história.
O Conselho estava certo ao apostar em Júlia e Kim. E quando surgiu a
oportunidade para um autêntico sincronicídio, os gêmeos estavam mais que
preparados. Não que eles pretendessem me deixar de fora. Afinal todo crime de
morte, assim como uma partida de xadrez, necessita de um mínimo de dois
participantes.
Para que possa haver um assassino, deve existir também uma vítima.
Isso ficou girando na minha mente por bem mais tempo do que eu gostaria.
E esse mal estar já estava presente ali, quando Bodoni ainda estava vivo. Por
isso é que pedi ao garçom para trazer mais dois uísques com gelo, e aproveitei a
interrupção para trazer o doutor de volta a temas menos incômodos, como o
assassinato.
“Mas o que é que o Karma tem a ver com esse tal de sincronicídio?”
“Ah, sim. Claro. Pois então. Não se trata de acreditar ou não em Karma.
Não se trata de uma crença, mas de um conceito filosófico. A palavra Karma
significa originalmente ação. A tão falada e deturpada lei do Karma, na verdade,
nada mais é que o seguinte: toda ação gera uma reação. Esse é um princípio
básico de funcionamento do nosso universo. Ninguém crê ou não na teoria da
gravitação universal de Newton ou na teoria da relatividade de Einstein. São
coisas que as pessoas conhecem, ou então ignoram. Mas os que ignoram
sentem os efeitos do mesmo jeito. Não há crença nenhuma envolvida, só a pura
experiência.”
“O que nos leva ao sincronicídio.”
“Exatamente. Você disse tudo.”
Não sei se o doutor falhou em perceber o meu sarcasmo. Ou se com um
deboche ainda maior ele estava mostrando que ainda era o meu insuperável
mestre da ironia.
Não sei o que poderia ter feito, considerando que para início de conversa eu
não passava de fantoche na mão dos meninos. Ainda assim, uma parte de mim
hoje lamenta não ter resistido mais, brigado mais, continuado na busca. Mas
acabei me contentando com o ouro dos tolos.
Esqueci a regra básica da ambição. A alegoria da montanha só serve até o
ponto em que você finalmente consegue alcançar o topo. A partir desse
instante, o topo da montanha torna-se uma planície que vai dar no sopé de uma
nova montanha. Querer parar de subir já é começar a cair.
E eu comecei minha queda no momento em que, julgando-me muito
esperto, insinuei na cabeça dos gêmeos a ideia do assassinato de Bodoni. Pois
foi como se tivesse assinado a minha própria sentença de morte.
O que eu deveria ter feito é ter matado o velho eu mesmo. Com um tiro na
cabeça, sem histórias mirabolantes. Que nem nos filmes sobre a máfia. De um
modo prático, impessoal, eficiente.
O doutor estava certo a respeito do Karma. Pois eu fiquei devendo essa
morte.
Com ele. Era isso o que eu deveria ter feito com ele.
Um dos objetivos primários dos gêmeos era deflagrar uma guerra civil em
Rio Santo na noite do sincronicídio. Isso exigiu um bom planejamento.
A versão escatológica de Romeu e Julieta era apenas uma das pontas do
tabuleiro, só uma das cenas do jogo. Com esse lance, os gêmeos não só
deceparam a liderança do narcotráfico em Nova Colômbia como estabeleceram
uma bizarra – e por isso chamativa – conexão entre a morte de Jorginho
Príncipe e a facção rival do morro do Urtigão.
A jogada seguinte foi metralhar Luca do Urtigão e seus comparsas. Primeiro
era preciso seduzir e contratar Luca. Isso não foi difícil para Júlia. E foi assim
que os gêmeos garantiram que Luca estaria com seu bando no Salão 66 ½ na
hora mais propícia, com a guarda aberta e a segurança relaxada, uma presa fácil.
Dezessete homens foram mortos no total. E também uma menina de onze
anos. Mas Júlia e Kim estavam apenas na abertura da partida, simplesmente
arrumando as peças no tabuleiro. Agora sim é que iam desfechar o ataque
propriamente dito.
Uma terceira facção criminosa também disputava os pontos de tráfico em
Rio Santo. Menos conhecida que as outras duas, tinha como base de operações
a favela do Capim Queimado, na periferia da cidade. Depois do massacre do
Salão 66 ½, esse grupo recebeu bastante atenção por parte dos noticiários. Não
passava de um bando de pés de chinelo, mas ficou famoso como a Falange
Púrpura, que na mesma noite declarou guerra ao morro do Urtigão e à favela de
Nova Colômbia.
O nome refinado, tão pouco condizente com a bruta realidade da periferia,
foi certamente ideia de Júlia. Pois ela e Kim eram os verdadeiros comandantes
da Falange Púrpura. Tonho Pilão, chefe nominal do bando, havia recebido sua
moeda de cobre meses antes. Depois disso, Júlia ainda se deu ao desfrute de
contratar pessoalmente os principais homens de Tonho. Graças ao Conselho,
moedas para tanto não faltavam. E Júlia bem que gostava do amor rude dos
bandidos.
Mais ou menos na mesma hora em que Teixeira invadiu a minha casa, todo
roto e ensanguentado, o grupo de Tonho avançava morro do Urtigão adentro.
As forças de Luca estavam desbaratadas após a matança na churrascaria. Os
homens fortemente armados de Tonho tomaram com facilidade a boca do
Urtigão. Só alguns poucos soldados remanescentes ofereceram uma pífia
resistência, e acabaram pagando a obstinação com a vida. Em pouco menos de
meia hora, o morro do Urtigão passou a pertencer à Falange Púrpura.
Bem mais violenta e custosa foi a invasão de Nova Colômbia. Muito sangue
foi derramado. Mesmo privados da inspiradora liderança de Jorginho Príncipe,
os herdeiros da boca resistiram com selvageria. Sorte dos gêmeos terem bucha
de canhão suficiente.
Após a vitoriosa campanha do morro do Urtigão, Tonho e seu bando de
valentes foram exterminados pelas forças defensivas de Nova Colômbia. Foi
mesmo uma batalha de proporções épicas. Mais de trinta pessoas ali
encontraram o fim da vida na ponta de uma bala. Pelo menos um terço das
vítimas não tinha nada a ver com nenhum dos dois lados da briga.
E foi desse modo que em um único dia Júlia e Kim conseguiram dar cabo
das três principais forças do tráfico em Rio Santo. Se o objetivo deles fosse
assumir o controle das bocas, essa teria sido uma pobre estratégia. Pois Tonho
Pilão e seus homens abandonaram o morro do Urtigão imediatamente após a
conquista. Ganharam, mas não levaram. Foram imediatamente para Nova
Colômbia, para matarem e serem mortos. E o resultado foi que os pontos de
tráfico dos três grupos rivais ficaram todos sem dono.
O objetivo dos gêmeos não era comandar as bocas de fumo da cidade. Os
meninos não estavam interessados em drogas. Mas tampouco era a intenção
deles acabar com o tráfico. Ninguém consegue isso simplesmente matando
traficantes. Pois para cada um deles que sai de circulação, três outros surgem
para ocupar a vaga. Se Júlia e Kim quisessem mesmo eliminar o tráfico, muito
mais fácil seria contratar parlamentares ao invés de traficantes, e promover a
legalização de todas as drogas.
Não. O que os dois queriam foi o que acabaram alcançando: o caos e o
terror. Durante as semanas seguintes, Rio Santo foi engolida por uma guerra do
tráfico sem precedentes. Com a morte dos chefões, qualquer grupelho de
facínoras podia almejar o trono de Rei do Pó. Conflitos sangrentos eclodiram
por toda a cidade.
Isso, sim, era o que Kim e sua irmã ambicionavam. Tiros e gritos de dor
ecoando nos ouvidos, o medo fazendo parte da rotina diária. Essa parte do
plano correu admiravelmente bem para os gêmeos.
Kim apontava o cano da pistola ora para mim, ora para Teixeira. Estava
meramente pontuando sua fala. “Pode continuar, chefinho. Não se sinta
constrangido por nossa presença. Continue explicando ao Júnior como tudo é
culpa dos gêmeos malvados.”
Teixeira levantou da cadeira de um pulo. Mas foi logo interceptado por
Júlia, que vinha abraçada a Ágata, com a pistola apontada para sua têmpora.
“Nem pense nisso, bonitão. Estou de olho em você. Qualquer movimento em
falso e abro um novo buraco em sua namoradinha.”
“Acho que ele está querendo pagar para ver.” Kim soltou uma risada
desagradável. “Quem sabe não acabamos descobrindo que é de um buraco
desses que ele agora precisa para ficar excitado?”
Teixeira ficou rubro de indignação por baixo do negro do sangue pisado de
seus ferimentos. Foi notável o esforço que fez para se controlar. Ele rosnou:
“Podem parar já com esse draminha barato de filme B. Vocês estão pensando o
quê? Pra que essa palhaçada de ficar apontando uma arma para a cabeça dela?
Ela é uma de vocês. Por que eu deveria me importar?”
Júlia sorriu de um jeito que desarmou um pouco o inspetor. Percebi que ela
procurava desfazer o efeito do comentário infeliz de seu irmão. “Você está
seguindo a pista errada, meu bem. Ágata só atacou você lá no seu apartamento
porque eu a obriguei. Ela não tinha escolha. Se você aprendeu sobre nós a
metade do que imagino, já deve saber disso.”
Teixeira desviou o olhar, em mudo consentimento. Estava muito vívida a
lembrança do que acontecera com Régis Vale. Júlia prosseguiu: “Pois pode
acreditar no que digo. Essa linda bonequinha aqui do meu lado está total e
irremediavelmente gamada por seu policial herói. Que é você, meu caro. Ela
não tem escolha a não ser amar você. Eu a obriguei a isso. E fiz um ótimo
trabalho, a modéstia que vá para o inferno. Duvido que alguma outra mulher
tenha amado você como Ágata. E é por isso que estou ameaçando a vida dela
para fazer você ficar quieto e escutar o que temos a dizer. Ela é preciosa para
você, não tente negar. Está escrito nos seus olhos.”
Ágata viu aí a sua deixa. Até então ela estivera fitando Teixeira
intensamente. “Alberto, eu não queria fazer aquilo. Eu jamais iria querer te
ferir.”
Tinha uma voz realmente bonita, calorosa e suave como vinho doce. Foi
então que me bateu o reconhecimento. Alguma coisa em Ágata fazia-me
lembrar de Isabel, a mãe de Teixeira. Fiquei surpreso com a descoberta. Sem
dúvida alguma os gêmeos pesquisaram bem fundo.
Kim interrompeu minhas divagações. “Melhor me passar sua arma agora,
inspetor. E bem devagar.”
Teixeira pareceu hesitar por alguns segundos, avaliando a situação. Afinal
resignou-se. Primeiro ergueu os dois braços até a altura da cabeça, para
demonstrar que havia concordado. Só então levou lentamente a mão direita até
o coldre abaixo do braço esquerdo, pegou sua ponto quarenta e a passou com a
coronha voltada para Kim.
Eu tinha de tentar alguma coisa. “Kim, Júlia. Pensem um pouco no que
vocês estão fazendo. Onde isso vai parar?”
Soube que não iria conseguir nada por esse caminho assim que vi o sorriso
que Júlia endereçava a mim. Ela sorriu antes do mesmo jeito para Teixeira.
“Temos trabalhado duro, chefinho. É verdade. Mas só assim se faz um
sincronicídio.”
Brancas avançam na segunda:
Progredindo, mas com pesar. Ele recebe uma grande felicidade de um de seus ancestrais.
Kim não gostou de ver Ágata correndo ao encontro de Teixeira, mas Júlia
com um gesto de mão o deteve.
Ágata afundou o rosto no ombro do inspetor. Apertava-o contra si como
uma menina pequena que se perdeu e que afinal reencontrava o pai. Quando ela
falou, deixou óbvio que também estava chorando como uma criança.
“Alberto, me perdoe.”
Mais não conseguiu dizer. Desabou aos pés do inspetor, chorando
convulsivamente. Teixeira tentou erguê-la do chão, mas Ágata obstinadamente
agarrou-se a seus pés. Ele não teve alternativa a não ser ajoelhar-se
desajeitadamente para melhor amparar a mulher.
Para os dois espojados em meu tapete, perdidos em seu drama íntimo,
naquele instante era como se nem eu nem os gêmeos existíssemos.
CAPÍTULO 29 – PERIGO
O Abismo repetido. Se você for sincero, o sucesso está em seu coração e tudo
o que você fizer terá êxito.
Águas fluem ininterruptamente e alcançam seu objetivo: Assim o homem superior caminha na
virtude duradoura e se empenha no negócio de ensinar.
(I Ching – hexagrama 29)
Por infinito que tenha sido, o idílio amoroso no tapete durou nada mais que
um breve instante. De joelhos no chão, com sua dama no colo, o policial
ergueu os olhos úmidos para fitar os gêmeos. “O que vocês querem que eu
faça?”
Ao ouvir aquilo me julguei perdido. Li no olhar de meu filho que ele faria
qualquer coisa por aquela mulher. Estava totalmente encegueirado pela chama
da paixão.
Júlia franziu o nariz, desdenhosa. “Para começar, vamos parar com o
dramalhão mexicano. O papo aqui é suspense americano, thriller. Não fica bem
misturar assim os estilos.”
Com o consentimento de Júlia, o inspetor ajudou Ágata a levantar-se do
chão e foram os dois sentar-se em meu sofá, bem juntinhos um do outro.
“Fique de olho neles”, Júlia disse para Kim. Ela abriu a mochila que trazia
nas costas e de dentro dela retirou um livro. “Isso pertence a você.”
Júlia passou o livro para o inspetor. Nada menos que a primeira, incompleta
e única edição de A Morte do Inspetor Teixeira. O livro foi recebido com
indiferença. Somente o cenho crispado revelava o quanto aquilo estava
realmente incomodando o inspetor.
“Sei o quanto você é esperto, meu lindo.” Júlia voltou a sorrir com charme e
foi se aproximando da mesa de vidro. “Já adivinhou que fomos nós que
editamos esse livro. Mas já parou para pensar como foi que conseguimos fazer
isso? Talvez você se interesse em saber que na verdade não fizemos
praticamente nada. Simplesmente mandamos imprimir um arquivo de texto no
formato de um livro. E sabe de onde saiu esse arquivo? Daqui mesmo desta
sala. Está salvo junto com inúmeros outros arquivos semelhantes no
computador pessoal de nosso querido chefinho. Este computador bem aqui.”
Acho que foi a primeira vez que Teixeira olhou para mim desde que os
gêmeos invadiram o escritório. Não foi agradável ser olhado daquele jeito.
“Escute, posso explicar perfeitamente isso.”
“Não precisa se dar ao trabalho, chefinho”, Kim sibilou zombeteiramente.
“Deixe que eu explico ao Júnior o que você andou fazendo com ele. É muito
simples.”
Kim avançou dois passos na direção do sofá onde Teixeira e Ágata estavam
sentados. De minha parte, senti um irresistível impulso para relaxar na cadeira e
simplesmente deixar rolar. Eu deveria sobretudo ficar calado, era o melhor para
mim. E bem lá no fundo, uma pequena parcela de minha mente ainda
procurava lutar contra esses comandos de Júlia.
“Tudo o que você viu, ouviu ou disse nos últimos meses vem sendo
gravado pelo chefinho.” Kim prosseguiu com os olhos fixos nos do inspetor e
a pistola acusatória oscilando em minha direção. “Essas informações são
captadas por sensores microscópicos instalados diretamente no seu cérebro.
Todas as imagens e sons que seu cérebro processa e até mesmo alguns indícios
de seu estado emocional são captados pelos sensores e transmitidos
diretamente para aquele computador ali. Ou para qualquer outro computador
conectado à Internet, desde que se tenha o programa certo instalado e a senha
de acesso.”
Júlia interpôs, sem tirar os olhos de cima de mim: “Nós não chamamos ele
de chefinho à toa, sabia? Ele é realmente o chefe, o comandante. Nós somos os
burros de carga, os cumpridores de ordens. E ele estava tentando transformar
você, meu querido, em um de nós.”
Kim retomou de onde Júlia havia parado: “Uma prova disso é que essas
gravações suas, que estão no computador dele, são arquivos que só podem ser
acessados mediante uma senha. E adivinhe a única pessoa que tem a senha? A
mesma pessoa que está fazendo de tudo para se tornar seu novo chefe!”
Júlia voltou a intervir: “Você deve estar se perguntando como é que tivemos
acesso aos arquivos de texto se as gravações são bloqueadas por senha, não é
mesmo? Não há mistério nenhum nisso, meu querido. O chefinho cometeu um
erro. O programa de gravação normalmente gera esse arquivo de texto com a
transcrição do áudio. Um recurso interessante, mas raramente utilizado. Por
isso é que ele acabou se esquecendo de proteger esses arquivos de texto
também com o acesso por senha. Foi só copiar e mandar imprimir.”
Teixeira ouvia em silêncio. Ágata se achegou para mais junto dele e pousou
os lábios em seu ombro. Eu continuava acreditando que era melhor não dizer
nada, ficar na minha, deixar rolar.
Kim afastou-se de Teixeira com um gesto de desdém. Foi sentar-se em uma
das cadeiras. Sua irmã continuou de pé.
“Você devia é nos agradecer. E ainda se considera um grande detetive.
Tivemos que esfregar em sua cara como andam sacaneando você.”
“Foi por isso que enviamos o livro”, contornou Júlia. “Para colocá-lo na
pista certa.”
Kim soltou sua risada seca. “E sabe qual é a melhor parte? Ele estava
ferrando com você completamente dentro da lei. É tudo perfeitamente legal.
Pois você mesmo assinou um contrato autorizando o chefinho a bisbilhotar
cada minuto de sua patética existência.”
Isso tirou o inspetor de seu mutismo: “Do que você está falando?”
Foi Júlia quem respondeu: “Do contrato que você assinou ao aderir ao
programa de autopercepção e aprimoramento inteligente, meu benzinho, você
não se lembra?”
“Cláusula oitenta e sete, parágrafo terceiro”, proclamou Kim. Havia algo de
hiena em seu sorriso.
Júlia citou de cabeça: “O participante do programa autoriza o monitoramento de seus
sistemas sensórios, a fim de assegurar que esteja sempre em condições perceptivas adequadas
para o bom desenvolvimento do programa. Isso é de uma sutileza, que até emociona.
Só mesmo o chefinho para bolar um troço desses. Imagine se ele tivesse
conseguido se formar advogado, do que não seria capaz?”
Teixeira não disse nada. Percebi que se esforçava para não olhar em minha
direção. Isso era ainda pior que receber aquele seu olhar fulminante.
Júlia estava quase chegando onde queria. “Quem diria, o próprio pai
aprontando uma dessas com o filho. Não basta tudo o que ele já fez no
passado.”
“Jogou sua mãe grávida na rua da amargura”, grasnou Kim.
“Sendo rico como é, poderia ter dado a você e à sua mãe uma vida de
conforto, mas não.” O tom de Júlia era solene. Eu ouvia estarrecido. Ficou
evidente que ela e o irmão haviam ensaiado aquelas falas. Era uma das malditas
encenações de Júlia. “Ele deixou sua mãe morrer na miséria e nunca
reconheceu você.”
Kim também adotou uma postura mais sóbria, seguindo a deixa da irmã.
Mas seus lábios continuavam entortados por um sorriso vil.
“Sem contar que você passou os dois últimos anos nos perseguindo, quando
o verdadeiro culpado foi ele.”
“Sim, meu querido, é verdade”, complementou Júlia. “Aí está o mentor do
crime do hotel Émile. Ele bolou tudo. Fomos forçados a agir. Não fosse por
ele, jamais teríamos matado ninguém. E nada disso teria acontecido.”
Eu queria gritar, mas minha boca não se determinava a abrir. Quem falou
foi Teixeira. “Por que estão me dizendo tudo isso? O que vocês querem de
mim, afinal?”
Os gêmeos se entreolharam, sorridentes. Foi Júlia a porta-voz. “Ora, meu
bem. Todo mundo já percebeu, menos você. Queremos que mate o chefinho.”
Dessa vez Kim pontuou sua fala não com movimentos de batuta da sua
pistola, mas com chutes que foi desferindo contra meu corpo caído. “Cale essa
boca! Seu verme miserável e sujo do pântano. Como ousa abrir essa boca
imunda?”
O primeiro chute me pegou desprevenido, bem na boca do estômago. Meu
robe se abriu quando caí da cadeira, por isso recebi com a pele nua o couro
italiano do sapato de Kim. Expeli o ar dos pulmões em um espasmo quando o
bico do sapato chocou-se com a ponta do osso esterno. Uma dor nauseante me
asfixiava. Estava tentando respirar novamente quando o segundo chute me
atingiu na virilha. Dessa vez foi o osso púbico que absorveu a maior parte do
impacto, poupando os genitais. Ainda assim a dor foi funda, aguda.
“Seu porco hipócrita e traidor. Nesse instante mesmo estava tentando livrar
a cara com o filhinho, botando a culpa toda em mim e Júlia. E agora querendo
dar uma de santinho.”
Eu estava encurralado ali. Tentei fugir por debaixo da mesa, mas Kim só
precisou dar a volta para me pegar do outro lado. Consegui aparar um chute
com o antebraço. Outro me acertou nas costelas. Lutei para não vomitar.
“Mas dessa vez você bateu seu próprio recorde, chefinho. Ter a ousadia de
falar na nossa cara que foi como um pai para nós. Era assim que você se sentia,
quando éramos crianças? Como um pai? Era assim que você se sentia quando
enfiava seu caralho em mim, seu filho da puta desgraçado?”
O chute seguinte foi no meio da testa. Esse não doeu tanto. Senti o corpo
desabando sobre o macio tapete, as pernas e braços como sacos de manteiga ao
sol em um dia quente.
Tudo considerado, esse lastimável episódio serve ao menos para demonstrar
a superioridade combativa do inspetor Teixeira.
Pois a meu filho bastou um único soco para me por a nocaute.
Kim, por seu lado, precisou de não sei quantos chutes e muitos xingamentos
para conseguir um simples knock down.
Júlia recorreu mais uma vez à sua fiel mochila, onde coabitavam a pena e a
espada. Pois desta vez não foi um livro que ela tirou de lá de dentro, e sim um
revólver calibre 38, com capacidade para seis tiros. Em contraste com a
compacta pistola que Júlia segurava na outra mão, uma PT 938 prateada com
quinze projéteis no pente e mais um na agulha, o velho três oitão parecia
mesmo uma peça de museu.
“Este revólver foi utilizado em dois recentes homicídios ocorridos na favela
do Capim Queimado. A arma pertence a um marginal conhecido como Tonho
Pilão.”
Teixeira assentiu com a cabeça, para mostrar que sabia de quem ela estava
falando. O inspetor escutava atentamente.
“Você pode usar esta arma para fazer o serviço. Não será difícil ligá-la a
Tonho Pilão e provar assim que foi ele quem matou o chefinho.”
“Principalmente quando contamos com a ajuda e proteção do delegado
Santelmo”, atalhou Kim. Ele havia voltado para sua cadeira, que fazia girar para
lá e para cá, lentamente, infantilmente, impulsionando o chão com a ponta dos
pés. Eu estava caído a esses mesmos pés, com o corpo estendido ao comprido,
o rosto voltado na direção de Teixeira. Mantive os olhos semicerrados e
procurei não dar a entender que estava consciente.
“Sim, é verdade.” Júlia sentou-se na cadeira vaga ao lado do irmão, meio de
costas, meio de lado para mim. Continuava segurando a pistola na mão direita.
O trinta e oito ficou em seu colo. “O Curupira está do nosso lado. Ele irá
designar você como responsável pelas investigações, meu querido. Será fácil
colocar a culpa em Tonho Pilão, e caso encerrado. Dessa vez nós planejamos
tudo direitinho.”
“Foi por isso que o delegado me mandou para o Le Barde hoje de manhã.”
Teixeira falava quase que para si mesmo. Então ergueu os olhos para os
gêmeos. “Vocês queriam que eu fosse para lá.”
“Evidente que sim, meu inspetor preferido.” Disse Júlia, com os olhos
brilhando. “Sem você não teria graça nenhuma. Você é o herói da história, o
detetive. Só você para nos compreender. É por isso que nós te amamos.”
“Aliás, inspetor.” Kim soltou sua risada de imbecil e continuou: “Não
precisa se preocupar por ter fugido do trabalho hoje para ir namorar. O
delegado já sabe que você está em missão secreta e mandou abonar seu dia.”
Júlia voltou à carga. “Nós estávamos conduzindo você para este momento,
meu bem. Não percebe? É o seu destino e a sua glória matar esse homem.”
Ela devia estar fervendo os miolos naquelas sugestões que fazia a Teixeira.
Por quanto tempo meu filho seria capaz de resistir à sua influência mental?
Todos os meus instintos diziam que não demoraria muito para ele concordar
com o ato cruel.
É por isso que eu também precisava botar os neurônios para trabalhar.
Aquele devia ser o plano B dos gêmeos. O plano A era contratar Teixeira e
conectá-lo à Fábrica. O plano A fracassou em parte, o que dava no mesmo ser
um completo fracasso nesse caso. De nada adiantava a moeda apagada de
Teixeira, se não fosse ativada.
Cheguei a suspeitar, pela presença de Ágata, que o Plano B seria consumar o
ato sexual inacabado entre ela e o inspetor. Mas logo vi que não era essa a
intenção dos gêmeos. Afinal, para Kim e Júlia o único propósito ao contratar
Teixeira era induzi-lo a me matar. Esse sim era o plano B: partir direto para os
finalmentes.
Já não importava para os gêmeos que o inspetor fosse contratado. Eles
tinham Ágata para negociar. E possivelmente contavam explorar a força
primitiva do complexo parricida, que segundo Freud habita no peito de todos
os homens.
Não era preciso ser um psicanalista de carteirinha para perceber que Teixeira
tinha muitas questões mal resolvidas com a figura paterna. Eu que o diga.
E por último, mas não menos importante, não seria bom subestimar os
poderes persuasivos de Júlia, exercendo na mente de Teixeira, e na minha, a sua
nefasta influência.
Do jeito que as coisas iam, o plano B não tardaria a obter êxito. Não havia
mais tempo. Eu precisava agarrar a primeira chance que surgisse com unhas e
dentes, se quisesse salvar a minha pele.
Você é sincero e está tendo o caminho obstruído. Uma cautelosa parada pelo
meio é favorável. Ir até o fim trará malefício. É favorável ver o grande homem.
Não é propício cruzar a grande água.
O Céu e a Água seguem seus caminhos opostos: assim em todas as suas transações o homem
superior cuidadosamente considera o princípio.
(I Ching – hexagrama 6)
Restava-me um último recurso. Atirei-me aos pés de meu filho, como Ágata
havia feito.
“Alberto, eu imploro. Não me mate. Você precisa me escutar. Há muita
coisa que você ainda não sabe. Se você me matar, estará condenando o povo
dessa cidade, meu filho. Se duvida espie pela janela e veja se não descobre um
carro-forte rondando. É um plano diabólico. O sincronicídio.”
Assim como Ágata chorou, eu também não fiz por menos. Chorar faz bem,
alivia o peito. E tem horas que não dá mesmo para controlar.
Kim e Júlia levantaram-se das cadeiras. Somente Ágata continuou sentada
no sofá. Ela não me deixou chorar sozinho. Kim veio em minha direção,
provavelmente para me desferir um belo chute nas costelas. Mas Teixeira o
deteve.
“Deixe que vou cuidar dele. À minha maneira.”
Caso Júlia tivesse seguido à risca a estratégia delineada por Kim, de um jeito
ou de outro o conflito teria se resolvido ali. Mas ao invés de descarregar sua
pistola na direção de Teixeira, Júlia instintivamente obedeceu à estratégia que
ela mesma havia traçado. Foi atrás de Ágata.
Com um salto ela já estava no sofá. Não sei como ela conseguiu isso, mas
após uma rápida torcida de corpo, já havia se enfiado debaixo de Ágata. Como
tática defensiva a medida foi eficaz, pois colocou Ágata entre Júlia e o inspetor.
E num átimo Júlia ampliava seu potencial ofensivo, imobilizando Ágata com o
braço esquerdo ao redor de seu pescoço e empurrando o cano da pistola contra
a testa da outra.
Ágata nem teve tempo de esboçar alguma reação. Estava novamente
reduzida ao papel de donzela em perigo. Júlia quase não era visível, oculta sob o
corpo bem mais carnudo.
“Para trás, maldito, para trás”, Júlia gritou. “Nem mais um passo ou
arrebento a cabeça dela.”
Ágata havia desfalecido. Seu corpo pendia molemente nos braços de Júlia e
tombou com mansidão no sofá ao ser liberado. Júlia esquivou-se com os
quadris para sair de debaixo dela e levantou-se para encarar seu inimigo.
Teixeira aguardava de pé. Parecia ter abandonado a luta. Agora que não
precisava mais empunhar a pistola, apertava com a mão direita o ferimento no
braço esquerdo.
Júlia avançou dois passos, de PT 938 em riste. Fiquei surpreso ao perceber
que ela estava chorando. Era a primeira vez que eu via isso acontecer.
“Eu gostaria de matar você bem devagar. Mas simplesmente não suporto
mais continuar olhando para sua cara, seu filho da puta desgraçado!”
Júlia abriu fogo.
Júlia não era má atiradora. Assim de perto, não teria como errar o tiro. Ela
apertou o gatilho, liberando o avanço do pino de percussão. A base da cápsula
que aguardava na câmara foi violentada por esse rude falo metálico,
ocasionando a detonação da pólvora armazenada em seu interior. O projétil foi
expelido do cano a uma velocidade de quase mil quilômetros por hora.
Ela não teria como errar o tiro. Mas errou. Um instante antes do disparo, a
trajetória da bala foi drasticamente alterada. Júlia foi jogada ao chão por Ágata,
que veio com tudo para cima dela. A bala foi disparada no meio da queda.
Passou longe de Teixeira, não queria saber dele. O negócio dela era comigo.
O tiro não pegou em minha cabeça por um palmo, se tanto. E ainda assim
me deixou ferido. A bala explodiu na mesa de vidro, estilhaçando-a em uma
centena de pedaços. Levei um corte feio no topo da cabeça e outros menores
no pescoço e nas mãos. Realmente não foi uma de minhas ideias mais
brilhantes ir me esconder debaixo de uma mesa de vidro durante um tiroteio.
Quanto a Ágata, talvez tenha fingido o desmaio. Ou talvez tenha se
recobrado no momento exato. Em qualquer das hipóteses, o certo é que ela
salvou a vida de Teixeira. Agora que estava embolada com Júlia no tapete,
entretanto, Ágata seria incapaz de fazer valer o seu físico superior. Ela não
poderia de modo algum agredir Júlia, e nem mesmo se defender de seus
ataques. Uma vez que não existia mais ameaça direta a seu herói amado, o
condicionamento do medo voltava a ser mais forte.
Mas Teixeira não estava dormindo no ponto. Sua primeira preocupação foi
desarmar Júlia, o que ele conseguiu pisando na mão da moça. Se ele não tivesse
levado um tiro no braço, talvez tentasse submeter Júlia de outra maneira. Como
estava ferido, optou pelo método mais seguro. Teixeira caiu por cima de Júlia e
desferiu com a mão direita dois socos rápidos em sua cabeça.
Quando Júlia acordou, estava com a cara no tapete, deitada de bruços, com
as mãos nas costas, algemada.
CAPÍTULO 40 – LIBERAÇÃO
Se não houver mais lugar algum para ir, o retorno é propício. Se ainda houver
algum lugar para ir, é melhor se apressar.
Trovão e chuva se aproximam: assim o homem superior perdoa os erros e esquece os malfeitos.
(I Ching – hexagrama 40)
O corte na cabeça não parecia tão sério, mas sangrava bastante. Outros
pequenos cortes também purgavam gotas rubras e brilhantes em minhas mãos e
braços. Nesse momento notei a grande mancha escura nas costas do robe. A
mancha era úmida no centro. Eu ainda estava sangrando do corte do canivete.
Ao imaginar tanto sangue saindo de mim, senti como se fosse perder os
sentidos.
“Preciso de um médico”, eu disse.
Teixeira estava ajoelhado diante de Ágata, que ele havia acabado de
acomodar no sofá. O inspetor girou a cabeça para me fitar nos olhos.
Tentei soar casual: “Você também precisa de um médico urgente, Alberto.
Já estava ferido, e ainda por cima levou um tiro. Ágata também provavelmente
precisa ser hospitalizada com urgência. Melhor chamar logo uma ambulância.”
O inspetor continuou me fitando sem dizer nada.
“Escute, Alberto. Naquela hora que tentei atirar em você... não era o que eu
queria fazer, entende? Júlia estava me controlando mentalmente. Ela tem esse
poder. Você mesmo deve ter sentido isso, ela tentando mexer com sua cabeça.
É a pura verdade, eu juro.”
“Isso não tem importância agora.” Ele voltou a olhar para Ágata. Ela estava
de olhos fechados e muito quieta. Limitou-se a franzir levemente as pálpebras
quando Teixeira pousou a mão ensanguentada sobre a sua, com infinito
cuidado.
Júlia estava deitada de bruços no tapete, desacordada, com os pés voltados
para o cadáver do irmão. Kim continuava na mesma posição em que havia
caído.
“Temos que levar Ágata para um hospital”, tornei a dizer. Tentava estancar
o sangue pressionando a ponta do robe no topo da cabeça. “Ela precisa ser
monitorada, fazer exames. E você também. Tomou um tiro.”
Teixeira tocou distraidamente o lugar do ferimento em seu braço. “Não foi
nada. A bala atravessou o músculo. Ferimento superficial. Ágata é que me
preocupa. O que Júlia fez com ela?”
“Foi essa palavra que ela falou que deixou Ágata nesse estado”, tentei
explicar. “É um gatilho vocal que aciona um comando previamente
condicionado no subconsciente. Toda vez que essa palavra é dita, a pessoa
sofre uma hiperexcitação na região do cérebro que controla o medo.
Pronunciada uma única vez, essa palavra provoca uma reação de medo
mórbido e ansiedade intensa. Pode acreditar, é um sofrimento excruciante,
físico. Nunca soube de ninguém que tenha sido submetido a esse castigo por
quatro vezes seguidas. Só posso dizer uma coisa: o amor que Ágata sente por
você é mesmo muito forte. De outra forma ela não teria conseguido fazer o que
fez para salvar sua vida.”
“Você quer dizer que a lavagem cerebral que fizeram nela foi forte”, rebateu
ele, com o cenho franzido de desgosto. “Para que ela acreditasse que me ama.”
“E qual a diferença, na prática? Absolutamente nenhuma.”
“Tem muita diferença, sim.”
“Quem é que pode dizer que é livre nesses assuntos do coração? Ninguém
escolhe amar alguém ou não. É algo que simplesmente acontece. Então no
fundo não há diferença nenhuma.”
O inspetor voltou a ficar em silêncio.
Tornei a insistir: “E então, devo chamar uma ambulância?”
Ele pareceu considerar minha sugestão, e então se limitou a balançar a
cabeça em negativa. Enfiou a mão no bolso da calça, e de lá retirou seu
famigerado canivete.
“O que você vai fazer?” Perguntei, alarmado.
“Júlia foi capaz de fazer isso com ela por conta dessa moeda, não é verdade?
Então vou arrancar essa moeda fora.”
“Eu não faria isso.” Tive que pensar rápido. “Veja bem, a moeda está
intimamente conectada ao sistema límbico. Uma interrupção abrupta pode
ocasionar um curto circuito nas funções vitais. Foi muito temerário o que você
fez comigo, meu jovem. Muito arriscado mesmo. Acabou dando certo, mas foi
um risco tremendo. Foi muita sorte eu não ter morrido e nem ter virado um
vegetal. É altamente improvável que Ágata tenha tanta sorte, principalmente já
debilitada como está.”
Canivete em punho, o inspetor hesitou por um momento. Mas o bom senso
acabou prevalecendo. “Tem que haver uma maneira”, ele disse, a frustração e a
raiva borbulhando em sua garganta.
“Existir, até existe”, falei impensadamente. “Ou pelo menos existiu. Mas o
segredo para desativar as moedas está agora perdido para sempre. Desapareceu
junto com o homem que você conheceu como Harold Habbot. O suposto
turista alemão, assassinado por Júlia e Kim no hotel Émile.”
“Essa história é tão absurda que é até capaz de ser verdadeira.” Disse o
inspetor, com a sombra de um sorriso nos lábios. “Mas vamos deixar isso de
lado pelo momento. Temos assuntos mais importantes para tratar.”
Ele retirou os dois frascos marrons da sacola de primeiro socorros. Leu o
que estava escrito nos rótulos. “Aqui estão. Clorofórmio e cloridrato de
cetamina. Você tem aí algum recipiente em que possamos misturá-los?”
Fui até o bar, peguei um copo limpo e passei para ele. “Como il Dottore não
especificou as quantidades, parti do pressuposto de que devem ser doses iguais
de cada substância. Não crie muita expectativa, está bem? Já tentei fazer isso
funcionar diversas vezes. Longe de mim bancar o cético, ainda mais depois do
que lhe contei. Mas não tem como a fórmula funcionar sem o mantra.”
“Aí é que está”, disse Teixeira. Ele havia despejado o conteúdo do primeiro
frasco até encher metade do copo. Agora completava o copo com o que estava
no segundo frasco. O inconfundível odor de clorofórmio subiu no ar. “Acho
que sei que mantra é esse.”
“Mas como?”
“Encontrei o pen drive com a fórmula dentro de uma bíblia, certo? Pois um
dos versículos estava grifado a caneta, bem na página marcada pelo pen drive.”
Minha surpresa foi genuína: “O quê? Mas então...”
“Havia na cena do crime outro livro com uma frase sublinhada, o Fausto de
Goethe. Por isso imaginei que aquilo também fosse obra dos assassinos. Não
me ocorreu a hipótese do versículo da bíblia ter sido grifado pela própria
vítima.”
Olhei para Júlia, que continuava sem dar sinais de vida. Será que ela estava
mesmo acordada? Achei difícil que ela pudesse receber aquela revelação sem
estrebuchar em um ataque de raiva infantil.
Eu tentei ser útil: “Posso pedir a Cesário para trazer uma bíblia. Creio que
há um exemplar em minha biblioteca.”
“Não será necessário. Eu memorizei o versículo. Suponho que o mantra
deva ser pronunciado em voz alta, não é assim?”
“Isso mesmo.”
O inspetor ergueu o copo cheio até a boca, como se fosse propor um
brinde. E então falou, em um tom solene: “Agora é o juízo deste mundo. Agora será
expulso o príncipe deste mundo.”
Depois tive a oportunidade de verificar que essa passagem encontra-se no
evangelho de João. Capítulo 12, versículo 31. Alguns segundos anticlimáticos
passaram-se antes que Teixeira indagasse: “E então? É só isso?”
“Espere um momento. Lembrei de algo. Quando il Dottore queria preparar
um de seus coquetéis especiais, como ele chamava, repetia o mantra cento e
oito vezes. Como se estivesse utilizando um japamala, um desses colares de
contas que os budistas usam para recitar suas orações. Tem exatamente cento e
oito contas.”
“Então tenho que repetir o versículo mais cento e sete vezes.”
“Acho que sim. Só tem um jeito de descobrir.”
Teixeira iniciou imediatamente a monótona tarefa. Pude perceber que ele
não estava lá muito à vontade, repetindo aquele trecho da bíblia com o copo
erguido diante dos lábios.
Eu também estava incerto quanto aos resultados. Pois o outro mantra, o
que Bodoni havia me ensinado, estava em sânscrito, ou páli, ou bengali. Algum
desses idiomas da Índia. E sendo il Dottore um italiano radicado nos Estados
Unidos, eu achava improvável que ele tivesse utilizado um mantra em
português para o seu precioso Roque.
Mas talvez a força de um mantra não esteja somente no som das palavras
em si, mas principalmente no significado que elas transmitem. Pois ao término
da centésima oitava repetição era inegável que o líquido dentro do copo, até
então incolor, havia adquirido uma leve tonalidade azulada.
CAPÍTULO 21 – MORDIDA
Tarde demais. Ouvi com nitidez o som de algo partindo ao ser triturado por
dentes. Como o som de alguém mastigando uma cenoura com um pedaço de
vidro dentro. Pensar nesse som ainda me traz arrepios.
Sobretudo porque depois do som veio o silêncio. Por um pesado instante os
três embolados no tapete ficaram paralisados, como uma bizarra escultura
representando um ménage a trois sadomasoquista hardcore. Júlia, o inspetor
Teixeira e eu.
Desfalecida no sofá, Ágata também somava para a imobilidade da cena.
Kim, esparramado a menos de um metro e meio de mim, tornava-se de súbito
mais presente.
Júlia abriu bem os olhos, como se já fitasse o infinito. Teixeira e eu nos
afastamos, como se ela fosse portadora de uma doença transmissível pelo
contato. O que não deixava de ser verdade. A morte é extremamente
contagiosa.
Duas semanas antes, os gêmeos tinham feito uma rápida viagem à Bélgica.
Sondei o que eles foram fazer lá. Eles não se esquivaram e responderam
abertamente. Entre gargalhadas e brincadeiras, Júlia e Kim afirmaram ter feito
contato com um grupo neonazista em Bruxelas, onde tiveram a oportunidade
de implantar uma cápsula de veneno em um dos molares.
Quando disseram isso pensei que estivessem me gozando. Resolvi dar corda
só para ver se descobria alguma coisa. “Mas por que vocês fizeram isso?”
“Sempre é bom ter um último recurso”, recitou Júlia.
“Qual foi o veneno que vocês usaram?”
“Cicuta”, respondeu Kim, com evidente prazer. “Uma palavra pequena e
fácil. A melhor solução é sempre a mais simples.”
“Como Sócrates.”
“Exatamente, chefinho! Com certeza foi a melhor escolha possível.” Júlia
também estava entusiasmada, como uma adolescente que havia acabado de
comprar roupas novas no shopping center. Foi então que comecei a suspeitar
que eles estivessem mesmo falando sério.
E agora, ao ouvir o som da mordida, eu tive certeza.
Ela tossiu, cuspiu, fez um esforço para se sentar sobre as pernas. Virou o
torso de forma a exibir as algemas para Teixeira.
“Gostaria de limpar o meu rosto.”
O inspetor não deu a permissão.
“Está bem então, seu bastardo miserável. Você não demora a estar no
inferno.”
“Você está querendo que eu vá só para lhe fazer companhia.”
Júlia interrompeu sua ira para um acesso de riso debochado. Percebi que o
veneno começava a fazer efeito. A cicuta atua diretamente no sistema nervoso
central. Ela não demoraria a entrar em delírio. “Para onde eu vou, você não tem
como ir. Você é apenas um homem. Por isso, poderia mostrar um pouco de
humanidade e ao menos me conceder uma bebida? Estou com muita sede.”
Não haveria porque Teixeira não concordar. Eu me ofereci para servi-la.
“Traga-me algo forte, chefinho. Com bastante gelo.”
Ela sorveu a bebida de minhas mãos. Deu um gole agoniadamente longo.
Parou para respirar e engoliu o resto em dois ou três goles. O gelo foi colhido
do copo por sua língua ávida. Ela mastigou e engoliu todo o gelo.
“Thanks, chefinho.”
A partir daí Júlia começou a falar em inglês.
“Você sempre foi um cara legal no fundo, sabia disso? É o que torna você o
panaca perfeito.”
Ela riu novamente. Uma risada seca e desagradável. Olhei imediatamente
para Kim, para me certificar de que estava mesmo morto. A risada foi
estrangulada na garganta de Júlia. Crispou o rosto em uma careta de dor,
curvando-se sobre si mesma. Parecia uma flor murchando. Deixei o copo sobre
o tapete e tentei ajeitá-la em uma posição mais confortável. O inspetor Teixeira
assistia impassível.
Júlia estava respirando com dificuldade. Mesmo assim ainda encontrou
fôlego para dizer:
“Sieg Heil! O Grande Ferreiro será restaurado ao seu legítimo trono. O deus
do metal reinará supremo. O mar negro de sangue banhará a longa noite de
Varuna, o rei das serpentes.”
Silêncio. E então:
“Minhas mãos estão frias. Por que o fogo é tão frio? É assim que queima o
lado escuro do Sol?”
“Sieg Heil!”
No instante em que Júlia morreu, compreendi.
Ela obteve a vitória no final, no instante da morte.
Qualquer torre que estivesse posicionada no raio de quinhentos metros a
partir de minha casa estaria sendo ativada naquele exato momento. E eu não
tinha a menor dúvida de que havia um carro-forte rondando a área. Quase que
podia senti-lo.
Tudo o que eu sabia a respeito das torres aprendi com Bodoni, em uma
noitada etílica no bar do hotel Émile. Foi a última vez que estive pessoalmente
com ele. O velho estava sofrendo muita pressão e precisava desabafar em um
ombro amigo.
Resumindo a ópera: depois do incidente com Winston Jarvis MacCaffrey, a
CSG mobilizou recursos espetaculares para investigar o fenômeno. No início
das pesquisas Bodoni estava entusiasmado, e então começou a se preocupar
com os primeiros resultados, até que por fim ficou apavorado com o que estava
ajudando a criar.
Logo ficou provado que eram mesmo os crimes de sangue o fator catalisador
na mitose das moedas de cobre. Quanto mais horripilante fosse o crime para os
códigos morais e éticos, quanto mais carregada de Karma a ação estivesse,
maior a intensidade do fator catalisador. Júlia e Kim haviam planejado ativar a
torre por meio de um parricídio. Eles queriam que Teixeira me matasse, o que
teria feito tilintar os cofres do carro-forte.
Na lista dos crimes sangrentos, poucos atos são capazes de superar o
assassinato do próprio pai. Na verdade, só duas ações são piores, do ponto de
vista kármico. Em segundo lugar vem o matricídio, o que faz sentido em termos
puramente biológicos. Mas o campeão da lista é mesmo o suicídio. Nenhuma
ação humana é tão carregada de Karma quanto o ato de tirar a própria vida.
Ao optar por ser a assassina de si mesma, Júlia realizou sua opera magna, o
trabalho que ela estava destinada a cumprir. Pela força de sua própria vida auto
imolada, Júlia abriu os portões para o terrível futuro.
Eu precisava verificar. Fui até o cofre na parede e o abri. Teixeira estava
logo atrás de mim e viu também. As pilhas de moedas guardadas no cofre
brilhavam com uma intensa luz alaranjada. Não me atrevi a tocá-las. Pareciam
altamente radioativas.
Estava começando. O tiro de largada foi o suicídio de Júlia, seguido pelas
moedas brilhando no cofre. Logo viria a onda de violência. Como se já não
tivesse havido o bastante.
O sincronicídio estava apenas começando.
Os Peões e as Torres
CAPÍTULO 28 – PREPONDERÂNCIA DO GRANDE
Sorte que esse foi o momento escolhido por Ágata para voltar a si. Teixeira
correu para junto dela, totalmente esquecido de qualquer desavença comigo.
Ela abraçou o inspetor e o cobriu de beijos. Só depois de um tempo reparou
em mim. E tomou um susto.
“Rogério!” O olhar de Ágata voou para Teixeira e então de volta para mim.
“Meu marido.”
Só hoje me ocorreu que esta narrativa não poderia ficar completa sem
algumas palavras ainda sobre o I Ching.
É que hoje alguém esqueceu uma revista no refeitório. Um dos artigos até
que era bem interessante e imaginativo, embora forçasse um pouco a barra em
alguns pontos. Falava sobre as evidências de antigas civilizações muito mais
avançadas que a nossa e dos legados que elas nos deixaram. O Livro das
Mutações foi citado como uma espécie de mapa genético das potencialidades
humanas. Cada um dos hexagramas do I Ching representa um dos sessenta e
quatro aminoácidos possíveis em nosso código genético, embora desses apenas
vinte estejam atualmente manifestados na espécie humana. Estudar a
mensagem de cada hexagrama, portanto, equivale a investigar os caminhos para
a evolução individual e coletiva. Essa seria a verdadeira busca do homem superior.
O oráculo era tradicionalmente consultado na China antiga com o auxílio de
cinquenta varetas de milefólio, que eram devidamente purificadas uma a uma na
fumaça do incenso. Uma das varetas era guardada em separado, e não seria
mais utilizada durante a consulta. Essa vareta representava a consciência
individual do homem ao se deparar com os ciclos do Céu e da Terra. Sempre
achei essa parte de um simbolismo muito profundo.
Com as quarenta e nove varetas restantes, um verdadeiro bailado era
executado com as mãos, em operações de adição e subtração, até que fossem
obtidas seis séries de três números mágicos. Cada série de três era somada
individualmente, e a soma dava sempre um dos quatro resultados: 6, 7, 8 ou 9.
Esses resultados correspondem às quatro possibilidades de linhas no
hexagrama: yin ou yang, fixa ou móvel. E assim, após somar as seis séries de
três números e desenhar a linha correspondente, aparecia o hexagrama que
trazia a resposta.
Foi Júlia quem forneceu a pista para a elucidação, instantes antes de morrer:
“O Grande Ferreiro será restaurado ao seu legítimo trono. O deus do metal reinará supremo.
O mar negro de sangue banhará a longa noite de Varuna, o rei das serpentes.”
Aquelas palavras me intrigaram e muito. Tudo indicava que não passavam
de delírios, imagens desconexas que o cérebro moribundo de Júlia formou
enquanto era tomado pelo veneno. Ainda assim, ainda assim. Não era o tipo de
coisa que se esquece facilmente. E olhe que ultimamente não tenho confiado
tanto na memória.
Depois dessa fala final de Júlia algo ficou voltando o tempo todo à minha
mente: aquelas três cabeças de serpente na logomarca da Copper, Silver & Gold.
Pesquisei bastante até juntar todas as peças do quebra-cabeça. Por sorte, aqui
tenho acesso à Internet.
Pelo que entendi, a história começa em tempos remotos, anteriores aos
registros históricos. Tudo gira em torno de Varuna, o demônio arquiteto e
ferreiro, que por conta de seu conhecimento ilimitado tornou-se o primeiro rei
dos deuses védicos.
Seu reinado foi colocado em risco quando uma terrível criatura surgiu,
ameaçando exterminar toda a vida no Universo. Graças a uma antiga profecia,
era sabido por todos que Varuna jamais poderia derrotar o monstro. O único
capaz de fazê-lo era um deus ainda não nascido: Indra, aquele destinado a
usurpar o trono de Varuna.
O rei dos deuses preferia condenar o mundo inteiro à extinção a abrir mão
de seu poder. Tentou por todos os meios impedir o nascimento de Indra, mas
foi inútil. Indra, que assim como o grego Zeus era capaz de domar os raios,
rapidamente derrotou a besta. Sua segunda ação foi depor Varuna de seu trono
e sagrar-se o novo rei do paraíso celestial.
E foi assim que o sábio e inventivo Varuna, que havia ordenado os próprios
ciclos do Sol e também as fases da Lua, viu-se relegado à metade escura do céu,
ao papel secundário de senhor da noite. Desde então passou a representar o
lado escuro do Sol. Foi sendo progressivamente esquecido pelos inconstantes
humanos, mas não por seus mais devotados servos, os Nagas.
Seres dotados de vida incomensuravelmente longa, os Nagas geralmente
assumem a forma de uma imensa cobra rei. Essa cobra pode ter uma ou várias
cabeças. Ou então aparecem metade como serpente, metade como ser humano.
Com sua astúcia reptiliana, também podem se disfarçar como homens e
mulheres e caminhar despercebidos entre os humanos de vida curta. Quando
Varuna foi deposto de seu trono celeste por Indra, aquele que matou o grande
monstro, os Nagas foram dispersos pelos quatro cantos da Terra. E desde
então buscam secretamente promover o retorno de seu mestre à antiga glória.
Júlia, estou certo, travou contato pessoal com um dos Nagas, ou com uma
das Nagini, como são chamadas as fêmeas da espécie. Ao menos um deles.
Tudo considerado, não resta outra hipótese. Aconteceu em uma de suas
constantes viagens mundo afora.
Júlia realmente conheceu ao menos um dos verdadeiros acionistas da
Fábrica.
Levou tempo para juntar todos os pedaços de informação. Não sei o que
teria sido de mim sem a Internet. Ao menos com a memória virtual posso
contar.
As últimas palavras de Júlia deram um novo sentido à minha existência após
o sincronicídio. Comecei a divisar afinal o secreto plano da Fábrica. Direi isso
da forma menos melodramática possível. O objetivo da Fábrica é gerar
artificialmente algo que podemos chamar de condições de Kali Yuga.
A maioria das pessoas hoje acredita que vivemos em Kali Yuga. Ao menos,
a maioria das pessoas que já ouviu falar em Kali Yuga.
Yugas são como Eras ou Idades, níveis de evolução que o homem alcança
de acordo com a posição do Sol com relação ao centro da galáxia.
A Terra leva um dia para girar em torno de si mesma, e um ano para girar
em torno do Sol. Mas o Sol também gira em torno de outra estrela, chamada
Alcione, e leva cerca de vinte e quatro mil anos terrestres para completar uma
única volta. As Yugas são divisões desiguais dessa órbita do Sol ao redor de
Alcione, considerando a proximidade do sistema solar do centro da Via Láctea.
Durante a Kali Yuga o Sol está no ponto mais distante de sua trajetória, o
que gera a predominância das trevas. É a chamada Idade do Ferro, quando a
maioria das pessoas só consegue perceber os aspectos mais grosseiros e
materiais da existência. A luta pela sobrevivência é uma constante e o poder
está centrado na mão dos homens.
A era seguinte é a Dwapara Yuga ou Idade do Bronze, quando o Sol
aproxima-se do centro da galáxia a ponto de deixar a luz e as trevas em
igualdade de condições, meio a meio. É a época do florescimento da ciência,
que explica fenômenos não materiais como a eletricidade e o magnetismo.
Surgem inventos que revelam a natureza ilusória da distância, trazendo o longe
para perto e o perto para longe. Essa era é caracterizada também pela ascensão
das mulheres ao poder.
A Treta Yuga, ou Idade de Prata, tem início quando a luz começa a
sobrepujar a escuridão. É uma era de grande harmonia, quando a humanidade
explora quase a totalidade de suas capacidades mentais, e fenômenos como a
telepatia e a clarividência são comuns.
Finalmente, durante a Satya Yuga, período em que o Sol está mais próximo
do centro da galáxia, a humanidade experimenta uma intensa e prolongada
felicidade coletiva, decorrente da alta espiritualidade existente. Não é à toa que
esta era é chamada de Idade de Ouro.
Ao chegar ao zênite, o Sol começa a declinar. Isso é inevitável. Ao ciclo de
ascensão segue-se a lenta e inexorável decadência, à medida que o Sol
novamente afasta-se do centro da galáxia. Gradualmente os sentidos da
humanidade vão se embotando, as faculdades diminuindo, as capacidades
motivadas cada vez mais pelos instintos primitivos do medo e da luxúria. Até
que o fundo do poço seja alcançado e um novo ciclo de ascensão se inicie.
Pois muito bem. Por um erro de interpretação, cometido justamente em um
momento quando o pensamento estava mais reduzido, as Yugas foram
calculadas em termos de centenas de milhares de anos. De acordo com essa
interpretação, estaríamos vivendo os primeiros dez ou vinte mil anos dos mais
de quatrocentos mil que ainda restariam da Kali Yuga. Essa sinistra e errônea
perspectiva, que foge a qualquer escala humana possível, passou a vigorar
durante a verdadeira Kali Yuga, que teve seu ponto mais baixo por volta do ano
500 depois de Cristo.
O erro foi detectado por um sábio monge indiano chamado Swami Sri
Yukteswar, que registrou suas descobertas no livro intitulado A Ciência Sagrada.
Segundo Sri Yukteswar, a Kali Yuga em sua fase descendente durou “apenas”
mil e duzentos anos, tendo começado por volta do ano 700 antes de Cristo. Em
500 d.C., o nosso sistema solar atingiu o ponto mais distante do centro da
galáxia, com o consequente obscurecimento máximo das consciências nesse
período. Basta observar a história da humanidade para perceber como essas
ideias fazem sentido. Não foi à toa que esse período foi chamado pelos
historiadores de Idade das Trevas.
A partir daí, continua explicando o sábio guru, teve início um novo ciclo de
mil e duzentos anos de Kali Yuga, mas desta vez ascendente, com a lenta
aproximação do Sol com o centro da Via Láctea. A Kali Yuga afinal foi
cumprida em torno de 1700, Anno Domini. Não por acaso, nem por
coincidência, por essa época começaram as primeiras experiências com a
eletricidade e o magnetismo. Estava começando para a humanidade a fase
ascendente de Dwapara Yuga, a Idade do Bronze.
É nessa época que estamos vivendo agora, por volta do ano trezentos e
tanto de Dwapara Yuga. Essa descoberta, que livra a humanidade da
possibilidade de centenas de milhares de anos de sofrimento e ignorância,
deveria ser considerada uma das maiores contribuições científicas de todos os
tempos. Por que, então, quase ninguém ouviu falar dela?
O que Swami Sri Yukteswar não chega a mencionar em seu livro é a
existência de forças antagônicas à ascensão da consciência humana, forças essas
que têm agido com sucesso para manter a humanidade na crença de que
vivemos no pior de todos os tempos. O grande sábio não chega a citar a
Fábrica.
O grande homem traz boa fortuna. Sem culpa. Quando alguém tem algo a
dizer, não é acreditado.
Não há água no lago. Assim o homem superior arrisca a vida ao cumprir sua vontade.
(I Ching – hexagrama 47)
Qual é o sabor da violência? Que gosto tem? Por que parece ser tão
agradável para nossa espécie? A que necessidade atende? De onde vem essa
fome?
Violência ficcionalizada e estilizada vende muito bem, cada vez mais. Uma
pessoa civilizada consome em média, ao longo da vida, mais de dez mil horas
assistindo aos chamados filmes de ação, sem contar o tempo gasto com a
violência nos telejornais, novelas e desenhos animados. Se for um pouco mais
letrada, ao fim da vida terá lido em média mais de cinquenta mil páginas
dedicadas de um jeito ou de outro à violência ficcional, para não mencionar as
incontáveis páginas de jornais e periódicos consagrados à divulgação da
violência.
Já a violência real e ao vivo encontra um número bem menor de adeptos,
relativamente falando. A maioria das pessoas recuaria com horror e desgosto se
viesse a presenciar pessoalmente alguma das cenas que gosta de assistir
comendo pipocas diante da tevê.
Por outro lado, existem pessoas que não só se comprazem em testemunhar
atos de violência, como sobretudo em perpetrá-los. Júlia e Kim faziam parte
desse grupo mais seleto. Eu, não.
Precisávamos atravessar o salão romano para chegar à entrada da casa. Por
sorte, a maioria das pessoas já estava morta àquela altura, e sobraram só uns
poucos agonizantes. Mataram-se uns aos outros, com mordidas e dentadas.
Não sei que gosto eles provaram, o sabor da carne crua de seus semelhantes. A
única vez que comi, fazia tempo, estava bem cozida.
Eu só podia falar, portanto, do cheiro da violência extrema no salão
romano. Era um odor meio doce e meio amargo, mistura de sangue e fezes. O
sangue espalhava-se espesso e grosso por todo o chão e até nas paredes,
coagulava-se em poças, grudava nos sapatos. Houve um momento em que
tropecei devido ao peso do borrifador, e fiquei com os joelhos carimbados de
sangue. O cheiro de merda vinha das vísceras abertas e mastigadas.
A catarse da morte alcançara um diapasão altíssimo. Meu salão romano
havia se transformado em uma antecâmara do inferno.
“Jogue a arma no chão agora. E você aí, dentro do carro, nem pense em
fazer nada. Ninguém aqui precisa ter pressa para morrer.”
O inspetor havia girado o corpo de forma a posicionar o vigilante rendido
como um escudo diante da porta aberta do carro-forte. Sua voz soou firme,
segura. Parecia dotado de uma autoridade inquestionável. Teixeira pressionou
com mais força o cano da pistola na cabeça do vigilante, gesto eloquente de que
não haveria desperdício de palavras. A escopeta fez clique claque ao bater no
chão da calçada em frente ao portão. Teixeira chutou a arma na direção da
mulher nua. Ela empunhou a escopeta com naturalidade e foi para junto do
policial.
O inspetor olhou para trás e acenou inequivocamente em minha direção.
Ele estava me chamando. Eu tinha que ir. Quando cheguei ao portão, um
segundo vigilante havia saído do carro, com as mãos para cima. Era uma
mulher. Aparentemente, era ela quem estava dirigindo.
Os dois seguranças rendidos me fitaram com curiosidade. Senti um calafrio
correr pelo meu corpo. Havia algo de primitivo no olhar daqueles dois, algo de
animalesco. Não eram olhos humanos. Eram olhos felinos, predatórios.
O inspetor e sua companheira não podiam estar vendo o que eu via. Não
era possível que estivessem enxergando aqueles olhos terríveis. Pois teriam
saído correndo de medo. Ou ao menos teriam imediatamente descarregado suas
armas nos dois seguranças.
“O que é que você tem?” O inspetor perguntou, mas não estava muito
interessado no que eu pudesse responder. “Aponte sua arma para esses dois.
Não hesite em abrir fogo se eles tentarem algo.”
Hesitante, ergui a 765 na direção daqueles olhos. Não foi impressão minha.
Os dois estavam sorrindo para mim, enquanto Teixeira os revistava.
Docilmente, permitiram que o inspetor os acorrentasse com suas próprias
algemas.
Teixeira decidiu prender os dois temporariamente na própria cabine do
carro-forte. Antes de voltar para o carro, a mulher algemada virou a cabeça em
minha direção. Por uma fração de segundo uma língua fina, comprida e bífida
pendeu de seus lábios, e novamente sumiu dentro da boca.
Abafei um esgar horrorizado. O reconhecimento tornava minha visão ainda
mais pavorosa. Os olhos não eram felinos, como pensei inicialmente. Agora
que a Gestalt havia se fechado, era de se admirar que eu não tivesse notado
antes.
O olhar daqueles dois era mais glacial e cruel, nitidamente reptiliano. Os
monstros não tinham olhos de gato.
Eram olhos de cobra.
CAPÍTULO 11 – PAZ
O som do tiro rasgou o silêncio da noite. Pareceria ecoar para sempre pelas
ruelas e becos da vida, presente até mesmo aqui, nesse último recanto da
memória.
O inspetor Teixeira tentou dar mais um passo. Cambaleou, e caiu. E foi só.
Pela porta aberta do carro-forte escapou um chiado que lembrava a água
fervendo. Também parecia um gato imenso ronronando. Ou então um
crocodilo felicitando-se por uma lauta refeição.
Não ousei sequer olhar na direção da intensa luz alaranjada que também
escapava pela porta aberta do carro-forte. Sabia que se eu olhasse para as
moedas naquele momento estaria perdido. Logo estaria alegremente estourando
os miolos só para aumentar a glória daquela chama.
Talvez tenha sido por isso que decidi matar a mulher. Talvez tenha sido pelo
olhar que ela me lançou, depois que o inspetor foi ao chão. Nessa hora tive
certeza de que Ágata ainda não havia voltado.
Não havia em seus olhos o horror e o ultraje da mulher que vê o homem de
sua vida ser assassinado. Ela não me fitava com ódio, nem parecia tomada pelo
trágico sentimento de vingança. Tudo o que vi em seus olhos foi medo.
E como um cão de caça açulado pelo cheiro de sangue, senti aumentar em
mim o ímpeto homicida. Matar é fácil, e muito mais quando se tem uma arma
de fogo.
Apontei a pistola para a cara da vadia. Ágata ou Regina, matava as duas pelo
preço de uma. Qual homem nunca fantasiou matar uma mulher? O assassinato
é a experiência sexual definitiva.
Mas não cheguei a ejacular a bala. Antes que eu pudesse pressionar o
gatilho, fui tomado por um frenesi próximo ao êxtase. E então veio a dor
aniquiladora e misericordiosamente rápida.
Fui ao chão. Caí a menos de um metro do corpo do inspetor Teixeira.
A madrugada me traía. Ou então era o relógio que voltava nos próprios
passos. Não era a manhã que estava chegando. E sim a noite, que só começava.
XEQUE-MATE
Não há erro em ir e vir. Para frente e para trás vai o caminho. No sétimo dia
retorna. É favorável ter aonde ir.
Trovão debaixo da terra. Assim os reis de antigamente fechavam o acesso durante o solstício.
Mercadores e estrangeiros não circulavam, e o soberano não viajava através das províncias.
(I Ching – hexagrama 24)
No instante em que meus olhos se fechavam diante da mulher nua tive um vislumbre claro
e inequívoco de meu próprio futuro. Começava assim:
Até que não é um mau lugar. Tenho um quarto só meu, sempre muito bem
arrumado, sempre limpo como se fosse novo, como se fosse sempre o meu
primeiro dia dentro dele. Tenho TV a cabo, meu próprio computador, acesso à
Internet. Posso pegar quantos livros quiser na biblioteca. Não que isso tenha
qualquer serventia agora.
Estou em uma espécie de clínica psiquiátrica ou casa de repouso. Temos
sessões diárias de terapia individual e em grupo, ambas inúteis no meu caso.
Temos banhos de sol e caminhadas ao ar livre, e também quatro refeições por
dia. Essa é a parte que mais gosto.
Mas nem tudo são flores. Hoje mesmo encontrei uma revista no refeitório.
Era uma dessas revistas de divulgação científica e curiosidades. Uma das
matérias, sobre o I Ching, acabou fisgando a minha atenção. Eu estava no meio
da leitura quando um dos enfermeiros tocou de leve o meu ombro. Seu nome é
Sérgio, eu acho.
“Não se esqueça de levar sua revista com o senhor hoje, hem, seu Rogério.
Parece gostar tanto dela! Mas sempre acaba esquecendo a revista na bandeja,
junto com o prato. Se não fosse por mim, provavelmente o senhor não a veria
de volta. Hoje foi a terceira vez que guardei a revista para o senhor. Antes do
almoço, venho aqui e deixo a revista na mesa, bem em frente ao seu lugar. Mas
o senhor sempre deixa a revista na bandeja! Assim vou pensar que o senhor não
quer mais lê-la.”
Sujeitinho desagradável, esse Sérgio. Tive a impressão de que secretamente
estava se divertindo às minhas custas.
Os médicos ficaram fascinados com meu caso. O diagnóstico não foi fácil.
Julgando pelas regiões do córtex que pareciam ter sido afetadas e pelos
principais sintomas, o resultado era uma improvável mistura de Mal de
Alzheimer com Síndrome de Asperger. Chegaram à conclusão de que se tratava
de uma nova enfermidade, de uma patologia do cérebro ainda não catalogada.
Eles a chamaram de Colapso de Fulano de Tal. Pois a verdade é que esqueci o
nome do médico que assumiu a paternidade da doença, quem quiser saber que
vá procurar na Internet.
A memória foi a grande vítima. Vastas porções de minhas lembranças foram
simplesmente deletadas, como se nunca tivessem existido. Quase nada restou
da infância e adolescência. Fica a cada dia mais difícil recordar até mesmo os
fatos mais marcantes da vida. Uma bruma leitosa e indiferente vai engolindo
tudo o que sou e fui.
Tornei-me também incapaz de absorver qualquer fato novo. Depois de meia
hora, esqueço tudo. Já não sei mais o que comi no almoço. Se não tivesse
anotado, jamais lembraria dos gracejos diários do enfermeiro Sérgio. E daqui a
pouco estarei esquecendo, e só vou lembrar de novo ao ler o que acabei de
escrever. O ato de escrever como um imperfeito substituto da memória.
Toda tragédia tem seus caprichos. Enquanto áreas extensas de minhas
recordações desapareceram sem deixar vestígios, alguns pequenos nichos foram
curiosamente preservados.
Esqueci, por exemplo, tudo o que eu sabia a respeito de carros. Não sei
mais dirigir, e nem ao menos distinguir um carro do outro. No entanto, lembro
que um dia soube. De modo semelhante, também desaprendi a falar o italiano,
que já foi a minha segunda língua.
Por outro lado, conservo intactas algumas memórias totalmente irrelevantes
para minha situação atual, como o que aprendi a respeito de armas de fogo,
quais as diferenças e semelhanças entre um revólver, uma pistola e uma
metralhadora, qual o melhor uso para cada, quais os tipos de calibre, suas
vantagens e desvantagens. Lembro com nitidez também do pouco que sabia de
inglês.
Há também memórias parciais, cenas pela metade, fragmentos de
recordações recortadas pelo vazio. A julgar por certa familiaridade que sinto
com alguns termos e conceitos em sânscrito, creio que devo ter visitado a Índia
em algum momento, talvez acompanhando Bodoni, talvez em companhia dos
gêmeos. Mas da viagem em si, ou se aconteceu mesmo, não guardo lembrança.
Não estou me queixando. Sei que posso me considerar afortunado. Porque
não esqueci o essencial. Ainda sei tomar sopa sozinho, escovar os dentes,
limpar a própria bunda. Essas coisas.
Haverá um dia, talvez, em que vou acordar sem saber sequer que já fui
humano. Mas prefiro não pensar nisso. Até porque não há só sofrimento e
amargura. Segundo o tal médico que deu nome à minha doença, além da perda
de memória ela provoca em contrapartida um ganho relativo. A criatividade
também é afetada, só que positivamente. Como se o cérebro se esforçasse para
compensar o que está faltando.
E é assim que a cada dia lembro menos, a cada dia invento mais. Para me
refugiar do insuportável presente, mergulho uma vez mais no dia do
sincronicídio. Tudo indica que não morri naquele dia. Mas o que quer que
tenha acontecido comigo, deixou sequelas.
Meu colapso pode ter sido causado por uma descarga eletromagnética.
Talvez Teixeira tivesse realmente ferido de morte a minha moeda. E em seu
estertor final o ouro em meu organismo quase fritou o meu cérebro. Só que o
choque não foi suficiente para matar, apenas para aleijar.
O fato é que não tenho mais moeda. Nem de ouro, nem de prata, nem de
cobre. Acho que verifico isso todos os dias, ou quase, diante do espelho do
banheiro. Estou livre, embora não saiba ao certo o que isso significa.
Se é que pode ser chamado de livre alguém internado em uma instituição
mental. É que a natureza de minha enfermidade torna o cativeiro quase
abstrato, intangível, imaterial. Todos os dias estou no primeiro dia, ou quase.
Não há como saber há quanto tempo estou aqui. Nunca me ocorreu marcar os
dias e agora não me interessa começar. Posso estar internado há dois meses, ou
há cinco anos.
Voltando a meu colapso. Outra possibilidade é que tenha sido provocado
pelas próprias moedas no carro-forte. Talvez elas quisessem beber minha vida
também, depois que derramei o sangue do meu sangue em sacrifício.
Ou talvez as moedas estivessem apenas procurando proteger a mulher.
Talvez por algum motivo interessasse à Fábrica que Regina e Ágata
continuassem vivendo.
Não há como negar a ironia da coisa. Pois eu estava apontando a pistola
para a cara de Regina antes de apagar. E quem me salvou a cara depois que
apaguei foi justamente Ágata.
Foi ela quem me contou o que aconteceu. Assim que tombei no chão
desacordado, um dos seguranças saltou de dentro do carro.
“Era o homem. Ele caminhou tranquilamente até o fundo do carro e fechou
a porta, como se nada tivesse acontecido. Nem chegou a olhar em nossa
direção. Depois voltou para dentro do carro. A mulher deu a partida, e foram
embora. O que não entendo é como conseguiram se soltar tão rápido. Eu
mesma vi Alberto algemando os dois ao volante. Só se possuíam alguma chave
escondida.”
Uma explicação sensível, sem dúvida. Possivelmente a verdadeira.
Ultimamente, contudo, tenho sido tentado a buscar soluções menos prosaicas.
O inspetor e Ágata pensaram que seus oponentes do carro-forte estavam
algemados. Mas não é tarefa das mais fáceis algemar um par de serpentes.
Esses últimos acontecimentos Ágata contou sob comoção intensa, cravando
as unhas na palma da mão. Só fez isso porque considerava absolutamente
necessário rememorar comigo todo o acontecido, para que ela pudesse me
incumbir da tarefa que esperava que eu cumprisse.
Foi por isso que Ágata me salvou. Para que eu pudesse escrever.
Poucos instantes depois que o carro-forte dobrou a esquina e sumiu, a
mulher nua foi acometida por uma súbita vertigem, que a fez ficar de joelhos
no chão, entre os dois homens caídos. Ela arquejou. O fôlego lhe faltava, de tão
inesperado e intenso era o orgasmo. Fechou os olhos, embriagada de aflição e
delírio. Quando voltou a abri-los, era novamente Ágata. O Roque havia cessado
o seu efeito. Bem na hora.
Foi por isso que ela me salvou. Ela, a quem eu havia tentado matar sem o
menor motivo plausível. Eu, que havia matado seu bem-amado, meu único
filho. Ele, que Ágata deixou caído na sarjeta, para ser encontrado pelos lixeiros,
enquanto ela me arrastava para dentro de casa. Foi por isso que ela contratou
os melhores médicos para cuidar de mim e os melhores advogados para
defender meu nome das pesadas acusações que veio a sofrer. Tudo, é claro,
pago com o meu dinheiro, que ela de seu nunca teve nem a si mesma.
Depois de uma vida inteira operando nos bastidores, tive enfim meus
quinze minutos de ribalta. A contagem de corpos chegou a 121, somando o
total encontrado nos três salões e outras dependências da casa. Curiosamente,
esse foi o exato número de exemplares de La Concidenza que desapareceu
misteriosamente nos arquivos da Polícia de Milão. Simples coincidência.
O episódio foi um dos destaques da Madrugada de Horror em Rio Santo, em
que manchetes sangrentas não faltaram. Desde a Noite dos Mortos Vivos até a
Suruba Canibal, os termos mais imaginativos foram utilizados pela imprensa para
se referir ao incidente.
Como proprietário da casa onde ocorreu a Festa Macabra e também seu
único sobrevivente, nada mais inevitável que a atenção persistente tanto da
polícia quanto dos fotógrafos se voltasse para mim. E ainda mais quando
estouraram as denúncias armadas por Júlia a respeito de meu envolvimento
com o narcotráfico de Rio Santo.
Adquiri, em resumo, súbita e indesejada notoriedade. Durante alguns dias,
meu rosto e meu nome tornaram-se familiares para boa parte dos brasileiros.
Não deixa de ser uma benção disfarçada de maldição, essa minha condição
desmemoriada. Pois me impediu de registrar degrau por degrau o quanto desci
rumo à infâmia.
A doença possibilitou-me ainda escapar da cadeia. Venceram afinal os
apelos e atestados de que eu era incapaz de responder a julgamento. Para a
vitória final da Justiça, fui enviado a um sanatório para doentes mentais, onde
sou mantido em perpétua vigilância a fim de que não possa jamais constituir
um perigo para a sociedade.
Ágata vem sempre me visitar. E toda vez ela pergunta pelo livro. Afinal foi
por isso que ela fez tanta coisa por mim. Foi por isso que se casou secretamente
comigo, tornando-se minha herdeira universal e administradora de todos os
meus bens. A tanto pode a ciência do Direito. Não estou apto para ir para a
cadeia, mas nenhuma lei me proíbe de amar. A princípio, estou mais capacitado
que nunca para amar. Quem pode amar melhor uma mulher como Ágata, que
um homem sem memória?
Na cabeça dela, sempre estivemos casados. Na minha cabeça, não faria a
menor diferença. Pois nunca chegamos a consumar o casamento. Se aconteceu,
não me recordo.
Não que eu alimente ilusões a respeito. O amor é diametralmente oposto ao
que Ágata possa sentir por mim. A cada vez que ela vem me ver, percebo em
seus olhos o ódio e o desprezo que ela julga que mereço. Não foi por amor que
ela fez o que fez por mim. Foi para que eu escrevesse.
“Escreva um novo livro. Você criou o inspetor Teixeira, e depois o matou.
E agora vai recriá-lo. Você vai dar um jeito de trazer Alberto de volta. Eu sei
que você pode.”
Ela repetiu isso tantas vezes que acabou me convencendo. É claro que
nunca pensei em intentar alguma impraticável ressurreição de meu filho morto.
Por mais que quisesse, eu sabia muito bem que não haveria como reverter o
que foi feito uma vez. Mas acabei sendo seduzido pela mórbida vontade de
reviver o dia do sincronicídio. Eu daria um livro a Ágata, sim. Talvez não
exatamente o que ela queria, mas o que eu precisava. E assim comecei a
escrever a narrativa do último dia na vida de Teixeira. Que se tornou a história
última da vida que tive um dia.
O problema é que eu podia contar cada vez menos com a memória. Mas
Ágata não permitiu que fôssemos intimidados por esse pequeno obstáculo: “E
quem está interessado em suas memórias? Eu quero um livro do inspetor
Teixeira, como os outros que você escreveu.”
De nada adiantava replicar: “Pelo que me lembro, jamais escrevi livro
algum.”
“Pelo que eu me lembro, você não lembra é de mais nada direito. Toda vez
que você começa uma frase dessa maneira, está mentindo. Já parou para pensar
nisso?” Era assim que Ágata invariavelmente calava todas as minhas possíveis
objeções. “Você não precisa de memória para escrever esse livro. Tudo o que
você precisa é de imaginação.”
Ela ao menos consentiu em ir ao apartamento de Teixeira e me trazer os
seus famosos cadernos de anotações. E também conseguiu contrabandear meu
computador pessoal para dentro da clínica. As gravações da minitevê
implantada em Teixeira foram imprescindíveis. Sem elas, eu não teria nem por
onde começar.
Mas assistir àquelas imagens gravadas trouxe muitos enigmas junto com
algumas respostas. A minha própria participação na história de Teixeira parecia-
me muitas vezes tão absurda quanto inexplicável.
Foi por isso que acabei recorrendo a Isaac. Eu ainda tinha o programa
instalado em meu computador. Raciocinei da seguinte forma: para alguém que
consegue ler o futuro, descobrir o passado não pode ser muito difícil. Seguindo
uma inspiração súbita, tomei como matriz o Passeio do Cavalo. Só que no lugar
das casas do tabuleiro de xadrez utilizei os sessenta e quatro hexagramas do I
Ching. Escolhi utilizar como “casa” inicial o hexagrama 51, Trovão, quando
notei a singular coincidência dos trovões no despertar de Teixeira.
Em pouco tempo a matriz ficou pronta. Ter sido capaz de utilizar Isaac
dessa forma foi muito bom para mim. Devolveu a autoconfiança que eu
precisava para poder escrever. Minha memória pode não prestar para nada, mas
ainda consigo criar.
Mesmo com as gravações da minitevê e a ajuda de Isaac, contudo, ainda
restaram muitas lacunas, muitas reticências, muitas interrogações sem resposta.
Aí sim entrou em cena a imaginação, tão valorizada por Ágata e também pelo
meu médico.
Muitas mentiras tive que contar, não nego.
Talvez até tenha dito sem querer uma ou duas verdades.
Tudo o que sei é que me chamo Rogério Arcanjo Bastos.
E que matei meu filho.
Quanto à Fábrica, pelo que me lembro ela nunca existiu.
Por isso tive que inventá-la.
Sou muito grato a você, leitor ou leitora, por haver dedicado seu tempo e inteligência à
leitura deste livro. Espero que tenha gostado da experiência e que isso possa somar de alguma
forma em sua vida. Conto com você para recomendar a leitura para seus amigos e conhecidos.
Seu apoio é muito, muito importante para tornar O Sincronicídio conhecido por mais e
mais pessoas.
Sou muito grato a Deus e às Musas, pelo anseio de escrever, e à minha família, por todo
apoio e estímulo.
Agradeço especialmente a Elda Araujo, por acreditar tanto, e a Bia Machado e Angélica
Bernardino.
Sou grato ao talento de Elaine Alves e Pedro Viana. E também a Rodolfo Euflazino,
por sua divulgação incansável.
Agradeço muito a todos os queridos amigos que leram trechos ou o livro inteiro em suas
diversas etapas e tanto contribuíram com seus incentivos e sugestões: Adriana Machado, Alex
Guimarães, Alex Voorhees, Aline Barreto, Amadeu Alves, Amadeu Junior, Ana
Benevides, Analu Franca, André Delacroix, Andréa Soares, Andreia Lima, Carlos Lopes,
Claudia Azevedo, Claudia Barretto, Chico Castro Jr, Darci Souza, Diolinda Lopes, Dilma
Souza, Doris Pinheiro, Elenilson Nascimento, Eliton Tomasi, Fabiana Oliveira, Fabiola
Campos, Fabrício Barretto, Fernanda Xavier, Flávia Barretto, Flavio Duarte, Glaucia
Fortes, Helquer Sales, João Ninguém, Júlia Lobianco, Juliana Picanço, Julimar Ferreira,
Jussara Barretto, Léia Viana, Leonardo Leão, Lícia Maria, Lis Braga, Lua Oliveira,
Luan Grugru, Lucio Oliva, Luiz Rangel, Madhurii Viraj, Manolo Martinez, Marcia
Dottori, Mariana Paiva, Miriam de Sales, Miryam Both, Monica Wanderley, Nayara
Lobo, Nil Dias, Nora Abreu, Patrícia Cris, Pedro Drummond, Pedrina Castro, Rachel
Lopes, Rafael Santos, Ramona Torres, Reinaldo José, Rita Muniz, Rogério Lopes, Rosélia
Sampaio, Rudynalva Soares, Sandoval Barretto, Sergio Elísio, Servulo Barreto, Tatiana
Inda, Teresa Fiore, Tufi Sami, Ulrike Wendl.
Tenho muita gratidão da mesma forma a todos que leram O Sincronicídio depois que
foi publicado. Agradeço em especial às lindas resenhas que o livro obteve.
Agradeço aos amigos da Comunidade Resenhas Literárias e à turma tão querida da
Oficina de Muita Música! E também aos amigos e colegas escritores da Editora Caligo.
Os primeiros capítulos deste livro foram escritos em uma velha e confiável Remington 14,
emprestada pelo amigo Ciro Soares, pelo que sou muito grato. Agradeço da mesma forma
meus vizinhos no Rio de Janeiro, pela paciência com que toleraram as incontáveis repetições da
Sinfonia “Eroica” de Beethoven enquanto eu batucava na Remington.
Sou muito grato aos policiais entrevistados, pelas informações valiosas sobre a rotina
policial. Sou grato aos autores de todos os livros que li, pelo tanto de aprendizado e diversão
que encontrei em cada um.
Com a exceção de La Coincidenza de Mario Bodoni, todos os livros e teorias aqui
citados são factuais.
O Sincronicídio foi originalmente concebido como o primeiro volume de uma trilogia. A
segunda parte chama-se A Mais Tocada de Todos os Tempos e traz como protagonista
Samuel Bontempo, que aqui faz uma discreta, porém marcante participação.
Nesse momento em que termino a revisão desta primeira edição digital, estou dando os
toques finais a Escritores Perguntam, Escritores Respondem, livro coletivo que tive a
grande alegria de organizar. E estou labutando com um novo romance intitulado Favela
Gótica. Também escrevo poesias, de todos os sabores, que exponho impudentemente nos blogs
Meu Querido Espírito, Lírico Vício Solitário, Ninguém É Perfeito e O Coração
na Sala de Jantar. Além disso, escrevo músicas para os Mensageiros do Vento, a
primeira banda de rock a lançar um livro de literatura/filosofia: MANIFESTO e que
atualmente prepara a primeira ópera rock em animação do Brasil: ANUNNAKI. Por tudo
isso, é claro que sou muito grato.
Por isso decidi aproveitar este espaço não só para expressar a minha gratidão, como
também para compartilhar com você, amigo ou amiga, um pouco das coisas pelas quais sou
grato.
Foi muito bom contar com sua companhia até aqui. Espero que possamos nos encontrar
novamente em breve!
Jai Guru!
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© Fabio Shiva, 2011