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O SINCRONICÍDIO

Sexo, morte & revelações transcendentais

FABIO SHIVA
a Ganesha
Que bom que você decidiu ler O Sincronicídio!
Logo você vai notar que este livro possui algumas características especiais:
os capítulos não seguem a ordem de numeração tradicional e são ilustrados por
diversas figuras de xadrez que acompanham citações do I Ching, o antigo
oráculo chinês também conhecido como O Livro das Mutações.
Você não precisa saber jogar xadrez ou possuir qualquer conhecimento
prévio sobre o I Ching para apreciar a história contada aqui. Se preferir, pode ler
este livro como qualquer outro que você já tenha lido. Caso deseje se
aprofundar na leitura, no entanto, pode ser útil saber um pouco mais sobre a
intenção do autor ao organizar os capítulos dessa maneira.
O Sincronicídio foi concebido como uma ponte literária entre o jogo do
xadrez e jogo do I Ching. E logo aparece a primeira conexão entre esses dois
universos aparentemente distintos: o tabuleiro de xadrez tem 64 casas, o
mesmo número dos hexagramas do I Ching. Não é por acaso, portanto, que o
livro é dividido em 64 capítulos.

O tabuleiro de xadrez é formado por casas brancas e pretas. Já os


hexagramas são formados por linhas yang ( ___ ) e yin ( _ _ ), que simbolizam
os princípios da luz e da escuridão. No livro, cada hexagrama foi representado
com as casas do tabuleiro, pela substituição das linhas yang e yin por casas
brancas e pretas respectivamente.
O Livro das Mutações é um sistema dinâmico. Após algum tempo, as linhas do
hexagrama ficam “velhas” e se transformam em seus opostos. Uma linha yang
velha ( _0_ ) irá se tornar yin ( _ _ ), e uma uma yin velha ( _x_ ) mudará para
yang ( ___ ). É isso o que torna o I Ching um “livro vivo”, ao permitir a mutação
das linhas yang e yin em seus opostos, gerando sucessivamente novos
hexagramas.

É por isso que no livro, seguindo a metáfora enxadrística, as linhas móveis


dos hexagramas são representadas por peças de xadrez de cor oposta às casas
que estão ocupando. Todas as vezes que uma peça preta ocupa uma casa
branca, no capítulo seguinte a casa correspondente torna-se preta também. Do
mesmo modo, quando uma peça branca ocupa uma casa preta, no próximo
capítulo a casa muda para branca.
Em resumo, esse é o esquema do livro: cada capítulo corresponde a um dos
64 hexagramas do I Ching, que por sua vez corresponde a uma das casas do
tabuleiro de xadrez. E é aqui que chegamos ao Passeio do Cavalo, um clássico
problema de xadrez. O Passeio do Cavalo consiste no seguinte desafio: como
fazer a peça do Cavalo percorrer todas as casas do tabuleiro sem repetir
nenhuma?
Existem duas formas de solucionar esse problema. Uma é o chamado
“passeio aberto”, quando não faz diferença em qual das casas a peça começa ou
termina. E a outra solução, cujo modelo foi utilizado neste livro, é o “passeio
fechado”: o Cavalo termina em uma casa a partir da qual ele ataca a casa que foi
o seu ponto de partida. Ou seja, o Cavalo retorna para a casa inicial após o
último lance e assim fecha o ciclo.
Dessa forma, a história de O Sincronicídio segue o roteiro de um “passeio
fechado” através do Livro das Mutações. É por isso que os capítulos são
apresentados fora da sequência numérica: cada capítulo determina
obrigatoriamente o seguinte, pela mutação das linhas ou casas.

Mas você não precisa dar excessiva importância a essas informações, que na
verdade representam apenas 1% da concepção deste livro. Nunca é demais
frisar que O Sincronicídio é acima de tudo um Romance Policial. Você não
precisa de nenhum conhecimento sobre I Ching ou xadrez para ler o livro como
uma simples e honesta história policial: um jogo intelectual, com mistérios a
serem solucionados pelo leitor jogador, que se propõe a ser mais esperto que o
detetive protagonista e desvendar primeiro as pistas apresentadas no decorrer da
trama.
Sob essa história mais aparente que é contada no livro, contudo, existe uma
outra, mais sutil. E daí a utilização do xadrez e do I Ching para escrever uma
história policial. Pois o grande fascínio do romance policial está, justamente, na
catarse dessa fome tão visceralmente humana, que é a fome de conhecimento.
O homem não é somente um “ser diante da morte”, como afirmou Heidegger,
como também um ser vivo diante do Universo, em busca de soluções para o
Grande Mistério. E a beleza do romance policial é simbolizar algo dessa busca
tão humana pela verdade.
SUMÁRIO
A DAMA DE FORA
Incidente na Suíte Nº 5
Capítulo 51 – Trovão
Capítulo 61 – Verdade Interior
Capítulo 3 – Dificuldade Inicial
Capítulo 50 – Caldeirão
Capítulo 41 – Diminuição
Capítulo 9 – Força do Fraco
Capítulo 45 – Ajuntamento
Incidente no Quarto 909
Capítulo 18 – Decadência
Capítulo 10 – Conduta
Capítulo 52 – Imobilidade
Capítulo 38 – Oposição
Capítulo 20 – Contemplação
Capítulo 7 – Exército
Capítulo 31 – Influência
Incidente no Salão 66 ½
Capítulo 27 – Alimento
Capítulo 56 – Viajante
Capítulo 42 – Aumento
Capítulo 22 – Beleza
Capítulo 53 – Desenvolvimento
Capítulo 44 – Encontro
Capítulo 54 – Noiva
O REI OCULTO
Crítica!
Capítulo 25 – Inocência
Capítulo 5 – Paciência
Capítulo 46 – Ascensão
Capítulo 43 – Resolução
Capítulo 4 – Inexperiência
Capítulo 33 – Retirada
Capítulo 16 – Entusiasmo
Ator!
Capítulo 17 – Seguir
Capítulo 19 – Aproximação
Capítulo 48 – Poço
Capítulo 13 – Fraternidade
Capítulo 23 – Desintegração
Capítulo 12 – Estagnação
Capítulo 8 – União
Autor!
Capítulo 37 – Família
Capítulo 55 – Plenitude
Capítulo 32 – Duração
Capítulo 34 – Grande Força
Capítulo 36 – Obscurecimento
Capítulo 2 – Receptividade
Capítulo 59 – Dispersão
MEIO DO JOGO
A Rebelião dos Cavalos
Capítulo 64 – Antes do Fim
Capítulo 62 – Preponderância do Pequeno
Capítulo 26 – Força do Forte
Capítulo 57 – Vento
Capítulo 58 – Alegria
Capítulo 60 – Limitação
Capítulo 63 – Depois do Fim
O Gambito do Bispo
Capítulo 35 – Progresso
Capítulo 29 – Perigo
Capítulo 15 – Humildade
Capítulo 6 – Confronto
Capítulo 39 – Obstáculo
Capítulo 40 – Liberação
Capítulo 21 – Mordida
Os Peões e as Torres
Capítulo 28 – Preponderância do Grande
Capítulo 30 – Luz
Capítulo 14 – Grandes Posses
Capítulo 1 – Criatividade
Capítulo 47 – Adversidade
Capítulo 49 – Revolução
Capítulo 11 – Paz
XEQUE-MATE
Capítulo 24 – Retorno
Não há meras coincidências.
Tudo é coincidência.
A DAMA DE FORA

Onde a mocinha encontra o herói.


Incidente na Suíte Nº 5
CAPÍTULO 51 – TROVÃO

O Trovão apavora por cem milhas, e mesmo assim ele não deixa cair
os apetrechos cerimoniais.
Trovão repetido: a imagem do Choque. O homem superior treme de medo, investiga a si
mesmo e coloca sua vida em ordem.
(I Ching, O Livro das Mutações – hexagrama 51)

Ele dormia inteiramente nu, sem saber que era o seu último sono.
Observando só o semblante adormecido, não seria fácil adivinhar a profissão de
policial. Na face do homem feito, recém-chegado à casa dos trinta anos, as
pálpebras cerradas acentuavam a sugestão de inteligência e sensibilidade. O tipo
de rosto que se esperaria encontrar em um pintor ou poeta.
O inspetor Alberto Teixeira dormia o sono dos justos. O peito largo
ressonava, indiferente às dores sofridas no passado, igualmente ignorante a
respeito das agruras do porvir.
Era o corpo desnudo que dava testemunho do homem de ação. Enfiado em
algum dos ternos baratos aos quais estava acostumado, sempre um número
acima, não deixava notar os músculos rijos, bem delineados, habituados à fadiga
e ao esforço, cultivados por exercícios. Era o corpo sem roupas que revelava
também as suas histórias de batalha, crivadas em cada cicatriz.
O homem estava bem no meio de um sonho. Era possível saber só de olhar
para ele. Pois isso também o corpo contava, esse delator incorrigível.
Mesmo sem a medição das ondas cerebrais, seria fácil dizer por dois sinais
fisiológicos evidentes a olho nu que Teixeira sonhava. O primeiro e notável
testemunho era dado pelo corpo cavernoso. O inspetor estava tendo uma
ereção. Aquilo era algo difícil de não ser notado. Realmente admirável, aquele
vigor tamanho. Provavelmente uma herança de família.
Era tal a potência ostentada pelo inspetor, que lhe conferia de imediato o
título de herói. De espada desembainhada e pulsante, sonhava que estava
acordado.
Como garantem os estudiosos do pênis, quando um homem está dormindo
e tem uma ereção isso é indício certo de que está na fase de sonhos do sono.
Não significa necessariamente que se trate de um sonho erótico. É muito
comum os homens terem ereções com os sonhos mais loucos.
Um indício mais sutil de que Teixeira sonhava eram as pálpebras, agitadas
pelo célere bailado das pupilas. Não foi à toa que os cientistas americanos
chamaram o período dos sonhos de sono R.E.M., de Rapid Eye Moviment,
movimento rápido dos olhos.
É de se perguntar se nos sonhos do inspetor haveria ou não uma mulher
nua agarrada às suas costelas, como uma pequena Eva ansiosa por voltar à terra
pátria. Pois no quarto abafado onde Teixeira fatalmente se encontraria ao
despertar, uma fêmea assim o agarrava. Uma mulher miúda, de corpo bem
feito, de menina-moça.
Chamava-se Janine. Também beirava os trinta. Era amante de Teixeira há
pouco mais de duas semanas. Mais parecia uma boneca de pano, arreganhada
ao abraçar um homem tão maior que ela, aparentemente entregue a um sono
sem sonhos. Acaso sonhasse, não seria uma ereção que a delataria. Quanto aos
olhos, estavam quase que totalmente cobertos pelos cabelos compridos e
escuros de Janine, que desciam do rosto da mulher para se esparramar pelo
tórax do policial. Os sonhos de uma mulher são geralmente mais bem
guardados que os dos homens.
Os dois enlaçados na cama poderiam muito bem ilustrar uma das páginas do
Kama Sutra. A diferença de tamanho era gritante. Um homem com lingam de
Cavalo e uma mulher com yoni de Corça. Um claro exemplo do que o Kama
Sutra chama de união altíssima. O problema era que assim, ao vivo e a cores, o
cavalo e a corça parecessem uma combinação um tanto desproporcional
demais. Talvez daí certo clima de incesto na cena, como se os dois não
pudessem ser outra coisa senão pai e filha. Um pai enorme e uma filhinha bem
pequenininha.
Incestuosos ou não, aqueles dois corpos haviam se entendido muito bem
por toda a noite. Disso não havia a menor dúvida. Foi realmente uma pena, do
ponto de vista do observador, que os rituais noturnos tenham transcorrido com
as luzes apagadas. Felizmente os registros não se resumiam ao vídeo e ao áudio.
Porque este se propõe a ser um relato o mais fiel possível do último dia de
Alberto Lino Teixeira, Inspetor de Polícia de Terceira Classe, lotado na
Delegacia de Homicídios do Município de Rio Santo, Brasil.
E também da noite que se seguiu. Dia e noite, branco e preto. Exatamente
como num tabuleiro. Peças dispostas, estratégias traçadas, para o bem e para o
mal havia começado: aquele era o dia marcado.
E o dia começou com um trovão.

Brancas avançam na segunda:


O Trovão chega trazendo perigo. Cem mil vezes os tesouros são perdidos. Não vá atrás deles:
em sete dias serão recuperados.

Eram exatamente sete horas da manhã. O módulo de som despertou com


um zumbido quase inaudível. Uma música foi escolhida ao acaso dentre as
centenas armazenadas na pasta que estava programada para tocar. A faixa
começou, não propriamente música. Era mais uma vinheta o que saía das caixas
de som. Ou uma introdução. Ou a trilha sonora de algum filme de terror
antigo. Eram sons de chuva, e então um sino, como um sino de igreja, e então a
primeira trovoada. Tudo isso muito distante, num lento crescendo.
Teixeira havia regulado o som para despertar em um volume moderado,
politicamente correto, de forma a não perturbar os apartamentos vizinhos,
separados por finas paredes. Por esse motivo o som da chuva caía pianíssimo
dos alto-falantes, muito baixo ainda para acordar o casal que dormia. O
inspetor continuava sonhando. Talvez, com o tímido estímulo do som ligado,
ele houvesse deslizado para aquele estado de consciência onde a realidade e os
sonhos se misturam. Em momentos como esse, na fronteira inexata entre a
vigília e o sono, a mente pode vislumbrar além do que lhe é ordinariamente
permitido. Que a maioria das pessoas raramente se lembre desses momentos
após despertar é apenas mais um dos inúmeros mistérios da vida.
Quanto à mulher, Janine, é difícil precisar se foi o suave murmúrio da
chuva, ou a lufada de vento frio que subitamente entrou pela janela entreaberta,
ou se foi qualquer outro motivo que fez com que ela se mexesse levemente na
cama, procurando uma posição mais confortável junto ao corpo de Teixeira. O
breve movimento foi suficiente para que o corpo dela se apercebesse do
volume que o homem fazia. Logo o pênis do inspetor era enlaçado em sua base
pelos dedos sonâmbulos de Janine. Mesmo dormindo, aquela era uma mulher
que seguramente sabia o que queria.
Desde o início da faixa, quase meio minuto já havia se passado ao leve som
de sinos e chuva. Aos 30 segundos cravados, uma segunda trovoada culminou
o lentíssimo crescendo da chuva e dos sinos. E a banda começou a tocar. Um
novo tipo de ruído: guitarra, baixo e bateria, em compasso lento, atacando em
uníssono a mais simples variação possível do diabolus in musica. Sol, sol, dó
sustenido. Simples, mas eficaz.
A essa altura o volume da música já teria sido mais que suficiente para
despertar o casal entrelaçado na cama. Um instante antes da entrada da banda,
no entanto, um barulho muito mais alto se fez ouvir no céu. Um som
ensurdecedor e nem um pouco politicamente correto.
No exato instante em que o segundo trovão soou nas caixas de som, outro
trovão se ouviu no céu. Um trovão real, muito alto, muito perto, fazendo
estremecer as janelas do apartamento. Um som de céu rachando e de fim do
mundo.
O casal acordou num sobressalto, ambos expulsos do paraíso, os sonhos
perdidos no limbo. Por um momento fitaram-se, mudos de espanto. A mulher
falou primeiro:
“Mas que diabos foi isso?” Ela levantou-se e foi até a janela.
Ele demorou um pouco para responder. Sua voz ainda estava pastosa pelo
sono, como se ele estivesse um pouco bêbado: “Isso, minha cara, é nada menos
que Black Sabbath, a canção que deu nome à banda, aqui em sua gloriosa
formação original: Osbourne, Iommi, Butler e Ward.”
Teixeira considerava-se um bom conhecedor de música, em especial do que
ele costumava chamar de mpea, ‘música primordial da era de aquário’. Embora
não fosse dado a misticismos e tampouco levasse assim tão a sério a era de
aquário, o inspetor sentia um irresistível fascínio pelas antigas gravações das
décadas de 1960 e 1970, todas anteriores ao seu próprio nascimento.
“Eu não estou falando da música, seu bobo”, disse Janine, espichando o
pescoço para olhar para fora da janela. “Parece que vai chover muito hoje.”
“Bem, eu não estava pensando em ir à praia mesmo”. Teixeira sentou-se na
beira da cama, repentinamente constrangido por aquela ereção matinal sem uso.
Ficar com o pênis duro diante de uma mulher nua e não fazer nada podia ser
quase tão embaraçoso quanto querer fazer algo e não poder. De uma forma ou
de outra, os homens acabam sempre sendo governados pelo próprio pau.
Janine não pretendia deixar que aquele impasse continuasse
indefinidamente. “Ah, é? E o que o senhor estava pensando em fazer hoje,
exatamente?” Ela avançou de volta para a cama, o tom da voz e o olhar
deixando claras suas intenções.
“Infelizmente nada tão agradável, minha linda. Apenas trabalho. E é melhor
eu começar a me arrumar.” Teixeira repeliu com gentileza os avanços da
mulher e levantou-se para ir ao banheiro. A vontade de urinar já começava a
vencer a ereção. Urinar ou penetrar? Esta nem sempre é uma decisão fácil, nos
primeiros instantes após o despertar.

Pretas avançam na quarta:


O Trovão traz lama.

Se Teixeira ou a mulher chegaram a notar la coincidenza, nenhum dos dois


jamais comentou. Trovão sobre trovão. Um no céu e outro nas caixas de som.
O dia começava com algo diretamente extraído de um milenar oráculo chinês:
Chen, o Trovão, a perfeita imagem do choque.
Quanto mais inesperado, maior o impacto é. Diante do choque, os
acontecimentos do cotidiano perdem significância, reduzidos a um borrado
segundo plano. Algumas vezes, por esse motivo, o Trovão pode trazer à tona o
verdadeiro significado por trás das aparências.
O derradeiro dia de Alberto Teixeira começou com o puro acaso fazendo
sentido. E é aí que entra a coincidência.
O finado doutor Mario Bodoni assim definiu o tema de seu livro La
Coincidenza:

As coincidências são eventos

significativamente relacionados no espaço-tempo.

A palavra-chave é ‘significativamente’. As coincidências não acontecem em


algum ponto ou momento isolados no universo exterior. Elas ocorrem sempre
e em primeiro lugar na mente de alguém, o observador. Não há coincidências
sem espectadores. Não existe la coincidenza fora da consciência.
Na introdução de seu livro, il Dottore enumera os dois principais obstáculos
para apreender la coincidenza. O autor retoma a velha tese kantiana de que o
conhecimento humano é limitado pelo tempo e pelo espaço. Por ter a
percepção escravizada a priori, o ser humano médio não pode perceber la
coincidenza em sua totalidade. O homem comum só consegue compreender dois
tipos básicos de coincidências: de tempo e de espaço.

O homem superior é aquele que penetra o portal das coincidências

e devassa em sua própria consciência a cambiante

Mão do Destino em ação.

Il Dottore. O Doutor. Houve época em que não era possível chamá-lo por
outro nome. Provavelmente ficaria ofendido comigo se soubesse dessa
comparação de seus pensamentos com os de Kant. Detestava ser comparado a
quem quer que fosse, por mais elogiosa que a intenção pudesse ser. Não
cansava de repetir que suas ideias eram originais e inéditas.
Era um tipo um tanto arrogante, o falecido Mario Bodoni. Se bem que
originais as ideias dele eram mesmo. Uma mistura de filosofia quântica,
matemática aplicada, misticismo oriental e autoajuda nazifascista. É claro que
eu nunca disse isso para ele. Mas suas ideias eram malucas e potencialmente
perigosas.
Tanto que acabaram ajudando a forjar o que algum repórter com senso
dramático não hesitaria em chamar de Império do Mal – no caso improvável de
que a verdade um dia viesse a público. Pois inéditas, de certa forma as ideias do
Dr. Bodoni continuavam sendo. Afinal, seu livro nunca foi oficialmente
publicado.
La Coincidenza, obra-prima porque única de Mario Bodoni, foi impressa por
uma gráfica em Milão, Itália, em data não informada em nenhum lugar do livro.
A impressão, ao que tudo indica, foi paga pelo próprio autor. Pouco mais de
cem páginas com letras pequenas, uma edição bem acabada, ainda que modesta.
Até onde se sabe, il Dottore mandou imprimir apenas trezentos exemplares.
Em abril de 1987, respondendo à chamada de um vizinho que reclamava do
mau cheiro, a polícia de Milão invadiu a residência de Bodoni. Lá encontrou o
homem morto há pelo menos duas semanas, com a cabeça estourada por um
tiro de espingarda. Ao menos nisso o corpo igualava-se ao de Hemingway.
Aparentemente, nenhum dos vizinhos se incomodou com o barulho do tiro.
Não ao ponto de ligar para a polícia. Motivo pelo qual os policiais tiveram que
lidar com um cadáver já em avançado estado de decomposição, o que somado à
destruição quase que total das feições pelo disparo em muito teria dificultado
uma identificação positiva. Mas o doutor teve a gentileza de assinar o bilhete de
suicídio, que deixou junto com alguns documentos que comprovavam a sua
identidade.
Em sua derradeira criação literária, Bodoni pedia perdão por seus pecados e
afirmava avançar esperançoso para o esquecimento. Havia também uma curiosa
menção a uma geladeira. Logo ocorreu a alguém investigar a cozinha. Dentro
da geladeira, disputando espaço com garrafas quase vazias e vegetais murchos,
jaziam os restos de um indivíduo que jamais chegou a ser identificado. A
respeito dele, foi possível descobrir apenas que era do sexo masculino, que
morrera jovem, que provavelmente fora do tipo caucasiano e que com toda
probabilidade havia sido considerado delicioso e/ou nutritivo pelo igualmente
falecido Mario Bodoni.
No apartamento foram encontrados exatamente cento e vinte e um
exemplares do livro La Coincidenza. Os livros estavam acondicionados em duas
caixas fechadas, com cinquenta exemplares em cada. Os vinte e um exemplares
restantes estavam empilhados em uma estante na sala. Em algum momento do
curto inquérito que se seguiu à morte de Bodoni, tanto as duas caixas quanto os
exemplares avulsos desapareceram sem deixar vestígios.
Se realmente foi de trezentos exemplares a tiragem, isso significa que o bom
doutor conseguiu distribuir ou ao menos também fazer sumir exatas cento e
setenta e nove cópias de seu livro.
Um desses livros foi parar a milhares de quilômetros e a décadas de
distância dos dias em que Bodoni, abancado em um canto de La Sirena, atraía
jovens universitários para uma rápida partida de xadrez com a promessa de
bebidas grátis após o décimo lance.
Esse exemplar, certamente uma das últimas cópias restantes, encontrava-se
não muito distante de Teixeira, bem seguro no cofre de certa propriedade em
um distinto bairro de Rio Santo. No decorrer das próximas horas, o inspetor
teria a oportunidade de examinar por si mesmo o conteúdo do cofre.
Naquele momento, no entanto, o inspetor Teixeira despertava ao som de
trovões em um dos apartamentos do prédio mais velho na rua Capitão
Gregório, no decadente bairro do Estado Novo, próximo do centro e de toda a
imundície da cidade. Naquele momento, como sujeito involuntário de la
coincidenza, o inspetor ilustrava uma das mais interessantes ideias contidas no
livro.
O teorema das pirâmides, como foi batizado pelo Dr. Bodoni, é descrito no
capítulo cinco de La Coincidenza. Parte do teorema pode ser representada
graficamente por um diagrama espaço-tempo (“s” para space e “t” para time):
Na sequência dos trovões dentro e fora do apartamento de Teixeira estava
em ação, como sempre, la coincidenza. Basta considerar T1 e T2 os dois trovões
da trilha sonora e T3 o trovão verdadeiro, e pronto. Temos entre T1 e T2 uma
coincidência de espaço, enquanto T2 e T3 formam uma coincidência de tempo. Uma
perfeita demonstração prática da ‘sombra’ no teorema das pirâmides.
Uma sombra pairava sobre o inspetor Teixeira, e era a sombra da morte. Só
ele ainda não sabia.

Brancas avançam na quinta:


O Trovão chega aqui e ali. Perigo. Mas nada se perde. Ainda assim, há coisas a serem feitas.

“Ainda não entendi o porquê dessa pressa toda. Você não só pega no
trabalho às nove?”
“Eu tenho um compromisso às oito. Com leite ou sem?”
“Puro, obrigada. Como é aquele ditado mesmo, preto como o diabo... e doce como
um beijo roubado.”
“Para com isso, Janine. Você sabe que eu não tenho tempo agora.”
“Como é o nome dela? Fala.”
“O nome dela? O nome de quem, Janine?”
“Desse seu compromisso.”
“Ficou doida? Acha que eu vou sair daqui pra encontrar uma mulher?”
“Eu não estou achando graça não, viu? Que compromisso é esse?”
“Olha, o pão ficou pronto. Bebe um pouco mais de laranjada.”
“Para de disfarçar, Alberto. Você vai contar ou não? Ou é alguma coisa do
serviço?”
“Não, não é nada disso. Quer dizer, de certa forma, sim. É uma espécie de
programa de treinamento que estou fazendo.”
“Um curso?”
“Mais ou menos, por aí.”
“Sobre o que é?”
“Autopercepção e aprimoramento inteligente.”
“Nossa, parece complicado. Mas você ficou zangado? Desculpe, meu bem,
eu não queria ficar enchendo seu saco. É que eu sou uma chata mesmo.”
“Você não é chata, minha linda. Não tem nada a ver com você. É esse
programa que já está me dando nos nervos.”
“É muito cansativo?”
“É irritante, isso sim. Você acredita que Varlene uma vez teve a coragem de
me perguntar...”
“Quem é Varlene?”
“Como?”
“Não se faça de sonso. Quem é essa Varlene?”
“Mas que coisa, Janine! Não é nada disso que você está pensando. Varlene é
a psicóloga encarregada do programa, a mulher mais intrometida que eu...”
“Ela é bonita? Fala pra mim, diz se ela é bonita.”
“Olha, quem já não está achando graça sou eu.”
“Fala se ela é bonita! Eu sabia que tinha alguma mulher no meio.”
“A Varlene é bonita sim, Janine. Na verdade, é um avião. E ainda fica
usando uma saia curtíssima em toda sessão, e faz questão de cruzar as pernas e
me mostrar a calcinha a cada dez minutos. Tem mais alguma coisa que você
queira saber?”
“...”
“Olha, não fica assim.”
“...”
“Você precisa aprender a controlar esse ciúme.”
“Me deixa, eu quero ler o jornal.”
“Toma seu café. Já está esfriando.”
“Não quero mais.”
“Está bem, se é o que você quer.”
“...”
“Deixa eu ver isso.”
“Ai, seu grosso! Não podia esperar eu terminar de ler? E o que é que você
está olhando aí, com essa cara? Só pode ser a foto de alguma dessas vagabundas
de biquíni.”
“Toma. Obrigado.”
“Mas é a foto de um homem!”
“Sim, eu também notei esse detalhe.”
“Bobo! Eu sei quem ele é, aquele ator, como é mesmo o nome dele?”
“Régis Vale. Ou, pelo menos, é como ele se chama agora.”
“Como assim? Você conhece ele, amor?”
“Com esse nome, não. Com o nome de Reginaldo de Souza Neto, no
entanto, esse mesmo homem foi preso como o assassino confesso de um
cidadão estrangeiro.”
“Não brinca.”
“Pois é. Só que isso aconteceu há o quê, dois anos atrás. É impressionante
como a justiça brasileira parece mesmo acreditar em uma rápida segunda
chance.”
“Nossa, Alberto! Você tem certeza de que é ele mesmo?”
“É claro que sim. Eu estava presente quando ele foi preso.”
“Que loucura! Agora eu lembrei, esse Régis Vale fez um dos operários em
Sorte no Amor. Ele é muito engraçado, você precisava ver!”
“Que ele é um bom ator, eu não tenho a menor dúvida.”
“Aqui está dizendo que ele está fazendo o maior sucesso na peça O
Sincronicídio. E está levando justamente no Noite de Reis. Nossa, eu tinha tanta
vontade de conhecer esse teatro, dizem que é lindo.”
“É. Acho que também vou querer assistir essa peça.”
“Mas como você pode ter tanta certeza de que o Régis Vale e esse tal
assassino são a mesma pessoa? Veja bem, Alberto, é somente uma foto no
jornal. E em preto e branco, ainda por cima. E também já se passou certo
tempo, não é mesmo? Como você pode estar tão seguro?”
“E como você pode ter certeza de que foi ele quem fez o operário na
novela?”
“Não é a mesma coisa, Alberto, e você sabe disso.”
“Assim como você sabe o que viu na novela, eu sei o que vi na vida real, ok?
Se eu não pudesse confiar em minha memória para essas coisas, jamais poderia
ser um policial.”
“Essa é boa! O Siqueira jamais diria isso, nunca vi um sujeito tão
esquecido.”
“Vamos manter o Siqueira fora disso, tudo bem?”
“Não esquente não, meu bem. Ele sabe que é corno, mas esquece.”
“Você perde muito sendo vulgar.”
“Eu. Tudo bem. Desculpe, Alberto, mas só eu sei o que eu passo.”
“Deixa pra lá. E por falar nisso, vamos embora que o seu marido já está
para chegar em casa.”
“Também não precisava falar assim. E além do mais, ele só pode ir pra casa
depois que passar o serviço pra você, ou já esqueceu?”
“...”
“Alberto, me desculpe. Eu tenho andado muito nervosa ultimamente, deve
ser a minha menstruação chegando.”
“Tudo bem. Esqueça isso.”
“Eu fiquei pensando nessa história do Régis Vale. Nossa, quem diria! O
assassino que virou ator.”
“Ele já era ator quando foi preso.”
“Mas como foi isso?”
“Ele era um morto de fome na época. Eu também não entendo como ele
saiu da prisão. O réu confesso do assassinato de um cidadão estrangeiro. Um zé
ninguém, um reles artista de rua, um campado qualquer. Era certo que iria
amargar o papel de presidiário por um longo, longo tempo. O mais provável
era que acabasse sendo morto na cadeia. Como ele foi solto tão cedo, nem faço
ideia.”
“E como é que foi chamado pra fazer uma novela?”
“Isso também é esquisito. E quando há duas esquisitices juntas, pode
apostar que há uma ligação entre elas.”
“Uma ligação? Como assim?”
“Isso eu pretendo descobrir.”
“Mas que interesse alguém teria em tirar um pobre diabo da prisão para
colocá-lo diante das câmeras de televisão? Nossa, até rimou.”
“É possível imaginar alguns motivos. Mas deixe isso pra lá. Quer uma
carona até o elevador?”
“Você sabe muito bem que não. Eu juro que já estou descendo, meu amor.
Mas não me deixe curiosa assim. O que você acha que pode estar por trás dessa
história do Régis Vale?”
“Eu não posso entrar em mais detalhes, minha linda. Só lhe digo que se
trata de algo grande. Esse, com certeza, não é um jogo para peixes pequenos.”
“Mas e quem seriam esses tubarões, então?”
“É claro que são os verdadeiros responsáveis pelo assassinato. Eles me
escaparam uma vez, mas ainda vou pegá-los.”
“Ai, eu me arrepio toda quando você fala assim!”
“Sinto-me honrado, senhora, em poder proteger e servir.”
“Quer saber de uma coisa? Dane-se o seu curso! Vem cá!”
“Janine, eu já falei que não dá. Uma coisa é chegar atrasado, outra coisa é
faltar a sessão. Não gosto nem de pensar nisso, em ficar devendo uma para a
Varlene.”
“Você fala como se ela te odiasse.”
“Quer saber de uma coisa? Isso até que é bem provável. Agora vai.”
“Está bem, está bem. Já estou indo. Você não está chateado comigo, está?”
“Eu não estou chateado, Janine, estou é ficando cada vez mais atrasado,
entendeu, meu bem?”
“Você vai querer me ver de novo, não vai?”
“Vou sim, e agora chega, Janine, eu preciso sair.”
“Você ainda me ama, não me ama?”
“Aproveita agora que não tem ninguém no corredor.”
“Diz que me ama, diz.”
“Depois a gente conversa, Janine.”

Brancas avançam na sexta:


O Trovão traz ruína e horrorizada visão. Prosseguir trará infortúnio. Se seu próprio corpo
não foi atingido, mas o do vizinho sim, não há culpa. O povo terá algo sobre o que falar.

O inspetor decidiu ir de ônibus, como geralmente fazia. Só utilizava o seu


precioso triciclo quando estava de folga, ou em ocasiões especiais. Ao chegar à
frente do velho prédio onde morava, descobriu que a árvore da esquina havia
sido derrubada por um raio. Ao chegar mais perto, percebeu que havia uma
pessoa presa debaixo da árvore.
E assim escoou a primeira hora do último dia, marcada pelo signo do
Trovão. Teixeira não mais veria a luz de outra alvorada.
O herói em seu último dia. Isso como uma trilha a ser seguida. Sim, pois a
essa altura já deve estar claro que Teixeira é mesmo o herói.
A mulher, Janine, aparece de forma quase simbólica. Janine bem poderia ser
Jane, um contraponto sensual e necessário para as odisseias de Tarzan. Afinal,
não há herói que se preze sem uma mocinha.
E o resto são pistas, pedaços do mosaico que vão surgindo, promessas de
tramas.
Para que o enredo funcione, contudo, resta ainda que alguém se apresente.
Esse alguém deve representar, necessariamente, a força igual e contrária à força
do herói. É preciso que exista, em resumo, o antagonista. Somente ao enfrentar
seu adversário é que o herói se justifica.
Pois muito bem, para cortar caminho: esse alguém sou eu. Eu, o narrador.
Eu, o observador onisciente. Eu, o adversário. Eu. Eu. Eu.
E é por isso que me propus a contar essa história, a história do último dia de
Alberto Teixeira. Porque essa também é a minha história.
Quanto à minha identidade, será revelada em momento mais apropriado.
Enquanto isso, na falta de outro nome, podem me chamar simplesmente de
vilão.
CAPÍTULO 61 – VERDADE INTERIOR

Porcos e peixes. Boa fortuna. É favorável cruzar a grande água.


Vento sobre lago: a imagem da Verdade Interior. Assim o homem superior discute casos
criminais, de modo a retardar execuções.
(I Ching – hexagrama 61)

“Você está atrasado”, disse Varlene Alberione. De alguma forma, ela


conseguiu transformar a frase em uma pergunta.
A psicóloga estava sentada em sua poltrona giratória. Dois autênticos artigos
de luxo, Varlene e a poltrona. O consultório todo, aliás, era decorado de modo
a traduzir admiravelmente a personalidade de sua dona. Nada ali havia que não
parecesse elegante, arrojado e extremamente caro.
Teixeira fez um gesto com as mãos, exibindo o terno salpintado de manchas
molhadas. “Foi a chuva”, ele disse. “Lamento.” O inspetor curvou levemente a
cabeça, como se quisesse enfatizar que estava se desculpando. Em nenhum
momento seu olhar deixou de mirar os olhos castanhos da psicóloga, tarefa
dificultada pelos óculos redondos que Varlene usava. Esse foi um detalhe que
Teixeira deixou de incluir na descrição que fez para Janine, durante sua pequena
cena extraconjugal matinal. Ele esqueceu de mencionar que Varlene usava
óculos. Houve também um exagero com relação às saias, que não eram assim
tão curtas. Quanto ao resto, pode-se dizer que o relato do inspetor foi bastante
acurado.
“Um atraso de mais de vinte minutos em uma sessão de cinquenta pode
muito bem ser considerado uma falta”, Varlene disse e ajeitou a lapela da blusa.
A sobriedade do impecável conjunto de terno e saia em tons pastéis tornava
ainda mais exuberante a sensualidade da mulher que o vestia. As pernas grossas
estavam cruzadas, em franca reprovação. Com os cotovelos apoiados nos
braços da poltrona, a psicóloga postou as mãos diante dos lábios carnudos,
como se fosse iniciar uma prece. Aquele gesto era um sinal seguro de
problemas para Teixeira. “Esta será a sua terceira falta não justificada desde o
início do programa. Sabe o que isso significa?”
“Sim, eu sei. Eu li o contrato.”
“Significa que você será desligado do programa, sem direito a indenização.
Talvez até pague uma multa.”
“É bem possível.”
“E então? O que você tem a dizer?”
“Você está linda como nunca hoje, Varlene.”
A psicóloga não foi rápida o suficiente para conter uma sugestão de sorriso.
Apesar de profissional treinada, era ainda muito sensível ao elogio masculino.
Teixeira é que foi rápido em sorrir de volta, um sorriso bonito, de dentes
alinhados. Algo que ele havia herdado da mãe, certamente. Pois havia um quê
de feminino no rosto do inspetor quando ele sorria.
“Ora, muito obrigada”, disse ela, desfazendo as mãos postas para ajeitar os
cabelos. “Mas não pense que ficar me bajulando vai fazer voltar atrás os
ponteiros do relógio.”
“Sinto muito pelo atraso”. Teixeira não perdeu tempo ao mudar de tom.
“Houve um acidente.”
“Como assim? Que tipo de acidente?”
“Do tipo causado por um raio. Será que eu já posso me sentar?” Teixeira
sorriu com candura.
“Sente-se, por favor.”
Como de hábito, o inspetor dirigiu-se para o lado direito do consultório e
ocupou seu espaço no sofá. Sequer passava por sua cabeça vir se sentar do lado
esquerdo, onde havia uma cadeira de aparência futurista, com uma grande
luminária circular brotando da cabeceira, que mais parecia uma auréola, como
as dos anjos e santos. O assento da cadeira era bastante inclinado, o que a
deixava um pouco também com a aparência de uma maca hospitalar. O
estofado, uma luxuosa imitação de couro em branco, era cortado verticalmente
por uma fenda. A fenda ocupava toda a área destinada às costas, mais
especificamente à coluna. Ao longo da fenda era possível ver pequenas esferas
alinhadas. Cada esfera era um potente transmissor eletromagnético.
Teixeira foi informado logo na primeira sessão que o divã, como Varlene o
chamava, seria utilizado na sessão de cromomagnetoterapia. Ele não precisou
de maiores explicações. Havia assinado uma meia dúzia de páginas autorizando
o tratamento. Até aquele dia, ainda não tivera a oportunidade de deitar-se no
divã para a tal sessão. Não estava ansioso para que isso acontecesse.
E foi assim que o inspetor procurou mais uma vez o sofá, do lado oposto da
sala. Era tão elegante quanto desconfortável. As pernas compridas de Teixeira
não encontravam posição. Por isso ele era obrigado a sentar praticamente na
beira do assento, quase como se estivesse de cócoras. Uma compensação era o
fato de seu olhar ficar estrategicamente alinhado com a cintura da psicóloga.
Mal se acomodou no sofá, Teixeira foi presenteado com uma das
inesquecíveis cruzadas de perna de Varlene. O que tornava as cruzadas de perna
de Varlene inesquecíveis não era tanto o movimento de cruzar e descruzar as
pernas, as coxas se roçando, um joelho com covinhas passando por cima do
outro, a carnuda parte posterior de cada coxa em exibição, sugerindo a polpa da
bunda roliça. O que tornava um homem incapaz de esquecer aquele espetáculo
era justamente o intervalo entre os dois movimentos, de descruzar e novamente
cruzar as pernas. Após desvencilhar uma perna da outra, a psicóloga não se
apressava em cruzá-las de novo. E tampouco em diminuir ao menos um pouco
o ângulo formado pelas coxas. Não, Varlene se demorava bastante com o palco
aberto e iluminado.
Aquilo intrigava Teixeira. É que fora as benditas cruzadas o comportamento
da psicóloga era sempre o mais profissional. Ela tratava o inspetor de forma
familiar e o incentivava a fazer o mesmo, e só. Tudo estritamente de acordo
com as normas do programa. Muitas vezes, até, Varlene fazia questão de
mostrar quem estava no comando. Era uma mulher que levava seu trabalho a
sério.
O mais curioso era que a psicóloga não parecia ter a menor ideia de que
cruzava as pernas de forma tão chamativa. Era como um tique nervoso, um
gesto inconsciente. Não parecia um ato deliberado. E a primeira daquela sessão
acabou sendo a mais memorável de todas.
Durante as primeiras sessões, como o inspetor foi acompanhando
atentamente, a psicóloga havia demonstrado uma predileção por calcinhas de
algodão, geralmente brancas. Houve uma vez em que usou uma calcinha
amarela com alguma inscrição que Teixeira não conseguiu ler. Depois veio uma
breve fase de calcinhas de renda. Naquele momento, no entanto, começava
uma nova era. Ao descruzar as pernas, Varlene revelou que por cima da pele
vestia apenas a penugem negra dos pentelhos.
“E então, o que houve? Você não vai me dizer que foi atingido por um raio,
ou foi?”
“Olha, até que o raio passou bem perto”. O policial franziu as sobrancelhas,
no esforço de voltar ao assunto. “Derrubou uma árvore na esquina de meu
prédio. A árvore caiu bem na hora que passava um motociclista.”
“Nossa, que coisa.”
“O pior é que eu o conhecia. Um rapaz bem novo. Trabalhava em um
estúdio de música que visitei durante uma investigação há dois anos. O coitado
ficou imprensado entre a moto e as folhagens. Um dos galhos perfurou o
abdômen, na altura do baço. Quando eu saí de lá, os bombeiros estavam
serrando a árvore, para levar o rapaz com galho e tudo. É pouco provável que
ele sobreviva.”
“Lamento muito. Deve ter sido uma situação estressante para você.” Num
gesto de solidariedade, Varlene voltou a cruzar as pernas. Depois disse: “Mas e
o pensamento positivo, onde é que fica? Por que não esperar que ele esteja
agora mesmo recebendo os cuidados adequados para sua recuperação?”
“Pode acreditar que meu pensamento positivo acabou de se elevar agora.”
Mas o tom irônico abruptamente tornou-se glacial. “Quanto ao motociclista,
infelizmente, a esta altura é quase certo que já esteja morto. Pobre rapaz.
Parecia ser tão cheio de vida. Não, infelizmente não. Aquele garoto está além
de qualquer pensamento positivo.”
“Nunca diga nunca. Enquanto há vida, há esperança”. Varlene ainda tentou,
mas foi uma fraca tentativa. A morte violenta não era bem a sua província.
Neste ponto o inspetor levava vantagem.
E alguma coisa no que Varlene disse pareceu tê-lo irritado. Ou talvez ele só
estivesse precisando botar pra fora. “É claro que os bombeiros devem ter
conseguido salvar o rapaz, mesmo que ele tivesse um galho mais grosso que
meu braço enfiado na barriga, mesmo que ele estivesse banhado em sangue e o
pouco que ainda restava dentro dele estivesse saindo num chafariz pela boca.
Ele devia ter o quê, uns vinte, vinte e dois anos no máximo.” Teixeira levou as
mãos à perna direita para segurar a bainha da calça, que apertou entre os
polegares, exibindo como uma evidência diante da psicóloga. Ele disse, brutal:
“Está vendo essa mancha aqui? É um pouco do sangue dele. Se eu pensar
positivamente, é claro que a mancha vai sair um dia.”
“Experimente vinagre. Vai combinar com o seu humor de hoje.” O olhar
que Varlene endereçou a Teixeira foi igualmente azedo. Mas o inspetor nem
notou. Parecia imerso em seus próprios pensamentos.
“Sabe que me aconteceu uma coisa estranha... Quando eu vi o acidente, a
equipe médica ainda não havia chegado. Havia só uns curiosos ao redor da
árvore. Soube por um deles que o socorro já fora acionado. Fui para perto do
rapaz, pensando que talvez pudesse fazer algo. Quando ele me viu, senti um
apelo desesperado em seus olhos. Ele ergueu a mão fracamente. Parecia
apontar para o bolso, de onde saíam dois fones de ouvido. Puxei os fones e
conectado a eles havia um mini-player, desses de ouvir música. A princípio pensei
que ele quisesse transmitir alguma mensagem, por isso coloquei os fones do
ouvido. Apertei o play, e saiu um som esquisito dos fones. O rapaz fez um
gesto débil, e ao olhar para ele notei sua agitação. Então percebi que ele queria
que eu colocasse os fones nos ouvidos dele. Ele queria morrer ouvindo aquela
música esquisita.” Só nesse momento Teixeira procurou o olhar de Varlene
novamente. “Nunca vou esquecer aquele som. Senti minha alma sendo partida
ao meio. Mas o rapaz ficou feliz feito uma criança quando lhe devolvi os fones.
Pelo olhar dele, parecia que eu havia salvado sua vida. Mas tudo o que fiz foi
possibilitar que ele ouvisse aquela música de doido durante seus últimos
instantes.”
O silêncio persistiu enquanto Varlene não encontrou o que dizer. Seu olhar
ficou vago por um instante, e então ela suspirou. “Pois muito bem. Uma vez
que você está aqui, vamos dar prosseguimento à sessão.”
“Gentileza sua.”
“E pensar que você quase perdia a oportunidade de sua vida.” Era a vez de
Varlene ser irônica. “O grande dia chegou, Alberto. Prepare-se para a sessão de
cromomagnetoterapia. Tire a roupa, por favor.”
“Como é?”
“Nós vamos começar a cromomagnetoterapia hoje. Se você leu o contrato,
sabe que esse tratamento deve ser realizado em trajes sumários. Você pode ficar
de cueca, se quiser.” Varlene continuou sentada, com os braços cruzados,
aguardando.
Ao lado do sofá havia um elegante cabideiro que até então passara por peça
de decoração do consultório. O policial começou a se despir. Pendurou no
cabideiro junto com o terno seu coldre com a arma de serviço, uma ponto 40.
Ele carregava a pistola no tórax, debaixo do braço esquerdo. Pendurou a
camisa, que usava sem gravata, e as calças cinzentas. Ao deixar os sapatos aos
pés do cabideiro, só não havia tirado a cueca e as meias, que conservou também
em um gesto pueril de rebeldia. Ou talvez receasse estar com chulé.
Ao se aproximar do divã, o inspetor lançou um breve olhar para a parede
logo acima. Dominando a parede, havia a reprodução de um dos painéis de
Pollock, Ritmo de Outono. Mesmo em tamanho menor que o original, a
reprodução era grande o suficiente para transmitir a intensidade da pintura,
toda aquela vitalidade assustadora de Paul Jackson Pollock. Para Teixeira, no
entanto, provavelmente não passavam de borrões. Quando o assunto era
pintura, o gosto do inspetor era bastante convencional, para não dizer
medíocre. Daquela vez, como de outras, o olhar que ele dirigia ao quadro era
puramente casual, destituído de curiosidade. Ele poderia estar muito bem
olhando para um papel de parede.
Do outro lado da tela, mesmo sabendo que não haveria como Teixeira me
enxergar por detrás da pintura, não resisti à tentação. Ergui a mão do painel de
controle e acenei para ele.

Pretas avançam na segunda:


Um grou chamando nas sombras. O filhote responde. Eu tenho uma boa taça, que irei
repartir com você.

Da primeira vez que Teixeira ouviu falar do programa, a ideia pareceu bem
tentadora. Ele estava no auditório do quartel-general da PM. Era um dentre as
três centenas de homens e mulheres que lotavam o auditório, entre policiais
civis e militares. Havia até um pequeno grupo de bombeiros, o cáqui e o
vermelho de seus uniformes destacando-se no mar cinzento escuro dos PMs,
onde também sobressaíam as ilhas de cores frias das roupas do pessoal da Civil.
O inspetor podia imaginar o trabalho de montar aquelas turmas. Segundo o
comunicado oficial, praticamente todos os servidores públicos deveriam
comparecer a uma palestra como aquela no decorrer dos próximos meses.
O programa priorizava os profissionais que lidavam diretamente com a
população, tais como professores, médicos e policiais. A princípio não passava
de mais uma jogada de relações públicas do governo, mais uma de suas
campanhas agressivamente paternalistas. O esforço de imprimir uma imagem
parental era evidente nas siglas dos programas, obras infames de algum
arremedo de gênio: desde o bem sucedido Plano de Alfabetização Infantil – PAI
até a obscura Padronização dos Territórios Naturais – PATERNA. E agora,
pegando carona nessa tendência, chegava com tudo o Programa de AutoPercepção e
Aprimoramento Inteligente - PAPAI. Como qualquer projeto não essencial do
governo, o programa parecia dispor de verbas inesgotáveis. Pois o que
justificava um programa como o PAPAI aos olhos do povo é que a maior parte
do dinheiro vinha da iniciativa privada. As empresas que financiavam o projeto
recebiam um substancial desconto nos impostos. O governo e a sociedade
unidos para a melhoria dos serviços públicos. Ou algo assim.
Não que o inspetor Teixeira estivesse dando muita importância a essas siglas
e questões do poder público. Para ele, era suficiente que estivessem pagando a
sua hora extra.
Depois que as principais autoridades presentes fizeram seu discurso de
louvor ao programa, a palestra finalmente começou. O palestrante era um
homem negro e alto, muito bem vestido, dono de uma voz de veludo. Em
poucos minutos, Teixeira descobriu a contragosto que estava ficando
interessado.
“O PAPAI foi desenvolvido graças a avanços tecnológicos que seriam
considerados impossíveis há meros cinco anos”, dizia o palestrante, já certo de
que havia cativado mais uma plateia. Após uma breve pausa, enumerou:
“Nanotecnologia, mecânica quântica, biotecnologia e o que há de mais
moderno em praticamente todas as áreas do conhecimento humano. É desse
tipo de tecnologia que estamos falando.”
Era a deixa para a exibição de um vídeo institucional do PAPAI. O vídeo
tinha pouco menos de quinze minutos e mostrava profissionais de vários
setores dando depoimentos sobre como o programa foi fundamental para o
êxito em suas carreiras. O PAPAI servia para quase tudo: aumentar a eficiência
no trabalho, conseguir rapidamente promoções, lidar melhor com situações
estressantes. Havia até um enfermeiro bochechudo gabando-se de como o
programa incrementou seu desempenho sexual. Geralmente esse trecho final
do vídeo provocava risadas na audiência, e aquela vez não foi uma exceção.
E a melhor parte ainda estava por vir: todos os que fossem selecionados
para participar ainda seriam remunerados por isso. Quando o palestrante citou
o valor do abono mensal que os participantes receberiam, ouviu-se um nítido
murmurar no auditório. Embora não fosse uma quantia exorbitante, certamente
faria diferença no orçamento de qualquer policial honesto.
“É realmente uma pena”, e a exposição aproximava-se do clímax, o anzol
bem disfarçado pela exuberância da isca, “que nem todos possam fazer parte do
programa. É preciso que haja uma compatibilidade física e psicológica mínima
necessária. Por esse motivo, pedimos a todos que preencham os formulários e
respondam aos testes que estão sendo entregues por nossos assistentes.
Atenção: utilizem somente as canetas que estão sendo distribuídas junto com os
testes, pois elas possuem uma tinta especial para leitura ótica. Respostas com
qualquer outro tipo de caneta serão imediatamente descartadas do programa.”
O inspetor Teixeira não se animou ao saber do teste, mas afinal ele estava ali
a serviço. Eram cinco folhas crivadas de perguntas, frente e verso. A caneta que
lhe foi entregue não ajudava em nada a tarefa. Teixeira a achou pesada demais e
desconfortável no manuseio. Ficava arranhando sua mão enquanto ele escrevia.
Ao preencher aquelas páginas e mais páginas de charadas psicológicas, o
inspetor não tinha como desconfiar que durante todo o tempo da prova o seu
DNA estava sendo coletado, e que sutis medições de seu nível bioenergético
estavam sendo efetuadas. Tudo graças à bendita canetinha de testes. O
palestrante não estava exagerando quando mencionou a alta tecnologia
envolvida no programa.
Daí a recomendação de que somente as respostas marcadas com a caneta
fornecida junto com o questionário seriam válidas. Ao final do teste, todas as
canetas eram recolhidas. Cada caneta estava equipada com arestas ásperas na
empunhadura, que eram mais que suficientes para coletar diminutos fragmentos
de pele morta da mão do candidato durante as duas horas que durava o teste.
Um recurso primitivo e bem funcional. Mais sofisticado era o medidor
embutido em cada caneta, capaz de fazer uma leitura bem acurada da aura do
candidato durante o preenchimento do questionário. Esse era o verdadeiro teste.
Não que os questionários fossem apenas um disfarce, mero pretexto. Os
exames psicológicos ajudavam a traçar um perfil bem detalhado. Isso era de
grande valia na hora de determinar quem seria o profissional que iria
acompanhar cada participante selecionado durante a próxima fase. Varlene foi
escolhida para conduzir às sessões com Teixeira porque correspondia a um tipo
que foi avaliado como sexualmente atraente para ele.
Mas o inspetor não tinha nem como sonhar com isso. Ao final do teste,
quando devolveu a caneta e as folhas preenchidas, ele só pensava que ao menos
seria pago por aquele tempo. Depois que saiu do auditório não pensou mais no
assunto.
Ao cabo de uma semana, foi uma surpresa genuína descobrir que havia sido
aprovado. Do pessoal da Homicídios, só Teixeira foi recrutado. No dia
marcado para se apresentar em um de nossos escritórios, recebeu uma recepção
calorosa, com o primeiro cheque já sendo acenado diante de seu nariz. E assim
foi que ele acabou assinando uma papelada que deveria ter sido mais cauteloso
ao ler.
Outra surpresa teve Teixeira quando lhe pediram que colhesse uma amostra
de sangue, para testes adicionais. Ele achou um pouco estranho, mas
concordou sem oferecer resistência. Como poderia desconfiar? E assim foi
feito. A partir daquele momento, o rabo do inspetor Teixeira estava prometido
para o PAPAI. Ele não poderia ir a lugar algum sem que soubéssemos. Quem
não sabia era ele.
Não era tão ruim. Afinal, Teixeira estava sendo pago para se sentar no sofá
da Dra. Varlene Alberione durante uma hora por semana. E as cruzadas de
perna eram grátis.
A repulsa que crescia no inspetor, no entanto, não era de todo injustificada.
As perguntas formuladas pela psicóloga vinham se tornando mais e mais
inquietantes. Mas por incômodas que fossem, ele era obrigado a responder.
Teixeira estava amarrado pelo contrato. Uma vez iniciado o programa, o
participante que desistisse seria obrigado a pagar uma multa equivalente a cinco
salários do inspetor. Somem-se os impostos, e isso deixaria Teixeira com pouco
mais que o salário de um mês para passar um ano inteiro.
Varlene o tinha preso pelos bagos, e ambos sabiam disso. Durante os dois
meses que durava o tratamento, Teixeira tivera poucas oportunidades de
aprimoramento inteligente. A não ser, é claro, que se tratasse de aprender
técnicas de interrogatório. O inspetor não podia deixar de admirar a eficiência
na condução da psicóloga, que sempre acabava arrancando dele mais do que ele
queria dizer. Varlene havia sido bem treinada.
“Nós ainda estamos só começando, Alberto”, dizia Varlene, que sempre se
referia ao inspetor pelo primeiro nome. “Você verá como tudo parecerá
diferente depois que nós descobrirmos a sua verdade interior.”
Alguma coisa na forma como a psicóloga dizia isso deixava claro para
Teixeira: a descoberta da verdade interior era, necessariamente, um processo
árduo e espinhoso.

Pretas avançam na sexta:


Um galo querendo penetrar o céu. A perseverança traz infortúnio.

“E então, como foi o trabalho essa semana?”


Varlene havia posicionado sua poltrona perto da cabeceira do divã onde
Teixeira estava deitado. A psicóloga retirou do console da cabeceira um
pequeno controle remoto, e com ele ativou o aparelho. A luminária que se
projetava sobre Teixeira se acendeu, e logo o inspetor era banhado por um halo
de luz violeta. Ao mesmo tempo, ele experimentava uma suave sensação de
aquecimento no topo e na parte posterior da cabeça, onde as esferas haviam
sido ativadas. Tudo absolutamente indolor.
“O de sempre”, respondeu o policial. “Latrocínios, brigas de bar, prostitutas
espancadas até a morte. Rotina, você sabe.”
Varlene fingiu não perceber a ironia. “Teve algum sonho recentemente?”
“Eu sabia que você iria fazer essa pergunta. Na verdade eu tive um sonho
meio estranho hoje. Talvez você possa me explicar.”
“Sou toda ouvidos.”
O halo de luz passou do violeta para o azul escuro.
“Eu estava andando pela rua. Procurava alguma coisa, mas não sabia o que
era. Eu queria perguntar a alguém, mas a rua estava deserta. Foi então que eu
olhei para cima e vi uma mulher no céu. Ela estava voando.”
A sensação de aquecimento foi descendo pela nuca até a base do pescoço,
enquanto a luz azul adquiria um tom mais claro. Quando o halo de luz sobre a
cabeça do inspetor mudou para verde, as esferas aqueciam toda a metade
superior da coluna.
“Continue”, convidou a psicóloga.
“A mulher veio descendo, planando bem devagar em minha direção. Era
uma mulher muito bonita, parecia uma atriz de televisão. Ela estava nua.”
“E o que aconteceu então?”
“Esse troço esquenta mesmo, hem?”
“Isso é normal. Daqui a pouco você acostuma. Continue contando o
sonho.”
“A mulher não chegou a tocar o chão. Ela ficou pairando no ar. Olhou nos
meus olhos e disse: ‘Eu sei o que você procura, Alberto. Está bem aqui, dentro
de mim’. Ela apontou para a barriga. Eu estendi a mão para tocar a barriga
dela.”
“O que aconteceu depois?”
“O despertador tocou e eu acordei.”
“É realmente bem interessante.”
“E aí, qual o significado do sonho?”
“Difícil dizer, assim incompleto. Pena que você não pôde concluí-lo.”
“É. Foi uma pena mesmo. Escute, não dá para desligar esse troço não?”
Até aqui, Teixeira deveria estar experimentando uma vaga sensação
desagradável, próxima de chegar a um limite. Não chegava a ser um
desconforto físico. Era como uma coceira imaginária, em um lugar além do
alcance. Ou a expectativa de um desastre iminente que nunca chegava a se
concretizar. Alguns chamariam esta sensação de um mau pressentimento.
Outros, mais dispostos à filosofia, poderiam chamá-la de dor na consciência.
Dentro do aparentemente ilimitado espectro das ondas eletromagnéticas,
somente uma estreita faixa pode ser captada pelo delicado mecanismo do olho
humano. Em um conjunto que teoricamente vai de zero até o infinito, apenas
as frequências entre 390 e 790 THz são enxergadas pelos homens mortais.
Imediatamente abaixo da faixa de luz visível estão os raios infravermelhos, e
logo acima estão as ondas ultravioletas. Abaixo, vermelho. Acima, violeta.
Essas mesmas duas cores estão igualmente presentes, como limites inferior
e superior do homem, em outro tipo de energia. Vermelho é a cor de
Muladhara, o Chakra Raiz localizado na base da coluna vertebral. E violeta é a
cor de Sahashara, o sétimo chakra no topo da cabeça.
Foram sábios homens de ciência que descobriram a respeito do
infravermelho e do ultravioleta. Foram sábios religiosos que descreveram as
cores e propriedades dos chakras. Quanto aos que juntaram essas duas
informações e as aplicaram na prática, seriam melhor chamados de espertos.
Cromomagnetoterapia. Nada como um nome difícil para dar um ar de
respeitabilidade às piores vilanias. Não era um tormento físico ou mental o que
estava afligindo Teixeira naquele momento, mas uma agonia mais sutil.
Sensação assim devia experimentar quem estivesse prestes a vender a alma.
Contudo Teixeira não entregava barato o que lhe era caro. O inspetor
resistia. A tal ponto que sua resistência acabou interferindo nos resultados
esperados do tratamento. Varlene tentou outro tipo de abordagem.
“Você leu o jornal de hoje?”, ela disse em um tom casual.
“Passei a vista, durante o café”, respondeu ele, cauteloso. “O que tem?”
“Imagino que você viu a matéria sobre aquele ator, Régis Vale.”
O inspetor sentiu o corpo se retesando. De verde, o halo de luz foi
gradualmente se tornando amarelo. A sensação de calor provocada pelas esferas
estendia-se agora por três quartos da coluna. O pior da repulsa, a essa altura, já
teria passado, deixando atrás de si apenas um leve torpor.
“Sim, acho que li algo a respeito.”
O amarelo veio se transformando em laranja, já com a promessa do
vermelho. As esferas atuavam agora por toda a extensão da coluna vertebral, as
conexões terminais ativando-se, o torpor cedendo espaço para o interesse.
A psicóloga levou as mãos postas até os lábios, um gesto que repetia quando
se sentia muito inteligente. “Uma história curiosa, a desse Régis Vale, não é
mesmo? Eu participei no outro dia de um simpósio de psicanálise onde o caso
dele foi debatido. Um ator desempregado à beira da miséria, como tantos. E
então aparece um papel numa peça de vanguarda. Uma participação pequena,
mas importante. Um assassino de homossexuais.”
Varlene fez uma pausa e tornou a beijar a ponta dos indicadores. O halo de
luz sobre a cabeça de Teixeira brilhava, intensamente vermelho. O interesse
fazia nascer o desejo.
“Ele se entrega de corpo e alma à peça, a ponto de acreditar que se tornou a
personagem”, continuou Varlene. “E então Régis assiste a uma reportagem
sobre a morte de um homossexual. Ele está tão mergulhado no papel que acaba
surtando. Fica convencido de que é realmente um assassino. Régis se apresenta
à polícia e confessa o crime. Achei curioso o termo que um dos conferencistas
utilizou para explicar o caso: síndrome de Nikolai. Interessante, não é mesmo?
Sabe o porquê desse nome?”
“Faço ideia. Nikolai é inocente, mas confessa ser o assassino em Crime e
Castigo.”
“Ora, ora, meus parabéns.”
“Por ser policial não tenho a obrigação de ser iletrado. O que me
surpreende são esses seus psicanalistas. Cansaram dos mitos gregos e
resolveram apelar para os clássicos russos, foi?”
Pura bravata. Teixeira falava assim tentando inutilmente disfarçar o que se
tornava óbvio, para seu grande constrangimento. Um nítido volume começava
a se projetar de dentro de sua cueca.
Varlene não deu sinal de notar a aflição de Teixeira. “Como o morto era um
estrangeiro, o caso teve grande repercussão na imprensa. E Régis Vale acabou
recebendo toda a projeção de que precisava. E agora que tudo foi esclarecido
ele parece ter um futuro promissor pela frente. O que foi que você disse?”
“Eu disse que nem tudo foi esclarecido”, repetiu Teixeira. “O assassinato
ainda não foi solucionado.”
“Ah, o assassinato, é claro”, Varlene disse, disfarçando um sorriso diante
daquela ereção cada vez mais evidente. Ela acrescentou, casualmente: “Você
trabalhou no caso, não é mesmo?”
“Eu não me lembro de ter dito isso”, disse secamente o inspetor. “E me
pergunto como essa informação poderia ser de seu conhecimento.”
Varlene deu uma nova cruzada de pernas, para agonia de Teixeira. Agora
que todas as esferas estavam acionadas, o vermelho tornara-se a cor
predominante. Um novo ciclo começou. O violeta inicial somou-se ao
vermelho, as esferas no topo da cabeça vibrando em novas frequências. A partir
daquele momento, sempre com a radiação do vermelho de fundo, as cores
correspondentes a cada segmento de esfera iriam se repetir: azul escuro, azul
claro, verde, amarelo e laranja, até retornar a um glorioso vermelho com
vermelho. O aparelho atuava como uma bomba de chakra, conduzindo e
concentrando a energia vital na base da coluna.
“Está na sua ficha, é claro.” Varlene parecia um pouco menos confiante.
“Mas isso não vem ao caso.”
“Como assim, não vem ao caso?”, reagiu o inspetor. “E que ficha é essa?”
A psicóloga suspirou, como se tivesse chegado a uma decisão. “Bem, eu
preferia que você ficasse sabendo de outra forma. Eu estive conversando com
seu chefe. Bem aqui nessa sala, para dizer a verdade.”
O inspetor fez um gesto de incredulidade. “O quê? O Curupira esteve aqui?”
“É, ele falou sobre esse apelido”, e um leve sorriso começou a se insinuar
nos lábios da psicóloga. Mas Varlene logo mudou de tom: “Realmente, o
delegado Santelmo esteve aqui. Conversamos muito sobre você, Alberto.”
“O quê? Mas com que direito você fez isso?” Mesmo no auge da indignação
a ereção permanecia irredutível, para aumento da irritação de Teixeira. Seu
pênis parecia até o incrível Hulk, que quanto mais raiva, maior fica.
“Leia o contrato. Se o agente facilitador, ou seja, eu”, disse Varlene,
encostando a mão nos seios. Depois que se certificou de que o olhar dele a
estava seguindo, ela prosseguiu: “Se o agente facilitador considerar necessário,
poderá consultar as informações institucionais disponíveis a respeito do
participante do projeto. Ou seja, você.” E a mão de Varlene pousou sobre o
ombro do inspetor.
“Mas por quê? Com que objetivo?”
“A verdade é que nós não estamos fazendo muito progresso, Alberto. Eu
procurei os seus superiores porque precisava saber mais sobre você, uma vez
que você mesmo quase não se revela. Você continua resistindo ao PAPAI,
Alberto. Não percebe que é inútil?”
“Mas isso é um absurdo! O que fuçar minha vida ou ficar xeretando meu
trabalho tem a ver com o PAPAI? Onde está o aprimoramento inteligente
nisso?”
“Lembre-se de que você é um voluntário para esse programa”, Varlene
retrucou, e conseguiu deixar o inspetor sem graça ao olhar abertamente para o
monstro que sufocava, apertado pela cueca. “Pode desistir do PAPAI a
qualquer momento.”
“Certo. E deixar até as calças com vocês, não é? Não, muito obrigado. Acho
muito mais interessante se o PAPAI desistir de mim.”
“Não conte com isso. Ora vamos, Alberto, não pode ser tão ruim assim.
Nós precisamos chegar à verdade interior. Não lute contra isso, será melhor
para você.”
Foi a vez de Teixeira suspirar. “Tudo bem. O que você quer que eu faça?”
“Em primeiro lugar procure relaxar, está bem?” Com as mãos apoiadas no
tórax do inspetor, Varlene o reconduziu para a posição correta no divã, com as
costas inteiramente apoiadas no assento. Ato contínuo, uma das mãos de
Varlene deslizou do tórax para a cintura e daí para o volume por debaixo da
cueca, que foi apalpado com zelo e naturalidade. “Você está muito tenso.”
“Também não é para menos”, Teixeira respondeu, só para manter a
conversação. Desde o início os dois sabiam que aquilo iria acabar acontecendo.
“E ainda mais com essa máquina me deixando nesse estado. Isso é o quê, uma
jurubeba eletrônica?”
“Esse é um efeito normal do tratamento, você não precisa se preocupar”, e
a mão de Varlene deu um apertão final, como se selasse um acordo. “Deve
estar desconfortável aí dentro. Deixe eu te ajudar.”
Livre do aprisionamento da cueca, a criatura do inspetor saltou para fora,
oscilando como o ponteiro de uma bússola antes de firmar o norte, o teto no
caso. Teixeira deu mais um longo suspiro.
“Está melhor agora?”
“Ah, sim.”
“E se eu fizer assim, fica melhor?”
“Ah, sim, sim.”
“E se eu fizer isso?” E Varlene passou da palavra ao gesto, tanto com a mão
quanto com a boca. Daí pra frente, ela absteve-se de fazer mais comentários, e
dedicou-se por inteiro à tarefa de ordenhar Teixeira.
“Nossa”, gemia Teixeira. “Que loucura. Eu bem que desconfiava, você com
essas suas cruzadas de pernas só podia estar querendo coisa. Que safada. Ai,
assim, que delícia.”
Com o efeito combinado da cromomagnetoterapia e dos lábios de Varlene,
seria necessário um Bodhisattva, alguém totalmente livre do desejo carnal, para
resistir por muito mais tempo. O inspetor sentia o orgasmo chegando a
qualquer momento, aproximando-se como a erupção de um vulcão. Ele tentou
se desvencilhar dos lábios de Varlene, ansioso pela penetração.
Mas a mulher tinha outras ideias. “Nada disso. Eu quero que você se libere
em minha boca.”
Teixeira resignou-se à passividade. Logo, no entanto, ele sentia uma das
mãos da psicóloga apalpando sua nádega desnuda. “Epa, epa, o que é isso?”
“Pss. Relaxe.” Varlene voltou a abocanhar o pau do inspetor. Pouco depois,
reconduziu a mão direita para o local onde estava antes, por debaixo de
Teixeira.
“Ei, nada disso. Pare com isso, ouviu?”
“...”
“Já mandei parar! Chega!” Com um safanão, Teixeira empurrou Varlene. “O
que foi isso que caiu de sua mão?”
“Nada, Alberto, que coisa! Não precisa ficar irritado. Vem cá.”
“Você estava segurando alguma coisa. O que era aquilo? Um supositório?”
“Mas que coisa, Alberto! De onde você tirou essa ideia? É paranoia sua.
Vem cá, eu prometo que não faço mais isso.”
“Ah, deixa pra lá”, Teixeira já abotoava as calças, visivelmente nervoso.
Talvez por isso tenha sido cruel: “Além do mais, o tempo do programa já
terminou.”
“Alberto, escute.” Invertidos os papéis, Varlene não perdia tempo em
mostrar-se ressentida. “O que aconteceu foi um erro. Faltou progressividade de
minha parte. Vamos conversar um pouco, está bem?"
“Escute você, Varlene, pois eu só vou dizer uma vez: Se você quiser chupar,
trepar, sentar em cima, pode ficar à vontade. O prazer é todo meu.” Teixeira
fez um visível esforço para continuar falando. Seus olhos estavam ficando
úmidos. “Mas ninguém, ouviu? Ninguém põe a mão em minha bunda!”
Varlene ficou parada olhando para a porta que o inspetor fechou com força
atrás de si.
CAPÍTULO 3 – DIFICULDADE INICIAL

A dificuldade inicial propicia supremo sucesso através da perseverança.


Nuvens e trovão: assim o homem superior traz a ordem em meio ao caos.
(I Ching – hexagrama 3)

“O Curupira mandou você ir falar com ele no instante em que chegasse”,


disse o inspetor Almeida assim que Teixeira cruzou a porta da delegacia.
Almeida dava a impressão de ter ficado plantado na recepção à espera do
colega. Era um homem de meia idade, calvo, bigodudo, um pouco acima do
peso. A típica figura do policial acomodado e cansado de guerra, não fosse por
um detalhe. Almeida era estrábico, o que possuía o curioso efeito de dar a sua
expressão certo ar sarcástico, como se estivesse sempre pensando em alguma
piada indecente.
As roupas de Teixeira estavam bastante molhadas. Desde o início da manhã
chovia sem parar. E o inspetor, ao que parecia, não acreditava em guarda-
chuva.
Ao notar as roupas encharcadas do outro, Almeida acrescentou: “Boa
sorte.”
Teixeira deu de ombros e foi para as escadas que davam para o andar de
cima, onde ficava a sala do delegado Isaías Santelmo, o Curupira.
Pretas avançam na primeira:
Hesitação e impedimento. É favorável indicar auxiliares.

Isaías Santelmo fitou longamente o inspetor quando este entrou na sala. O


delegado era um homem baixo e corpulento, a cabeçorra praticamente
atarraxada nos ombros, quase sem sinal de pescoço. Ele voltou o olhar
ostensivamente para as cadeiras diante de sua mesa, como se avaliasse o estrago
que as roupas molhadas de Teixeira iriam causar no estofado. Por fim, disse:
“Pode sentar, se quiser.”
“Obrigado, doutor”, respondeu Teixeira. “Estou bem em pé.”
“Como preferir.” O delegado sorriu ironicamente, mais com os olhos que
propriamente com os lábios antes de acrescentar: “E então? Como foi sentar
no colinho do PAPAI?”
Desde que o programa havia começado, Teixeira já perdera a conta de
quantas vezes já tinha ouvido a piada. Daquela vez, ao menos, ele podia
devolver. “Foi o de sempre, doutor. E o senhor, gostou?”
O olhar do Curupira adquiriu um brilho perigoso. “Você me preocupa,
Teixeira. Você não se enquadra. Mas quem sabe o PAPAI não acaba dando um
jeito no filhinho da mamãe?”
Foi a vez dos olhos de Teixeira dardejarem. O inspetor não disse nada, mas
ficou intranquilo. Até onde teria ido aquela conversa entre Varlene e o
Curupira?
O delegado já havia recobrado o bom humor. “Aquela psicóloga é uma
gostosona, não é mesmo? Taí, boto fé que essa dona vai dar um jeito em você,
Teixeira. Você bem que está precisando de um ajuste nos miolos. Não leve a
mal, rapaz. Mas não é todo mundo que nasce para a profissão de policial.”
O inspetor não revidou mais, sabendo que era melhor ficar calado. Quem
mandou provocar o homem? Só há duas coisas sensatas a fazer quando o chefe
não vai com a sua cara. Você pede o chapéu e cai fora. Ou então fica quieto e
atura.
Mas o delegado não era dos chefes mais fáceis de aturar. Teixeira lamentou
que Santelmo, sentado atrás de sua imponente mesa de delegado de polícia, não
estivesse com os pés à mostra. Como fazia sempre que o delegado tentava tirá-
lo do sério, o inspetor procurou pensar nos sapatos do Curupira.

Brancas avançam na segunda:


As dificuldades se acumulam.

Era uma história bem conhecida pelos homens da Homicídios e,


provavelmente, também por policiais de outras delegacias. O pessoal da casa
estava reunido para um cafezinho quando o novato, um policial franzino de
nome Nelson, finalmente tomou coragem para perguntar: “Mas de onde saiu
esse apelido do delegado? Por que Curupira?”
A pergunta caiu no silêncio, durante o qual os homens se entreolharam. O
escrivão Arquimedes assumiu a palavra: “Você não sabe mesmo, garoto?”
“Se estou perguntando é porque não sei”, reagiu Nelson, ajeitando o cabelo
na testa. Poderia ter sido mais humilde, ainda mais sendo o novato.
“São os sapatos”, segredou o escrivão, depois de trocar mais um olhar com
os outros policiais. Com quase dois metros de altura, Arquimedes ficava ainda
mais gigante ao lado do mirrado Nelson.
“Os sapatos?”
“Vai dizer que você nunca reparou nos pés do delegado? Ele só usa sapatos
especiais, fabricados sob encomenda.”
Arquimedes calou-se por um momento, saboreando o interesse do novato.
Os outros homens faziam um silêncio quase solene. Nelson não resistiu à
curiosidade: “Mas por que esses sapatos? Qual é o problema com os pés do
delegado?”
“O Curupira tem esse apelido desde criança. É um defeito de nascença,
coitado. Dizem que quando ele nasceu a mãe tentou até matar. Era uma mulher
muito religiosa. Pensou que o menino era filho do demo. Se não fosse o
médico segurar, a criança não se salvava. Ele já saiu do berçário sendo chamado
de Curupira, parece que saiu até no jornal na época.”
O escrivão apreciava efeitos dramáticos e fez uma nova pausa antes de
prosseguir: “Ainda não adivinhou? O delegado tem esse apelido porque nasceu
com os pés trocados. Ele tem os dedões pra fora. Onde era para ser o pé direito
nasceu o esquerdo, e vice-versa. Que nem o Curupira.”
Nelson ficou desconfiado: “Ah, que é isso! Isso não pode ser verdade. Além
do mais, todo mundo sabe que o Curupira tem os pés virados para trás e não
assim, trocados, como você falou.”
Arquimedes não perdeu a pose. “Aí também você já está querendo demais.
Não basta que o pobre do delegado tenha os pés trocados, você ainda quer que
eles sejam virados pra trás!”
“Essa história não pode ser séria”, repetiu Nelson, sem muita convicção.
“Eu só contei o que sabia por que você perguntou”, disse Arquimedes,
fingindo-se ofendido. “Se você duvida, da próxima vez que encontrar o
delegado, observe os sapatos dele. Você vai entender na hora o porquê do
apelido. Só não deixe o Curupira perceber você olhando para os pés dele, senão
ele vai chegar bem perto de você e dizer, te peguei!”
E Arquimedes, que vinha progressivamente baixando o tom da voz, de
repente deu um salto e gritou, agarrando Nelson pelo braço. O policial novato,
tomado de surpresa, foi traído pelo próprio corpo. De sua garganta saiu um
guincho estridente, como um grito de mulher, o que tornou completa a sua
humilhação. Nelson saiu batendo os pés, sendo perseguido pelas gargalhadas
dos outros policiais.

Brancas avançam na terceira:


Aquele que caça sem a ajuda do guarda florestal irá se perder na floresta.
A história dos sapatos acabou ficando conhecida, de tanto que foi repetida
de boca em boca. O inspetor Almeida, que estava presente na ocasião, tornou-
se um de seus mais incansáveis divulgadores.
E o curioso é que o delegado Santelmo realmente usava uns sapatos
diferentes. Eram uns sapatos quadradões, mais largos nas pontas.
Provavelmente sofria de joanetes.
Mesmo porque, como Teixeira e os policiais veteranos bem sabiam, o
apelido do delegado nada tinha a ver com o formato de seus pés. O motivo real
para o apelido, na verdade, não era nem um pouco engraçado.
Como o seu alterego mitológico, o delegado Curupira tinha a fama de fazer
vagabundo desaparecer no mato.

Brancas avançam na quarta:


Ele busca a união. Se prosseguir, terá boa fortuna.

“Teixeira, você ouviu o que eu acabei de dizer?”


Que seja dito a seu favor, o inspetor demorou apenas uma fração de
segundo para responder. “Perfeitamente, doutor. O senhor estava dizendo que
fica feliz em ver que eu não me importo em molhar a roupa, pois está querendo
que eu dê um pequeno passeio na chuva.”
O Curupira olhou desconfiado para Teixeira, depois grunhiu. “Você
conhece esse motel, Le Barde, um pulgueiro aqui na rua de trás?”
O inspetor assentiu com um gesto de cabeça.
“Pois bem, nós recebemos uma chamada de lá. Um dos funcionários
encontrou um casal morto na banheira. Parece que não é uma cena bonita.” A
voz de Santelmo adquiriu uma inflexão fria, autoritária. “Eu quero que você vá
até lá e olhe as coisas até a perícia e o pessoal da remoção chegarem. Isso é
tudo.”
Como o inspetor não se mexesse, o delegado arqueou as sobrancelhas. “O
que foi?”
“Por que eu?”, disse finalmente Teixeira.
“Como é que é?”
“A chamada foi aqui perto, do outro lado do quarteirão. Qualquer um dos
homens poderia ter sido enviado para esse serviço, mas o senhor preferiu
aguardar até que eu chegasse da sessão.” Antes que o delegado pudesse intervir,
o inspetor continuou. “Acredito que o senhor deve ter um bom motivo para ter
agido dessa forma, e é por isso que estou perguntando: por que eu?”
O Curupira bateu a mão com força no tampo da mesa. “Quem você pensa
que é para me pedir satisfações? Já que você insiste em saber, eu não vou
desperdiçar um bom policial num caso desses. Ou ele matou ela e depois se
matou, ou vice-versa, ou os dois se engalfinharam até um matar o outro. Quem
se importa? Para os dois estarem numa pocilga dessas, só pode ser algum
vagabundo e uma piranha qualquer. Acho que até você pode cuidar disso. Mas
se achar que é demais para sua capacidade, não fique acanhado em dizer.”
“Desculpe, senhor...”
“Acho bom.”
“...desculpe, mas existe outra possibilidade.”
“O quê?”
“O casal pode ter sido morto por uma terceira pessoa.”
O Curupira perdeu de vez a paciência. “E quem quer saber? Vai lá, vai,
rapaz, prenda a faxineira do motel, se quiser, mas suma daqui de uma vez!”
Quando o inspetor já estava na porta, o delegado pareceu lembrar-se de
algo. “Mais uma coisa. O Almeida vai com você.”

Pretas avançam na quinta:


Bênçãos disfarçadas como dificuldades. Uma pequena perseverança traz boa sorte. Uma
grande perseverança gera infortúnios.

Quando Teixeira desceu as escadas, o inspetor Almeida conversava com o


policial militar Guilherme, um negro alto e parrudo que fazia plantão na
Homicídios. Ao avistar Teixeira, o inspetor Almeida interrompeu a conversa e
veio em sua direção. Ele vestia uma capa impermeável e trazia na mão um
guarda-chuva preto.
“E então, vamos?”
“Calma no Brasil”, respondeu Teixeira. “Como você sabe muito bem, eu
ainda nem fiz a passagem de serviço. Vamos fazer o seguinte. Enquanto eu vou
lá você pega as chaves da viatura.”
“Viatura? O delegado não falou nada sobre viatura.”
“Ele também não falou nada sobre vestir a calça por cima da cueca. Não é
preciso uma ordem expressa do delegado para cada pequeno detalhe do
serviço.”
“Não sei, não.” Cada qual de seu canto, os olhos do inspetor Almeida
fitavam Teixeira com desconfiança. “Eu tive a impressão que o delegado queria
que a gente fosse a pé.”
“As minhas instruções foram claras. O delegado quer que eu dê um passeio
na chuva. Alguns preferem passear a pé. Outros, como nós, preferem andar de
carro.”
“Isso está cheirando a confusão.”
“Almeida, relaxe. O que não é proibido, permitido é. Pegue as chaves, ok?
Eu vejo você em cinco minutos.”

Brancas avançam na sexta:


Lágrimas sangrentas caem.
A sala dos inspetores ficava no térreo, logo antes do corredor que dava para
o xadrez. A sala era equipada com quatro mesas de trabalho, cada qual com o
seu computador. Era uma mesa para cada inspetor de plantão, embora fosse
raro que os quatro estivessem ocupando a sala ao mesmo tempo. Quando
Teixeira entrou na sala, havia somente outro policial no recinto. Era o inspetor
Siqueira.
“Bom dia, Siqueira. Eu me demorei um pouco mais porque o delegado
mandou me chamar no instante em que eu botei o pé na casa.”
“Não tem importância.”
“A Fátima e o Rodrigues já chegaram?”
“Sim. Acho que foram tomar um café.”
“Você não precisava ter ficado esperando.”
Siqueira até então estivera com os olhos fixos na tela do computador de sua
mesa. Ele finalmente olhou para Teixeira. “Não tem importância. Eu estou
com muito trabalho acumulado.”
Embora os dois homens tivessem quase a mesma idade, o inspetor Siqueira
parecia ao menos uma década mais velho. Sua pele era de tom amarelado, uma
cor que lembrava leite azedo e que faria um médico suspeitar que Siqueira
sofresse do fígado. A face emaciada, com capilares estourados nas narinas,
indicava que o homem era um consumidor pesado de bebidas e, possivelmente,
de outras substâncias mais fortes. Os olhos estavam afundados nas órbitas. As
bolsas debaixo dos olhos possuíam uma coloração ainda mais doentia, de um
amarelo escuro próximo do marrom. O homem já era um caco habitualmente,
e ter passado por um plantão inteiro na Homicídios em nada contribuía para
melhorar a sua aparência.
“Está tudo bem com você?”
Siqueira continuou fitando a tela do computador por alguns instantes antes
de responder. “Tudo bem. Algumas preocupações, coisa passageira.”
“Não se preocupe tanto, Siqueirinha. Tudo o que você precisa agora é de
um bom banho quente e algumas horas de sono.” Teixeira estava ansioso para
que o outro fosse embora logo, para que aquela conversa se encerrasse o mais
rápido possível.
Siqueira, contudo, parecia ter decidido naquele exato momento fazer de
Teixeira o seu confidente. Os dois eram, afinal, não somente colegas de
trabalho como vizinhos, parceiros ocasionais de churrasco e futebol.
“É a Janine, sabe?”
Teixeira demorou alguns segundos em silêncio até perguntar,
cautelosamente: “O que houve?”
Siqueira sacudiu a cabeça. Seus olhos não desgrudavam do computador.
“Nós tivemos uma briga feia antes de eu vir trabalhar. Tentei consertar as
coisas por telefone, mas aí é que o tempo fechou mesmo.”
“Isso acontece. Faz parte. Tudo vai dar certo, você vai ver.”
“Hoje cedo liguei pra casa. Deixei tocar até cair a ligação. Continuei ligando
de cinco em cinco minutos.”
“O seu telefone deve estar com defeito. Hoje caiu uma árvore bem na frente
do prédio, deve ter partido algum fio.”
“Não. Teve uma hora em que finalmente Janine atendeu.” Ele calou.
Durante os instantes que durou, o silêncio pareceu sufocante para Teixeira. Por
fim Siqueira voltou a falar. “Ela tomou meia caixa de soníferos antes de deitar.
Por isso é que não conseguiu ouvir o telefone.”
“Calma, homem. O importante é que ela está bem agora. Não está?”
“Eu sou um monstro, Teixeira. Eu disse coisas horríveis a ela hoje, antes de
saber que ela poderia muito bem ter morrido esta noite. E tudo por minha
culpa.”

Finalmente Siqueira aceitou ir para casa. Depois que ele foi embora, o
inspetor Teixeira foi até a mesa que costumava usar quando estava na delegacia.
Havia três gavetas na mesa. Cada uma delas pertencia a um dos plantonistas
que se revezavam no uso da mesa. A gaveta de Teixeira era a do meio. O
inspetor retirou o seu chaveiro com canivete do bolso, escolheu uma chave
pequena dentre as que estavam dependuradas e com ela abriu a gaveta.
De dentro da gaveta, o inspetor retirou uma 765. A pistola estava dentro de
um coldre com duas tiras elásticas, que Teixeira prendeu no tornozelo
esquerdo, por debaixo da calça. Depois voltou a trancar a gaveta e guardou o
chaveiro no bolso. Durante toda a operação o olhar do inspetor manteve-se
fixo na porta, como se receasse a chegada de alguém.
CAPÍTULO 50 – CALDEIRÃO

Supremo sucesso.
Fogo sobre madeira: a imagem do Caldeirão. Assim o homem superior consolida seu destino
ao tornar a sua posição correta.
(I Ching – hexagrama 50)

Os dois policiais atravessaram o estacionamento da delegacia até chegar ao


carro. A chuva estava tão fria quanto Teixeira lembrava.
Após um trajeto ridiculamente curto, meramente dando a volta no
quarteirão, a viatura da Homicídios parou diante do Le Barde. Durante o dia,
com o letreiro em neon apagado, a fachada mostrava bem a espelunca que era o
motel. À noite, a sujeira incrustada na fachada era menos visível, e os amantes
afoitos não reparavam ou não se importavam com baratas passeando pelos
corredores ou com lençóis que eram trocados somente na lua cheia.
O inspetor Almeida dirigia a viatura. Ele hesitou por um breve momento
antes de avançar pela entrada de carros do motel. Enquanto a viatura se
aproximava do guichê de entrada, o mesmo pensamento cruzou
desconfortavelmente pela cabeça dos policiais. Eles eram dois homens
entrando juntos em um motel.
Talvez mais sensível a este fato, o inspetor Almeida foi logo brandindo a sua
identificação para a moça detrás do guichê. Um gesto um tanto desnecessário,
uma vez que os dois estavam em um carro da Homicídios.
“Polícia”, disse Almeida, desejando tornar a mensagem o mais clara
possível. “Onde estão os corpos? Quero dizer, os que estão mortos.”

Brancas avançam na primeira:


Um caldeirão emborcado. É propício remover a matéria estagnada.

Logo aparecia o gerente do motel, um sujeito roliço que usava a calça


engolindo a camisa até quase a altura do peito. Talvez ele desejasse deixar as
mulheres confusas a respeito de onde terminava a barriga e onde começavam
os genitais.
“Uma miséria, doutor”, disse o homem, passando a mão pelos parcos
cabelos negros. Chamava-se Ranulfo qualquer coisa. “Nunca vi uma desgraceira
como essa.”
Os corpos haviam sido encontrados na banheira da suíte número cinco. O
gerente propôs conduzir os policiais até o local. E saiu trotando, debaixo de
chuva, pelo estreito pátio que dava para as suítes. Os policiais preferiram segui-
lo de dentro do carro, um insólito cortejo. A um momento Ranulfo escorregou
no piso molhado e quase se estatelou no chão.
A suíte número cinco era a última. Era também a única que estava com a
porta da garagem abaixada. As garagens das quatro primeiras suítes estavam
desocupadas, mas o inspetor Almeida preferiu estacionar no pátio mesmo. Os
policiais saltaram do carro para a chuva e alcançaram o gerente no momento
em que ele erguia a porta da garagem.
Havia um carro ocupando a garagem. Era um Corvenna preto, que tomava
praticamente todo o espaço disponível. A garagem da suíte era exígua, com o
espaço justo para o carro entrar e seus ocupantes esgueirarem-se pelas frestas
da porta. Do lado do carona, uma escada de concreto avançava pelo teto
rebaixado.
“É por ali”, apontou o gerente.
Depois de se certificar que as portas do Corvenna estavam trancadas, o
inspetor Teixeira foi para junto do gerente.
“O senhor espera aqui”, disse Teixeira, estendendo a mão para apanhar o
chaveiro que o outro segurava. As chaves vinham presas a um losango de
plástico azul, com o número cinco pintado em branco.

Pretas avançam na terceira:


As asas do caldeirão estão invertidas. Ele é impedido de prosseguir. A gordura do faisão não
foi comida. Quando a chuva cai, leva o arrependimento.

Os dois policiais subiram as escadas, Teixeira na frente. A escada terminava


em uma pequena antessala que era banhada pela iluminação mortiça dos
motéis. A mesinha entre a escada e a porta da suíte era provavelmente
destinada à entrega de pedidos, o que indicava que o Le Barde possuía pelo
menos um serviço de cozinha. Na parede oposta havia outra porta, que Teixeira
experimentou. Estava trancada. O inspetor inseriu a maior das duas chaves na
fechadura. A porta abria para um corredor, na parte interna do motel.
A outra porta só podia ser a da suíte propriamente dita. Também estava
trancada. O inspetor colocou a mesma chave, a maior, na fechadura. Mas não
girou de imediato a chave. Ele hesitava em abrir a porta.
Teixeira estava comprovando na pele a veracidade das reportagens sobre os
ex-fumantes. Ele estava com o olfato bem mais apurado desde que havia
parado de fumar, há quase três semanas. Parar de fumar e começar a história
com Janine foram coisas que aconteceram juntas em sua vida.
O mesmo não poderia ser dito a respeito do inspetor Almeida, que
continuava fumando seu maço e meio de filtros amarelos por dia. Ele não dava
mostras de estar sentindo o cheiro.
Teixeira já havia captado algo estranho assim que subiu para a antessala.
Diante da porta da suíte, a morrinha ficou mais forte. Era um cheiro que
definitivamente não combinava com a atmosfera de um motel, por mais fuleiro
que fosse. Era algo que evocava fossas e esgoto. E o que quer que fosse a
origem daquele odor nauseabundo, estava aguardando do outro lado da porta.
“Não é uma cena bonita”, dissera o Curupira. O fato de ter sido
especialmente escolhido pelo delegado para aquela missão não contribuía nem
um pouco para deixar Teixeira mais confortável. O delegado não costumava
dar ponto sem nó, e Teixeira não alimentava ilusões de que qualquer coisa que
o Curupira planejasse para ele pudesse ser sequer remotamente agradável.
“E então? É para hoje?”, disse o inspetor Almeida, arrancando o outro de
seus pensamentos.
Teixeira girou a chave na fechadura e abriu a porta. Desta vez, até Almeida
percebeu que havia, literalmente, algo de podre no ar.
“Mas que merda é essa?”, disse Almeida, abafando outros xingamentos.
Os dois policiais ergueram instintivamente a mão para cobrir o nariz quando
entraram no quarto. As luzes estavam acesas e o ar condicionado parecia ter
ficado ligado a noite inteira, o que era um alívio. Teixeira não queria nem
imaginar como seria aquele fedor em um ambiente abafado.
A tevê também estava ligada. Na tela, uma mulher fazia sexo com dois
homens. Por detrás do som da tevê e do zumbido do ar condicionado, era
possível discernir outro ruído, como o ronco de um motor.
O quarto era uma bagunça só. A cama estava desfeita e havia roupas pelo
chão. Até aí nada demais, pois afinal tratava-se de um quarto de motel. O que
chamava a atenção era a quantidade de pacotes abertos de salgadinhos e de latas
e garrafas vazias. O lixo estava espalhado por todo o aposento, como se o
conteúdo do frigobar houvesse sido consumido de forma selvagem, em uma
verdadeira orgia alimentar. Ou, para ser exato, em um festival de desperdício.
Havia manchas de bebida, amendoins e biscoitos não consumidos por todo o
carpete surrado que cobria o piso da suíte número cinco.

Pretas avançam na quarta:


As pernas do caldeirão estão quebradas. A refeição do Príncipe é derramada, para desonra de
Sua pessoa.

A porta do banheiro estava entreaberta, mostrando que as luzes lá dentro


também estavam acesas. Quando os dois homens se aproximaram do banheiro,
puderam perceber o som do motor ficando mais forte. No chão perto da porta,
logo abaixo do aparelho de tevê fixado na parede, Teixeira avistou uma mancha
diferente das outras. Misturado com salgadinhos não consumidos, havia algo
que parecia ser uma mancha de vômito.
Cautelosamente, o inspetor empurrou a porta do banheiro da suíte. Ele
avançou alguns passos. A banheira estava agora diretamente sob seu ângulo de
visão.
Os dois estavam estirados ao comprido na banheira, cada um com os pés
voltados na direção do outro. A água estava turva e parecia espessa, pegajosa.
Não era difícil adivinhar o motivo: a banheira estava repleta de fezes, vômito e
outras secreções humanas.
O casal aparentemente havia se afogado nos próprios excrementos. O
homem parecia não ter muito mais que vinte anos. Não era possível dizer com
certeza, pois o rosto estava deformado, com as feições inchadas e
desproporcionais. Sua companheira dava a impressão de ser ainda mais jovem.
Era uma cena forte, mesmo para um veterano da Delegacia de Homicídios.
Mas o que deixou Teixeira paralisado foi algo ainda mais bizarro. O inspetor
observava, fascinado, um estranho fenômeno.
Não havia dúvida possível de que os dois estivessem mortos. Ainda assim,
os corpos estavam se movendo dentro da banheira.
O inspetor estava momentaneamente atordoado por aquele verdadeiro
assalto aos sentidos. A repugnância daquele visual medonho, afinal, só era
superada pela fetidez do ar gélido que empestava o ambiente. Talvez, por isso,
Teixeira tenha deixado de perceber o óbvio.
Os corpos nus dos dois jovens pareciam fazer pequenos movimentos
dentro da banheira. Na verdade, contudo, o que estava se movendo era a água.
Ao contemplar o caldo borbulhante que agitava o casal morto, o inspetor
Teixeira não conseguia se livrar de uma nauseante impressão. Parecia que uma
sopa macabra estava sendo fervida na banheira da suíte número cinco.
CAPÍTULO 41 – DIMINUIÇÃO

É favorável empreender algo. Como isso pode ser feito? Pode-se usar dois
pequenos vasos para o sacrifício.
Ao pé da montanha, o lago: a imagem da Diminuição. Assim o homem superior controla sua
ira e refreia seus instintos.
(I Ching – hexagrama 41)

“Será que dá para desligar essa maldita joça?” Almeida teve que forçar a voz
para se fazer ouvir por cima do barulho.
Teixeira patinou pelo chão viscoso, banhado em vômito. Afinal chegou
perto da banheira o suficiente para empurrar o interruptor na parede. O ronco
do motor da hidromassagem parou de imediato, com um estalo seco. O
borbulhar na banheira também cessou, levando a ilusão de que os corpos se
mexiam. A morte pareceu mais definitiva, agora que o som e o movimento,
atributos dos vivos, não mais acrescentavam seu grotesco toque de zombaria à
cena.
O inspetor obrigou-se a observar mais detalhadamente o casal morto na
banheira. Realmente, não era uma cena nada bonita. O homem, um tipo
franzino, tinha a cabeça por cima do ombro, com a face voltada para o teto.
Das narinas, da boca entreaberta e até mesmo dos olhos saía uma secreção
coagulada, em uma horrenda e borrada maquiagem mortuária. Era mais uma
caricatura que um rosto, aquela face inchada e deformada, marcada de forma
tão brutal pela morte. Ainda assim, alguma coisa no rosto do homem morto
pareceu vagamente familiar a Teixeira.
O rosto da menina estava quase que totalmente coberto pelos cabelos lisos,
negros, emplastrados de vômito. Observando os pequenos botões dos seios em
formação emergindo daquela água podre, Teixeira calculou que ela devia ter
acabado de entrar na adolescência. Praticamente uma criança. O inspetor não
sentiu nenhum interesse em ver o rosto da morta.

Brancas avançam na terceira:


Quando três pessoas caminham juntas, seu número é diminuído em um. Quando um homem
caminha sozinho, encontra companhia.

“Isso foi chumbinho”, disse Almeida com uma careta de nojo.


Teixeira concordou com um aceno de cabeça. “Vamos. Não há muito que
fazer por aqui até a chegada da perícia.”
Foi um alívio retornar ao quarto, onde o fedor não era tão intenso. Mais
uma evidência de que tudo na vida é relativo. Teixeira começou a colocar um
par de luvas de procedimento que havia retirado do bolso do casaco.
“Vamos ver se encontramos algum documento e as chaves do carro.
Cuidado para não tirar nada do lugar. Vamos deixar para a perícia tudo
exatamente como nós encontramos.”
“Está bem, senhor certinho”, resmungou Almeida. “Não que isso vá fazer
alguma diferença. Não tem como deixar essa zona mais bagunçada do que já
está.”
Cada policial avançou por um dos lados da cama. Começaram pelas roupas
jogadas no chão. Teixeira olhou as roupas da menina: uma blusa lilás e uma
minissaia jeans. Os bolsos estavam vazios. Ao pé da cama estava a calcinha de
algodão, estampada com a cara do Gato Jonas.
“Teixeira, veja isto.” Almeida exibiu o que havia encontrado no bolso de
uma calça jeans. Eram dois frasquinhos de vidro com a tampa de metal. Os
frascos estavam vazios. “Não falei que era chumbinho?”
“É bem possível”, disse Teixeira, manuseando os frascos com cuidado, para
não estragar possíveis digitais. “Sobraram uns grãos pretos em um dos vidros.
Deve ser o suficiente para a análise.”
O chumbinho, como era conhecido pelo povo, consistia basicamente de
pequenos grãos de gesso pulverizados com carbamato. Só podia ser
comercializado para o uso agrícola, no combate a pragas. Isso era o que dizia a
lei. Na prática, o veneno podia ser comprado livremente nas feiras e mercados
populares. Era utilizado principalmente para matar ratos, mas não era incomum
que fosse procurado por suicidas sem muito dinheiro ou imaginação.
Os dois frascos de vidro não possuíam rótulo ou qualquer indicação de
fabricante. Mais um indício de que se tratava de chumbinho. Por se tratar de
um comércio ilegal, era vendido em embalagens sem rótulo. Por se tratar de um
veneno potente, era comercializado em frascos pequenos.
“Essa dupla queria mesmo morrer.” Almeida balançou a cabeça, dividido
entre a consternação e o nojo. “Um só desses já dava e sobrava para fazer o
serviço.”
Teixeira grunhiu em concordância. Ele então avistou as chaves do carro.
Estavam na cabeceira da cama, em cima do painel com os botões que
controlavam o ar, as luzes e a tevê. Ao lado das chaves havia uma carteira com
algum dinheiro dentro. A parte reservada aos documentos, porém, guardava
apenas um santinho com a imagem de São Jorge e um calendário impresso no
verso. E só. Nenhum documento, nem cartão de crédito, nem ao menos algum
número de telefone anotado. A carteira havia sido deixada sobre um pequeno
livro, que estava com a capa voltada para baixo. Teixeira devolveu a carteira ao
painel e pegou o livro. Quando o inspetor leu o título, sentiu uma pontada de
emoção, tão intensa quanto breve. Era mesmo aquele sentimento inexplicável e
inconfundível: déjà vu.
O livro era uma edição de bolso de Romeu e Julieta, de William Shakespeare.
O inspetor folheou o livro, inicialmente com cuidadosa lentidão e ganhando
ritmo até começar a passar as folhas quase que com fúria. Finalmente, ele
encontrou o que procurava. Em uma das últimas páginas do livro, uma
passagem havia sido grifada com caneta:

Um brinde ao meu amor. Ó fiel apotecário:

Tuas drogas são rápidas. E com um beijo eu morro.


“Isto é o que eu chamo de uma inspiração macabra”, disse o inspetor
Almeida, quando leu o título do livro que Teixeira segurava. De seu lado da
cama, Almeida já havia examinado o restante das roupas do homem, sem
encontrar nada de relevante. “Romeu e Julieta, hem? Uma história triste e
complicada, eu vi um pedaço do filme.” Almeida coçou a cabeça, um olho em
Teixeira e o outro na tela da tevê, como sempre dando a impressão de que iria
fazer algum comentário obsceno. Mas acabou dizendo algo bem diferente.
“Pena que a realidade nunca seja tão bonita quanto a ficção.”
“Nem toda ficção é bonita”, respondeu Teixeira, levantando os olhos do
livro para fitar o colega. Nesse momento a sua atenção foi atraída por um
objeto marrom caído no chão do outro lado da cama, aos pés do inspetor
Almeida.

Brancas avançam na quinta:


Alguém realmente o aumenta. Ninguém poderia se opor aos seus dez pares de tartaruga.

“Almeida, veja o que tem nessa sacola.”


“Isso aqui?”
“Sim.”
“Não está vendo que é lixo?”
“Olha o que tem dentro.”
“Dois hambúrgueres, alface, queijo, molho especial. O que restou deles.
Que mais você esperava achar em uma sacola do McCanic’s?”
“Não tem mais nada dentro do saco?”
“Ah, sim. Como eu pude deixar de mencionar? Para acompanhar os
hambúrgueres, eles beberam milk shake. Deixe ver, isso deve ser chocolate com
flocos. Um copo grande para cada. E agora, finalmente, a pista principal: batata
frita!”
“Guarde isso para a perícia. Se foi o chumbinho que matou os dois,
provavelmente foi colocado nessa comida. Eu apostaria no milk shake de
chocolate com flocos.”
“Espere um instante. Como você pode saber? Por que é que o chumbinho
não pode estar na cerveja, nos salgadinhos ou mesmo no chá gelado de
pêssego? Por que justamente no McCanic Lanche da Alegria?”
“Olhe ao seu redor, Almeida.”
“O que é que tem? Um monte de comida e bebida espalhado para tudo
quanto é canto.”
“Justamente. Aqueles dois não comeram nem beberam nada disso. Os
pacotes foram abertos e seu conteúdo foi simplesmente esparramado pelo
chão. E a mesma coisa com as bebidas. A maior parte foi derramada no chão e
até nas paredes. Veja, algumas garrafas ainda estão pela metade.”
“Isso não prova nada.”
“Pare para pensar, Almeida. As únicas evidências de que algo foi realmente
consumido aqui estão dentro dessa sacola. Supondo que os dois morreram
envenenados por chumbinho, o veneno deve ter sido administrado por via oral,
misturado com alguma comida ou bebida. O milk shake, por sua consistência
pastosa, seria um veículo ideal. Se duvida, prove um dos flocos.”
“Está bem, você me convenceu. Mas isso não faz sentido. E para quê essa
bagunça toda com a comida?”
“Isso é algo que eu gostaria de descobrir.”
“Será que eles estavam drogados? Quero dizer, doidões ou algo assim?”
“É possível. Almeida, me faça um favor, ok? Desligue a tevê. Os botões
aqui do meu lado só controlam o ar e a luz.”
“Desligar a tevê? Mas por quê?”
“Esse som já está me dando nos nervos.”
“Então quer dizer que o senhor fica nervoso com um filme pornô.”
“Exatamente, Almeida. E é por isso que eu vou acabar não resistindo ao seu
rebolado se essa tevê continuar ligada.”
“Sai pra lá! Tudo bem, eu desligo a tevê.”
“Esse botão é o do rádio.”
“Você ouviu o que o locutor disse? Sei lá o quê da suíte número cinco.”
“Deve ter sido a Suíte Número Cinco, concerto para violoncelo e piano.”
“O quê?”
“Uma música do Bach.”
“Ah.”
“Agora você pode desligar a tevê?”
“Calma, homem. Pronto, espero que esteja satisfeito agora. Mas e essa coisa
do rádio, hem? Que coincidência.”
“Eu não acredito em coincidências. Mas é claro...”
“O que foi?”
“Acho que descobri porque espalharam a comida e a bebida desta forma.
Até a televisão ligada ajudou.”
“Do que você está falando, Teixeira?”
“Tudo serviu para desviar a nossa atenção.”
“Como assim, desviar a nossa atenção do quê?”
“Venha comigo, está perto da tevê. Aí está.”
“Uma poça de vômito? Grande coisa. Se você quiser, tem muito mais na
banheira.”
“Precisamente. E é por isso mesmo que esta aqui é tão importante.”
“Quer saber de uma coisa? Acho que você é quem está ficando doidão com
esse cheiro de vômito.”
“Vamos descer. Eu quero dar uma olhada naquele carro.”
“E não é que você estava certo?”
“O quê? O que foi que você disse, Teixeira?”
“Encontrou alguma coisa no porta-luvas?”
“Nada. Nenhum documento. Esse carro deve ser roubado.”
“Concordo com você.”
“E você, o que encontrou?”
“Estava enfiada na dobra do assento do banco de trás. Olhe.”
“Ok, você venceu. Uma batata frita. E daí?”
“Não percebe como isto pode ser importante? Talvez não a pista principal,
mas com certeza importante.”
“Essa batata frita aí, é uma pista importante? Está bem, o médico falou que
era melhor não contrariar.”
“Venha. Vamos conversar com o gerente.”
CAPÍTULO 9 – FORÇA DO FRACO

Densas nuvens, sem chuva.


O vento atravessa o céu: a imagem da Força do Fraco. Assim o homem superior aperfeiçoa os
aspectos exteriores de sua natureza.
(I Ching – hexagrama 9)

“Uma tragédia, doutor”, disse Ranulfo, o gerente do motel. Ele levou as


mãos à cabeça. “Uma tragédia. Com tanto lugar para esses dois fazerem uma
coisa dessas, e resolveram vir logo para cá.”
A chuva havia estiado. Os três homens estavam no pátio, diante da porta da
garagem da suíte cinco. O gerente sugeriu timidamente que os policiais o
acompanhassem até o seu escritório para tomar um café. Almeida, como bom
fumante, não dispensava um cafezinho. Teixeira, embora não chegasse a
recusar o café, preferia não se afastar do local até a chegada da perícia.
“Ora, mas não seja por isso. Se os senhores me permitem, é só um minuto.”
Ranulfo contornou a viatura da Homicídios parada no pátio e saiu pisando
cuidadosamente pelo piso molhado. Logo ele estaria perto o suficiente do
guichê da recepção para gritar. “Gorete, faz um cafezinho aqui para estes
senhores da polícia!”
“Seria bom liberarmos o acesso para o rabecão”, disse Teixeira. Ele ficou
observando enquanto Ranulfo voltava a atravessar o pátio com seu passo meio
cômico.
“Eu não gostaria de estar na pele do pessoal da remoção”, respondeu
Almeida. Ele coçou a bochecha com a barba por fazer. “Se você quer saber, eu
não gostaria de estar nem no lugar do perito, mesmo com o salário.”
“Melhor que estar no lugar dos dois na banheira.”
“Antes ter que fazer o trabalho sujo que ter alguém fazendo em você, não é
mesmo?”
“Eu pensei em algo mais simples. É melhor estar vivo do que morto.”

Pretas avançam na primeira:


Ele retorna ao caminho. Como poderia haver culpa nisso?

Logo o gerente estava de volta. Ele abriu o rosto numa careta, feia tentativa
de sorriso.
“É só um instante até a Gorete passar o café. Enquanto isso, em que posso
servi-los?”
Teixeira franziu as sobrancelhas. “O senhor não se importa em ficar
gritando assim, dizendo que a polícia está no motel? Isso poderia assustar os
seus hóspedes.”
O sorriso forçado pareceu se congelar no rosto de Ranulfo. Depois de um
instante de hesitação, ele afinal pareceu se decidir. “Olha, é melhor eu ser
honesto com o senhor. Depois que eu liguei para os senhores, pedi a Gorete
para avisar aos clientes que estávamos aguardando uma breve visita da polícia.”
“E suponho que agora todos já foram embora, não é mesmo?”
“Bem, como os senhores demoraram um pouco”, lamentou Ranulfo, a
imagem da aflição. “Veja bem, doutor, um motel vive da privacidade que
oferece. Não havia motivo para expor nossos clientes a um constrangimento
desnecessário.”
“Um constrangimento desnecessário”, repetiu Teixeira. A própria
amabilidade do inspetor naquele momento indicava perigo, como nuvens se
agrupando antes da tempestade. O gerente ficou ainda mais nervoso.
“Veja bem, doutor, não é culpa de ninguém se esses dois resolveram vir se
matar bem aqui.”
“Quem encontrou os corpos? Foi o senhor?”
“A bem da verdade, sim. Quem entrou primeiro na suíte foi a camareira, do
Carmo. Mas ela não chegou a entrar no banheiro. Foi só ela abrir a porta do
quarto para ver que algo estava muito errado.” Ranulfo remexeu no cabelo. “A
camareira mandou me chamar. E eu acabei encontrando aquela desgraça.”
“Essa camareira. Onde está ela?”
“Acho que está descansando em um dos quartos. Ela ficou nervosa e
acabou passando mal. Ela está grávida, sabe?” Esta última informação foi
fornecida em um tom conspiratório, como se o gerente estivesse revelando um
grave defeito de sua funcionária.
“O senhor estava dizendo que a camareira mandou chamá-lo.”
“Pois então, doutor. Eu fui por dentro, pelo corredor de serviço. Quando
cheguei na suíte cinco, a do Carmo estava me esperando na porta, muito
nervosa. E aquele fedor horroroso, doutor, nunca senti uma catinga pior na
minha vida.”
“Prossiga.”
“Quando entrei no quarto, vi aquele vandalismo. Pois foi um ato de
vandalismo o que aqueles dois fizeram no quarto, uma depredação. O senhor
imagine o prejuízo.”
“Ao contrário”, disse Teixeira e repeliu a mão que Ranulfo estendia, em um
impensado gesto amigável, para tocar o ombro do policial. “Acho que o senhor
é quem ainda não faz ideia do tamanho do estrago.”
“Como assim?” O gerente parecia ter perdido a respiração. Sua voz
mostrava medo. “O que o senhor está querendo dizer?”
“Falamos sobre isso depois. Prossiga.”
O gerente não se atreveu a insistir. Ele disse, em um tom humilde: “Como
não havia ninguém no quarto, eu fui até o banheiro e abri a porta. Foi então
que eu vi os dois na banheira. O senhor me desculpe. Só de lembrar, sinto
ânsias.”
“A porta do banheiro estava fechada quando o senhor entrou no quarto?”
“Sim, estava. Por que o senhor pergunta?”
“Estava entreaberta quando nós subimos. Suponho que o senhor não
chegou a fechá-la ao sair. Mas isso não tem importância. O que eu vou lhe
perguntar agora, sim, é que é importante.”
Ranulfo balançou a cabeça, a imagem da atenção submissa.
Teixeira continuou: “Quando abriu a porta do banheiro e viu os corpos, o
senhor por acaso vomitou?”
“Quê?”
“O senhor vomitou dentro do quarto? É uma pergunta direta.”
“Não, senhor, é claro que não.”
“O senhor tem certeza? Talvez depois de ver os corpos, ao sair do banheiro,
no choque do momento.”
“Tenho certeza, doutor. Eu não teria porque mentir. Para falar a verdade,
foi eu ver aqueles dois na banheira para sair correndo do quarto. Nem teria
dado tempo para vomitar.”
“Tudo bem. Prossiga.”
“Depois eu saí, tranquei a porta e fui ligar para os senhores. Eu agi certo,
não agi?” A ansiedade do homem chegava a ser patética.
O inspetor Almeida havia até aquele momento limitado sua participação a
ficar encarando Ranulfo, a fim de deixá-lo ainda mais desconfortável. Almeida
era bom nisso. Quando fechava a cara, o homem dava a impressão de ser capaz
das maiores atrocidades. Quando abriu a boca, porém, estragou tudo: “O que
não foi certo foi deixar uma menor de idade entrar no motel.”
O gerente pareceu genuinamente surpreso. “Uma menor? Impossível. O Le
Barde não permite a entrada de menores.”
“Preste atenção, meu camarada. A menina nem tem peitos ainda.”
Teixeira suspirou. Ele estava guardando aquela informação para usar em um
momento mais conveniente. Antes queria dar mais corda para o gerente, talvez
ele mesmo acabasse se enforcando. Mas o que estava feito, estava feito.
“Infelizmente para o senhor, é verdade. Não se trata apenas de uma menor,
mas de uma criança. Uma menina morta.”
“Mas isso. O senhor está sugerindo que.” O rosto de Ranulfo ficou
levemente arroxeado. Ele deu um puxão no cabelo. “Um absurdo, doutor. O
Le Barde não permite a entrada de menores. Nós não somos coniventes com
essa onda de pedofilia. Senhores, eu tenho duas filhas adolescentes. Duas
filhas.”

Pretas avançam na segunda:


Ele se permite ser conduzido a retornar.

Tanto Teixeira quanto Almeida estavam para dizer algo, mas esse foi o
momento escolhido por Gorete para trazer o café. Por um momento todos se
calaram, observando a mulher que se aproximava com a bandeja. Gorete era
toda amorenada, impressão causada principalmente pelos cabelos cortados
curtos, na altura do queixo, que ela pintava numa cor de cobre queimado. Um
tom muito próximo de sua pele, algo entre o café com leite e o leite com mel.
Não era exatamente espetacular, mas sempre uma mulher, uma fêmea em
condição e posição de ser observada. A cara não era feia. Talvez fosse um
pouco cheia na cintura. Seus maiores atrativos eram sem dúvida as coxas e,
possivelmente, o traseiro. Era questão de esperar até que levasse as xícaras
vazias embora.
No momento, Gorete contornava a viatura da polícia, equilibrando a
bandeja na mão e os sapatos de salto baixo no pátio molhado. Ela estacou,
indecisa, percebendo que interrompia algo. A um gesto brusco do gerente,
começou a servir o café pelos policiais. Ranulfo parecia ter recuperado um
pouco o autocontrole. “Gorete, estes senhores da polícia acreditam que nós
temos uma menor em um dos quartos. O que você tem a dizer sobre isso?”
Gorete estava servindo Teixeira. O seu olhar cruzou com o do inspetor por
um momento, antes que ela baixasse os olhos. “O Le Barde não permite a
entrada de menores.”
“Viram? Aí está.” A voz de Ranulfo era de triunfo, como se aquela frase
fosse a prova cabal de sua inocência.
Teixeira serviu-se de açúcar. “Obrigado, Gorete. Senhor Ranulfo, se o
senhor não se importa, nós faremos as perguntas daqui por diante.”
O gerente desmanchou-se. “Ora, mas é claro que... eu só queria... não pense
o senhor que...” A cada pausa, Ranulfo dava distraidamente um novo puxão no
cabelo. Não era de se admirar que o homem estivesse ficando careca.
Almeida preferiu o seu café puro, um café caubói, sem açúcar nem
adoçante. E a ocasião surgiu, antes do esperado, quando a recepcionista virou-
se para servir o café do gerente. Realmente um traseiro admirável, aquele de
Gorete. Os dois policiais talvez nem tenham percebido o quanto as mãos de
Ranulfo tremiam enquanto ele colocava cinco gotas de adoçante em seu café.
Os homens beberam o café em silêncio. Almeida foi o primeiro a terminar.
Ato contínuo, para desassossego de Teixeira, foi logo puxando um cigarro. O
gerente também devolveu a sua xícara. Agora que tinha as mãos livres, como
não possuía o nocivo hábito do fumo, continuou a puxar o cabelo. Por fim,
Teixeira terminou o seu café.
“Estava uma delícia. Obrigado.” A recepcionista limitou-se a curvar a
cabeça. Teixeira prosseguiu no tom amigável: “Você sabe dizer se a do Carmo
está passando melhor?”
Gorete pareceu surpreendida com a pergunta. “Espero que sim. Ela avisou
que ficaria repousando um pouco em um dos quartos.” A recepcionista lançou
um olhar de soslaio para o gerente.
“Eu soube que ela está grávida.”
“É verdade. De seis meses.”
“Eu vou querer vê-la depois. Escute, Gorete: Eu gostaria de saber a que
horas a suíte cinco foi ocupada.”
“Às oito e meia da noite de ontem.”
Foi a vez de Teixeira ficar surpreso com a pronta resposta. “Era você quem
estava na recepção?”
“Não, senhor. É que eu olhei no mapa de hóspedes de ontem quando
soube...” Gorete interrompeu a frase de súbito.
“Entendo. E quem estava na recepção nesse horário?”
“A Celeste, senhor.” Depois de curta hesitação.
“Você sabe onde ela está agora?”
A recepcionista limitou-se a sacudir a cabeça. O gerente aproximou-se dos
dois. Ele parecia tomado por um novo ânimo. Havia aparecido alguém em
quem colocar a culpa. “Eu tenho o telefone e o endereço da Celeste em meu
escritório. Ela vai ter que explicar essa história bem direitinho. Se os senhores
me dão licença, eu vou dizer para ela vir aqui agora mesmo.”
“Faça isso.” O inspetor Teixeira ergueu um dedo, pedindo que o gerente
esperasse. Teixeira tomou a bandeja do café das mãos de Gorete e passou-a
para o gerente. “Se o senhor não se importa. Eu gostaria de fazer mais algumas
perguntas à recepcionista.”
“Ora, como não.” Sem muita alternativa, Ranulfo aceitou a bandeja. A
travessia do pátio molhado até o escritório tornava-se agora para ele uma
aventura repleta de novos e imprevisíveis perigos. Depois de alguns passos
incertos, ele estacou diante da viatura. Pensava em como atravessar o espaço
entre o carro da polícia sem deixar cair a bandeja.
Como se notasse a hesitação do gerente, Teixeira disse para o outro policial:
“Você pode levar o carro lá para fora? Nosso pessoal já deve estar quase
chegando.”
“Com esse tempo?” Almeida ainda fumava o seu cigarro. “Vai sonhando.
Deve estar assim de acidente.”
Teixeira chegou mais perto do companheiro. Ele desejava falar em voz
baixa. “Almeida, é melhor tirar a viatura logo. Vai que o pessoal chega e
encontra o nosso carro atravancando a passagem. Quer arriscar? Você sabe
como são esses caras da perícia. Qualquer coisa, já vão fazer queixa ao
delegado.”
“Está bem.” Foi como se Almeida tivesse ouvido alguma palavra mágica.
Ele jogou o toco do cigarro no pátio e foi para o carro. Se Ranulfo pensou em
pedir uma rápida carona durante o trajeto de volta, não disse nada.
O pátio do Le Barde dificilmente permitiria a passagem de dois carros ao
mesmo tempo, ainda mais se tratando de um carro grande como o rabecão da
defesa civil. Para liberar o acesso, Almeida teria que levar a viatura para fora do
motel, uma vez que a alternativa seria estacionar na garagem de uma das suítes,
situação impensável, quando muito em breve o local estaria pululando de
outros policiais e, possivelmente, de repórteres. A lembrança da imprensa fez a
boca de Almeida coçar. Ele conhecia alguns jornalistas que sabiam se mostrar
gratos quando recebiam uma boa dica. Acabou entrando com a viatura na
garagem da suíte quatro, apenas para manobrar o carro, pois preferia sair de
frente.
Enquanto Almeida manobrava, Ranulfo avançou heroicamente, pouco a
pouco, passo a passo. Ele mostrava bem o quanto era um homem de escritório,
com seu sapato de solas lisas que pareciam deslizar pelo pátio molhado de
chuva.
Enfim sós, o policial e a recepcionista trocaram um rápido olhar e um breve
sorriso. “Acabo de notar que ainda não me apresentei. Meu nome é Alberto.”
O inspetor resistia a tudo, menos a um rabo de saia.

Pretas avançam na terceira:


Os raios saltam para fora das rodas da carroça. O homem e sua mulher reviram os olhos.

Talvez para vencer o silêncio cheio de intenções que o inspetor demorava a


quebrar, Gorete acabou confessando: “Espero que a do Carmo esteja bem.
Estou me sentindo um pouco culpada, o senhor sabe.”
“Não precisa me chamar de senhor.” O tom de Teixeira era cúmplice, não
ameaçava nem um pouco. “Mas por que a culpa?”
“Fui eu que pedi a do Carmo para tocar a campainha da suíte. Como é que
eu iria saber? Mas eu não pedi para ela entrar no quarto.”
“Que tal você me contar como tudo aconteceu, desde o início?”
“Bem, o senhor sabe que nós trabalhamos com o mapa de hóspedes,
certo?”
“Pode me chamar de você, Gorete.”
“Desculpe. Tudo bem. Você.” A morena engoliu um pouco de ar. “Então, é
por esse mapa de hóspedes que nós sabemos quando o período de um quarto
está vencendo. O período da suíte cinco vencia às oito e meia. Por isso às oito e
vinte e cinco eu liguei para avisar que o período estava acabando. Norma da
casa.”
“Entendi.”
“Ninguém atendeu. Eu esperei mais cinco minutos e liguei novamente.”
“Sim. E novamente, imagino, ninguém atendeu.”
“Isso mesmo. Eu deixei tocar mais de vinte vezes. Eu esperei mais um
pouco e liguei de novo. Foi então que eu lembrei que a do Carmo estava
faxinando a suíte quatro, essa aí.” Gorete indicou com o nariz e com os lábios a
garagem diante da qual os dois conversavam, de onde Almeida havia acabado
de sair com a viatura da Homicídios. “Eu liguei para a suíte quatro e pedi para a
do Carmo tocar a campainha da suíte cinco. Não aqui por fora, mas pelo acesso
interno.”
O inspetor grunhiu em concordância. “Então a do Carmo foi até a porta da
suíte cinco e tocou a campainha.”
“Exatamente.” A recepcionista baixou a cabeça. “Eu pensei que eles
estivessem na banheira e por isso não estivessem ouvindo o telefone. Quero
dizer, por causa do barulho da hidromassagem.”
“Tudo bem, continue.”
“Ou então que não estivessem querendo atender o telefone. Muitos
hóspedes gostam de ficar alguns minutos a mais depois que o tempo acaba. Por
isso o senhor Ranulfo é tão rigoroso com os horários de entrada e saída.”
“Sim, compreendo.”
“Daí a pouco liga a do Carmo toda nervosa, dizendo para chamar o senhor
Ranulfo, que o número cinco estava uma coisa horrorosa, uma fedentina só.”
Gorete ajeitou o cabelo detrás da orelha, os olhos no chão. “Eu não tinha como
saber que ela iria passar mal.”
“Você não tinha como saber.” Pela voz de Teixeira, ele poderia estar
também com as mãos nos brilhosos fios de cobre queimado. “Fique tranquila.
Eu vou ver como a do Carmo está.”
“Essa porta da garagem deve estar trancada. Eu vou pegar a chave para o
senhor, para você, na recepção.”
“Não será necessário. Eu dou a volta pela suíte cinco.” O inspetor pareceu
ficar curioso a respeito de um detalhe. “Mais uma coisa. A recepção ficou vazia
enquanto nós conversávamos?”
“Eu pedi ao Luiz para ficar lá enquanto eu trazia o café. Não que faça muita
diferença, pois afinal estamos fechados.”
“Quem é Luiz?”
“O segurança.”
“Ele estava trabalhando ontem à noite?”
“Não. Ele entrou junto comigo, às sete da manhã. O segurança da noite foi
o Guilherme.”
“Onde ele está agora?”
“Já foi embora. Ou foi para casa ou para seu outro serviço.” Gorete lançou
um olhar significativo para Teixeira. O tal Guilherme devia ser um policial
fazendo biscate, provavelmente um PM. O inspetor fez uma anotação mental a
respeito.
Nesse momento Teixeira avistou um homem assomando na entrada de
carros do Le Barde. Era o inspetor Almeida, que vinha com a mão no bolso
como se procurasse o cigarro, que era o que estava mesmo fazendo. Ele fez
uma meia parada para acender o cigarro quando passava pela recepção, e por
pouco não foi abalroado por Ranulfo, que voltava de seu telefonema. Almeida
repeliu o gerente com um gesto brusco, que quase o fez esmagar alguma parte
macia contra o chão.
“Gorete, muito obrigado por sua ajuda. Talvez eu precise conversar com
você novamente, tudo bem?” Teixeira mirava a recepcionista nos olhos.
“Por mim, tudo bem.”
“Fico feliz. Tome, este é meu cartão.” Teixeira segurou a mão da
recepcionista entre as suas. “Qualquer coisa, me ligue.”
Brancas avançam na quarta:
Se você é sincero, o sangue desaparece e o medo vai embora.

“A Celeste já está vindo para cá”, foi dizendo Ranulfo quando chegou
próximo o suficiente do inspetor Teixeira. Ele sequer olhou quando Gorete
passou por ele, de cabeça baixa, apressando um pouco o passo depois de cruzar
com o chefe, como geralmente fazem os conscienciosos funcionários
subalternos. Ao contrário de Almeida, que virou ostensivamente o pescoço
para apreciar o rebolado de Gorete. O corpo seguiu o pescoço, voltando-se
para o melhor espetáculo disponível no momento. Ele ficou parado, fumando,
de costas para Teixeira até que a recepcionista sumiu pela mesma porta que
Ranulfo havia utilizado para ir ao seu escritório. O gerente agora estava
dizendo, “Ela jurou de pé junto que não deixou nenhuma menor entrar,
doutor.”
Teixeira suspirou. Era nisso que dava a sabedoria de Almeida. “O senhor
tem certeza de que ela está mesmo vindo para cá?”
“Pode confiar, doutor. Eu conheço bem as minhas meninas.” Não havia
vestígio de conotação sexual em sua fala. A não ser, talvez, pelo ponto de vista
de que tudo sempre pode ser resumido ao sexo.
“E onde mora essa Celeste?”
“Perto de Nova Colômbia, eu acho.”
“Como assim, o senhor não sabe?”
“Bem, ela realmente mora em NC.” Ranulfo retornou ao bolso o lenço que
estivera usando para enxugar o rosto e a careca. Ele parecia ter se lavado na pia
do banheiro. Se tivesse esperado um pouco, poderia lavar o rosto na água da
chuva que em breve voltaria a cair. “Mas a Celeste é uma moça direita, doutor.
Trabalhadora. Deve ter acontecido algum engano, não é possível.”
O gerente havia feito uma conexão natural, ainda que pouco lógica, entre
Nova Colômbia e a criminalidade. Favela que tomou conta do asfalto, NC,
como era chamada, havia crescido a ponto de se tornar maior que muitos
bairros. Dos mais de trinta e cinco mil moradores de Nova Colômbia, na
verdade somente uma ínfima porção estava diretamente envolvida em
atividades criminosas. A imensa maioria dos moradores era até bastante útil à
sociedade de Rio Santo, preenchendo vagas onde quer que se trabalhasse muito
e se ganhasse pouco. Entranhado nos bolsões de miséria, porém, exercendo um
rigoroso comando sobre Nova Colômbia, florescia o poder paralelo do
narcotráfico, deflagrando as sementes de inúmeros outros crimes. Um poder
capaz até mesmo de suplantar a polícia. Nenhum policial se sentia confortável
ao entrar em NC. Por alguns lugares do bairro a polícia raramente passava, para
não dizer jamais.
Era por esse motivo que Ranulfo procurava desculpar a sua funcionária por
morar onde morava. Não que isso fosse necessário. Teixeira não era homem de
alimentar preconceitos. Ademais, o inspetor sabia o que era ter uma origem
humilde.
Por outro lado, era curiosa a mudança de humor do gerente.
Aparentemente, a conversa ao telefone com Celeste havia resgatado a sua
confiança. Ou talvez a longa caminhada através do pátio molhado tenha
restituído o seu equilíbrio, ambos abalados, a confiança e o equilíbrio, pela
trágica descoberta dos corpos.
Não era a morte dos dois, em si, o que preocupava Ranulfo. O gerente não
poderia ser responsabilizado pelo que as pessoas faziam dentro dos quartos.
Não havia motel onde não ocorressem homicídios e suicídios. Sexo e violência,
afinal, são dois conceitos que se tornam cada vez mais próximos na mente das
pessoas. Para isso é que temos a indústria do entretenimento.
O problema maior, para o gerente do motel, era a morte da menor. Ranulfo
sabia que seria crucificado se realmente houvesse uma criança morta em seu
motel. Ainda que ele conseguisse escapar do longo braço da lei, não haveria
como fugir das garras da imprensa. A pedofilia ainda conseguia assustar a classe
média, principal consumidora de jornais.
“Eu tenho certeza de que tudo será esclarecido quando a Celeste chegar,
doutor. O senhor vai ver. O Le Barde não permite a entrada de menores.” Dos
mecanismos de defesa da mente, a negação é um dos mais frequentemente
utilizados.
Teixeira sentiu uma súbita simpatia pelo gerente. “Imagino que essa
recepcionista deve levar quase uma hora para chegar até aqui, não é mesmo?”
“É por volta disso sim, senhor. Uns quarenta minutos.”
“Senhor Ranulfo, agradeço a sua cooperação. O senhor fique à vontade para
retornar aos seus afazeres. Peço-lhe apenas que me comunique imediatamente
qualquer anormalidade.”
“Pode deixar, doutor.” O gerente partiu de imediato, como se temesse que
Teixeira mudasse de ideia. Teve o cuidado de não olhar para o inspetor
Almeida quando passou por ele. Almeida veio para junto de Teixeira, a cara de
poucos amigos. Ele deu uma tragada no cigarro.
“Vai deixar o cara ficar circulando livremente?” A fumaça saía pela boca de
Almeida enquanto ele falava. Teixeira recuou.
“Chegue com esse seu cigarro para lá, Almeida. Não há problema algum em
deixar o gerente livre. O que ele pode fazer? Ele sabe que se fugir, será pior.”
“Não sei, não. Nós temos um flagrante aqui. Ou você já esqueceu que tem
uma menina morta na banheira lá em cima? Uma menor de idade, Teixeira.” O
inspetor Almeida gostava de prender pessoas. Isso era uma das coisas que mais
o atraíram para o serviço de polícia. “Se o Le Barde realmente não permitisse a
entrada de menores, talvez agora esses dois estivessem vivos.”
“Duvido muito. Se não fosse aqui, teria sido em outro lugar. E além do
mais, talvez a recepcionista não tenha notado que a menina era uma menor.”
“É claro que isso é o que ela vai dizer.”
“Prefiro esperar para conversar com ela para saber. Ela está vindo para cá,
você sabe.”
“Sim, eu ouvi.”
“Pois então. Quando ela chegar, conversamos com ela. Enquanto isso eu
vou ter uma palavrinha com a camareira, essa que entrou primeiro na suíte.”
“Quer que eu vá com você?”
“Não precisa. Fique aqui, por favor. Melhor você ficar, para receber o
pessoal da perícia caso eles cheguem por agora.”
Voltou a chover enquanto os dois homens conversavam, inicialmente um
chuvisco leve que agora começava a apertar. Almeida seguiu o colega de volta
para a garagem da suíte cinco para se proteger da chuva. Quando viu que
Teixeira avançava para o fundo da garagem, em direção à escada da suíte, disse:
“Mas onde você está indo, homem?”
“Vou dar a volta por dentro, que é mais rápido. Espere por mim aqui.”

Pretas avançam na sexta:


A chuva chega, existe um abrigo. A perseverança coloca a mulher em perigo. Se o homem
superior insistir, haverá infortúnio.

Podia ser só imaginação sua, mas o fedor parecia estar se espalhando. De


volta à antessala da suíte cinco, Teixeira estava agora muito mais consciente da
fetidez do ambiente. Agora já era sabido o que se encontrava por detrás da
porta da suíte, conhecida a causa do mau cheiro. Na primeira vez que havia
subido a escada, ele havia se defrontado com um indistinto odor desagradável.
Agora, até a mera sugestão daquele cheiro ruim parecia impregnada de sentido.
Ele retirou do bolso o losango de plástico azul. Com a chave maior presa
entre o polegar e o indicador da mão esquerda, hesitou por um momento,
como se considerasse qual seria a melhor escolha dentre as duas portas que
aquela mesma chave abria. À sua direita, a porta de acesso ao corredor interno,
que o levaria até a suíte número quatro, onde talvez ainda se encontrasse a
camareira, do Carmo. À esquerda do inspetor, a porta da suíte número cinco.
Apesar da fedentina, apesar do nojo, o inspetor gostaria de dar uma nova
olhada na suíte, agora que estava sozinho. Talvez algum detalhe não tivesse
recebido a merecida atenção. Talvez ainda houvesse algo por ser visto.
Ao notar a chave menor que pendia do chaveiro em sua mão, a pequena
chave prateada que balançava contra o losango azul, Teixeira soube o que
poderia ser esse algo. Nem ele nem Almeida haviam se lembrado de checar o
frigobar.
Parecia um detalhe insignificante. Com toda probabilidade, uma perda de
tempo. Teixeira acabou decidindo que aquilo podia esperar. Melhor ir logo ver
como estava a camareira.
O corredor do Le Barde estava escuro, mesmo àquela hora da manhã. Não
havia janelas e a iluminação era mortiça, amarelada, realçando o creme das
paredes e o marrom do carpete e no teto. Parecia estar mais quente ali dentro
do corredor.
A porta seguinte estava aberta, mostrando uma antessala idêntica à que
Teixeira havia acabado de deixar. A porta da suíte quatro também estava aberta.
A mulher estava caída no chão, ao lado da cama. Uma mulher jovem, negra,
grávida, vestindo uma versão mais grosseira do uniforme que Gorete usava.
“Senhora do Carmo? A senhora está bem?”
A mulher parecia estar dormindo. Embora fosse até mais jovem que Gorete,
com quem Teixeira conversara informalmente, sua barriga avantajada induzia a
um tratamento mais respeitoso. Mesmo com seus anos de polícia, Teixeira
ainda guardava ternura o suficiente para considerar a maternidade algo sagrado.
Maria do Carmo abriu os olhos, fraca e confusa demais para demonstrar
surpresa diante do estranho debruçado sobre ela. Os lábios da mulher, que
estavam pálidos e arroxeados, chegaram a se abrir num esforço de vocalização,
mas nenhum som saiu de sua garganta além de um fraco gemido. A pele estava
fria ao toque.
Teixeira teve uma ideia. Tirou do bolso uma bala de hortelã. Desde que
havia parado de fumar, seus bolsos estavam sempre cheios de balas e chicletes,
como os bolsos de um guri feliz. Desembrulhada a bala, o inspetor a inseriu
entre os lábios ressequidos de do Carmo.
“Tome. Isso vai lhe fazer sentir melhor.” Lenta e docilmente, a mulher
começou a mastigar a bala. O inspetor apanhou o telefone na cabeceira da
cama. “Gorete, escute. Sim, sou eu. Preciso que você chame uma ambulância.
Sim. Está tudo bem, é mais uma precaução. Você sabe o número? Muito bem.
Obrigado.”
Do Carmo voltou a fechar os olhos, mas continuou mastigando a bala.
Perto da cama estava o carrinho da camareira, com as mudas de lençol e
equipamentos de limpeza. Não devia ser fácil empurrar o carrinho para lá e
para cá com aquela barriga. Havia, é claro, serviços piores.
A suíte era uma réplica da número cinco, com a diferença de que estava
limpa e arrumada. O inspetor Teixeira ficou por um momento sentado na
cabeceira da cama, pensando.
“O senhor me arranja um copo d’água?” A voz soou fraca, mas a aparência
da mulher já estava um pouco melhor.
Teixeira apanhou as chaves da suíte quatro, que estavam no carrinho da
camareira. Com a chave menor, destrancou o armário do frigobar, de onde
retirou uma garrafa de água mineral e um copo de vidro.
A mulher firmou-se sobre o cotovelo para receber o copo. Ela bebeu até a
metade, descansou um pouco, acabou de beber. Pousou o copo no chão e
estendeu o braço para se apoiar na beirada da cama.
“Por favor, não se levante”, disse Teixeira. “Procure repousar até a chegada
da ambulância.”
“Eu já estou bem melhor, obrigada.” A voz estava realmente mais forte.
“A senhora deve continuar descansando. Eu insisto.”
Após uma pausa, do Carmo ousou perguntar: “O senhor é da polícia, não
é?”
Teixeira assentiu. “O meu nome é Alberto.”
“Maria do Carmo da Cruz, satisfação.” Nova pausa. “Obrigada pelo que o
senhor está fazendo por mim.”
“Ora, isso não é nada, nem pense nisso.”
“Eu poderia beber um pouco mais de água?”
“Claro.”
“O senhor me desculpe, é que eu estou um pouco nervosa. Acho que estou
com um sangramento.”
“Procure não pensar nisso agora, está bem? A ambulância já está a caminho.
Pensando bem, acho melhor a senhora ficar na cama enquanto isso.” Teixeira
agachou-se e passou os braços por debaixo dos ombros e das pernas da
camareira. A mulher era bem mais leve do que sugeria o tamanho da barriga.
Ele a carregou até a cama. O lençol já estava levemente amarfanhado em dois
lugares. O primeiro, perto da cabeceira, foi onde o próprio Teixeira havia se
sentado ao ligar para a recepção. O segundo correspondia perfeitamente ao
corpo deitado da camareira. “Como foi que a senhora caiu da cama?”
“Eu me deitei um pouco porque não estava passando bem.” Ela fez menção
de se levantar, mas Teixeira a impediu. Ainda assim, a camareira não conseguiu
ficar inteiramente deitada e foi apoiar as costas na cabeceira da cama.
“A Gorete me disse que eu encontraria a senhora aqui.”
“Acho que acabei pegando no sono. Acordei com o barulho de um carro
entrando na garagem. Pensei que eram clientes chegando para usar a suíte, e eu
aqui, deitada na cama. Quase morri de vergonha. Devo ter levantado depressa
demais da cama. Fiquei tonta, senti uma pontada. Depois disso, não lembro.”
“Foi a senhora quem primeiro entrou na suíte cinco hoje, não foi?”
A camareira assentiu. “Eu tinha acabado de arrumar o quarto aqui da quatro
quando o telefone tocou com Gorete me chamando. Só faltava limpar o
banheiro.”
Teixeira voltou a sentar-se na beirada da cama, dessa vez aos pés da mulher
deitada. “A senhora saberia dizer a que horas foi isso?”
“Umas oito e quarenta, por aí. A suíte quatro foi desocupada às oito e meia.
Eu vim rápido, assim que recebi a chamada na copa. Rápido demais, até.
Cheguei até a cruzar com o casal no corredor. Se eu soubesse que eles iriam
utilizar o corredor, teria esperado um pouco.”
“Como assim?”
“Eu prefiro evitar contato com os clientes, o senhor entende. Eu chego
depois que eles saem e arrumo a bagunça que fizeram, deixo tudo pronto para
os próximos clientes bagunçarem. E é só. No fim do mês, recebo meu salário.
Para mim, está bom assim.”
“Entendo. Foi por isso que a senhora não gostou de encontrar o casal no
corredor.”
“Bem, se alguém aluga uma suíte com garagem, espera-se que entre e saia
pela garagem, e não pelo corredor. Se eles estavam a pé, por que alugaram a
garagem? Uma suíte comum teria saído mais barato.”
“Faz sentido. E então a senhora estava fazendo a limpeza neste quarto
quando a Gorete ligou para cá.”
“Isso mesmo. Eu devo ter levado menos de cinco minutos para arrumar o
quarto. Mesmo com essa barriga, eu sou rápida no serviço. Além do que esse
casal até que foi bem comportado. Eu só tive que trocar os lençóis e as toalhas.
O senhor precisa ver as porcarias que às vezes as pessoas fazem.”
“Então o telefone tocou.”
“Isso. Eu estava para entrar no banheiro. Era a Gorete pedindo para eu ir
até a porta da suíte cinco e tocar a campainha.” Do Carmo passou a mão sobre
a barriga, como se quisesse poupar o feto daquelas más lembranças. Ela
inspirou fundo, ganhando coragem. “Eu fui até lá. Apertei a campainha. Deixei
tocar bastante. Depois de algum tempo, ouvi o telefone tocando lá dentro da
suíte. Era Gorete ligando da recepção. Continuei tocando a campainha. Eu
esperava a qualquer momento ouvir uma voz irritada, alguém xingando porque
eu estava interrompendo, bem. O senhor sabe.”
Teixeira esvaziou o restante da garrafa de água mineral no copo da
camareira.
“Obrigada”, disse do Carmo. Deu um pequeno gole, não porque estivesse
com sede, mas só para molhar a garganta. Ela já estava envolvida pela própria
história. O ato da fala possui às vezes misteriosas propriedades terapêuticas.
“Eu parei de tocar a campainha e fiquei escutando. Só dava para ouvir o som
da tevê. Foi então que eu pensei que talvez eles não estivessem bem ou algo
assim. Eu coloquei a mão na maçaneta e girei. A porta estava destrancada.
Passei para a antessala, como essa aí fora. Dava para ver que a porta da suíte
estava só encostada.”
“Continue, por favor.”
“Meu bebê me avisou primeiro.” Como uma de suas mãos ainda segurava o
copo, com a outra acariciou a barriga, protegendo, confortando. “No instante
em que eu abri a porta, senti uma pontada. Foi antes que eu visse a sujeira,
antes mesmo de sentir aquele fedor horrível. Foi bem na hora que eu
empurrava a maçaneta da porta. Meu bebê se mexeu, o senhor acredite ou não.
Ele deu um pulo na minha barriga. Como se estivesse com medo.” E do Carmo
se quedou em silêncio, tendo concluído sua narrativa.
“Mas o que a senhora fez depois que abriu a porta da suíte?”
“Eu estava passando tão mal que nem sei como consegui voltar para cá,
para a suíte quatro. Lembro de ter ligado para a recepção, pedindo para chamar
o senhor Ranulfo. Acho que eu disse também que não estava me sentindo
muito bem, e que por isso iria ficar descansando aqui só um pouco.” A
camareira sorriu sem graça. “Foi assim que eu acabei dormindo. E o resto o
senhor já sabe.”
“Quando a senhora entrou no quarto ao lado e começou a passar mal,
chegou a vomitar?”
“Não, senhor.”
“Tem certeza?”
“Tenho, sim senhor.”
“Entendo. A senhora não lembra de mais nada?”
“Não. Acho que não, senhor.”
O inspetor estava inquieto. Levou o punho cerrado até a boca. O seu
cérebro trabalhava furiosamente. “Senhora do Carmo, a que horas mesmo foi
que a senhora disse que esta suíte, a número quatro, foi desocupada?”
“Se eu não me engano, foi às oito e meia, senhor.”
“Imagino se poderia descrever para mim esse casal que cruzou com a
senhora no corredor.”
“Eu não fiquei reparando, o senhor sabe. Além do que não dá para se
enxergar muita coisa nesse corredor, não é mesmo?”
“Entendo. Mas alguma impressão a senhora deve ter tido do casal. Talvez
tenha notado algum detalhe, qualquer coisa.”
Do Carmo fez um novo esforço. “Bem, eles eram jovens. Um casal jovem,
bem vestido. Os dois eram altos, quase do mesmo tamanho que o senhor. Os
dois eram muito bonitos. Eu não olhei para o rosto deles, o senhor entende.
Quando eles passaram por mim, fiquei com os olhos grudados no chão. Mas
dava para dizer que era um casal bonito só pelo jeito dos dois andarem.”
“E a senhora acha que eles saíram pelo corredor porque estavam a pé?”
“Só pode.”
“Esse corredor termina onde?”
“O senhor viu aquela curva no final do corredor? Bem, depois dela tem uma
escada que sai na recepção.”
O inspetor fez o possível para se certificar de que do Carmo estaria bem
sozinha até a chegada da ambulância. Teve inclusive o cuidado de deixar o
telefone sobre a cama, bem ao lado da camareira. Então ele seguiu o corredor
até o fim, dobrou à direita e desceu as escadas, que terminavam em uma porta
de vidro. Teixeira saiu ao lado da recepção, onde Gorete lhe sorriu com gosto.
Foi um sorriso de reencontro, ainda que breve, pois logo foi apagado pela
ansiedade que já marcava o rosto da moça.
“Como está a do Carmo?”
“Creio que está melhor agora. De qualquer forma, é bom que ela seja
examinada por um médico.”
Gorete olhou o relógio de pulso. A pulseira era prateada, um tom que
brigava com os cabelos de cobre da recepcionista. “A ambulância está
demorando.”
“Eles já devem estar chegando. Escute, Gorete. Eu preciso que você me
faça um favor.”
“Pois não.” O rosto da moça ficou atento, solícito, por um instante distraído
de suas preocupações.
“Eu preciso que você verifique no mapa de hóspedes a que horas a suíte
número quatro foi ocupada ontem.”
“Número quatro? Não seria a número cinco?”
“Não. Sobre a cinco você já me contou. Agora eu preciso saber é sobre a
quatro mesmo.”
“Está bem. Olhe só”, e Gorete colocou o indicador sobre um ponto do
mapa, uma folha comprida cheia de quadrados com os números dos quartos,
onde os funcionários faziam suas anotações a caneta. “A suíte quatro foi
ocupada às oito e meia da noite de ontem. Na mesma hora em que a suíte cinco
foi ocupada, veja que coincidência.”
“O problema”, sorriu o inspetor, como se estivesse brincando. “É que eu
não acredito em coincidências.”
CAPÍTULO 45 – AJUNTAMENTO

O rei se aproxima de seu templo. Fazer grandes oferendas traz boa fortuna.
Acima da Terra, o Lago: a imagem do Ajuntamento. Assim o homem superior renova suas
armas de forma a encontrar-se com o inesperado.
(I Ching – hexagrama 45)

Eram nove e quarenta e cinco da manhã. Cinco automóveis atravessavam as


ruas de Rio Santo, tendo em comum um mesmo destino. Convergiam, cada
qual de seu canto, cada um com seu propósito, para o mesmo ponto de
encontro na rua Caetano de Holanda, número 68, o endereço do motel Le
Barde.
Três carros chegaram praticamente juntos, dois vindo de um lado e um do
outro da Caetano de Holanda, que era uma rua de mão dupla, assim como sua
paralela, Jorge Nascimento, a rua da delegacia de Homicídios. De um lado
vinha a ambulância com seus dois ocupantes: motorista e enfermeiro. Do outro
vinham em comitiva a Pionero negra da perícia e o rabecão vermelho da defesa
civil. Após um breve impasse, foi decidido por acordo tácito que ambulância
entraria primeiro, afinal os que cuidam dos vivos têm precedência sobre os que
cuidam dos mortos. Uma decisão humanitária, porém pouco prática, uma vez
que no pátio apertado do Le Barde o primeiro a entrar estaria obrigado a ser o
último a sair.
Sobre os bombeiros que iam no rabecão, não há muito que dizer. Eram dois
soldados e um sargento, para eles aquele seria apenas mais um serviço,
acostumados que estavam às feias variações da morte.
Na Pionero vinha Joaquim Botelho, perito do instituto de medicina legal e,
dirigindo o carro, o assistente Manuel Pinto, um técnico de laboratório que
também fazia às vezes de fotógrafo. Não era incomum que os dois atendessem
ao mesmo chamado. Quando trabalhavam juntos, havia duas coisas que os
homens da perícia detestavam mais que tudo. A primeira eram as tiradas e
piadas de português, que algum engraçadinho sempre insistia em contar,
motivado pelo primeiro nome dos dois, Manuel e Joaquim. E a segunda eram
os gracejos de gosto ainda mais duvidoso, inspirado pelos sobrenomes da
dupla.
O quarto carro a chegar ao Le Barde foi um veículo da imprensa, um
Coruscatti branco com as portas e o capô pintados com o logotipo da rádio
PanAmericana fm. Estacionou na calçada do Le Barde, próximo de onde
Almeida havia deixado a viatura da Homicídios.
Um homem saltou do carro, pelo lado do carona. Chamava-se Pedro Rivera,
repórter do Rio Santo em Alerta, um dos campeões de audiência da
PanAmericana. O motorista chamava-se Thiago Vaudremin e demorou um
pouco mais para sair do carro, pois apanhava seus equipamentos. Além de
motorista, o jovem acumulava as funções de operador de áudio e caboman,
acompanhando repórteres como Rivera nas chamadas externas.
O carro seguinte acabou não parando. Era um Citrus verde, que ao se
aproximar do motel, diante da agitação que se formava, passou direto. Nada
como uma ambulância, um carro da polícia ou da defesa civil para atrair a
atenção de curiosos, os três juntos então, eram indicação segura de algum
espetáculo fora do comum. Tanto é que rapidamente, mesmo debaixo de
chuva, já começava a se aglomerar um pequeno grupo de desocupados, cada
um com seu guarda-chuva e suas fantasiosas explicações para o misterioso
evento ocorrido nas entranhas do Le Barde, que mobilizava assim, de uma vez
só, tantos servidores do estado.
No carro que seguiu direto viajava um casal desconhecido. Dificilmente
seriam casados: só um tarado levaria a própria esposa para um motel naquele
inocente horário matutino. Talvez um dos dois ou ambos estivessem naquele
momento aproveitando alguma aventura extraconjugal. Talvez fossem
estudantes deixando de atender a compromissos escolares para uma aula prática
bem mais urgente. Talvez as duas pessoas fossem do mesmo sexo. Talvez uma
das duas estivesse sendo paga para estar no carro. Fosse como fosse, dentre
todos os que naquele momento se dirigiam para o Le Barde, os dois no Citrus
verde eram os que possuíam as intenções mais adequadas para o local, afinal
estavam indo para um motel fazer o que as pessoas fazem nos motéis, e não
para tratar de tenebrosos assuntos de morte, que para tal existiam lugares mais
apropriados, tais como cemitérios, hospitais e igrejas.
Não deixa de ser irônico que de tantos que estavam indo para o motel,
justamente os dois que estavam indo trepar foram os que nem chegaram a
entrar.

Brancas avançam na segunda:


Permitir-se ser retirado da situação traz boa sorte sem culpa. Se ele for sincero, será propício
até mesmo uma pequena oferenda.

Teixeira foi falar com o pessoal da ambulância primeiro. “Há uma mulher
grávida com suspeita de sangramento. Ela está na suíte quatro. Vocês podem
utilizar o acesso da garagem. A porta lá em cima deve estar trancada, por isso
levem esta chave que eu peguei na recepção. Depois da escada, é a porta da
direita. A mulher está deitada na cama.” Após um segundo pensamento,
Teixeira acrescentou: “Ela é uma funcionária do motel. Obrigado.”
Enquanto despachava os dois homens da ambulância, o inspetor sentiu os
olhos de alguém cravados nele. Voltando-se, ele deu de cara com um homem
baixo, aparentando uns cinquenta anos, os cabelos negros rajados de grisalho.
A cabeça era longilínea, talvez um pouco comprida demais para alguém de sua
estatura, ou talvez as pernas é que fossem curtas. O fato é que alguma coisa
parecia fora de proporção na silhueta do homem que o observava debaixo de
um guarda-chuva negro.
“Professor Botelho”, disse Teixeira, à guisa de cumprimento.
“Olá. Alberto, não é isso?”
Além da função que exercia no instituto, Joaquim Botelho lecionava
medicina legal na mesma faculdade onde Teixeira estudou durante dois anos e
meio, antes de abandonar o curso de direito.
Os outros homens se agruparam ao redor do médico, os três da defesa civil
em suas capas de chuva e Pinto, o assistente, segurando um guarda-chuva
idêntico ao que abrigava Botelho. Houve um breve cumprimento, limitado a
olhares e acenos de cabeça, entre os que chegavam e os dois da polícia. Todos
ali já se conheciam de outros trabalhos.
Teixeira avançou alguns passos para fora da garagem da suíte quatro. Ele
entrou na chuva e apontou para a garagem seguinte, onde estava estacionado o
Corvenna preto. “Por aqui, senhores.”
Os bombeiros fizeram menção de segui-lo, mas foram detidos por um gesto
de Botelho. “O que esta ambulância está fazendo aqui? Eu vim periciar dois
óbitos. Ninguém falou nada a respeito de sobreviventes.” A julgar por suas
palavras, essa possibilidade o incomodava.
O inspetor retornou para o abrigo da garagem. “Uma funcionária do hotel
está grávida e teve um mal estar depois que os corpos foram descobertos.” O
tom de Teixeira era cordial na superfície, mas deixava escapar uma nota hostil.
“A funcionária encontra-se em repouso na suíte quatro. Os dois óbitos, sobre
os quais o senhor parece ter sido bem informado, ocorreram na suíte cinco,
essa aqui do lado. Agora, se os senhores tiverem a bondade de me
acompanhar.”
Almeida manteve-se à margem desse sutil conflito. Ele não se deu,
tampouco, ao trabalho de subir novamente até a suíte. Acendeu mais um
cigarro e ficou fumando de seu canto na garagem, observando os seis outros
homens do grupo passarem espremidos pelo Corvenna até chegar às escadas, a
pequena garagem superlotada com aquele amontoado de gente.
Pela terceira vez diante da porta da suíte cinco, Teixeira experimentou um
pânico fugaz, ao imaginar que pudesse ter entregue a chave errada para o
pessoal da ambulância. Em uma fração de segundo o inspetor visualizou a cena
completa. Ele balbuciando desculpas, descendo as escadas atrás dos
enfermeiros, que naquele momento já deveriam estar à sua procura, novas
desculpas, o sorriso amarelo, novamente subindo as escadas, de volta ao olhar
escrutinador do professor Joaquim Botelho.
“É impressionante o poder que conferimos a alguém quando lhe
chamamos professor”, pensou Teixeira, lutando contra aquele instante de
fraqueza. Por um momento ele havia recuado no tempo, para um passado mais
distante que a faculdade de direito. Teixeira havia escorregado, por um desses
imprevisíveis tobogãs da memória, para as salas de aula de sua infância, de volta
às calças curtas do colégio, às punições e repreensões inúteis, uma vez que ele,
aquele menino Alberto, seria sempre um rebelde incorrigível.
O inspetor sacudiu de uma vez as más recordações e enfiou a mão no bolso.
Claro que era a chave certa, com o cinco branco no losango azul. Teixeira
enfiou a chave maior na fechadura, abriu a porta e recuou um passo, como se
fizesse uma cortesia ao permitir que os outros entrassem primeiro. Ele disse
apenas: “Os dois estão na banheira.”
Foi Botelho quem primeiro sentiu a atmosfera que emanava da suíte cinco.
As narinas do médico se arregalaram, trêmulas, e por debaixo das sobrancelhas
franzidas seus olhos dardejaram indignação e surpresa na direção de Teixeira. O
inspetor, naquele momento, esforçava-se em aparentar indiferença, como se o
mau cheiro que saía da suíte não o incomodasse nem um pouco.
O sargento da defesa civil rompeu o impasse. “Roberto, eu avisei que não
era para você comer aquela salada de ovo.”
O sargento deu um tapa de leve no ombro de um dos dois soldados-
bombeiros. Os três riram. À sua maneira rude, preparavam-se para a dura tarefa
que tinham pela frente.
O perito finalmente avançou pela porta da suíte adentro, seguido pelo
fotógrafo e pelos homens da defesa civil. Teixeira fechava a comitiva. Pinto
sacou a câmera digital e começou a fotografar o quarto. Botelho seguiu
resolutamente até a porta do banheiro. Teixeira estava louco se pensava que
poderia bater um médico legista naquele jogo.
“Inter faeces et urinam nascimur”, disse Botelho. O professor era tirado a
filósofo. “E esses dois resolveram sair da vida do mesmo jeito que entraram.”
Pinto também entrou no banheiro, com a câmera em punho. Os bombeiros
foram atrás, soltando imprecações. Depois que fotos suficientes foram tiradas
dos dois na banheira, a um sinal de Botelho o sargento se aproximou. Era um
homem forte, corpulento. Chamava-se Hidelbrando. Dos soldados, o moreno
alto e dentuço chamava-se Dalton e o outro, cujos hábitos alimentares já foram
objeto de comentários, trazia o nome Roberto na jaqueta. Os dois ficaram
aguardando na soleira da porta, pois não havia como entrar mais gente no
banheiro.
O sargento Hidelbrando enfiou o punho enluvado em um saco plástico, que
prendeu logo abaixo do cotovelo. Passando o braço por cima do homem
morto, o sargento mergulhou a mão, assim embalada de improviso, na água
turva da banheira. Ele olhou para o teto enquanto tateava à procura da tampa
do ralo. Acaso o sargento voltasse o rosto para baixo, ficaria próximo o
suficiente para beijar o rosto do cadáver.
Finalmente a mão do sargento emergiu, pingando fezes do saco plástico que
a envolvia, segurando a tampa de metal que era atarraxada ao ralo da banheira.
Hidelbrando sacudiu a mão, enojado. Seria um verdadeiro milagre se aquela
merda toda escoasse sem entupir o ralo.
Enquanto isso, Teixeira examinava o frigobar. A chave menor abria um
armário com prateleiras de vidro na parte superior e o refrigerador para as
bebidas embaixo. Tanto as prateleiras quanto o frigobar estavam vazios, o que
não chegava a ser uma surpresa diante da profusão de comidas e bebidas
espalhadas pelo quarto do motel. O que Teixeira não esperava era encontrar o
que encontrou dentro do refrigerador. Na estante de cima, um retângulo
branco de papel sobre o branco do gelo.
Era um pouco menor que um cartão comum. Impresso em um dos lados,
em tinta vermelha, uma espécie de logotipo, com traços retos parecendo sugerir
as chaminés e os telhados de uma fábrica.
Não havia nome no cartão.

Brancas avançam na terceira:


Ajuntamento entre suspiros. Não há culpa em ir embora.

“Bebendo em serviço, hem? E o pior é que nem convida os amigos”, disse


uma voz às costas de Teixeira. Era Pinto, que havia saído do banheiro para que
entrassem os dois da defesa civil. Botelho continuou lá dentro, acompanhando
a lenta drenagem da banheira.
Teixeira saiu da frente do frigobar, onde estivera agachado, e exibiu para o
outro as prateleiras vazias. “Como poderia estar bebendo? Ao que parece,
chegamos tarde para a festa.”
“Festa, hem? Essa é boa. Só se for a festa do presunto com chocolate.”
Teixeira havia empalmado o cartão da Fábrica, e agora o guardava
discretamente no bolso. Com a mão disponível, o inspetor apontou para a
porta do banheiro. “Coisa feia, essa.”
“Já vi cenas piores.” Manoel Pinto coçou o queixo miúdo, bastavam dois
dedos para isso. “Mas fedendo assim, realmente fica difícil. Não sei o que é
pior, isso ou carniça.”
“O que você acha que matou os dois?”
“Eu diria que foi uma alta concentração de carbamato. Chumbinho, você
sabe.”
“Sim, eu também pensei nisso.”
“É claro que a autópsia irá determinar com mais segurança, mas os sintomas
não deixam muita dúvida.”
Teixeira foi para perto da cama. “Está vendo os dois frascos de vidro na
cabeceira? Estavam no bolso da calça jeans do defunto. O veneno devia estar aí
dentro.”
“É bem provável. Vou mandar isso para a análise, obrigado.”
“Talvez você queira dar uma olhada nessa sacola de papel também. Acho
que o veneno foi ingerido junto com o milk shake.”
“Pode ser. O que o leva a pensar assim?”
“Apesar de toda essa comida espalhada, acredito que a única coisa que o
homem e a menina realmente consumiram foi o lanche que estava nessa sacola.
Além do veneno, é claro. Mas isso vocês é que vão dizer, depois de dar uma
olhada no estômago dos dois.”
“Eu te conheço, Teixeira. Você está cozinhando alguma coisa aí nessa sua
cachola. Se importaria de me dizer o que é?”
“Venha. Há algo que eu gostaria de lhe mostrar.” Teixeira segurou o outro
pelo braço e o conduziu para perto do aparelho de tevê. “Está vendo essa
mancha de vômito no chão?”
“Sim.”
“Gostaria de lhe pedir um favor. Tire uma amostra e veja o que consegue
descobrir sobre a pessoa que botou isso para fora, ok?”
“Não entendi. Você quer que eu descubra qual dos dois vomitou aqui?”
“Não exatamente. Pois eu acho que não foi nenhum dos dois, entende?”
“O que você quer dizer?”
“Observe a posição da mancha, perto da porta do banheiro. Dá a impressão
de que a pessoa que vomitou saiu às pressas do banheiro e acabou botando os
bofes para fora aqui.”
“E o que tem isso?”
“Não faz muito sentido um dos dois sair da banheira, vir até aqui para
vomitar e depois voltar para a banheira, você não acha?”
“Não sei. Talvez o homem ou a menina tenham vomitado aqui primeiro,
para só depois entrar na banheira. Talvez só nessa hora tenham percebido que
o veneno começava a fazer efeito.”
“Acho isso muito improvável. Pelo que eu sei, além da náusea, da diarreia e
dos vômitos, o chumbinho também provoca diversos outros sintomas
desagradáveis, não é verdade?”
“Sim. Dores abdominais, cefaleia, dores no globo ocular, dores
generalizadas, confusão mental e, às vezes, até alucinações. O chumbinho é um
veneno sujo, se você quer a minha opinião.”
“Então. Você acha que os dois teriam presença de espírito para entrar na
banheira, ligar a água e a hidromassagem e ficar calmamente esperando a morte
chegar, depois que o veneno começasse a fazer efeito?”
“É, realmente você levantou uma questão interessante. Mas o que você acha
que aconteceu?”
“Alguém mais esteve aqui, além do gerente e da camareira. Pois nem ele
nem ela vomitaram aqui dentro. Foi o que disseram, e não há motivo para
estarem mentindo. E muito menos motivo ainda para fazer essa bagunça toda
no quarto somente para disfarçar esta pequena mancha de vômito.”
“Você não está sendo um pouco precipitado nessas conclusões todas?”
“Apenas faça o que lhe pedi, ok? Fico lhe devendo essa.”
“Já vi que você está descartando a hipótese do suicídio. Mas veja bem, isso
não é nada improvável, mesmo com a menina sendo tão nova. Aliás, essa
diferença de idade pode até explicar muita coisa. Um maluco se apaixona pela
garota e faz ela pensar que também está apaixonada por ele. Os pais da menina
são contra, é claro. O maluco convence a menina a fazer um pacto de morte,
algo bem romântico, que nem Romeu e Julieta. Como ele é maluco e ela apenas
uma criança, dentre tantas outras maneiras de se matar, os dois acabam
tomando chumbinho, que é o veneno mais fácil de se conseguir. Já vi acontecer
antes.”
“Pinto, se tem alguma coisa que não aconteceu aqui, foi um suicídio
romântico. A morte desses dois tem tanto de romantismo quanto o Botelho,
com aquela cara de limão velho, tem de Romeu.”
“Muito bem, Alberto.” A voz soou irônica às costas dos dois, que
conversavam virados para a parede. Era Botelho, que havia saído do banheiro
sem que Teixeira ou Pinto percebessem. “Pelo que vejo, você está tão avançado
em suas técnicas de investigação que já nem precisa mais da perícia, não é?
Essa é a típica postura anticientífica que tanto atrasa a nossa polícia. Não foi à
toa que você foi reprovado em minha matéria.”
Se a cara do perito era de poucos amigos, a expressão de Teixeira não fazia
por menos. “Talvez o senhor não se lembre, mas eu fui reprovado por falta. Se
fosse pela nota, eu teria passado.”
O assistente do perito pareceu nesse momento descobrir alguma coisa
muito importante para fazer do outro lado do quarto, afastando-se dos dois
homens que se defrontavam. Botelho sustentou o olhar de Teixeira. “Queria
mostrar que era tão inteligente que nem precisa de professor, não é mesmo?
Assim como agora não precisa da perícia.”
“Eu nunca disse isso.”
“Não é assim que as coisas funcionam, rapaz. Você ainda vai aprender isso.”
“Talvez.”
“Veja o que aconteceu com você na faculdade. Você acabou abandonando o
curso, não é mesmo?”
“Isso, se o senhor não se importa, é assunto meu.”
Teixeira havia iniciado o curso de direito movido pela ambição natural de
um dia chegar a delegado. Depois de dois anos e meio de estudo, no entanto,
trancou a faculdade.
“Tudo bem, Alberto, como você quiser.” Botelho contorceu a boca num
esgar que talvez passasse por um sorriso de condescendência. “Da mesma
forma, se você não se importa, isso aqui”, e o perito fez um gesto abrangendo a
suíte do motel, “é agora um assunto meu. Pode retornar para os seus afazeres,
sejam lá quais forem.”

Pretas avançam na quarta:


Suprema boa sorte. Sem culpa.

Quando Teixeira desceu as escadas da suíte cinco, encontrou o pessoal da


ambulância aguardando por ele na entrada da garagem. Os dois estavam de
braços cruzados e, pela forma como fitavam o inspetor Almeida, a conversação
não estava evoluindo da maneira mais agradável.
“Como está ela?”, perguntou Teixeira.
O enfermeiro adiantou-se. “Precisa ser internada. Realmente, houve uma
hemorragia. Ela já está dentro da ambulância, mas nós não temos como sair.
Nós bem que queríamos subir para falar com o senhor, mas ele não deixou.” O
enfermeiro meneou a cabeça na direção de Almeida, que fumava placidamente
o seu cigarro, como se não fosse com ele.
Teixeira estava prestes a dizer algo quando notou o gerente do motel se
aproximando, mais uma vez enfrentando estoicamente a chuva e o piso
molhado.
“A Celeste acabou de chegar, doutor”, disse Ranulfo, tomando fôlego. “O
senhor quer que eu traga ela aqui?”
“Não, eu prefiro conversar com ela em seu escritório, se o senhor não se
importa.”
“De modo algum, doutor. Vamos?”
“Só um minuto.” Teixeira foi para perto do colega. “Almeida, por favor
resolva essa situação, ok? Peça ao Pinto e ao motorista do rabecão para
liberarem a saída da ambulância.”
“O doutor Botelho não vai gostar nem um pouco dessa história.”
“Há uma mulher grávida na ambulância. Ela precisa de cuidados médicos
urgentes. Tenho certeza de que o nosso estimado perito irá compreender a
gravidade da situação. Conto com você.” Teixeira apertou o braço do outro,
como se para reforçar o pedido. Sem esperar resposta, o inspetor avançou para
a chuva e atravessou o pátio do Le Barde, sendo seguido de perto pelo gerente
Ranulfo.
O escritório era uma pequena sala quase desprovida de decoração.
Pendurado na parede, havia um calendário com a imagem de Nossa Senhora.
Sobre a mesa do gerente, alguns papéis empilhados, uma antiga e bojuda
calculadora, um porta-canetas e, como único item pessoal, um porta-retratos
que mostrava duas meninas gorduchas, de sobrancelhas grossas e cabelos
negros. Além da cadeira do gerente, estofada com uma surrada imitação de
couro, havia duas outras cadeiras na sala, provavelmente destinadas a
fornecedores, uma vez que os clientes do motel raramente teriam acesso àquela
parte do Le Barde.
Uma das cadeiras estava ocupada por uma mulher miúda, de rosto quadrado
e a cabeça achatada onde se destacavam os olhos grandes, de um surpreendente
verde. Os cabelos eram tingidos de um loiro fechado e estavam presos num
rabo-de-cavalo. A mulher vestia-se com simplicidade, uma calça jeans e uma
camiseta branca. Ela levantou-se assim que os dois homens entraram no
escritório, e aparentava bem o nervosismo que devia estar sentindo.
“Celeste, esse é o senhor da polícia que vai conversar com você”, anunciou
Ranulfo.
Foi como se a recepcionista só estivesse esperando pela deixa para desandar
numa torrente de palavras. “Eu não tinha como saber. O vidro do carro era
escuro, e o casal na frente com certeza era maior de idade. Como é que eu iria
adivinhar? Só se eu entrasse no carro para olhar, mas quem iria pensar em fazer
uma coisa dessas? Se eu agisse assim já estaria na rua há muito tempo. O senhor
precisa acreditar em mim, eu não tinha como saber, não tinha.”
“Celeste, escute.” Teixeira procurou usar o seu tom mais apaziguador. “Meu
nome é Alberto. Você não precisa ter medo. Nós sabemos que você não fez
nada de errado, não é mesmo, senhor Ranulfo?” O gerente apressou-se a
balançar a cabeça em concordância. “Eu preciso que você se acalme um pouco
agora, está bem? Sente-se, por favor.”
Depois que a recepcionista obedeceu, Teixeira voltou-se para o gerente.
“Senhor Ranulfo, muito obrigado.”
O gerente não precisou de maiores explicações e saiu silenciosamente. O
inspetor fechou a porta do escritório e sentou-se na cadeira ao lado da ocupada
pela recepcionista.
“Celeste, quero que você saiba que não tenho o menor interesse em
prejudicar você ou a ninguém aqui do Le Barde. Mas para isso eu preciso que
você me ajude e responda com toda atenção às minhas perguntas. Você está me
entendendo?”
A recepcionista sacudiu rapidamente a cabeça. Ela parecia estar um pouco
mais tranquilizada pelos modos de Teixeira.
“Era você quem estava na recepção ontem à noite, não é verdade?”
“Sim.”
“Você sabe dizer a que horas a suíte cinco foi ocupada?”
“Foi por volta das vinte e trinta. Mas os dois eram maiores, eu juro por
Deus!”
“Calma.”
“Foi só depois que eu lembrei. Quando seu Ranulfo ligou para meu celular,
contando o que havia acontecido, eu não consegui entender. Porque eu lembro
bem desse casal. Ontem o movimento não foi dos melhores, então eu pude
reparar bem. Além do mais esse casal chamava mesmo a atenção. Os dois eram
muito bonitos, pareciam esses modelos de revista. E também eram muito
parecidos um com o outro, poderiam até ser irmãos, se não estivessem
entrando em um motel, o senhor sabe. Os dois eram jovens, mas com certeza
tinham mais de dezoito anos, o senhor pode acreditar em mim!”
“Tudo bem, tudo bem. E o que foi que você lembrou depois?”
“Pois é, o senhor desculpe, eu ainda estou um pouco nervosa. Enquanto
estava vindo para cá, eu fiquei pensando, tentando descobrir como esses
menores podem ter entrado no motel. Foi então que eu lembrei.”
“E?”
“Vieram dois casais no mesmo carro, doutor. Foi isso que aconteceu. Eu
não tinha como saber que havia uma menor no banco de trás, como é que eu
iria adivinhar? O carro era daqueles com o vidro escuro, não dava para enxergar
nada dentro do carro.”
“Celeste, por favor se acalme. Eu preciso que você me conte exatamente o
que aconteceu. Que carro era esse?”
“Um carro preto, desses antigos. Acho que era um Corvenna.”
“Pois bem. O carro entrou na recepção por volta das oito e meia da noite de
ontem, não foi isso?”
“Sim.”
“E o que aconteceu depois? Responda com calma. Procure se lembrar de
todos os detalhes, está bem?”
Celeste suspirou, num esforço de concentração. “Era a mulher que estava
dirigindo. Ela baixou o vidro da janela para poder falar comigo. Uma mulher
linda, com a pele bem branca, parecia até cera. Era jovem, mas com certeza
tinha mais de dezoito anos. Devia ter uns vinte.”
“Prossiga.”
“Ela disse que queria duas suítes para todo o período da noite. Tinha um
sotaque diferente, como se fosse gringa. Nesse momento o homem que estava
no banco do carona esticou o pescoço para dizer que eles estavam dando uma
festinha particular. Falava com o mesmo sotaque. Era também muito bonito,
como eu já disse, e bem parecido com a mulher, a mesma pele branca, o
mesmo nariz afilado. Ele fez um gesto com a cabeça para indicar o banco de
trás, sorriu e piscou para mim. Não que eu precisasse da explicação. É bastante
comum virem dois casais juntos, e até mais. O que não pode é querer todo
mundo pagar uma só suíte. Cada casal tem que pagar o período em separado,
mesmo que depois fiquem todos na mesma cama. Norma da casa, o senhor
entende. Mas esses já chegaram querendo alugar duas suítes, então não havia
problema.”
“Você chegou a reparar no casal no banco de trás?” Teixeira ergueu a mão,
antecipando a objeção da outra. “Eu sei que o carro tinha vidro fumê e que não
dava para ver muita coisa. O que eu quero saber é se você notou se havia
mesmo ou não alguém no banco de trás.”
“Bom, só dava para ver a silhueta, o senhor sabe. Mas havia alguém no
banco de trás, sim.”
“E o que essa pessoa ou pessoas estavam fazendo? Estavam gesticulando,
conversando com os dois no banco da frente, ou estavam paradas?”
“Não estavam conversando, não. Agora que o senhor mencionou, acho que
a pessoa que eu vi estava com a cabeça meio curvada para a frente, como se
estivesse dormindo.”
“Prossiga.”
“Bom, foi só isso, doutor. Eu entreguei para eles as chaves das suítes quatro
e cinco, eles agradeceram e seguiram para o pátio. Eu registrei a entrada no
mapa de hóspedes, e isso é tudo.”
“Entendo. Houve algum pedido à recepção durante a noite?”
“Que eu me lembre, não. Mas eu posso checar no mapa de hóspedes.”
“Eu lhe acompanho. Mas antes disso, vou precisar de mais um favor,
Celeste.”
“Pode dizer.”
“Eu quero que você dê uma olhada no casal que foi encontrado na suíte
cinco. Preciso ter certeza de que não são os mesmos dois que você viu no
Corvenna. Você pode fazer isso?”
“Sim. Acho que sim.”
“Muito bem. Vamos?” Teixeira já havia aberto a porta do escritório quando
pareceu lembrar de algo. “Celeste, mais uma coisa. Esse casal que estava no
Corvenna, você lembra se eles possuíam algum traço característico, alguma
marca ou sinal?”
“Que engraçado o senhor ter perguntado isso. Realmente, a mulher tinha
uma pinta logo abaixo do nariz, aqui, do lado direito. Agora que o senhor
perguntou, acho que o homem também tinha um sinal idêntico. Que
coincidência, até nisso eles eram parecidos. Mas como o senhor adivinhou?”
“Pode chamar de um palpite de sorte.” O inspetor sorriu de leve, fazendo
um gesto para que Celeste saísse na frente. Mas não havia o menor traço de
humor em seus olhos.

Pretas avançam na quinta:


Se no ajuntamento existe alguém de posição, não há culpa nisso. Se houver quem não esteja
trabalhando sinceramente, será necessária uma sublime e duradoura perseverança.

A ambulância havia partido. De alguma forma, Almeida conseguiu


convencer o perito a liberar seu assistente e um dos homens da defesa civil para
manobrarem os carros para fora do pátio e de volta. Se eles tivessem parado
para pensar um pouco, o rabecão teria entrado primeiro e a Pionero em
seguida, pois agora era o carro da perícia que estava preso no pátio do Le
Barde.
Botelho já aguardava dentro do carro. Aparentemente, Teixeira chegava
bem na hora em que as equipes da perícia e da defesa civil preparavam-se para
partir, pois Pinto estava entrando no carro quando avistou o inspetor. Por cima
do capô da Pionero, o assistente da perícia apontou para dentro do carro e
sacudiu o punho fechado, querendo com isso dizer de forma amistosa o que
Teixeira já sabia: ele havia deixado o perito fulo da vida.
A porta traseira do rabecão estava aberta, revelando as prateleiras onde
podiam ser transportados até seis cadáveres de uma só vez. Ao lado do carro da
defesa civil, o sargento Hidelbrando recebia com impassibilidade militar a fina
chuva que caía, agora quase uma garoa. Saindo da garagem da suíte cinco, os
dois soldados se aproximaram com a gaveta que carregava um dos corpos.
Teixeira imaginou que não deve ter sido fácil descer as escadas com a gaveta, e
pior ainda passar pela garagem com o Corvenna dentro. Ele segurou Celeste
pelo pulso e foi com ela até o rabecão.
“Senhores, com licença. Esta é a funcionária do motel que estava na
recepção ontem à noite. Se os senhores permitem, eu gostaria que ela desse
uma olhada nos corpos.”
O sargento assentiu. O inspetor Teixeira voltou-se para Celeste: “Você está
pronta?”
Com os olhos claros arregalados, a recepcionista avançou até onde os dois
soldados estavam, a fim de poder espiar dentro da gaveta.
“Ela é só uma criança, meu Deus!” A recepcionista balançou lentamente a
cabeça. Quando ela se virou para olhar Teixeira, duas lágrimas brotavam de
seus olhos, misturando-se à água da chuva. “Eu juro que não sabia que ela
estava no carro. Juro.”
Teixeira apoiou a mão no ombro de Celeste e pressionou de leve,
procurando tranquilizar a mulher. “Eu preciso que você seja forte mais um
pouco, tudo bem?” Para o sargento: “O corpo do homem ainda está lá em
cima?”
Hidelbrando indicou o interior do rabecão. “Nós trouxemos ele primeiro.”
“Se não for pedir muito...”
Ao insistir para que a moça visse os corpos, Teixeira estava sendo
simplesmente metódico. Ele não esperava que Celeste reconhecesse o morto.
Mas havia sempre a possibilidade dele ser o homem que entrou no Le Barde
dirigindo o Corvenna preto. O inspetor desejava apenas eliminar essa
possibilidade. Questão de método.
Os homens da defesa civil já haviam depositado a gaveta com o corpo da
menina morta no rabecão. Com um gesto, o sargento comandou os outros dois
para que e puxassem a gaveta que estava na prateleira de baixo. Não foi preciso
trazer a gaveta em toda sua extensão para que o seu conteúdo ficasse visível
para a recepcionista.
Desta vez, a reação de Celeste foi bem diferente. O medo e a consternação
cederam lugar ao espanto.
“Mas esse é o Jorginho Príncipe!”
Finalmente o inspetor Teixeira descobriu porque o rosto inchado do
homem morto lhe parecera familiar.
Jorge Augusto das Neves, o Jorginho Príncipe, era um nome que dispensava
apresentações. O foragido mais famoso da cidade, homem forte do tráfico em
Nova Colômbia. Estava acostumado a aparecer nos noticiários locais e até, em
ao menos uma ou duas ocasiões, em rede nacional, quando os confrontos com
a facção rival do morro do Urtigão ficaram mais acirrados. E agora, pela
derradeira vez, Jorginho Príncipe voltaria a merecer especial atenção por parte
da imprensa. Um sórdido fim de carreira para a estrela do crime.
“Jorginho Príncipe, quem diria.”
Teixeira ficou aturdido pela descoberta. Nem deu muita importância quando
notou que mais pessoas haviam se juntado ao grupo. Continuou contemplando,
absorto, os restos mortais do temido criminoso. Tampouco parecia perceber a
fina chuva que insistia em continuar caindo.
O perito Botelho foi um dos que se aproximou. Ele não aguentou ficar
esperando e saiu de dentro do carro pronto para passar uma descompostura em
Teixeira. Pinto, é claro, também saiu do carro junto com o chefe.
Vindo da direção oposta, da recepção do motel, chegou o inspetor Almeida
trazendo dois outros homens. Eram Pedro Rivera, repórter da PanAmericana
FM e seu assistente Thiago Vaudremin. Diante da surpreendente revelação da
identidade do morto, os dois iniciaram sem demora os preparativos para uma
transmissão ao vivo, dali mesmo do pátio do Le Barde.

Brancas avançam na sexta:


Lamentos e suspiros, rios de lágrimas.

Durante o curto trajeto de volta à delegacia, a mente do inspetor Teixeira


vagou furiosamente através do tempo e do espaço.
Dentre as inúmeras histórias que circulavam a respeito de Jorginho Príncipe,
uma das mais conhecidas era sobre um colar que o traficante usava em ocasiões
especiais, tais como uma amigável troca de tiros com a polícia ou a execução de
algum desafeto. A ideia do colar, longe de ser original, foi provavelmente
inspirada em algum filme sobre as atrocidades cometidas durante a guerra do
Vietnã. Ainda assim, não deixava de provocar o efeito psicológico desejado
pelo traficante. Pois o famoso colar, que diziam ser confeccionado pelo próprio
Jorginho, era feito de orelhas humanas, souvenires que ele coletava dos
inimigos abatidos.
Que alguém como Jorginho Príncipe terminasse seus dias em um pacto de
morte romântico era absolutamente inacreditável. Quando Jorginho queria algo,
ele simplesmente ia lá e tomava. Era simples assim. Não faria muita diferença se
esse algo fosse uma menor de idade. Na verdade, não faria diferença alguma
mesmo se fosse um bebê de colo.
Uma vez que a identidade do homem morto fosse comprovada, Teixeira
não teria a menor dificuldade em demolir a hipótese do suicídio. Disso não
restava a menor dúvida. Mas por que alguém se daria ao trabalho de elaborar
toda aquela farsa para liquidar o traficante, quando um corpo crivado de balas
no porta-malas de um carro abandonado teria sido um caminho muito mais
óbvio e seguro? E, acima de tudo, por que envolver uma criança nisso? Teixeira
estava convencido de que a identificação da menina morta seria crucial para
desvendar o mistério.
Tudo nesse caso dava a impressão de ser algo bem diferente do que as
aparências indicavam. A começar pelo próprio Le Barde, que estava longe de
ser o pulgueiro desorganizado que Teixeira imaginava. Essência versus aparência,
o eterno conflito que era comum aos filósofos e aos investigadores de crimes
de morte.
O inspetor pensou nas três Marias que o ajudaram a achar o rumo certo no
caso, exatamente como a constelação que ajudava os marinheiros de outrora e
então a encontrar o caminho de casa. Gorete, do Carmo e Celeste, cada uma a
seu modo, cada uma das Marias contribuiu para conduzir Teixeira à trilha que o
levaria ao seu destino final.
Graças a elas, embora Teixeira continuasse nas trevas a respeito dos porquês,
já vislumbrava um razoável panorama de como tudo havia acontecido. De
alguma maneira, o casal que Celeste viu chegar à recepção do Le Barde
conseguiu induzir Jorginho e a menina para dentro do carro. No caminho para
o motel, uma rápida parada para um lanche no McCanic’s, com um substancial
acréscimo de chumbinho no milk shake de chocolate com flocos.
Até aqui Teixeira já havia deduzido sozinho, com o auxílio da singular
evidência da solitária batata frita no banco de trás no carro. Pois se o lanche foi
consumido no banco de trás, isso sugeria que havia mais alguém dentro do
carro, pelo menos uma terceira pessoa ao volante enquanto os dois comiam o
lanche com veneno.
Teixeira recordou a observação de Celeste a respeito da silhueta no banco
de trás do Corvenna, que parecia estar dormindo. Ele se perguntou se não
haveria algo mais no milk shake além do chumbinho. Talvez um sonífero de
ação rápida. Isso ajudaria a manter os dois quietos, principalmente Jorginho. O
inspetor fez uma anotação mental para pedir ao técnico da perícia que
verificasse isso.
Depois que chegaram à suíte, Jorginho e a menina foram despidos e
colocados na banheira. Quando o veneno começou a fazer efeito, a cena
tornou-se forte demais até mesmo para seus idealizadores, ou ao menos para
um deles, que acabou botando os bofes para fora no carpete da suíte, logo
abaixo do aparelho de tevê. Para disfarçar a mancha de vômito em um local tão
improvável, foi armada a encenação dos salgadinhos e bebidas espalhados por
todo o quarto.
E depois disso, era só uma questão de aguardar até ter certeza de que os
dois na banheira estivessem realmente mortos. E então os assassinos, que
Celeste avistou no banco da frente do Corvenna, simplesmente foram para a
suíte quatro, onde talvez tenham tomado um banho para lavar os resquícios da
sujeira. Em seguida pediram a conta e saíram pelo corredor interno do Le
Barde, quando foram interceptados por do Carmo e passaram despercebidos
por Gorete. Teixeira se perguntou por que o casal de assassinos esperou tanto.
Certamente o chumbinho deu cabo dos dois na banheira muito antes das oito e
meia da manhã, supondo que o veneno foi ingerido antes que eles chegassem
ao motel, ou seja, num intervalo de tempo de pelo menos doze horas. Mais
uma coisa para checar com o assistente da perícia.
A explicação mais plausível é que o casal na suíte quatro estivesse esperando
a mudança de turno na recepção do motel, para maior segurança.
Havia, contudo, uma outra explicação. Talvez os assassinos quisessem se
certificar do horário em que os corpos seriam descobertos, abandonando o
local somente depois que o telefone da suíte cinco começou a tocar. Mas que
interesse eles teriam em agir assim? Que importância teria o momento da
descoberta dos cadáveres?
Teixeira considerou por um momento a possibilidade de estar velejando
pelos mares sem fim da paranoia. Pois se tornava cada vez mais forte a
impressão de que ele era o motivo de tantos cuidados especiais. O inspetor não
havia esquecido a sensação de que havia algum interesse oculto por trás da
resolução do delegado Santelmo em designá-lo para o caso. E ainda mais forte,
uma convicção crescia dentro dele. De todos os homens da Homicídios, na
verdade dentre toda a mal afamada força policial de Rio Santo, ele, o inspetor
Alberto Lino Teixeira, era justamente o único capacitado a fazer as conexões
corretas entre o incidente na suíte número cinco e um outro crime, ocorrido
dois anos atrás.
Talvez a desordem exagerada em que o quarto foi encontrado não chegasse
a despertar as suas suspeitas. Mas não havia como deixar de perceber a pista do
livro, um clássico da literatura mundial com uma passagem sublinhada. E,
muito menos, havia como esquecer aquele casal de jovens tão bonitos e tão
parecidos, ambos com o mesmo sinal logo abaixo das narinas.
Pois se o porquê continuava envolto em mistério e o como já começava a ser
delineado, não havia a menor dúvida a respeito de quem estava por trás das
mortes na suíte número cinco.
A viatura da Homicídios ainda não havia parado por completo no
estacionamento da delegacia, e o inspetor Teixeira já se encontrava mergulhado
em suas recordações de dois anos antes. Uma morte ocorrida em um hotel. Um
crime tão diferente e, ao mesmo tempo, tão semelhante ao que ele agora
investigava. Um episódio envolto em frustrações e lembranças amargas, que
culminou na prisão do queridinho do momento das revistas de fofocas da tevê
e estrela maior do espetáculo mais badalado da cidade.
Por mais que odiasse atribuir algo à mera casualidade, Teixeira foi obrigado
a admitir que o fato de ter começado o dia lendo a respeito de Régis Vale só
podia ser uma coincidência. E nada mais que isso.
Incidente no Quarto 909
CAPÍTULO 18 – DECADÊNCIA

Trabalhar no que foi estragado conduz ao supremo sucesso. Antes do ponto de


partida, três dias. Depois do ponto de partida, três dias.
O Vento sopra na base da Montanha: a imagem da Decadência.
(I Ching – hexagrama 18)

O senhor de compridos cabelos brancos avançou pelo luxuoso saguão do


Émile. Um funcionário do hotel já o seguia com uma grande mala verde, mas a
maleta preta de executivo ele insistiu em carregar pessoalmente. Caminhava
com passos rápidos e comedidos, como alguém que tentasse andar o mais
depressa possível sem chamar muita atenção.
O nome fornecido para o registro de hóspedes foi o de Harold Habbot,
proveniente de Dresden, Alemanha, em visita de negócios a Rio Santo. Não era
a primeira vez que aquele senhor Habbot utilizava as requintadas acomodações
do Émile.
Hábitos podem ser perigosos. Podem tornar o comportamento de um
homem previsível. E o que é possível prever é possível controlar.
Muito antes que o velho sequer pisasse no saguão atapetado do hotel, já não
era segredo nem mesmo o quarto que lhe seria destinado.
Era o quarto 909.
Brancas avançam na primeira:
Consertando o que foi estragado pelo pai. Se houver um filho, nenhuma culpa repousa sobre o
pai que partiu.

Nem bem entrou no quarto, o velho foi logo pedindo uma garrafa de
uísque. Ele gostava de beber. Depois da segunda dose, mais confortável, é que
foi cuidar de abrir a maleta preta. De dentro da mala retirou um envelope
cinzento. Enfiou a mão no envelope e apanhou o celular. O número para o
qual discou estava anotado em um cartão que também estava guardado no
mesmo envelope.
Uma voz atendeu após o terceiro toque:
“Parabéns, Doutor!” Era uma voz de homem, um agradável timbre de
barítono. “Pelo que vejo, a viagem foi um sucesso.”
“Fortunato?”
“Ele mesmo, Doutor! E então, tudo certo na viagem?”
“Sim. Estou na cidade.” O velho respondeu em português. Sua voz era
carregada de um forte sotaque estrangeiro, que até poderia passar por alemão.
“Tudo correu como planejado?”
“No final, sim.”
“O que houve?”
“Acho que fui descoberto.”
“Mas o que aconteceu?”
“Nada demais. Só fui convocado para uma reunião extraordinária do
Conselho. Exatamente na semana de minha viagem.”
“O Conselho? O que eles queriam?”
“Você acha que eu fiquei esperando para saber?” O velho deu uma
risadinha curta, quase um gemido. “Saí de lá assim que pude.”
“Genial, Doutor. Agora deve haver um exército à sua procura.”
“Deixe eles procurarem. Não vão encontrar nada.” Ele riu novamente,
denunciando o tanto de álcool no sangue. Ele falava muito bem o português
para um estrangeiro meio bêbado.
“O quê? Como assim?”
“Podemos dizer que o roque foi um sucesso.”
“O senhor experimentou em si mesmo.” Havia uma nota de incredulidade
na voz de barítono.
“Sim. E funcionou perfeitamente.”
“Tem certeza disso?”
“Eu estou aqui, não estou?”
“Então funciona.”
“Você tinha dúvidas?”
“Não, é claro que não. Mas sempre é bom ter certeza. E depois? Pegou o
dinheiro?”
“Sim.”
“E quanto ao roque? Está com a fórmula?”
“Sim. Carreguei a fórmula comigo quando saí de lá. Mas chega de tantas
perguntas. Agora faça sua parte.”
“Eu preciso de mais tempo. Talvez uns dois ou três dias.”
“O que houve?”
“Nada. Está tudo bem. É que algumas coisas levaram um tempo maior do
que esperávamos para serem resolvidas. Mais alguns dias e eu resolvo.”
“Não estou gostando nada disso.” O velho parecia ter mesmo ficado
zangado.
“Ei, calma. O que são dois dias? Três dias no máximo.”
“Você não disse que eu teria que esperar.”
“Não há nada demais nisso, eu já disse. O procedimento é esse mesmo.
Estamos do mesmo lado, sabia? Estou me arriscando muito por sua causa, caso
tenha esquecido.”
“Não. Você está se arriscando porque quer a fórmula do roque. E também
pelo dinheiro.” Na voz do velho, a palavra soou como dinêro.
“Pela honra do Rei e em defesa da Rainha, não é mesmo?”
“Eu não estou com humor para brincadeiras, Rogério.”
“Ficou louco?”
“Ora, mas o que...”
“Meu nome é Fortunato!”
“Sim.”
“Entendeu?”
“Sim. Desculpe.”
“O senhor não era descuidado assim quando nos conhecemos.”
“Também, você me deixou nervoso com essa história de esperar.”
“É por pouco tempo, eu garanto.”
“Eu não imaginava que o roque teria que aguentar tanto.”
“Então a fórmula não funciona.”
“Funciona, sim. Claro que funciona. Só que o risco aumenta com o tempo.
O efeito do roque não dura muito. Tenho que aplicar novamente a fórmula a
cada duas ou três horas. Não sei se poderei continuar assim indefinidamente. A
fórmula ainda está na fase experimental, caso você tenha esquecido. Se o roque
funcionasse por tempo indeterminado, afinal, eu não precisaria de você.”
“Eu vou cumprir a minha parte. Procure relaxar um pouco, está bem?”
“Você tem até amanhã, no máximo.”
“Vou tentar, mas não posso garantir nada.”
“É melhor mesmo que você tente, senão...”
“Senão o quê? Fala. Pode falar.”
“Não esqueça que eu ainda sou o seu preceptor.”
“O senhor é que parece estar esquecendo que abriu mão dos poderes que
possuía quando utilizou o seu precioso roque. Me ameaçar não vai adiantar
nada.”
“Não foi isso o que combinamos.”
“A vida é mudança e movimento.”
“Você é um canalha, sabia?”
“Tive um bom professor.”
“Como eu vou saber que você vai cumprir a sua parte?”
“Fique tranquilo, Doutor. O senhor sabe que eu só tenho a ganhar com o
seu desaparecimento.”

Pretas avançam na terceira:


Consertando o que foi estragado pelo pai. Haverá um pouco de remorso. Sem grande culpa.

O velho voltou a se servir de uísque, uma dose generosa. Precisava ganhar


coragem para efetuar uma segunda ligação, para ele ainda mais difícil que a
primeira.
Desta vez ele utilizou o telefone do quarto mesmo. Demorou algum tempo
antes que alguém atendesse do outro lado.
“Estúdio Nova Música, boa noite. Samuel falando.”
“Henrique está?”
“Só um momento. Tenha uma boa noite.”
O velho aguardou na linha enquanto a ligação era transferida. Finalmente
outra voz atendeu, interrompendo a chamada de espera, onde uma gravação
com fundo musical anunciava as maravilhas do estúdio Nova Música.
“Henrique falando.”
Por um momento o velho se sentiu incapaz de dizer algo.
“Alô? Tem alguém na linha?”
“Henrique?”
“Sim. Quem fala?”
“Sou eu. Harold.”
“Quem?”
“Henrique, quem está falando aqui é seu pai.”

Brancas avançam na quarta:


Tolerando o que foi estragado pelo pai. Se prosseguir, haverá humilhação.

Depois de conversar por telefone com o filho que nunca vira, o velho
largou-se na poltrona do quarto de hotel. Logo mergulhava em um estado de
nostalgia alcoólica que avançou madrugada adentro.
A conversa com Henrique dificilmente teria sido considerada agradável. E
não era para menos. O rapaz tinha motivos para estar magoado.
Irene, a mãe de Henrique, trabalhava em um show de mulatas quando o
velho a conheceu. Nessa época ele não era um velho, mas um charmoso
estrangeiro de meia idade. Ele a amou o suficiente para fazer um filho nela e
prometer que iria registrá-lo com seu nome falso. Esse foi um dos maiores
erros do velho, confiar tanto na identidade de Harold Habbot.
Embora o velho e Irene nunca tivessem chegado a se casar, esse
relacionamento foi a coisa mais próxima que ele teve de uma família. Não
chegou a ser grande coisa. Quanto a Henrique, quando nasceu o pai já havia
sumido. Partiu em uma urgente e misteriosa viagem de negócios, e nunca mais
foi visto. Um cheque continuou sendo depositado todos os meses em uma
conta em nome de Henrique, religiosamente. Por esse motivo, Irene chegou a
registrar o filho com o sobrenome alemão, pela esperança de que Habbot
voltasse um dia. Mas fora os cheques, nunca mais houve nenhum outro tipo de
contato, nem que fosse por telefone ou carta.
Então, o reencontro de pai e filho graças à Internet, na descoberta ‘casual’
em um site de relacionamentos. Os contatos iniciais fluíram bem. Da troca de
recados passaram para os e-mails e finalmente tiveram a sua primeira conversa
por telefone. É de se lamentar que não existam registros dessa conversa,
primoroso exemplo que não deve ter sido das revelações, reviravoltas e
sentimentos catárticos, tais como enumerados por Aristóteles em sua Poética.
Primeiro, o pai ficou sabendo de mais detalhes sobre a morte da mãe,
ocorrida dois anos e meio antes. Depois, o filho ficou sabendo que o pai
também estava às portas da morte, vítima de leucemia, e que somente um
transplante de medula poderia salvar sua vida. O garoto não era burro, e logo
percebeu o real motivo para o retorno do pai pródigo, e que nada houvera de
acidental naquele encontro pela Internet. Sua reação não foi nem um pouco
amigável.
O velho já contava com isso, e lançou mão da única linguagem que
conhecia. Ofereceu ao filho trezentos mil dólares para que fosse seu doador de
medula. Ele teria oferecido mais, e só não o fez porque teve medo de que
Henrique recusasse por pensar que a proposta não era séria.
É claro que dinheiro nunca foi problema para alguém na linha de negócios
em que o velho atuava. Ainda mais quando se tratava de salvar a própria pele. E
em termos de dinheiro, ao menos, ele havia progredido bastante desde os
tempos de Bodoni.
A lembrança de il Dottore sempre provocava reações ambivalentes no velho.
Não que ele fosse uma pessoa sentimental, longe disso. Mas ninguém se livra
assim tão facilmente de recordações de uma vida inteira, especialmente em uma
noite de fossa quando a única companhia é a de uma garrafa.
Para se animar um pouco, o velho ficou pensando em seu roque bem
sucedido. O velho era totalmente maníaco pelo “jogo dos reis”, como ele
gostava de dizer. Não é de se admirar que ele tivesse batizado a sua pequena
invenção com um nome retirado do xadrez.
Até que o nome escolhido foi bem apropriado. Pois o roque é uma jogada
especial que permite ao enxadrista encastelar seu rei atrás da torre. E era bem
isso que o velho estava fazendo: brincando de se esconder da Fábrica.
Era só uma questão de tempo até que alguém chegasse a algo como o roque.
E se havia alguém capaz disso, esse alguém era o velho. Ele era um homem
inteligente. Por esse motivo é ainda mais admirável que tenha sido tão ingênuo
a ponto de continuar usando o nome de Harold Habbot daquela forma.
Na noite que passou em claro no hotel Émile, talvez o velho tenha pensado
nessa e em outras besteiras que cometeu. E a menor delas não foi, com toda a
certeza, a ligação que fez do celular, para o homem que ele chamou Rogério e
que chamava a si próprio Fortunato. Aquela ligação havia selado seu destino.
Quando finalmente foi dormir já era quase dia claro. Restavam somente uns
dois ou três dedos na garrafa de uísque. Ele não deveria beber tanto, ainda mais
naquela idade e com seus problemas de saúde.
Havia, claro, hábitos bem mais perigosos.

Brancas avançam na quinta:


Consertando o que foi estragado pelo pai. Alguém encontra elogios.

O velho acordou tarde no dia seguinte. Ele sentia-se indisposto, a cabeça


pesada pelo uísque que havia bebido. Já passava das duas da tarde quando
decidiu se vestir e descer para o almoço.
Ao chegar ao térreo, assustou-se com a movimentação que encontrou no
saguão do Émile. Logo ficou sabendo que um desfile de moda seria realizado
no salão de convenções do hotel dentro de mais algumas horas.
O restaurante também estava cheio e o velho quase não conseguiu
encontrar uma mesa vaga. Mas ele não ficou sozinho por muito tempo.
“Posso lhe fazer companhia, chefão?” Disse a voz feminina em português
com um suave sotaque estrangeiro.
“Ora, Júlia!” O velho foi incapaz de disfarçar o espanto. “Mas que
surpresa!”
Júlia limitou-se a sorrir. Era muito nova, muito alta e muito bonita. A
mochila colorida, que ela carregava com displicência, fazia com que parecesse
ainda mais uma garotinha.
O velho fez um gesto com a mão, indicando a cadeira à sua frente. “Sente-
se, por favor, sente-se.”
Júlia obedeceu e sorriu novamente para ele. Era bonita sim, mas de um jeito
estranho, que incomodava. O rosto alongado e marmóreo parecia ter sido
esculpido em honra aos deuses da Ambiguidade. Havia um magnetismo
andrógino nas feições de Júlia, uma sugestão de que a fronteira entre os sexos
era de alguma forma transcendida naquela face. Pois era comum olhar para Júlia
e ver uma bela mulher em formação, mal saída da adolescência. E então ela
mexia a cabeça uma fração de centímetro ou então era a luz do ambiente que
mudava e presto! Lá se estava olhando para um rapaz magro e efeminado.
“Gostei do cabelo”, disse o velho, só para dizer algo. Os cabelos lisos e
negros realçavam a palidez da pele. Estavam tingidos de vermelho nas pontas,
um toque exótico. Eram compridos e ficavam caindo sobre o rosto de Júlia.
“Obrigada.”
“Onde está Kim?”
“Por aí.”
“Entendo.” Como o garçom se aproximasse, o velho pediu vinho para os
dois. Quando estavam novamente a sós, arriscou um gracejo. “Então, devo
supor por sua presença aqui que meu contrato está sendo renegociado?”
Júlia também sorriu, muito mais genuína. As duas covinhas que se formaram
em suas bochechas faziam uma linda combinação com a pinta logo acima dos
lábios.
“Ora, chefão, não vá me dizer que está com medo. O senhor sabe que é
como um pai para mim.”
Não era exatamente uma mentira. O velho conhecia Júlia e seu irmão desde
antes do nascimento dos dois.
“Pois muito bem”, disse ele, o sorriso forçado congelando no rosto. “E a
que devo atribuir o prazer de sua aparição? Ou será que não passa de uma mera
coincidência?”
“Como o senhor mesmo ensinou tão bem, nada acontece por acaso.
Digamos que estou aqui representando um interesse independente.”
O velho fechou o rosto, as mãos crispando-se sobre a toalha de mesa.
“Rogério?”
Como resposta, Júlia limitou-se a arquear as sobrancelhas.
“Como vocês me encontraram aqui?”
“Para ser sincera, não foi nem um pouco difícil.”
“O que você quer?” O tom do velho era ríspido, já totalmente despido de
qualquer tentativa de civilidade. Mas nesse momento o garçom chegava com o
vinho, que foi servido em silêncio.
“Podemos tratar disso depois. Vamos almoçar primeiro. Estou com uma
fome!” Júlia voltou a sorrir, um riso franco, convidativo. “Ouvi dizer que as
ostras daqui são ótimas, que tal começarmos por elas?”
CAPÍTULO 10 – CONDUTA

Passando por cima da cauda do tigre.


Céu acima, Lago abaixo. Assim o homem superior discrimina entre o alto e o baixo e
fortalece o pensamento do povo.
(I Ching – hexagrama 10)

As investigações do assassinato de Harold Habbot foram uma sucessão de


enganos, uma autêntica comédia de erros. E desde o início a imprensa teve uma
atuação fundamental para que fosse armado o circo e o picadeiro, com a polícia
no papel do palhaço.
Em Rio Santo, como em qualquer cidade com pretensões turísticas, crimes
praticados contra estrangeiros recebiam privilegiada atenção por parte das
autoridades e eminências locais. Especialmente quando se tratava de um crime
tão repulsivo para o turismo quanto o assassinato, ainda mais um cometido de
forma tão torpe. Só piorava tudo a vítima ser avançada em anos, um turista da
terceira idade. No mínimo uma péssima propaganda para a cidade.
Não ajudou em nada o fato de certos detalhes que a decência deveria ter
poupado acabarem vazando na imprensa. Foi um verdadeiro banquete para os
jornais sensacionalistas, com A Morte do Turista Alemão sendo servida em
suculentas porções diárias.
Como se não bastasse, repórteres e câmeras já estavam reunidos no Émile
antes mesmo que o crime pudesse ser descoberto. Isso graças ao lançamento da
coleção de outono da grife Famosa, que acontecia quando o corpo foi
encontrado.
E não parava por aí. Um mal entendido a respeito da identidade do morto,
que só pode ter começado como uma brincadeira de mau gosto, acabou
fazendo com que boa parte dos repórteres debandasse do desfile para se
aglomerar no saguão de entrada do hotel e interrogar a polícia que acabava de
chegar ao local do crime.
Talvez o interesse da imprensa fosse visto como um aborrecimento por
qualquer outro policial, mas não pelo delegado Silvio Fantini. Ele era o
encarregado da Homicídios na época. Pobre Fantini. O excessivo gosto pela luz
dos holofotes foi sua ruína. Isso e uma ou duas decisões realmente azaradas.
Uma das decisões tomadas pelo delegado Fantini acabou custando a vida de
um inocente. As consequências dessa segunda morte foram ainda mais
desproporcionais que as causadas pela morte do velho. E o que era para ser um
simples assassinato acabou se transformando, menos de uma semana depois,
em notícia no mundo todo.
Os acontecimentos tomaram um rumo imprevisível. Nada que deva
surpreender em demasia, sendo verdade que o simples bater das asas de uma
borboleta seja capaz de bem maiores proezas.
Sabe-se lá, portanto, que desenlaces inesperados ainda não surgiriam nesse
caso, não fosse pela oportuna aparição de Régis Vale.

Pretas avançam na primeira:


Conduta simples. Progresso sem culpa.

Ele subiu os degraus de mármore surrado da Delegacia de Homicídios. Era


um homem magro, de estatura mediana, a tez escura e os olhos brilhantes.
Estava enfiado em uma calça jeans desbotada e uma jaqueta ainda mais velha.
Por baixo da jaqueta vestia uma camiseta, onde era possível ler: VÁ AO TEATRO.
Ao policial que atendia na recepção, informou que desejava ter uma palavra
com o delegado. Falava numa voz baixa, os olhos fixos no chão.
“O delegado está ocupado. Do que se trata?”
Ele preferia tratar do assunto diretamente com o delegado, obrigado. Seria
possível ficar aguardando até que o delegado pudesse atendê-lo? Obrigado.
Quando percebeu que o homem parecia mesmo disposto a esperar, o
policial pegou o telefone e discou um ramal interno.
“Alô, doutor Fantini? Tem um sujeito aqui que está querendo conversar
com o senhor. Sim, eu disse que o senhor está ocupado, mas ele insiste em
esperar.” Depois de ouvir por algum tempo, o policial recolocou o fone no
gancho. O homem à sua frente continuava com os olhos pregados no chão. “O
delegado está muito ocupado e não poderá atendê-lo. Há algo mais que eu
possa fazer pelo senhor?”
O homem ficou por um momento em silêncio, com os lábios comprimidos.
Finalmente pareceu chegar a uma decisão. Ele disse algo.
“O que foi que o senhor falou? Fale mais alto.”
“É sobre esse assassinato do turista. No hotel Émile.”
“Sim. O que tem?”
“Eu quero confessar. Fui eu que matei o velho.”

Pretas avançam na segunda:


Atravessando um caminho plano e suave. A perseverança de um homem escuro traz boa
fortuna.

É claro que o delegado não atendeu o homem na hora. Aquele era o terceiro
que confessava a autoria do assassinato. E o caso mal completava uma semana.
E foi assim que o inspetor Teixeira, que estava de plantão no dia escolhido para
Régis Vale iniciar sua caminhada para o estrelato, acabou sendo designado para
colher o depoimento do homem dos jeans surrados.
O inspetor entrou mancando na sala de interrogatório. Amável, ele não foi.
Tampouco seria correto sugerir que tenha agido com hostilidade ou que a
qualquer momento tenha se excedido em seu papel de policial. Suas emoções
estavam sob firme controle.
O inspetor rapidamente levantou a ficha do homem, que poderia ser assim
resumida:
Nome: Reginaldo de Souza Neto.
Idade: 35 anos.
Profissão (1): ator. Afirmou estar participando dos ensaios de um grupo de
teatro. O grupo, ao que parece, não dispunha de muitos recursos, e a
remuneração dos atores seria feita somente na divisão da bilheteria. Ainda não
havia previsão para a estreia da montagem.
Profissão (2): michê. Para pagar o aluguel e as passagens de ônibus até o
local dos ensaios, afirmou se prostituir “ocasionalmente” no calçadão da praia
do Poeta, a poucas quadras do hotel Émile.
Segundo contou, Reginaldo estava fazendo ponto no calçadão quando foi
abordado por Harold Habbot. Ele foi descrito por Reginaldo como um senhor
de idade, estrangeiro, mas que falava bem o português. Foram direto para o
quarto no Émile, onde Habbot lhe ofereceu pó e uísque. Depois que haviam
bebido e cheirado bastante, Habbot lhe mostrou uma revista pornográfica,
dizendo que era “para servir de inspiração”. Depois retirou os apetrechos de
uma mala: o chicote, as algemas, o gigantesco pênis de plástico. O cinto,
Habbot retirou das próprias calças, o que fez com que caíssem abaixo dos
joelhos. Logo o velho estava inteiramente nu. Então usou o cinto para açoitar
Reginaldo, dizendo que era “para deixá-lo no estado de espírito adequado”.
Após cada cipoada do cinto, seguiram-se ameaças e insultos carregados de teor
racista e sexista. Com a cabeça cheia de pó e de dor, Reginaldo partiu com tudo
para cima do velho. Quando voltou a ter consciência de si, já havia se
transformado em um assassino.

Régis Vale, ou Reginaldo de Souza Neto, como se chamava na época,


repetiu a mesma história, quase sempre a mesma, diante das incansáveis
perguntas de Teixeira. As variações eram irrelevantes, e até conferiam maior
credibilidade ao relato, pois ninguém repete vez após vez a mesma história sem
alterar um detalhe ou outro. A memória pode ser bem traiçoeira.
O inspetor insistia mais em algumas perguntas que em outras:
“O que fez você vir até a polícia?”
“Eu não estava conseguindo dormir. Não durmo há sete dias.”
Teixeira deixou escapar um suspiro. “O hotel Émile é protegido por um
circuito interno de tevê, com câmeras que funcionam 24 horas por dia.”
“Sim, eu sei. O senhor me contou.”
“Não me interrompa. Esse circuito interno permite ver tudo o que acontece
nas dependências do hotel. Com a exceção dos quartos, naturalmente. Está
acompanhando?”
“O senhor disse para não interromper.”
“Não banque o engraçadinho comigo, ouviu? Pois bem, eu vou repetir a
pergunta. Responda essa pergunta, e eu digo que você é o assassino, que foi
você que deu cabo do velho. Combinado? Eu não ouvi.”
“Sim, senhor.”
“A pergunta é a seguinte: como você conseguiu passar pelo saguão do
Émile, pegar o elevador, atravessar o corredor do nono andar e entrar no
quarto 909, e tudo isso em companhia da vítima, e depois fazer o mesmo
trajeto na volta, dessa vez sozinho, sem ser filmado uma única vez pelas
câmeras do hotel?”
O inspetor pousou as mãos na mesa que o separava do homem à sua frente.
Não foi um gesto rude ou brusco, mas por um instante a atmosfera ficou
carregada de agressividade. O inspetor prosseguiu: “Você parece saber bastante
sobre o caso. Não há nada que não possa ser encontrado na Internet, não é
mesmo?”
“Eu não sei do que o senhor está falando.”
“Imagino que não deve ter sido moleza descobrir um detalhe ou dois. Você
está de parabéns.”
“Não é nada disso que o senhor está pensando.”
“Não faço ideia do que você esperava obter com isso, mas uma coisa deve
ser admitida.” Os olhos de Teixeira estavam cravados nos olhos do outro, uma
manifestação típica do humor dos predadores, que não admite contestação por
parte de seus alvos. “Até que você é bem convincente, ator.”
O inspetor levantou e fez um gesto inequívoco em direção à porta. “Foi um
ótimo espetáculo, obrigado. Agora dê o fora daqui e nos deixe trabalhar, está
bem?”
E foi assim que Régis Vale fez o que precisava fazer, dando um passo
definitivo para conquistar seus dias de glória e fama. Ele avançou para Teixeira,
disposto a derrubá-lo no chão.

Brancas avançam na terceira:


Um caolho consegue enxergar, um coxo consegue caminhar. Ele pisa na cauda do tigre. O
tigre morde o homem. Infortúnio. Assim age um guerreiro em benefício de seu grande príncipe.

O resto foi meio que inevitável. Reginaldo acabou sendo preso, e ainda
ganhou algumas escoriações e um olho roxo. Não haveria como Fantini não
ficar sabendo da história toda. No dia seguinte, Reginaldo de Souza Neto era
apresentado à imprensa como o assassino confesso de Harold Habbot.
Teixeira bem que tentou impedir. Ele não podia dizer que sabia quem havia
matado o velho sem contar detalhes que preferia manter em segredo. Por isso o
principal argumento utilizado pelo inspetor, e que, aliás, jamais chegou a ser
divulgado para a imprensa, era o de que, de acordo com as câmeras de
segurança no hotel Émile, Reginaldo não poderia ter cometido o crime.
O delegado Fantini, no entanto, descartou a objeção de Teixeira como sem
importância. As câmeras do hotel deviam ter ficado sem funcionar por alguns
momentos, justamente quando Reginaldo circulava pelas dependências do
Émile. Esta era a explicação mais provável. Uma simples falha técnica do
sistema de segurança do hotel.
Teixeira poderia ter dito que havia telefonado para o chefe da segurança do
Émile, Nestor, logo depois que Reginaldo foi preso. Nestor foi categórico ao
confirmar o que Teixeira já sabia: as câmeras funcionaram perfeitamente no dia
do crime. Não houve quedas de energia, picos de luz, falhas no funcionamento.
Naquele exato momento, a equipe de segurança do hotel deveria estar
repassando mais uma vez as gravações do dia fatídico, a pedido de Teixeira,
com o objetivo de encontrar alguém que correspondesse mesmo de leve à
descrição de Reginaldo de Souza Neto.
Seria um trabalho inútil, como Teixeira e o chefe da segurança bem sabiam.
Os dois já haviam assistido a cada segundo relevante daquelas gravações. As
câmeras registraram tudo o que havia para ser visto. Logo, era impossível que
Reginaldo tivesse cometido o crime, por mais desesperado que Fantini estivesse
para agarrar um culpado.
Teixeira poderia ter comentado sobre o telefonema para a segurança do
Émile, mas acabou desistindo. Nada do que Teixeira pudesse dizer ou fazer iria
alterar um simples fato. O delegado precisava de um bode expiatório. E eis que
um vinha parar em suas mãos, submisso como um cordeirinho.
O delegado Fantini, esse era só um pescoço marchando para a guilhotina. E
agora aparecia assim, do nada, a oportunidade de passar alguém à frente na fila.
Fantini fez o que era esperado.

Pretas avançam na quarta:


Ele pisa na cauda do tigre.

Quatro dias antes da prisão de Reginaldo, já existia uma considerável


pressão sobre a polícia para que o caso fosse resolvido com o máximo de
rapidez. Fosse outro o encarregado das investigações, talvez considerasse
aconselhável dar mais tempo aos seus homens para que trabalhassem, e assim
também deixar que os ânimos da imprensa esfriassem um pouco. Mas não
Silvio Fantini. Quando ele queria algo, geralmente tomava o caminho mais
curto. O delegado era um homem que não perdia tempo, isso não se podia
negar. Ele não havia precisado nem de uma semana para perder o controle do
caso. Só haviam se passado setenta e duas horas, e Fantini já estava para ferrar
solenemente com tudo.
“Eu quero que vocês investiguem cada sauna, cada boate gay, cada
inferninho nas cercanias do hotel Émile”, disse o delegado para a força policial
reunida no refeitório da Delegacia de Homicídios, naquele decisivo terceiro dia
das investigações. “Interroguem cada michê, cada garoto de programa, cada
traveco, qualquer um que possa ter avistado ou entrado em contato com a
vítima no dia do crime. Vamos apertar a bicharada. Alguém vai acabar abrindo
o bico.”
E assim foi feito. O que se seguiu foi uma verdadeira caça às bruxas no
submundo gay, resultando em dezenas de detenções, sem que nenhuma delas
estivesse sequer remotamente ligada à morte de Harold Habbot. Houve até
mesmo um caso de resistência à prisão, que acabou resultando em morte.
Foi durante a batida no Helena de Troia, afamada casa que ficava a duas
quadras do hotel Émile. Quando a polícia entrou no recinto, um dos rapazes do
Helena estava no meio de sua apresentação. Era um jovem atlético e esguio,
vestido como um dançarino dos anos 80. Seu corpo movia-se com graciosa
agilidade ao som da música. Em seu rosto, a maquiagem emprestava-lhe um ar
de astúcia feminina.
Como o rapaz continuasse dançando, um dos policiais avançou até o
minúsculo palco e gritou algo evidentemente ofensivo. A música cessou, mas o
jovem não parou de dançar. O policial esticou as mãos, com a clara intenção de
derrubar o jovem do palco.
Em seguida, algo ficou evidente para todos. Se como dançarino o rapaz
parecia ser talentoso e persistente, como praticante de artes marciais ele
alcançava um virtuosismo que beirava a genialidade.
Havia um mestre do kung fu à solta no salão da boate gay. Em um
movimento natural, seguindo o compasso de sua música imaginária, o rapaz
desferiu um chute certeiro no queixo do policial, que tombou desacordado no
chão. Com a perna erguida, ainda no mesmo movimento, deu uma inacreditável
pirueta e foi pousar com os pés sobre o peito de um segundo policial, que
estava próximo do palco. O homem nem teve tempo de registrar o que estava
acontecendo.
Os policiais desmaiados eram ambos inspetores da polícia civil. Eles
estavam acompanhados de outros dois policiais militares, que haviam
permanecido perto da porta. Faziam um casal, um negro alto e corpulento e
uma morena de rosto redondo, quase bonita demais para ser PM. Ao mesmo
tempo, o homem e a mulher sacaram suas armas.
O homem foi atingido no nariz pela bandeja que um garçom havia acabado
de deixar cair. O lançamento feito pelo jovem dançarino shaolin foi preciso e
gracioso. Nem bem o homem tombava, jorrando sangue pelo nariz, e a mulher
sentia a arma lhe ser tomada das mãos, enquanto uma sonora bofetada a
derrubava.
E o rapaz já alcançava a porta, prestes a fazer uma saída triunfal. Mas
hesitou por um instante, nada mais que um breve instante. E se perdeu. Uma
bala acertou-o pelas costas, rompendo pano e pele, estraçalhando vértebras,
rasgando vísceras, alojando-se no coração. Já estava morto quando beijou a
poeira da calçada, com o corpo metade para dentro, metade para fora da boate.

Pretas avançam na quinta:


Conduta resoluta. Perseverança com percepção do perigo.

Dificilmente alguém teria acreditado que essa história realmente aconteceu,


não fosse por um detalhe. Um dos frequentadores do Helena de Troia filmou a
cena toda com o seu celular.
Foi a mulher quem atirou. Era a única dos policiais em condições de fazê-lo.
Os dois inspetores da civil estavam desacordados e o PM ainda se contorcia no
chão do salão, com as mãos no rosto. Ela havia sido atingida com menos
severidade que seus colegas, talvez por um senso de cavalheirismo do jovem
dançarino. Isso deu à mulher condições de se recuperar antes dos outros e
apanhar sua arma, que estava caída perto. Mesmo atordoada, a policial de rosto
bonito não desperdiçou a oportunidade de um segundo que o rapaz lhe
concedeu.
Quanto à gravação da luta, foi parar na Internet e ganhou o mundo. Uma
verdadeira reação em cadeia. Manifestações de chacota e de repúdio à
incompetência da polícia brasileira circularam via e-mail como fogo no capim
seco, e acabaram alcançando os noticiários de tevê em diversos países. Um
rapper americano chegou a lançar uma música sobre o incidente, Dead on the
dance floor. A música foi um sucesso nas pistas de dança do mundo todo e
acabou valendo ao cantor uma importante premiação.
Enquanto isso, no Brasil a temperatura só fazia aumentar. Ativistas gays,
intelectuais e artistas encontraram no episódio toda a munição que precisavam
para iniciar uma gigantesca onda de protestos. Rapidamente foram organizadas
passeatas nas principais cidades brasileiras, com a participação de milhares e
milhares de pessoas. O Brasil havia se tornado, de um dia para o outro, na
pátria mãe do Orgulho Gay.
Fantini bem que tentou sair dessa sinuca de bico. A primeira e óbvia
tentativa foi ligar o rapaz baleado ao assassinato do turista alemão ou, na
impossibilidade, a qualquer outro tipo de atividade criminosa. Esta não é uma
prática incomum aos maus policiais, a de transformar suas vítimas em
criminosos. Dessa vez, porém, não deu certo.
Ramon Gutierrez, o jovem dançarino morto, possuía uma ficha
irrepreensível. Ainda pior: era um atleta. Aos 23 anos, já se sagrara por duas
vezes campeão latino-americano de full-contact. Filho único de mãe viúva, era
ainda arrimo de família. Trabalhava no Helena de Troia para custear o seu
treinamento e ajudar a mãe com as despesas de casa. Ao que tudo indicava,
sequer fazia programas. Limitava-se ao trabalho como dançarino, que
desempenhava com grande categoria. No dia da morte de Harold Habbot, três
dias antes de sua própria, Ramon disputava um torneio de artes marciais em
outra cidade, a centenas de quilômetros dali. Ele venceu o torneio.
Uma nova reviravolta no caso aconteceu quando o consulado alemão se
pronunciou. De acordo com eles, Harold Habbot havia sido declarado
oficialmente morto há mais de dez anos. O alemão havia desaparecido sem
deixar vestígios após uma viagem à Itália em março de 1987.
A essa altura, a situação já havia virado uma bela de uma bomba-relógio,
prestes a explodir no colo do delegado Silvio Fantini. O problema é que Fantini
não era o único que perigava sair chamuscado. O momento era mais do que
propício para a confissão de Reginaldo.
Não que houvesse como salvar Fantini. O delegado já estava além de
qualquer possibilidade de redenção. Menos de um mês após a morte de
Habbot, Fantini discretamente caiu. Foi transferido para uma delegacia de
menor importância nos limites da cidade. Para assumir o seu lugar, foi
nomeado o delegado Isaías Santelmo.
Quanto a Reginaldo, pode-se dizer que pagou o preço para se transformar
em uma estrela em ascensão. Amargou uns meses de cana dura, comeu o pão
que o diabo amassou. Mas dentro em breve já estava solto, com um destino
promissor pela frente. A tanto pode a ciência do Direito.
Por último, mas não menos importante, o inspetor Alberto Teixeira. Seria
de se esperar que os sentimentos de Teixeira a respeito do caso Harold Habbot
se abrandassem com o tempo. Afinal, ninguém em sã consciência fica
remoendo amargas derrotas e humilhantes provações.
Dois anos após a morte de Habbot, no entanto, bastou uma fagulha para
reacender o vulcão de ódio e frustração que Teixeira carregava no peito. O
inspetor não era do tipo que perdoava e esquecia, especialmente quando se
tratava do pior tipo de ofensa que um homem como ele poderia sofrer. Cada
pequena lembrança ardia na carne do inspetor, um fogo que parecia querer
queimar por toda a eternidade.
E pensar que tudo começou de forma tão rotineira. Só mais um homicídio
em uma longa lista de mortes investigadas pelo inspetor. Apenas mais um
trabalho em uma noite de tédio e de chuva.
CAPÍTULO 52 – IMOBILIDADE

Mantendo as costas imóveis até não mais sentir o corpo.


Montanhas uma perto da outra: a imagem da Imobilidade. Assim o homem superior não
permite que seus pensamentos vão além de sua situação.
(I Ching – hexagrama 52)

Foi um dia parado. Um daqueles dias com cara de ressaca, com o céu feio,
cinzento, coberto de nuvens, derramando chuva fina e vento frio, chamando
vendaval. Um dia em que ninguém, se pudesse, sairia de casa.
Para Teixeira, o tempo estava perfeito. Era, afinal, seu dia de plantão. Ele
acendeu um cigarro e ficou exalando a fumaça com gosto.
O motivo para o inspetor pensar assim não era desprovido de lógica, e
poderia até ser considerado humanitário. Quanto pior o tempo, menos gente
nas ruas. Quanto menos gente, menos homicídios.
O trabalho como policial acabava levando uma pessoa a ver o mundo de
forma bastante peculiar. Isso era especialmente verdadeiro quando se tratava de
um policial dedicado como era Teixeira. E trabalho não faltava. Era
impressionante como apenas uma pequena parcela dos casos chegava a ser
solucionada. Não menos surpreendente era o quanto ele ainda se importava
com isso.
Tanto que, como em outras vezes durante plantões parados como aquele, o
inspetor estava vasculhando as pastas de velhos casos ainda não resolvidos, que
provavelmente nunca o seriam. Mas Teixeira não desistia facilmente. Quem
sabe se daquela vez, na enésima leitura de um relatório ou depoimento, talvez
algum novo fator aparecesse. Algum detalhe, algo sem aparente importância,
pacientemente aguardando até que lhe fosse dada a devida atenção.
Na opinião do inspetor Teixeira, tudo era uma questão de fazer as conexões
corretas entre os acontecimentos. “Tudo acontece por meio de relações de
causa e efeito”, anotou certa vez em um dos pequenos cadernos espiralados que
ele usava para todo tipo de finalidade, desde a lista da feira até detalhes de
alguma investigação ou mesmo pensamentos íntimos e reflexões. “Nada
acontece por acaso.”
Era sua crença inabalável que a investigação policial deveria ser a análise de
cada evidência à luz de suas possíveis causas e prováveis consequências. Isso
equivale a dizer que cada pedaço de informação, durante a investigação de um
crime, deveria ser encaixado no lugar certo do mosaico. A investigação policial,
de certa forma, era como o estudo de uma língua antiga e já esquecida, onde se
decifravam primeiro os caracteres e as palavras, para depois chegar às sentenças
e, finalmente, a uma gramática.
A ideia o agradou. Ele tirou o caderno espiralado do bolso interno do
casaco, abriu na primeira página em branco, anotou a data e a hora. Em seguida
escreveu, com sua letra feia e miúda, mas perfeitamente legível:

A investigação criminal proposta como uma


abordagem linguística. Onde “Crime” é um
verbo, a ação: roubar, matar, sequestrar.
“Criminificante” é o sujeito, aquele que
comete o crime: o ladrão, o assassino, o
estuprador. “Criminificado” é o objeto do
crime, aquele que lhe sofre a ação: o
dinheiro, o carro, a mulher, a vida.

“Elementar, meu querido diário: a culpa é do salário”, disse a voz em falsete,


parodiando um timbre feminino. Teixeira ergueu a cabeça num sobressalto. Ele
havia ficado tão absorto em sua escrita que nem percebeu que alguém havia
entrado na sala e o observava há algum tempo.
“Olá, Almeida.”
“Brincando de Sherlock de novo, hem?” Almeida deu uma piscadela e se
aproximou da mesa de Teixeira, como se quisesse ler o que o outro havia
escrito. “E aí, desvendou algum grande mistério hoje?”
“Meta-se com sua vida, Almeida”, disse Teixeira, fechando a cara e o
caderno. “O que você quer?”
“Eu? Eu não quero nada. O delegado é que quer nós dois em uma diligência
agorinha mesmo. Parece que faturaram um figurão lá no hotel Émile.”

Brancas avançam na primeira:


Mantendo os dedões parados. Sem culpa. É propício continuar perseverante.

Não foi uma cena fácil de esquecer, a que os homens da polícia encontraram
ao cruzar a porta do quarto 909. O homicídio raramente é suave, mas havia
algo de especialmente repulsivo no modo como Harold Habbot teve seu
encontro com a morte.
O homem foi encontrado nu, deitado de bruços na cama. Aparentava
setenta anos ou mais, os cabelos totalmente brancos, o corpo velho e enrugado.
Suas mãos foram algemadas à cabeceira. As costas e a bunda branca e flácida
estavam marcadas por finas tiras vermelhas, como se a vítima tivesse sido
açoitada com força e repetidas vezes. Em alguns lugares havia pequenos pontos
escuros de sangue coagulado, onde a pele tinha se rompido.
O velho fora estrangulado e sufocado. Duas mortes pelo preço de uma.
Havia um cinto enrolado em seu pescoço. Era um cinto de couro preto,
adornado com tachas de metal prateado. Único utensílio de vestimenta do
homem morto, o cinto lhe conferia uma desdenhosa indignidade final.
Projetando-se da boca do cadáver, via-se a parte posterior de um imenso pênis
artificial. Pelo diâmetro da coisa era possível adivinhar-lhe o tamanho, bem
como inferir a sua participação na morte do velho. Pois tudo indicava que o
consolo havia penetrado profundamente goela abaixo, a ponto de obstruir a
passagem do ar pela garganta.
Na avaliação inicial do corpo, a morte foi estimada como tendo ocorrido
entre uma e duas horas antes da chegada dos policiais.

Brancas avançam na segunda:


Mantendo as panturrilhas paradas. Ele não pode resgatar aquele que o segue. Seu coração
não está feliz.

Ao se moverem pela cena do crime, os homens da polícia pareciam reagir à


bizarra atmosfera. As investigações foram conduzidas de maneira tensa, quase
ritual. De vez em quando alguém fazia um comentário seco, mas de modo geral
reinava o silêncio.
O delegado Fantini parecia o mais tenso de todos. Constantemente passava
a mão pelos cabelos castanhos salpicados de prateado. A um dado momento,
deixou escapar entre dentes:
“Bicha nojenta.”
Havia roupas e objetos espalhados por todo o quarto. Aparentemente, os
pertences do morto foram saqueados. O aparelho telefônico, com o fone fora
do gancho, estava caído no chão. Perto da cama, a polícia encontrou um
passaporte que identificava a vítima como Harold Habbot, 74 anos, natural de
Dresden, Alemanha. Não foram encontrados outros documentos ou valores de
qualquer espécie.
Ao lado do passaporte, já debaixo da cama, estava um pequeno chicote de
couro preto, adornado com enfeites prateados. O chicote formava um belo par
com o cinto que estava enrolado no pescoço do morto.
Duas malas estavam jogadas no chão, uma aberta e a outra fechada. Na mala
que estava aberta, a maior, ainda permaneciam algumas poucas roupas e objetos
pessoais em completa desordem. A outra era uma maleta preta de executivo.
Ela foi aberta com facilidade, pois não estava trancada. Com a exceção de um
livro e uma revista, a maleta estava vazia.
O livro era uma edição estrangeira de bolso. Faust: Der Tragoedie zweiter Teil,
dizia o título na capa. O livro parecia novo, praticamente sem uso, mas logo nas
primeiras páginas o inspetor Teixeira encontrou um trecho sublinhado a caneta:

Die Kunst ist lang; Und kurz ist unser Leben.

O inspetor copiou a frase em seu inseparável caderninho em espiral. Alguns


dias depois, quando esteve na universidade onde ainda estudava, passou pelo
Departamento de Letras para conseguir uma tradução. Talvez o esforço tenha
valido a pena:

A arte é longa; e curta é a nossa vida.

Pretas avançam na terceira:


Mantendo os quadris parados. Imobilizando o osso sacro. É perigoso. O coração sufoca.

A revista que estava junto com o livro na maleta preta também era
importada, e trazia o título Wild At Ass impresso em letras garrafais, recheadas
de estrelas multicoloridas. A foto que ilustrava a capa mostrava dois homens
musculosos em uma arrojada cena de sexo.
Muito embora não pudesse ser considerado um especialista em pornografia
homossexual, o inspetor Teixeira imaginou que aquela revista seria considerada
agressiva também pela maioria dos gays. Quase não havia texto, e o pouco que
havia estava em inglês. Mas o que chamava a atenção mesmo eram as fotos.
Eram sequências coloridas e bastante realistas, com cenas de espancamentos,
torturas e outras práticas menos ortodoxas de sadomasoquismo. Além, é claro,
de closes da penetração dos objetos mais desproporcionais retos masculinos
adentro.
Em comparação com as fotos na revista, o corpo na cama parecia ainda
mais obsceno. Ele era um velho e estava morto. Duas palavras que, normalmente,
não estavam associadas ao sexo.
Com um misto de repugnância e mórbida curiosidade, o inspetor Teixeira
aproximou-se do cadáver. No ponto onde as pernas do velho se ligavam ao
tronco havia uma delatora mancha marrom, que havia se espalhado pelos finos
lençóis do hotel Émile. Como resultado do relaxamento final do esfíncter,
provocado pelo estrangulamento, o velho havia evacuado na cama.
Na base da coluna, bem na altura do cóccix, Teixeira descobriu um
ferimento diferente. Era um corte arredondado na pele, pouco menor que uma
moeda de um centavo. O inspetor ficou imaginando o que poderia ter
provocado aquela curiosa laceração.
Utilizando a ponta dos dedos enluvados, o inspetor entreabriu as nádegas
do homem morto. Ao contemplar a flor sangrenta e intumescida que era o ânus
do falecido Harold Habbot, Teixeira não teve dúvidas de que a vítima fora
recente e severamente sodomizada.

Brancas avançam na quarta:


Mantendo o tronco parado. Sem culpa.

“Encontrou alguma pista importante no fiofó do defunto, Sherlock?”


Teixeira não pôde evitar um sobressalto ao escutar a voz esganiçada pelo
deboche bem perto de seu ouvido. Era a segunda vez que Almeida o
surpreendia. Dizem que não há duas sem três.
Um dos olhos do inspetor Almeida rebateu serenamente o olhar de ódio
lançado por seu colega. O outro olho, no entanto, parecia fitar Teixeira
obliquamente, de maneira disfarçada enquanto apontava ostensivamente para o
teto. A boca de Almeida estava entreaberta, promessa de escárnio que ainda
não era sequer sorriso, somente uma boca aberta mostrando os dentes
estragados.
“Vai precisar de uma lupa?”
“Me deixe, Almeida. Vá procurar o que fazer.”
A voz de Teixeira, ríspida, acabou soando mais alto do que ele esperava. O
delegado Fantini olhou na direção dos dois. Naquele momento o delegado
encontrava-se diante da varanda, conversando com o perito do instituto
médico, que já havia examinado o morto. O peso do olhar de Fantini recaiu
sobre o inspetor Almeida. Teixeira ainda era o favoritinho do delegado.
Almeida murchou na hora. Pareceu então se lembrar de algo importante e
foi conversar com os dois policiais militares que aguardavam perto da porta do
quarto.
Teixeira voltou ao trabalho. Inspecionou as algemas que prendiam o
homem à cama. Eram do tipo que, como o cinto e o chicote, era possível
encontrar em qualquer sex shop. Enrolado na corrente de uma das algemas, o
inspetor notou um longo fio de cabelo preto, com um curioso matiz de
vermelho em uma das pontas.
Só então Teixeira se preocupou em examinar a face do homem morto,
dando a volta na cama para poder observar melhor. Ele comparou a face
cadavérica à foto no passaporte. A cara do velho ostentava os paroxismos da
morte violenta. Teixeira julgou enxergar dor e um pânico gelado naquele rosto.
Havia também um sentimento de ultraje tão profundo que era quase palpável.
CAPÍTULO 38 – OPOSIÇÃO

Em pequenos assuntos, boa fortuna.


Acima, o fogo; abaixo, o lago. A imagem da Oposição. Assim, em meio à concordância geral,
o homem superior mantém sua individualidade.
(I Ching – hexagrama 38)

Teixeira havia acabado de ser promovido a inspetor de terceira classe


quando ocorreu o incidente no quarto 909. A mudança da classe quatro para
três chegou um bom par de anos antes do que seria o esperado, por
recomendação expressa do delegado Fantini. Financeiramente, a promoção
ajudou a concretizar alguns dos modestos sonhos de consumo do inspetor, tais
como um moderno aparelho de som com capacidade praticamente ilimitada de
armazenamento de músicas. Mas não facilitou sua vida.
Teixeira já não era muito popular entre os colegas, e após a promoção
passou a ser ainda mais segregado. Os que estavam no mesmo patamar que ele
sentiram-se preteridos. Outros, mais antigos, encaravam com desconfiança e
despeito a especial deferência do delegado a um policial praticamente novato na
casa. Para piorar, a promoção foi merecida.
Alguns meses antes uma senhora da alta sociedade havia sido encontrada
morta em um condomínio no Fortim, um dos mais nobres bairros de Rio
Santo. A causa da morte foi um traumatismo craniano, ocasionado quando a
mulher foi empurrada de encontro a uma pesada mesa de mármore. Como ela e
o marido haviam tido violenta discussão na noite anterior, segundo o
testemunho de vizinhos e indícios espalhados pelo próprio apartamento, o
marido tornou-se o principal suspeito. O sujeito era um figurão, um eminente
membro da Câmara do Comércio. Disse para a polícia que após a briga saiu de
casa e passou a noite no escritório de uma de suas lojas. Infelizmente, não pôde
indicar nenhuma testemunha que corroborasse a sua versão.
Como o casal morava só, ninguém podia dizer o que realmente havia
acontecido. Um caso melindroso e delicado, envolvendo gente de muito
dinheiro e prestígio. E a imprensa fez o maior alarido, recheando o caso com
detalhes dramáticos e muita imaginação.
Um incidente menor, sem aparente importância, levou Teixeira a cismar
com o zelador do condomínio, que morava em um cubículo no mesmo prédio
junto com a mulher e uma filha pequena. Ao ser interrogado por Teixeira, que
ficou encarregado de tomar o depoimento dos funcionários do prédio, o
homem cometeu um mero ato falho. Em um dado momento, ao se referir à
mulher morta, chamou-a de coruja.
Isso bastou para levantar as suspeitas do inspetor. Ele apertou o zelador,
que acabou abrindo o bico. O interfone de sua casa havia tocado no meio da
noite. Era a futura defunta, exigindo que o zelador subisse ao seu apartamento
naquele exato instante. Quando o homem chegou lá, encontrou a mulher
sozinha e muito nervosa.
O marido realmente havia saído de casa logo após a discussão. Teixeira
acabou descobrindo eventualmente que o sujeito passou a noite com uma
amante, cuja descoberta, aliás, foi o que ocasionou a briga com esposa. A
amante por sua vez também era esposa de alguém, um senador, na ocasião fora
da cidade no exercício de seu nobre e antigo ofício. Esses detalhes, todavia,
jamais vieram a público, registrados que foram tão somente no pequeno
caderno de anotações do inspetor.
Quanto ao zelador, foi acordado de madrugada para limpar a bagunça que a
briga do casal havia provocado. Segundo contou depois, foi recebido
praticamente aos berros pela mulher, que queria que ele varresse a sala do
apartamento, palco que foi da maior parte do estrago. O conflito matrimonial
ocorrera no melhor estilo das telenovelas, com peças da decoração sendo
arremessadas de um lado para o outro. Dentre os objetos que foram
estilhaçados, destacava-se uma grande cabeça de coruja em porcelana, peça cara
e de gosto duvidoso. Foi isso o que fez com que Teixeira primeiro desconfiasse
de que o zelador havia estado no apartamento após a escaramuça do casal, coisa
que o homem não se dera ao trabalho de mencionar até que foi apertado pelo
inspetor.
Quando afinal resolveu contar tudo, disse que se recusou fazer o serviço,
pois isso não era tarefa sua. Que suas obrigações se restringiam às áreas
externas do prédio, e que não era culpa dele se a empregada dormia fora, a
dondoca nervosinha que esperasse até o dia seguinte. Que ficou ofendido com
o modo ríspido com que foi tratado, se a mulher tivesse falado de outra forma
ele também teria agido diferente, afinal estava ali para servir. Que sua recusa
pareceu enfurecer de vez a dona do apartamento, que passou a agredi-lo e
humilhá-lo como só os ricos sabem fazer. Que chegou a avançar para cima
dele, totalmente destemperada, e que num gesto de defesa ele a havia repelido
com os braços. Que a mulher tropeçou e bateu com a cabeça na quina da mesa,
e pronto.
Se foi exatamente assim ou não que o fato se deu, já não importava. O caso
estava resolvido. E raras eram as ocasiões em que um crime de morte podia ser
desvendado de forma tão conveniente. Fantini ficou satisfeitíssimo. Concedeu
inúmeras entrevistas e posou para fotos ao lado do criminoso, como se
estivesse encetando naquele instante a captura de um perigoso celerado.
Assim como a vida extraconjugal do marido da vítima, o nome de Teixeira
nunca chegou a ser citado nos jornais. Mas o delegado Fantini sabia se mostrar
generoso e reconhecido na mesma proporção de sua vaidade. Daí a promoção
do inspetor em tempo recorde.
Teixeira não havia ficado nem um pouco feliz com a solução do caso,
promoção e tudo. O inspetor tendia a simpatizar com os fracos e oprimidos e
doía-lhe na consciência a prisão do zelador, a mulher e a filhinha na rua da
amargura por conta de um acidente besta, uma fatalidade causada
principalmente pela prepotência dos poderosos. Não o incomodava tanto o
despeito dos colegas, porém o delegado tratando-o com deferência era uma
aporrinhação a mais.
Mas a lua-de-mel de Fantini com Teixeira, para felicidade geral dos
maledicentes, não estava destinada a durar muito.
Pretas avançam na primeira:
Se você perde seu cavalo, não corra atrás dele; ele voltará por sua própria vontade. Diante de
pessoas más, acautele-se contra enganos.

“Bicha nojenta.”
Neste sucinto comentário, o delegado Fantini havia sintetizado a sua opinião
sobre o caso do 909.
Os homens da perícia já haviam acabado de vasculhar o quarto em busca de
impressões digitais. Foi uma busca fadada ao fracasso: alguém tivera o cuidado
de limpar tudo com alguma flanela ou pedaço de pano. Não foram encontradas
nem mesmo as impressões da própria vítima.
Fantini assistia a tudo com um profundo ar de enfado e desgosto. A
homofobia, um fenômeno comum entre policiais, era bastante pronunciada no
delegado. Esse pequeno detalhe, que ninguém poderia prever, acabou gerando
uma guinada e tanto nos acontecimentos. Muito trabalho e planejamento foram
desperdiçados pela obtusidade de Fantini. O delegado não era muito de
sutilezas. Enfiou na cabeça desde o início que aquele era um crime de
homossexuais, uma bicha nojenta que matou a outra. Foi por conta dessa ideia
preconcebida do delegado Fantini, só para dizer o mínimo, que um jovem
dançarino foi morto a tiros, e um jovem ator conheceu o inferno antes da fama.
Teixeira, sem ter o que fazer, foi até a espaçosa varanda do quarto. Só a
varanda já era quase a metade do apartamento do inspetor. Situado no
penúltimo andar do hotel Émile, o quarto 909 oferecia uma bela visão da orla
de Rio Santo, praticamente de frente para a praia do Poeta. Teixeira fez correr a
porta de vidro e avançou para a varanda, onde se deixou ficar por alguns
instantes, organizando os pensamentos.
A maleta de executivo, dentre outras coisas, intrigava Teixeira. A outra mala
fora abandonada de qualquer jeito, revirada e saqueada. Por que então se dar ao
trabalho de acomodar tão cuidadosamente uma edição no original em alemão
do Fausto de Goethe e uma revista pornô, depois de aliviar a maleta do restante
de seu conteúdo?
E que conteúdo seria esse, afinal? A maleta era bem do tipo que se usava
para carregar documentos importantes, talvez um computador portátil ou
mesmo dinheiro vivo. A hipótese das drogas também não podia ser descartada.
Alguém da perícia descobriu diminutos grãos brancos no tampão da mesa de
vidro, já devidamente recolhidos para análise.
Foram encontrados também dois pequenos frascos de vidro em meio à
bagunça, ambos já quase vazios. A julgar pelos rótulos, um dos frascos
continha clorofórmio e o outro trazia cloridrato de cetamina, droga utilizada
como anestésico para cavalos, mas que também era bastante consumida pelos
jovens. Essa descoberta parecia reforçar a suspeita de que o crime estivesse
relacionado com drogas.
Se a morte do velho era o objetivo, por que exatamente dessa maneira? A
tortura sexual não era incomum em casos de execução.
Se o roubo era o motor do crime, no entanto, qual o sentido de chicotear e
enrabar o velho até a morte?
Essas e outras eram as muitas perguntas ainda sem resposta.
De volta ao quarto Teixeira quase chutou o telefone, que continuava caído
no chão. Graças ao aparelho, o corpo foi descoberto pouco depois de o crime
ser cometido. No momento em que o fone saiu do gancho, uma luzinha
começou a piscar no painel de chamadas do hotel. Um atendente na recepção
respondeu à chamada. Mas não havia ninguém do outro lado da linha. Depois
que o atendente desligou, percebeu que a extensão do 909 continuava
chamando. Logo uma camareira foi enviada ao quarto para verificar o
problema. Como ninguém respondeu à batida na porta, a camareira usou a sua
chave-mestra para entrar. No segundo depoimento que prestou à polícia,
depois que veio à tona a questão das câmeras de segurança, a camareira afirmou
categoricamente que encontrou a porta do 909 trancada. Em nenhum lugar do
quarto foi encontrada a chave.
Tomado por uma súbita urgência, Teixeira procurou o delegado:
“Com licença, doutor.”
“Pode falar, Teixeira.”
“Se o senhor não se importa, eu gostaria de verificar a listagem dos
hóspedes.”
“E para quê você quer fazer isso, posso saber?”
“Bem, talvez alguém tenha visto ou ouvido algo. E também...”
“E também o quê?”
“Para dizer a verdade, doutor, me ocorreu que o criminoso talvez esteja
ainda no hotel, hospedado em um dos quartos.”
“E baseado em quê você chegou a essa conclusão?”
“Não é bem uma conclusão. Apenas um palpite.”
“E com base nesse palpite é que você pretende interrogar os hóspedes?
Você tem noção do tipo de pessoa que se hospeda no Émile?”
“Sim, creio que sim.”
“Então pare de dizer tolices, está bem? Nem está parecendo você, Teixeira.”
“Não estou entendendo.”
“É claro que quem fez isso”, disse Fantini e apontou para o cadáver que no
momento era libertado das algemas que o prendiam à cama. “Não se hospedou
aqui. Vá por mim, nós vamos encontrar esse sujeitinho fazendo ponto na praia
do Poeta, ou então em alguma sauna gay.”

Pretas avançam na segunda:


Alguém encontra seu senhor em uma rua estreita. Sem culpa.

“Duvido muito. Não pode ter sido desse jeito.”


Talvez Teixeira não estivesse levando em consideração a homofobia latente
de Fantini, que o tornava mais suscetível ao apelo emocional da cena. Talvez o
tom condescendente que o delegado usou para falar com ele tivesse ido um
pouco além do que o inspetor podia suportar sem revidar. O fato é que acabou
colocando mais agressividade na voz do que deveria.
Por um momento Fantini ficou sem reação, olhando abismado para
Teixeira. O inspetor fazia um gesto com a mão, abrangendo o quarto repleto de
policiais onde os dois estavam.
“Tudo está muito... exagerado. Não teria acontecido assim se fosse
realmente o caso de um michê que matou seu cliente homossexual. A cena toda
foi montada.”
“Teixeira, o que você está dizendo?”
“Tem informação demais nessa cena. O chicote, o vibrador, as algemas...
tudo está arranjadinho demais. Até essas roupas no chão.”
“O que é que tem as roupas, Teixeira?” Havia uma nota sombria na voz de
Fantini, mas o inspetor pareceu não perceber.
“É só olhar. Tem roupa espalhada pelo quarto inteiro. Como se alguém
quisesse dar a impressão de que a mala foi vasculhada às pressas. Só que acabou
exagerando na encenação.”
O delegado correu com um rápido olhar os homens presentes, todos já
acompanhando atentamente a conversa. Fantini estava dando corda para
Teixeira se enforcar.
“E o que mais, Teixeira? Houve mais algum detalhe que chamou sua
atenção?”
O inspetor não se fez de rogado. “Essa maleta, por exemplo. Tenho para
mim que a morte está relacionada com o que havia dentro dessa mala.”
“Ora, vejam só.” Fantini exibiu os dentes, mais uma promessa de mordida
que propriamente um sorriso. O delegado estava decidido a por Teixeira no seu
lugar. Era nisso que dava ficar dando confiança a subalterno. “Esta foi
realmente uma observação muito sagaz, Teixeira. Porque a maleta parece ser do
tamanho exato para guardar o chicote, o vibrador e as algemas, que você tão
habilmente acabou de mencionar.”
Foi a vez de Teixeira ficar parado por um segundo, pego de surpresa. Ele
não havia considerado essa possibilidade. Mas logo o inspetor reagiu. “Isso é só
mais um despiste, não percebe?”
“Acho que é você que não está percebendo.”
“Não foi um garoto de programa que matou o velho. Tem mais coisa por
trás disso, doutor.” Teixeira avançou um passo na direção da cama. “Sou capaz
até de apostar que esse homem não era nem homossexual.”
“Assim falou o especialista.” Fantini agora sorria abertamente. Era um riso
impregnado de sarcasmo.
“Não estou entendendo.”
“Bom, eu não sei dizer quem é veado e quem não é. Ainda mais depois de
morto. Mas se você está falando...” Fantini ergueu as mãos para cima e fez um
gesto cômico, um convite do chefe para que os outros policiais rissem.
“Doutor Fantini, eu não estou entendendo”, repetiu Teixeira. Havia uma
nova conotação em sua voz. Ele mirava diretamente o olhar do delegado. “Se o
senhor está querendo me dizer alguma coisa, fale claramente.”

Pretas avançam na quarta:


Isolado pela oposição, alguém encontra seu semelhante, com quem pode se associar de boa fé.
Apesar do perigo, sem culpa.

O clima poderia ter esquentado ainda mais, se esse não fosse o momento
escolhido pelo chefe da segurança do Émile para entrar em cena. Nestor era um
homem parrudo, com mais músculos do que banha, apesar de já ter passado
bastante dos cinquenta anos. Policial militar reformado, soube fazer o seu
caminho fora da corporação e atualmente chefiava a segurança de um dos
melhores hotéis da cidade. Quando a polícia chegou ao Émile, Nestor estava a
postos na recepção. Assim ficou conhecendo o delegado Fantini e foi por isso
que não perdeu tempo ao se dirigir diretamente a ele. Seu tom de voz era
respeitoso sem ser subserviente, mas alguma nota trêmula denunciava que o
homem estava menos calmo do que queria aparentar:
“Acho que o senhor vai gostar de dar uma olhada nas gravações.”
Intimamente aliviado pela interrupção, Fantini tentou demonstrar
aborrecimento: “Gravações? Que gravações?”
“Das câmeras de segurança”, respondeu Nestor. “Como eu expliquei
quando os senhores chegaram, nós temos uma câmera no corredor de cada
andar e mais cinco no saguão da recepção. Sem contar uma em cada elevador.
Nós temos câmeras em todas as partes do hotel. Menos, é claro, dentro dos
quartos.”
O chefe da segurança fez uma pausa para soltar um suspiro.
“Acabamos agora mesmo de assistir as gravações da câmera do nono andar.
Por isso vim falar diretamente com o senhor.”
“É mesmo?” Fantini lançou um olhar triunfante para Teixeira. “Então vocês
filmaram o camarada que cometeu o crime.”
“Na verdade, não.”
“O quê? Como assim?”
“Eu também estranhei. Por isso pensei que o senhor iria achar interessante
dar uma olhada nas gravações.”
A exasperação de Fantini era bem real agora. “E o que tem de tão
interessante nessas benditas gravações?”
A expressão de Nestor não se alterou. Mas sua voz saiu mais pausada do
que antes, cuidadosa. “De acordo com as gravações não houve crime, porque
não houve corpo.”
“O que você está dizendo? Isto não faz sentido.”
“Quando o corpo foi descoberto, o quarto tinha que estar vazio. E o morto
não pode estar morto, porque saiu bem vivo do quarto um pouco antes da
descoberta do corpo.”
“Mas o que significa isto?”
“Eu estava esperando que o senhor talvez pudesse explicar. Confesso que
eu não consegui entender nada.”

Brancas avançam na quinta:


O remorso desaparece. O companheiro rasga as faixas que o amordaçam. Se alguém vai até
ele, como isso poderia ser um erro?
Enquanto o delegado e o chefe da segurança conversavam, Teixeira afastou-
se discretamente e foi para perto da cama, onde um técnico da perícia
aguardava a autorização de Fantini para a remoção do corpo. O inspetor
aparentava serenidade, mas fervia em fogo brando. Embora não padecesse de
homofobia no mesmo grau agudo que o delegado, Teixeira levava muito a sério
sua própria masculinidade.
O técnico da perícia, um homem miúdo e ossudo, era um velho conhecido
de Teixeira. Charles era o seu nome. Ao ver o inspetor se aproximando,
limitou-se a arquear as sobrancelhas, um gesto mudo de camaradagem.
O trabalho da perícia havia terminado. Só para se manter ocupado, Teixeira
quis dar uma última olhada no cadáver, que agora jazia deitado de costas. Foi
então que reparou num detalhe que ainda não havia notado.
“Essa mancha aí no peito dele é o quê? Uma tatuagem?”
Charles balançou a cabeça magra. “Foi feita há muito tempo. Por isso está
assim desbotada.”
O inspetor se inclinou diante do corpo para enxergar melhor o que estava
bordado no peito do homem morto.

“Que desenho é esse? Não me é estranho.”


O técnico da perícia também se inclinou para ver mais de perto. “É mesmo.
Eu também já vi isso em algum lugar antes. Mas esse foi um trabalho muito mal
feito.”
O inspetor ficou por um minuto sem dizer nada. Para quebrar o silêncio,
Charles começou a puxar conversa. “Eu sou fissurado em tatuagem. Já fiz três.”
Ele levantou a manga da camisa para exibir o dragão em seu bíceps. Naquele
braço fino, mais parecia uma lagartixa verde. Menos para o próprio Charles,
visivelmente orgulhoso de sua tatuagem. “Está vendo essas cores? Uma beleza,
não é mesmo? Paguei uma nota por ela. Também, só faço minhas tattoos no
Luizinho, ele é disparado o melhor tatuador da cidade. Um verdadeiro craque.”
Teixeira pareceu voltar a si. “É isso.”
“O quê?”
“Essa tatuagem. Tem alguma coisa a ver com futebol.”
Os dois ficaram por mais alguns segundos olhando para o desenho no peito
do morto. Até que Charles estalou os dedos. “Já sei.”
“E então?”
“Parece um pouco com o escudo do Milan, se não me engano. Mas está um
pouco diferente, acho que o símbolo do Milan é mais ovalado.”
“Milan?” Teixeira não parecia muito convencido.
“É isso mesmo. Tenho quase certeza.”
“Será? Não faz muito sentido um alemão tatuar o escudo de um time
italiano no peito.”
Nesse momento o olhar do inspetor foi atraído pelo criado mudo que havia
ao lado da cama. A gaveta de cima estava entreaberta. O inspetor acabou de
puxar a gaveta e tirou de dentro dela uma pequena bíblia. Era um detalhe
interessante que o Émile, um hotel tão cioso de sua modernidade, adotasse o
costume tão arcaico de disponibilizar uma edição do livro sagrado para seus
hóspedes.
Ninguém havia se dado ao trabalho de examinar mais atentamente aquela
bíblia. Pois Teixeira descobriu, ao fazer exatamente isso, um diminuto
armazenador portátil de dados escondido entre suas páginas. Era do tipo usado
principalmente para carregar música, mas também podia guardar outro tipo de
informação. Foi quando notou que o delegado estava falando com ele.
“Acompanhe o senhor Nestor até a sala da segurança.” Fantini evitou olhar
para Teixeira, ocupado que estava examinando as próprias unhas. “Uma vez
que você está tão ansioso por ação, creio que esta pequena tarefa irá satisfazê-
lo.”
“Sim, senhor.”
“Não pense que esqueci seus interessantes comentários sobre o caso. Mais
tarde continuaremos nossa conversinha.”
Antes de sair, Teixeira passou o que havia encontrado para o técnico da
perícia. “Por favor, Charles, verifique o que tem aí dentro, ok?”
A ruína total pode ser desencadeada por um simples gesto como esse.
CAPÍTULO 20 – CONTEMPLAÇÃO

A ablução foi feita, mas ainda não as oferendas. Cheios de confiança, todos
olham para ele.
O Vento sopra sobre a Terra: a imagem da Contemplação. Assim os reis de antigamente
visitavam as regiões do mundo, contemplavam o povo e davam suas instruções.
(I Ching – hexagrama 20)

A sala da segurança poderia muito bem ser chamada de sala da tevê. Uma
tela dominava a parede principal, impondo-se à visão. No canto oposto, duas
cadeiras sugeriam que a sala era utilizada também para interrogatórios, mas esse
era um detalhe que mal se notava. Ao adentrar na sala o olho já era capturado
pela multiplicidade de imagens, mais de vinte pequenos quadrados dividindo a
tela. Em frente à tevê havia uma mesa e mais duas cadeiras. Uma delas estava
sendo ocupada por um homem que se levantou quando Nestor entrou na sala.
O ex-sargento cumprimentou o homem com um gesto mínimo de cabeça.
“Inspetor Teixeira, este é Ivan, que me ajuda aqui no controle operacional.”
Ao apertar a mão de Ivan, o inspetor teve uma surpresa. Embora não fosse
fisicamente imponente, havia algo que evocava perigo no porte miúdo daquele
homem de terno. Possuía a pele entre o marrom e o negro, qualquer idade entre
os vinte e os quarenta, os olhos duas diminutas frestas que nada revelavam ao
fitar de volta, em fria avaliação, os olhos do inspetor. Teixeira sentiu o corpo se
retesando, antecipando luta. Assim era o efeito causado por Ivan.
O chefe da segurança ofereceu uma cadeira ao inspetor e foi até o canto da
sala buscar outra para si. A quarta cadeira, uma de madeira, permaneceu
intocada. “Ivan, mostre o nono andar, por favor.”
Uma única imagem, enorme, substituiu as outras. Um corredor do hotel
apareceu na tela. Graças à estrutura retilínea do Émile, uma só câmera bastava
para cobrir todo o andar. Não havia ninguém à vista.
“Nós fizemos a visualização completa das imagens do nono andar”, disse
Nestor com uma ponta de orgulho. “O circuito interno de tevê do Émile é
muito bom, um dos mais avançados do mundo. Todos os melhores hotéis
estão usando. Para lhe falar a verdade, esse sistema...”
“Se não se importa, eu gostaria de assistir o quanto antes às imagens”,
cortou Teixeira.
Nestor limitou-se a acenar de leve com a cabeça. Não demonstrou ter ficado
ofendido. “Sim, é claro. Ivan, coloque no modo reprodução, por gentileza.”
Ivan ergueu o aparelho de controle remoto. Na tela apareceu o cardápio em
letras rosadas.
“Como eu estava dizendo”, retomou Nestor, “temos o levantamento de
toda a movimentação no corredor ao longo do dia de hoje. Por isso sugiro que
assista às gravações na sequência em que ocorreram.”
“Como preferir.”
O chefe da segurança puxou do bolso do casaco a folha de papel onde havia
anotado os horários. “Vamos começar às catorze e vinte. Antes disso, ninguém
entrou ou saiu do quarto.”
A mudança de luminosidade foi abrupta. Fora isso a imagem na tela parecia
a mesma. Então um homem apareceu no corredor, saído de um dos quartos, o
segundo a partir da câmera, obviamente o quarto 909.
A qualidade da imagem era realmente notável. Dava para ver com precisão
as roupas que o velho usava ao sair do quarto. Um terno esportivo
amarronzado por cima da camisa polo branca, esta por sua vez enfiada por
dentro da calça de pano clara, uma cor entre o bege e o cinza, nas meias a
mesma cor da calça e os sapatos em um tom e meio mais escuro.
Era possível ver até os fios alvíssimos do cabelo do velho balançando
enquanto ele andava, um pouco mais compridos do que o costumeiro em
alguém daquela idade.
Era ele, sem dúvida. O mesmo que estava agora sendo enfiado em um saco
preto, com um cinto enrolado no pescoço e totalmente nu. Era ele, sim. O
falecido Harold Habbot.
Teixeira ficou de olho fixo na tela até que o velho sumiu no elevador. “E
depois?”
O chefe da segurança consultou novamente o bloco de anotações. “A
próxima pessoa a entrar no quarto foi a camareira, às catorze e trinta e cinco.”
Ivan avançou até o ponto indicado para que o inspetor pudesse assistir à
chegada da mulher uniformizada empurrando o carrinho de serviço.
“E quanto ao hóspede do quarto? Para onde ele foi?”
“O senhor Habbot desceu até o térreo, passou na recepção para solicitar o
serviço de quarto e seguiu para o restaurante do hotel. Como ele voltou direto
para o quarto, podemos passar direto para essa parte.”
“Prossiga.”
“Só um momento. A camareira já vai sair do quarto. Chama-se Kelly. Eu
mesmo conversei com ela. Kelly garante que o quarto estava vazio quando ela
chegou para trocar os lençóis.”
“Foi ela quem encontrou o corpo, não foi?”
“Sim. Olhe, aí está ela.”
A tela mostrou a camareira saindo do 909, o carrinho na frente. Teixeira
disse: “Não estou entendendo essa ênfase na camareira.”
“O importante não é a camareira em si”, respondeu Nestor. “E sim o fato
de que não havia ninguém no quarto depois que a camareira saiu.”
“E qual a importância disso? O que você está querendo mostrar?”
“Você vai ver.”
Brancas avançam na segunda:
Contemplação através da brecha da porta. É propícia a perseverança de uma mulher.

“Ivan, acelere a imagem até as dezesseis e vinte, mais ou menos.”


Com a velocidade muitas vezes maior, o corredor de luzes tremulantes era
cruzado por borrões fugazes, que desapareciam da vista tão logo eram
percebidos. O chefe da segurança inclinou o corpo para a frente, os braços
apoiados nos joelhos, as mãos enormes agarradas uma na outra. Sua voz, no
entanto, estava firme:
“Essas pessoas que estão passando são os outros hóspedes e o pessoal de
serviço. Ninguém se aproximou da porta do 909. Se você assim desejar,
podemos repassar as gravações em velocidade normal, para ter certeza. Só que
isso leva tempo.” Nestor fitou o policial nos olhos. “E pode acreditar, nós já
fizemos o dever de casa. Ninguém chegou nem perto daquela porta até a hora
em que o senhor Habbot voltou para o quarto.”
“Tudo bem. Prossiga.”
“Dezesseis e vinte, pronto. Só mais dois minutos pra frente agora, Ivan,
tenha a bondade. Ah, ali vem ele!”
“Mas o quê...”
“Parece que esqueci de mencionar esse detalhe, não é mesmo? O senhor
Habbot desceu sozinho para o almoço, mas voltou acompanhado. Aliás, muito
bem acompanhado.”
A tela mostrou Habbot saindo do elevador e cruzando o corredor até chegar
ao 909. Havia uma mulher alta e magra abraçada ao peito do velho, a cabeça
apoiando-se no terno marrom. Não era possível ver o rosto, coberto que estava
pelos longos cabelos negros. Novamente Teixeira tirou proveito do excelente
sistema de imagens do hotel, principalmente no tocante à captação de cores.
Pois era possível ver nitidamente que a ponta dos cabelos da mulher abraçada a
Harold Habbot havia sido tingida em um forte tom de vermelho.
“Quem é essa?”
“Não sabemos. Provavelmente se encontraram no restaurante.”
“Vocês não sabem? E essas câmeras todas?”
“Ainda não tivemos como examinar tudo. Como eu disse, essas coisas
levam tempo. Ademais, só com as gravações do nono andar já temos o bastante
para nos preocupar.”
“Do que você está falando?”
“Tenha um pouco mais de paciência e verá.”
Os homens continuaram fitando a tela. O casal avançava lentamente.
“Eles parecem estar um pouco bêbados.”
“A menina nem tanto. Ele é que devia estar bem chumbado, veja só. Mal se
aguenta nas pernas.”
Quando os dois finalmente desapareceram dentro do quarto, Teixeira disse:
“De onde saiu essa mulher?”
O chefe da segurança fez um gesto apaziguador com as duas mãos imensas,
mãos de pugilista. “Espere só um pouco mais antes de começar a fazer
perguntas, está bem? Já estamos quase no fim.”
“Que seja.”
Nestor deu um tapa na coxa. “Você agora vai ver que tem coisa por trás
dessa história.”
“O que você quer dizer com isso? Mais algum detalhe que você esqueceu de
mencionar?”
“Você já vai descobrir. Pode acelerar bem, Ivan. Agora só vamos ter
novidade às vinte e quarenta e três.”
“Mas isso...”
“Justamente. Foi pouco antes da descoberta do corpo. Ivan, já está pronto?
Pois muito bem.”
A mulher apareceu novamente na tela. Saiu do 909 e atravessou o corredor
até o salão dos elevadores. Estava vestida do mesmo jeito que entrara: a mesma
minissaia, a mesma baby-look, a mesma mochila colorida nas costas, o mesmo
jeito adolescente.
Ela já havia chamado o elevador quando a câmera mostrou mais alguém
saindo do quarto 909. Também estava usando as mesmas roupas de antes: o
mesmo terno esportivo, a mesma camisa por dentro da calça, os mesmos
sapatos e meias. E até os mesmos cabelos brancos. De novo, só um chapéu,
que ajeitou na cabeça enquanto avançava pelo corredor até alcançar a mulher,
bem a tempo de pegar o elevador.
O chefe da segurança rompeu o silêncio.
“Acelere só um pouco agora, Ivan.” Ele voltou-se para Teixeira. “Ninguém
mais utilizou o corredor até a chegada da camareira, menos de dez minutos
depois. Ao que parece, o telefone do 909 ficou fora do gancho. E novamente
entra em cena Kelly, a camareira.”
O inspetor fitou a cena em imobilidade acelerada que aparecia na tela. Então
uma mulher atravessou o corredor como um raio, até que Ivan retornou à
velocidade normal de exibição. Kelly veio caminhando diretamente até a porta
do quarto 909. Ela bateu, disse alguma coisa e aguardou por um instante antes
de enfiar a mão no bolso do avental e retirar uma chave para abrir a porta. Nem
bem entrou, num pulo já estava de volta, e já saía correndo pelo corredor afora.
A camareira sumiu de vista na mesma velocidade com que havia chegado.
Como já era sabido, Kelly desceu correndo as escadas, todos os nove
andares até desaguar, sem fôlego, na recepção do hotel. E assim começou a vir
a público o mistério do quarto 909.

Pretas avançam na quinta:


Contemplação da própria vida. O homem superior está livre de culpa.

O inspetor retomou a pergunta:


“De onde saiu essa mulher?”
“A camareira?”
“É claro que não. Você sabe muito bem que eu estou falando da outra, a de
cabelo preto, que foi filmada entrando no quarto com a vítima.”
“Você parece ter esquecido que ela também foi filmada saindo do mesmo
quarto junto com a vítima, e que a tal vítima parecia estar aliás muito bem,
obrigado.”
Teixeira meramente grunhiu em resposta. E insistiu: “Você ainda não me
falou sobre a mulher.”
“Ela provavelmente o abordou no restaurante mesmo. Quem se importa? A
regra é elas ficarem só na área do bar, mas sempre tem uma mais atrevidinha.
Ainda mais hoje, com esse desfile. Em dias assim elas ficam alvoroçadas, acham
que vão esbarrar com algum figurão no bufê de saladas e frios, vai saber o que
se passa na cabeça dessas doidas.”
“Você está dizendo que a mulher é uma prostituta?”
“Ou coisa parecida. Está cada vez mais difícil distinguir entre as
profissionais e as amadoras, se é que você me entende.”
“Conhece a mulher?”
“Quem dera.”
Teixeira respirou fundo. “O que quero saber é se já viu essa mulher antes,
circulando pelo hotel.”
“Não posso dizer que sim, mas isso não quer dizer nada. O movimento aqui
é grande, sempre está chegando gente. Menina como essa aí tem assim, ó, todo
dia.” Nestor pareceu refletir por um momento antes de acrescentar: “Mas isso
não é realmente de minha conta. Eu acho até que já falei demais.”
“Fique tranquilo.”
“Espero que isso que estou lhe dizendo não vá nos colocar em problemas,
hem?”
“Esqueça isso.”
“Eu não quero confusão para o meu lado.”
“Nós estamos investigando um assassinato aqui. Temos coisas mais
importantes em que pensar.”
“Você tem razão. Isso sim, é de minha conta. Um hóspede do hotel foi
morto dentro de seu próprio quarto. Isso é de minha conta.”
“Ei, calma, homem.”
Nestor deu um novo tapa na perna, com força. “Um dos melhores sistemas
de segurança do mundo, entendeu? Utilizado nos melhores hotéis do mundo.”
“Nestor, procure relaxar, está bem?”
O chefe da segurança apontou para a tevê. “Você sabe o que aconteceu
aqui?”
“Acho que você vai me dizer agora.”
“Aconteceu uma quebra de segurança!”
“Quebra de segurança?”
Os lábios de Nestor estavam franzidos em um meio sorriso que de alguma
forma não era nem um pouco amigável. “Não importa para que lado você pule,
acaba sempre com o rabo de fora. Em outras palavras, xeque-mate!”
“Mas do que é que você está falando?”
“Nosso trabalho é governado por essas belezuras aí.” Nestor apontou para a
tela. “De acordo com as gravações, esse crime simplesmente não pode ter
acontecido, uma vez que o senhor Harold Habbot, hóspede do 909, continuava
vivo quando saiu do quarto.”
Teixeira soltou uma risada curta. “Ah, é assim? E como você explica o
corpo que nós acabamos de deixar lá em cima, sendo embalado pra presente?”
“Exatamente!” Nestor bateu as duas mãos espalmadas, uma mímica de
aplauso. “É disso que estou falando. A segurança do hotel não tem como
explicar esse corpo, entendeu? Foi uma quebra de segurança.”
“Ah, agora entendi. Mas você não está levando em consideração um
pequenino detalhe.”
“Que detalhe?”
“O homem que apareceu na gravação saindo do 909 não era Harold
Habbot.”
“Ah, não era? Sim, continue. Me surpreenda.”
“A câmera está instalada no final do corredor, próximo do quarto 909,
certo?”
“Sim.”
“Por esse motivo, quando alguém sai do quarto e vai até o elevador, fica a
maior parte do tempo de costas para a câmera. Só foi possível ver bem o rosto
de Habbot quando ele veio do restaurante, acompanhado pela mulher. E essa
mulher então, sabe usar muito bem o cabelo. Em momento algum consegui
enxergar o rosto dela direito.”
“O que você está sugerindo com isso?”
“Foi Habbot que desceu para almoçar e voltou com a mulher para o quarto.
Mas não foi o mesmo homem que saiu depois, depois que a mulher saiu. Ele
estava usando as roupas do morto, com certeza. E até mesmo se deu ao
trabalho de pensar em uma peruca. Só que eles acabaram se excedendo. Como
em todo o resto. E sabe o que foi dessa vez? O chapéu.”
“Não tenho certeza se estou acompanhando.”
“Você viu o floreio que ele fez para colocar o chapéu na cabeça, justamente
no momento em que passava debaixo da câmera? Serviu para que ele
mantivesse o rosto oculto, tudo bem. Mas ao mesmo tempo foi algo teatral
demais, exagerado. Como tudo nesse crime.”
“Você está sugerindo que foi um disfarce. Que foi outra pessoa que saiu do
909, provavelmente o assassino, disfarçado como se fosse a vítima.”
“É bem por aí. Bastante óbvio, até.”
“Fico feliz que você pense assim, pois isso significa que saberá responder a
uma pergunta óbvia. Como foi que esse assassino disfarçado entrou no quarto
909? Lembre-se que é do nono andar que estamos falando. Mais de trinta
metros de altura do chão. Escalar o prédio por fora e entrar pela janela não
seria nada fácil, para não dizer impossível. E então? Você, com tanta esperteza,
certamente já sabe a resposta.”
O inspetor Teixeira achou preferível mudar de assunto. “Vocês têm câmeras
dentro dos elevadores também, não é verdade?”
Pretas avançam na sexta:
Contemplação da vida do outro. O homem superior está livre de culpa.

Do ponto de vista da identificação do casal de suspeitos, as gravações que


Teixeira pediu para ver resultaram infrutíferas. Serviram, ao menos, para
quebrar um pouco a tensão que havia se formado entre os homens. Nenhum
deles saberia explicar ao certo porque havia começado, mas todos sentiam a sua
presença. Era causada pelos conflitos de autoridade, pelas invasões de
território, pelas pressões normais e extraordinárias do trabalho, pelo elevado
nível de testosterona. Lá estivera ela, presente em cada palavra: a promessa de
pancadaria.
Mas pouco a pouco, para alívio de Nestor, felicidade de Teixeira e
frustração de Ivan, as primeiras e tímidas bandeiras de trégua começaram a
surgir no horizonte. Não tardou para Teixeira e Nestor virarem camaradas,
esquecidas as desavenças e fortalecidos os objetivos em comum. E Ivan teve
que aturar.
“Os dois tinham plena consciência de onde estavam as câmeras o tempo
todo”, estava dizendo Nestor.
Teixeira grunhiu em assentimento e puxou um cigarro. “É o que tudo
indica.”
“Você viu como eles entraram de cabeça baixa no elevador?”
“Vi, sim.”
“E foram direto para onde? Para bem debaixo da câmera, o pior ângulo
possível. E nós só conseguimos filmar o quê?”
“Um chapéu e uma bela cabeleira negra.” Teixeira brincava com a fumaça
do cigarro, o seu terceiro desde que o armistício havia começado. Nestor
também era fumante e o acompanhava nas baforadas.
“Localizei as imagens”, anunciou Ivan em meio à neblina. Engolia a fumaça
alheia e o também o próprio ódio, por ele aquela história terminava de outra
maneira.
O chefe da segurança deu outro tapa na coxa, bem humorado. “Pode
passar.”
Teixeira queria ver as gravações das câmeras na recepção no momento em
que o casal de suspeitos deixava o hotel. Das cinco câmeras existentes, duas
foram logo descartadas, pois nada registraram que interessasse. Com as três
câmeras restantes, fizeram a reconstituição possível.
Quando os dois passaram o saguão de entrada do Émile estava bastante
movimentado, pois o desfile estava para começar. A mulher de cabelos negros e
o homem de chapéu saíram do elevador. Atravessaram o fluxo contrário de
pessoas que chegavam para o desfile. E sumiram os dois, tranquilamente, porta
afora.
Não foi uma boa visualização. As câmeras filmavam tudo à distância, a visão
dos dois suspeitos sendo a todo momento obstruída pelas pessoas que
transitavam pelo hotel. Ainda assim, Teixeira pediu para congelar, ampliar e
imprimir duas ou três imagens do casal. Eram melhores do que nada.
Quando os dois passavam pela porta do Émile, o inspetor manifestou-se
novamente: “Recue a cena só alguns segundos, por obséquio.”
Nestor ficou interessado. “O que foi que você viu?”
“Não parece que o homem joga alguma coisa no cinzeiro antes de sair do
hotel?”
Só seriam aprovadas no ano seguinte as leis antifumo que baniam os
cigarros de dentro dos estabelecimentos fechados de Rio Santo. Por esse
motivo o Émile, como todos os bons hotéis da cidade, ostentava diversos
cinzeiros em suas áreas de circulação, símbolos de uma era que estava para
terminar.
“Passe mais uma vez, Ivan.”
“Está vendo?”
“É mesmo. Mas será que é algo importante?”
“Você saberia dizer se aquele cinzeiro na recepção já foi esvaziado a essa
hora?”
“Só tem um jeito de descobrir.”
“Vou com você.”
Teixeira e Ivan não se despediram, limitando-se a um olhar em
reconhecimento do mútuo antagonismo. A sala de segurança ficava no térreo,
perto da recepção. Logo o inspetor da polícia e o chefe de segurança do Émile
estavam debruçados diante do cinzeiro, localizado a poucos metros da porta do
hotel. Eles tiveram sucesso na busca, mas não puderam fazer grande uso de sua
descoberta.
Em meio a guimbas de diversas marcas, um pequeno retângulo de papel se
destacava. Era como um cartão comercial, só que não havia nenhuma palavra
escrita nele. Havia somente o desenho impresso de uma fábrica.
CAPÍTULO 7 – EXÉRCITO

O Exército necessita da perseverança de alguém forte.


No meio da terra, a água. Assim o homem superior fortalece as massas através da
generosidade para com o povo.
(I Ching – hexagrama 7)

Teixeira ficou tão intrigado com o cartão que demorou a perceber o


amontoado que se formava perto dos elevadores, do outro lado do saguão do
hotel. Pela agitação da imprensa, havia chegado alguém importante. Um
batalhão seria exagero dizer, a uma companhia inteira também não chegava,
mas seguramente ao menos um pelotão de repórteres cercava a pessoa que
havia acabado de sair de um dos elevadores. Os homens e mulheres de notícias
empunhavam suas câmeras, máquinas fotográficas e microfones, todos
querendo falar ao mesmo tempo. O foco de toda aquela atenção, para espanto
de Teixeira, era ninguém menos que o delegado Silvio Fantini.
No início até que o delegado não se saiu tão mal:
“Esse foi realmente um crime bárbaro, senhores. Um atentado vil e sórdido
contra o sagrado direito à vida, uma verdadeira afronta à nossa sociedade.”
A pausa que Fantini fez para respirar foi suficiente para que gritassem uma
meia dúzia de perguntas. O delegado respondeu a todos e a ninguém:
“A nossa polícia envidará intensivos esforços para trazer à luz da justiça o
responsável ou responsáveis por esse hediondo crime.”
Novos gritos, novas perguntas. O delegado ergueu as mãos, pedindo
silêncio:
“Algumas de nossas melhores equipes já estão empenhadas na investigação.
A força policial de Rio Santo, como os senhores sabem, está entre as mais
qualificadas do país.” Fantini fez a menor das pausas. “Já temos informações
suficientes para direcionar as medidas que serão tomadas, e estamos
positivamente confiantes no pleno êxito de nossa polícia.”
Uma voz se destacou no burburinho dos repórteres, impondo-se na base do
volume:
“Senhor delegado, uma palavra para a PanAmericana Fm. O morto é
realmente Hector Holland, o famoso estilista?”
O repórter Pedro Rivera sempre teve uma voz forte.

Pretas avançam na segunda:


No meio do exército. O rei concede uma tripla condecoração.

Talvez Fantini não tenha escutado direito a pergunta. Ou então escutou,


mas não prestou atenção. Ou escutou e entendeu, e quis se fazer de sonso.
“A identificação da vítima e todos os outros detalhes pertinentes serão
informados oportunamente aos senhores. No momento, os senhores
entendem, o sigilo é vital para as investigações.”
Suas palavras tiveram o mesmo efeito de uma pedra atirada contra uma
colmeia.
“Holland estava hospedado com outro nome?”
“O senhor acredita que isso foi obra de algum estilista rival?”
“A polícia descarta a possibilidade de um complô?”
“Ou foi um crime passional?”
“É verdade que o lenço com as iniciais da vítima estava encharcado de
sangue?”
Essas e outras perguntas foram disparadas pelo enxame alvoroçado. O
delegado, sorridente, fazia gestos apaziguadores.
“Calma, senhores, calma!” Ele aguardou até que o tumulto diminuísse um
pouco. “No momento só posso dizer que é verdade, infelizmente, que a pessoa
que foi vitimada por esse covarde ataque era realmente um cidadão
estrangeiro.”
Fantini estava evidentemente sentindo-se o tal. Parecia que a qualquer
momento iria erguer os braços em um gesto imperioso, mussoliniano.
“Um Cidadão Estrangeiro.” Era possível perceber as maiúsculas na voz de
Fantini. “Isso torna o crime ainda mais chocante. Uma ofensa inadmissível para
Rio Santo, uma cidade que sempre se orgulhou de saber receber seus visitantes.
Não tenham dúvida, senhores, de que a nossa polícia tudo fará para que a
justiça seja feita.”
Desta vez não houve como conter o turbilhão de vozes.

Brancas avançam na terceira:


Talvez o exército carregue cadáveres no vagão.

Perto do bolo de repórteres, Teixeira assistia incrédulo ao discurso do


delegado. Mas logo era chamado à parte por Nestor. O chefe da segurança
apontou com o polegar por cima do ombro. Acabava de voltar da recepção do
hotel.
“Apareceu um sujeito procurando o hóspede do 909. Disse que é filho do
defunto.”
Henrique estava parado diante do balcão da recepção. Era um rapaz alto e
obeso, parecendo ainda mais jovem pela sujeira de barba que deixava crescer na
cara. Tinha a pele muito branca, quase tão branca quanto a do pai. Da mãe, se
herdara algo, só podia ser o tamanho do traseiro.
Quando Nestor aproximou-se acompanhado de Teixeira, o filho de Harold
Habbot ergueu lentamente a cabeça para fitá-los. Mas o seu olhar vagava longe.
Parecia em estado de choque pela notícia da morte do pai.
“Boa noite. Meu nome é Alberto Teixeira, inspetor da delegacia de
Homicídios.”
“Sim. Entendo.”
“E o nome do senhor é?”
“Henrique. Henrique Habbot Ramalho.”
“O senhor disse que é filho da vítima?”
“Sim.”
“Meus pêsames.”
“Obrigado.”
“Preciso lhe pedir para nos acompanhar até o instituto médico, para fazer o
reconhecimento do corpo.”
“Não tenho como fazer isso. Hoje seria a primeira vez que eu iria ver meu
pai.”
“O senhor nunca viu seu pai?”
“Não.” Depois de um instante, Henrique acrescentou: “Um belo dia, antes
de eu nascer, ele precisou viajar, e nunca mais voltou. Até hoje.”
Nestor quis ajudar:
“Mas o senhor deve ter visto ao menos fotos de seu pai, não é mesmo?”
“Só uma, que ele enviou pela Internet, para que eu pudesse reconhecê-lo.
Eu a imprimi, está em meu bolso.”
A foto mostrava um homem de cabelos brancos olhando concentrado para
a câmera. Estava na frente de um muro muito antigo, de pedras acinzentadas
cobertas de musgo quase negro. Devia estar fazendo frio no momento da foto,
a julgar pelo pesado sobretudo que o homem estava usando. Não era o tipo de
roupa que se via no Brasil.
“Importa-se se eu tomar isso emprestado?”
“Pode ficar. Tenho a foto em meu e-mail.”
“O senhor sabe de algum outro conhecido de seu pai aqui em Rio Santo?”
“Eu não sei nada sobre meu pai. Minha mãe perdeu o contato com ele antes
de meu nascimento. Eu já disse isso. Só há dois meses que ele me encontrou.
Pela Internet.”
Parecia a ponto de desabar no choro. Estava regredido, como uma criança
que vê pela primeira vez o mar malvado desfazer seu lindo castelo de areia:
“Ele tinha marcado comigo. Está bem que eu cheguei um pouco atrasado.
Mas estou aqui. Cumpri o compromisso. E agora cadê ele, hem? Cadê meu pai?
Ele marcou comigo.”

Brancas avançam na quarta:


O exército recua. Sem culpa.

“Hector Holland está falando ao vivo na TV Pirâmide.”


A notícia caiu como uma bomba de gás sobre um grupo de manifestantes.
O aglutinado de repórteres ao redor do delegado Fantini rapidamente se
dispersou. A maioria foi parar no bar do hotel, onde uma pequena multidão já
estava diante da tela da tevê. Primeiro Holland havia sido declarado morto.
Agora aparecia ao vivo.
O burburinho havia começado bem no meio do desfile. De boca em boca, a
notícia foi ganhando força até que ninguém no salão falava em outro assunto.
Hector Holland acabara de ser encontrado morto ali mesmo, em um quarto do
hotel Émile. Um garoto de programa era o assassino.
Hector Holland, o estilista espanhol de pai americano que se tornou famoso
ao trabalhar para uma grife francesa. O que ele estaria fazendo em Rio Santo?
Até aí houve algum consenso. Depois foi cada um aumentando seu ponto
ao conto. Muitos diziam que o estilista veio para a cidade disfarçado e que se
registrou no hotel com um nome falso. Desses tantos, uma boa parte ainda
acrescentava um vívido detalhe à narrativa que ganhava corpo no salão do
Émile. A identidade de Holland havia sido descoberta graças a um lenço com o
monograma HH que foi encontrado, embebido em sangue, ao lado do cadáver.
Alguns, a quem não faltou o senso do oportunismo, insistiam que Holland
viera disfarçado só para poder assistir incógnito ao desfile da Famosa. Outros,
mais atrevidos, sugeriam que o estilista estava ali com o propósito exclusivo de
espionar a coleção brasileira. Mas não faltou também quem apelasse para o
bom senso, afirmando que o desfile não passava de uma mera coincidência.
Holland viera ao Brasil, certamente, para curtir em segredo um pouco do bom e
velho turismo sexual. Orgias intermináveis regadas a pó, rapazes musculosos e
muita esculhambação.
Houve até mesmo céticos, que não acreditaram em nada do que foi dito.
Isso é só boato sem fundamento, diziam. Coisa mais sem pé nem cabeça, onde
já se viu?
No entanto não houve um só olhar que não se voltasse para a porta do salão
quando uma voz gritou, já quase pelo fim do desfile:
“A polícia está levando o corpo.”
Nem todos os repórteres presentes saíram abruptamente do desfile. Alguns
tiveram a decência de não derrubar nenhuma cadeira.
Logo o delegado Fantini era cercado de flashes e perguntas, como era bem
ao seu gosto. Mas não demorou até que alguém pensasse no óbvio. O número
do celular de Hector Holland não foi difícil de conseguir.
Uma repórter chamada Nina Glória fazia a cobertura do desfile para a TV
Pirâmide. Era Nina quem estava na tevê, transmitindo dali mesmo do hotel
Émile a conversa que estava tendo por celular com o astro da alta costura,
Hector Holland. O estilista, ao que parece, não ficou muito feliz ao receber a
notícia da própria morte, e desancou a repórter em três idiomas. Nina traduziu
do jeito que pôde. Ela até sorria.
Pareceria estranho e despropositado esse formato de apresentação da
notícia, uma entrevista pelo celular, caso não se soubesse que naquele momento
a TV Pirâmide fazia uma retratação. Nina Glória havia transmitido com
exclusividade a notícia da morte de Hector Holland, mal o boato começou a
circular no salão do Émile. Ambiciosa, a repórter quis passar à frente de seus
colegas e dar o furo. Agora era obrigada a apelar para uma medida desesperada
como aquela para tentar salvar o emprego.
No telejornalismo, como no sexo, dar o furo é coisa que deve ser feita
tomando-se certas precauções básicas.

Brancas avançam na quinta:


Há caça no campo. É propício capturá-la. Sem culpa. Deixe o mais velho conduzir o
exército. O mais novo transporta cadáveres; então a perseverança traz infortúnio.

A polícia estava deixando o hotel. O delegado Fantini foi o primeiro a sair.


Depois do fiasco com a imprensa, fechou a cara e não falou com mais
ninguém.
Harold Habbot também já estava a caminho do instituto médico legal, onde
seria submetido à execração suprema da autópsia. A pele, os músculos e os
ossos seriam cortados, as entranhas reviradas, as veias seccionadas, as secreções
colhidas para que se pudesse ter o maior número de certezas, quando a primeira
bastava: o velho estava morto.
O inspetor Teixeira, com um pé dentro do carro e o outro na calçada,
contemplava a fachada do hotel Émile. Teve que erguer a cabeça para enxergar
o prédio em toda a sua extensão, um imenso tijolo recortando a noite de Rio
Santo. A arquitetura do Émile evocava um pombal. Dez quartos por andar,
cada quarto com sua varanda. Dez andares no total, no total cem quartos, então
cem varandas.
“Vamos embora, Teixeira. Pode fumar dentro do carro.”
O inspetor Siqueira, ao volante, não demorou a dar sinais de impaciência.
Ainda não era a ruína de dois anos à frente, mas já começava a demonstrar os
sinais da moléstia que o consumia. O comportamento irritadiço, as fundas
olheiras, os delatores cestos com o nariz. De ao menos alguma coisa em
comum com Sherlock Holmes podia se gabar: a paixão pela cocaína. A
diferença é que o célebre detetive inglês preferia a sua injetada em uma solução
a sete por cento, enquanto Siqueira tomava mesmo era de colherada.
“Siqueira, acho que eu vou ficar por aqui um pouco mais.”
“Como assim, ficar por aqui?”
“Vá na frente. Eu encontro você na delegacia.”
“Como assim, vá na frente? Que papo é esse, Teixeira?”
“Tem uma coisa que eu preciso verificar. Um palpite.”
“Rapaz, veja lá o que você está aprontando. Ainda mais depois dessa quizila
com o delegado. Você ficou maluco? Se você está tão aflito para levar uma
carcada, eu posso resolver seu problema.”
“Fique tranquilo, Siqueirinha. Não precisa esperar por mim.”
“E quem disse que eu iria esperar? Você é quem sabe.”
“Tudo bem. Só quero lhe pedir um favor. É coisa pequena.”
“Diga de uma vez.”
“Tem esse rapaz, Henrique Habbot, que é filho da vítima. Eu pedi para ele
ir até a delegacia para prestar depoimento. Não creio que ele apareça lá hoje,
mas pode acontecer. O rapaz está meio desorientado com a morte do pai, sabe
como é. Se ele aparecer, peço que o atenda por mim. Talvez ele possa dizer
mais alguma coisa a respeito do pai. Mas converse com ele na boa, com jeito.”
“Eu sei como tomar um depoimento.”
“Sim, é claro. Obrigado, Siqueira. Fico lhe devendo essa.”
Ao menos quanto a isso Teixeira não ficou em débito com o colega.
Henrique jamais atendeu à solicitação de visitar a delegacia. O próprio inspetor
é que foi procurá-lo no estúdio Nova Música, alguns dias depois. Nesse
segundo encontro, os papéis foram invertidos. Henrique havia retornado à sua
placidez habitual, que lhe valera o apelido de o Buda entre os frequentadores do
estúdio. Teixeira é que parecia transtornado.
CAPÍTULO 31 – INFLUÊNCIA

Tomar uma donzela como esposa traz boa sorte.


O lago sobre a montanha: a imagem da Influência. Assim o homem superior encoraja as
pessoas a se aproximarem dele, estando pronto para recebê-las.
(I Ching – hexagrama 31)

De volta ao hotel, o inspetor considerou as possibilidades. Nestor não


estava à vista. Teixeira pensou em pedir a um dos seguranças para contatá-lo,
mas logo descartou a ideia. Localizar o chefe da segurança poderia tomar muito
tempo. E Teixeira temia que não houvesse mais um segundo a perder. O mais
provável é que já fosse tarde.
Ele decidiu ir direto até o balcão da recepção.
“Boa noite, em que posso ajudá-lo?”
Diante da identificação policial de Teixeira, o sorriso no rosto do
recepcionista sumiu.
“Pensei que a polícia já tivesse ido embora.”
“Nós vamos e voltamos.” O inspetor leu o nome no crachá do
recepcionista. “Escute, Fernando, preciso que você faça algo para mim.”
Os olhos de Fernando já eram grandes, e ficaram maiores. Para tranquilizá-
lo, Teixeira disse: “Não é nada demais. Eu só preciso dar uma olhada no seu
mapa de hóspedes.”
“Se o senhor me der um minuto, eu já vou chamar o gerente, tudo bem?”
“Não precisa chamar o gerente.” O tom de Teixeira não admitia réplicas.
Ele não tinha o menor interesse em fazer alarde de sua permanência no hotel.
“Eu estou com pressa. Vamos simplificar as coisas. Tudo que eu quero saber é
se o quarto acima do 909 está ocupado e por quem.”
Um depois do 909. Sendo o conhecedor de música que era, Teixeira deve
ter em algum momento feito esta conexão entre o número do quarto ocupado
por Harold Habbot e a canção dos Beatles, One After 909. A canção, composta
por John Lennon quando era ainda um adolescente, só foi gravada depois que
os Beatles já haviam se tornado um fenômeno. Não era uma das mais famosas,
mas Teixeira era bem do tipo que consideraria vergonhoso não conhecer
qualquer música dos Beatles.
O inspetor saltou do elevador no último andar, o décimo. O quarto acima
do 909 não era o 1009, como seria de se esperar. A placa dourada acima da
porta exibia apenas um solitário número nove. Os quartos do último andar
eram os melhores do Émile. Cada quarto era um duplex com acesso à cobertura
do hotel, com jacuzzi privê no terraço e vista para o mar.
Essas e muitas outras informações não solicitadas foram despejadas a uma
velocidade impressionante nos ouvidos do inspetor. E tudo porque ele acabou
sendo obrigado a executar o seu número macho com o recepcionista. Quando
Fernando disse novamente que iria chamar o gerente para atendê-lo, Teixeira
pousou as duas mãos no balcão e inclinou o corpo para frente apenas uns
poucos centímetros. Seu tom de voz não se alterou.
“Você não está entendendo. Eu estou investigando um homicídio aqui. O
tempo é essencial para a investigação. Eu não posso ficar esperando você ir
chamar alguém para mandar você fazer o que estou pedindo com delicadeza.
Você está me entendendo? Melhor cortar caminho. Você vai me dizer o que eu
quero saber ou vou precisar enquadrá-lo por obstrução à justiça?”
O recepcionista quase borrou as calças. Como muitas pessoas, o pobre
coitado sentia um medo da polícia que era quase atávico. E agora ainda mais,
com o estímulo extra proporcionado por Teixeira. Mas o nervosismo que não
saiu por baixo acabou escapando pela barreira dos dentes: Fernando teve um
súbito e agudo ataque de verborragia. E tagarelou a falar.
Foi assim que Teixeira ficou sabendo que a cobertura 9 estava ocupada, sim
senhor, desde ontem. O hóspede registrou-se como Joaquim Silva, jornalista e
fotógrafo da revista Moda Espetacular. Ele chegou na noite anterior ao desfile e
fez reserva até o dia seguinte. Mas não adiantou chegar um dia antes, pois
acabou se atrasando para o desfile. O relógio havia acabado de dar nove da
noite quando Joaquim atravessou o saguão do hotel, vindo da rua, com sua
máquina fotográfica a tiracolo. Isso porque Joaquim era um desses tipos que
chamam mesmo a atenção, um homem vistoso, bonito. E tão jovem ainda, e já
tão bem sucedido, repórter de uma revista como a Moda Espetacular. E por isso
tudo é que foi notado quando passou diante da recepção. O recepcionista
confessou de pronto que teve uma queda por ele assim que o viu.
Fernando teria dito até o número de sua conta no banco e a senha se
Teixeira não tivesse agradecido e partido. No caminho para o elevador o
inspetor até sorriu, mas foi um riso envergonhado. Essa era uma das terríveis
vantagens de ser um policial: bastava rosnar um pouco e a maioria das pessoas
faria tudo o que você quisesse. Teixeira não se sentia particularmente orgulhoso
desse recurso, mas não hesitava em utilizá-lo quando achava necessário.

Brancas avançam na primeira:


A influência se mostra no dedão.

O corredor do décimo andar estava envolvido pelo silêncio. O inspetor


ficou escutando por um tempo antes de bater na porta da cobertura 9. Ele
bateu três vezes, com força moderada. Talvez houvesse alguma sugestão de
movimento do outro lado da porta. Teixeira bateu novamente, com mais força.
“Abram a porta. É a polícia.”
Agora indiscutivelmente houve algum movimento lá dentro. O inspetor já
estava para esmurrar a porta mais uma vez quando ela finalmente se abriu.
Do outro lado encarou-o um rapaz loiro, alto e magro. Vestia apenas a
camiseta e uma cueca samba-canção. Mesmo com um vestuário tão tipicamente
masculino, era preciso olhar para ele uma segunda vez, no detalhe, para se ter
certeza de que não era uma mulher usando roupas de homem. Não se tratava
do porte físico ou de algum trejeito efeminado. Não era tão simples assim. Era
alguma coisa mais sutil, como se fosse um cheiro feminino emanando do corpo
do rapaz.
“O que aconteceu?” A voz grave e modulada por um suave sotaque
estrangeiro acabava tornando-se uma surpresa.
“Joaquim Silva?”
“Sim, sou eu.”
Teixeira fez uma cara de surpresa irônica. “Você parece um tanto jovem
para ser jornalista de uma respeitável revista de moda.”
O jovem sorriu, superior. “Se por uma vez na vida você tivesse lido Moda
Espetacular, saberia que respeitável é um termo que simplesmente não se aplica.”
“Talvez eu queira mesmo dar uma olhada nessa revista.”
“Você disse que era da polícia, não disse? Em que posso ajudá-lo?”
“Você nem desconfia?”
“Acredito que deva ser algo relacionado com essa morte que aconteceu no
hotel, não é mesmo? Você está batendo de porta em porta perguntando se
alguém viu ou ouviu algo suspeito.”
“E você viu?”
“E como não? A maior parte da coleção que foi apresentada hoje parecia
definitivamente suspeita. Mas nada, sem dúvida, que interesse a um inquérito
policial. Então, para poupar o seu trabalho e o meu tempo, vamos simplificar
dizendo que eu não vi nada e nem ouvi nada.”
“Mas não foi por isso que eu vim aqui.”
“E por que foi então?”
“Gostaria de dar uma olhada na varanda de seu quarto, se não se importa.”
Uma sombra fugaz passou pelo rosto do jovem, desfazendo por um instante
a máscara de ironia bem humorada.
“Se você não se importa, eu gostaria de ver a sua identificação primeiro.”
“Não seja por isso.”
Teixeira brandiu a insígnia da polícia.
Joaquim parecia fascinado pelo distintivo. “Posso ver de perto? Eu só vi
isso em filmes. Não sabia que existiam de verdade.”
O inspetor aquiesceu surpreso. Ele não esperava nada daquilo. Joaquim
avançou a mão para apanhar o distintivo que o policial lhe estendia. Por um
breve instante, seus dedos se tocaram. Mesmo estando preparado, Joaquim fez
um movimento instintivo de recuo, como se a pele de Teixeira queimasse ao
toque.
O inspetor também sentiu algo. No instante seguinte, já havia sacado sua
pistola. Teixeira era bom em sacar uma arma rapidamente com a mão direita.
Eram três etapas: enfiar a mão dentro do casaco à altura do peito, sacar a arma
e direcionar a arma para o oponente. Mas ele fazia como se fosse um único e
gracioso movimento. Dava para perceber que costumava treinar bastante.

Pretas avançam na terceira:


A influência mostra-se nas coxas. Atenha-se ao que se segue. Prosseguir será humilhante.

“O que significa isto?”


A reação do rapaz diante da ponto 40 do inspetor revelava mais raiva do
que medo.
“Vamos entrando. Daí a gente conversa.” Agora que havia sacado a arma,
Teixeira estava desconfortavelmente consciente da câmera no corredor.
Joaquim chegou a recuar dois passos, mas logo estacou. “Você não pode
fazer isso. Quem você pensa que é?” O rapaz leu o nome no distintivo que
ainda estava em suas mãos. “Inspetor Alberto L. Teixeira.”
O inspetor tomou a insígnia da mão do outro e girou rapidamente a cabeça,
vasculhando com os olhos o interior da cobertura 9. O quarto em si era igual
em tudo ao 909. A diferença que justificava o título de cobertura estava na
varanda, onde uma escada caracol se projetava para o tal terraço com jacuzzi.
Além de Joaquim, não havia ninguém à vista.
“Você não pode fazer isso”, repetiu o rapaz. “Você não pode me prender.
Eu sou menor de idade.”
“Vamos somente conversar um pouco. Agora senta ali.”
O rapaz sentou na cadeira ao lado da mesa com o tampo de vidro, um
conjunto idêntico ao que havia no andar de baixo. O inspetor ordenou que o
jovem colocasse as mãos para trás para que pudesse ser algemado à cadeira.
Com o rapaz imobilizado, Teixeira ficou envergonhado do alívio que sentiu.
Havia algo ainda mais incrível emanando daquele corpo jovem e aparentemente
frágil, além de uma feminilidade obscena. Era o inconfundível cheiro do perigo.
Teixeira não gostaria de admitir, nem para si mesmo. Mas a verdade é que
ele sacou a arma porque ficou assustado. Teve medo.
“Onde está a mulher?” O inspetor havia se posicionado de forma que o
rapaz ficasse entre ele e a varanda. Assim, se houvesse alguém no terraço, seria
visto por Teixeira muito antes que conseguisse descer.
Joaquim pareceu se trair. Ele deu uma significativa olhada na direção do
banheiro, depois voltou os olhos para o chão e só depois encarou novamente
Teixeira. “Que mulher? Não tem mais ninguém aqui.”
A farsa estava entregue. O policial aproximou-se da porta do banheiro. “É
melhor você sair daí agora.” Sua voz adquiriu o mesmo tom de quando havia
batido na porta da cobertura 9. Chamem a isso estilo Teixeira. “Eu vou contar
até três. Um.”
Com um gesto brusco, o inspetor empurrou a porta do banheiro. A porta
estava destrancada.
Havia alguém dentro do banheiro. Era uma mulher jovem, alta e magra, de
cabelos aloirados e curtos. Seu rosto não estava visível, mas no primeiro
momento Teixeira sequer notou esse detalhe.
A jovem estava nua, curvada por cima do vaso sanitário, o traseiro voltado
na direção da porta. Um perfeito círculo prateado destacava-se na brancura da
pele, bem acima do ponto em que as nádegas se separavam. Era uma minúscula
moeda de prata, com metade do tamanho da moeda de um centavo.
Deve ter havido outras ocasiões em que Teixeira viu alguém utilizando
aquele curioso adereço de metal. Talvez em alguma boa casa de strip-tease que
tenha frequentado, ou então ao tomar uma chuveirada após o futebol ou
mesmo no vestiário da delegacia. Dificilmente teria visto antes uma rara moeda
prateada como aquela, mas as moedas de cobre já estavam tornando-se cada
vez mais comuns. Aquela, entretanto, foi a primeira vez que ele reparou. Não
chegou a dar muita importância, ao menos não naquele momento, mas reparou.
Ele não deu importância porque foi subitamente invadido por um senso de
urgência. Era preciso ajudar sem demora aquela pobre moça nua. Ela não podia
se levantar de onde estava. Parecia que suas mãos estavam amarradas ao redor
do vaso sanitário. Contorcia-se debilmente, como se estivesse sem forças. E
com a voz arquejante, suplicou:
“Por favor, não me machuque de novo. Eu faço tudo o que você quiser.
Juro que não conto nada para ninguém. Não me maltrate mais, por favor. Eu
juro!”

Pretas avançam na quarta:


Se um homem está com a mente agitada, e seus pensamentos saltam daqui para ali, somente
os amigos mais próximos o seguiriam.

A decisão de última hora que o inspetor tomou de permanecer no hotel não


foi baseada apenas na intuição. Havia também, é claro, as gravações das
câmeras de segurança.
Harold Habbot havia sido filmado entrando no 909 com uma mulher, a
mesma que ao sair do 909 foi filmada na companhia de um outro homem, um
homem usando chapéu e as roupas do morto. Menos de dez minutos depois,
ocorreu a descoberta do cadáver.
Um homem entrou no quarto, um homem saiu, um homem ficou.
Obviamente estava sobrando um homem na equação. Se as câmeras não o
filmaram entrando pela porta, então ele entrou por outro lugar. Elementar, meu
caro: o segundo homem entrou pela janela. E como descer um andar é bem
mais fácil que subir nove, o mais provável é que o acesso tenha sido pela
varanda do quarto acima do 909.
Mas tudo isso não passava de mera suposição, fiapo de suspeita, nem de
longe uma evidência. Quando as mãos de Joaquim e Teixeira se tocaram, no
entanto, o inspetor teve a certeza instantânea e inexplicável de que estava
mesmo diante do culpado. Por isso sacou a arma assim tão rápido.
Aquela reação intempestiva do inspetor pareceu quebrar todo o espírito de
luta em Joaquim. O rapaz aceitara submissamente ser algemado à cadeira e
agora, de cabeça baixa, era a própria imagem da derrota.
Quanto a Teixeira, foi como se tivesse incorporado o cavaleiro andante.
Estava claro que ele iria salvar a princesa em apuros antes de qualquer coisa.
Uma princesa em apuros e com um belo de um rabo. Quando o inspetor se
aproximou da mulher amarrada à privada, ela afundou ainda mais o rosto
contra a tampa do vaso e contraiu o corpo em um gemido agudo, pura letra iii,
convincente e agoniado guincho de medo.
“Fique calma, fique calma, por favor. Meu nome é Alberto, eu sou da
polícia. Já vou soltá-la.” O tom de voz, mais do que as palavras em si, era
mesmo tranquilizador. A jovem parou de se debater e apenas continuou
chorando baixinho.
Teixeira tinha que libertá-la. As mãos dela estavam amarradas com um
elástico vermelho, desses usados para prender os cabelos. O elástico estava tão
apertado que as duas mãos crispadas já estavam ficando da mesma cor.
O inspetor guardou a arma de fogo no coldre, pois o trabalho a ser
executado exigia a arma branca. Ele pescou em um dos bolsos o chaveiro com
o canivete. Para realizar a tarefa, o inspetor teve que ficar acocorado bem
próximo da loira nua. Ela continuava com o rosto virado para o outro lado,
mas Teixeira sentiu-se observado pelo seio pontudo e eriçado voltado em sua
direção, que arfava a cada soluço da jovem.
“Olá, escute: eu vou precisar cortar esse elástico que está lhe prendendo,
tudo bem?”
Ela balançou a cabeça. Já era uma resposta.
“Eu preciso que você fique bem quietinha agora, está bem?”
Um novo e silencioso assentimento com a cabeça, que continuava voltada
na direção do box do chuveiro. Teixeira estava curioso para ver o rosto que
acompanhava aquele corpinho de anjo, mas entendia que a timidez dela era
perfeitamente natural. Afinal ela estava totalmente nua e indefesa diante de um
perfeito estranho, ainda que seu salvador. Escondia o rosto, pois era só o que
podia esconder.
O inspetor aproximou-se um pouco mais, de canivete em punho. As mãos
dela estavam atadas pelo pulso. Ele começou tentando enfiar o canivete ali, no
ponto de junção. Ela reagiu:
“Ai, ai... assim não.”
Teixeira parou de imediato.
“Desculpe, me desculpe. Está muito apertado aqui, não consigo enxergar
direito. Não sei como aquele maluco amarrou você assim.”
“Passe a lâmina aqui, debaixo do elástico.” Com o indicador da mão
esquerda, ela sinalizou o ponto desejado. “Está muito apertado para tentar
cortar no meio.”
Rapidamente uma sintonia entre os dois crescia. Ele seguiu fielmente a
instrução e experimentou inserir a ponta do canivete entre o elástico e a pele.
Logo foi possível usar o canivete para afastar um pouco o elástico, o que
facilitou a tarefa de cortá-lo.
A tira vermelha, rompida, tombou inerte no chão. A mulher soltou um grito
de alívio. As mãos se afastaram uma da outra em um movimento brusco,
pareciam até dois pássaros voando para a liberdade. Só que a mão esquerda
voou foi para longe do olhar do policial, protegida agora pelo próprio corpo nu
da mulher. Pois o inspetor iria estranhar ao ver que ao redor do pulso esquerdo
o elástico continuava intacto.
Foi um truque simples. Dois elásticos da mesma cor, cada um enrolado em
um dos pulsos. Depois era só juntar as mãos para dar a impressão de que
estavam amarradas por um único elástico.
A jovem começou a erguer lentamente a cabeça. Afinal a paciência de
Teixeira seria recompensada. Ou talvez ainda não. Nesse momento um leve
barulho no quarto despertou a atenção do inspetor, que se colocou de pé num
salto. Ele girou o corpo e já foi sacando a arma. Quando chegou na porta do
banheiro, a ponto 40 apontava diretamente para a cara de Joaquim, que
continuava do mesmo jeito algemado à cadeira.
Mas alguma coisa estava diferente.
Joaquim estava sorrindo.
O inspetor Teixeira sentiu mais do que viu o rápido movimento em sua
direção, vindo pelas costas. Ele tentou se virar, mas não teve tempo. Recebeu
uma pancada firme na nuca.
E desabou no chão como um saco de batatas.

Pretas avançam na quinta:


A influência mostra-se na parte de trás do pescoço. Sem remorso.

Teixeira acordou com uma forte pressão na nuca. Ele descobria por
experiência própria como é perfeitamente possível sentir dor e dormência ao
mesmo tempo. Não existe contradição entre os termos. A dormência nada mais
é que uma dor que ainda não despertou.
Os olhos abriram-se a tempo de ver a seringa com agulha hipodérmica se
afastando. A visão da agulha por si só explicava a desagradável queimação se
espalhando do pescoço para as costas e para o rosto.
A mão que segurava a seringa pertencia à jovem supostamente indefesa que
o havia colocado a nocaute, a loira pelada do banheiro fingindo estar amarrada.
Sem nenhuma surpresa, pois seus sentimentos estavam como que embotados,
Teixeira viu que para transformar uma loira de cabelos curtos em uma morena
de cabelos compridos bastava uma simples peruca.
Quando notou que o inspetor havia despertado, Júlia sorriu.
Ela ergueu-se da beirada da cama, onde estivera sentada. Teixeira, é claro,
continuou deitado. Depois de deixar a seringa em uma bandeja na mesa com
tampo de vidro, Júlia postou-se ao lado de Joaquim, de pé aos pés da cama,
diante de Teixeira.
O olhar esgazeado de Teixeira vagou dela para ele e de volta para ela. O
inspetor piscou os olhos, tentando focar a vista.
Os dois eram muito parecidos, sem dúvida. O mesmo rosto com corpo de
homem e de mulher. Mas não era isso o que causava estranheza. A semelhança
não era perfeita. Havia uma coisa qualquer faltando, que não se conseguia
discernir com clareza, mas ainda assim se fazia sentir. Olhar para eles quando
estavam assim juntos era para deixar a cabeça tonta, algo que definitivamente
feria alguma lei fundamental da estética. Não é de se admirar que o inspetor se
sentisse ainda mais dopado do que já estava.
Kim tentou o mais que pôde parecer o univitelino de sua irmã. Mas há
limites até mesmo para a cirurgia plástica, maravilha de nossa era. Daí esse sutil
estranhamento, que não se explicava de imediato.
O casal estava vestido de negro, os dois usando uma malha fina e rente ao
corpo, como um uniforme, que lhes realçava ainda mais tanto a inexata
semelhança quanto as evidentes diferenças.
E foi só então que o inspetor finalmente tomou conhecimento de uma
curiosa inversão de papéis. Pois o rapaz de cueca samba-canção estava
inteiramente vestido. A moça nua do banheiro também estava vestida. Era ele,
Teixeira, quem estava pelado agora.
“O que vocês fizeram comigo?” E o inspetor fez uma nova descoberta. Ele
não estava conseguindo se mover. O próprio ato de falar exigia um grande
esforço.
“Nada demais, por enquanto”, disse Joaquim. Ele cruzou os braços de
encontro ao peito e começou a caminhar pelo quarto. “Você recebeu uma dose
de uma certa substância, considere um presentinho nosso.”
“O que vocês injetaram em mim?”
“E para que você precisa saber disso? Saber o nome da droga não vai te
ajudar em nada. É uma substância com um princípio ativo muito curioso. Tem
um nome mais comprido que meu pau, mas seus efeitos são muito
interessantes. Durante as próximas horas você não poderá se mexer, mas
continuará perfeitamente sensível a qualquer estímulo de dor.” Joaquim trocou
um rápido olhar com Júlia antes de prosseguir. “Ou de prazer.”
“Não precisa ter medo, chefinho Júnior”, disse Júlia, e sorriu mais uma vez
para Teixeira. “Amanhã você terá uma das piores ressacas de sua vida, apenas
isso. Isso na hipótese, é claro, de que exista um amanhã para você.”
Joaquim teve um súbito acesso de hilaridade. “Chefinho Júnior. Essa foi
boa.”
“O que vocês querem?” Grasnou Teixeira. Era como se houvesse uma lixa
em sua garganta.
“Vamos começar com você contando como é que chegou até nós.”
“Não foi difícil, com vocês dois brincando de assassino de cinema.”
“Fico feliz que você ainda tenha forças para bancar o espirituoso”, disse
Joaquim. “Você irá precisar delas.”
“Que tal falar sobre isso?” Júlia mostrou o cartão com o emblema da fábrica
que havia encontrado em um dos bolsos do inspetor.
“Que tal vocês falarem sobre isso? Para que tanta presepeira para apagar um
cara? Vocês andaram vendo filmes demais, crianças.”
Joaquim continuava andando de um lado para o outro do quarto. Parecia
uma fera enjaulada. “O restante da polícia já foi embora. Por que você ficou no
hotel?”
“Tive vontade.”
“Quem sabe que você está aqui?”
“Você quer dizer além de meu pessoal? Sem contar com o gerente do hotel,
acho que só a equipe de segurança. Eles devem estar batendo na porta a
qualquer momento.”
“Você está blefando.”
“Então espere para ver.” Se o inspetor apostou nisso, perdeu. Ninguém da
segurança deu as caras. Ivan, que estava monitorando as câmeras, jamais
reportou qualquer anormalidade observada na cobertura do hotel naquela noite.
Ao menos para Nestor, seu suposto patrão. Para os gêmeos, sim, foi que Ivan
fez um relatório completo. E graças ao que os gêmeos contaram para mim, foi
que pude reconstituir os passos de Teixeira em suas investigações no Émile.
Isso e também um pouco de imaginação, que nunca me faltou.
“Você está achando tudo muito engraçado, não é mesmo?” Joaquim parou
diante da mesa, onde os pertences do policial haviam sido colocados. Quando
se voltou, estava empunhando a ponto 40 do inspetor, a mesma que Teixeira
havia sacado bem debaixo da câmera da segurança. “O que você acha de ser
morto com a sua própria arma? Aliás, que tipo de tira é você que anda só com
uma arma?”
“Se uma arma só não basta para fazer o serviço...”
Joaquim atravessou a curta distância que o separava da cama e encostou o
cano da pistola na cabeça de Teixeira. “Eu só vou perguntar mais uma vez.
Como foi que você nos descobriu?”
“Se você quer mesmo saber, por que não faz aquele seu truque mais uma
vez? É só segurar a minha mão novamente.”
Joaquim afastou rapidamente a arma, como se tivesse ficado com medo do
contato com a pele de Teixeira. Logo em seguida caiu em si. Ficou com mais
raiva ainda quando viu que o outro estava rindo dele. O rapaz passou a pistola
para a outra mão e desferiu um soco na boca do policial. Não chegou a pegar
em cheio, mas lascou bem os lábios de Teixeira.
“Minha paciência está se esgotando. Como você sabia que nós ainda
estávamos no hotel?”
“Vocês não encontraram o que estavam procurando.”
“O que você quer dizer?” Havia surpresa e também uma nota de cautela na
voz de Joaquim.
“Eu faço ideia do que havia naquela maleta do velho e que vocês
surrupiaram. Aposto que a mocinha ali levou dentro da mochila.” A boca do
inspetor estava rubra de sangue.
Joaquim voltou a cruzar os braços, a pistola apontando para o teto. “Pois
muito bem, o que era então que estava na maleta?”
“Não eram drogas. Nem dinheiro. Nem joias.” Teixeira cuspiu de lado. A
baba sanguinolenta acabou escorrendo pelo seu ombro. “Aposto que era um
computador desses portáteis. Um notebook.”
Júlia e Joaquim trocaram um novo olhar, que não passou despercebido ao
inspetor. Ele continuou: “Mas o que vocês queriam não estava dentro do
computador.”
Júlia não se conteve. “Como você sabe disso?”
“Vocês estavam planejando voltar ao 909, não é? O criminoso sempre
retorna ao local do crime.” Teixeira deu um muxoxo. “Essa é velha até no
cinema.”
“Como você ficou sabendo?” Foi a vez de Júlia encetar um avanço na
direção de Teixeira. Apenas um passo, na verdade, antes que Joaquim
estendesse a mão para tocar seu braço, um pedido mudo de paciência.
O olhar de Teixeira encontrou o de Joaquim. O inspetor voltou ao ataque.
“Entrar lá novamente até que não seria difícil. Basta descer pela varanda, como
você já fez mais cedo. O que eu gostaria de saber é como você pretendia sair de
lá sem ser filmado pelas câmeras.”
“Nada que uma boa corda não resolva.”
“Não perca seu tempo. O que vocês procuram já está nas mãos da polícia.”
A consternação dos dois foi visível. Júlia levou as mãos aos cabelos e
Joaquim balançou a cabeça, contrariado. Teixeira insistiu:
“Pobrezinhos. Tanto trabalho para nada. Vocês assistiram a muitos filmes,
mas parece que não aprenderam a lição principal. O crime não compensa.” A
voz de Teixeira era pouco mais que um sussurro agora.
Foi a vez de Joaquim explodir. “Minha paciência se esgotou. Tirazinho
ordinário.”
“Vá em frente. Atire”, desafiou o inspetor. “Logo a polícia da cidade inteira
vai estar atrás de vocês.”
“Não”, Joaquim respirou fundo. “Eu não vou matar você.”
O jovem foi até a mesa e deixou a pistola em cima das roupas de Teixeira.
Ao se voltar novamente para encarar o inspetor, havia um brilho diferente em
seu olhar.
“Eu não vou matar você”, ele repetiu. “Tem muita coisa importante
envolvida, e eu não vou me arriscar a melar tudo com a morte de um tira sujo.”
“Vocês já melaram tudo, caso tenha esquecido.”
“Nós já vamos tirar esse sorrisinho besta da sua cara.” Joaquim trocou mais
um olhar com Júlia. O inspetor não gostou nem um pouco desse olhar. “Ou
melhor, nós vamos te dar um motivo para estar sorrindo assim.”
Brancas avançam na sexta:
A influência mostra-se na mandíbula, nas bochechas e na língua.

Quando viu que os dois jovens começavam a se despir, Teixeira ficou


realmente alarmado.
“Ei. Esperem um momento.”
“Fique tranquilo, kid chefinho.”
Dessa vez os dois gargalharam. Júlia livrou-se da calça colante e ficou nua
pela segunda vez diante do inspetor.
“É realmente uma pena que não tenhamos mais nenhuma moeda sobrando.
Sempre há um bom uso para talentos como o seu. Mas não há mal nenhum em
sexo só pelo sexo.” Ela aproximou o corpo longo e esbelto da beira da cama.
“Prometo que você vai gostar. De minha parte, pelo menos.”
Teixeira seguiu o olhar de Júlia e deparou-se com uma cena de horror, para
ele: Joaquim estava nu em pelo. Sem roupa, os dois irmãos não eram tão
parecidos. O peito de Joaquim era liso onde Júlia ostentava um orgulhoso e
pequeno par de seios. E um falo em início de ereção projetava-se do chumaço
dos pentelhos ao invés da rosada vulva.
Kim sentou-se ao lado de Júlia na cama. De frente um para o outro,
estenderam as línguas para fora da boca, anormalmente compridas. O
espetáculo era principalmente em benefício de Teixeira. As pontas das línguas
se tocavam, mas não as pontas dos narizes. Quando o nariz dele encostou no
dela, as línguas já estavam bem entrelaçadas.
Os gêmeos obtiveram essas línguas descomunais após a incessante prática
de Khechari Mudra, técnica iogue que visa acomodar a língua inteira por detrás
do palato. Quer dizer, Júlia conseguiu depois de muita prática. Kim recorreu,
como sempre, a procedimentos cirúrgicos para ficar mais e mais parecido com
a irmã.
E o resultado daquele beijo incestuoso e exposto foi que a ereção de Kim de
incipiente tornou-se plena e vigorosa. O pênis de Joaquim era um pouco torto e
não tão comprido, nem de longe tão grande quanto o de Teixeira. Ainda assim,
parecia capaz de causar um bom estrago.
“Não faça isso”, sussurrou o policial.
“Eu não vou te matar”, sussurrou de volta Joaquim. “Talvez te machucar
um pouco, só isso. Quem sabe você até acaba gostando.”
“Se você der mais um passo”, Teixeira fez um supremo esforço para firmar
a voz. “É melhor me matar. Pois eu vou lhe matar.”
“Não, eu não vou te matar”, repetiu Joaquim. Seus olhos brilhavam de
excitação e luxúria. “Sabe por quê? Depois que eu terminar, você jamais terá
coragem de contar o que aconteceu. Você não poderá falar sobre nós para
ninguém.”
“Eu vou matar você. Eu juro.”
“Como poderia? Você nem pode se mexer.” Joaquim cuspiu na palma da
mão e começou a esfregar saliva na glande intumescida. “Sabe qual é a melhor
coisa em nosso trabalho? Não importa quantas vezes você faça, sempre sobra
vontade para mais.”
Incidente no Salão 66 ½
CAPÍTULO 27 – ALIMENTO

Os cantos da boca. Deve-se atentar para a provisão de alimentos.


Ao pé da montanha, trovão. Assim o homem superior é cuidadoso em suas palavras e
moderado ao comer e beber.
(I Ching – hexagrama 27)

Finalmente a viatura da Homicídios retornava ao pátio da delegacia.


Para o inspetor Almeida, que ia guiando o carro, o trajeto foi bem curto,
meramente uma volta no quarteirão, da calçada em frente ao motel Le Barde
até o estacionamento da Homicídios.
Para o inspetor Teixeira, sentado no banco do carona, foi uma viagem de
dois anos até o passado, e mais dois anos de volta ao presente. Não seria de se
estranhar que ele se sentisse um pouco nauseado.
Aquele era o seu medo oculto, a razão para o trancamento durante as
sessões com Varlene, a face sombria, que nem ele mesmo conhecia direito. O
segredo do inspetor Teixeira.
Incidente na cobertura 9, poderia ter sido chamado o caso, que nunca chegou a
ser relatado. O inspetor mesmo seria o último a comentar o ocorrido.
Quem dera fosse fácil conduzir para fora da mente um pensamento
indesejável, expelir uma recordação dorida, expulsar essa nódoa mental que
rouba a atenção do dia e o sono da noite. Quem dera fosse tarefa simples,
como conduzir a viatura ao redor de um quarteirão.
A pior coisa a respeito do passado é que ele não muda. Às vezes, sequer fica
mais distante. Talvez o homem pense tanto no que já aconteceu movido pela
triste esperança de modificar o ontem. Mas querer mudar os fatos passados é
tão inútil quanto tentar escapar deles. O passado é que nem uma sombra:
quanto mais fugimos, mais ele nos persegue.
O que Teixeira tentava não era tanto esquecer o passado, mas justiçá-lo. Era
preciso reparar a ofensa sofrida. Era preciso trazer os ofensores à luz da justiça.
Era preciso fazê-lo com as próprias mãos.
Durante esses dois anos ele havia procurado, procurado, procurado.
Silenciosamente, disfarçadamente, obstinadamente. Mas as poucas pistas que
tinha não lhe valeram grande coisa.
O pen drive encontrado dentro da bíblia, por exemplo, não foi da menor
serventia para as investigações. O armazenador portátil continha apenas um
arquivo de texto, com uma mensagem evidentemente codificada. Nenhum dos
peritos da polícia foi capaz de decifrar o código. Teixeira bem que tentou por
conta própria.
As credenciais de Joaquim junto à revista Moda Espetacular revelaram-se
falsas. Não havia ninguém diretamente ligado à revista no hotel. Uma agência
de notícias estava encarregada da cobertura do desfile, prática comumente
adotada por suplementos de moda. Esse é o tipo de detalhe que só se percebe
depois que deixa de ter importância.
Pesquisar um nome tão comum quanto Joaquim Silva era tarefa de
proporções desanimadoras, ainda mais quando tudo indicava tratar-se de nome
forjado. Quanto a Júlia, menos indícios ainda existiam. Ainda assim, o inspetor
tentou, sem nenhum resultado. Até aquele dia, seus esforços haviam resultado
inúteis. Ele nunca havia conseguido a menor indicação a respeito do paradeiro
dos dois. Até aquele dia.
Quando a viatura da Homicídios parou no estacionamento defronte à
delegacia, o inspetor Teixeira ainda estava perdido em seu turbilhão particular.
Ele queria retornar ao presente. Mas o passado não deixava.
O inspetor Almeida girou a chave e deixou o carro morrer. Ele fitou o
homem sentado ao seu lado.
“Tudo bem, Teixeira? Você está com uma cara de quem comeu e não
gostou.”
“A sua cara também não inspira os melhores sentimentos, Almeida.”
“A minha cara, pelo menos, é de fome. Afinal, já passa da hora do almoço.”
“Fico feliz ao ver que o seu apetite não foi estragado por nosso trabalhinho
dessa manhã.”
“Não vai ser uma banheira entupida que vai me fazer perder a fome.”
Almeida sorriu, filosófico. “Lembre-se de que todo cocô já foi comida um dia.”
“O seu senso de humor é inigualável, Almeida.” A despeito de si mesmo,
Teixeira acabou rindo do tosco jeito de seu colega. Ele sentiu-se grato por isso.
“Realmente inigualável.”
Almeida riu também. O tenso clima que havia se impregnado dentro do
carro foi desfeito como que por encanto. “Sabe o que mais? Hoje é dia de
feijoada no Isidro.”
O bar e lanchonete do Isidro ocupava uma esquina da Jorge Nascimento, na
mesma calçada que a delegacia de Homicídios. Não passava de um pé sujo, mas
a comida era honesta. A maioria dos policiais da casa fazia suas refeições lá
quando estava de plantão.
Almeida insistiu:
“Que tal irmos direto almoçar? Não tem ninguém na delegacia mesmo.”
Essa observação revelava que também o inspetor Almeida possuía seus
poderes dedutivos. Não havia outro veículo oficial no estacionamento da
delegacia além da própria viatura onde estavam Almeida e Teixeira. Isso
indicava que os dois outros inspetores de plantão, Fátima e Rodrigues, tinham
partido em alguma diligência conduzindo a segunda viatura da Homicídios. O
pátio vazio sinalizava ainda que o delegado Santelmo também havia saído com
o Aymoré preto que era de seu uso exclusivo. Para Almeida, isso era o
principal.
Teixeira, contudo, nem estava com fome nem queria saber do paradeiro do
Curupira.
“Fica para a próxima. Bom apetite para você.”
“E você, não vai comer nada? Está fazendo curso para faquir, é?”
“Estou com muito serviço acumulado. Se você puder, traga um sanduíche
quando voltar do almoço. Peça ao Isidro para colocar em minha conta.”
“Você é quem sabe.”
Os dois policiais saíram do carro.

Pretas avançam na primeira:


Ele permite que sua tartaruga mágica escape, e olha com os cantos da boca recurvados.

Quando Teixeira entrou na delegacia, apenas o soldado Guilherme estava à


vista. Não havia mais ninguém na recepção além dele.
Guilherme era um homem de físico portentoso, um colosso africano. Falava
ao telefone. Fez um sinal para que Teixeira esperasse. Logo encerrava a ligação.
“Tem uma dona lhe procurando. Está ansiosa para falar com você. Já ligou
umas três vezes.”
Teixeira estendeu a mão para receber o papel com o recado anotado, mas o
PM sacudiu a cabeça.
“Não deixou nome nem telefone.” Guilherme abriu o rosto em um sorriso
cúmplice, exibindo os dentes brancos e imensos. “Pela voz, deve ser uma
deusa.”
Teixeira arqueou uma sobrancelha. Não conseguia imaginar quem estivesse
lhe procurando. Janine não seria doida de ligar para ele na delegacia. Ademais,
sua voz aguda e um pouco estridente evocava antes a Olívia Palito que alguma
possuidora de atributos divinos. Ele estava saindo com outras mulheres além de
Janine, mas nenhuma delas sequer possuía o número da delegacia. O inspetor
não gostava de misturar sua vida pessoal com a profissional. Janine foi a
primeira exceção e, consequentemente, o primeiro erro.
O inspetor ainda se esforçou mais um pouco para tentar descobrir uma
possível autora das ligações, mas acabou tendo que descartar uma por uma
todas as hipóteses que lhe ocorreram. Enfim decidiu deixar o assunto para lá.
“Cadê o resto do pessoal? Ainda no almoço?”
“Hoje não teve almoço certo. O bicho está pegando na favela do Urtigão. O
delegado saiu chispando para lá não tem nem uma hora. Aliás, o homem ficou
uma fera quando soube que vocês saíram com a viatura.”
Teixeira fingiu não ter registrado o comentário. “O que é que aconteceu no
Urtigão?”
Guilherme não se fez de rogado. Estava doido para contar a novidade.
“Passaram o Luca do Urtigão. Ele e mais uma dúzia. Foi um massacre.”
“Como foi isso?”
“O Luca estava em uma churrascaria, o Salão 66 ½. Aquela nova que abriu
ali perto da subida do Urtigão, sabe qual é?”
“Sim. Pelo que soube, quem está por trás do restaurante é justamente Luís
Cláudio Delgacio, o Luca do Urtigão.”
Guilherme sacudiu a cabeçorra em um enfático assentimento. “Parece que
ele é o dono mesmo. Pois então. Foi nesse restaurante que o Luca estava
almoçando com sua patota quando os dois sujeitos entraram atirando com
metralhadoras. Nem os garçons escaparam.”
“Que dois sujeitos?”
“Essa foi até uma parte engraçada. Pois veja você que acabaram de ligar
perguntando se era verdade que Jorginho Príncipe estava morto.” Guilherme
mostrou a alvíssima dentição novamente. “Confundiram o matador com o
morto.”
“Espere um pouco. Como é que é?”
“Foi o Jorginho Príncipe quem passou o Luca.”
“Mas isso é... por que você está dizendo isso?”
“Ora, não sou eu que estou atendendo às chamadas? Acabo ficando
sabendo de tudo primeiro.”
“Sim, é claro. Mas quem foi que disse que Jorginho Príncipe matou Luca?”
“Lembra do Andrade, que agora está na 27ª DP?”
“Lembro, sim.”
“Foi o Andrade que ligou passando a ocorrência. Eles receberam o
chamado lá pela 27ª. Parece que o gerente da churrascaria, um dos poucos que
escapou da chacina, foi quem primeiro ligou avisando.”
“Sim. E quanto ao Jorginho Príncipe?”
O PM limitou-se a fazer um gesto com a mão, pedindo paciência. Como
muitos de seus colegas de profissão, ele acreditava que existia um único jeito
certo de se contar uma história. O seu jeito.
“Quando o tiroteio começou, o gerente pulou para debaixo de uma mesa e
foi assim que acabou se salvando. Ele fez uma boa descrição dos atiradores.”
Guilherme ainda esperou que o inspetor fizesse o primeiro gesto de
impaciência, para então se apressar a concluir: “Foram dois. Entraram atirando
com metralhadoras. Estavam vestidos de preto da cabeça aos pés e usavam
aquelas máscaras ninja que cobrem o rosto todo e só deixam os olhos de fora.”
O PM calou-se, como se esperasse alguma pergunta. Teixeira resolveu fazer-
lhe a vontade:
“E como foi, pode-se saber, que se chegou à fabulosa conclusão de que um
dos atiradores mascarados era afinal Jorginho Príncipe?”
“Depois que os tiros pararam, o gerente ouviu parte de uma conversa entre
os dois matadores. Teve uma hora em que um deles falou assim para o outro:
‘Jorginho, vamos deixar as orelhas desses aí para lá, nós não temos tempo’.”
“Certo. Então um criminoso mascarado chama outro de Jorginho, e isso é
prova de que se trata de Jorginho Príncipe.”
“Ora vamos. Todo mundo sabe que o Jorginho e o Luca são inimigos
jurados faz tempo. Um estava doido para tomar a boca do outro. Além disso,
você conhece outra pessoa na cidade que faça coleção de orelhas?”
“Tudo continua baseado inteiramente em uma fala que o gerente ouviu.
Algo que pode ter sido dito justamente para que ele escutasse.”
“Mas por que essa cisma de que não foi o Jorginho que apagou o Luca?
Você está sabendo de alguma coisa?”
“Quando a próxima pessoa ligar perguntando se é verdade que Jorginho
Príncipe está morto, pode confirmar. Ele morreu por volta da meia noite de
ontem, afogado em uma banheira cheia de merda e vômito. Pensando bem, é
melhor esperar a confirmação do IML.”
“O quê? Jorginho Príncipe? No Le Barde?”
Por um momento os dois se encararam.
Teixeira teve uma inspiração súbita: “Espere um pouco. Você é o
Guilherme que está fazendo bico como segurança no Le Barde, não é
verdade?”
Guilherme colocou-se imediatamente em guarda. “Sou eu, sim. Por quê?”
“Por que você não comentou nada?”
“Eu já estava aqui na delegacia quando os corpos foram descobertos.
Quando seu Ranulfo ligou, fui eu que atendi a ligação.”
Teixeira estava para dizer alguma coisa, talvez muitas coisas. Mas nesse
momento o telefone tocou. Guilherme atendeu.
“Delegacia, boa tarde. Sim, ele já chegou. Só um momento.” Guilherme
tapou o fone com a mão imensa e exibiu os dentes mais uma vez. “É ela. A
deusa.”

Brancas avançam na terceira:


Afastando-se da nutrição. Nada é propício.

“Teixeira falando.”
Ele havia pedido que a ligação fosse transferida para a sala de plantão dos
inspetores, o que foi feito sob os protestos bem humorados e maliciosos do
soldado Guilherme.
“Inspetor Teixeira? Alberto Lino Teixeira?”
A voz da mulher do outro lado da linha realmente possuía algo de notável.
Um timbre aveludado e muito feminino, que a distinta nota de tensão tornava
ainda mais atraente. O inspetor não teria esquecido facilmente aquela voz, caso
tivesse ouvido antes.
“Ele mesmo. Quem está falando?”
“Meu Deus. Então é tudo verdade mesmo.”
“O que é verdade, dona? E qual é o seu nome?”
“Nós não temos muito tempo. Você precisa vir me encontrar. Já foi uma
loucura telefonar para a delegacia. Ele sempre sabe de tudo o que acontece na
delegacia.”
“Ele? Ele quem?”
“Meu marido.” A voz mal passava de um sussurro. “Mas o que é que eu
estou dizendo? Eu devo estar ficando louca mesmo. Doida varrida. Só pode.
Maluca, maluca.”
Parecia que a mulher falava mais para si mesma que para Teixeira. A nota de
tensão em sua voz havia se transformado em um poderoso acorde, onde o
medo era a dissonância predominante.
“Se a senhora não se acalmar um pouco, não terei como lhe ajudar.”
“Encontre-me na praça Cardeal Vilela. Eu estarei sentada em um dos
bancos. Você sabe onde fica?”
“Acho que sim. É um pouco longe daqui.”
“Eu andei até encontrar um lugar sobre o qual eu nunca tivesse lido. Ele
não poderia ter inventado uma cidade inteira, ou poderia? Tem que existir
algum local que até mesmo ele desconheça.”
“Me desculpe, mas a senhora não está falando coisa com coisa.”
“Por favor, venha depressa. Não sei quanto tempo ainda temos. Você virá,
não virá?” O tom era de súplica feminina, de apelo ao cavalheirismo.
“Mas eu nem sei o seu nome ainda. E muito menos o de seu marido todo-
poderoso.” Teixeira tentou brincar para diminuir o desconforto de se ver
envolvido em uma situação tão esdrúxula. Pois a verdade é que estava ficando
envolvido.
“Ah, mas ele sabe tudo sobre você. Isso eu garanto.” A mulher deu uma
risada seca, nervosa.
“Escute, por que a senhora não dá um pulo aqui na delegacia?”
“Eu não posso. Estou com medo.”
“Mas o que aconteceu, afinal?”
A mulher suspirou perceptivelmente antes de responder:
“Eu sei o que você procura, Alberto. Está bem aqui, dentro de mim.”
Dois minutos depois Teixeira já estava na rua, a caminho.
Quando o inspetor Almeida voltou do almoço, trazia uma sacola de papel
com o sanduíche encomendado por seu colega. Era um sanduíche de
salaminho, especialidade do Isidro, que permaneceu intocado até pouco depois
do anoitecer. Como Teixeira não voltava, Almeida resolveu dar fim à
prolongada paquera e devorou o sanduíche.
Aquecido pelas calorias extras, ele atendeu de boa vontade o telefone que
tocava em sua mesa.

Brancas avançam na quarta:


Espiando ao redor com o olhar firme e o insaciável propósito do tigre. Sem culpa.

A praça Cardeal Vilela ficava na periferia da cidade. Por algum motivo que
talvez fosse desconhecido até para ele mesmo, Teixeira decidiu ir com seu
triciclo.
Ele poderia ter pegado as chaves da viatura com Almeida, mas não o fez.
Caminhou dois quarteirões até a estação do metrô e pegou uma conexão que o
deixou perto de casa. Se tivesse tomado o trem no sentido contrário, e depois
outra conexão, teria chegado ao destino em pouco mais de vinte minutos.
Mas não. Ao chegar ao prédio onde morava, Teixeira foi direto para o
estacionamento. Ele trazia as chaves do triciclo junto com as da casa no mesmo
chaveiro.
O triciclo era uma máquina de quase quatro metros de comprimento em aço
cromado preto. A roda dianteira, projetada em vertiginoso ângulo aberto, dava
a impressão de que a qualquer momento iria se soltar do corpo do veículo. Na
pista, o efeito era o de acentuar a sensação de velocidade. Os guidões eram duas
serpentes que se elevavam acima da cabeça do piloto, que era obrigado a dirigir
com os braços levantados. Era assim que Teixeira gostava.
Motos e triciclos eram uma paixão antiga. Especialmente os triciclos. Na
verdade, Teixeira só se interessou por motos até que conseguiu montar o seu
primeiro triciclo, já iam dez anos. E há quase oito o inspetor fazia parte dos
Lobos da Estepe, um dos mais conhecidos moto clubes da cidade. Ele esperava
reunir-se com os outros Lobos durante o próximo fim de semana, quando
ocorreria uma convenção de motociclistas em Cachoeiro do Conde, cidade
serrana que ficava a menos de cem quilômetros de Rio Santo.
O triciclo de Teixeira levou quase meia hora para chegar à praça Cardeal
Vilela. Havia algumas pessoas transitando pela praça, mas não foi difícil
descobrir qual delas ele viera encontrar.
Era simplesmente a mulher mais linda que ele já havia visto.
CAPÍTULO 56 – VIAJANTE

A perseverança é propícia para quem viaja.


Fogo sobre a montanha. Assim o homem superior mantém a mente aberta e é cauteloso ao
impor penalidades.
(I Ching – hexagrama 56)

Ela estava sentada em um dos bancos da praça, diante do parquinho onde


crianças brincavam. Em um banco próximo, duas outras mulheres
conversavam animadamente. Deviam ser mães ou babás das crianças. Teixeira
mal as notou. Desde o instante em que avistou a Dama, sua atenção foi
irresistivelmente capturada.
A Dama. Tal foi o impacto daquela mulher sobre os sentidos de Teixeira,
que palavras seriam vãs. De que adiantaria falar do corpo bem torneado de
mulher grande e vistosa, do rosto de estátua grega com olhos de jade, dos
cabelos cacheados de seda negra, do vestido lilás contra a alvura da pele, do
decote que evidenciava tão bem a fartura e a excelente consistência dos seios?
Uma descrição assim, meramente visual, não estaria à altura.
Para fazer jus ao que Teixeira experimentou seria necessário recorrer ao
auxílio de outros sentidos. O inspetor foi ao encontro da mulher, imaginando
como seria ouvir aquela voz de deusa saindo de uma boca como aquela, de um
corpo como aquele. Como o vento estava a favor, ele ainda estava um pouco
distante quando o seu olfato foi presenteado por um doce perfume de
inebriantes promessas. E logo o tato e a gustação estavam clamando pela
oportunidade de também provar para poder contar.
Palavras, palavras, palavras. Para um homem como Teixeira, uma só bastava
para definir uma mulher como aquela: perfeita.

Brancas avançam na primeira:


Se quem viaja se ocupa de coisas triviais, atrairá para si o infortúnio.

“Você é exatamente como eu imaginei. Como é que pode?”


Teixeira ficou sem ação. O cenho franzido da mulher indicava que aquelas
palavras não eram exatamente elogiosas. Ela parecia genuinamente intrigada.
“Como você pode ser igual à minha imaginação? Você deveria parecer com
a imaginação dele.”
Só então ela percebeu a expressão no rosto do inspetor. Após um segundo
de surpresa, a mulher soltou uma risada curta e nervosa.
“Olha, me perdoe. Que papelão devo estar fazendo. Só posso estar maluca
mesmo.”
Até aqui os dois estavam de pé, um de frente para o outro, pois ela havia
levantado do banco quando o inspetor se aproximou.
“Vamos sentar um pouco”, sugeriu Teixeira.
“Desculpe. Apesar de tudo o que aconteceu nas últimas horas, eu ainda não
estava preparada para este momento, para encontrar você. O inspetor
Teixeira.”
A mulher parou de falar. Baixou os olhos, as mãos apertando a bolsa sobre
o colo, uma bolsa roxa que era um tom mais escura que o vestido. Ela própria
parecia que ruborizava.
Ele sorriu um tanto sem jeito. Parecia contagiado pela súbita timidez dela.
“Eu ainda nem sei como você se chama.”
“Ágata.”
“Bonito nome.”
“Obrigada.” Como o inspetor se calasse por uns momentos, ela ficou
nitidamente mais tensa. “Você não vai querer que eu diga o nome todo não, né?
Como se fosse um interrogatório de polícia.”
Instintivamente Teixeira também retesou. “Por que você não quer dizer o
nome?”
“Eu não gosto de meu nome. Meu nome não é meu, é dele.”
“Dele quem?”
“Meu marido.” Ela o fitou nos olhos por um momento. Os olhos dela
brilhavam. “Desculpe, mas eu não quero, eu não posso dizer o nome dele.”
Por alguns instantes nenhum dos dois encontrou nada para dizer. Teixeira
aproveitou a pausa para tomar a mão da mulher entre as suas: “Ágata, que tal
me contar o que está acontecendo?”
Ela levou um tempo para responder. Quando falou, foi em uma curiosa
cadência apática, como se memorizasse em voz alta algum texto.
“Eu nunca tinha visto gente morta, sabe? Sempre gostei de histórias
policiais, mas nos livros e filmes a morte é diferente. Sabemos que o ator irá
levantar do chão depois que a cena for filmada. E nos livros a diferença é ainda
maior, pois a vida e a morte só existem na cabeça de quem escreve... e na de
quem lê.” Ela respirou fundo. “É bem diferente estar dentro do livro.”
“Você viu alguém ser morto? É isso que está querendo dizer?”
Ágata limitou-se a assentir levemente, mais com os olhos que com a cabeça
propriamente.
“Como foi isso?” Como ela não respondeu de imediato, Teixeira insistiu:
“Pode se abrir comigo. Vai se sentir melhor depois.”
É claro que essas palavras foram acompanhadas por um de seus melhores
sorrisos.
Pretas avançam na terceira:
A hospedaria de quem viaja é queimada. Um imperturbável auxiliar é perdido. Perigo.

“Não estou conseguindo falar nada direito.”


“Que tal começar explicando por que disse aquilo ao telefone?”
“Aquilo o quê?”
“Quando você falou que sabe o que eu procuro...”
“Eu sei o que você procura, Alberto. Está bem aqui, dentro de mim”, recitou Ágata.
Ela baixou os olhos. Quando voltou a fitar Teixeira, o inspetor não teve
outra opção além de abrir ainda mais o sorriso.
“O que você quer dizer com isso?”
Ágata também sorriu, de modo enigmático:
“Foi algo que eu li em um livro, só isso.”
“Como assim, leu em um livro? Eu sonhei com uma mulher me dizendo
isso hoje mesmo. Exatamente essas palavras que você disse.”
“Eu sei disso.”
“Você sabe?”
Ágata encarou o olhar perplexo de Teixeira. Exalou o ar pelos lábios
entreabertos, que já formavam uma carnuda letra ó. Respirou fundo e tascou
um beijo no inspetor. O beijo durou pouco mais de um segundo. Mas ele não
permitiu que ela se afastasse e retribuiu. Dessa vez durou bem mais. Começou
impetuoso, ficou terno, tornou-se apaixonado e cresceu em avalanche. Por fim
ela o afastou para tomar fôlego.
“Obrigada”, Ágata arquejou. “Sempre sonhei um dia fazer isso.”
E beijou-o de novo.
Pretas avançam na quarta:
Quem viaja repousa em um abrigo. Obtém meios de subsistência e um machado. Mas seu
coração não está feliz.

“Você é muito melhor ao vivo”, ela disse depois de algum tempo. “Eu já
sabia que seu beijo era uma delícia. Só não pensava que fosse tanto.”
O inspetor ficou um pouco encabulado com um elogio assim tão direto.
“Ora, muito obrigado.”
“Se o beijo é assim, imagine o resto. Pelo que já sei de você, isso me dá até
medo.”
“Vamos esclarecer uma coisa. Tudo isso é muito lisonjeiro, mas nós nunca
nos vimos antes. Como é que você está dizendo que sabe tanto assim de mim?”
“Ah, Alberto.” Ágata sorriu e acarinhou o rosto do inspetor. “Você pode só
estar me conhecendo hoje, mas eu conheço você há muito tempo. Eu sei de cor
os principais crimes que desvendou, como a morte do comendador Gonçalves
e a morte da prostituta Sueli. Esse, então, é meu caso favorito.”
Teixeira ficou atônito. Ágata riu. Era mesmo cômica a expressão de surpresa
estampada no rosto do inspetor. Ela continuou:
“Sim, e sei de muito mais. Sei das mulheres que você amou, embora sejam
tantas que fica difícil manter a contagem. Cheguei a fazer uma média certa vez,
sabia? Deu quase três mulheres para cada assassinato que você resolveu. Você
não é fácil, Alberto!”
Ela fez que ia dar um tapa nele, de pura faceirice. Era evidente que estava se
divertindo naquele momento.
“Sei também de suas duas grandes paixões: música e motos.” Um rápido
olhar para a máquina de Teixeira, estacionada logo adiante, foi o suficiente para
Ágata logo emendar sorrindo: “Ou melhor dizendo: música e triciclos. Sei tanto
sobre você, Alberto. Sei que odeia televisão e que por isso não tem nenhuma
em casa.”
Teixeira parecia enfeitiçado. Ágata apertou a mão que estivera segurando a
dela todo esse tempo.
“Eu gostaria muito de conhecer o seu apartamento.” Ela olhou ao redor,
parecendo novamente apreensiva. “Eu me sentiria bem mais segura lá, com
você.”
O inspetor finalmente despertou:
“Qual é o problema? É o seu marido?”
“Nem me fale nele.”
“Ágata, me diga o que está acontecendo. Quem é você? Como sabe tanto
sobre mim?”
“Eu quero contar tudo. E vou contar. Mas não aqui. Estou me sentindo
muito exposta. Parece que tem alguém me vigiando.”
“Vamos para o meu apartamento, então.”
Uma fagulha pulsou no olhar de Ágata. “Você me leva?”
Não foi preciso insistir. No caminho de volta para casa, com Ágata sentada
atrás dele no triciclo, Teixeira poderia ter pensado na incongruência da trama,
na inverossimilhança dos fatos. Mas estava concentrado mesmo era no calor
das coxas de Ágata contra suas costas, no vento à sua frente e na pista que
faltava para chegar logo. Talvez se deixasse levar fácil demais. Quem poderia
culpá-lo?

Brancas avançam na quinta:


Acertando um faisão com sua primeira flecha. Ao final isso trará elogios e posição.
Teixeira morava no sétimo andar. O velho elevador demorou a chegar e
subiu ainda mais lentamente. O inspetor teve tempo para pensar no que faria
caso Janine estivesse esperando para pegar o elevador no sexto andar. O que
acabou não acontecendo.
Quando chegaram na porta do 703, Ágata levantou um dos pés para
desamarrar a sandália de salto alto que usava. Diante do olhar de Teixeira, ela
sorriu e disse:
“Eu sei que você prefere que as pessoas andem descalças em sua casa.”
“De onde você tirou essa ideia?”
“Pode chamar de palpite. Você parece bem o tipo de pessoa que reserva um
lugar para guardar os sapatos logo na entrada de casa.”
Sem esperar convite, Ágata foi entrando pela porta que Teixeira havia
acabado de abrir. “E não é que eu estava certa?”
Ela guardou os calçados no porta-sapatos que ficava de fato ao lado da
porta.
“Parabéns! Gostei mesmo desse truque.” O inspetor começou a tirar os
próprios sapatos e meias. Ela havia agido com uma graça tão espontânea que
Teixeira não teve outro remédio a não ser aplaudir.
Ágata já avançava pela sala. “Então esse é o famoso aparelho de som com
capacidade para mais de três mil músicas. E nenhuma delas é mais nova do que
eu.”
Teixeira franziu as sobrancelhas. “Agora chega. Eu quero algumas
explicações e quero agora.”
Eles ficaram encarando um ao outro por um longo tempo. Então Ágata
remexeu na bolsa roxa e de dentro dela retirou um livro. Ao passar o volume
para as mãos de Teixeira, acrescentou:
“Agora você vai entender tudo.”
Era um livro fino, com menos de cem páginas. A capa era plastificada e
brilhante, com os dizeres em branco, negro e vermelho saltando sobre o fundo
multicolorido:

A MORTE DO INSPETOR TEIXEIRA


mais um best-seller de

ROGÉRIO ARCANJO BASTOS


CAPÍTULO 42 – AUMENTO

É favorável empreender algo.


Vento e Trovão: a imagem do Aumento. Assim o homem superior imita o bem e se livra de
suas falhas.
(I Ching – hexagrama 42)

Encontrar uma vaga quase na porta da churrascaria foi pura sorte. Pode-se
dizer que o resto todo foi bastante planejado.
Kim estacionou o W Sport cinza na calçada. O carro havia sido
encomendado dois dias antes, junto com o Corvenna preto utilizado no serviço
do Le Barde. Kim havia sido bem detalhista ao fazer o pedido do Corvenna,
pois queria um carro chamativo, que causasse o máximo de efeito. Quanto ao
veículo que utilizavam agora, o irmão de Júlia fizera apenas cinco exigências:
um bom motor e quatro portas.
Foi sorte ter encontrado a vaga, mas não somente. Dizem que sorte nada
mais é que estar preparado para a oportunidade. Kim estava ainda manobrando
o carro quando um adolescente negro se aproximou:
“Não pode parar aí, não.”
Sem muita sutileza, a mão do rapaz já escorregava para a linha da cintura,
por debaixo da camisa. Não era preciso um gênio da dedução para perceber que
se tratava de um dos soldados do morro do Urtigão, postado ali como
segurança.
Júlia abaixou o vidro de sua janela e endereçou ao jovem negro um sorriso
radiante:
“I intend to search your restaurant, Mr. Spade. I warn you that if you attempt to prevent
me I shall shoot you.”
Júlia falava o inglês com perfeição, fruto de seus anos passados nos Estados
Unidos. Kim também, embora com menos desenvoltura. Já a obsessão com
citações literárias era coisa só dela. Nunca vi Kim lendo nada além de revistas
em quadrinhos.
“Não entendi nada, gringa.”
Sempre sorrindo, Júlia fez sinal para que o jovem se aproximasse mais.
Quando ele fez o instintivo gesto de abaixar a cabeça para se aproximar da
janela do carro, um vigoroso golpe de baixo para cima o atingiu bem no queixo.
Ele ainda estava caindo quando Júlia saltou do carro. Ela virou o rapaz caído no
chão e cravou uma comprida agulha de metal em sua nuca, bem onde
terminava o crânio. A agulha perfurou o bulbo raquidiano, fazendo cessar a
respiração e os batimentos cardíacos. A morte foi instantânea e muito limpa,
com um mínimo de sangramento. De forma semelhante, mas geralmente não
tão precisa, eram abatidos os bois e vacas destinados a virar churrasco no Salão
66 ½.
Depois ela só precisou ajeitar levemente o cadáver na calçada. Caso algum
transeunte passasse por ali durante os poucos minutos que iria durar a
operação, não olharia duas vezes para o corpo caído. Era só mais um indigente
bêbado ou drogado, dentre tantos que infestavam a cidade. Júlia então voltou
para o carro e comandou a pessoa que estava sentada no banco de trás:
“Pode sair agora.”
Depois que o banco de trás ficou vago, Kim tirou o celular do bolso. Em
poucos instantes já estava acessando a minitevê. Os dois ficaram monitorando
o interior da churrascaria pela minitevê, com especial atenção para a disposição
dos convidados e garçons. Nada mais fácil: todos reunidos ao redor de uma
única mesa comprida. Os gêmeos trocaram um breve olhar e iniciaram os
preparativos finais. Júlia apanhou dois estojos, um dos quais passou para Kim.
Cada estojo continha uma submetralhadora de nove milímetros. Era uma
pena que o carregador só tivesse capacidade para trinta projéteis, o que tornava,
na prática, impossível alcançar a marca de seiscentos tiros por minuto
prometida pelo fabricante. Cinco carregadores cheios acompanhavam cada
estojo.
Depois de encaixar um dos carregadores na submetralhadora, os dois
prenderam os carregadores extras nos compartimentos do cinto. Passaram a
correia por cima do pescoço, para só então destravar a arma. Aguardaram mais
alguns instantes monitorando o interior do restaurante. Finalmente, no
momento propício, colocaram as máscaras e saíram do carro.

Brancas avançam na terceira:


Alguém enriquece por meio de eventos desafortunados. Sem culpa, se a pessoa for sincera,
trilhar o caminho do meio e se identificar perante o príncipe.

Eram treze à mesa. Luca havia acabado de notar este fato. Deveriam ser
catorze, mas um dos homens não pôde vir de última hora.
“Onde se enfiou o Murilo?”
“Está procurando a sobrinha”, respondeu Tisiu, o aniversariante. “Parece
que está sumida desde ontem. Ele passou lá em casa avisando que não poderia
vir hoje. A irmã dele está num desespero só.”
“Que sobrinha? A Ivonete?” Quis saber Zé Galo. Não era segredo para
ninguém do morro do Urtigão que ele andava de olho na sobrinha mais velha
de Murilo, que havia acabado de completar seus quinze anos.
“Não. Quem sumiu foi a mais nova, Belinha. Depois que saiu da escola,
ninguém mais viu.”
Luca limitou-se a ouvir em silêncio. Não era o momento de intervir. O mais
provável é que a menina tivesse escapulido com um enrabicho, algum
desmiolado que dentro em breve amaldiçoaria o dia em que sua mãe o pôs no
mundo, quando Murilo os encontrasse. Murilo não era nem de longe o mais
tranquilo dos capitães de Luca. Pavio curto desde menino. Luca o conhecia
bem, sendo os dois primos e compadres. Murilo deu a mais nova, justamente a
que andava sumida, para Luca batizar. E como o sumiço de sua afilhada era
pelo momento estritamente um assunto de família, o chefe do tráfico no morro
do Urtigão achou melhor erguer a tulipa de chope e fazer o brinde:
“Ao nosso Tisiu, que continue sendo um amigo fiel e o terror dos
inimigos.”
Doze copos foram erguidos em resposta. Era já uma tradição, o churrasco
em comemoração aos aniversários do bando. A novidade era estarem
comemorando no Salão 66 ½, casa recém-inaugurada e da qual Luca era sócio
majoritário. Extraoficialmente, é claro.
Luca considerava-se essencialmente um homem de negócios. Não era
nenhum selvagem sanguinário como aquele louco do Jorginho Príncipe. E um
almoço assim com seus homens, em meio a um clima cordial e um ambiente
elegante, ajudava a reforçar a imagem de negociante bem sucedido.
Não havia outros clientes no Salão. Cinco garçons revezavam-se para
manter pratos e copos sempre cheios, enquanto o gerente se desfazia em
rapapés e mesuras. Mais por hábito que por segurança, Luca havia ordenado
que o restaurante ficasse à sua inteira disposição durante toda a tarde. Uma
tabuleta foi afixada na porta, com a inscrição “FECHADO”. Esta simples
medida seria suficiente para restringir o acesso de outros comensais.
Mas não impediu de entrar uma mulher alta, bem vestida, bonitona. Luca
observou um dos garçons ir ao encontro da mulher. Era um garçom bem
baixinho, com cara de índio. Após ouvir por um instante, o garçom balançou a
cabeça e estendeu os braços, na clara intenção de conduzir a mulher de volta
até a porta da rua. Luca espremeu o lábio inferior entre os dedos e soltou um
assovio agudo, estridente. Todos os olhares voltaram-se para ele.
“Garçom” Luca fez sinal para que se aproximasse. O medo estampado no
rosto do homem era patético e vagamente repulsivo. “O que a moça deseja?”
“Ela pediu para usar o banheiro, mas eu já avisei que a casa está fechada,
senhor.”
“Ora, mas não faz mal nenhum abrir uma exceção, não é mesmo?” Luca
alteou a voz, fazia questão que a mulher soubesse que era ele quem mandava
por ali. “Ainda mais no caso de uma moça tão bonita.”
Ela retribuiu o sorriso que Luca lhe endereçou, agradeceu e seguiu na
direção indicada pelo garçom baixinho. O coitado ficou roxo de
constrangimento, quase da cor do vestido que a mulher usava.
Luca continuou sorrindo mesmo depois que ela entrou no banheiro. O
aniversário podia ser de Tisiu, mas aquele presente seria ele, Luca, quem iria
desembrulhar. A luxúria brilhava no sorriso do dono, em antecipação ao que já
se via fazendo com a mulher, que era mesmo uma cavalona. Quem mandou
ignorar o aviso na tabuleta? Pisou no Salão 66½, tem que pedir benção ao Luca
do Urtigão. Se a mulher ainda não sabia disso, iria descobrir em breve. O
melhor seria nem esperá-la voltar do banheiro.
Luca estava para se levantar e ir atrás dela quando notou que mais alguém
estava pisando no salão. Eram duas pessoas vestidas de negro.

Pretas avançam na quinta:


Se você possui um bom coração, não tenha dúvidas. Sua bondade será verdadeiramente
reconhecida.

Júlia começou disparando. A arma no modo bursts expelia dois ou três


projéteis de cada vez em rápida sucessão.
Luca foi um dos primeiros a serem atingidos. Uma bala lacerou sua garganta
e uma segunda atravessou o pulso esquerdo. Ele não morreu imediatamente,
como um dos garçons que o servia e que foi atingido na cabeça. Assim, pôde
assistir ao súbito e definitivo encerramento de seus empreendimentos
comerciais.
Kim esperou alguns segundos antes de começar a atirar. Ele ficou de olho
para que ninguém tivesse a oportunidade de reagir. Todos à mesa como
estavam formavam um alvo fácil. Se alguém chegou a ter presença de espírito
para sacar a arma, ainda assim não conseguiu efetuar um único disparo em
resposta ao ataque. Kim orientou suas rajadas da esquerda para a direita, no
sentido oposto ao de sua irmã. Isso exigia alguma prática, pois era preciso
refrear a todo momento o impulso gerado pelos disparos, que puxava o cano da
arma para cima e para a direita.
Enquanto isso, Júlia recarregava sua submetralhadora. Mal Kim havia
disparado o seu último tiro e Júlia já retomava os disparos. Logo Kim
recarregou e também voltou a atirar. Muito menos tiros teriam sido suficientes.
A operação toda durou cerca de trinta segundos. Não chegava à marca de
seiscentos tiros por minuto, nem de longe. Mas nenhum dos dois pensava em
reclamar na Defesa do Consumidor.
Júlia caminhou resolutamente para o fundo do restaurante. Ao ouvir os
passos se aproximando, o gerente do Salão 66½ pensou que seu esconderijo
debaixo da mesa havia sido descoberto. Mas os passos seguiram direto para o
banheiro feminino.
A mulher dentro do banheiro ficou assustada quando viu aquela figura
mascarada, toda vestida de negro, empunhando a arma ainda fumegante. Júlia
tirou a máscara. “Sente-se ali”, ordenou.
A mulher entrou em uma das cabines e repousou os quadris perfeitos em
cima da tampa abaixada do vaso. Júlia inspirou fundo e então cantarolou:
“Você vai entrar no modo de instrução em três, dois, um.”
Os olhos da mulher ficaram levemente opacos. Júlia passou sem demora
suas instruções: “Depois que eu sair do banheiro, você vai se masturbar até ter
um orgasmo bem gostoso. E enquanto você estiver gozando, Regina deixará de
existir. Você vai esquecer tudo o que for relacionado a Regina. Toda e qualquer
lembrança de Regina será banida de sua mente. E se você insistir em tentar
lembrar: tonatufor.”
Júlia tornou a vestir a máscara e saiu do banheiro ainda com o grito de
agonia em seus ouvidos. Um leve aceno de cabeça mostrou para Kim que
estava tudo de acordo com o plano.
Kim avançou dois passos na direção da irmã. Colocou a mão em concha
diante da máscara e bradou, mais alto do que deveria: “Vamos ter que deixar
para lá as orelhas desses aí, Jorginho. Nós não temos tempo.”
Kim era um péssimo ator. Como sempre, sua atuação foi exagerada. Mas foi
o suficiente para convencer sua reduzida plateia: o homem suado e exaurido
pelo medo que estava escondido debaixo de uma das mesas.
CAPÍTULO 22 – BELEZA

Sucesso em pequenos assuntos.


Fogo ao pé da montanha. Assim age o homem superior ao esclarecer as questões correntes.
Mas ele não ousa decidir assuntos controversos desse modo.
(I Ching – hexagrama 22)

“Metade do livro está em branco.”


Ágata assomou por detrás do balcão da cozinha americana, de onde saía um
cheiro gostoso de comida. “Até onde você leu?”
Teixeira exibiu o livro aberto. “Até onde está escrito. A partir da metade as
páginas estão em branco.”
“Já leu tudo isso? Você lê rápido.” Ágata sorriu tentativamente, sondando o
humor de Teixeira. O olhar dele devia estar mesmo meio tenebroso. “Me dê só
mais dois minutinhos, está bem? Nosso almoço está quase pronto.”
Ela sorriu mais uma vez antes de desaparecer dentro da cozinha.
O inspetor folheou novamente o livro, como se para checar que não havia
mais nada escrito da metade para a frente. Busca inútil. Não só as páginas
estavam completamente vazias, como também a contracapa.
Ele voltou para o início do livro. A primeira página repetia o título: A Morte
do Inspetor Teixeira. A página seguinte estava em branco. A outra trazia o nome
do autor: Rogério Arcanjo Bastos, e abaixo, em letras maiores, novamente o
funesto título. Logo a seguir vinha em caixa alta, mas em corpo menor: O
ÚLTIMO CASO DO INSPETOR.

Ao virar a página reparou em algo que até então não tinha visto:

LEIA TAMBÉM DO MESMO AUTOR:

A MORTE DA PROSTITUTA SUELI

A MORTE DO COMENDADOR GONÇALVES

A MORTE DA PROFESSORA TELMA

Teixeira ficou bastante surpreso quando Ágata mencionou os dois primeiros


casos, ambos ocorridos em seu primeiro ano na Delegacia de Homicídios. É de
se imaginar que tenha sido uma surpresa ainda maior a citação de sua antiga
mentora, por quem teve uma paixonite platônica durante a adolescência. O
assassinato de Telma foi um encerramento brutal para os sonhos românticos do
jovem Alberto e acabou sendo importante para determinar o seu ingresso na
polícia.
Não é impensável, entretanto, que esse detalhe tenha deixado Teixeira
desconfiado, com a pulga atrás da orelha. Teria se lembrado de que falou sobre
os três casos durante suas sessões com Varlene? Talvez mencionar livros
anteriores tivesse sido um erro. O inspetor tinha um bom faro para os exageros.
Na mesma página havia até mesmo a ficha catalográfica da obra:

Bastos, Rogério Arcanjo.

A Morte do Inspetor Teixeira : o último caso do inspetor /

Rogério Arcanjo Bastos. – Rio Santo: Ed. Lúmpen.

1. Ficção policial e de mistério (Literatura brasileira) 1. Título

Caso chegasse ao cúmulo de conferir os números da Classificação Decimal


de Dewey e da Classificação Decimal Universal, o inspetor iria descobrir que
tanto a CDD quanto a CDU haviam sido copiadas de algum outro livro, pois a
descrição não batia com o código. Contudo investigar nesse nível de minúcia
seria um exagero da parte dele. E ademais não haveria mesmo tempo para isso.
Pois o que chamava mesmo a atenção no livro era o texto. Teixeira folheou
mais uma vez as páginas impressas, relendo um trecho ou outro ao acaso:

JANINE SIQUEIRA: Ainda não entendi o porquê dessa pressa toda. Você não só
pega no trabalho às nove?

INSPETOR TEIXEIRA: Eu tenho um compromisso às oito. Com leite ou sem?

JANINE SIQUEIRA: Puro mesmo. Obrigada. Como é aquele ditado mesmo, preto
como o diabo e doce como um beijo roubado.

INSPETOR TEIXEIRA: Para com isso, Janine. Você sabe que eu não tenho tempo
agora.

Ele dificilmente estaria em condições de fazer uma avaliação das qualidades


literárias do que havia acabado de ler.
O estilo do texto poderia ser chamado de seco, para não dizer inexistente.
Não havia divisão em capítulos ou qualquer outro tipo de organização, apenas
um contínuo fluir, formado quase que inteiramente por diálogos, com
raríssimas intervenções de um narrador na terceira pessoa. As falas eram
crivadas de erros de concordância. Ainda assim, a leitura causou no policial tal
impacto que ele não sonharia ser possível a partir de um simples livro.
O livro contava a vida de Teixeira desde o momento em que havia
despertado nos braços de Janine naquele mesmo dia. A história acontecia
através das conversas que o inspetor teve com diversas pessoas: Janine, um
motociclista acidentado diante de seu prédio, bombeiros, a psicóloga Varlene, o
inspetor Almeida, o delegado Santelmo, os funcionários do Le Barde. Os
diálogos eram reproduzidos praticamente verbatim, ipsis litteris, letra por letra. O
que pouco contribuía, certamente, para um possível valor estético da narrativa.
Do ponto de vista psicológico, no entanto, o efeito não se perdia.
De quando em quando, entremeando um diálogo e outro, sucintas
descrições faziam as vezes de narrativa: O inspetor Teixeira saiu de casa. O
inspetor Teixeira entrou no consultório de Varlene Alberione. O inspetor
Teixeira saiu do consultório.
A história começava com Teixeira acordando ao lado de sua diminuta e
possessiva amante. O inspetor leu novamente a última página impressa, até a
interrupção abrupta do texto:

MARIA CELESTE: Ela é só uma criança. Meu Deus. Eu juro que não sabia que
ela estava no carro. Juro.

INSPETOR TEIXEIRA: Eu preciso que você seja forte mais um pouco. Tudo
bem? O corpo do homem ainda está lá em cima?

SARGENTO HIDELBRANDO: Nós trouxemos ele primeiro.

INSPETOR TEIXEIRA: Se não for pedir muito.

MARIA CELESTE: Mas esse é o Jorginho Príncipe.

Muitos detalhes de interesse não foram mencionados e ficaram


completamente de fora nessa primeira versão do último dia de Teixeira. La
coincidenza dos trovões, por exemplo, jamais foi citada.
A cabeleira negra de Ágata despontou novamente por sobre o balcão da
cozinha americana. Ela disse, meio que de troça:
“O almoço está servido.”
Já não era sem tempo.

Pretas avançam na primeira:


Uma pessoa adorna seus pés, dispensa a carruagem e caminha.

Ágata havia insistido para ela mesma fazer a comida. Teixeira iria pedir uma
pizza, mas ela cismou que queria cozinhar.
“É o melhor remédio para quando me sinto um pouco ansiosa.” O pedido
foi servido junto com um sorriso encantador. “Se você não se importa que eu
bagunce sua cozinha, adoraria cozinhar para você.”
Teixeira não se importava, havia feito o mercado há poucos dias. A
despensa estava cheia.
“E é justo o tempo que leva para você dar uma lida com calma. É bom que
você leia o que está escrito aí.”
E assim foi feito. O inspetor ficou lendo a sua própria história enquanto
Ágata preparava o almoço dos dois. Quando finalmente ficou pronto, e tudo
cheirando tão bem, Teixeira descobriu que estava mesmo com muita fome.
“Isso está uma delícia.”
“Obrigada. Que bom que você gostou.”
Por um instante os dois ficaram simplesmente sorrindo um para o outro.
Era comida simples, na verdade: omelete, arroz e salada. Mas o resultado
final ficou bem acima do que as panelas da casa estavam acostumadas a
produzir.
O assunto do livro não foi mencionado enquanto durou a refeição.
Também não conseguiram muito falar sobre outras coisas. O almoço limitou-se
a silêncios e sorrisos, elogios à comida e mais sorrisos.
A beleza de Ágata era desconcertante, hipnotizante como o canto de uma
sereia. Ainda assim ela flagrou o olhar do inspetor fugindo de seus encantos,
vagando pelos cantos do apartamento, como se estivesse à procura de algo.
“O que você tanto olha?”
Teixeira bateu o olho nela. Disse calmamente:
“Procuro a escuta. Não é óbvio?”
“Escuta? Do que você está falando?”
“De que outro modo alguém poderia saber as coisas que eu disse hoje
mesmo, sentado aqui mesmo nessa cadeira.” Mas quando disse isso o inspetor
já estava com os dois pés no assento da cadeira, que ele havia arrastado para o
centro da sala, de forma a ficar diretamente abaixo do ventilador de teto.
Dependurado na cadeira, de canivete em punho, não levou muito tempo para
desmontar a base do ventilador que ficava afixada ao teto. Mas acabou se
decepcionando. “Nada.”
“Espere um pouco. Você está pensando que seu apartamento está
grampeado por causa do que leu no livro.”
“É claro que sim. Isso é o quê, alguma brincadeira? Uma pegadinha para a
tevê?”
“Ora, Alberto, é claro que não. Gostaria que você me ouvisse um pouco.”
“Estou ouvindo.”
“Pois não parece. Assim você vai botar a casa abaixo, Alberto! Tudo bem
que a casa é sua, mas eu tenho certeza de que assim você não vai encontrar o
que está procurando. Você não está entendendo.”
“O que é que eu não estou entendendo?”
“Sente um pouco primeiro. Por favor.”
“Está bem.” Mas logo o inspetor estava de pé novamente. “Você faz ideia
de quem é esse homem que aparece como autor do livro?”
“Quem escreveu o livro foi o meu marido.”
“Seu marido é Rogério Arcanjo Bastos?”
“...”
“Que houve? Você está bem?”
“Estou bem.”
“Você ficou pálida.”
“Por favor não repita esse nome, Alberto. Não suporto, tenho ânsias só de
ouvir. Sim, ele é o meu marido. Só não diga esse nome de novo, por favor.”
“Tudo bem, tudo bem. Fique tranquila, não vou falar o nome dele.”
“Esse homem me fez sofrer muito, você nem imagina. Mas você falou de
um jeito... como se o conhecesse.”
“Nunca estive com ele. Mas sei muito bem quem ele é.”
“Mas como pode isso? Como é que você sabe sobre meu marido?”
“Bem, eu não sabia que ele era seu marido. Mas depois podemos conversar
sobre isso. Você sabe onde ele está agora?”
“Em seu escritório dentro de casa, provavelmente. È onde ele passa a
maioria das tardes.” Ágata sorriu com amargura e acrescentou: “Daqui a pouco
estará na hora de servir o seu chá.”
“Vamos até lá.”
“Não é tão simples.”
“Se... o seu marido é o responsável por esse livro, eu quero ter uma
conversinha com ele. Fique tranquila: você não precisa ir comigo. Basta me
dizer o endereço dele.”
“É isso que você não está entendendo, Alberto. Não tem como você
encontrá-lo. Você está dentro, ele está fora.”
“Quê? Como assim, dentro e fora? Dentro e fora de onde?”
“Do livro, é claro.”

Brancas avançam na quinta:


O rolo de seda é pequeno e curto. Humilhação, mas boa sorte no fim.

“Essa é simplesmente a coisa mais absurda que eu ouvi na vida.”


“Eu sei que parece loucura.” Ágata puxou a cadeira para mais perto de
Teixeira. Pousou a mão sobre o braço dele. A expressão de Ágata adquiriu um
tom de súplica. “Eu sei que é loucura. Mas o que posso fazer?”
O inspetor ainda tentou fazer graça.
“Quer dizer então que eu estou dentro de um livro. Que não passo de um
personagem em uma história policial. É nisso que você espera que eu acredite?”
“Eu realmente não sei o que dizer, Alberto. Por favor não veja as coisas
dessa forma. Não estou tentando convencer você de nada. Eu é que preciso
acreditar nisso. Só posso crer que estou dentro de um livro que meu marido
escreveu. Pois a única alternativa é achar que tenho um tumor no cérebro ou
algo assim, e estou alucinando a coisa toda. Inclusive e principalmente você,
inspetor Teixeira.”
Ela estremeceu. Depois abriu um meio sorriso e disse pausadamente, quase
como se falasse para si mesma:
“Se estou realmente aqui, conversando com você, é porque estou dentro do
livro. Caso contrário, você não passa de uma ilusão e essa conversa está
acontecendo apenas dentro de minha cabeça. A minha própria sanidade
depende de você existir ou não.”
“E como foi que você acabou vindo parar dentro do livro, afinal?”
Isso Ágata não sabia explicar. Por mais que se esforçasse, não conseguia
lembrar de como ou quando o fenômeno havia ocorrido. Só soube que estava
dentro do livro quando se deparou com uma evidência irrefutável. “Não pude
acreditar quando vi o nome desse jornal em uma banca de revistas.” Ela foi
buscar na bolsa um exemplar da Folha de Rio Santo.
“Que é que tem?”
“Ora, Rio Santo é a cidade do inspetor Teixeira! Foi assim que eu descobri
que tinha vindo parar dentro do livro.”
“Você está me dizendo que não somente eu, mas toda a cidade é inventada?
Que a cidade de Rio Santo, com seus cinco milhões de habitantes, existe
somente na imaginação de um autor de romances policiais?”
Ágata só fez acenar com a cabeça.
“Interessante. Mas você acabou não esclarecendo como veio parar nesta
cidade fictícia, se veio de avião, de ônibus ou de trem.”
“Não brinque assim, Alberto! Você acha que eu inventei essas coisas para
me distrair, é?”
“Você deve concordar comigo que a sua história está um pouco fantástica
demais.”
“Ah, é? Então explique você. Diga como existe um livro contando sua vida
em detalhes e como eu sei tantas coisas a seu respeito. Esclareça esse mistério,
inspetor Teixeira. Se puder.”
“Calma, calma. Por favor, não se ofenda. Está bem, me desculpe. Estou
tentando lidar da melhor maneira com a situação.”
“Não é minha culpa se tudo ficou maluco.”
“Eu sei. Eu sei, minha linda.”
“...”
“Mas você ainda não disse como veio parar em Rio Santo. Você deve
lembrar de alguma coisa. Quais são as suas últimas lembranças a respeito?”
“Eu não sei! Só lembro de ter adormecido com o livro na mão. E foi como
se eu tivesse entrado em um sonho. Quando dei por mim estava em um lugar
estranho, um banheiro que eu nunca tinha visto antes. Ao sair do banheiro,
descobri que estava em um restaurante cheio de gente morta. Como se o sonho
virasse um pesadelo e eu tivesse ido parar no inferno.”
“Que gente morta era essa?”
“E você acha que fiquei esperando para descobrir? Saí correndo de lá.”
“Mas como foi que essa gente morreu?”
“Não sei! Foram fuzilados, eu acho.”
“Quantas pessoas eram, mais ou menos? Você deve pelo menos ter ouvido
tiros...”
“Não... sim, devo ter ouvido os tiros, sim.”
Ágata soltou um gemido e desabou da cadeira, desmaiada. Não fosse pelo
braço viril e atento, ela teria se esborrachado no chão. O inspetor conduziu a
mulher para as almofadas, perto do módulo de som. Quando ela abriu os olhos,
o sofrimento que Teixeira viu neles era genuíno, profundo, de cortar o coração.
Por muito menos Dom Quixote saiu desafiando céus e mundo para provar que
era digno de sua bela Dulcineia.
“Como você está se sentindo?”
“Estou com uma dor de cabeça terrível. O que aconteceu?”
“Nós estávamos conversando, e então você deu um grito e desmaiou.”
“Melhor não pensar mais nisso.”
“Você estava me contando sobre uns disparos que ouviu.”
“Me deixe em paz! Eu não quero falar nisso!”
Isso dito em tom de súplica magoada, acompanhado por aqueles olhos
verdes rasos d’água, fez o inspetor render-se incondicionalmente.
“Perdoe-me. Eu não queria ser rude. Só estou tentando ajudar você.”
“Está tudo bem, Alberto. Venha, sente-se aqui ao meu lado.”
“Como está sua cabeça?”
“Já vai passar.”
“Vou telefonar para a farmácia e pedir um analgésico. Você tem algum de
sua preferência?”
“Na verdade, tenho sim. Mas não está à venda na farmácia.”
“Não entendi.”
“É que eu estava pensando...”
“Sim. Diga. Pode falar.”
“Será que você tem aí aquele baseado? Sei que você sempre fuma um depois
que volta dos plantões na delegacia.”
“Ora, eu... eu devia é estar na delegacia agora. Meu plantão só termina às
oito horas da manhã.”
“Você precisa ir para o trabalho. Eu entendo, Alberto. Posso ficar
esperando aqui? Pelo menos até a dor de cabeça melhorar.”
“Quem foi que disse que eu vou sair? Não estou indo a lugar algum.”
“Vá logo, Alberto. Você tem que trabalhar.”
“Nada disso. Vou ficar aqui com você. Espere um pouco. Acho que tenho
mesmo um fininho guardado em algum lugar.”
“Você é um anjo, Alberto. Eu bem que sabia. Nossa, isso vai me fazer tão
bem! E já está até apertado, viva! Mas você não vai acender? Eu quero que você
fume junto comigo. Se não, não tem graça.”
“Está bem, está bem. Mas só se você me contar um pouco mais sobre você,
combinado?”
“Combinado, Alberto. O que você quiser.” Ela recebeu das mãos dele o
cigarro aceso. “Ah, que delícia! Eu estava mesmo precisando disso, sabia? E
então, o que você quer saber?”
Teixeira recebeu o baseado de volta. Com a mão livre, ativou o módulo de
som, que começou a tocar Heaven on their Minds, faixa de abertura da ópera-rock
Jesus Christ Superstar. Com a voz roufenha pela fumaça inalada, ele perguntou:
“Que tal falar sobre seu casamento?”
“Eu não estou casada há muito tempo”, começou Ágata, depois de tragar
por sua vez. “Um ano apenas. O mais longo de minha vida.”
Ela deu um sorriso triste e ficou em silêncio por um instante, como se
estivesse imersa em recordações não muito agradáveis. Depois continuou:
“Eu já era fã dele muito antes de conhecê-lo. Eu era apaixonada pelas
histórias que ele escrevia. Pelas suas histórias, Alberto.” Ela estendeu a mão para
segurar a do inspetor. “Acho que sou a sua maior fã.”
“Como foi que você conheceu o seu marido?”
“Uma sessão de autógrafos. Foi no lançamento do livro A Morte da Prostituta
Sueli. Eu estava tão excitada! Nem podia acreditar que iria conhecer o criador
do inspetor Teixeira.” Dito isso, ela sorriu e apertou de leve a mão dele. “Por
algum motivo, Rogério se interessou por mim. Me convidou para jantar. Um
mês depois estávamos casados.”
“Entendo perfeitamente que ele tenha se casado com você.”
“Ora, obrigada.”
“Mas pensei que você não suportava sequer mencionar o nome de seu
marido.”
“Ah, nem eu mesma entendo isso direito. Rogério é só um nome, não me
incomoda. Pode ser o nome de qualquer pessoa. Só ao ouvir o nome completo
é que saio dos eixos, sinto um mal estar que é até físico.”
“Que coisa.”
“Pois então. Eu e Rogério casamos, e não demorou para eu perceber que
essa foi a maior besteira que eu fiz na vida.”
“Por quê?”
“Ele é um crápula! Um homenzinho mesquinho e invejoso. Ele não tem
nada a ver com você, Alberto. Nada. No começo até que não foi tão ruim. Foi
quando ele descobriu que eu me casei só por sua causa, que na verdade era por
você que eu estava apaixonada, que minha vida virou um inferno.”
Fez-se um silêncio intenso. Ágata, de olhos úmidos, fitava o chão. Teixeira
perguntou:
“Ele lhe batia?”
Ágata passou a mão pelo rosto, como se para expulsar as más lembranças.
“Não. Nunca encostou um dedo em mim. A tortura dele era psicológica.
Dizia coisas terríveis. Entrou num ciúme insano, queria vigiar até meus
pensamentos. É até ridículo, um escritor enciumado de sua própria obra.”
Teixeira amassou a ponta do baseado no cinzeiro, sem encontrar o que
dizer. Ainda assim, era bom ficar simplesmente recostado nas almofadas,
segurando a mão de Ágata.
“Há alguns meses atrás ele voltou a escrever. Um novo livro sobre o
inspetor Teixeira. Esse.” Ela estirou o braço para apanhar o volume que estava
ao seu lado, sobre uma das almofadas. Ficou segurando o livro com uma das
mãos e com a outra continuou apertando a mão de Teixeira. “No início pensei
que seria uma alegria, ao menos uma compensação, poder acompanhar uma
história sua desde o início, seguir o processo criativo. Mas não. Rogério fechou-
se em copas. Ficava trancado no escritório e só me permitia entrar para servir
seu bendito chá, como se eu fosse uma empregadinha. Não me deixou ler uma
só linha da história. O próprio título do livro eu só fui descobrir ontem, no
coquetel de lançamento.”
Teixeira saiu da apatia:
“Você está dizendo que esse livro foi lançado ontem?”
“Sim, o coquetel foi ontem à noite.”
“Mas como o livro foi lançado assim, com a metade faltando?”
“Garanto a você que o livro estava inteiro ontem à noite. Parece loucura,
mas até que faz algum sentido. Pois o livro agora só vai até onde eu li.”
“Como é?”
“Quando eu vi o título, não pude acreditar. Será que Rogério iria mesmo
matar você, só por ciúme? Ele chegaria a esse ponto para me punir, para se
vingar de mim? Seria um suicídio comercial para ele. A série do inspetor
Teixeira é o seu maior trunfo. Ele escreveu outros livros, sérios, como ele gosta
de dizer. Sobre semiologia, signos e símbolos, teoria da comunicação. Um
porre. Nunca consegui ler nenhum.”
“E quanto a esse livro? Você estava dizendo que leu...”
“Quando voltamos para casa após o coquetel, fui correndo me trancar no
quarto. Nós dois temos quartos separados, graças a Deus. Rogério é cheio
dessas manias britânicas, ele se acha o próprio lorde inglês.”
“Sobre o livro...”
“Sim. Eu queria ler o livro todo ontem mesmo, mas acabei pegando no
sono. Nós chegamos em casa tarde, e confesso que bebi um pouco no
coquetel.”
“Você foi dormir. E depois?”
“Bom, aí começa a parte estranha. Quando acordei, pensei a princípio que
estivesse sonhando. Ou tendo um pesadelo, para ser mais exata. Eu estava
vestida assim como estou agora, com a mesma roupa que usei no coquetel.
Estava caída no chão de um banheiro coletivo, o banheiro de um restaurante.
Na verdade eu estava encolhida de medo. Ou de dor, não me lembro. Acho que
tive um pesadelo.”
Foi como se uma corda houvesse se partido ao som dessas palavras. Em um
momento Ágata estava tranquilamente conversando com Teixeira. No instante
seguinte, já havia saltado para cima dele, cobrindo-o de beijos.
CAPÍTULO 53 – DESENVOLVIMENTO

Uma jovem dama é concedida em casamento.


Sobre a montanha, uma árvore: assim o homem superior mantém sua dignidade e virtude, a
fim de melhorar os costumes.
(I Ching – hexagrama 53)

Depois de dizimar Luca, seus doze comandados e mais três garçons de


quebra, os dois de preto deram meia volta e foram embora. Entraram no W
Sport, Kim ao volante. Já ia pisando fundo, mas foi advertido pela irmã antes
sequer que a intenção se concretizasse em ato. Kim conteve o impulso de sair
cantando os pneus.
O Salão 66 ½ ficava no recuo de uma das principais avenidas da cidade, a
Comandante Gilberto de Alencar. Ao invés de pegar a pista principal,
entretanto, Kim dobrou à esquerda. Na esquina seguinte pegou a esquerda de
novo. Logo adiante parou o carro.
Júlia já havia guardado as submetralhadoras nos estojos e também havia se
livrado da máscara e do macacão preto. Por baixo do casaco vestia um corpete
laranja e um shortinho curto com uma saia por cima, indumentária que a
deixava com a aparência de uma adolescente meio devassa. Ela havia escolhido
o traje justamente porque realçava sua feminilidade. Olhando para ela agora,
ninguém jamais poderia imaginar que se tratava de um dos dois “homens” que
haviam acabado de exterminar o bando de Luca do Urtigão.
Assim que o carro parou, Júlia saltou sem dizer nada. Ela e Kim quase não
conversavam com palavras.
O criminoso sempre retorna ao local do crime. Esse é o tipo de coisa que os dois
adoravam em suas charadas. Fossem clichês da ficção ou fatos da vida, os
gêmeos pinçavam aqui e ali pequenas pérolas como essa, que convertiam em
leis inapeláveis da física quando lhes convinha. Não fui capaz de curá-los dessa
perigosa teimosia.
Para Júlia não bastava voltar ao local do crime: ela queria ser notada.
Serviços assim sempre a deixavam excitada. Quase dava para se ver o tesão
soltando fagulhas em sua pele. Era preciso evitar somente chamar a atenção do
tipo indesejado, fosse da polícia, fosse da pessoa que Júlia estava encarregada de
seguir. Para isso, o seu pequeno disfarce de piriguete bastava. Ela ajeitou os
cabelos com uma tiara dourada, reforçando a imagem feminina.
Agora que estava sozinho no carro, Kim podia acelerar à vontade. Longe da
irmã, experimentava como sempre uma espécie de euforia indistinta, que
facilmente poderia se transformar em um humor amargo e sombrio. Aquele
garoto era uma catástrofe ambulante quando a irmã não estava por perto. Júlia
era de longe a figura dominante, e também a mais independente dos dois.
Kim preferiu fazer o caminho mais longo, por vias que permitiam uma
maior velocidade média. O W Sport foi parar no estacionamento do subsolo de
um shopping center no subúrbio. Os estojos com as submetralhadoras ficaram
debaixo do assento do carona. O tíquete do estacionamento foi guardado no
porta-luvas, junto com documentos forjados do carro.
Kim poderia ter deixado as chaves também no porta-luvas, uma vez que
deixou a porta do motorista destrancada. Ele preferiu, é claro, enfiar as chaves
no para-sol. Era uma cena tantas vezes vista, em tantos e tantos filmes: o herói
– ou o vilão – entra em um carro desconhecido e simplesmente encontra as
chaves guardadas no para-sol. A tentação foi irresistível. Kim realmente via
filmes demais.
O macacão e a máscara de Júlia, largados no banco de trás, foram deixados
como estavam. Quanto à máscara que o próprio Kim estivera usando, foi
displicentemente jogada em um latão de lixo, ali mesmo no estacionamento. Ele
não viu motivos para se desfazer da roupa que estava usando: calça jeans preta,
camisa de malha preta, casaco preto. O preto nunca sai de moda.
Enquanto aguardava o elevador, Kim puxou o celular do bolso e ligou para
o contato que viria pegar o carro. Quando o contato atendeu, limitou-se a dizer:
“Subsolo três, bravo doze. Completo.”
Estava fornecendo a localização do W Sport no estacionamento do
shopping. O completo significava que as armas usadas no serviço permaneciam
dentro do carro. Dali a menos de uma hora alguém apareceria para fazer sumir
tanto o carro quanto as armas. Já havia compradores acertados para ambas. O
carro não tinha importância, mas as duas submetralhadoras iriam direto para as
mãos dos traficantes da favela do Capim Queimado, para uma facção batizada
como Falange Púrpura, que disputava o controle do tráfico com os grupos de
Nova Colômbia e do Urtigão. Júlia e Kim consideravam esse tipo doentio de
ironia simplesmente brilhante.
Dois pisos acima no subsolo do shopping estava estacionada a Kyagiu 1600
prateada. Kim retirou o seu capacete do bagageiro. O tíquete do
estacionamento estava guardado na carteira. A moto era sua mesmo.
Kim partiu à toda em direção ao centro da cidade, mas logo dobrou à
esquerda. Perambulou por algum tempo, aparentemente sem destino. Ao passar
por um cruzamento, decidiu na última hora subir o viaduto. Cem metros após o
viaduto via-se a praça que Kim iria começar a contornar quando seu olhar
encontrou o de Júlia, que aguardava diante de uma lanchonete da rede
McCanic’s. Ela fez sinal para que ele se aproximasse.
“Vamos comer alguma coisa enquanto esperamos.”
“Você está brincando? Onde está a Dama?”
“Está atrás de você, sentada bem comportadinha em um banco da praça.
Teremos uma visão melhor do segundo andar da lanchonete. Capice?”
“Você só pode estar de sacanagem. Não tinha outro lugar para escolher,
não?”
“O que é que tem? Estou com vontade de comer um McCanic Lanche da
Alegria. Peça só uma água tônica, se preferir.”
Brancas avançam na segunda:
Os gansos selvagens aproximam-se do penhasco. Comendo e bebendo em paz e concórdia.

Logo depois que saltou do W Sport, ao passar defronte de um boteco, Júlia


foi abordada:
“Ei, Garota Dourada, adorei o seu brilho!”
Ela passou direto, sem dar confiança. Depois que dobrou a esquina,
permitiu-se sorrir. Caminhou até o abrigo do ponto de ônibus. De onde estava,
podia observar a fachada do Salão 66 ½, alguns metros adiante na outra
calçada.
A avenida Comandante Gilberto de Alencar, principal via de ligação do
subúrbio com o centro da cidade, era do tipo onde passavam mais carros que
pessoas. O fluxo de carros, ônibus e caminhões era constante, mas os pedestres
eram raros. A única pessoa além de Júlia no ponto de ônibus era um garoto que
tomava conta da banca de jornal. Estava tão entretido com a leitura de um gibi
de super-heróis e com a música alta estalando nos fones de ouvido que mal
percebeu quando Júlia passou por ele. Bela testemunha ocular do crime.
Dali de onde estavam, não era possível avistar o rapaz caído na calçada em
frente ao restaurante. Menos de dez minutos haviam se passado desde o tiroteio
na churrascaria, mas era como se o massacre nunca tivesse ocorrido.
Júlia aguardou por mais alguns minutos até que uma mulher saiu do Salão
66 ½ e facilitou as coisas ao caminhar diretamente em sua direção. A assassina
soltou um suspiro de alívio. Sempre existira a possibilidade do gerente da
churrascaria querer deter a Dama até a chegada da polícia ou, o que seria pior,
da polícia chegar ao local antes que a Dama pudesse sair. Júlia havia preparado
planos de emergência para as duas possibilidades, mas era muito melhor não ter
que colocá-los em prática.
A mulher alta estacou diante da banca de jornal por um longo momento.
Era uma mulher muito bonita. O vestido lilás que usava lhe caía bem no corpo.
Finalmente acabou decidindo comprar um jornal e veio se aproximando do
ponto de ônibus.
Júlia ficou observando, mas não houve o menor sinal de reconhecimento
por parte da Dama. A mulher andava com certa dificuldade, como se estivesse
bêbada. Ela fez sinal para o primeiro ônibus que passou. Júlia também subiu,
tomando o cuidado de ficar sentada no fundo. Mas a Dama parecia interessada
apenas em olhar a paisagem que passava pelas janelas. Certa hora remexeu na
bolsa e retirou algo, que ficou examinando. Era um livro.
Sem aviso prévio, a mulher passou a bolsa nos ombros e puxou o sinal. Júlia
esperou que o ônibus parasse no ponto e a Dama descesse antes de se levantar.
A mulher à sua frente parecia caminhar a esmo pelas ruas. De tempos em
tempos, parava para falar em um telefone público. Afinal chegou à praça
Cardeal Vilela, onde parou para descansar. A última ligação telefônica foi
também a mais demorada. Sentada em um banco da praça, a Dama esperava.
Júlia concentrou-se em trazer Kim para ali. Logo avistava a moto prateada
aproximando-se da praça.

Brancas avançam na quarta:


Os gansos selvagens aproximam-se da árvore. Talvez encontrem um local para se abrigar.
Sem culpa.

“Eu bem que gostaria de dar uma volta naquele triciclo.”


Kim e sua irmã ocupavam uma das mesas no andar de cima do McCanic’s.
Sob a vista dos dois, o inspetor Teixeira e Ágata conversavam no banco da
praça. Júlia mergulhou uma das últimas batatas no molho de queijo. “Pensei
que você fosse querer dar mais uma voltinha na mulher.”
“Você sabe muito bem que essa daí não faz o meu tipo. Só em caso de
necessidade mesmo. Ela é muito...”
“Óbvia.”
“Isso.”
Os dois ficaram em silêncio por algum tempo. Até que Kim novamente se
alvoroçou. “Eles estão indo embora. Vamos nessa.”
“Estou quase terminando meu sundae. Está divino.”
“Já é o seu segundo. Ás vezes nem eu reconheço você, Júlia.”
“Calma, já acabei, não está vendo? Além do mais, não há motivo para
pressa. Nós sabemos muito bem para onde aqueles dois estão indo.”
CAPÍTULO 44 – ENCONTRO

A dama é poderosa. Tal mulher não deveria ser desposada.


Abaixo do céu, o vento. Assim age o príncipe ao proclamar suas ordens nos quatro cantos do
paraíso.
(I Ching – hexagrama 44)

O presente era um longo, interminável beijo. O homem já não cogitava


sobre problemas passados ou futuros. Enquanto aquela mulher estivesse em
seus braços, tanto fazia se o mundo acabasse. Teixeira velejava nos mares do
desejo.
O beijo havia chegado àquele ponto em que se transforma em uma dança de
línguas, e por isso mesmo uma espécie de conversa, onde os amantes se dão a
conhecer e estabelecem as regras do jogo amoroso.
Todas as contradições haviam sido revogadas, ainda que só pelo momento.
O imperativo categórico do sexo vencia mais uma vez.
Para Teixeira nada mais importava além da captura e deglutição completa de
sua presa, a suculenta Ágata.
Todo dia é dia do caçador. Quem é a caça é que varia.
Brancas avançam na primeira:
É preciso prendê-lo com arreios de bronze. Avanço em qualquer direção atrairá o mal. Até
mesmo um porco magro pode se enfurecer.

Fazia pouco que o trânsito na Capitão Gregório havia sido desinterrompido.


A defesa civil já reduzira a velha árvore da esquina a um reles toco serrado.
Folhas e galhos esparsos, ainda espalhados sobre o asfalto, eram esmagados
contra a borracha dos pneus e misturados de vez à lama.
Kim parou a moto defronte do velho prédio, junto ao muro de pintura gasta
e poeira acumulada. Ele e Júlia atravessaram a céu aberto os cinco metros da
calçada que eram protegidos pela sombra octogenária até algumas poucas horas
antes. A árvore havia tombado durante a chuva daquela manhã, vitimada que
fora por um raio.
“Vieram visitar alguém?”
O porteiro do prédio parecia um tipo intrometido. Kim e Júlia ficaram por
um momento desconcertados, excessivamente conscientes do disparate
provocado pela roupa que os dois estavam usando, Kim todo de preto e Júlia
de piriguete. O embaraço era provocado pela descoberta de um detalhe no qual
eles não haviam pensado. Um mero detalhe, insignificante. Talvez. Talvez
pudesse haver outros detalhes que também não tivessem sido notados. O
constrangimento dos dois era palpável.
Finalmente Júlia se deu conta de que o porteiro continuava encarando. Ela
sorriu e disse:
“Somos moradores.”
Nem mesmo ver os dois usando uma chave própria para abrir o portão
gradeado da entrada pareceu convencer de vez o porteiro, que demorava a abrir
mão do tom desconfiado:
“Desde quando? Nunca vi os dois por aqui.”
Kim aproximou-se como se tivesse a intenção de responder. E uma rápida
cotovelada já colocava o porteiro a nocaute. Júlia ajudou a carregar o homem
desacordado até um outro aposento.
“Precisava fazer isso?”
“Nós nunca mais vamos ter que voltar aqui.”
“Ainda quero trocar de roupa.”
“E o que te impede?”
Ela teve de se controlar para não por tudo a perder. A última coisa de que
ela precisava era uma nova briga com Kim.
O porteiro nem pesava tanto. Só acordou horas depois, quando o
funcionário do turno seguinte o encontrou amarrado e amordaçado na sala de
materiais de limpeza. Todo esse tempo fechado em um recinto apertado e
impregnado de produtos químicos acabou deixando o coitado em um estado
semicomatoso. Mais um pouco ali dentro e o pobre não se salvava.
Ainda assim, poderia ser considerado um sujeito de sorte.

Pretas avançam na terceira:


Não há pele em suas coxas e caminhar é difícil. Se alguém está atento ao perigo, nenhum
grande erro é cometido.

Ágata aproximou-se do monstro, os olhos rutilantes de pasmo e desejo.


Empalmou-o com as duas mãos, ora massageando, ora beliscando para
confirmar sua rigidez, medindo sua desproporção. A mera visão da criatura
latejante já deixava sua cabeça zonza.
“É ainda maior do que eu havia imaginado.” Um apertão mais brusco,
eufórico.
“Você é tão grande. Você é enorme, Alberto.” O nome dele saiu tremido na
voz de Ágata, como se ela estivesse falando e rindo ao mesmo tempo.
“Quero ver como é que você vai fazer isso tudo caber dentro de mim.”
Quase era possível ouvir sua boca se enchendo de saliva em antecipação.
Ela passou a língua pelos lábios e olhou-o nos olhos. Sorriu um meio sorriso
e piscou lentamente, confirmando de modo não verbal o entendimento
existente entre eles, um gesto ademais sem qualquer outro significado, mera
função fática do sexo.
Quanto à função fálica, essa era desempenhada passivamente por Teixeira.
O inspetor foi pego literalmente de calça arriada. Imprensado contra a parede
como estava, não possuía muita liberdade de movimentos. Se ele fosse bolinar
Ágata, como desejava, teria de ficar curvado em uma posição ingrata e
potencialmente ridícula. Não poderia sequer se despir completamente sem
interromper o que Ágata estava fazendo. E Teixeira odiaria interferir em um
momento de alegria tão genuína. Pois não havia dúvida possível de que Ágata
estivesse se divertindo, e muito.
Ágata pareceu ter se lembrado de algo. Ela deixou o monstro escapulir de
sua boca, enxugou os lábios com as costas da mão. E sorriu.
“Tive uma ideia”, ela arquejou.

Pretas avançam na quinta:


Um melão coberto por folhas de salgueiro. Linhas escondidas. E então alguém recebe bênçãos
do céu.

“Eu ainda não conheci o seu quarto. Vamos para lá?”


Mas foi Ágata quem acabou conduzindo Teixeira. Ela apanhou a bolsa roxa
que estava por cima das almofadas. Com a outra mão, foi puxando o inspetor
pelo pênis, como se fosse a coleira de um cachorro. Quando entraram no
quarto, ela se deteve por um momento, admirando a decoração espartana,
balançando a cabeça em aprovação, como se tudo ali correspondesse nos
mínimos detalhes ao que sua imaginação havia visualizado. Ao se sentar na
cama desfeita, ela comentou:
“Que cheiro de sexo.” Ao notar a expressão no rosto do policial, ela
acrescentou: “Tudo bem, Alberto. Eu gosto. Isso até me excita.”
Como Teixeira continuasse com a cara de espanto, ela sorriu e disse:
“Eu não sinto ciúmes de Janine, seu bobo. De nenhuma delas. Eu sei que
você é um pegador, um garanhão. Foi por isso que me apaixonei por você.”
Enquanto Ágata remexia na bolsa, o inspetor aproveitou para respirar um
pouco. Normalmente era ele que conduzia as mulheres para a cama. Mas pouco
tempo depois já estava impaciente. Avançou as mãos para Ágata. Por debaixo
do vestido lilás, Ágata usava um sutiã verde. Teixeira achou o contraste dos
tons de verde e lilás misteriosamente erótico e se sentiu endurecer ainda mais.
Ágata deu um meio sorriso, os olhos vasculhando a bolsa. “Só um
minutinho, bem. Seja paciente!”
“Se é uma camisinha o que você tanto procura...”
“Achei!” O sorriso se abriu por inteiro, convidativo, buscando Teixeira.
“Não é nada disso. Eu não quero que você use preservativos comigo. Eu quero
sentir você todo, por inteiro.”
Se é que isso é possível, Teixeira ficou ainda mais duro. Ágata continuou:
“Eu estava procurando por uma surpresinha para você. Tenho certeza de
que você vai adorar.”
“Escute, se for alguma droga, estou fora. Não curto muito essas de sexo
junkie. Um baseado me basta.”
“Não é nenhuma droga, Alberto. É um aparelho. Uma máquina, se preferir.
Chama-se Uróboro. Invenção japonesa, eu acho.”
“Nunca ouvi falar.”
“É só porque Rogério nunca escreveu sobre isso. Pois seria como se ele
estivesse fazendo propaganda gratuita de um produto novo no mercado,
pegaria mal colocar algo assim em um livro. E a consequência é que você nunca
ouviu falar em Uróboro.”
“Ah, tá.” Ele nem tentou contradizê-la. “E o que é que esse troço faz?”
“Bem, você nem faz ideia! Entre outras coisas, é um amplificador e
sincronizador de orgasmos.”
“Fale sério.”
“É verdade! Você não vai acreditar no que essa belezinha é capaz de fazer.
Ah, aqui está. Tive que esvaziar a bolsa toda para encontrar o danadinho. É que
ele é tão pequenino e transparente, que fica praticamente invisível.”
Teixeira olhou para o que ela trazia preso entre o polegar e o indicador. Ele
viu uma circunferência metálica, mais ou menos da metade do tamanho da
menor moeda. Ele enxergou uma diminuta moeda de cobre.
“Se você chama isso de transparente, é porque tem visão de raio-X, meu
bem.”
Ágata franziu a sobrancelha, como se não tivesse entendido o gracejo. Mas
ela não permitiu que isso a desviasse de seu propósito.
“É muito simples de usar. Basta aplicar na base da coluna. É auto-aderente
e não dói, nem nada.”
“Mas você só tem um desses aí. Você quer que eu use isso sozinho? E
quanto a você?”
Ágata tirou de vez o vestido. A calcinha era irmã do sutiã. Novamente
diante do mesmo tom de verde, a criatura de Teixeira cresceu ainda mais, tão
incrível quanto o Hulk. Inchada e tesa, parecia a ponto de rebentar. Ágata,
impetuosa e destemida, virou as costas para Teixeira, exibindo os glúteos
perfeitos.
“Eu já estou usando o meu. Veja.”
Ela baixou um pouco a calcinha e exibiu a marca do biquíni. A moedinha de
cobre estava afixada no cóccix, bem na ponta do osso sacro. Ágata tateou com
as mãos até tocar a moeda.
“Assim de longe você não vai conseguir enxergar. Pegue aqui que você vai
ver que já estou usando meu Uróboro.”
Para Teixeira aquela moeda seria perfeitamente visível até mesmo a dez
metros de distância. Mas quem era ele para discordar? Por um momento ele
ficou tentando recordar quando foi que havia visto alguém usando uma moeda
parecida com aquela. Não conseguiu lembrar. Afinal, ele tinha assuntos mais
importantes para tratar naquele exato momento.
Pretas avançam na sexta:
Ele vem ao encontro de seus cornos. Humilhação. Sem culpa.

“Não sei, não.”


“Deixa de ser bobo, Alberto. Eu sei que você vai gostar.”
Teixeira não disse nada.
Ágata interpretou o silêncio como um consentimento.
CAPÍTULO 54 – NOIVA

A Noiva. Nada que seja favorável.


Trovão sobre o lago. Assim o homem superior entende a transitoriedade das coisas à luz da
eternidade do fim.
(I Ching – hexagrama 54)

Que monumental fiasco!


Esse é o problema com os planos mirabolantes: nunca é possível prever
tudo. Sempre fica algo, geralmente algo importante, por conta do acaso.
E foi assim que a segunda tentativa de conectar Teixeira redundou em
fracasso. A segunda no mesmo dia.
Foi praticamente uma repetição do que aconteceu com Varlene mais cedo.
Bastou o dedinho buliçoso de Ágata se aproximar da ‘zona de trauma’ para o
inspetor responder com uma terrível e irremediável frieza.
Tragédia parecida vivenciaram decerto os habitantes da ilha de Rodes
quando o Colosso dedicado a Hélio Olímpico ruiu e foi lançado no fundo do
mar por um terremoto, no ano 237 antes de Cristo. Foi só Ágata encostar a
moeda de cobre no cóccix de Teixeira para o seu colosso ser reduzido a uma
fração de seu tamanho em questão de segundos. É sempre melancólica a
transformação inversa, quando o incrível Hulk volta a ser o esquálido doutor
Banner. Logo o pau do inspetor pendia frouxamente, como um defunto
estendido na lona dos pentelhos.
Ágata ao menos conseguiu fixar a moeda. Varlene nem pôde chegar perto.
Não que fizesse muita diferença naquele momento, com Teixeira broxa daquele
jeito.
Era preciso um orgasmo para ativar a moeda.
A Dama, coitada, bem que tentou uma ressurreição artificial. Mas a
ansiedade para cumprir a missão acabou atrapalhando. Não demorou muito e
ela já sugava desesperadamente aquela tripa mole. Diante das circunstâncias, foi
o pior que ela podia fazer, só faltou mastigar o pau do pobre inspetor como se
fosse um chiclete velho. Teixeira ficou ainda mais incapacitado para o combate,
se é que era possível isso.
Um desenlace broxante, literalmente. Anticlimático ao extremo.

Pretas avançam na segunda:


O caolho consegue enxergar. É propícia a perseverança do homem solitário.

O sol da tarde entrava pela janela. Os dois estavam abraçados, nus, por cima
das almofadas da sala, para onde haviam retornado. Era a paródia patética de
um pós-coito que sequer começou. Ágata estava aconchegada no peito de
Teixeira, mas um músculo tenso em seu pescoço, que não permitia que soltasse
totalmente o peso da cabeça, denunciava que ela apenas fingia dormir.
O módulo de som tocava Ob-La-Di, Ob-La-Da, música solar dos Beatles que
se chocou cataclismicamente com o sombrio estado de espírito do inspetor
naquele momento. Uma música alegre, para quem está muito triste, frustrado
ou simplesmente puto da vida, pode parecer às vezes a mais cruel das
zombarias. E todas aquelas opções de humor aplicavam-se a Teixeira. Sentia-se
miserável.
De modo que foi com alívio que ele saudou um novo estímulo sobre o qual
sua mente pudesse se concentrar. Deitado como estava no chão da sala, o
inspetor captou com o rabo do olho um movimento por debaixo da fresta da
porta. Estreitando a vista para enxergar melhor, logo ele se convenceu de que
realmente havia alguém diante da porta, parado do lado de fora de seu
apartamento. Quem quer que fosse, já estava ali há algum tempo.
O primeiro pensamento de Teixeira foi que pudesse ser Janine na espreita,
certamente armando alguma turbulenta cena de ciúme. O inspetor continuou
espiando pela fresta e logo teve a impressão de que eram duas pessoas que
estavam à sua porta. Um pensamento se impôs à sua crença com força de lei: a
segunda pessoa só podia ser Siqueira, o marido de Janine.
O inspetor foi arrancado de seus devaneios quando notou o discreto porém
inegável movimento na maçaneta da porta. Alguém estava tentando entrar no
apartamento.
Ele reagiu com um segundo de atraso. Desvencilhou-se de Ágata e foi até
onde suas roupas estavam jogadas, do outro lado da sala. Procurava o coldre
com sua arma. Estava pendurado na cadeira, por baixo do casaco. Mas ele não
chegou a alcançá-lo.
“Parado! Eu não daria nem mais um passo, se fosse você.”
A voz grave era inconfundível. Teixeira voltou-se num sobressalto, sua face
estampando surpresa e ódio.
“Vocês!”

Brancas avançam na quinta:


O Rei concede sua filha em casamento. As vestes da princesa não são tão belas quanto as da
serviçal.

Kim e Júlia já estavam dentro da sala. Os dois haviam trocado de roupa.


Kim vestia um pulôver azul-marinho, calça jeans e tênis. Júlia usava uma
jardineira jeans por cima da blusa rosa. Os dois poderiam muito bem passar por
jovens universitários prestes a entrar na sala de aula, a não ser por um detalhe.
Não era um livro de sociologia o objeto que Kim empunhava na direção de
Teixeira, nem tampouco era a ponta de um caderno que Júlia displicentemente
mantinha voltada para a cabeça de Ágata. Os dois estavam armados com
pistolas. As crianças gostavam mesmo de brincar com armas.
Logo que a porta do apartamento foi aberta e os gêmeos entraram, Ágata se
encolheu em um canto, procurando esconder sua nudez debaixo das almofadas.
Ela não pareceu notar as armas de imediato, pois ao olhar para Júlia teve um
lampejo de reconhecimento:
“Você. Era a garota que estava no ponto de ônibus.”
Júlia sorriu de um modo estranho.
“Você quer um autógrafo, meu bem?”
A voz de Júlia soou impregnada de uma zombeteira condescendência. Ela
sacudiu a pistola, como se fosse um pincel correndo por uma tela imaginária.
Foi só então que Ágata pareceu se dar conta da arma. Sua expressão mostrava
mais confusão que medo.
“Vocês dois têm muita coragem para aparecer aqui assim”, disse Teixeira.
Sua voz não traía nenhuma outra emoção além de uma clara ira ebulindo.
De imediato Júlia saiu de sua aparente letargia e apontou também sua arma
para o inspetor.
“Calminha aí, Chefinho Kid”, disse ela. “Ninguém precisa sair machucado
dessa vez.”
“Parado aí”, repetiu Kim. “O que você pensa que está fazendo?”
“Estou me vestindo, não está vendo?” O inspetor se abaixou para apanhar
uma cueca vermelha caída no chão, por cima do tapete da sala. Kim parecia
estar a ponto de perder a cabeça, mas Júlia estava atenta e o tocou de leve no
braço. Nesse momento Teixeira olhou para os dois, furioso, enquanto acabava
de vestir a cueca. Ele avançou em direção à calça caída no chão logo adiante,
bem onde o tapete terminava. “Se vocês querem atirar, que atirem. Eu não vou
ficar nu diante de vocês, de jeito nenhum. Só se eu estiver morto.”
O puxão foi tão rápido quanto inesperado, tão possante quanto eficaz.
Teixeira quase rasgou os músculos naquela puxada de tapete, mas no instante
seguinte Kim e Júlia estavam no ar e, um segundo depois, caíam no chão. Na
queda Júlia soltou sua arma, que foi parar perto da porta. Kim aferrou-se à sua
pistola, e ainda disparou um tiro, como ato reflexo.
O inspetor não perdeu tempo sentindo dores nos músculos tão duramente
solicitados. De um pulo alcançava a cadeira que guardava seu coldre. Quando
se voltou, já de arma na mão, foi que viu o estrago causado pelo disparo de
Kim. O precioso módulo de som que ocupava o lugar de honra na sala havia
sido destruído. A bala havia atingido o aparelho em plena execução de Ando
Meio Desligado, dos Mutantes. A julgar pela aparência destroçada do módulo,
aquela havia sido a sua última canção.
Teixeira rosnou para o rapaz caído:
“Agora é que eu lhe mato mesmo.”

Brancas avançam na sexta:


A mulher carrega a cesta, mas não há frutos dentro dela. O homem esfaqueia a ovelha, mas
nenhum sangue cai. Nada é propício.

O impasse estava criado.


Teixeira, de pé, apontava sua ponto 40 para o fígado de Kim. Mesmo
deitado no chão da sala como estava, Kim também mantinha sua pistola, com a
qual mirava o peito do policial. O intenso apelo dramático da cena era cortado,
talvez, pela cueca vermelha do inspetor. Aquele não era o traje apropriado para
um duelo de morte.
“Atira, vai! Você não falou que ia me matar? Então atira, porra!”
“Largue essa arma, moleque! Largue essa arma agora!”
“Ninguém vai atirar!” A voz de Júlia soou forte, decisiva. “Ninguém vai
matar ninguém agora. Entendeu, Kim? Ninguém mata ninguém agora.”
Ela parecia mais preocupada com seu irmão matando o inspetor que com a
perspectiva contrária. Teixeira ficou vagamente ofendido.
Júlia não havia se dado ao trabalho de pegar sua pistola caída no chão. Ela
estava em posse de uma arma melhor.
“Chefinho Junior, escute.” Mesmo naquele momento extremo, ela não abria
mão do ridículo apelido que havia colocado em Teixeira. “Estamos propondo
uma trégua. Nós vamos embora agora, do mesmo modo que viemos. Ninguém
atira em ninguém. Podemos continuar nossa brincadeira mais tarde.”
“O cacete que vocês vão sair daqui. Pode ir largando essa arma agora,
moleque!”
“Acho que não”, disse Kim. Ele sorria como um maníaco, a mão firme na
pistola.
Júlia continuava tentando contemporizar à sua maneira:
“Escute, isso não passa de um mal entendido. Era para a situação estar
diferente quando nós entrássemos aqui. Parece que você não é mais o mesmo,
hem?”
Teixeira sentiu o golpe. “Mas afinal o que vocês querem comigo? Por que
vieram atrás de mim?”
Júlia demorou um instante antes de responder. Seus lábios estavam torcidos
na mais leve sugestão de sorriso. “Mas quem disse que nós estamos atrás de
você? Você é que deveria estar atrás de nós, já esqueceu? Não somos nós que
estamos”, breve e irônica pausa, “atrás de você.”
Logo acima do recém-falecido módulo de som, na parede da sala, havia uma
prateleira onde o inspetor exibia os troféus e prêmios que havia ganhado em
suas atividades junto ao moto clube Lobos da Estepe. Um deles era um triciclo
em miniatura, todo em bronze, apoiado em uma base também de metal. A
miniatura em si era oca e não pesava muito. Era a base que a tornava pesada.
Alertado pelo tom de mofa de Júlia, e também por uma compulsão interna,
Teixeira virou a cabeça para olhar para trás bem a tempo de ver a pesada base
do triciclo de bronze avançando rapidamente na direção de sua cabeça.
O inspetor já estava sem sentidos quando desabou sobre o amarfanhado
tapete da sala.
O REI OCULTO

Onde o herói encontra o vilão.


Crítica!
CAPÍTULO 25 – INOCÊNCIA

Se alguém não é como deveria, sofrerá infortúnio e nada do que fizer lhe será
válido.
Abaixo do Céu ribomba o Trovão: todas as coisas alcançam o estado natural de Inocência.
Assim os reis de antes, ricos em virtude e em harmonia com os tempos, acolhiam e nutriam
todos os seres.
(I Ching – hexagrama 25)

Era o início da noite. Teixeira acordou fustigado por uma dor de cabeça
intensa e malvada. Ele estava jogado por cima das almofadas de sua sala. Havia
sangue coagulado entranhado em seu couro cabeludo.
Reflexos retardatários fizeram com que seu corpo estremecesse, as pernas
chutando o ar, mecanismo de defesa com validade vencida. O movimento
brusco fez Teixeira sentir como se alguém houvesse enfiado um furador de gelo
em seu cérebro. O inspetor gemeu, imobilizado, enroscado em si mesmo, com
medo de que o menor gesto avivasse a dor.
Enquanto simplesmente respirava, Teixeira chegou a três conclusões
fundamentais.
1ª – Ele continuava vivo e em boas condições. A própria dor de cabeça era
um sinal de que seu organismo estava reagindo bem. Quando se leva uma
pancada na cabeça é natural sentir dor no local atingido. Se ele não estivesse
sentindo dor nenhuma, isso sim seria de se estranhar.
2ª – Ele continuava usando sua cueca. A mancha vermelha entre as pernas
que ele vislumbrou ao acordar não era sangue, louvados sejam os céus pelas
pequenas alegrias. Dessa vez não havia nenhum ferimento ali.
3ª – Ele estava só no apartamento. Depois do estardalhaço que fez ao
acordar e com tanto tempo de imobilidade e profundas reflexões, é certo que
alguém já teria aparecido ou ao menos feito algum tipo de barulho. E tudo era
silêncio na casa inteira.
Pensar em silêncio fez Teixeira imediatamente lembrar-se de seu amado
aparelho de som, vitimado por uma bala assassina. A indignação era justamente
o que ele precisava para conseguir se levantar do chão.
Logo Teixeira foi capaz de vistoriar o apartamento. Quase nada parecia estar
faltando. Por baixo do casaco que vestia uma das cadeiras, o coldre de
tornozelo com a 765 passou despercebido. Até a sua ponto 40 estava caída no
tapete, desdenhosamente abandonada, considerada fora de combate.
Exatamente como ele mesmo, Teixeira, havia sido colocado para escanteio.
Ele sabia que estava sozinho no apartamento, mas uma fagulha de esperança
só foi se extinguir depois que ele olhou no último cômodo. É claro que Ágata
não estava em lugar nenhum.
O tal livro também havia sumido.

Brancas avançam na segunda:


Se alguém não conta com a colheita ao semear e nem pensa no uso que fará do terreno
enquanto está limpando, será propício empreender algo.

O inspetor Almeida atendeu a ligação no segundo toque.


“Ora, mas que coincidência! Acabei de comer o seu sanduíche!”
“O quê? Ah, sim. Tudo bem, Almeida. Esse fica por minha conta.”
“Onde diabos você se meteu, Teixeira? O delegado está soltando fumaça
pelas ventas.”
“Escute, preciso falar com você.”
“Tomei o maior carão por sua causa.”
“Quando eu chegar aí explico tudo ao delegado, e prometo que assumo a
responsabilidade por termos utilizado a viatura.”
“Pancada dada ninguém tira. E que diabos você quer comigo? De onde você
está falando?”
“Relaxe. Estou em uma diligência, quando chegar na delegacia explico.”
“Não é a mim que você tem que explicar, mas ao delegado. O homem vai
comer o seu rabo. Com areia.”
“Escute, Almeida. Não foi para ouvir a sua sabedoria que eu liguei. Isso é
importante.”
“Epa. O que vem por aí?”
“Eu preciso que você responda uma pergunta, só isso. É sobre essa menina
que nós encontramos hoje no Le Barde.”
“Sim.” O tom de Almeida abrandou-se um pouco. “O que tem ela?”
“Já se descobriu quem era? Nome, endereço, alguma coisa.”
“Pior é que sim. Já temos a ficha completa. Isabele Delgacio. Onze anos.
Estava sumida desde ontem. Foi para a escola e não voltou. A família
organizou uma busca, e acabou sobrando para alguém a tarefa de bater na porta
do necrotério. E assim a identidade da menina foi estabelecida em tempo
recorde.”
O que primeiro atingiu Teixeira foi a semelhança entre o nome da vítima e o
da falecida mãe do inspetor, Isabel. Porém logo percebeu outra coincidência de
nomes mais relevante para as investigações.
“Como é mesmo o sobrenome da menina?”
“Delgacio. Isabele Delgacio.”
“Mas esse não é o sobrenome do...”
“Dele mesmo. Luís Claudio Delgacio, o Luca do Urtigão. Que foi
metralhado hoje mesmo. Você soube dessa?”
“Sim, eu soube.”
“A menina era afilhada do Luca, filha de um primo ou algo assim. Esquisito,
né?”
“Bota esquisito nisso. Alguma pista de quem fez o serviço no Luca?”
“Aí é que está. O maior suspeito de ter matado o Luca do Urtigão era
justamente o Jorginho Príncipe. Só que não pode ter sido ele, pois quando o
Luca morreu o Jorginho já estava morto. Uma confusão e tanto, se você quer
saber.”
“Quer dizer que a menina era afilhada do Luca.”
“Pois é. E acabou aparecendo morta em uma banheira junto com o maior
inimigo do cara, no mesmo dia em que o próprio cara foi morto.”
“Isso explica o livro.”
“O quê?”
“Romeu e Julieta. Os dois pertenciam a famílias rivais, os Capuleto e os
Montecchio. Exatamente como os grupos rivais de Luca e Jorginho.”
“Ah.”

Brancas avançam na terceira:


Infortúnio imerecido. A vaca que alguém havia amarrado torna-se o ganho do andarilho,
para perda do homem de bem.

“Teixeira? Ora, mas quem diria”, atendeu Pinto, o técnico do instituto de


medicina legal. “Sabia que por sua causa o meu dia hoje foi uma aporrinhação?”
“Mas do que você está falando?”
“Do doutor Botelho. O homem ficou uma arara depois do encontro
contigo hoje cedo. E adivinha quem teve que aturar.”
“Cuidado, meu camarada”, respondeu o inspetor. “Quando o sujeito não
para mais de falar mal do trabalho, é porque já está derrotado.”
“Você fala assim porque ele não é teu chefe.”
“Quer trocar com o meu?”
“Deixa pra lá. E a que devo a honra de sua ligação?”
“Como foi a autópsia?”
“O laudo fica pronto na terça-feira.”
“Você auxiliou o professor na autópsia, não foi?”
“Sim.”
“E então, Pinto, com o perdão da má palavra,” disse Teixeira em tom de
troça. “Vai ficar fazendo jogo duro?”
“Rá, rá, rá”, disse o técnico e deu um audível suspiro. “Está bem, você me
convenceu com o seu senso de humor incrível. O que você quer saber?”
“O que matou os dois?”
“Só vamos poder dizer com certeza mesmo depois de mais alguns testes,
mas tudo indica que foi mesmo carbamato o veneno utilizado. Tanto o homem
quanto a menina tinham todos os sinais de terem se encharcado de chumbinho.
Aliás, aquele seu palpite estava certo. A última refeição dos dois foi um
McCanic Lanche da Alegria.”
Houve uma curta pausa enquanto Teixeira se decidia a fazer a próxima
pergunta. “A menina foi violentada?”
“Se você quer saber se ela fez sexo com Jorginho Príncipe, a resposta é não.
Nem com ele, nem com ninguém. A menina morreu virgem. Coisa rara, mesmo
nessa idade.”
“Você tem certeza disso?”
“Rapaz, qualquer mulher pode me enganar, desde que esteja viva. Morta, já
fica difícil. A menina continua intacta como quando nasceu.”
Pretas avançam na quarta:
Aquele que pode ser perseverante permanece sem culpa.

O inspetor foi para o chuveiro e enxaguou o sangue coagulado em seu


cabelo. Depois do banho, com a ajuda de um pequeno espelho de mão,
examinou o ferimento. Nada sério.
O espelho também serviu para que ele examinasse a moeda de cobre afixada
à base de sua coluna. Teixeira repetiu todos os esforços feitos durante o banho
para soltar o metal de sua pele, e os resultados foram igualmente inúteis. A
danadinha continuava firmemente grudada em seu traseiro. Finalmente o
inspetor decidiu ignorar o assunto pelo momento.
Ele vestiu-se sem pressa, atento a cada detalhe de sua armadura urbana.
Cueca, meias, calça, cinto, sapatos, camisa, coldre de ombro, pistola, terno,
coldre de tornozelo, pistola. Não havia pressa em seus movimentos, somente
propósito.
O inspetor estava determinado a resolver aquela diferença com os gêmeos
de uma vez por todas. O placar até o presente momento estava 2 X 0 para eles.
Estava mais do que na hora de virar o jogo.
Teixeira preparava-se para o combate. E planejava.

Pretas avançam na sexta:


Uma ação inocente atrai o infortúnio. Nada é propício.

Quando estava para sair de casa o inspetor notou, semicoberto por uma
almofada, o troféu de motociclismo que o havia atingido. Em um gesto
inconsciente levou a mão à cabeça para tocar o ferimento. Nada sério, mas não
doía menos por isso.
Ele agachou-se para apanhar a miniatura. Ficou aliviado ao constatar que
não havia sofrido danos. Devolveu o triciclo a seu lugar na estante e ficou
contemplando-o por um longo momento.
Não tinha jeito. Teixeira estava obrigado a admitir a verdade, por dolorosa
que fosse. A verdade a respeito de Ágata.
Ele havia aberto a guarda o suficiente para ser ferido. Mais do que a cabeça,
doía-lhe o coração.
CAPÍTULO 5 – PACIÊNCIA

Perseverança atrai boa sorte. É propício cruzar a grande água.


Nuvens sobem até o Céu: a imagem da Paciência. Assim o homem superior come e bebe, é
alegre e de bom ânimo.
(I Ching – hexagrama 5)

A sala de espera da doutora Varlene Alberione era bem mais acanhada do


que seria de se supor pela luxuriante vastidão do consultório em si. Era quase
um corredor a saleta, de tão estreita. Mal comportava os parcos móveis que
ocupavam praticamente todo espaço disponível: o gabinete da recepcionista, o
pequeno sofá e a mesinha com o desnecessário abajur, pura frescura, uma vez
que a luz do teto dava e sobrava para ler as inevitáveis revistas de fofocas sobre
celebridades que repousavam no cesto ao lado.
A sala dava para três portas. A primeira era a porta do banheiro. Do outro
lado estava a porta do consultório propriamente dito. E havia também, é claro,
a porta de saída, que dava para o hall do décimo-quinto andar no luxuoso
edifício comercial onde estava instalado o consultório.
Não havia muita parede disponível na sala de espera. Ainda assim, Varlene
havia se dado ao trabalho de pendurar duas outras reproduções de Pollock. A
parede logo acima do sofá era dominada por um pôster de um metro de
comprimento por meio de largura, uma impressão de Lúcifer que Varlene havia
comprado pela Internet. Na parede oposta, tomando todo o espaço entre a
porta do banheiro e a mesa da recepcionista, estava pendurada uma reprodução
ainda assim ridiculamente pequena de Número 28. Mais um pôster. Eram feitos
em todos os tamanhos, aparentemente.
Isso era tão típico de Varlene. Os dois quadros na sala de espera faziam um
trio com a reprodução de Ritmo de Outono que havia no consultório e que
dominava a parede logo acima do Cromomagnetoscópio. Todos três, afinal,
eram reproduções de algum quadro de Pollock. Isso mostrava o quanto Varlene
era atenta aos detalhes. E ao mesmo tempo evidenciava que ela absolutamente
não havia compreendido o porquê de Ritmo de Outono.
Em um espaço mais amplo, as duas imagens escolhidas pela doutora
Alberione poderiam travar um interessante debate. Como as coisas estavam,
aqueles dois quadros só evidenciavam a pequenez da sala de espera. Aquilo
deixava Varlene doente. Logo aquele aposento tornou-se a própria antítese de
tudo o que ela havia sonhado para o seu consultório. Nunca se cansava de
retornar a esse assunto. Veladamente, culpava-me pelo inadequado tamanho da
saleta.
Quem abriu a porta para Teixeira foi a recepcionista. Até então o inspetor
mal a havia visto, pois geralmente chegava atrasado para as sessões com a
psicóloga e depois sempre saía correndo para o serviço. Era uma jovem
achocolatada, sacudida e reboliça, um belo par de pernas e dois dentões saindo
da boca. Poderia se chamar Mônica, mas não. Chamava-se Shirlei Maquilanei,
um nome que prestava uma dúbia homenagem à atriz e escritora e que
denunciava as origens humildes da recepcionista.
Teixeira não tinha hora marcada. Foi informado de que a psicóloga
encontrava-se no momento em sessão com outro cliente. O inspetor reprimiu a
contrariedade com um franzir dos lábios que a recepcionista interpretou, com
algum esforço e bondade, como sendo um sorriso.
Ele aceitou esperar.

Pretas avançam na primeira:


Aguardando em terreno aberto. É favorável aguentar e suportar. Sem culpa.
Durante os primeiros quinze minutos, Teixeira aguardou em completo
silêncio. Essa foi a demonstração mais evidente de seu estado de espírito. Em
qualquer outra ocasião ele não teria perdido a oportunidade de jogar conversa
fora com a recepcionista Shirlei. Quanto à moça, tinha os seus motivos para
ficar calada, pois naquele momento enfrentava os primeiros e perturbadores
indícios de uma desagradável cólica intestinal.
Após algum tempo, o inspetor apanhou a revista que estava por cima na
pilha sobre a mesinha ao seu lado. Folheava sem ler, só para manter as mãos
ocupadas. Em ocasiões como essa é que sentia mais agudamente a vontade de
fumar. Já estava na terceira revista quando deparou com um rosto sorridente
que o estava perseguindo desde de manhã cedo. A manchete que acompanhava
a foto dizia:

POR UM LUGAR AO SOL

Régis Vale, astro de Sorte no Amor, revela sua intimidade

Foi a gota d’água. Teixeira olhou ostensivamente para o relógio.


“Escute, já passa das oito”, ele disse. “Não era para a sessão já ter acabado?”
Shirlei fez uma careta que só ela mesma poderia considerar um sorriso. A
pobre estava sendo acometida por fortes pontadas abdominais.
“Às vezes a sessão demora um pouco mais. Especialmente com esse
cliente.” Após um instante a recepcionista ainda acrescentou, em um leve tom
de reprovação: “A doutora Varlene não tinha mais ninguém agendado para
hoje.”
“Eu sei que não tenho horário marcado. Mas preciso falar com ela. Você
não pode avisar que estou esperando?”
“A doutora Varlene não gosta que interrompam a sessão.”
“Mas já era para a sessão ter acabado”, insistiu Teixeira. “É importante.”
Movida mais pelo turbilhão em suas entranhas que pela argumentação do
inspetor, Shirlei acabou cedendo. Com um suspiro, ela apanhou o telefone que
estava em sua mesa e discou três números.
“Doutora Varlene? Sim, eu sei. É que está aqui o senhor Alberto, o cliente
das oito da manhã. Ele quer falar com a senhora. Disse que é importante.”
Após ouvir em silêncio por alguns instantes, a recepcionista recolocou o fone
no gancho e fitou Teixeira. Ela tentou manter a voz impassível, mas seu rosto
estava congestionado. “A doutora Varlene já irá atendê-lo. Ela pediu que o
senhor aguarde só mais alguns minutos. Enquanto isso o senhor aceitaria uns
biscoitos? Tome um cafezinho, por favor. Sirva-se. Fique à vontade.”

Pretas avançam na quinta:


Aguardando em meio a comida e bebida. Perseverança obterá êxito.

Teixeira ficou por um momento olhando para o pote de biscoitos em seu


colo. Ele afinal decidiu pegar um biscoito por educação, após o que devolveu o
pote de vidro à mesa da recepcionista. Aproveitou o movimento para se servir
de café. A bandeja com a garrafa térmica e o açucareiro também repousava
sobre a mesa de Shirlei. Teixeira encheu um pequeno copo de plástico e serviu-
se de açúcar. O café estava frio e intragável, pela cara que ele fez. Mordeu o
biscoito para se livrar do gosto ruim do café. Era um biscoito salgado e
gorduroso com sabor artificial de bacon, uma porcaria calórica que certamente
fora escolha da recepcionista.
Shirlei observava toda essa movimentação aparentemente impassível, pois
permanecia imobilizada. Na verdade tentava mexer-se o mínimo possível.
Apenas o martelar ritmado e inconsciente de suas unhas contra o tampo da
mesa indicava que alguma inquietude se apossava da recepcionista.
“Você está bem? Parece um pouco pálida.”
“Sim. Tudo bem. Obrigada.”
O telefone tocou para salvar a recepcionista. Ela atendeu rápida como um
raio, e a esperança iluminava seu rosto quando devolveu o fone ao gancho.
“O senhor já pode entrar”, Shirlei disse num fiapo de voz.
“Tem certeza? O cliente dela ainda não saiu.”
Aquele era o limite para Shirlei Maquilanei. “A doutora disse. Que o senhor
pode. Entrar. Com licença.”
Enquanto falava, Shirlei levantou-se da cadeira e foi marchando para o
banheiro. As últimas palavras foram cuspidas apressadamente, antes que a
moça trancasse a porta em desespero.
Era uma menina até simpática, mas precisava rever seriamente a sua
alimentação. Pois naquele dia ela carregava os demônios do inferno na barriga.
CAPÍTULO 46 – ASCENSÃO

É preciso ver o grande homem. Não tema. Partir rumo ao sul traz boa sorte.
Dentro da terra, cresce a madeira: a imagem da Ascensão. Assim o homem determinado
acumula pequenas coisas para obter algo grande e elevado.
(I Ching – hexagrama 46)

A psicóloga continuava vestindo o mesmo terninho sóbrio e a saia em tons


pastéis que estivera usando pela manhã, durante a sessão com Teixeira. Restava
a ser descoberto se tivera o ensejo ou o desejo de colocar a calcinha. Varlene
estava sentada em sua poltrona giratória, as pernas cruzadas, um bloco de
anotações sobre o colo. Esforçava-se por parecer concentrada em seus escritos.
Quando Teixeira entrou no consultório, ela ergueu os olhos por cima das lentes
dos óculos: “Olá, Alberto. Fico feliz que você tenha vindo. Sente-se. Me dê só
mais um minuto para terminar essas anotações.”
“Onde está o seu cliente?”
“Que cliente?”
“O que você estava atendendo agora.”
“Não havia cliente algum. Estou apenas colocando em ordem as
observações do dia.”
“A recepcionista disse que você estava com alguém.”
“Bem, só podemos concluir que Shirlei se enganou, não concorda comigo?”
Ela forçou um sorriso. “Já estou quase terminando. Logo poderemos conversar
à vontade, está bem? Sente-se, por favor.”
Como os sorrisos e atenções não estivessem surtindo muito efeito, a mulher
descruzou e cruzou novamente as pernas. Teixeira, que estava de pé diante da
psicóloga, pôde confirmar: desde a manhã nenhuma peça de roupa havia sido
acrescida ao vestuário da psicóloga.
Teixeira não sorriu de volta e nem obedeceu ao convite para se sentar. Ele
não estava nem um pouco no clima. Começou a perambular pelo consultório,
sem dizer palavra. Parou diante do Cromomagnetoscópio, as mãos postadas
detrás das costas. Seu olhar foi atraído para a reprodução de Pollock na parede.
Ficou fitando o quadro por um longo tempo. Parecia ser capaz de enxergar
além da tela.
Dessa vez não senti a menor vontade de acenar para ele.

Brancas avançam na primeira:


Ascensão com confiança traz suprema boa sorte.

“Muito bem, Alberto. Sou toda sua.”


Varlene não perdeu muito tempo com suas anotações. O inspetor virou-se e
avançou dois passos na direção da psicóloga.
O silêncio dele começou a incomodá-la. Ela desperdiçou mais um sorriso:
“E então? Eu quero aproveitar para pedir desculpas a você por hoje de manhã.
Eu devia estar mais atenta aos seus limites. Sinto muito.”
A psicóloga baixou os olhos, como se estivesse realmente arrependida. O
inspetor não disse nada.
“E então?” Repetiu ela. “Diga alguma coisa, Alberto.”
Teixeira finalmente dignou-se a falar. Foram apenas três palavras:
“Levante a saia.”

Brancas avançam na quarta:


O rei oferece a ele o monte Chi. Boa sorte sem culpa.

Varlene Alberione era uma mulher culta, refinada, inteligente. Formada em


Psicologia Clínica com habilitação em Licenciatura, pós-graduação em
Psicologia Cognitivo-Comportamental e diversos cursos de especialização. E
mal havia completado vinte e cinco primaveras. Era uma profissional
competente.
Mais importante que isso tudo, era um mulherão. O corpo bem delineado, a
pele macia, a boca habilidosa em levar lentamente um homem à loucura. Claro
que podia se tornar uma cadela vingativa e cruel quando lhe dava na telha. Mas
esse é um poder de quase todas as mulheres.
Teixeira recebeu fácil demais o que muitos teriam alegremente suado sangue
para conseguir. Uma fêmea e tanto, assim, de bandeja. O inspetor, porém,
jogou tudo pelos ares. Cuspiu no prato que nem chegou a comer. E isso por
quê? Por conta de um simples fio terra, de uma mera dedada.
Não era necessário para os procedimentos ela fazer aquilo. Mas afinal não
passou de uma carícia inofensiva. Varlene bem que gostava daquilo, sem
dúvida. E até então ninguém havia reclamado. O problema é que as mulheres
estão já tão acostumadas a enfiar o dedo no furico dos homens, que esquecem
que nem todos gostam.
Tudo bem que Teixeira tinha um bom motivo para não apreciar. Mas teria
sido tão mais simples e fácil se ele tivesse reagido de um modo razoável. Todos
teriam ficado felizes. Especialmente Varlene.
Brancas avançam na quinta:
A perseverança traz boa sorte. Alguém ascende por etapas.

“Levante a saia.”
Varlene levou menos de um segundo para se recobrar da surpresa.
“Direto ao assunto, não é mesmo? Gosto disso.”
A psicóloga deixou o bloco de anotações atrás de si, sobre o assento, e
levantou-se da poltrona. Caminhou para Teixeira como se fosse beijá-lo, mas o
inspetor recuou um passo.
“Levante a saia”, ele repetiu, seco.
“Quer fazer o estilo durão, é?” Varlene não perdeu o rebolado. “Por mim,
tudo bem. Acho que estou mesmo merecendo.”
Sem dizer mais uma palavra, ela levou as mãos à altura do joelho e segurou a
barra da saia. Lenta e deliberadamente foi erguendo a saia até acima da cintura.
Mesmo à distância de alguns passos era possível perceber que seus pentelhos
eram finos e sedosos, nem ralos demais e tampouco espessos em excesso,
brotando macios do gordo monte pubiano. Os pequenos lábios adivinhavam-se
mais que se projetavam por entre as bochechas inchadas e felizes, carne bem
cuidada e alimentada.
Varlene ficou segurando a saia levantada, olhando diretamente nos olhos do
policial. Sua expressão era séria, quase solene, e seu olhar traduzia uma
expectativa infantil.
CAPÍTULO 43 – RESOLUÇÃO

É preciso resolutamente tornar o assunto conhecido na corte do rei. Deve ser


proclamado com veracidade. Perigo. É necessário notificar a própria cidade.
Não é bom recorrer às armas. É propício empreender algo.
O lago subiu até o céu: a imagem da Resolução. Assim o homem superior distribui riquezas e
se refreia de repousar em sua própria virtude.
(I Ching – hexagrama 43)

Antes que Varlene pudesse entender o que estava acontecendo, Teixeira já a


havia virado de costas. Quando ela deu por si, estava com as duas mãos
apoiadas no encosto da poltrona e o traseiro voltado para o inspetor. Uma
coisa deve ser dita a respeito do inspetor Teixeira: quando queria, o homem
tinha mesmo pegada.
O policial levantou novamente a saia, que havia descido quando Varlene
colocou as mãos na poltrona. A psicóloga possuía um traseiro memorável,
exemplo sublime das possibilidades ocultas em uma falsa magra, com as ancas
bem separadas e a carne recheando os lugares certos. A marca do biquíni era
visível e bem sugestiva, fina tira de pele brotando do rego. No centro da pele
clara, Teixeira enxergou uma pequena circunferência prateada.
“Ora, mas o que temos aqui.”
“Mas o quê...”
“Essa moeda de meio centavo colada em sua bunda. Se importa em dizer o
que é?”
“Você está vendo...” Varlene foi pega totalmente de surpresa. “O que você
está vendo?”
“O que é essa moeda prateada em sua bunda? Estou esperando uma
explicação.”
“Ora, Alberto, mas que coisa. Você não tem coisa mais interessante para
olhar não, é?”
“Estou esperando.”
“Tudo bem. Tudo bem. Já que você insiste tanto em saber, isso aí é uma
medicação alternativa, um tratamento que eu estou fazendo. É isso aí. Um
tratamento, tipo do in, acupuntura. Será que dá para soltar o meu braço?”
“Tratamento? Tratamento para quê?”
“Isso não é da sua conta! Mas que coisa! Já chega! Pode soltar o meu braço
agora!”
Teixeira puxou a mulher para junto de si, peão veterano em domar égua
brava. Ele falou bem baixinho, pois sua boca estava bem próxima da orelha de
Varlene.
“Quer saber de uma coisa? Me ofereceram um troço desses hoje mesmo. A
dama em questão disse que era um sincronizador de orgasmos. Incrível, não é
mesmo? Só que ela me ofereceu uma moeda de cobre, deve ser mais mixuruca
que a sua, que é de prata. Ainda assim, ela me garantiu que era um produto
importado, vindo diretamente de uma outra realidade, onde eu e tudo ao meu
redor não passamos de delírios de quinta categoria na cabeça de um escritor
decadente e corno.”
“Alberto, controle-se.” A psicóloga parecia realmente assustada. “Você está
surtando.”
“Que grande coincidência que você também esteja usando o tal do
sincronizador de orgasmos. E que tenha tentado enfiar um no meu rabo hoje
de manhã.”
“Então é isso. Me solta, Alberto. Acho que precisamos mesmo conversar.”
“O que é esse troço que você está usando? O que ele faz? Por que você
queria colocar um desses em mim?”
“Me solta, Alberto. Já disse, me solta.”
“Tudo bem. Eu solto. Mas só depois de arrancar essa verruga prateada de
sua bunda.”

Pretas avançam na primeira:


Força nos dedões dos pés. Quando alguém não está à altura da tarefa, acaba cometendo um
engano.

“Espere. Não faça isso.”


A voz da psicóloga traía um súbito medo. Esse foi o primeiro grave erro de
Varlene. Ela mostrou a Teixeira exatamente como manipulá-la.
Ele não tinha realmente a intenção de concretizar a ameaça, até porque já
sabia por experiência própria que todo esforço era inútil. A não ser que ele
apelasse para seu velho e fiel canivete.
“Não se preocupe. Depois eu coloco de volta.”
A mulher soltou um débil grito agudo e tentou se desvencilhar. Mas Teixeira
já a segurava novamente pelo braço e com um movimento rápido fez com que
ela girasse sobre si mesma e viesse ao seu encontro. Os dois terminaram
enlaçados, como se o inspetor tivesse executado um formidável passo de dança.
Teixeira olhou-a nos olhos por um longo tempo.
“Está na hora de me dizer o que está acontecendo aqui, doutora.”
Varlene sustentou o olhar por um período que pareceu maior ainda. Tentava
avaliar suas possibilidades. Tudo o que tinha a fazer era ganhar um pouco de
tempo. Mas não. Decidiu arriscar uma jogada inédita.
“Está bem”, ela disse finalmente. “Você merece saber de tudo.”
Pretas avançam na terceira:
Ter muita força nos maxilares conduz ao infortúnio. O homem superior está firmemente
determinado. Ele caminha sozinho, é pego pela chuva e caluniado. O povo murmura contra
ele. Não há culpa.

“Tudo faz parte de seu programa de treinamento”, começou Varlene. “O


PAPAI, você sabe.”
“O que é que tem?”
“Você está sendo contratado, Alberto. É uma oportunidade única, e só para
os melhores.” A psicóloga baixou o olhar para o braço que continuava
firmemente seguro na mão imensa do inspetor. “Isto não é necessário.”
A contragosto, Teixeira largou.
“Assim está melhor. Agora escute bem, pois essa é a melhor oferta que você
terá. A melhor e a última, está me entendendo? Pois estou ficando cansada de
ser rejeitada por você.” Ela emitiu um som rouco, que parecia uma risada seca
misturada com tosse. O assunto ainda estava engasgado nela. Seus olhos
examinavam detalhes na parede, como se estivesse embaraçada. Afastou-se um
passo, meio sem jeito, para ajeitar o cabelo. Recuou mais um passo e se largou
na poltrona. Ela fez um gesto indicando o sofá.
“Sente-se, por favor.”
De volta às posições iniciais de terapeuta e paciente, Varlene pareceu
recuperar um pouco de sua autoconfiança. Ela chegou mesmo a juntar as mãos
postas diante dos lábios antes de voltar a falar.
“Você devia agradecer a sua sorte, Alberto. Você despertou o interesse da
Fábrica.”
Pretas avançam na quarta:
Não há pele em suas coxas e torna-se difícil caminhar. Se um homem se permitisse ser guiado
como uma ovelha, o remorso desapareceria. Ainda que essas palavras sejam ouvidas, ninguém
acreditará nelas.

Durante o silêncio que se seguiu, Varlene cruzou as pernas. Curiosamente


dessa vez foi uma cruzada convencional, breve, desprovida de intenções
exibicionistas.
Afinal a curiosidade de Teixeira venceu.
“Fábrica? Que fábrica? Do que você está falando?”
Varlene sorriu, superior. Começava a se sentir perigosamente à vontade.
“É claro que esse é apenas um nome de fantasia, por assim dizer. Mas eu
acho bem apropriado. A Fábrica. Bastante sonoro, você não acha?”
“Varlene, não estou achando a menor graça.” O tom de Teixeira era
soturno, presságio de tempestade. “Acho bom você começar a me dar algumas
respostas.”
“Tudo bem, Alberto. Não precisa ficar nervoso. Só estou tentando
encontrar as palavras. Não é todo dia que alguém me pede para falar sobre a
Fábrica.”
“E então? Minha paciência está se esgotando.”
“Digamos que estamos falando de uma corporação. De um tipo especial, na
verdade uma megacorporação, a maior que já existiu. E você está a um passo de
se tornar o mais novo contratado.”
“Que história é essa? De que diabos você está falando?”
Varlene descruzou as pernas. Agora não havia dúvida possível quanto a
intenções exibicionistas de sua parte. Ela voltou a sorrir.
“Você não precisa se preocupar com isso agora, Alberto. Tudo o que você
tem a fazer é transar comigo.”
Pretas avançam na quinta:
Ao lidar com ervas daninhas, é necessário possuir uma firme resolução. O caminho do meio
permanece livre de culpa.

“Todo mundo está querendo trepar comigo hoje.”


“Você fala como se fosse um grande sacrifício. Já disse que cansei de ser
esnobada por você.”
“Varlene, e eu já disse que não estou para brincadeiras.”
“E quem está brincando? Você não disse que queria respostas? A melhor
maneira de conseguir essas respostas é fazendo sexo comigo.”
“Mas o que uma coisa tem a ver com a outra?” Teixeira já estava alterando a
voz. “Chega de tanto mistério.”
O sinal de alerta foi claro. Varlene decidiu mudar de tática. Ela suspirou
como se tivesse acabado de tomar uma decisão. Enfiou os dedos no bolso do
terninho e retirou algo de lá:
“Importa-se em descrever para mim o que estou segurando?”
“Foi essa a moeda que você tentou depositar em minha poupança hoje de
manhã? Podia ter ao menos separado uma moeda de prata que nem a sua, e não
essa fajuta aí, de cobre.”
Por um momento ou dois a psicóloga não disse nada. Quando falou, era
evidente a admiração em sua voz:
“Você realmente consegue enxergá-las. Eu sempre soube que você era
especial, Alberto. Eu só pude vê-las depois que ganhei a prata.”
“Mas do que é que você está falando?”
“Você não quer saber como funcionam as moedas? Só existe um jeito de
saber. Tome.” Em um gesto impetuoso, Varlene lançou o diminuto objeto de
cobre na direção do inspetor.
Teixeira apanhou a moeda no ar e ficou por alguns instantes examinando os
dois lados, como se tentasse descobrir a cara e a coroa. Em tudo era idêntica à
que estava fixada em sua coluna. Não havia qualquer tipo de inscrição no
pequeno círculo metálico, que era levemente gélido ao toque. Os dois lados
eram exatamente iguais, com uma única diferença: havia uma sutil reentrância
em um dos lados.
Diante do olhar interrogativo do inspetor, Varlene prosseguiu:
“Nós chamamos essas belezocas de moedas, simplesmente. Não são
verrugas e muito menos supositórios.” A psicóloga deu um sorriso contrafeito,
como se estivesse um pouco embaraçada. “Você mesmo pode aplicar, se
preferir. Basta encostar a parte que tem um furinho bem na ponta do osso
sacro, você sabe qual é? No final do cóccix.”
Como Teixeira continuasse olhando para ela, mudo, Varlene sentiu-se
compelida a acrescentar:
“Não é absolutamente necessário que ocorra penetração anal, de forma
alguma.” Ela esforçou-se por impingir um tom casual à sua voz. “O que
aconteceu hoje de manhã foi apenas um pequeno capricho meu. Perdoe-me por
isso. Não teria feito se imaginasse que você poderia não gostar.”

Brancas avançam na sexta:


Sem choro. No final chega o infortúnio.

Teixeira considerou por um momento revelar que a psicóloga estava


atrasada, que ele já trazia uma das tais moedas bem afixada na base da coluna, e
que não sabia ainda para que ela realmente servia. Se ao menos ele tivesse
seguido esse impulso! Mas não, preferiu continuar bancando o bobo por mais
algum tempo, para ver o que conseguia arrancar de Varlene.
“E o que acontece depois que eu colocar a moeda no cofrinho?”
A psicóloga sorriu, aliviada por ver que ele não parecia mais irritado pelos
acontecimentos daquela manhã. Ela começava a se divertir com a situação.
“De imediato, nada. Não acontece nada. É preciso que você goze primeiro,
meu bem. E é para essa árdua tarefa que estou me colocando à disposição.”
Diante da expressão de Teixeira, Varlene abriu ainda mais o sorriso.
Resolveu por fim explicar:
“A moeda é um estimulador neurônico que é conectado na base da coluna.
Para que ela seja ativada, é necessário que ocorra no organismo uma série de
alterações elétricas e fisiológicas que estão associadas com o momento do
orgasmo.”
Varlene havia adotado um tom meio didático, meio zombeteiro. Teixeira
continuava observando o pequeno objeto circular, que ele fazia girar entre os
dedos.
“Então isso é um estimulador neurônico. E de que forma ele estimula os
neurônios? O que a moeda faz exatamente?”
“Tudo e mais um pouco. Amplia a capacidade de raciocínio analítico, a
percepção espacial, a acuidade dos sentidos e até o tônus muscular. Isso sem
mencionar que você passa a ter orgasmos com duração e intensidade dignas de
um super-homem. Os efeitos da moeda são progressivos, e é claro que isso
também depende do esforço de cada um. Você bem notou que a minha moeda
é prateada. Pois muito bem, há meros cinco meses atrás eu tinha uma moeda
exatamente igual a essa que estou passando para você. Todo mundo começa
com uma moeda de cobre, meu bem.”
“Isso não faz o menor sentido. Você está simplesmente dizendo um monte
de bobagens.”
“Se duvida, experimente. É mais fácil entender na prática como funciona do
que explicando.” Varlene passou a língua provocantemente pelos lábios. Seu
comportamento tornava-se cada vez menos o de uma psicóloga cara, e mais o
de uma prostituta barata. “Eu prometo que não vai doer nadinha.”
O inspetor chegou a recuar no sofá. “Mas que coisa! Isso já está virando
uma obsessão! E que interesse você tem, afinal, em me fazer usar esse troço?”
“Interesse, eu? Nenhum.” O sorriso e o olhar que Varlene endereçou ao
inspetor estavam encharcados de lascívia. Ela estava positivamente adorando
aquilo tudo. “Eu fico satisfeita se nós dermos uma boa trepada. Quem está
querendo te contratar é a Fábrica.”
“Como assim, fábrica? Que fábrica é essa? Fábrica de quê?”
“Eu já te disse, Alberto. Mas que coisa.” A psicóloga tentou um muxoxo,
como se estivesse aborrecida. Mas a impressão que deu foi a de que estava
embriagada. E ela estava ficando bêbada, sim. Bêbada de tesão. “A Fábrica é a
Fábrica.”
“E quem é o dono dessa fábrica?”
“O dono da Fábrica? Essa é boa. Acho que nem o diabo conhece.” Varlene
deu uma risada curta e desagradável. Já não tinha mais noção de nada. Ela
acrescentou, quase para si mesma: “Eu só sei o nome de meu dono, e olhe lá.”
“Seu dono?”
Varlene fez um gesto com a mão, como se descartasse o que havia acabado
de dizer.
“Meu dono, sim. Foi ele que me contratou, foi quem me deu a minha
primeira moeda.” Um novo pensamento pareceu ter surgido em sua mente. Ela
se levantou da poltrona e foi sentar no sofá, ao lado de Teixeira. “Bem que eu
gostaria de ser sua dona. Infelizmente, não é assim que a coisa funciona.”
Teixeira fingiu não perceber a mão da psicóloga em sua coxa. “Que história
de dono é essa? Quem é ele? Como é o nome dele?”
Varlene se limitou a sacudir a cabeça em negativa. Sua mão avançou em
direção à virilha do inspetor, mas Teixeira segurou-a pelo pulso.
“Como é o nome dele?” Ele repetiu.
“Como é o nome dele? Como é o nome dele?” Remedou Varlene. “Vem cá,
faça amor comigo. Veja como estou toda molhadinha.”
“Como é o nome dele?” Tornou a perguntar o inspetor.
“Mas que cisma! Quando você coloca uma coisa na cabeça, não tem jeito
hem! Que importância tem um nome? Que diferença faz um nome?”
O inspetor continuou fitando-a nos olhos, sério. Exasperada, Varlene fez o
impensável:
“Está bem, está bem. Já que você quer tanto saber, é alguém que você
conhece bem. O nome de meu dono é Rogério. Mais não posso dizer.”
CAPÍTULO 4 – INEXPERIÊNCIA

Não sou eu quem procura o jovem tolo, ele é que me procura. Eu o informo.
Se ele pergunta duas ou três vezes, isso é inoportuno. Se ele importuna, eu não
respondo mais.
Água ao pé da montanha: a imagem da Inexperiência. Assim o homem superior alimenta
sua personalidade sendo perfeito em tudo o que faz.
(I Ching – hexagrama 4)

Conheci Varlene quando eu estava recrutando para o PAPAI. Ela veio


atendendo a uma oferta de emprego, simples anúncio no jornal. Desde o início
me impressionou favoravelmente por sua exuberância e pela maneira de colocar
seus interesses em primeiro plano. Mas só decidi contratá-la mesmo depois que
transamos.
Na cama, a arrogância e altivez de Varlene transformavam-se em um
tempero a mais. Era um prazer adicional a cada vez quebrar suas resistências,
dobrar sua vontade, mostrar quem é que estava no comando. Que delícia,
submeter Varlene!
Teixeira disso nada saberia. Foi tudo culpa dele. Ele tinha que escolher o
caminho mais difícil. Teria sido tão mais óbvio, e até mais honesto,
simplesmente ceder aos instintos.
Eu não queria matar Varlene. Teixeira não me deixou escolha.
Pretas avançam na segunda:
Saber lidar com mulheres conduz à boa fortuna.

Varlene tentou de tudo para que o inspetor fizesse sexo com ela. Mas justiça
seja feita: ela não era nenhuma ninfomaníaca descontrolada. Estava apenas
fazendo a minha vontade, cumprindo as minhas ordens. O fracasso daquela
manhã havia me deixado nervoso. Ninguém sabia disso tão bem quanto a
psicóloga, que por conta do episódio do dedinho buliçoso havia acabado de sofrer
as mais severas admoestações.
Varlene geralmente reservava o último horário do dia para reuniões de
supervisão comigo. Não era incomum que depois da reunião eu a levasse para
jantar ou para algum outro programa. Naquela noite em particular eu planejava
que ela me acompanhasse na festa em minha casa logo mais. Mas só depois que
eu desse vazão a toda frustração e ira pela falha dela na contratação de Teixeira.
Passei a maior parte de minha última hora com Varlene espezinhando-a o
mais que pude. Se soubesse que aquela seria a última hora que passaríamos
juntos, teria agido de forma diferente. Se bem que se eu soubesse disso, ela não
teria morrido. Pois tudo afinal não passou de um acidente.
O fator que precipitou os acontecimentos foi o retorno de Teixeira ao
consultório. Quando a recepcionista anunciou que o inspetor estava na sala de
espera, a princípio achamos que aquele era um inesperado golpe de sorte.
Pensamos que ele estava de volta apenas para terminar os assuntos inacabados
durante a sessão da manhã. De certa forma, ele estava mesmo.

Brancas avançam na terceira:


Não despose uma dama que ao ver um homem de bronze perde o controle de si mesma.
“O nome de meu dono é Rogério.”
Mal as fatais palavras escaparam da barreira dos dentes, Varlene foi
acometida de súbita emoção. Seus olhos se arregalaram e buscaram os do
inspetor, carregados de surpresa e espanto. Mas logo os olhos da mulher se
fecharam, assim que sobreveio uma nova e poderosa corrente. O corpo da
mulher tremeu visivelmente e seus lábios se arquearam em incompreensíveis
gemidos. Incompreensíveis, bem entendido, no tocante à gramática. Mas plenos
de sentido para o conhecimento mais imediato e instintivo.
A verdade crua e nua era clara. A menos que a mulher fosse a melhor
fingidora de todos os tempos, não havia dúvida possível a respeito daqueles
gemidos.
A doutora Varlene Alberione estava gozando. E como.

Brancas avançam na quarta:


A inexperiência entranhada conduz à humilhação.

Teixeira, hipnotizado, não conseguia tirar os olhos de cima de Varlene. O


orgasmo feminino pode ser assustador. O inspetor assistiu à mulher arrastar as
mãos crispadas ao longo do corpo. Eram movimentos em rallentando, como se
os braços arrastassem pesos de chumbo. As mãos desceram pesadas pelo busto
cheio, arrancando botões. Um dos seios se libertou do sutiã. As unhas
desenharam marcas na pele macia do seio e até por cima do mamilo: feias
estrias arroxeadas tendendo para o sanguinolento. As mãos de Varlene
continuaram descendo até alcançar a saia, que começaram a puxar e amassar até
que subisse totalmente acima da cintura.
Caso fosse dado a misticismos, Teixeira seria capaz de jurar que a vagina de
Varlene brilhava. O clitóris da psicóloga era nitidamente visível, maior que o
pênis de muito menino pré-adolescente. Mesmo à distância, o inspetor podia
ver que o clitóris pulsava como se fosse um foguete tentando alçar voo. A
vagina inteira vibrava, viva e desperta, os grandes e pequenos lábios
arreganhados, o movimento sugerindo uma flor carnívora e desesperadamente
faminta.
O inspetor observava, fascinado e estarrecido. Ver uma mulher ter um
orgasmo daquela magnitude completamente desassistida, sem nenhum auxílio
direto, era uma experiência capaz de abalar qualquer macho.
A psicóloga jogou a cabeça para trás. Os olhos nus e arregalados pareciam
expressar dor e pavor junto com o prazer. Há muito que os óculos tinham sido
lançados para longe. Da garganta da fêmea saía um prolongado “íí” gutural, um
som rouco e assustador.
Teixeira não conseguiu mais suportar aquilo. Ele estendeu as mãos na
direção de Varlene, talvez com a intenção de sacudi-la pelos ombros, talvez
querendo estapeá-la como se a mulher estivesse sofrendo de uma aguda crise
histérica, quem sabe quisesse apenas abraçá-la, protegê-la de alguma forma.
Pouco importa. A essa altura Varlene já estava morta. Naquele momento era
apenas um corpo em agonia. Quando as mãos dele tocaram a pele da psicóloga,
Teixeira sentiu seus dedos formigarem.

Brancas avançam na quinta:


A inexperiência infantil conduz à boa sorte.

Eu não queria matar Varlene. Ao colocar o circuito orgasmático em loop, a


minha intenção era simplesmente fazer a mulher fechar a bendita matraca.
Porém há uma outra coisa. Conforme percebo agora, e com certa vergonha
confesso, uma parte minha acreditava de modo meio confuso que ao precipitar
uma torrente de orgasmos em Varlene o apelo sexual se tornaria irresistível para
Teixeira, o que o levaria por fim a consumar as cenas de penetração e
ejaculação, tão essenciais para a indústria do cinema pornográfico quanto para
os planos de dominação mundial. Agora percebo que cometi erros primários na
avaliação da situação.
Eu não havia considerado o quanto Varlene realmente estava gostando
daquele jogo com Teixeira.
Eu já havia usado o loop de orgasmos em Varlene. Nós estávamos
acostumados a usá-lo. Foram inúmeras e inúmeras vezes. E sempre pareceu
incrível.
Mas nada que se comparasse ao que ela teve ao lado de Teixeira. Ela sempre
parecia estar morrendo de prazer, mas nunca havia morrido mesmo, como com
ele. Varlene nunca gozou assim comigo.
Nossa, foi bom tirar isso do peito.
CAPÍTULO 33 – RETIRADA

Retirada. Sucesso. Em pequenos assuntos, a perseverança é propícia.


Montanha abaixo do céu: a imagem da Retirada. Assim o homem superior mantém o homem
inferior à distância, não com raiva, mas com reserva.
(I Ching – hexagrama 33)

Teixeira voltou a si com um sobressalto. Ele chegou a ficar meio tonto por
alguns poucos segundos. Teve a impressão de ter ouvido um barulho surdo,
mas logo descartou essa informação como sem importância. O ruído parecia ter
vindo de fora do consultório, de detrás da parede com a pintura de Pollock. Ao
se levantar, notou que suas mãos estavam dormentes em consequência do
choque.
É sabido que as paredes da vagina emitem uma descarga de 244 milivolts no
momento do orgasmo. A informação caiu no gosto do público e ganhou larga
divulgação na Internet. O povo se diverte ao imaginar que cinco mulheres
gozando podem acender uma lâmpada.
Essa pequena peculiaridade elétrica do orgasmo feminino é como a maioria
das informações que chegam até as massas, no tocante aos avanços das ciências
e tecnologias. O público sempre acaba recebendo alguma peça de informação
que, por si, não possui nenhuma relevância prática (“a vagina gera 224 milivolts
durante o orgasmo”). Some-se a isso uma situação pitoresca, alguma anedota.
Quanto maior a sugestão do ridículo, melhor (“com quantas mulheres gozando
se acende uma lâmpada?”). O resultado é esse pastiche, placebo de cultura
inútil, uma comunicação saturada de apelo emocional vazio e totalmente
carente de valor informativo.
As informações realmente importantes ficam completamente fora do
alcance do populacho. Informação é poder. Informação é dinheiro. Pela vitória
do Rei e pela honra da Rainha.
Poucos são os que sabem das reais possibilidades energéticas do corpo
humano. Caso estivesse dentro de Varlene no momento do fatídico orgasmo,
Teixeira teria sido seguramente eletrocutado. Nesse caso a narrativa de suas
aventuras teria sofrido um encurtamento abrupto e pouco conclusivo. Sorte a
dele, talvez, ter recuado diante dos intempestivos avanços da mulher.
Ela agora jazia ao lado da poltrona, esparramada no chão, a saia levantada, a
blusa rasgada, as pernas escancaradas. Um leve cheiro de ozônio emanava do
corpo. Não foi preciso muito tempo para Teixeira se certificar de que Varlene
estava morta.

Pretas avançam na terceira:


Uma retirada interrompida é enervante e perigosa. Manter homens e mulheres como servos
conduz à boa fortuna.

Quando Teixeira abriu a porta do consultório, deu de cara com a


recepcionista Shirlei, que o fitava com os olhos esbugalhados. Ela
provavelmente ouvira os gritos e gemidos de Varlene. O inspetor optou pela
abordagem direta: “Sua patroa está morta. Sinto muito.”
A recepcionista recuou um passo, o medo estampado no rosto. Teixeira
percebeu que ela supunha ter sido ele o responsável pela morte. Naquele
momento lhe ocorreu que não seria bom que Shirlei visse o corpo de Varlene,
com seios e genitais à mostra, a própria imagem de uma vítima de estupro. Ele
se apressou a fechar a porta atrás de si, de modo a impedir a visão que
certamente faria a recepcionista sair correndo em pânico.
“Procure ficar calma. Eu sou policial, está lembrada?”
Após um momento, Shirlei finalmente reuniu coragem para perguntar: “O
que aconteceu com doutora Varlene?”
“Não sei dizer ao certo.” O inspetor coçou a cabeça. “Ela teve uma espécie
de ataque. Talvez um surto epilético. Só o médico legista é que pode dizer
agora.”
“Médico?” A recepcionista parecia estar saindo de um transe. “O doutor
Rogério é médico, eu acho. Ele poderia ajudar. Pena que acabou de sair.”
“Doutor quem? De quem você está falando?”
“O doutor Rogério, o senhor não o viu? Ele faz a supervisão da doutora
Varlene. Estava com ela quando o senhor chegou.”
“Quando eu entrei no consultório, Varlene estava sozinha.”
“Ora, mas que coisa.” Por um momento Shirlei esqueceu as circunstâncias
do triste passamento de sua empregadora, de tão entretida que ficou com o
mistério. “Como será que ele conseguiu sair do consultório sem que o senhor o
visse? Eu já estava achando loucura demais ele ter entrado no banheiro sem que
eu notasse.”
“Como é?”
“Bom, eu tive uma indisposição estomacal agora há pouco.” A recepcionista
se calou, embaraçada.
“Sim, entendo. Continue, por favor”, estimulou Teixeira.
“Eu só saí do banheiro nesse instante, há poucos minutos. Foi então que eu
escutei uns gritos vindos do consultório. Era a doutora Varlene, não era?”
O inspetor assentiu com a cabeça. Shirlei prosseguiu:
“Fiquei muito assustada. Foi então que vi o doutor Rogério saindo do
banheiro. Ele nem olhou para mim, nem cumprimentou nem nada, como
sempre faz. Foi direto para a rua. O que não entendo é como ele entrou no
banheiro. Eu havia acabado de sair de lá e tenho certeza de que ele não estava
na recepção quando eu saí. A única explicação que consegui encontrar foi a de
que eu tive uma queda de pressão, um desmaio, sei lá. Minha saúde não tem
andado muito bem ultimamente.”
“Vamos dar uma olhada nesse banheiro.”
Pretas avançam na quinta:
Retirada amigável. A perseverança traz boa sorte.

O banheiro do consultório de Varlene Alberione era diminuto e luxuoso. A


pequena pia de mármore, ornamentada com um delicado arranjo de flores
artificiais, dava o seu toque de elegância. Mas era o vaso sanitário que dominava
a cena, evidência-mor da principal serventia do restrito aposento, que era a
eliminação de fezes e urina.
Essa evidência era tornada irrefutável pelo forte odor que impregnava o
ambiente confinado. Na tentativa de disfarçar os seus venenosos eflúvios
intestinais, Shirlei havia pulverizado meio frasco de purificador de ambiente no
banheiro. O resultado era aquele inconfundível cheiro de merda com bom ar.
Naquela mesma manhã, Teixeira já havia respirado o suficiente daquele tipo
de perfume. E agora, em nome do cavalheirismo, esforçava-se bravamente para
não demonstrar qualquer sinal de desagrado. Shirlei Maquilanei, ré culposa,
permanecia à porta do banheiro, apertando as mãos em constrangido silêncio.
A atenção do inspetor foi logo direcionada para o comprido espelho afixado
em uma das paredes. O espelho era emoldurado por uma fina tira de madeira
com detalhes em dourado. Parecia grande demais para um banheiro tão
pequeno. Para os padrões de Teixeira, era o que estava destoando da cena, o
que estava em excesso. Tudo bem que o espelho realmente dava a ilusão que o
banheiro era um pouco mais espaçoso, justificativa plausível para sua existência
naquele cubículo. Mas o resultado era que a pessoa tinha que ficar face a face
consigo mesma durante todo o tempo em que estivesse ocupando o trono.
Poucos foram os reis, ao longo da história humana, que se saíram bem nesse
duro teste. Teixeira tentou tirar o espelho da parede. Esforço inútil.
“Não sai. O espelho está preso na parede”, voluntariou Shirlei.
O inspetor tateou, inicialmente a moldura ao redor do espelho, depois as
paredes em volta, a descarga e até o cano da privada, na parte de baixo do vaso.
Finalmente encontrou o que procurava debaixo da pia de mármore: um
pequeno interruptor.
Eliminadas as impossibilidades, resta a ainda que improvável verdade.
Elementar, caríssimo Bastos.
Quando Teixeira apertou o botão, ouviu-se um distinto zumbido eletrônico
seguido por um clique. Foi então que o inspetor descobriu, como Alice antes
dele, o que havia por trás do espelho.

Pretas avançam na sexta:


Retirada com bom ânimo. Tudo é propício.

A sala secreta era obviamente uma novidade para Shirlei Maquilanei. A


recepcionista ficou de boca aberta quando o inspetor puxou com facilidade o
espelho da parede. Só que o espelho agora era na verdade uma porta, que dava
para um aposento escuro onde brilhavam pequenas luzes coloridas. Shirlei
continuou exibindo os dentões enquanto Teixeira subia na tampa do vaso
sanitário para melhor alcançar a entrada da sala dentro do espelho. Ele já havia
sumido passagem adentro há alguns minutos quando Shirlei finalmente
processou a informação que seus olhos registravam:
“Agora entendi porque vira e mexe a tampa do vaso aparece com marcas de
sapato.”
Ela se aproximou um pouco mais, movida pela curiosidade. Queria ver o
que o policial estava fazendo. A penumbra do aposento secreto era cortada por
um grande retângulo de luz que atravessava a parede oposta ao espelho. Era
uma janela de vidro, contra a qual se destacava a silhueta de Teixeira.
O piso da sala ficava uns quarenta centímetros acima do nível do chão do
banheiro. De onde a recepcionista estava, ao olhar através da janela só
conseguia ver o teto de um aposento. Ela não tardou a reconhecer aquele teto
como o da sala de Varlene Alberione.
Teixeira também não demorou a perceber que o retângulo de luz ocupava
no consultório exatamente o lugar da tela de Pollock, Ritmo de Outono. Só que
desse lado da tela não havia pintura, apenas uma janela perfeitamente
transparente. O inspetor ficou impressionado. Ele não poderia deixar de ficar.
Não havia nada nem remotamente parecido com aquela tecnologia na
Delegacia de Homicídios.
Daquele ângulo de visão era possível dominar o consultório. O olhar do
policial se demorou principalmente na defunta. Dali de onde Teixeira estava, de
uma posição mais alta pelo piso elevado, olhando através de uma tela de vidro,
a psicóloga morta parecia menos real, menos uma pessoa de verdade e mais
como uma ficção, como uma atriz em algum seriado para a tevê. Varlene jazia
de olhos e pernas arregalados. Foi bom que Shirlei ainda não a tivesse visto. Só
naquele momento, ao olhar para o cadáver de uma forma mais distanciada,
Teixeira percebeu o quanto a morte de Varlene o havia colocado em uma
posição suspeita, para dizer o mínimo.
É claro que a descoberta da sala de controle mudava tudo, se ao menos
Teixeira pudesse fazer algum sentido do que estava vendo e encontrasse alguma
explicação plausível para os insólitos equipamentos que seu olhar descortinava
na semi-escuridão. Após alguns instantes, ele não havia conseguido sequer
descobrir onde ficava o interruptor para acender a luz na sala, se é que existia
um.
O interruptor que ficava no canto esquerdo da tela servia a uma função
menos prosaica. Quanto o inspetor pressionou o botão, a tela começou a subir
silenciosamente, permitindo a livre passagem da sala de controle para o
consultório de Varlene. E da mesma forma, forçoso era concluir, estava
liberado o acesso também no sentido contrário, ou seja, do consultório para a
sala. Caso se desse ao trabalho de verificar, Teixeira iria descobrir um
interruptor com funções análogas bem disfarçado no canto direito da moldura
que cercava a suposta tela de Pollock. Ritmo de Outono, na verdade, era somente
uma dentre as centenas de opções disponíveis. Varlene teria alegremente
utilizado uma imagem diferente por dia, caso isso não fizesse com que seus
clientes, todos eles felizes participantes do PAPAI, começassem a olhar mais do
que deviam naquela direção.
A iluminação dentro da sala de controle continuou a mesma depois que a
tela subiu. O que mudou foi a atmosfera, depois que passou a se misturar
livremente com os ares que vinham do consultório. O inspetor estava
realmente com o faro cada vez mais apurado. Ele aspirou o ar. A morte de
Varlene cheirava a sexo e ozônio.
“Bom”, disse Teixeira, finalmente. “Isso explica como nosso misterioso
doutor saiu do consultório sem passar por mim e acabou aparecendo no
banheiro.”
Ele havia falado mais para si mesmo, mas foi prontamente obsequiado por
Shirlei:
“Parece coisa de filme.” A recepcionista fez um gesto vago para dentro do
aposento. “Para que servem todos esses computadores?”
“Bem que eu gostaria de saber”, respondeu Teixeira. Ele olhou novamente
para o balcão logo abaixo da passagem para o consultório. Em sua ingenuidade
simplificadora, Shirlei havia chamado os equipamentos que havia na sala de
computadores. Embora o termo carecesse de precisão, não era de todo
inadequado. Alguns equipamentos lembravam mesmo os tradicionais
periféricos de computador.
Sobre o balcão, por exemplo, destacava-se o pequeno teclado, com seus sete
grandes botões coloridos, seguindo as cores do arco-íris. Parecia um brinquedo
infantil. Ao lado do teclado, um pequeno microfone projetava-se de sua base de
plástico. Ficaria para o médico legista a tarefa de descobrir o ponto eletrônico
na orelha de Varlene. Restava ainda saber se alguém faria as necessárias
conexões lógicas entre esses elementos: o teclado, o microfone, o ponto
eletrônico. E as desconcertantes cruzadas de perna da doutora Alberione.
Havia uma cadeira posicionada diante do microfone. Teixeira sentou-se
nela, tentando ao máximo visualizar o que ali dentro se passava. Na parede à
sua esquerda havia uma tela, exatamente como o monitor de um computador.
A tela estava apagada, mas não foi difícil descobrir onde era ligada.
A imagem que apareceu inicialmente parecia não fazer sentido. A tela de
computador mostrava... a tela de computador! Mas era uma imagem
estranhamente distorcida, de uma forma difícil de descrever. Como um esboço.
Os gêmeos haviam encontrado uma forma original de se referir a esse tipo de
imagem: storyboard. Para os olhos de Shirlei Maquilanei, devia parecer
simplesmente esquisito. Para Teixeira, a estranheza maior seria perceber ali
algum tipo de familiaridade.
Dentro da tela, era possível ver outra tela, e dentro dessa outra ainda, e
outra e outra. Parecia que ia assim até o infinito, sendo que a imagem não era
estática, sofrendo a todo instante alterações de ângulo e no padrão de cores,
para dizer o mínimo. Ainda assim, evocava a Teixeira a clássica cena dos
espelhos sobrepostos, um de frente para o outro. Mas se era assim, onde
estavam os espelhos? Foi Shirlei quem acabou involuntariamente solucionando
o impasse.
“E aí? Descobriu alguma coisa?”
O inspetor teve um sobressalto, como se houvesse sido arrancado de uma
profunda cadeia de pensamentos. Ele voltou o rosto para a recepcionista e até
manejou um sorriso.
“Desculpe-me, eu estava distraído. O que foi que você disse?”
Foi a vez de Shirlei tomar um susto:
“Ei, o que é aquilo na tevê? Parece que sou eu!”
O inspetor virou os olhos na direção apontada por Shirlei. A tela mostrava
apenas sua sequência infinita e ligeiramente móvel de uma tela dentro da outra,
ainda que de um ângulo ligeiramente diferente. Teixeira olhou de novo para
Shirlei.
“Olha lá, apareci de novo”, bradou a moça de imediato.
Para que não restassem dúvidas, Teixeira voltou a olhar para a tela do
computador e dessa vez ergueu a mão diante de si. Uma infinidade de mãos
apareceu de imediato na galeria de imagens dentro de imagens que a tela
mostrava. Shirlei não foi lerda no raciocínio:
“A tela mostra o que você vê.” A voz dela era suavizada pelo espanto e pela
admiração. “Como é que pode?”
Teixeira não respondeu. Por um instante os dois ficam olhando para a tela
em silêncio solene.
O inspetor seria um gênio indisputável da dedução se tivesse conseguido
associar aquele miraculoso fenômeno com um episódio aparentemente
insignificante, ocorrido três meses antes, quando fazia os exames finais para seu
ingresso no PAPAI. Ao fazer a coleta de sangue para os exames, a enfermeira
injetou primeiro o conteúdo de uma pequena seringa no braço de Teixeira. Ela
explicou ao inspetor que se tratava de um reagente necessário para o tipo de
exames que seriam feitos. Ele engoliu a história.
E bem mais que isso junto com a história. Ele não tinha como desconfiar de
nada. Como é que alguém vai desconfiar de que existe um nanorrobô
circulando em seu sangue? Um engenhoso artefato, tão pequeno que seu
tamanho era medido em micrômetros, que atravessou o espesso fluxo da
corrente sanguínea até chegar ao cérebro de Teixeira. De lá o nanorrobô
navegou pelo complexo sistema de irrigação cerebral até alcançar um dos
pontos mais íntimos do órgão: o tálamo. Após aportar com êxito, o ínfimo
servo não tardou a cumprir sua missão ao se decompor nos biochips que
seriam implantados nos núcleos geniculados lateral e medial do tálamo.
Respectivamente, os pontos por onde passavam as informações vindas do
nervo ótico e das vias auditivas.
Os dois biochips nada mais eram que estações receptoras e transmissoras.
Primeiro, captavam os impulsos elétricos que passavam pelos núcleos
geniculados com destino ao córtex. Essa captação de modo algum interferia no
processamento que o córtex de Teixeira faria desses impulsos, transformando-
os em informações de imagem e som. O que equivale a dizer que, na prática, os
biochips captavam tudo o que o inspetor ouvia e enxergava.
A função receptora do biochip não seria de muita valia se ele não fosse
igualmente capaz de transmitir o que estava captando. Isso era feito sem
problemas na maioria dos lugares a partir da Internet.
Nós chamávamos aquela utilíssima invenção de minitevê. Era o mais próximo
que a tecnologia havia chegado da telepatia. Ainda era um próximo bem
distante, pois diante das complexidades de captação e processamento da
atividade cerebral no córtex, o nosso feito com a minitevê não passava de uma
brincadeira de criança.
Mas vamos e convenhamos: não se pode negar que na área de
telecomunicações a Fábrica estava mesmo muito avançada.
CAPÍTULO 16 – ENTUSIASMO

É favorável promover assistentes e colocar os exércitos em marcha.


O trovão sai ressoando da terra: a imagem do Entusiasmo. Assim os reis antigos faziam
música para honrar o mérito e ofereciam-na com esplendor à Suprema Divindade, convidando
seus ancestrais para estarem presentes.
(I Ching – hexagrama 16)

“Almeida, preciso de sua ajuda.”


“Teixeira? Onde você está?”
“No consultório da doutora Varlene Alberione, aquela que estava me
atendendo para o PAPAI. Ela está morta. É por isso que preciso de sua ajuda.”
“O que você quer?”
“Mande o pessoal para cá, está bem? Não tenho certeza, mas desconfio que
ela foi assassinada.”
“No que é que você se meteu agora?”
“Eu ainda não sei ao certo. Mas vou descobrir. Ah, se vou.”
“E onde fica esse tal consultório?”
“Pergunte ao Curupira. Ele sabe.”
Brancas avançam na primeira:
O Entusiasmo que expressa a si mesmo conduz ao infortúnio.

Depois que devolveu o telefone sem fio à sua base na mesa da recepção, o
inspetor direcionou um olhar encorajador para Shirlei Maquilanei:
“Pronto. A polícia já está a caminho. Quando eles chegarem, quero que
você conte tudo exatamente como aconteceu.”
“Como assim? O senhor vai me deixar aqui sozinha?”
“Não há nada a temer agora. Você ficará bem. Só lhe peço que não entre no
consultório e nem mexa em nada, está bem?”
A recepcionista sacudiu a cabeça com veemência. “Entrar lá? De jeito
nenhum.”
“Quando a polícia chegar, mostre também o aposento oculto anexo ao
banheiro e explique como nós o descobrimos.”
“O que foi aquilo que nós vimos na tela do computador?”
“Ainda não sei.” Quando estava na sala de controle, o inspetor resolveu o
enigma simplesmente desplugando a tomada do monitor. “Pensando bem,
talvez seja melhor você não mencionar nada a respeito dessa parte por
enquanto.”
Quebrou a cara o inspetor, se pensou que poderia confiar em Shirlei
Maquilanei. Tão logo teve a oportunidade já foi segredar à inspetora Fátima,
designada para atender à ocorrência. Só que a recepcionista quase pagou a
língua, pois quando a polícia tentou ligar os equipamentos, o resultado foi uma
discreta e ainda assim impressionante explosão. Ninguém ficou ferido, que não
chegava a tanto. Mas agora todo aquele equipamento não passava de sucata.
Brancas avançam na quinta:
Continuamente doente, e ainda assim não morre.

Varlene, minha linda.


Eu não queria matá-la.
Sinto sua falta.
Foi duro voltar a esses resquícios de lembranças, por mais que sejam a única
prova de que estou vivo.
Talvez fosse melhor ter esquecido Varlene, junto com tantas outras coisas.
Se pelo menos pudesse ter sido diferente. Inúmeras vezes imaginei como a
alteração do menor detalhe teria modificado para sempre essa trágica sequência
de acontecimentos. Por algum motivo, sempre volto ao momento do despertar
de Teixeira, a la coincidenza, ao teorema da pirâmide. Não consigo evitar o
pensamento de que tudo teria dado certo, não fosse aquela caprichosa
sobreposição dos trovões. O destino dos homens é decidido nos detalhes.
O que teria acontecido se a música que tocou no despertador de Teixeira
tivesse sido outra? Quem sabe Beatles, Jimi Hendrix ou mesmo Caetano
Veloso, em vez de Black Sabbath?
Ator!
CAPÍTULO 17 – SEGUIR

O trovão no meio do lago: a imagem do Seguir.


Assim o homem superior se recolhe ao cair da noite para repouso e recuperação.
(I Ching – hexagrama 17)

O teatro Noite de Reis, ainda estalando de novo, havia sido construído no


nobre bairro de Jardim Campanário, na zona sul da cidade. Tinha já a fama de
acolher produções de vanguarda, montagens badaladas e exclusivistas com os
novos gênios da dramaturgia do momento. Era o tipo de lugar que muitos
adoravam citar casualmente em uma conversa. O espaço ideal para um astro em
ascensão provocar o seu burburinho básico.
Para chegar até a bilheteria era necessário atravessar a passarela que se
projetava acima de uma fonte luminosa. O inspetor avançou cautelosamente,
como se duvidasse que a requintada construção fosse capaz de suportar o seu
peso. Ele não estava muito à vontade ali, longe de seu elemento. Teixeira
apreciava o teatro ainda menos que a pintura. Se dependesse de seu interesse, a
música seria a única forma de arte no mundo.
O funcionário que estava na bilheteria confirmou as suspeitas do inspetor: a
peça já havia começado. Não era permitida a entrada de espectadores após o
início do espetáculo. Como Teixeira insistisse, e houvesse de fato algumas
poucas cadeiras vagas no fundo, o bilheteiro sugeriu que ele poderia entrar após
o intervalo e assistir ao segundo ato da peça. O preço do ingresso, porém, teria
que ser pago integralmente. Teixeira concordou.
Depois ficou admirando o ingresso feito em papel especial, semelhante a
dinheiro, em um verde-água texturizado com finos fios prateados. O inspetor
leu o que estava escrito no bilhete:

O SINCRONICÍDIO
Texto e direção: Wagner Tirol
Com Olívia Charlene, Régis Vale e grande elenco

Nunca ouvi falar nesse tal de Wagner Tirol. Mas a julgar pelo título da peça,
só posso crer que foi Júlia a sua grande musa inspiradora.

Brancas avançam na segunda:


Se ele se apega ao garoto, perde o homem forte.

O saguão do teatro era tão requintado quanto se poderia esperar. A


iluminação indireta realçava o clima intimista. As paredes eram decoradas de
forma tradicional, com cartazes de antigas produções teatrais, em sua maioria
montagens estrangeiras de Shakespeare. Talvez tenha ocorrido ao inspetor
imaginar que o teatro ainda não possuísse história suficiente para adornar o
saguão com os cartazes de suas próprias peças.
Para matar o tempo, Teixeira caminhou até a cafeteria do teatro e pediu um
expresso. Ato contínuo, levou a mão até o bolso do casaco, em busca da
carteira de cigarros. Foi quando se lembrou de que havia parado. Para afugentar
o antigo vício, pediu também uma bomba de chocolate.
Foi quando reparou que o programa da peça estava à venda na cafeteria.
Pagou uma quantia que considerou exorbitante pela revista impressa em papel
de luxo e recheada de autoelogios. Folheou o programa de forma descuidada,
mas se deteve por um longo tempo fitando a foto de Régis Vale. O ator havia
merecido o destaque de uma página inteira dedicada a ele, uma grande foto
colorida acompanhada de uma meia coluna louvando sua ascensão meteórica.
Teixeira ainda estava olhando para o sorriso estampado de Régis quando as
portas do teatro finalmente se abriram, anunciando o fim do primeiro ato. Os
espectadores afluíam como um ordeiro rebanho das portas abertas, o ruído da
conversa enchendo o salão.
O inspetor ficou surpreso pela quantidade de jovens rapazes dentre a
plateia. Não imaginava que a garotada se interessasse assim pelas artes cênicas.
Havia vários adolescentes no salão, apesar da peça ser recomendada para
maiores de dezoito anos. Não que isso fosse da conta de Teixeira. Afinal ele
não estava lotado na delegacia de costumes, e tampouco costumava dar
importância aos padrões da moralidade burguesa. Ainda assim, o fato não
deixava de ser intrigante.
Mas logo no início do segundo ato o inspetor descobriu o motivo para tanto
interesse da juventude masculina na peça O Sincronicídio.

Pretas avançam na quarta:


Avançar no próprio caminho com sinceridade traz claridade. Como poderia haver culpa nisso?

A cortina subiu. Tudo estava envolto na penumbra, mas uma luz mortiça
permitia distinguir a estranha estrutura que dominava o centro do palco. Um
grave zumbido se fazia ouvir como trilha sonora.
Pela reação das pessoas ao seu redor, Teixeira percebeu que aquele cenário
era novidade para elas também. Eram claros os sinais da expectativa que havia
naquele momento. O inspetor teve a impressão de que começava a assistir à
peça justo no ponto mais esperado.
A grande sombra no palco parecia ter mais de quatro metros de altura. Só
podia ser a tal esfinge pós-moderna citada no programa. A sugestão de movimento
justamente quando seu olhar passava por um ponto da semi-escuridão na base
da esfinge levou Teixeira a descobrir que havia uma pessoa ali. Nesse momento
uma voz em off se fez ouvir, uma voz profunda, cavernosa, cheia de efeitos. Era
provavelmente uma gravação:
“FIAT LUX!”
Algumas luzes se acenderam no centro do palco, exatamente para onde
Teixeira estava olhando. Um murmúrio de admiração imediatamente percorreu
a plateia.
O alvo dos holofotes era uma mulher nua. Estava acorrentada entre as duas
colunas que eram as pernas da esfinge. Parecia estar desmaiada, a cabeça
pendendo sobre o corpo, as pernas e os braços mantidos abertos em xis pelas
correntes que a prendiam pelos pulsos e tornozelos.
Agora era possível perceber que a esfinge era coberta por placas de um
material negro fosco. Sua forma parecia vagamente humana: cabeça, tronco e
pernas. A mulher amarrada entre elas começou a se mexer, como se naquele
momento voltasse a si. Logo estava se contorcendo em um pânico bastante
convincente, tentando se livrar das amarras que a prendiam.
“Onde estou? Que lugar é esse?” O timbre e a entonação evocavam o
arquétipo da fragilidade feminina. O Cavaleiro Solitário em Teixeira sentiu um
intenso e momentâneo impulso de pular em cima do palco para resgatar a
Donzela em Perigo.
Era uma personalidade do momento, aquela atriz nua. Até mesmo um total
alienado da tevê como o inspetor reconheceria as feições e as curvas de Olívia
Charlene. Agora ele conseguia ligar o nome à pessoa, pois havia visto uma foto
de Olívia há pouquíssimo tempo. Foi quando folheava uma revista sentado na
sala de espera de Varlene Alberione.
De acordo com a reportagem, Olívia Charlene foi a modelo escolhida para
uma ousada e muito bem sucedida campanha publicitária de sabonete íntimo.
Acima da breve nota impressa, havia uma exuberante foto colorida, onde ela
aparecia fazendo menção de retirar o diminuto biquíni que era todo o seu
sumário traje. “Sem medo da exposição”, dizia o colunista da revista, não sem certa
malícia: “Olívia Charlene mostra ao vivo no teatro o que o Brasil inteiro já viu na tevê”.
A voz grave em off voltou a ser ouvida:
“Aluna, tomadas um e dois: PÉS!”
As colunas que cercavam a mulher se iluminaram da metade para baixo, e
logo ficou evidente que as placas negro fosco eram na verdade telas de tevê. As
duas telas na base da coluna mostravam cada qual o close de um pé até a altura
do tornozelo, que era enlaçado por uma cadeia de metal.
A voz falou mais uma vez:
“Discípula, tomadas três e quatro: COXAS!”
As duas telas na metade superior de cada coluna se acenderam, mostrando
closes de pernas femininas, que faziam uma conexão bizarra com os pés
mostrados nas telas de baixo.
“Pupila, tomadas cinco e seis: GLÚTEOS!”
Mais duas telas se acenderam na base do que seria o tronco da esfinge. Cada
qual mostrava a metade de uma roliça e carnuda bunda. A cada tela que ia se
acendendo, após a estranheza inicial, o olhar não demorava a reconhecer os
closes ampliados da anatomia feminina como pertencentes ao corpo da mulher
que ainda se debatia na base da esfinge. Só então eram percebidas as webcams
instaladas de forma a cercar Olívia. Bastante engenhoso.
“Discente, tomadas sete e oito: PEITOS!”
Os seios ao menos a esfinge possuía no lugar certo. E eram os mesmos de
Olívia Charlene, só que agigantados. Cada teta da esfinge era do tamanho da
mulher inteira.
O som grave do sintetizador veio descendo alguns tons a cada nova tela
acesa, até alcançar uma frequência muito baixa, bem próxima do limiar da
audição humana. A mulher passou a se contorcer com mais veemência.
Agora restava apenas uma tela ainda desligada, a maior de todas, que
correspondia à cabeça da esfinge.
“Estudante, tomada nove: GENITAIS!”
Dominando a tela, o olhar e a consciência de todos surgiu, em toda sua
resplandecência, a imagem em close da vagina de Olívia Charlene. A grossa
penugem castanha contrastava vivamente com a brancura da pele e com o rosa
acinzentado dos pequenos lábios, que se projetavam para fora como uma
vizinha fofoqueira na janela. A cada vez que Olívia se debatia, em movimentos
que certamente haviam sido estudados, a imensa vagina televisiva dava um salto
para a frente, como se estivesse possuída por vontade própria e por um voraz
apetite ainda não saciado.
O inspetor Teixeira, e não somente ele, teve um momento de apreciação
pelos esforços que uma jovem e talentosa atriz estava disposta a fazer pela
glória do teatro nacional.
“Que lugar é este? O que estou fazendo aqui?” Ela voltou a dizer.
“AÇÃO!” Gritou a voz cavernosa em off.
Era a deixa para a entrada de Régis Vale. O grave timbre do sintetizador, já
quase imperceptível, subitamente se desdobrou em cinco oitavas, uma sinistra
cacofonia de melodias e ritmos, música para a dança do sinistro personagem
que avançava até a boca de cena.
“Parabéns, aprendiz.” Ele parecia maior do que o inspetor lembrava, mais
imponente. “Você já começa fazendo perguntas relevantes. Gosto disso. Não
foi à toa que foi você a escolhida.”
O ator usava um estranho costume. Pelo corte, tratava-se de um traje
refinado, algo como um smoking ou dinner jacket. Pela costura, no entanto,
parecia mais a roupa de um mendigo. O casaco e a calça eram feitos de
remendos, pedaços de tecidos de tons diferentes cosidos uns aos outros, como
em uma colcha de retalhos. Sem contar que o próprio tecido utilizado na roupa
parecia esquisito, como uma espécie de couro. A exótica gravata feita com uma
tatuagem de dragão era a maior pista. À medida que ia se movimentando pelo
palco, Régis dava a perceber outras pistas, até que afinal a mente assimilava o
material de que era feita a sua bizarra indumentária: uma marca de biquíni em
local bem visível, logo acima do bolso do peito. Uma outra tatuagem, de um
coração com um nome, costurada na parte de cima da ombreira. Dois mamilos
se projetando dos fundilhos da calça.
“Responderei às suas perguntas”, disse Régis com os dois punhos na
cintura, fazendo pose de homem forte. “Seja bem vinda, educanda, ao Templo
da Verdade. Você está aqui, como já deve ter se tornado óbvio, com o
propósito de aprender. E de ensinar também. Você irá aprender o segredo por
detrás de sua existência. E irá ensinar o sabor de sua carne.”
“Oh, meu Deus.” Olívia parecia de fato angustiada. “Você é aquele a quem
chamam de profeta. O profeta canibal.”
Régis fez um gesto de desprezo.
“A mídia necessita do melodrama. Eu permito que tenham sua diversão.
Minha vaidade não é afetada por títulos. Pode me chamar assim, se você
quiser.”
Olívia se contorceu em sua prisão.
“Eu sei quem você é! Você é um monstro, um assassino louco! Um serial
killer!”
“Serial killer! Mas que anacronismo de sua parte, minha cara aluna. Não sabe
que um termo como esse simplesmente não se aplica mais?” Régis avançou
dois passos na direção dela, fazendo-a se encolher como um coelho assustado.
A química entre os dois estava perfeita. Ele segurou a mulher nua pelos
cabelos, obrigando-a a erguer a cabeça. “Olhe ao seu redor. Você pensa que
toda essa estrutura existe unicamente para a minha satisfação? Estamos sendo
transmitidos ao vivo agora mesmo pela Internet. Gostaria de mandar um alô
para nossos assinantes?”
“O que você quer de mim? Meu marido...”
Régis deu um violento puxão nos cabelos dela. Mais da metade da plateia se
encolheu no assento.
“Esqueça seu marido. Ele será plenamente compensado. Quanto ao que eu
quero de você, é muito simples: eu só vou lhe fazer algumas perguntas. Se você
não souber alguma resposta, eu ajudo você a entender.”
O homem no palco se afastou dois passos e fez uma mesura exagerada.
“Fui batizado como Zamireb Samir. Você verá que minhas intenções são
estritamente pedagógicas. Tudo o que desejo é realmente educar. E aprender.”
“Não me mate.” A voz da mulher transmitia um gélido e crescente terror.
A dona da genitália mais comentada do Brasil era ainda por cima uma boa atriz.
“Por favor, não me mate.”
“Silêncio na classe. E agora, minha tenra estudante, vamos começar a
sabatina.” De um bolso interno do casaco, Régis retirou um imenso cutelo.
Parecia bem real à distância. “Decifro-te e te devoro.”

Pretas avançam na quinta:


Sincero no bem. Boa sorte.
Uma hora mais tarde, se não estava mais sábio e culto, Teixeira estava ao
menos mais velho e experiente.
Quando a peça acabou, o inspetor aplaudiu junto com os outros e seguiu até
o saguão. De lá, informou-se na cafeteria do teatro sobre o acesso aos camarins.
Já havia atravessado o corredor após os banheiros e subido uma pequena
escada quando foi interpelado por um funcionário do teatro.
“Posso ajudá-lo, senhor?”
O tom não deixava dúvida de que Teixeira era um invasor. Ele poderia
brandir o seu distintivo, mas por algum motivo preferiu não fazê-lo. Ao invés
disso puxou do bolso um cartão de papel, o cartão sem nome com o logotipo
da Fábrica, o mesmo cartão que ele havia encontrado naquela manhã dentro do
frigobar vazio na suíte de um motel.
“Entregue isto para o Régis Vale. Diga que eu preciso falar com ele sem
demora.”
O olhar de suspeita do funcionário do teatro foi do cartão de volta para
Teixeira.
“Quem gostaria?”
“Como é?”
“A quem devo anunciar, senhor? Não há nome no cartão.”
“Faça o seguinte: apenas entregue o cartão, está bem? Ele saberá quem sou
eu.”
Definitivamente o tom de voz do inspetor não recomendava réplicas.
“Espere aqui, por gentileza.”
Pouco depois o funcionário voltava. Seu olhar havia se abrandado, estava
mais solícito.
“Régis Vale irá recebê-lo agora.”
CAPÍTULO 19 – APROXIMAÇÃO

No oitavo mês haverá infortúnio.


A terra acima do lago: a imagem da Aproximação. Assim o homem superior é inexaurível
em sua vontade de ensinar, e sem limites em sua tolerância e proteção ao povo.
(I Ching – hexagrama 19)

“Você!”
Régis Vale deu um pulo da cadeira quando seu olhar cruzou com o de
Teixeira através do espelho. Como protagonista masculino, o ator tinha direito
a um camarim exclusivo. Ele estava tirando a maquiagem quando o inspetor
entrou. Já estava despido pela metade do traje que parecia feito de pele humana.
Assim à curta distância, longe das luzes da ribalta, o casaco pendurado de
qualquer jeito na cadeira e a calça que o ator ainda usava perdiam a aura de
magia cenográfica e mostravam bem que não passavam de peças de uma
fantasia. Junto com o cheiro de incenso que impregnava o camarim, o inspetor
sentiu um suave odor de maconha.
“Olá, Reginaldo. Parabéns pela excelente atuação. A segunda sua que eu
vejo. Você está cada vez melhor.”
Teixeira estava sorrindo quando disse isso. Mas o ator estremeceu, como se
um vento frio tivesse passado pelo camarim.
Pretas avançam na primeira:
Aproximação conjunta. A perseverança é propícia.

“Ora, mas que surpresa! Inspetor Alberto, não é mesmo? O senhor perdoe a
minha reação, mas é que eu realmente não esperava vê-lo. O que o senhor
deseja? Por favor, sente-se! O senhor por acaso não guardaria ressentimentos,
naturalmente. É claro que não, mas que ideia! Afinal, durante aquele lamentável
incidente, quando movido pela ilusão eu fui levado a atacá-lo, o senhor bateu
bem mais em mim do que eu no senhor. Tem certeza de que não deseja se
sentar? E do que se trata, afinal? Estou começando a desconfiar que esta é
meramente uma visita social e que o senhor veio aqui só para me cumprimentar
pela atuação na peça. O senhor assistiu ao espetáculo? O que achou? Espero
que tenha gostado. Olívia está deslumbrante, não está? Estou amando trabalhar
com ela. E que corpo lindo que ela tem! Mas estou divagando, o senhor me
perdoe. É que eu me sinto um pouco elétrico, depois das apresentações fico
assim. É a energia do palco, da plateia, essa magia toda do teatro, o senhor sabe.
É um pouco como cheirar, o senhor me permita citar só para o efeito da
analogia, só que atuar é muito, muito melhor. Casa cheia todas as noites, um
sucesso absoluto, comentários em todos os jornais. Quem tem aplausos não
precisa de pó. É por isso que eu parei com tudo, estou completamente limpo.
As drogas não estavam me levando a nada. Demorei, mas percebi. O senhor
duvida? Não tenho nada em cima. Pode até me revistar, se quiser. É claro que
quando estou falando de drogas não me refiro à marijuana, que é uma coisa
completamente diferente. A maconha só está proibida como droga por um
equívoco que certamente será desfeito muito em breve. A ganja não é droga. É
uma planta de poder. Um canal para a elevação da consciência. O próprio
Sidarta sobreviveu com uma dieta de um grão de arroz e uma semente de
cânhamo por dia. Uma semente de cânhamo, o senhor veja bem. E foi assim
que ele alcançou a iluminação.”
Brancas avançam na terceira:
Aproximação confortável. Se ele for induzido a lamentar o que ocorreu, torna-se livre de
culpa.

“Eu já paguei meu Karma. O senhor pensa que eu não sofri? Hoje estou
bem, por misericórdia do Sublime Tathagata. Quem me vê assim não diz, mas
eu penei muito na cadeia. Conheci os infernos quentes e gelados durante aquele
tempo preso, convivi com animais e com fantasmas famintos. Fui muito
humilhado, até pensei em me matar. Aliás, até hoje não entendo como
sobrevivi lá dentro. Teve noite em que servi para mais de oito, passei a primeira
semana cagando sangue, o senhor me perdoe a expressão pouco elegante, mas
verdadeira. Sofri muito, só eu sei. E hoje, graças ao Sublime, a minha saúde é
perfeita. Só mesmo o Iluminado para me livrar de ter pego alguma coisa na
cadeia. Sofri sim, paguei os meus pecados. Cumpri meu Karma. E hoje trilho o
caminho do Dharma, pois o senhor veja bem, eu encontrei no budismo uma
justificativa para a minha existência. Descobri a origem do sofrimento. E não
foi algo que eu li em um livro, não senhor. Eu vivi tudo na própria carne,
experimentei na própria pele. Eu estava no fundo do poço quando descobri o
budismo. Tatuado nas costas de um companheiro de cela, em quem finalmente
encontrei algum abrigo, vi um desenho que me fascinou. O meu interesse por
sua tatuagem, aliás, foi o que acabou nos aproximando. Ele me explicou o
desenho. Era a roda da existência cíclica, um diagrama sobre a verdade da vida
cujo original foi traçado pelo próprio Buda. Imagine só, encontrar algo assim na
cadeia! Antes de matar alguém em uma briga de bar e ser preso por isso, meu
companheiro havia estudado com afinco as religiões orientais, e passou a me
explicar o significado do desenho. E observe o senhor, uma semana e meia
depois que eu comecei a aprender sobre a roda, recebi uma visita de meu
advogado. Ele trazia excelentes notícias: o julgamento havia sido anulado.
Segundo me contou, ele havia descoberto uma tecnicalidade que tornava
inválido todo o processo. Não deveria ser tão difícil assim conseguir provas
para me inocentar, afinal. Eu não poderia ter cometido o crime. Nem conhecia
a vítima. Tudo o que falei sobre o episódio na época aprendi lendo uma revista
de escândalos, e o resto preenchi com a minha imaginação. Mas na ocasião em
que conversei com o senhor na delegacia, quando o senhor me bateu tanto
depois que eu tentei agredi-lo, tudo bem que eu merecia, mas o senhor tem
uma mão pesada, hem! Sobretudo porque naquele momento eu realmente
acreditava no que estava dizendo. Eu realmente achava que era um assassino, o
senhor entende, não é mesmo? Aliás, posso tratá-lo por você, afinal devemos
ter praticamente a mesma idade, não é necessária tanta formalidade. Bom,
como eu ia dizendo, fui totalmente inocentado de todo o incidente. Até me
ofereceram um acordo, um bom acordo, praticamente implorando para que eu
não movesse nenhum processo, coisa e tal. Isso para você ver. No final acabei
sendo considerado uma vítima. Que é o que eu realmente fui, a vida inteira,
uma vítima. Namu Amida Butsu.”

Brancas avançam na quinta:


Sábia aproximação. Isto é o correto para um grande príncipe.

Teixeira decidiu que era hora de acabar com o papo furado.


“Vamos cortar a conversa para boi dormir, Reginaldo. Nós dois já nos
conhecemos. Está rolando algum esquema grande, e eu sei que você está nessa
até o pescoço. Não pense que os seus amiguinhos irão se dar ao trabalho de
salvar o seu rabo pela segunda vez seguida. É muito mais fácil mandarem lhe
matar. Você sabe disso. E muito mais barato também. É bom que você tenha
aproveitado bem os seus dias de fama e glória, pois irá cair tão rápido que em
duas semanas ninguém sequer lembrará de seu nome. Você está com graves
problemas, Reginaldo. Por isso é bom me deixar satisfeito. Eu só vou perguntar
uma vez. Depois eu quero que você me explique direitinho essa história de
fábrica, qual é a desse maldito cartão. Mas isso pode esperar. O que eu quero
agora é que você me diga tudo o que sabe a respeito de Rogério Arcanjo
Bastos.”
CAPÍTULO 48 – POÇO

A cidade pode ser mudada, mas não o poço. Ele não diminui nem aumenta. O
povo que passa retira água do poço. Se a corda se parte ou termina quase ao
alcançar a água, isso é um infortúnio.
Água sobre madeira: a imagem do Poço. Assim o homem superior encoraja as pessoas em
seus trabalhos, e as exorta a se ajudarem umas às outras.
(I Ching – hexagrama 48)

“Não-faço-a-mínima-ideia-a-respeito-do-que-você-está-falando.”
O ator levou a mão à têmpora e semicerrou os olhos. Era como se o esforço
de dizer aquelas palavras houvesse sido demais para ele.
“Chega de teatro, Reginaldo.” O inspetor deu um passo à frente, o que fez
com que o outro, sobressaltado, recuasse. “O show acabou, caso você não
tenha reparado.”
“Sinto muito, mas não sei o que posso fazer para ajudá-lo”, balbuciou Régis.
Ele se apoiou contra a parede. Sua fronte subitamente brilhava de suor.
“Ajudar a mim? Você só pode estar brincando.” Teixeira se aproximou mais,
encurralando Régis no fundo do camarim. Encostou a mão na parede, com o
braço atravessado cortando possíveis caminhos de fuga. “Se conseguir salvar o
próprio rabo, já pode se considerar um felizardo. As pessoas estão morrendo
para valer aí fora, você sabia? Jorginho Príncipe e Luca do Urtigão bateram as
botas. Os dois hoje, no mesmo dia. Foram descartados que nem peões. Por que
você acha que vão demonstrar alguma consideração especial no seu caso?”
“Eu não sei do que você está falando”, repetiu Régis. “Eu não tenho nada a
ver com esses dois criminosos, já disse que estou limpo. Não estou com nada
em cima. Me deixe em paz.”
Os dois estavam bem próximos um do outro. A cena sugeria uma certa
intimidade. Alguém que entrasse no camarim naquele instante poderia ser
levado a conclusões errôneas, e dificilmente iria adivinhar que aquilo que estava
vendo era um interrogatório policial. A lembrança de Kim era inevitável para o
inspetor naquele momento. Isso podia explicar a fala pouco articulada, nervosa,
sumamente emotiva de Teixeira. A proximidade de Régis parecia deixá-lo
abalado. O inspetor se afastou e deu as costas para o ator.
“Você ainda não entendeu. Eu não estou procurando encrenca para você.
Você não me interessa. Eu sei que você está envolvido, mas meu assunto não é
com você.” Teixeira virou o rosto para encarar Régis. Seus olhos faiscavam.
“Tudo o que eu quero é que você me diga como posso encontrar esse homem,
Rogério Arcanjo Bastos. Daí talvez eu deixe você em paz.”

Brancas avançam na primeira:


Não se bebe da lama do poço. Nenhum animal vai até um poço velho.

“Você não tem o direito de me tratar desse jeito. Eu quero falar com o meu
advogado.”
Régis cobria os olhos com a mão. Dava a impressão de que pretendia
chorar.
“Isso mesmo. Ligue agora para o seu advogado”, desdenhou Teixeira.
“Chame a atenção para si mesmo. Deixe o seu patrão avisado de que eu estou
chegando perto dele. Ele não vai demorar a concluir que isso só pode estar
acontecendo através de você. É a conclusão óbvia, você não acha? Ao menos
para o tipo de gente que você chama de patrão.”
“Mas do que você está falando? Que patrão é esse, meu Deus?” A voz do
ator soou estrangulada, no limite. “Só pode estar havendo algum mal
entendido, não sei.”
“Então você agora não sabe mais quem é o seu patrão.”
“Se esse é algum tipo de assédio racista, eu lhe asseguro que.” Novamente
Régis se viu interrompido de súbito, mas dessa vez foi um gesto e o olhar
ameaçador de Teixeira em sua direção que cortou sua fala.
“Deixe de conversa, sujeito. Minha paciência se esgotou. Pode começar a
falar sobre a Fábrica.”
A ordem do inspetor caiu no silêncio. Quando Régis finalmente respondeu,
sua voz soou cansada, a voz de um homem velho.
“Creio que você está se referindo a esse cartão que me enviou agora há
pouco.” O ator estendeu a mão até o balcão do camarim, onde havia deixado o
cartão da Fábrica. Ao devolver o retângulo impresso para o inspetor, deu um
sorriso triste. “Pensei que fosse uma brincadeira de Pablo.”
“Quem é Pablo?”
“Ele não tem nada com essa história. Pablo é”, e só depois de uma pausa,
“um amigo meu.”
Isso foi dito de tal forma que não seria inconcebível que suas faces
estivessem sendo tomadas por um abrasador embaraço. Só pela voz, o homem
dava a impressão de estar ruborizando. Vá ser bom assim.

Pretas avançam na segunda:


Pegando peixes no poço. O balde está rachado e pingando.

“Se o tal do Pablo não tem nada a ver com essa história, como é que você
reconheceu na hora o cartão da Fábrica?”
O inspetor brandiu o retângulo branco de papel diante dos olhos de Régis.
A sua ira parecia crescer como uma onda, pois num impulso atirou o cartão na
cara do outro. Não chegou a ferir. Assustou mais do que feriu. Mas poderia ter
ferido. E muito. Vai que pega em um olho.
A reação de Régis Vale poderia ser indicada para algum prêmio. O ator foi
sábio em querer desarmar Teixeira antes de tudo. Ele não teve pressa em
responder. Mas quando começou a falar não quis mais parar.
“Quando eu disse que meu amigo não tinha nada a ver com a história,
estava me referindo à minha prisão. Esse, afinal, só pode ser o verdadeiro
motivo para sua visita, para você querer falar comigo. Lamento que isso tudo
tenha acontecido, sei que fui um empecilho para você, que atrapalhei a sua
investigação. Peço que entenda que eu era um homem doente, não sabia direito
o que estava fazendo, muito confuso. Peço que você me perdoe por ter lhe
agredido, mesmo porque você me bateu muito mais depois. Eu sei. Eu sei que
estava merecendo. Mas já apanhei demais. Já sofri o bastante na prisão, lembre-
se de que eu nunca matei ninguém. Eu acreditava que havia matado, mas isso
foi uma loucura, e não um crime. E mesmo assim eu já paguei mais que o
suficiente, com juros. Hoje eu só quero cuidar honestamente de minha carreira.
Por isso eu peço, eu imploro que qualquer que seja a questão que você tenha
comigo, deixe para lá, me perdoe, sinceramente, ou então que me diga alguma
maneira pela qual eu possa compensá-lo.”
“Você falou, falou, mas não disse nada sobre o cartão.” A voz de Teixeira
estava impregnada de desdém, mas alguém que o conhecesse a fundo saberia
que o discurso de Régis não deixou de causar impressão.
“Para mim era apenas uma brincadeira de Pablo.” Nesse momento o ator
ousou até crescer um pouco a voz e sair do sussurro que vinha empregando.
Mas logo amenizou com um sorriso cansado. “Ele gosta de fazer joguinhos
assim. Enviar um cartão sem nada escrito, bancar o misterioso, esse tipo de
coisa. Isso é bem a cara de Pablo. Para ser sincero, eu nem reparei direito no
desenho.”
“Como não reparou, se na hora em que eu falei da Fábrica você pensou
logo no cartão?”
“Quando vi você falando de fábrica, foi que lembrei do desenho. Não havia
reparado conscientemente.” Régis sacudiu o ar com a mão. “De qualquer modo
isso não tem importância. Não sei que importância esse cartão tem para você,
me desculpe, mas não significa nada para mim. Trata-se, evidentemente, de um
mal entendido.”
“Você é que está se fingindo de desentendido. Não pense que me engana
não.”
Régis resolveu pagar para ver.
“Escute, inspetor Alberto: já tolerei essa sua atitude o suficiente. Eu não sou
obrigado a escutar suas ofensas. Já lhe expliquei tudo o que pude. Agora, se
você não se incomoda, por gentileza eu gostaria de ficar sozinho, preciso mudar
essa roupa. Entre outras coisas.”
Quase que Teixeira perdeu a fé. Mas foi só por um instante. Logo o inspetor
voltava ao ataque.
“Acho que conheci esse Pablo. Um sujeito alto, magro, bem brancão. Ele
sempre anda com uma menina que é a cara dele.”
“O Pablo que eu conheço é moreno, baixinho e barrigudo.”
“Ah, então eu devo ter confundido com outra pessoa. Já sei, é porque os
nomes são parecidos. O nome desse camarada de quem estou lhe falando é
Joaquim. Kim, para os amiguinhos.”
“Kim ou Joaquim, não tem nada a ver com Pablo. Os nomes não são
parecidos.”
“Você está certo. Por que será então que confundi os dois? Só pode ser
porque os dois são amigos seus, não é verdade? Pablo e Joaquim, seus dois
coleguinhas que gostam de ficar mandando cartões para as pessoas.”
“Eu juro que não sei do que você está falando.”
“Você é mesmo teimoso, Reginaldo. Não sabe que quem jura mente?”
“Agora chega. Ou você faz alguma acusação formal ou ponha-se daqui para
fora.”
“Não tenha tanta pressa. Você ainda não falou nada a respeito de seu outro
amigo. Rogério Arcanjo Bastos, lembra? Ou vai me dizer que não conhece ele
também?”
Brancas avançam na quarta:
O poço está sendo recuperado. Nenhuma culpa.

O ator levou pela terceira vez a mão até a fronte. A outra mão recuou até
encontrar apoio na parede. Teixeira suavizou um pouco o tom da voz:
“O que é que você tem, rapaz? Está esquisito.”
Régis baixou a mão do rosto para fazer um gesto pedindo paciência. Logo
depois voltou a cobrir os olhos. Afinal murmurou:
“Você me perdoe. Dor de cabeça. Terrível.”
Teixeira segurou o outro pelo cotovelo. “É melhor você sentar um pouco.”
A trégua havia sido estabelecida. O pequeno gesto de humanidade de
Teixeira operou milagres. Durante o breve instante de silêncio uma muda
camaradagem cresceu entre os dois homens. Régis fez um esforço para sorrir e
acenou de leve com a cabeça em reconhecimento a Teixeira.
“Acho que o pior já passou. Obrigado.”
“É melhor você ver isso.”
“Eu não sei o que aconteceu. Até agorinha há pouco eu estava super bem.
Essas pontadas vieram do nada. Umas pontadas lancinantes, bem aqui.” Régis
massageou um ponto logo acima da têmpora direita. “Nunca senti uma dor
assim, que coisa horrível. Mas agora passou. Namu Amida Butsu.”

Brancas avançam na sexta:


Bebendo do poço sem hesitação. O poço é confiável. Suprema boa sorte.
A ideia por fim ocorreu a Teixeira. Não foi preciso muito para que o
inspetor ligasse os fatos. Então lhe ocorreu dizer em um tom meio jocoso,
como se ele mesmo não acreditasse no que estava sugerindo:
“Parece até que você tem um ataque de dor de cabeça toda vez que escuta o
nome de Rogério Arcanjo Bastos.”
“Ui!”
Os dois homens se entreolharam, um instante de silêncio e pasmo. Talvez
tenha sido curiosidade científica o que moveu Teixeira. Talvez tenha sido
simples sadismo. O inspetor chegou mais perto do outro e gritou. Ele gritou
bem alto, a plenos pulmões. Talvez tentasse sufocar a hilaridade histérica que
ameaçava engolfá-lo – ele não conseguia parar de pensar no menino Billy
Batson, que bastava dizer sua palavra mágica para se transformar em um herói
das histórias em quadrinhos. Talvez Teixeira buscasse banir para bem longe a
sensação de irrealidade progressiva que ameaçava devorar o mundo pelas
beiradas, cuspir junto com o grito o medo de estar perdendo o juízo. O
inspetor Teixeira proferiu, como se fosse um aprendiz de feiticeiro:
“Rogério... Arcanjo... Bastos! Rogério Arcanjo Bastos!
Rogerioarcanjobastos!”
CAPÍTULO 13 – FRATERNIDADE

O Céu e o Fogo juntos: a imagem da Fraternidade.


Assim o homem superior organiza os clãs e estabelece distinções entre as coisas.
(I Ching – hexagrama 13)

Régis jogou-se no chão, contorcendo-se de dor.


“Para! Para, por piedade! Misericórdia, em nome de Buda!” Depois de um
mínimo intervalo para ganhar fôlego, apressou-se em acrescentar: “Eu falo, eu
falo! Eu falo.”
Quando o inspetor estendeu a mão para ajudar Régis a se levantar, o ator se
encolheu como um cachorro vadio com medo de pedrada. Fitava Teixeira com
os olhos arregalados de medo e assombro, numa intensidade que beirava o
terror religioso. Como o inspetor insistisse em estender a mão, acabou
aceitando pelo puro medo de ofender. Uma vez de pé, balbuciou qualquer
agradecimento. Sua atitude tornou-se solene.
“Eu não sei nada sobre essa pessoa que você mencionou. Eu juro por tudo
que é mais sagrado.” Régis levantou a mão como a indicar que havia mais. “Mas
acho que conheci esse tal de Kim. Saí com ele uma vez, na época em que eu
fazia programa. Não sei como descobriu isso. E o que ele tem a ver com essa
história?”
“Que tal se você me contar?”
Régis ergueu as mãos em rendição imediata. “Tudo bem. Tudo bem. Só não
faça de novo essa sua parada de feitiçaria, está bem?”

Pretas avançam na primeira:


Fraternidade no portão. Sem culpa.

Quando Régis botou os olhos em Kim, pensou que era só mais um filhinho
de papai querendo ser enrabado. O rapaz parou o carro um pouco adiante de
onde Régis estava e ficou esperando. Parecia quase jovem demais para dirigir.
“E aí, lindinho? Vamos curtir uma legal?”
Régis veio rebolando, usou uma voz provocante, apertou o pau por baixo da
calça jeans quando chegou diante da janela do motorista. Naquela noite ou em
qualquer outra ele teria preferido ser o passivo. Mas afinal também precisava
comer. Estava ali, principalmente, pela grana. Por isso caprichou na pose e no
estilo.
Quando o garoto falou, surpreendeu pela voz grave, que Régis achou sexy.
“O problema, lindinho, é que meu preço é mais caro que o seu. Como é que
você vai fazer para pagar a diferença?”
Régis deu meia-volta e saiu andando. Ele estava correndo de engraçadinhos.
E principalmente quando eram adolescentes riquinhos dirigindo carros
importados. Filhos da mãe assim sabiam ser bem perversos quando queriam.
“Espere! Eu estava brincando.” A mão que se projetou da janela do carro
segurava duas notas de cem.
Régis estacou na mesma hora. Avançou para pegar o dinheiro. No instante
em que tocou nas notas, sentiu sua mão ser enlaçada pelas mãos do rapaz.
Ficaram os dois por um instante assim, de mãos dadas, como se jurassem
amizade eterna. Ao lembrar-se depois daquele momento, Régis teve a
impressão de ter sentido um formigamento ao longo do braço. Antes de
libertar sua mão do meio das dele, o rapaz colocou a cara na janela, sorriu e
disse:
“Parabéns, você está contratado. Considere essa quantia um adiantamento.
Se você souber como me agradar, haverá algo bem melhor esperando.”
“O que pode ser melhor que dinheiro? Só se for mais dinheiro.”
“Isso você irá descobrir ou não, a depender de sua performance. Agora
entre no carro.”
Régis entrou no carro.

Pretas avançam na terceira:


Ele esconde armas nos arbustos; galga a alta colina defronte. Por três anos não se rebela.

“Sim. E o que aconteceu depois?”


Os dois homens no camarim haviam se sentado. Régis Vale ocupava a
cadeira principal, que ele havia disposto lateralmente com relação ao espelho do
camarim, de forma a poder ficar de frente para Teixeira. O inspetor havia
escolhido uma das cadeiras, a que o deixava mais próximo do ator. Os joelhos
dos homens quase se tocavam.
“O que aconteceu depois foi a melhor foda de todos os tempos,
simplesmente a mais incrível que eu já dei.” Diante do olhar de Teixeira, Régis
recuou. “Desculpe. Não imaginei que você fosse um puritano.”
O inspetor tentou ignorar o que estava sentindo sendo rude. “Você fez um
programa com ele. Melhor para você se você gostou. Não vejo mal algum em
ter prazer com o trabalho. Eu mesmo também gosto do que faço. Continue.”
“Não foi um simples programa.” Régis tentou parecer ofendido com
elegância. “Foi uma verdadeira festa.”
“O que você quer dizer com isso?”
“Quando eu entrei no carro, ele me disse que havia perdido uma aposta que
fez com a irmã. Por esse motivo, ele teria que transar comigo na frente dela.”
“Ele queria transar com você na frente da irmã. Porque perdeu uma
aposta.”
“Foi o que ele disse.”
“E a irmã estava no carro também?”
“Não. Dali fomos para a casa dele, onde ela estava esperando.”
“Como é que você sabe que era a casa dele?”
“Bom, era a casa de alguém. A irmã dele estava lá. Júlia, o nome dela. Já
estava pelada quando chegamos. Uma verdadeira cadela insaciável. Que
disposição tinha aquela menina!”
“Não era com o irmão o programa?”
O ator deu de ombros.
“Se ela quis brincar também, qual o problema? Só porque eles são irmãos?
Preconceito besta.” Logo deu por si. “Era assim que eu pensava nessa época,
quando Buda ainda não havia entrado em meu coração.”
“Então você transou com os dois.”
Régis confirmou com curtos acenos de cabeça e assumiu um ar pudico.
Puro artifício, logo denunciado pelas palavras. “Em todas as combinações
possíveis.”
“Imagino.”
“E ainda teve uma novidade, uma tal de moedinha japonesa, uma loucura.”
“Como é que é?”
“É tipo um adesivo que é aplicado na base da coluna. Amplia todas as
sensações durante o sexo.” Após um momento, como se só então lhe ocorresse
dizer, acrescentou: “Os dois insistiram para que eu usasse.”
“Você está usando esse adesivo agora?”
“Não. Perdi a moeda menos de uma semana depois. Acho que aqueles
selvagens arrancaram quando fui preso.”
“Espere aí. Você está me dizendo que sua prisão aconteceu uma semana
depois desse programa com os dois?”
“Foi menos de uma semana, coisa de dois ou três dias. Eu tive essa crise
doida, confessei um crime que não cometi e acabei preso. Que coincidência...”

Pretas avançam na quarta:


Ele galga sua própria muralha; não pode atacar.

“E depois, o que aconteceu?”


“Como assim, depois? Depois eu fui preso, ué. O resto você já sabe.”
“Eu me refiro ao que aconteceu imediatamente depois do sexo. Depois de
você ter participado do ménage à trois do século.”
“Ah, sim. Nada de especial, eu acho. Eles me pagaram e eu voltei para a
pista. Mais provavelmente, devo ter ido para casa. Aqueles dois me deixaram
exaurido.”
“Você está me dizendo que não sabe o que aconteceu?”
“Realmente não estou lembrando ao certo. Acho que foi assim. Só pode ter
sido. É por isso que não estou lembrando, é porque não há nada que valha a
pena lembrar.”
“Faça um esforço.”
Régis baixou os olhos, o rosto refletindo a sua concentração. Subitamente
suas feições foram contraídas numa careta de dor. Ele levou a mão direita até a
fronte, em câmara lenta, para a exasperação de Teixeira. Pela lentidão do gesto,
parecia que o simples toque da mão poderia fazer a cabeça explodir.
A dor do outro era tão evidente, tão intensa, que o inspetor
inconscientemente franziu o rosto em uma careta. “Eu não disse nada.”
Régis ergueu debilmente a palma da mão esquerda. Quando finalmente
conseguiu falar, sua voz era menos que um sussurro: “O que está acontecendo
comigo?”
“Relaxe um pouco, está bem? Você precisa se recuperar.”
“Relaxar como? Meus próprios pensamentos tornaram-se meus inimigos.”
“O que você quer dizer com isso?”
A respiração de Régis ficou ofegante. “Eu não posso pensar. Eu não quero
lembrar.”
“Ei, ei. Acalme-se.”
A sonoridade da bofetada assustou ao próprio Teixeira. Régis segurou a
bochecha ofendida e olhou para o inspetor com indignação e surpresa.
“Você estava precisando, desculpe.” O tom de voz do inspetor era de
vamos-ao-que-interessa, traduzia urgência, não admitia réplica. “Agora dispa
essa fantasia e vire-se, por gentileza. Eu quero dar uma olhada em sua bunda.”

Pretas avançam na quinta:


Homens unidos pela fraternidade primeiro choram e lamentam, mas depois eles riem. Após
grandes esforços eles conseguem se encontrar.

Fosse pelo acúmulo de dores a que estava sendo submetido e que minava a
sua vontade; fosse pela intensidade do tapa, que o reduzira à total submissão;
fosse ainda pelos tempos de ânus profissional, que o deixaram acostumado a
propostas como a que o inspetor fizera. Fosse qual fosse a explicação, o fato é
que Régis não hesitou em aceder. Em um lapso de tempo, já estava nu e de
costas para Teixeira. Desejoso de realçar a própria exuberância glútea, o ator
empinou a coluna e empalmou os quadris. Ele virou a cabeça e lançou um olhar
para Teixeira, um olhar oblíquo, enviesado.
“Ora, mas o que temos aqui.”
A moeda de cobre mal se destacava contra o tom da pele de Régis Vale, que
era da cor do chocolate meio amargo. Para se certificar de que estava mesmo
afixada na base da coluna, o inspetor teve que tocá-la.
“O quê, isso? Um sinal de nascença”, respondeu Régis. Ele arfava um
pouco. “Até que é bonitinho, né?”
“Se isso aqui é um sinal de nascença, você é o R2-D2, pois isso aqui foi
obviamente fabricado. É esse o negócio da tal Fábrica? Isso é o quê, um novo
tipo de droga?”
“Ai, meu Deus. Começamos a não fazer sentido de novo. Juro que não sei
do que você está falando. Mas que paranoia!”
“Você não sabe do que eu estou falando? Você não disse que a tal da
moedinha japonesa havia sido arrancada na prisão? O que é que isso está
fazendo aqui, então?”
“Ai. Seu bruto. Mas é claro que eu perdi a moeda na prisão. Isso é um sinal,
quantas vezes eu preciso repetir? Será que você ficou cego?”
“Cego, é? Pois eu vou esfregar o sinal na sua cara.”
“Mas o que é isto? Está louco! Pare, ouviu? Ai.”
Teixeira finalmente desistiu de tentar arrancar a moeda da bunda de Régis.
Por um momento os dois quedaram parados, ofegantes. Provavelmente foi
Régis quem riu primeiro. Mas se foi, logo estava sendo seguido pelo inspetor. A
situação era por demais ridícula.
Quando as gargalhadas finalmente cessaram, a tensão havia se dissipado.
Por fim, Teixeira disse: “Eu tive uma ideia. Vista-se. Precisamos ir.”
CAPÍTULO 23 – DESINTEGRAÇÃO

A Montanha repousa sobre a Terra: a imagem da Desintegração. Não é


propício ir a lugar algum.
Assim os que estão acima só podem assegurar sua posição sendo generosos com os que estão
abaixo.
(I Ching – hexagrama 23)

Menos de dez minutos depois, os dois já cruzavam a cidade no triciclo de


Teixeira. Não foi difícil convencer Régis. Enquanto ele se vestia, o inspetor foi
explicando:
“A não ser que você esteja tentando armar alguma para cima de mim, coisa
que eu acho pouco provável, pois nesse caso eu ficaria muito, mas muito
zangado mesmo com você, por isso é extremamente recomendável abrir o jogo
neste exato momento, imagino se você tem algo a declarar a esse respeito. Não?
Pois bem. Excluída essa hipótese absurda, portanto, de você estar aprontando
comigo, resta somente uma outra hipótese, que é ainda menos provável.”
“E qual é?” Régis aventurou-se a perguntar. O fato de estar usando calças o
deixava com mais coragem.
“Vou arriscar um palpite. Você parece ter sido submetido a algum tipo de
condicionamento mental.”
“Como assim? Você está querendo dizer que eu sofri uma lavagem cerebral?
Que fui hipnotizado?”
“Não exatamente. Algo por aí. Repare que você sentiu uma forte dor de
cabeça toda vez que eu mencionei certo nome – não se preocupe, não vou dizer
nome nenhum, só quero que você acompanhe o meu raciocínio.”
“Sim. Obrigado.”
“Você sentiu essa mesma dor de cabeça ao tentar se lembrar de um episódio
que aconteceu pouco antes de sua prisão.”
“Eu não quero pensar nisso.”
“Não precisa ficar ansioso. Escute com atenção. Você lembrou sem
problema algum de tudo o que aconteceu durante o programa com Kim e Júlia.
Você até gostou dessas lembranças. É por isso que eu quero que você se
concentre nesse momento, você lá com os dois. Você está me entendendo?”
“Sim. Tudo bem.”
“Eu não vou perguntar mais sobre o que aconteceu depois, entendeu?
Assim você não precisa ficar com medo de que a dor vá voltar. Eu acho que
estou começando a entender como esses ataques funcionam.”
“Se você está dizendo.”
“Sinto que você está um pouco mais tranquilo agora. Isso é bom. Eu
preciso de você sereno e alerta. Eu quero que você me leve até essa casa para
onde você foi com Kim.”
“Mas eu não me lembro do endereço. Isso foi há mais de dois anos.”
“Mesmo sem se lembrar do endereço, você com certeza guardou algum
detalhe da casa, ou pelo menos o bairro.”
E foi assim que logo os dois estavam montados no triciclo de Teixeira.
Tudo considerado, a situação só havia piorado para o inspetor. Algumas
horas antes ele havia pilotado o seu triciclo escoltando uma deusa entre as
mulheres. Agora era um homem, reles mortal que ia sentado no assento do
carona e que aquecia as costas de Teixeira com o calor de seus genitais. O
trajeto da tarde havia sido feito em meio a doces expectativas amorosas, que
acabaram sendo cruelmente frustradas. Agora, para piorar, nem mesmo um
sonho de amor havia sobrado: era somente a morte que esperava ao final do
itinerário.
Brancas avançam na quarta:
A cama é rasgada até o forro. Infortúnio.

A penumbra da sala era cortada pelo retângulo de luz da tela acesa. A


imagem que aparecia agora em primeiro plano era um capacete preto de
motociclista, visto de trás e de um plano ligeiramente acima. À frente do
capacete, a parte superior da tela mostrava o asfalto noturno sendo engolido
com pressa pelo pneu dianteiro do triciclo.
Era a cabeça do inspetor Teixeira dentro do capacete preto. A tela captava o
olhar de Régis Vale, sentado atrás do inspetor. Do alto do banco do carona, o
seu olho vagava inquieto pelas ruas e paisagens de Rio Santo, enquanto o
triciclo cortava veloz a cidade.
Júlia estava monitorando. O aparelho sobre o qual ela se debruçava era um
monitor padrão da Fábrica, idêntico ao que Teixeira havia descoberto na sala
secreta do consultório da falecida Varlene Alberione.
Os gêmeos estavam ainda ocupando o apartamento que alugaram na
Capitão Gregório, no mesmo prédio em que Teixeira morava. Depois que o
deixaram desacordado sobre as almofadas, nem chegaram a colocar os pés na
rua. Desceram até o terceiro andar, onde decidiram fazer uma pausa para um
merecido descanso após a intensa atividade das últimas horas.
Não foi preciso amarrar ou amordaçar Ágata enquanto os gêmeos dormiam.
Bastou um comando de Júlia para reduzir a Dama à completa imobilidade até
que fosse novamente solicitada.
Foi bem engenhoso o condicionamento realizado em Ágata. Júlia estava se
superando, explorando cada vez mais ousadamente as possibilidades das
moedas. Na época do condicionamento de Régis, dois anos antes, Júlia já era
imbatível na arte de manipular a memória e a vontade alheia. E de lá para cá a
menina só fez progredir.
Não sei o que levou Júlia a querer monitorar Régis logo que despertou de
seu soninho de beleza. Pode ter sido intuição, ou sorte. O fato é que ela ligou a
tela da minitevê bem a tempo de ver seu ator favorito se estrebuchando de dor,
quando Teixeira disse meu nome pela primeira vez.
Eu é que, por azar, não estava acompanhando nada daquilo. Abalado como
estava com a morte de Varlene, só pensava em afogar as mágoas com sexo e
coxinhas de frango. Acaso não tivesse deixado as paixões me dominarem a tal
ponto, teria me preparado melhor. E também teria percebido antes esse
joguinho duplo dos gêmeos.
Júlia era capaz de ficar horas e horas no monitor. Ela costumava devorar um
pacote de pipocas de micro-ondas atrás do outro quando assistia à minitevê. O
hábito começou por puro deboche, mas aos poucos foi se firmando e se
transformou nisso mesmo, em um hábito que já era quase mania. Júlia ainda
mantinha muitos comportamentos da adolescência.
A um dado momento Kim entrou na sala, atraído certamente pelo estado de
excitação de Júlia. Bastou observar o monitor por alguns momentos para
entender o que estava acontecendo:
“Isso não é bom”, ele disse. “Para onde eles estão indo?”
“Pelo que entendi, estão tentando achar a casa do chefinho.”
“Mas eles não podem fazer isso. É muito cedo ainda. O carro-forte não está
pronto.”
“Você pensa que eu não sei disso?”
Kim ficou por um tempo olhando a tela da minitevê. Então falou, amuado:
“Ele não devia estar na rua. Devia ter ficado em casa, esperando o nosso
telefonema.”
“Parece que esquecemos de combinar essa parte com ele, não é mesmo?”
Júlia não estava com muita paciência para os chiliques de Kim.
“Você devia ter feito a Dama bater com mais força na cabeça dele.”
“Ele morto não teria a menor utilidade para nós. Agora quer parar de
reclamar e me deixar pensar um pouco?”
Quem visse a cena de fora, ou outras parecidas, poderia ter a impressão de
que os gêmeos viviam discutindo. A verdade é que eles só usavam a
comunicação verbal quando existia alguma divergência entre os dois. Quando
estavam em sintonia, Júlia e Kim não precisavam de palavras.
Brancas avançam na quinta:
Um cardume. O favorecimento vem através das damas da corte. Tudo é propício.

“Alguma de vocês sabe onde fica uma casa com a estátua de um golfinho no
jardim?”
Teixeira sentiu-se um pouco ridículo ao formular a pergunta em voz alta.
Ele caprichou um pouco mais no sorriso. Talvez tenha chegado a pensar em
puxar uma ou duas notas da carteira, para seguir o velho clichê do cinema,
como um estímulo para que as três mulheres diante dele fizessem um esforço
extra para se lembrar. Mas se pensou, do pensamento não passou. O salário de
policial não dava para essas extravagâncias e, além do mais, simplesmente não
era assim que a coisa funcionava. Se Teixeira tivesse mostrado sequer uma nota
de dez para uma daquelas garotas de programa, ela o teria ensinado a chegar em
qualquer lugar, aqui ou na China, fosse o endereço certo ou não.
Ele tampouco quis se identificar como policial. Havia outras abordagens.
Quando parou o triciclo, as três estavam envolvidas em uma acalorada
discussão. Talvez debatessem o excesso de oferta para a escassa demanda,
problema que a chegada dos dois homens parecia solucionar. O inspetor não
quis estragar tão assim de súbito a expectativa delas de lucro revelando que ele
estava ali a trabalho e que Régis, bem, esse estava mais para concorrência que
para clientela.
A ideia de perguntar às meninas no calçadão da praia do Poeta só ocorreu a
Teixeira depois que os dois estavam rodando a esmo já há um bom tempo.
Régis simplesmente não conseguia se lembrar onde ficava a tal casa para onde
Kim o levou. Os achaques de dor de cabeça o haviam debilitado. Logo que
percebeu que as pontadas eram causadas por ele mesmo, por seus próprios
pensamentos, Régis entrou em um estado de ansiedade definitivamente
patológico. Sua mente estava próxima de um curto-circuito.
O medo de ser picado de cobra pode conter um veneno pior do que a
própria picada. O resultado é que Régis ficou apavorado, pisando na ponta dos
pés no terreno tão íntimo das próprias memórias, que agora lhe pareciam tão
abjetamente aviltadas. Ainda assim, ele fez o que pôde:
“Era uma casa grande, bonita. Era casa mesmo, não era apartamento. Era
uma mansão, é isso. Uma mansão. Lembro que havia alguma espécie de jardim
na entrada da casa. Era um jardim bonito, tinha uma fonte com a escultura de
um golfinho. Quando passamos diante da fonte, Kim comentou que os
golfinhos, assim como os homens, também praticam o sexo só por prazer.”
Isso foi o máximo que Teixeira conseguiu arrancar dele. Depois disso, o
ator entrou em um mutismo obstinado, que o inspetor achou por bem
respeitar. E assim, munido com uma vaga descrição e a lembrança de uma
estátua de golfinho, foi parar na praia do Poeta, onde Régis estava quando foi
abordado pelo rapaz no carro importado. Ir indagar às putas poderia ser
encarado como desespero de causa. Mas Teixeira estava com sorte.
“Eu sei onde é”, sorriu para o inspetor a mais bonitinha das três, uma
morena de olhos achinesados. “Tem que dobrar ali no final da praia. Eu já fui a
uma festa nessa casa. Tem um golfinho no jardim, é uma casa engraçada. Ao
invés de anões, golfinhos. Sabia que os golfinhos adoram trepar?”
CAPÍTULO 12 – ESTAGNAÇÃO

Pessoas más não colaboram para a perseverança do homem superior. O grande


se afasta, o pequeno se aproxima.
O Céu e a Terra não se unem: a imagem da Estagnação. Assim o homem superior apoia-se
em seu próprio valor para escapar às dificuldades.
(I Ching – hexagrama 12)

“Isso não é bom”, repetiu Kim.


Júlia e ele estavam de olhos fixos no monitor. Por detrás do olhar embaçado
de Régis, o casal de irmãos observou Teixeira voltar para o triciclo depois de
tomar diretrizes com a prostituta na praia do Poeta. O ator em nenhum
momento havia desapeado do assento do carona, imerso que estava em seu
próprio mundo, com medo de que o menor gesto acionasse as minas
escondidas dentro de seus pensamentos.
O inspetor fez rugir a sua máquina de três rodas. Logo se tornou inequívoco
para onde estava indo.
“Isso não é nada bom”, Kim voltou a dizer.
“Não tem outro jeito”, disse Júlia. Kim a fitou com um súbito interesse.
Sem dizer mais uma palavra, ela levantou-se e saiu da sala. Quando voltou,
trazia uma curiosa boneca preta, rudemente vestida com um pedaço de pano.
Pretas avançam na quarta:
Aquele que age no altíssimo comando permanece livre de culpa. Os de mente semelhante
compartilham das dádivas.

Eu nada estava sabendo desses aprontamentos todos dos gêmeos. Como


poderia? Estava ocupado com meus próprios afazeres. Só desconfiei quando já
era tarde demais.
Tudo bem que a manipulação da vontade alheia é um dos pilares da Fábrica.
Mas existem maneiras e maneiras. Sempre preferi obter a cooperação voluntária
de meus contratados. Acho assim muito mais eficiente.
Júlia nunca teve a oportunidade de aprender essas sutilezas. Ela nunca
precisou, com todo aquele talento. A menina fazia o que queria com a vontade
dos outros.
O uso de uma boneca para a manipulação à distância foi um verdadeiro
achado. Quem sugeriu a ideia foi Kim, após ler uma história em quadrinhos
sobre vodu. Júlia aceitou colocar em prática, e ficou encantada quando viu que
funcionava mesmo.
Pois até então ela só era capaz de exercer o seu dom sobre uma pessoa que
estivesse em seu campo visual. A descoberta da boneca vodu representava uma
ampliação significativa em seus poderes.
Com os olhos fixos na tela, Júlia segurava a boneca com uma mecha do
cabelo de Régis Vale. Aguardava o momento certo.

Pretas avançam na sexta:


A estagnação chega ao fim. Primeiro estagnação, então boa sorte.
Tudo aconteceu rápido demais. Foi quando passavam por um cruzamento, a
menos de quinhentos metros do Pontal que assinalava o término da praia do
Poeta. Do nada, Régis surtou.
Primeiro arrancou o próprio capacete, com gestos desesperados. Jogado
contra o asfalto, o capacete saiu quicando e tirou um fino de uma moto que
ultrapassava o triciclo naquele momento.
Teixeira voltou-se para trás, para descobrir que diabo estava acontecendo.
Mas nem chegou a virar o pescoço e já sentia o peso de Régis, que literalmente
se lançou sobre ele. O inspetor tentou pilotar e ao mesmo tempo livrar a visão,
que era totalmente tomada pelo rosto ensandecido do ex-garoto de programa.
Régis estava completamente possesso.
O motorista do ônibus que vinha atrás não conseguiu desviar. O para-
choque dianteiro do ônibus deu um piparote em uma das rodas traseiras do
triciclo. O triciclo foi lançado para cima e girou de ponta cabeça no ar, como se
fosse um pião, antes de colidir com a banca de jornal da esquina.
O acidente durou um breve instante, uma fração de segundo. Talvez
fazendo uso da percepção ampliada que algumas pessoas experimentam em
situações de extremo perigo, contudo, o inspetor foi capaz de fixar na mente
um singular detalhe.
Mesmo enquanto giravam, Régis continuava atacando-o, e mais ainda.
A imagem que os olhos do inspetor captavam era realmente bizarra. O ator
tentava morder o capacete, como se quisesse arrancá-lo de Teixeira a dentadas.
CAPÍTULO 8 – UNIÃO

Consulte o oráculo mais uma vez. Os que estão indecisos gradualmente se


aproximam. Quem se atrasar sofrerá infortúnio.
Sobre a terra há água: a imagem da União. Assim os reis da antiguidade avaliavam os
diferentes estados de seus domínios e cultivavam relações amigáveis com os senhores feudais.
(I Ching – hexagrama 8)

Teixeira nem chegou a perder a consciência. Mas ficou bem tonto.


Ironicamente, o resultado do ataque kamikaze foi que Régis acabou protegendo
o inspetor com seu próprio corpo. O impacto que Teixeira sentiu foi bastante
atenuado pelos ossos partidos do ator, que receberam a porrada de frente. Não
fosse por Régis, o esqueleto moído teria sido o dele, Teixeira. Não fosse por
Régis, por outro lado, o acidente jamais teria acontecido.
Imediatamente após o grande barulho da pancada, por alguns momentos
reinou o silêncio. Carne, metal, concreto e papel misturados, obra de arte do
caos. Obra do cão, diriam alguns. A banca de jornal ficou totalmente destruída.
O triciclo, perda total. Quanto a Régis, esse nunca mais declamaria um soneto,
sequer um haikai. Só Teixeira se salvara.
Ele e a senhora que tomava conta da banca de jornal. O modo como a
mulher escapou da morte certa acabou ganhando notoriedade depois que ela
deu um depoimento para a rede de tevê local. Dona Cecília só teria a
oportunidade de contar sua história uma meia hora depois de a equipe de
reportagem chegar. Primeiro filmaram o corpo desconjuntado de Régis Vale de
todos os ângulos.
“Foi coisa de minutos. De menos de um minuto. Um instante antes do
acidente apareceu esse rapaz bonito, de cabelos compridos, uma expressão
bondosa e tão cansada no rosto. Parecia um santo, me arrepio toda só de
lembrar. Dona Cecília Tedeschio Soares, ele perguntou. Quando eu confirmei
ele disse simplesmente: Houve um incêndio em sua casa. Por gentileza me
acompanhe. Depois que tudo aconteceu eu fiquei tentando me lembrar se foi
exatamente isso o que ele disse. Porque essas foram praticamente as palavras
que um policial disse para minha mãe na noite em que minha avó morreu em
um incêndio. Eu ainda era uma criança na época, mas lembro como se fosse
hoje. Acho que foi por isso que alguma coisa me tomou, que eu só pensava em
sair dali e ir para casa. Quando dei por mim havia retirado meu avental de
trabalho e já estava caminhando ao lado desse completo estranho, era um rapaz
tão bem apessoado, mas afinal um completo desconhecido. E olhe que eu não
sou uma irresponsável, sempre fui uma funcionária exemplar. Mas eu só
conseguia pensar em ir para casa. Não cheguei a dar cinco passos e foi aquela
barulheira terrível. Olhei para trás, e minha banca não existia. Estava totalmente
destroçada.”
Quando o pessoal da tevê chegou para entrevistar dona Cecília, o jovem e
desconhecido benfeitor já não estava à vista. Desaparecera sem deixar vestígios.
Para tornar a situação ainda mais misteriosa, e com um final feliz adicional para
dona Cecília, não houve incêndio algum. Alguns instantes após o acidente, lhe
ocorreu a ideia de telefonar para casa, e foi assim que a senhora logo ficou
sabendo que tudo e todos estavam bem, graças a Deus. Só nesse momento ela
lembrou-se do rapaz, mas ele já havia sumido.
As imagens do cadáver de Régis Vale seriam repetidas à exaustão nos
telenoticiários. O ator pagava o tributo final à imortalidade, finalmente
transformado em um verdadeiro astro. Muitas camisetas com o seu rosto
seriam vendidas durante toda a semana seguinte.
Quanto a Teixeira, não ficou aguardando no local para compartilhar essa
derradeira apoteose. Depois que tudo parou de girar, o inspetor descobriu-se
ainda engalfinhado com o cadáver. Desde o primeiro minuto ficou evidente
para Teixeira que Régis estava morto. Uma das pancadas foi tão severa que
quase separou a cabeça do corpo. Caso restasse a mínima possibilidade de que
estivesse vivo, e Teixeira não teria saído debaixo dele tão facilmente.
Agora que estava de pé, o inspetor olhou em torno de si, como se avaliasse
sua situação. Ele havia acabado de se envolver em um acidente grave, com uma
vítima fatal, vítima que era um cidadão famoso, ainda por cima. Estava tonto de
dores e náuseas, todo sujo, rasgado, amassado, ensanguentado. Estava agindo
sem autorização, evadido de seu plantão da delegacia de homicídios. E ainda
não se dava por satisfeito.
O inspetor Teixeira tirou o capacete, que deixou caído a seus pés, junto ao
corpo de Régis. E saiu andando normalmente, como se nada tivesse acontecido.

Brancas avançam na primeira:


Segure-se a ele em verdade e lealdade; isto é sem culpa. Verdade, como uma vasilha de barro
cheia: então a boa sorte chega de fora.

Mas a bravura do inspetor não chegou nem a cinco metros. Mal deu alguns
passos e sentiu a vista escurecer. Teria desabado no chão não fosse a mão
amiga e providencial.
“Olá, mas para quê essa pressa? Não acha melhor esperar pela chegada da
ambulância? O senhor certamente está precisando de cuidados médicos.”
Quando conseguiu voltar a si, Teixeira ergueu os olhos para fitar o rosto do
homem que o havia amparado no momento certo, evitando o que poderia ter
sido uma queda feia.
“Você!”
“O senhor me conhece?”
O inspetor ficou sem fala por alguns instantes. Olhava estupefato para o
rapaz de cabelos compridos, bem apessoado. Finalmente Teixeira conseguiu se
aprumar e dizer: “Você sofreu um acidente de moto hoje de manhã, na rua
defronte onde eu moro. Eu ajudei a socorrer.”
O rapaz pareceu alarmado. Mas logo sorriu. “Acho que o senhor está
invertendo um pouco as coisas. Quem acabou de sofrer um acidente de moto
foi o senhor.”
“Moto, não. Moto, não. Triciclo.”
“Tudo bem, um acidente de triciclo, que seja. Não quis ofender. E desde
quando dirigir moto é ofensa? Eu mesmo piloto uma.”
O jovem falava de modo jocoso, mas era evidente que havia ficado um
tanto apreensivo. E seu desconforto só pareceu aumentar quando Teixeira
enunciou numa voz curiosamente desprovida de entonação: “Sim, eu sei que
você pilota. Uma TFX 650 preta com um camaleão aerografado no tanque.”
“Ei. Como sabe disso?”
O inspetor limitou-se a fitar o rapaz. Os dois ficaram se olhando por alguns
momentos. Quando o jovem voltou a falar, sua voz havia adquirido um tom
monocórdio, destituído de emoção.
“Onde foi mesmo que aconteceu esse acidente de moto que o senhor
mencionou?”
“Foi defronte a meu prédio, na rua Capitão Gregório, esquina com a
avenida Abelardo Lacerda. Um raio derrubou uma árvore bem na hora em que
você estava passando com sua moto.”
“Vou ficar longe dessa rua na manhã de hoje. Quer dizer, de agora em
diante.”
O rapaz sorriu, mas a persistente indagação no olhar do inspetor não
esvaeceu. Um minuto de mudo constrangimento foi interrompido pelo som de
sirenes ao longe. Teixeira começou a se afastar, mas continuava voltando a
cabeça para fitar o jovem de jaqueta e calça jeans que não resistiu a repetir:
“Mas que pressa é essa? A ambulância já está chegando, calma! O senhor
precisa ser medicado.”
“Eu preciso encontrar uma casa que tem um jardim que tem uma fonte que
tem uma escultura de golfinho.”
O rosto do rapaz se iluminou em um espontâneo sorriso. “Eu sei onde fica
essa casa! É bem pertinho daqui, uns dois quarteirões.” Como se ele achasse
necessária a explicação, acrescentou em seguida: “Eu ando bastante por aí,
acabo conhecendo todas essas ruas. Mas por que o senhor precisa encontrar
essa casa assim com tanta urgência?”
Teixeira normalmente teria abominado aquele gesto, mas no momento ele
tinha mesmo pressa. Abriu a aba do casaco para exibir ao mesmo tempo o seu
distintivo e a arma debaixo do braço. “Assunto de polícia. Como é que eu faço
para chegar nessa casa?”
A postura do rapaz não sofreu alteração visível diante da revelação de que
Teixeira era um policial. “É só continuar nessa rua e dobrar à esquerda na
primeira esquina, daí suba a ladeira até o fim. Essa casa é a última da rua. É uma
casa grande de três andares, bem vistosa, não tem como errar.”
“Agradeço.”
“Ora, não tem de quê.”
“Muito obrigado também por ter me socorrido ali atrás. Eu agradeço
sinceramente.”
“Mas não foi nada, por favor, nem pense nisso.” O rosto do jovem voltou a
se iluminar em um sorriso. “Se o senhor quiser, posso lhe dar uma carona até
lá. Eu estou de moto.”
“Não, obrigado. Acho que vou andando mesmo. Eu estou bem. Está
parecendo pior do que foi na verdade.” Os dois já haviam se afastado alguns
passos quando Teixeira voltou-se para dizer: “Sabia que você tem um gosto
muito estranho para música?”
De tudo o que aconteceu nesse dia, esse momento para mim foi um dos
mais misteriosos. Teixeira e o rapaz se entenderam. Só eu fiquei de fora. Fazer
o quê? Toda história tem uma parte que quem está contando não entende.

Brancas avançam na terceira:


Você se apega às pessoas erradas.
O som das sirenes crescia na distância. Mas quando a ambulância chegasse
não teria muito que fazer. Teixeira já teria desaparecido. Quanto a Régis, sem a
menor dúvida seria declarado morto. O pescoço quebrado evidenciava-se pelo
ângulo improvável assumido pela cabeça com relação ao tronco, mas eram os
olhos que de imediato atestavam o óbito. Os olhos estavam abertos, as pupilas
fixas, o olhar parado de defunto.
Até mesmo em questões extremadas como a morte, no entanto, somos
muitas vezes levados a concluir, para nossa benção e desespero, que tudo
depende do referencial. Régis estava mesmo morto. Do ponto de vista médico
e legal, haviam cessado suas funções e atribuições como ser humano,
resultando do processo simples massa corpórea cadavérica. C’est fini. Caso
fossem, entretanto, seguidas as instruções contidas no Livro Tibetano do
Mortos, obra que o próprio Régis Vale teria considerado apropriada em virtude
de sua recente adesão ao budismo, o momento definitivo da morte só ocorreria
dali a alguns dias. Segundo professa o Bardo Thodol, naquele momento Régis
encontrava-se no estado de consciência denominado clara luz.
Durante o estado de clara luz, algumas vezes os mortos são capazes de
interagir com os vivos, geralmente através de aparições para algum ente
querido, como na cena do fantasma do pai de Hamlet. Outras vezes, durante a
clara luz, os mortos não podem ou não querem interagir com os vivos, mas
ainda assim são capazes de ver e ouvir o que se passa ao seu redor.
Aquele não deixava de ser o caso de Régis. Suas pupilas abertas
continuavam transmitindo, quer o falecido estivesse vendo ou não.
Júlia e Kim haviam assistido os acontecimentos após o acidente sem trocar
nem meia palavra entre si. Os dois testemunharam Teixeira escapar
praticamente ileso e depois se afastar junto com o rapaz da jaqueta jeans.
A boneca jazia destroçada aos pés de Júlia, a sua utilidade perdida para
sempre. Ou talvez não. Júlia ainda tinha muita raiva para extravasar. Com o
calcanhar da bota calcinou o rosto da boneca no chão, com tal lenta deliberação
que sua perna chegava a tremer com o esforço.
Kim nem olhou para ela. Teixeira há muito havia sumido de vista, mas ele
continuava de olho cravado na tela do monitor.
“É muito cedo ainda para Teixeira descobrir o endereço do chefinho. Isso
só deveria acontecer no fim da noite, depois de nosso telefonema.”
“E o pior você não sabe: hoje o chefinho está dando uma de suas festas.”
“É sério? E por que nós não fomos convidados?”
“É claro que fomos convidados, na verdade já estamos até bem atrasados.”
O tom de Júlia tornou-se determinado. “Por isso é melhor irmos andando.
Pode desligar essa joça. Vamos embora.”
“Eu queria assistir a autópsia”, Kim disse infantilmente. Ele chegou até a
fazer bico.
“Ah, Kim, tenha piedade. Quem já viu uma, já viu todas. E você já viu sei lá
quantas. Ainda não enjoou disso? Tudo bem, deixe gravando se quiser. Você
assiste depois. Mas agora precisamos ir, não podemos perder tempo.”
“O que você está pensando em fazer?”
“Algo bem mais drástico dessa vez.” Júlia sorriu ao mirar nos olhos do
irmão. Logo Kim estava sorrindo também.

Brancas avançam na sexta:


Ele não encontra uma cabeça com a qual se unir. Infortúnio.

Não foi difícil encontrar a casa. Como ficava no topo da ladeira, foi
construída em terreno plano. Era cercada por um muro baixo com grades, que
permitia a visão do jardim. E lá estava a fonte, bem à vista, com a sua já tão
falada escultura de golfinho. Não era particularmente imponente ou graciosa,
em minha opinião. Apenas bonitinha.
O inspetor parou diante do portão da casa. Não havia ninguém ocupando a
guarita da segurança. Teixeira logo notou a câmera que o estava filmando.
Ficou por um tempo encarando a câmera, até que finalmente apertou o botão
do interfone. Nada aconteceu. Ele apertou novamente a campainha durante
algum tempo. Dessa vez, o inconfundível zumbido seguido de um estalido seco
fez notar que o portão menor, destinado ao acesso de pedestres, havia sido
aberto. Teixeira empurrou o portão e entrou.
Em uma noite normal, não teria sido tão fácil assim entrar na minha casa. É
que justamente naquela noite acontecia uma festa. Eu dava festas com muita
frequência. No mínimo uma, no máximo três por mês. As pessoas ficavam
espantadas com o quanto eu gastava, sem perceber que as coisas mais
importantes não têm preço. Que meus ilustres convivas continuassem se
empanturrando com a melhor carne e o vinho mais doce, com a droga mais
pura e o sexo mais depravado. Enquanto continuassem vindo às festas, isso só
queria dizer uma coisa: eles eram meus brinquedos.
E é por isso que eu dava essas festas: para me divertir com os meus
brinquedos. Bem cedo cansei das tramas mais elaboradas, pois davam muito
trabalho e só me desviavam do propósito erótico original do jogo.
Progressivamente fui deixando vir à tona a crua natureza do desejo. E foi assim
que as festas originais, verdadeiras pérolas do psicossexodrama, se é que tal
coisa existe, foram gradualmente transformando-se em surubas anônimas e
orgias indistintas. Sexo, sexo, sexo, sem o menor toque de personalidade,
admito sem pejo. Durante um bom tempo tive orgulho de que assim fosse. Mas
a verdade é que toda brincadeira chega um dia que enjoa. Não tenho vergonha
tampouco em assumir que aquele trepatrepa desgovernado também já estava
me entediando.
O mesmo não podia ser dito de meus alegres convidados, pois festa após
festa continuavam regalando-se de sexo, drogas e hors d’oeuvres com o mesmo
entusiasmo incansável de sempre. Para mim, assim estava ótimo. Ajudava a
manter a família unida.
Nem tudo eram flores. Um problema que logo se tornou evidente nas festas
foi o relaxamento da segurança. Todas as equipes de vigilância eram compostas
de pessoal contratado da Fábrica. Então não havia como deixá-los de fora da
festa. Normalmente eu fazia vista grossa, mas sabia que um dia isso iria acabar
custando caro.
Então Teixeira chegou diante do portão de minha casa, e não havia ninguém
na guarita do segurança. Ele apertou a campainha do interfone, e logo alguém
abriu a porta para que ele pudesse entrar.
Como isso pode ter acontecido? Um pequeno mistério doméstico pode não
intrigar tanto quanto os profundos enigmas universais, mas pode causar bem
mais aborrecimentos. Tudo considerado, só posso imaginar que tenha se
passado assim.
Aquela era uma noite de festa. Por esse motivo o segurança Adamastor, que
deveria estar na guarita do portão, no momento em que Teixeira chegou estava
enrabando ou sendo enrabado pelo novato gordinho do setor financeiro.
Decidi apelidá-lo Fred, por lembrar um pouco a figura do patriarca dos
Flintstones.
O que estava acontecendo entre os dois era mais comum do que se pensava,
menos do que poderia se esperar. As festas tinham por apanágio a
promiscuidade, a pluralidade e diversidade sexual total. Nesse contexto, a
monogamia era não somente de extremo mau gosto, mas também um gesto de
afronta e rebeldia diante do status quo. Ao menos em nosso mundo. Em meu
mundo.
Fazer sexo com alguém em separado, durante as festas, já era uma
excentricidade pouco tolerada. Afinal quem quisesse transar a dois ou mesmo a
três que fizesse isso em sua própria casa, não era para mixarias que eu dava
essas festas.
Ficar com a mesma pessoa durante duas festas seguidas seria uma conduta
francamente hostilizada, e o casal infrator estaria sujeito a ser ridicularizado
abertamente pelos outros participantes e até mesmo vitimado por brincadeiras
de gosto duvidoso.
Uma dupla que ousasse permanecer junta por três festas seguidas seria
tratada, pelo contrário, com o mais profundo desdém e indiferença. Esse seria o
mais seguro sinal de alerta para os que estavam ameaçados de exclusão social:
para fazer alguém entender a força do grupo, nada como uma muralha de
silêncio.
Se minha suposição estiver correta, como explicação mais provável para a
ausência de Adamastor em seu posto na guarita bem no início da festa, aquela
era a quarta vez seguida que meu segurança e o Fred do financeiro se
embolavam na grama, por assim dizer. Isso colocava os dois além da faixa
amarela, já não era nem mais namoro, era noivado com promessa de
casamento. Era um escândalo tão gritante, que a falta profissional de
Adamastor ausentando-se de seu posto, em comparação, parecia até menor. A
situação era realmente grave.
O fato de os dois envolvidos no romance serem homens não fazia a menor
diferença. Conceitos como hetero e homo simplesmente não se aplicavam. Eram
muito antiquados para descrever a hierarquia sexual existente na Fábrica.
Eu bem que deveria ter dado uma prensa no Adamastor! E esse novato
folgado não merecia menos. Surpreendente pensar que eu possa ter deixado as
coisas saírem do controle desse jeito. Mas agora isso não importa mais. É
passado.
Quanto à segunda parte do mistério de como Teixeira entrou fácil assim na
casa, a solução é bem óbvia. Além da guarita da segurança, o interfone externo
era conectado também, dentre outros pontos da casa, com a copa. A copa era
responsável pela liberação e entrada de mercadorias diversas, tais como os
inúmeros suprimentos necessários para a realização de uma festa. E sempre era
necessário mandar vir algo de última hora. Por isso é razoável supor que o
pessoal da copa estivesse atento ao interfone da rua. Já posso até ver Cesário, o
chefe da copa, observando no monitor a figura que olhava com petulância
diretamente para a câmera, um homem despenteado, com a roupa amassada e
rasgada, aparentemente sujo de sangue. A que conclusão imediatamente chega
nosso bravo Cesário? O homem rasgado e sujo é um convidado para a festa. E
sem hesitar abre a porta para que o sujeito entre. Típico.
É claro que não posso condenar Cesário, a julgar pelos convidados que
meus convidados ultimamente vinham trazendo. Mendigos, meninos de rua,
prostitutas do cais, atrações de circo, quanto mais exótico melhor. Cesário não
era realmente culpado, até porque essa não era a função dele. O que não podia
ser dito a respeito do segurança Adamastor. Esse me escapou. Ah se eu tivesse
pegado ele de jeito na época! Garanto que ele iria receber um belo de um chute
bem onde o Fred Flintstone adorava lamber.
Autor!
CAPÍTULO 37 – FAMÍLIA

A perseverança da mulher é propícia.


O vento avança sobre o fogo: a imagem da Família. Assim o homem superior possui
substância em suas palavras e duração em seu modo de vida.
(I Ching – hexagrama 37)

As palavras têm muita força. As modificações mais importantes na história


da humanidade ocorreram através das palavras e das ideias que elas carregam.
Claro que não é só com a pena que se escreve a história: a espada também está
sempre lá, a fim de garantir que nenhuma palavra do poder deixe de ser
compreendida.
Um homem que soube usar bem as palavras foi Aristóteles. Sócrates talvez
soubesse manejar melhor a espada, mas não deixou nada escrito. Já Aristóteles
escreveu, e muito. Uma boa parte do que ele escreveu está perdida,
provavelmente para sempre. Mas o que restou foi suficiente para torná-lo o
homem cujas palavras maior influência tiveram na civilização ocidental, durante
o maior período de tempo. Não entendo como essa categoria não figura no
livro dos recordes.
E os que pensaram em Jesus esquecem que o Cristo, assim como Sócrates,
nada deixou por escrito, de próprio punho. Tudo o que ficamos sabendo de um
e de outro foi o que chegou através dos depoimentos dos que seguiam seus
ensinamentos e também dos que os mataram por causa desses mesmos
ensinamentos, sendo dos problemas mais difíceis até hoje, em ambos os casos,
discernir com exatidão o quê foi mesmo dito por quem.
Mas voltando a Aristóteles. O homem era um colosso. O meu livro
predileto dele sempre foi A Poética, desde os tempos de faculdade já li e reli não
sei quantas vezes. Algo na maneira como ele fala da tragédia grega tem sempre
o poder de acender a minha imaginação. Não há como ser um bom vilão sem
certo sentimento trágico.
Há uma cena da tragédia grega que é louvada pelo Filósofo como o apogeu
desse tipo de manifestação artística. É a cena crucial de Édipo Rei, de Sófocles,
quando Édipo descobre que é filho de Laio e Jocasta. Segundo Aristóteles, esta
cena é especialmente sublime por combinar de forma admirável os dois
principais recursos utilizados na tragédia, o reconhecimento e a reviravolta.
Poucas são as pessoas que podem dizer ter vivido na pele os acontecimentos
de uma grande tragédia. A vida real é feita de pequenas tragédias.
Naquele momento solene, quando dei de cara com os olhos de Alberto Lino
Teixeira, eu sentia que estava tudo, menos preparado.
Não conseguia nem mesmo encontrar as palavras. Não sabia o que dizer.
Mesmo porque eu estava de boca cheia.

Brancas avançam na quarta:


Ela é o tesouro da casa.

E depois de todos esses anos – voltar a pensar em Isabel.


Éramos apenas duas crianças quando nos conhecemos, pouco mais que isso
quando nos amamos: eu tinha catorze anos, ela dezesseis.
Isabel era filha de um dos funcionários da fazenda de meu pai, localizada a
trezentos quilômetros de Rio Santo. Eu passava lá as férias de final de ano. Não
era particularmente precoce, mas já havia testosterona o suficiente em meu
organismo para que eu fosse afetado pela transformação ocorrida em minha
antiga companheira de brincadeiras. Isabel havia se tornado uma linda moça,
talvez um pouco alta e magra demais, os cabelos castanhos e lisos adornando o
rosto de feições delicadas, que se tornava angelical quando ela sorria. Lembro
sobretudo das pernas brancas e compridas e dos seios pontudos que pareciam
querer rasgar os vestidos baratos que Isabel usava.
Não lembro como começou o namoro. É possível que Isabel, mais velha e
mais esperta que eu, tenha tomado a iniciativa. Quando dei por mim, já era um
homem, já havia sido tocado pela inquietante profundidade dos mistérios
gozosos, já vislumbrava uma vida inteira de deleite e delírio ao lado dela, minha
doce e primeira Isabel. Não existe amor como o primeiro.
Um momento que recordo perfeitamente bem foi quando nos encontramos
pela última vez na goiabeira às margens do riacho que cortava a fazenda ao
meio. Era o nosso ninho secreto, palco onde foi consumada a perda de nossas
virgindades. Agradava-me pensar que Isabel também fosse virgem, embora
olhando em retrospecto isso parecesse pouco provável.
Já estava bem perto o fim das férias, para meu crescente desespero. Eu fazia
mirabolantes planos para fugir com Isabel, a maioria deles envolvendo a
persistente e estúpida fantasia de levá-la escondida para minha casa, sem que
meus pais ou os dela percebessem. Aquilo estava me angustiando. Era o maior
problema com que eu até então havia me deparado.
Encontrei Isabel sentada debaixo da goiabeira. A princípio achei que seu
olhar sombrio fosse devido à mesma preocupação que me consumia. Mas logo
aprendi que à medida que crescemos, crescem também os problemas.
“Rogério”, ela disse, olhando bem fundo nos meus olhos. Ainda sinto uma
fisgada ao pensar nesse olhar. “Minha regra não chegou esse mês. Acho que
estou grávida.”

Pretas avançam na quinta:


Como um rei, ele se aproxima de sua família.
A reação de minha família diante da notícia de que eu seria pai antes de
completar quinze anos foi digna de um folhetim barato.
Só posso dizer, em defesa de meus ilustres progenitores, que a gravidez de
Isabel ocorria no pior momento possível.
Era ano de votação, e meu pai concorria à reeleição como deputado. Isso
não seria um problema tão grave se meu pai não fosse além de político também
um homem de chamado religioso, um ministro dos evangelhos, um pregador da
moral e dos costumes alheios.
Creio que a real vocação dele fosse a de ator. Passou, afinal, a vida inteira
representando esse papel duplo de homem religioso e político. Ele valorizava
com igual intensidade as suas duas facetas públicas. Bem sabia que o segredo de
seu sucesso estava na correta combinação das duas. Um símbolo disso era a
própria fazenda, dividida em duas pelo riacho. Pois metade da fazenda meu pai
havia conquistado com a ajuda das orações dos devotos, enquanto a outra
metade foi conseguida graças aos votos dos eleitores.
Tendo tudo isso explicado torna-se claro agora porque um neto, naquele
momento e circunstâncias, era algo simplesmente inadmissível.
Até hoje não sei se meu pai tomou parte diretamente nas negociações ou se
tudo foi feito através de intermediários. Às vezes me pergunto que papel teve
minha mãe nessa história toda.
Eu fui rápida e discretamente retirado de cena. Embarquei no primeiro
avião para a Europa, onde desfrutei de cinco chorosas semanas na cidade-luz,
sob a tutela de um horrível guardião, Zé Pedro, assessor direto de meu pai.
Esse foi o tempo que levou para meu destino ser decidido. Finalmente
deixamos Paris e fomos para a Itália. Em Milão, fui matriculado em uma
rigorosa instituição educacional em regime fechado.
Depois que meu pai foi reeleito, eu implorei para que me deixasse voltar
para casa. Ele nem me deu ouvidos. Havia se acostumado à ideia de ter um
filho estudando na Europa. Era algo a mais para se gabar nas festas que ele e
minha mãe frequentavam, juntamente com os mais preeminentes cidadãos de
Rio Santo.
E foi assim que eu continuei estudando em Milão. Durante a permanência
na cidade cinzenta, os rumos de minha vida sofreram uma forte guinada após uma
singular partida de xadrez. Mas sobre isso não quero falar agora.
Voltemos a Isabel. Não nego que o meu destino foi melhor que o dela. De
imediato o pai perdeu o emprego e toda a família foi obrigada a se mudar. É
claro que eles não saíram com as mãos abanando. O pai de Isabel deixou a
fazenda levando uma gorda indenização, que comprou o seu silêncio e a
promessa de conduzir a filha diretamente para certa clínica em Rio Santo, onde
providências seriam tomadas quanto a sua inoportuna gravidez.
É claro que alguma coisa acabou não dando certo. Mais uma vez, na vida
como na tragédia. Em Édipo Rei, um servo de Tebas é enviado para longe com a
missão de sumir com o herdeiro do reino, mas algo acaba dando errado. Algo
sempre dá errado nesses casos. Algum mecanismo secreto nas histórias faz
sucumbir todos os planos infanticidas, a menos que tenham sido ordenados
pelo próprio Deus. Édipo escapou à morte e voltou para reclamar o trono de
Tebas, já homem feito.
Da mesma forma, o homem Teixeira havia sobrevivido e agora batia à
minha porta.
Eu não alimentava ilusões sentimentais com relação ao meu filho. Tentaria
conduzi-lo com o uso da persuasão e de uma mente superior. Caso isso não
desse certo, contudo, estava preparado para alternativas menos sutis e mais
diretas.
Uma coisa eu sabia: não havia em mim a menor vocação para Laio.

Pretas avançam na sexta:


Seu trabalho impõe respeito.

A primeira coisa que me chamou a atenção em Teixeira foi, é claro, a


aparência. Fiquei intrigado com aquele sósia mais novo, mas em nenhum
momento passou por minha cabeça que Teixeira pudesse ser meu filho.
Foi durante o incidente com o falecido doutor, o suposto turista alemão de
nome Harold Habbot. Júlia havia achado por bem incluir algumas fotos de
Teixeira no relatório. Ela fez isso tanto por um senso de dever profissional
quanto por diversão. Não haviam escapado aos gêmeos as semelhanças físicas
entre mim e o inspetor Teixeira.
“Acho que ele consegue ser ainda maior do que você, chefinho”, provocou
Júlia com um sorriso convidativo. Havia alguma coisa correndo entre nós nessa
época. Linda e perigosa Júlia, talentoso e instável Kim.
De todo jeito, Teixeira impressionou pela semelhança, mas não somente.
Ele conquistou o ódio de Kim, que só não o matou porque Júlia não permitiu.
Conquistou o ódio, mas também o respeito. Júlia também parecia ter colocado
o inspetor em alta conta. E eu mesmo, devo confessar, fiquei narcisicamente
interessado em Teixeira. Quando o PAPAI teve início, cuidei para que ele fosse
incluído no programa.
Durante uma das sessões com Varlene, que eu por acaso monitorava, a
bomba. Depois de vencer muita resistência, a psicóloga conseguiu convencer
Teixeira a falar sobre a mãe. Alguns pontos da história que ele começou a
contar me deixaram com a pulga cravando os dentes. A um dado momento o
inspetor disse com a voz irreconhecível, embargada pela torrente de emoções
do passado que ameaçavam escapar pela garganta:
“A cada vez que tenho que mostrar a identidade para alguém, é a mesma
humilhação. Pois lá está o nome da mãe, para todo mundo ver: Isabel Teixeira.
Agora, onde é para estar o nome do pai, apenas um bando de xizinhos. A
pessoa vê os xis e na mesma hora olha para mim com aquela cara de
curiosidade, como se eu fosse um animal de circo.”
Foi um discurso e tanto. Varlene estava habilmente cozinhando Teixeira em
um caldeirão de autopiedade. Quanto mais sentem pena de si mesmas, mais
facilmente manipuláveis são as pessoas.
Que eu só tenha descoberto quem era a mãe de Teixeira nesse momento é a
prova de que realmente não fazia ideia do laço que nos unia. Eu sequer havia
cogitado consultar a ficha de Teixeira em busca de dados tão banais como o
nome do pai e da mãe.
Varlene estava inspiradíssima nesse dia. Sob a sua batuta perita, logo o
inspetor estava se abrindo como uma rosa em flor. Na verdade, a habilidade da
doutora Alberione consistia em fazer bom uso de certo talento natural nas
mulheres, que é o dom de agarrar um homem por seu ponto fraco e espremer
até deixar o camarada de joelhos. O truque só funcionou uma vez com
Teixeira. Nas sessões seguintes ele não deu mais brechas para a psicóloga.
Mas aquela única sessão havia sido mais que suficiente, do ponto de vista da
reviravolta e do reconhecimento. Eu havia feito as contas e visto que a idade de
Teixeira coincidia exatamente. Ele era meu filho. Eu era o pai daquele homem
feito.
E ele já sabia disso! Eu quase caí da cadeira quando escutei o policial, um
completo estranho na verdade, pronunciar essas palavras tão decididas:
“O nome de meu pai é Rogério Arcanjo Bastos.” Ouvir meu nome
completo, além da surpresa, provocou também um intenso desconforto em
Varlene, que ela tentou disfarçar o melhor que pôde. Sorte que Teixeira não
estava prestando muita atenção nela, viajando como estava por suas memórias
infantis. “Minha mãe contou tudo sobre ele antes de morrer.”
Em meio ao choque dessa revelação, quase passou despercebida a funesta
crônica da vida de Isabel Teixeira, após o nosso breve e dourado interlúdio
amoroso. Obviamente, ela não abortou. Preferiu fugir. Sozinha e assustada na
cidade grande, teve o destino de tantas, e logo estava vendendo o corpo em
troca de pão. Esse era o trauma de Teixeira, seu maior segredo: ele era filho de
uma prostituta.
Isabel não durou muito nos dentes da cidade. Morreu sifilítica, quando o
menino ainda nem havia completado dez anos. A sorte dele é que havia o seu
padrinho/madrinha, o travesti Albertina, que livrou o órfão da vida nas ruas ou
em alguma instituição. Albertina foi uma das primeiras pessoas que Isabel
conheceu em sua nova vida, e foi em sua homenagem que o menino ganhou o
nome de Alberto. Como nasceu no dia 23 de setembro, e na falta do nome do
pai, Teixeira ganhou ainda o nome de Lino, em homenagem ao santo do dia, o
segundo Papa, sucessor de são Pedro.
Aparentemente Teixeira não fazia ideia de meu paradeiro, ou preferia não
saber:
“Espero nunca encontrar esse homem, o homem que destruiu a vida de
minha mãe. Pois se eu encontrá-lo um dia, mesmo ele sendo meu pai, que Deus
me perdoe, mas eu vou matá-lo.”
CAPÍTULO 55 – PLENITUDE

O Rei atinge a Plenitude. Não fique triste. Seja como o sol ao meio-dia.
Tanto o trovão quanto o relâmpago: assim o homem superior decide processos penais e se
desincumbe de punições.
(I Ching – hexagrama 55)

“Olá, filho.”
Foi tudo o que me ocorreu dizer depois que desentalei da garganta o imenso
cacete de Armando, nosso gerente de informação.
Quando dei por mim ele já estava me encarando há nem sei quanto tempo,
esse homem vestido em andrajos ensanguentados e espantosamente parecido
comigo. Era a primeira vez que nos fitávamos nos olhos. Ele parecia bem
machucado. Olhava para mim como se fosse uma barata viva o que havia
acabado de sair de minha boca. Mas tirando essas e outras pequenas
dessemelhanças, e também uns quinze anos e a mesma quantia de quilos, era
como se eu estivesse me olhando no espelho.
Teixeira entrou no salão quando a putaria estava no auge. Imagine o quê,
umas sessenta, sessenta e cinco pessoas transando como loucas, umas por cima
das outras, como se o mundo fosse acabar antes do sol nascer. Estávamos no
salão romano, o meu preferido indisputável a qualquer momento. Por esse
motivo, e não sem uma dose de malícia, aquele espaço era também conhecido
como sala do chefe.
Todo nome diz alguma coisa, denuncia. Denominar é delatar, é também
trair. Quando chamei o aposento de salão romano, penso ter batizado com
bastante propriedade. Pois estava me referindo não somente aos bacanais aos
quais o salão era destinado. Havia também a decoração, a mobília, os leitos, as
almofadas, as cortinas, as mesas abarrotadas de iguarias e de toda sorte de
bebidas e drogas, a iluminação indireta do salão, ocultando ou disfarçando
habilidosamente qualquer evidência de tecnologia. Daí eu ter chamado de salão
romano. O nome tinha um propósito, caramba. Os romanos é que sabiam das
coisas.
Tais como transar degustando. As drogas e etílicos eu deixava para uso de
meus caríssimos convidados. O meu próprio apetite era bem mais modesto,
relativamente. O que fazia a minha cabeça na época era sexo indiscriminado
associado à ingestão de aves semicremadas: codorna grelhada, peito de peru
defumado, coxa de pato com laranja, coxinha de galinha, empadão de frango.
Era o que me fazia gozar naqueles tempos: a sinestesia. Comer e comer, prazer
por cima de prazer. Quanto ao motivo de minha predileção pela carne de aves,
jamais me interessou saber.
É que em matéria de prazer cada um sabe do seu, assim como cada qual é
que sabe quando, quanto e como lhe dói sua dor. Creio, como Sócrates, que o
prazer e a dor estão indissoluvelmente ligados. Em todo tanto de prazer existe
um tanto de dor. E vice-versa. Essa ideia me proporciona um magro consolo
face à ideia da morte, que é saber que ao menos um tanto se goza quando se
morre.
Sei que o tempero do sexo é a variedade. Por isso nas festas que eu dava
havia sempre dois outros salões funcionando simultaneamente. O salão
medieval destinava-se aos apreciadores de sadomasoquismo. E o salão espacial
destacava-se pela quantidade e diversidade dos mais inusitados apetrechos e
brinquedinhos eletrônicos. A minha estimativa era que entre trinta e cinquenta
pessoas estivessem naquele momento presentes em cada salão.
Não era uma suruba mixuruca qualquer. Minhas festas tinham classe,
imaginação, estilo. É por isso que algumas brincadeirinhas maldosas eu
simplesmente não admito. Não admito.
Falhei em perceber que o primeiro apelido que deram ao salão romano, sala
do chefe, já era em si uma afronta, já demonstrava uma petulância. Não devia ter
permitido a brincadeira. Pois logo veio outra pior, uma ofensa direta e pessoal.
Chamar o meu salão romano de bandejão.
A maldade desse apelido justificava-se pelo fato de não constar o bufê na
decoração dos outros dois aposentos. Não era o suficiente a bebida a rodo, não
bastava a droga liberada, a escória sempre encontrava um motivo para se
queixar, para ofender o éter com suas rudes tentativas de ironia. Cambada de
imbecis! Eram incapazes de perceber que uma bandeja com salgadinhos
simplesmente não combinava com uma masmorra medieval ou com uma nave
espacial.
Para isso existiam três ambientes diferentes. Quem gostava de um pouco de
tortura em seu sexo tinha o salão medieval para extravasar suas tendências de
forma sadia, em grupo. É claro que eventualmente ocorria o exagero e alguém
saía mais seriamente ferido. Mas todos entendiam que o risco fazia parte do
jogo. Embora a maioria dos contratados fosse bem jovem, ninguém ali era mais
criança. O mesmo podia ser dito a respeito dos usuais frequentadores do
terceiro salão. Os fetichistas e os tecnologicamente orientados não tinham do
que se queixar no salão espacial, onde dispunham de um acervo para tarado
nenhum botar defeito. E finalmente, para os que como eu preferiam a boa e
velha safadeza, e que também gostavam de um belisquinho antes, durante e
depois, para nós todos existia o salão romano. Todos podiam circular
livremente por qualquer um dos salões, não havia qualquer restrição quanto a
isso.
O apelido de bandejão era perverso e ingrato. Como os piores apelidos, que
grudam e nunca mais largam da gente. Ninguém ainda havia ousado se referir
dessa forma ao salão romano na minha presença. Isso me dava essa fraca defesa
contra a humilhação, que era fingir não saber de nada. É certo que a situação
não poderia continuar assim indefinidamente.
Bandejão, sobretudo por vir em sequência a sala do chefe, sugeria
grosseiramente que para que alguém pudesse comer algo em minha festa era
obrigado a transar por isso. Ao menos essa foi a minha interpretação quando
soube desse apelido ridículo.
Isso era obra de algum novato, certamente. Um precioso lampejo criativo de
algum geniozinho recém-desmamado, que não havia compreendido ainda a
extensão de seu cabresto. Doce inocência!
É claro que cada um tem que transar por sua comida! Isso é verdade dentro
e fora da Fábrica.
(Não que exista realmente algum lugar fora da Fábrica, ou pelo menos fora
de sua área de influência. A Fábrica opera em uma escala muito mais ampla que
boa parte das pessoas consideraria crível. Muita gente, por exemplo, até hoje
não acredita que o homem pousou na Lua.)
Mas a inocência não é desculpa para a ofensa. Em toda aquela casa imensa e
tão intensamente frequentada, naquele momento talvez doze jovens ânus ainda
não tivessem recebido minha atenção direta. Mas ninguém saía perdendo por
esperar.
Meia dúzia de garotas, talvez o mesmo tanto de rapazes, todos contratações
recentes que por um motivo ou outro eu ainda não havia conectado
pessoalmente. Só podia estar entre os doze o traidor.
Eu tinha certeza de que iria descobrir o autor do infame apelido. Tudo o
que eu precisava fazer era me inteirar a respeito dos novatos e novatas,
conhecer cada um deles pelo nome, ganhar a intimidade, fazer o que fosse
preciso.
Esse Armando, novato da equipe de informação, era simplesmente o
terceiro de minha lista. Quando o distingui no meio da massa de corpos que
copulavam, Soraia e Cristina, duas veteranas de seu setor, ocupavam-se em
lamber o membro teso e excepcionalmente grosso de Armando. Seu pênis mais
parecia um imenso tomate.
Sinceramente, Armando nem chegava a ser um suspeito. Sendo homem de
informação, ainda que novato, era inadmissível que cometesse um erro tão
grosseiro de julgamento. Era mais que razoável supor que não tivesse nada a
ver com o apelido. Eu é que havia resolvido apelidá-lo: Tomate. E assim do
simples nome se fez verbo. Pois foi só pensar em tomate que me deu vontade
de saborear.
Sem fazer muita cerimônia, juntei-me aos três. Ao reconhecerem quem eu
era, Cristina e Soraia se abriram em sorrisos, as duas vadias. Mas as minhas
atenções foram todas para Tomate. Sem dúvida a mais esperta e gananciosa,
Cristina logo me cedeu o lugar e se posicionou de forma a me prestar as
mesmas gentilezas que estava dispensando a Armando. Não fazia mais do que
sua obrigação. E nem saía perdendo nada. Pois nem só de tomate se compõe
uma dieta saudável. Mandioca também faz bem.
Já Soraia, menos esperta mas tão ambiciosa quanto, demorou um
pouquinho mais a perceber que eu não precisava de auxílio para cuidar de
Tomate. Mas que se dê crédito à sua submissão: docilmente acedeu em ajudar
Cristina em sua degustação de aipim.
E por falar em degustação, eu já estava quase pronto. A qualquer momento
iria querer penetrar ou ser penetrado. Ou ambos. E liberar a boca para mastigar
e engolir. Já estava estendendo a mão para a bandeja onde me aguardava o
faisão assado ao estilo indiano, cuja receita eu mesmo havia escolhido na
Internet.
Foi nesse momento que percebi meu filho todo ensanguentado e parado
bem na minha frente.
Para mim foi certamente uma cena de tragédia.
Imagino o que Aristóteles diria.

Pretas avançam na primeira:


Quando um homem encontra seu mestre destinado, eles podem permanecer juntos por dez dias,
e isto não é um erro. Prosseguir trará reconhecimento.

“Você sabe quem sou eu?”


Isso foi tudo o que Teixeira disse, a princípio. A voz trêmula me deu um
lampejo de esperança. Tive que pensar rápido.
“Sim, Alberto, eu sei quem você é. Fiquei sabendo há menos de um mês.
Aguardava a hora certa de falar com você.” Só naquele momento me dei conta
de que Cristina e Soraia continuavam a me chupar e a se lamber como se nada
tivesse acontecido. “Ok, meninas, agradeço a atenção, gostei de ver, belo
trabalho em equipe, parabéns, vocês são umas lindas, depois conversamos, está
bem?”
Armando, bem mais esperto que as duas vacas, já tinha se afastado
discretamente fazia tempo.
Teixeira parecia anestesiado. Ele reagiu em câmara lenta. Sua mão foi
subindo lentamente, se aproximando do peito, do coldre onde estava aninhada
a ponto 40. Antes que completasse o movimento, é claro que eu tinha que
intervir:
“Venha comigo, por favor. Tem algo muito importante que quero lhe
mostrar.” Apanhei o meu robe amarelo, que estava caído na beira de um dos
leitos. Com a habilidade nascida da prática, em dois segundos já estava
apresentável diante de meu filho. Quer dizer, mais ou menos apresentável.
Fiquei sem mordiscar o faisão, mas o tesão não passou. Era bem visível a
protuberância de uma ereção por baixo do pano amarelo. Tal pai, tal filho,
como se diz.
Sacudi esses vãos pensamentos da cabeça. Enchi o peito de coragem e
avancei até a saída do salão. Com a maior naturalidade, acenei para o pessoal
que havia notado. De fato, alguns dos presentes, uns poucos, interromperam o
que estavam fazendo ao me verem saindo cedo do salão, uma ocasião sem
precedentes. Eu disse sorrindo: “Podem continuar se divertindo, meus
queridos. Já volto.”
Sorri para Teixeira, tentando aparentar mais confiança do que eu sentia.
Retribuí com uma piscadela seu olhar de estarrecida surpresa. Acenei com a
cabeça para ele e enfim saí do salão. É claro que o inspetor foi atrás. Ao lado da
porta do salão romano ficavam as escadas para o terceiro andar da casa, cujo
acesso era exclusivo a convidados por mim pessoalmente. Fazendo insistentes
acenos para que Teixeira me seguisse, galguei os degraus, sentindo a frieza do
mármore italiano sob a sola nua de meus pés. Era preciso subir rápido, mas não
rápido demais. Uma vez lá em cima, seria fácil chegar ao escritório.
“Espere aí”, disse Teixeira.
“Venha comigo, eu lhe peço. Vamos conversar em um lugar mais
reservado.” Continuei subindo os degraus, só um pouco mais lento. O inspetor
aceitou vir atrás de mim. Acrescentei, algo estupidamente: “Não há problema
algum.”
Atravessamos o corredor que levava à parte frontal da casa, onde ficavam
meus aposentos pessoais e o escritório. Ao conduzir alguém por ali pela
primeira vez, normalmente eu fazia algum comentário sobre o preço das
pinturas eróticas que adornavam as paredes. Algumas das telas eram
inacreditavelmente caras. Mas daquela vez não julguei apropriado tecer
qualquer comentário a respeito.
A maioria das pessoas ia comigo direto para o quarto. Em raras ocasiões,
contudo, resolvia negócios no meu escritório privativo. Era lá que eu pretendia
conversar com ele.
Os breves instantes que levamos para chegar ao escritório ao menos foram
um tempo a mais que tive para pensar. E também para absorver o impacto de
experimentar novamente uma emoção poderosa, depois de tempos. Eu estava
ardendo de vergonha. Já nem lembrava mais de quando experimentara um
constrangimento tão vívido. Sentia o olhar de Teixeira queimando minha pele
por baixo do robe. Eu havia planejado bem diferente o primeiro encontro com
meu filho.
“Por aqui.” Fiquei um pouco mais animado quando entramos no escritório.
Era um aposento amplo, na parte nobre da casa, que foi construída em um dos
pontos mais altos da vizinhança. A vista das janelas descortinava até a enseada
das musas, depois da praia do Poeta. A paisagem era muito bonita à noite, com
as luzes da enseada demarcando a fronteira com o negror do mar, cortado aqui
e ali por luzes aventureiras de navios distantes.
O piso de mogno era quase totalmente coberto por um caríssimo tapete cor
de creme, que mandei comprar mais pela maciez que pela beleza. Assim como
meu filho, eu também gostava de andar descalço em casa. Bem defronte à porta
estava o generoso sofá, tão apropriado para reuniões íntimas e também para
meus momentos de ócio criativo. A uma distância conveniente, ao lado da
porta, ficavam o bar e o frigobar, bem providos com o melhor do melhor.
Em ocasiões mais formais eu ocupava a cadeira no outro canto do aposento.
Era uma poltrona giratória muito elegante e ainda mais confortável. Em frente
à cadeira ficavam a mesa de tampo de vidro com meu computador pessoal e,
do outro lado da mesa, duas outras cadeiras igualmente confortáveis, só que em
um modelo um pouco menos luxuoso. Foi uma dessas cadeiras que ofereci a
Teixeira.
“Queira sentar-se, por gentileza.”
Ele declinou do convite.
Na parede atrás de minha cadeira havia um quadro bem sugestivo chamado
Sonhos de Menina Virgem, obra de um bem conceituado pintor local. O quadro
estava afixado à parede por meio de dobradiças laterais presas à moldura. Eu
havia puxado o quadro pelo lado oposto da moldura, para revelar o que havia
por detrás.
“O que pensa que está fazendo? Pode parar agora mesmo.”
“Só vou abrir o cofre, está vendo? Se você permitir, é claro. Tem uma coisa
ali dentro que eu gostaria de lhe mostrar. Não precisa sacar a arma. Tenha
calma. Vamos conversar um pouco primeiro, meu filho.”
“Abra o cofre. E não me chame assim.”
“Tudo bem. Ah, aqui está.”

Brancas avançam na segunda:


A cortina é tão cerrada que as estrelas polares podem ser vistas ao meio-dia. Prosseguir trará
desconfiança e ódio. Se alguém através da verdade o incita, segue-se a boa fortuna.

Tirei de dentro do cofre uma pequena bolsa de veludo preto, amarrada por
um cordão preto. Desamarrei o cordão e estendi o conteúdo da bolsa com as
mãos em concha, gesto inequivocamente prenhe das mais pacíficas intenções.
Havia cinco diamantes brilhantes como estrelas repousando em minhas mãos
estendidas, cada um deles um pequeno astro-rei de esplendor.
“Quero que fique com isto. Antes de dizer qualquer coisa, peço que me
escute. Eu soube que você existia há pouquíssimo tempo, não faz nem um mês.
Fiquei muito surpreso, pois sempre me disseram, bem, que sua mãe havia
abortado o bebê. Entenda que foi uma grande surpresa para mim, mas que me
deixou muito feliz. Estava me preparando para encontrar você. Esses
diamantes, separei para lhe dar. Sei que não compensam uma vida de ausência,
Alberto. Veja isso apenas como um começo. Um gesto de amizade.”
Os olhos de Teixeira também haviam adquirido um raro brilho. Como ele
não deu nenhum sinal de que iria aceitar, mas também não recusou em um
acesso de fúria ou coisa assim, deixei a bolsa de veludo preto em cima da mesa
de vidro diante dele. Esperava que fizesse um pouco de doce antes de embolsar
os diamantes. Já estava bem menos abatido, sentia a confiança voltando. E daí
que meu filho me pegou com a boca no tomate? Eu era um pai rico, e os ricos
têm direito a suas extravagâncias.
Quando Teixeira falou, foi como se estivesse acompanhando meus
pensamentos: “Pela quantidade de moedas em seu cofre, você deve ser o Tio
Patinhas.”
Eu havia inadvertidamente deixado a porta do cofre aberta. Esqueci que
Teixeira era capaz de ver as moedas. Nem eram tantas assim. Menos de
trezentas, empilhadas em grupos de dez e de vinte.
“Então quer dizer que você é o mandachuva por aqui”, continuou ele.
“Imagino que todas essas pessoas que vieram hoje para a sua festa do cabide
têm uma moeda dessas colada na bunda, não é verdade? Pelo menos todas as
bundas que eu vi tinham.”
“Você possui uma habilidade muito rara, Alberto. Só pode ter herdado de
mim. Ficaria muito espantado se eu dissesse que a maioria dessas pessoas que
você viu nos salões não consegue enxergar essas moedas?”
Teixeira avançou um passo em minha direção.
“E é isso o que lhe dá o direito de querer ser o rei dos fantoches? Essa
habilidade, como você diz? Diga-me uma coisa. Quantas pessoas em sua
festinha estão aqui hoje por vontade própria? Ou foram obrigadas a se
degradarem assim por conta dessas moedas que você guarda tão avidamente no
cofre? Aliás, que livro é aquele?”
De todas as perguntas que o inspetor fez, agarrei-me à última. Parecia a mais
segura. Tirei o livro do cofre e passei para ele.
Teixeira dividia-se entre o curioso e o desconfiado. Examinava o livro e a
todo momento me lançava olhares sombrios, como se me desafiasse a
questionar sua capacidade de entender italiano. Mas não era necessário
conhecer intimamente a língua de Dante para se fazer uma pergunta pertinente.
“O que esse livro tem para ficar guardado em um cofre?”
Era um exemplar de La Coincidenza.
“O valor é meramente afetivo. É a única lembrança que tenho de uma
viagem que fiz à Itália em minha juventude.”
Teixeira tinha que ler o nome escrito na capa: “Mario Bodoni? Nunca ouvi
falar.”
Velhos hábitos são difíceis de matar. Algum resquício do vício antigo
sempre fica. Permanece. Tal como o cocainômano que consegue parar de
cheirar e anos depois, ao ouvir a casual menção à cocaína em uma conversa
qualquer, não consegue evitar a delatora fungada, o franzir das narinas, a
palpitação muda das pálpebras, o clamor surdo da velha fome. Mesmo que a
linha tenha sido partida, o anzol, ou ao menos a cicatriz do anzol continua
pendurada na alma. Da mesma forma aconteceu comigo, ao ouvir pronunciado
em voz alta o nome de il Dottore. Anos e anos havia desde que aquelas palavras
me fizeram tremer pela última vez. Ainda assim, não consegui reprimir a careta
antecipatória da dor.
O inspetor notou o meu desconforto. “Algum problema? Parece que você
não gostou de ouvir o nome do autor do livro. Mario Bodoni.”
E novamente não pude conter o cesto, o tique denunciador. “Eu disse que
guardava o livro como uma recordação de minha juventude. Não disse que a
recordação era boa.”
Teixeira não era bobo. “Hoje mesmo eu vi uma reação parecida com essa
sua, só que bem mais intensa. A mesma coisa aconteceu com Régis Vale. Ele se
jogou no chão uivando de dor quando ouviu certo nome ser pronunciado.”
Eu necessitava de uma mudança radical na abordagem.
“Entenda, eu sofri uma espécie de condicionamento, uma lavagem cerebral.
Toda vez que ouvia esse nome em particular que você disse... sendo
pronunciado em voz alta, era como se eu estivesse morrendo. Uma dor
horrível, você não faz ideia.”
“Faço ideia, sim. Vi o que aconteceu com Régis Vale quando eu disse o seu
nome. Rogério Arcanjo Bastos.” Vendo que eu murmurava alguma coisa, ele
vociferou: “O que foi que você disse?”
“Nada de importante. Apenas uma velha máxima de Maquiavel: é melhor ser
temido que ser amado.”
“O que você está querendo dizer?”
“Esse condicionamento que eu mencionei serve a um propósito. Régis está
condicionado a sentir dor ao ouvir o meu nome... pela simples razão de que sou
o mestre dele. Fui eu o responsável por sua contratação. Da mesma forma, fui
contratado por... il Dottore.”
“Il Dottore?”
“Sim, é como o chamávamos. Não podíamos pronunciar o nome dele, você
entende. Então era assim que nos referíamos a ele. O Doutor. É um dos
personagens da commedia dell’arte, conhece?”
“Vamos voltar a essa história de contratação. Para a Fábrica.”
“Sim, esse é um nome tão bom quanto qualquer outro. A Fábrica.” Achei
que esse era um momento bom para tentar uma nova aproximação. “Espero
que você aprecie o fato de que estou me colocando inteiramente em suas mãos,
filho.”
“Já falei para não me chamar assim. Ainda quebro a sua cara.”
“Tudo bem, tudo bem. Desculpe, não era minha intenção.”
“Mas nem preciso sujar as mãos, não é mesmo? Se você estava dizendo a
verdade, bastam duas palavrinhas mágicas.”
Sacudi a cabeça. “Não me afeta mais do mesmo jeito. O condicionamento
vai enfraquecendo com o passar dos anos. E eu fui contratado há muito tempo.
Além disso”, e eu parei para fitá-lo nos olhos, sério. Não podia errar a mão
agora. “Sei que você não faria uma coisa dessas. Você é melhor que isso.”
“Não me tente”, ele tentou revidar, mas sua postura era menos agressiva.
Nunca subestime o poder de uma boa sugestão parental. Mesmo que mais de
três décadas atrasada. “Quanto ao ator que você contratou, ele também está
livre de seu condicionamento.”
“Como assim?”
“Está morto. E a morte é uma libertação, não é mesmo?”
Não precisei fingir surpresa. Eu nada sabia ainda. “Morto? Tem certeza?”
“Claro que sim.” Teixeira mostrou os trapos ensanguentados que estava
vestindo. “Está vendo esse sangue? A maior parte é dele.”
“Você o matou?”
“Não. Ele mesmo foi quem buscou o seu fim. E chega de falar dele. Quero
saber é da Fábrica.”
“E eu quero lhe contar tudo. Tudo, desde o início. Melhor nos sentarmos
um pouco. E que tal uma bebida? Uísque com gelo?”
CAPÍTULO 32 – DURAÇÃO

É propício ter para onde ir.


Trovão e Vento: a imagem da Duração. Assim o homem superior permanece firme e não
muda seu rumo.
(I Ching – hexagrama 32)

“Tudo o que um homem for capaz de conceber, outro é capaz de realizar”,


disse eu certa noite, há vinte e tantos anos.
Estávamos acampados no topo do monte Ciro, o mais alto da serra da
Cantata. Mesmo durante o verão a noite era muito fria no platô, de modo que o
nosso pequeno grupo se apertava ao redor da fogueira enquanto a ceia era
preparada. A ceia dos Olimpianos. Era difícil acreditar que fôssemos amigos há
tão pouco tempo.
Os cinco haviam se conhecido durante o I Torneio Universitário de Xadrez,
realizado em Milão no ano anterior. Rita e eu éramos colegas da escola de
jurisprudência da Universidade Bocconi. Spagnolo, que me derrotou na
semifinal e acabou sendo o campeão do torneio, estudava engenharia na
Universidade de Milão. Floyd e Sergente não eram tão fãs de xadrez, mas foram
ao torneio só para torcer pelo colega Spagnolo. Eles estudavam na mesma
universidade, sendo que Floyd era estudante de matemática e Sergente cursava
engenharia como Spagnolo. Nós gostávamos de chamar a nosso grupo
Olympians, os Olimpianos.
Estávamos hospedados na fazenda de meu pai. A subida ao Ciro, discutida e
planejada em detalhe desde lá na Itália, era o clímax de nossas férias no Brasil.
Ao menos em minha própria opinião.
“Não existem limites para o poder de realização humana”, continuei. As
luzes esparsas do vilarejo, mais de dois mil metros abaixo de nós, de alguma
forma me inebriavam. Estava orgulhoso por haver trazido meus colegas de
Milão para aquele ponto, para aquele momento. “Não existem limites, a não ser
o próprio pensamento. Só somos limitados pela imaginação.”
“Um brinde a essa ideia”, disse Spagnolo, que estava sentado a meu lado. Se
o nosso grupo jamais tivesse algo parecido com um líder, o título certamente
iria para ele. Era tão italiano quanto os outros. Nós o chamávamos de espanhol
por conta de uma espécie de brincadeira privativa. Acontece que um ator de
filmes pornô que teve muitos de seus filmes distribuídos em Milão naquela
época era conhecido como Spagnolo. Não era tão desabonador, para um
moleque de menos de vinte anos, ser considerado parecido com um dos
campeões da indústria do sexo. Por essas e outras é que era destinado a ser o
capitão, a estrela do time. Era dele o melhor apelido. Spagnolo ergueu sua
caneca e conclamou com sua voz rouca: “Pela vitória do Rei! Pela honra da
Rainha!”
“Xeque-mate!”, respondemos em uníssono, levantando as canecas.
Depois do brinde, a boca de Sergente coçou. Ele disse em tom meio de
troça: “Mas nem sempre a gente é capaz de fazer tudo o que pensa que pode.”
Sergente era assim chamado porque era corpulento, e sua mandíbula projetava-
se para a frente, de tal forma a autorizar uma cruel comparação com o Sargento
Tainha, das tiras do Recruta Zero. O dele era o pior apelido, disparado.
“Eu só espero que sejamos capazes de comer algo que não esteja queimado
ou salgado demais dessa vez”, disse Floyd, lançando um olhar brincalhão para
Rita, que estava sentada entre Spagnolo e Sergente. Floyd estava sentado depois
de Sergente, ao meu lado. Ele esticou o braço para mexer na panela que estava
no fogo. Olhou de relance para Rita mais uma vez e sorriu, exibindo os dentes
cavalares. Em momentos como esse era realmente notável a semelhança com
Roger Waters, baixista e vocalista do Pink Floyd. Daí seu apelido.
Diante dos sorrisos cúmplices que se esboçavam na roda, Rita acabou
engolindo a isca: “Só porque sou a única mulher do grupo, isso não faz de mim
a responsável pelo preparo da comida. Se você queria serviço de quarto, deveria
ter optado pelo pacote turístico.” O que dizer de Rita? Era parecida com Rita
Hayworth, só que ainda mais bonita. Era simplesmente linda. Simplesmente
perfeita. Simplesmente, a namorada de Spagnolo.
“Relaxe, benzinho”, disse o próprio, abraçando Rita mais para junto de si.
“Não está vendo que é só brincadeira?”
“Eu sei, mas é de brincadeiras como essa que o machismo se sustenta.
Quando é que os homens ficam adultos afinal?”
“Tá bom, Rita... só não se irrite!” Floyd falou de um jeito tão cômico que
acabou arrancando risadas de todos. Até da própria Rita, que fingiu que jogava
uma pedra nele.
“Mas e você, Fortunato”, chamou Spagnolo. “Continue falando dessa sua
teoria.”
Fortunato era o meu apelido. Spagnolo o havia tirado de uma história do
Edgar Allan Poe, O Barril de Amontilado. Ele cismou que eu tinha cara de
Fortunato. Eu nem liguei. Primeiro, porque sempre fui fã do Poe, sendo aquela
história uma de minhas prediletas. Segundo, porque tal e qual o Fortunato
desde aquela época eu era um apreciador de bons vinhos. E finalmente, como
me acostumei a pensar, porque Fortunato possuía um lema que poderia ser o
meu mesmo: ninguém me fere impunemente.
“Não é bem uma teoria. Foi só uma ideia que me ocorreu.” Olhei para
Sergente antes de prosseguir. “Não estava pensando tanto em termos de
capacidade individual de realização, mas na capacidade da espécie humana
como um todo.”
“Uau”, disse Sergente em tom de deboche. “Estamos inspirados hoje.”
Fingi que não percebi. “Talvez eu, como um indivíduo, não consiga realizar
tudo o que penso. Mas alguma pessoa ou grupo de pessoas, no presente ou no
futuro, será com certeza capaz de tornar realidade tudo o que eu puder
imaginar.”
“Mas isso não é um pouco de exagero?” Atalhou Rita. “Suponha que eu
imagine que essa lua lindíssima, na verdade, é feita de queijo verde e
malcheiroso. Ou qualquer outro absurdo assim. Como alguém seria capaz de
tornar isso realidade?”
“Você está super certa, Rita.” Eu estava satisfeito por ela estar interessada.
“Pois é justamente a nossa noção do que é ou não fantasia, do que é ou não
realidade, do que é ou não possível acontecer, é essa noção que deve ser
questionada. Os nossos limites são os limites que acreditamos ter.”
“Você está mesmo inspirado hoje, hem!” Eu seria capaz de qualquer coisa
no mundo para fazer Rita continuar me olhando do jeito que olhou naquele
momento.
“Veja o caso de Júlio Verne, por exemplo. Quando suas histórias foram
publicadas, lá pelo século dezenove, eram obras de pura fantasia. Quem poderia
acreditar naquela época que um dia o homem chegaria à Lua? Mas hoje não só
a viagem à Lua, como tudo o que Júlio Verne escreveu já aconteceu de fato. Já
é realidade.”
“Nem tudo”, interveio Sergente. “Falta ainda a viagem ao centro da Terra.”
“Quem pode dizer?” Eu tinha que rebater de alguma forma. Rita estava
prestando atenção. “Só porque não temos a informação de que algo aconteceu,
isso não prova que não tenha acontecido.”
“Aí você já está forçando um pouco, Fortunato”, Rita disse casualmente.
Vendo o meu esmaecimento, sorriu generosa e fez que brincava comigo: “A
história do Júlio Verne é uma delícia, mas totalmente fantasiosa.”
“Muito bem lembrado, Ritinha.” Respondi com intimidade, mostrando que
não havia ficado aborrecido com ela, que isso jamais poderia acontecer. “Tudo
bem que o homem ainda não tenha chegado ao centro de nosso planeta. Isso
não quer dizer que isso nunca vá acontecer.”
Floyd achou que essa era uma hora boa para meter a colher de novo:
“Fortunato meu querido, você está viajando. A história que Júlio Verne
imaginou acontece em um cenário que não corresponde ao que a ciência
descobriu depois. O centro da Terra que ele descreve simplesmente não existe.”
“Quem está viajando é você, caro Floyd. Isso não tem nada a ver com o que
eu falei. Você está fugindo do ponto.” Por um momento ficamos todos
surpresos pela tensão no ar, que parecia ter surgido do nada. Respirei fundo
antes de continuar: “Escutem. O que estou querendo dizer é que o pensamento
necessariamente precede a ação. Antes que um homem consiga realizar
qualquer coisa, é necessário que alguém, ele mesmo ou outra pessoa, é preciso
que alguém imagine essa coisa sendo realizada.”
Por alguns segundos, ninguém se manifestou. Percebi que eu ainda tinha o
que falar: “A viagem à Lua foi bem diferente do que Júlio Verne descreveu.
Mas antes que o homem pudesse chegar à Lua, foi necessário que alguém
imaginasse isso acontecendo.”
“Faz sentido”, concordou Spagnolo, no tom de quem dá o assunto por
encerrado. Todos pareciam ansiosos para restaurar o bom clima que havia sido
estragado.
“Por falar em ideias mirabolantes e futuristas, recentemente eu li um livro
muito bom do Asimov, A Fundação. Alguém já leu?” Rita, sempre atenta,
sempre tão habilidosa, já puxava a conversa para outros rumos. Só que dessa
vez o tiro saiu pela culatra.
“Taí”, bradou Floyd, apontando o dedo em minha direção. “Quero ver você
tentar defender como vai ser possível um dia a psico-história.”
“Como é?”
“Eu li esse livro que a Rita falou. É bem legal mesmo. Mas totalmente
absurdo, totalmente inacreditável. A psico-história é uma ciência que o Isaac
Asimov inventou. Uma ciência capaz de prever o futuro.”
“E o que tem de tão absurdo nisso? Prever o futuro, de certa forma, é o
objetivo de toda ciência.”
“É. Só que nessa ciência da psico-história o futuro da humanidade é tratado
estatisticamente, de forma matemática. Isto só é possível quando se tem uma
quantidade absurdamente enorme de seres humanos, tal como em uma galáxia
com milhões e milhões de planetas habitados.”
“Continuo sem ver o que há de tão inacreditável nessa tal de psico-história.”
“Imagine uma ciência que para existir precisa primeiro que o homem
colonize toda a galáxia, um número estúpido de planetas, só para que a
população humana alcance um quantitativo tamanho que permita o tratamento
estatístico adequado. É uma possibilidade tão improvável que bem que poderia
ser considerada simplesmente impossível. E é exatamente por isso que o livro é
bom. Porque trata de pura fantasia.”
“Vocês estão se prendendo muito ao como, quando é o quê que interessa”,
protestei. “Quando Da Vinci fez os primeiros esboços de um helicóptero,
ninguém poderia acreditar que algo como aquilo viesse a existir um dia. É claro
que quando o helicóptero finalmente foi construído, não podia ser idêntico ao
esboço original. Os engenheiros são vocês, então nem me atrevo a falar mais
sobre isso.”
“Engenheiro, não. Matemático.”
“Tudo bem, tudo bem. Os engenheiros são Spagnolo e Sergente, você é o
matemático. Tudo o que quero dizer é o seguinte: não importa o projeto final
do que acabou se tornando o helicóptero. O que importa é que para que o
helicóptero existisse primeiro foi preciso que um homem chamado Leonardo
da Vinci imaginasse um aparelho capaz de voar pela propulsão das hélices.”
“Belo discurso, senhor advogado”, e o sorriso de Rita dissolvia qualquer
possibilidade de ironia. “Pelo que estou entendendo, você está dizendo que
tudo é possível.”
“Agradeço, senhora advogada”, e devolvi também o sorriso. “Não
exatamente. O que estou afirmando é que tudo o que o homem for capaz de
imaginar é que se torna possível.”
Rita disse: “E se alguém imaginar algo realmente impossível de acontecer?”
“Simples. Se alguém for capaz de imaginar o impossível, então deixa de ser
impossível.” Olhei bem dentro dos olhos de Rita, tentando colocar mais
significado no que eu estava dizendo.
Mas Floyd já estava abrindo sua grande boca: “Concordo totalmente”, disse
ele, após provar com uma colher da panela que estava no fogo. “O impossível
acontece: o jantar está uma delícia.”

Brancas avançam na primeira:


Buscar a Duração de maneira afobada conduz persistentemente à má fortuna. Nada que seja
propício.

Nós havíamos montado duas barracas, uma ao lado da outra. Na barraca


maior estávamos eu, Floyd e Sergente, e a menor ficou para Rita e Spagnolo.
Estávamos deitados fazia uns vinte minutos quando comecei a ouvir um
barulho. Imagine que uma mulher está fazendo amor. Ela sabe que há pessoas
bem perto dela, que podem ouvir qualquer ruído que ela faça. Apesar disso, ou
talvez por isso mesmo, a excitação é tão intensa que ela acaba deixando escapar
um gemido, um suspiro mais alto, umas poucas palavras sussurradas. Era esse o
tipo de barulho que eu estava ouvindo.
“Então”, e dei uma cutucada em Floyd, só para poder pensar em outra
coisa. “Fale mais sobre essa tal ciência de prever o futuro.”
Floyd era brincalhão e irreverente, mas não era bobo. Felizmente ele logo
captou a deixa: “Cara, é um conceito até bem interessante, a psico-história. O
Asimov baseou-se no estudo dos gases para formular sua ideia. A analogia é a
seguinte: não há como prever o comportamento de uma única molécula de gás,
dizer em que direção ela irá se mover etecetera. Mas se você tiver um número
suficientemente grande de moléculas, é possível prever o comportamento da
mistura gasosa como um todo. Entende?”
“Até aqui, sem problemas.”
“A ideia é que a mesma lógica se aplicaria aos seres humanos. Não há como
prever o comportamento de um único indivíduo. Mas com uma quantidade
suficientemente grande de indivíduos, capaz de ser analisada estatisticamente,
isso em tese seria possível.”
“E a população da Terra não seria o bastante?”, interveio Sergente, que
mesmo a contragosto acabou ficando interessado pela conversa. “Afinal já
somos quase cinco bilhões.”
“Isso não basta para a psico-história. Lembre-se que o modelo utilizado foi
o estudo dos gases. Cinco bilhões é uma mixaria, quando estamos falando de
moléculas. Você deveria saber disso. Um número significativo estaria na ordem
dos trilhões, ou mesmo quatrilhões. Por isso é que o Asimov precisou criar
todo um império galáctico, com milhões de planetas colonizados pelo homem,
para ter um cenário adequado à psico-história.”
“Isso não passa de ficção científica”, disse Sergente, meio vexado, virando-
se para dormir.
Uma ideia estava começando a surgir em minha mente: “Mas quem disse
que tem que ser assim? E se fosse o contrário?”
“O contrário como?”, perguntou Floyd.
“Exatamente, como. Continuamos presos ao como, quando o que interessa é o
quê. É porque o como realmente chama a atenção: uma ciência que só é aplicável
a uma quantidade inconcebivelmente grandiosa de pessoas.”
“Espere aí”, interrompeu Floyd. “Isso não é justamente o quê?”
“De modo algum. O quê, nesse caso, é algo bem mais simples e muito mais
interessante: uma ciência capaz de prever o futuro.”
“Quando é que vocês calam a boca?”
Resolvemos ignorar Sergente. Floyd perguntou: “E daí?”
“E daí que um ponto de partida possível pode ser, ao invés de considerar
um número muito grande de pessoas, fazer exatamente o contrário. Estudar um
número bem pequeno de pessoas.”
“Isso jamais daria certo. Vá por mim. Você não leu Asimov.”
“Mas pretendo ler. Não tenha dúvida.” Eu ainda ia comentar algo mais,
quando fui rudemente interrompido.
“Não basta perder dois dias de nossas férias nesse passeio mixuruca, quando
já estamos cansados de ver coisa muito melhor na Europa. Não basta ter que
ficar com dois marmanjos em uma barraca apertada, no frio, e ter que ouvir o
casal trepando no bem bom na barraca do lado. É preciso ainda gastar a noite
inteira com essa conversa de imbecil?” Sergente ficava muito mal humorado
quando estava com sono.
Choveu durante boa parte da noite. Quando acordamos, na manhã seguinte,
o chão estava enlameado e escorregadio. Tomamos um rápido café e logo
começamos a levantar acampamento. A julgar pela subida, era provável que
passássemos o dia inteiro descendo o Ciro. Ventava muito. Enquanto
estávamos arrumando as coisas, peguei uma caderneta que havia trazido comigo
e rabisquei algumas palavras nela. Depois guardei a caderneta no fundo da
mochila, por baixo das outras coisas.
A descida já começou árdua, lenta. Com o terreno molhado, éramos
obrigados a descer com todo cuidado, pois um passo em falso poderia
facilmente significar uma perna ou um braço quebrado, se não coisa pior. Cerca
de cem metros abaixo do topo, a trilha pela qual vínhamos descendo se
bifurcava. Eu estivera esperando que chegássemos a esse trecho. Apertei o
passo e ultrapassei Sergente, que ia à frente, um pouco antes de chegarmos à
bifurcação. Acho que até esbarrei nele. Sem um instante de hesitação tomei o
caminho da esquerda e fui descendo.
“Ei”, chamou Sergente. “Para onde você pensa que está indo?”
“Para casa, ué. Foi por aqui que viemos. A descida é por aqui.”
“Nada disso”, cortou Sergente. “Esta trilha pode ser a melhor na subida,
mas a outra é bem melhor para descer.”
“Tem certeza?” Nunca botei tanto mel na minha voz.
“É claro que sim. Eu estudei os mapas.” Sem dizer mais palavra, Sergente
disparou pela trilha da direta. Os outros foram atrás e eu também, desta vez no
fim da fila. No começo avançamos um pouco mais rapidamente, mas logo
começaram a surgir as dificuldades. Após um longo trecho em declive suave, a
trilha começou a estreitar e a apresentar evidentes sinais de má conservação.
Havia um tronco de árvore caído por cima do caminho a certo ponto. O mato
crescia abundantemente. Depois de duas horas andando, não havia mais como
distinguir a trilha. À medida que o caminho ia piorando, Sergente foi ficando
mais taciturno. Seu rosto era uma máscara obstinada. Isso digo com base na
imaginação apenas, pois em momento algum ele se dignou a olhar para trás.
Finalmente alguém, acho que Floyd, sugeriu que voltássemos. Sergente deu de
ombros: “Quem quiser voltar, que volte. O caminho melhora à frente.”
Porém logo ficou evidente que o caminho não iria melhorar. Não havia mais
para onde ir. Depois de mais de três horas de caminhada estafante, nosso grupo
se viu diante de uma ribanceira virtualmente intransponível. A não ser que
aprendêssemos a voar naquele instante, evento no qual nenhum de nós estaria
disposto a apostar. “Não tem jeito”, disse Spagnolo. Ele até então não havia se
pronunciado. “Vamos voltar.”
A volta foi ainda mais penosa. Nosso grupo seguia em silêncio. Sergente,
cerrando a fila, era a própria imagem da humilhação e da derrota. Digo isso
apoiado somente na imaginação, pois não me arrisquei a olhar para trás nem
por um instante. Quando chegamos novamente à bifurcação, a tarde já ia pelo
meio. Spagnolo sugeriu que pernoitássemos novamente no platô, deixando a
descida do Ciro para a manhã seguinte. A sugestão foi aceita sem
questionamentos. Na verdade a ideia já estava na cabeça de todos há um bom
tempo. Felizmente havíamos trazido provisões de sobra, por insistência de Rita,
que morria de medo que ficássemos perdidos na montanha e ainda por cima
sem comida.
Menos de vinte e quatro horas depois, portanto, estávamos de volta ao topo
do Ciro. Ninguém parecia muito disposto a conversar. Mas depois de descansar
por uns minutos, eu disse para Floyd: “Tenho uma surpresa para você.”
“Se não for um banho quente, não estou interessado.”
“Vamos lá”, insisti. “Tenho certeza de que você vai achar interessante. Tem
a ver com a nossa conversa de ontem.”
Floyd me lançou um olhar desconfiado: “O que é?”
“Está no fundo de minha mochila. Eu preciso que você mesmo pegue, para
que tenha certeza de que não há nenhum truque.”
A essa altura a atenção de todos já estava voltada para nós dois. Floyd pegou
a minha mochila e começou a esvaziar seu conteúdo, sempre olhando para
mim. Talvez meu tom de voz tivesse entregado alguma coisa. “É a minha
caderneta”, eu disse. “Ela está bem no fundo da mochila.”
Floyd finalmente encontrou. “Abra na última página escrita.”
Depois de ler o que eu havia escrito em italiano na caderneta, Floyd ficou
calado, simplesmente olhando para mim. Não mostrou os dentões em nenhum
vestígio de sorriso.
Rita era incapaz de suportar o suspense por mais tempo. Foi até Floyd,
tomou a caderneta da mão dele e leu em voz alta: “Psico-história aplicada,
experimento um. Após descer pela trilha errada, seremos obrigados a voltar e
acampar novamente no topo do Ciro.”
Rita ergueu os olhos para me fitar. Seu rosto expressava admiração e
espanto. Só por aquele olhar, tudo teria valido a pena.
Spagnolo, que também havia se aproximado, leu por cima do ombro de
Rita, como se quisesse confirmar. Depois perguntou: “Como é que você
sabia?”
“Ele planejou tudo”, disse Floyd. “Só não me pergunte como.”
“Como eu poderia?” Não pude evitar um sorriso arrogante. “Eu só fiz algo
bem simples, apesar de impossível: prever o futuro.”
“Prever o futuro, o meu ovo direito”, apelou Floyd. “Você tramou isso.”
“Mas é claro”, disse Spagnolo. “De todos nós, você é o único que já subiu o
Ciro antes. Você sabia que aquela trilha não iria dar em lugar algum, não é
mesmo?”
“Pelo que me lembro, insisti expressamente para que fôssemos pela outra
trilha.”
“É. Insistiu até demais”, Floyd voltou à carga. “Você sabia que Sergente
adora bancar o Tarzan e jamais iria aceitar uma sugestão sobre que trilha
seguir.”
“Sim, talvez eu tenha usado um pouco de psicologia, admito. Nada mais
justo. Afinal, como o próprio nome já diz, a psicologia aplicada deveria ser uma
parte fundamental da psico-história.”
Mas Sergente já estava pulando em meu pescoço. Não fosse por Spagnolo e
Floyd, que seguraram Sergente, e principalmente por Rita, que gritou
insistentemente para que eles assim o fizessem, o mais provável é que agora eu
não estaria aqui para contar. Afinal Sergente era bem mais forte que eu. Depois
de algum tempo os ânimos foram finalmente se acalmando. Embora todos
ainda estivessem irritados comigo, eu podia sentir uma admiração por baixo da
raiva. Especialmente em Rita. Eu estava exultante.
Isso aconteceu há quase trinta anos. Embora eu ainda não tivesse como
saber, já suspeitava. Aquela noite no Ciro havia sido definitiva para moldar os
rumos que eu seguiria dali por diante. No dia que se seguiu àquela primeira
noite, movido pelo pueril desejo de impressionar uma garota, eu havia
esbarrado em algo muito importante, algo que daria sentido à minha vida.
Eu havia decidido inventar o futuro.
CAPÍTULO 34 – GRANDE FORÇA

A perseverança é favorável.
O Trovão acima do Céu: a imagem da Grande Força. Assim o homem superior não trilha
caminhos que não estejam de acordo com a ordem estabelecida.
(I Ching – hexagrama 34)

Meu filho, o inspetor Teixeira, não quis beber comigo o excelente uísque
que eu lhe oferecia. Mas aceitou a água que servi bem à sua frente, não fosse ele
suspeitar que eu pretendia envenená-lo. Contudo a ideia me passou pela cabeça.
O próprio cuidado que tive ao servir a água demonstra isso.
Notei que sua mão tremia um pouco ao segurar o copo. Desgrenhado e sujo
de sangue como estava, era óbvio que havia acabado de sofrer um acidente.
“Você precisa de cuidados médicos. Urgentes.”
Ele limitou-se a balançar a cabeça em negativa. Fitava-me com o olhar fixo,
que começava a me incomodar. Resisti ao impulso de levantar da cadeira.
Apoiei as mãos no tampo da mesa, como se quisesse me assenhorear do fato de
estarmos, afinal, em minha própria casa, em meu território. Mas aquele olhar
dele era mesmo insistente.
“Não gostaria ao menos de limpar esses ferimentos, passar um antisséptico?
Talvez você queira usar o banheiro.”
“Você está mesmo ansioso para se ver livre de mim, não é mesmo? Não vai
ser assim tão fácil.” Quando Teixeira falou, sua voz estava surpreendentemente
firme. Menos para meu ouvido que já estava se tornando treinado em detectar
as menores inflexões no tom, variações de timbre e outros sinais reveladores na
voz do inspetor, de tanto assistir às sessões dele com Varlene. Eu já o conhecia
o suficiente para perceber que ainda não estava se sentindo tão seguro quanto
queria aparentar.
“Ei, calma no Brasil”, e ergui as mãos sorrindo, em um protesto bem
humorado. Eu o estava citando, mas ele não deu mostras de ter percebido.
“Não é nada disso que você está pensando. Só estou preocupado com você,
meu filho. Não vê que você está sangrando?”
“Me chame mais uma vez de filho, e não serei o único sangrando por aqui.”
“Peço que me perdoe. A sua chegada me pegou de surpresa. Você me
flagrou em uma situação muito embaraçosa...”
“Vamos manter essa parte fora da conversa. Eu não quero nem pensar
nisso. Foi uma cena muito feia. Não quero ter pesadelos quando for dormir.”
Teixeira começou falando ríspido, mas rapidamente soube converter a dose
extra de adrenalina para maior proveito de seu organismo. Ele acabou até
sorrindo sardonicamente.
“Não gostaria que você fizesse uma imagem errada de mim,” tentei.
“Não se preocupe com isso. Eu não ligo a mínima para você.”
Mergulhei em um silêncio ofendido. Teixeira também não disse nada por
um tempo. E então com gestos lentos, deliberados, ele estendeu a mão para
apanhar a bolsa de veludo sobre a mesa. Exultei intimamente ao vê-lo guardar
os diamantes no bolso. Mas algo no seu olhar não me permitia ficar totalmente
à vontade. Não era a expressão de quem havia acabado de ganhar uma fortuna.
E ele olhou bem nos meus olhos e disse:
“Sabe o que acabo de fazer?”
E então ficou claro para mim. Ou ao menos eu pensei que ficou. Achei que
era um ataque agudo de dor na consciência. Procurei cortar de antemão a
choradeira:
“Você simplesmente aceitou um presente de alguém que espera se tornar
seu amigo.”
Eu pensava que ele fosse falar alguma coisa sentimentaloide, alguma
ladainha do tipo acabo de vender a minha alma ou sinto como se estivesse cuspindo na
sepultura de minha mãe. Eu imaginava compreender bem o que ele estava
sentindo. Veio até minha casa como um anjo vingador e de repente, ao aceitar
os diamantes, percebeu que teria que enfiar as asas entre as pernas. Sorte a dele
que perder a dignidade só dói mesmo na primeira vez, depois a consciência
acostuma.
Eu estava crente que lia o inspetor Teixeira tão facilmente como se fosse o
horóscopo no jornal. Mas o que ele tinha na cabeça era algo bem diferente.
“Nada de presente. Nada de amigo. Acabo simplesmente de recolher as
evidências. E você acaba de cometer um grave delito. Tentativa de suborno a
um oficial da lei no cumprimento de seu dever. Considere-se preso em
flagrante.”
“Como é que é?”
“Vamos para a delegacia. Lá poderemos conversar bastante, não é isso o
que você quer? Além disso, você tem muito a explicar a respeito de umas
mortes que aconteceram hoje. E é por isso que eu vou cumprir o meu dever e
vou levar você preso.”
“Não seja ridículo.”
“E agradeça aos céus por isso. Agradeça por estar tão envolvido nas
investigações a ponto de seu nome ter sido praticamente esfregado na minha
cara durante boa parte do dia. É por isso que vou levar você para a delegacia.
Estou cumprindo meu dever.” Ele me olhou fundo nos olhos. “Não fosse por
isso, já teria enchido a sua cara de tiro.”
E foi naquele momento, senhoras e senhores, diante daquele olhar repleto
de intenções parricidas, que tive a minha epifania. Os acontecimentos do dia
finalmente começaram a fazer sentido.
“Foram os gêmeos, não foram? Eles que mandaram você. Até mim.”

Pretas avançam na segunda:


A perseverança será favorecida.

Dizem que para que algo novo surja, algo velho precisa deixar de existir.
Não deixa de ser curioso que Sergente tenha desertado poucos meses antes de
Isaac começar a tomar forma em nossas vidas.
Desde que voltamos do Brasil, as coisas nunca mais foram as mesmas com
Sergente. Ele não me perdoou pelo incidente no Ciro. Praticamente se excluiu
de nosso grupo. Continuava cumprimentando Spagnolo ou Floyd quando
esbarrava com eles na Universidade de Milão, mas deixou de frequentar os
Olimpianos. Os outros me culparam pelo afastamento de Sergente. Mas acho
que no fundo nenhum de nós gostava muito dele, com a exceção de Floyd. Era
raro que sequer lembrássemos dele.
Um belo dia Floyd começou a estagiar em uma empresa de computação. A
empresa estava envolvida na criação de uma máquina jogadora de xadrez, que
seria a representante italiana no WCCC, o World Computer Chess Championship,
Campeonato Mundial de Xadrez para Computadores.
É claro que isso incendiou a nossa imaginação. Durante os seis meses que
durou o estágio de Floyd, os Olimpianos não tinham outro assunto. Foi uma
mais do que bem vinda novidade, algo que nos impulsionou, que nos ajudou a
esquecer de vez a deserção de Sergente.
O projeto era uma tentativa de extrapolação do computador Belle, que havia
vencido o campeonato de 1980. Belle havia sido uma inovação absoluta para a
época, o Einstein dos computadores jogadores de xadrez. Até então, as
melhores máquinas eram capazes de calcular em torno de cinco mil jogadas por
segundo. Belle podia processar cento e oitenta mil lances durante o mesmo
período. A meta do senhor Scacchino era chegar a trezentos mil cálculos por
segundo. Uma meta bastante ambiciosa. Só o nome do computador que eles
pretendiam criar é que não era dos mais originais.
O projeto chamava-se Scacchino, que era também o nome da empresa, e
igualmente o nome do dono. Era quase uma predestinação aquilo, pois scacchi
em italiano significa justamente xadrez. Floyd estava trabalhando diretamente
com a equipe responsável pelo projeto. Por isso tivemos acesso a todas as
informações importantes. Não que eu ou Rita chegássemos a entender grande
coisa daquele amontoado de dados técnicos que Floyd despejava sem parar
toda vez que nos encontrávamos. Mas Spagnolo compensava com vantagem
tudo o que não éramos capazes de compreender. Ele e Floyd conversavam por
horas e horas a respeito.
Mas foi da metade não exata de nosso recente quarteto que surgiu o
primeiro movimento que acabou levando a Isaac. Primeiro foi Rita, em uma de
nossas noites de bebedeira, quando ela resolveu comentar: “Algum de vocês já
leu o jornalzinho do clube de xadrez? Traz um artigo sobre o número 64. Há
algumas coincidências interessantes.” Rita começou a enumerar nos dedos.
“Além de ser o número de casas no tabuleiro de xadrez, sessenta e quatro é
também o número de hexagramas do I Ching, o número de posições sexuais do
Kama Sutra e o número de demônios listados no Dicionário Infernal.
Estranho, não? Me pergunto se existe alguma relação entre esses livros.”
Floyd soltou sua risada cavalar: “Bom, entre o Kama Sutra e o Dicionário
Infernal, tudo a ver. Mas e o pobre do I Ching? É só um inofensivo oráculo
chinês, coitado.”
Aquilo me deu um estalo. Já há algum tempo eu vinha pesquisando tudo o
que tivesse a ver com previsão do futuro: astrologia, runas, búzios, tarô, folhas
de chá, paranormais etc. etc. etc. Também já havia lido algo sobre o I Ching,
embora ainda não tivesse me aprofundado tanto quanto iria fazer em breve.
Mas já sabia o suficiente para dizer: “Vocês bem que podiam tentar aplicar de
alguma forma o I Ching nesse computador que estão construindo. Afinal ele é
baseado em um sistema binário, da mesma forma que os computadores, não é
mesmo?”
Spagnolo ficou imediatamente interessado: “Como é que é?”
“Cada hexagrama do I Ching é composto por seis linhas, certo? Pois bem,
cada linha possui uma polaridade, que pode ser positiva ou negativa. É
exatamente como no sistema binário, só que ao invés de chamar de 0 e 1, os
chineses chamaram de yin e yang, que são os polos negativo e positivo.”
A partir daí a conversa pegou fogo, alimentado por muitas canecas de vinho.
Fiquei feliz e orgulhoso por poder participar mais ativamente, ao invés de ficar
só escutando, como vinha fazendo quando o assunto era computadores.
Spagnolo parecia cada vez mais entusiasmado, e acabou contagiando a todos
nós. Quando já estávamos para sair, ele me perguntou:
“Onde posso saber mais a respeito desse I Ching?”
“Eu tenho um exemplar em casa. Empresto o meu.”
Passei o livro para ele no dia seguinte. Depois disso, Spagnolo praticamente
sumiu durante duas semanas. Quando encontrávamos Rita em La Sirena, ela
falava em um tom que era quase de acusação:
“Ele agora não sai mais do laboratório da faculdade. Está cismado com essa
história de I Ching que você inventou.”
Quando finalmente deu as caras, Spagnolo estava mais magro, com o rosto
encovado e os olhos brilhantes. Ele nem perdeu tempo em nos cumprimentar:
“Acho que é possível. É possível, sim.”
“Não vá me dizer que você quer que eu use o I Ching no Scacchino”,
zombou Floyd. “Nunca que eu teria coragem de sugerir isso para meu
supervisor. Ele cancelava o meu estágio na hora.”
“É muito melhor que isso”, atalhou Spagnolo. “Não estou falando em usar
o I Ching para ajudar uma máquina a jogar xadrez. E muito menos em passar
essa ideia para a empresa onde você trabalha.” Ele fez uma pausa e olhou
seriamente para cada um de nós antes de acrescentar: “Estou falando em nós
mesmos usarmos o I Ching e o xadrez combinados para construir uma
máquina capaz de prever o futuro.”
“Como?” Berramos eu, Floyd e Rita ao mesmo tempo.
“Parece loucura, mas acho que descobri uma maneira de fazer isso. Só que
vai custar muito dinheiro.”
O resto, como dizem, é história. Não sei como conseguimos conciliar os
estudos com a atividade frenética que nos tomou a todos durante todo o ano
seguinte. Floyd, pelo que me lembro, acabou tendo que trancar a maioria das
matérias. Ele e Spagnolo arcaram com a maior parte do trabalho duro. Eu e
Rita ficávamos na maior parte do tempo bisbilhotando e dando palpites que
geralmente sequer eram ouvidos. Não que eu estivesse me queixando. Esse foi
o período em que mais me aproximei de Rita.
O nome Isaac, sugestão de Floyd, foi aprovado unanimemente. A maior
parte da matemática e da programação envolvidas estava fora de meu alcance.
A base para tantos cálculos complexos, no entanto, foi até bem simples.
O que primeiro chamou a atenção de Spagnolo no I Ching foi a ideia
oriental de ciclos recorrentes, que se repetiriam na vida humana da mesma
forma que as estações do ano se repetem na vida do planeta. E depois foi o
conceito de linhas fixas e móveis.
“Cada um dos sessenta e quatro hexagramas do I Ching é formado por seis
linhas, e cada linha pode ser yin ou yang, como você bem observou, Fortunato.
Só que o I Ching representa um passo além do sistema binário. Porque as
linhas podem ser também fixas ou móveis. Ou, para usar outra terminologia,
podem ser novas ou velhas. Reparem.”
Spagnolo estava tão absorto em sua explanação que nem notou que estava
rabiscando na toalha de nossa mesa em La Sirena. Ele começou fazendo uma
linha contínua:

“Essa é uma representação de uma linha yang fixa ou nova. À medida que o
tempo passa, a linha envelhece e se torna móvel.”
Ele desenhou então um pequeno círculo no centro da linha:

“Ou seja, ela irá mudar para seu oposto e se transformar em uma linha yin.”
Desta vez ele traçou uma linha interrompida na toalha de mesa:

“A linha yin, por sua vez, ao envelhecer também ficará móvel, o que é
representado dessa forma.”
“Essa linha yin móvel irá se transformar em uma linha yang fixa,
completando o ciclo.”

“E daí?” Floyd perguntou afinal.


“Não percebem? O I Ching é como um sistema binário, acrescido do
elemento tempo.”
“E daí?” Voltou a dizer Floyd depois de um curto silêncio.
“E daí que é essa característica que torna o I Ching um sistema dinâmico de
predição. Com a passagem do tempo as linhas envelhecem e se transformam
em seus opostos. Isso faz com que um hexagrama inicial, qualquer que seja ele,
vá se transformando sucessivamente em outros hexagramas.”
“Não é bem assim que se joga o I Ching”, timidamente arrisquei-me a dizer.
Spagnolo sacudiu a mão com desprezo. “Esqueça isso. É brincadeira de
criança. Estamos falando aqui é da programação, do mainframe do I Ching.”
Diante da cara que nós fazíamos, Spagnolo teve um gesto de impaciência e
voltou a desenhar na toalha de mesa:

“Esse é o hexagrama 2, chamado de Receptividade, formado só por linhas yin.


É o princípio passivo feminino, o polo negativo, o grande número zero. Agora
vamos mudar apenas a primeira linha. Imaginem que a primeira linha envelhece
e se torna móvel. Isso acaba gerando um novo hexagrama, o capítulo 24. Esse é
conhecido como Retorno.”
“Agora a segunda linha envelhece e fica móvel. Teremos um novo
hexagrama com significado totalmente diferente dos outros dois. É o
hexagrama 19, Aproximação.”

“E agora vem a melhor parte. Olha o que acontece quando a terceira linha
também envelhece e muda.”

“Esse é o hexagrama 11, Paz. Também traduzido frequentemente como


Prosperidade. Estão percebendo?”
“Não”, respondemos os três em uníssono.
“Está claro que vai dar certo o nosso plano. Um brinde a isso.”
“Você está bêbado.”
“Olha quem está falando.”
“E quem não está?”
“Um brinde a isso.”
“Sem dúvida.”
Acho que até nos abraçamos naquele momento. Éramos jovens, ébrios e
felizes. O mundo estava prestes a se curvar aos nossos pés.
“Ainda não entendi como você está pensando em meter o xadrez no meio
disso aí”, quis saber Rita.
Foi então que Spagnolo contou sua visão do problema do cavalo. Também
chamado de passeio do cavalo, é uma antiga diversão de enxadristas e
matemáticos. Consiste no seguinte desafio: colocando um único cavalo em
qualquer ponto do tabuleiro vazio, você é capaz de percorrer todas as casas sem
repetir uma sequer?
Existem duas formas de solucionar esse problema. Na primeira delas, o
cavalo termina em uma casa a partir da qual ele ataca a casa que foi o seu ponto
de partida. Essa solução é chamada de passeio fechado, pois com mais um
movimento o cavalo retorna ao início e assim fecha o ciclo. Existem vinte e seis
trilhões e meio de variações do passeio fechado. Esse é um modelo
relativamente simples, se comparado ao passeio aberto, que é quando o cavalo
termina em uma posição de onde não pode voltar para o início. Ainda resta por
ser calculado o número exato de passeios abertos possíveis.
Esse foi o insight genial de Spagnolo:
“Imagine um sistema composto pelos 64 hexagramas do I Ching, tal como
se fossem as casas de um tabuleiro de xadrez. Se partirmos de um hexagrama
qualquer, podemos ter infinitas sequências em que os hexagramas vão se
sucedendo, sem jamais repetir um, até retornar ao hexagrama de origem.”
“Como se fosse um passeio fechado do cavalo”, murmurou Rita.
“Exatamente! Agora vocês estão pegando o espírito da coisa. Aposto que se
encontrarmos uma maneira de determinar qual será o hexagrama inicial de uma
sequência, teremos todo um encadeamento de acontecimentos determinados
pelas linhas.”
“Você está começando a não fazer sentido novamente, meu bem.”
“Não importa! A questão é: vocês estão comigo nessa ou não?”
É claro que estávamos. Spagnolo disse que a nossa brincadeira iria custar
muito dinheiro. O mais caro eram as peças para o computador. No início da
década de 1980 os computadores eram artigos de luxo, de uso quase que
exclusivo de grandes empresas. Ken Thompson, o visionário criador do
computador Belle, havia gasto cerca de vinte mil dólares só em chips. Nós
acabamos gastando o dobro. A maior parte fomos eu e Floyd que conseguimos.
Dinheiro não faltava para nossos pais.
E um belo dia o projeto foi concluído. Isaac finalmente estava pronto.
Lembro exatamente da data: 12 de agosto de 1983.

Pretas avançam na quarta:


O remorso desaparece. A cerca se abre; não há impedimentos. O poder depende do eixo de um
carro grande.

“O que você sabe sobre esses gêmeos?”


Pela reação de Teixeira, era óbvio que o assunto mexia com ele.
“Calma, hem”, respondi erguendo as mãos, procurando apaziguá-lo. “Não
precisa sacar a arma. É isso o que eles querem que você faça. Que você perca o
controle.”
“Mas que conversa é essa? De quem é que você está falando?”
“De Júlia e Kim, ora. Quem mais? É claro que você sabe de quem estou
falando. Esteve procurando por eles durante os últimos dois anos.” A essa
altura, confesso que já estava começando a sentir um pouco de medo. Se Júlia e
Kim estavam tramando algo sem que eu soubesse, isso só podia significar uma
coisa. Meu nome estava na lista deles.
“O que você sabe sobre esses dois? É melhor desembuchar de uma vez.”
Meu interlocutor, com o cenho franzido, aguardava impaciente uma resposta.
Olhando para ele, aquele homem que era carne da minha carne, afinal
compreendi qual era o monstruoso plano dos gêmeos. Eles não estavam me
trocando por migalhas, não. Era típico daqueles dois, essa megalomania. Júlia e
Kim queriam trocar minha cabeça pelo Grande Prêmio. Por algum motivo, isso
abalou minha autoconfiança.
“Diga-me...” e por um instante minha boca pendeu aberta, a língua
oscilando como um trapezista indeciso no meio de um salto mortal. Pois eu
estava quase chamando Teixeira de filho novamente. Mas consegui me conter a
tempo. “Inspetor, permita-me lhe fazer uma pergunta. Por acaso notou se havia
algum carro-forte nas redondezas?”
Sem poder controlar a ansiedade, levantei da cadeira e fui para perto da
janela. Abri a janela para poder espiar melhor dos dois lados da rua. Não avistei
nenhum carro-forte.
“Por que essa pergunta?”
“A Fábrica possui uns equipamentos... muito especiais.” Voltei a sentar na
cadeira. Eu precisava transformar Teixeira em aliado se quisesse escapar dessa.
“São geralmente transportados dentro de carros fortes. Como disfarce, você
entende.”
“E o que é que esses equipamentos fazem?”
“Não há tempo para explicar agora. E acho que você não iria acreditar, de
qualquer forma.”
“E por que é que você está com tanto medo de que haja um desses por
aqui?”
Eu respirei fundo. “Se houver um equipamento desses por aqui hoje, isso
significa que serei assassinado.”
Isso pareceu diverti-lo. “Ah, então é isso que esses carros fortes fazem. São
máquinas misteriosas para assassinar pessoas.”
“As torres não matam ninguém”, eu cortei impacientemente. “Elas só fazem
a morte gerar lucro. Muito lucro.”
“Torres?”
“É como chamamos os carros-fortes. Escute...”
“Não, escute você. Para que essa agitação toda? Se não são essas torres, ou
sei lá o que, quem é que vai querer lhe matar, afinal?”
“Pensei que fosse óbvio. É você, Alberto. O meu assassino é você.”
CAPÍTULO 36 – OBSCURECIMENTO

Na adversidade, o melhor é ser perseverante.


A luz mergulhou na terra: a imagem do Obscurecimento. Assim age o homem superior em
meio à multidão. Ele oculta sua luz, mas ainda assim brilha.
(I Ching – hexagrama 36)

Ganhamos o nosso pão na Fábrica


com o máximo de respeitabilidade.
O nosso trabalho é que mantém
a sociedade funcionando.
Somos nós que construímos as casas, as escolas,
os hospitais, as ruas, os shopping centers.
Somos nós que plantamos o alimento
e criamos a carne,
cuidamos da água do céu e do mar.
Somos nós que vendemos e compramos
tudo o que se compra e vende
em busca da felicidade.
Somos nós que emprestamos a juros
e financiamos a perder de vista.
Somos os guardiões da tecnologia,
os que decidem a guerra e a paz.
Somos nós que escrevemos as leis,
julgamos e fazemos cumprir.
Somos nós que salvamos o mundo
e divulgamos a verdade.
Somos os inculcadores de valores,
que definimos o que é o Bem e o Mal,
por isso nossas ações nunca poderão ser erradas.
Somos nós que tomamos conta de tudo.

Pretas avançam na primeira:


Obscurecimento em meio ao voo. Ele abaixa as asas. O homem superior não come por três
dias em suas buscas. Mas ele tem para onde ir. O anfitrião tem ocasião para fofocar a seu
respeito.

Era a noite da estreia oficial de Isaac. Estávamos todos em roupa de gala. A


sugestão de Floyd, feita em tom de galhofa, acabou entusiasmando. Havíamos
providenciado também quatro taças, uma garrafa de bom champanhe em um
balde de gelo e outras esperando a vez. Afinal, teríamos muito a comemorar
caso a experiência fosse um sucesso.
“Na verdade, só o que vamos testar de início é se os circuitos estão
funcionando.” Floyd tentava não parecer nervoso. “Vamos alimentar o
computador com alguns dados e observar como ele reage. O objetivo do teste é
meramente checar se Isaac é capaz de processar as informações que daremos a
ele.”
Protestei na hora: “Pensei que fôssemos prever o futuro.”
“Isso é o que Isaac fará”, respondeu Spagnolo, sério. Mas logo abrandou sua
expressão com um sorriso. “Isso é, se tivermos apertado todos os parafusos
nos lugares certos.”
“Eu ainda não entendi porque cada um de nós teve que escolher uma
notícia no jornal”, quis saber Rita.
“Eu já te expliquei isso, amor.”
“Ah, então explique novamente! Pode me chamar de burra, mas ainda não
consegui entender. De qualquer modo não temos que esperar até Floyd
terminar o que quer que ele esteja fazendo?”
“Eu estou justamente transformando essas notícias de jornal em dados,
mocinha”, Floyd falou em um tom bonachão, como se fosse alguém bem mais
velho. Depois voltou a falar com sua voz normal: “Ou seja, estou digitando
símbolos matemáticos que possam ser lidos por Isaac. Spagnolo, meu querido,
tenha a bondade de mais uma vez esclarecer a ignorância dessas duas pobres
criaturas.”
“Está bem. Bom, como vocês sabem, o ponto de partida para Isaac foi o
Scacchino, que por sua vez foi baseado em Belle. Tanto Belle quanto Scacchino
são máquinas que jogam xadrez. E como é que uma máquina joga xadrez?
Primeiro, alimentamos o computador com uma informação, ou seja, uma
jogada. Digamos que estamos jogando com as brancas e vamos começar a
partida. Então informamos ao computador a jogada que fizemos: peão branco
na casa quatro da rainha, d4. Daí o computador processa as ene jogadas
possíveis e escolhe a resposta com a maior probabilidade de êxito: cavalo da
dama em c6.”
“Há controvérsias”, resolvi intervir. “Eu continuo preferindo o tradicional
peão em d5 como resposta.”
Spagnolo fez um gesto com a mão como se afugentasse uma mosca:
“Fortunato, não seja tão chato. Isso não tem a menor importância. Não
estamos falando sobre qual é a melhor abertura, mas sobre como funciona o
xadrez com um computador.”
“Continue, amor. Não deixe que Fortunato distraia você”, Rita disse e me
deu língua. Depois sorriu.
“Pois bem. O funcionamento de Isaac, a princípio, é similar ao de
Scacchino. Primeiro alimentamos ele com dados. Depois, vamos esperar para
ver o que ele vai fazer com esses dados. Só que ao invés de lances de xadrez,
estamos usando notícias de jornal.”
“Ah”, disse eu.
Rita disse: “Mas por que notícias de jornal?”
“Funcionaria do mesmo jeito com outros tipos de informação, eu acho.
Talvez com dados pessoais nossos, informações a nosso respeito. Mas por isso
mesmo achei melhor começarmos com essas informações neutras, retiradas ao
acaso de um jornal. Não sei quanto a vocês, mas eu prefiro primeiro saber que
tipo de previsão Isaac fará antes de querer saber sobre o meu próprio futuro.”
Mais cedo naquele mesmo dia Spagnollo chegou exibindo um exemplar do
Corriere della Sera, cujas páginas ele distribuiu a esmo entre nós. “Esse jornal é de
hoje. Eu quero que cada um escolha a primeira notícia em que bater os olhos.”
“Presidente assina decreto para combater calamidades”, leu Rita.
“Acidente em Siena vitima Artemio Franchi”, foi a minha notícia.
“Satoru Sayama anuncia aposentadoria de Tiger Mask”, foi a vez de Floyd.
Só faltava Spagnolo: “Muito bem. E eu escolho essa: estreia nos Estados
Unidos o filme Smokey and the Bandit parte três. Pronto, Floyd. Agora você já
tem a matéria-prima para os dados de nosso teste com Isaac.” Ele voltou-se em
minha direção e sorriu, magnânimo. “Fortunato, meu caro, acho que você vai
querer registrar a data de hoje: 12 de agosto de 1983. Esse é o dia de nossa
primeira consulta a Isaac.”
Floyd recolheu o jornal de nossas mãos e marcou com uma caneta as
manchetes que haviam sido escolhidas. Seu trabalho agora era converter aquelas
sentenças em italiano para a série de fórmulas e comandos que consistiam na
linguagem de Isaac. “Isso vai levar algumas horas. Que tal se vocês voltarem à
noite? Tragam champanhe e um traje de gala para mim. Essa noite merece
comemoração.”
Nos últimos meses eu e Rita praticamente havíamos nos mudado para o
apartamento que Floyd e Spagnolo dividiam na Via Laghetto, perto da
Universidade de Milão. Eles já estavam acostumados a nos expulsar sem
cerimônia quando precisavam trabalhar seriamente. Para não ficar sem fazer
nada, Rita sugeriu que acatássemos as palavras de Floyd ao pé da letra. É claro
que concordei, só para estar com ela. E lá fomos passear pelas lojas, com o
pretexto de comprar o champanhe e alugar as dinner jackets. Foi uma tarde muito
agradável. Devo essa a Floyd.
Por mais tempo que tivéssemos gasto nas compras, quando voltamos Floyd
ainda não havia acabado. Rita assim que chegou partiu para os braços de
Spagnolo, mas ele estava tão envolvido no que estavam fazendo que em vez de
continuar beijando-a, preferiu retomar a conversa sobre Isaac: “Tivemos uma
sorte incrível essa semana. Pois vocês sabem que já estávamos bem avançados
nessa interface do xadrez com o I Ching, e que isso possibilitou que
desenvolvêssemos a maior parte da linguagem que usamos com Isaac. Mas
ainda havia alguma coisa faltando. Em um certo ponto o sistema binário
simplesmente entrava em colapso.”
“Nossa, amor, lembro bem de sua aflição.”
“Pois foi você, meu anjo, como sempre, que me trouxe a inspiração.” Nem
todas as oportunidades de beijar Rita eram desperdiçadas por Spagnolo.
Finalmente ele prosseguiu: “Rita me presenteou com um belo livro sobre
história do xadrez. E foi assim que lembrei que o xadrez foi originado de um
jogo indiano bem mais antigo, o Chaturaji. Isso significa literalmente quatro reis.
Era disputado por quatro jogadores ao mesmo tempo. E foi então que surgiu a
resposta que estávamos buscando: quatro. A resposta é quatro.”
“Como assim, quatro?” Rita mesma preencheu a deixa natural.
“Ficamos muito obcecados pelo sistema binário no início. Talvez isso tenha
ocorrido pela própria associação que estávamos fazendo com o xadrez, um
jogo para dois participantes. Yin e Yang. Mas esse sistema só é binário na
aparência. Pois se você tem Yin fixa e Yin móvel, Yang móvel e Yang fixa, na
verdade você tem um sistema com quatro elementos. Exatamente como no
Chaturaji.”
Spagnolo ficou por um momento só balançando a cabeça e olhando sério
para nós, como se realmente acreditasse que estávamos entendendo tudo. Seu
tom de voz tornou-se solene: “Não foi só o nosso problema com o sistema
binário que foi solucionado. Para montar a matriz de quatro entradas, acabamos
esbarrando em um conceito realmente revolucionário. Pois em tese, se nós
tivéssemos a montanha de dinheiro para comprar os chips, poderíamos
construir até uma matriz de sessenta e quatro entradas. Dá para imaginar isso?”
“Dificilmente, meu bem”, disse Rita. “Mas podemos imaginar você
imaginando.”
“Então foi por isso que você quis que cada um de nós escolhesse uma
notícia no jornal”, disse eu. “Você precisava exatamente de quatro notícias.”
“Isso mesmo.”
“Vocês não acham curioso que nós sejamos em número de quatro? Uma
coincidência incrível. Os quatro reis do Chaturaji.”
“Três reis e uma rainha, por gentileza.”
“Pela vitória do Rei! Pela honra da Rainha!”
“Está pronto”, finalmente interrompeu Floyd, exultante. Ele havia acabado
de digitar os dados. “Já estou convencido de que a parte mais difícil não é
converter as notícias de jornal em fórmulas matemáticas, mas ter que jogar
essas fórmulas todas dentro de Isaac.”
“Fanfarrão”, disse Spagnolo. “Então, está feito.”
“E agora?”
“Agora nós aguardamos, minha linda. Não deve demorar muito.”
Demorou bastante. Quase uma hora. A primeira garrafa de champanhe já
estava vazia quando Isaac finalmente soltou um breve apito. O monitor
começou a se encher de caracteres verdes. Depois de algum tempo, tive que
dizer: “Não dá para entender nada disso aí.”
“Tenha dores mais brandas, Fortunato. Até parece que você nasceu de oito
meses.”
“Isso que você está vendo na tela são as representações gráficas das
fórmulas matemáticas que nós utilizamos para compor a linguagem de Isaac. É
assim que nós conversamos com ele.”
“E como é que nós, mortais comuns, podemos entender o que está escrito
aí?”
“É só traduzir essa sequência de símbolos para o italiano, da mesma forma
que eu passei as reportagens do Corriere della Sera para a linguagem de Isaac.”
Por alguns instantes ninguém disse nada. Floyd então falou, como se
justificasse: “Essa tradução final é toda feita pelo próprio Isaac. É toda
automática. Passar das fórmulas para o italiano é relativamente simples.
Transformar uma notícia de jornal em matemática é bem mais complicado. Nós
bem que tentamos fazer Isaac cuidar dessa parte também. Ainda não
conseguimos solucionar os erros de tradução e as ambiguidades de forma
satisfatória. Por isso é que eu tive que fazer no braço. Mas isso é só uma
questão de tempo, uma questão de programação. Aguardem o Isaac II.”
“Depois eu é que nasci prematuro!”
Demos umas risadas chochas e novamente fechamos as matracas. Por fim
Rita quebrou o silêncio: “É muito incrível isso. Como vocês fizeram?"
“Com muita dedicação e um grande toque de genialidade!” Foi a resposta
imediata de Floyd.
“Realmente é preciso ser um gênio para entender essa linguagem
matemática de Isaac!” Eu também quis gracejar.
“Mas eu não estava falando de mim, meu caro. Pois não há dúvida alguma a
respeito de quem é o gênio por aqui.”
Eu e Rita imitamos o exemplo de Floyd e também começamos a bater
palmas para Spagnolo. Ele retribuiu os aplausos, sorridente.
“Sabem a melhor parte? Estamos só começando. Às vezes as possibilidades
até me assustam.”
“Você, assustado, amor? Não consigo imaginar essa cena.”
O herói sorriu e beijou a mocinha. Depois fez sua melhor pose de herói e
proclamou: “Isaac será capaz de feitos inacreditáveis. Vocês vão ver. Nós
estamos cruzando o xadrez com o I Ching. Misturando dois sistemas
virtualmente infinitos, o jogo dos reis e o livro das mutações. Isso é sem
precedentes, senhora e senhores. Estamos dando origem a um sistema
inesgotável como a própria vida.”
“Fiu!”
“Spagnolo para presidente da Itália!”
“A Itália vai ficar bem, governada por um espanhol!”
“Vocês estão bêbados!”
“Olha quem está falando.”
“Um brinde a isso.”
Dessa vez, com certeza nos abraçamos. Éramos jovens, ébrios e felizes. O
futuro estava prestes a se descortinar diante de nós. Até Isaac se manifestou.
“Está pronto!” Floyd bradou em triunfo.
Fomos todos correndo para perto de Isaac. As palavras verdes na tela eram
perfeitamente legíveis:

VENTO FORTE

DOIS COMPOSITORES DA CORTE TOCAM MÚSICA CELESTIAL

QUATRO CAVALEIROS JOGAM PEDRAS NOS GAROTOS IMBERBES

O GENERAL CORTEJA A JOVEM DONZELA POR TRÊS MESES

O REI FAZ SUA VOZ ATRAVESSAR CÉUS E MARES

Como ninguém se manifestava, falei eu: “É impressão minha ou isso é uma


poesia? Vocês criaram um computador que escreve poemas.”
Floyd olhou-me com fúria, o olhar da galinha protegendo o pintinho.
“Fortunato, por que você não experimenta se enfiar em algum canto escuro e
depois se emparedar lá dentro?”
“Atualmente the wall tem muito mais a ver com você, meu caro.”
O lado trocista de Floyd acabou vencendo. “Touché”, ele disse mostrando
com alegria os dentes que há poucos instantes eram exibidos com raiva.
Só nesse instante Spagnollo se pronunciou: “Jornais”, ele disse, e foi como
uma palavra mágica que o houvesse despertado de um transe. “Amanhã bem
cedo precisamos comprar todos os jornais que pudermos.”
Não só compramos e lemos, como assistimos a todos os noticiários da tevê
e do rádio que conseguimos. Chegamos a pegar um rádio emprestado com um
vizinho de Floyd, para podermos monitorar dois noticiários ao mesmo tempo.
Enquanto isso um terceiro assistia os canais da tevê e o quarto e último
pesquisava nas páginas impressas dos jornais do dia. O rodízio nas funções não
tornava a tarefa menos enfadonha e estafante. Pois essa foi a nossa rotina não
só no dia seguinte, como no próximo e também no outro depois desse. Depois
disso o ritmo deu uma diminuída, mas continuamos o monitoramento por
ainda mais três dias. Com muita paciência e persistência, fomos montando o
mosaico para a interpretação da primeira profecia feita por Isaac.
Movido por uma intuição profunda, Spagnolo resolveu seguir a pista
contida no primeiro verso:

DOIS COMPOSITORES DA CORTE TOCAM MÚSICA CELESTIAL

“Procurem por notícias relacionadas com música ou músicos de alguma


forma.”
Eu sempre começo a ler o jornal pela seção do obituário. Foi por isso que
acabei encontrando a primeira peça do brinquedo de montar: “Escutem só essa:
faleceu nas primeiras horas de hoje o compositor tcheco Zdeněk Liška. Ei, esse
cara era bom mesmo. Foi ele que fez a trilha sonora do filme Jabberwocky, vocês
lembram?”
Não demoramos a concordar que Liška podia ser um dos compositores da corte
citados no primeiro verso. “É, faz sentido”, riu Floyd. “Ele agora está tocando
harpa, deitado pelado em cima de uma nuvenzinha. É isso o que significa tocar
música celestial. Mas isso só vale se aparecer um segundo compositor morto. A
mensagem de Isaac fala de dois compositores da corte. Então eu pergunto:
onde está o segundo?”
Omer Létourneau, compositor, maestro, pianista e organista canadense, veio
a falecer no dia seguinte, em 14 de agosto. Mas a notícia do fato só saiu
publicada dois dias depois.
Bem antes disso já havíamos elucidado o significado do segundo verso:

QUATRO CAVALEIROS JOGAM PEDRAS NOS GAROTOS IMBERBES

Foi importante o estímulo de Spagnolo para que ficássemos atentos a


notícias sobre música. Pois foi assim que a matéria sobre a turnê de estreia de
uma nova banda acabou chamando a atenção de Floyd: “Ei, um grupo de rock
chamado Metallica se apresentou em Milwaukee, nos Estados Unidos, no dia
13 de agosto, no clube Mickey’s.”
“E daí?”
“E daí que o maior sucesso dos caras é uma música chamada The Four
Horsemen, os quatro cavaleiros.”
“Esperem aí! Jogar pedras pode ser a maneira de Isaac dizer que é um show
de rock.”
“E onde mais os garotos imberbes estariam senão em um lugar chamado
Mickey’s?”
“Rá! Essa foi boa! Um brinde a isso!”
Nesse momento inicial, é claro que estávamos nos divertindo. Era como
uma caça ao tesouro. Embora nem sempre estivéssemos muito seguros de que
algo daquilo fizesse realmente sentido.
Um exemplo disso foi o terceiro verso, que deu trabalho para ser decifrado:

O GENERAL CORTEJA A JOVEM DONZELA POR TRÊS MESES

Já no final da semana, em uma inspiração nascida do desespero, fui procurar


na seção de horóscopo. Peguei para folhear novamente todos os jornais da
semana, pois não havíamos jogado nenhum fora. Mas dei sorte logo no
começo.
“Aqui está! Só pode ser isso. Marte entrou no signo de Virgem em 13 de
agosto de 1983. Entrará no próximo signo, Libra, somente daqui a três meses.
Só pode ser isso.”
O quarto e último verso também só foi deslindado em retrospecto:

O REI FAZ SUA VOZ ATRAVESSAR CÉUS E MARES

Não lembro ao certo quem acabou descobrindo sobre o Reagan. Às dez da


manhã de 13 de agosto de 1983 o presidente dos Estados Unidos, Ronald
Reagan, fez um discurso via rádio para seus companheiros americanos. Ele
justificou os interesses do governo americano nos assuntos de El Salvador,
Nicarágua, Costa Rica e Honduras, e aproveitou para denunciar as intervenções
de Cuba e da arqui-inimiga União Soviética. Falando diretamente do hotel
Marriott na cidade de El Paso, Texas, o presidente transmitiu sua voz bem
modulada de ator para todo o território americano e além.
Faltava agora só decifrar o título do estranho poema composto por Isaac:
Vento Forte. Levou quase uma semana. Em 19 de agosto os jornais do mundo
todo noticiavam os estragos causados pelo furacão Alicia na América do Norte,
no dia anterior. O furacão havia atingido a costa do Texas, matando vinte e
duas pessoas e gerando prejuízos de quase quatro bilhões de dólares.
“Está pronto”, disse Floyd. Pela cara dele, parecia que estava engolindo
alguma coisa fedorenta e ainda viva. “Terminamos a experiência. Isaac é capaz
de prever o futuro. Só não sei em que isso nos serve.”
“Realmente”, disse eu. Minha cara não devia estar muito melhor. “Não há
muita utilidade em saber de um futuro que só conseguimos entender depois
que já virou passado.”
“Ei, que desânimo é esse”, foi o que disse Rita, linda como sempre. “Toda
grande invenção passa por período de ajustes, não me digam que vocês
desistem diante do primeiro desafio.”
Floyd vestiu a carapuça: “Caríssima, lhe asseguro que esse não é o primeiro
desafio que enfrento desde que o projeto começou. Nem o primeiro, nem o
décimo primeiro. Mas isso já está além de minha capacidade.”
“Não seria talvez uma questão de afinar a linguagem de Isaac?” Rita insistia.
“Se de alguma maneira for possível deixar a sua linguagem mais precisa...
menos poética, digamos.”
Spagnolo resolveu intervir: “Não há como a linguagem de Isaac ser
diferente, meu bem. Afinal, nós usamos as sentenças do I Ching para compor o
seu vocabulário.”
“Mas por que vocês fizeram isso?”
A pergunta de Rita foi tão direta que pegou Spagnolo de surpresa. Ele ficou
sem ter o que dizer por alguns segundos. Eu não desperdicei a oportunidade de
partir em seu auxílio. E se possível aliviá-lo do fardo das atenções constantes de
Rita.
“O I Ching é um sistema fabuloso. É um dos livros mais antigos que
chegaram até nós, sabia?” Eu sorri para Rita. Ao virar a cabeça, dei uma
piscadela para Spagnolo. “E suas origens podem ser ainda mais remotas. Há
relatos de uma máquina antiquíssima que era capaz de prever o futuro.
Chamava-se Ho Tuh, se não me engano, um nome que significa mapa do rio.
Sempre achei esse nome interessante.”
“Sim, mas e daí?” Rita sorriu. Ela percebeu que eu estava enrolando, mas
fosse qual fosse o seu motivo, resolveu me dar corda.
“Já chego lá. Confúcio dizia que o homem é um ser que anda de costas, pois
só consegue enxergar o que ficou para trás: o passado. Graças ao I Ching, o
homem é capaz de vislumbrar o que está à frente, ou seja, o futuro. O que
estou querendo dizer é que há algo único no I Ching, algo que não é possível
determinar com clareza, mas certamente algo muito poderoso. É como se fosse
uma espécie de fresta no tempo, a partir da qual é possível descortinar o
futuro.” Vi que Rita começava a se impacientar. “Sei que parece muito
esotérico para seus ouvidos, Ritinha. Mas o Livro das Mutações já vem sendo
usado há milênios, nas situações mais diversas. Imagine que os chineses já
utilizaram o I Ching até para prever variações no preço das sacas de arroz.”
Foi a reação de Spagnolo que primeiro me chamou a atenção. Ele moveu a
cabeça bruscamente para me fitar. Havia um brilho diferente em seus olhos. E
então a ideia ocorreu também a mim. Fomos correndo até a mesa onde
estavam empilhados os diversos jornais que havíamos consultado. Mas foi
Spagnolo quem primeiro encontrou o jornal do dia.
“Vamos tentar novamente”, disse ele. Havia uma emoção incontida
tremulando em sua voz. “Dessa vez, vamos utilizar as cotações da bolsa de
valores.”
A essa altura já estávamos todos ao redor de Spagnolo. Ele não demorou a
encontrar as cotações do dia na seção financeira.
“Cada um escolhe uma.”
Rita foi a primeira:
“Escolho o óbvio, petróleo.”
“Fico com essa empresa de automóveis”, eu disse.
“Meu voto vai para a editora Ultra, com suas edificantes publicações”, foi a
vez de Floyd.
“Mas eles só publicam pornografia”, protestou Rita.
“Como eu disse, são publicações edificantes. Muito edificantes.”
“Não importa”, atalhou Spagnolo. “Servirá para nosso propósito. E eu
escolho a indústria de alimentos Nutri.”
“Passa para cá o jornal”, disse Floyd. “Acho que não deve levar muito
tempo para converter essas cotações para a linguagem de Isaac.”
E não levou mesmo. Enquanto Floyd estava trabalhando, a sala foi tomada
por um silêncio solene. Mas logo ele voltou a dizer:
“Está pronto.”
Já Isaac levou praticamente o mesmo tempo que da primeira vez para
produzir o seu novo poema:

GRANDE MERCADO

O ÓLEO AVANÇA O MEDO DA GUERRA

CARRUAGENS CORREM, O TRIGO VIRA OURO

O CELEIRO DO REI PEGA FOGO

MOEDAS DE OURO POR MULHERES NUAS

Ficamos um longo tempo olhando para a tela. Finalmente Spagnolo disse:


“Não sei quanto ao petróleo e quanto aos carros. Mas fiquei com vontade de
comprar umas ações da editora Ultra. E talvez também da Nutri.”

Pretas avançam na terceira:


Obscurecimento durante a caçada no sul. O grande líder é capturado. Não se deve esperar
perseverança tão cedo.
Teixeira simplesmente riu na minha cara.
“Pare de fazer drama. Coloque uma roupa decente e vamos para a delegacia.
Ou se quiser pode ir de robe amarelo mesmo, para mim tanto faz. Quem sabe
até prefira ir vestido assim.”
A impertinência de sua fala e a impossibilidade de revidar à altura irritaram-
me profundamente. Esse foi o meu erro, permitir-me ficar cego pelas emoções.
“Se eu fosse você, ficaria mais atento a com quem está falando nesse tom.
Ainda mais você, inspetor Alberto Teixeira.” Não resisti a desenrolar o meu ato
intimidatório. Grande erro. Jamais funcionaria com ele. Mas eu não podia mais
parar. “Eu pensaria duas vezes antes de levar adiante essa brincadeira de mau
gosto de querer me levar até uma delegacia. Você acha que as pessoas não vão
reparar na semelhança física entre nós dois?”
“Estou pouco me lixando. Adiante.”
“Só um filho da puta mesmo para querer prender o próprio pai.”
“Como é que é?”
“Não é à toa que dizem que todo filho de puta é a cara do pai.”
Ele veio para cima de mim com tudo. Ainda tentei levantar os braços em
uma débil tentativa de defesa.
O policial me nocauteou com um soco.
CAPÍTULO 2 – RECEPTIVIDADE

Se o homem superior empreende algo e tenta liderar, ele se perde. Se for capaz
de seguir, no entanto, encontrará orientação. É favorável encontrar amigos no
oeste e no sul, e perdê-los no leste e no norte.
A devotada Receptividade é uma condição da Terra. Assim age o homem superior e de nobre
caráter ao lidar com o mundo externo.
(I Ching – hexagrama 2)

Fui o primeiro a chegar a La Sirena. Naquele horário morto no meio da


tarde a taverna estava praticamente vazia, salvo por dois velhos que jogavam
xadrez em uma mesa no canto. Escolhi uma mesa no canto oposto, com a
cadeira voltada para a entrada. Pedi uma caneca de vinho, mas não bebi. Fiquei
só esperando.
Essa tarde em La Sirena aconteceu em 1985, uns bons três anos e meio
depois da escalada do Ciro. Foi no início de junho. Dia quatro de junho, agora
lembrei. Era terça-feira, primavera em Milão. A tarde estava linda.
Exatamente uma semana antes, eu e meus companheiros Olimpianos
havíamos perdido uma verdadeira fortuna na bolsa de valores. As perdas foram
tão sistemáticas a ponto de não deixar dúvidas. Nosso esquema havia sido
descoberto.
O problema, como sempre, foi o exagero. Não soubemos quando parar.
Começamos timidamente, mas em pouco tempo estávamos fazendo muito
dinheiro a cada pregão. Desde aquele lendário primeiro dia em que havíamos
utilizado o computador Isaac para prever as subidas e descidas do mercado,
fomos aprimorando cada vez mais nossos métodos. Floyd tornou-se capaz de
traduzir com muito mais acurácia os dados que alimentavam o computador. E
todos nós fomos aprendendo a interpretar a contento as quadrinhas de Isaac.
Foi tudo dando cada vez mais certo. Durante três anos, vivemos como
nababos. Não importa o quanto de dinheiro se possua, sempre é possível
imaginar alguma extravagância que propiciará a sensação de ser ainda mais rico.
E era assim que dissipávamos a maior parte do dinheiro que ganhávamos na
bolsa de valores. Gastávamos com coisas que nos deixavam felizes. Foram
bons tempos, na maioria das vezes.
É claro que houve também contratempos. Tanta farra acabou interferindo
nos estudos. Nunca cheguei a me formar.
Quanto a nosso grupo, cada um de nós inevitavelmente acabou sendo
afetado. Cada um dos quatro estava, à sua maneira, pagando um preço sutil.
Não foi tanto o dinheiro que ganhamos. Mas principalmente lidar com Isaac.
Isso acabou nos transformando. Lentamente, fomos deixando de ser as pessoas
que éramos. Era uma experiência quase mística ver um computador fazer
previsão após previsão sobre os acontecimentos mais improváveis que
afetavam o mercado de ações.
Só que as pessoas em quem estávamos nos transformando não eram nem de
longe tão amigas quanto as que deixávamos de ser. Muito antes de seu fim ser
decretado tão abruptamente nessa terça-feira em La Sirena, os Olimpianos
vinham se desintegrando. Em nossos corações, o grupo já não existia
verdadeiramente. A única coisa que nos unia era ainda a paixão pelo jogo. A
paixão pelo que Isaac estava fazendo conosco.
O que acabou precipitando o fim, como eu disse, foi o bendito do exagero.
Começamos a movimentar quantias cada vez mais vultosas. Já perto do final,
estávamos lidando com uma quantidade estúpida de ações e um batalhão de
corretores. Só pela emoção da coisa. Nem precisávamos tanto do dinheiro. Eu
tinha meus pais. Floyd iria entrar no pleno gozo de uma bela de uma herança
dentro de mais alguns meses, quando completasse vinte e um anos. Rita
também tinha uma boa situação. Spagnolo, cujos pais em comparação com os
nossos pareciam apenas remediados, era justamente o que menos se
preocupava com o dinheiro. Para ele tudo nunca passou de um jogo.
E o exagero deu nisso. Foi exatamente uma semana antes do encontro em
La Sirena. Nessa fatídica terça-feira, absolutamente cada um de nossos
movimentos foi antecipado com uma precisão cirúrgica. Se íamos vender um
grupo de ações que estava para sofrer uma vertiginosa queda, poucos instantes
antes alguém anunciava a venda das mesmas ações em grande quantidade, de
modo que a queda resultante acontecia bem em cima de nossas cabeças. E ao
tentar comprar ações que Isaac havia apontado como boas candidatas a subir,
descobríamos que as cotações já estavam em franca ascensão, pois alguém já
estava comprando em grande quantidade. Nosso inimigo secreto parecia ter
sempre a mesma ideia que nós, só que um pouco antes. Era de enlouquecer.
O prejuízo foi ainda pior porque não fazíamos as transações diretamente,
mas por meio dos operadores. Até que percebêssemos o que estava
acontecendo e déssemos o sinal para a retirada, já havíamos perdido entre nós
quatro o suficiente para nos deixar feridos e sangrando. E pior ainda que o
prejuízo foi o medo.
“O que foi que aconteceu? O que foi que aconteceu?”
“Ora, você não faz ideia? Fomos descobertos.”
“Mas como? É como se alguém estivesse prevendo o que Isaac iria prever.”
“Isso é loucura. Não faz sentido.”
Nenhum de nós tinha a menor desconfiança de quem poderia ser o nosso
misterioso oponente. Como precaução, Floyd sugeriu que nos separássemos,
que fosse cada um para seu canto e ficássemos um tempo sem manter contato.
Todos concordaram de imediato. A verdade é que o clima entre nós estava bem
longe de seus melhores dias. Até Rita e Spagnolo não estavam mais juntos. Mas
eu não tinha o que celebrar, pois ela havia se afastado de mim também.
Por essa época eu estava praticamente morando no Principe Di Savoia,
tradicional hotel na Praça da República. Fui para o hotel e fiquei enfurnado
uma semana. No oitavo dia recebi um bilhete anônimo junto com a
correspondência.
Não resisti a ler o bilhete pela milésima primeira vez. Estava em meu bolso.
Havia sido datilografado em um pedaço de cartolina branca. Naquele tempo
ainda não se usava o cartão com o emblema da Fábrica.

SABEMOS DE TUDO

TEMOS PROPOSTA
LA SIRENA HOJE 15H

VÁ SOZINHO

OU PAGUE PARA VER

A concisão do bilhete, mais que tudo, me convenceu de que não se tratava


de algum trote ou brincadeira. Só quem está falando muito sério economiza as
palavras desse jeito. Por isso achei melhor obedecer às instruções.
Eu frequentei bastante La Sirena nos dois primeiros anos da faculdade. Era
o ponto de encontro favorito dos Olimpianos. Foi onde atravessamos noites a
fio entre partidas de xadrez e disputas filosóficas, épicas, memoráveis.
Contemplei novamente o teto arqueado, formado por tijolos velhos e
manchados. Aquele teto era parte essencial do charme rústico da taverna. As
mesas ficavam bem próximas umas das outras, mas àquela hora deserta isso não
fazia muita diferença. Sentado atrás da máquina registradora, o velho Nicolleti
parecia em transe. Os dois velhos jogando xadrez também eram completamente
indiferentes à minha presença. O garçom que me atendera simplesmente sumiu
depois de trazer a caneca de vinho.
Não fiquei inteiramente surpreso ao ver Floyd na calçada defronte, prestes a
atravessar a rua e adentrar resolutamente La Sirena. Ele, sim, pareceu
mortificado ao me ver: “O que você está fazendo aqui? Foi você quem mandou
aquele maldito bilhete?”
“Um bilhete igual a esse?”
“Mas? É idêntico ao que eu recebi.”
“Ora, Floyd. Da mesma forma que você, também fui convocado para estar
aqui a essa hora.”
“E quanto aos outros? Spagnolo e Rita? Onde estão eles?”
“Sei tanto quanto você. O mais provável é que já estejam a caminho daqui.”
“Você parece estar muito certo disso.”
“Não vejo como alguém poderia chamar nós dois para uma festa e deixar
Spagnolo de fora. E muito menos Rita.”
Floyd relaxou só um pouco. Ele parecia estar mesmo muito nervoso. “Isso
não teve a menor graça.”
“Eu não estou tentando ser engraçado. Ei, meu camarada. O que há com
você? Está uma pilha de nervos.”
Dessa vez Floyd acabou dando uma risada. “Essa expressão que você usou
é de um barbarismo abominável. Mas definiu bem.”
Foi a minha vez de dar risada, um riso de surpresa. Mesmo com meus quase
cinco anos de Milão, ainda cometia um erro desses. A expressão pilla di nervi,
que provocou a hilaridade em Floyd, aparentemente não existia em italiano. Eu
deveria ter dito que ele estava parecendo uma corda de violino.
Mas o meu engano não foi tão errado assim, pois acabou possibilitando uma
trégua para aquela tensão que estava crescendo entre nós. Ao menos pelo
momento, voltávamos a ser os bons camaradas. Embalado por esse clima de
companheirismo e confiança mútua, não demorou muito até que Floyd botasse
para fora o sapo que o estava engolindo.
“Fortunato, fiz uma grande burrada.”
Não foi difícil adivinhar qual havia sido. Vira e mexe, por brincadeira, Floyd
ameaçava fazer isso um dia. Além disso, a ideia estava cada vez mais na mente
de todos nós.
“Você fez uma pergunta a Isaac. Uma pergunta que não deveria ter feito.”
Ele assentiu com os olhos no chão. Depois voltou a me fitar. Havia um
brilho desconhecido em seus olhos.
“Eu alimentei Isaac com nossos dados pessoais. Coloquei tudo de cada um.
Nome completo. Número do passaporte. Data de nascimento. Tudo.”
Eu já esperava algo nessa linha. Mas não tão drástico.
Floyd interpretou meu silêncio como uma reprovação. “Não sei o que deu
em mim. Perdi a cabeça quando recebi esse bilhete. Fiquei muito nervoso, acho
que eu queria, sei lá, encontrar alguma saída para a gente.”
Não pude mais me conter: “Qual foi a resposta de Isaac?”
Sem dizer palavra, Floyd puxou do bolso uma folha de papel que ele se deu
ao trabalho de desdobrar antes de passar para as minhas mãos. A expressão de
seu olhar era indecifrável.
Logo reconheci o padrão da folha. Era do tipo que usávamos na moderna
impressora matricial que havia sido acoplada a Isaac recentemente. No topo da
folha estava impresso, em italiano:

PEIXE GRANDE

O HOMEM SUPERIOR PINTA SEU CORAÇÃO COM A COR DAS TREVAS

O HOMEM INFERIOR SORRINDO RECEBE UMA POSIÇÃO

VOCÊ CORRE GRANDE PERIGO

A MULHER NUNCA MAIS CARREGARÁ FILHOS

Quando ergui os olhos do papel, Spagnolo estava se aproximando.


“Imaginei que vocês estariam aqui também”, foi dizendo simplesmente
antes de se sentar conosco. “O que é isso que você está lendo?”
Passei a folha para ele. Uma sombra passou por seu rosto enquanto ele lia.
Olhou duro para Floyd. “O que você fez?”
Floyd, acabrunhado, só baixou os olhos. Eu disse para Spagnolo o que ele
havia acabado de me contar. Spagnolo ficou muito sério.
“Você não tinha o direito de fazer isso. Quantas vezes conversamos sobre
isso”, ele disse para Floyd. E para mim, “você não deveria nem ter me
mostrado.”
“Não deveria ter mostrado o quê?”
Spagnolo, sentado de costas para a porta, não havia visto Rita chegar. Floyd
continuava com os olhos pregados no chão. Eu é que a vi primeiro. Estava
menos bonita que de costume. Continuava linda, mas as preocupações da
última semana haviam diminuído um pouco sua graça natural.
“Olá, Rita.” O semblante de Spagnolo ficou ainda mais severo, se é que era
possível.
“E então? O que é que Fortunato não deveria ter mostrado a você?”
“Algo que teria sido preferível ficar sem saber.”
“Só que todo mundo já está sabendo, não é? Menos eu.”
Achei que deveria ajudar Spagnolo nessa: “É uma coisa completamente sem
importância, Ritinha. Uma bobagem.”
“Mesmo assim, quero saber.”
“Não vai trazer nenhum bem”, disse Spagnolo gravemente. Ele parecia
infinitamente triste.
“Escute aqui,” Rita avançou para Spagnolo. Por pouco ele não se encolheu.
“Eu nunca permiti que você me poupasse de nada antes. E nem você nunca
quis tampouco. Não vamos começar justo agora, não é mesmo?”
Levou menos de meio minuto para Spagnolo desistir. Ele simplesmente
passou a folha para Rita.
De onde eu estava podia observar perfeitamente a reação dela ao ler a
profecia de Isaac. Quando chegou à última linha, seu rosto crispou-se por um
momento. Foi como se ela houvesse recebido uma pancada física, e estivesse
agora tentando fingir que não havia doído. Nesse momento de intensa
fragilidade Rita recuperou amplamente sua beleza, então investida de um
caráter transcendental. Olhando para ela intuí que havia recentemente feito um
aborto. À luz dessa revelação, muitos fatos das últimas semanas foram
subitamente explicados. Nunca procurei averiguar se isso realmente ocorreu, ou
se foi só minha imaginação. Nunca precisei.
“Xeque-mate!”
O grito chamou a atenção de todos nós. Veio da mesa dos dois velhos que
jogavam xadrez. E de fato um deles já se levantava da mesa, dando o jogo por
encerrado, enquanto o outro continuava fitando incrédulo o tabuleiro diante
dele. Notei que o vencedor da partida até que não era tão velho assim. Seu
cabelo apenas começava a ficar grisalho. Estava na faixa dos cinquenta anos. E,
coisa curiosa, levantou-se de sua mesa e caminhou direto até nós: “Deixei
passar trocentas oportunidades de dar o mate. Tudo porque vocês não
chegaram na hora combinada. Da próxima vez, quando eu disser três horas, é
três horas em ponto.”
Então aquele era o nosso misterioso oponente. Um homem vestido com
bom gosto, exalando sucesso e personalidade. Só os cabelos pareciam um
pouco compridos demais para alguém de sua idade. Ele olhou cada um de nós
nos olhos. No breve instante em que nossos olhares se cruzaram senti a sua
força e experimentei dois sentimentos opostos, de fascínio e aversão. Era como
olhar nos olhos de uma criatura totalmente desconhecida, não familiar, como
algum ignoto predador pré-histórico.
E eu me sentindo esperto por querer chegar mais cedo. O tempo todo ele já
estava ali, me observando. Olhei para a mesa do canto, onde continuava
sentado o homem que havia sido derrotado no xadrez, esse sim um autêntico
ancião. O vovô já arrumava as peças de volta no tabuleiro. Não parecia ter
notado que o adversário deixara de ser dele para se tornar o nosso.
Rita reagiu: “Quem você pensa que é, para chegar falando assim conosco?”
“Eu sou Mario Bodoni”, ele disse com evidente orgulho.
E foi assim que ouvi pela primeira vez as palavras mais odiadas de toda a
minha vida. Ele continuou: “Não é necessário que vocês se apresentem, uma
vez que já sei tudo sobre o seu adorável grupo. Os Olimpianos, que bonito
nome!” Ele olhou novamente para cada um de nós, demorando-se mais um
pouco dessa vez. Diante de seu olhar, senti-me encolher. “Você é o brasileiro,
Rogério Bastos, também chamado de Fortunato. Você é Andrea Torricelli, mais
conhecido como Spagnolo. Sou um apreciador dos filmes de seu xará de
apelido, são muito criativos. Você é Claudia Fanti, a adorável Rita. Preferia que
você mantivesse seu nome original. Melhor homenagear nossa Claudia
Cardinale que uma atriz estrangeira. E você, finalmente, é Roberto Valenti,
apelidado Floyd. Seria mais fácil chamá-lo de Cara de Cavalo.”
Floyd arregalou os olhos em chocada surpresa, mas Bodoni continuou com
seu discurso: “De agora em diante, vocês podem pensar em mim como seu
patrão. A não ser, é claro, que vocês prefiram pagar dois bilhões de liras. Até o
final da semana.”
Já estávamos todos de pé a essa altura.
“Você é maluco?”
“É uma piada?”
“Grrrr.”
“Se você pensa que vai nos chantagear...”
“Não se trata de chantagem”, cortou Bodoni. Todos nos calamos. “Mas da
pura aplicação da força da Lei. Talvez vocês prefiram sentar-se e ouvir o que
tenho a dizer. Garanto que serei breve.”
Havia uma autoridade indiscutível em sua voz. Era a voz de alguém
acostumado a mandar. Instintivamente reagíamos à sua presença. Depois que
juntamos duas mesas para melhor acomodar a todos, o garçom reapareceu.
Todo aquele movimento deve tê-lo despertado.
“Vamos todos querer o mesmo que o jovem ali está bebendo”, disse
Bodoni, apontando para a minha caneca de vinho ainda intocada. Depois que o
garçom se afastou, ele prosseguiu: “Senhores, a situação é bastante simples. No
decorrer dos últimos meses, e provavelmente há mais tempo, vocês vêm
fazendo uso de uma determinada tecnologia para antecipar as cotações da
bolsa. Seguramente vocês têm feito muito dinheiro com isso. A tecnologia a
que me refiro é uma máquina capaz de prever o futuro.”
“E se for?” Explodiu Rita. “Não existe nenhuma lei na Itália que nos proíba
de fazer isso.”
Não gostei nem um pouco do sorriso que Bodoni endereçou a Rita. “Você
está correta. À luz da lei italiana, vocês não são criminosos. A infração que
vocês cometeram está prevista pelo Direito Internacional, mais especificamente
pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual.”
Devo ter empalidecido. Eu lembrava de ter visto alguma coisa sobre a
OMPI em minhas aulas de Direito Internacional. Começava a fazer uma ideia
do que Bodoni estava tramando. Olhei para Rita e notei que ela parecia ainda
mais tensa.
“Onde você está querendo chegar?” Foi a vez de Spagnolo perder a calma.
Ele também não deve ter gostado do sorriso predatório de Bodoni. “Chega de
papo furado.”
O tom de voz de nosso antagonista tornou-se frio, impessoal. Mas o sorriso
não abandonou seu rosto nem por um momento. Eu já o achava assustador o
bastante. E ainda não tinha visto nada.
“O aparelho que vocês construíram, e que carinhosamente chamam de
Isaac”, e o sorriso de avô de crocodilo alargou-se diante de nossa reação
perplexa. “Sim, sabemos tudo sobre Isaac. Pois esse aparelho que vocês
supostamente inventaram já existe. E sua patente foi requerida pelo grupo que
represento.”
“Impossível”, bradou Spagnolo.
Mas nesse momento chegava o garçom com quatro canecas de vinho. Um
gesto de mão de Bodoni comandou a mesa ao silêncio enquanto as canecas
eram colocadas diante de cada um. E então, com a caneca erguida,
inacreditavelmente ele propôs o brinde: “Pela vitória do Rei! Pela honra da
Rainha!”
Nossas canecas já estavam erguidas a meio caminho quando nos demos
conta da situação absurda que era aquele completo estranho conhecer o nosso
brinde secreto. Bodoni soltou uma risada curta e infinitamente desdenhosa,
tomou um bom gole de vinho e continuou como se nada demais houvesse
acontecido: “Vocês feriram um direito de propriedade intelectual. Utilizaram
ilegalmente uma invenção patenteada. A penalidade é uma multa sobre uma
projeção dos lucros que vocês obtiveram de forma fraudulenta na bolsa de
valores, utilizando um invento que não é propriedade de vocês. Calculei o valor
por alto em dois bilhões de liras, mas o montante final deve ficar um pouco
acima disso.”
“Mas é um absurdo”, protestei. “Nós não ganhamos nem uma fração desse
dinheiro todo na bolsa.”
Gostei menos ainda de ver aquele sorriso tiranossáurico voltado para mim.
“Isso foi por pura incompetência de vocês. A multa incide sobre os lucros
presumidos, sobre o dinheiro que vocês poderiam ter feito utilizando a patente
de nossa propriedade em sua capacidade máxima. Não é da nossa conta se
vocês ganharam menos do que podiam.”
“E se nós simplesmente nos recusarmos a pagar? Até porque não temos
esse dinheiro.” Pela cara de Rita, ela queria esvaziar o conteúdo de sua caneca
na cabeça de Bodoni. “O que você vai fazer, hem? Vai nos colocar na cadeia?”
“Sim, eu poderia facilmente fazer isso.” Bodoni sorveu mais um longo gole
de vinho. Seu sorriso ficou rubro como sangue. “Poderia mandar prender vocês
todos. Mas o que o mundo ganharia com isso? Ao invés disso, prefiro contratá-
los.”
Eu logo quis saber mais: “Que história é essa?”
“Agora escutem com atenção. Vocês estavam atrás de dinheiro.
Trabalhando para nós, terão mais dinheiro do que sonharam ser possível.
Vocês queriam poder. Conosco, conhecerão o verdadeiro significado dessa
palavra. Temos muito uso para jovens talentosos como vocês.”
Foi então que Floyd finalmente resolveu abrir a boca. Por um momento,
parecia o mesmo bom e velho Floyd de sempre. “Até parece que estamos
engolindo essa sua conversa. Não há como vocês terem inventado Isaac antes
de nós. Conte outra, que essa não funcionou.”
Bodoni pareceu exultar de satisfação. Tive a impressão de que ele chegava a
salivar quando falou: “Você se superestima. Seu papel na construção de Isaac
foi secundário, para não dizer irrisório. Limitou-se a pouco mais que copiar o
projeto de uma reles máquina de jogar xadrez, que não chegou nem às finais
contra Cray Blitz no campeonato mundial de 1983.”
Essa atingiu em cheio. Todos nós sabíamos como Floyd era sensível ao
fiasco do computador Scacchino durante o WCCC. Uma pane de última hora
havia eliminado Scacchino logo no início do campeonato. E Bodoni não
pretendia dar tempo para que Floyd pudesse se recuperar: “Se vocês
construíram Isaac a partir de uma máquina barata de jogar xadrez, por que é
que outras pessoas não poderiam conseguir façanhas semelhantes? Na verdade,
isso já aconteceu algumas vezes antes de vocês. Atualmente vêm acontecendo
episódios semelhantes a cada dois anos e meio, mais ou menos. Essa é a
terceira vez que eu, Bodoni, tenho esse tipo específico de conversa. Terceira
vez.”
“Não é verdade”, disse Floyd debilmente.
“Foi por isso que encontramos vocês tão fácil, relativamente. Nós já
estávamos monitorando, esperando por algo parecido.” Bodoni exibiu
novamente os dentes de tubarão. “Crianças, vocês não fazem noção da
tecnologia que possuímos. Diante de nosso computador, o Isaac de vocês não
passa de um Atari 2600.”
Aí já era demais. O inimigo tripudiava dos Olimpianos. Erguemos todos as
vozes para protestar, em diferentes graus de civilidade.
“Ei, calma”, disse Bodoni, e foi o suficiente. “Não estou desfazendo do
trabalho de vocês. Somos os primeiros a reconhecer que vocês têm talento. Por
isso mesmo é que não vamos cobrar os dois bilhões de multa pelo uso de nossa
patente, e nem colocá-los na cadeia. Por isso é que vamos contratar vocês.”
Mas agora Floyd já estava destemperado: “Balela! Pura balela! Já sei como é
que você conhece tanto sobre nós. Você colocou uma escuta em minha casa,
foi isso. Assim ficou sabendo de tudo o que conversamos sobre Isaac, sobre
tudo. Só pode! Pois nunca que vocês inventaram algo como Isaac, duvido.
Como é que nunca ouvimos falar dessa patente que você está arrotando aí?”
“Realmente, faz sentido o que Floyd está falando”, eu disse, tentando
conduzir a conversa para um tom mais ameno. “Você afirma que possui a
patente de nosso invento, uma máquina capaz de prever o futuro, ao menos em
determinadas condições. Como é que ninguém no mundo parece saber disso?”
O sorriso de Bodoni retornou. “Mas não é óbvio? Nós mantivemos nosso
invento em segredo, assim como vocês. A previsão do futuro só pode
funcionar quando o mínimo de pessoas tem conhecimento disso. Quanto
menos pessoas sabem a respeito, menos pessoas podem intervir e alterar as
previsões. Pensei que vocês soubessem disso. É tão elementar.”
“Uma pinoia que é”, rugiu Floyd. “Você está inventando isso tudo. Não
possui patente nenhuma. O que você quer é roubar Isaac de nós.”
Bodoni suspirou, aparentemente enfadado: “Sabe, acho que vou mudar seu
apelido. De cara de cavalo para cara de asno. Sabia que você era meio burrinho,
mas não imaginava que fosse tanto.” Ele deu mais um grande gole em sua
caneca de vinho e acrescentou de modo displicente: “Nem sei por que estou
perdendo meu tempo com você. Você não conta, pois já está quase morto.”
Depois de um silêncio, Floyd conseguiu articular: “Como assim, eu não
conto.”
Bodoni teve um gesto de impaciência. “Fique, se quiser. Só estou incluindo
você na barganha por uma consideração a seus colegas. Mas pare de
interromper desse jeito, senão desisto de contratar você.”
Isso despertou a fúria de Floyd: “Do que você está falando, seu velho
escroto? Enfie sua proposta de emprego no cu, que eu nunca lhe pedi nada!”
“Esquentadinho, hem?” Bodoni soltou outra vez sua risada seca e
desagradável. “Não tem importância. Pode esbravejar. Eu também ficaria
nervoso se soubesse que hoje é o meu último dia de vida.”
Isso despertou a fúria e o medo de Floyd. Sem dizer mais nada, ele
levantou-se e caminhou em direção à porta. Foi seguido pelo desdém de
Bodoni. “Pode tentar fugir. Não há como evitar o que está vindo para cima de
você.”
“Floyd! Espere...” Rita ainda tentou. Foi a única de nós que fez algo para
impedir que Floyd se precipitasse porta da rua afora.
“Não era de todo um mau rapaz”, disse Bodoni. “Pena que não poderá
aprender mais nada, após ser vitimado por um trágico acidente automotivo.”
Como que em obediência à sua deixa macabra, nesse instante ouvimos o
som de uma forte pancada vinda da rua. Floyd tinha acabado de ser atropelado
por um furgão que vinha em desabalada carreira. Como depois ficamos
sabendo, seu corpo foi jogado dez metros à frente. Ainda assim talvez tivesse
sobrevivido, se o furgão em fuga não passasse com a roda bem em cima de sua
cabeça. O funeral teve que ser feito com um caixão fechado.

Brancas avançam na segunda:


Reto, quadrado, grande. Mesmo sem um propósito definido, nada fica sem desenvolvimento.

A maioria dos contratados de hoje não vê problemas em comentar entre si


como foi sua admissão à Fábrica. Boa parte deles faz isso espontaneamente,
com muito gosto. Deliciam-se rememorando detalhes do que jocosamente
chamam de “perder a virgindade”.
Eu quase os compreendo. A contratação é hoje altamente padronizada. O
processo é o mesmo para todos, homens e mulheres. É como um rito de
passagem. A hora de ser plugado à Fábrica. Tudo é conduzido de forma que a
experiência toda seja a mais sedutora e agradável.
Parte de mim fica feliz vendo a nova geração lidando tão bem com isso a
ponto de se tornar assunto comum nas rodas de conversa. Afinal, ajudei a
projetar o atual sistema. O fato de estar funcionando tão bem é sinal de que fiz
um bom trabalho.
É claro que o sucesso maior se deve ao Cromomagnetoscópio. Parece um
brinquedo futurista de parque de diversões, com todas aquelas luzes coloridas.
E a pessoa mal chega a se dar conta de que está mesmo é sendo fodida. Tudo
graças ao luxuoso aparelhinho de nome complicado: Cromomagnetoscópio.
Esse nome, aliás, existia somente para uso daqueles que ainda não sabiam o
que era passar pelo aparelho. Depois da contratação, as pessoas se referiam à
máquina por muitos outros nomes. Um dos mais usados era Orgasmatron.
É um crime sublime construir grandes mentiras com meias verdades.
Ambos os nomes, o oficial e o informal, revelam um aspecto importante do
aparelho. Pois sim, emite espectros de cores associadas a um campo
eletromagnético. E sim, é capaz de induzir orgasmos simplesmente fabulosos.
E dizer isso é pouco. Muito pouco, diante do que a máquina é realmente capaz
de fazer: estimular e interferir no fluxo do prana através do corpo humano.
Prana é uma palavra que vem do sânscrito e poderia ser livremente
traduzida em termos mais modernos como energia anímica ou, mais
apropriadamente, força vital. O prana circula no organismo através de cada
chakra, outro termo em sânscrito, que significa literalmente roda, em decorrência
dos luminosos desenhos circulares formados pelos chakras quando
energizados. Os chakras não são visíveis a olho nu pelo homem comum,
embora haja registros cada vez mais frequentes de paranormais que são capazes
de enxergar a energia prânica na aura das pessoas. Existem diversos chakras
com funções específicas no corpo humano, a partir do comando dos sete
chakras principais, cada um deles associado a uma das cores do arco-íris.
Ao emitir a luz violeta, o Cromomagnetoscópio ativa Sahasrara, o sétimo
chakra, a coroa no topo da cabeça. Em seguida é a vez do campo
eletromagnético pulsar no azul escuro, ativando Ajna, o ponto entre as
sobrancelhas. Ao tornar-se mais clara, a luz azul entra na frequência de
Visuddha, o chakra da garganta. Passando para verde, ativa Anahata, o chakra
cardíaco, e no amarelo estimula o chakra da barriga, Manipura. Com a luz
laranja, interfere diretamente em Swadhistana, a morada do prazer, nos genitais.
E finalmente, ao emitir a luz vermelha, ativa Muladhara, o primeiro chakra, na
base da espinha, onde repousa o monstro energético que interessa à Fábrica
despertar e domar.
Pela repetição ritmada das frequências no campo eletromagnético, a
máquina é capaz de provocar ondas no fluxo do prana através dos chakras, até
o ponto de inverter o fluxo e concentrar quase toda a energia em Muladhara, a
morada da serpente Kundalini, que os alquimistas conheciam como Ouróboros
e a Fábrica não se importa em jamais chamar por nome algum. O que a Fábrica
faz, através de sua máquina diabólica de luzes coloridas, é induzir Kundalini a
um despertar prematuro, artificial, domado. O que a Fábrica faz é colocar uma
coleira na serpente.
Um místico ou uma pessoa com tendências espiritualistas certamente iria
considerar o processo todo uma aberração só. O uso do Cromomagnetoscópio
poderia ser chamado de Anti-Yoga, pois promove o contrário do que prega a
antiga ciência de Mestre Patânjali. O resultado, nesses termos até seria possível
dizer, é a involução espiritual do homem.
A sensação inicial é muito agradável, de uma harmonia mental próxima à
beatitude. À medida que a luz vai baixando de frequência, no entanto, uma
indizível sensação de mal estar vai se infiltrando, como uma gota amarga e
inesperada em uma colher de mel. Fizemos de tudo para minimizar esse efeito,
o máximo possível. Mas ainda assim continuava lá, presente: o gosto indelével
de saber que se está cometendo um pecado.
Isso para meus padrões, é claro. A maioria dos jovens contratados de hoje
cai de boca no Cromomagnetoscópio sem pensar duas vezes. Parecem imunes
aos dilemas de consciência. E cada vez mais viciados no prazer sem limites.
E claro que a Fábrica dá algo em troca. E não é pouco. Pouco é orgasmo de
porco, que dura só parcos trinta minutos, segundo dizem. Não é nada
comparado ao superorgasmo. Só quem já experimentou sabe. Depois do
primeiro Super, o sexo passa a significar algo totalmente novo. A tendência é a
pessoa ficar cada vez mais sexualizada, com a libido à flor da pele, cada vez
mais saturada de um erotismo indiferenciado e tão intenso, até que sufixos
como hetero ou homo gradualmente deixem de fazer sentido.
É por isso que a maioria dos novos contratados nem dá pela falta do que
saiu perdendo nessa barganha com o Cromomagnetoscópio. É que estão muito
ocupados dando as melhores gozadas de suas vidas. E não é só a vida sexual
que melhora, e muito. A vitalidade aumenta bastante, e com ela a disposição
física e a saúde como um todo. Os sentidos ficam mais aguçados e a pessoa
experimenta uma espécie de magnetismo animal, uma quase que permanente
sensação de poder corporal, de bem estar físico.
Há, é claro, a pequena gota amarga. Mas a cada dia os contratados parecem
notá-la menos. Não chega a ser escravidão o que não é percebido como tal. Ou
talvez seja escravidão duas vezes.
Eu mesmo não sei se conseguirei falar assim, dessa forma tão desabrida, de
minha própria contratação. Na minha época as coisas eram bem diferentes.
Não havia a ordem e o progresso que vemos hoje. Isso para dizer o mínimo.
E o ritual da contratação, também. Era bem mais artesanal. Mais
improvisado. Algo bem mais próximo da magia que da ciência. Ao menos para
meus olhos, que ainda eram inocentes.
A minha contratação foi disputada em um tabuleiro de xadrez.
Nem sei como estou conseguindo falar sobre isso. Acho que é porque
cheguei no ponto da história em que Teixeira me nocauteou com um soco.
Estou lá caído, desacordado, à mercê da vingança de meu filho. Talvez por isso
minha mente tenha sido atraída para essas memórias sombrias e tão reprimidas.
Até hoje nunca comentei com ninguém sobre a partida de xadrez que
disputei com Bodoni.
Até hoje.

Brancas avançam na quinta:


Uma roupa de baixo amarela traz suprema boa sorte.

O punho cerrado, ao chocar-se com a mandíbula, emitiu um som seco,


como uma garrafa de champanhe estourando ao ser aberta. O estalo soou bem
mais alto para mim, que levei o soco no pé do ouvido. E foi como se eu tivesse
bebido cinco garrafas de Aigres Verts em um segundo. Desabei no chão, por
minha vez, como um saco de batatas.
Um saco amarelo e mal amarrado, diga-se de passagem. Após a minha
queda pouco graciosa, o robe se abriu. Fiquei totalmente devassado diante de
meu nocauteador. Não fazia uma figura muito digna. Mesmo tendo sido
colocado para dormir, pude assistir depois ao que se passou. Vi tudo pelos
olhos de Teixeira, graças às gravações da minitevê. Antes não tivesse visto. Por
um longo tempo ele apenas ficou parado olhando para mim. Talvez temesse ter
me matado com o soco. Fiquei incomodado por aquela longa exposição, eu
caído de boca aberta e os bagos à mostra.
Afinal Teixeira pareceu ter chegado a uma decisão. Abaixou-se diante de
mim e sem maiores cuidados me virou de bruços. Como o robe amarelo
cobrisse o que ele queria ver, com um repelão puxou-o para cima, expondo a
minha bunda branca, virgem de sol. Afixada à base da coluna, brilhava diminuta
e gloriosa a minha moeda de ouro. Posso dizer que fiz por merecer esse ouro.
Só eu sei o quanto me custou.
Dentre as chamadas ciências ocultas, existe um ramo que se destaca
justamente por ser virtualmente desconhecido, tamanha a sua secretividade. É o
estudo de determinadas propriedades existentes nos elementos do Grupo 11 da
Tabela Periódica: Cobre (Cu), Prata (Ag), Ouro (Au) e Roentgênio (Rg). Por se
tratar de uma pesquisa tão secreta, sequer recebeu um nome pelo qual possa ser
identificada. Eu a chamo de ciência do vil metal.
Ouro, prata e bronze, que nada mais é que a palavra persa para cobre. É
inegável o poder que esses metais exercem sobre a espécie humana. Isso para
não falar do misterioso roentgênio, substância radioativa que, dizem, só existiu
durante algumas poucas frações de segundo. Que esse poder é real, tive muitas
e muitas oportunidades de comprovar. Sobre a natureza desse poder, só me
resta filosofar.
Todos que são contratados pela Fábrica começam com uma moedinha de
cobre. Um metal muito útil e versátil, e igualmente ordinário, facilmente
descartável. Ao menos sob esse aspecto a Fábrica é igualitária. Todos iniciam
como peões. Mas só a primeira moeda é dada. As moedas seguintes precisam ser
conquistadas.
No beabá da química temos que um átomo de cobre possui quatro níveis de
energia. Já um átomo de prata possui cinco níveis de energia. Isso equivale a
dizer que a prata tem uma camada a mais de elétrons orbitando e o mesmo
número de prótons a mais em seu núcleo. Dezoito a mais, para ser exato. Pois
então. A mesma diferença que separa o cobre da prata é a que existe entre os
peões e os cavalos, a segunda casta de contratados da Fábrica.
Para se tornar um cavalo, é preciso ter muito talento e uma ambição maior
ainda. Uma vez contratados, pouquíssimos são os que conseguem ascender do
primeiro nível e transformar o cobre em prata. De cada cem, menos de um.
Uma proporção ainda mais reduzida é a dos que conseguem transformar a
prata em ouro. Pois é maior a distância entre o ouro e a prata que entre esta e o
cobre. O ouro possui seis níveis de energia, e trinta e dois prótons a mais que a
prata. São realmente raros os que conquistam uma moeda de ouro. Esses são os
bispos. Para se tornar um bispo, em resumo, é necessário ser um grandessíssimo
filho da puta.
Na prática, acima do ouro não existe nada. Na teoria, contudo, está lá na
tabela periódica o roentgênio, elemento de número atômico 111 e por esse
motivo originalmente chamado de ununúnio. Esse deveria ser o metal destinado
a um verdadeiro rei. Eu nunca conheci um. Nunca vi ninguém por aí andando
com uma moeda de roentgênio grudada no rabo. Mas eu sei que tais seres
existem. Ah, sim. Pois se não existissem eu estaria no topo da pirâmide, uma
vez que consegui me tornar um bispo. Mas a minha moeda era de ouro, e eu
continuava sendo um escravo. O cobre, a prata e o ouro têm isso em comum:
são sempre eles que estão no comando, e não nós.
Teixeira ficou por um tempo ainda mais longo simplesmente fitando minha
bunda branca, minha moeda de ouro. Não gostei nem um pouco de assistir a
essa demorada contemplação, e por isso me refugiei em algumas reflexões
relativamente inofensivas. Mas quando o inspetor finalmente começou a agir,
gostei ainda menos.
Ele baixou o olhar para si mesmo por um momento. Parecia remexer em
um dos bolsos. Retirou um chaveiro do bolso. Preso junto com as chaves, um
objeto comprido e de aparência pesada.
Era o velho e confiável canivete do inspetor Teixeira.

Brancas avançam na sexta:


Dragões lutam no campo. Seu sangue é preto e amarelo.

Más recordações por más recordações, melhor atender primeiro as antigas.


As dores mais velhas têm prioridade nas filas da memória.
De volta ao atropelamento de Floyd. Acho que ele ainda exalava o seu
último suspiro, um segundo antes da roda do furgão passar por cima de sua
cabeça. E dentro de La Sirena Bodoni já estava dando suas ordens: “Vão cuidar
do enterro do amigo de vocês, se assim desejarem. Depois quero cada um de
volta ao hotel onde já estava hospedado. Aguardem meu novo contato. Não
quero saber de surpresas, entenderam? Nem pensem em tentar me passar a
perna. Acho que vocês já começaram a fazer ideia da força da organização que
eu represento. Acreditem no que eu digo, senhores: é bem melhor ter essa força
ao lado de vocês, do que contrária.”
Eu não ousaria nem sonhar em desobedecer. Estava apavorado. Fui direto
para o Principe Di Savoia e fiquei lá enfurnado no quarto. Não fui ao enterro de
Floyd. De nós três só Rita foi. Ela me cobrou isso quando voltamos a nos
encontrar algumas semanas depois, quando já estávamos ambos matriculados
na Academia de Mario Bodoni.
Não demorei a fazer minha admissão nessa estranha escola, o que me
afastou definitivamente de minha família e mudou os rumos de minha vida para
sempre.
Floyd morreu numa terça-feira. No sábado, 8 de junho de 1985, recebi um
segundo bilhete datilografado. Eram só duas linhas:

HOJE 19H

VIA SAN GREGORIO 145 B

Eu conhecia bem aquela rua, que ficava próxima ao hotel onde eu estava.
Mas foi só ao chegar ao endereço indicado que percebi: para chegar a La Sirena,
bastava dobrar a próxima esquina.
Fiquei curioso com isso. Tanto que foi a primeira coisa que perguntei,
quando o próprio Bodoni abriu a porta: “Por que o senhor escolheu esse lugar,
tão perto de La Sirena?”
A pergunta pareceu agradá-lo. Seu olhar, tão sinistro para mim, adquiriu um
brilho mais ameno. “Eu moro aqui. Posso saber o motivo dessa pergunta?”
“Pensei que o senhor havia marcado o primeiro encontro em La Sirena
porque nós costumávamos frequentar o lugar. Mas estou vendo agora que não
passou de mera coincidência.”
Bodoni ergueu o indicador para me interromper, todo professoral. Não
pude evitar recuar um passo. Senti o rosto queimando ao notar que um fino
sorriso de desprezo se desenhava nos lábios de Bodoni. Ele disse simplesmente:
“Não há meras coincidências. Tudo é coincidência. Venha comigo.”
A casa de Mario Bodoni era marcada pela ausência da menor tentativa de
decoração. Funcional era a palavra de ordem. Os móveis pareciam novos e de
excelente qualidade. Mas não havia sequer um quadro na parede, uma
fotografia na estante, um vaso de flores sobre a mesa da sala, uma escultura ou
ao menos um bibelô em um canto qualquer. Era uma casa nua de adereços,
despida do menor indício de personalidade.
A única exceção era o aposento para o qual fui conduzido. Não poderia ser
maior o contraste. Era uma sala ampla e cheia de mobília, e tinha as paredes
tomadas por estantes abarrotadas de livros. Dominando o ambiente,
praticamente no centro da sala, havia uma mesinha sobre a qual repousava um
belo tabuleiro de xadrez, com as peças já dispostas na posição inicial. Bodoni
fez sinal para que eu ocupasse um dos dois bancos de madeira diante do
tabuleiro. Achei o banco muito espartano, pouco adequado para o xadrez, que
pede assentos mais confortáveis.
“Só um instante. Deixe-me ver. Ah, aqui está.” Ele apanhou um livro da
estante. “Independente do acerto que viermos a fazer hoje, eu quero presenteá-
lo com este livro. Acho que irá esclarecer um pouco suas ideias.”
Ele passou o fino volume para mim. Li o que estava escrito na capa: “A
Coincidência? Ora, mas foi o senhor quem escreveu o livro!”
“Sim, eu sou o autor.”
Bodoni inchou visivelmente ao dizer isso. Perguntei a mim mesmo se
poderia tirar algum proveito dessa vaidade dele.
“Então nesse caso eu gostaria de um autógrafo.”
Vi que ele foi pego de surpresa.
“Bem, por que não?” Bodoni pegou o livro de volta e sacou uma caneta do
bolso. Começou a escrever, mas logo parou e me olhou com uma expressão
curiosa. “Eu quase fazia a dedicatória para Fortunato. Mas esse nome faz parte
de uma brincadeira de adolescência, que não tem mais sentido agora. Dedicarei
ao jovem Rogério, que está prestes a se tornar um homem.”
Não gostei nem do tom nem das palavras. Mas recebi o livro de volta e
ainda agradeci, humilíssimo. “Obrigado, senhor Bodoni.”
“Senhor, não.” Ele ergueu mais uma vez o indicador. “Doutor Bodoni.”
“Obrigado, doutor Bodoni.”
“Diga-me uma coisa, rapaz. Quantos anos você tem mesmo?”
“Vinte e um”, eu disse. E era verdade em 1985. Hoje tenho mais idade que
tinha Bodoni nesse dia.
“Vinte e um”, repetiu Bodoni, como se estivesse saboreando um quitute. “E
o que você tem de bom a dizer a seu próprio respeito? O que você já fez de útil
na vida?”
A pergunta à queima roupa me pegou de surpresa. “Bem, estou cursando
jurisprudência na Universidade Bocconi. E antes disso estudei em um dos
melhores colégios preparatórios de Milão.”
Bodoni fez um gesto com a mão, como se afastasse de si algum odor
desagradável. “Besteira. Você está me falando de sua bunda, de onde seu
traseiro esteve sentado nos últimos anos. Isso não quer dizer nada. O que quero
saber é sobre sua cabeça. Ela presta para alguma coisa?”
“Penso que sim”, respondi um tanto ofendido.
“É isso o que vamos ver, meu rapaz. É isso o que vamos ver.”
Por um momento ele ficou apenas me olhando. E então franziu os lábios
naquele seu sorriso de caçador.
“Eu até que gostei da turminha de vocês, sabia? Vocês são jovens e bonitos,
parecem ter algum talento. Menos aquele bobalhão com cara de cavalo. Ele
estava destoando no grupo, você não concorda?”
Não tive palavras para responder. E nem precisava, pois a pergunta era
evidentemente retórica.
O doutor prosseguiu: “Gosto muito de seu país, sabia? Já estive no Brasil.
Conheci várias cidades. Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo, Recife. Você
nasceu em Rio Santo, não é mesmo? Essa eu ainda não conheci. Mas gostei
muito do Brasil, tive até vontade de me mudar para lá.”
“Então temos tudo para sermos amigos”, eu disse.
O olho de Bodoni brilhou novamente. “Que bom que você tem senso de
humor. Gosto disso. Nós vamos ser muito amigos, sim. Logo seu rabo vai ficar
muito amigo de meu pau.”
Ensaiei uma risada sem graça. Ele estava sorrindo, mas era o sorriso do
tubarão para a foca, o riso do crocodilo para o menino que toma banho na
beira do rio. “Vamos aos negócios. A multa de vocês foi calculada em dois
bilhões de liras. Dividindo por três, que é a parte que lhe cabe, dá seiscentos e
sessenta e seis milhões, seiscentos e sessenta e seis mil, seiscentos e sessenta e
seis liras. Curiosa essa quantia, não concorda?”
“Essa multa é um absurdo total”, protestei. “É inadmissível.”
Bodoni fechou a cara imediatamente. “Meu jovem, pensei que estivéssemos
nos entendendo. Pensei que você estivesse entendendo. Não precisa ficar, se não
está concordando. Não era nem para ter vindo. Fique à vontade para sair, se
achar que deve. Eu levo você até a porta da rua.”
Algo nessas palavras gelou o meu sangue ali mesmo. Lembro de ter dito,
num fio de voz: “Prossiga, por favor.”
Ele fez um gesto contrafeito, como se só a custo se convencesse a voltar a
me dirigir a palavra. Mas dava para ver que estava se divertindo, o sádico. Só
por aqueles cabelos compridos, o coroa já demonstrava gostar de efeitos
dramáticos.
“Pois então, garoto. Você tem o dinheiro?”
A quantia era exorbitante, ainda mais naquela época. Bodoni sabia muito
bem que eu não teria como pagar. Mesmo que eu vendesse tudo o que tinha,
mesmo que recorresse a meus pais, não seria o suficiente, nem de longe.
Diante de minhas explicações e justificativas, Bodoni permaneceu
impassível, o cenho levemente franzido. E assim ele continuou depois que eu
cantei a última linha da ladainha. Deixou que o silêncio pesasse bastante antes
de soltar um breve suspiro, para então dizer casualmente, como se a ideia
tivesse lhe ocorrido naquele momento, o velho sacripanta: “Vou lhe dar uma
chance de provar o seu valor.”
Ele olhou para o tabuleiro de xadrez que estava entre nós dois como se só
agora notasse sua existência. “Já jogou xadrez relâmpago?”
Fiz que sim com a cabeça. Era a modalidade preferida dos Olimpianos.
Cada partida de xadrez relâmpago dura no máximo dez minutos, sendo cinco
minutos para cada jogador. Isso permitia que disputássemos vários torneios
seguidos durante uma única noite de bebedeira em La Sirena. Bons tempos.
“Excelente!” Bodoni juntou as mãos de satisfação. “Portanto proponho o
seguinte, meu jovem Rogério: vamos disputar o seu débito para comigo em
uma partida de xadrez relâmpago.”
“Isso é sério?”
“Se você conseguir me derrotar no xadrez relâmpago, pode considerar sua
dívida totalmente quitada. Você estará livre para fazer o que quiser.”
“E se eu perder a partida?”
“Nesse caso você trabalha para mim até pagar o que me deve.”
“Em outras palavras, o senhor quer que eu vire seu escravo.”
“Não precisa ser assim. Você pode dar seu jeito e pagar o que deve. Ou
então pode cumprir pena em algum presídio federal. Eu não esperaria
clemência em seu julgamento. Aplicar golpes na bolsa é um crime muito grave,
ainda mais utilizando tecnologia roubada. Como estudante de Direito, você
deve saber que os crimes contra o patrimônio são punidos com muito mais
rigor que os crimes contra a vida. Mas o que são dez, quinze anos, quando se é
tão jovem? Você ainda terá muito tempo de sobra depois que sair da prisão. A
não ser, é claro, que aconteça algum acidente antes disso, nunca se sabe.”
Eu estava reduzido ao silêncio. Não tive sequer a coragem de encará-lo nos
olhos.
“E você também pode, simplesmente, me vencer em uma partida de xadrez
relâmpago. E então estará livre como um pássaro.”
“Até parece”, eu disse. Acabei não conseguindo me conter. “Que garantia
eu tenho?”
“Você tem a minha palavra como garantia. Ou não é suficiente?”
“Ora, imagine o senhor, é claro que sim. Não se trata disso, absolutamente.”
Resolvi apelar novamente para sua vaidade. “Pelo pouco que vi em La Sirena, o
senhor deve ser muito forte no xadrez. Acho que não tenho a mínima chance
de vencê-lo.”
A estratégia pareceu surtir efeito. Bodoni riu abertamente: “Isso lá é
verdade. Mas fique tranquilo. Sou um homem justo ao meu modo. Quero que
você considere o seguinte: vou lhe oferecer uma vantagem tão grande, mas tão
grande que por melhor que seja o meu jogo, você estará em igualdade de
condições comigo, se não acima. O que me diz?”
Eu não devia ter dito é nada. “Que vantagem é essa? Eu vou jogar com duas
rainhas ou algo assim?”
Doce inocência. Bodoni riu de novo: “Se você ainda não sabe direito o que
fazer com sua dama, duas só vão confundi-lo ainda mais. Não, meu caro rapaz.
Considere isso um pequeno capricho meu. Terá que confiar em minha palavra.
Sua vantagem sobre mim será imensa. Mas você só saberá que vantagem é essa
depois de aceitar o desafio.”
“Como posso aceitar uma proposta assim, no escuro?”
“Chega de conversa. Topa ou não topa jogar? Eu pensava que os brasileiros
fossem mais corajosos.”
Eu ainda hesitava. Devia é ter saído correndo. Bodoni ergueu o indicador,
avisando que aquela seria a cartada final: “Ora, vamos. Você não perde nada
por jogar. Não vai ficar pior do que já está. E pode ganhar tudo. Vai depender
de você. Não é possível que você jogue assim tão mal. E vai ter uma chance
verdadeira de sair ileso dessa, eu lhe garanto. A vantagem que eu vou ceder vai
equiparar nossas diferenças de habilidade e fazer as probabilidades ficarem a
seu favor. Você tem a minha palavra. E agora basta. É sim ou não?”
O que eu podia fazer, se não aceitar? Antes tivesse descarregado um
revólver em cima de Mario Bodoni, caso eu andasse armado.
“Ótimo”, disse Bodoni, e mostrou sua alegria juntando as mãos diante do
peito. Incrível como eu acabei pegando esse gesto dele, e como Varlene acabou
pegando de mim. E não só o gesto. “Creio que temos tudo de que precisamos
diante de nós. Está vendo esse relógio para xadrez? Garanto que é confiável.
Vamos ajustar nossos relógios para cinco minutos para cada.”
Subitamente tive a compreensão de que aquela não era a primeira vez que
Bodoni fazia aquilo. Nada havia de casual ou descuidado em seu
comportamento. Ele ergueu mais uma vez o indicador no ar, como o orador
pedindo a vez para falar em um debate. O que foi um pouco estranho, pois era
ele mesmo quem estava falando. Foi como se Bodoni fizesse um aparte para si
mesmo.
“Mas antes de começar a partida é preciso cumprir um procedimento de
rotina. Coisa bem simples e fácil.”
E outra vez sacudiu o indicador em riste, dessa vez como quem pede ao
interlocutor para aguardar um minuto. Levantou-se da poltrona e caminhou até
um ponto da sala que já havia chamado a minha atenção. Era um serviço de bar
completo, habilmente instalado entre as estantes cobertas de livros. Eu bem
que havia ficado de olho naquelas garrafas todas. Quando vi Bodoni
encaminhando-se para lá, imaginei que ele fosse propor um brinde ou algo
assim. Mas quando ele voltou trazia só um copo na mão, e o copo estava vazio.
“Está vendo aquela porta à sua direita? Ela conduz ao lavabo. Vá até lá e me
traga uma amostra de sua urina nesse copo.”
“Como é?”
“Tudo será explicado no seu devido tempo. Por ora, preciso que você urine
um pouco dentro desse copo, rapaz. É para uns exames. Nada demais, coisa de
rotina.”
“E desde quando é preciso exame de urina para se jogar xadrez? Não estou
entendendo.”
“Não tem nada a ver com a partida. Digamos que é uma pesquisa que estou
desenvolvendo, e espero contar com a sua cooperação.”
Eu não queria aceitar o copo que ele brandia em minha direção. Estava
achando aquilo muito bizarro. Mal podia imaginar que as esquisitices estavam
apenas começando.
“Ande logo com isso, rapaz. Eu não tenho o dia todo. Desse jeito as
preliminares vão durar mais que o jogo.” O doutor Mario Bodoni tinha uma
maneira muito peculiar de escolher as palavras. Ele praticamente me obrigou a
segurar o copo. Era um copo de vidro grosso, de boa qualidade, fabricado com
o intuito de receber os uísques mais caros. Dentro do banheiro, não tive
dificuldade em encher o copo com uma talagada de meu alambique particular.
Estava mesmo com a bexiga cheia. Bodoni estava me esperando na porta do
banheiro. Já foi tomando o copo de minha mão. “Não precisava tanto. Metade
disso seria mais que suficiente.”
Ele despejou a maior parte na pia do banheiro. Restava pouco mais que um
dedo de mijo no copo. Ele aproximou o copo de meu rosto e por um horrível
instante pensei que ele iria me obrigar a beber. Mas tudo o que ele disse foi:
“Cuspa.”
“O quê?” Eu estava bestificado.
“Não é para escarrar. Só um pouco de saliva, está entendendo? Não fique
me olhando com essa cara, rapazote. Cuspa logo, vamos. Pronto, está vendo,
não foi tão difícil. E nem doeu.”
“Para que o senhor quer isso?”
“É só uma mania inofensiva minha, não repare.” Ele largou o copo em uma
estante, como se já não tivesse a menor importância. “E então, estamos prontos
para o jogo?”
“O senhor ainda não disse que vantagem é essa que eu vou ter.”
Estávamos caminhando de volta para bancos diante do tabuleiro de xadrez,
mas estaquei quando ouvi a resposta de Bodoni:
“É muito simples. Eu vou chupar você enquanto estivermos jogando.”
“Espere aí. Isso já é demais.”
“Cale a boca e escute. Você está nas minhas mãos, garoto. Posso colocar
você atrás das grades, posso muito bem colocar você em uma gaveta do
necrotério junto com seu amiguinho dentuço, você está me entendendo? Estou
lhe oferecendo a chance de se livrar de tudo isso por no máximo dez minutos,
ou até menos, se você me vencer antes no xadrez. Ora, eu nem vou enxergar o
tabuleiro direito, vai ser uma sopa para você. Não é possível que você seja tão
ruim a ponto de não conseguir me derrotar nessas condições. E assim todos
ficam felizes. Você ganha sua liberdade. Eu ganho minha satisfação.”
“O senhor é um velho pervertido e degenerado.”
“Bondade sua. Desabotoe a calça, por gentileza.”
“Tem mais alguém em casa?” Me odiei por ter feito essa pergunta. Parecia
uma donzela medrosa. Exatamente o que eu era.
“Não se preocupe”, riu Bodoni. “Ninguém virá nos interromper.”
Ele foi até o tabuleiro e pegou duas peças. Voltou-se para mim com os
punhos fechados. “Escolha.”
Escolhi o punho esquerdo. Bodoni abriu a mão e me entregou um peão
preto. O punho direito ao se abrir revelou um peão branco. Ele parecia
satisfeito com o resultado do sorteio. Depois me perguntei se cheguei a ter
mesmo alguma chance de sair com as brancas. O sorteio pode ter sido só mais
um truque sujo.
“E agora você vai ficar quieto. Não vou lhe fazer nenhum mal. É só um
pequeno truque que quero lhe ensinar.”
Ele me fez ficar sentado no banco e postou-se às minhas costas. Suas mãos
vieram de cima para beliscar a ponta de minhas orelhas, não com violência, mas
de maneira firme e segura. E continuou apertando por um bom tempo minhas
duas orelhas, enquanto murmurava distraidamente o leitmotiv de No Salão do
Rei da Montanha de Grieg. Eu não sabia que música era essa na época. Fui
descobrir anos depois, ao assistir Peer Gynt no Teatro Municipal de São Paulo,
em uma de minhas frequentes viagens à Sampa na época. Quando a orquestra
começou a tocar No Salão do Rei da Montanha, passei tão mal que tive que sair do
recinto às pressas.
Bodoni ficou nessa uns cinco minutos, pressionando pontos em minha
orelha e cantarolando. Subitamente percebi qual era a sua intenção com aquela
manobra. Para minha grande surpresa, meu pau estava duro como madeira de
lei.
“Ora, mas o que temos aqui, um verdadeiro amante latino. Gostou de meu
truquezinho? Nem sempre funciona e nem com todo mundo. Mas com um
rapaz de vinte e um, vendendo saúde? É garantido.”
Ele finalmente largou as minhas orelhas. Sentou-se no chão à minha frente,
ao lado do tabuleiro. “E então? Podemos começar?”
Eu devolvi o peão preto que ainda estava na minha mão à sua casa no
tabuleiro. Respirei fundo e balancei a cabeça.
Bodoni não perdeu tempo. Ativou o relógio e imediatamente lançou o seu
peão do rei em e4. Ato contínuo, paralisou seu relógio e já estava de joelhos
diante de mim abocanhando meu pau, aquele homem que tinha idade para ser
meu pai. Fiquei sem reação por alguns segundos, até que lembrei que meu
relógio havia começado a correr no instante em que Bodoni paralisou o dele.
Respondi com e5. Eu mal havia tirado a mão do relógio e Bodoni já havia
avançado o seu cavalo do rei para f3. Reagi na mesma moeda, com o cavalo da
rainha em c6. Bodoni então ameaçou meu cavalo com o bispo em b5. Até aqui
uma tradicional abertura espanhola, à qual respondi com a defesa Morphy em
a6, jogando o peão da torre para cima do bispo. Bodoni de pronto recuou seu
bispo para a4, ainda com meu cavalo na mira. E não parou de me chupar nem
por um segundo.
Eu não entendia como ele estava conseguindo jogar. Devia acompanhar os
lances só pelo canto do olho. E ainda assim estava jogando bem melhor que eu,
mantendo a iniciativa com as brancas. Ao menos tive a pífia satisfação de ser o
primeiro a comer uma peça, poucos lances depois. Foi o mesmo peão com que
ele começou o jogo, e que arrebatei com meu cavalo quando o vi desprotegido.
Grande vantagem. Logo em seguida Bodoni também comeu um peão meu com
seu cavalo e com isso abriu caminho para sua dama finalmente entrar em cena.
“Xeque”, gorgolejou ele.
E a partir daí foi só ladeira abaixo. Para me defender do assédio, tive que
sacrificar um peão, uma torre, um cavalo, um bispo. Tempos depois, fiquei
abismado ao descobrir as semelhanças entre a partida que Bodoni e eu
disputamos e uma outra partida muito famosa. Foi a célebre disputa entre
Albert Einstein e Robert Oppenheimer, ocorrida na cidade de Princeton, nos
Estados Unidos, no ano de 1933.
Cheguei a pensar que Bodoni havia memorizado os lances da partida,
jogando como Einstein com as brancas. Mas logo descartei a ideia como
ridícula. Ele não tinha como prever que as minhas reações seriam tão parecidas
com as de Oppenheimer. Foi um magro consolo perceber essa afinidade. Não
há mérito nem alegria em igualar-se pela derrota. Hoje, considerando, vejo que
também por isso esse foi um episódio marcante em minha biografia. Não é
todo dia que você comete os mesmos erros que o cara que inventou a bomba
atômica.

Não fazia sentido Bodoni escolher justo aquela partida para decorar, logo
uma que acabou incompleta. Oppenheimer abandonou o jogo no vigésimo
quarto lance, depois de perder a dama e o seu segundo cavalo na sequência. Já
eu precisava continuar jogando. Com minhas defesas praticamente destroçadas,
desperdicei tempo precioso fazendo um movimento inútil. Andei com um dos
dois peões que eu ainda podia mexer para g5. Nem tive tempo de me amargurar
pela burrada. Bodoni moveu sua dama uma casa, de g7 para f7. Com isso,
passou a ameaçar diretamente minha torre remanescente em e8. Logo vi que
não havia como salvar a torre. Quando a fuga é impossível, o jeito é partir para
o ataque. Antes que a dama de Bodoni derrubasse minha torre, tomei dele o seu
último bispo. Estava ficando claro para mim o que Oppenheimer percebeu
antes. O mate aproximava-se rapidamente.
Tentei armar um desesperado plano de fuga, recuando com o meu rei para
b8. Minha patética intenção era fazer o rei dar a volta na última peça que me
restava além dos peões, um bispo que acabou ficando inerme até o fim da
batalha. Que não tardou a chegar.
Bodoni com sua torre remanescente deu um xeque em d8. Eu poderia
bloquear a torre com o bispo e acabar com meu rei acuado no canto que nem
um camundongo. Preferi manter o plano original e fui com o rei para a7,
aproveitando que o bispo em b7 me protegia da dama de Bodoni. Mas foi com
ela mesmo que ele veio para cima de mim, comendo um de meus três peões
que estavam bloqueados, esse em c5, e ao mesmo tempo ameaçando o rei em
a7. Só havia um movimento possível, que foi o que eu fiz, avançando o rei para
a6. Bodoni recuou a torre para d6, com um cheque ao qual eu só podia
responder entregando o bispo em c6. O bispo foi tomado pela rainha,
renovando o cheque. Fiz o único movimento que me restava, voltando com o
rei para a7, no que fui imediatamente perseguido pela torre em d7.
Meu último lance foi forçado: rei em b8. Só nesse momento crucial Bodoni
parou de me chupar. Ele fez uma pausa como se estivesse recuperando o
fôlego, levou a rainha para b7 e anunciou calmamente, olhando-me nos olhos
pela primeira vez desde que o jogo começara: “Xeque-mate.”
E voltou a sugar o meu pinto, como se isso fosse tudo o que lhe interessava
no mundo. Eu ainda estava aturdido, olhando para o tabuleiro sem querer
acreditar. E então senti um choque na base da coluna.
Aquele foi o exato momento de minha matrícula na Academia. Naquele
instante uma finíssima liga metálica penetrava a minha epiderme, atravessava o
tecido adiposo e o osso sacro para se enredar nos nervos da cauda equina, no
final da coluna.
Mas nem tive tempo de sentir dor. Foi como se uma onda de eletricidade
pura estivesse tomando conta de meu corpo. Tive um orgasmo simplesmente
avassalador, além de qualquer descrição, daqueles longos e intensos, tanto que a
gente pensa que a cabeça do pau vai estourar, que o coração não vai aguentar,
que a gente vai morrer, e não morre. Foi a segunda melhor gozada de minha
vida, e foi toda na boca daquele velho desgraçado. Ele não deixou escapar nem
uma só gota. E ainda lambeu os beiços.
“Sêmen”, ele enunciou simplesmente.
E então ele se levantou e aproximou seu rosto do meu a tal ponto que temi
que fosse querer me beijar. Mas o que ele fez foi pior. Deu uma lambida na
minha testa.
“Suor”, ele disse.
Eu estava totalmente sem reação. Nem liguei quando ele espetou meu dedo
com algum objeto pontudo, uma agulha ou alfinete, provavelmente. Logo em
seguida ele sugou a gota vermelha que brotou de meu dedo.
“Sangue”, disse Bodoni. Ele foi para perto da estante onde havia deixado o
copo de vidro. “As coisas que saem do corpo têm poder, meu rapaz. Sangue,
sêmen, suor, saliva e urina. Quatro s e um u.”
Ele ergueu o copo como se estivesse fazendo um brinde, e então emborcou
de um só gole o mijo e o cuspe dentro do copo.
“Agora, meu caro Rogério. Agora sim. Agora você é meu.”
Hoje em dia esse tipo de coisa não acontece mais. Não há lugar na Fábrica
para esse tipo barato de magia negra. Para falar a verdade, nunca cheguei a
saber por que Bodoni agiu dessa forma. Talvez ele desejasse aumentar ainda
mais o impacto psicológico sobre mim. Talvez, simplesmente, aquele ritual o
excitasse.
Naquele momento logo após o orgasmo eu estava totalmente indefeso. O
resultado imediato da ativação da moeda é um estado de completa passividade
física e psíquica, que dura cerca de meia hora. É o chamado período de
condicionamento, que nos dias atuais é conduzido por um profissional treinado.
Eu tive que me contentar com Mario Bodoni.
Embora eu mesmo tenha participado de algumas importantes contribuições
às técnicas de condicionamento, não me lembro de muita coisa de minha
experiência inicial com Bodoni. Ninguém se lembra de seu próprio
condicionamento.
A prática consiste, basicamente, em uma série de comandos verbais que são
registrados apenas na mente pré-consciente ou subconsciente. A pessoa não
chega a ter consciência de que foi condicionada. Cada comando verbal é como
um gatilho sonoro que ativa determinadas regiões do cérebro. Assim, certa
palavra ao ser pronunciada ativa o centro de prazer, outra provoca uma dor
intensa, outra ainda pode induzir a um furor homicida. Não sei a maioria das
palavras que Bodoni usou para me condicionar, só senti os efeitos delas durante
os longos anos que convivi com ele.
Mas sei que ele usou o próprio nome como gatilho para hiperexcitar uma
pequena região do cérebro conhecida como amígdalas, as principais reguladoras
do medo. É por isso que a cada vez que eu ouvia o nome Mario Bodoni, passava
mal horrivelmente. O que eu sentia nada mais era que um ataque agudo de
medo, pura e simplesmente.
Essa hiperexcitação das amígdalas é o procedimento final, que permite, por
assim dizer, fechar a última presilha da coleira da serpente. É através desse
processo, que se vale do medo e da dor, que Kundalini é definitivamente
capturada. O condicionamento feito com o nome do contratante, ou do mestre
no meu caso, é apenas um efeito secundário, mas de grande importância
psicológica. É mais ou menos como marcar o gado com o nome do dono, com
um ferro em brasa.
Bodoni não estava satisfeito: minha derrota ainda não era completa. Ele já
havia se tornado o meu dono, meu amo e senhor. Mas queria que não restasse a
menor dúvida a respeito.
E foi assim que tive o melhor orgasmo de minha vida, servindo de mulher
para o doutor Mario Bodoni. É algo que muda definitivamente as perspectivas
de um homem nascido e criado heterossexual, gozar desse jeito, tão
intensamente, pelo cu.
Me pergunto se Teixeira gozou assim com Kim.
CAPÍTULO 59 – DISPERSÃO

Dispersão. Sucesso. O rei aproxima-se de seu templo. É favorável cruzar a


grande água.
O vento correndo sobre a água: a imagem da Dispersão. Assim os reis de antigamente
ofereciam sacrifícios ao Senhor e construíam templos.
(I Ching – hexagrama 59)

O inspetor Teixeira cravou sem dó o canivete em minha carne. Ele


imaginou a princípio que a moeda estivesse afixada à pele através de algum tipo
de poderoso adesivo. Mas por mais que se esforçasse, não conseguiu fazer a
lâmina do canivete penetrar um milímetro sequer entre a moeda e a pele. O
jeito, então, foi sair cortando ao redor.
A dor foi lancinante. Mais do que suficiente para me fazer recobrar os
sentidos. Já despertei uivando.
Por um momento não percebi onde estava. Só conseguia pensar naquela
maldita partida de xadrez com Bodoni, ocorrida tantos anos antes. Mas logo
notei que estava deitado de bruços no chão de meu próprio escritório. E então
me lembrei de tudo. Virei-me de um salto, só para sentir mais uma fisgada
excruciante na base da coluna.
Teixeira estava sentado no chão ao meu lado. Bem segura entre seus dedos
ensanguentados, estava a minha moeda de ouro. Agora não se parecia tanto
com uma moeda. Da parte central se projetava um longo e estreito cone
dourado, que em sua parte mais fina não devia ser mais grosso que um fio de
cabelo. O cone devia ter mais de vinte centímetros de comprimento. Agora
estava ali, suspenso no ar, seguro pelos dedos do inspetor. Há poucos instantes
estava dentro de mim, subindo por minha coluna vertebral.
O inspetor ainda não havia sido contratado pela Fábrica. Era preciso que ele
tivesse um orgasmo primeiro, a fim de ativar a moeda de cobre presa em sua
coluna. Mas ele já estava sabendo bem mais a respeito das moedas que a
maioria dos contratados.
Ele já sabia que elas crescem dentro da gente.

Brancas avançam na quarta:


Ele dissolve seus laços com o grupo. Suprema boa fortuna. A dispersão leva por sua vez à
acumulação. Isto é algo em que homens ordinários não pensariam.

Por alguns instantes fiquei estupefato demais para dizer qualquer coisa.
Finalmente, porém, consegui articular:
“Você me libertou.”
Teixeira nada disse. Limitou-se a continuar me fitando com os olhos
inexpressivos, a moeda dourada ainda presa entre os dedos sujos de meu
sangue.
“Você me libertou”, voltei a dizer. “Graças a você, estou livre do jugo da
Fábrica.”
Teixeira continuava calado. Eu precisava falar mais, dar vazão aos meus
pensamentos naquele momento:
“Você não pode imaginar como é terrível não ser dono de sua própria
vontade. Meu Deus, só agora consigo pensar com clareza, depois de tantos
anos! Essas moedas são instrumentos terríveis. Elas dominam suas emoções,
suas aversões e desejos. Durante todos esses anos, nunca quis algo por mim
mesmo. Ganhei muito dinheiro, sim. Poder. Prestígio. Mas não passava de um
reles escravo, um robô subjugado. De que valem o dinheiro e o poder se você
não é livre para fazer o que quer? Maldita Fábrica. Roubou os anos mais
preciosos de minha vida. Mas agora estou livre para me vingar. Graças a você,
Alberto. Obrigado, meu filho.”
“Cale a boca!”

Pretas avançam na quinta:


Seus altos gritos se dispersam como o suor. Dissolução. Um rei permanece sem culpa.

Eu me limitei a olhar assustado para ele. Teixeira parecia possesso.


“Cale essa boca imunda. É muito fácil colocar a culpa de tudo nessa tal de
Fábrica, não é mesmo? E você, coitado, não passa de uma pobre vítima
indefesa.”
Tentei acalmá-lo um pouco: “Escute, você não faz ideia do que essas
moedas são capazes de fazer.”
“Eu faço ideia sim. Faço ideia muito bem. Vi um homem virar um louco
homicida sem nenhum motivo aparente. Vi uma mulher morrer de tanto gozar.
Vi outra que acredita piamente que está vivendo dentro de um livro. Vi o que
essas moedas fazem com as pessoas.”
“Então você me entende, filho. A Fábrica...”
“Entendo o cacete! E já disse para não me chamar assim.”
“Desculpe.”
“Está pensando que é simples assim? Que é só jogar a culpa em cima da
Fábrica e tudo se resolve? Pois não é assim que a banda toca não. Vai me dizer
que foi a Fábrica que obrigou você a matar Varlene?”
“Mas eu...”
“Não se faça de bobo comigo, está entendendo? Eu sei que foi você que a
matou. E que no mínimo comandou as mortes de Luca do Urtigão e de
Jorginho Príncipe. Isso para não falar da menina que estava com Jorginho, uma
criança ainda.”
“Escute, eu não tive nada a ver com essas mortes. Você precisa acreditar em
mim.”
“É claro que você não teve nada a ver com as mortes. Foi a Fábrica o
tempo inteiro, não é mesmo?”
“Foram os gêmeos! Júlia e Kim, só podem ter sido eles! Eles que tramaram
essas mortes. Eu não estava sabendo de nada, juro!”
A porta de meu escritório foi aberta de supetão.
“Ora, ora, ora”, disse uma voz grossa e muito familiar. “Parece que
chegamos no momento exato.”
Kim olhava para nós com aquela expressão de deboche arrogante que era
tão característica dele. As duas mulheres entraram no escritório logo depois. Foi
a primeira vez que vi Ágata. Ela era mesmo bonita, um mulherão. Júlia parecia
até minguada ao lado dela.
Tanto Júlia quanto Kim estavam armados. O cano da pistola de Júlia estava
ostensivamente encostado à têmpora de Ágata. Já a arma de Kim, quase que
com displicência, estava apontada em nossa direção.
MEIO DO JOGO

Onde cada um encontra seu destino.


A Rebelião dos Cavalos
CAPÍTULO 64 – ANTES DO FIM

Antes do Fim. Sucesso. Mas se a pequena raposa quase ao completar a travessia


molha sua cauda na água, não há nada que seja propício.
Fogo sobre Água: a imagem da condição antes da transição. Assim o homem superior é
cuidadoso ao diferenciar as coisas, para que cada uma encontre seu lugar.
(I Ching – hexagrama 64)

Meus primeiros dias de Academia foram repletos de surpresas, nenhuma


delas sequer remotamente agradável. A primeira dessas detestáveis descobertas
aconteceu quase que imediatamente, logo depois que saí da casa de Bodoni.
Assim que cheguei no hotel fui tomar um longo banho, para limpar pelo menos
o corpo das sevícias que havia sofrido. Enquanto me enxugava, diante do
espelho do banheiro, não resisti a um súbito impulso. Virei de costas para o
espelho, pois desejava enxergar a minha própria bunda. Naquele momento eu
era movido por um estranho sentimento que até hoje considero inexprimível.
Até porque logo se esvaneceu, substituído pela surpresa e incredulidade. Foi a
primeira vez que vi a minha moeda de cobre.
O doutor também ficou bastante surpreso, e positivamente, quando criei
coragem para lhe perguntar o que significava aquele círculo de metal soldado na
base da espinha. Pelo que ele me contou, eu era a segunda pessoa capaz de
enxergar as moedas. A primeira fora o próprio il Dottore.
Não é que as moedas sejam invisíveis. É que simplesmente não se encaixam
na concepção de realidade da maioria das pessoas. Por isso a mente adapta o
que é incapaz de absorver. Ou rejeita por completo o estímulo, ou então o
cérebro transforma em algo que a pessoa possa incorporar a seu sistema de
crenças.
“Leia o capítulo dois de meu livro”, aconselhou Bodoni. “Você verá que
essa característica das moedas é explicada pela natureza quântica da matéria. Da
mesma forma, os índios de seu país foram incapazes de enxergar as primeiras
caravelas, quando os portugueses chegaram ao Brasil. Pois as caravelas eram
algo totalmente diferente do mundo que eles conheciam. Suas mentes não
podiam processar aquela informação. E por isso, para os índios, as primeiras
caravelas eram invisíveis.”
Casos de pessoas realmente capazes de enxergar as moedas são muito raros
até hoje. Considero isso um golpe de sorte, uma predisposição genética que
muito me beneficiou. Pois já comecei de cara caindo nas graças de il Dottore. O
que me ajudou muito diante da segunda surpresa repugnante que me aguardava.
Pois eu esperava tudo, menos reencontrar Sergente daquele jeito. Ele estava
praticamente morando na casa de Bodoni. De sargento, foi promovido a lugar-
tenente de il Dottore, seu secretário e homem de confiança, puxador de saco
oficial.
Rever Sergente, e naquelas circunstâncias, não foi fácil. Principalmente por
uma revelação fulminante: pois foi ele quem colocou Bodoni em nossa cola.
Mesmo afastado dos Olimpianos, Sergente continuou nos espionando às
escondidas. Quando começamos a esbanjar o dinheiro que estávamos
ganhando com Isaac, ele ficou com a pulga atrás da orelha. E o inseto que lhe
picou estava cheio do veneno da inveja.
O nosso sucesso deixou Sergente tão injuriado que era comum vê-lo
referindo-se ao assunto com muitas palavras amargas e saturadas de ironia. Ou
ao menos assim imagino que ele tenha feito, pois por que outro motivo iria dar
com a língua nos dentes a nosso respeito justo com Bodoni? Só posso imaginar
que ele tenha agido assim movido pela força rancorosa do hábito.
Pois o certo é que pelo menos uma vez ele puxou essa feia conversa. E justo
quando seu interlocutor era aquele senhor, que fora os cabelos compridos era
tão tipicamente milanês, um italiano com a pele bem clara e mais para o
alourado, que facilmente poderia passar por austríaco ou alemão.
Os dois se conheceram por acaso nessa noite em La Sirena. Pelo menos uma
vez o acaso tinha que entrar nessa história toda. Mesmo não sendo forte no
xadrez, Sergente aceitou o bem humorado desafio que o doutor lançou: caso o
jovem resistisse ao mate até o décimo lance, seria declarado o vencedor da
partida. Como prêmio, todas as bebidas correriam por conta de Bodoni. Caso
Sergente levasse o xeque-mate antes de dez lances, cada um pagaria sua própria
conta.
É claro que Sergente topou. O que ele tinha a perder? E acabou ganhando, a
princípio. Respondeu corretamente à tentativa de Xeque Pastor. E bloqueou
dois outros ataques em sequência, até que se passaram dez lances.
Os ataques frustrados de Bodoni foram bastante convincentes, pois estavam
no limite da capacidade de Sergente. Esse era um grande talento de il Dottore: ele
conseguia sempre jogar no mesmo nível de seu adversário. É uma pena que não
tenha se dedicado mais ao xadrez e menos a essas sombrias loucuras da ciência
negra.
Bodoni teria matriculado Sergente em sua recentemente fundada Academia
de qualquer jeito, isso é certo. Não precisava de nenhum estímulo extra. O que
o linguarudo conseguiu com sua bocarrona foi que o doutor ficou mais que
interessado em inscrever todos os Olimpianos em sua escolinha.
E assim uma vez mais, e em condições tão estranhas, a velha turma foi
novamente reunida. Ali estava eu. Sergente voltou para ficar. Rita e Spagnolo,
logo descobri, também estavam conosco. Imagino que foram matriculados em
condições similares às minhas. Nunca conversamos sobre o assunto. E havia
também Isaac. Todos os Olimpianos agora faziam parte da Academia de
Bodoni, menos um. Menos Floyd.
Demorei para entender o porquê daquela morte tão gratuita. A conclusão a
que cheguei de início pareceu absurda, depois cada vez menos com o passar do
tempo. Até que por fim me convenci do óbvio.
Floyd e Sergente tinham alguma coisa mal resolvida entre eles. Não era uma
aversão direta e recíproca, como no caso de Sergente comigo. Tratava-se de
algo mais complexo, mais profundo, mais poderoso. Desconfio que Sergente
tinha uma quedinha não assumida por Floyd, ou o contrário, ou vice-versa.
Talvez até tivesse rolado alguma coisa entre eles. Provavelmente, pensando
bem a respeito.
Seja como for, Bodoni descobriu essa história durante o período em que ele
e o traidor estiveram nos espionando. E então, só para exercitar seus poderes,
decidiu exacerbar aquele amor ressentido de Sergente até transformá-lo em um
ódio cego e homicida. E aproveitou a ocasião para nos brindar com seu
memorável ato dramático.
Sergente foi o primeiro de nós a se tornar um assassino. Ele revelou ser
mesmo um aluno aplicado. Um dos serviços especiais que prestou ao doutor foi
dirigir o furgão que atropelou Floyd.
Tantas surpresas funestas acabaram amortecendo o impacto descobrir que
Floyd no fim das contas é que estava certo. Tudo não passava de um golpe de
Bodoni. Não existia patente nenhuma sobre um invento como Isaac. Ele era o
primeiro, e continuava sendo o único. Só que agora estava nas mãos de il
Dottore.
Floyd acertou também o modo como o velho descobriu a respeito de Isaac
e de nossas farras na bolsa de valores. Ele tinha mesmo mandado instalar
câmeras ocultas no apartamento de Floyd. O próprio Sergente fez o trabalho,
usando uma cópia da chave que ainda possuía. Os equipamentos que ele levou
para filmar e gravar o que dizíamos eram o top de linha na época. Mas nem
chegavam perto das minitevês, que só viriam a surgir na década seguinte.
A princípio parece estranho que tenhamos caído tão facilmente no golpe
que a raposa velha aplicou. Acreditamos piamente no que Bodoni disse sobre
possuir a patente de Isaac e sobre aquela absurda multa bilionária a que
estaríamos sujeitos.
Il Dottore era um hábil manipulador, e teve a oportunidade de estudar bem
cada um de nós, graças às gravações na casa de Floyd. A própria morte de
Floyd ajudou a nos deixar aterrorizados e à mercê de Bodoni. Ainda assim,
cedemos fácil demais, sem oferecer a menor resistência.
Eu mesmo acho que no fundo ansiava para que algo assim acontecesse. Era
o meu destino ingressar na Fábrica.

Pretas avançam na segunda:


Ele freia as rodas de seu carro. A perseverança traz boa sorte.
Se bem que ainda não era a Fábrica na época. Entrei para a coisa quando
ainda estava começando. Bodoni a chamava de Academia. Pois ele se
considerava acima de tudo um grande de um filósofo.
Il Dottore não era movido por planos maléficos de dominação mundial. Tudo
o que ele queria era corromper os costumes e perverter a juventude. É por isso
que ele se identificava muito com Sócrates, que foi acusado e condenado por
esses mesmos crimes. Quando bebia, Bodoni gostava de falar sobre aquele que
foi considerado o mais sábio dentre os homens. E o resultado da busca
incessante por esse prazer que o doutor de Milão tinha em comum com o
filósofo de Atenas foi que nos meses seguintes ao ingresso dos Olimpianos
muitos outros jovens promissores, tanto rapazes quanto moças, passaram a
fazer parte da Academia de Bodoni. É claro que nós os chamávamos de calouros.
Fiz sexo com a maioria dos calouros. Mas não cheguei a saber o nome nem
de meia dúzia. Bodoni tinha um lado paranoico que facilmente aflorava. Ele
não gostava de ver seus pupilos juntos, além do estritamente necessário. Na
prática isso se traduzia em uma lei não escrita, mas fielmente cumprida: nós só
podíamos nos encontrar para trepar, jamais para conversar.
Bodoni organizava um encontro de seus alunos a cada quinze dias. Ele
chamava essas duas sessões mensais de sexo grupal e anônimo de seminário. A
cada sessão, antes da orgia começar, o doutor fazia uma breve e bem humorada
preleção sobre a variação sexual que daria a tônica do encontro. Coletivamente,
essas palestras bem que poderiam ser organizadas em um curso, a ser chamado
Da Parafilia à Filosofia ou algo assim.
A um determinado ponto da palestra, invariavelmente Bodoni chamava um
ou mais de seus pupilos para serem os coadjuvantes na demonstração prática da
aula do dia. Ele sempre agia como se a escolha fosse aleatória, não fazendo
diferença qual de nós iria ajudá-lo a demonstrar que modalidade de perversão
sexual. Mas a encenação não enganava ninguém.
Eu sei que fui poupado. Como na época estava deixando crescer uma
barbicha, o doutor aliviou o meu lado e me chamou para uma demonstração da
pogonofilia, atração sexual por barbas. Não foi tão ruim ter o pau de il Dottore
esfregado em minha cara, até que cada fio do bigode e da barba tivesse sido
estuprado. Vá perguntar para os calouros que o doutor escolheu para
demonstrar o ondinismo ou a coprofilia, só para ficar em modalidades de
parafilia mais conhecidas. Vá perguntar ao pobre sujeito que demonstrou bem
demais os perigos da asfixiofilia. Todos eles teriam alegremente deixado crescer
uma barba, até as mulheres, se pudessem trocar de lugar comigo. Ainda assim,
desde esse dia nunca mais deixei pelos crescerem em meu rosto. Pelo na cara
me faz sentir sujo.
No começo Bodoni realizava seus seminários em um clube noturno que ele
mandava fechar para seu uso. Depois, com o constante aumento do número de
alunos, achou melhor alugar só para esse fim uma ampla Villa em Brera, no
coração boêmio de Milão. Essas e outras despesas eram custeadas pelos alunos.
Todos pagavam religiosamente suas mensalidades, cujo valor variava de aluno
para aluno, a critério exclusivo de Bodoni.
Por aí já se tem uma ideia do tipo de mundo que il Dottore estava
construindo para si mesmo. Pois garanto que ele olhava para esse mundo e
sorria, satisfeito com o seu próprio trabalho. Para mim, sua estimada Academia
não passava de um harém universitário, onde Bodoni fazia as vezes de reitor-
gigolô.
Mas estou certo de que para ele nada faltava à Academia. Tinha as suas aulas
teórico-práticas de parafilia e filosofia. Tinha uma salgada mensalidade, como
os melhores cursos universitários. E tinha até mesmo o seu próprio livro
sagrado da sabedoria. Pois cada aluno novo que chegava recebia logo o seu
exemplar de La Coincidenza.
Pode parecer estranho que tantos jovens ilustrados, de boa família e
condição, tenham se sujeitado assim às humilhações e abusos de um velho
maníaco. Talvez eles mesmos, se chegavam a pensar no assunto, também não
entendessem porque agiam daquela forma. Se nem conseguiam enxergar as
moedas! Eu, ao menos, sabia o que me tornava um escravo.
De resto, il Dottore sabia muito bem como manter a ordem e a disciplina. E
ai daquele que ousasse recusar o mínimo desejo ou capricho seu. Bastava ele
dizer: “Você vai fazer isso sim. Ou não me chamo Mario Bodoni.”
E o rebelde se jogava no chão, tremendo de dor e medo. Juntamente com
quem estivesse por perto. Essa era uma lição que todos aprendiam
rapidamente. Ele só precisava pronunciar o próprio nome para nos reduzir à
mais abjeta submissão. E é por isso que todos nos esforçávamos para deixá-lo
sempre satisfeito. Não era uma tarefa nada fácil.
Os Olimpianos até que tinham sorte. Nosso grupo recebia inúmeros
privilégios. Afinal, Isaac era a galinha dos ovos de ouro. E nós estávamos
ficando cada vez melhores naquilo. De certa forma, tudo continuou na mesma.
Continuamos fazendo as mesmas coisas que antes, usando Isaac para prever as
cotações da bolsa. Só que estávamos bem mais empenhados. Pode-se dizer que
antes da contratação éramos alegres amadores. Sob o domínio de Bodoni,
tornamo-nos sombrios profissionais.
Nossos modestos golpes artesanais foram substituídos pela bandidagem em
escala industrial. Estávamos nadando em dinheiro. Mesmo tirando a parte de
Bodoni, que era sem dúvida maior que a de todos nós juntos, o que sobrava era
mais que suficiente. Só nos primeiros seis meses ganhamos mais que durante os
dois anos desde a criação de Isaac. E pensar que muito do poder que Bodoni
conquistou foi graças a Isaac. Graças a nós.
Mas para ser sincero, pior que lidar com Bodoni era aturar a odiosa
companhia de Sergente. Como se não bastasse a sua traição, ele ainda fazia
questão de agir como se fosse o líder do grupo. Sergente não passava de um
peão como nós, mas acreditava que o fato de ter sido contratado alguns meses
antes lhe conferia algum tipo de autoridade. E como Bodoni parecia apreciar a
sua devoção canina, não tínhamos coragem de nos opor diretamente a ele.
Mas saber lamber uma bota não era o único meio de chegar até il Dottore.
Sergente teve que engolir calado a minha crescente familiaridade com Bodoni.
É claro que eu também não parava de bajulá-lo, e agindo assim acabei
conquistando aos poucos sua confiança. Cheguei ao ponto de fingir que era
também um fanático por futebol, e o acompanhava sempre para ver seu amado
Milan jogar. Em troca, ele me ensinou alguma coisa de seu satanismo quântico.
E também me contou sobre sua vida.
Era mesmo uma figura ímpar, o insano, erudito e putão Mario Bodoni.
Ninguém poderia negar que fosse um homem culto e viajado. O título de
doutor, ao qual ele dava tanta importância, não se devia à formação médica,
mas a um doutorado em Mecânica Quântica pela Universidade de Pádua.
Poderia ser considerado um sábio, um homem de ciência. Mas era também um
místico, profundo estudioso e praticante das artes ocultas. Viajou muito pelo
mundo afora, coletando aqui e ali as peças do bizarro quebra-cabeças que era a
sua teoria das coincidências.
Certa vez, conforme me contou, chegou a viver durante alguns meses com
uma comunidade de aghoris às margens do rio Ganges, na Índia. A seita dos
aghoris defende que bem e mal são conceitos igualmente ilusórios, e que a
melhor maneira de transcender é transgredir. E é por isso que, ao contrário de
outros hindus, os aghoris acreditam que vão encontrar Deus através de práticas
consideradas tabu, tais como a ingestão de carne, álcool e drogas, além de
diversos rituais sexuais tântricos. Alguns aghoris radicais são adeptos do
canibalismo.
O mérito maior de Bodoni, como ele mesmo gostava de se gabar quando
bebia uma garrafa de vinho a mais, foi ter unido todas as pontas soltas. Aos
obscuros ensinamentos dos aghoris, ele acrescentou o ocultismo de Aleister
Crowley e a teosofia de Madame Blavatsky, juntou tudo e misturou com o
Princípio da Incerteza de Heisenberg e outros novos paradigmas trazidos pela
Mecânica Quântica. Boa parte dessa viagem alucinada e sedutora está registrada
em seu livro La Coincidenza.
Bodoni era um mago tecnológico da mão esquerda, um cientista das artes
profanas, um filósofo amoral e brilhante. Ele dizia ser também um grande
inventor. Segundo il Dottore, foram os estudos de Jagadish Chandra Bose com
os metais que o possibilitaram criar a tecnologia necessária para a invenção das
moedas que nos tornavam escravos.
Mas eu sabia que Bodoni era, acima de tudo, um grandessíssimo mentiroso.
Pois um dia, ao falar do tempo que passou com os aghoris, ele deixou escapar:
“Foi por essa época que ganhei a minha primeira moeda. Uma moeda de cobre
como a que você tem agora, Rogério.”
“Mas doutor”, interpus, “pensei que tivesse sido o senhor quem inventou as
moedas.”
“Pois então”, e o olhar que ele me lançou mostrou imediatamente que eu
havia falado demais. “Como eu disse, foi por essa época que criei a minha
primeira moeda. Ou não me chamo Mario Bodoni.”
Isso me ensinou a deixar a matraca fechada quando il Dottore estivesse
rememorando o passado. Mas não me impediu de continuar matutando. Hoje
sei que Bodoni não pode ter sido o inventor das moedas. Ele mesmo admitiu
ter começado com uma reles moeda de cobre. Quando o conheci, ele possuía
uma moeda de prata. Quando foi morto, usava uma moeda de ouro. Ele
também não passava de um escravo, de mais uma peça no tabuleiro.
Quem teria, então, criado as moedas? Quem seria o jogador oculto por
detrás da Fábrica? No dia em que eu encontrar alguém com uma moeda de
roentgênio, saberei estar diante do verdadeiro inventor. Mas quem seria capaz
de portar tal moeda? Também chamado de eka-ouro, o roentgênio é uma
substância radioativa e altamente instável, que só existiu durante 15
milissegundos ao ser sintetizado em laboratório. Em meio a tantas dúvidas, ao
menos uma coisa era certa: uma moeda de roentgênio não poderia ser usada
por nenhuma criatura humana. Ou poderia?
Elucubrações e devaneios à parte, o tempo ia passando e as moedas iam nos
transformando. Spagnolo tornou-se uma sombra do que havia sido. Ele estava
apenas começando a sua nefasta metamorfose. Rita também mudou muito.
Finalmente tive a minha chance com ela. Mas ao invés do romance de amor por
tantos anos acalentado, tudo o que tivemos foram algumas sessões de sexo
sórdido. Rita havia se transformado em uma puta cruel. Ainda assim, estava
mais linda do que nunca.
E a Academia de Bodoni ia florescendo, em meio ao pecado e à devassidão.
Mas como era inevitável, um belo dia tudo teria que mudar. E as mudanças
começaram quando il Dottore resolveu contratar quem não devia. O nome dele
era Fausto Zambrini.

Brancas avançam na terceira:


Atacar antes do fim traz má sorte. É propício cruzar a grande água.

Só fiquei sabendo da história toda em retrospecto, e mesmo assim aos


pedaços, juntando fragmentos ouvidos aqui e ali. Completei as lacunas com um
pouco de imaginação, que sempre tive em boa medida.
Começou com uma simples infração de trânsito. Il Dottore voltava de um
lauto jantar, sabe-se lá na companhia de quem. Havia decerto bebido pelo
menos garrafa e meia do mais excelente vinho. Seus modos expansivos à
direção do vistoso Takeru prateado acabaram atraindo a atenção da polícia de
Milão.
O policial que o parou estava sozinho na viatura. Era um homem ainda bem
jovem, do tipo atlético, de peito cabeludo. Veio caminhando sem pressa na
direção do carro de Bodoni. E o resto foi consequência.
Bodoni tirou algumas notas grandes da carteira. O guarda aceitou a propina.
Talvez nesse momento il Dottore tenha pensado que seria uma boa ideia ter um
policial às suas ordens. Pode ser também que ele achasse divertida a perspectiva
de dar uma carcada em quem havia tentado ferrá-lo.
O fato é que, provavelmente prometendo mais dinheiro ou alguma outra
vantagem, acabou convencendo o patrulheiro a acompanhá-lo até sua casa.
Duas horas depois, o policial já estava matriculado na Academia.
Minha mente fica voltando sempre a esse ponto. Sei que essa cena ocorreu,
mas me parece incrível. Não presenciei nada disso, pelo que sou grato. Cenas
de sexo entre Bodoni e Zambrini. Uma verdadeira foda de dragão.
O patrulheiro chamava-se Angelo Fausto Zambrini. Apesar da pouca idade,
tinha quase dez anos na polícia de Milão. Um detalhe importante era
desconhecido por Bodoni até um tempo depois da contratação. É que
Zambrini, além de ostensivamente envergar a farda de policial, ao mesmo
tempo mantinha conexões íntimas com um sanguinário grupo mafioso: a
‘Ndrangheta. Originária da Calábria, há muitos anos que a ‘Ndrangheta já havia se
estabelecido como a força criminosa dominante em Milão.
Era o começo de 1987. Com um ano e meio de contratado, eu me
considerava um homem feito. Estava ganhando muito dinheiro, trepando como
nunca, totalmente bem sucedido. Mas no fundo do peito, lá no íntimo, eu sabia
que era um escravo. Pois tudo o que eu mais queria na vida era ganhar a minha
moeda de prata. Só não sabia ainda que era isso o que eu queria. Foi Zambrini
quem descobriu e mostrou para todos nós que era possível.
Até então pensávamos que somente Bodoni poderia ter uma moeda de
prata. Ele era o indiscutível macho alfa, o poderoso cavalo de prata, o alvo de
nossa inveja e admiração, de nosso ódio e idolatria. Até que surgiu Fausto
Zambrini.
E ele surgiu literalmente, na manhã de 16 de março de 1987. Era uma
segunda-feira e como de hábito estávamos reunidos na casa de Bodoni,
avaliando as notícias do final de semana e deliberando sobre as perguntas que
deveríamos formular a Isaac.
Era sempre um assunto da maior importância, pois bem cedo descobrimos
que quanto melhor fossem elaboradas as perguntas, maior seria a precisão das
respostas. Saber o que perguntar não era tão difícil. O problema era colocar a
pergunta na linguagem adequada para Isaac.
Estávamos todos concentrados na tarefa. Foi por isso que ninguém notou a
chegada de Zambrini, até que ele estivesse bem ali no meio de nós.
Era a primeira vez que eu o via. Depois de tranquilamente avançar até o
centro da sala, limitou-se a ficar olhando para Bodoni, com um sorriso de puro
deboche nos lábios.
“Fausto, o que você está fazendo aqui?” Rugiu il Dottore. “Não mandei
chamá-lo.”
O riso de Zambrini só fez se alargar: “Pois fique sabendo que um ‘ndrinu faz
o que quer e vai onde tem vontade.” Sua voz era um tanto fina, contrariava a
postura de macho. Não fosse pelo perigoso brilho em seu olhar, seria fácil
subestimá-lo. “Não precisamos de um doutorzinho de merda para nos dizer o
que fazer e aonde ir.”
E foi assim que descobri quem era o nosso visitante surpresa. ‘Ndrinu é
como chamam a si mesmos os membros dos numerosos clãs ‘Ndrangheta.
Zambrini fora contratado há cinco ou seis meses. E Bodoni já havia se gabado
mais de uma vez de seu policial mafioso, que ele humilhava sempre que podia.
Por um instante Bodoni ficou sem fala, chocado demais para esboçar uma
reação. Finalmente conseguiu dizer: “Como ousa? Vou lhe ensinar uma lição,
ou não me chamo...”
Eu já estava me encolhendo diante do inevitável ataque de dor. Isso era o
pior nas punições do doutor. Não importava quem tivesse feito a besteira,
todos que estivessem por perto pagavam do mesmo jeito.
No entanto, antes que Bodoni conseguisse terminar sua frase, Zambrini
disse simplesmente: “Ataque!”
Foi muito rápido. Sergente, que estava sentado mais próximo de Bodoni,
virou-se de lado e desferiu um soco bem na boca do doutor.
E então o tempo pareceu congelar. Bodoni ficou olhando incrédulo para o
próprio sangue em suas mãos, depois que tocou os lábios. Pela cara de
Sergente, ele mesmo não acreditava no que havia acabado de fazer.
Coube a Zambrini romper o silêncio: “Surpreso, velhinho? Adivinhe quem
acabou de tirar o diploma nessa sua academia fajuta.”
Os olhos de Bodoni se arregalam de espanto. E eu podia jurar que havia
algo mais ali, que eu nunca tinha visto antes. Era medo. “Você conseguiu a
moeda de prata.”
O sorriso de Zambrini era puro triunfo agora. “Exatamente. E não foi só
isso o que eu consegui.” Até então ele conservava as mãos dentro dos bolsos
do casaco. Quando ele puxou a mão direita, pensei que fosse sacar uma arma. E
de certa forma era mesmo uma arma. Na palma da mão aberta estava, diminuta
e orgulhosa, uma moeda de cobre tilintando de nova.
Era sem precedentes. Como Zambrini havia conseguido aquela moeda?
Somente Bodoni tinha acesso às moedas de cobre, era a sua prerrogativa de
reitor da Academia, somente ele matriculava.
“Descobri como se faz uma dessas”, disse Fausto. Ele riu com desprezo:
“Seu velho punheteiro.”
Eu, Rita e Spagnolo nos entreolhamos, igualmente estupefatos diante das
possibilidades que surgiam daquelas revelações. Sergente continuava alheio ao
que estava acontecendo, olhando catatônico para as próprias mãos.
O ‘ndrinu parecia ser capaz de ler os nossos pensamentos. Olhou de um para
outro com idêntico desprezo: “Vocês são escravos porque querem. Gostam de
ser enrabados em troca de uma vida mansa. Não têm nenhuma ambição.”
Bodoni aproveitou a breve distração do outro para tentar reagir: “Fausto,
você passou dos limites. Retire-se agora, antes que eu perca a cabeça.” Pura
bravata. O doutor estava se borrando de medo.
Zambrini também percebeu isso, e achou que era chegado o momento do
xeque-mate: “Cansei de olhar para sua cara, velho.”
Dessa vez ele retirou a mão esquerda do bolso, e não havia dúvida alguma
de que era mesmo uma pistola o que ela segurava. O policial mafioso era
canhoto.
Dizem que o perigo iminente de morte desperta as forças mais recônditas.
Antes que Zambrini pudesse atirar, Bodoni conseguiu gritar a plenos pulmões:
“Nidoborioma!”
Il Dottore pronunciou a sua palavrinha mágica especial. Nada mais era que os
fonemas de seu nome pronunciados na ordem inversa. O efeito foi devastador.
A mera lembrança desse momento tão sinistro deixa as minhas mãos suando
frio.
Depois aprendi a utilizar esse recurso. Mas nunca precisei me valer dele.
Preferia estimular o centro de prazer no cérebro, e não o do medo.
Durante o período de condicionamento, Bodoni atrelou esse som em
particular a um loop de hiperexcitação das amígdalas do cérebro. Era como se
ele tivesse dito o próprio nome dez vezes em rápida sequência.
Foi a mais horripilante experiência de toda a minha vida. A morte não pode
ser muito pior que isso.
Os Olimpianos tombaram todos de uma vez. Acho que Rita,
misericordiosamente, chegou a perder os sentidos. Enquanto me contorcia em
desespero, notei que até mesmo Zambrini fora atingido.
Ele não chegou a cair. Mas comprimia a barriga com as mãos, e a sua cara
era a de quem havia levado um tiro.
“Você ainda não aprendeu tudo, Fausto”, disse Bodoni. Foi a vez dele de
mostrar o seu sorriso de crocodilo, ainda lavado em sangue pelo soco de
Sergente.
Mas o doutor também deixava perceber o quanto estava abalado. Aquele
último truque evidentemente havia consumido muito de suas energias.
Zambrini foi recuando aos tropeções. Antes de sair, cuspiu com desprezo:
“A próxima vez que eu olhar para sua cara, velho, será a última.”

Pretas avançam na sexta:


Bebendo vinho em genuína confiança. Sem culpa. Mas se alguém molha a cabeça, perderá
tudo.

Algumas horas depois, Bodoni começou a traçar seus planos. Já estávamos


todos razoavelmente recuperados. O doutor, do desgaste provocado pelo
confronto com Zambrini. E nós, do contra-ataque desferido por Bodoni, que
havia nos atingido mais duramente que ao próprio inimigo.
“Sinto muito por isso, rapazes. Sinto muito, Rita. Não houve outro jeito.”
Pensei que o medo devia ter amolecido um pouco il Dottore. Ele não
costumava ser tão gentil conosco. Na verdade, precisava mais do que nunca de
nossa ajuda. Daí a gentileza.
Sergente finalmente criou coragem para dizer algo: “Doutor, perdoe-me.
Não sei o que houve comigo. Não queria ter feito aquilo.” Parecia um menino
pequeno que aprontou alguma arte terrível e agora estava prestes a receber uma
surra de cinto. Eu também pareceria, no seu lugar.
Bodoni ficou um bom tempo olhando para ele. Quando falou, seu tom de
voz era conciliador. Mas se Sergente tivesse notado a expressão em seu olhar,
como eu notei, não ficaria nem um pouco tranquilizado. “Não se preocupe,
Narciso. Sei que você não teve culpa.”
Narciso era o nome de batismo de Sergente. Baita ironia. Narciso Di
Sabatino, era assim que ele se chamava.
Bodoni então disse entre dentes: “A culpa é de Fausto. Aquele maldito.”
Ousei perguntar: “Como foi que ele conseguiu fazer isso tudo?”
Ao invés de irritar Bodoni, a pergunta pareceu desconcertá-lo. “Eu iria
explicar a você, a todos. Quando estivessem prontos. As moedas que eu dei a
vocês... elas evoluem. Você também, Rogério, todos vocês vão poder ter uma
moeda de prata, assim como eu. É só fazer o que eu digo.”
A postura de Bodoni, mais que suas palavras, animou Rita e Spagnolo a
também fazerem seus questionamentos.
“Mas esse tal de Zambrini conseguiu a moeda de prata sozinho.”
“E em tão pouco tempo! Ele foi matriculado na Academia um ano depois
de nós, não é mesmo?”
“Calados!” Il Dottore não demorou a retornar ao seu velho eu. “Calados,
vocês todos. Nem mais uma palavra sobre esse assunto. No momento
oportuno explicarei tudo a vocês. Agora, temos assuntos mais urgentes a tratar.
Temos que dar um jeito nesse maldito Fausto.”
Todos sabíamos que isso ao menos era verdade. Zambrini não tardaria a
atacar novamente. Agora que parecia livre do jugo do doutor, o policial e
mafioso prometia ser um inimigo realmente formidável. E é por isso que o
doutor já tinha engendrado tarefas específicas para cada um de nós. É diante da
pressão de um adversário poderoso que um verdadeiro gênio do xadrez mostra
a sua melhor performance. Ele começou passando a missão de Rita e Spagnolo.
“Claudia e Andrea, quero que vocês saiam a campo.” Bodoni adorava usar
expressões do jargão acadêmico, era algo que ele não conseguia e nem queria
evitar. “Encontrem alguém parecido comigo fisicamente. Com a mesma
compleição, altura e peso. Se as feições forem parecidas, tanto melhor. Mas não
é essencial. O importante é que seja um solitário, alguém sem parentes ou
pessoas próximas, cujo desaparecimento não seja notado por algum tempo.”
A sombra de uma ideia cruzou a minha mente. Começava a adivinhar as
intenções de Bodoni. Notei que Rita também havia ficado tensa. Só Spagnolo é
que não demonstrou nenhuma alteração. Limitou-se a perguntar: “E depois que
o encontrarmos?”
“Tragam-no para cá. Discretamente, entenderam? Façam o que for preciso.
Inventem alguma desculpa para se aproximar dele. Dopem o sujeito com
clorofórmio, joguem dentro do carro e venham direto para cá. O mais rápido
possível, entenderam? Não temos tempo a perder.”
Depois que os dois saíram, ele voltou-se para mim:
“Rogério, você tem sido um bom aluno. Tenho grandes planos para você.
Vá para casa e faça suas malas. Iremos viajar em breve.”
“Para onde, doutor?”
“Você saberá na hora certa. E seja discreto. Ninguém deve saber que você
vai sair de Milão.”
Antes de deixar a sala, lancei um olhar de esguelha para Sergente. Até então
ele havia permanecido sentado em um canto, acabrunhado, os olhos fixos no
chão. Nesse momento ele ergueu o olhar para il Dottore: “E quanto a mim,
doutor?”
“Você ainda está muito abalado, Narciso. Prefiro que descanse um pouco.
Depois, pode me ajudar com o jantar.”
Achei isso estranho, mas não disse nada. Fui para casa e arrumei minhas
coisas. E fiquei esperando. Três dias depois, recebi um telefonema de Bodoni.
“Venha para cá esta noite. E traga suas malas.”
Só de olhar para ele, vi a provação que os últimos dias haviam representado.
Parecia que havia passado aqueles três dias bebendo muito e dormindo nada.
Mas havia um brilho fugidio em seus olhos, e ele parecia mesmo um tanto
eufórico. “Vá guardar as malas e depois me encontre na sala de jantar. Andrea e
Claudia já estão lá.”
Várias vezes já acontecera de fazermos as refeições em casa de il Dottore.
Mas naquela noite a mesa estava posta com um esmero fora do comum. Baixela
de prata e até flores! Estava claro que a ocasião era especial para Bodoni.
Spagnolo e Rita já estavam sentados, assim como o doutor. Havia somente
mais um lugar à mesa, que foi ocupado por mim. Não ousei perguntar por
Sergente.
O próprio Bodoni se encarregou de encher as taças: “Hoje quero propor um
brinde diferente.”
Diante de sua solenidade, nós três também nos levantamos, com as taças
erguidas.
“Bebamos em honra de Smashan Tara, a deusa que dança na pira funerária,
a mãe, amante e irmã da morte. Que Ela devore nossos inimigos com seu
apetite insaciável.”
E Bodoni emborcou de um gole o seu vinho. Tivemos pressa em seguir o
seu exemplo. O jantar transcorreu normalmente, na medida do possível. O
vinho servido era de boa safra. A comida estava saborosa. Mas somente Bodoni
parecia à vontade e bem falante. Nós três ainda não havíamos atinado no
motivo daquele jantar íntimo. Só sabíamos que não poderia ser boa coisa.
A revelação só foi feita depois que todos terminaram de comer. Bodoni foi
até a cozinha e voltou trazendo uma bandeja coberta por uma redoma de prata.
“A medalha conferida à traição é uma morte feia e inglória”, disse o doutor,
no tom de quem declamava um poema. “E esse foi o prêmio de Narciso, que
achou que poderia me trair. Ele já havia traído o seu amigo cara de cavalo, e
vocês junto com ele. E agora quis me trair também. Foi por isso que eu quis os
três aqui comigo na última ceia de Narciso. Existem poucas mortes mais
inglórias que ser transformado em fricassê.”
E foi assim que descobri que a inocência é como a esperança. Sempre resta
um pouco mais para se perder.
Com um gesto teatral, Bodoni destampou a bandeja de prata que havia
colocado no centro da mesa. O que ele revelou ao levantar a redoma de prata
não foi um pudim de leite, como eu esperava, mas a cabeça decepada e cozida
de Sergente.
“Alguém vai querer repetir?”
Ninguém vomitou, ninguém sequer protestou. Não lembro se fui eu quem
disse: “Tem gosto de frango.”
Imerso em delírios paranoicos, Bodoni havia encenado para nós a sua
versão particular do sava samskara, o ritual aghori que utiliza o cadáver como
altar para invocação de Smashan Tara, a divindade hindu dos campos de
cremação. Naquele momento, não pude atinar coisa com coisa. Depois é que
fui percebendo que havia uma certa lógica em sua loucura.
Coube a Rita perguntar o que os três queriam saber: “Doutor, peço sua
ajuda para esclarecer uma dúvida minha. Como é que Narciso foi capaz de
agredi-lo daquele jeito? Sabemos que para nós é impossível cometer qualquer
ato hostil contra o senhor, e tampouco permitir por inação que tais atos lhe
sejam perpetrados. Estou sentindo náuseas só por estar conversando sobre esse
assunto. É totalmente inconcebível para mim como Narciso fez isso.”
Ela soube escolher bem o momento. De barriga cheia, Bodoni mostrava-se
mais complacente: “A vontade de Fausto se interpôs sobre a dele. Narciso foi
um fantoche, uma marionete.”
“Mas então...”
“Então o quê?”
“Então Narciso não chegou a traí-lo. Nós temos motivos para considerá-lo
um traidor. Mas não o senhor, doutor.”
“Vejo que andou dando tratos à bola, hem? Mas eu sei qual é o seu medo.
No fundo, teme que eu faça com você o mesmo que fiz com Narciso. Agora
me escute, me escutem os três.” Deu para perceber que ele falava sério.
“Narciso fez por merecer. É verdade que o seu livre arbítrio foi sequestrado
por aquele demônio do Fausto. Mas ele jamais teria sido controlado tão fácil se
já não desejasse ardentemente me agredir. Nenhum homem pode ser forçado a
ir contra a sua verdade interior. Só é possível estimular ou inibir algo que já
existe na personalidade de cada um. Narciso queria muito me dar aquele soco
na boca. Por isso é que foi uma moleza dominá-lo daquele jeito.”
O doutor encheu o próprio copo e me estendeu a garrafa, não sem antes
gesticular indicando que desejava que eu servisse o vinho a todos. Foi o que fiz.
Bodoni deu um bom gole e continuou falando. Parecia ter sido tomado por um
estado de espírito melancólico.
“Suportaria estes tempos piores do que a idade do ferro, em que faltam nomes para os
crimes e que a natureza não pode designar por nenhum novo metal. A quem possa
interessar saber: essa frase Montaigne citou em seu ensaio sobre a vaidade,
atribuindo a autoria a um tal de Juvenal.”
Il Dottore estava visivelmente embriagado. Não queria mais parar de falar.
“Estamos vivendo tempos terríveis, minhas crianças. Serão exigidos de nós
grandes sacrifícios. Mas podem ficar tranquilos que a cota de sacrifício humano
já foi plenamente cumprida com o nosso não tão saudoso, talvez não tão
saudável, mas com certeza saboroso Narciso!”
O doutor oscilava muito de humor quando bebia. Esse era o problema. A
qualquer momento podia dar na telha dele querer nos fazer chorar.
“Eu já expliquei o que espero de cada um de vocês. Quer dizer, menos para
você, Rogério. Daqui a pouco lhe direi qual é a sua missão. O que quero dizer a
todos é o seguinte, abrindo o jogo: sei que cada um de vocês agora só está
pensando em conseguir também sua moeda de prata. Pois muito bem. É isso o
que vocês vão ter. Eu prometo. Basta cada um fazer o que eu mandei. Se cada
um fizer a sua parte, os três em breve terão suas moedas de prata. Ou não sou
chamado de il Dottore.”
Sócrates estava mesmo certo ao dizer que o prazer é apenas a ausência da
dor. É inacreditável o alívio que sentíamos só por Bodoni não pronunciar o
próprio nome.
“Andrea, você está pronto?”
Spagnolo assentiu com a cabeça. Havia em seus olhos uma expressão que eu
ainda não havia visto.
“Vá terminar a sua tarefa, então.”
Sem dizer palavra, Spagnolo levantou-se e saiu da sala. Era perceptível a
tensão que havia se apossado de Rita. O próprio Bodoni parecia tenso. Eu já
estava para perguntar o que estava acontecendo quando a casa foi tomada por
música em altíssimo volume. Era a overture de Don Giovanni.
“Isso é para abafar o barulho”, gritou Bodoni por cima da música.
“Que barulho?”
Nesse momento ouvimos um estampido. Parecia a detonação de uma arma
de fogo. Pouco depois a música foi desligada e Spagnolo surgiu na porta da
sala. Limitou-se a acenar uma vez com a cabeça. A sua missão estava cumprida.
Depois fui rapidamente informado de tudo. Spagnolo havia acabado de
estourar a cabeça de um homem com um tiro de espingarda. O homem vinha
sendo mantido sedado desde a noite anterior, quando Spagnolo e Rita o
trouxeram para a casa de Bodoni. O motivo de seu infortúnio foi ter o mesmo
porte físico que o doutor. Ao atirar, Spagnolo teve o cuidado de posicionar a
arma em um ângulo que favorecesse a hipótese do suicídio.
A carta de despedida já havia sido preparada por Bodoni, e foi deixada em
cima da cama, convenientemente próxima dos documentos que atestavam a
identidade do morto.
Spagnolo e Rita fizeram um ótimo trabalho. Haviam encontrado o perfeito
sósia para pagar o pato. Para ficar idêntico à foto que estava em seu novo
passaporte, il Dottore só teria que cortar um pouco os cabelos. Coisa que, óbvio,
ele recusou-se peremptoriamente a fazer.
Ao pensar sobre esses crimes, fui sendo tomado pela percepção de que
Bodoni via a si mesmo como uma espécie de artista. Do mesmo jeito que Nero,
ao oferecer para o mundo o espetáculo de Roma em chamas. Mas ao contrário
do imperador romano, Bodoni não permitia que sua alma de poeta interferisse
em seus interesses. O holocausto de seu primeiro pupilo, por exemplo,
certamente servia a algum tipo de senso estético, ainda que pervertido. Mas
também atendia a objetivos bem mais práticos.
A morte de Sergente era uma cortina de fumaça. Bodoni deixaria para a
polícia encontrar apenas o suficiente para que os restos fossem reconhecidos
como humanos. O cadáver não identificado na geladeira da cozinha era como
uma isca de cheiro forte, destinada a distrair os cães policiais do faro de outras
pistas. Foi por isso que o doutor descartou com um gesto de menosprezo a
hipótese que levantei, de que a polícia poderia confrontar as digitais do defunto
com as que estavam nos documentos de Bodoni.
“Aposto que nem vão pensar em fazer isso. Estarão muito ocupados
tentando descobrir quem foi a pobre vítima de il Dottore, o monstro canibal”,
gabou-se ele. “E além do mais, tudo o que eu preciso é de um pouco de tempo
até estabelecer uma nova identidade em outro lugar.”
E foi aí que o doutor me contou o restante de seus planos. Eu deveria
acompanhá-lo em uma viagem para o Brasil, dentro de algumas horas. De lá,
depois que eu tivesse a minha própria moeda de prata, o doutor seguiria
sozinho para outro lugar.
Rita continuaria em Milão, cuidando dos negócios legais do doutor. Toda a
papelada necessária já havia sido assinada. A essa altura Rita já havia se
formado, e poderia se tornar uma advogada brilhante. Ela e o doutor
manteriam contato através de uma caixa postal.
Quanto a Spagnolo, na prática foi quase como se tivesse sido alforriado.
Nitidamente o seu status havia subido diante de Bodoni. Sua responsabilidade
seria manter Isaac operacional e desde já iniciar a construção de um novo
modelo que seria levado para um local ainda a ser definido pelo doutor. O
contato também se daria por meio de caixa postal.
“Vejo a prata chegando rápido para você, Andrea”, disse o doutor, com
uma ponta de orgulho. “E aposto que você está sentindo isso também.”
O homem que foi assassinado com um tiro de espingarda na cara na noite
de 19 de março de 1987 chamava-se Harold Habbot. Era professor de piano
em Dresden. Estava em Milão a passeio. Viajava só. Seus únicos parentes vivos
eram uma tia e uma prima de segundo grau. Ninguém daria pela falta dele nos
próximos dias, a não ser o pessoal do hotel onde estava hospedado.
E foi por isso que antes de ir para o aeroporto passamos pelo Principe Di
Savoia, onde o professor Harold Habbot pôde apropriadamente fechar a sua
conta e apossar-se de sua bagagem. Foi o momento mais arriscado, em minha
opinião, ainda mais porque Bodoni de jeito nenhum quis cortar o cabelo.
“Esses imbecis não reparam em nada. Ninguém vai nem notar.” Dito e
feito. Pouco depois embarcamos sem incidentes rumo ao Brasil.
Tudo considerado já pela lúcida perspectiva do tempo, não deixa de ser
irônico. O professor Harold Habbot morreu como se fosse Mario Bodoni.
Mais de vinte anos depois, o próprio il Dottore seria ceifado quando se fazia
passar por Harold Habbot.
CAPÍTULO 62 – PREPONDERÂNCIA DO PEQUENO

Pequenas coisas podem ser feitas; grandes coisas não deveriam ser feitas. O
pássaro leva a mensagem: Não é bom se esforçar para subir, é bom permanecer
abaixo.
Trovão sobre a Montanha: Assim em sua conduta o homem superior dá preponderância à
reverência. No luto dá preponderância ao pesar. Em seus gastos dá preponderância à
frugalidade.
(I Ching – hexagrama 62)

Nem tudo o que o doutor dizia sobre as moedas era mentira.


Houve de fato um cientista de nome Chandra Bose, que realizou
surpreendentes descobertas a respeito das propriedades dos metais. Jagadish
Chandra Bose, mais conhecido como Dr. J. C. Bose, não foi uma invenção de
Mario Bodoni. Eu mesmo li seu Response in the Living and Non-living, Resposta
nos Vivos e Não-vivos.
Chandra Bose existiu mesmo. A não ser que consideremos um ponto de
vista transcendental, donde nem eu, nem o doutor Chandra Bose, tampouco il
Dottore existiríamos, somente existiria a Pergunta.
O que é isso dentro de mim? De que forma me domina? Como saber quem
sou eu, quando não há como saber se o meu querer é meu? O que são essas
moedas? De onde vêm? A que propósito servem? Tudo isso me cabia
descobrir.
Ao embarcar junto com Bodoni no avião para o Brasil, minha mente estava
focada na meta de conquistar a moeda de prata. Alcançar essa meta, para mim,
significava encontrar a Resposta. Era como um vício. Eu não conseguia pensar
em outra coisa.
Estava voltando para casa após longos anos de ausência, sendo que nos
últimos dezoito meses houvera praticamente só o silêncio entre minha família e
eu. Um perfeito retorno do filho pródigo. Para mim não havia grandes
possibilidades de ser bem recebido. E muito menos ainda viajando em
companhia do professor Harold Habbot, o alemão com um curioso sotaque
italiano. Isso tudo estava me preocupando, sim. Mas eram assuntos
secundários, de somenos importância. Tudo o que me importava era como
conseguir a bendita moeda de prata.
Li esse estudo do Dr. J. C. Bose sobre os metais durante o voo de volta para
casa. O livro foi um presente de viagem de Il Dottore. Talvez por tê-lo lido nas
alturas, pude alcançar as ideias ali contidas, um revolucionário ponto de vista
sobre a própria natureza da vida.
Foi esse livro que me ensinou que os metais estão vivos.

Brancas avançam na primeira:


O pássaro voando sobe até que o resultado seja mau.

Foi por insistência de il Dottore que passamos apenas uma noite em Rio
Santo. Logo bem cedo na manhã seguinte de nossa chegada ao Brasil, já quis
encerrar a conta no hotel Émile e seguir direto para a fazenda de meu pai.
Bodoni estava paranoico ao extremo. Achava que estaríamos mais seguros
bem escondidos no meio do mato. Não era apenas o medo de ser descoberto
por Zambrini. Percebi que tinha medo até de mim. Medo do que aconteceria
quando eu conquistasse a minha moeda de prata. Por isso também aquela
pressa toda em sair da Itália, em deixar Rita e Spagnolo para trás. Só pude
entender isso melhor mais recentemente. Para saber lidar com uma moeda de
prata, é preciso ter uma moeda de ouro. Bodoni não havia sido ambicioso o
suficiente. Ficou acomodado com sua academia do sexo.
Afortunadamente meu pai não estava em casa. Estava em sessão na Câmara
dos Deputados em Brasília. Meu irmão mais velho o estava acompanhando.
Sempre foi mais fácil acomodar as coisas com minha mãe. Ela recebeu o
professor Habbot com toda a educação de uma dama rural. Valendo-se dessa
mesma educação, procurei evitar seus olhares inquisitivos. O que eu poderia
dizer? Minha família já sabia que eu havia ingressado em alguma espécie de
academia filosófica, e que por conta disso havia interrompido meus estudos na
Universidade Bocconi. Na época, meus pais fizeram o que lhes cabia fazer, e
cortaram a minha mesada. A medida não surtiu grandes efeitos, pois eu já
estava ganhando muito mais com Isaac. E agora eu retornava para casa, sem
nenhuma outra explicação a oferecer além de estar acompanhando meu
instrutor da academia em sua visita ao Brasil.
Não que fizesse muita diferença. Eu nunca tive muita importância para
meus pais. Era apenas o filho do meio, o estepe, o dispensável. Cabia a meu
irmão mais velho alimentar os sonhos de continuidade política de meu pai. E a
minha irmã caçula, que atualmente estava cursando medicina em Rio Santo,
cabia ser a mimada, a princesa, a mais querida. A mim cabia ser o filho
problema, o estorvo indesejável a ser despachado para a Europa e então
esquecido. Até então havia cumprido bem o meu papel. Mas por debaixo do
verniz de polidez com que minha mãe nos recebeu, pude ver que voltar assim
ao Brasil, sem avisar, não fazia parte do script que se esperava que eu seguisse.
No fundo, eu sei o que se passou pela cabeça de minha mãe. Sei o que ela
secretamente temia. Que eu fosse uma formiga de chuva, que cria asas para se
perder. Que eu tivesse sido seduzido e aliciado por aquele estrangeiro de fala
mansa, e que agora estivesse servindo com minha beleza e juventude aos
caprichos de um homem degenerado. Sei que isso passou pela cabeça dela. Pois
minha mãe não era burra. E isso tudo era apenas a verdade. Sei que minha mãe
soube de tudo, sem que eu dissesse uma única palavra. Coração de mãe não se
engana.
Bodoni atribuiu a minha contrariedade ao sentimentalismo latino. Para ele,
tudo estava correndo muito bem. Durante o jantar, ele conversou bastante com
minha mãe em inglês e até arriscou umas palavras em português. Quando
queria, il Dottore sabia ser encantador.
Essas foram as emoções de nosso primeiro dia na fazenda de meu pai. No
segundo dia, graças a uma cozinheira falastrona que se derreteu com os elogios
do charmoso professor alemão, ficamos sabendo da história da louca Joana.
A louca estava sendo mantida a ferros, sob vigilância armada. Estava presa
no casebre abandonado próximo aos estábulos, onde dormiam os cavalos
bravos e as éguas xucras. Aguardava a chegada do senhor deputado meu pai,
para lhe decidir o destino. Pois havia cometido um crime de morte.
Apesar de louca, era ainda bem jovem e muito bonita, como contou a
cozinheira. Foi vista perambulando pelas terras de meu pai, as vestes em
farrapos exibindo a sua nudez de novilha insana.
Um dos peões da fazenda não resistiu ao apelo da carne. Quis barranquear a
louca, como se fosse um bicho. Jogou a moça por cima de uma touceira e a
submeteu debaixo de tapa, como se bicho fosse. Quando estava saciando seus
instintos, descuidou-se por um segundo. A louca enfiou os dedos de unhas
compridas e sujas de terra nos seus olhos, e no instante seguinte cravou os
dentes em sua garganta. Quando a encontraram, ainda estava tentando sugar o
sangue do pescoço do peão morto.
“É para alimentar os meus bebês”, ela disse para os homens que a
encontram, com a cara toda lambuzada de sangue seco, como um zumbi na
noite dos mortos vivos.
Como o sinistro havia se dado dentro das terras de meu pai, o capataz
houve por bem abafar o caso, com a conivência das autoridades locais, e deixar
a louca presa ali mesmo na fazenda até que o deputado retornasse de Brasília.
Só que um imprevisto ou outro acabaram mantendo meu pai fora de casa por
mais tempo que o esperado. E nessa passaram-se três meses. O que estava
deixando as mulheres da cozinha alvoroçadas era a notícia que vinha correndo
de que a louca devia estar mesmo grávida. Desde que fora presa não teve regras
e havia quem já lhe enxergasse a barriga crescendo. Era um problema e tanto
que aguardava a chegada de meu pai.
Bodoni ficou imediatamente interessado pelo caso. Quis a todo custo visitar
a tal louca. Assegurou a minha mãe ser um perito em psiquiatria criminal,
estando por isso habilitado para prestar o auxílio necessário à família de seu
pupilo, em um momento tão delicado. E assim ficou acertado que naquela
mesma tarde o capataz conduziria o professor e eu até o casebre onde Joana
estava encarcerada.
Brancas avançam na segunda:
Ela passa pelo Avô e encontra a Avó. Ele não alcança o príncipe, mas encontra o seu
servidor. Sem culpa.

Nós a encontramos surpreendentemente limpa, em contraste com a sujidade


do ambiente que a envolvia. O tal casebre não passava de um aposento
quadrado e baixo, sem janelas, com um teto de zinco. Mal fazia por merecer até
mesmo essa humilde designação de casebre. Havia sido construído para o
estoque de materiais e ferramentas, e por um motivo ou outro ficara fora de
uso.
A louca havia sido acorrentada pelo tornozelo a uma viga no centro do
aposento. Perto dela estava uma bacia com água, que evidentemente utilizava
para se banhar. Um latão de alumínio ao lado da bacia indicava que a mesma
água também servia para beber. Perto da porta, no limite do alcance de Joana,
estava o penico, pudicamente coberto por uma folha de papelão.
“Ela é mesmo uma beleza, não é, Rogério? O que você acha, será que ela
está mesmo grávida?”
Eu não estava entendendo muito bem o que o doutor pretendia, mas sabia
que não poderia ser boa coisa. Ainda mais quando ele me disse para despachar
o capataz e o vigia para longe dali.
“Precisamos de total privacidade. Total.” Ele até quis que eu oferecesse
dinheiro aos dois para nos deixarem a sós com Joana. Depois que eles se foram,
perguntei-lhe o que pretendia fazer.
“É preciso intentar proezas, meu caro Rogério”, ele me disse em italiano.
“Só existe um modo seguro de lidar com aquele maldito Fausto. Tenho que
conseguir a minha moeda de ouro.”
Naquele momento vi que Bodoni também era um escravo. Experimentei
uma curiosa mistura de emoções, de um jeito que nunca antes havia sentido. De
um lado, a amarga desilusão pelo cair da última máscara de Mario Bodoni. Do
outro, a doce euforia de descobrir que além da prata, existia o ouro. Eu tinha
todo um mundo novo para conquistar.
“Os tempos são outros. É preciso ser criativo, fazer o inesperado, conseguir
o impensável. Observe e aprenda, Rogério. Com a minha ajuda, breve você
obterá a sua moeda de prata. E eu terei também o que preciso.”
Quando voltamos ao casebre, a louca encolheu-se de encontro à viga.
“Como pretende submetê-la, doutor? Lembre-se de que ela rasgou a garganta
de um homem com os dentes.”
“E também vazou os olhos dele. Sim, eu sei. Nem todos gostam de jogar
xadrez, não é mesmo?”
Ele tirou do bolso uma pequena seringa hipodérmica, que obviamente havia
preparado antes de sairmos da casa grande. Com a seringa apontada para o teto,
pressionou levemente o êmbolo até que uma gota translúcida brotasse da ponta
da agulha. Ante a visão da agulha, Joana soltou um gemido saído de suas
entranhas, um rugido de horror e desamparo. Era um som capaz de gelar a
alma.
“O que tem nessa seringa, doutor?”
“Um pequeno coquetel de minha invenção. O componente básico é o
pentotal de sódio, acrescido de dez miligramas de nicotina. O resultado é um
poderoso relaxante muscular e mental, um sedativo físico e psíquico.”
“O senhor pretende dopar a moça, doutor?”
“Dopar apenas, não.” Por um breve momento, Bodoni voltou a exibir seu
velho sorriso de jacaré. “E é aqui que entra o ingrediente principal. Esse truque
eu aprendi quando passei aquele tempo na Índia, com os aghoris. E agora
ensino a você. Ouça e aprenda, Rogério.”
Il Dottore levou a seringa à altura da boca. Sua expressão tornou-se solene.
Ele começou a recitar o mantra, que para mim soou assim: “Main ijccha vasana
kamuka yuri eka dakitadali kamsmika samboga lana. Main ijccha vasana kamuka yuri
eka dakitadali kamsmika samboga lana. Main ijccha vasana kamuka yuri eka dakitadali
kamsmika samboga lana.”
Vinte minutos depois, na centésima oitava repetição, o doutor deu-se por
satisfeito. Podia ser só impressão minha, mas o líquido dentro da seringa
parecia ter adquirido uma fugaz coloração avermelhada. Bodoni voltou a soltar
o seu sorriso de lobo mau: “Uma tradução literal desse mantra poderia ser: eu te
concedo luxúria, prazer sensual e um poderoso orgasmo cósmico.” Ele fez um gesto para
que eu o ajudasse a cercar a louca. Começamos a avançar lentamente pelo
exíguo aposento, ele pela direita e eu pela esquerda. O doutor continuou
falando. “O resultado é simplesmente fabuloso. Uma droga que deixa a pessoa
tão relaxada que ela é incapaz de se mover, mas permanece totalmente
responsiva aos estímulos sensórios. A pessoa não pode lutar e nem fugir, mas
continua sentindo dor e prazer. Pense nas possibilidades. Eu poderia ter feito
uma fortuna só com a patente dessa belezinha.”
A manobra rudimentar surtiu efeito. Joana só percebeu que eu estava atrás
dela quando já era tarde. Agarrei seus braços por trás e sustive de encontro à
pilastra. Bodoni não perdeu tempo e avançou com a seringa em riste. Dentro
de alguns instantes a louca parou de se debater e deixou pender os braços,
como se estivesse desacordada. Só os olhos é que continuavam arregalados, em
seu mudo desespero.
“Rápido, ajude-me a despi-la desses trapos.”
Joana vestia apenas um velho e esburacado vestido de chita, e por baixo uns
panos amarrados que lhe serviam de roupa de baixo. Ao olhar para seu corpo
nu e esguio, tornava-se evidente a saliência projetando-se do ventre.
Bodoni já havia guardado a seringa. Em sua mão havia agora uma moeda de
cobre.
“Vamos virá-la de bruços.”
Logo a moeda estava firmemente fixada no cóccix de Joana, na intercessão
exata das nádegas redondas e magras.
“Pronto”, grunhiu Bodoni satisfeito. “Agora resta apenas a árdua tarefa de
fazer essa bezerrinha ter um orgasmo. Veja e aprenda, meu caro Rogério.”
Finalmente a ficha caiu para mim. “Foi com essa droga que o senhor
conseguiu contratar Zambrini.”
Bodoni sorriu novamente, mais predatório que nunca. “Ele e muitos outros.
Afinal, a necessidade é a mãe da invenção. E como eu disse, não é todo mundo
que gosta de jogar xadrez.”

Pretas avançam na quarta:


Ele o encontra sem que esteja procurando. Avançar traz perigo. É preciso estar em guarda.
Não aja. Seja perseverante.

Estávamos na fazenda há duas semanas quando meu pai chegou. Depois do


jantar, quando finalmente pude falar com ele, não houve desperdício de
palavras com amabilidades inúteis. Meu pai foi direto ao ponto. “Quem esse
professorzinho pensa que é para chegar assim, querendo mandar em minhas
terras? O que esse homem fez com você, meu filho? Você está irreconhecível.”
Fosse noutros tempos, essa fala seria o início de uma longa discussão com
meu pai, que acabaria se transformando em um debate amargo e mesquinho.
Mas eu estava mudado. E realmente devia isso ao doutor. Depois de ter
passado um ano e meio sob a rígida tutela de Mario Bodoni, aquele confronto
com meu pai esvaziava-se de importância como um pneu furado.
Tudo o que tive que fazer foi agir com meu pai como se ele fosse il Dottore.
Menos a parte sexual, é claro. Mas com toda a subserviência e dissimulação que
meus sorrisos e lágrimas fossem capazes de gerar.
Meu pai ficou surpreso, e agradavelmente. Afinal pude fazer com que me
ouvisse. E ele acabou dando ouvidos à razão. Aceitou a proposta do professor
Habbot de levar a louca para um hospital em Rio Santo, onde permaneceria sob
cuidados médicos até o momento do parto. O professor custearia todas as
despesas do transporte e da internação, e assumiria a responsabilidade por tudo.
Estava na verdade livrando meu pai de um problema.
Quem diria que seria tão fácil lidar com meu pai. Tudo o que precisei fazer
foi me transformar em um escravo.

Brancas avançam na sexta:


Alguém passa pelo outro e não o encontra. Os pássaros o abandonam. Isto significa má sorte
e ferimentos.
Esse inesperado laço com Joana acabou determinando nossa permanência
em Rio Santo pelos seis meses seguintes. Aos poucos fui compreendendo
aquela obsessão de Bodoni com a louca. Ele estava fazendo uma espécie de
experimento.
“É preciso mostrar iniciativa, Rogério. Mostrar que você pode ser útil,
contribuir com ideias novas. Manter a velha chama da ambição acesa. É assim
que se conquista uma moeda de ouro.”
Durante os primeiros dias ficamos hospedados no Émile. Depois Bodoni
achou melhor alugarmos um apartamento no centro. Um dia ele saiu do
apartamento para dar uma volta e acabou conhecendo Irene. E assim conseguiu
complicar ainda mais a situação.
Irene era dançarina. Trabalhava em um show de mulatas, tradicional atração
turística de Rio Santo. Era jovem e bonita, estava com tudo em cima. Ainda
assim, não consigo entender como ela conseguiu mexer tanto com il Dottore. Só
posso crer que ele ficou mesmo apaixonado. O mais curioso de tudo é que ele
nunca chegou a matricular Irene em sua academia. Fez um filho nela, mas não
lhe deu uma moeda de cobre. Só pode ter sido o ziriguidum da moça.
Não que eu estivesse reclamando. Bodoni saiu um pouco de meu pé,
dividido como estava entre Irene e Joana. Assim pude dedicar mais tempo à
minha ocupação predileta: fazer planos para conquistar a moeda de prata. Mas
o doutor ainda deu um jeito de me arranjar umas tarefas. Durante esses
primeiros meses, providenciei o transporte para Rio Santo e a instalação da
réplica de Isaac, que Spagnolo havia concluído em tempo recorde. Outra
demanda de Bodoni foi que eu intermediasse o contato com um falsário seu
conhecido na Itália para que ele providenciasse uma nova identidade para o
doutor. Não era conveniente que ele continuasse indefinidamente utilizando o
nome de Harold Habbot.
Quanto à louca, deu entrada na clínica como Joana Silva. O doutor ficou
exultante quando os exames confirmaram a gravidez de gêmeos. No dia do
parto estava tão ansioso que parecia mesmo o pai. Ele demonstrou bem mais
consideração com Joana que com Irene, no final das contas. Quando o seu
filho biológico nasceu, o doutor nem estava mais no Brasil.
Joana acabou morrendo na mesa de operações. Caso isso não tivesse
acontecido, Bodoni provavelmente a teria trancado em algum manicômio e
jogado a chave fora. A morte de Joana facilitou as coisas para ele.
Júlia foi a primeira a nascer. Ao ser arrancada do ventre de sua mãe, já
ostentava uma bem polida moeda de prata afixada à base da coluna. Joaquim
saiu quinze minutos depois, mais franzino e mais frágil que a irmã. Teve
complicações após o parto e quase que foi junto com a mãe. Ele nasceu com
uma moeda ordinária de cobre. A sua prata só chegou durante a puberdade,
junto com a voz grossa e os pentelhos.
Poucos meses depois do nascimento, Bodoni anunciou que iria para os
Estados Unidos levando os gêmeos. Eu deveria continuar em Rio Santo, dando
continuidade à operação de Isaac em nosso mercado local. O doutor embarcou
utilizando sua nova identidade, bem mais adequada para ele: Anton Bandura,
cidadão ítalo-americano.
Nas últimas semanas antes de viajar, il Dottore parecia remoçado, emanava
vigor e disposição. Na noite da despedida, descobri o porquê.
Bodoni havia feito por merecer a sua moeda de ouro.
Antes de embarcar, ele me aconselhou:
“Siga a pista de Chandra Bose.”
CAPÍTULO 26 – FORÇA DO FORTE

A Força do Forte. A perseverança é propícia. Não comer em casa traz boa


sorte. É favorável cruzar a grande água.
Céu dentro da Montanha: assim o homem superior familiariza-se com os ditos e feitos da
antiguidade, a fim de fortalecer o seu caráter.
(I Ching – hexagrama 26)

Jagadish Chandra Bose foi de fato um homem único. Comecei a pesquisar


mais e mais sobre ele, na esperança de encontrar alguma revelação sobre como
conseguir a minha moeda de prata.
Ele hoje é tido como um herói nacional na Índia, mas essa fama é pequena
diante de seus feitos. Só para se ter ideia, J. C. Bose inventou o telégrafo sem
fio alguns anos antes que Marconi se tornasse célebre por fazer o mesmo em
1896. A glória não foi para o doutor Bose por um motivo muito simples: o
cientista indiano recusava-se a patentear seus inventos. Para ele, as descobertas
da ciência deviam servir para o bem de toda a humanidade.
Outra invenção espetacular de Bose foi o crescógrafo, que permitia uma
ampliação de até dez milhões de vezes, numa época em que o microscópio mais
possante ampliava apenas alguns milhares de vezes. Ele utilizou o crescógrafo
para observar o crescimento das plantas, e acabou chegando à revolucionária
descoberta de que os vegetais também são capazes de experimentar dor e
prazer, tal como os animais. Foram os estudos de Bose sobre a vida secreta das
plantas que acabaram lhe granjeando o merecido reconhecimento no meio
científico.
Antes disso, durante um curto período de tempo, ele dedicou-se a um
estudo semelhante sobre os metais. Tudo teve início com mais uma de suas
invenções não patenteadas. O Dr. J. C. Bose havia construído um coesor
altamente sensível para receber ondas de rádio, que era de longe bem mais
compacto e eficiente que os utilizados na Europa.
Só que mesmo o sofisticado aparelho do doutor Bose apresentava um
problema comum aos outros aparelhos inferiores. Após certo tempo de uso, o
coesor começava a mostrar uma perda gradual de sensibilidade.
Misteriosamente, se o aparelho fosse deixado inativo por um período, acabava
voltando a funcionar bem novamente.
Isso levou a uma das descobertas mais importantes feitas por Bose, a fadiga
do metal. Hoje o fenômeno é plenamente conhecido e pode ser demonstrado da
maneira mais simples, pegando um clipe de papéis e dobrando uma haste para a
frente e para trás até que se quebre. A haste do clipe é rompida devido à fadiga
do metal.
Mas Chandra Bose não ficou satisfeito com essa descoberta. Ele prosseguiu
em sua pesquisa e acabou descobrindo bem mais. Em setembro de 1900 o
cientista indiano apresentou os resultados de seus estudos na Royal Society de
Londres.
Ele foi bastante ousado ao afirmar que existia um paralelismo entre as
reações de um tecido vivo a um estímulo externo e as respostas da matéria
inorgânica a estímulos similares. Em outras palavras, Bose declarou que os
metais estavam vivos. E não se limitou a afirmar apenas: ele comprovou, diante
dos atônitos cientistas britânicos, a veracidade de suas descobertas.
O experimento foi feito com um pedaço de estanho atrelado a um potente
sensor, que registrava em um gráfico as ondas características de sua estrutura
atômica. O sensor também foi outra invenção de Bose.
Quando ele banhou o pedaço de estanho em clorofórmio, o padrão
vibratório cessou subitamente, e foi lentamente retornando à medida que o
estanho voltava ao estado normal. O doutor havia conseguido fazer uma barra
de metal “desmaiar” e “voltar a si” em seguida.
Restava apenas assassiná-la, para provar definitivamente que estivera viva.
Ao aplicar um veneno químico ao pedaço de estanho, a agulha do gráfico deu
um salto e ficou completamente imóvel. O pedaço de metal estava morto.
É claro que os altivos membros da academia de ciências de Sua Majestade
não iriam engolir aquilo de um reles nativo das colônias britânicas.
Encabeçados por John Burdon Sanderson e Augustus Waller, dois eminentes
fisiologistas, a Royal Society recusou-se a publicar as descobertas de Bose,
alegando algumas discrepâncias irrelevantes na metodologia.
Determinado a defender até o fim suas ideias, Chandra Bose decidiu
permanecer em Londres. Com a paciência típica dos orientais, refez todos os
seus experimentos até que atendessem plenamente aos padrões exigidos pela
academia britânica. No ano seguinte voltou a apresentar-se diante da Royal
Society. Sua pesquisa era irretocável sob todos os aspectos.
Não foi o suficiente. Bose foi discretamente aconselhado a direcionar seus
estudos para outras áreas menos esotéricas que a vida nos metais. Percebendo
que havia inadvertidamente ferido o orgulho de seus colegas ingleses, Bose
acabou cedendo. Esse foi o fim de seus estudos com metais.
E com isso a consciência dos metais acabou tornando-se uma mera nota de
rodapé na história do conhecimento científico. Permanece até hoje ignorado
por boa parte do mundo que os metais são capazes de experimentar dor e
prazer, assim como as plantas e os animais.
Para a Fábrica, melhor assim.

Pretas avançam na primeira:


O perigo está próximo. É vantajoso desistir.

Mas só as teorias de Bose não eram suficientes para explicar as moedas. Era
preciso mais que isso para entender o seu funcionamento, para elucidar a
maneira como elas atuam na fisiologia e na psique humana, exacerbando e se
nutrindo da luxúria e da ganância, transformando cada vez mais a pessoa em
uma escrava de seus próprios desejos.
Quanto mais eu estudava, mais minha mente ficava cheia de dúvidas. Outro
mistério era a interação entre os diferentes tipos de moeda. Que força é essa da
prata, que a torna capaz de submeter o cobre? Quais seriam os inimagináveis
poderes do ouro? Como explicar o poder soberano que Bodoni continuava
exercendo sobre mim, mesmo à distância?
Não era apenas o medo de ser punido que me movia, que me compelia a
obedecer cegamente aos comandos e desmandos de il Dottore. A cada vez que
ele me mandava fazer algo, sentia como se minha felicidade pessoal dependesse
totalmente do bom cumprimento da tarefa. Hoje sei muito bem como funciona
a imposição da vontade. Mas na época eu era um simples peão. Não tinha
como saber.
O que eu sabia é que as moedas estavam vivas, e estabeleciam uma espécie
de simbiose com o portador. Por experiência própria eu já havia comprovado
que ao menos do ponto de vista estritamente fisiológico essa simbiose era
altamente vantajosa.
Saúde corporal, tônus muscular, vigor físico são fracas descrições da
transformação que se opera no organismo portador da moeda. Lembro que
uma das calouras de Bodoni em sua primeira semana de Academia descreveu
bem essa sensação: “É como se eu tivesse cheirado cocaína o tempo todo. E o
melhor de tudo é que a ressaca nunca bate!”
Essas reflexões não aconteceram de forma linear e sequencial. Foram antes
fragmentos de intuições, insights saltados e desconexos que fui montando em
um mosaico cada vez mais sinistro. Aos poucos, fui construindo uma imagem
que se tornou real demais para que pudesse ser negada.
Eu começava a suspeitar que as moedas não só estavam vivas, como eram
também inteligentes. Ou ao menos dotadas de uma firme vontade e de
obscuros propósitos.
Mas de onde viriam as moedas? Como uma criança contemplando o
repolho, a cegonha, as abelhinhas e o sexo, eu me perguntava qual seria a
verdadeira origem das moedas, qual o mistério apavorante daquela existência
que eu passara a reconhecer.
Eu não sabia como interpretar aquilo tudo. Havia lido em algum lugar que o
ouro e a prata surgem das explosões de Supernovas. Como é que o cobre iria se
transformar em prata, e esta em ouro?
Por outro lado, é bem conhecida a busca dos alquimistas pela pedra
filosofal, que seria capaz de transformar o chumbo em ouro. Será que essa
lenda nasceu de uma deturpação do processo de metamorfose das moedas?
Era incrível para o senso comum e impossível para o pensamento científico.
No entanto, as moedas eram reais. Mas o que seriam elas?
Seriam criaturas concebidas em laboratório, resultado de algum bizarro
experimento científico? Ou então seres alienígenas, introduzidos na Terra para
cumprir um plano maléfico? Seriam entes sobrenaturais, gerados por magia
negra?
Tudo era possível. Tudo era inconcebível. A julgar pelo passado de Bodoni,
qualquer hipótese era igualmente válida, igualmente inaceitável.
Em um rasgo de generosidade, il Dottore havia me colocado na pista de
Chandra Bose. Foi o que me despertou para o fato de que as moedas estavam
vivas. Todo o resto não passava de especulação.

Brancas avançam na quinta:


As presas de um javali castrado.

Fausto Zambrini também havia oferecido uma pista importante. Com ele
aprendi que as moedas se alimentavam da ambição humana. Para conseguir a
prata, é preciso querê-la muito. Para alcançar Zambrini, eu precisava me tornar
como ele.
Dediquei-me de corpo e alma à tarefa de me transformar em um monstro
da cobiça, em um demônio da luxúria. Mas minha metamorfose não foi tão
aterradora quanto a de Spagnolo, nem tão nauseante quanto a de Rita.
Não tive dificuldades em estabelecer minhas operações no mercado local. A
bolsa de valores de Rio Santo não difere muito da de Milão. E a cada vez que
eu coletava os dividendos, separava religiosamente a parte que cabia a Bodoni.
Foi quando descobri que continuava sendo compelido a obedecer suas
instruções mesmo à distância. Meus contatos com ele eram pouco frequentes.
Contanto que o dinheiro continuasse entrando na conta, il Dottore estava
satisfeito. E eu estava enviando bastante dinheiro.
Isso me dava ao menos uma ilusão de liberdade. Eu era jovem,
financeiramente independente, estava bem de vida. Só visitava a família nas
raras e inevitáveis ocasiões sociais. Todo o meu tempo livre era gasto em sexo e
estudos sobre as propriedades dos metais. Pela primeira vez na vida, eu estava
realmente focado em um objetivo.
E foi então que teve início o processo que só posso chamar de gestação.
Primeiro os sintomas eram muito sutis para serem notados. Períodos de alta
agitação, quando eu sentia uma espécie de euforia indistinta, eram substituídos
por momentos intermináveis de letargia e marasmo, quando a menor tarefa
parecia um desafio insuperável. Tive febres e suores noturnos. Mudanças de
humor. E também uma estranha compulsão alimentar.
Adquiri o costume de ir pessoalmente ao mercado, e ficava vagando por
entre as prateleiras até sentir o súbito impulso de consumir quantidades
infinitas dessa ou daquela mercadoria em exposição. Certa vez devorei cinco
dúzias de ostras cruas. De outra, foi um saco de um quilo de sementes de
girassol.
Um belo dia acordei e havia acontecido. Não precisei olhar no espelho para
saber que a minha moeda era de prata. Mas é claro que fui correndo olhar. A
visão de minha própria bunda no espelho, ornada como estava por uma
medalha de puríssima prata, tomou-me de uma comoção tal que quando dei
por mim estava literalmente com o pau na mão. Friccionei o meu pênis duro e
aflito com a mão esquerda, enquanto a destra ocupava-se em acariciar a minha
recente e brilhante conquista argentina.
Não demorou muito para chegar o fim. E foi um verdadeiro apocalipse.
O prazer mais avassalador e a dor mais excruciante deram as mãos para um
bailado de fúria e êxtase. Eu não acreditava que fosse possível sentir tanta dor e
prazer ao mesmo tempo.
Ejaculei em câmara lenta, um gozo espesso, quase sólido, como se meu
pênis fosse um termômetro que houvesse estourado. O esperma não saía
branco, e sim avermelhado, um pouco mais escuro que a lava incandescente.
A princípio pensei que eu tivesse gozado sangue. Mas era algo bem diferente
o que havia saído de minhas entranhas.
Diante de meus olhos incrédulos, a gorda gota de cobre foi se solidificando
até assumir aquele formato tão familiar de uma moeda.
CAPÍTULO 57 – VENTO

O Gentil. Sucesso através do que é pequeno. É propício ter aonde ir. É


propício ver o grande homem.
Ventos seguindo-se um após o outro: a imagem da penetração gentil. Assim o homem superior
leva suas ordens adiante e cumpre suas tarefas.
(I Ching – hexagrama 57)

Custei a aprender. Mas depois que aprendi, coloquei em prática.


A moeda de prata trouxe-me uma nova percepção diante das coisas. Sentia a
mente mais aguçada, o corpo cheio de energia, o ânimo cada vez mais intenso
na conquista de meus objetivos. Comecei a enxergar coisas óbvias, antes
ocultas. O mundo inteiro era o cenário para a consecução de meus desejos.
Devo muito a Bodoni. Nada como aprender com os acertos e erros dos
outros. E olha que ele cometeu bastante dos dois. Alçado à posição de cavalo,
eu conseguia alcançar o ponto de vista dele, compreendê-lo melhor em suas
limitações e também em seus vislumbres de gênio.
Um de seus grandes vacilos foi querer sempre conduzir pessoalmente as
contratações. Pouco eficiente, para dizer o mínimo. Essa compreensão surgiu
com a primeira moeda de cobre que gerei a partir de minhas próprias vísceras.
Eu sabia que ela me pertencia, era uma filha de minha moeda de prata, e a
pessoa que a usasse estaria irremediavelmente condenada a me obedecer nos
menores caprichos. Não era preciso humilhá-la, fazendo nascer um
potencialmente perigoso desejo de vingança. E muito menos necessário era
estabelecer com ela uma intimidade que acabaria por revelar as minhas
fraquezas.
Outro erro frequente de Bodoni era misturar negócios com prazer. Suas
contratações tinham muito mais a ver com a beleza física e a juventude dos
contratados de ambos os sexos, que com propriamente o uso que pudesse fazer
deles em sua organização. A Academia não era muito mais que um harém
universitário, e para il Dottore estava bem assim. Ele sonhava pequeno. Era
preciso ousar ir muito além disso para se conceber a Fábrica.
Gerei cinco moedas de cobre em minhas duas primeiras semanas como
cavalo. Com elas contratei prostitutas de luxo, cinco lindas e talentosas
profissionais do sexo.
Com essas cinco putas, e com outras moedas que me foram purgadas do
pau, ergui o meu império.

Brancas avançam na primeira:


No avanço e na retirada, a perseverança de um guerreiro é propícia.

Uma de minhas primeiras decisões como cavalo foi expandir as áreas de


atuação de Isaac. Não me contentava mais em simplesmente continuar
investindo na bolsa. A especulação financeira, por mais lucrativa que fosse, era
uma atividade estéril. Como o grande conquistador recém-nascido em mim
exigia, era preciso meter as mãos no mundo e moldá-lo à minha semelhança.
Já há algum tempo eu sabia que as previsões de Isaac seriam igualmente
valiosas em muitos tipos de empreendimento. E de modo especial se os
caminhos que eu pretendia trilhar passassem ligeiramente à margem da lei.
Agora eu estava no Brasil, em meu próprio território. Conhecia a vocação
nacional para a corrupção e estava disposto a fazer o melhor uso dela.
No Brasil, ninguém que queira seguir a lei muito à risca prospera. É preciso
uma dose de esperteza, de malandragem mesmo para saber quando e onde
burlar as limitações legais que separam os bem sucedidos dos trouxas. Muito
mais vantajoso é seguir a lei universal da corrupção: nada se consegue sozinho.
Tudo depende da ajuda dos amigos.
Para ter sucesso como eu imaginava, precisaria construir uma rede poderosa
de amigos. Para garantir o êxito de minhas operações, necessitava da conivência
e da boa vontade de muitas pessoas em posições de autoridade.
Empreguei minhas putas na conquista desses amigos. Um juiz aqui, um
delegado de polícia ali, um vereador acolá. Na maioria das vezes não foi difícil
fazer chegar uma de minhas meninas até a presa que eu havia escolhido. As
portas do poder dificilmente se fecham para mulheres bonitas. E as minhas
meninas não eram qualquer meretriz rampeira de esquina, não. Foram
escolhidas a dedo. Todas tinham classe. Pena que duraram pouco. A beleza é
uma mercadoria altamente perecível.
A cada vez que eu tinha de produzir uma nova moeda de cobre, a dor do
parto era minimizada por essa feliz imagem: cada moeda era mais um elo na
firme cadeia de poder que eu estava construindo. Para colocar em ação o que
eu estava planejando, precisava já de saída contar com um bom estoque de
moedas.
Enquanto isso ia treinando bem as minhas princesas do sexo. Com a prática,
elas foram se tornando ainda melhores. Conduziam a sessão de
condicionamento à perfeição, inculcando na mente de meus contratados os
comandos verbais que ativariam os gatilhos de dor e prazer em seus cérebros.
Nisso imitei a maioria das ideias de Bodoni. Utilizei o meu próprio nome para
induzir dor e medo instantâneos: Rogério Arcanjo Bastos. Para o recurso
extremo da hiperexcitação das amígdalas do cérebro, preferi o meu apelido de
Olimpiano dito de trás para frente: tonatufor. O serviço era tão bem feito que a
maioria de meus fantoches saía da sessão apenas com a lembrança de uma
trepada excepcional com uma mulher muito bonita. E o melhor de tudo:
ninguém sequer desconfiava que estava carregando uma moeda grudada na
bunda.
Depois que as meninas faziam o seu serviço, era a minha hora de entrar em
cena. Contratação feita, o primeiro contato comigo passava a depender
unicamente de minha vontade. E então, exercendo essa mesma vontade, nada
mais fácil que me tornar o melhor amigo de cada um de meus contratados.
Era assim o meu estilo de contratação. Ao contrário do que pregou
Maquiavel e Bodoni seguia à risca, eu preferia ser amado a ser temido... ou
odiado. Essa foi uma lição útil que tive às custas de il Dottore.
Em alguns poucos meses eu já estava operando em uma faixa incrivelmente
diversificada. Do contrabando aos serviços públicos, dos remédios aos
empreendimentos imobiliários, dos agronegócios à prostituição.
E o melhor de tudo é que Bodoni nada sabia a respeito. Continuei
depositando o dinheiro correspondente às aplicações na bolsa, mas todo o resto
era só meu.
Eu estava indo bem.

Pretas avançam na terceira:


Penetração repetida. Humilhação.

Aos trinta anos, eu me comparava a Alexandre o Grande quando me


contemplava no espelho da vaidade. Sentia-me irresistível. E a Fábrica estava
apenas começando.
Quanto mais o meu império crescia, mais insaciável tornava-se a minha
cobiça. Distinções éticas mais sutis foram gradualmente perdendo o sentido.
Todo ato que aumentasse o meu poder e riqueza era bom, estava certo. E toda
situação ou pessoa que pudesse representar uma ameaça à minha força era o
mal a ser combatido, o pecado a ser expurgado. O poder tem os seus próprios
argumentos.
Tornei-me igualmente insaciável no sexo. Precisava descobrir a cada dia
novas sensações, novas agonias e êxtases, novas transgressões. Experimentei
muito de tudo. Acho difícil que exista uma modalidade de sexo que eu não
tenha praticado. Mas não me surpreenderia em descobrir alguma. Jamais
subestimo a inventividade humana.
Creio que foi por essa época que adquiri o hábito de comer carne de frango
durante o sexo. Depois, para variar e ostentar refinação, experimentei aves mais
exóticas em pratos requintados. Podem me chamar de vulgar. Pois continuei
sempre achando que o melhor acompanhamento para o sexo era mesmo o
popular galeto assado.

Brancas avançam na quarta:


O remorso desaparece. Durante a caçada, três tipos de caça são capturados.

Está claro que um dia aconteceria comigo o que aconteceu com il Dottore.
Cedo ou tarde os meus contratados, ao menos alguns deles, acabariam também
fazendo por merecer uma moeda de prata. Eu acreditava estar preparado. E o
meu plano provou ser correto.
Bodoni baseava seu poder unicamente na ascendência da prata sobre o
cobre. Era só disso que ele se valia para exercer sua vontade. Confiou
cegamente que seria sempre o cavalo de prata em seu harém de peões de cobre.
Que essa estratégia foi um erro ficou bem demonstrado quando Bodoni teve
que fugir de Zambrini com o rabo entre as pernas.
Eu, pelo contrário, consolidei a minha força utilizando o interesse próprio
de cada um. Construí um império porque dei mais liberdade a cada um para que
fizesse o seu melhor por mim. Apelei para a hipocrisia tão característica do ser
humano. Meus contratados podiam fingir que eram livres.
As pessoas que usavam as minhas moedas estavam todas trabalhando para
mim ou ganhando dinheiro comigo de alguma forma. Tive um cuidado especial
para evitar a coação e qualquer comando abrupto ou muito direto. Ninguém
precisava saber que era eu que mandava, contanto que eu fosse obedecido. O
melhor escravo é o que não percebe que é.
E o fruto desse meu cuidado foi que nenhum de meus contratados se sentia
obrigado a fazer o que fazia por mim. Todos achavam que estavam agindo por
interesse próprio. Faziam o que faziam só pelo dinheiro.
Enfim a prata começou a surgir. E os novos cavalos tornaram-se meus mais
úteis aliados. Como não havia motivos para que sua vontade se opusesse à
minha, eles continuaram fazendo tudo o que eu mandava, e até melhor que
antes. As contratações que fizeram, sempre sob minha supervisão, também
serviam indiretamente a mim.
Uma curiosidade antiga foi saciada quando pela primeira vez uma mulher
que contratei ganhou sua moeda de prata. Eu queria muito saber como ela faria
para botar para fora a moeda de cobre. E afinal descobri: como eu suspeitava,
as mulheres põem as moedas durante a menstruação. Um número
impressionante. Entre oito e doze moedas por dia a cada menstruação. Isso
significava uma capacidade de produção de até sessenta moedas por mês.
O que dava duas moedas por dia. Nenhum homem no mundo seria capaz
de cuspir duas moedas de cobre em um só dia. Ainda mais durante trinta dias
seguidos. Por outro lado, imagine o tamanho da enxaqueca e a fúria da TPM
geradas por tal monstruosa menstruação. Não é à toa que é bem menor a
proporção de mulheres que conquista a moeda prateada.
Mas por essas e outras eu sabia que minha posição tornava-se mais precária
a cada novo cavalo que surgia. Melhor que a maioria, eu havia aprendido a
nunca subestimar a ambição humana. Mas não cheguei a ficar preocupado. Eu
sentia que estava próxima a minha moeda de ouro.
Bodoni me mostrou que o ouro, assim como a prata, vem pelo mérito. A
lógica é essencialmente a mesma nos dois casos. Para merecer a prata, é preciso
ambição e tesão para gerar muitas moedas de cobre. Para ser merecedor do
ouro, é preciso garantir o florescimento das moedas de prata.
Il Dottore alcançou seu ouro em um lampejo criativo, ao inventar a
contratação in útero, por assim dizer. O meu ouro foi mais suado, mas não
menos brilhante. Eu havia criado um ambiente perfeito para a proliferação das
moedas. Eu havia inventado a Fábrica.
O dinheiro vai para quem faz o dinheiro crescer. O poder assenta bem na
mão dos poderosos. Mesmo na condição de cavalo, eu já havia me alçado à
posição de Rei. Só faltava a coroa de ouro.
Vibrei de satisfação ao notar os primeiros indícios. Febres, suores noturnos,
mudanças abruptas de humor. E os bizarros desejos alimentares. Passei um dia
inteiro comendo cebolas cruas.
Eu estava grávido de novo. E finalmente dei à luz uma gloriosa
circunferência dourada, onde antes havia só prata.
Meus novos poderes me deixaram exultante. Tornei-me capaz de captar os
estados emocionais das pessoas, e não somente de meus contratados. Com
esses, às vezes era quase como se eu pudesse ouvir os seus pensamentos.
Ficou também muito mais fácil impor a minha vontade sobre os outros. E o
apetite sexual ficou ainda mais aguçado.
Eu estava mais do que pronto para usufruir de meu próspero reinado. Mas
esse foi justamente o momento escolhido por Bodoni para retornar a Rio
Santo.

Pretas avançam na sexta:


Penetração debaixo da cama. Ele perde suas propriedades e seu machado.

“Rogério, estou na cidade. Encontre-me no bar do hotel Émile dentro de


uma hora.”
Foi assim que fiquei sabendo que il Dottore estava de volta. Não foi uma
surpresa agradável. Depois de dez anos como senhor de meu próprio nariz e do
de outros, não me agradou nem um pouco voltar a receber ordens.
Estranhamente senti-me compelido a obedecer, apesar de minha moeda de
ouro e de tanto tempo sem contato com Bodoni. Era mais um segredinho das
moedas que eu descobria. Antiguidade é posto. Bodoni havia me contratado, e
havia conquistado o ouro anos e anos antes de mim. Enquanto ele vivesse, eu
lhe deveria obediência.
Poderia me rebelar como Zambrini. Sentia que a compulsão para obedecer
estava bem mais tênue agora. Mas eu nada sabia sobre o que il Dottore andara
fazendo durante esse tempo. Entrar em confronto aberto antes de conhecer
melhor as variáveis era muito arriscado. Achei melhor esperar e observar.
Bodoni aparentava a década a mais. Fora isso, parecia muito bem.
Continuava usando seus ridículos cabelos compridos, agora já quase totalmente
brancos. Dessa vez havia se registrado no hotel com sua identidade de Anton
Bandura.
“Meus parabéns, Rogério. Vejo que você soube cuidar de si. Agora me
conte o que andou fazendo.”
Não tive escolha a não ser dizer a verdade. Fiz um relatório completo de
minhas atividades nos últimos dez anos. Senti-me como um homem adulto que
é obrigado a voltar para a escola, bem no dia de uma arguição oral.
“Realmente impressionante, meu querido Rogério. Eu sempre soube que
você iria longe. Tenho boas notícias para você.”
Claro está que as novidades não eram nada boas. Ao chegar aos Estados
Unidos, Bodoni havia encontrado uma vasta e bem organizada rede de moedas.
Isso por si só equivalia a uma confissão de que ele não tinha inventado as
moedas coisa nenhuma. Mas achei que não valia a pena aquela satisfação
mesquinha de desmascará-lo. Afinal, eu já sabia disso há muito tempo.
O sistema norte-americano era bem parecido com o que eu próprio havia
montado. Não que eu devesse ficar contente por isso. Só facilitei o trabalho dos
gringos de tomar os meus negócios.
Bodoni nem tentou disfarçar. A partir daquele momento eu podia me
considerar subordinado aos americanos. O próprio Anton Bandura ocupava
oficialmente agora o posto de alto executivo em uma corporação na Grande
Maçã. O que não passava de mera fachada para ocultar o que ele na verdade
havia se tornado: um funcionário do segundo escalão. Mais um mero
cumpridor de ordens. E ele nem parecia se importar com isso. De que lhe valia,
então, a sua moeda de ouro?
E eu mesmo me via reduzido a assistente de funcionário subalterno. Essa
foi a gota d’água.
Bodoni me desvirginou, me roubou os melhores anos da juventude, me
reduziu a um capacho submisso, a um escravo sexual. Tudo isso eu havia feito
o possível para esquecer. Não perdoar, mas simplesmente esquecer.
Esquecer é mais fácil do que se pensa. Mas eu não tinha como esquecer
aquela ofensa definitiva. Bodoni usurpou minha coroa de Rei.
Por esse pecado capital, decidi que ele devia morrer.
CAPÍTULO 58 – ALEGRIA

Alegria. Sucesso. A perseverança é favorável.


Lagos repousando um sobre o outro: assim o homem superior une-se a seus amigos para
discussão e prática.
(I Ching – hexagrama 58)

Bodoni trouxe os gêmeos com ele. Ao dar entrada no hotel Émile, o


executivo ítalo-americano Anton Bandura solicitou para si a cobertura 1, e a
cobertura 2 para seus pupilos brasileiros, Júlia e Joaquim Silva, ambos com
onze anos de idade incompletos.
Júlia havia se transformado em uma menina adorável, talvez um pouco alta,
magra e precoce demais para a idade. Conversando com ela, era fácil esquecer
que era apenas uma criança. Comunicava-se com desenvoltura, inteligência e
exuberância. Uma verdadeira menina-prodígio.
Kim era o oposto. Taciturno, arredio e esquivo, dificilmente dirigia a palavra
a outra pessoa que não fosse Júlia. Até fisicamente não era tão parecido com a
irmã. Era meio varapau que nem ela, mas as feições eram mais grosseiras.
Talvez tivesse puxado um pouco mais ao pai. Após completar dezesseis anos,
Kim começaria a gastar seu dinheiro em cirurgias que o deixassem cada vez
mais à imagem e semelhança de Júlia.
As duas crianças falavam razoavelmente o português. Bodoni me contou
que exercitava com elas, e tivera o cuidado de sempre contratar babás
brasileiras. O difícil era parar com uma babá por mais do que alguns meses.
Nenhuma delas aguentava o rojão por muito tempo, principalmente com as
brincadeiras que os gêmeos aprontavam. Em uma dessas diversões pueris da
dupla, uma pobre coitada quase ficou paralítica.
É que Júlia estava se revelando uma leitora voraz e muito criativa, pois
gostava de encenar as passagens favoritas de suas leituras. Para o azar das babás
brasileiras, o gênero preferido da menina era a literatura fantástica e de horror.
Outra coisa que il Dottore contou com ar de orgulho foi que o menino havia
feito recentemente a sua primeira troca de moedas:
“Um dia desses os dois estarão em condições fisiológicas para gerar suas
próprias moedas. Você faz ideia do que isso significa?”
Nesse ponto, porém, as previsões dele estavam furadas. Nem Joaquim nem
Júlia seriam jamais capazes de gerar uma única moeda de cobre. Como viemos a
descobrir depois, os dois nasceram estéreis. Uma ironia do destino, talvez. Ou
então um secreto mecanismo de defesa da espécie humana.
Como que por uma compensação para sua deficiência de nascimento, os
poderes da prata haviam se manifestado de forma extraordinária nos dois. Júlia
possuía uma capacidade única de impor sua vontade sobre os outros, fossem ou
não portadores de moedas. Isso já havia sido demonstrado à exaustão com as
babás. A garota era terrivelmente convincente. Os poderes de Kim eram mais de
natureza passiva, mas nem por isso eram menos valiosos. Quando estava
focado, Kim era capaz de captar com clareza os pensamentos e emoções de
outras pessoas. Para tanto era necessário apenas um breve contato físico, tal
como um aperto de mãos.
Isso tudo Bodoni foi me contando entre gracejos e sorrisos, como um
autêntico pai coruja narrando as proezas de seus pimpolhos. Mas era fácil
perceber que ele estava intencionalmente passando uma mensagem. Aos
poucos fui percebendo que mensagem era essa. As crianças estavam vindo para
ficar.
A psicóloga Varlene Alberione classificou Júlia como um exemplo clássico
de psicopatia, e Kim como um caso de esquizofrenia paranoide latente. Varlene
conheceu os gêmeos. A pedido deles mesmos, ela traçou o perfil psicológico
completo dos dois.
Sim, porque os dois ficaram comigo. Bodoni propôs assim, na maior cara de
pau, que Júlia e Kim permanecessem em Rio Santo, sob minha tutela, depois
que ele regressasse a Nova Iorque. Com o sarcasmo que lhe era tão típico,
Bodoni disse que queria que as crianças tivessem um pouco de contato com a
terra natal.
Mas nós dois sabíamos o verdadeiro motivo. Ele pretendia usar as crianças
para me fazer andar na linha enquanto estivesse fora. Kim estaria ali para
assegurar que eu não iria ousar nem pensar algo contra Bodoni, e caso isso
acontecesse Júlia resolveria rapidamente o problema.
Durante a incorporação de meus negócios pelos americanos, Bodoni veio ao
Brasil com certa frequência. Depois foi rareando as visitas, à medida que tudo ia
seguindo a seu gosto. Passou a vir uma vez por ano, quando isso.
O que eu podia fazer? Tentei adaptar-me da melhor maneira possível.
Confesso que no final gostei da mudança. Se o meu sistema era parecido com o
dos americanos, em matéria de alta tecnologia eles estavam anos-luz à frente. E
me deixaram à vontade para usar os seus brinquedinhos. Sentia-me feliz e
contente por ser um dos poucos privilegiados a ter acesso a artefatos como a
Minitevê e o Cromomagnetoscópio.
O motivo pelo qual os americanos não divulgavam esses e outros inventos
para o grande público era o mesmo que nos fazia manter Isaac em segredo.
Uma tecnologia criada para controlar pessoas não deve se tornar conhecida
pelas pessoas que pretende controlar. Elementar, meu caro Asimov.
As descobertas da ciência estão sempre alguns passos adiante do que é
divulgado para o grande público. É intrigante que essa seja uma verdade tão
óbvia e tão pouco comentada. Para cada nova tecnologia anunciada
bombasticamente no jornal da tevê, cem outras tão espetaculares quanto a
primeira estão sendo testadas, aplicadas e desenvolvidas sem que isso se torne
público. Só não percebe isso quem não quer.
Não é que a tecnologia que passei a utilizar na Fábrica fosse propriamente
um segredo. Tudo era feito à luz do dia, no amparo da lei. Bem ao estilo ianque.
Por essas e outras acabei me rendendo à supremacia dos americanos. Em
termos de dinheiro, eu estava indo melhor do que nunca. E toda aquela
aparelhagem de filmes de Hollywood acabou me seduzindo. Isso para não
mencionar os melhoramentos que os americanos fizeram em Isaac. Só não
concordei com o nome que eles deram para sua versão: Anson, em homenagem
ao escritor Robert A. Heinlein. Depois de tantos anos de convivência, Isaac era
como um membro da família para mim, o mais próximo que eu podia ter de
um verdadeiro amigo. Não podia descartá-lo, como se fosse uma geladeira
velha. Passei a utilizar Anson no escritório, nas operações da Fábrica. E
secretamente transferi Isaac para minha casa. Passei a consultá-lo em algumas
questões de interesse pessoal, tais como adivinhar a época da próxima visita
surpresa de Bodoni.
Pelo que eu saiba, em nenhuma dessas ocasiões em que esteve em Rio Santo
Bodoni fez qualquer tentativa de contatar sua antiga paixão Irene ou seu filho
biológico Henrique. Era como se junto com o nome de Harold Habbot, il
Dottore tivesse se descartado também de sua efêmera e patética família. Só muito
tempo depois é que fui perceber que ao agir assim Bodoni estava protegendo a
si mesmo e também Henrique. Se a existência daquele filho fosse conhecida
pelos americanos, a vida dos dois estaria em perigo.
Quanto aos gêmeos, convivi com eles o melhor que pude. Coloquei nos
melhores colégios. Arranjei empregadas para eles se divertirem. Dei amor e
carinho. E ofereci principalmente distrações, passeios, excursões,
acampamentos e todo tipo de atividades. Pois desde o início percebi que a
melhor estratégia seria manter os dois sempre ocupados.
Nem Júlia nem Kim chegaram a passar pela adolescência, no sentido
psicológico da coisa. Sob certo aspecto, os dois eram tão velhos quanto se
podia ser. Por outro lado, eu desconfiava que uma parte deles continuaria para
sempre sendo infantil.
O relacionamento que fui aos poucos construindo com os gêmeos não
poderia ser chamado de amizade, muito menos de afeição familiar, mas era
alguma coisa. Creio que consegui chegar mais perto deles do que qualquer outra
pessoa, inclusive e principalmente Bodoni. Exultei ao descobrir que Júlia e Kim
detestavam tanto quanto eu receber ordens de il Dottore. Tínhamos ao menos
aquele ódio em comum.
Mas isso não interferiu na tarefa que os gêmeos foram incumbidos de
cumprir. Pois assim como odiavam serem comandados por Bodoni, os dois
adoravam dar ordens em mim.
Uma vez por semana, ou a cada quinze dias, ou três meses, ou quando lhes
desse na telha, os gêmeos brincavam comigo de Escolinha. Primeiro Joaquim
segurava a minha mão e me fazia várias perguntas sobre os negócios e as
decisões que eu pretendia tomar para defender os interesses de Bodoni e de
nossos amigos americanos. Depois Júlia me dava uns bons conselhos sobre
como deixar nossos amigos cada vez mais amigos.
Uma semana depois que Anton Bandura retornou para os Estados Unidos,
os gêmeos tornaram-se meus amantes. Em minha defesa, tenho a dizer que:
a) A iniciativa toda partiu deles.
b) Em matéria de sexo, não havia nada que eu pudesse ensinar àqueles
dois.
Nosso envolvimento sexual não durou muito. Eles estavam apenas me
testando, saciando sua curiosidade infantil. Ao término das primeiras sessões de
Escolinha, Júlia me aconselhava a ajudá-la com o seu vestido, ou então a fazer
um carinho especial em Kim, ou a tirar a minha própria roupa. Depois, quando
quis me punir, passou a me aconselhar uma boa noite de sono.
Só toquei novamente o corpo de Júlia quando ela estava para completar
dezoito. Ela e o irmão voltaram a se interessar sexualmente por mim enquanto
planejavam o assassinato de Bodoni.
Tive muito cuidado ao sugerir a ideia para os dois. Apresentei a coisa toda
de maneira hipotética. Um dia, quando estávamos conversando sobre os livros
que Júlia estava lendo, eu disse casualmente: “De todos os crimes da ficção,
sem dúvida o mais inverossímil é o mistério do quarto fechado. Totalmente
inaceitável. Duvido que isso funcione na vida real. Acho que nem vocês dois
conseguiriam.”
Júlia por essa época andava lendo muitos romances policiais. Devorava
toneladas de Agatha Christie, Conan Doyle, Edgar Wallace e o que mais
pudesse encontrar no estilo. Já havia lido até mesmo John Dickson Carr, um
especialista em mistérios do quarto fechado. Daí o meu comentário. Tudo o
que eu queria era introduzir a ideia de assassinato na cabeça dos dois.
Curiosamente, foi a própria Júlia quem me desmascarou. Pois eu havia me
preparado para ludibriar Kim. Descobri que era possível passar por seu crivo
mental concentrando meus pensamentos em algum tema neutro. Mas Júlia
enxergou de imediato as minhas intenções.
“Veja só, Kim. O chefinho está querendo que a gente mate alguém para ele.
Quem será que ele quer morto, hem? Você consegue adivinhar?”
Os gêmeos começaram a me chamar de chefinho por essa época. Eu tinha
ojeriza ao apelido. Kim agarrou minha mão e olhou fundo nos meus olhos.
Não havia como resistir a um contato direto assim.
“É o chefão. Ele quer que a gente mate o chefão.”
Era por isso que eu detestava tanto aquele apelido. Eu era o chefinho, e
Bodoni era o chefão. Júlia sentou em meu colo e beliscou de leve minha
bochecha.
“Isso sim é que é inaceitável e inverossímil, chefinho. Você sabe muito bem
que não podemos nem pensar em agredir o doutor, se estivermos na presença
dele. Como é que poderíamos chegar ao ponto de assassiná-lo?”
Uma vez que meu blefe havia sido posto por terra, vi que não havia nada a
perder.
“E se eu disser que existe um jeito seguro de matar o velho?”
Eu havia conquistado a atenção dos dois. Não era pouco o que eu estava
oferecendo. E pensar que o próprio Bodoni me entregou sua cabeça numa
bandeja.
Em sua visita mais recente, ele havia me confidenciado ter suas divergências
com o primeiro escalão: o Conselho. Era assim que ele chamava seus patrões.
Quanto ao nome da organização em si, nunca me importei com o escolhido
pelos americanos. Para mim continuou sendo a Fábrica.
A velha chama da ambição não havia se extinguido de todo no peito de
Anton Bandura. Ele andava se aventurando em alguns empreendimentos por
conta própria. Um deles parecia tão promissor quanto arriscado. Il Dottore
estava pesquisando uma maneira de neutralizar temporariamente as moedas.
“Você leu Chandra Bose, não leu, Rogério? Pois então. Lembra de como
Bose conseguiu cloroformizar um pedaço de estanho? Espero fazer a mesma
coisa com as moedas.”
O problema é que o doutor foi descuidado, como sempre. O Conselho
começou a desconfiar de suas atividades paralelas. Até aqui ele conseguira
manter a sua posição, mas tinha razão em estar preocupado. O Conselho, como
ele mesmo dizia, não costumava brincar em serviço.
Mais um motivo para colocar logo a sua invenção em funcionamento.
Bodoni havia batizado o projeto de Roque. Segundo ele, quando o Roque
estivesse totalmente operacional seria capaz não só de anular os poderes da
moeda, como de tornar o seu portador virtualmente indetectável pelos outros
portadores.
“Com a minha fórmula, poderei subtrair completamente uma moeda da
Rede.”
A Rede era outra novidade tecnológica implantada pelos americanos.
Depois de algum tempo com a moeda de prata, percebi que estava
desenvolvendo um difuso senso de proximidade com relação a meus
contratados. Geralmente sabia quando um deles estava por perto e podia até
identificar seus estados emocionais, se esses fossem intensos o suficiente. Essa
capacidade só aumentou depois que conquistei o ouro. Pois os americanos,
com seu insuperável pragmatismo, aprimoraram e ampliaram essa habilidade
individual, de forma a torná-la mais útil para o sistema.
Com o auxílio do computador Anson, desenvolveram uma rede de controle
que podia determinar em segundos a localização exata de cada portador de
moeda na superfície do planeta, bem como suas condições físicas e psicológicas
de modo geral. A Rede operava através de conexões via satélite. Foi graças a ela
que os americanos ficaram sabendo de minha excelente atuação como
propagador de moedas no território brasileiro. E assim acabaram enviando
Anton Bandura como seu embaixador/conquistador.
As possibilidades ocultas naquilo que il Dottore estava me contando eram
inebriantes. E ainda mais quando ele resolveu abrir o jogo todo.
Bodoni estava mais enrascado do que dera a entender. Era quase certo que
tivesse mesmo caído em desgraça diante do Conselho. E não tinha nada a ver
com o Roque, que ele mantinha protegido a sete chaves. Admitiu que andou
fazendo o que não devia, mas de jeito nenhum quis entrar em detalhes. Por
uma menção obscura que ele fez, deu a entender que era algo relacionado com
Spagnolo: “Andrea está tão diferente, Rogério. Você jamais o reconheceria.”
Claro que perguntei logo por Rita. Mas Bodoni fechou a cara e cortou o
assunto: “Claudia está morta. Esqueça ela.”
Esquecer é fácil. Lembrar é que é difícil.

Pretas avançam na quarta:


A alegria que é medida não encontra a paz. Após livrar-se de seus erros, um homem encontra
a alegria.
Bodoni pretendia aperfeiçoar a fórmula de seu Roque e colocá-lo em prática
o quanto antes. Planejava fugir da Rede por alguns dias. E estava pedindo a
minha ajuda para encontrar um lugar onde ele pudesse se esconder.
“Mas fugir para onde, doutor? Se o efeito do Roque é apenas temporário, a
Rede o localizará no instante em que a moeda for ativada novamente.”
Ele ergueu altivamente o indicador, como que para calar meu
questionamento. Por uma fração de segundo, voltou a ser o velho e imperioso
il Dottore. Senti uma emoção intensa e inexplicável.
“Existem alguns poucos lugares”, disse ele, em tom conspiratório, “zonas de
interferência. Ninguém ainda sabe muito a respeito. Acabou de ser descoberto.
A maioria das regiões que já foi mapeada cai no fundo do oceano. Algumas
também foram encontradas no deserto e em outras áreas inabitadas. Mas há
uma zona de interferência bem aqui no Brasil, Rogério. Fica próxima a
Brasília.”
“E o que esses lugares têm de especial?”
“Como disse, não se sabe muita coisa sobre esse assunto. O que ouvi dizer é
que essas regiões apresentam leituras de emanações eletromagnéticas muito
intrigantes. Especula-se que essas ondas possam anular as moedas.
Permanentemente.”
Fiquei mudo de espanto. O plano de Bodoni era bem mais audacioso que eu
imaginara.
“Tudo o que preciso é que você providencie discretamente o meu
transporte e acomodação nesse local. É um lugar conhecido como Vale do
Amanhecer. Até Rio Santo eu garanto chegar. Só vou necessitar de sua ajuda
para seguir daqui.”
“Mas eu não entendo...”
“Você não entende o quê, Rogério? O fato de eu estar planejando assassinar
a minha moeda? Talvez quando tiver a minha idade venha a entender. Ou
quando tiver passado tantos anos quanto eu usando o ouro e sendo usado por
ele.”
Bodoni pediu que eu nomeasse a quantia que iria querer para ajudá-lo.
Pensei em um valor bem alto, e disse o dobro. Queria que ele pensasse que eu
estava de olho somente no dinheiro.
“E outra coisa: vou querer também a fórmula do Roque.”
Passei para o doutor um dos celulares que eu usava para operações mais
confidenciais. Ele deveria usá-lo para se comunicar comigo quando estivesse
pronto para colocar o plano em ação. Para o caso de mesmo assim a ligação ser
rastreada, combinamos previamente falar apenas o mínimo necessário e nos
tratar por codinomes. Eu continuaria chamando Bodoni de doutor. E ele
deveria me tratar por Fortunato.
Contei tudo isso para os gêmeos. Não precisei fazer mais. Eles abraçaram
com entusiasmo a tarefa de elaborar o homicídio de il Dottore.
Partimos do princípio de que ele se hospedaria no hotel Émile em sua
próxima e definitiva vinda ao Brasil. Bodoni sempre ia para o Émile. Era uma
criatura de hábitos.
“Acho que vou aceitar o seu desafio do quarto fechado, chefinho. Mas para
isso precisamos garantir em que quarto o chefão ficará hospedado.”
“Isso não será difícil.”
Júlia e Kim passaram duas semanas hospedados no Émile. Forneci
pessoalmente a moeda que Júlia usou para contratar o gerente do hotel. Depois
ela me pediu outra para um rapaz da segurança que havia chamado a sua
atenção. Foi uma boa ideia. A contratação de Ivan acabou sendo muito útil.
Uma de nossas primeiras providências foi ter acesso ao mapa de hóspedes
do Émile. Imaginei que em sua próxima vinda a Rio Santo il Dottore talvez não
usasse mais a identidade de Anton Bandura. Mas fiquei mesmo surpreso
quando vi na lista de reservas o nome de Harold Habbot.
Foi Júlia quem escolheu o quarto 909. Dos quartos do penúltimo andar, era
um dos que menos ficava exposto a olhares da rua. Foi ela também quem teve a
ideia de aproveitar o desfile de modas que ocorreria no dia seguinte à chegada
de Bodoni. Parecia o dia perfeito para colocar o plano em ação.
Na noite anterior, poucas horas antes da chegada de Bodoni, Joaquim
registrou-se sozinho na Cobertura 9. Não foi difícil forjar as credenciais de
fotógrafo da revista Moda Espetacular. Duro mesmo foi conseguir um convite
para o desfile.
Júlia ficou aguardando desde cedo do lado de fora do Émile. Ficou
passeando em uma loja de departamentos próxima do hotel, foi lanchar no
McCanic’s, voltou para a loja. Até que recebeu a ligação de Kim. Este, por sua
vez, havia recebido uma chamada em seu quarto assim que Bodoni desceu para
almoçar. Realmente foi uma boa ideia contratar Ivan, facilitou muito as coisas.
Não havia como ter certeza de que Bodoni iria almoçar no restaurante do
Émile, mas era uma forte possibilidade. Caso ele tivesse resolvido sair, Júlia o
interceptaria e o conduziria de volta para o hotel. Mas nem foi preciso. Júlia
encontrou Bodoni no restaurante e fez o velho beber bastante vinho durante o
almoço. Com a sua moeda de ouro fora de ação, il Dottore foi uma presa fácil
para os poderes de persuasão de Júlia. E mais fácil ainda ficou o serviço depois
que o velho encheu a moringa.
Os gêmeos haviam estudado com afinco a disposição das câmeras de
segurança. Foi assim que Júlia conseguiu que filmassem seu rosto só de relance.
Tudo o que as câmeras captaram de fato foi a sua bela peruca negra com
mechas vermelhas.
Quando os dois subiram para o quarto 909, Bodoni estava trocando as
pernas. Júlia não teve a menor dificuldade em algemá-lo à cama. De dentro de
sua mochila colorida ela retirou diversos objetos: um par de algemas, um
chicote de couro, um pênis de borracha de tamanho avantajado, uma revista
pornô importada, uma edição de Fausto no original, uma peruca branca, um
chapéu e um papelote de cocaína. Depois que ela esvaziou a mochila desses
apetrechos, transferiu para lá o laptop e o dinheiro que estavam na maleta preta
de Bodoni. Ele mesmo forneceu alegremente a senha para abrir a maleta. O
velho estava entregue e derrotado.
Infelizmente, na excitação do momento, não ocorreu a Júlia investigar o
computador para se assegurar de que a fórmula do Roque estava ali mesmo. E
olha que ela teve bastante tempo para isso. Mas ficou ocupada demais
montando a sua cena do crime, espalhando as roupas de Bodoni pelo quarto
como se estivesse decorando uma árvore de natal.
Júlia aproveitou o tempo também para torturar bastante o velho. Usou com
entusiasmo o chicote de couro e o enorme consolo de borracha. Não havia
muito que Bodoni pudesse fazer, além de sofrer calado. Ele havia cometido a
imprudência de ensinar aos gêmeos sua drogamantra, o coquetel de pentotal de
sódio e nicotina turbinado pelo mantra hindu. Não pude deixar de apreciar a
ironia da situação. Quem não gostou nem um pouco foi o inspetor Teixeira,
depois de receber também uma dose do mesmo coquetel. Os gêmeos tinham
feito para sobrar. Só não tinham sobrando outra moeda, pois se tivessem sem
dúvida teriam contratado meu filho no ato, literalmente. E tudo teria sido
muito, muito diferente.
Enquanto Júlia brincava de catarse sexual com o chefão, Joaquim
cronometrava a sua hora de entrar em cena. Quando o desfile começou ele
estava no salão, espalhando o boato sobre a morte de Hector Holland antes
mesmo que o assassinato fosse cometido. Esse foi um detalhe que me
impressionou, pela desenvoltura de Kim. Ele ficou bem mais falante depois da
terceira cirurgia plástica.
Pouco depois do início do desfile, Kim abandonou o salão e subiu para a
cobertura. De lá desceu pela varanda para o 909. Bodoni já estava bem
castigado quando ele chegou, depois de horas recebendo as atenções de Júlia.
Sofreu só mais um pouco, pois Kim teve de se contentar com uma rapidinha.
Os gêmeos queriam que a descoberta do corpo coincidisse com o ápice do
desfile.
Quando sentiu que estava para gozar, Kim enfiou o pênis de borracha o
mais fundo que conseguiu na garganta do velho. Em seguida apertou bem o
cinto ao redor do pescoço dele. E puxou forte. A agonia final deve ter sido
verdadeiro alívio. A pequena morte do orgasmo cedeu lugar ao grande orgasmo da
morte. Após alguns instantes, Il Dottore não era mais.
Depois disso não havia tempo a perder. Kim vestiu-se com a roupa de
Bodoni e a peruca branca, enquanto Júlia removia a moeda dourada do velho
com uma faca. Ela fez isso para obter um souvenir, motivada pelo irresistível
fetiche do ouro, que para eles era inalcançável. Sendo estéreis, era quase certo
que Júlia e Kim jamais sairiam da prata.
Júlia não temia que a moeda de Bodoni causasse estranheza durante a
autópsia. Sabia que as moedas são indetectáveis. Ela teve sorte ao ceder a esse
capricho de levar sua lembrancinha do chefão. Pois Teixeira teria certamente
notado a moeda de ouro de Bodoni. E sabe-se lá o que teria acontecido nesse
caso.
Antes de abandonarem o quarto 909, os gêmeos fizeram uma rápida e
eficiente faxina para limpar possíveis impressões digitais. Usaram as próprias
roupas do morto para fazer isso. O pó deixado em cima da mesa foi mais um
dos despistes de Júlia. Meus meninos não cheiravam. A moeda era toda a droga
de que eles precisavam.
Como toque final, Kim derrubou com um pontapé o telefone de cima do
criado mudo. Eu me opus veementemente a essa parte do plano. Achava
arriscado forçar assim a hora da descoberta do corpo. Melhor deixar que a
camareira o encontrasse no dia seguinte, quando os dois já estivessem longe
dali.
A cada objeção minha, Júlia respondia invariavelmente:
“Não reclame, chefinho. Foi você quem pediu um mistério do quarto
fechado.”
O que deixava bem claro que os gêmeos fariam as coisas do jeito deles. E
assim foi. Eles saíram do quarto, atravessaram o corredor do nono andar,
pegaram o elevador, saltaram no térreo e foram direto para a saída.
A história do tal cartão que Kim ostensivamente jogou na lixeira perto da
porta do hotel começou como uma brincadeira. Os dois gostavam de fazer
troça do nome que eu usava para me referir à nossa organização. E cometi o
erro de deixá-los perceber que a brincadeira me incomodava.
Então Kim apareceu com um bolo de cartões impressos com o desenho de
uma fábrica. Meio que brincando, meio que a sério, pois com ele nunca se
sabia, prometeu: “Agora toda vez que eu cometer um mau feito em nome da
Fábrica vou deixar um cartão desses. E assim algum dia, em algum lugar, de
alguma forma, alguém vai ficar sabendo de toda a verdade.”
Eu não disse nada. Até que achei os cartões bonitos. Sem ter nada melhor
para fazer com eles, Kim acabou colocando em prática sua promessa. Logo se
tornou uma mania, como acontecia com tudo relacionado com os gêmeos.
Após sair do Émile, os dois caminharam até o carro que estava em um
edifício garagem perto dali. Dentro do carro havia uma muda de roupa para
cada um. Kim livrou-se das roupas de Harold Habbot, pegou sua máquina
fotográfica no porta-luvas e voltou para o desfile, a fim de continuar instigando
os boatos. Júlia também tirou sua peruca e deixou de ser uma morena de
cabelos compridos para retornar à sua loirice natural. Vestiu um conjunto
sóbrio, que a fazia parecer mais velha. Passou o laptop e o dinheiro da mochila
para uma bolsa mais elegante. E logo depois de Kim, do mesmo modo
retornou ao Émile. Com as chaves que o irmão lhe deu, foi direto para a
cobertura 9.
É claro que protestei contra esse retorno totalmente dispensável ao hotel. É
claro que eles não me deram ouvidos. Depois de tomar um banho e pedir um
lauto jantar pelo serviço de quarto, é que Júlia finalmente teve a curiosidade de
investigar o computador de Bodoni. Quando Kim subiu, ela já estava
arrancando os cabelos. Pois a fórmula do Roque não estava em lugar nenhum
do computador.
Quando estava no 909, Júlia chegou a abrir a gaveta do criado mudo. Ao ver
ali dentro apenas o velho livro sagrado com o brasão do hotel Émile carimbado
na capa, deu-se por satisfeita. Ela não se perdoou por isso. E nem eu. E nem
Kim.
Ainda mais por eles não serem iniciantes. Aquele não era o primeiro crime
de morte que os dois cometiam. Nem o vigésimo primeiro. Os gêmeos
chegaram aos dezoito anos com mais assassinatos que anos de vida nas costas.
Júlia principalmente fantasiava muito o assassinato. Construía intricadas
tramas com um toque de absurdo, produzia, escrevia e atuava em elaboradas
encenações. Para ela, aquelas performances dramáticas cheias de citações eram
como uma versão serial killer do Jogo das Contas de Vidro. Vá entender.
Obras de tamanha sutileza não eram para meu bico nem para meu
entendimento, como Júlia não cansava de repetir. Eu era o chefinho, o homem
de negócios. A visão do artista era inacessível para mim, por eu ser prático
demais. Essa era a grande limitação de minha natureza, de acordo com Júlia.
Ela planejava concretizar em Bodoni a fina arte do sincronicídio. A ironia da
coisa é que essas ideias que Júlia quis testar na prática eram do próprio Bodoni.
Ele andara aplicando sua teoria das coincidências a fatos sociais como o
assassinato e o comportamento de grupo. Era material para um segundo e
muito postergado livro, que ele acabou jamais concluindo.
Um autêntico sincronicídio é um homicídio que extrapola seu potencial de
repercussão exponencialmente, de forma a gerar ondas no tecido da realidade.
O sincronicídio está para o homicídio assim como o cubo está para o quadrado.
O sincronicida é aquele que mata 2n coelhos com uma só cajadada.
Para Júlia e Kim, o assassinato de il Dottore não podia ser nada menos que
mítico. Os dois ambicionavam forjar uma lenda urbana a partir da morte de
Bodoni. A Prostituta Fantasma. Esse era o tema básico do enredo. Uma jovem
misteriosa e sedutora que oferece seu corpo em troca da alma de seus clientes.
Os gêmeos pretendiam até mesmo matar mais uns dois ou três infelizes de
forma semelhante em outros hotéis da cidade, para criar a ideia de assassinatos
em série. A cada vez, Júlia iria usar uma peruca e uma caracterização diferentes.
Ela e Kim estavam entusiasmados com tanta diversão que tinham pela frente.
E pensar que essas vidas anônimas foram salvas pela atuação desastrada do
delegado Silvio Fantini. Os planos de Júlia não contavam com a homofobia
acentuada do delegado. A ideia de espalhar no salão do desfile o boato de que o
estilista Hector Holland fora morto por um garoto de programa surgiu apenas
como um despiste, uma confusão a mais no momento da descoberta do corpo
de Bodoni. Os gêmeos contavam que esse boato seria descartado pela polícia
assim que fossem assistidas as gravações das câmeras de segurança. Mas Fantini
fez justamente o contrário, logo ele que parecia tão previsível: ignorou
completamente as gravações e se apegou à noção de que o assassino do turista
alemão era um garoto de programa.
E o resultado foi que a morte de Bodoni foi um sincronicídio que saiu pela
culatra. As imensas repercussões da morte do dançarino do Helena de Troia nos
deixaram em alerta. Aquilo podia acabar chamando a indesejável atenção do
Conselho para nossas atividades. Sugeri aos gêmeos uma contramedida
imediata.
Foi quando Régis Vale tornou-se necessário. A moeda para a contratação,
como sempre, fui eu que forneci. Estava comendo quilos de ostras por essa
época.
Régis foi contratado em uma nova categoria, tornada possível pela
tecnologia dos americanos. Um interessante invento, de aparência
insignificante, chamado de gerador de campo extático. Ele permitia expandir o
período de condicionamento de meia hora para até duas horas e meia. Isso
possibilitava um verdadeiro adestramento do contratado, muito mais detalhado,
profundo e eficaz. O que era especialmente útil quando se desejava que o
sujeito em questão realizasse alguma tarefa específica, tal como ir até a delegacia
mais próxima e confessar ter cometido um crime de morte.
Nós tínhamos um nome próprio para esses novos contratados, embora eles
recebessem uma moeda de cobre tal como os outros peões. Os dessa leva eram
chamados de robôs. Régis foi o nosso primeiro robô. Não que o nome fizesse
muita diferença. Pois a palavra robô originalmente significava escravo. E era
também usada como uma brincadeira particular nossa. Pois as ideias de
Asimov, que a essa altura Júlia já havia lido de cabo a rabo, acabaram tendo
insuspeitadas serventias. Suas três leis da robótica dificilmente serviriam para
programar uma máquina, mas depois de pequenas alterações eram excelentes
como condutores linguísticos para os neurocomandos do período de
condicionamento.
E Régis foi um ótimo escravo, ao menos para os gêmeos. Nunca cheguei a
conhecê-lo pessoalmente. Júlia e Kim ficaram encantados com ele. Júlia, então,
ficou fascinada.
“Aquele ali tem talento, chefinho. Eu posso sentir.”
Júlia era uma grande entusiasta do teatro. E o interesse foi tanto que ela e
Kim me fizeram colocar os melhores advogados para defender Régis. Quando
ele saiu da cadeia, mexi meus pauzinhos para que fizesse um teste para um
papel secundário em uma novela. E o resto ele fez por conta própria.
Não saberia dizer se Régis teve sorte ou azar. Os gêmeos passaram por seu
caminho. Não fosse por isso, não teria sido preso como assassino confesso.
Não teria alcançado a fama e a glória com que sempre sonhou. E também,
provavelmente, não teria morrido tão jovem.
Falta ainda falar sobre a fórmula do Roque. Deu trabalho, consumiu tempo
e moedas preciosas, mas um dia finalmente tive acesso ao conteúdo do bendito
armazenador portátil que Bodoni escondeu na bíblia. A magnífica capacidade
de armazenamento do aparelhinho havia sido ridiculamente subaproveitada.
Tudo o que ele continha era um solitário arquivo de texto, de menos de 50
kbytes:

ROQUE.TXT

Confesso que minhas mãos tremiam de ansiedade quando por fim abri o
arquivo. Il Dottore havia digitado pouquíssimas palavras:

CLORIDRATO DE CETAMINA + TRICLOROMETANO + MANTRA

Velho filho de uma puta! Como xinguei o maldito. Era como se o estivesse
ouvindo dando gargalhadas no túmulo. Eu já sabia de antemão que a fórmula
seria inútil sem o mantra. E a única maneira de aprender o mantra era ouvir il
Dottore recitá-lo.
A não ser que ele tivesse deixado uma gravação. Tomado por essa ideia, fui
correndo checar mais uma vez o laptop de Bodoni. Pois já havia vasculhado
aquele computador de cabo a rabo. Além de uma espantosa coleção de fotos
amadoras de sexo, provavelmente capturadas na Internet, e dos programas
usuais, que pareciam não ter sido usados pois não havia nenhum arquivo salvo,
não havia mais muita coisa no HD.
Só uma pasta de músicas, à qual eu ainda não dera maiores atenções. Julguei
que Bodoni tivesse simplesmente transferido aquelas músicas do armazenador
portátil para o laptop, a fim de liberar espaço. Examinei novamente a lista de
músicas. Os arquivos estavam organizados em subpastas, todas com nomes de
óperas famosas, bem no gosto musical de il Dottore. Havia um único arquivo de
áudio salvo na pasta raiz. Em meio a tantas óperas, era o único trecho de uma
sinfonia. O título do arquivo era Ode an die Freude, o célebre poema de Schiller
cantado durante a Nona de Beethoven.
Movido por súbita intuição, cliquei no arquivo. A voz de Bodoni saiu
metálica dos alto-falantes:

“Olá, Rogério. Se você estiver ouvindo isso, é porque estou morto. Saiba que não guardo
rancores. Foi melhor desse jeito. Faça bom proveito do dinheiro que eu trouxe para você. Não
me foi de grande valia. Quanto ao mantra do Roque, receio que terá que descobri-lo por si
mesmo. Meu altruísmo não chega para tanto. Além do mais, não resisti ao impulso de lhe
passar a perna mais uma vez, meu caro pupilo, em nossa derradeira partida de xadrez. Não
se aborreça com as mesquinhas diversões de um homem velho. Você sempre foi especial para
mim, Rogério. Diga às crianças que as perdoo.”

Nesse momento o doutor foi interrompido por uma melodia aguda e


histérica. Era uma terrível versão eletrônica da Ode à Alegria. Eu conhecia bem
aquela musiquinha. Era o toque do celular que eu deixara com Bodoni. Cerca
de uma hora depois dele ter me ligado, liguei de volta, mas il Dottore nunca
respondeu. Estava ocupado fazendo sua gravação.
Mas a interrupção pareceu tê-lo desconcentrado. O celular ficou tocando
por um bom tempo, e cheguei a pensar que tinha terminado. Então a voz de
Bodoni surgiu novamente:

“Era para sermos centelhas divinas. Mas escolhemos abraçar a escuridão.”


E a gravação chegou ao fim. Fiquei refletindo sobre aquilo tudo. E a
conclusão a que cheguei foi que a história de fugir para o Vale do Amanhecer
não passou de subterfúgio. O que Bodoni queria mesmo era morrer.
Ele não havia me falado nada sobre seu estado de saúde. Depois tive acesso
ao relatório da autópsia. Sua leucemia estava muito avançada, além de qualquer
possibilidade de tratamento. O contato feito com Henrique, em busca de um
transplante de medula, também não passou de blefe. No fundo, desconfio que
tudo o que ele queria era mesmo conhecer o filho antes de morrer. E nós não
deixamos.
Mas o nosso papel foi também habilmente dirigido por Bodoni. Só mesmo a
nossa ambição desmedida para nos impedir de enxergar o óbvio. Il Dottore
jamais seria ingênuo a ponto de se entregar indefeso à minha mercê. Ele havia
planejado tudo.
Os gêmeos ficaram igualmente atônitos quando mostrei a gravação e contei
minhas conclusões. Kim chegou a esboçar uma reação de raiva: “Como assim,
ele nos perdoa? Eu é que nunca vou perdoá-lo. Nunca.”
Mas logo sua irmã estava dando uma gostosa gargalhada: “Quer dizer então
que no final das contas o chefão cometeu suicídio?”
CAPÍTULO 60 – LIMITAÇÃO

Limitação. Sucesso. A limitação não deve ser rígida demais.


Água sobre o Lago: assim o homem superior cria número e medida e examina a natureza da
virtude e da conduta correta.
(I Ching – hexagrama 60)

Ninguém ficou chorando il Dottore por muito tempo. Duas semanas depois
do óbito, fui graciosamente convidado a visitar a cidade de Nova Iorque,
Estados Unidos. Eu havia sido convocado para uma reunião do Conselho.
Confesso que estava nervoso quando saltei do táxi diante daquele
imponente prédio na Quinta Avenida. O meu compromisso era na cobertura.
A porta do elevador dava de cara para o portentoso baixo-relevo com a
logomarca da CSG Enterprise. As iniciais vinham de Copper, Silver & Gold. Esse
foi o nome que os americanos deram para a Fábrica. O que tornava a
logomarca portentosa eram as três serpentes entrelaçadas.
Aguardei por uma hora e meia na recepção até ser chamado para a sala do
Conselho. O ambiente era luxuoso, de extremo bom gosto. As janelas davam
para o Central Park. Não impressionava menos por ser clichê.
Não cheguei a ficar sabendo o nome de nenhum dos membros do
Conselho. Nossa reunião durou menos de quinze minutos. E eles não se
dignaram a se apresentar. Eram três homens e uma mulher. Dos homens, dois
eram tipicamente americanos, de aparência agressiva e arrogante, um mais
branco que o outro. O terceiro homem possuía feições orientais, de
ascendência provavelmente nipônica. Não era menos arrogante e agressivo que
os outros dois. A mulher era uma afro-americana de beleza estonteante, por
quem imediatamente me apaixonei.
Nenhum dos quatro tinha mais de trinta anos. E já eram os donos do
mundo. Aqueles sim, eram os verdadeiros Olimpianos. Senti-me velho,
fracassado, fraco. Subitamente me vi na pele do falecido Mario Bodoni. Meu
inglês não era tão bom quanto o italiano, mas dava para o gasto. Aliás, não
precisava dizer muita coisa e sim escutar.
O primeiro a falar foi um dos caucasianos. Como eu não sabia o seu nome,
chamei-o de White. “Então, senhor Bastos. Tomamos conhecimento da
maneira como você lidou com nosso associado em comum, Anton Bandura.”
Antes que eu pudesse dizer algo, o segundo homem falou. Como era um
pouco mais pálido que o primeiro, batizei-o Whitemore. “Não desperdice o
nosso tempo tentando justificar suas ações. Foi um trabalho desajeitado, na
melhor das hipóteses. Ainda assim, você demonstrou o tipo de iniciativa que
esperamos encontrar em nossos associados. Por isso a pergunta é: está
preparado para assumir o lugar de seu antecessor, senhor Bastos?”
“Sim. É claro que sim.”
Isso desfez bastante a tensão. Os quatro ficaram satisfeitos ao ver que
poderíamos entrar em acordo, e eu mais que todos. O japonês empurrou uma
maleta em minha direção. Resolvi chamá-lo de Japonês. “Considere isso um
pequeno teste de desempenho. Dependendo de como se sair, senhor Bastos,
discutiremos suas novas atribuições.”
Abri a maleta. Nunca tinha visto tantas moedas de cobre. Devia haver pelo
menos duas mil delas, perfeitamente empilhadas dentro da maleta. Como eles
conseguiram produzir tantas? Eu supunha que aquela operação era apenas uma
dentre inúmeras outras que o Conselho devia ter em andamento ao redor do
mundo, e possivelmente até mesmo no Brasil. Se em cada uma delas estivessem
investindo aquele tanto de moedas, a quantidade final devia ser de ordem
astronômica. Fechei a maleta e a ergui de cima da mesa, tentando avaliar o seu
peso. Devia pesar mais de dez quilos.
Foi só aí que a mulher falou. Ao ouvir sua voz ricamente cultivada, não tive
dúvidas de que era ela mesmo quem dava a palavra final por ali. Decidi chamá-
la de Rainha Negra. “É pesada, sim. Mas não tanto quanto suas
responsabilidades agora para conosco.”
Obedecendo a um gesto quase imperceptível da Rainha Negra, o Japonês
explicou: “Utilizamos um índice para controlar operações como esta. O valor
de cada moeda é expresso em dólares americanos. A cotação varia com o
tempo, de acordo com o número de moedas em circulação.”
E então mandei a primeira bola para fora. Quis bancar o esperto e me
antecipei ao Japonês: “Entendi. Quanto mais moedas soltamos no mercado,
menor torna-se o valor de cada moeda individual.”
“Senhor Bastos”, disse a Rainha Negra, e só pelo modo como ela disse o
meu nome percebi que havia falado besteira. “É precisamente o contrário
disso.”
“Quanto mais pessoas estiverem usando as moedas, maior se torna o valor
de cada moeda”, disse Whitemore, como se estivesse recitando um trecho da
Bíblia. “Isto deveria ser óbvio. Não estamos tratando aqui de economia
doméstica para iniciantes, pelo bem de Cristo!”
“Não adianta. É preciso explicar tudo.” White exibiu os dentes brancos em
um sorriso superior. E começou a me passar a lição: “Senhor Bastos, por que
estamos confiando a você tantas moedas? Certamente não seria para que suas
ações fizessem o valor das moedas diminuir, você não concordaria? Nossos
interesses estão em expandir os negócios e aumentar o valor das moedas. E
como fazemos isso? Aumentando o número de pessoas que usam nossas
moedas. Pois a cada nova pessoa portando uma moeda, maior se torna nossa
capacidade de operação e influência. A cada nova moeda, ficamos maiores e
mais poderosos. E é por isso que a cotação da moeda em dólares sobe com o
aumento das moedas. Está tudo compreendido agora? E você tem certeza de
que está à altura da tarefa?”
Eu estava vexado, mas não queria transparecer isso: “Qual é a cotação atual
da moeda? Se vocês não se importam em dizer.”
Foi o Japonês quem respondeu: “Cada moeda está cotada em cerca de
quinhentos dólares. Talvez um pouco mais que isso.”
Senti uma moleza nos joelhos, a respiração ofegante. Se meus cálculos
estavam certos, havia mais de um milhão de dólares em moedas naquela maleta.
Meus pensamentos deviam ser óbvios, pois a Rainha Negra disse: “Esse é o
montante de nosso investimento inicial em suas operações. Faça-o retornar
para nós com um bom lucro, e então começaremos a fazer negócios de
verdade.”
Eu já estava de saída, mas não pude me conter. Precisava perguntar: “Há
algo que eu gostaria de saber. Quando terei a oportunidade de conhecer um dos
acionistas?”
“Que acionistas, senhor Bastos?” Quis saber a Rainha Negra.
“Bem, vocês sabem. As pessoas que realmente estão comandando o show.
Os portadores das moedas de roentgênio.”
Por um momento os quatro me fitaram em silêncio. Então, como se
obedecendo a um sinal secreto, caíram todos na gargalhada. Eles estavam rindo
da minha cara.
“Apreciamos o seu senso de humor, senhor Bastos”, disse por fim a mulher,
no tom inconfundível de quem estava me dispensando. “Se nos der licença
agora, temos outros compromissos a atender. Tenha um bom dia.”

Pretas avançam na segunda:


Não deixar o portão e o pátio traz infortúnio.

Durante dois anos, essas foram as lembranças que tive de meu primeiro e
único encontro com o Conselho. Nem por um momento sequer questionei a
veracidade de minhas memórias, nem me pareceram estranhas suas evidentes
inverossimilhanças. Só depois da radical cirurgia de extração da moeda,
realizada em mim pelo inspetor Teixeira com o seu fiel canivete, foi que pude
notar que havia algo definitivamente estranho nessas recordações. Foi só então
que enxerguei o óbvio.
Como diriam os americanos, aquela história toda não passava de um monte
de merda de boi.
As minhas memórias foram editadas. Os fatos ocorreram de forma
ligeiramente diferente do que eu era capaz de lembrar. Detalhes essenciais
foram suprimidos. Pois o que aconteceu na realidade é que fui recondicionado.
Essa é a única explicação possível. Elementar, meu caro Bastos.
De que outra forma então explicar o que aconteceu em seguida?
Cheguei no Brasil com a maleta cheia de moedas. Nem sei como passei pela
alfândega. Obviamente algum esquema existia. E então qual foi o meu primeiro
ato? Entreguei a maleta para os gêmeos. A lógica dessa decisão me pareceu
irresistível na época. Era sem dúvida a melhor coisa a se fazer.
E para que os dois pudessem investir bem aquele tesouro em moedas de
cobre, confiei-lhes o total controle de minha rede de prostituição. Para mim,
aquela era uma sábia delegação de poderes. Acreditava realmente que era eu
quem estava no comando.
Os resultados foram esplêndidos, o que só confirmou o tino aparente de
minhas decisões. Recebi um comunicado do Conselho de que dessa vez a
remessa seria de dez mil moedas. Encarregar os gêmeos do transporte das
moedas, bem como de todos os contatos posteriores com o Conselho, foi o
passo seguinte e natural.
E assim fui abrindo mão de meus privilégios e responsabilidades em prol
dos gêmeos. Passei a ser o chefinho apenas nominalmente, se tanto. Uma coisa
curiosa foi que os gêmeos continuaram usando os meus códigos vocais pessoais
para o condicionamento dos novos contratados. Cada um desses milhares de
portadores de moedas sofreria irremediavelmente um intenso ataque de pânico
ao ouvir o meu nome ser pronunciado: Rogério Arcanjo Bastos. E sofreriam
mais do que achavam ser possível ao som de minha palavrinha mágica
particular: tonatufor. E assim por diante. Nunca entendi direito porque os
gêmeos agiram dessa forma. Talvez desejassem apenas manter a ilusão de que
era eu quem estava no comando. Talvez a sua esterilidade os impedisse também
de gerar os seus próprios códigos.
Eu mesmo é que não podia estar ligando menos para essas coisas. Todo o
meu tempo e energia eram insuficientes para um projeto que subitamente
adquiriu para mim uma importância vital. Era o Programa de AutoPercepção e
Aprimoramento Inteligente.
Hoje, depois que tudo terminou, vejo que o PAPAI era apenas um
escoadouro secundário para a enchente de moedas que os americanos
continuavam mandando para o Brasil. Uma vez que havia moedas de sobra,
começamos a contratar nos escalões de chefia intermediária e até pessoal
operacional, como se já não tivéssemos o bastante. Era esse o propósito do
PAPAI: capturar a arraia miúda. Os peixes realmente grandes estavam sendo
pescados por Júlia e Kim.
Mas para mim o programa era o centro do universo. Fiscalizava
pessoalmente cada detalhe da operação, infernizava os subalternos, exigia o
estrito cumprimento das normas. Eu havia iniciado um império. De uma hora
para a outra, fui rebaixado a chefe carcereiro burguês padrão. E o pior de tudo
é que nem me dei conta disso.
Quando graças ao programa fiquei sabendo que o inspetor Teixeira era meu
filho natural, atribuí a descoberta a uma coroação de meus esforços. Não tinha
porque ficar feliz com a novidade, mas exultei de triunfo. Convenci a mim
mesmo de que meus atos obedeciam unicamente a uma secreta e poderosa
intuição.
A verdade era bem outra. No que diz respeito a Alberto Teixeira, meus
passos estavam sendo guiados desde o início. A revelação de minha paternidade
não foi uma surpresa para a Fábrica. O evento fora descortinado pelo
computador Anson, com largas probabilidades. Eu é que nada sabia a respeito.
O fato de eu ter um filho era de grande interesse para a Fábrica. Mesmo
com tanta proliferação de moedas, continuavam sendo raros os que chegavam a
alcançar o ouro. Dentre esses, pouquíssimos tinham filhos.
Uma pista importante que tive ocorreu quando Júlia e Kim descobriram a
existência de Henrique Habbot, dias depois da morte de Bodoni. Júlia ficou
possessa:
“Nós tínhamos o mapa de El Dorado nas mãos. E você simplesmente deixou
o vento levar, chefinho. Por que não nos avisou que Bodoni tinha um filho?”
Eu jamais havia julgado necessário comentar sobre Henrique com os
gêmeos. Para falar a verdade, nem lembrava mais dele nem de Irene. Foi uma
total surpresa para mim também o encontro que Bodoni arquitetava ter com o
filho.
Esse episódio deveria ter me deixado desconfiado. E deixou mesmo. O
problema é que toda vez que eu começava a pensar no assunto sentia logo uma
terrível enxaqueca. O mesmo acontecia se eu tentava lembrar de mais detalhes
de minha ida a Nova Iorque, ou então se eu me pegava questionando o porquê
de conceder tanta força aos gêmeos. Em pouco tempo, minha mente passou a
evitar esses pensamentos dolorosos.
Na minha cabeça, eu era um dos mais bem sucedidos homens no mundo.
Não sabia que o meu sucesso consistia em construir eu mesmo o meu próprio
cadafalso. Se eu não sabia do mal, contudo, que mal havia? Em meu próprio
mundo, tudo estava bem.
É um pouco triste dizer isso. Mas esse período que passei como robô foi
um dos mais felizes de minha vida.

Brancas avançam na terceira:


Aquele que não conhece a limitação terá motivos para lamentar.

Hoje parece fácil ver como eu estava sendo manipulado pelos gêmeos. Essa
é a vantagem do presente ao elucidar o passado, tornando evidente o que estava
obscuro, trazendo à luz motivações ocultas e ações falseadas, revelando onde
foram plantadas as sementes pelos frutos que geraram.
A vantagem do passado é ser imutável. E a vantagem do futuro é a de não
passar de um sonho na mente dos homens.
É. Os vencedores escrevem a história. Aos perdedores, resta a filosofia.
Pois o fato é que os gêmeos estavam me passando a perna em grande estilo.
E eu pensando que sabia muito bem lidar com os dois. Como diria a peãozada
lá da fazenda de meu pai, enquanto eu ainda estava dando ração a bacorinho,
Kim e Júlia já estavam comendo torresmo.
Creio que o que me manteve vivo foi a minha condição de bispo. De todos
os meus contratados, não soube de nenhum que alcançou a moeda de ouro. Eu
era mais útil à Fábrica vivo que morto. Uma vez que minha liderança tornou-se
meramente figurativa, deixei de representar obstáculo para a ambição dos
gêmeos. Tampouco cometi ofensas capazes de suscitar neles o desejo de
vingança. Muito pelo contrário, pois muito mais frequentemente era eu a parte
ofendida. Não havia razão, portanto, para que eu fosse assassinado. Júlia e Kim
não iriam me matar só para preencher o tédio de uma tarde ociosa.
Tudo mudou com a descoberta de que Teixeira era meu filho. A partir daí,
minha vida não valia mais um tostão furado. Já minha morte poderia render um
carro-forte recheado de moedas. E foi assim que os gêmeos resolveram entrar
em ação.
Fiquei muitíssimo intrigado pelo fato de Júlia e Kim terem agendado o meu
sincronicídio para o mesmo dia em que decidi efetivar a contratação de
Teixeira. O que será que os gêmeos pretendiam, induzindo-me a mandar
Varlene usar o Cromomagnetoscópio com Teixeira justo naquele dia? Ou será
que tudo não passou de uma coincidência? Era para mim difícil crer nessa
hipótese.
O que teria acontecido se Varlene tivesse êxito em contratar Teixeira? Teria
isso colocado os planos sincronicidas de Júlia em suspenso? Pouco provável.
Fosse a contratação conduzida por Varlene ou Ágata, o resultado final teria
sido o mesmo. Teixeira estaria conectado à Fábrica. Fácil de prever, fácil de
manipular, fácil de controlar.
Tal como os fatos se deram, contudo, Varlene acabou atrapalhando Ágata, e
vice-versa. Teixeira continuava sendo uma incógnita tanto nas equações dos
gêmeos, quanto nas minhas. De pouco adiantava naquele momento a moeda
grudada em sua coluna: enquanto ele não gozasse, continuaria livre.
Não fosse por esse pequeno e crucial detalhe, até que os gêmeos se
prepararam direitinho.
Imagino que selecionaram Ágata dentre as inúmeras prostitutas de luxo de
uma de minhas casas, que eles agora comandavam. Provavelmente escolheram
Ágata pelo seu tipo físico, por estar muito próximo do que Teixeira considerava
o ideal de mulher.
Tornou-se óbvio que os gêmeos tiveram acesso ao perfil psicológico do
inspetor Teixeira, bem como a outras informações confidenciais do PAPAI.
Pois meu filho ficar com os quatro pneus arriados por uma mulher como ele
ficou, não seria por uma qualquer. Ágata foi muito bem escolhida. Bem
escolhida até demais.
Da mesma forma ficou evidente que Júlia e Kim conseguiram hackear meu
computador pessoal. De que outro jeito teriam conseguido produzir aquele
bizarro livro inacabado, A Morte do Inspetor Teixeira? Imagino que eles não
tiveram nenhum motivo especial para inventar essa história do livro. Devem ter
achado divertido zoar com o senso de realidade do inspetor.
A minitevê implantada em Teixeira estava configurada para gravar em modo
de transcrição automática. Essa é normalmente a configuração padrão. Isso
significa dizer que junto com os registros de vídeo, áudio e padrões energéticos,
um arquivo de texto era também gerado, contendo todas as palavras que
Teixeira disse ou que disseram perto dele. Os arquivos gerados normalmente
não passavam de páginas intermináveis de baboseira sem sentido para cada
meio parágrafo interessante. Mas nunca se sabe quando um arquivo desses
pode se tornar útil, o que foi demonstrado cabalmente por Júlia e Kim.
A julgar pelas ações e reações dos gêmeos nesse dia, creio que eles não
conseguiram ter acesso aos arquivos principais de áudio e vídeo. Mas
seguramente acessaram esses arquivos de backup de texto, com a transcrição
das falas. Só pode ter sido. Quanto à capa e ao acabamento, provavelmente já
deixaram tudo pré-formatado. E uma boa gráfica rápida fez a impressão do
livro em meia hora ou menos. Ainda assim, deve ter sido um cronograma
apertado editar e imprimir o livro em tempo hábil para que estivesse nas mãos
de Ágata no momento certo. Tudo bem ao gosto dos gêmeos.
Isso para não mencionar que os dois passaram a noite anterior em claro,
ocupados em monitorar o traficante Jorginho Príncipe e a menina Isabele
enquanto os dois se afogavam em uma banheira de excrementos.
A escolha das vítimas foi motivada com toda certeza pelo irreprimível e
distorcido senso estético de Júlia, que acreditava elevar o assassinato a uma
nobre arte só por enfeitá-lo com o aroma de eruditas citações literárias. O
objetivo principal do crime da Suíte V foi deflagrar o confronto entre duas
facções criminosas rivais. Com sua imaginação deviante, Júlia enxertou a
tragédia de Romeu e Julieta na guerra do narcotráfico. E a ideia nem era
original: ela copiou de um filme.
Desconheço que artifícios os gêmeos usaram para sequestrar Jorginho
Príncipe e a menina, mas não deve ter sido nada muito difícil. Isabele foi
decerto aliciada por alguma notícia falsa ou promessa tentadora na saída da
escola. O chefe do tráfico em Nova Colômbia pode ter dado mais trabalho, ou
talvez menos. Talvez tivesse bastado um convite insinuado de sexo fácil com a
linda patricinha loira. Afinal, tudo o que Júlia precisava era que ele entrasse no
carro. E ela era boa em convencer as pessoas.
Eu que o diga.
CAPÍTULO 63 – DEPOIS DO FIM

Depois do Fim. Sucesso em pequenos assuntos. No início boa sorte, desordem


no fim.
Água sobre Fogo: assim o homem superior antecipa-se ao infortúnio e se prepara contra ele.
(I Ching – hexagrama 63)

Esse negócio de matanças lucrativas não era para mim. Os gêmeos, pelo
contrário, nasceram para isso. Era a sua vocação natural, o seu chamado
místico. Eles nunca se sentiam tão realizados quanto depois de dar cabo da vida
de outro ser humano.
Talvez o fato de serem ambos estéreis tivesse a ver com toda aquela sede de
sangue. Júlia e Kim estavam paralisados na moeda de prata. Não havia como
progredirem até o ouro, pois não podiam gerar o cobre. E desconfio que da
mesma forma fossem incapazes de procriar através do sexo. Os dois eram
estéreis, como todos os híbridos. Talvez daí tenha vindo tanto ódio à vida.
E olha que eles começaram cedo. Quando vieram com Bodoni dos Estados
Unidos muito provavelmente já não eram virgens também em matéria de
homicídios. Pois com poucos meses que eles estavam sob meus cuidados tive
meu primeiro problema dessa natureza.
Um garoto morreu afogado na piscina da escola. Júlia e Kim estavam
brincando com ele. Não souberam explicar como ocorreu o acidente. Ninguém
esperava que o fizessem. Afinal eram apenas crianças.
Seis meses depois, a escola foi abalada por uma nova tragédia. Dessa vez foi
uma menina, que quebrou o pescoço ao cair do balanço na hora do recreio. Os
gêmeos estavam no mesmo brinquedo. Antes que os coleguinhas de turma e
professores começassem a somar dois mais dois, retirei Kim e sua irmã da
escola, alegando motivo de viagem urgente. Minha atitude não chegou a
despertar suspeitas, pois muitos pais estavam fazendo o mesmo.
Não precisei conversar com os gêmeos a respeito. Kim só precisava segurar
a minha mão para ficar sabendo o que eu estava pensando. Mas depois disso
eles ficaram mais cuidadosos. Aconteceram outros acidentes fatais nas escolas
por onde passaram, mas nunca houve a desconfiança de que os gêmeos
estivessem envolvidos. Por essa época Júlia já se tornara uma ávida leitora de
romances policiais, e chegara à conclusão de que o assassinato é muito mais
divertido quando ninguém desconfia do assassino.
E eu fazendo vista grossa, mudando os gêmeos de colégio sempre que
alguém morria. Não foram só colegas de turma. Em um dos colégios, a
professora de ciências e um faxineiro morreram depois de beber café com vidro
moído. Três outros professores foram hospitalizados em estado grave.
Fora isso, os dois nunca me deram trabalho com os estudos. Sempre
tiravam boas notas. Júlia era bastante estudiosa, e Kim um verdadeiro mestre da
cola. Ele só precisava sentar atrás do cdf da turma durante as provas, e dar um
jeito de encostar no colega sem que a professora notasse.
Mas foi um alívio quando os dois me comunicaram, aos catorze anos, que
não pretendiam continuar frequentando a escola. Não viam razão naquilo. E eu
muito menos.
Desde então passaram a viajar bastante, conhecendo o Brasil e o mundo.
Dinheiro para isso não faltava. Às vezes ficavam poucos dias fora. Mas também
passavam até meses seguidos viajando, para minha grande alegria. Isso ajudou a
tornar a nossa convivência aceitável.
Sei que passaram ao menos uma longa temporada na Índia, logo que
completaram dezesseis. Foi por essa época que Kim começou com as cirurgias
para ficar mais parecido com a irmã. A primeira que ele fez foi até discreta:
limitou-se a copiar a pinta de Júlia acima dos lábios.
Na Índia, os dois refizeram os passos de Bodoni e foram além.
Mergulharam de cabeça no chamado Caminho da Mão Esquerda. Voltaram
eufóricos, cheios de novidades. Ainda estávamos no estacionamento do
aeroporto quando eles me mostraram um dos novos truques que haviam
aprendido. Fizeram isso de uma forma bem infantil: me dando língua. Fiquei
estarrecido com aquelas línguas descomunais, com o dobro do tamanho de uma
língua normal. Foi então que Júlia me contou sobre a técnica secreta de Khechari
Mudra.
“Mas para que vocês quiseram aprender uma coisa dessas?”
“Ora, chefinho, não é óbvio?” Júlia respondeu com um sorriso que nada
tinha de infantil e que gelou meus bagos na hora. “Fizemos isso para obter
poderes.”
Foi nessas viagens também que os dois fizeram os primeiros contatos com
grupos neonazistas na Europa. Quando estavam em Rio Santo, passavam mais
tempo na rua que em casa. Eu imaginava que se divertiam caçando putas e
mendigos. Não seriam os únicos adolescentes ricos da cidade fazendo isso.
Esse talento para o sangue eu nunca tive. Mas não chegava a me horrorizar
com as matanças dos gêmeos. Desde o tempo de Bodoni, já tinha visto muita
coisa. Não me sentia capaz de matar, mas não me incomodava conviver com
dois assassinos.
Até o dia do sincronicídio, só estive envolvido diretamente em uma morte, a
de Bodoni. E mesmo assim o meu papel foi bastante secundário. Tudo o que
fiz foi sugerir a ideia para os gêmeos.
Mas aquele dia que começou com trovões estava destinado a me
transformar em um matador de uma vez por todas. Varlene foi a primeira
pessoa que matei com minhas próprias mãos. Pois ao ativar o loop de
orgasmos, assassinei-a tão seguramente quanto se tivesse disparado contra ela
uma arma de fogo.
É mesmo verdade o que disse Agatha Christie em um de seus livros: é fácil
matar. Não me custou muito ser o agente causador da morte de Varlene
Alberione. Como se não bastasse, poucas horas depois já estava pronto para
cometer meu segundo homicídio.

Pretas avançam na primeira:


Ele freia suas rodas. Ele molha sua cauda. Sem culpa.

Comecei tarde demais a minha carreira de assassino. Pois não tenho dúvida
de que um dos fatores que me fizeram ser preterido pelo Conselho foi essa
minha baixa predisposição para os crimes de morte. Tirando a sede de sangue,
eu preenchia todos os requisitos. Era ambicioso, sexualmente hiperativo e sabia
fazer o dinheiro procriar feito coelho. Havia conquistado a minha moeda de
ouro.
Mas para os novos tempos que estavam chegando, não era o suficiente. Os
gêmeos, sim, tinham o que era preciso.
Só depois de tudo terminado, remoendo meus pensamentos, é que fui
divisando o plano que secretamente movia as engrenagens da Fábrica. Primeiro,
era necessário haver um número grande de pessoas usando as moedas. Só assim
era possível por em execução um sincronicídio.
O suposto sincronicídio de Bodoni só existiu na imaginação e prepotência
de Júlia. Não passou de um assassinato complicado. Embora as consequências
tenham sido grandes, nenhum lucro direto foi gerado. Além disso, essas
repercussões da morte de Bodoni foram mais um fruto da incompetência do
delegado Fantini que da perícia dos assassinos.
Mas o episódio serviu a um propósito. A morte de il Dottore mostrou para o
Conselho o potencial dos gêmeos. E foi assim que fiquei para trás e perdi o
bonde da história.
O Conselho estava certo ao apostar em Júlia e Kim. E quando surgiu a
oportunidade para um autêntico sincronicídio, os gêmeos estavam mais que
preparados. Não que eles pretendessem me deixar de fora. Afinal todo crime de
morte, assim como uma partida de xadrez, necessita de um mínimo de dois
participantes.
Para que possa haver um assassino, deve existir também uma vítima.

Pretas avançam na terceira:


O ilustre ancestral disciplina o país dos demônios. Após três anos obtém a conquista. Pessoas
inferiores não devem ser empregadas.

Em uma de suas últimas visitas ao Brasil, depois de ter bebido um bocado, il


Dottore finalmente me contou de suas teorias a respeito do sincronicídio.
“As implicações são fascinantes, Rogério. E com a tecnologia que o
Conselho tem à sua disposição, dentro em breve se tornará possível por em
prática um verdadeiro sincronicídio.”
Foi a primeira vez que ouvi a palavra.
“Sincronicídio? E o que vem a ser isso? Assassinatos em sincronia? Ou o
extermínio da contemporaneidade?” Eu também havia bebido um pouco.
Bodoni soltou uma risada: “As duas coisas, meu caro Rogério. As duas
coisas.”
Ele apanhou um bocado dos amendoins que consumíamos como tira gosto.
Estávamos no bar do hotel Émile, nosso ponto de encontro oficial de
conversas e bebedeiras. Bodoni começou a enfileirar os amendoins sobre o
balcão.
“Todos os eventos do mundo estão interligados. Essa é a lei básica que rege
as coincidências.”
“Sei disso, doutor. Eu li o seu livro.”
“Pois então. Imagine poder interferir na cadeia dos acontecimentos, de tal
forma que um único ato seja capaz de provocar múltiplas reações.”
Com um piparote, il Dottore fez o amendoim que estava na frente da fila
colidir com o segundo e depois sair voando por cima do balcão. O restante da
fileira continuou intocado.
“Funciona melhor com dominós, você sabe. Mas dá para pegar o espírito da
coisa.”
“Não estou seguro de estar compreendendo, doutor.”
“Pois muito bem. Esqueça os amendoins. Esqueça o dominó. Imagine que
estamos jogando bilhar. Imagine que você possa, com uma única tacada,
colocar todas as bolas na caçapa. Isso é o sincronicídio.”
“Essa parte dos amendoins, ou da sinuca, eu consegui entender. Mas porque
essa palavra, sincronicídio? Ela sugere que a primeira tacada deve ser
obrigatoriamente um assassinato. Por que essa teoria sua não pode se aplicar a
qualquer outro tipo de ação?”
“Muito bem observado, Rogério. Eu nunca me desaponto por confiar em
sua inteligência.” Ele ficou calado por um momento. Parecia estar me
sondando. Afinal perguntou: “Diga-me uma coisa, você acredita em Karma?”
“Estamos ficando esotéricos, hem? Para falar a verdade, doutor, não tenho
opinião formada. Nunca pensei a respeito.”
“Pois deveria. Mas eu formulei mal a pergunta. Não se trata de acreditar ou
não em Karma. O problema é que essa, como tantas outras palavras do
sânscrito, acabaram sendo prostituídas pela rasa mentalidade ocidental. Você
sabia que a palavra santo existe originalmente em sânscrito? E que significa,
simplesmente, devoto? Um santo não é uma estátua inatingível postada num
altar. Santo é só alguém que ama a Deus. Esse é o sentido original da palavra.
Todo homem pode ser um santo.”
Eu havia notado que Bodoni vinha gradualmente mergulhando nessas ondas
místicas. Depois que ele morreu, passei também a me interessar pelo assunto.
Mas na época o tema me incomodava, gerava dissonância. Parecia deslocado
em nossa situação. Como se não tivéssemos o direito de falar de Deus daquela
forma, com qualquer tom que se aproximasse de uma reverência.

“Era para sermos centelhas divinas. Mas escolhemos abraçar a escuridão.”

Isso ficou girando na minha mente por bem mais tempo do que eu gostaria.
E esse mal estar já estava presente ali, quando Bodoni ainda estava vivo. Por
isso é que pedi ao garçom para trazer mais dois uísques com gelo, e aproveitei a
interrupção para trazer o doutor de volta a temas menos incômodos, como o
assassinato.
“Mas o que é que o Karma tem a ver com esse tal de sincronicídio?”
“Ah, sim. Claro. Pois então. Não se trata de acreditar ou não em Karma.
Não se trata de uma crença, mas de um conceito filosófico. A palavra Karma
significa originalmente ação. A tão falada e deturpada lei do Karma, na verdade,
nada mais é que o seguinte: toda ação gera uma reação. Esse é um princípio
básico de funcionamento do nosso universo. Ninguém crê ou não na teoria da
gravitação universal de Newton ou na teoria da relatividade de Einstein. São
coisas que as pessoas conhecem, ou então ignoram. Mas os que ignoram
sentem os efeitos do mesmo jeito. Não há crença nenhuma envolvida, só a pura
experiência.”
“O que nos leva ao sincronicídio.”
“Exatamente. Você disse tudo.”
Não sei se o doutor falhou em perceber o meu sarcasmo. Ou se com um
deboche ainda maior ele estava mostrando que ainda era o meu insuperável
mestre da ironia.

Brancas avançam na quarta:


As roupas mais finas transformam-se em trapos. Fique atento durante todo o dia.

Não sei o que poderia ter feito, considerando que para início de conversa eu
não passava de fantoche na mão dos meninos. Ainda assim, uma parte de mim
hoje lamenta não ter resistido mais, brigado mais, continuado na busca. Mas
acabei me contentando com o ouro dos tolos.
Esqueci a regra básica da ambição. A alegoria da montanha só serve até o
ponto em que você finalmente consegue alcançar o topo. A partir desse
instante, o topo da montanha torna-se uma planície que vai dar no sopé de uma
nova montanha. Querer parar de subir já é começar a cair.
E eu comecei minha queda no momento em que, julgando-me muito
esperto, insinuei na cabeça dos gêmeos a ideia do assassinato de Bodoni. Pois
foi como se tivesse assinado a minha própria sentença de morte.
O que eu deveria ter feito é ter matado o velho eu mesmo. Com um tiro na
cabeça, sem histórias mirabolantes. Que nem nos filmes sobre a máfia. De um
modo prático, impessoal, eficiente.
O doutor estava certo a respeito do Karma. Pois eu fiquei devendo essa
morte.
Com ele. Era isso o que eu deveria ter feito com ele.

Pretas avançam na quinta:


O vizinho do leste abate um boi para o sacrifício, mas não é tão feliz quanto o vizinho do
oeste com sua pequena oferenda.

Um dos objetivos primários dos gêmeos era deflagrar uma guerra civil em
Rio Santo na noite do sincronicídio. Isso exigiu um bom planejamento.
A versão escatológica de Romeu e Julieta era apenas uma das pontas do
tabuleiro, só uma das cenas do jogo. Com esse lance, os gêmeos não só
deceparam a liderança do narcotráfico em Nova Colômbia como estabeleceram
uma bizarra – e por isso chamativa – conexão entre a morte de Jorginho
Príncipe e a facção rival do morro do Urtigão.
A jogada seguinte foi metralhar Luca do Urtigão e seus comparsas. Primeiro
era preciso seduzir e contratar Luca. Isso não foi difícil para Júlia. E foi assim
que os gêmeos garantiram que Luca estaria com seu bando no Salão 66 ½ na
hora mais propícia, com a guarda aberta e a segurança relaxada, uma presa fácil.
Dezessete homens foram mortos no total. E também uma menina de onze
anos. Mas Júlia e Kim estavam apenas na abertura da partida, simplesmente
arrumando as peças no tabuleiro. Agora sim é que iam desfechar o ataque
propriamente dito.
Uma terceira facção criminosa também disputava os pontos de tráfico em
Rio Santo. Menos conhecida que as outras duas, tinha como base de operações
a favela do Capim Queimado, na periferia da cidade. Depois do massacre do
Salão 66 ½, esse grupo recebeu bastante atenção por parte dos noticiários. Não
passava de um bando de pés de chinelo, mas ficou famoso como a Falange
Púrpura, que na mesma noite declarou guerra ao morro do Urtigão e à favela de
Nova Colômbia.
O nome refinado, tão pouco condizente com a bruta realidade da periferia,
foi certamente ideia de Júlia. Pois ela e Kim eram os verdadeiros comandantes
da Falange Púrpura. Tonho Pilão, chefe nominal do bando, havia recebido sua
moeda de cobre meses antes. Depois disso, Júlia ainda se deu ao desfrute de
contratar pessoalmente os principais homens de Tonho. Graças ao Conselho,
moedas para tanto não faltavam. E Júlia bem que gostava do amor rude dos
bandidos.
Mais ou menos na mesma hora em que Teixeira invadiu a minha casa, todo
roto e ensanguentado, o grupo de Tonho avançava morro do Urtigão adentro.
As forças de Luca estavam desbaratadas após a matança na churrascaria. Os
homens fortemente armados de Tonho tomaram com facilidade a boca do
Urtigão. Só alguns poucos soldados remanescentes ofereceram uma pífia
resistência, e acabaram pagando a obstinação com a vida. Em pouco menos de
meia hora, o morro do Urtigão passou a pertencer à Falange Púrpura.
Bem mais violenta e custosa foi a invasão de Nova Colômbia. Muito sangue
foi derramado. Mesmo privados da inspiradora liderança de Jorginho Príncipe,
os herdeiros da boca resistiram com selvageria. Sorte dos gêmeos terem bucha
de canhão suficiente.
Após a vitoriosa campanha do morro do Urtigão, Tonho e seu bando de
valentes foram exterminados pelas forças defensivas de Nova Colômbia. Foi
mesmo uma batalha de proporções épicas. Mais de trinta pessoas ali
encontraram o fim da vida na ponta de uma bala. Pelo menos um terço das
vítimas não tinha nada a ver com nenhum dos dois lados da briga.
E foi desse modo que em um único dia Júlia e Kim conseguiram dar cabo
das três principais forças do tráfico em Rio Santo. Se o objetivo deles fosse
assumir o controle das bocas, essa teria sido uma pobre estratégia. Pois Tonho
Pilão e seus homens abandonaram o morro do Urtigão imediatamente após a
conquista. Ganharam, mas não levaram. Foram imediatamente para Nova
Colômbia, para matarem e serem mortos. E o resultado foi que os pontos de
tráfico dos três grupos rivais ficaram todos sem dono.
O objetivo dos gêmeos não era comandar as bocas de fumo da cidade. Os
meninos não estavam interessados em drogas. Mas tampouco era a intenção
deles acabar com o tráfico. Ninguém consegue isso simplesmente matando
traficantes. Pois para cada um deles que sai de circulação, três outros surgem
para ocupar a vaga. Se Júlia e Kim quisessem mesmo eliminar o tráfico, muito
mais fácil seria contratar parlamentares ao invés de traficantes, e promover a
legalização de todas as drogas.
Não. O que os dois queriam foi o que acabaram alcançando: o caos e o
terror. Durante as semanas seguintes, Rio Santo foi engolida por uma guerra do
tráfico sem precedentes. Com a morte dos chefões, qualquer grupelho de
facínoras podia almejar o trono de Rei do Pó. Conflitos sangrentos eclodiram
por toda a cidade.
Isso, sim, era o que Kim e sua irmã ambicionavam. Tiros e gritos de dor
ecoando nos ouvidos, o medo fazendo parte da rotina diária. Essa parte do
plano correu admiravelmente bem para os gêmeos.

Brancas avançam na sexta:


Ele submerge a cabeça na água. Perigo.

Uma proeza à parte foi o condicionamento de Ágata. Imagino que


utilizaram fotos de Teixeira, e provavelmente minhas também, para “ancorar”
todas aquelas recordações e sentimentos forjados. Confesso que eu mesmo não
saberia fazer um trabalho tão completo. Os gêmeos andaram aprendendo
muito pelas minhas costas. É impressionante como eles evoluíram desde a
morte de Bodoni. Como pude deixar de perceber?
Para sua segunda e definitiva tentativa de sincronicídio, Júlia e Kim se
prepararam muitíssimo bem. Tudo estava correndo conforme o programado.
Quase tão fácil quanto seguir uma receita de bolo. E agora só faltava a cereja.
O Gambito do Bispo
CAPÍTULO 35 – PROGRESSO

O poderoso príncipe é honrado com cavalos em grande quantidade. Em um


único dia ele tem três audiências.
O sol eleva-se sobre a terra: a imagem do Progresso. Assim o homem superior por si mesmo
ilumina sua brilhante virtude.
(I Ching – hexagrama 35)

Kim apontava o cano da pistola ora para mim, ora para Teixeira. Estava
meramente pontuando sua fala. “Pode continuar, chefinho. Não se sinta
constrangido por nossa presença. Continue explicando ao Júnior como tudo é
culpa dos gêmeos malvados.”
Teixeira levantou da cadeira de um pulo. Mas foi logo interceptado por
Júlia, que vinha abraçada a Ágata, com a pistola apontada para sua têmpora.
“Nem pense nisso, bonitão. Estou de olho em você. Qualquer movimento em
falso e abro um novo buraco em sua namoradinha.”
“Acho que ele está querendo pagar para ver.” Kim soltou uma risada
desagradável. “Quem sabe não acabamos descobrindo que é de um buraco
desses que ele agora precisa para ficar excitado?”
Teixeira ficou rubro de indignação por baixo do negro do sangue pisado de
seus ferimentos. Foi notável o esforço que fez para se controlar. Ele rosnou:
“Podem parar já com esse draminha barato de filme B. Vocês estão pensando o
quê? Pra que essa palhaçada de ficar apontando uma arma para a cabeça dela?
Ela é uma de vocês. Por que eu deveria me importar?”
Júlia sorriu de um jeito que desarmou um pouco o inspetor. Percebi que ela
procurava desfazer o efeito do comentário infeliz de seu irmão. “Você está
seguindo a pista errada, meu bem. Ágata só atacou você lá no seu apartamento
porque eu a obriguei. Ela não tinha escolha. Se você aprendeu sobre nós a
metade do que imagino, já deve saber disso.”
Teixeira desviou o olhar, em mudo consentimento. Estava muito vívida a
lembrança do que acontecera com Régis Vale. Júlia prosseguiu: “Pois pode
acreditar no que digo. Essa linda bonequinha aqui do meu lado está total e
irremediavelmente gamada por seu policial herói. Que é você, meu caro. Ela
não tem escolha a não ser amar você. Eu a obriguei a isso. E fiz um ótimo
trabalho, a modéstia que vá para o inferno. Duvido que alguma outra mulher
tenha amado você como Ágata. E é por isso que estou ameaçando a vida dela
para fazer você ficar quieto e escutar o que temos a dizer. Ela é preciosa para
você, não tente negar. Está escrito nos seus olhos.”
Ágata viu aí a sua deixa. Até então ela estivera fitando Teixeira
intensamente. “Alberto, eu não queria fazer aquilo. Eu jamais iria querer te
ferir.”
Tinha uma voz realmente bonita, calorosa e suave como vinho doce. Foi
então que me bateu o reconhecimento. Alguma coisa em Ágata fazia-me
lembrar de Isabel, a mãe de Teixeira. Fiquei surpreso com a descoberta. Sem
dúvida alguma os gêmeos pesquisaram bem fundo.
Kim interrompeu minhas divagações. “Melhor me passar sua arma agora,
inspetor. E bem devagar.”
Teixeira pareceu hesitar por alguns segundos, avaliando a situação. Afinal
resignou-se. Primeiro ergueu os dois braços até a altura da cabeça, para
demonstrar que havia concordado. Só então levou lentamente a mão direita até
o coldre abaixo do braço esquerdo, pegou sua ponto quarenta e a passou com a
coronha voltada para Kim.
Eu tinha de tentar alguma coisa. “Kim, Júlia. Pensem um pouco no que
vocês estão fazendo. Onde isso vai parar?”
Soube que não iria conseguir nada por esse caminho assim que vi o sorriso
que Júlia endereçava a mim. Ela sorriu antes do mesmo jeito para Teixeira.
“Temos trabalhado duro, chefinho. É verdade. Mas só assim se faz um
sincronicídio.”
Brancas avançam na segunda:
Progredindo, mas com pesar. Ele recebe uma grande felicidade de um de seus ancestrais.

Kim guardou a ponto 40 no bolso do casaco.


“Fique na sua, caubói. Temos uma proposta a fazer para você.”
Teixeira fitou Kim diretamente nos olhos, e essa foi toda a sua resposta.
Novamente Júlia tentou amaciar.
“Pelo menos escute, é só o que estamos pedindo. Você pode sair dessa
muito bem. Tem muita grana envolvida, você não faz ideia. E ainda pode ficar
com essa linda mocinha aqui, apaixonada por você para sempre. Já imaginou?”
O olhar de Teixeira buscou o de Ágata, e essa foi resposta suficiente.

Pretas avançam na quarta:


Progresso cauteloso como o de um pequeno rato. A perseverança é perigosa.

Eu não queria acreditar em meus próprios olhos e ouvidos. As intenções de


Júlia e Kim tornavam-se mais evidentes a cada momento. Nem precisava olhar
pela janela, pois tinha certeza de que havia de fato um carro-forte nas
proximidades.
Assistia impotente o inspetor ser manobrado pelos gêmeos. A situação não
estava nada boa para mim. Meu cérebro fervilhava tentando encontrar uma
saída para aquele impasse. Eu sabia que minha vida dependia disso.
Precisava aguardar o momento certo para agir.
Brancas avançam na quinta:
O remorso desaparece. Não leve ganho e perda tão a sério. Empreendimentos serão bem
sucedidos.

O inspetor Teixeira começou a desconfiar de que possuía algum poder de


barganha. Estava claro que os gêmeos queriam algo dele. Resolveu fazer um
teste para descobrir até que ponto Júlia e Kim estariam dispostos a ceder.
“Deixem a moça ir. Agora.”
“Mas de jeito nenhum”, disse Júlia.
“Vai sonhando, Júnior”, disse Kim.
Teixeira simplesmente o ignorou. Continuou concentrando sua atenção em
Júlia.
“Se quer que eu escute o que você tem a dizer, solte a moça primeiro. Não
tem conversa certa enquanto você não tirar essa arma da cabeça dela.”
Júlia tentou quebrar a vontade do inspetor, mas isso não era tão fácil. E
menos ainda porque ela estava lidando com diversas frentes ao mesmo tempo.
Pois certamente estava exercendo sua influência também sobre Ágata, para
manter sua refém no papel de vítima submissa.
O elo mental com Kim nunca cessava tampouco. Naquele momento Júlia
devia estar tendo trabalhos dobrados para manter seu impetuoso irmão sob
controle. Via-se claramente que Kim estava ansioso pelo frenesi da matança,
como um tubarão-tigre que farejou sangue.
E era igualmente certo que Júlia estava tendo cuidados especiais para
comigo. Eu sentia a insistência de seus pensamentos em minha mente, dizendo-
me para continuar sentado em minha cadeira, tranquilo, calmo e feliz. Dizendo-
me que tudo correria da melhor maneira se eu ficasse quieto no meu canto.
Mas não seria tão fácil enfiar uma ideia na cabeça de Teixeira.
“Deixem a moça sair agora e eu converso com vocês. Ela é só um
instrumento para vocês, do mesmo jeito que o ator Régis Vale foi. Eu entendo,
sim, o que vocês são capazes de fazer com essas moedas. E é por isso que
considero até um insulto à minha inteligência você continuar brincando de
refém desse jeito. Eu sei que você domina a vontade dela. Você mesma acabou
de admitir isso. Não precisa de uma arma para que ela faça o que você quer.”
“Touché”, disse Júlia e acabou sorrindo suavemente. “Tudo bem. Vamos
fazer um acordo então, meu querido. Nem eu nem você, pode ser? A donzela
em perigo continua sem poder deixar o recinto, mas fica livre para correr para
os braços de seu herói.”
Que foi exatamente o que Ágata fez.

Pretas avançam na sexta:


Fazer progresso com os chifres só é permitido se o propósito for punir a própria cidade. É bom
estar consciente do perigo. Sem culpa. A perseverança traz humilhação.

Kim não gostou de ver Ágata correndo ao encontro de Teixeira, mas Júlia
com um gesto de mão o deteve.
Ágata afundou o rosto no ombro do inspetor. Apertava-o contra si como
uma menina pequena que se perdeu e que afinal reencontrava o pai. Quando ela
falou, deixou óbvio que também estava chorando como uma criança.
“Alberto, me perdoe.”
Mais não conseguiu dizer. Desabou aos pés do inspetor, chorando
convulsivamente. Teixeira tentou erguê-la do chão, mas Ágata obstinadamente
agarrou-se a seus pés. Ele não teve alternativa a não ser ajoelhar-se
desajeitadamente para melhor amparar a mulher.
Para os dois espojados em meu tapete, perdidos em seu drama íntimo,
naquele instante era como se nem eu nem os gêmeos existíssemos.
CAPÍTULO 29 – PERIGO

O Abismo repetido. Se você for sincero, o sucesso está em seu coração e tudo
o que você fizer terá êxito.
Águas fluem ininterruptamente e alcançam seu objetivo: Assim o homem superior caminha na
virtude duradoura e se empenha no negócio de ensinar.
(I Ching – hexagrama 29)

Por infinito que tenha sido, o idílio amoroso no tapete durou nada mais que
um breve instante. De joelhos no chão, com sua dama no colo, o policial
ergueu os olhos úmidos para fitar os gêmeos. “O que vocês querem que eu
faça?”
Ao ouvir aquilo me julguei perdido. Li no olhar de meu filho que ele faria
qualquer coisa por aquela mulher. Estava totalmente encegueirado pela chama
da paixão.
Júlia franziu o nariz, desdenhosa. “Para começar, vamos parar com o
dramalhão mexicano. O papo aqui é suspense americano, thriller. Não fica bem
misturar assim os estilos.”
Com o consentimento de Júlia, o inspetor ajudou Ágata a levantar-se do
chão e foram os dois sentar-se em meu sofá, bem juntinhos um do outro.
“Fique de olho neles”, Júlia disse para Kim. Ela abriu a mochila que trazia
nas costas e de dentro dela retirou um livro. “Isso pertence a você.”
Júlia passou o livro para o inspetor. Nada menos que a primeira, incompleta
e única edição de A Morte do Inspetor Teixeira. O livro foi recebido com
indiferença. Somente o cenho crispado revelava o quanto aquilo estava
realmente incomodando o inspetor.
“Sei o quanto você é esperto, meu lindo.” Júlia voltou a sorrir com charme e
foi se aproximando da mesa de vidro. “Já adivinhou que fomos nós que
editamos esse livro. Mas já parou para pensar como foi que conseguimos fazer
isso? Talvez você se interesse em saber que na verdade não fizemos
praticamente nada. Simplesmente mandamos imprimir um arquivo de texto no
formato de um livro. E sabe de onde saiu esse arquivo? Daqui mesmo desta
sala. Está salvo junto com inúmeros outros arquivos semelhantes no
computador pessoal de nosso querido chefinho. Este computador bem aqui.”
Acho que foi a primeira vez que Teixeira olhou para mim desde que os
gêmeos invadiram o escritório. Não foi agradável ser olhado daquele jeito.
“Escute, posso explicar perfeitamente isso.”
“Não precisa se dar ao trabalho, chefinho”, Kim sibilou zombeteiramente.
“Deixe que eu explico ao Júnior o que você andou fazendo com ele. É muito
simples.”
Kim avançou dois passos na direção do sofá onde Teixeira e Ágata estavam
sentados. De minha parte, senti um irresistível impulso para relaxar na cadeira e
simplesmente deixar rolar. Eu deveria sobretudo ficar calado, era o melhor para
mim. E bem lá no fundo, uma pequena parcela de minha mente ainda
procurava lutar contra esses comandos de Júlia.
“Tudo o que você viu, ouviu ou disse nos últimos meses vem sendo
gravado pelo chefinho.” Kim prosseguiu com os olhos fixos nos do inspetor e
a pistola acusatória oscilando em minha direção. “Essas informações são
captadas por sensores microscópicos instalados diretamente no seu cérebro.
Todas as imagens e sons que seu cérebro processa e até mesmo alguns indícios
de seu estado emocional são captados pelos sensores e transmitidos
diretamente para aquele computador ali. Ou para qualquer outro computador
conectado à Internet, desde que se tenha o programa certo instalado e a senha
de acesso.”
Júlia interpôs, sem tirar os olhos de cima de mim: “Nós não chamamos ele
de chefinho à toa, sabia? Ele é realmente o chefe, o comandante. Nós somos os
burros de carga, os cumpridores de ordens. E ele estava tentando transformar
você, meu querido, em um de nós.”
Kim retomou de onde Júlia havia parado: “Uma prova disso é que essas
gravações suas, que estão no computador dele, são arquivos que só podem ser
acessados mediante uma senha. E adivinhe a única pessoa que tem a senha? A
mesma pessoa que está fazendo de tudo para se tornar seu novo chefe!”
Júlia voltou a intervir: “Você deve estar se perguntando como é que tivemos
acesso aos arquivos de texto se as gravações são bloqueadas por senha, não é
mesmo? Não há mistério nenhum nisso, meu querido. O chefinho cometeu um
erro. O programa de gravação normalmente gera esse arquivo de texto com a
transcrição do áudio. Um recurso interessante, mas raramente utilizado. Por
isso é que ele acabou se esquecendo de proteger esses arquivos de texto
também com o acesso por senha. Foi só copiar e mandar imprimir.”
Teixeira ouvia em silêncio. Ágata se achegou para mais junto dele e pousou
os lábios em seu ombro. Eu continuava acreditando que era melhor não dizer
nada, ficar na minha, deixar rolar.
Kim afastou-se de Teixeira com um gesto de desdém. Foi sentar-se em uma
das cadeiras. Sua irmã continuou de pé.
“Você devia é nos agradecer. E ainda se considera um grande detetive.
Tivemos que esfregar em sua cara como andam sacaneando você.”
“Foi por isso que enviamos o livro”, contornou Júlia. “Para colocá-lo na
pista certa.”
Kim soltou sua risada seca. “E sabe qual é a melhor parte? Ele estava
ferrando com você completamente dentro da lei. É tudo perfeitamente legal.
Pois você mesmo assinou um contrato autorizando o chefinho a bisbilhotar
cada minuto de sua patética existência.”
Isso tirou o inspetor de seu mutismo: “Do que você está falando?”
Foi Júlia quem respondeu: “Do contrato que você assinou ao aderir ao
programa de autopercepção e aprimoramento inteligente, meu benzinho, você
não se lembra?”
“Cláusula oitenta e sete, parágrafo terceiro”, proclamou Kim. Havia algo de
hiena em seu sorriso.
Júlia citou de cabeça: “O participante do programa autoriza o monitoramento de seus
sistemas sensórios, a fim de assegurar que esteja sempre em condições perceptivas adequadas
para o bom desenvolvimento do programa. Isso é de uma sutileza, que até emociona.
Só mesmo o chefinho para bolar um troço desses. Imagine se ele tivesse
conseguido se formar advogado, do que não seria capaz?”
Teixeira não disse nada. Percebi que se esforçava para não olhar em minha
direção. Isso era ainda pior que receber aquele seu olhar fulminante.
Júlia estava quase chegando onde queria. “Quem diria, o próprio pai
aprontando uma dessas com o filho. Não basta tudo o que ele já fez no
passado.”
“Jogou sua mãe grávida na rua da amargura”, grasnou Kim.
“Sendo rico como é, poderia ter dado a você e à sua mãe uma vida de
conforto, mas não.” O tom de Júlia era solene. Eu ouvia estarrecido. Ficou
evidente que ela e o irmão haviam ensaiado aquelas falas. Era uma das malditas
encenações de Júlia. “Ele deixou sua mãe morrer na miséria e nunca
reconheceu você.”
Kim também adotou uma postura mais sóbria, seguindo a deixa da irmã.
Mas seus lábios continuavam entortados por um sorriso vil.
“Sem contar que você passou os dois últimos anos nos perseguindo, quando
o verdadeiro culpado foi ele.”
“Sim, meu querido, é verdade”, complementou Júlia. “Aí está o mentor do
crime do hotel Émile. Ele bolou tudo. Fomos forçados a agir. Não fosse por
ele, jamais teríamos matado ninguém. E nada disso teria acontecido.”
Eu queria gritar, mas minha boca não se determinava a abrir. Quem falou
foi Teixeira. “Por que estão me dizendo tudo isso? O que vocês querem de
mim, afinal?”
Os gêmeos se entreolharam, sorridentes. Foi Júlia a porta-voz. “Ora, meu
bem. Todo mundo já percebeu, menos você. Queremos que mate o chefinho.”

Pretas avançam na segunda:


O abismo é perigoso. É aconselhável tratar apenas de pequenos assuntos.
Finalmente consegui abrir a boca. Imagino que naquele momento Júlia
estava totalmente concentrada na tarefa de convencer Teixeira a assassinar o
próprio pai, e por isso acabou relaxando um pouco a pressão que fazia sobre
mim. E o desespero também me deu forças.
“Não escute o que ela diz, Alberto.” Eu estava quase gritando, falando o
mais rápido que podia. “É tudo mentira. Preste atenção. Ela está tentando
controlar sua mente, dominar sua vontade. Pare para pensar. Quem em sã
consciência iria querer matar o próprio pai a sangue frio? E olhe que sou quase
como um pai para esses dois, praticamente os criei. Resista, Alberto. Eles estão
tentando iludir você. Resista, meu filho!”
Só parei de falar porque Kim avançou para cima de mim e com um safanão
me derrubou da cadeira.

Brancas avançam na terceira:


Avançando ou recuando, abismo sobre abismo. Diante de tal perigo, pare e espere, pois de
outro modo você cairá no abismo. Não aja dessa maneira.

Dessa vez Kim pontuou sua fala não com movimentos de batuta da sua
pistola, mas com chutes que foi desferindo contra meu corpo caído. “Cale essa
boca! Seu verme miserável e sujo do pântano. Como ousa abrir essa boca
imunda?”
O primeiro chute me pegou desprevenido, bem na boca do estômago. Meu
robe se abriu quando caí da cadeira, por isso recebi com a pele nua o couro
italiano do sapato de Kim. Expeli o ar dos pulmões em um espasmo quando o
bico do sapato chocou-se com a ponta do osso esterno. Uma dor nauseante me
asfixiava. Estava tentando respirar novamente quando o segundo chute me
atingiu na virilha. Dessa vez foi o osso púbico que absorveu a maior parte do
impacto, poupando os genitais. Ainda assim a dor foi funda, aguda.
“Seu porco hipócrita e traidor. Nesse instante mesmo estava tentando livrar
a cara com o filhinho, botando a culpa toda em mim e Júlia. E agora querendo
dar uma de santinho.”
Eu estava encurralado ali. Tentei fugir por debaixo da mesa, mas Kim só
precisou dar a volta para me pegar do outro lado. Consegui aparar um chute
com o antebraço. Outro me acertou nas costelas. Lutei para não vomitar.
“Mas dessa vez você bateu seu próprio recorde, chefinho. Ter a ousadia de
falar na nossa cara que foi como um pai para nós. Era assim que você se sentia,
quando éramos crianças? Como um pai? Era assim que você se sentia quando
enfiava seu caralho em mim, seu filho da puta desgraçado?”
O chute seguinte foi no meio da testa. Esse não doeu tanto. Senti o corpo
desabando sobre o macio tapete, as pernas e braços como sacos de manteiga ao
sol em um dia quente.
Tudo considerado, esse lastimável episódio serve ao menos para demonstrar
a superioridade combativa do inspetor Teixeira.
Pois a meu filho bastou um único soco para me por a nocaute.
Kim, por seu lado, precisou de não sei quantos chutes e muitos xingamentos
para conseguir um simples knock down.

Pretas avançam na quinta:


O abismo não chega a transbordar. A água chega somente até a beirada. Sem culpa.

É claro que Teixeira pensou em atacar, aproveitando a distração propiciada


por meu espancamento. O problema é que ele estava sentado no sofá do outro
lado do escritório. Facilitei um pouco as coisas quando rastejei por debaixo da
mesa para mais perto dele e de Ágata. A melhor estratégia seria tentar tomar a
arma de Júlia, mas essa não era nada boba. Um segundo antes que o inspetor
pudesse concretizar qualquer pensamento em ação, sentiu o cano da pistola de
Júlia fazer contato com a sua têmpora.
“Nada disso, meu amorzinho. Temos outros planos para esta noite.”
Só então ela achou oportuno impedir que o irmão continuasse me chutando
até a morte.
“Kim, já chega.”
Ele ainda desferiu um chute, fraco, em minha coxa.
“Eu disse já chega, Kim. Vamos terminar logo com isso.”
CAPÍTULO 15 – HUMILDADE

A Humildade gera o sucesso. O homem superior cumpre o que lhe cabe.


Dentro da terra, a montanha: assim o homem superior diminui o que é demais e aumenta o
que é de menos, pesando as coisas e tornando-as iguais.
(I Ching – hexagrama 15)

Júlia recorreu mais uma vez à sua fiel mochila, onde coabitavam a pena e a
espada. Pois desta vez não foi um livro que ela tirou de lá de dentro, e sim um
revólver calibre 38, com capacidade para seis tiros. Em contraste com a
compacta pistola que Júlia segurava na outra mão, uma PT 938 prateada com
quinze projéteis no pente e mais um na agulha, o velho três oitão parecia
mesmo uma peça de museu.
“Este revólver foi utilizado em dois recentes homicídios ocorridos na favela
do Capim Queimado. A arma pertence a um marginal conhecido como Tonho
Pilão.”
Teixeira assentiu com a cabeça, para mostrar que sabia de quem ela estava
falando. O inspetor escutava atentamente.
“Você pode usar esta arma para fazer o serviço. Não será difícil ligá-la a
Tonho Pilão e provar assim que foi ele quem matou o chefinho.”
“Principalmente quando contamos com a ajuda e proteção do delegado
Santelmo”, atalhou Kim. Ele havia voltado para sua cadeira, que fazia girar para
lá e para cá, lentamente, infantilmente, impulsionando o chão com a ponta dos
pés. Eu estava caído a esses mesmos pés, com o corpo estendido ao comprido,
o rosto voltado na direção de Teixeira. Mantive os olhos semicerrados e
procurei não dar a entender que estava consciente.
“Sim, é verdade.” Júlia sentou-se na cadeira vaga ao lado do irmão, meio de
costas, meio de lado para mim. Continuava segurando a pistola na mão direita.
O trinta e oito ficou em seu colo. “O Curupira está do nosso lado. Ele irá
designar você como responsável pelas investigações, meu querido. Será fácil
colocar a culpa em Tonho Pilão, e caso encerrado. Dessa vez nós planejamos
tudo direitinho.”
“Foi por isso que o delegado me mandou para o Le Barde hoje de manhã.”
Teixeira falava quase que para si mesmo. Então ergueu os olhos para os
gêmeos. “Vocês queriam que eu fosse para lá.”
“Evidente que sim, meu inspetor preferido.” Disse Júlia, com os olhos
brilhando. “Sem você não teria graça nenhuma. Você é o herói da história, o
detetive. Só você para nos compreender. É por isso que nós te amamos.”
“Aliás, inspetor.” Kim soltou sua risada de imbecil e continuou: “Não
precisa se preocupar por ter fugido do trabalho hoje para ir namorar. O
delegado já sabe que você está em missão secreta e mandou abonar seu dia.”
Júlia voltou à carga. “Nós estávamos conduzindo você para este momento,
meu bem. Não percebe? É o seu destino e a sua glória matar esse homem.”
Ela devia estar fervendo os miolos naquelas sugestões que fazia a Teixeira.
Por quanto tempo meu filho seria capaz de resistir à sua influência mental?
Todos os meus instintos diziam que não demoraria muito para ele concordar
com o ato cruel.
É por isso que eu também precisava botar os neurônios para trabalhar.
Aquele devia ser o plano B dos gêmeos. O plano A era contratar Teixeira e
conectá-lo à Fábrica. O plano A fracassou em parte, o que dava no mesmo ser
um completo fracasso nesse caso. De nada adiantava a moeda apagada de
Teixeira, se não fosse ativada.
Cheguei a suspeitar, pela presença de Ágata, que o Plano B seria consumar o
ato sexual inacabado entre ela e o inspetor. Mas logo vi que não era essa a
intenção dos gêmeos. Afinal, para Kim e Júlia o único propósito ao contratar
Teixeira era induzi-lo a me matar. Esse sim era o plano B: partir direto para os
finalmentes.
Já não importava para os gêmeos que o inspetor fosse contratado. Eles
tinham Ágata para negociar. E possivelmente contavam explorar a força
primitiva do complexo parricida, que segundo Freud habita no peito de todos
os homens.
Não era preciso ser um psicanalista de carteirinha para perceber que Teixeira
tinha muitas questões mal resolvidas com a figura paterna. Eu que o diga.
E por último, mas não menos importante, não seria bom subestimar os
poderes persuasivos de Júlia, exercendo na mente de Teixeira, e na minha, a sua
nefasta influência.
Do jeito que as coisas iam, o plano B não tardaria a obter êxito. Não havia
mais tempo. Eu precisava agarrar a primeira chance que surgisse com unhas e
dentes, se quisesse salvar a minha pele.

Brancas avançam na segunda:


A Humildade que vem à expressão. A perseverança terá êxito.

“Parece que vocês pensaram em tudo mesmo.”


Não gostei nem um pouco daquele tom de Teixeira. Apesar do deboche
aparente, dava brechas, incentivava o diálogo. Aos meus ouvidos, suas palavras
já soavam como barganhas de mercador:
“Imagino que Tonho Pilão seja outro fantoche de vocês. E que daqui a
alguns dias ele vai bater na porta da delegacia para confessar a autoria desse
homicídio e dos outros dois que vocês arrumaram para ele, estou certo? Tonho
Pilão foi uma escolha melhor que Régis Vale, tenho que reconhecer. Trata-se de
criminoso foragido, já condenado por muitos crimes. Três mortes a mais não
vão fazer diferença, não é mesmo?”
“Ei”, protestou Kim. “Não temos nada a ver com essas duas primeiras
mortes.”
“As balas que saíram desse revólver já mataram duas pessoas, sim. E o dedo
que apertou o gatilho nas duas vezes foi o de Tonho Pilão.” Júlia suspendeu a
arma de seu colo passando o indicador esquerdo por baixo do guarda-mato.
Desejava apenas exibir a arma ao inspetor. Logo a restituiu do aconchego de
suas coxas. Em nenhum momento a pistola na mão destra deixou de apontar
na direção do casal sentado no sofá. “As vítimas foram dois viciados em pedra
que estavam devendo na boca, e que Tonho matou para fazer de exemplo. Os
corpos foram desovados no campinho de futebol, atrás da igreja evangélica.
Sabemos disso tudo porque o próprio Tonho nos contou. Você acertou quanto
ao fato dele ser um contratado nosso, benzinho. Mas passou longe em todo o
resto.”
Kim parecia estar com pressa. “Por que estamos perdendo tempo com
Tonho Pilão? Ele já está morto de qualquer forma.”
Júlia retomou o fio da meada. À medida que foi falando assumiu um ar de
autoconfiança que eu conhecia bem. Ela ficava assim quando se sentia muito
orgulhosa de si mesma. “Provavelmente as notícias ainda não chegaram até
vocês. A cidade está agora à beira de uma guerra civil. Três grupos rivais estão
se enfrentando pelo controle das drogas em Rio Santo. Os remanescentes do
bando de Luca do Urtigão acabam de ser exterminados pela Falange Púrpura,
com Tonho Pilão assumindo a nova liderança. O que ainda não foi noticiado
pelos jornais é que nesse exato momento a Falange Púrpura, com Tonho Pilão
à frente, está a caminho de Nova Colômbia, para conquistar todas as bocas
deixadas por Jorginho Príncipe. Ou então morrer tentando.”
Não pude evitar um sobressalto. Será que Júlia percebeu? Aparentemente
não. Ela continuou falando. “Muitos morrerão esta noite. E com toda certeza
Tonho Pilão estará entre os mortos. A história oficial a ser contada é que ele
matou o chefinho aqui, e na mesma noite foi morto na guerra do tráfico.”
“Realmente parece tudo bem planejado”, voltou a dizer o inspetor. Não
consegui discernir se ele estava sendo irônico ou não. “E com certeza vocês já
bolaram um motivo para Tonho Pilão querer apagar o velho. Ele também está
devendo ao tráfico como os dois viciados em crack que foram executados? Pelo
que vi de drogas aqui hoje, a conta do traficante deve ser bem alta.”
Aquilo doeu, ser chamado de velho. Foi assim que eu passei a me referir a
Bodoni quando estava planejando sua morte. Júlia também deve ter notado a
mudança no tom de Teixeira. Ela estava transbordando de autocontentamento.
“Seu faro já esteve melhor, meu querido. Já viu alguém lidar com essa
quantidade toda de drogas sem estar profundamente envolvido com o tráfico?
A conta do traficante é alta, sim. Mas é o chefinho quem recebe o pagamento,
em troca de excelentes serviços prestados.”

Pretas avançam na terceira:


Um homem superior de mérito reconhecido conduz as coisas a uma conclusão.

Eu já esperava o que estava vindo à tona. Quando Júlia mencionou o ataque


iminente a Nova Colômbia, tive a confirmação de que meu segredo fora
descoberto. Minha paranoia havia sido ativada desde que soube da estranha
morte de Jorginho Príncipe. Só não cheguei a adivinhar que eram os gêmeos
por trás de tudo.
“Vamos falar então dos motivos de Tonho Pilão para matar o chefinho”,
Júlia prosseguiu, eufórica. Estava quase batendo palmas de satisfação. “Essa é
justamente a melhor parte. Na madrugada de hoje a polícia irá encontrar, dentre
os destroços da batalha de Nova Colômbia, evidências de que Jorginho
Príncipe mantinha vultosas relações comerciais com uma certa empresa de
mudanças, a Júpiter Transportes. É assim que o grosso da droga tem chegado
na cidade, disfarçado de mudança doméstica, com a droga escondida dentro da
mobília nos caminhões.”
“Ganha um doce quem adivinhar quem é o dono da Júpiter Transportes”,
baliu Kim.
“Isso mesmo, meu querido. Depois que a polícia começar a investigar a
Júpiter, não vai demorar a chegar ao nome por detrás dos donos de fachada, o
homem que secretamente é o maior traficante de Rio Santo: Rogério Arcanjo
Bastos.”
“Ui”, gemeu Ágata.
“Desculpe, queridinha. Esqueci que não podemos pronunciar esse nome
perto de você.”
Cascata pura. Não havia como Júlia ou Kim dizerem o meu nome por
acaso, sem querer. Seria quase como se eu, em meus tempos de Olimpiano, por
um lapso dissesse ‘Mario Bodoni’ em voz alta, ao invés de dizer ‘il Dottore’. Por
isso os gêmeos martelavam tanto aquele inglório apelido de chefinho. E afinal
foram eles mesmos que fizeram o condicionamento de Ágata. Dizer meu nome
daquele jeito foi mais um truque de Júlia, hipótese que foi confirmada pelo que
ela falou a seguir.
“Está vendo? Esse é o tipo de coisa que ele acha divertida. Infligir dor e
sofrimento em outro ser humano pela simples menção de seu próprio nome.”
Júlia calou-se por um momento para explorar bem a dor de Ágata, que ela
mesma havia provocado. E então fez as sugestões finais: “Não me
surpreenderia nem um pouco até se você acabasse descobrindo que tanto
Jorginho quanto Luca são contratados do velho, e que por isso ele foi morto
por Tonho Pilão. Que a rivalidade entre Nova Colômbia e o morro do Urtigão
não passa de uma cortina de fumaça para ocultar o fato de que praticamente
toda a droga da cidade vem do mesmo fornecedor, a Júpiter Transportes. Que
só quem estava de fora era Tonho Pilão, fazendo suas pequenas operações
através de um esquema alternativo. E assim ficaria claro o motivo para ele
querer matar o chefinho. Estava simplesmente eliminando a concorrência.”
Júlia mentia descaradamente. Jamais tive nada a ver com os negócios de
Luca do Urtigão. Fiquei indignado. Mas não podia sequer protestar contra essa
injúria.

Brancas avançam na quarta:


Nada que não aumente ainda mais a sua humildade.

O inspetor Teixeira ainda tinha uma simples pergunta a fazer.


“Tudo bem. Vocês querem que eu mate o velho. Já bolaram inclusive um
plano mirabolante para colocar a culpa em um traficante pé de chinelo que
também estará morto ao amanhecer. Só não entendo uma coisa: por que vocês
acharam que eu concordaria. O que tenho a ganhar com isso?”
“A vingança”, bradou Kim.
“Você ganha Ágata, para começar”, apressou-se Júlia em sugerir. “Ela passa
a ser sua propriedade exclusiva. Bonita, gostosa e eternamente apaixonada por
você, que tal? Muitos homens morreriam pela chance de serem amados por
uma mulher como Ágata. Nós só estamos pedindo que você mate alguém.”
“Alguém que merece ser morto”, Kim tornou a se intrometer. “Você estará
prestando um favor para a sociedade.”
O inspetor procurou fingir que não estava tentado.
“Imagino que se eu me recusar a fazer o que vocês querem, vão ameaçar
matar Ágata.”
Os irmãos trocaram um rápido olhar. Júlia sorriu.
“Na verdade, não.” Ela desviou o cano da pistola um pouco para o lado,
fazendo com que apontasse exclusivamente na direção do inspetor. “Não
temos porque estragar um material de primeira.”
“Se você não quiser ficar com ela”, disse o zombeteiro Kim, “a mocinha
volta na mesma hora para o Joie d’Enfer, onde aliás estava fazendo o maior
sucesso.”
Joie d’Enfer era o nome de uma casa de massagens conhecidíssima em Rio
Santo. Teixeira passou instintivamente o braço protetor por cima dos ombros
de Ágata. Estava claro que o golpe acertara em cheio.
“Por outro lado, se você topar, além de ficar com a garota ainda vai receber
a herança.” Júlia continuou o ataque, implacável.
“Parabéns, Júnior”, disse Kim entre duas risadinhas vulpinas. “Você é o
herdeiro universal de uma grande fortuna.”
Júlia também achava graça. “Você é filho único, sabia? Isso facilita bastante
as coisas. Nossos advogados já cuidaram da maior parte da papelada. Até o
exame de DNA já está pronto. Você herdará praticamente tudo. Só não poderá
tomar posse do capital ligado à Júpiter Transportes, pois muito provavelmente
será interditado pela justiça. Mas não fará a menor falta, garanto isso. Nem sei
porque ele foi se meter com esse negócio de drogas, tendo tanto dinheiro como
tem. Só se ele começou como usuário, e resolveu lucrar até com o próprio
vício.”
“O chefinho é um homem muito, muito rico”, ecoou o irmão. “Com a
morte dele, o milionário passa a ser você.”
Restava uma dúvida na cabeça do inspetor. “E por que tem que ser eu? Por
que vocês mesmos não dão cabo do velho? Por que essa cisma de que eu é que
tenho que matar ele? Meu próprio pai?”
As três últimas palavras mal foram pronunciadas, não passaram de um
sussurro. Mas consegui ouvir. Uma pequena esperança acendeu em meu peito.
“Temos nossas razões, que não lhe dizem respeito, meu caro. Basta a você
saber o que sairá ganhando com a barganha. Não é pouca coisa.”
“Faça a sua parte, e faremos a nossa”, reforçou Kim.
“Isso é o que me preocupa”, devolveu o inspetor.
“Agora chega”, finalizou Júlia. “A conversa está muito agradável, mas tempus
fugit. E então, meu querido? Qual é a sua decisão? É pegar ou largar.”
Teixeira queria continuar interrogando. E achou peito até para fazer bravata:
“Vocês vão mesmo me dar essa arma? Já esqueceram que jurei matar os dois?”
“Tomaremos nossas precauções a esse respeito, meu querido, não se
preocupe.” Júlia fez brilhar o seu mais gracioso sorriso. “E além do mais, quem
jura mente.”
Definitivamente Kim estava com pressa. “E então, caubói, vai ser o quê?
Seu tempo acabou.”
Ele olhou firme para os gêmeos antes de dar a resposta. Em momento
algum desviou o olhar para o chão, onde eu continuava caído. “Está bem.”
O inspetor Teixeira estendeu a mão para receber o revólver.

Brancas avançam na quinta:


Sem exibição de riquezas diante do vizinho. É favorável atacar com força.
Júlia tornou a erguer o revólver do colo, levantando-o pelo guarda-mato
com a ponta do indicador. Quando ela começou a inclinar o corpo para a
frente, a fim de passar a arma para Teixeira, vi a minha chance. De um pulo
arrebatei o revólver da mão de Júlia e me pus de pé. Senti uma horrível sinfonia
de dores vibrando por todo o meu corpo, em consequência dos golpes que eu
havia sofrido. Cheguei a soltar um urro ao me levantar, um grito animal que
expressava toda a minha dor e desespero. De arma na mão, o que fazer? Por
um momento fitei aturdido meus diversos oponentes. Não devia parecer muito
ameaçador, com o robe aberto e o rosto inchado com equimoses e edemas. Dei
um passo titubeante para trás, ainda incerto sobre o rumo a tomar. O tempo
parecia irreal, desacelerado. Sentia um zumbido ritmado sacudindo o meu
corpo. Era o coração martelando dentro do peito. Os gêmeos continuavam
sentados em suas cadeiras. Olhavam para mim com expectativa. Ou seria
zombaria? Percebi que sequer apontavam as armas para mim. Suas pistolas
continuavam mirando Teixeira. Voltei meus olhos para o sofá. Ágata era a
única além de mim que parecia capaz de sentir medo. Seus olhos verdes
fitavam-me com assombro. Pareciam imensos, com as pupilas dilatadas. Meu
olhar encontrou o de meu filho. Eu estava morrendo de medo. Fiquei surpreso
ao finalmente encará-lo. Esperava encontrar algo diferente do que vi ali. Achei
que havia uma espécie de mudo apelo nos olhos de Teixeira. Senti vir
crescendo uma raiva surda dentro de mim. Tentei encontrar uma origem para
essa raiva. Só podia ser aquele olhar de Teixeira. Ele estava implorando para
que eu não o matasse, era isso o que seus olhos estavam dizendo. Ele havia
acabado de concordar em me matar, e agora estava com o cu no ponto.
Bastardinho insolente! Pensou que podia me matar? Eu iria lhe mostrar uma
coisa. Fosse eu um homem de ação, como meu filho, e não teria ficado tão
inebriado de adrenalina como estava naquele instante. Gestos intempestivos
como os que eu havia acabado de cometer ao tomar a arma de Júlia fariam
parte de meu cotidiano, seriam coisas rotineiras e não um motivo para que meu
coração quisesse saltar pela boca. Descompensado como eu estava, fui uma
presa fácil para as garras mentais de Júlia. Fui desatento, e permiti que ela
gerasse em mim um ódio cego. Teixeira continuava tentando falar comigo só
com os olhos. Ergui o revólver até que apontasse para o ponto entre eles. No
último instante, fui acometido por um súbito pensamento. E se o plano dos gêmeos
for esse o tempo todo? E se eles quiserem que o pai mate o filho?
Apertei o gatilho.
Brancas avançam na sexta:
É favorável colocar as hostes em marcha para punir sua própria cidade e seu próprio país.

Clic. Clic. Clic.


Não havia balas no revólver.
Desnecessário dizer que Kim dava gargalhadas de se embolar na cadeira.
Júlia também ria, um pouco mais discreta.
Meu olhar cruzou-se com o de meu filho por cima da arma descarregada.
Não vi ali mais apelo, nem súplica, nem qualquer tentativa de comunicação
comigo. Só uma dura e fria tristeza.
Kim levantou-se da cadeira ainda gargalhando e veio em minha direção.
Passou a pistola da mão direita para a esquerda. Foi para poder me esbofetear
melhor. O tapa na cara foi sonoro, me fez rodopiar e perder o equilíbrio. Foi
mais humilhante que propriamente doloroso. Depois que eu estava caído, ele
abaixou-se e recuperou o revólver, que devolveu a sua irmã. Eu me encolhi no
chão, pensando que fosse me agredir novamente. Mas ele passou por cima de
mim e voltou a se sentar.
Júlia estava mexendo de novo na mochila.
“Creio que isso acaba definitivamente com qualquer dúvida que ainda
existisse em sua cabeça, não é, meu querido? Viu como ele atirou em você sem
hesitar? Se houvesse uma única bala no tambor, babau inspetor Teixeira. O
título do livro estaria certo, e o chefinho teria vencido.”
Meu filho olhou para mim. Eu havia me sentado ao lado do bar, no chão
mesmo, com as costas apoiadas na parede. Não fui capaz de sustentar o seu
olhar.
Minha derradeira esperança agora se concentrava na festa que acontecia no
andar de baixo. Certamente estavam notando a minha ausência. Mas será que
alguém chegaria a subir até o escritório para me procurar? Pouco provável.
Júlia voltou a falar, arrancando-me de meus devaneios. Eu precisava
encontrar alguma outra solução. E rápido. “Sorte sua, meu caro, que nós
realmente tenhamos tomado precauções para que tudo corresse de acordo com
o plano. Por isso o revólver estava descarregado. Do mesmo modo, para evitar
que você tenha ideias perigosas, nós lhe daremos o revólver e uma única bala
para fazer o serviço.”
Então era aquilo o que Júlia havia retirado da mochila. A bala que iria me
matar. No momento ela exibia a bala para Teixeira, como se fosse alguma pílula
mágica, presa entre o indicador e o polegar da mão esquerda. Com a direita,
segurava o trinta e oito pelo cano. Agora era a pistola que repousava em seu
colo.
O inspetor recebeu a arma e o projétil das mãos de Júlia.
Todos ficaram imediatamente tensos. Júlia apressou-se em voltar a apontar
sua pistola para Teixeira. Kim tentou aparentar autoconfiança, mas era patente
a nota assustada por detrás de sua agressividade.
“É bom mesmo que você não tente nenhuma brincadeira. Temos duas
pistolas com quinze balas no pente e mais uma na agulha cada, sem contar com
a sua arma, que está no meu bolso. E você tem apenas uma bala. Se tentar
matar um de nós, o outro terá tempo de sobra para fuzilar você, e é capaz até
de sobrar algum para sua preciosa Ágata. Faça o que você tem de fazer, e tudo
acabará bem para todos. Ninguém precisa morrer aqui hoje, só o chefinho.”
Teixeira não cansava de fazer perguntas. “E o que me garante que vocês
dois não vão ter ideias perigosas a meu respeito, depois que eu finalizar o
velho?”
Achei aquela expressão simplesmente pavorosa. Finalizar.
“Relaxe, meu querido. Você sabe que pode confiar em nós. Cumpriremos a
nossa palavra.”
“Se quiséssemos matar você, já estaria morto mil vezes.”
“Nunca vamos querer fazer isso. Você é o nosso herói.”
“Vamos logo ao que interessa?”
“Essa é a sua deixa, meu bem. Vá lá e acabe com aquele velho vilão para
nós.”
O inspetor Teixeira avaliou a arma por um momento. Inseriu a bala no
tambor do revólver. Fechou o tambor com um movimento elegante e seguro,
de quem sabia o que estava fazendo.
CAPÍTULO 6 – CONFRONTO

Você é sincero e está tendo o caminho obstruído. Uma cautelosa parada pelo
meio é favorável. Ir até o fim trará malefício. É favorável ver o grande homem.
Não é propício cruzar a grande água.
O Céu e a Água seguem seus caminhos opostos: assim em todas as suas transações o homem
superior cuidadosamente considera o princípio.
(I Ching – hexagrama 6)

Teixeira levantou-se do sofá.


“Vocês vão ter o que querem. Agora deixem ela sair.”
Ágata continuava sentada no sofá, agarrando com suas duas mãos a mão
direita do inspetor. Parecia mais apavorada do que eu. Alguém que olhasse a
cena de fora diria que ela é que estava prestes a ser morta. Momentaneamente
esquecido, o trinta e oito pendia da mão esquerda de Teixeira.
Kim ficou visivelmente inconformado.
“Eu não acredito que estamos voltando a esse lengalenga. A hora é de ação,
caubói. Cumpra a sua parte no trato e você vai poder fazer o que quiser com a
bela mocinha. Mas só depois de matar o cacique apache ali.”
Júlia também estava irredutível.
“Não foi isso o que combinamos. Ágata fica. Ela é a nossa garantia de que
você não vai tentar nenhuma gracinha.”
O inspetor teve que se resignar.
“Que assim seja, então.”

Pretas avançam na segunda:


Alguém que não pode entrar no confronto volta para casa e sai do caminho. As pessoas de
sua cidade, três centenas de famílias, permanecem livres de culpa.

Restava-me um último recurso. Atirei-me aos pés de meu filho, como Ágata
havia feito.
“Alberto, eu imploro. Não me mate. Você precisa me escutar. Há muita
coisa que você ainda não sabe. Se você me matar, estará condenando o povo
dessa cidade, meu filho. Se duvida espie pela janela e veja se não descobre um
carro-forte rondando. É um plano diabólico. O sincronicídio.”
Assim como Ágata chorou, eu também não fiz por menos. Chorar faz bem,
alivia o peito. E tem horas que não dá mesmo para controlar.
Kim e Júlia levantaram-se das cadeiras. Somente Ágata continuou sentada
no sofá. Ela não me deixou chorar sozinho. Kim veio em minha direção,
provavelmente para me desferir um belo chute nas costelas. Mas Teixeira o
deteve.
“Deixe que vou cuidar dele. À minha maneira.”

Brancas avançam na terceira:


Nutrir-se de antigas virtudes induz à perseverança. Quem está a serviço do Rei não deveria
buscar glórias para si mesmo.
“Pare com isso. Seja homem.”
Parecia que ele era o pai e eu o filho. Impressionado por seu tom solene,
procurei me conter. Assim como fez com Ágata, o inspetor ajoelhou-se diante
de mim. De bruços no chão como eu estava, ergui a cabeça para poder fitá-lo.
“Agora escute o que vou lhe dizer. Esperei muito tempo para falar isso.”
Ele agora olhava fixamente nos meus olhos. Podia ser só minha imaginação
in extremis, mas pensei ver novamente em seu olhar aquele mesmo e silencioso
apelo. Será que só eu havia notado que Teixeira continuava segurando o
revólver com a mão esquerda? E o que ele estava fazendo com a outra mão?
De onde eu estava não conseguia vê-la, pois estava oculta por trás da perna da
calça do inspetor.
“Minha mãe continuou amando você até o fim, sabia? Sempre me pedia
para não julgar, para tentar entender que você era jovem e mimado, não sabia o
que era a vida. Ela me dizia isso quando eu tinha o quê, sete, oito anos. A
metade de sua idade ao engravidá-la.”
Kim começou a vaiar.
“Se eu quisesse ver novela, ligava a televisão. Vamos, herói”, berrou a
plenos pulmões. “Ação, herói, ação.”
“Cumpra a sua parte no trato”, sussurrou Júlia. “Mate-o.”
O inspetor Teixeira continuava ajoelhado diante de mim, seu rosto voltado
na direção do meu. Mas seus olhos já não me enxergavam. Fitava algum ponto
do infinito, ou então dentro de si mesmo.
“Podem deixar que vou cumprir minha promessa. Se bem me lembro, foi
essa.”
Ele já virou atirando, cuspindo chumbo por dois canos. Em sua mão direita
havia brotado uma pistola 765, que ele matreiramente trazia escondida no
coldre amarrado em sua canela. Semanas depois, ao assistir às gravações da
minitevê de Teixeira, demorei até adivinhar o momento exato em que ele
amarrou a pistola na perna. Esse momento jamais apareceu na tela. Foi
estranho. Pois era como se o inspetor deliberadamente estivesse evitando que
seus olhos registrassem o que ele fazia. Como se em algum nível inconsciente já
soubesse que seus olhos eram traidores.
Teixeira atirou. Os gêmeos atiraram. Quatro tiros foram deflagrados. Dois
se perderam, dois chegaram no alvo.
Uma bala saiu da 765 de Teixeira. Passou zunindo a centímetros da cabeça
de Júlia, atravessou a janela aberta sem gerar danos e foi se perder na noite
negra de Rio Santo.
Júlia atirou a esmo. Ela não pensou e nem mirou. A bala foi morrer
inofensivamente na parede do outro lado do escritório, logo acima do quadro
Sonhos de Menina Virgem.
Kim também atirou por reflexo, mas teve melhor pontaria. Seu tiro acertou
Teixeira no braço. No braço esquerdo, bem o que empunhava o revólver.
Justamente o três oitão, que disparou o tiro que matou Kim.
A bala calibre 38 atingiu aproximadamente o centro exato da massa
corpórea de Joaquim Silva, mais conhecido como Kim, irmão amado, flagelo da
humanidade. Nunca prestou para nada de bom. A culpa foi de sua concepção
trágica, originada de um estupro e resultando em um assassinato. Ou da
sacrílega interferência em sua gestação, que o transformou em um pária da raça.
Ou da primeira infância fodida que teve como cobaia viva de Bodoni. Ou da
adolescência ao meu lado, desvendando cada um de meus desejos e ambições e
sendo contaminado por eles.
Ele ficou de pé ainda por dois segundos depois de levar o tiro. E tombou.
Na boca do estômago. Bem onde ele me chutou primeiro.

Pretas avançam na quarta:


Alguém que não pode entrar no confronto dá as costas e se submete ao destino, modifica sua
atitude e encontra a paz na perseverança.

Caso Júlia tivesse seguido à risca a estratégia delineada por Kim, de um jeito
ou de outro o conflito teria se resolvido ali. Mas ao invés de descarregar sua
pistola na direção de Teixeira, Júlia instintivamente obedeceu à estratégia que
ela mesma havia traçado. Foi atrás de Ágata.
Com um salto ela já estava no sofá. Não sei como ela conseguiu isso, mas
após uma rápida torcida de corpo, já havia se enfiado debaixo de Ágata. Como
tática defensiva a medida foi eficaz, pois colocou Ágata entre Júlia e o inspetor.
E num átimo Júlia ampliava seu potencial ofensivo, imobilizando Ágata com o
braço esquerdo ao redor de seu pescoço e empurrando o cano da pistola contra
a testa da outra.
Ágata nem teve tempo de esboçar alguma reação. Estava novamente
reduzida ao papel de donzela em perigo. Júlia quase não era visível, oculta sob o
corpo bem mais carnudo.
“Para trás, maldito, para trás”, Júlia gritou. “Nem mais um passo ou
arrebento a cabeça dela.”

Pretas avançam na sexta:


Mesmo que por acaso ele conquiste o cinturão, até o fim do dia será tomado dele três vezes.

Pairava no ar o cheiro de pólvora e sangue, mistura tão familiar à morte.


Foi só então que Júlia sentiu que Kim havia sido atingido. Estava
agonizando no tapete, agora manchado pelo sangue que saía aos borbotões de
sua barriga.
Seu rosto estava pálido como cera. Com um grande esforço, ergueu a cabeça
para fitar a irmã. Tentou dizer algo, mas tudo o que saiu de sua boca foi uma
golfada de sangue. Ficou mais um segundo naquela agonia congelada. Sua
cabeça pendeu para trás. Estava morto.
CAPÍTULO 39 – OBSTÁCULO

O sudoeste é favorável. O nordeste não é favorável. É favorável ver o grande


homem. Perseverança traz boa sorte.
Água sobre Montanha: assim o homem superior volta sua atenção para si mesmo e molda o
seu caráter.
(I Ching – hexagrama 39)

Foi um som negro e amargo o que saiu da garganta de Júlia. Contemplava o


irmão morto com os olhos assustados da criança que nunca chegou a ser, que
nunca deixou de ser.
Era o término abrupto da metade exata de sua própria vida. Kim era o seu
alter ego, parcela viva e pulsante de sua própria personalidade. Com o irmão
morto, Júlia estava irremediavelmente mutilada. Era menos que uma pessoa
inteira. Faltava-lhe um pedaço na alma.
Seu irmão, morto. Sua psique, arruinada. Seus ambiciosos planos, reduzidos
a pó. Tudo no rastro de uma única bala.
Já não desejava mais estar viva. Teria desistido de tudo, não fosse tomada
por um sentimento novo e avassalador.
Júlia queria vingança.
Brancas avançam na segunda:
Um servo do rei é atacado por dificuldade sobre dificuldade, mas não é sua culpa.

Júlia proferiu sua maldição:


“Tonatufor! Tonatufor! Tonatufor!”
Dessa vez foi Ágata que gritou, em pura agonia.
Se aquele fosse um concurso de grito mais horripilante, um árbitro imparcial
seria obrigado a declarar que sem dúvida o segundo grito foi o mais terrível. O
berro de Júlia foi pavoroso, sim. Expressava a abrupta dor da perda de um ente
querido, como um abismo gélido que se abria em sua alma. O que tornou o
vagido de Ágata ainda mais excruciante para os ouvidos, em primeiro lugar, foi
o número de decibéis. Ela gritou mais alto e por mais tempo. Além disso, seu
grito evocava uma dor mais concreta e imediata, mais física. Se Júlia gritou
como alguém caindo em um precipício, o grito de Ágata era o de uma mulher
sendo queimada viva.
Ela se contorcia em desespero. Somava-se às suas dores o braço de Júlia
aferrado a seu pescoço, asfixiando-a. Seu rosto estava lívido, com os olhos
esbugalhados. Não era para menos. Havia acabado de receber uma dose tripla
do medo mais intenso que o ser humano é capaz de experimentar. Seu
sofrimento fora causado por uma palavra que eu mesmo inventei.
Tonatufor. Nada mais que as sílabas invertidas de meu codinome. E, no
entanto aquela simples sequência de sons tinha o poder de fazer Ágata ir ao
inferno e voltar. E não somente ela, como qualquer portador de moeda sob a
chancela do meu ouro.
O inspetor Teixeira parecia transformado em pedra. Estava parado a poucos
passos do sofá, em posição de tiro. Aguardava que Júlia abrisse uma brecha. O
cano da 765 não oscilava, embora ele já estivesse sustentando a arma com o
braço erguido durante um bom tempo. O outro braço pendia ao longo do
corpo, igualmente imóvel. Uma nova mancha de sangue havia surgido em seu
casaco, mais úmida, na altura do bíceps. O sangue pingava dos dedos de sua
mão esquerda e pintava de vermelho o trinta e oito abandonado no chão e
também o meu tapete, já tinturado com o sangue de Kim.
Era mesmo uma pose heroica, ainda que totalmente inconsciente. Caso a
sua moeda estivesse ativada, a pose seria bem outra. Aposto que estaria de
quatro após uma rodada tripla de tonatufor.
Os olhos de Júlia despontaram por detrás da cabeleira negra de Ágata. Ela
fitou o inspetor com um ódio intenso. “Largue a arma, seu desgraçado! Jogue a
arma no chão agora! Ou transformo o cérebro dela em geleia de framboesa.
Tonatufor!”
Ágata gritou novamente, um som que doía no fundo da alma.

Pretas avançam na terceira:


Avançar leva a obstáculos; por isso ele recua.

O inspetor Teixeira desistiu da pose de estátua.


Jogou sua 765 no chão, herói até o fim.

Brancas avançam na quarta:


Avançar leva a obstáculos, recuar leva à união.

Ágata havia desfalecido. Seu corpo pendia molemente nos braços de Júlia e
tombou com mansidão no sofá ao ser liberado. Júlia esquivou-se com os
quadris para sair de debaixo dela e levantou-se para encarar seu inimigo.
Teixeira aguardava de pé. Parecia ter abandonado a luta. Agora que não
precisava mais empunhar a pistola, apertava com a mão direita o ferimento no
braço esquerdo.
Júlia avançou dois passos, de PT 938 em riste. Fiquei surpreso ao perceber
que ela estava chorando. Era a primeira vez que eu via isso acontecer.
“Eu gostaria de matar você bem devagar. Mas simplesmente não suporto
mais continuar olhando para sua cara, seu filho da puta desgraçado!”
Júlia abriu fogo.

Pretas avançam na quinta:


Em meio às maiores dificuldades, os amigos aparecem.

Júlia não era má atiradora. Assim de perto, não teria como errar o tiro. Ela
apertou o gatilho, liberando o avanço do pino de percussão. A base da cápsula
que aguardava na câmara foi violentada por esse rude falo metálico,
ocasionando a detonação da pólvora armazenada em seu interior. O projétil foi
expelido do cano a uma velocidade de quase mil quilômetros por hora.
Ela não teria como errar o tiro. Mas errou. Um instante antes do disparo, a
trajetória da bala foi drasticamente alterada. Júlia foi jogada ao chão por Ágata,
que veio com tudo para cima dela. A bala foi disparada no meio da queda.
Passou longe de Teixeira, não queria saber dele. O negócio dela era comigo.
O tiro não pegou em minha cabeça por um palmo, se tanto. E ainda assim
me deixou ferido. A bala explodiu na mesa de vidro, estilhaçando-a em uma
centena de pedaços. Levei um corte feio no topo da cabeça e outros menores
no pescoço e nas mãos. Realmente não foi uma de minhas ideias mais
brilhantes ir me esconder debaixo de uma mesa de vidro durante um tiroteio.
Quanto a Ágata, talvez tenha fingido o desmaio. Ou talvez tenha se
recobrado no momento exato. Em qualquer das hipóteses, o certo é que ela
salvou a vida de Teixeira. Agora que estava embolada com Júlia no tapete,
entretanto, Ágata seria incapaz de fazer valer o seu físico superior. Ela não
poderia de modo algum agredir Júlia, e nem mesmo se defender de seus
ataques. Uma vez que não existia mais ameaça direta a seu herói amado, o
condicionamento do medo voltava a ser mais forte.
Mas Teixeira não estava dormindo no ponto. Sua primeira preocupação foi
desarmar Júlia, o que ele conseguiu pisando na mão da moça. Se ele não tivesse
levado um tiro no braço, talvez tentasse submeter Júlia de outra maneira. Como
estava ferido, optou pelo método mais seguro. Teixeira caiu por cima de Júlia e
desferiu com a mão direita dois socos rápidos em sua cabeça.
Quando Júlia acordou, estava com a cara no tapete, deitada de bruços, com
as mãos nas costas, algemada.
CAPÍTULO 40 – LIBERAÇÃO

Se não houver mais lugar algum para ir, o retorno é propício. Se ainda houver
algum lugar para ir, é melhor se apressar.
Trovão e chuva se aproximam: assim o homem superior perdoa os erros e esquece os malfeitos.
(I Ching – hexagrama 40)

O corte na cabeça não parecia tão sério, mas sangrava bastante. Outros
pequenos cortes também purgavam gotas rubras e brilhantes em minhas mãos e
braços. Nesse momento notei a grande mancha escura nas costas do robe. A
mancha era úmida no centro. Eu ainda estava sangrando do corte do canivete.
Ao imaginar tanto sangue saindo de mim, senti como se fosse perder os
sentidos.
“Preciso de um médico”, eu disse.
Teixeira estava ajoelhado diante de Ágata, que ele havia acabado de
acomodar no sofá. O inspetor girou a cabeça para me fitar nos olhos.
Tentei soar casual: “Você também precisa de um médico urgente, Alberto.
Já estava ferido, e ainda por cima levou um tiro. Ágata também provavelmente
precisa ser hospitalizada com urgência. Melhor chamar logo uma ambulância.”
O inspetor continuou me fitando sem dizer nada.
“Escute, Alberto. Naquela hora que tentei atirar em você... não era o que eu
queria fazer, entende? Júlia estava me controlando mentalmente. Ela tem esse
poder. Você mesmo deve ter sentido isso, ela tentando mexer com sua cabeça.
É a pura verdade, eu juro.”
“Isso não tem importância agora.” Ele voltou a olhar para Ágata. Ela estava
de olhos fechados e muito quieta. Limitou-se a franzir levemente as pálpebras
quando Teixeira pousou a mão ensanguentada sobre a sua, com infinito
cuidado.
Júlia estava deitada de bruços no tapete, desacordada, com os pés voltados
para o cadáver do irmão. Kim continuava na mesma posição em que havia
caído.
“Temos que levar Ágata para um hospital”, tornei a dizer. Tentava estancar
o sangue pressionando a ponta do robe no topo da cabeça. “Ela precisa ser
monitorada, fazer exames. E você também. Tomou um tiro.”
Teixeira tocou distraidamente o lugar do ferimento em seu braço. “Não foi
nada. A bala atravessou o músculo. Ferimento superficial. Ágata é que me
preocupa. O que Júlia fez com ela?”
“Foi essa palavra que ela falou que deixou Ágata nesse estado”, tentei
explicar. “É um gatilho vocal que aciona um comando previamente
condicionado no subconsciente. Toda vez que essa palavra é dita, a pessoa
sofre uma hiperexcitação na região do cérebro que controla o medo.
Pronunciada uma única vez, essa palavra provoca uma reação de medo
mórbido e ansiedade intensa. Pode acreditar, é um sofrimento excruciante,
físico. Nunca soube de ninguém que tenha sido submetido a esse castigo por
quatro vezes seguidas. Só posso dizer uma coisa: o amor que Ágata sente por
você é mesmo muito forte. De outra forma ela não teria conseguido fazer o que
fez para salvar sua vida.”
“Você quer dizer que a lavagem cerebral que fizeram nela foi forte”, rebateu
ele, com o cenho franzido de desgosto. “Para que ela acreditasse que me ama.”
“E qual a diferença, na prática? Absolutamente nenhuma.”
“Tem muita diferença, sim.”
“Quem é que pode dizer que é livre nesses assuntos do coração? Ninguém
escolhe amar alguém ou não. É algo que simplesmente acontece. Então no
fundo não há diferença nenhuma.”
O inspetor voltou a ficar em silêncio.
Tornei a insistir: “E então, devo chamar uma ambulância?”
Ele pareceu considerar minha sugestão, e então se limitou a balançar a
cabeça em negativa. Enfiou a mão no bolso da calça, e de lá retirou seu
famigerado canivete.
“O que você vai fazer?” Perguntei, alarmado.
“Júlia foi capaz de fazer isso com ela por conta dessa moeda, não é verdade?
Então vou arrancar essa moeda fora.”
“Eu não faria isso.” Tive que pensar rápido. “Veja bem, a moeda está
intimamente conectada ao sistema límbico. Uma interrupção abrupta pode
ocasionar um curto circuito nas funções vitais. Foi muito temerário o que você
fez comigo, meu jovem. Muito arriscado mesmo. Acabou dando certo, mas foi
um risco tremendo. Foi muita sorte eu não ter morrido e nem ter virado um
vegetal. É altamente improvável que Ágata tenha tanta sorte, principalmente já
debilitada como está.”
Canivete em punho, o inspetor hesitou por um momento. Mas o bom senso
acabou prevalecendo. “Tem que haver uma maneira”, ele disse, a frustração e a
raiva borbulhando em sua garganta.
“Existir, até existe”, falei impensadamente. “Ou pelo menos existiu. Mas o
segredo para desativar as moedas está agora perdido para sempre. Desapareceu
junto com o homem que você conheceu como Harold Habbot. O suposto
turista alemão, assassinado por Júlia e Kim no hotel Émile.”

Brancas avançam na primeira:


Sem culpa.

Expliquei resumidamente que Habbot era uma das identidades falsas


assumidas pelo autor do livro que o inspetor havia visto em meu cofre. Falei
sobre o Roque que il Dottore inventou para desativar as moedas, ainda que
temporariamente, e sobre a tentativa frustrada dos gêmeos para obter a
fórmula.
Teixeira não demorou a ligar os pontos. “Eu sabia que aquele pen drive que
encontrei dentro da Bíblia era importante.” Seu rosto subitamente iluminou-se.
“Mas espere. Eu lembro do texto que havia no arquivo. Cloridrato de cetamina,
mais triclorometano, mais mantra.”
Balancei a cabeça, sorrindo tristemente. “É inútil. Devo confessar a você
que tive acesso ao conteúdo do armazenador portátil, não importa como. Eu li
essa fórmula no arquivo de texto.”
“Pois então. Tudo o que temos a fazer é preparar a fórmula.”
“Aí é que está. A fórmula é composta de três ingredientes. O cloridrato é
fácil de se obter. O clorofórmio, mais fácil ainda. Ainda devo ter uma boa
quantidade dessas duas substâncias aqui na farmácia da casa. Pois já fiz diversos
testes, sem resultados. Afinal o meu maior desejo era me livrar dessa escravidão
das moedas.” Percebi que talvez estivesse falando demais. Mas Teixeira não
parecia dar importância. Sua atenção estava focada em Ágata. “O problema é
que não temos o mantra. E sem o mantra, as duas substâncias são inúteis.”
“Não estou entendendo essa história de mantra.”
“Nem me pergunte, pois não faço a menor ideia. Isso foi algo que Bodoni
inventou ou aprendeu, provavelmente durante o período que passou na Índia.
Só sei que ele conseguia potencializar certas misturas químicas pela recitação de
alguns sons específicos.”
Novamente tive que refrear minha língua. Pois quase disse que o mesmo
processo havia sido utilizado para criar a droga que Kim e Júlia injetaram em
Teixeira quando conseguiram derrotá-lo no hotel Émile. Trazer de volta aquelas
recordações não iria ajudar ninguém. Sorte que o inspetor era rápido em
preencher as lacunas.
“Um mantra é uma espécie de oração, não é? Como uma palavra mágica.”
“Sim. Mais ou menos isso.”
A face de Teixeira tornou a demonstrar que ele havia acabado de ter uma
ideia luminosa. Ou, para ser exato, uma lembrança luminosa.
“Acho que sei que mantra é esse. Você disse que ainda tem um pouco das
duas substâncias na casa. Onde estão?”
“Se não me engano, deve ter mais de meio frasco de cada na farmácia da
casa. Trata-se na verdade de um armário que fica na copa, no térreo.” Nem por
um segundo achei que ele pudesse mesmo saber o mantra que completava a
fórmula. Mas aquela era uma oportunidade que surgia. “Posso descer agora e
pegar para você. Não custa nada fazermos mais uma tentativa.”
Ele me encarou. E então sacudiu a cabeça em negativa.
Foi minha vez de encará-lo. “Escute. Devo minha vida a você. Pode confiar
em mim.” Não foi difícil dizer aquilo. Era o que eu estava sentindo.
Ele tornou a balançar a cabeça. “Não tem como mandar alguém trazer
aqui?”
Era melhor que nada. O telefone estava caído no tapete ao lado do
computador, entre os destroços de vidro partido da mesa. Disquei o ramal da
copa. “Cesário, sou eu. Preciso que você pegue umas coisas para mim na
farmácia. Anote aí. São dois frascos marrons, creio que estão na prateleira de
cima. Cloridrato de cetamina e triclorometano. Anotou?” Enquanto passava as
instruções, lembrei que Cesário trabalhava no hotel Émile quando ocorreu o
incidente no quarto 909. Ele era o chefe da cozinha do hotel na época. Foi Júlia
quem me convenceu a tomá-lo para meu serviço, falando insistentemente das
divinas iguarias que degustou naquele almoço com il Dottore. E realmente.
Desde que contratei Cesário, só fiz engordar. “Aproveite e traga também o kit
de primeiros socorros. Tivemos um pequeno acidente aqui com a mesa de
vidro, nada grave. Estou no escritório. Você não precisa entrar. Basta deixar o
que pedi diante da porta.”
“Por que você não quer que ele entre aqui?” Teixeira perguntou assim que
desliguei.
“Imaginei que você fosse preferir assim. Olhe para nós dois: estamos
parecendo figurantes do filme A Noite dos Zumbis. Cesário não precisa ver nossa
imagem tão pouco apresentável de mortos vivos. Para não mencionar a de
Kim, que está bem morto morto.”
Isso pareceu despertar alguns pensamentos no inspetor. “Acha que alguém
ouviu os tiros e os gritos?”
“Sinceramente, acho pouco provável, com o barulho da música e a atenção
das pessoas na festa voltada para outros assuntos bem mais prementes. A coisa
deve estar no auge agora.”
“Pois muito bem, então ainda temos algum tempo. Vamos aguardar o tal
Cesário trazer os medicamentos. Enquanto isso, você vai me explicar o que
quis dizer com aquela história de sincronicídio.”

Pretas avançam na segunda:


Alguém mata três raposas no campo e recebe uma flecha dourada.

Como eu demorasse a responder, Teixeira insistiu: “Pois então. Fale sobre o


sincronicídio. O que isso tudo tem a ver com a peça que Régis Vale estava
encenando?”
“Nada sei a respeito dessa peça. Quem pode falar sobre isso é Júlia. Quanto
ao sincronicídio, acho que será melhor começar contando sobre Winston Jarvis
MacCaffrey. Talvez você esteja familiarizado com o nome.”
“Sim, eu acho. Um adolescente americano que matou a família.”
O episódio havia acontecido três ou quatro anos antes, quando ganhou uma
breve fama no mundo inteiro. Winston Jarvis MacCaffrey, 16 anos,
novaiorquino, obeso, tímido, desajustado. Um desses garotos que sofrem com
o bullying na escola, compram armas pela Internet e um belo dia resolvem que
chegou a hora de dar o troco. O que tornou o caso de Winston um pouco
diferente de tantos outros foi a escolha das vítimas. Pois não foi nos colegas de
turma que ele atirou. Com um rifle de caça, assassinou o pai, a mãe e a irmã
caçula, uma criança de colo. E depois se matou.
“A maioria dos fatos é de conhecimento público. Mas tem uma parte que
poucos ficaram sabendo.”
Eu estava morrendo de vontade de tomar um drinque. Teixeira não fez
objeções, mas preferiu não me acompanhar. Fui até o bar e me servi de uísque
enquanto prosseguia com a história:
“O que vou contar me foi dito pelo próprio Bodoni. Ele estava morando
nos Estados Unidos, trabalhando diretamente com a matriz da Fábrica. Eles
chamam a si mesmos de si, éss en' djí. Copper, Silver and Gold.”
Pronunciei as palavras zombeteiramente, numa paródia do sotaque
novaiorquino. Acrescentei, não sem um resquício de ressentimento: “Os
americanos conseguem produzir essas moedas às centenas, aos milhares. Isso
faz parte de um plano que começou a tomar forma no dia em que esse rapaz,
Winston Jarvis MacCaffrey, chacinou toda a sua família. Os MacCaffrey
moravam em um velho prédio ao sul do Brooklyn, a menos de duas quadras de
distância de um dos bancos utilizados pela CSG para guardar suas preciosas
moedas.”
Dei um gole no uísque enquanto organizava os pensamentos. Continuei:
“Vou contar como ouvi. Não há outra maneira de falar sobre isso. A família
MacCaffrey foi morta de madrugada. Estavam todos dormindo quando
Winston começou a atirar. Na manhã seguinte, o bairro do Brooklyn registrou
um aumento inexplicável em suas taxas de criminalidade. Tentativas de estupro
à luz do dia, assaltos, agressões sem motivo aparente, brigas de gangue,
esfaqueamentos, tiros, pauladas e pedradas. Houve até mesmo uma tentativa
frustrada de assalto ao banco onde as moedas da CSG estavam guardadas. O
responsável por essa conta era justamente il Dottore. Quando soube da tentativa
de assalto, o doutor correu para o banco, tomado por um sentimento de
urgência. Ao abrir o cofre, ele teve uma surpresa e tanto.”
Duas batidinhas discretas na porta interromperam a narrativa. Soltei uma
exclamação de alívio. Era o material que eu havia pedido. Cesário não levou
nem cinco minutos. Mas Teixeira, de arma em punho, me fez esperar um
minuto antes de me deixar a abrir a porta.
“Você não precisava fazer isso”, protestei.
No chão diante da porta estava a sacola branca e vermelha que nós
chamávamos de kit de primeiros socorros. Bom Cesário, fiel Cesário. Eu já
estava com medo de sangrar até a morte, uma vez que Teixeira parecia
indiferente à perda de seus próprios fluidos vitais, que dirá dos meus. Carreguei
a sacola para dentro do escritório e tornei a fechar a porta.
Os dois frascos de vidro marrom estavam dentro da sacola. Mostrei-os ao
inspetor, e felizmente consegui convencê-lo de que seria melhor cuidarmos de
nossos ferimentos antes de qualquer outra coisa. Ajudei-o a tirar o casaco e o
coldre que usava atravessado no peito. A pistola ele enfiou na calça, apontando
para os genitais. Assim como o casaco, a camisa por baixo estava rasgada e
empapada de sangue, que não era só do tiro no braço. Calculei que boa parte
daquele sangue todo devia ser de Régis Vale.
Pois quando Teixeira tirou a camisa vi que a situação na verdade não era tão
feia. A bala passou praticamente por debaixo da pele, deixando dois furos
desiguais em seu braço. Ainda sangrava, mas não era muito. Seu peito e barriga
estavam marcados por alguns cortes e escoriações, nada grave.
“Diga-me uma coisa”, perguntei. “Você tem alergia a iodo, não tem?”
“Sim. Como sabe disso?”
“É que eu também sou alérgico. Tome. Você pode desinfetar suas feridas
com isso. Não contém iodo.”
Eu já havia limpado da melhor maneira que pude o corte na cabeça, e agora
estava aplicando uma compressa com gaze e pomada cicatrizante. O
sangramento fora estancado. No dia seguinte, ficaria surpreso ao constatar que
o ferimento era minúsculo, pouco mais que um ponto.
Estávamos sentados nas cadeiras, um de frente para o outro. Uma tácita
camaradagem havia surgido entre nós. Éramos como dois guerreiros cuidando
de seus ferimentos após a batalha.
Ágata remexeu-se no sofá. Abriu os olhos e fitou seu amado por um
instante, um olhar mortiço e torturado, antes de voltar a tombar a cabeça.
Nesse momento tive a sensação de que Júlia apenas fingia estar desacordada,
exatamente como eu havia feito quando estava na posição dela. Fiz um sinal
discreto para Teixeira, que já havia enrolado o braço ferido em uma bandagem
e agora tornava a vestir a camisa ensanguentada e o casaco rasgado. Ele assentiu
com a cabeça, indicando que estava ciente. Em voz alta, apenas disse:
“Prossiga com sua história.”
Tomei mais um gole de uísque para lubrificar a goela. Não era fácil falar
sobre algo assim, sem ter evidências à mão de que eu estava contando a
verdade.
“Il Dottore tinha pouco mais de quinhentas moedas de cobre guardadas no
cofre. Creio que quinhentas e quarenta e duas moedas era o número exato.
Quando ele abriu o cofre, encontrou mil e oitenta e quatro moedas de cobre.
Exatamente o dobro.”
Júlia continuava imóvel no tapete. Talvez estivesse surpresa por eu saber
disso tudo. Quanto a Teixeira, sua reação foi mais ou menos a que eu esperava.
“Que história é essa?”
“Sei que é difícil de acreditar. Estou apenas contando o que ouvi do próprio
il Dottore. E você nem ouviu a melhor parte.”
“E ainda tem mais?”
“Só mais uma coisa. Como eu disse, na manhã seguinte à extinção da família
MacCaffrey houve um inesperado surto de violência no Brooklyn. O que
poucos sabem é que na maioria se não totalidade dos casos as pessoas
envolvidas estavam ligadas de alguma forma à CSG. Ou seja, todas usavam
moedas! Todos os agressores que chegaram a ser identificados nessa manhã de
tumultos eram portadores de moedas.”
“Sim. E daí?”
“E daí que esses três fatos estão conectados. Primeiro, Winston Jarvis
MacCaffrey mata os pais e a irmã. Segundo, as moedas de cobre duplicam no
cofre de il Dottore. Terceiro, todos os portadores de moedas nas redondezas
enlouquecem. Essa é a sequência, percebe? Quanto mais violência, mais
moedas, e quanto mais moedas, mais violência.”
Deixei aquelas palavras soarem por um instante, e então acrescentei, em tom
pensativo: “Não sei de todos os detalhes. Só sei que foi essa história que acabou
dando origem ao sincronicídio.”
“Como assim?”
“Imagino que o que vou dizer só vai tornar as coisas mais fantásticas e
absurdas para você, mas ainda assim vou tentar. É preciso que você entenda
primeiro que essas moedas não são simples objetos inanimados de metal. Como
você mesmo já pôde comprovar, elas são capazes de grandes proezas.”
Em meu copo só restava o esqueleto do gelo derretido. Respirei fundo e
soltei a bomba logo de uma vez: “Tudo tem a ver com Karma, o velho conceito
oriental de ação e reação. Um assassinato é um ato extremo, de grande
potencial kármico. Mas não é o suficiente para gerar a mitose das moedas de
cobre. Para que isso aconteça, é necessário um tipo especial de assassinato, do
tipo cometido por Édipo ou Caim. O assassino precisa estar ligado por laços de
sangue com a vítima. Os dois têm que ser da mesma família. Compreende agora
por que os gêmeos estavam tão desesperados para que você me matasse? Agora
mesmo, em algum lugar das redondezas, deve haver um carro-forte abarrotado
de moedas de cobre, aguardando um parricídio para que o investimento dê cem
por cento de lucro.”

Brancas avançam na sexta:


O príncipe atira em um falcão pousado em uma alta muralha, matando-o.

“Essa história é tão absurda que é até capaz de ser verdadeira.” Disse o
inspetor, com a sombra de um sorriso nos lábios. “Mas vamos deixar isso de
lado pelo momento. Temos assuntos mais importantes para tratar.”
Ele retirou os dois frascos marrons da sacola de primeiro socorros. Leu o
que estava escrito nos rótulos. “Aqui estão. Clorofórmio e cloridrato de
cetamina. Você tem aí algum recipiente em que possamos misturá-los?”
Fui até o bar, peguei um copo limpo e passei para ele. “Como il Dottore não
especificou as quantidades, parti do pressuposto de que devem ser doses iguais
de cada substância. Não crie muita expectativa, está bem? Já tentei fazer isso
funcionar diversas vezes. Longe de mim bancar o cético, ainda mais depois do
que lhe contei. Mas não tem como a fórmula funcionar sem o mantra.”
“Aí é que está”, disse Teixeira. Ele havia despejado o conteúdo do primeiro
frasco até encher metade do copo. Agora completava o copo com o que estava
no segundo frasco. O inconfundível odor de clorofórmio subiu no ar. “Acho
que sei que mantra é esse.”
“Mas como?”
“Encontrei o pen drive com a fórmula dentro de uma bíblia, certo? Pois um
dos versículos estava grifado a caneta, bem na página marcada pelo pen drive.”
Minha surpresa foi genuína: “O quê? Mas então...”
“Havia na cena do crime outro livro com uma frase sublinhada, o Fausto de
Goethe. Por isso imaginei que aquilo também fosse obra dos assassinos. Não
me ocorreu a hipótese do versículo da bíblia ter sido grifado pela própria
vítima.”
Olhei para Júlia, que continuava sem dar sinais de vida. Será que ela estava
mesmo acordada? Achei difícil que ela pudesse receber aquela revelação sem
estrebuchar em um ataque de raiva infantil.
Eu tentei ser útil: “Posso pedir a Cesário para trazer uma bíblia. Creio que
há um exemplar em minha biblioteca.”
“Não será necessário. Eu memorizei o versículo. Suponho que o mantra
deva ser pronunciado em voz alta, não é assim?”
“Isso mesmo.”
O inspetor ergueu o copo cheio até a boca, como se fosse propor um
brinde. E então falou, em um tom solene: “Agora é o juízo deste mundo. Agora será
expulso o príncipe deste mundo.”
Depois tive a oportunidade de verificar que essa passagem encontra-se no
evangelho de João. Capítulo 12, versículo 31. Alguns segundos anticlimáticos
passaram-se antes que Teixeira indagasse: “E então? É só isso?”
“Espere um momento. Lembrei de algo. Quando il Dottore queria preparar
um de seus coquetéis especiais, como ele chamava, repetia o mantra cento e
oito vezes. Como se estivesse utilizando um japamala, um desses colares de
contas que os budistas usam para recitar suas orações. Tem exatamente cento e
oito contas.”
“Então tenho que repetir o versículo mais cento e sete vezes.”
“Acho que sim. Só tem um jeito de descobrir.”
Teixeira iniciou imediatamente a monótona tarefa. Pude perceber que ele
não estava lá muito à vontade, repetindo aquele trecho da bíblia com o copo
erguido diante dos lábios.
Eu também estava incerto quanto aos resultados. Pois o outro mantra, o
que Bodoni havia me ensinado, estava em sânscrito, ou páli, ou bengali. Algum
desses idiomas da Índia. E sendo il Dottore um italiano radicado nos Estados
Unidos, eu achava improvável que ele tivesse utilizado um mantra em
português para o seu precioso Roque.
Mas talvez a força de um mantra não esteja somente no som das palavras
em si, mas principalmente no significado que elas transmitem. Pois ao término
da centésima oitava repetição era inegável que o líquido dentro do copo, até
então incolor, havia adquirido uma leve tonalidade azulada.
CAPÍTULO 21 – MORDIDA

É favorável deixar a justiça ser administrada.


Trovão e relâmpago: assim os reis de antigamente tornaram as leis firmes, definindo
claramente as penalidades.
(I Ching – hexagrama 21)

Os olhos dele luziam como se fossem polidos a óleo.


“Vamos testar em mim primeiro. Pode me ajudar com isso?”
O inspetor Teixeira estava começando a acreditar. E eu também.
“Deixe que seguro o copo. Como sabe, fiz alguns testes com essas
substâncias, é claro que antes do mantra, o que muda tudo. Ainda assim, não
recomendo que você injete isso. Os resultados seriam muito desagradáveis.”
Ele olhou para mim e quase que sorriu. “Isso nunca me passou pela
cabeça.”
“Ótimo. Acredito que você também não está pensando em começar a beber
agora. A única opção que sobra é a aplicação tópica.”
Ele balançou a cabeça, resignado. Virou as costas para mim. Abaixou a calça
somente o suficiente para expor um mínimo do cofrinho, exatamente o ponto
onde estava alojada a moeda de cobre. “Assim vai molhar a sua roupa.”
“Não tem importância.”
“Seria bom se você pudesse, ahn, inclinar um pouco o tronco para a frente.
Assim está bom. Obrigado.”
Peguei um chumaço de algodão e mergulhei dentro do copo. Espremi sobre
a moeda, esfreguei. Repeti o processo com um novo chumaço de algodão, por
via das dúvidas. Nas duas vezes, o algodão parecia fracamente iluminado por
uma fantasmagórica luz azulada. Mas pode ter sido só impressão minha.
O que é certo é que o resultado foi espetacular, sobretudo para meus velhos
olhos cansados de ver bundas coroadas com moedas. Ao cabo de menos de
meio minuto a moeda dele adquiriu coloração fechada, bem próxima do negro
absoluto. Gradualmente a moeda foi retornando à coloração original, e ao
mesmo tempo ia descolando da pele. O processo todo não levou nem três
minutos. A moeda caiu inaudível aos pés de Teixeira, e sumiu no tapete macio.
O espanto reverente que eu estava sentindo foi combatido de pronto por
uma tentativa de racionalização. Aquilo que meus olhos haviam acabado de
testemunhar provavelmente só foi possível porque a moeda nunca chegou a ser
ativada. O Roque não tinha esse poder de por si só desconectar totalmente uma
moeda. O próprio il Dottore havia lamentado amargamente essa limitação de sua
preciosa fórmula.
Mas o que me arrancou da estupefação foi o tom alerta e urgente na voz do
inspetor Teixeira: “Nem pense nisso, lindinha”, ele disse para Júlia. Ela não
havia feito nenhum movimento que eu tivesse percebido. “E nem adianta
tentar seu truquezinho mental novamente. Se não funcionou da primeira vez,
muito menos agora. Tenho você bem na minha mira, gatinha. Mas não vou
atirar em você. Bem que você gostaria que eu atirasse em você, não é mesmo?
Era isso o que estava tentando me obrigar a fazer. Nada disso, queridinha.
Você vai me ajudar em uma coisa. Estou curioso. Quero descobrir se a poção
mágica que você deixou de presente lá hotel Émile funciona em uma moeda de
prata. Meu benzinho.”
O inspetor Teixeira também sabia ser cruel quando queria.

Pretas avançam na primeira:


Seus pés são acorrentados, de tal forma que seus dedões desaparecem.

Júlia deu trabalho para ser dominada. Escoiceava e esperneava como um


animal prestes a entrar no matadouro. Teixeira conseguiu finalmente imobilizá-
la passando o corpo transversalmente por cima do dela, deixando que seu peso
ajudasse Júlia a se cansar mais depressa. Se ela não estivesse com as mãos
algemadas às costas, Teixeira teria passado por maus bocados.
Afinal ela quedou quieta, como um peixe que ao ser fisgado luta
desesperadamente com o anzol até subitamente perceber que o oceano não está
mais lá. O inspetor baixou a calça de Júlia até a metade da bunda, em um puxão
não muito gentil.
Não seria necessário puxar a calcinha para baixo. Era uma mínima tira
rendada, que permitia enxergar livremente os glúteos e a moeda de prata acima
deles, brilhando como nova.
Teixeira ergueu um pouco a cabeça para olhar em minha direção.
“Passe-me o copo com a poção, depressa.”

Brancas avançam na segunda:


Mordendo a carne macia, de tal forma que seu nariz desaparece.

Júlia tornou a se contorcer, emitindo um urro gutural. Quando virou o rosto


em minha direção, vi que seus lábios estavam rubros de sangue. Só tarde
demais percebi o que ela estava tentando fazer.
“Ela vai morder a cápsula de veneno. Rápido, temos que forçá-la a abrir a
boca.”
Brancas avançam na terceira:
Mordendo uma velha carne ressecada e encontrando algo venenoso. Leve humilhação.

Tarde demais. Ouvi com nitidez o som de algo partindo ao ser triturado por
dentes. Como o som de alguém mastigando uma cenoura com um pedaço de
vidro dentro. Pensar nesse som ainda me traz arrepios.
Sobretudo porque depois do som veio o silêncio. Por um pesado instante os
três embolados no tapete ficaram paralisados, como uma bizarra escultura
representando um ménage a trois sadomasoquista hardcore. Júlia, o inspetor
Teixeira e eu.
Desfalecida no sofá, Ágata também somava para a imobilidade da cena.
Kim, esparramado a menos de um metro e meio de mim, tornava-se de súbito
mais presente.
Júlia abriu bem os olhos, como se já fitasse o infinito. Teixeira e eu nos
afastamos, como se ela fosse portadora de uma doença transmissível pelo
contato. O que não deixava de ser verdade. A morte é extremamente
contagiosa.
Duas semanas antes, os gêmeos tinham feito uma rápida viagem à Bélgica.
Sondei o que eles foram fazer lá. Eles não se esquivaram e responderam
abertamente. Entre gargalhadas e brincadeiras, Júlia e Kim afirmaram ter feito
contato com um grupo neonazista em Bruxelas, onde tiveram a oportunidade
de implantar uma cápsula de veneno em um dos molares.
Quando disseram isso pensei que estivessem me gozando. Resolvi dar corda
só para ver se descobria alguma coisa. “Mas por que vocês fizeram isso?”
“Sempre é bom ter um último recurso”, recitou Júlia.
“Qual foi o veneno que vocês usaram?”
“Cicuta”, respondeu Kim, com evidente prazer. “Uma palavra pequena e
fácil. A melhor solução é sempre a mais simples.”
“Como Sócrates.”
“Exatamente, chefinho! Com certeza foi a melhor escolha possível.” Júlia
também estava entusiasmada, como uma adolescente que havia acabado de
comprar roupas novas no shopping center. Foi então que comecei a suspeitar
que eles estivessem mesmo falando sério.
E agora, ao ouvir o som da mordida, eu tive certeza.

Brancas avançam na quinta:


Mordendo a carne ressequida e encontrando ouro. Persevere consciente do perigo.

Ela tossiu, cuspiu, fez um esforço para se sentar sobre as pernas. Virou o
torso de forma a exibir as algemas para Teixeira.
“Gostaria de limpar o meu rosto.”
O inspetor não deu a permissão.
“Está bem então, seu bastardo miserável. Você não demora a estar no
inferno.”
“Você está querendo que eu vá só para lhe fazer companhia.”
Júlia interrompeu sua ira para um acesso de riso debochado. Percebi que o
veneno começava a fazer efeito. A cicuta atua diretamente no sistema nervoso
central. Ela não demoraria a entrar em delírio. “Para onde eu vou, você não tem
como ir. Você é apenas um homem. Por isso, poderia mostrar um pouco de
humanidade e ao menos me conceder uma bebida? Estou com muita sede.”
Não haveria porque Teixeira não concordar. Eu me ofereci para servi-la.
“Traga-me algo forte, chefinho. Com bastante gelo.”
Ela sorveu a bebida de minhas mãos. Deu um gole agoniadamente longo.
Parou para respirar e engoliu o resto em dois ou três goles. O gelo foi colhido
do copo por sua língua ávida. Ela mastigou e engoliu todo o gelo.
“Thanks, chefinho.”
A partir daí Júlia começou a falar em inglês.
“Você sempre foi um cara legal no fundo, sabia disso? É o que torna você o
panaca perfeito.”
Ela riu novamente. Uma risada seca e desagradável. Olhei imediatamente
para Kim, para me certificar de que estava mesmo morto. A risada foi
estrangulada na garganta de Júlia. Crispou o rosto em uma careta de dor,
curvando-se sobre si mesma. Parecia uma flor murchando. Deixei o copo sobre
o tapete e tentei ajeitá-la em uma posição mais confortável. O inspetor Teixeira
assistia impassível.
Júlia estava respirando com dificuldade. Mesmo assim ainda encontrou
fôlego para dizer:
“Sieg Heil! O Grande Ferreiro será restaurado ao seu legítimo trono. O deus
do metal reinará supremo. O mar negro de sangue banhará a longa noite de
Varuna, o rei das serpentes.”
Silêncio. E então:
“Minhas mãos estão frias. Por que o fogo é tão frio? É assim que queima o
lado escuro do Sol?”

Pretas avançam na sexta:


Seu pescoço é aprisionado na canga de madeira, de tal modo que suas orelhas desaparecem.

“Sieg Heil!”
No instante em que Júlia morreu, compreendi.
Ela obteve a vitória no final, no instante da morte.
Qualquer torre que estivesse posicionada no raio de quinhentos metros a
partir de minha casa estaria sendo ativada naquele exato momento. E eu não
tinha a menor dúvida de que havia um carro-forte rondando a área. Quase que
podia senti-lo.
Tudo o que eu sabia a respeito das torres aprendi com Bodoni, em uma
noitada etílica no bar do hotel Émile. Foi a última vez que estive pessoalmente
com ele. O velho estava sofrendo muita pressão e precisava desabafar em um
ombro amigo.
Resumindo a ópera: depois do incidente com Winston Jarvis MacCaffrey, a
CSG mobilizou recursos espetaculares para investigar o fenômeno. No início
das pesquisas Bodoni estava entusiasmado, e então começou a se preocupar
com os primeiros resultados, até que por fim ficou apavorado com o que estava
ajudando a criar.
Logo ficou provado que eram mesmo os crimes de sangue o fator catalisador
na mitose das moedas de cobre. Quanto mais horripilante fosse o crime para os
códigos morais e éticos, quanto mais carregada de Karma a ação estivesse,
maior a intensidade do fator catalisador. Júlia e Kim haviam planejado ativar a
torre por meio de um parricídio. Eles queriam que Teixeira me matasse, o que
teria feito tilintar os cofres do carro-forte.
Na lista dos crimes sangrentos, poucos atos são capazes de superar o
assassinato do próprio pai. Na verdade, só duas ações são piores, do ponto de
vista kármico. Em segundo lugar vem o matricídio, o que faz sentido em termos
puramente biológicos. Mas o campeão da lista é mesmo o suicídio. Nenhuma
ação humana é tão carregada de Karma quanto o ato de tirar a própria vida.
Ao optar por ser a assassina de si mesma, Júlia realizou sua opera magna, o
trabalho que ela estava destinada a cumprir. Pela força de sua própria vida auto
imolada, Júlia abriu os portões para o terrível futuro.
Eu precisava verificar. Fui até o cofre na parede e o abri. Teixeira estava
logo atrás de mim e viu também. As pilhas de moedas guardadas no cofre
brilhavam com uma intensa luz alaranjada. Não me atrevi a tocá-las. Pareciam
altamente radioativas.
Estava começando. O tiro de largada foi o suicídio de Júlia, seguido pelas
moedas brilhando no cofre. Logo viria a onda de violência. Como se já não
tivesse havido o bastante.
O sincronicídio estava apenas começando.
Os Peões e as Torres
CAPÍTULO 28 – PREPONDERÂNCIA DO GRANDE

A viga é curvada até o ponto de ruptura. É favorável ter aonde ir.


O lago acima das árvores: assim o homem superior é livre de preocupações quando está
sozinho. E se ele tem que renunciar ao mundo, está livre do medo.
(I Ching – hexagrama 28)

“Há um carro-forte estacionado bem em frente ao seu portão.”


A voz do inspetor Teixeira arrancou-me de devaneios. É claro que eu já
sabia da Torre diante da casa. Dali de onde estava eu podia sentir a sua fome.
Contei para meu filho o que Bodoni havia falado a respeito do suicídio ser o
ato humano de Karma mais pesado, e por esse motivo o que mais gerava
moedas. “A Fábrica só saiu lucrando nisso tudo”, concluí amargamente.
“Vamos ver se entendi direito”, ele quis recapitular. “Se eu tivesse matado
você, essa ação teria um peso kármico suficiente para duplicar essas malditas
moedas. Mas Júlia, por ter cometido suicídio, alcançou um Karma ainda mais
pesado, o que vai fazer com que as moedas gerem ainda mais moedas. Tudo
bem que a situação é fantástica, mas fora isso não vejo tanto motivo para
alarde. Você vai ficar um pouco mais rico e poderoso. E os donos do carro-
forte também. Que façam bom proveito do lucro.”
“Não é tão simples assim, Alberto. Olhe bem para as moedas no cofre. Veja
o que está acontecendo com elas. Estão sendo transformadas por uma energia
que estão captando do ambiente ao nosso redor. Nós não podemos enxergar
essa energia, mas ela está aí. A prova é o que está acontecendo com as
moedas.”
“Estou entendendo aonde quer chegar. Prossiga.”
“O problema todo”, eu disse. “É que as moedas não estão apenas captando
essa energia do ambiente. Em seu processo de mitose metálica, elas funcionam
como estações retransmissoras de Karma, captando e devolvendo para o
ambiente essa mesma energia amplificada. Dizendo isso em outras palavras, o
Karma gerado pelo suicídio de Júlia está sendo intensificado e retransmitido de
volta para o ambiente.”
“Sim, estou lembrando o que você falou agora há pouco. O resultado disso
é uma onda de tumultos, conflitos e crimes, como a que ocorreu após aquele
adolescente americano ter fuzilado a família.”
“Exatamente. Só que talvez o efeito coletivo seja diferente. Afinal o
estímulo inicial agora foi um suicídio.”
“Você acha que as moedas irão provocar uma onda de suicídio em massa?”
“Sinceramente, não sei. Tudo é possível.” E então acrescentei, esperançoso:
“Precisamos sair daqui o quanto antes.”
Mas o inspetor tinha outros planos: “Temos que impedir esse processo.”
“Impossível. Depois de iniciado, não há como impedir.”
“Vamos colocar essa afirmação à prova.”
“O que pretende fazer?”
Teixeira pegou o copo com a fórmula do Roque, que eu havia deixado sobre
o balcão do bar. Deu dois ou três passos largos até o cofre e despejou o
conteúdo do copo quase todo em cima das brilhantes pilhas de moedas.
Talvez eu tenha imaginado o chiado estridente e a fumaça subindo das
moedas. O que é certo é que as moedas perderam de imediato o brilho
alaranjado, e adquiriram uma coloração escura de fuligem. Como se estivessem
queimadas.
“Parabéns”, disse eu, tentando diluir a frustração e a raiva com a ironia.
“Você acaba de destruir duzentas e poucas moedas. Restam apenas algumas
poucas centenas de milhares agora, e todas dentro de um carro-forte bem
guardado.”
Diante da cara de espanto de Teixeira, apressei-me em explicar: “Desculpe a
minha reação. É que observando essas moedas no cofre, poderíamos
acompanhar em que ponto da transformação elas estariam também dentro do
carro-forte. E agora não temos mais como ter acesso a essa informação.”
“E para que é que nós vamos ficar observando? Não percebe que
encontramos uma maneira de deter o processo?”
“Sim, é verdade”, eu disse, ainda sem conseguir conter a ironia. “Não havia
pensado dessa maneira. Mas vamos precisar de galões e mais galões da fórmula,
se houver a metade das moedas que estou imaginando dentro daquele carro-
forte.”
“Talvez não seja preciso tanto. Se o que está acontecendo com as moedas
for uma reação em cadeia, como você disse, talvez só precisemos interromper
um dos elos da cadeia para abortar toda a sequência. E além do mais, temos
que tentar.”
Teixeira havia guardado no copo apenas o suficiente para utilizar em Ágata.
Fomos verificar o conteúdo dos frascos de vidro marrom. Havia pouco menos
da metade em cada frasco.
“Isso é muito pouco”, lamentei. “Não vai dar nem para o começo.”
Teixeira recusava-se a desistir. “Não tem mais dessas duas substâncias na
casa?”
“Não. Isso era tudo. Comprei esses dois frascos só para tentar fazer o
Roque funcionar, como já disse. Comprei um frasco de cada: cloridrato de
cetamina e triclorometano. Se bem que o triclorometano eu comprei bastante
essa semana mesmo, para uso dos convidados da festa.”
“É isso!” Bradou Teixeira. “O triclorometano ou clorofórmio é o
ingrediente principal da loló.”
“Isso mesmo.” O cheirinho da loló, droga muito popular nos carnavais do
Brasil, não poderia faltar em minhas festas da carne. “Ainda deve ter uma boa
quantidade lá embaixo nos salões. Mas só deve ter o loló já pronto, misturado
com essência de chiclete e sei lá mais o quê.”
“Vai ter que servir.” O inspetor estava mesmo obstinado. “Não temos outra
escolha, temos?”
“Ainda vai ficar faltando a outra substância, a cetamina.”
“Mas não é possível.” Ele estava começando a desconfiar de minha boa
vontade para levar aquele temerário plano adiante. “Você é o barão da droga
em Rio Santo em uma noite de festa em sua casa. Deve ter todo tipo de droga
imaginável aqui hoje. Não é possível que justo essa você não tenha.”
Ele estava com a razão. Contei para ele da cavalo do cão, a nova droga da
moda nas pistas de dança. Um dos princípios ativos é justamente o cloridrato
de cetamina, originalmente utilizado como anestésico para cavalos.
“Só que essa droga vem em forma de comprimido.”
“Não tem problema”, resolveu Teixeira. “Trituramos os comprimidos,
jogamos dentro dos frascos de loló, misturamos com o resto desses dois frascos
aqui e rezamos o mantra novamente. Depois tomamos o carro-forte e
espargimos a fórmula sobre as moedas.”
Dito assim, parecia fácil.

Brancas avançam na primeira:


Alguém coloca tapetes sob as coisas no chão.

A imagem dos gêmeos estirados no tapete me incomodava. Júlia


principalmente, deitada como estava com os olhos abertos, parecia que estava
me observando. Chegou um ponto em que não aguentei.
Teixeira bradou logo: “Mas o que você pensa que está fazendo?”
“Não estava direito ela assim, de olhos abertos.”
“Quer fazer o favor de voltar para a sua cadeira? E não mexa mais em nada,
está bem?”
Aquilo mexeu foi com meus brios: “E para que todo esse cuidado, pode-se
saber? Se você está pensando em preservar as evidências do caso ou algo assim,
pode esquecer. Nós dois sabemos que nada do que aconteceu aqui irá algum dia
parar em um tribunal.”
“Você pode até estar certo, mas isso não depende de mim. O que depender
de mim, pode estar certo de que vou fazer. Por isso fique longe desses dois,
entendeu bem?”
O inspetor Teixeira também tinha brios. Até de sobra.

Pretas avançam na segunda:


Um salgueiro seco gera rebentos. Um homem idoso toma para si uma jovem esposa. Tudo é
propício.

Sorte que esse foi o momento escolhido por Ágata para voltar a si. Teixeira
correu para junto dela, totalmente esquecido de qualquer desavença comigo.
Ela abraçou o inspetor e o cobriu de beijos. Só depois de um tempo reparou
em mim. E tomou um susto.
“Rogério!” O olhar de Ágata voou para Teixeira e então de volta para mim.
“Meu marido.”

Pretas avançam na quinta:


Um salgueiro murcho produz flores. Uma mulher mais velha aceita um marido. Sem culpa.
Sem mérito.

Pacientemente o inspetor explicou a Ágata o condicionamento a que ela


havia sido submetida.
“Tudo faz parte dessa lavagem cerebral que os gêmeos fizeram em você”,
tentei ajudar. “Nós não somos casados. Antes de hoje, nunca tinha visto você.
Eu não sou escritor.”
Teixeira interpôs: “Esses livros que você pensa que leu a meu respeito
nunca existiram. Não sou um personagem de romance.” Ele tornou-se intenso,
categórico. “Ninguém escreve a minha história.” E aqui estou eu, escrevendo o
que ele disse.
Ágata parecia desolada. “Eu tenho que acreditar em você. Mas o que eu
sinto é tão real! Não consigo aceitar isso.”
Teixeira pôs a mão confortadora sobre o ombro dela. “Tudo faz parte da
mesma ilusão. Você precisa aceitar. Felizmente nós conseguimos um pouco do
antídoto. Isto irá desativar a moeda que gerou esse condicionamento em você.”
Com toda delicadeza, o inspetor pediu a Ágata que levantasse o vestido para
que ele pudesse aplicar o ‘antídoto’ no local correto.
“Mas isso não tem sentido. É bem aí que eu uso o meu Uróboro. Eu já falei
a você sobre isso, lembra? Prefiro não fazer isso, vai acabar danificando meu
Uróboro. Custou muito caro. Uma fortuna.”
Ele fitou-a profundamente nos olhos. “Ágata. Confie em mim. Não vou
machucar você.”
Ela arregalou os olhos ao revelar seu verdadeiro medo. “Não quero deixar
de sentir o que sinto por você. Eu te amo.”
“Para amar de verdade, é preciso ser livre. Vamos, amor. Precisamos fazer
isso.”
Esse tempo todo eu fingi que estava tirando sujeirinhas das unhas. Mas não
tive como conter a curiosidade quando Ágata finalmente concordou em
levantar o vestido. Não tanto para ver com mais detalhes o belo corpo da
escolhida de meu filho. E sim para observar o que iria acontecer com a moeda
ao ser banhada pela fórmula.
Era a primeira vez que veríamos a ação do Roque sobre uma moeda já
ativada. O inspetor resolveu imitar o meu método e usou um chumaço de
algodão para enxugar o que restava da fórmula dentro do copo. E começou a
esfregar a moeda com o algodão molhado. Inicialmente aconteceu o mesmo
que com a moeda de Teixeira. A moeda de Ágata foi ficando mais escura até
atingir um marrom bem fechado, quase negro. Aos poucos foi voltando à cor
original, com uma sutil diferença. De algum modo parecia nublada.
A moeda tampouco descolou da bunda de Ágata. Continuava tão grudada
como nunca, apesar dos esforços de Teixeira para arrancá-la.
“Ui”, ela reclamou. “Você está me machucando.”
Achei melhor intervir.
“Isso não vai adiantar. Você não vai conseguir soltar a moeda assim. A sua
só saiu tão facilmente porque não havia sido ativada ainda. Mas repare como a
coloração da moeda mudou. Foi desativada, ao menos pelo momento. É isso o
que importa agora.”
“Ai, porra! Vocês estão querendo arrancar o meu cu fora?”
A mulher deu um pinote e conseguiu se libertar das mãos do inspetor.
Olhou ao redor, aturdida. Ajeitou o vestido. Não era mais a mesma.
“Vamos com calma, está bem? Estou acostumada com um pouco de
violência. Até gosto. Mas você estava me machucando para valer ali, gatão.”
O inspetor estendeu a mão tateante na direção dela. Ele já havia
compreendido tudo. Ou quase.
“Ágata, me perdoe. Você está bem?”
“Eu perdoo você sim, gatão. Não guardo rancor. Mas você errou de nome.
Eu me chamo Regina.”
Gostaria muito de saber qual seria a resposta de Teixeira. Mas nesse
momento a nossa atenção foi desviada por uma série de gritos horripilantes.

Brancas avançam na sexta:


Alguém precisa atravessar a torrente até que a água cubra sua cabeça.
Perto do fim o cansaço pesa, a mão treme, a vista fraqueja e a mente
simplesmente recusa-se a continuar a narrativa.
Qual o propósito de prosseguir com este grotesco relato de sangue e dor?
Por que motivo devo novamente descer as escadas junto com Teixeira? Que
razão posso ter para reentrar no salão romano e presenciar todo aquele horror
acontecendo uma vez mais?
Concedo a mim mesmo essa folga. Podem chamar de licença poética. Não
irá fazer muita diferença. Vou contar essa parte da história como ela aconteceu,
com uma pequena diferença.
O inspetor Teixeira desceu sozinho para investigar a origem dos gritos. Eu
fiquei ali seguro, na reclusão de meu escritório. Fiquei tomando conta de
Ágata/Regina. Fiquei velando os gêmeos. Fiquei bebendo meu uísque,
cuidando de minha vida. Fiquei roendo o sabugo das unhas que tinha acabado
de limpar.
Ao cabo de algum tempo o inspetor retornou, sozinho. Somente ele parecia
ter envelhecido meia dúzia de anos naqueles poucos minutos. De alguma forma
conseguiu encontrar sem minha ajuda os frascos de loló e as cartelas de cavalo
do cão. Com a mão extra trazia o imenso borrifador de jardinagem.
Ajudei Teixeira a moer as pílulas de cetamina. Minhas mãos não estavam
tremendo, nem meu estômago estava se contraindo em espasmos nervosos.
Executei a tarefa com mecânica indiferença, sem ser perturbado pelas cenas que
só Teixeira havia presenciado.
Os comprimidos de cavalo do cão viraram uma farinha esbranquiçada, que
jogamos dentro dos dois frascos de loló, que sacudimos antes de entornar no
recipiente do borrifador. Depois o inspetor esvaziou dentro do recipiente os
dois outros frascos de vidro marrom contendo as substâncias puras.
O inspetor iniciou as monótonas cento e oito repetições do mantra de
exorcismo. Acompanhei a recitação com a consciência tranquila e atenta às
palavras do mantra. Em nenhum momento a minha mente foi tumultuada pela
invasão de sangrentas cenas de sexo, mutilação e canibalismo.
CAPÍTULO 30 – LUZ

Cuidar da vaca traz boa fortuna.


O que brilha ergue-se duas vezes: assim o homem superior, ao perpetuar o seu brilho, ilumina
os quatro cantos do mundo.
(I Ching – hexagrama 30)

Enquanto fazíamos os preparativos para a tomada do carro-forte, tivemos


uma oportunidade ou três de conhecer um pouco da nova personalidade da
bem-amada do inspetor Teixeira.
“Caralho, que gritaria dos infernos é essa aí embaixo? E vocês dois estão
mais brancos que um pau de dinamarquês, que putaria está acontecendo aqui?
E por que demoraram tanto? Eu já estava me cagando de medo trancada aqui
nesse mausoléu, com esses dois gêmeos do inferno. E já estou até vendo que
ninguém vai querer pagar o meu cachê.”
Aparentemente ela havia mantido as recordações do período que passou
como Ágata, ainda que de modo caótico.
“É estranho pra caralho voltar a ser eu. Parece que passou tanto tempo, que
eu já nem sabia mais quem eu era. Putaquepariu, muito foda! Mas podem
contar comigo, vocês dois. Sei que estão tentando fazer a coisa certa aqui. E
principalmente você, gatão. Não vou esquecer o que fez por mim.”
Seus sentimentos por Teixeira estavam curiosamente misturados.
“Sinto muito, gatão. De verdade mesmo. Mas nem fodendo eu conseguiria
ser essa mulher que você vai ficar esperando que eu seja. Ela é Amélia demais
para mim.”
O inspetor fingiu que seu coração não estava partido. Tinha coisas mais
importantes para fazer. Estava ocupado tentando salvar o mundo.

Brancas avançam na segunda:


Luz amarela. Suprema boa sorte.

Só hoje me ocorreu que esta narrativa não poderia ficar completa sem
algumas palavras ainda sobre o I Ching.
É que hoje alguém esqueceu uma revista no refeitório. Um dos artigos até
que era bem interessante e imaginativo, embora forçasse um pouco a barra em
alguns pontos. Falava sobre as evidências de antigas civilizações muito mais
avançadas que a nossa e dos legados que elas nos deixaram. O Livro das
Mutações foi citado como uma espécie de mapa genético das potencialidades
humanas. Cada um dos hexagramas do I Ching representa um dos sessenta e
quatro aminoácidos possíveis em nosso código genético, embora desses apenas
vinte estejam atualmente manifestados na espécie humana. Estudar a
mensagem de cada hexagrama, portanto, equivale a investigar os caminhos para
a evolução individual e coletiva. Essa seria a verdadeira busca do homem superior.
O oráculo era tradicionalmente consultado na China antiga com o auxílio de
cinquenta varetas de milefólio, que eram devidamente purificadas uma a uma na
fumaça do incenso. Uma das varetas era guardada em separado, e não seria
mais utilizada durante a consulta. Essa vareta representava a consciência
individual do homem ao se deparar com os ciclos do Céu e da Terra. Sempre
achei essa parte de um simbolismo muito profundo.
Com as quarenta e nove varetas restantes, um verdadeiro bailado era
executado com as mãos, em operações de adição e subtração, até que fossem
obtidas seis séries de três números mágicos. Cada série de três era somada
individualmente, e a soma dava sempre um dos quatro resultados: 6, 7, 8 ou 9.
Esses resultados correspondem às quatro possibilidades de linhas no
hexagrama: yin ou yang, fixa ou móvel. E assim, após somar as seis séries de
três números e desenhar a linha correspondente, aparecia o hexagrama que
trazia a resposta.

Esta é a lista completa dos sessenta e quatro hexagramas, tal como


codificados pelo Rei Wen, em ordem crescente, do 1 ao 64, de cima para baixo,
da direita para a esquerda. Também é possível representar os hexagramas de
outra forma, como por exemplo ao substituir as linhas yin e yang pelas casas
pretas e brancas do tabuleiro.
Um método relativamente mais recente simplificou bastante a consulta ao
oráculo, substituindo as varetas de milefólio por três moedas. Existem belas
moedas chinesas apropriadas para a consulta, mas é possível jogar o I Ching
também com moedas comuns. É possível jogar até mesmo com moedas da
Fábrica, só um pouco mais difícil, pois quase não há diferença perceptível entre
os dois lados da moeda nesse caso.
Hoje, quem quiser consultar o I Ching só precisa fazer a sua pergunta
mentalmente ou em voz alta e em seguida jogar as três moedas seis vezes
seguidas. Basta atribuir o valor de 2 para a cara e 3 para a coroa, ou vice-versa, e
somar o valor das faces que estiverem para cima a cada uma das seis jogadas.
Como são três moedas e o valor de cada só pode ser 2 ou 3, a soma
inevitavelmente vai dar 6, 7, 8 ou 9. Exatamente os mesmos resultados que
seriam obtidos após complicadas operações com as varetas de milefólio.
Daí é só substituir cada um dos seis resultados pela linha equivalente:
6 = -x- (yin móvel)
7 = --- (yang fixa)
8 = -- (yin fixa)
9 = -o- (yang móvel)
E está pronto o desenho do hexagrama. Para quem achar que o método das
moedas ainda é complicado, já é possível consultar o I Ching on-line, acessível
a um clique na Internet. O Livro das Mutações nunca esteve tão disponível para
os olhos e mentes do mundo.
Hoje, depois que as provações cruciais foram enfrentadas e me resta como
última tarefa na terra ser o seu indigno narrador, esse é um pensamento que
consegue me proporcionar algum mísero consolo.
Sinto o eco de uma esperança ao pensar que o acesso ao I Ching é cada vez
mais comum. Mais dia menos dia, algo como Isaac vai acabar surgindo de
novo.
CAPÍTULO 14 – GRANDES POSSES

Grandes Posses. Supremo sucesso.


Fogo acima do céu: assim o homem superior afasta o mal e incentiva o bem, obedecendo à
benevolente vontade celestial.
(I Ching – hexagrama 14)

Uma coisa que sempre me causa espanto, quando penso a respeito, é a


naturalidade de Teixeira diante daqueles insólitos acontecimentos. Ele parecia
simplesmente reconhecer a presença do mal e a necessidade de combatê-lo.
Todo o resto era supérfluo, informação de importância secundária. O inspetor
Teixeira, sim, era essencialmente um homem de ação.
Eu, por outro lado, até hoje me perco em um labirinto de improbabilidades
quando tento entender o que aconteceu naquela noite. A mera enunciação dos
fatos em sequência é tarefa extenuante, deixa minha cabeça zonza. O que
aconteceu antes do que? O que foi causa e o que foi efeito? O ovo ou a
galinha?
No esforço de mergulhar nos mares profundos das memórias, provoquei
um abalo sísmico em minha própria personalidade. Dilapidado e esgotado de
cansaço, o tecido da realidade vai se dissolvendo pela força passiva de minha
incrédula contemplação. É inevitável a sensação de que estou contando
acontecimentos ocorridos durante um sonho.
Para começar, o onírico plano dos gêmeos. Conhecendo os dois como eu
conhecia, pude interpretar e compreender melhor cada um de seus atos durante
o sincronicídio, e também vi como essa palavra presta-se a múltiplas
interpretações. Pois os gêmeos planejavam me matar de diversas maneiras
diferentes. Em algumas, eles obtiveram sucesso. Eles conseguiram exterminar
completamente todos os meus negócios com as drogas naquela única noite. E
minha até então inatacável imagem pública acabaria por ficar bastante
arranhada, depois que viessem à tona as conexões da Júpiter Transportes com o
narcotráfico em Rio Santo.
Mesmo sendo a parte ofendida, não posso deixar de admirar o modo como
o tempo todo cada ato dos gêmeos estava voltado para um fim duplo. As
mortes na suíte cinco e o massacre na churrascaria foram os preâmbulos da
grande guerra das drogas que eclodiu na cidade. Ao mesmo tempo, foram pistas
que conduziram o inspetor Teixeira até mim, para que ele consumasse o ato
que os gêmeos esperavam que ele cometesse: o assassinato do próprio pai.
Como o inspetor recusou-se a cumprir o papel do parricida, e ainda acabou
matando Kim na barganha, Júlia optou pela solução definitiva do suicídio. Com
isso, conseguiu concluir o objetivo principal de seu bizarro plano: colocar em
ação um autêntico sincronicídio.
Estávamos tendo a aula prática de sincronicídio naquela noite. Depois é que
fui costurando teorias para tentar vestir os fatos com ao menos algum farrapo
de explicação. Como por exemplo, toda essa questão a respeito do Karma.
Até aquela noite, para mim tudo não passava de conjecturas etílicas de
Mario Bodoni, por mais interessantes, nada além de uma boa conversa de bar.
E então subitamente essas informações que il Dottore balbuciou entre goles de
uísque passaram a ser de importância vital para mim.
Eu disse subitamente, mas percebo que houve dois momentos sequenciais em
que isso aconteceu. É possível algo ocorrer de modo súbito e por etapas?
O primeiro momento foi a revelação pavorosa. Foi quando pela primeira
vez tive realmente medo de que toda aquela falação de Mario Bodoni no bar do
hotel Émile pudesse ser mesmo verdade. Tive esse terrível insight quando
conversava com Teixeira no escritório, logo depois que ele invadiu a minha
festa, antes dos gêmeos invadirem a festa dele. Foi quando num acesso de
ansiedade perguntei ao inspetor, a quem eu não podia chamar de filho, se havia
visto um carro-forte pelas redondezas. Nesse exato instante, comecei a
acreditar.
Menos de uma hora depois, minha crença recém-nascida transformava-se
em fé madura, quando o suicídio de Júlia ativou as moedas em meu cofre e
certamente também no carro-forte parado defronte à casa. Esse foi o segundo e
súbito momento, uma surpresa interna, como uma explosão imensa que só
acontece dentro do peito.
A verdade é que o inspetor Teixeira não teve pleno êxito em seus esforços
para me libertar do jugo da Fábrica. A simbiose estabelecida com as moedas vai
se tornando mais profunda com o passar do tempo, e mais ainda ao se passar
do cobre para a prata e desta para o ouro. As conexões do ouro estavam
arraigadas até mesmo no nível do córtex frontal.
Quando meu filho arrancou vinte centímetros de um fino fio dourado de
dentro de minha coluna, sem dúvida alguma danificou seriamente o sistema de
suporte de vida da moeda. Mas não chegou a matá-la, a torná-la definitivamente
inoperante. A prova disso tive quando as moedas começaram a ferver em seu
transe alquímico, logo em seguida à morte de Júlia. Pois senti no mais íntimo a
sua fome e regozijo, a agonia e o êxtase das moedas.

Brancas avançam na quinta:


Aquele cuja verdade é acessível, mas também dignificada, tem boa fortuna.

Hoje alguém esqueceu uma revista no refeitório. Os pacientes vivem


fazendo isso, esquecendo suas coisas. É uma revista de atualidades, boa para
passar o tempo que agora tenho de sobra. Curiosamente, um dos artigos fala
sobre o I Ching, que é apresentado como um valioso tesouro da antiga
civilização chinesa que chegou até nós.
Foi uma coincidência ter encontrado essa revista. Depois vou ler com
calma.
CAPÍTULO 1 – CRIATIVIDADE

A Criatividade promove sublime sucesso, avançando através da perseverança.


O movimento do céu é cheio de poder. assim o homem superior torna-se forte e incansável.
(I Ching – hexagrama 1)

Hoje finalmente entendi tudo, tudo, tudo.


Depois do café da manhã fomos tomar banho de sol. Levei comigo a revista
que encontrei no refeitório. Ou não. Sinceramente, não me lembro ao certo.
Isso tem importância?
Um passo depois do outro no jardim, debaixo do sol da manhã. E de
repente a revelação.
É triste, é trágico mesmo. Ter vivido quase uma vida inteira sem
compreender as minhas próprias motivações. É possível chamar isso de viver?
É trágico, é terrível. Agora que sei de tudo, é tarde demais. Mas o que eu
poderia ter feito de diferente?
Servi à Fábrica com o melhor de meu talento, de meu intelecto, de minha
energia vital. Ajudei ativamente a transformar seres humanos em escravos
como eu. Vendi minha própria alma, e a de terceiros, em troca de um sonho
vão de poder e riqueza. Acumulei um pesado fardo de pecados para acelerar
uma nova idade das trevas.
Régis Vale, ao contemplar a Roda da Existência Cíclica tatuada nas costas de
seu companheiro de cela, talvez tenha tido um vislumbre da verdade. Os
motores da Fábrica são os impulsos enganadores da aversão e do desejo, que
transformam seus objetos em fantasmas e sereias feitores de escravos. A
Fábrica idolatra o porco da ignorância.
O mundo foi resumido ao sexo e à morte. Um ato de luxúria cega nos traz
ao mundo, e outro de nublada violência nos tira dele. A Fábrica serve aos
demônios devoradores de carne humana, aos monstros do abismo, aos
torturadores da alma.
Que Deus me perdoe.

Pretas avançam na primeira:


Dragão oculto. Não aja.

Foi Júlia quem forneceu a pista para a elucidação, instantes antes de morrer:
“O Grande Ferreiro será restaurado ao seu legítimo trono. O deus do metal reinará supremo.
O mar negro de sangue banhará a longa noite de Varuna, o rei das serpentes.”
Aquelas palavras me intrigaram e muito. Tudo indicava que não passavam
de delírios, imagens desconexas que o cérebro moribundo de Júlia formou
enquanto era tomado pelo veneno. Ainda assim, ainda assim. Não era o tipo de
coisa que se esquece facilmente. E olhe que ultimamente não tenho confiado
tanto na memória.
Depois dessa fala final de Júlia algo ficou voltando o tempo todo à minha
mente: aquelas três cabeças de serpente na logomarca da Copper, Silver & Gold.
Pesquisei bastante até juntar todas as peças do quebra-cabeça. Por sorte, aqui
tenho acesso à Internet.
Pelo que entendi, a história começa em tempos remotos, anteriores aos
registros históricos. Tudo gira em torno de Varuna, o demônio arquiteto e
ferreiro, que por conta de seu conhecimento ilimitado tornou-se o primeiro rei
dos deuses védicos.
Seu reinado foi colocado em risco quando uma terrível criatura surgiu,
ameaçando exterminar toda a vida no Universo. Graças a uma antiga profecia,
era sabido por todos que Varuna jamais poderia derrotar o monstro. O único
capaz de fazê-lo era um deus ainda não nascido: Indra, aquele destinado a
usurpar o trono de Varuna.
O rei dos deuses preferia condenar o mundo inteiro à extinção a abrir mão
de seu poder. Tentou por todos os meios impedir o nascimento de Indra, mas
foi inútil. Indra, que assim como o grego Zeus era capaz de domar os raios,
rapidamente derrotou a besta. Sua segunda ação foi depor Varuna de seu trono
e sagrar-se o novo rei do paraíso celestial.
E foi assim que o sábio e inventivo Varuna, que havia ordenado os próprios
ciclos do Sol e também as fases da Lua, viu-se relegado à metade escura do céu,
ao papel secundário de senhor da noite. Desde então passou a representar o
lado escuro do Sol. Foi sendo progressivamente esquecido pelos inconstantes
humanos, mas não por seus mais devotados servos, os Nagas.
Seres dotados de vida incomensuravelmente longa, os Nagas geralmente
assumem a forma de uma imensa cobra rei. Essa cobra pode ter uma ou várias
cabeças. Ou então aparecem metade como serpente, metade como ser humano.
Com sua astúcia reptiliana, também podem se disfarçar como homens e
mulheres e caminhar despercebidos entre os humanos de vida curta. Quando
Varuna foi deposto de seu trono celeste por Indra, aquele que matou o grande
monstro, os Nagas foram dispersos pelos quatro cantos da Terra. E desde
então buscam secretamente promover o retorno de seu mestre à antiga glória.
Júlia, estou certo, travou contato pessoal com um dos Nagas, ou com uma
das Nagini, como são chamadas as fêmeas da espécie. Ao menos um deles.
Tudo considerado, não resta outra hipótese. Aconteceu em uma de suas
constantes viagens mundo afora.
Júlia realmente conheceu ao menos um dos verdadeiros acionistas da
Fábrica.

Pretas avançam na terceira:


Durante todo o dia o homem superior é criativamente ativo. Ao cair da noite sua mente ainda
está ocupada com cuidados. Perigo. Sem culpa.

Levou tempo para juntar todos os pedaços de informação. Não sei o que
teria sido de mim sem a Internet. Ao menos com a memória virtual posso
contar.
As últimas palavras de Júlia deram um novo sentido à minha existência após
o sincronicídio. Comecei a divisar afinal o secreto plano da Fábrica. Direi isso
da forma menos melodramática possível. O objetivo da Fábrica é gerar
artificialmente algo que podemos chamar de condições de Kali Yuga.
A maioria das pessoas hoje acredita que vivemos em Kali Yuga. Ao menos,
a maioria das pessoas que já ouviu falar em Kali Yuga.
Yugas são como Eras ou Idades, níveis de evolução que o homem alcança
de acordo com a posição do Sol com relação ao centro da galáxia.
A Terra leva um dia para girar em torno de si mesma, e um ano para girar
em torno do Sol. Mas o Sol também gira em torno de outra estrela, chamada
Alcione, e leva cerca de vinte e quatro mil anos terrestres para completar uma
única volta. As Yugas são divisões desiguais dessa órbita do Sol ao redor de
Alcione, considerando a proximidade do sistema solar do centro da Via Láctea.
Durante a Kali Yuga o Sol está no ponto mais distante de sua trajetória, o
que gera a predominância das trevas. É a chamada Idade do Ferro, quando a
maioria das pessoas só consegue perceber os aspectos mais grosseiros e
materiais da existência. A luta pela sobrevivência é uma constante e o poder
está centrado na mão dos homens.
A era seguinte é a Dwapara Yuga ou Idade do Bronze, quando o Sol
aproxima-se do centro da galáxia a ponto de deixar a luz e as trevas em
igualdade de condições, meio a meio. É a época do florescimento da ciência,
que explica fenômenos não materiais como a eletricidade e o magnetismo.
Surgem inventos que revelam a natureza ilusória da distância, trazendo o longe
para perto e o perto para longe. Essa era é caracterizada também pela ascensão
das mulheres ao poder.
A Treta Yuga, ou Idade de Prata, tem início quando a luz começa a
sobrepujar a escuridão. É uma era de grande harmonia, quando a humanidade
explora quase a totalidade de suas capacidades mentais, e fenômenos como a
telepatia e a clarividência são comuns.
Finalmente, durante a Satya Yuga, período em que o Sol está mais próximo
do centro da galáxia, a humanidade experimenta uma intensa e prolongada
felicidade coletiva, decorrente da alta espiritualidade existente. Não é à toa que
esta era é chamada de Idade de Ouro.
Ao chegar ao zênite, o Sol começa a declinar. Isso é inevitável. Ao ciclo de
ascensão segue-se a lenta e inexorável decadência, à medida que o Sol
novamente afasta-se do centro da galáxia. Gradualmente os sentidos da
humanidade vão se embotando, as faculdades diminuindo, as capacidades
motivadas cada vez mais pelos instintos primitivos do medo e da luxúria. Até
que o fundo do poço seja alcançado e um novo ciclo de ascensão se inicie.
Pois muito bem. Por um erro de interpretação, cometido justamente em um
momento quando o pensamento estava mais reduzido, as Yugas foram
calculadas em termos de centenas de milhares de anos. De acordo com essa
interpretação, estaríamos vivendo os primeiros dez ou vinte mil anos dos mais
de quatrocentos mil que ainda restariam da Kali Yuga. Essa sinistra e errônea
perspectiva, que foge a qualquer escala humana possível, passou a vigorar
durante a verdadeira Kali Yuga, que teve seu ponto mais baixo por volta do ano
500 depois de Cristo.
O erro foi detectado por um sábio monge indiano chamado Swami Sri
Yukteswar, que registrou suas descobertas no livro intitulado A Ciência Sagrada.
Segundo Sri Yukteswar, a Kali Yuga em sua fase descendente durou “apenas”
mil e duzentos anos, tendo começado por volta do ano 700 antes de Cristo. Em
500 d.C., o nosso sistema solar atingiu o ponto mais distante do centro da
galáxia, com o consequente obscurecimento máximo das consciências nesse
período. Basta observar a história da humanidade para perceber como essas
ideias fazem sentido. Não foi à toa que esse período foi chamado pelos
historiadores de Idade das Trevas.
A partir daí, continua explicando o sábio guru, teve início um novo ciclo de
mil e duzentos anos de Kali Yuga, mas desta vez ascendente, com a lenta
aproximação do Sol com o centro da Via Láctea. A Kali Yuga afinal foi
cumprida em torno de 1700, Anno Domini. Não por acaso, nem por
coincidência, por essa época começaram as primeiras experiências com a
eletricidade e o magnetismo. Estava começando para a humanidade a fase
ascendente de Dwapara Yuga, a Idade do Bronze.
É nessa época que estamos vivendo agora, por volta do ano trezentos e
tanto de Dwapara Yuga. Essa descoberta, que livra a humanidade da
possibilidade de centenas de milhares de anos de sofrimento e ignorância,
deveria ser considerada uma das maiores contribuições científicas de todos os
tempos. Por que, então, quase ninguém ouviu falar dela?
O que Swami Sri Yukteswar não chega a mencionar em seu livro é a
existência de forças antagônicas à ascensão da consciência humana, forças essas
que têm agido com sucesso para manter a humanidade na crença de que
vivemos no pior de todos os tempos. O grande sábio não chega a citar a
Fábrica.

Pretas avançam na sexta:


O dragão arrogante terá motivos para se arrepender.

Admito que essas seriam especulações e conjecturas infundadas se fossem


baseadas apenas no sutil indício das três serpentes entrelaçadas (ou uma única
serpente de três cabeças?) no logotipo da CSG, ou tão somente no testemunho
das delirantes últimas palavras de Júlia. Houve um bom motivo para que isso
tudo fizesse sentido para mim. Já chegaremos lá.
De qualquer forma essa é uma boa hipótese, pois explica uma variedade de
pequenas coisas. Que outra ligação melhor poderia existir entre cobras
humanas e metais vivos, que a imagem de Varuna, o deus ferreiro que é
também rei das serpentes?
O que complica muito qualquer tentativa de formular uma teoria decente é
minha absoluta ignorância a respeito da real natureza das moedas. Passei a
maior parte de minha vida escravizado por elas, e até hoje desconheço o que
são de fato.
Só sei que as moedas não surgiram recentemente na história da humanidade.
Muito pelo contrário, sua origem remonta ao próprio começo da civilização. A
partir do momento em que o homem tornou-se capaz de fundir e moldar o
metal, as moedas passaram a fazer parte de sua vida. Ostensivamente, como
instrumento de troca e de acumulação de riquezas. E também de uma forma
secreta e maligna, quase nunca mencionada, mas sempre intuída pelos mais
sensíveis ao longo dos tempos.
Não pode ser por acaso que os primeiros ferreiros da humanidade tenham
vivido cercados por uma aura de tabu e mistério. Suas oficinas eram
obrigatoriamente localizadas em pontos ermos das primitivas aldeias, o que
impedia o acesso de estranhos aos segredos do ofício. Muitas superstições
passaram a ser associadas à imagem do ferreiro, e inúmeros foram os cultos
secretos e rituais mágicos ligados à arte da metalurgia. E foi assim que as
moedas passaram a fazer parte do cotidiano da humanidade. Tanto as comuns,
quanto as que só alguns enxergavam.
Imagino que as primeiras contratações foram conduzidas diretamente pelos
Nagas. Essas moedas especiais foram utilizadas por um número muito restrito
de pessoas ao longo dos séculos, até bem recentemente. Eu mesmo fui
contratado durante a década de 1980, e desde então acompanhei e fui parte
ativa no crescimento exponencial no número de portadores de moedas. Creio
que essa grande expansão teve início justamente na época de minha
contratação.
Recentemente, em uma de minhas tantas pesquisas na Internet, deparei-me
com alguns vídeos sobre o fenômeno dos crop circles ou agroglifos, os intrigantes
desenhos que surgem aparentemente do nada em campos e plantações ao redor
do mundo, com uma impressionante concentração nos chamados territórios
sagrados da Inglaterra. Nunca dei muita importância ao fenômeno
anteriormente, mas fiquei perplexo ao descobrir que os crop circles começaram a
aparecer justamente no início dos anos 80. Às vezes acredito firmemente que
não foi por coincidência.
Sim, eu sei. A trama parece insana demais, absurda, completamente
inverossímil. No entanto a vida está aí, a realidade está aí, a cada dia, cada vez
mais inacreditável. O que mais posso dizer?
Muitas lacunas ainda precisam ser preenchidas, mas o que sei já é suficiente
para turbar as parcas horas de sono que me restam.
Conduzida pelos Nagas, que arquitetam o retorno de Varuna, a Fábrica
promove uma autêntica Karmificina, cujo objetivo é reproduzir artificialmente as
condições de Kali Yuga. Esse é um plano que aguardou séculos para ser posto
em prática. Por motivos ignorados, somente nas últimas décadas a expansão
das moedas passou a ocorrer em um ritmo cada vez mais vertiginoso. Os
motivos são desconhecidos, mas as consequências não tardaram a aparecer.
A multiplicação desenfreada das moedas tornou possível o sincronicídio. O
futuro me parece muito sombrio quando penso nisso.
CAPÍTULO 47 – ADVERSIDADE

O grande homem traz boa fortuna. Sem culpa. Quando alguém tem algo a
dizer, não é acreditado.
Não há água no lago. Assim o homem superior arrisca a vida ao cumprir sua vontade.
(I Ching – hexagrama 47)

O inspetor Teixeira olhou novamente através da janela de meu escritório.


“Está lá ainda. O carro-forte.”
Ele voltou a sentar no sofá ao lado de Reginágata. E então terminou de
explicar o que queria que ela fizesse. Enquanto pacientemente assistia à cena, eu
perguntava a mim mesmo quanto tempo duraria o efeito do Roque. Fiquei
curioso para saber o que aconteceria quando a moeda daquela mulher voltasse a
funcionar normalmente.
O mais provável é que seu condicionamento seria reativado de imediato.
Em uma fração de segundo, sumiria a boca suja e autêntica Regina. Voltaríamos
a conviver com a bidimensional e mais linda ainda por esse mesmo e exato
motivo, Ágata. A amada do inspetor Teixeira, abruptamente de volta ao
comando da personalidade.
Por um momento pensei em comentar isso em voz alta. Mas logo desisti da
ideia. Teixeira provavelmente iria querer parar tudo para tirar a moeda da moça
na base do canivete.
Já estávamos prontos para descer. Ele me pediu que eu o ajudasse
carregando o borrifador de jardinagem com o loló bento para o andar de baixo.
E então dirigiu um último olhar para os corpos dos gêmeos sobre o tapete.
Nesse momento eu disse:
“Uma vez que vamos enfrentar esses caras do carro-forte”, e engoli em seco
antes de continuar. Nem eu mesmo estava acreditando em minha própria
coragem. “E eles obviamente devem estar armados, então gostaria de ter uma
arma também, por segurança.”
Ele ficou me olhando por um tempo. Então, sem dizer nada, passou para
minha mão a 765. Sorri agradecido. O inspetor Teixeira estava realmente
confiando em mim.

Brancas avançam na primeira:


Alguém em adversidade senta-se sob uma árvore nua. Entra em um vale sombrio. Por três
anos não verá nada.

Enfim abandonamos de vez o escritório. Teixeira saiu na frente, seguido por


Regina. Eu fechava a fila.
Encontramos o primeiro cadáver ao chegar às escadas. Era Cesário. Fitei
com tristeza aquele corpo descomposto, com as calças arriadas e os genitais à
mostra. O rosto estava roxo e congestionado. Ele usou a própria gravata
amarrada no corrimão da escada para se enforcar. Imagino que ele subiu as
escadas no intuito de se proteger do que estava acontecendo nos salões, mas
acabou sucumbindo aos apelos de sexo e morticínio que emanavam do carro-
forte. Por estar sozinho no momento em que o desejo tornou-se mais intenso
que o instinto de preservação, recorreu em uma inspiração de momento à
perigosa prática da asfixiofilia, que tantos tem matado por acidente. Pobre
Cesário, fiel Cesário. Acho que nem chegou a gozar antes de morrer.
Desnecessário dizer que o inspetor Teixeira já estava de pistola em punho.
Imitei o seu exemplo.
“Fiquem perto de mim”, ele disse antes de começar a descer os degraus da
escada. “A coisa deve estar mais feia do que nunca lá embaixo.”

Pretas avançam na segunda:


Alguém na adversidade em meio à comida e à bebida. O homem de joelheiras escarlates está
chegando. É propício oferecer um sacrifício. Seguir adiante trará infortúnio.

Qual é o sabor da violência? Que gosto tem? Por que parece ser tão
agradável para nossa espécie? A que necessidade atende? De onde vem essa
fome?
Violência ficcionalizada e estilizada vende muito bem, cada vez mais. Uma
pessoa civilizada consome em média, ao longo da vida, mais de dez mil horas
assistindo aos chamados filmes de ação, sem contar o tempo gasto com a
violência nos telejornais, novelas e desenhos animados. Se for um pouco mais
letrada, ao fim da vida terá lido em média mais de cinquenta mil páginas
dedicadas de um jeito ou de outro à violência ficcional, para não mencionar as
incontáveis páginas de jornais e periódicos consagrados à divulgação da
violência.
Já a violência real e ao vivo encontra um número bem menor de adeptos,
relativamente falando. A maioria das pessoas recuaria com horror e desgosto se
viesse a presenciar pessoalmente alguma das cenas que gosta de assistir
comendo pipocas diante da tevê.
Por outro lado, existem pessoas que não só se comprazem em testemunhar
atos de violência, como sobretudo em perpetrá-los. Júlia e Kim faziam parte
desse grupo mais seleto. Eu, não.
Precisávamos atravessar o salão romano para chegar à entrada da casa. Por
sorte, a maioria das pessoas já estava morta àquela altura, e sobraram só uns
poucos agonizantes. Mataram-se uns aos outros, com mordidas e dentadas.
Não sei que gosto eles provaram, o sabor da carne crua de seus semelhantes. A
única vez que comi, fazia tempo, estava bem cozida.
Eu só podia falar, portanto, do cheiro da violência extrema no salão
romano. Era um odor meio doce e meio amargo, mistura de sangue e fezes. O
sangue espalhava-se espesso e grosso por todo o chão e até nas paredes,
coagulava-se em poças, grudava nos sapatos. Houve um momento em que
tropecei devido ao peso do borrifador, e fiquei com os joelhos carimbados de
sangue. O cheiro de merda vinha das vísceras abertas e mastigadas.
A catarse da morte alcançara um diapasão altíssimo. Meu salão romano
havia se transformado em uma antecâmara do inferno.

Brancas avançam na terceira:


Um homem se permite ser oprimido pela rocha, e apoia-se em espinhos e cardos. Ele entra em
casa e não vê sua esposa. Infortúnio.

Afinal chegamos à porta de casa.


Teixeira espiou pelo postigo.
O carro-forte estava parado pouco mais de dez metros adiante, bem na
frente do portão gradeado, ocupando parcialmente a visão que se tinha da rua.
O inspetor revisou mais uma vez o plano.
Ele iria sair pelos fundos da casa e se esgueirar pelo jardim até alcançar a
porta de serviço que dava para uma rua lateral.
Eu deveria ficar monitorando o carro-forte durante dez minutos contados
no relógio.
E então seria a vez da Dama.
Não me considerava nem um pouco pronto.
As palmas das mãos estavam frias, e as têmporas gotejavam um gélido suor.
Sentia o estômago pesado, querendo ser esvaziado.
Minhas pernas tremiam.
Fiz o possível para que Teixeira não notasse.
Não queria que ele pensasse que eu era um covarde.
Meu filho olhou para a mulher por um breve momento de intensa ternura.
Olhava para Regina, mas enxergava a outra.
Certamente desejava tomá-la nos braços, beijar os seus lábios e depois fazer
doces juras de amor.
Mas limitou-se a acenar de leve com a cabeça, e então desviar o olhar
obliquamente em minha direção.
“Boa sorte a todos”, murmurou antes de sair.
CAPÍTULO 49 – REVOLUÇÃO

Só se crê na Revolução no dia em que ela acontece.


Fogo dentro do lago. Assim o homem superior coloca o calendário em ordem e clarifica as
estações.
(I Ching – hexagrama 49)

Depois que o Teixeira sumiu de vista, instalou-se um silêncio tenso entre


mim e a mulher. O que poderíamos dizer um para o outro naquele momento?
Eu não era o marido que ela odiava e traía.
Ela era a puta que meu filho amava.
Tentei me manter ocupado cumprindo a tarefa que me cabia. Mas vigiar os
ponteiros do relógio é uma tarefa angustiante para a psique humana.
O carro-forte não se mexia. Continuava parado, inerte. Como se estivesse
desocupado.
Minha mente oscilante visitou diversos lugares desagradáveis. A um dado
momento, lembrei que nem chegamos a entrar no salão medieval ou no salão
espacial. A julgar pelo silêncio reinante, todos por lá também deviam estar
mortos.
Fiquei imaginando os tipos criativos de morte que podiam ser gerados no
salão medieval, com todos os seus apetrechos de sadomasoquismo, e no salão
espacial, com tantos brinquedos eletrônicos. Não foi uma boa ocupação, mas
ajudou o relógio a girar.
Regina ou Ágata permaneceu sempre com os olhos fixos no carro-forte.
Nem parecia notar a minha presença.
Depois de muito tempo, passaram-se nove minutos.
Limpei a garganta, contrafeito, antes de dizer:
“Já pode tirar a roupa, se quiser.”

Brancas avançam na segunda:


Quando o dia de alguém chega, é possível criar revolução. Começar algo traz boa sorte.

O portão gradeado foi acionado por controle remoto. A grade de metal


pintado de negro deslizou sobre seu trilho para liberar a passagem.
A porta da casa se abriu e a mulher saltou para o jardim. Quando seus pés
descalços tocaram o chão, soltou um gemido alto, uma nota aguda e longa,
quase um grito. E se pôs a correr na direção do portão gradeado já a meio
caminho de ficar totalmente aberto. Passou sem se deter pela fonte com os
golfinhos em seu salto congelado, tão nus quanto ela mesma.
Mulheres de seios grandes sofrem uma desvantagem ao correrem nuas. Ela
resolveu parcialmente o incômodo estendendo o braço protetor por cima do
peito, como um cinto de segurança. O outro braço ia cruzado ao longo do
corpo, de modo que a mão pudesse lhe cobrir o sexo. Correndo em fuga pelo
jardim, tão nua e recatada, parecia-se não com Eva, mas com Lilith, a primeira
esposa de Adão, que sozinha teve que deixar o paraíso.
Isso na minha imaginação. Pois de meu posto por detrás das cortinas tudo o
que se podia ver era a mulher nua de costas, afastando-se, e o par de glúteos
carnudos se roçando.
Ela não podia ir muito rápido, com os braços posicionados daquela forma.
Mas também não diminuiu a corrida em nenhum momento. E a distância era
curta. Passou pelo portão já totalmente aberto em velocidade constante. Só
parou quando literalmente deu com os peitos no carro-forte.

Pretas avançam na quarta:


Os homens acreditam nele. É propício mudar a forma de governo.

A mulher correu para a frente do carro. Esmurrava o para-brisa


freneticamente, já sem a menor preocupação em ocultar sua exuberante nudez.
“Abram a porta! Por tudo que é mais sagrado! Deixem-me entrar! Eu faço
qualquer coisa.”
Ela parecia mesmo desesperada. Por dois ou três minutos continuou
socando a janela dianteira do carro-forte, de um jeito que me fez pensar no
Lobo Mau tentando arrombar a casa dos três porquinhos.
Afinal se cansou. Apoiou as mãos espalmadas no para-brisa, os peitos
amassados contra o vidro.
“Por favor, deixem-me entrar.” Estava totalmente esquecida de si mesma,
de tão entregue ao papel.
Eu nunca acreditei que aquele plano maluco pudesse dar certo.
Esperava que a qualquer momento os guardiões do carro-forte fuzilassem a
mulher.
Ou então que simplesmente passassem por cima dela com o carro.
E então Teixeira iria sair de seu esconderijo, ensandecido, encegueirado pelo
desejo de vingança.
E seria massacrado.
Mas não.
O que aconteceu foi que ao cabo de alguns minutos a porta lateral do carro-
forte se abriu, com um clique seco que acreditei ouvir mesmo à distância segura
de meu posto de observação.
Um homem forte, metido em um uniforme de segurança, meteu um pé para
fora do carro.
Portava uma escopeta, cujo cano estava voltado na direção da mulher nua.
Foi só colocar o segundo pé no chão e já sentia a ponto 40 do inspetor fazer
contato com a sua têmpora.

Pretas avançam na quinta:


O homem superior muda como o tigre. Mesmo antes de consultar o oráculo ele já está bem
acreditado.

“Jogue a arma no chão agora. E você aí, dentro do carro, nem pense em
fazer nada. Ninguém aqui precisa ter pressa para morrer.”
O inspetor havia girado o corpo de forma a posicionar o vigilante rendido
como um escudo diante da porta aberta do carro-forte. Sua voz soou firme,
segura. Parecia dotado de uma autoridade inquestionável. Teixeira pressionou
com mais força o cano da pistola na cabeça do vigilante, gesto eloquente de que
não haveria desperdício de palavras. A escopeta fez clique claque ao bater no
chão da calçada em frente ao portão. Teixeira chutou a arma na direção da
mulher nua. Ela empunhou a escopeta com naturalidade e foi para junto do
policial.
O inspetor olhou para trás e acenou inequivocamente em minha direção.
Ele estava me chamando. Eu tinha que ir. Quando cheguei ao portão, um
segundo vigilante havia saído do carro, com as mãos para cima. Era uma
mulher. Aparentemente, era ela quem estava dirigindo.
Os dois seguranças rendidos me fitaram com curiosidade. Senti um calafrio
correr pelo meu corpo. Havia algo de primitivo no olhar daqueles dois, algo de
animalesco. Não eram olhos humanos. Eram olhos felinos, predatórios.
O inspetor e sua companheira não podiam estar vendo o que eu via. Não
era possível que estivessem enxergando aqueles olhos terríveis. Pois teriam
saído correndo de medo. Ou ao menos teriam imediatamente descarregado suas
armas nos dois seguranças.
“O que é que você tem?” O inspetor perguntou, mas não estava muito
interessado no que eu pudesse responder. “Aponte sua arma para esses dois.
Não hesite em abrir fogo se eles tentarem algo.”
Hesitante, ergui a 765 na direção daqueles olhos. Não foi impressão minha.
Os dois estavam sorrindo para mim, enquanto Teixeira os revistava.
Docilmente, permitiram que o inspetor os acorrentasse com suas próprias
algemas.
Teixeira decidiu prender os dois temporariamente na própria cabine do
carro-forte. Antes de voltar para o carro, a mulher algemada virou a cabeça em
minha direção. Por uma fração de segundo uma língua fina, comprida e bífida
pendeu de seus lábios, e novamente sumiu dentro da boca.
Abafei um esgar horrorizado. O reconhecimento tornava minha visão ainda
mais pavorosa. Os olhos não eram felinos, como pensei inicialmente. Agora
que a Gestalt havia se fechado, era de se admirar que eu não tivesse notado
antes.
O olhar daqueles dois era mais glacial e cruel, nitidamente reptiliano. Os
monstros não tinham olhos de gato.
Eram olhos de cobra.
CAPÍTULO 11 – PAZ

O pequeno se afasta. O grande se aproxima.


Céu e terra unidos. Assim o soberano divide e conclui o curso do céu e da terra. Ele distribui
e regula as bênçãos do céu e da terra, e assim beneficia o povo.
(I Ching – hexagrama 11)

Com as chaves que tomou dos seguranças na mão, o inspetor Teixeira


caminhou até a parte de trás do carro-forte. Ele tomou suas precauções antes
de abrir a porta, para o caso de haver um vigilante armado esperando do lado
de dentro. Mas logo se tornou claro que suas preocupações a esse respeito
foram excessivas.
Não podia haver nenhum vigilante dentro do carro-forte, por um simples
motivo. Todo o espaço disponível estava reservado para a carga.
Moedas, moedas, moedas. Imagine um carro-forte abarrotado do chão até
quase o teto de pilhas e mais pilhas de moedas de cobre, pilhas de uma altura
que desafiava o bom senso. Passe uma tarde agradável de sábado tentando
calcular o número exato de moedas no carro-forte. Eu fiz isso hoje. A minha
soma deu algo em torno de três milhões. E cada uma daquelas moedas emitia
uma fogosa luz alaranjada, prenúncio radioativo da grande mitose alquímica que
logo iniciaria.
Não sei como não caí de joelhos, em muda adoração. Fui arrancado de meu
fervor religioso ao sentir no ombro uma pata pesada. O inspetor me fitava com
um ar de zanga.
“Onde está o borrifador com a poção? Não temos um minuto a perder.”

Pretas avançam na segunda:


Sendo paciente e gentil com o inculto, atravessando o rio resolutamente, não negligenciando o
que está distante, não considerando os próprios companheiros: assim alguém consegue trilhar o
caminho do meio.

O borrifador estava onde eu o havia deixado, encostado na grade do portão.


Era pesado. Estava cheio quase até à borda.
Por um momento o mundo pareceu intensamente quieto, embalado em
silêncio profundo. Tudo o que eu podia ouvir era o leve crepitar imaginário das
moedas no cofre. A própria noite parecia arder em seu útero, queimada pelo
fogo alaranjado que lhe comia pelas beiradas. Percebi que estava amanhecendo.
Pensei ter captado a sombra de um movimento com o canto do olho. Mas
não foi nada. Se ao menos alguém tivesse passado ali naquele momento. Se ao
menos tivesse pousado algum disco voador. Mas não. Exceto por nós e pelas
moedas, a rua estava completamente deserta.
Caminhei dois ou três passos com o pesado borrifador. O inspetor ergueu
os braços em minha direção, impaciente. Coloquei o peso no chão.
“Dê alguma coisa para essa menina vestir, Alberto, pelo amor de Deus!” E
de fato ela continuava nua, aguardando submissa ao lado do inspetor. Cobria os
seios e o sexo com as mãos, agora não para pretender acanhamento, mas
simplesmente porque sentia frio. “Afinal foi ela quem salvou o dia, não é
mesmo? Veja só, a pobrezinha está tremendo.”
É claro que os olhos de Teixeira voltaram-se para sua bem-amada. Ele
chegou a dar um passo hesitante na direção dela. Sugeri, como se só naquele
momento a ideia me ocorresse: “Ela pode usar o seu casaco.”
Era uma sugestão razoável. Sem pensar muito, o inspetor decidiu obedecer.
Guardou a ponto 40 no seu coldre debaixo do braço esquerdo. E começou a
despir o casaco roto e todo sujo de sangue.
E sangue chama sangue, diz o ditado.
Esperei até que ele estivesse com o casaco passado pelo meio do braço,
dificultando seus movimentos. Avancei com a 765 em punho, apontada para
sua cabeça. Quando cheguei perto, apertei o gatilho.
Bang!
Dessa vez eu havia me certificado primeiro. A pistola estava realmente
carregada.

Pretas avançam na terceira:


Uma não planície não é seguida por uma encosta. Uma não ida não é seguida por um
retorno. Aquele que continua perseverante no perigo é sem culpa. Não se queixe dessa
verdade; aproveite a boa sorte que ainda possui.

O som do tiro rasgou o silêncio da noite. Pareceria ecoar para sempre pelas
ruelas e becos da vida, presente até mesmo aqui, nesse último recanto da
memória.
O inspetor Teixeira tentou dar mais um passo. Cambaleou, e caiu. E foi só.
Pela porta aberta do carro-forte escapou um chiado que lembrava a água
fervendo. Também parecia um gato imenso ronronando. Ou então um
crocodilo felicitando-se por uma lauta refeição.
Não ousei sequer olhar na direção da intensa luz alaranjada que também
escapava pela porta aberta do carro-forte. Sabia que se eu olhasse para as
moedas naquele momento estaria perdido. Logo estaria alegremente estourando
os miolos só para aumentar a glória daquela chama.
Talvez tenha sido por isso que decidi matar a mulher. Talvez tenha sido pelo
olhar que ela me lançou, depois que o inspetor foi ao chão. Nessa hora tive
certeza de que Ágata ainda não havia voltado.
Não havia em seus olhos o horror e o ultraje da mulher que vê o homem de
sua vida ser assassinado. Ela não me fitava com ódio, nem parecia tomada pelo
trágico sentimento de vingança. Tudo o que vi em seus olhos foi medo.
E como um cão de caça açulado pelo cheiro de sangue, senti aumentar em
mim o ímpeto homicida. Matar é fácil, e muito mais quando se tem uma arma
de fogo.
Apontei a pistola para a cara da vadia. Ágata ou Regina, matava as duas pelo
preço de uma. Qual homem nunca fantasiou matar uma mulher? O assassinato
é a experiência sexual definitiva.
Mas não cheguei a ejacular a bala. Antes que eu pudesse pressionar o
gatilho, fui tomado por um frenesi próximo ao êxtase. E então veio a dor
aniquiladora e misericordiosamente rápida.
Fui ao chão. Caí a menos de um metro do corpo do inspetor Teixeira.
A madrugada me traía. Ou então era o relógio que voltava nos próprios
passos. Não era a manhã que estava chegando. E sim a noite, que só começava.
XEQUE-MATE

Onde encontramos o começo.


CAPÍTULO 24 – RETORNO

Não há erro em ir e vir. Para frente e para trás vai o caminho. No sétimo dia
retorna. É favorável ter aonde ir.
Trovão debaixo da terra. Assim os reis de antigamente fechavam o acesso durante o solstício.
Mercadores e estrangeiros não circulavam, e o soberano não viajava através das províncias.
(I Ching – hexagrama 24)

No instante em que meus olhos se fechavam diante da mulher nua tive um vislumbre claro
e inequívoco de meu próprio futuro. Começava assim:
Até que não é um mau lugar. Tenho um quarto só meu, sempre muito bem
arrumado, sempre limpo como se fosse novo, como se fosse sempre o meu
primeiro dia dentro dele. Tenho TV a cabo, meu próprio computador, acesso à
Internet. Posso pegar quantos livros quiser na biblioteca. Não que isso tenha
qualquer serventia agora.
Estou em uma espécie de clínica psiquiátrica ou casa de repouso. Temos
sessões diárias de terapia individual e em grupo, ambas inúteis no meu caso.
Temos banhos de sol e caminhadas ao ar livre, e também quatro refeições por
dia. Essa é a parte que mais gosto.
Mas nem tudo são flores. Hoje mesmo encontrei uma revista no refeitório.
Era uma dessas revistas de divulgação científica e curiosidades. Uma das
matérias, sobre o I Ching, acabou fisgando a minha atenção. Eu estava no meio
da leitura quando um dos enfermeiros tocou de leve o meu ombro. Seu nome é
Sérgio, eu acho.
“Não se esqueça de levar sua revista com o senhor hoje, hem, seu Rogério.
Parece gostar tanto dela! Mas sempre acaba esquecendo a revista na bandeja,
junto com o prato. Se não fosse por mim, provavelmente o senhor não a veria
de volta. Hoje foi a terceira vez que guardei a revista para o senhor. Antes do
almoço, venho aqui e deixo a revista na mesa, bem em frente ao seu lugar. Mas
o senhor sempre deixa a revista na bandeja! Assim vou pensar que o senhor não
quer mais lê-la.”
Sujeitinho desagradável, esse Sérgio. Tive a impressão de que secretamente
estava se divertindo às minhas custas.
Os médicos ficaram fascinados com meu caso. O diagnóstico não foi fácil.
Julgando pelas regiões do córtex que pareciam ter sido afetadas e pelos
principais sintomas, o resultado era uma improvável mistura de Mal de
Alzheimer com Síndrome de Asperger. Chegaram à conclusão de que se tratava
de uma nova enfermidade, de uma patologia do cérebro ainda não catalogada.
Eles a chamaram de Colapso de Fulano de Tal. Pois a verdade é que esqueci o
nome do médico que assumiu a paternidade da doença, quem quiser saber que
vá procurar na Internet.
A memória foi a grande vítima. Vastas porções de minhas lembranças foram
simplesmente deletadas, como se nunca tivessem existido. Quase nada restou
da infância e adolescência. Fica a cada dia mais difícil recordar até mesmo os
fatos mais marcantes da vida. Uma bruma leitosa e indiferente vai engolindo
tudo o que sou e fui.
Tornei-me também incapaz de absorver qualquer fato novo. Depois de meia
hora, esqueço tudo. Já não sei mais o que comi no almoço. Se não tivesse
anotado, jamais lembraria dos gracejos diários do enfermeiro Sérgio. E daqui a
pouco estarei esquecendo, e só vou lembrar de novo ao ler o que acabei de
escrever. O ato de escrever como um imperfeito substituto da memória.
Toda tragédia tem seus caprichos. Enquanto áreas extensas de minhas
recordações desapareceram sem deixar vestígios, alguns pequenos nichos foram
curiosamente preservados.
Esqueci, por exemplo, tudo o que eu sabia a respeito de carros. Não sei
mais dirigir, e nem ao menos distinguir um carro do outro. No entanto, lembro
que um dia soube. De modo semelhante, também desaprendi a falar o italiano,
que já foi a minha segunda língua.
Por outro lado, conservo intactas algumas memórias totalmente irrelevantes
para minha situação atual, como o que aprendi a respeito de armas de fogo,
quais as diferenças e semelhanças entre um revólver, uma pistola e uma
metralhadora, qual o melhor uso para cada, quais os tipos de calibre, suas
vantagens e desvantagens. Lembro com nitidez também do pouco que sabia de
inglês.
Há também memórias parciais, cenas pela metade, fragmentos de
recordações recortadas pelo vazio. A julgar por certa familiaridade que sinto
com alguns termos e conceitos em sânscrito, creio que devo ter visitado a Índia
em algum momento, talvez acompanhando Bodoni, talvez em companhia dos
gêmeos. Mas da viagem em si, ou se aconteceu mesmo, não guardo lembrança.
Não estou me queixando. Sei que posso me considerar afortunado. Porque
não esqueci o essencial. Ainda sei tomar sopa sozinho, escovar os dentes,
limpar a própria bunda. Essas coisas.
Haverá um dia, talvez, em que vou acordar sem saber sequer que já fui
humano. Mas prefiro não pensar nisso. Até porque não há só sofrimento e
amargura. Segundo o tal médico que deu nome à minha doença, além da perda
de memória ela provoca em contrapartida um ganho relativo. A criatividade
também é afetada, só que positivamente. Como se o cérebro se esforçasse para
compensar o que está faltando.
E é assim que a cada dia lembro menos, a cada dia invento mais. Para me
refugiar do insuportável presente, mergulho uma vez mais no dia do
sincronicídio. Tudo indica que não morri naquele dia. Mas o que quer que
tenha acontecido comigo, deixou sequelas.
Meu colapso pode ter sido causado por uma descarga eletromagnética.
Talvez Teixeira tivesse realmente ferido de morte a minha moeda. E em seu
estertor final o ouro em meu organismo quase fritou o meu cérebro. Só que o
choque não foi suficiente para matar, apenas para aleijar.
O fato é que não tenho mais moeda. Nem de ouro, nem de prata, nem de
cobre. Acho que verifico isso todos os dias, ou quase, diante do espelho do
banheiro. Estou livre, embora não saiba ao certo o que isso significa.
Se é que pode ser chamado de livre alguém internado em uma instituição
mental. É que a natureza de minha enfermidade torna o cativeiro quase
abstrato, intangível, imaterial. Todos os dias estou no primeiro dia, ou quase.
Não há como saber há quanto tempo estou aqui. Nunca me ocorreu marcar os
dias e agora não me interessa começar. Posso estar internado há dois meses, ou
há cinco anos.
Voltando a meu colapso. Outra possibilidade é que tenha sido provocado
pelas próprias moedas no carro-forte. Talvez elas quisessem beber minha vida
também, depois que derramei o sangue do meu sangue em sacrifício.
Ou talvez as moedas estivessem apenas procurando proteger a mulher.
Talvez por algum motivo interessasse à Fábrica que Regina e Ágata
continuassem vivendo.
Não há como negar a ironia da coisa. Pois eu estava apontando a pistola
para a cara de Regina antes de apagar. E quem me salvou a cara depois que
apaguei foi justamente Ágata.
Foi ela quem me contou o que aconteceu. Assim que tombei no chão
desacordado, um dos seguranças saltou de dentro do carro.
“Era o homem. Ele caminhou tranquilamente até o fundo do carro e fechou
a porta, como se nada tivesse acontecido. Nem chegou a olhar em nossa
direção. Depois voltou para dentro do carro. A mulher deu a partida, e foram
embora. O que não entendo é como conseguiram se soltar tão rápido. Eu
mesma vi Alberto algemando os dois ao volante. Só se possuíam alguma chave
escondida.”
Uma explicação sensível, sem dúvida. Possivelmente a verdadeira.
Ultimamente, contudo, tenho sido tentado a buscar soluções menos prosaicas.
O inspetor e Ágata pensaram que seus oponentes do carro-forte estavam
algemados. Mas não é tarefa das mais fáceis algemar um par de serpentes.
Esses últimos acontecimentos Ágata contou sob comoção intensa, cravando
as unhas na palma da mão. Só fez isso porque considerava absolutamente
necessário rememorar comigo todo o acontecido, para que ela pudesse me
incumbir da tarefa que esperava que eu cumprisse.
Foi por isso que Ágata me salvou. Para que eu pudesse escrever.
Poucos instantes depois que o carro-forte dobrou a esquina e sumiu, a
mulher nua foi acometida por uma súbita vertigem, que a fez ficar de joelhos
no chão, entre os dois homens caídos. Ela arquejou. O fôlego lhe faltava, de tão
inesperado e intenso era o orgasmo. Fechou os olhos, embriagada de aflição e
delírio. Quando voltou a abri-los, era novamente Ágata. O Roque havia cessado
o seu efeito. Bem na hora.
Foi por isso que ela me salvou. Ela, a quem eu havia tentado matar sem o
menor motivo plausível. Eu, que havia matado seu bem-amado, meu único
filho. Ele, que Ágata deixou caído na sarjeta, para ser encontrado pelos lixeiros,
enquanto ela me arrastava para dentro de casa. Foi por isso que ela contratou
os melhores médicos para cuidar de mim e os melhores advogados para
defender meu nome das pesadas acusações que veio a sofrer. Tudo, é claro,
pago com o meu dinheiro, que ela de seu nunca teve nem a si mesma.
Depois de uma vida inteira operando nos bastidores, tive enfim meus
quinze minutos de ribalta. A contagem de corpos chegou a 121, somando o
total encontrado nos três salões e outras dependências da casa. Curiosamente,
esse foi o exato número de exemplares de La Concidenza que desapareceu
misteriosamente nos arquivos da Polícia de Milão. Simples coincidência.
O episódio foi um dos destaques da Madrugada de Horror em Rio Santo, em
que manchetes sangrentas não faltaram. Desde a Noite dos Mortos Vivos até a
Suruba Canibal, os termos mais imaginativos foram utilizados pela imprensa para
se referir ao incidente.
Como proprietário da casa onde ocorreu a Festa Macabra e também seu
único sobrevivente, nada mais inevitável que a atenção persistente tanto da
polícia quanto dos fotógrafos se voltasse para mim. E ainda mais quando
estouraram as denúncias armadas por Júlia a respeito de meu envolvimento
com o narcotráfico de Rio Santo.
Adquiri, em resumo, súbita e indesejada notoriedade. Durante alguns dias,
meu rosto e meu nome tornaram-se familiares para boa parte dos brasileiros.
Não deixa de ser uma benção disfarçada de maldição, essa minha condição
desmemoriada. Pois me impediu de registrar degrau por degrau o quanto desci
rumo à infâmia.
A doença possibilitou-me ainda escapar da cadeia. Venceram afinal os
apelos e atestados de que eu era incapaz de responder a julgamento. Para a
vitória final da Justiça, fui enviado a um sanatório para doentes mentais, onde
sou mantido em perpétua vigilância a fim de que não possa jamais constituir
um perigo para a sociedade.
Ágata vem sempre me visitar. E toda vez ela pergunta pelo livro. Afinal foi
por isso que ela fez tanta coisa por mim. Foi por isso que se casou secretamente
comigo, tornando-se minha herdeira universal e administradora de todos os
meus bens. A tanto pode a ciência do Direito. Não estou apto para ir para a
cadeia, mas nenhuma lei me proíbe de amar. A princípio, estou mais capacitado
que nunca para amar. Quem pode amar melhor uma mulher como Ágata, que
um homem sem memória?
Na cabeça dela, sempre estivemos casados. Na minha cabeça, não faria a
menor diferença. Pois nunca chegamos a consumar o casamento. Se aconteceu,
não me recordo.
Não que eu alimente ilusões a respeito. O amor é diametralmente oposto ao
que Ágata possa sentir por mim. A cada vez que ela vem me ver, percebo em
seus olhos o ódio e o desprezo que ela julga que mereço. Não foi por amor que
ela fez o que fez por mim. Foi para que eu escrevesse.
“Escreva um novo livro. Você criou o inspetor Teixeira, e depois o matou.
E agora vai recriá-lo. Você vai dar um jeito de trazer Alberto de volta. Eu sei
que você pode.”
Ela repetiu isso tantas vezes que acabou me convencendo. É claro que
nunca pensei em intentar alguma impraticável ressurreição de meu filho morto.
Por mais que quisesse, eu sabia muito bem que não haveria como reverter o
que foi feito uma vez. Mas acabei sendo seduzido pela mórbida vontade de
reviver o dia do sincronicídio. Eu daria um livro a Ágata, sim. Talvez não
exatamente o que ela queria, mas o que eu precisava. E assim comecei a
escrever a narrativa do último dia na vida de Teixeira. Que se tornou a história
última da vida que tive um dia.
O problema é que eu podia contar cada vez menos com a memória. Mas
Ágata não permitiu que fôssemos intimidados por esse pequeno obstáculo: “E
quem está interessado em suas memórias? Eu quero um livro do inspetor
Teixeira, como os outros que você escreveu.”
De nada adiantava replicar: “Pelo que me lembro, jamais escrevi livro
algum.”
“Pelo que eu me lembro, você não lembra é de mais nada direito. Toda vez
que você começa uma frase dessa maneira, está mentindo. Já parou para pensar
nisso?” Era assim que Ágata invariavelmente calava todas as minhas possíveis
objeções. “Você não precisa de memória para escrever esse livro. Tudo o que
você precisa é de imaginação.”
Ela ao menos consentiu em ir ao apartamento de Teixeira e me trazer os
seus famosos cadernos de anotações. E também conseguiu contrabandear meu
computador pessoal para dentro da clínica. As gravações da minitevê
implantada em Teixeira foram imprescindíveis. Sem elas, eu não teria nem por
onde começar.
Mas assistir àquelas imagens gravadas trouxe muitos enigmas junto com
algumas respostas. A minha própria participação na história de Teixeira parecia-
me muitas vezes tão absurda quanto inexplicável.
Foi por isso que acabei recorrendo a Isaac. Eu ainda tinha o programa
instalado em meu computador. Raciocinei da seguinte forma: para alguém que
consegue ler o futuro, descobrir o passado não pode ser muito difícil. Seguindo
uma inspiração súbita, tomei como matriz o Passeio do Cavalo. Só que no lugar
das casas do tabuleiro de xadrez utilizei os sessenta e quatro hexagramas do I
Ching. Escolhi utilizar como “casa” inicial o hexagrama 51, Trovão, quando
notei a singular coincidência dos trovões no despertar de Teixeira.
Em pouco tempo a matriz ficou pronta. Ter sido capaz de utilizar Isaac
dessa forma foi muito bom para mim. Devolveu a autoconfiança que eu
precisava para poder escrever. Minha memória pode não prestar para nada, mas
ainda consigo criar.
Mesmo com as gravações da minitevê e a ajuda de Isaac, contudo, ainda
restaram muitas lacunas, muitas reticências, muitas interrogações sem resposta.
Aí sim entrou em cena a imaginação, tão valorizada por Ágata e também pelo
meu médico.
Muitas mentiras tive que contar, não nego.
Talvez até tenha dito sem querer uma ou duas verdades.
Tudo o que sei é que me chamo Rogério Arcanjo Bastos.
E que matei meu filho.
Quanto à Fábrica, pelo que me lembro ela nunca existiu.
Por isso tive que inventá-la.

Brancas avançam na quarta:


Caminhando no meio de outros, alguém retorna sozinho.
Preciso escrever sem demora antes que o fato evapore da memória. Não há
tempo a perder até ligar o computador. Essa caneta serve. Depois digito tudo.
Ele está vivo! Meu filho está vivo. O inspetor Teixeira voltou dos mortos.
Às vezes o impossível também acontece. Estive com meu filho agora mesmo.
Ele chegou bem no início do horário de visita. Sorte a minha que o avistei
de longe. Ele vinha caminhando pela alameda que conduz até o pátio onde eu
estava com os outros internos que esperavam visitantes. Minha primeira reação
ao vê-lo foi a convicção súbita e irracional de que eu estava morto, e no
inferno, e o inspetor Teixeira estava vindo para me dar as boas vindas.
A custo me convenci de que eu continuava vivo. Partindo dessa premissa,
tive que me render às evidências dos sentidos e da razão e admitir que ele
também estava vivo. E se aproximando.
Só então percebi Ágata, que caminhava ao seu lado. Havia algo de diferente
no seu rosto. Acho que é porque ela estava sorrindo.
Por um segundo esperançoso cogitei que a bala assassina tivesse resvalado
em algum osso do crânio, e que miraculosamente meu filho tivesse sobrevivido
ao tiro. Mas a chama dessa esperança tinha pavio curto e era de festim.
Pois se justamente essa é a lembrança que não me larga, de pura crueldade.
Pois se todo o meu esforço em recontar o sincronicídio não passou de um
modo de exorcizar essa cena cravada na memória tão profundamente a ponto
de se confundir com minha própria personalidade. A imagem do inspetor
Teixeira morto, com um buraco do tamanho de um punho fechado onde
costumava ficar o olho esquerdo.
Eu vi os miolos de meu filho esparramados na sarjeta. Isso não posso
esquecer. Foi a última coisa que aprendi na vida.
E via meu filho agora já a poucos metros de mim, como se nunca tivesse
morrido. E então voltei a sentir o peito opresso. Eu não estava morto, mas
faltava pouco. Era o fim, sem dúvida. À demência somava-se a insanidade. A
explicação era simples, só podia ser: eu estava tendo uma alucinação.
Curiosamente, fiquei tranquilizado após chegar a essas conclusões. Pude
afinal encarar o inspetor Teixeira. Seu olhar continuava indecifrável, mas a
expressão do rosto de modo geral não era inamistosa.
Ágata veio na frente, com os olhos brilhando: “Rogério, quero lhe
apresentar uma pessoa. Alberto, esse é seu pai. Rogério, esse é seu filho. Eu
sabia que você acabaria conseguindo um jeito de trazê-lo de volta.”
Então ela riu e bateu palmas, como se estivesse no teatro. Fiquei surpreso
comigo mesmo ao perceber que o meu sentimento mais forte naquele
momento era um ciúme ardente e sufocado de corno manso. Pois o cheiro de
sexo estava no ar. Era evidente que Ágata e a tal alucinação estiveram trepando.
E muito.
Só então me dei conta do absurdo da coisa. Explodi em uma gargalhada
nervosa.
Depois que me acalmei, o homem diante de mim calmamente explicou que
ele chegava no horário de visita vindo de outra dimensão: “É um pouco difícil
de explicar, pois até hoje estou tentando entender direito o que aconteceu.”
Ele ficou por uns instantes organizando os pensamentos.
“Existe esse rapaz, Samuel. Quando eu o conheci, ele estava com um galho
de árvore enfiado na barriga. Mesmo sem saber que estava fazendo isso, acabei
salvando a vida dele. E com isso, sem querer, salvei a minha própria vida.”
Gradualmente o que ele dizia foi adquirindo contexto. O tal de Samuel é o
que se pode chamar de viajante do tempo, embora talvez a expressão mais acurada
seja viajante interdimensional. O seu meio de transporte é um simples arquivo de
áudio. Uma gravação especial, que reproduz matematicamente todas as
frequências do Öm, o Verbo, o som do Princípio.
Ou ao menos essa era a intenção do autor da gravação original, o jovem
proprietário do estúdio Nova Música, Henrique Habbot. Ninguém menos que
o filho do homem que morreu como Harold Habbot, se escondeu como Anton
Bandura e nasceu como Mario Bodoni.
Mundo pequeno.
O homem idêntico a Teixeira acrescentou que Henrique estava atualmente
desaparecido.
“Mas isso é outra história. O que importa é que alguma coisa nessa gravação
que Henrique fez deu errado. Ou então deu muito certo. As frequências da
gravação são capazes de ativar no cérebro uma conexão entre dois pontos
distintos no espaço-tempo. Na prática, é como se a gravação criasse uma
estação de teletransporte dentro da cabeça da pessoa. Tudo acontece dentro da
mente. É mais complicado explicar que fazer, na verdade.”
Pouco antes de partir ele me estendeu fones de ouvido para que eu ouvisse a
tal gravação. Escutei a princípio apenas um zumbido indistinto. E então senti
uma espécie de solavanco, como o que sentimos quando temos um daqueles
sonhos rápidos, bem no começo do sono, e sonhamos que estamos caindo ou
algo assim e acordamos sobressaltados e com o peito ofegante pelo pouso
forçado.
Ele sorriu, provavelmente da cara que eu fiz após ouvir a gravação. Por um
momento a lembrança de Isabel fulgurou naquele sorriso. Ainda sou capaz de
me lembrar de Isabel. Nem tudo está perdido. Fiquei olhando para ele. Não
achei parecido com o homem que eu matei. Também pudera: não era o mesmo.
Quando o inspetor Teixeira inadvertidamente colocou nos ouvidos os fones
de um viajante interdimensional, acabou tornando-se ele próprio um viajante.
No instante em que suas ondas cerebrais foram excitadas pelas misteriosas
frequências da gravação, ele foi transportado pelas três dimensões do espaço,
pela quarta do tempo e ainda pelas sete outras menos comumente citadas. Foi
parar em uma das salas do estúdio Nova Música, a quilômetros de sua casa, e
no dia anterior.
Felizmente Samuel, o rapaz da motocicleta, já estava ao lado dele para situá-
lo a respeito da data e do local, bem como da inusitada viagem que os dois
haviam acabado de empreender. Pois quando o inspetor devolveu os fones para
o rapaz acidentado e apertou novamente o botão do play, também Samuel foi
teletransportado do futuro, o que o salvou da morte iminente.
Nesse ponto da história não pude me conter:
“Mas se você foi transportado no tempo...”
Não pude concluir. Não era necessário. Achava que ele podia ler a pergunta
em meu rosto: “...então quem foi que eu matei?”
Mas ele só coçou a cabeça, sem demonstrar ter notado o meu embaraço.
“Essa é uma das partes que ainda não entendi direito. Ao que parece, no
momento em que escutei a gravação e meu cérebro foi conectado com outro
ponto do espaço-tempo, um universo inteiro foi criado. Um universo paralelo,
onde uma cópia de mim foi lançada vinte quatro horas no passado. Sei que
parece loucura, mas é a melhor explicação que eu tenho.”
Por insistência de Samuel, ele manteve-se afastado de seu alter ego temporal.
E no dia seguinte descobriu ter sido assassinado. E adivinha por quem?
O momento da verdade havia chegado. Reuni coragem para fixar os olhos
dele. Preparei-me para o que ele iria dizer.
Bendita hora para a caneta falhar! Caneta vagabunda, tão confiável quanto
minha memória. Talvez melhore se a ponta for aquecida.
Atintacomoamemóriaseesvai.

Eu precisava dizer mais alguma coisa. O que era mesmo?


Se fosse um conselho, só poderia ser este: recorda enquanto é tempo. A
própria vida não é mais que um intervalo entre dois esquecimentos.
Olho pela janela. Um clarão distante corta o escuro da noite. Conto
mentalmente os segundos até a eclosão do barulho. Aproxima-se o Trovão.
AGRADECIMENTOS

Sou muito grato a você, leitor ou leitora, por haver dedicado seu tempo e inteligência à
leitura deste livro. Espero que tenha gostado da experiência e que isso possa somar de alguma
forma em sua vida. Conto com você para recomendar a leitura para seus amigos e conhecidos.
Seu apoio é muito, muito importante para tornar O Sincronicídio conhecido por mais e
mais pessoas.
Sou muito grato a Deus e às Musas, pelo anseio de escrever, e à minha família, por todo
apoio e estímulo.
Agradeço especialmente a Elda Araujo, por acreditar tanto, e a Bia Machado e Angélica
Bernardino.
Sou grato ao talento de Elaine Alves e Pedro Viana. E também a Rodolfo Euflazino,
por sua divulgação incansável.
Agradeço muito a todos os queridos amigos que leram trechos ou o livro inteiro em suas
diversas etapas e tanto contribuíram com seus incentivos e sugestões: Adriana Machado, Alex
Guimarães, Alex Voorhees, Aline Barreto, Amadeu Alves, Amadeu Junior, Ana
Benevides, Analu Franca, André Delacroix, Andréa Soares, Andreia Lima, Carlos Lopes,
Claudia Azevedo, Claudia Barretto, Chico Castro Jr, Darci Souza, Diolinda Lopes, Dilma
Souza, Doris Pinheiro, Elenilson Nascimento, Eliton Tomasi, Fabiana Oliveira, Fabiola
Campos, Fabrício Barretto, Fernanda Xavier, Flávia Barretto, Flavio Duarte, Glaucia
Fortes, Helquer Sales, João Ninguém, Júlia Lobianco, Juliana Picanço, Julimar Ferreira,
Jussara Barretto, Léia Viana, Leonardo Leão, Lícia Maria, Lis Braga, Lua Oliveira,
Luan Grugru, Lucio Oliva, Luiz Rangel, Madhurii Viraj, Manolo Martinez, Marcia
Dottori, Mariana Paiva, Miriam de Sales, Miryam Both, Monica Wanderley, Nayara
Lobo, Nil Dias, Nora Abreu, Patrícia Cris, Pedro Drummond, Pedrina Castro, Rachel
Lopes, Rafael Santos, Ramona Torres, Reinaldo José, Rita Muniz, Rogério Lopes, Rosélia
Sampaio, Rudynalva Soares, Sandoval Barretto, Sergio Elísio, Servulo Barreto, Tatiana
Inda, Teresa Fiore, Tufi Sami, Ulrike Wendl.
Tenho muita gratidão da mesma forma a todos que leram O Sincronicídio depois que
foi publicado. Agradeço em especial às lindas resenhas que o livro obteve.
Agradeço aos amigos da Comunidade Resenhas Literárias e à turma tão querida da
Oficina de Muita Música! E também aos amigos e colegas escritores da Editora Caligo.
Os primeiros capítulos deste livro foram escritos em uma velha e confiável Remington 14,
emprestada pelo amigo Ciro Soares, pelo que sou muito grato. Agradeço da mesma forma
meus vizinhos no Rio de Janeiro, pela paciência com que toleraram as incontáveis repetições da
Sinfonia “Eroica” de Beethoven enquanto eu batucava na Remington.
Sou muito grato aos policiais entrevistados, pelas informações valiosas sobre a rotina
policial. Sou grato aos autores de todos os livros que li, pelo tanto de aprendizado e diversão
que encontrei em cada um.
Com a exceção de La Coincidenza de Mario Bodoni, todos os livros e teorias aqui
citados são factuais.
O Sincronicídio foi originalmente concebido como o primeiro volume de uma trilogia. A
segunda parte chama-se A Mais Tocada de Todos os Tempos e traz como protagonista
Samuel Bontempo, que aqui faz uma discreta, porém marcante participação.
Nesse momento em que termino a revisão desta primeira edição digital, estou dando os
toques finais a Escritores Perguntam, Escritores Respondem, livro coletivo que tive a
grande alegria de organizar. E estou labutando com um novo romance intitulado Favela
Gótica. Também escrevo poesias, de todos os sabores, que exponho impudentemente nos blogs
Meu Querido Espírito, Lírico Vício Solitário, Ninguém É Perfeito e O Coração
na Sala de Jantar. Além disso, escrevo músicas para os Mensageiros do Vento, a
primeira banda de rock a lançar um livro de literatura/filosofia: MANIFESTO e que
atualmente prepara a primeira ópera rock em animação do Brasil: ANUNNAKI. Por tudo
isso, é claro que sou muito grato.
Por isso decidi aproveitar este espaço não só para expressar a minha gratidão, como
também para compartilhar com você, amigo ou amiga, um pouco das coisas pelas quais sou
grato.
Foi muito bom contar com sua companhia até aqui. Espero que possamos nos encontrar
novamente em breve!

Jai Guru!

Salvador-BA, 9 de setembro de 2015.


O AUTOR

Fabio Shiva é músico, escritor e produtor cultural. A carreira musical é iniciada


com a banda Imago Mortis, com dois CDs lançados internacionalmente.
Coautor e roteirista de ANUNNAKI - Mensageiros do Vento, primeira ópera rock
em desenho animado produzida no Brasil.
É fundador da Oficina de Muita Música!, projeto inovador que funcionou durante
nove anos na Casa da Música (SECULT/BA), beneficiando centenas de
participantes com aulas gratuitas de violão, contrabaixo, xadrez e meditação.
Desde 2017 também coordena o Gaia Canta Paz, grupo que tem a proposta de
celebrar e fomentar a fraternidade, a tolerância e o respeito à diversidade por
meio do poder transformador e positivo da música. Atualmente é facilitador da
Oficina de Muita Música Criando Asas com 97 Ingredientes de Paz, Amor e Alegria, que
acontece semanalmente pela plataforma Meet para Pessoas com Deficiência.
Idealizador e produtor dos projetos de literatura: Pé de Poesia (que decorou as
árvores de Salvador com poemas em 2016), Doce Poesia Doce (que distribuiu 10
mil “poesias doces” – poesias embalando balas doces – em 2017), Poesia de Botão
(em 2018, com a implantação de um jogo que ensina as crianças a rimar e fazer
poesia em escolas municipais) e Gincana da Poesia (2019-2020, com atividades
poéticas em escolas e praças de Salvador e publicação de livro), todos
patrocinados pela Fundação Gregório de Mattos (Prefeitura Municipal de
Salvador). Fundador do projeto P.U.L.A. (Passe Um Livro Adiante), que já fez
circular milhares de livros gratuitamente pelo Brasil. Palestrante sobre temas
como Consciência, Música e Espiritualidade em escolas públicas e eventos
diversos.
Publicou em 2013 o romance policial O Sincronicídio pela Caligo Editora. Sua
história infantil A Menininha Azul foi selecionada para a plataforma digital do
Mapa da Palavra – BA. Em 2016 lançou dois livros pela Cogito Editora, um
duplo de contos (Isso Tudo É Muito Raro / Labirinto Circular) e, como
organizador, o coletivo sobre literatura Escritores Perguntam, Escritores Respondem.
Participou de diversas coletâneas de poesias, contos e crônicas. Em 2018
lançou, como organizador, a antologia poética Doce Poesia Doce, pela Cogito
Editora e, em 2019, a antologia Poesia de Botão, pela Verlidelas Editora. Em
janeiro de 2019 lançou Favela Gótica, seu segundo romance, pela Verlidelas
Editora. No mesmo ano publicou pela Amazon o romance de não ficção Diário
de um Imago: contos e crônicas de uma banda underground, sobre a banda Imago
Mortis. No carnaval de 2020 lançou, pela Caligo Editora, o livro de contos
Tanto Tempo Dirigindo Sem Ninguém No Retrovisor. Em outubro de 2020 organizou,
junto com Sérgio Carmach, a antologia Cura Poética, pela Verlidelas Editora,
atualmente em seu segundo volume. Atua como agenciador de novos autores
para publicação na Verlidelas Editora. Escreve textos com dicas para quem
escreve para o blog da Mundo Escrito. Apresenta semanalmente o quadro
Atmosfera Literária com Fabio Shiva no programa Atmosfera 102 (Rádio 102,7 FM
– Além Paraíba – MG), com Fernando Bamboo, todo sábado das 12h às 14h.

Facebook:
https://www.facebook.com/sincronicidio
Instagram:
https://www.instagram.com/prosaepoesiadefabioshiva/
© Fabio Shiva, 2011

Revisão, preparação e diagramação: Bia Machado


Design da Capa: Elaine Alves (e.lainealves@yahoo.com.br)
Consultoria: Marcelo Amado (@estronho)
Imagem de capa: stock.xchng (www.sxc.hu)

Índice para catálogo sistemático: B869 – Literatura brasileira

Formato: Livro digital


Modo de Acesso: world wide web

Nenhuma parte dessa publicação poderá ser reproduzida por qualquer


meio ou forma sem a prévia autorização de Caligo Editora. A violação
dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n° 9.610/98 e punido
pelo artigo 184 do Código Penal.

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