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帝內經

HUANG DI NEI JING

O LEGADO DE HUANGDI

2015
Índice
Introdução ............................................................................................................................................................ 4
Sobre o Imperador Amarelo (Huáng Dì 帝) .................................................................................................. 11
Sobre o título da obra ........................................................................................................................................ 15
Versões da obra ................................................................................................................................................. 20
Zhong Guang Bu Zhu Huang Di Nei Jing Su Wen 重廣補註 帝內經素問, Wang Bing 王冰 .................. 22
Enquadramento histórico-filosófico .................................................................................................................. 24
A Terra do Centro e as suas Cem Escolas de Pensamento ........................................................................... 30
Nas origens do império chinês (1600 – 250 AEC) .................................................................................... 31
“chinese style” ................................................................................................................................................... 69
Estética chinesa clássica ................................................................................................................................ 70
Diálogos & Números ..................................................................................................................................... 75
Conclusão .......................................................................................................................................................... 79
ANEXO 1 – Cronologia histórica chinesa ........................................................................................................ 80
帝內經
HUANG DI NEI JING
INICIAÇÃO AO ESTUDO DA OBRA CLÁSSICA
O LEGADO DE HUANGDI

COMPILADO POR:
RAQUEL FERREIRA DA SILVA | raquelpfsilva@gmail.com

IMAGEM DE CAPA:

“Auspicious Cranes”, Imperador Huizong (1082-1135), dinastia Song.


Introdução
Primeiro terá de haver uma pessoa verdadeira;
Só depois poderá haver conhecimento verdadeiro.
Zhuang Zi

Na antiguidade, o estudo da Medicina (Yī 醫), não era reservado aos clínicos1, pois ela é apenas uma das 5
Artes Tradicionais Chinesas (Chuán Tǒng Wǔ Shù 傳統五術)2 a que os eruditos se dedicavam. A forma de
ensino e aprendizagem também diferia, optando-se pelo modelo de linhagem Professor - Estudante ou Mestre
- Discípulo (Lǎo Shī 老師 - Dì Zǐ 子) 3, tendo como principal método pedagógico o de “questão – resposta”.
Não será coincidência que na atualidade “aprendizagem” seja referido como Xué Wèn (学问|學問), literalmente
estudo (学|學) e questão (问|問). A própria organização das obras de referência – nomeadamente da medicina
chinesa (MC) - seguia este modelo – estando o Cânone Internoescrito num registo de pergunta-resposta.

1
A expressão “clínico” vem do Latim clinicus, “médico que visita os pacientes em seus leitos”, e do grego klinike tekhne,
“prática à beira do leito”, de klinikos, “leito, cama, aquilo sobre o qual se deita”, de uma base Indo-Europeia kli-, “recostar,
inclinar”. Por algum tempo foi usada para designar a pessoa doente, depois o profissional que a visitava. Curiosamente, 病
bìng, o caractere traduzido por doença, representa graficamente uma pessoa deitada em cima de uma cama [Lao Tse (2010)
– Tao Te king Livro do Caminho e do bom caminhar - comentário do tradutor António Miguel de Campos (pp. 178)].
Parece que a imagem da doença sempre se associa à pessoa deitada em seu leito, sendo o “clínico”, aquele que vai ao seu
encontro, aquele que realiza junto ao leito do doente a sua arte.
Por seu lado, “terapeuta”, vem do Grego therapeia ( ε απε α), “ato de curar, de restabelecer”, de therapeuein, “curar,
fazer tratamento médico”, literalmente “tomar conta de, atender, fazer serviços”, de therapon, “servente, aquele que atende
alguém”.
τ termo “médico” deriva do Latim medicus, “o que trata da saúde dos outros”, de mederi, “curar, tratar”, originalmente
“saber o melhor caminho para”.
τptei pela exressão “clínico” pois transmite-me uma imagem que me parece mais próxima da “arte da medicina”, enquanto
trajetória relacional para obtenção da saúde e bem-estar, onde ambos intervenientes têm participação ativa no processo,
cada um na sua posição mas simultaneamente “sentados” lado-a-lado.
2
Estas são as 5 artes tradicionais, mas os seus limites não são estanques, há áreas que se sobrepõem e disciplinas que se
incluem em diferentes áreas, muito resumidamente:
1. Montanha (Sh n 山): inclui as disciplinas associadas com o cultivo interior (alquimia interna, qigong, taijiquan,
meditação, etc.) – o foco são os “3 tesouros da humanidade” e como os aplicar para diminuir a “dimensão humana”
e potenciar a “dimensão celestial”, até que a primeira desapareça por completo.
2. Medicina (Yī 醫): debruça-se sobre a compreensão dos processos de (des)armonia dos ciclos humanos com os
ciclos naturais, recorrendo a métodos de tratamento específicos para manutenção e restabelecimento da harmonia
entre eles, tendo em vista a longevidade e garantia de gerações futuras. Nos métodos de tratamento incluem-se a
dietética, fitoterapia, massagem, acupuntura e moxabustão e exercícios terapêuticos.
3. Adivinhação (Bǔ 卜 ): dedica-se ao estudo dos ciclos da natureza, com o objetivo de compreender as
transformações e mudanças cíclicas para assim as “controlar” em benefício da humanidade (controlar vem no
sentido de que se conheço algo, posso preparar-me para navegar com graciosidade essa condição, e não domina-
la).
4. Destino (Mìng 命)μ Inclui o estudo da “astrologia” (entre aspas porque não se trata do estudo da influência dos
astros no ser humano, mas sim das camadas de qi que envolvem o ser humano no momento do seu nascimento).
Trata-se de conhecer aquilo que não podemos controlar – a combinação de qi do céu e qi da terra no momento do
nosso nascimento e o seu impacto nos diversos aspetos da experiência humana.
5. Inspeção (Xiàng 像): estudar o exterior para conhecer o interior, inclui disciplinas como feng shui, diagnóstico
pela inspeção, leitura de rosto, etc.
3
Este processo era designado por “Ming Tang”, pois o estudante era educado em casa do Mestre, e antes de iniciar o seu
processo de aprendizagem, deveria permanecer durante um determinado período de tempo em frente à casa do Mestre –
no Ming Tang – enquanto este o testava quanto à sua motivação e benevolência, entre outros aspetos (comentado por Fredes,
Huang Di Nei Jing [Notas de seminário], 2015/16).
Quando falamos das obras
clássicas de MC destacamos 5 Montanha
textos: o Yì Jīng 易 經 e o (Shān 山)
conjunto de obras conhecido Medicina
como os Jīng Diǎn 經 典 – (Yī 醫)
clássicos de medicina:
Adivinhação
1. Cânone de medicina (Bǔ 卜)
interna do Imperador
Destino
Amarelo (Huáng Dì Nèi Chuán Tǒng Wǔ Shù
(Mìng 命)
Jīng 帝內經): trata da 傳統五術
Inspeção
correspondência entre
(Xiàng 像)
ser humano e natureza;
yinyang; 5 movimentos;
teoria de manifestação
dos órgãos internos; Zhōu Yì 周易 Shāng Hán Zá Bìng
Huáng Dì Nèi Jīng Lùn
mecanismos de etiologia ou
黃帝內經
e patologia; métodos de Yì Jīng 易經 傷寒雜病論
diagnóstico e regras de
tratamento; e princípios
de preservação de saúde. Nàn Jīng Shén Nóng Běn
2. Cânone das dificuldades Cǎo Jīng
難經 神農本草經
(σàn Jīng 難 經 ) : 4

representa uma
contribuição importante Ilustração 1 - Acima: as 5 artes tradicionais (Chuan Tong Wu Shu). Abaixo: as 5 obras de
para o desenvolvimento referência da medicina.
da teoria básica de MC,
especialmente no que respeita à elaboração da teoria do pulso, manifestações das vísceras, canais, etc.;
proporcionando assim uma base para os princípios de tratamento e estabelecimento de prescrições.
3. Cânone de matéria médica de Shennong (Shén σóng Běn Cǎo Jīng 農本草經): teoria básica de ervas
chinesas; propriedades, sabores, etc.. É a mais antiga monografia de materia medica na China. Sumariou
a descrição de trezentas e sessenta e cinco ervas distintas e classificou-as em três graus: superior, médio
e inferior, consoante o seu grau de toxicidade.
4. Discussão da lesão por frio e doenças miscelâneas (Sh ng Hán Zá Bìng Lùn 傷寒雜病論)5: discussão
do diagnóstico e tratamento de acordo com a teoria dos 6 canais; diagnóstico e tratamento das doenças

4
Terá surgido antes da dinastia Han (206 AEC – 220 EC), havendo autores que atribuem a sua autoria a Biǎn Què 扁鵲|
鹊 - se assim for, então o Cânone das Dificuldades é anterior ao Cânone Interno.
秦越人, clínico de sobrenome Qin e nome Yue ren, terá vivido no Período dos Reinos Combatentes (início do Séc. IV
AEC), e como possuía um conhecimento médico brilhante e curava muitas pessoas, foi-lhe atribuído o título honorífico de
"Bianque". A partir da experiência dos seus antecessores, Bianque terá reunido os fundamentos para os 4 Métodos de
Diagnóstico da MC, destacando-se na inspeção e exame do pulso, aliás, segundo a obra Shiji (Registos históricos), Bianque
terá sido o primeiro médico a aplicar o diagnóstico clínico do pulso.
5
Obra da autoria de Zh ng Zhòng jǐng 張仲景 (nome oficial Zhang Ji 張機; 150-219 EC, dinastia Han), foi um dos mais
famosos clínicos da antiguidade, sendo considerado um “santo da medicina”. Aprendeu com Zhang Bozu e Yang Ligong.
Teve um posto governamental em Changsha, mas perante uma epidemia que levou à morte de membros da sua família e
seus conterrâneos, dedicou-se ao estudo da medicina. Combinou a tradição com o seu trabalho prático e compilou esta
importante obra. Posteriormente o seu trabalho foi reorganizado por Wáng Shū hē 王叔和, um médico famoso da dinastia
Jin (265 - 420 EC), que o dividiu em 2 livros: 傷寒論 Sh ng Hán Lùn e o 金匱要略 Jīn Guì Yào Lüè. τ tratado Sh ng
Hán Lùn criou o enquadramento para a análise clínica das doenças pelos 6 canais e estabeleceu a fundação para a
miscelâneas. Esta obra inclui uma compilação das fórmulas da antiguidade com eficácia demonstrada
na prática clínica, e uma discussão impar no diagnóstico diferencial e prevenção da iatrogenia.

De autoria mais ou menos polémica, podemos dizer com alguma segurança que destas quatro obras, apenas a
Discussão da lesão por frio e doenças miscelâneas tem autor conhecido, sendo que as restantes obras resultam
do somatório dos contributos de vários autores, espelhando o saber de uma determinada época e não o
pensamento de um clínico em particular.

O estabelecimento dos Jīng Diǎn 經典 como obras de referência da MC clássica é fácil de compreender, tendo
em vista os contributos singulares de cada um, já o Yì Jīng 易經, pode-nos levantar algumas questões. Trata-se
de uma obra composta por “dois textos”; (1) texto canônico; e (2) Shí Yì 翼 (10 asas)6. A parte canônica é
tida como uma obra de adivinhação, permite “saber o futuro”, sendo considerada uma obra de referência já no
tempo de Mestre Kong (Confúcio). A parte comentada debruça-se sobre a compreensão do processo de
transformação, particularmente os 64 fenómenos de transformação que explicam tudo entre o Céu e a Terra,
então trata-se de “saber a mudança”7. Esta parte é atribuída ao Mestre Kong, mas as evidências apontam noutro
sentido. Independentemente da autoria do texto, a sua influência é impar no pensamento chinês. Segundo o
monge taoista Wǔ Zhì Chéng 武志 , na China antiga a transmissão tradicional dos conhecimentos era dividida
em duas correntes: a filosófica e a mística. A corrente filosófica foi denominada Tradição Visível e estava
ligada à questão da harmonia do mundo; esta corrente pertenceu à escola Zu, a qual considerava, para a formação
do caráter de uma pessoa, ser necessário cumprir os seis estudos clássicos, especificamente o Yi Jing, Rituais e
Cerimónias, Poesia, Literatura, Música e História:

 O Yi Jing era o principal e o mais importante;


 Nos Rituais e Cerimónias, ensinava-se a arte de convivência social, respeito às pessoas, à natureza
e às divindades;
 Na Poesia aprendia-se a subtileza das linguagens verbais;
 Na Literatura, desenvolvia-se a aptidão para entender as leituras sagradas da antiguidade;
 A Música, aperfeiçoava o diálogo entre os sentimentos humanos, a natureza e o cosmos;
 Com a História aprendia-se a compreender o passado, analisar o presente e projetar o futuro.

diferenciação de estados de doenças pelos 8 princípios. As cento e treze prescrições no livro, unificaram ainda mais a teoria
básica e experiência clínica e levaram a uma compreensão profunda da relação entre o sistema médico, teoria, estratégias,
prescrição e ervas. τ Jīn Guì Yào Lüè usou a teoria dos processos de doença nos órgãos internos para formular a
classificação e diagnóstico de doenças. Registou mais de 40 tipos de doença, e aprofundou o estudo da etiologia.
6
翼 Shí Yì – coleção de comentários (Zhuan 傳) ao Yì Jīng 易經 atribuida a Confúcio, sendo composto por:
1. 彖傳 Tuan zhuan, or Commentary on the Judgment, the 1st 彖 傳;
2. Tuan zhuan, the 2nd 彖 傳;
3. 象傳 Xiang zhuan, or Overall Image, the 1st 象 傳 (sometimes called Great Xiang 大象);
4. Xiang, the 2nd 象 傳 (aka Lesser Xiang or Little Images 象);
5. 繫辭傳 Xici zhuan, the Commentary on the Appended Phrases, the 1st 繫辭 傳;
6. Xici zhuan, the 2nd 繫辭 傳 (the two Xi Ci are also called the Great Commentary 大傳, to emphasize their
importance);
7. 文言傳 Wenyan zhuan, Commentary on the Words;
8. 序卦傳 Xugua zhuan, the Sequence of the Hexagrams;
9. 說卦傳 Shuogua zhuan, the Explanation of the Trigrams;
10. 雜卦傳 Zagua zhuan, the Assorted or Miscellaneous Hexagrams.
7
A parte canônica tem origem muito antiga, possivelmente nos primórdios do período Zhou; ao passo que a parte
comentada foi composta nos períodos Primavera Outono e Reinos combatentes (aprox. 7-3 ACE) (Masayuki Sato (n.d.).
Introduction to Classical Chinese Philosophy [Notas de aula]. National Taiwan University).
A corrente mística, por seu lado, preocupava-se com os mistérios do universo e foi denominada Tradição
Secreta, pertencendo à Escola daoista, os seus ensinamentos baseavam-se no Yi Jing, Dao De Jing e Nan Hua
Jing. Podemos assim verificar a importância impar do Yi Jing para compreensão do pensamento chinês, sendo
a única obra que pertence às duas tradições importantes de transmissão de conhecimentos filosóficos e místicos,
servindo de base para a evolução de todos os conhecimentos e permitindo o desenvolvimento das diversas artes
tradicionais, incluindo a medicina.

Todos os clínicos de nível superior sabiam estas obras de cor8 – da frente para trás e de trás para a frente! Os
restantes clínicos aprendiam por canções, onde memorizavam apenas os sintomas e respetivas prescrições
terapêuticas9, ficando a compreensão dos princípios reservada aos clínicos de nível superior.

E, relativamente aos princípios, é precisamente no Cânone Interno, que encontramos a discussão mais completa
– no âmbito da medicina - sendo que outras obras remetem para esta obra como fundamentação, como por ex.
a Discussão da lesão por frio10:

(…) diligentemente procurei as instruções da antiguidade e compilei um grande número


de métodos em toda a parte. Escolhi o Sù Wèn, o Líng Shū, o Nàn Jīng, o Yīn Yáng Dà
Lùn, o Tāi Lú Yào Lù, e o Píng Mài Biàn Zhèng, para compor o Shāng Hán Zá Bìng Lùn
em 16 rolos.11

Assim, o estudo desta obra é tão relevante na atualidade, como o foi na antiguidade, como comenta o próprio
Wáng Bīng 王冰12 – autor da versão mais popular desta obra - no prefácio da sua edição:

A libertação das ataduras e a eliminação das dificuldades para completar o genuíno e


guiar o Qì13; resgatar a benevolência e a longevidade da escuridão e ter sucesso ao

8
Estas, e outras, como por ex. o Dao De Jing. A educação da pessoa erudita passava por decorar as várias obras clássicas
desde a mais tenra infância. Assim, os textos não se demoram em grandes expliações dos fundamentos, pois parte-se do
princípio que se é leitor, conhece as referências “de coração”!
9
Comentado por Fredes, Huang Di Nei Jing [Notas de seminário], 2015/16).
10
Relativamente ao Shennong Bencao Jing, podemos dizer que se trata do locus classicus da farmacopeia chinesa, mas é
no Cânone Interno que encontramos o locus classicus da teoria médica chinesa (além dos métodos de acupuntura e
moxabustão), sendo que a restante literatura médica é construída sobre os alicerces destas obras. Quanto ao Nanjing, o seu
nome completo é Huangdi Bashiyi Nanjing 帝八 一難經, portanto, as “81 dificuldades do cânone de medicina interna
do Imperador Amarelo”.
11
Tradução de Sabine Wilms (2013)μ “Shang Han Lun Preface 傷寒論序 (Preface to the Discussion on Cold Damage)”,
disponível em http://www.happygoatproductions.com/translation-files/ (consultado em 23/10/2015).
12
Wáng Bīng 王冰, clínico da dinastia Tang; oficial, recebeu o nome de respeito Qǐ Xuán Zǐ. É o autor da versão mais
popular do Cânone Interno - Zhong Guang Bu Zhu Huang Di Nei Jing Su Wen. O trecho aqui apresentado foi retirado do
artigo publicado online por Larry Ibarra Fredes (2015): “O Cânone Interno do Imperador Amarelo” (Nei Jing) nas
palavras do próprio Mestre Wang Bing, disponível em www.larryibarra.com (retirado em Junho de 2015).
13
Qì 氣: sopro(s), vento-sopro, vento (fēng 風), termo ancestral do Qì, vento espontâneo nascido do Dào, sem ter sido
soprado por nada, nem ninguém, vento-invisível que se concretiza de maneira processual, de acordo com o pensamento de
correlação cosmológico chinês. Sopro(s) transformadores e animadores da vida, infinitos, imateriais que animam a matéria.
Ar, respiração, atmosfera climática das estações. Possui duas qualidades: o Yīn e o Yáng, de maneira inseparável numa
sucessão transformadora invisível torna-se constituído de três, quatro e cinco fases (Wǔ Xíng) mantedoras do
funcionamento espontâneo e processual dos fenómenos e da manifestação da vida.
ajudar os débeis na recuperação da sua saúde, não pode conseguir-se sem o Caminho dos
3 Sábios14.

Se queremos ajudar a humanidade a prosperar precisamos conhecer “o Caminho dos 3 sábios”. Neste contexto
refere-se aos Três Soberanos da antiguidade: Fuxi, Huangdi e Shennong, que como veremos na secção seguinte
representam três dimensões fundamentais no estudo da medicina, especificamente: padrões naturais,
farmacopeia, acupuntura e moxabustão.

(…) Embora os anos passassem e as dinastias tenham sido reformadas repetidamente, o


ensino e estudo (deste Cânone) ainda sobrevive. (…)15

Em plena dinastia Tang (séc. VIII EC), o autor já salientava a resistência desta obra ao fator tempo, sobrevivendo
a múltiplas guerras, quedas de dinastias, queima de livros, assim como profundas mudanças socioculturais e
políticas. E porque foi assim? - porque esta obra operacionaliza os princípios para obter o Caminho:

(O Cânone) divide as imagens do Céu e da Terra, organiza os estados de Yin e Yang,


indica as causas das mudanças e transformações e cita os sinais da morte e da vida. (No
texto) o distante e o próximo unem-se sem conflito, o obscuro e o evidente concordam sem
restrições. Ao examinar as suas palavras, a profundidade que possuem pode ser
comprovada nos factos sem haver erro. Honestamente pode-se dizer que é um modelo do
Caminho supremo.16

Zh ng Zhòng jǐng 張仲景 comenta no prefácio da sua obra:

Confúcio disse: “Nascer e sabe-lo é superior. Estuda-lo e depois sabe-lo é inferior”.


Escutar em muitos lugares ampla e superficialmente, é a forma seguinte de conhecimento.
Eu sempre apreciei as fórmulas e os métodos. Por favor, permitam-me aqui servir com
estas palavras.17

14
聖|圣 Shèng, o caractere traduzido por sábio é composto por 耳 ěr (ouvir, ouvido) e por 呈 chéng (apresentar) que parece
representar uma pessoa (人 rén) que está bem assente no solo (土 tǔ) e fala ( kǒu); também pode significar santo, divino,
intuitivo, percetivo, reverente, sagaz, pessoa com virtudes espirituais, morais e intelectuais; santidades, piedade, reverência,
sagacidade [Lao Tse (2010) – Tao Te king Livro do Caminho e do bom caminhar - comentário do tradutor António Miguel
de Campos (pp. 130)].
15
Larry Ibarra Fredes (2015): “O Cânone Interno do Imperador Amarelo” (Nei Jing) nas palavras do próprio εestre
Wang Bing, disponível em www.larryibarra.com (retirado em Junho de 2015).
16
Larry Ibarra Fredes (2015): “O Cânone Interno do Imperador Amarelo” (Nei Jing) nas palavras do próprio εestre
Wang Bing, disponível em www.larryibarra.com (retirado em Junho de 2015).
17
Tradução de Sabine Wilms (2013)μ “Shang Han Lun Preface 傷寒論序 (Preface to the Discussion on Cold Damage)”,
disponível em http://www.happygoatproductions.com/translation-files/ (consultado em 23/10/2015).
Então há diferentes formas de obter o Dao, para alguns18 é um saber inato e isto é o superior, para outros é
preciso estudar antes de o obter, isto é inferior. E aqui Wáng Bīng 王冰 é muito claro quando afirma:

Se possui talento natural para compreender os mistérios deste conhecimento maravilhoso


e os seus esquemas completos, embora seja uma pessoa com inteligência inata, ainda
precisará de explicações dos clássicos. Ainda não há ninguém que para caminhar não
precise dum caminho e que para sair não precise duma porta. Foque os seus pensamentos
e estude o essencial, explore as subtilezas ocultas no profundo, o seu conhecimento obterá
o genuíno e o essencial, (como quem) olha um boi sem (se concentrar) no todo. Por isto
agirá com sucesso, como se fosse assistido secretamente por fantasmas e espíritos, assim,
de tempos em tempos, aparecerão (indivíduos) excecionais e de renome mundial (…)
Todos renovaram diariamente as suas aplicações e ajudaram grandemente a humanidade
a florescer sucessivamente como flores e folhas, existindo concordância entre a reputação
e os factos. Devendo-se aos seus estudos mas também à dádiva celestial.19

Então teríamos os “superiores” como os 3 sábios que “abriram o caminho e as portas”, para que nós, comuns
mortais e inferiores - possamos obter esse conhecimento, i.e., aceder aos princípios. Mas eles apenas “abriram”,
cabe ao estudante trilhar o caminho e enfrentar as portas, e para isso há que estudar e trabalhar diligentemente.
Uma vez compreendidos20 os princípios, os resultados parecerão mágicos tal o nível de eficácia obtido, mas
mais não são que a aplicação da sabedoria de “fazer a coisa certa na hora certa” – isto é o abençoado pelo Céu.

Wáng Bīng 王冰, ele próprio um dos “inferiores”, apenas pretende apoiar o estudante nesta jornada, tendo em
vista o bem comum:

(…) Desejo que investigando a cauda, se compreenda a cabeça, e buscando nos


comentários se compreenda o Cânone e se abra aos principiantes e os princípios
supremos sejam propagados (…)
(O meu) desejo é clarificar os éditos dos sábios, difundindo livremente as suas palavras
misteriosas, para que sejam ordenadas como as constelações penduradas no alto, onde as
(constelações) Kui e Zhang não se confundem, (como) um profundo manancial limpo e
cristalino, onde as escamas e as carapaças possam ser distinguidas.
Desta forma o Imperador e os seus subordinados, não perecerão prematuramente e os
bárbaros e chineses poderão observar uma vida longa. De modo a que os aprendizes não
cometam erros e os estudantes pensem luminosamente, propagando o Caminho supremo,
desta forma o som dos seus emblemas será eterno e depois de mil anos a infinita
compaixão e benevolência dos grandiosos sábios será conhecida.21

Vygotsky defende “apenas o ser humano pode educar o ser humano”, sendo que não é concebível uma
construção individual sem a participação do Outro e do meio social, o que torna imprescindível a relação
intersubjetiva do conhecimento e da partilha dos saberes. O Cânone Interno não é apenas uma obra de medicina,

18
Os sábios, as figuras mitológicas!
19
Larry Ibarra Fredes (2015): “O Cânone Interno do Imperador Amarelo” (Nei Jing) nas palavras do próprio εestre
Wang Bing, disponível em www.larryibarra.com (retirado em Junho de 2015).
20
Compreender: alcançar com a inteligência; entender; perceber; abranger; incluir; dar o devido apreço; estar incluído.
21
Larry Ibarra Fredes (2015): “O Cânone Interno do Imperador Amarelo” (Nei Jing) nas palavras do próprio εestre
Wang Bing, disponível em www.larryibarra.com (retirado em Junho de 2015).
ele é o resultado de um trabalho de compilação costurado ao longo de milénios de história, por diferentes mestres
visando iluminar a pessoa de bem na compreensão da correlação (Xiang 象) entre Céu (Ti n ), Terra (Dì 地)
& Humanidade (Rèn 人), ou como diria Zhuang Zi:

Primeiro terá de haver uma pessoa verdadeira;


Só depois poderá haver conhecimento verdadeiro.

O ato de educar é um ato relacional e na tradição chinesa é sobretudo um ato vivencial – a vida humana é um
trabalho criativo e a pessoa é transformada nesse processo criativo atingindo novos níveis de insight e de
compreensão22. Nesta relação a três – mestre, discípulo e obra – encontramos diferentes esferas em constante
transformação e mudança mediante as influências mútuas. A esfera humana transforma-se na relação inter e
intra-subjetiva, assim como na relação com o conhecimento; e o próprio conhecimento sofre transformações e
mutações neste processo.

O Cânone Interno tem origens obscuras, e embora as suas bases remontem ao final da Dinasta Zhou (1029-256
AEC) e, especialmente, à Dinastia Han (206 AEC-220 EC), foi sujeito a significativos rearranjos, interpretações
e adições, culminando com a edição do Sù Wèn 素問 de Wang Bing 王冰, no século VIII (762 EC), tendo sido
apenas na Dinastia Song (960-1276 EC) que finalmente foi editado como Huáng Dì σèi Jīng Sù Wèn Líng Shū
帝內經素問靈樞. Isto deixa-nos uma imagem semelhante a uma “manta de retalhos”, com um padrão global
que nos fascina, dissimulado entre as inúmeras narrativas que se enlaçam em cada retalho que compõe o todo.
Isto exige-nos tanto um esforço de contemplação da obra, como de contextualização da mesma – é preciso
desconstruir para analisar as micronarrativas e contemplar para assimilar o padrão macronarrativo, e só então
interpretar a obra. Este é pois objetivo da presente compilação - abordar as principais influências históricas,
filosóficas e culturais nos períodos considerados chave para a formação e desenvolvimento desta obra;
influências estas que poderão, ou não, estar patentes na obra, mas que determinam a “leitura” da obra e aplicação
dos seus princípios nas diferentes épocas históricas. Não esquecendo, e retomando novamente Vygotsky, que
cada obra de arte é uma janela de aprendizagem, pelo que, através da interpretação da obra o estudante também
se autointerpreta, adquirindo assim novos horizontes/mundos – eu como leitor; assim como novas experiências
e descobertas (alteridade) – eu como co-autor, sendo que todo este processo conduzirá, não mais a uma
heteronímia23 do ser humano, mas a um assumir de papéis consciente, a uma alteridade 24 que se conquista
através de uma interpretação que vai de uma crítica ingénua a uma segunda crítica e não pelo acaso que um
determinado contexto pode proporcionar25.

22
In Jardim, M.A. (2014). Arte e expressividade: maravilhas da Linguagem, in Invocção: o processo criativo em questão
das ciências, nas Letras e nas Artes (Coord. Annabela Rita & F. Cristovão), Biblioteca Nacional de Protgal, Lisboa.
23
Conceito pessoniano.
24
Qualidade do que é outro ou do que é diferente.
25
In Jardim, M.A. (2014). Arte e expressividade: maravilhas da Linguagem, in Invocção: o processo criativo em questão
das ciências, nas Letras e nas Artes (Coord. Annabela Rita & F. Cristovão), Biblioteca Nacional de Protgal, Lisboa.
Sobre o Imperador Amarelo (Huáng Dì 帝)

O Imperador Amarelo da antiguidade nasceu como um espírito. Sendo criança era capaz
de falar, enquanto jovem estava completamente preparado. Enquanto adulto, foi sincero e
perspicaz e ao amadurecer ascendeu ao céu.26

Figura 1 – “Mountains of the Immortals”, Chen Ruyan (c. 1331-1371), dinastia Yuan.

O Imperador Amarelo (Huáng Dì 帝) terá nascido cerca de 2704 AEC e iniciou o seu reinado como imperador
em 2697. É-lhe atribuída a responsabilidade por várias invenções chinesas como o advento dos caracteres
chineses (escrita); a matemática; a música; as técnicas; os utensílios; as armas (arco e flecha); os meios de
transporte terrestres e aquáticos; as moedas feitas com as cascas de animais, conchas, jade, cobre e ouro; a arte
do saber-viver, do saber-fazer; a arte do coração na atitude médica de curar (zhi 治); e os métodos para preservar
a vida.

O Imperador Amarelo é ainda creditado com a derrota dos "bárbaros", numa batalha épica, que terá tido lugar
na atual Shanxi. Esta vitória garantiu-lhe a liderança das tribos de toda a planície Huang He (Rio Amarelo).

É responsável pela unificação da administração (zhi 治) da China Antiga com a sua delimitação em nove
territórios.

A sua esposa terá descoberto a sericicultura (produção de seda) e instruiu as mulheres na produção de bicho-
da-seda e técnica da tecelagem.

26
Capítulo 1 do Su Wen “Shang Gu Tian Zhen Lun”, cit in Fredes (2015) Sebenta do Curso de Huang Di Nei Jing -
Medicina Chinesa Clássica: Módulo I - Seminário 1; pp. 16.
Huàng Dì pertence a uma linhagem de dignos Imperadores conhecidos pela expressão chinesa “Três Soberanos”
(S n Huáng 皇)27, citados no livro Memórias Históricas (Shǐ jì 史記) de Sīmǎ Qi n (145-85 AEC) onde se
pode ler28:

No início, os Reis sob o céu foram


os três soberanos da antiguidade, antes das grandes dinastias:
Fúxī, Shénnóng, Huángdì.

A cada um destes soberanos é atribuído um livro chave para o pensamento chinês, especificamente:

Fúxī 伏羲 Shén Nóng 神農 Huáng Dì 黃帝

Shén nóng
Huáng dì
Yì jīng běn cǎo
nèi jīng
易經 jīng
黃帝內經
神農本草經

τs “três soberanos” são ainda mencionados no Prefácio do σèi jīng da autoria de Wáng Bīng (ιθ2 d.C.), onde
o autor cita Kǒng n guó 孔安國, mais especificamente o seu “Livro de História” (Shàng Shū 尚書), onde
refere que os escritos de Fúxī 伏羲, Shénnóng 農 e Huángdì 帝 são as “Três Colinas” (S n Fén 墳) que
falam sobre o Grande Caminho (Dào 道), especificamente a obra menciona:

A libertação das ataduras e a eliminação das dificuldades para completar o genuíno e


guiar o qì; resgatar a benevolência e a longevidade29 da escuridão e ter sucesso ao ajudar

27
A inclusão do Imperador Amarelo nos três soberanos não é pacífica, depende da fonte:
Fonte San Huang 皇
Records of the Grand Historian (史記), Heavenly Sovereign ( 皇), Earthly Sovereign (地皇), Tai Sovereign (泰皇) ou Fu Xi
addition by Sima Zhen (伏羲), Nüwa (女媧), Shennong ( 農)
Sovereign series (帝王世系) Fu Xi (伏羲), Shennong ( 農), Huangdi ( 帝)
The book of Lineages (世本) Fu Xi (伏羲), Shennong ( 農), Huangdi ( 帝)
Baihu Tongyi ( 虎通義) Fu Xi (伏羲), Shennong ( 農), Zhurong ( 融) ou Fu Xi (伏羲), Shennong ( 農),
Suiren (燧人)
Fengsu TongYi (風俗通義) Fu Xi (伏羲), Nüwa (女媧), Shennong ( 農)
Yiwen Leiju (藝文類聚) Heavenly Sovereign ( 皇), Earthly Sovereign (地皇); Human Sovereign (人皇)
Tongjian Waiji (通鑑外紀) Fu Xi (伏羲), Shennong ( 農), Gong Gong (共工)
Chunqiu yundou shu ( 春 秋 斗 樞 ) Fu Xi (伏羲), Nüwa (女媧), Shennong ( 農)
Chunqiu yuanming bao (春秋元命苞)
Shangshu dazhuan (尚書大傳) Fu Xi (伏羲), Shennong ( 農), Suiren (燧人)
Diwang shiji (帝王世紀) Fu Xi (伏羲), Shennong ( 農), Huangdi ( 帝)
Mais informações sobre os Três Soberandos e os Cinco Imperadores em
http://www.newworldencyclopedia.org/entry/Three_Sovereigns_and_Five_Emperors.
28
Sīmǎqi n 司馬遷, rolo 2, capítulo 2:125, tradução de Junior (2012; pp. 28).
29
Segundo Fredes (2015/16), para a medicina chinesa clássica, a maioria das doenças é um problema de Rén
(Benevolência). Neste contexto, benevolência tem a ver com o Yin e Yang do corpo humano: somos feitos de espírito e
corpo - o espírito relaciona-se com o Fogo (Li), o corpo com a Água (Kan) - quando falamos em órgãos, então o espírito
relaciona-se com o Fogo e o Coração (Xin), o corpo, com a Água e os Rins (Shen). Se os Rins (Shen) são fortes, o corpo é
forte, a pessoa tem mais hipótese de longevidade. Se o Coração (Xin) está em equilíbrio, a pessoa é benevolente. Então,
os débeis na recuperação da sua saúde, não pode conseguir-se sem o Caminho dos 3
Sábios...30

Então Fúxī 伏羲, Shénnóng 農 e Huángdì 帝 são os três pilares – o que faz sentido, pelos seus contributos
chave para o desenvolvimento e formação da medicina:

 a compreensão dos padrões naturais expressa no Yijing;


 a aplicação da farmacopeia preconizada pelo Benjing;
 a compilação sobre preservação, plantas, acupuntura e moxibustão, assim como compreensão dos
princípios naturais e respetivos padrões, apresentada pelo Neijing.

O Imperador Amarelo, além dos três soberanos, ainda figura entre os cinco imperadores da Alta Antiguidade
Chinesa (Shàng Gǔ )31, os “Cinco Soberanos” (Wǔ Dì 五帝)32. Segundo o pensamento correlativo das
cinco fases ou cinco movimentos (Wǔ Xíng 五 ), proveniente da dinastia Hàn (206 AEC-220 EC), os cinco
soberanos são:

1. Qīng Dì 青帝, o Imperador azul-esverdeado reina pela fase Yáng da madeira (Mù 木), no este, chama-
se Tai Hao 昊 ou Fu Xi 伏羲;
2. Chì Dì 赤帝, o Imperador Vermelho, reina pela fase Yáng do fogo (Huǒ 火), no sul, chama-se Yan Di
炎帝, Zhu Rong 融 ou Shen Nong 農;
3. Huáng Dì 帝, o Imperador Amarelo, reina pela “fase” da terra (Tǔ 土), no centro;
4. Bái Dì 帝, o Imperador Branco, reina pela fase Yīn do metal (Jīn 金) no oeste, chama-se Shao Hao
少昊 ou Zhu Xuan 朱宣;
5. Hēi Dì 黑帝, o Imperador σegro, reina pela fase Yīn da água (Shuǐ 水) no norte, chama-se Zhuan Xu
顓頊.

para viver muitos anos, é preciso um Coração bom e uns Rins fortes, esta é a chave da longevidade, há que cuidar do corpo
e do espírito.
30
Prefácio do Nei Jing de Wang Bing, cit in Fredes (2015) Sebenta do Curso de Huang Di Nei Jing - Medicina Chinesa
Clássica: Módulo I - Seminário 1; pp. 15. Mesma secção disponível em Wang Bing, Princípios de medicina interna do
Imperador Amarelo (2001; pp.21): Alguém só pode conseguir se livrar dos fardos, superar as dificuldades, preservar o
estado natural das coisas, purificar os sopros, ascender da grande multidão e atingir a benevolência e a longa vida,
conduzir os débeis e os fracos, atingindo a tranquilidade, acompanhando os métodos usados pelos três sábios.
31
Alta antiguidade chinesa (Shàng Gǔ Guó 國): período do calendário chinês luno-solar, em chinês Yīn-Yáng Lì
(陰陽曆) que antecede as primeiras dinastias chinesas Xià (夏) e Sh ng Yīn (商 殷 ), que servem na contagem dos ciclos
do tempo feita pelo cálculo de Troncos celestes e Ramos terrestres (Ti n G n Dì Zhī 地支) na combinação de dois
sinais cíclicos, seguindo os momentos de acúmulos e associações dos sopros Yīn-Yáng no transcorrer circular do tempo
no pensamento chinês correlacionados com o Wǔ Xíng ( 五 ); na cosmologia e astronomia chinesas seguindo os
movimentos da lua, sol e de júpiter.
O primeiro calendário circular chinês durante a dinastia Hàn foi atribuído ao Imperador Amarelo, em 2637, calculado desde
a data do seu nascimento, em 2697. Servia para guia na agricultura, nas festividades tradicionais, ano novo, demais períodos
do Jiě Qì (解氣): ciclo horário, diário, quinzenal, sazonal, anual, sexagesimal.
32
A atribuição dos cinco soberanos também não é pacífica, por ex. a Canção de Chu (楚辭) identifica os cinco soberanos
como sendo deuses ligados aos pontos cardeais: Shaohao (Leste), Zhuanxu (Norte), Huangdi (Centro), Shennong (Oeste)
e Fuxi (Sul). Há autores que associam os 5 soberanos a líderes tribais, presumindo tratar-se do Imperador Amarelo 帝|
帝 e quatro dos seus filhos, especificamente: Zhuan Xu 顓頊|颛顼, Di Ku 帝嚳|帝喾, Tang Yao 唐堯|唐尧, Yu Shun

 http://www.chinaknowledge.de/History/Myth/wudi-rulers.html;
虞舜. Mais infirmações em:

 http://www.newworldencyclopedia.org/entry/Three_Sovereigns_and_Five_Emperors.
Assim, o Imperador Amarelo (Huáng Dì 帝) assume a posição central (Zhōng 中), que corresponde ao
movimento terra (Tǔ 土) e possui correlação com a cor amarelo, daí o seu nome.

Fontes antigas têm Huàngdì como um modelo de sabedoria cujo reinado foi uma idade de ouro. Ele disse ter
sonhado com um reino ideal, no qual os seus habitantes viviam de acordo com a lei da harmonia natural e
possuíam as virtudes preconizadas pelo daoísmo primitivo. Ao acordar do seu sonho, Huàngdì procurou inculcar
essas virtudes no seu próprio reino, por forma a garantir a ordem e a prosperidade entre os seus habitantes. Após
a sua morte, diz-se que se tornou um imortal.
Sobre o título da obra
O Huáng Dì Nèi Jīng Sù Wèn 帝內經素問 e o Huáng Dì Nèi Jīng Líng Shū 帝內經靈樞 formam o corpo
textual geralmente conhecido por Huáng Dì Nèi Jīng 帝內經. David Keegan33 refere que a expressão chinesa
σèi Jīng 內經 caracteriza-se por se referir a uma obra de tradição familiar da escola de sabedoria da medicina
chinesa através de textos, composição, compilação, reescrita, transmissão e comentários, às vezes
incorporados na própria obra. Tudo isso perfaz um “corpus medicus” proveniente do chinês antigo advindo
de ensinamentos de sabedoria ancestral da civilização chinesa expondo modos de manter os “sopros” (Qì 氣)
regulares em conformidade com o Dào 道34, o saber-viver, o saber-fazer, o cultivo da vida (Yǎng Shēng 養生),
a aplicação das agulhas (Zhēn 鍼) e “fogo lento” (Jiǔ 灸) em locais específicos, assim como a utilização de
medicamentos, tendo em vista ordenar, tratar, curar, governar e administrar -
Zhì 治35 - o “interno”, no círculo secreto do saber-viver do Imperador, legado
este trasmitido através dos tempos pelos dignos sucessores daoístas,
conselheiros do soberano, na sabedoria do saber-fazer no corporal humano.

τ Cânone Interno é considerado um Jīng 經 pelo daoismo dos Reinos


Combatentes (403-256 AEC), termo que advém da expressão chinesa Jīng Diǎn
經典 significando conjunto de textos chineses intitulados pela própria “família”
ou escola do daoísmo para diferenciar do termo “Clássico” adotado pelos
seguidores de Kǒngzǐ 孔子36. Para o daoísmo, um Jīng 經 é o guia (Dào 道,
assim como, o seu homófono dào ) das “regras de manutenção de vida”, para
manter e restituir os “sopros” (Qì 氣) corporais visando o equilíbrio (píng )
Figura 2 – Huang Di Nei Jing
do corpo. Segundo Anne Cheng37, Jīng 經, por excelência evoca o saber da (carateres antigos).
textura do Céu-Terra (Ti n-Dì 地) como configuração de correlação (xiang
象) – “o ser humano relaciona-se ao Céu-Terra” isto é, o pensamento de
correlação da cosmologia do daoísmo transcrito através dos sinais chineses, onde o ser humano faz dessa união
a expressão no texto escrito pelo sábio humano. Os daoístas empregaram-lhe ainda a “configuração” ou sinal
antigo do caractere chinês (xiàng 象) da tecelagem do fio da seda, como o fio da seda na cadeia de fios de uma
trama do tecido, com o significado e qualidade de totalidade 38 . Esta metáfora é muitas vezes utilizada na
medicina, onde o tear é formado pela teia (fios verticais) e a trama (fios horizontais) e ao princípio vertical do
universo chamamos Jing, e ao horizontal
Luo39.
Nesta compilação, os clássicos daoistas serão
designados de “Cânones”, e os confucionistas, por
“Clássicos”.
33
Citado em Junior (2012) - Capítulo 1, O Clássico Interno do Imperador Amarelo na Antiga China (pp. 24-73).
34
Dào (道): Via, via espontânea, caminho (dào lù 道路), via do céu ( 道), encaminhamento. Na qualidade de verbo
significa conduzir, caminhar, avançar; ensinar, instruir (dào ); falar, enunciar. τ termo ordem na expressão (dào lǐ 道
理), regra, método, moral e eficiência (dào dé 道德). Arte de se comunicar, procedimento. Funcionamento da realidade,
da espontaneidade e da animação da vida.
No Yijing, Dào possui um valor metafisico designando o princípio superior totalizante que rege as alternâncias de Yin e
Yang, logo é um princípio de ordem natural, manifesta-se nos grandes ritmos do Universo, nas alternâncias das estações
quentes e frias, dos dias e das noites; como princípio de ordem política é o poder mágico-religioso do chefe, capaz de reger
o mundo na sua totalidade.
35
治 – zhì - to rule; to govern; to manage; to control; to harness (a river); cure; treatment; to heal.
36
Junior (2012) - Capítulo 1, O Clássico Interno do Imperador Amarelo na Antiga China (pp. 24-73).
37
Citado em Junior (2012) - Capítulo 1, O Clássico Interno do Imperador Amarelo na Antiga China (pp. 24-73).
38
Junior (2012) - Capítulo 1, O Clássico Interno do Imperador Amarelo na Antiga China (pp. 24-73).
39
Fredes, Huang Di Nei Jing [Notas de seminário], 2015/16.
Figura 3 – Acima: “Woman works ancient Chinese loom”, George Arents Collection of Cigarette cards. Abaixo: Jing Luo – natureza
vs. corpo humano.

Pin Yin40 acentuadoμ Huáng Dì σèi Jīng | Chinês complexo: 帝內經 | Chinês simplificado: 帝内经

Pin Yin Caractere Significado do caractere


Jīng no dicionário do Ricci Institut (1990), possui uma polissemia de significações.
Pode significar livro, escritura sagrada, longitude, etc. É também o caractere de canal,
de algo onde flui alguma coisa, mas que não é um rio propriamente dito (não sendo
um rio aberto é um canal fechado)41. Graficamente evoca as réguas do bambu unidas
Jing 經 por um fio representado por uma dobadoira, podendo significar artérias ou meridianos
(Jīng Luò), mas também regras, regulamentos e menstruação 42.
Jing é o um pilar vertical (teia e trama do tear) que comunica o Céu (mundo celestial)
com a Terra, então é uma passagem para que as leis divinas cheguem à humanidade43.
Jing refere-se a um livro que contém a retidão, a verdade, tem um significado quase

40
Hàn yǔ pīn yīn (漢語拼音): método de transliteração fonética ou romanização, com uso do alfabeto latino para os
caracteres simplificados ou mandarim padrão. O termo em chinês hàn yǔ (漢語), quer dizer, língua chinesa, enquanto que,
pīn yīn (拼音) significa fonética. Possui 5 tons, o primeiro é horizontal, o segundo é ascendente, o terceiro é descendente
e ascendente, o quarto é descendente mais um neutro. Foi adotado em 1982, pela Organização das Nações Unidas (ONU),
na Organização Internacional de Padronização, em inglês: International Standatization Organization ou ISO.
41
Fredes, Huang Di Nei Jing [Notas de seminário], 2015/16.
42
Lao Tse (2010) – Tao Te king Livro do Caminho e do bom caminhar [comentário do tradutor António Miguel de Campos
(pp. 223)].
43
Fredes, Huang Di Nei Jing [Notas de seminário], 2015/16.
sagrado - toda a obra cujo título termina em “jing” é um texto de referência, é uma
autoridade, pois tem um caráter de verdade profunda, intrínseca e natural - são as
obras que falam do Grande Caminho 44.
Neste sentido, a tradução mais fiel será “cânone”, que remete para modelo, lei, padrão,
etc., diferente de “tratado” que se refere a manual, compêndio ou pacto, não tendo o
senso de sagrado para que Jing remete.
Caractere polissêmico significa o interno, de dentro, no íntimo, no centro ou no
“coração da vida”, um ensinamento autenticamente secreto do Imperador Amarelo
ensinado e transmitido aos conselheiros que ficavam em torno dele. Eram os mestres,
pensadores médicos eruditos da corte detentores do saber-fazer no contexto daoísta:
“τ interno é a viabilidade (dào 道) da via (dào 道)”, o funcionamento (dào 道) da
própria atividade corporal, que mantém a concordância de correlação do daoísmo no
Cânone Interno - “os cinco internos (wǔnèi 五內) correspondentes às cinco vísceras
(wǔzàng 五臟) profundas do corpo humano” que se localizam no “interno do território
corporal”. τ “coração da vida”, o Imperador, mas, também as vísceras invisíveis-
visíveis sob as influências subtis (shénjīng 經 ) invisíveis “guardadas
Nei 內 preciosamente” no interior dessas cinco vísceras yīn, ou wǔzàng (五 臟) que são o
Fígado (G n 肝), Coração (Xīn 心), Baço (Pí 脾), Pulmões (Fèi 肺), Rins (Shèn 腎)45.
Segundo Wu Ku, autor do Huáng Dì 帝 Nei Jing Su Wen Zhu46; Wang Jiu, autor
do Huang Di Nei Jing Su Wen Ling Shu He Lei47; e Fang Yi zhi, autor do Tong Ya48;
Nei seria uma referência aos cinco armazéns (Zang) e à categorização em Yin e Yang
do corpo humano. Yang Xun, autor do Zhen Jiu Xiang Shuo 49 , comenta que Nei
significa profundo, misterioso. Já para Zhang Jie bin, consoante menciona no primeiro
capítulo do Lei jing: Interno refere-se ao Caminho da vida. Um “cânone” é um livro
que regista o Caminho.50
Então Nei, pode traduzir-se como “interno”, remetendo para o ensinamento restrito –
interno ao grupo; sobre o mais interno e íntimo do ser humano – o Caminho.
Consoante apresentado, Huangdi é o Imperador Amarelo, alegadamente uma
personagem mítica que viveu há 5 mil anos atrás. Segundo Wang Bing, ele nasceu
como um espírito (como alguém divino), sendo uma criança muito precoce – já era
Huang Di 帝
capaz de falar eloquentemente; na sua juventude já estava completamente preparado
para governar, i.e., já havia concluído a sua educação. Como adulto era sincero e
perspicaz, e ao amadurecer ascendeu ao céu51.
Cânone Interno do Imperador Amarelo

Pin Yin acentuado: Sù Wèn | Chinês complexo: 素問 | Chinês simplificado: 素问

Pin Yin Caractere Significado do caractere


O caractere chinês sù (素) remete à fonte da expressão da vida. O termo traduzido do
Su 素 chinês Sù como “Simples”, vem no sentido da vida espontânea, e do viver em
conformidade com o Dào, a via, a espontaneidade, a vida do daoísta, de maneira

44
Fredes, Huang Di Nei Jing [Notas de seminário], 2015/16.
45
Junior (2012) - Capítulo 1, O Clássico Interno do Imperador Amarelo na Antiga China (pp. 24-73).
46
Unschuld (2003), Chapter 1 - The meaning of the title Huang Di Nei Jing Su Wen (pp. 8-21).
47
Unschuld (2003), Chapter 1 - The meaning of the title Huang Di Nei Jing Su Wen (pp. 8-21).
48
Unschuld (2003), Chapter 1 - The meaning of the title Huang Di Nei Jing Su Wen (pp. 8-21).
49
Unschuld (2003), Chapter 1 - The meaning of the title Huang Di Nei Jing Su Wen (pp. 8-21).
50
Unschuld (2003), Chapter 1 - The meaning of the title Huang Di Nei Jing Su Wen (pp. 8-21).
51
Fredes, Huang Di Nei Jing [Notas de seminário], 2015/16.
contextualizada pelo daoísmo da época, é o espontâneo na concretização do Qì na vida
corporal, sua manutenção por meio do ensinamento médico transmitido no texto 52.
Su sugere a imagem, de uma trança feita de seda representada por uma dobadoira:
pode significar natureza original, seda pura seda por pintar, branco (cor); a
constituição original das coisas, matéria, elementos; simples; luto; vegetariano,
alimentos vegetais, dieta vegetariana; até ao presente, normalmente, geralmente. 53
O caractere tem três linhas horizontais a amarrarem uma linha vertical como os fios
da seda. “Su” significa simples e a sua raiz etimológica vem de “seda não pintada”,
remetendo para a pureza, original. Segundo Zhao Gong wu54 esta parte da obra seria
assim designada porque correspondia às questões que o Imperador Amarelo registou
em seda não pintada. Mas as evidências apontam para o sentido figurado da expressão,
como sendo “grande origem” ou “grande pureza”. A maioria dos comentadores
assume o sentido de “simples”.
O sinograma wèn ( 問 ) refere-se no texto do Cânone Interno às “questões” de
correlação da medicina daoísta feitas pelo Imperador Amarelo ao seu ministro e
Wen 問
médico chamado Qì Bó, assim como à conversação desenvolvida com outros
personagens eruditos próximos do Soberano.
Perguntas simples, Perguntas Elementares ou Perguntas da Seda

Pin Yin acentuadoμ Líng Shū | Chinês complexo: 靈樞| Chinês simplificado: 灵枢

Pin Yin Caractere Significado do caractere


Ling significa, vital, inteligência aguda, espiritual. Escrito na forma antiga, Ling tem
os ideogramas55 dos xamãs a chamar pela chuva do céu56.
Jean François Billeter57 diz que o sinal chinês Líng 靈 significa a eficiência, a ordem
intrínseca do céu dentro da víscera, a inteligência das influências invisíveis do Dào 道,
ou simplesmente (shén , shén dào 道), funcionamento espontâneo regulador dos
sopros dos ventos (Qi 氣, Feng Qi 風氣) no interior das vísceras do corpo do humano
e não estranho ao próprio corpo, permitindo a manutenção da regulação ou equilíbrio
dos próprios sopros corporais. A eficiência ou virtude (dé 德) - noção central na
Ling 靈
relação Humanidade-Céu - a eficiência (dé) característica do sábio chinês pelas suas
ações eficientes de obter o Dào 道, lhe confere a autoridade na manutenção da virtude
obtida (dé 得) na vida espontânea, de maneira constante. Por isto, o Líng (靈), do Líng
shū não possuirá noção teológica ou teleológica, mas, antes significa o ritmo celeste
(ti n yùn ) regularmente distribuído pelas aberturas e fechamentos nos seus
ritmos alternados (yùn shū 樞). Dessa maneira, o termo líng fornece alusão tanto às
ordens eficientes (shén líng 靈)58 como à ordem intrínseca do dào (li 理) no interior
das cinco vísceras (záng 臟).

52
Junior (2012) - Capítulo 1, O Clássico Interno do Imperador Amarelo na Antiga China (pp. 24-73).
53
Lao Tse (2010) – Tao Te king Livro do Caminho e do bom caminhar [comentário do tradutor António Miguel de Campos
(pp. 96)].
54
Citado em Unschuld (2003), Chapter 1 - The meaning of the title Huang Di Nei Jing Su Wen (pp. 8-21).
55
Ideograma: termo derivado do grego, ideo (ι ω) significa idéia, grama (γ ά α), caractere. Símbolo gráfico que
representa uma palavra ou idéia, e um conceito abstrato. O vocábulo ideograma foi forjado a partir da ilusão nascida no
século XVI, que grafias chinesas evocam idéias. Estas, atualmente não são admitidas por linguistas do idioma chinês que
preferem o vocábulo sinograma ao se referir aos caracteres chineses.
56
Fredes, Huang Di Nei Jing [Notas de seminário], 2015/16.
57
Citado em Junior (2012) - Capítulo 1, O Clássico Interno do Imperador Amarelo na Antiga China (pp. 24-73).
58
Shénlíng ( 靈): eficiência invisível, dimensão do invisível, ordem intrínseca das constituições do Céu, da Terra e das
dez mil coisas viventes, ordem reguladora dos sopros, inteligência, perspicácia.
Sinograma shū ( 樞 ), “de pivô, eixo giratório, permite abertura e fechamentos
alternados e regulados como o de uma porta que guarda algo precioso” e eficiente 59.
Shu tem os ideogramas de uma árvore, que representa um pilar que comunica o Céu e
a Terra. Shu significa o ponto-chave de, é o eixo de algo, é o centro onde algo se
origina60.
Shu 樞 O sinograma Shū também evoca a noção da “lança” ou agulha do metal (zhēn 鍼), que
serve para ser inserida nas cavidades dos sopros localizadas na superfície cutânea -
estas mesmas cavidades corporais servem de pivô ou eixo - com o significado de
centro (zhōng) de comunicação entre a Humanidade, o Céu e a Terra na acolhida do
invisível com a sua eficácia maravilhosa (língshén 靈 ), na manutenção e no
tratamento do yīnyáng do corpo61.
Eixo do espírito, Pivô do Espírito ou Centro do Espírito

59
Citado em Junior (2012) - Capítulo 1, O Clássico Interno do Imperador Amarelo na Antiga China (pp. 24-73).
60
Fredes, Huang Di Nei Jing [Notas de seminário], 2015/16.
61
Junior (2012) - Capítulo 1, O Clássico Interno do Imperador Amarelo na Antiga China (pp. 24-73).
Versões da obra
τ σèi Jīng 內經 aparece como um único livro mas o nosso conhecimento acerca das edições, comentários e
versões é muito diverso e, em vários pontos, obscuro, já que foi
apenas na Dinastia Song (960-1276 EC) que ele terá sido
finalmente editado como Huáng Dì σèi Jīng Sù Wèn Líng Shū
帝內經素問靈樞.

Assim, embora as suas bases remontem ao final da Dinasta Zhou


(1029-256 AEC) e, especialmente, à Dinastia Han (206 AEC-
220 EC), o Cânone Interno foi sujeito a significativos rearranjos,
interpretações e adições, culminando com a edição do Sù Wèn
素問 de Wang Bing 王冰, no século VIII (762 EC) e, finalmente,
com a edição produzida pela Editora Imperial no século XII
(1155 EC) do Líng Shū 靈樞 sob a direção de Shi Song. 史崧.
Desta forma, podemos dizer que a nossa versão atual reflete os
textos que remontam há dois mil anos, embora não seja
exatamente a mesma, estando mais próxima das obras das
dinastias Tang e Song, portanto há apenas mil anos.

Apesar da autoria do Cânone Interno ser atribuía a Huàng Dì


帝, as evidências apontam noutro sentido. Por um lado, a obra
remonta há apenas 2 mil anos sendo que o Imperador Amarelo
terá caminhado nesta terra há 5 mil! Por outro, na China antiga
era prática corrente atribuir a autoria das obras importantes a
figuras lendárias, ou figuras de referência, como forma de trazer
autoridade e respeitabilidade à obra – marketing chinês62 . Há
ainda autores que referem que este livro, como muitos outros,
poderá ter sido escrito por mandato imperial e, como ao mudar
de dinastia, se o imperador não gostasse do livro era prática
corrente sentenciar o autor com pena de morte, os eruditos
preferiam manter o anonimato63.

Podemos ainda conjeturar, um pouco de encontro ao comentário


de Yolaine Escande 64 , que o compilador clássico não se
considerava o autor da obra mas sim, aquele que permitia a
manifestação da textualidade em união ao Dào 道 , a via
funcional, que guia (Dào ) e viabiliza (Dào 道) seguindo a
estética chinesa da ordem ritual (lǐ 禮) e de regulação (lǐ 理),
que dá nascimento a tudo, o Dào (道).
Figura 4 – “Seeking the Tao in a Cavern-Heaven”,
Tai Chin, dinastia Ming, Séc. XV.

62
Comentado por Fredes, Huang Di Nei Jing [Notas de seminário], 2015/16.
63
Comentado por Fredes, Huang Di Nei Jing [Notas de seminário], 2015/16.
64
Citado em Junior (2012) - Capítulo 1, O Clássico Interno do Imperador Amarelo na Antiga China (pp. 24-73).
Huang Di Nei Jing (Dinastias Zhou - Han)
18 Juan (Volumes ou Rolos)

Su Wen Ling Shu


(9 Juan) (9 Juan)

Su Wen Ling Shu


Edição de Wang Bing Edição de Shi Song
24 Volumes - 81 12 Volumes - 81
(762 EC) (1155 EC)
Capítulos Capítulos

Entre o período Han oriental (25-220) e Wei (220-265), o mestre médico daoísta Huáng Fǔ mì 皇甫謐 (215-
282), compilou em 259 o livro Huang Di San Bu Jia Yi Jing, posteriormente denominado de Zhēn Jiǔ Jiǎ Yǐ
Jīng 鍼灸 乙經65, obra que faz referência e comenta o conteúdo dos 9 rolos do Sù Wèn 素問 e os 9 rolos do
Zhēn Jīng 鍼經 (outro nome atribuído ao Lingshu), tratando-se assim dos comentários mais antigos à obra de
que há registo66. Outro mestre e médico daoísta, chamado Quán Yuán qĭ 全元起, na dinastia Liang (502-557),
terá escrito a primeira versão comentada dos nove rolos do Sù Wèn 素問.

No início do séc.VII (dinastia Tang 618 – 907), o médico daoísta Yáng Shàng shàn 杨 善, escreveu o livro “A
Grande Simplicidade do Cânone Interno do Imperador Amarelo” (Huáng Dì Nèi Jìng Tài Sù 帝內徑 素)67,
anterior à versão de Wáng Bīng 王冰, mas que se perdeu na dinastia Song). Nesta mesma dinastia, Wáng Bīng
王冰 publica a sua versão comentada do Cânone Interno. Na dinastia dos Song (960-1117), o Gabinete editorial
imperial reúne uma equipa de académicos - Lin Yi 林億, Sun Qi 孫奇, Gao Bao heng 高 衡, Sun Zhaotong
孫兆, entre outros - que produz a versão do Cânone Interno a que temos acesso na atualidade. Esta versão, o
Chong Guang Bu Zhu Huangdi Neijing Suwen 重廣補註 帝內經素問(Huangdi Neijing Suwen: uma vez mais
amplamente corrigido e comentado), tem por base a obra de Wáng Bīng 王冰.

65
Zhēn Jiǔ (鍼灸): do chinês antigo zhēn (鍼), comumente conhecido e traduzido como acupuntura traduz-se como “flecha
ou lança de metal” e jiǔ (灸) traduz-se por “fogo lento”. Os primeiros instrumentos para puntura na medicina chinesa foram
as pontas de flecha. O termo moxa foi introduzido e vulgarizado na França e Holanda no século XVIII, como moxabustão,
uma corruptela e aglutinação do vocábulo francês, “moxa” e “combustion”, de origem japonesa mogusa.
Tradicionalmente, o fogo (huǒ 火) e o metal (jīn 金), são respectivamente dominante e dominado, concomitantes no ciclo
de correlação do yīnyáng das cinco fases (Wǔ Xing 五 ).
66
Junior (2012) - Capítulo 1, O Clássico Interno do Imperador Amarelo na Antiga China (pp. 24-73).
67
Segundo Yamada (1979), o Huáng Dì Nèi Jìng Tài Sù 帝內徑 素, composto por 30 rolos, representa o estado mais
antigo do Clássico Interno, estando mais próximo da versão original, contudo a organização da disposição das “Questões
Simples” e do “Eixo do Espírito” está indiferenciada. Esta obra esteve perdida durante muitos séculos tendo sido encontrada
uma cópia, no século XI, em bom estado de preservação, nos arquivos de num templo Japonês.
Dinastia Han oriental (25-220) e Wei (220-265)
•Huang Fu mi 皇甫謐 - Huang Di San Bu Jia Yi Jing aka Zhen Jiu Jia Yi Jing 鍼灸甲乙經 - obra mais antiga
com comentários e conteúdos relacionados ao Su Wen

Dinastia Ji e Liang (479 – 579)


•Quan Yuan qi 全元起 - Su Wen Xun Jie - primeira edição comentada do Su Wen

Dinastia Tang (618 – 907)


•Yang Shang shan 杨上善 - Huang Di Nei Jing Tai Su - texto que preservou a forma original da obra
clássica
•Wang Bing 王冰 - Zhong Guang Bu Zhu Huang Di Nei Jing Su Wen

Dinastia Song
•Lin Yi, Sun Qi, Gao Baoheng, Sun Zhao, etc. - Chong Guang Bu Zhu Huangdi Neijing Suwen 重廣補註黃帝
內經素問 - revisão da versão da Wang Bing.

Dinastia Ming (1368-1644)


•Ma Shi 马莳 - Huang Di Nei Jing Su Wen Zhu Zheng Fa Hui 黄帝内经素问注证发挥 e Huang Di Nei Jing
Ling Shu Zhu Zheng Fa Hui 黄帝内经灵枢注证发挥
•Wu Kun 吴昆 - Su Wen Wu Zhu 素问吴注, aprofunda os comentários e explicações da obra de Wang Bing
•Zhang Jie bin 张介宾 - Lei Jing 类经, organiza os vários capítulos em Yang Sheng, Yin e Yang, Zang Fu,
Jing Luo, etc., e recorre ao Yi Jing 易经 e filosofia para enriquecer as suas explicações e comentários

Dinastia Qing (1644 – 1911)


•Zhang Zhi cong 张志聪 - Huang Di Nei jing Su Wen Ji Zhu 黄帝内经素问集注 e Huang Di Neijing Ling Shu
Ji Zhu 黄帝内经灵枢集注, explica os aspetos fundamentais dos comentários e explicações introduzidos
pelos autores prévios
•Gao Shi shi 高世栻 - Huang Di Nei Jing Zhi Jie 黄帝内经直解, versão simplificada da obra tipo "Nei Jing for
dummies"
•Zhang Qi - Su wen shi yi, identificação dos conteúdos da obra que o autor considera que não fazem
sentido ou estão descontextualizados
•Hu Shu - Huang Di nei jing su wen jiao yi, introduziu a abordagem moderna para interpretação do
texto
•Yu Yue - Nei jing bian yan, discussão de aspetos confucionistas da obra

Zhong Guang Bu Zhu Huang Di Nei Jing Su Wen 重廣補註 帝內經素問, Wang Bing 王冰
A versão de Wáng Bīng 王冰 - Zhòng Guăng Bŭ Zhù Huáng Dì Nèi Jīng Sù Wén – é a mais comumente
referenciada na atualidade. Consoante referido, esta versão remonta ao ano 762 da era corrente, tratando-se,
segundo Larry Ibarra (2015)68, de um período histórico em que a tendência se centrava em conhecer o “como”,
ignorando os “porquês”, razão pela qual Wáng Bīng 王冰 se dedicou à recuperação da essência da medicina
chinesa, dedicando 12 anos da sua vida à investigação e recuperação desta obra.

Temo que (estes textos) se dispersem entre o conhecimento superficial, cortando assim a
dádiva dos mestres, consequentemente escrevi comentários, para que seja utilizado na
transmissão sem corrupção (deste ensinamento). Combinei-o com o antigo volume oculto,
unindo-o em 81 capítulos e em 24 volumes, formando um todo.

68
In “O Cânone Interno do Imperador Amarelo” (Nei Jing) nas palavras do próprio εestre Wang Bing; 2015. Disponível
em www.larryibarra.com (retirado em Junho de 2015).
Desejo que investigando a causa, se compreenda a cabeça, e buscando nos comentários
se compreenda o cânone e se abra aos principiantes para que os princípios supremos
sejam propagados…69

O seu trabalho consistiu em compilar, corrigir e comentar os vários parágrafos da obra - dado o estado deplorável
em que encontrou o texto – contando com a ajuda de ilustres académicos e clínicos. No entanto, consoante o
próprio autor comenta no seu prefácio, o culminar da sua investigação dever-se-á ao facto de ter recebido uma
edição secreta do texto do sábio Zh ng Zhòng jǐng 張仲景70, o que lhe permitiu esclarecer a estrutura conceitual
do texto e o corpo de ideias nele contido:

Estive algum tempo no Salão do meu εestre Guō Zǐ Zhāi, de quem recebi uma edição
secreta do mestre ancestral, o venerável Zhāng (Zhòng jǐng). A escrita era evidentemente
clara e o significado dos seus princípios, completo. Ao examiná-lo em detalhe, as dúvidas
dissolveram-se como o gelo.71

Pela obscura semântica adotada na obra, Wáng Bīng 王冰 escreveu uma série de textos que clarificam a sua
teoria, dando especial atenção à disciplina dos 5 Ciclos e 6 Qi (Wǔ Yùn Liù Qì 五运六气72), especificamente é
autor do “Xuan Zhu Mi Yu” e “Tian Yuan Yu Ce”, dedicados ao estudo da teoria do σei Jing; e do “Yuan He
Ji Yong Jing”, apresentando as prescrições e a aplicação dos medicamentos segundo os 5 Ciclos e os 6 Qì73.

69
Prefácio do Nei Jing de Wang Bing, cit in Fredes (2015) Sebenta do Curso de Huang Di Nei Jing - Medicina Chinesa
Clássica: Módulo I - Seminário 1; pp. 14.
70
Zh ng Zhòng jǐng 張仲景 (nome oficial Zhang Ji 張機; 150-219 d.C., dinastia Han), o autor da obra Shang Han Za Bing
Lun. Era bom no tratamento de doenças induzidas pelo frio e doenças miscelâneas, sendo também exímio na aplicação de
fórmulas.
71
In “O Cânone Interno do Imperador Amarelo” (Nei Jing) nas palavras do próprio εestre Wang Bing; 2015. Disponível
em www.larryibarra.com (retirado em Junho de 2015).
72
Wǔ Yùn Liù Qì:
五 wǔ five; 5
运 yùn to move; to transport; to use; to apply; fortune; luck; fate
六 liù six; 6
气 qì gas; air; smell; weather; vital breath; to anger; to get angry; to be enraged
in https://chinese.yabla.com/chinese-english-pinyin-dictionary.
73
In “O Cânone Interno do Imperador Amarelo” (Nei Jing) nas palavras do próprio εestre Wang Bing; 2015. Disponível
em www.larryibarra.com (retirado em Junho de 2015).
Enquadramento histórico-filosófico
Na cultura ocidental, a origem do termo “filósofo” deriva da expressão
“amante do saber”, o que aponta para que, desde os seus primórdios, a
filosofia ocidental estaria mais interessada no conhecimento. Por seu
lado, a filosofia chinesa74, foca-se mais no valor e sentido da vida, onde
a virtude e o conhecimento sobre a virtude eram abordados como
«honrar a virtude» (zun de xing 尊德性) e «seguir a via do estudo e
questionamento» (dao wen xue 道问学) 75.

Mas fará sentido a expressão “filosofia chinesa”ς Haverá uma


“nacionalidade” para a filosofiaς De forma geral não é pacífica a
existência da “filosofia chinesa”, sendo que os autores se dividem em
duas posições76:

1. Não existe uma filosofia chinesa: o que temos é um


conhecimento, um modo de pensar e agir dos Mestres, que não
seguindo o método ocidental não pode ser incluído na
disciplina de filosofia;

2. Falamos de filosofia chinesa quando77:

a. Filósofos chineses, seguindo o método ocidental,


desenvolvem o seu pensamento;

b. Sempre que as atividades filosóficas estão a ser


executadas na língua chinesa.

Em sentido restrito, filosofia deriva da expressão grega “amante da


sabedoria” 78, tendo a sua origem na Grécia, onde se desenvolveu o
“método filosófico”. σo entanto, num sentido mais abrangente,
poderíamos incluir qualquer teoria que traz contributos para a Figura 5 – “Listening to the Wind in the
construção, ou questionamento, da compreensão humana – então Pines”, Ma Lin (c. 1180-1256), Southern Sung
qualquer tema pode-se tornar objeto/sujeito de estudo filosófico – dynasty.
sendo que o pensamento chinês se enquadra neste sentido.

74
Chuan tong zhe xue ru men (chuan tong = tradicional, clássico, zhe xue = teoria; ru men= porta de entrada). Para
informações detalhadas consultar http://www.iep.utm.edu/chin-ovr/.
75
Gui Yi, “Cosmology, nature and mind – A new philosophical view on Dao”, Institute os Philosophy Chinese Academy
of Social Sciences.
76
Masayuki Sato (n.d.). Introduction to Classical Chinese Philosophy [Notas de aula]. National Taiwan University.
77
σa tentativa de afirmar uma “filosofia chinesa” autores como Feng Youlan (que estudou nos EUA), tentaram articular a
perspetiva chinesa, com os construtos da filosofia ocidental, outros, consideram que a filosofia não é universal, e que a
expressão deve ser reservada aos descendentes da “escola grega” com a sua argumentação e questionamento, pois estes
não são capazes de trazer respostas às questões chinesas.
78
(…) o primeiro a intitular-se filósofo (amante do saber) e a usar o termo filosofia foi Pitágoras, pois dizia que ninguém
é sábio, salvo o deus. Diógenes de Laércio
Sabedoria: termo que vem do gregro sophia e é um termo fundamental na linguagem filosófica. A sua compreensão torna-
se tanto mais delicada quanto os seus significados são múltiplos. Originariamente o termo teve um sentido técnico, ou
prático, pois significa habilidade para realizar uma determinada atividade, adquirindo posteriormente um sentido
acentuadamente teórico, especulativo, passando a significar conhecimento. Então o termo comporta um aspeto de
conhecimento e outro de ação, saber e virtude, um conhecimento que se traduz por uma certa forma de conduta. A sabedoria
(…) é uma espécie de ciência, mas na qual a teoria e a prática deixam de se distinguirμ é a ciência da vida espiritual (…),
a única em que há uma identidade necessária entre o conhecer e o fazer. L. Lavelle
Curiosamente esta discussão quanto à existência ou não existência de uma filosofia chinesa foi iniciada no séc.
XIX com a invasão do ocidente à China, pois quando os missionários chegaram à China séculos antes, em
momento algum questionaram a possibilidade de Confucius, Mencius, entre outros mestres da antiguidade,
serem ou não filósofos!79

Segundo Gui Yi 80 , a metafísica 81 é a fundação e o cerne da “filosofia chinesa”. Desde Aristóteles que a
metafísica é chamada da “primeira filosofia”, mas a filosofia ocidental moderna afastou-se da metafísica
orientando-se para as ciências concretas, da substância para o fenómeno, do a priori para a experiência – a
separação entre substância e fenómeno é uma característica base e uma limitação da metafísica ocidental, o
que, segundo o autor, resultou no seu declínio.

A metafísica tradicional chinesa preocupa-se com os diferentes níveis de ontologia82, natureza humana e mente
humana, tendo o termo “metafísica” (形而 学|形而 學 Xíng ér shàng xué) – origem na própria filosofia
chinesa: O que está além da forma física é chamado Dao, o que tem forma física é chamado uma coisa
concreta.83

Frederick W. Mote (1922–2005)84 comenta que os europeus e americanos modernos insistem em fazer a pouco
examinada, e até mesmo bastante insuportável suposição de que, todas as pessoas encararam o cosmos e a
humanidade como produtos de um criador exterior a estes. Os ocidentais ao traduzir os textos chineses
simplesmente confiaram em expressões falsamente análogas da nossa própria cultura lendo-os mecanicamente.
A propósito da cosmologia chinesa, Mote 85 salienta as palavras de Jung que comenta que a remota mente
chinesa contempla o cosmos de forma comparavel à do físico moderno, que não pode negar que o seu modelo
se trata de uma estrutura decididamente psicofísica. Needham, ao analisar esse modelo chinês chama-lhe “uma

79
Comentado por Masayuki Sato (n.d.). Introduction to Classical Chinese Philosophy [Notas de aula]. National Taiwan
University.
80
Gui Yi, “Cosmology, nature and mind – A new philosophical view on Dao”, Institute os Philosophy Chinese Academy
of Social Sciences.
81
Metafísica: A palavra metafísica possui origem grega e significa meta - depois de, além de; e física/physis - natureza ou
físico, e trata-se de um ramo da filosofia que se ocupa em estudar a essência do mundo. Pode ser definida como o estudo
do ser ou da realidade, e destina-se a procurar respostas para perguntas complexas como: O que é realidade? O que é a
vida? O que é natural? O que é sobrenatural? O que nos faz essencialmente humanos? Para se formular um pensamento
metafísico é preciso pensar, sem estar baseado em dogmas ou de forma superficial, nos básicos e intrigantes problemas da
existência humana. São problemas básicos por serem fundamentais para a vida humana e porque muitos aspectos da vida
dependem deles. Tomemos como exemplo a religião, ela não é metafísica, porém quando nos questionamos sobre o motivo
das crenças e das práticas religiosas e a sua influência no viver diário, passamos a pensar metafisicamente.
82
Ontologia: termo derivado de duas palavras gregas, ontos (ser) e logos (discurso, ciência). Significa portanto,
literalmente, o discurso, tratado, ou ciência acerca do ser. De modo geral e simples pode ser tomado como procura do ser,
da realidade essencial, e não das aparências ou fenómenos – investigação que tem constituído, através dos séculos, um dos
temas essenciais da filosofia. A ontologia trata do ser enquanto ser, isto é, do ser concebido como tendo uma natureza
comum que é inerente a todos e a cada um dos seres. Costuma ser confundida com metafísica.Conquanto tenham certa
comunhão ou interseção em objeto de estudo, nenhuma das duas áreas é subconjunto lógico da outra, ainda que na
identidade. Ontologia é a parte da Filosofia que estuda os aspectos universais da realidade. Diferentemente da Metafísica,
a Ontologia não utiliza, necessariamente, a noção de transcendência, podendo ser Especulativa ou Científica.
83
The commentaries of The Book of Changes, cit in Gui Yi, “Cosmology, nature and mind – A new philosophical view on
Dao”, Institute os Philosophy Chinese Academy of Social Sciences.
 Wing-Tsit Chan’s translation: What exists before physical form [and is therefore without it] is called the Way.

 Gui Yi translation: what is beyond physical form is called Dao, what has physical form is called a concrete thing.
What exists after physical form [and is therefore with it] is called a concrete thing.

84
Citado por Masayuki Sato (n.d.). Introduction to Classical Chinese Philosophy [Notas de aula]. National Taiwan
University.
85
Citado por Masayuki Sato (n.d.). Introduction to Classical Chinese Philosophy [Notas de aula]. National Taiwan
University.
harmonia ordenada de vontades sem ordenador”. Este cosmos “orgânico” chinês emerge-nos em contraste a
todas as outras conceções conhecidas da sociedade humana.

Neste mesmo sentido, comenta o Dicionário das grandes filosofias, que a fronteira entre o Ocidente e o Oriente
estabelece-se na China, sendo por isso necessário, um esforço por parte do investigador ocidental para refundir
as noções que, no Ocidente, se encontram disjuntas – pessoa e mundo, natureza e cultura - e esquecer a
distribuição em campos específicos tal como a praticamos: filosofia geral86, moral87 e epistemologia88.

Encontramo-nos então na presença de uma “sabedoria”, de uma ordenação sempre global do universo social e
natural, a partir da qual não é possível extrair sistema algum particular, visto cada um caracterizar o conjunto
das atitudes. Assim acontece com a linguagem: ela não é para os chineses um instrumento de sinalização ou de

86
Filosofia: do grego Φ ο οφ α, literalmente «amigo da sabedoria» ou «amor pelo saber». Consiste no estudo de
problemas fundamentais relacionados à existência, ao conhecimento, à verdade, aos valores morais e estéticos, à mente e
à linguagem. Além do desenvolvimento da filosofia como uma disciplina, a filosofia é intrínseca à condição humana, não
é um conhecimento, mas uma atitude natural da pessoa humana em relação ao universo e seu próprio ser. A filosofia foca
questões da existência humana, mas diferentemente da religião, não é baseada na revelação divina ou na fé, e sim na razão.
Desta forma, a filosofia pode ser definida como a análise racional do significado da existência humana, individual e
coletivamente, com base na compreensão do ser. Apesar de ter algumas semelhanças com a ciência, muitas das perguntas
da filosofia não podem ser respondidas pelo empirismo experimental. A filosofia pode ser dividida em vários ramos. A
“filosofia do ser”, por exemplo, inclui a metafísica, ontologia e cosmologia, entre outras disciplinas. A filosofia do
conhecimento inclui a lógica e a epistemologia, enquanto filosofia do trabalho está relacionada a questões da ética.
87
Moral: vem do termo latino mores que significa costumes, e etimologicamente equivale a ética que vem do grego ethos,
exatamente com o mesmo significado. Dum modo muito simplista poder-se-ia dizer que a moral, ou a ética, é a ciência dos
costumes, ocupa-se do modo como as pessoas se comportam. Mais especificamente, estuda a ação humana sob o ponto de
vista normativo, procurando estabelecer como ela deve ser, como a pessoa deve atuar.
Podemos ainda fazer uma distinção entre os termos moral e ética, sendo que a ética será uma reflexão filosófica, portanto
puramente teorética sobre os problemas levantados pela ação humana, quando encarada sob o ponto de vista do bem e do
mal; procura ser uma fundamentação racional da nossa conduta. Ao passo que a moral, termo de uso mais comum, significa
frequentemente o estabelecimento do conjunto de deveres, de normas de conduta a que cada um de nós está sujeito, na sua
vida privada e social.
Moral é então o conjunto de crenças, costumes e valores simbólicos que regem toda uma Sociedade. A moral é aquilo que
se submete a um valor. Hegel distingue a moralidade subjetiva (cumprimento do dever, pelo ato de vontade) da moralidade
objetiva (obediência à lei moral enquanto fixada pelas normas, leis e costumes da sociedade, a qual representa ao mesmo
tempo o espírito objectivo). Ética é uma espécie de Hermenêutica da própria Moral, visto que ela interroga as crenças, os
costumes e valores da sociedade contemporânea. Assim, é comum que actualmente a ética seja definida como "a área da
filosofia que se ocupa do estudo das normas morais nas sociedades humanas" e busca explicar e justificar os costumes de
um determinado agrupamento humano, bem como fornecer subsídios para a solução de seus dilemas mais comuns. Neste
sentido, ética pode ser definida como a ciência que estuda a conduta humana e a moral é a qualidade desta conduta, quando
julga-se do ponto de vista do Bem e do Mal.
88
Epistemologia: significa ciência, conhecimento, é o estudo científico que trata dos problemas relacionados com a crença
e o conhecimento, sua natureza e limitações. É uma palavra que vem do grego ἐπ [episteme]: conhecimento
científico, ciência; όγο [logos]: discurso, estudo de. A epistemologia estuda a origem, a estrutura, os métodos e a validade
do conhecimento, e também é conhecida como teoria do conhecimento e relaciona-se com a metafísica, a lógica e a filosofia
da ciência. É uma das principais áreas da filosofia, compreende a possibilidade do conhecimento, ou seja, se é possível o
ser humano alcançar o conhecimento total e genuíno, e da origem do conhecimento. A epistemologia também pode ser
vista como a filosofia da ciência. A epistemologia trata da natureza, da origem e validade do conhecimento, e estuda
também o grau de certeza do conhecimento científico nas suas diferentes áreas, com o objetivo principal de estimar a sua
importância para o espírito humano.
A epistemologia surgiu com Platão, onde ele se opunha à crença ou opinião ao conhecimento. A crença é um ponto de vista
subjetivo e o conhecimento é crença verdadeira e justificada. A teoria de Platão diz que conhecimento é o conjunto de
todas as informações que descrevem e explicam o mundo natural e social que nos rodeia.
A epistemologia provoca duas posições, uma empirista que diz que o conhecimento deve ser baseado na experiência, ou
seja, no que for apreendido durante a vida, e a posição racionalista, que prega que a fonte do conhecimento se encontra na
razão, e não na experiência.
comunicação interindividual, mas situa os indivíduos na sociedade e no universo, sendo neste ponto solidária
de todas as outras técnicas de inserção social e cósmica89.

Chantal Favre90, comenta que o laço da coisa ao ideograma não é convencional; a expressão figura o pensamento
ou a coisa no sentido em que a realiza. Este funcionamento extremamente complexo e preciso exclui, pois, a
abstração; por exemplo, o espaço e o tempo não são formas vazias, mas conjuntos de agrupamentos ou de
ocasiões, divisíveis em regiões - o espaço tem forma quadrada, o tempo aproxima-se ao círculo - não existem
enquanto ideias gerais mas na dependência de situações ativas ou passivas sempre concretas.

A autora continua, afirmando que o pensamento chinês constitui, pois, um fundo de propósitos, de símbolos,
que não é anterior a uma diferenciação em escolas, mas coextensivo a cada uma delas.

Conceitos como Dào (道), Princípio (Lǐ 理), Vazio (Wú 無), Mutação (Yì 易), Céu (Ti n ), Yinyang (Yīn
Yáng 陰陽)91, Cinco Movimentos (Wǔ Xíng 五 )92, Qì 氣, entre muitos outros - foram partilhados pela maioria
das escolas filosóficas chinesas, embora cada uma os interpretasse e os aplicasse de uma maneira particular,
buscando responder às demandas de períodos específicos da história chinesa. Da mesma forma, as várias escolas
debruçaram-se sobre as mesmas questões ontológicas, nomeadamente:

De que é a realidade composta?

É a realidade um único tipo de coisa (monismo), dois tipos de coisas (dualismo, como
mentes e corpos; matéria e espírito), ou muitos tipos de coisas (pluralismo)?

É a realidade composta apenas por coisas transitórias em constante mudança, ou existem


substâncias eternas que formam o seu conteúdo?

É a realidade, na verdade, como aparece para nós, ou é algo diferente do que o que nós
pensamos que é?

É a realidade teleológica; i.e., ela está indo em direção a um fim?

É o processo da realidade guiado por uma mente ou inteligência para ocorrer do modo
que ocorre; ou será que segue algum padrão interno inerente à sua própria natureza; ou

89
Chantal Favre (1979), Filosofias orientais In Dicionário das Grandes Filosofias (pp. 264-268).
90
Opus cit.
91
Yīn Yáng (陰陽): a dupla qualidade do Qì, o espontâneo do sopro vital. O Yīn tem polissemia de quietude, recolhimento,
sombra, escuro, obscuro, escondido, profundo, guardado, frio, genitália, etc.; o Yáng, de movimento, ascensão,
luminosidade, luz, calor, superficial, quente, etc. Mais informações em http://www.iep.utm.edu/yinyang/.
92
Wǔ Xíng (五 ): cinco fases, cinco agentes, cinco organizadores ou cinco movimentos do Qì. τ cinco (Wǔ) – a quinta
fase de movimentação dos sopros, o número da fase terra, da expressão do Qì na vida terrestre; e Xíng ( ), ir, andar,
caminhar, fazer funcionar, agir, no ciclo de sucessão do processo espontâneo, cinco sopros interligados no ciclo de mútua
geração ou relação gerativa (xi ng shēng 相 生). Na sequência há o surgimento do movimento Yang mínimo do Qì, a
“madeira” (Mu 木) que é o surgimento (sheng 生) de tudo, pelo movimento espontâneo dos sopros do shaoyang, que gera
(sheng 生) no seu interior e assim manifesta o segundo Yang, o “fogo” (Huo 火), ou taiyang, a plenitude do Yang Qi,
portador da noção da expansão do Qi, que gera no seu interior e assim manifestam o primeiro Yin, o shaoyin, o metal (Jin
金), que gera o segundo Yin, que atinge o seu apogeu, taiyin, a água (Shui 水). Da união dos “quatro sopros” surge o
“quinto sopro”, a terra (Tu 土). Wuxing possui ainda o ciclo de correlações de dominância mútua (xi ng kè 相克 ou xi ng
shèng 相 勝). A fase de conquista é o agente dominante, o conquistado corresponde ao dominado, onde a madeira domina
a terra, a terra destrói a água, a água conquista o fogo, o fogo domina o metal e o metal domina a madeira.
Durante os Reinos Combatentes, a dinastia Hàn, a correlação segundo o pensamento do “yīn yáng wǔ xíng” entende o
mundo e o ser humano pelas cinco fases de correspondências e ressonâncias estabelecendo correlações entre todas as coisas,
inclusive correspondências com eventos no mundo, como estações, clima, ciclos diários, planetas, cores, sabores,vísceras,
partes do corpo humano, etc. Mais informações em http://www.iep.utm.edu/wuxing/.
serão os seres humanos que atribuem significado ou propósito a uma realidade que é
desprovida de qualquer significado inerente?

Em relação às várias doutrinas, Chantal Favre (1979), comenta que não é possível distingui-las em termos de
oposição simples; é antes sobre a sua pertença ao mesmo fundo que convém interrogar-nos, sendo que para a
autora, tal fundo é dominado pelas noções de Yin e Yang, que não são nem substâncias, nem princípios, mas
antes um par de símbolos eficientes que regulam a universal alternância: são elas que regem o devir, onde cada
um assume alternadamente o primeiro lugar, produzindo-se assim o tempo histórico – uma vez Yin, uma vez
Yang, eis o Dao. A autora salienta que não se trata de dualismo maniqueu, em que duas realidades travam entre
si um eterno combate, mas de duas classes de um poder infinito de classificação e de evocação, que se devem
ler em todas as esferas da sociedade chinesa.

A recusa do termo de princípio para os designar impõe-se porque o Yin e o Yang não possuem caráter algum
transcendente, a ordem humana e a ordem natural são demasiado solidárias para necessitar princípios de
explicação últimos, como os deuses ou princípios convencionais de organização, como as leis. Em todas as
escolas, pelo contrário, se afirma a identidade da harmonia universal e da inteligibilidade universal; não existe,
portanto, lugar para um desenvolvimento autónomo do conhecimento, mas apenas para um refinamento das
técnicas de vida num mundo inteiramente compreensível, radicalmente estranho às noções de inefável ou do
além.

Segundo Feng Yu-lan (1895-1990)93, o propósito da filosofia chinesa é permitir ao ser humano, como humano,
ser humano, e não apenas um particular tipo de humano. A forma mais elevada de realização que o ser humano
pode almejar, para os filósofos chineses, é nada menos que ser um sábio, e a maior realização do sábio é a
identificação do indivíduo com o universo. Neisheng waiwang 內聖外王94 – sábio interior, nobre exterior.
Assim, segundo este autor, o estudo da filosofia não é apenas uma tentativa de aquisição deste tipo de
conhecimento, mas é também uma tentativa de desenvolver este tipo de caráter – sabedoria interior, nobreza
exterior – onde a filosofia não é apenas algo para se saber, mas também algo para ser experienciado.

93
Citado por Masayuki Sato (n.d.). Introduction to Classical Chinese Philosophy [Notas de aula]. National Taiwan
University.
94
Neisheng waiwang 內聖外王:
内 Nèi Inside; inner; internal; within; interior

圣|聖 Shèng Holy; sacred; saint; sage

外 Wài Outside; in addition; foreign; external

Wáng Surname Wang

王 Wáng King or monarch; best or strongest of its type; grand; great

Wàng To rule; to reign over


In https://chinese.yabla.com/chinese-english-pinyin-dictionary.php.
Figura 6 - "De onde vimos? Quem somos? Para onde vamos?", Gaugin (1897).

Em semelhante contexto as duas escolas prevalentes – o daoísmo e o confucionismo95 – visam ajudar o ser
humano a conhecer o seu lugar no universo. O confucionismo, filosofia de letrados, volta-se para o cumprimento
das tarefas sociais, para a prática das virtudes humanas, para o respeito das hierarquias justificado pela
convicção de que poder e saber são uma só coisa; o daoísmo, pelo contrário, é muito mais individualista,
desenvolvendo um itinerário “místico” para atingir a união com o símbolo da ordem: o Dào 道.

As duas escolas, porém, têm em comum o seu caráter assistemático, pelo que, para Chantal Favre (1979), trata-
se antes de uma federação de noções tradicionais, de temas de meditação que permitem o ingresso na sabedoria.
E, por fim, não é nos seus conteúdos filosóficos respetivos, mas na história dos factos sociais (queda das
dinastias e da feudalidade) que as suas diferenças encontram sentido; é preciso então dobrar-se sobre as relações
entre confucionismo e daoísmo, por um lado, e sobre as instuições, o poder político, as diferentes camadas
sociais da China antiga, por outro, para compreender o saber-viver e o saber-fazer “chinês”.

95
τ termo chinês equivalente a “confucionismo”, seria “ru”, que significa académico da tradição ritual, no entanto, segundo
alguns autores, apenas na dinastia Song se passou a associar a expressão “ru” com um seguidor do Mestre Kong, pelo que
todos os “confucionistas” são “ru”, mas nem todos os “ru” são confucionistas! Assim, e pela familiaridade da expressão
vou utilizar “confucionismo” e “neoconfucionismo” para discutir os seguidores do ensinamento do Mestre Kong.
• Yin
• Contemplativo - Wu Wei
• Yang
• Naturalismo, cultivo da
• Ativo - Jun Zi
saúde e procura da
imortalidade • Cultivo moral,
responsabilidade pessoal e
social

Daoismo

Confucionismo

Antiguidade & Filosofia


chinesa

Figura 7 - Confucionismo vs. Daoismo.

Segundo Lucien Febvre96, esta é a tarefa do historiador das ideias, reencontrar a originalidade, irredutível a
qualquer definição a priori, de cada sistema de pensamento nas suas complexidades e nas suas mudanças,
sendo para isso crucial a análise do contexto em que as ideias se formaram, pois negar a relação das ideias com
os demais movimentos da época que as viu nascer, é justamente o contrário do método historiográfico,
instituindo uma história desencarnada onde o pensamento surge como não tendo limites, já que sem quaisquer
dependências. Isolando as ideias do seu contexto é ainda mais forte a fragmentação e retaliação da história, sem
contar nos anacronismos em tentar compreender uma cultura antiga por meio da mesma forma de pensar do
nosso século. Neste sentido, antes de estudar a teoria do Cânone Interno, há que compreender o contexto em
que a obra emergiu, se consolidou e se metamorfoseou, estabelecendo-se como a obra de referência para os
estudiosos e clínicos que seguem os princípios da “Medicina do Centro” (Yī Zhōng 醫中)97.

A Terra do Centro e as suas Cem Escolas de Pensamento

Tse Kung (discípulo de Confúcio) entrou de repente e disse:


“Posso fazer uma perguntaς Acham correto cantar na presença de um mortoς”
Os dois (Meng Tse Fan e Tse Chin Chang, amigos do falecido, Tse Sang Hu) olharam-se e
riram, respondendo.
“Que sabe o morto sobre etiquetaς”98

96
Citado em Junqueira (2013) - Capítulo 1, Sobre o livro de medicina chinesa Huáng Dì Nèi Jīng Sù Wèn Líng Shū 帝
內經素問靈樞 (pp. 17-35).
97
Yī 医 ou 醫, significa medicina, médico, tratar, etc.; Zhōng 中, significa China, chinês, mas também é o caractere para
dentro, entre, em meio, centro, etc. Então, porque não chamar “Medicina do Centro” em vez de “Medicina Chinesa”?
Comentado por Taeja Jaensch, Reassessing Yin and Yang [Notas de palestra on-line], 18 Agosto 2015.
98
Zhuang Zi (Chuang Tse) (2010). A virtude e o vício no caminho do homem perfeito [trad. Alberto Cardoso]. Largebooks.
É no norte da China, nas planícies junto ao rio Amarelo (Huang Ho), que encontramos maior consistência nas
evidências do contínuo desenvolvimento da espécie humana. O Homo erectus pekinensis, há aproximadamente
500 mil anos, já sabia utilizar o fogo, fazer instrumentos de osso e esculpir rudimentares instrumentos de pedra.
Vivia nas cavernas de Zhoukoudian (48 km sudoeste da moderna cidade de Beijing), cavernas estas que foram
ocupadas há 20 mil anos pelo Homo sapiens sapiens. Terá sido ainda, num vale desta região, que há 3500 anos
atrás emergiu uma das primeiras grandes civilizações.

Nas origens do império chinês (1600 – 250 AEC)99

A dinastia dos Shang (ou Yin) aparece no Séc. XVII AEC na confluência de duas culturas neolíticas – Yangshao
e Longshan – na bacia média do rio Amarelo. Com ela manifestam-se os traços específicos da civilização
chinesa antiga: o carro atrelado, a escrita, o bronze, a adivinhação sobre ossos e carapaças de tartaruga, e
uma organização política estruturada em redor da cidade real. Um princípe unitário rege a sociedade na qual
cada indivíduo está integrado pelo culto votado aos antepassados. Assim, esta pode estender-se a sul até ao
lago Dongting, como uma organização política assaz rudimentar, decalcada nas relações de parentesco.

Figura 8 - "China, 2000–1000 B.C.".& "China, 1000 B.C.–1 A.D.". In Heilbrunn Timeline of Art History. New York: The Metropolitan
Museum of Art ,http://www.metmuseum.org (October 2000).

Se os Shang mantêm laços de aliança ou de vassalagem com alguns dos seus vizinhos, o certo é que os seus
contactos com o exterior são na maioria das vezes conflituosos. Eles praticam a imolação dos prisioneiros para
alimentar os manes100 ancestrais, verdadeiros mentores da sociedade.

Os Shang acreditavam que a sua existência estava intimamente relacionada com o universo no qual se inseriam,
acreditavam também que estavam no Centro, com os Céus acima e a Terra abaixo.

 Vidal-Naquet & Bertin, Atlas histórico – da Pré-história aos nossos dias (1987; pp. 42-43)
99
Secção compilada a partir de:

 http://www.shen-nong.com/eng/history/shang.html
 http://www.shen-nong.com/eng/history/zhou.html
100
Substantivo masculino plural, referindo-se às sombras ou almas dos mortos, deuses infernais do paganismo ou, em
sentido figurado, as memórias dos ancestrais. Para os romanos espíritos benevolentes dos antepassados.
Os princípios médicos eram ainda muito primitivos e baseavam-se em mitos
Acontecimentos chave e lendas assim como a experiência do dia-a-dia. Não obstante, as inscrições
Séc. VII: aparecimento do bronze. em ossos oraculares já documentam a utilização de vinho e água quente
Fundação da dinastia dos Shang-Yin como medicamentos, assim como a utilização de agulhas e lanças de bronze
1273: o imperador Zujia reforma o como instrumentos “cirúrgicos”.
regime cultural instaurando
sacrifícios regulares aos A expansão da cultura Shang provoca tensões numa sociedade rígida e
antepassados ligados ao ciclo conduz à sua ruina. No entanto, a realeza arcaica consegue um segundo
calendárico
fôlego com a dinastia dos Zhou, instaurada por um povo dos confins
Séc. XII: primeiras inscrições sobre ocidentais. Esta nova dinastia é produto da revolta liderada pelo sábio rei
vasos de bronze
Wen de Zhou, e o primeiro governador será o seu filho, o rei Wu e o duque
Séc XI: derrube da dinastia dos Yin Zhou, consistindo naquele que ficou conhecido como o governo ideal que
pelos Zhou. O rei Wu, fundador da
inspirou a obra de Confucius.
nova dinastia, reparte o território
pelos membros da sua família e
aliados Mercê de uma transformação do sistema do culto familiar dos antepassados,
a sociedade ductiliza-se e segmenta-se. As casas territoriais cedem o lugar a
771: uma incursão de bárbaros
Rong, beneficiando da cumplicidade feudos outorgados pelo rei a grandes senhores que presidem ao culto dos
da família real, obriga o rei Ping a antepassados. Embora gradualmente debilitada, em virtude da pressão
transferir a capital mais para leste – bárbara, a realeza logra mesmo assim conservar o prestígio religioso e moral
Luoyang. Os Zhou caem sob a
dependência dos príncipes de em face do poderio dos senhores até ao Séc. VIII AEC.
Zheng, Wei, Jin e Song
Com a entrada no período conhecido como “Primavera e τutono” (ιι2), e
ιι2μ início do período “Primavera e
τutono”
posteriormente,
“Reinos A obra Zhōu Yì 周易 documenta o processo
510: difusão da fundição do ferro
Combatentes” de ascensão ao poder da família Zhou sob a
479: morte de Confúcio (453), a China liderança do Rei Jichang (Wen Wang).
453: desmembramento do Jin em entra num período
três reinos: Zhao, Han e Wei. Início que se pode considerar adinástico – tratando-se de uma etapa fundamental
do período “Reinos combatentes” para o desenvolvimento das escolas de pensamento chinesas. Embora
politicamente os períodos “Primavera e τutono” e “Reinos Combatentes”
tenham ficado marcados pelo caos e guerras constantes, são também
considerados o período dourado da filosofia chinesa, sendo Lǎo Zǐ 老子 (c.
500 AEC), Kǒng Zǐ 孔子 (c. 500 AEC), Mò Zǐ 墨子 (c. 4ιί AEC), Zhu ng Zǐ 莊子 (c. 4ηί AEC) e Hán Fēi Zǐ

Figura 9 – Esquerda: Território abrangido pela dinastia Shan. Direita: Território ocupado pelos Zhou.
韓 非 子 (c. 233 AEC), alguns dos principais mestres que emergiram neste período, cujos contributos
influenciaram o pensamento chinês e a medicina chinesa até aos dias de hoje101 - este tema será explorado em
maior profundidade na secção O período dourado da filosofia chinesa.

O sistema da hierarquia dos cultos atinge o seu ponto último de aperfeiçoamento e o rito é erigido em norma
universal de comportamento, graças à obra de ajuste e de reinterpretação das condutas num sentido humanista
empreendido por Confucius aquando da composição dos “Clássicos”. Qualquer civilização possui uma herança
intelectual que é venerada, sobretudo pela classe governante. A herança intelectual que foi valorizada pelos
intelectuais do período dos Reinos Combatentes, são os chamados “Clássicos”, sendoμ Poemas, Documentos,
Rituais e Música, Anais da Primavera e Outono e o Cânone das mudanças.

Todavia, a sociedade nobre é ameaçada pela constituição de grandes unidades políticas autónomas, ao passo
que os principados do Centro permanecem um enxame de senhorios ciosos das suas prerrogativas, os Estados
periféricos dilatam os seus domínios à custa dos Bárbaros, sendo os territórios conquistados divididos em
prefeituras dependentes da administração central. É assim que o Jin, o Qi, o Chu e o Qin exercerão um papel
preponderante em razão do seu peso militar e económico.

A organização do exército, fundado no recrutamento de camponeses independentes e usufrutuários, aniquila a


moral heroica do guerreiro nobre levando o infante a prevalecer sobre os carros.

A rutura do equilíbrio em detrimento do prestígio ritual e em benefício do poderio efetivo denuncia os traços
mais duros da sociedade: um sistema de tarifação das penas enfeuda os súbditos a um soberano que encarna a
lei social e cósmica.

A difusão da fundição, a partir do Séc. VI AEC, submete os camponeses ao poder central ou aos grandes
empreendedores ligados ao Estado. À medida que os pequenos principados desaparecem, o poder tende a
concentrar-se nas mãos do chefe de feudo que se torna um autêntico monarca, beneficiando do concurso de
administradores competentes, recrutados em função das suas capacidades e não do seu nascimento.

O Estado Qin procede a uma série de reformas que darão a proeminência sobre os seus rivais. Nem as inversões
de alianças, nem as ligas dos grandes Estados, conseguem conter a irrestível progressão de Qin para leste. A

101
Segundo Elisabeth de la Vallée Rochat (cit in Junqueira, 2013), devemos ainda destacar em relação a este período, o
desenvolvimento das técnicas das artes dos “mestres das receitas” ou dos Fang Shi (方士) da medicina fora do círculo
imperial, aspeto relevante para a pré-escritura do Cânone Interno. Também é importante destacar, que embora estes autores,
e a formação destas escolas, remonte à Dinastia Zhou do Leste (770-256 AEC), foi apenas durante a Dinastia Han (206
AEC-220 EC), com a consolidação do primeiro grande império chinês, que todo este conhecimento antigo foi resgatado,
havendo sobrevivido a diversas guerras entre os antigos estados e à grande perseguição e queima de livros - tidos como
subversivos e reacionários - durante a Dinastia Qin, a qual buscava apagar o “antigo” passado chinês e assim criar um
“novo”, sob sua autoridade (Junior, 2012).
anexação do território dos Zhou não faz mais que sancionar um Estado
que de facto existia há mais de dois séculos. Acontecimentos chave
350: reformas de Shang Yang,
Relativamente à medicina, foi durante a dinastia Zhou (oriental) que administrador legista, que dão ao rei
se desenvolveu e consolidou como um sistema organizado, sendo o Xiaowen de Qin a supremacia
militar sobre os outros principados
Cânone Interno o representante desta tendência. Segundo a obra
“Ritos dos Zhou”, neste período, os oficiais da corte imperial recebiam 311: derrotas do Chu contra o Qin
treino numa variedade de especialidades médicas, por ex. os “jiyi” 300: morte de Laozi. Construção de
eram os clínicos que lidavam com os problemas internos; ao passo que muralhas pelos Estados de Yan,
os “yangyi” lidavam com doenças externas como feridas, problemas Zhao e Qin para se protegerem das
investidas dos bárbaros da estepe
cutâneos, traumatismos; já os “shiyi” eram responsáveis pelos
problemas dietéticos. 284: Yan – apoiado pelo Qin, Chu
Zhao, Han e Wei - inflige uma
O período dourado da filosofia chinesa estrondosa derrota ao Qi

269: Zhao e Wei aniquilam os


Sīmǎ qi n 司 馬 遷 (145-86 AEC) 102 - conhecido como o pai da exércitos de Qin
historiografia chinesa e autor da obra Shǐ jì 史記|史记 – classifica os 259/257: cerco de Handan (capital
períodos “Primavera e τutono” (Chūn Qiū 春秋; 770-471 AEC) e de Zhao) pelo Qin que redunda num
desaire
“Estados Combatentes” (Zhàn Guó Shí Dài 戰 國 時 代; 403-221
AEC) como sendo adinásticos, já que eles antecedem a unificação da 250: destruição dos Zhou orientais
pelo Qin marcando o fim da dinastia
China pelo seu primeiro imperador Qín Shǐ Huáng 秦始皇 (221-207
AEC). Estes períodos são chave para a compreensão do Cânone
Interno, pois é precisamente aqui, que as primeiras escolas filosóficas
Médicos
Chinesas se estabelecem.
Bian Que (Qin Yueren, 407-310
Como visto, nestes períodos a China atravessou diversas crises morais AEC): Médico do Período dos
Reinos Combatentes, pelo seu
e políticas que culminaram em conflitos constantes entre os estados conhecimento médico brilhante foi-
que, outrora, compunham o passado ideal chinês - durante o período lhe atribuído o título honorífico de
“Primavera e τutono” existiam mais de cem reinos/feudos na China, "Bianque". A partir da experiência
dos seus antecessores, Bianque terá
sendo que no período dos “Reinos Combatentes”, apenas sete se reunido os fundamentos para os 4
mantiveram103. Com o crescimento do poderio guerreiro, a divisão da Métodos de Diagnóstico da
China começa pela tripartição do Reino dos Jìn 晋 (453 AEC) nos Medicina Chinesa, destacando-se na
inspeção e exame do pulso, aliás,
estados Hàn (sul), Wèi (centro) e Zhào (zona das estepes), sendo estes segundo a obra Shiji (Registos
os eventos que antecederam a instalação do período dos “Reinos históricos), Bianque terá sido o
Combatentes” em Shǎnxī (陝西) - norte de Húnán (湖南). primeiro médico a aplicar o
diagnóstico clínico do pulso.

No período dos Reinos Combatentes propriamente dito, os sete Obras de referência


maiores reinos estão em guerraμ no nordeste, atual região de Běi Jīng
( 京), o Reino dos Yan; no meio do vale do rio Yángzǐ (揚子), o Huang Di Nei Jing Su Wen Ling
Shu (Cânone Interno)
Reino Chu; e em Sh ndōng (山東), o Reino dos Qi (齊).
Wu Shi Er Bing Fang (52
prescrições para doenças)
Isto fez com que os chineses tivessem que rever as suas posições
diante do mundo e da sociedade, dando origem a novas formas de
conceber o ser humano e a natureza, e as relações entre ambos, sendo

102
司馬遷 ou 司马迁 Sī mǎ Qi n, Sima Qian (145-86 BC), historiador, autor do 史記|史记 [Shǐ jì], ficou conhecido como
o pai da historiografia chinesa.
103
Big Leung (2007). Traditional Chinese Medicine – The human dimension.
períodos caracterizados por intensas mudanças nas reservas
agrícolas, na siderurgia, na demografia, nas formas de governar,
na sociedade, na economia, na escrita e no próprio pensamento
chinês. Tratou-se de uma fase de liberação intelectual e mudanças
sociais sem precedentes, onde a queda do sistema feudal permitiu
que o conhecimento deixasse de estar confinado à elite nobre,
surgindo oportunidades para as pessoas comuns aprenderem104.

Não é por acaso, que este período ficou conhecido como Cem
Escolas de Pensamento (Zhū Zǐ Bǎi Ji 諸子 家), sendo aqui
que as principais escolas filosóficas chinesas – Confucionismo,
Daoísmo, Legalismo, Moísmo, Yin Yang (Yīn Yáng 陰 陽 ) e
Cinco Movimentos (Wǔ Xíng 五 ), entre outras – encontram a
sua origem, tendo surgido como uma tentativa de explicar os
motivos que haviam levado ao aparecimento das crises, o que
fazer para superá-las e como agir para que elas não se
repetissem105. Dentre as escolas que foram surgindo neste período,
as que podemos perceber maiores relações com a medicina são a
Confucionista e a Daoista, posteriormente a Budista também
deixou as suas marcas, que sendo uma escola de pensamento com
origem na Índia, se adaptou muito bem à estrutura do pensamento
chinês.
Figura 10- Buda, Confúcio e Laozi foram três
grandes sábios da antiguidade.

Laozi, autor do Cânone do caminho e da virtude


(Dao De Jing), explica como o ser humano interage
com a natureza; Confúcio descreve como o ser
humano deve comportar-se em sociedade e Buda
explica como comunicar com o Céu.

É de salientar, que os elementos que compunham


estas escolas de pensamento não eram exatamente
novos, Luis Junqueira (2013) comenta que nesta
época já havia uma cosmologia razoavelmente
organizada que serviu de base para que as escolas se
desenvolvessem - o universo, ao invés de ter sido
criado por deuses, sempre teria existido como
mutação e interdependência; e, a civilização
chinesa, teria sido organizada pelos seus
Imperadores. Mutação, interdependência,
transformação, vacuidade, essa é genericamente a
ideia relacionada a Dào 道. Assim, o ser humano, Figura 11 – Pintura a ilustrar vários eruditos, refletindo o espírito
fazendo parte da natureza, deveria viver em da “dinastia” Zhou Oriental, também conhecido como idade das 100
Escolas de Pensamento.
harmonia com esta, o que significava seguir o Dào

Big Leung (2007). Traditional Chinese Medicine – The human dimension.


104
105
Citado em Junqueira (2013) - Capítulo 1, Sobre o livro de medicina chinesa Huáng Dì Nèi Jīng Sù Wèn Líng Shū 帝
內經素問靈樞 (pp. 17-35).
道; desligar-se da natureza, ou tentar dominá-la, era perder o Dào 道, o que apenas levava à degradação e à
corrupção do próprio ser.

Um conceito transversal a estes autores remete-nos para a ideia do humanismo filosófico chinês106, sendo que
no confucionismo o humanismo é glorificado e praticado enquanto “benevolência”ν no daoísmo, transparece
na reflexão que δǎozǐ faz quanto à igualdade humana, natureza e ensinamento moral; e finalmente, está patente
nos ideais éticos e políticos de εòzǐ, em particular na sua “Doutrina do Amor Universal”107.

Outra preocupação dos filósofos chineses deste período foi compreender as regularidades no universo, tendo
concluído que o universo seria regido mais por leis naturais do que propriamente por seres divinos como deuses,
ancestrais e espíritos – o que, vale lembrar, não os excluía do dia-a-dia dos chineses.

Relativamente à medicina, obras anteriores, e mesmo contemporâneas ao Cânone Interno, como o texto
“Direções para cinquenta e duas doenças”108 são ainda muito marcadas pelo misticismo, como se verifica na
seguinte prescrição:

Coloque água arenosa dentro de uma cabaça grande. Leve-a na mão esquerda e enfrente
o norte, frente à pessoa execute três vezes o passe de Yu.
Pergunte o seu nome e logo diga: «isto e isto foi por um certo Nian»
Agora bebe metade dum copo e diz: «doença desiste, lentamente sai, lentamente desiste»
depois quebre a cabaça e elimine-a.

Esta obra propõe o tratamento feito através do “caldeirão”, ou seja, com oferendas aos ancestrais, pressupondo
que eram os espíritos e os demónios que provocavam as doenças e como tal o tratamento passava pela realização
de exorcismos e oferendas às mais variadas entidades109.

Será precisamente com a aplicação das “teorias naturais” à compreensão do organismo humano - expressas
fundamentalmente nos conceitos de Yīn Yáng 陰陽 e Wǔ Xíng 五 - que se desenvolve uma medicina que vem
contrastar fortemente com esta visão de saúde e doença – em vez de culpar ou propiciar seres sobrenaturais,
agora cada um é considerado responsável pela própria manutenção da saúde e pelas desarmonias que causam
as doenças110. Na Grécia Antiga, a emergência de tal forma de medicina está associada à formação do chamado
Corpus Hipocraticus111; já na China, foi precisamente com o Cânone Interno, que a MC se começou a estruturar

106
Humanismo: no sentido amplo, significa valorizar o ser humano e a condição humana acima de tudo. Está relacionado
com generosidade, compaixão e preocupação em valorizar os atributos e realizações humanas.
Na europa, o humanismo foi um movimento intelectual iniciado na Itália no século XIV com o Renascimento e difundido
pela Europa, rompendo com a forte influência da Igreja e do pensamento religioso da Idade Média. O teocentrismo (Deus
como centro de tudo) cede lugar ao antropocentrismo, passando a pessoa humana a ser o centro de interesse. O humanismo
procura o melhor nos seres humanos e para os seres humanos sem se servir da religião. A filosofia humanista oferecia
novas formas de reflexão sobre as artes, as ciências e a política, revolucionando o campo cultural e marcando a transição
entre a Idade Média e a Idade Moderna. Através das suas obras, os intelectuais e artistas passaram a explorar temas que
tivessem relação com a figura humana, inspirados pelos clássicos da Antiguidade greco-romana como modelos de verdade,
beleza e perfeição. Nas artes plásticas e na medicina, o humanismo esteve representado em obras e estudos sobre anatomia
e funcionamento do corpo humano. Nas ciências, houve grandes descobertas em vários ramos do saber como a física,
matemática, engenharia, medicina e etc., que contribuíram para um levantamento concreto da história da humanidade.
107
Big Leung (2007). Traditional Chinese Medicine – The human dimension.
108
Citado em Fredes (2015) Sebenta do Curso de Huang Di Nei Jing - Medicina Chinesa Clássica: Módulo I - Seminário
1; pp. 19.
109
Comentado por Fredes, Huang Di Nei Jing [Notas de seminário], 2015/16.
110
Citado em Junqueira (2013) - Capítulo 1, Sobre o livro de medicina chinesa Huáng Dì Nèi Jīng Sù Wèn Líng Shū
帝內經素問靈樞 (pp. 17-35).
111
Opus cit.
e organizar a partir desta imagem de padrões naturais e responsabilidade do ser humano no seu processo de vida
e longevidade.

Confucionismo(s)
O confucionismo surgiu com o mestre Kǒng fū zǐ (孔 子, aka Kǒng Zǐ 孔子, 551 - 479 AEC)112 – literalmente
o mestre da cavidade ou do vazio - durante o período “Primavera e τutono”.

“Wan shi shi biao 萬世師表”


O professor que se tornou um paradigma por dez mil gerações.113

Kǒngzǐ, era natural do principado de Lǔ 魯 - atual Sh ndōng (山東) – pertencendo à família nobre dos Qiū
(丘)114. Manteve posições no governo chinês, como funcionário ou oficial (shì 仕) e mestre (shì 士) do soberano,

112
Nome latinizado pelo neologismo jesuíta Confucius, Confúcio. Mais informações sobre este autor em
http://www.iep.utm.edu/confuciu/.
113
Masayuki Sato, Introduction to Classical Chinese Philosophy - Lecture Four: Confucius and the Analects. National
Taiwan University.
114
Pouco se sabe da vida de Confúcio, uma das fontes a que se pode recorrer para traçar a sua biografia é o livro "Memórias
Históricas" (史记) do grande historiador que viveu no séc. II AEC, Sima Qian (司马迁), mas ainda assim esta é uma fonte
pouco segura devido à dificuldade em provar os factos descritos.
Aparentemente a sua família era pobre e modesta, ainda que os seus ascendentes pertencessem à família dos Duques do
Estado dos Song, a qual descendia da família real da Dinastia Zhou. Como o pai de Confúcio, que era chefe do exército,
tinha já uma certa idade quando se casou pela segunda vez com a que viria a ser a sua mãe, conta a lenda que ela se dirigiu
a um monte para orar, para pedir que tivesse um filho. Aí ela viu um licorne e atou-lhe uma fita bordada à volta do corno
para que o seu desejo se concretizasse. Quando deu à luz à sombra de uma amoreira teria sido velada por dois dragões. Por
esse motivo, ou talvez porque quando Confúcio nasceu tinha uma protuberância na fronte, foi-lhe dado o nome de Qiu (丘),
que significa colina.
Apenas com três anos de idade, Confúcio perdeu o pai e, como a sua mãe tinha somente 18 anos, teve que se dedicar ao
trabalho agrícola nas terras que tinha recebido como qualidade de viúva de funcionário público para poder dar ao filho a
educação que pretendia. E parece que Confúcio correspondeu às suas expectativas pois com 15 anos já frequentava a escola
dos letrados e, dois anos mais tarde, recebia lições particulares, ao mesmo tempo que se iniciava na vida militar e no
cerimonial da Corte. E é o próprio Confúcio que, nos "Analectos", nos descreve com determinação a sua vida: Aos quinze
anos, resolvi aprender. Aos trinta anos, firmei-me no Caminho. Aos quarenta anos, já não tinha nenhuma dúvida. Aos
cinquenta anos, conhecia os decretos do Céu. Aos sessenta anos, tinha um discernimento perfeito. Aos setenta anos, agia
em toda a liberdade, sem por isso transgredir nenhuma regra (Analectos de Confúcio II-4).
Aos 19 anos casou-se, do qual resultaram um filho e uma filha. Continuou a conciliar o trabalho com os estudos, sendo
que aos 22 anos servia como intendente dos celeiros e, mais tarde, como inspector da distribuição das mercadorias, ao
mesmo tempo que abria a sua própria escola. Quando tinha 24 anos, a sua mãe faleceu, pelo que, segundo a prescrição dos
ritos, não exerceu nenhuma actividade durante os devidos três anos de luto. Contudo, a história antiga e a literatura
continuaram a ocupar o seu espírito, estudando os Clássicos com afinco. Posteriormente e devido ao prestígio que começou
a alcançar, o Mestre Kong Zi (孔子) foi convidado para ocupar alguns cargos de destaque na Corte. Assim, aos 30 anos,
foi para a Corte de Lu, e, mais tarde, com o apoio do Duque King de Qi, entrou na Corte do Imperador Zhou, em Luoyang.
Foi nesta altura que se deu o célebre encontro entre Kongzi e Laozi (604 a.C.). "Conta-se que Laozi recebeu Confúcio com
severidade e frieza, incentivando-o a procurar o Dao. Confúcio, por seu turno, teria ficado bem impressionado com o Velho
Sábio pois, segundo o relato, referiu a seus discípulos que havia visto Laozi e lhe havia parecido um dragão, que se eleva
sobre as nuvens mas que não pode ser perseguido."
Devido ao período de convulsões e de conflitos entre os reinos vizinhos que caracterizaram a região entre 520 e 510 a.C.,
Confúcio teve que mudar-se por diversas vezes, acompanhando o Duque de Lu, o qual lhe chegou a confiar o governo da
cidade de Tchung-tu que se tornou modelo de prosperidade. Devido a este feito, foram-lhe atribuídos locais de destaque
na administração do território, primeiro como intendente dos trabalhos públicos e, depois, como ministro da Justiça. Foi
durante este período que desenvolveu máximas relativas à arte de governar, que vêm descritas no capítulo XII dos
"Analectos". Com 56 anos, teve a oportunidade de pôr em prática a sua doutrina de governo, quando exerceu o cargo de
primeiro-ministro de Lu. Devido a uma certa independência económica adquirida por Confúcio e também porque a sua
doutrina não correspondia às exigências do seu tempo, em 495, Confúcio resolveu ausentar-se, passando a levar uma vida
errante acompanhado pelos seus discípulos. Iniciou, assim, uma série de longas viagens pelos reinos de Qi, Song e Wei,
ensinando a sua doutrina pela palavra e pelo seu próprio exemplo. Ao mesmo tempo que se dedicava ao ensino, o Mestre
tendo administrado a côrte e assumido o cargo de Ministro da Justiça (Junior, 2012). Quando a sua ideologia
deixou de corresponder às exigências do seu tempo, exilou-se e, a partir de 495 levou uma vida errante
acompanhado por um grupo de discípulos a quem revelava a doutrina pela palavra e pelo exemplo (Kaltenmark,
1972).

Segundo o próprio Mestre, existia uma longa tradição de sábios que se estendia além das dinastias Shang e Xia,
e ele tentou recolher, editar e transmitir os textos preciosos destes períodos aos seus discípulos, na esperança
que tal projeto educativo levasse ao florescimento renovado da cultura humanista baseada nos ensinamentos
dos Reis Sábios e seus Ministros. Terá sido responsável pela transcrição da tradição oral e vestigial escritural
para a tradição escrita, assim como pela seleção dos textos da Alta Antiguidade que foram considerados os
primeiros “Clássicos” (Jīng 經), oficializados, posteriormente, pelo império Han115.

Kǒngzǐ foi ainda o precursor do modelo família-escola dos sábios escritores da sua linhagem, tendo sido o
primeiro Mestre a abrir o ensino privado a todos, sem distinção de classe. Foi ainda um dos responsáveis pelo
desaparecimento da prática de sacrificar vítimas humanas por ocasião dos funerais de figuras importantes, pois
era demasiado contrária ao seu ideal humanista.

Segundo Junqueira (2013), os ensinamentos de Kǒngzǐ pautavam-se em tentar organizar harmoniosamente a


sociedade, tanto no nível do estado quanto no nível familiar (na verdade, cada um dos aspetos da sociedade
refletia os outros). Benevolência (Rén 仁), Ritual (Lǐ 禮), Piedade Filial (Xiào 孝), Rectidão Yì (义), Lealdade

Kong oferecia também os seus serviços aos príncipes feudais que disputavam um lugar de destaque entre os restantes reinos,
em plena época de decadência da Dinastia Zhou. Durante estas viagens ocorreram diversos episódios, alguns dos quais
vêm descritos nos Analectos. Após todas estas aventuras, Confúcio regressou finalmente a Lu cerca de 515 a.C. Tinha
alcançado um tal prestígio que, segundo alguns autores, teria conseguido reunir cerca de 3000 discípulos, entre jovens
letrados vindos das melhores famílias, filhos de homens de destaque do Reino, com uma grande influência na Nação, assim
como de famílias mais pobres. Contudo, unia-os o respeito ao mestre e ao seu ensinamento, sendo de destacar que Confúcio
tratava-os individualmente, aconselhando-os de acordo com as suas características específicas. A relação que Confúcio
estabelecia com os seus alunos era exemplar, um modelo a ser seguido. Dirigia-se-lhes com afectividade e, ao mesmo
tempo, cordialidade, simplicidade e, ao mesmo tempo, a dignidade necessária ao respeito existente numa relação entre
professor e alunos, tal como ele mesmo ensinava. O seu método de ensino permitia o diálogo com os alunos, em que estes
podiam colocar questões ao seu Mestre e, mesmo, dar opiniões e fazer críticas. Esta abertura e o tratamento personalizado
que Confúcio dava aos seus discípulos suscitava a sua admiração, que não chegaria contudo aos extremos da deificação,
que se deu muito mais tarde quando o confucionismo se tornou numa religião do povo. Este relacionamento cordial que
tinha com os seus alunos era também o modelo que estes deviam adoptar entre si e com as outras pessoas. Trata-se do Ren
(仁), o não fazer aos outros o que não gostamos que nos façam a nós mesmos. Confúcio ensinava-lhes poesia, história, o
cerimonial da Corte e música, 70 dos quais conheciam a fundo os Cinco Clássicos. Com 72 anos faleceu no Reino de Lu,
em Abril de 479 a.C. mas parece que a "morte do Sábio não ocorreu sem grandiosidade, e a lembrança que nos transmitiu
a tradição autoriza as seguintes reflexões:
1. O seu apelo ao respeito filial não foi em vão no que a si lhe calhava. Se o filho, que provavelmente morreu antes
dele, parece não ter sido tocado pela graça do pai, o neto [Zi Si] esteve presente para recolher as suas últimas
palavras.
2. O seu pensamento tinha o vigor bastante para levá-lo a esperar com serenidade os derradeiros momentos.
Nenhuma revolta diante da morte, nenhum apelo a intermediários entre o Céu e ele. Capaz de afrontar sozinho a
vida, também foi capaz de afrontar sozinho a morte.
3. Tendo atingido uma idade respeitável e, ao que parece, gozando sempre de boa saúde, Confúcio morreu em plena
posse das suas faculdades. Pronunciando as palavras: «A minha doutrina chegou ao seu termo», dá desde logo
razão àqueles seus comentadores que porão em evidência a íntima conformidade entre a vida e o ensino do Sábio,
a tal ponto que é impossível interpretar a sua doutrina sem ser em função da sua vida."
Biografia retirada de Martins (2004), disponível em http://www.observatoriodachina.org/images/papers/j.pdf.
115
Max Kaltenmark (1972) comenta que relativamente a este aspeto há duas tradições, uma defende que foi o próprio
Kǒngzǐ que terá escrito a maior parte dos Clássicos, tendo sido um reformador de ideias ousadas, sendo ainda autor de
uma doutrina esotérica, em que era necessário procurar por detrás da letra dos textos a ideia profunda e oculta do mestre;
e uma outra tradição, que diz que Kǒngzǐ foi essencialmente um editor dos textos antigos, sendo o próprio o primeiro a
afirmar que nada inovava e que não fazia mais que transmitir a tradição dos antigos sábios: era um historiador moralista
e não um inovador. As evidências apontam para a segunda hipótese.
(Zhōng 忠), são alguns dos principais conceitos discutidos pelo autor, o qual estava preocupado em compreender
as relações entre os indivíduos e a sociedade por meio da ética, da moral e da virtude - as intenções e atos de
umas pessoas para com as outras eram no mínimo tão importantes quanto para com os deuses e ancestrais.

É de salientar que o confucionismo surgiu num período em que a guerra estava instalada e os governantes
precisavam de conselheiros de confiança para enviar para locais estratégicos, assim a “moral” era a grande
preocupação da época. Sendo o confucionismo uma “escola de políticos morais”, veio colmatar esta carência.
Ao longo do seu exílio, a sua "escola" existia também como um grupo político, sendo altamente motivado a
participar nos assuntos políticos dos países que visitava. No entanto, uma vez retornado ao estado de Lu, o
Mestre limitou-se a educar a juventude politicamente ambiciosa. Assim, o grupo de Confúcio antes considerado
um grupo político perigoso passou a ser um “fornecedor” de talentos de governação para muitos estados
feudais.116

Kǒngzǐ não rejeitava as ideias da religião tradicional, mas pensava ser mais revelador de sabedoria dirigir-se à
divindade mais alta, ao Céu, do que dirigir-se aos inumeráveis espíritos inferiores – com isto demarcava o seu
distanciamento em relação aos adivinhos e outros especialistas das ciências ocultas. Além disso, este Céu já não
era para ele a divindade pessoal, o Senhor do Alto 117 de outrora, mas seria simplesmente uma providência
abstrata que viria a tornar-se, nos confucionistas posteriores, o céu sideral, regulador quase mecânico do mundo
(Kaltenmark, 1972).
Se eu ordenasse a um general que se transformasse em
gaivota e ele não me obedecesse, o general não tinha
culpa. Eu é que tinha.

Conversa entre o “Rei sensato” e o Principezinhoν In “O


Principezinho”, Antoine de Saint-Exupéry
A doutrina proposta por Kǒngzǐ pode ser encontrada de forma fragmentária nas obras que ficaram conhecidas
como os "Quatro Livros" (Sì Shū 四 书 ) 118 , nenhum escrito por si na sua totalidade. A verdade é que
aparentemente, Kǒngzǐ nada escreveu, até porque nunca foi sua intenção fundar uma nova filosofia ou uma
nova religião, mas sim apresentar modelos sobre as mais diversas facetas da vida, nomeadamente no
relacionamento com os outros e na arte de governação, tendo por base o modelo preconizado pelos “Clássicos”
(Jīng 經) da antiguidade (Martins, 2004).

Kǒngzǐ advogava o modelo do Jūn Zǐ 君子 119, que literalmente significa "filho do senhor", mas que se
poderá traduzir como "pessoa de bem" ou "pessoa honrada"; em oposição a Xiǎo Rén 人 , literalmente
"pequena pessoa", mas que se poderá traduzir por "pessoa modesta" - distinção esta com um significado moral.

116
Comentado por Masayuki Sato (n.d.). Introduction to Classical Chinese Philosophy [Notas de aula]. National Taiwan
University.
117
No séc. XVI AEC; os chineses consideravam que o mundo era governado por uma divindade toda-poderosa "O Senhor
do Alto" (Shangdi), como se verifica em inscrições encontradas em ossos oraculares oferecidos como sacrifício. Quando a
Casa dos Zhou triunfou sobre os Shang, os apologistas de Zhou passaram a ver a sua divindade, Tian "Céu" como sinónimo
de Shangdi, e explicavam o declínio dos Shang e ascensão dos Zhou como uma consequência da mudança no Tianming
(Mandato do Céu). Assim, justificações divinas para as conquistas e mudanças políticas estavam presentes desde a China
primitiva.
118
Os "Quatro Livros" são: "Grande Aprendizado" Dà Xué 大學|大学 "Doutrina do Meio" (Zhōng Yōng 中庸); "Os
Analectos" (Lún Yǔ 论语 ou 論語), e "Livro do Mestre Meng" (Mèng zǐ 孟子). Informações retiradas de Martins (2004),
disponível em http://www.observatoriodachina.org/images/papers/j.pdf.
119
Traduz-se como “quem é nobre”, significa literalmente “filho de um nobre”, ou “fidalgo”, mas é usado para referir
alguém ética e moralmente superior, ou seja, alguém com grande nobreza de espírito (nota do tradutor em Tse, 2010, pp.
158).
Grande Aprendizado Doutrina do Meio Os Analectos Livro do Mestre Meng
Dà Xué 大學|大学 Zhōng Yōng 中庸 Lún Yǔ 论语|論語 Mèng zǐ 孟子

• Tratado moral que sublinha a • Escrito pelo neto de Confúcio, Zǐ • Escritos por alguns dos • Escrito por Mèngzǐ, traduz a
capacidade do ser humano em se Sī (子思481-402 AEC). discípulos de Confúcio. abordagem deste autor ao
responsabilizar pela sua própria • Sublinha o equilíbrio que deve • Para além de elaborar confucionismo, inspirado
salvação. existir na personalidade das considerações sobre o também no livro de Zi Si.
• Confúcio preocupa-se com a pessoas, equilíbrio que se atinge relacionamento entre as pessoas • Trata-se de uma perspectiva que
formação de uma elite, assim sem esforço, mas pela ação - (Ren 仁) - o não fazer aos outros sublinha a bondade natural da
como com a educação dos através da reflexão profunda e o que não gostamos que nos pessoa e que será desenvolvida
príncipes, com o fim último de prática. façam a nós mesmos - os adiante.
promoção do bem das massas. • Zi Si não fecha as portas de discípulos de Confúcio
• Se o soberano for justo, entrada deste equilíbrio a consagraram alguns capítulos
conforme a ordem cósmica, os nenhuma classe de pessoas, pois sobre os Sábios da Antiguidade e
seus súbditos o seguirão de bom todos podem chegar a esta via, sobre a Missão Celeste,
grado e isso promoverá a mas só quem a alcança poderá apresentando a forma de
prosperidade do reino. Por isso, apreender o sentido da ordem do governação dos Imperadores
conhecer a ordem natural dos Céu e da Terra, o Dao 道. antigos como o modelo a ser
fenómenos é a base da grande seguido pelos governadores
• Junzi 君子 , é a pessoa de bem
sabedoria, este é o ensino contemporâneos.
cuja vida é uma imagem da
supremo - Da Xue.
ordem moral universal.
• Segundo Confúcio, cabe-lhe
• É esta a norma da harmonia do
transmitir este conhecimento
Universo, ou seja, a regra central
pois ele é o porta-voz da
sabedoria antiga, é esta a sua – zhong 中 - e constante –
vocação ética. yong 庸 .

Para o Mestre, o Junzi deverá receber uma boa educação, assim como uma formação moral, com vista à ascensão
a um lugar elevado na sociedade e, quem sabe, na governação. Uma das qualidades essenciais que deverá possuir
é Rén (仁) - caractere chinês constituído por “pessoa” (人) e “dois” (二), e que se poderá traduzir como
benevolência (Martins, 2004); virtude definida nas palavras do próprio Mestre como a de “amar os
semelhantes”120.

Zi Zhang perguntou a Kongzi sobre a virude perfeita. O Mestre respondeu “ser capaz de
praticar cinco coisas em qualquer parte debaixo do céu constitui virtude perfeita (= ren).
Zi Zhang questionou quais eram, e foi-lhe dito: gravidade, generosidade da alma,
sinceridade, seriedade e bondade.121

Trata-se do bem que uma pessoa pode fazer a outra, a virtude que permite ao ser humano viver em sociedade,
sendo esta qualidade do amor universal ou altruísmo que confere um carácter humanista à doutrina do Mestre
Kong (Martins, 2004).

No entanto, esta virtude deve obedecer a regras, pois há que dominar o comportamento bom, sendo assim que
aparece o δǐ (禮 ou 礼), ritual e cerimónias - um conjunto de normas de cortesia a que o Junzi deve obedecer
para melhor interagir em sociedade, de forma a que comportar-se humanamente e comportar-se ritualmente
são sinónimos.

120
Os analectos, Livro XII:22, pp. 78.
Capítulo “Yangzhou” dos Analectos (Lunyu), in Masayuki Sato, Introduction to Classical Chinese Philosophy - Lecture
121

Four: Confucius and the Analects. National Taiwan University.


Esta atitude ritual é mais profunda que uma simples cerimónia religiosa, deverá haver uma certa introspecção
de quem a realiza, pois como Confúcio sublinha o δǐ vem do coração, de dentro para fora122. Então na base da
benevolência, está por um lado o Lǐ 禮 e por outro o Xué 學 (estudo):

O Mestre disse: nos tempos antigos, as pessoas aprendiam com vista ao seu próprio
melhoramento, hoje em dia, as pessoas aprendem tendo em vista a aprovação dos
outros.123

Li 禮
Junzi 君子
Ren 仁 unidade da
personalidade -
Integridade
一以貫之

Xue 學

A ênfase no autoaperfeiçoamento moral e comportamental são alguns dos pontos historicamente mais
importantes dos confucionistas, como expresso nos tratados do Grande Ensinamento (Dà Xué 大學) e da
Doutrina do Meio (Zhōng Yōng 中庸) - a paz no reino não conseguiria ser garantida antes da transformação
pessoal de cada um; logo, dever-se-ia mudar os próprios pensamentos e ações antes de almejar transformar os
outros e o mundo 124.

Como comenta Leung (2007), a compreensão da benevolência é adquirida pela prática e é canalizada pelo
próprio e pelas relações com os outros. Para o próprio, a benevolência inicia-se pela autoconquista, sendo
cauteloso e lento no discurso; vivendo graciosamente; sendo firme, resistente, simples e modesto. Na relação
com os outros, a consideração pelos outros é a base do humanismo, sendo outras qualidades a lealdade e as
cinco práticas da cortesia, tolerância, confiança, seriedade e generosidade. Além disto, em defesa da
benevolência, a pessoa poderia sacrificar-se, consoante expresso na seguinte passagem que se tornou o slogan
da ação humanista125:

122
É exactamente esta característica que diferencia o conceito de δǐ confucionista e o conceito de Fǎ 法 legista. Os
legistas apresentam as normas como regras iguais para toda a gente e cuja obediência é suscitada de fora, dos castigos que
podem ser aplicados se as leis não forem cumpridas, enquanto Confúcio procura conferir um fundamento moral à sua
doutrina de governação, os legistas defendem que isso não será possível sem meios de coacção externos (Martins, 2004).
123
Capítulo “Xianwen” dos Analectos (Lunyu), in Masayuki Sato, Introduction to Classical Chinese Philosophy - Lecture
Four: Confucius and the Analects. National Taiwan University.
124
Citado em Junqueira (2013) - Capítulo 1, Sobre o livro de medicina chinesa Huáng Dì Nèi Jīng Sù Wèn Líng Shū 帝
內經素問靈樞 (pp. 17-35).
125
Citado em Big Leung (2007), Chapter two - The Spirit of Chinese Culture: Its Human Centredness (pp. 7- 34).
Homens com aspiração e homens com benevolência não sacrificam a benevolência para
permanecerem vivos, mas sacrificam-se pela benevolência.

Kǒngzǐ defendia que não nos deveríamos ocupar com fenómenos que estão fora do nosso alcance, isto é, não
só o mundo oculto mas todo o domínio da natureza e do destino que submete a humanidade e contra o qual seria
vão e vulgar rebelar-se. O destino (Mìng 命) limita o poder do ser humano, mas este possui um domínio que
não depende do mundo exterior que é o da sua liberdade e benevolência, sendo que o sábio é aquele que
reconhece a interdependência destas duas esferas (Kaltenmark, 1972).

A benevolência ajuda a manter o equilíbrio emocional, o que liberta as pessoas da ansiedade e permite resistir
à adversidade e apreciar a vida, pelo que quem a detém pode distinguir amor e ódio (Leung, 2007), ou mesmo
o “Céu e o Inferno”126.

A vida do samurai andava um inferno. Dúvidas sobre o Bushido lhe atormentavam. Para
ter paz, precisaria aprender mais sobre um dos princípios deste código dos samurais. O
guerreiro precisava aprender sobre compaixão. Ele nunca teria paz se vivesse apenas
pela coragem e disciplina. A compaixão era um dos valores que norteavam o caminho do
cavaleiro, o Bushido. Aquele samurai se perguntava se não teria desviado do caminho ao
cortar cabeças indefesas e não ajudar inimigos em dificuldades. Teria ele perdido o poder
da compaixão? Teria ele perdido a honra? Por que sua vida estava um inferno e como
seria alcançar o céu?

As dúvidas levaram o guerreiro em busca de um local sagrado – na esperança de


encontrar um mestre que o tirasse de seu inferno e lhe ensinasse o que era o céu.
Enquanto ia se aproximando do templo zen budista os lavradores se afastavam daquele
homem. Chegando lá, o samurai exigiu ser levado à presença do monge chefe. Este
ensinava na cozinha.

O homem armado de espada ouviu os ensinamentos do outro, armado de uma colher. O


mestre ensinava os aprendizes sobre a importância de transformarem em prática o
pensamento zen. A importância de praticarem de fato o que quer que fossem ensinar. O
mestre zen parou de falar e com sua colher remexeu cuidadosamente o cozido de legumes
na panela. Voltou a falar do aspecto sagrado de cada ação cotidiana, que a prática da
preparação diária do alimento é a mesma prática do caminho da iluminação. “Pense que
as panelas são você mesmo... Veja que a água é a sua própria vida...” E voltou a mexer o
cozido, borrifando temperos que ao caírem na panela exalaram vapores aromáticos...

Só que o samurai não queria saber de prática de “mestre cuca” coisa nenhuma! Ele não
queria perder tempo da sua “busca espiritual” com futilidades diárias como culinária.
Rompeu o silêncio dos vapores: - Mestre: quero que me ensine sobre a compaixão. Quero
que me ensine sobre o céu e o inferno.

O monge olhou longamente para o samurai. Reparou em seu calçado enlameado, em sua
espada embainhada, em sua mente inquieta.

126
História “O Céu e o inferno - O monge e o samurai”, recontada por Fabio Lisboa, disponível em
http://www.contarhistorias.com.br/2010/11/historia-o-ceu-e-o-inferno-o-monge-e-o.html.
- Você não vai encontrar o que busca. Como posso ensinar a pureza e a beleza da
compaixão a um homem com a bota, a espada e a mente completamente sujas? Sua
presença deixa este templo feio e sujo. Seria melhor que saísse daqui agora!

O sangue do samurai se aqueceu mais rápido do que as panelas e em dois movimentos ele
desembainhou a espada e preparou o ataque certeiro que faria rolar a cabeça daquele
monge que desrespeitava a honra de um cavaleiro que, por sua vez, se afundaria ainda
mais em seu inferno.

O monge permaneceu parado e quieto, mirando o outro com profundidade. Com a espada
viajando pelo ar a poucos centímetros do seu pescoço, disse: - Espere. Agora você já sabe
o que é o inferno. Isto é o inferno!

O astuto espadachim fez parar sua katana antes dela atravessar a pele. Ficou espantado
com a coragem e dedicação do mestre ao ensinar. O monge colocava suas palavras e sua
própria vida a serviço do outro. Entendeu que a sua maior desonra não seria receber um
insulto e sim praticar um ato violento. O desejo de paz invadiu o guerreiro. Uma onda de
compaixão o arrebatou. O monge, enfim, enxergou o olhar iluminado e compassivo do
samurai: - Agora você já sabe o que é compaixão. Isto é o céu.

Leung (2007) comenta que as raízes da benevolência estão na piedade filial (Xiào 孝), pedra angular da
sociedade chinesa que ainda hoje caracteriza a relação existente entre pais e filhos, sendo que o termo é alargado
a todos os anciãos, vivos e mortos, assim como restantes membros da sociedade - "Entre os Quatro Mares,
todos os homens são irmãos"127.

Tal como definido pelo Mestre, Xiào trata-se de "Não desobedecer aos ritos (...) De acordo com os ritos,
enquanto estiverem vivos, os pais devem ser servidos; de acordo com os ritos, quando falecerem, devem ser
enterrados; segundo os ritos, devem ser-lhes feitos sacrifícios."128

O culto aos ancestrais era já uma prática instituída desde a antiguidade, a grande inovação de Confucius foi
deslocar esta atitude de respeito e reverência em relação aos antepassados já falecidos para os vivos. Neste
sentido, piedade filial nada mais é do que o efeito da reciprocidade, isto é, a resposta natural do filho ao amor
que os seus pais lhe deram num contexto de harmonia familiar. Por isso, é interessante notar que o período de
três anos de luto que os ritos previam aquando do falecimento de um dos pais corresponde exactamente ao
período de três anos a partir do nascimento de uma criança e quando os pais lhes dedicam cuidados especiais,
nomeadamente o aleitamento (Martins, 2004).

Meng Yi perguntou o que é piedade filiar, o Mestre disse: é não ser desobediente.129

Ora, o Xiào preside a todas as relações humanas fundadas sobre o Yì (义), ou seja, o sentido de justiça, rectidão
ou imparcialidade. Segundo Anne Cheng130, o Yì, cuja grafia do caractere antigo comporta o elemento Wo (Eu),
representa o investimento pessoal de sentido que cada um emprega na sua forma de ser no mundo e na
comunidade humana, é a forma como cada um reinterpreta indefinidamente a tradição coletiva, dando-lhe um

127
Analectos XI:5, citado em http://www.observatoriodachina.org/images/papers/j.pdf.
128
Analectos II:5, citado em http://www.observatoriodachina.org/images/papers/j.pdf.
129
Masayuki Sato, Introduction to Classical Chinese Philosophy - Lecture Four: Confucius and the Analects. National
Taiwan University.
130
Citada em http://www.observatoriodachina.org/images/papers/j.pdf.
novo sentido. Trata-se da
"justificação dos nomes", ou
seja, o comportamento de
cada um deve estar de acordo
com a posição que ocupa na
sociedade (Martins, 2004).

Para além destas qualidades,


a realização do Rén inclui
ainda o Zhōng (忠) e o Shù
( 恕 ), isto é, o ensino da
lealdade e da tolerância. Tal
como ensina Confúcio "Não
faças aos outros o que não
gostas que te façam a ti
mesmo" 131 . Por isso, estas
qualidades devem ser
desenvolvidas
reciprocamente, começando
pelo próprio.

Trata-se da noção de
centralidade da perspectiva
confucionista sobre a
humanidade: o próprio Figura 12 – “The Classic of Filial Piety”, δi Gonglin (ca. 1041–1106), dinastia Song do norte
caractere de lealdade (忠) é (960–1127).
constituído pelo caractere
"centro" (中) e "coração" (心), traduzindo assim a centralidade do coração. É esta a virtude do justo meio e
constante descrito na "Doutrina do Meio" 中庸 , o bem supremo para o qual deve tender todo o ser humano
(Martins, 2004). E esse bem supremo é um reflexo da harmonia existente no universo físico:

A vontade do Céu chama-se natureza; a observância da lei natural denomina-se a regra


das nossas ações; a regulação desta regra chama-se instrução. A regra das nossas ações
não pode ser abandonada por um instante. Se a regra das nossas ações pudesse ser
abandonada, não seria regra.132

Como tal, os princípios morais preconizados por Kǒngzǐ visavam a realização da pessoa de bem à escala familiar,
depois social e mesmo estatal, promovendo assim a harmonia cósmica.

Segundo Kǒngzǐ, a partir do modelo familiar aplicado às relações sociais, mantêm-se uma estabilidade
hierárquica que dá consistência à conceção de Estado.

Ora, desde o pequeno núcleo familiar, a educação representava um dos meios essenciais para criar o Junzi
(Martins, 2004).

131
Analectos XV:24, citado em Martins (2004), disponível em http://www.observatoriodachina.org/images/papers/j.pdf.
132
"Zhong Yong", citado em Martins (2004), disponível em http://www.observatoriodachina.org/images/papers/j.pdf.
Um grupo de pensadores advindos de seguidores de Kǒngzǐ manteve a sua tradição, sendo Mèng Zǐ 孟子 (372-
289 AEC)133, natural de Zōuchéng (鄒城), um dos mais famosos. Para Mencius, a benevolência também era
obtida pelo respeito aos anciãos e cuidado pelos jovens. Acreditando que as pessoas são inerentemente boas,
defendia que as pessoas têm compaixão e não podem tolerar o sofrimento dos outros134. Mais precisamente,
segundo este autor, as pessoas possuem qualidades morais inatas: o Ren (仁), a generosidade/benevolência; o
Yi (义), o sentido de dever; o Li (礼), a civilidade; e Zhi (智), o conhecimento. Estas qualidades podem
transformar-se em virtudes ao longo da vida através da educação ou ser abafadas sob a influência do ambiente
circundante (Martins, 2004). Estes serão os germes das virtudes, especificamente: (1) a comiseração, que está
na origem do comportamento humanista (benevolente); (2) a vergonha ou repulsa pelo mal, que é o princípio
da virtude da equidade; (3) a modéstia e o apagamento, que são o fundamento do espírito ritual; e (4) o sentido
do verdadeiro e do falso, que está na base do discernimento moral (Kaltenmark, 1972). Basta cultivar estas boas
disposições para ver desabrochar estas quatro virtudes cardeais que são o Ren, o Yi, o Li e o Zhi, e é esta
inclinação natural para as qualidades morais, presente em todas as pessoas sob a forma de génese, que as
distingue dos animais.

O Xin 心 , que designa ao mesmo tempo o coração e o espírito, é uma forma exclusivamente humana de
sensibilidade, a faculdade de desejar, querer, mas também de pensar o que se deseja; o Xin é o órgão dos
afectos e do intelecto, pelo que não se pode dissociar o Coração do Espírito - as próprias seis disciplinas de base
da educação da pessoa de bem - os ritos, a música, o tiro ao arco, a condução dos carros antigos, a caligrafia e
a aritmética - são ao mesmo tempo físicas e espirituais, representando o ideal mente sã em corpo são (Martins,
2004).

Mencius viveu em meados do período dos Reinos Combatentes, quando o feudalismo já se havia estabelecido
em todas as municipalidades há mais de 100 anos, excepto em Qi. A classe dos proprietários já havia alcançado
o poder nestas municipalidades e continuava a fortalecer o regime, enquanto os pequenos proprietários perdiam
gradualmente as suas pequenas propriedades pela anexação violenta das terras. Perante estas contradições,
Mencius procurou elaborar uma doutrina de governo benevolente, aplicando assim a ideia de benevolência (仁)
ao campo político: no Estado, o povo é o mais importante, o território vem em segundo lugar e o soberano em
último (Martins, 2004); sendo um dos conceitos chave da doutrina de Mencius “amor do soberano por todos”.

É de salientar que este autor operacionalizou os seus princípios num modelo de organização racional das
famílias rurais e repartição das terras, onde os camponeses deixavam de ser simples servos – como é óbvio, não
foi aceite pela classe detentora do poder.

Não obstante, o autor preconizava um modo de governar aristocrático e paternalista, pois tal como todos os
confucionistas, a prática das virtudes familiares estaria na base da ordem social e do bom governo: que cada um
ame os seus pais e respeite os mais velhos e o mundo inteiro estará em paz (Kaltenmark, 1972). A piedade filial
seria então a base das “cinco relações humanas” – relações entre pai e filho, soberano e ministro, entre esposos,
entre irmãos mais velhos e mais novos, entre amigos, e o principal dever dos homens era honrar o pais e ter
filhos do sexo masculino para assegurar a continuidade dos cultos ancestrais.

Mencius proclamava a igualdade entre os homens, afirmando que possuem todos a bondade original e são
capazes de se tornar semelhantes aos maiores sábios. Ao mesmo tempo que admitia as hierarquias do seu tempo,
colocava acima da aristocracia do sangue uma aristocracia do espírito, considerando que os sábios constituíam

133
孟子 Mèng zǐ, Mencius (c. 372-c. 289 BC) - nome latinizado pelos jesuítas por meio do neologismo de Mencius.
Filósofo confucionista, sendo superado apenas pelo próprio Mestre, tem um livro com o seu nome – um dos clássicos
confucinistas. Mais informações sobre este autor disponíveis em http://www.iep.utm.edu/mencius/.
134
Citado em Leung (2007), Chapter two - The Spirit of Chinese Culture: Its Human Centredness (pp. 7- 34).
uma classe à parte, a mais elevada, e que a sociedade devia ser dirigida pelos filósofos (Kaltenmark, 1972). A
existência de classes sociais era por ele justificada pela necessidade de dividir as tarefas:

Alguns trabalham com o espírito e outros trabalham com os músculos. Os que trabalham
com o espírito governam e os que trabalham com os músculos são governados. Os que são
governados alimentam os que governam.135

Sūn Zǐ 孫子 (310 – 220 AEC)136, foi também um herdeiro do confucionismo, e terá tido como discípulo Hánfēizǐ
(韓非子)137, do reino Hàn dos Reinos Combatentes.
É desta massa que nós somos feitos, metade de
indiferença e metade de ruindade.

In “Ensaio sobre a cegueira”, José Saramago


Para Sūnzǐ a natureza humana é má e, o que há de bom nela, é artificial – se o ser humano segue a sua natureza
dá livre curso às paixões e é necessária uma sublimação para reprimir os maus instintos, sendo pela educação
que o ser humano se torna sociável e civilizado (Kaltenmark, 1972). É a inteligência através do coração/espírito,
o Xin (心), que julga se uma acção levada a cabo para satisfazer um desejo é admissível moralmente ou é
somente materialmente possível e só quando agimos de acordo com a Razão haverá ordem social (Martins,
2004). Para este autor, a virtude principal não é a benevolência, nem a equidade, mas sim a conformidade com
as normas rituais, sendo que na sua obra este aspeto adquire um sentido muito lato – toda a vida individual e
social é condicionada pelos Li, que se tornam o reflexo da própria ordem cósmica138.

O principal mérito dos Ritos é estabelecer um equilíbrio justo entre os desejos e os bens, não devendo os
primeiros esgotar os segundos e sendo estes repartidos equalitariamente de forma a satisfazer todas as
necessidades, consoante o próprio Mestre explica:

Os homens têm desejos por natureza. Quando os desejos não são satisfeitos, eles não têm
outra solução senão procurá-la. Quando esta busca de satisfação não tem medida nem
limite apropriado, só pode haver discórdia. Quando há discórdia, haverá desordem;
quando há desordem, haverá pobreza.
Os antigos reis-sábios odiavam esta confusão, pelo que estabeleceram a regra dos ritos
como forma de estabelecer limites à confusão, para educar e nutrir os desejos dos
homens, para dar oportunidade à sua busca de satisfação, para que os desejos nunca se
extinguissem pelas coisas, nem que as coisas fossem utilizadas pelos desejos; que ambos
continuassem a coexistir.
É aqui que a regra dos ritos surge. 139

135
Citado em Kaltenmark (1972), Capítulo 1 – A antiguidade (pp. 15-57).
136
Sun Tzu, aka Sun Wu 孫武|孙武 [Sūn Wǔ] (c. ηίί BC, datas incertas), general, estrategista e filósofo do período
Primavera e Outono (700-475 BC), acredita-se que seja o autor “Arte da Guerra” 孫子兵法|孙子兵法 [Sūn zǐ Bīng Fǎ],
um dos Setes Clássicos Militares da China antiga 武經七書|武经七书 [Wǔ jīng Qī Shū]. Mais informações sobre este
autor em http://www.iep.utm.edu/xunzi/.
137
Hán Fēi zǐ, Han Feizi, livro de filosofia dos legalistas da autoria de Han Fei 韓非|韩非 [Hán Fēi] durante o período dos
Reinos Combatentes (475-220 BC).
138
Citado em Kaltenmark (1972), Capítulo 1 – A antiguidade (pp. 15-57).
139
Citado em Martins (2004), disponível em http://www.observatoriodachina.org/images/papers/j.pdf.
Esta concepção é característica de uma época em que o território chinês se encontrava em convulsão intra-reinos
e inter-reinos, cada um lutando pelo domínio interno (Martins, 2004).

Sūnzǐ separa-se dos confucionistas anteriores na sua conceção de Céu – este deixa de ser uma potência ética e
não é mais do que o conjunto das forças da natureza, uma unidade sem qualidades morais e sem qualquer espécie
de personalidade ou vontade, sendo por isso que as regras morais são de origem puramente humana, não
existindo providência divina (Kaltenmark, 1972). Aqui Sunzi aproxima-se de Zuangzi, concordando que o ser
humano nunca poderá compreender o aspeto milagroso da esfera Celestial:

Fora dos limites do mundo do homem, o sábio ocupa seus pensamento, mas não discute
sobre nada; dentro desses limites ele ocupa os seus pensamentos, mas não trasmite
nenhum julgamento. No Chun Qiu, que engloba a história dos reis anteriores, o sábio
indica os seus julgamentos, mas não discute em sua defesa.140

Ainda, segundo Zhuangzi “todas as coisas e criaturas estão/são num processo inevitável de transformação”, e
Xunzi terá incorporado esta ideia ao afirmar que “todas as coisas passam por transformação”. Contudo, Xunzi
pelo seu método de inferência analógica, avançou esta noção ao ponto em que o ser humano tem livre arbrítrio
para ser capaz de causar e controlar a transformação da mente, adicionalmente ao corpo físico, melhorando a
sua personalidade, introduzindo assim o conceito de transformação da natureza humana (Hua xing 性).
Na visão de Xunzi, o processo de transformação de larva em borboleta é análogo ao de transformação de um
indíviduo num sábio pelo auto-cultivo. 141

Hán Fēi zǐ 韓非子 (280-233)142 manteve-se numa posição especulativa entre os denominados autoritaristas e
totalitaristas e formou a família escolar dos “Legistas”, onde a ideia principal é que as pretendidas virtudes
confucionistas devem ser rejeitadas e substituídas pela obediência à Lei (Fǎ 法), que deve substituir os ritos.
Segundo o adágio confucionista “os ritos não descem à plebe, a lei penal não alcança os nobres”, razão pela
qual os legistas suprimem os ritos e submetem ao domínio da lei a própria aristocracia, sendo assim a lei
universal, tornando-se um princípio quase metafísico (Kaltenmark, 1972).

Como o príncipe é a única fonte de lei, os legistas acabaram por preconizar a visão utilitarista que influenciou
o governo autoritário daquele que unificaria a China como o território do meio - o totalitalitarismo dos Qín (秦)
- onde o Imperador Qínshǐ Huáng (秦始皇帝) implementa uma sociedade chinesa centralizadora, autoritária
extremista (Junior, 2012).

140
Masayuki Sato (n.d.). Lecture Ten - The Philosophy of Synthesis and Integration: The Book of Xunzi. In Introduction
to Classical Chinese Philosophy. National Taiwan University.
141
Masayuki Sato (n.d.). Lecture Ten - The Philosophy of Synthesis and Integration: The Book of Xunzi. In Introduction
to Classical Chinese Philosophy. National Taiwan University.
142

 The Gufen 孤憤 (chap. 11μ “solitary anger”);


The Book of Hanfeizi é formado por 55 capítulos, sendo que a sua filosofia está melhor apresentada nos:

 The Shuinan 說難 (chap. 12μ “difficulty in persuasion”);


 The Wudu 五蠧 (chap. 4λμ “Five vermins”);
 The Xianxue 顯學 (chap. ηίμ “Eminent schools”);
 It includes the oldest commentary on the Laozi (chaps. 20 and 21);
 It also contains a large number of incisive anecdotes and fables.
Segundo Max Kaltenmark (1972), a escola de Mòzǐ 墨 子 (400-300 AEC) 143 terá rivalizado com o
confucionismo até ao séc. III da nossa era, sendo que a sua obra não é um livro homogéneo mas sim uma coleção
de escritos provenientes da escola144. Tal como o confucionismo, o moismo foi também uma escola de políticos,
mas neste caso especializados na defesa de pequenas cidades contra as invasões dos territórios vizinhos145.
Acabou por desaparecer, possivelmente na sequência das invasões por grandes exércitos que excluíam as
soluções políticas e ultrapassavam a capacidade de defesa das pequenas cidades. Nesta escola, quando o líder
falhava no seu propósito cometia suicídio, juntamente com os seus seguidores… assim, quando Qínshǐ Huáng
(秦始皇帝) obtém o poder absoluto já não restariam moistas para dar continuidade à escola!

O moismo é considerado mais pormenorizado na sua abordagem ao humanismo que o confucionismo, já que
Kǒngzǐ terá enfatizado a benevolência num registo de ordem hierárquica e aristocrática - seria como que um
“amor preferencial” - ao passo que Mòzǐ ensinava o princípio do amor universal, que envolveria a todos e
encorajaria a igualdade em todas as relações humanas, providenciando desta forma uma fundação racional
que unificou a filosofia do humanismo (Leung, 2007).

Mòzǐ defendia que o ser humano é essencialmente egoísta e por isso baseava sempre os seus preceitos na
utilidade e nas vantagens que poderiam trazer ao indivíduo e à sociedade, consoante expressa na seguinte frase:

As maiores calamidades no mundo advêm da falha dos homens em se amarem, pelo que só
podem ser resolvidas pela doutrina do amor universal.
A prática do amor universal não beneficia apenas quem é amado, mas também o que ama,
pelo princípio da reciprocidade. 146

Este autor propôs a satisfação de três necessidades básicas nos humanos: alimentar quem tem fome, vestir quem
tem frio e dar descanso aos cansados (Leung, 2007), da mesma forma que defendia a economia, frugalidade e
renúncia ao luxo, chegando ao extremo de condenar as belas-artes (Kaltenmark, 1972).

Mòzǐ afasta-se definitivamente dos confucionistas na sua visão religiosa, nomeadamente na crença de um Céu
como divindade antropomórfica, que distribui benefícios equitativamente por todos os homens (ex. o sol
beneficia a todos por igual), da mesma forma que emprega castigos sobre os homens maus. Também acreditava
na existência de espíritos e demónios, defendendo a sua veneração e entrega de oferendas, mais não fosse, pelo
benefício que se pudesse retirar da sua amizade (Kaltenmark, 1972).

143
墨子 Mò zǐ (c. 4ιί-391 BC), fundador da Escola de Pensamento Moísta 墨家 [Mò Ji ] do perído dos Reinos
Combatentes (475-220 AEC). Mais informações disponíveis em http://www.iep.utm.edu/mozi/.
144
Texto composto por dez temas, discutido em três perspetivas distintas. Os dez temas são:
1. 尚賢 Shangxian (Exaltation of Worthy)
2. 尚 Shangtong (Identification to Superior)
3. 兼愛 Jian’ai (UniversaL Love)
4. 非攻 Feigong (Anti-Aggressive War)
5. 節用 Jieyong (Thrift of Expenditure)
6. 節葬 Jiezang (Thrift of Furnera)
7. 志 Tianzhi (Will of Heaven)
8. 鬼 Minggui (Illumination of Ghost)
9. 非樂 Feiyue (Anti-music)
10. 非命 Feiming (Anti-Fatalism)
Quanto às três perspetivas, há duas teorias, onde uma comenta que há três visões porque refletem 3 linhagens (seitas) dentro
da própria escola; outra diz tratar-se do reflexo da evolução do pensamento da escola ao longo de 3 saltos conceptuais.
145
Masayuki Sato (n.d.). In Introduction to Classical Chinese Philosophy [notas de aula]. National Taiwan University.
146
Citado em Big Leung (2007), Chapter two - The Spirit of Chinese Culture: Its Human Centredness (pp. 7- 34).
Fundador •Kǒng Fū Zǐ (孔夫子)

•Mèngzǐ 孟子 - A humanidade é
naturalmente boa, defensor da
benevolência inata e a supremacia da
benevolência e piedade filial
•Zǐ Sī 子思 - neto de Confúcio e autor
Famosos do Zhōng Yōng (中庸) - supremacia
do centro e constância
•Sūnzǐ 孫子 - Advoga o pessimismo
naturalista e a supremacia dos ritos
•Hánfēizǐ 韓非子 - fundador da escola
dos Legistas - supremacia da Lei

•Sì Shū 四书:


•Dà Xué (大學)
Obras de
•Zhōng Yōng (中庸)
Referência •Lún Yǔ (论语)
•Mèng Zǐ (孟子)

•Jūn Zǐ 君子 vs Xiǎo Rén 小人


•Benevolência (Rén 仁)
Conceitos- •Ritual (Lǐ 禮)

chave •Piedade Filial (Xiào 孝)


•Lealdade (Zhōng 忠)
•Rectidão ou imparcialidade (Yì 义)

Consoante mencionado, o confucionismo apresenta quatro obras de referência, sendo que para Max Kaltenmark
(1972), do ponto de vista filosófico, o mais importante será o Grande Ensinamento (Dà Xué 大學) onde se
descreve o mundo visível e invisível em termos de Yinyang, cujas alternâncias constituem o Dào, a Ordem
cósmica. Estes dois subprincípios são, na sua manifestação concreta, o Céu e a Terra, Qian e Kun, que emanam
do Apogeu supremo (Tai Ji), princípio transcendente e soberano, mas de modo algum pessoal. O Tai Ji é o reitor
das imagens simbólicas (Xiang) e corresponde ao Dào que é o reitor das coisas e dos fenómenos do Universo
concreto.
Figura 13 – Desenvolvimento da sequência xian tian dos 8 trigramas, in “The taiji diagram's history”, François Louis.

A partir de Qian e Kun, que permutam as suas linhas Yin ou Yang, nascem outras imagens, i.e., outros Gua, e
as suas linhas representam o conjunto das realidades. Graças aos símbolos divinatórios – Gua – a simplicidade
pode ser encontrada por detrás da complexidade das coisas, e a permanência por detrás da mudança, pois as
mutações realizam-se em obediência a ritmos imutáveis.

Figura 14 –Esquerda: Livro do Rio (Luò Shū 洛书|洛書). Direita: Diagrama do Rio Amarelo (Hé Tú 河图|河圖).

Além dos Gua, esta obra expõe também uma numerologia graças à qual as interações entre o Céu e a Terra,
entre o Yin e o Yang, entre o redondo e o quadrado, se tornam manifestas – na conceção tradicional os números
ímpares são Yang (1, 3, 5, 7, e 9) e os números pares são Yin (2, 4, 6, 8 e 10), atribuindo a cada Gua um número
e distribuindo-os octogonalmente, como uma rosa-dos-ventos, os dez números distribuem-se no espaço de modo
a formar conjuntos “par-impar” que ilustram a hierogamia do Céu e da Terra, graças à qual são produzidos os
dez mil seres.
Figura 15 - Esquerda: Xian tian bagua (Sequência de Fuxi). Direita: Hou tian bagua (Sequência do Rei Wen), in “The taiji diagram's
history”, François Louis.

Com efeito, todas as coisas, concretas e abstratas, seres, fenómenos naturais, ideias, virtudes, instituições,
provêm da interação das potências cósmicas sexuadas que são o Céu e a Terra, e vemos assim emergir a ideia,
chave para o pensamento chinês, das três componentes do Universo e das suas relações: o Yin e o Yang são a
via (Dào) do Céu; o Frágil e o Forte são a vida da Terra; e as virtudes de Humanismo (benevolência) e
Equidade são a via da Humanidade.

Desta forma, sabendo prescrutar o sentido das imagens do Yijing, o adivinho, que se tornou sobretudo um sábio
confucionista, penetra nos mistérios da vida e da morte, assim como em todos os fenómenos de um mundo em
perpétua mutação. Ele deve a este conhecimento profundo uma serenidade que o distingue da vulgaridade,
sempre incerta e inquieta. E, bem entendido, ele poderá como bom confucionista fazer-se prevalecer para dar
aos grandes conselhos judiciosos147.

O texto Doutrina do Meio (Zhōng Yōng 中庸) é constituído pela reunião de vários textos de autores e épocas
diferentes, e o primeiro capítulo contém definições e máximas que são frequentemente citadas:

A natureza do homem é-lhe conferida pelo Céu; o Dao (a ética) consiste em conformar-se
com esta natureza; a educação consiste em praticar o Dao.148

Na mesma obra refere:

Quando as paixões, tais como a alegria, a cólera, a tristeza, o prazer, ainda não se
manifestaram, a alma está em estado de equilíbrio; se, depois de já se terem manifestado,
permanecem na justa medida, a alma está num estado de harmonia… Quando se realiza

147
Citado em Kaltenmark (1972), Capítulo 1 – A antiguidade (pp. 15-57).
148
Citado em Kaltenmark (1972), Capítulo 1 – A antiguidade (pp. 15-57).
este estado de equilíbrio e de harmonia, o Céu e a Terra estão em boa ordem, todos os
seres prosperam”.149

As faculdades espirituais e vitais que constituem a “natureza humana” encontram-se assim, na origem, num
estado de equilíbrio perfeito. Se os sentimentos e as paixões destroem este equilíbrio, a educação permite
conduzi-los à justa medida e à harmonia. Ora, este estado de harmonia da alma humana influência toda a
natureza e é indispensável para que reine a ordem no universo e para que nele floresça a vida (Kaltenmark,
1972).

Na segunda metade da obra aparece a importante noção de Chéng (誠), termo geralmente traduzido como
“sinceridade” mas que aqui corresponde a “perfeição”, tratando-se de um conceito que na obra abrange
simultaneamente a psicologia e a metafísica (Kaltenmark, 1972). A perfeição é uma qualidade do Céu e só o
santo a pode possuir também, pois conservou intacta a sua natureza inata e o seu comportamento está
espontaneamente em completo acordo com o Céu, sem que para isso tenha que fazer qualquer esforço. Os
homens vulgares podem chegar à perfeição, mas é necessário que sejam educados e têm que se aperfeiçoar pelo
estudo - a perfeição é, pois, uma qualidade espiritual que pode ser inata ou adquirida. É também um princípio
cósmico fator de unidade entre o Céu e a Terra e graças ao qual estas duas entidades dão vida aos seres, é
também graças à perfeição que o ser humano pode igualar-se ao Céu – este aspeto revela influência daoista
(opus cit.).

Daoismo
τriginários da “família-casa do daoísmo”150, os mestres do Dào 道, escreveram os seus próprios “Clássicos” –
por ex. Dào Dé Jīng 道德經 - e desenvolveram uma argumentação discursiva e também antidiscursiva.

Tal como no confucionismo, encontramos um pensamento humanista de base, expresso no amor pela vida, na
consideração pelos outros, no respeito mútuo, na justiça, na igualdade, na auto-melhoria, na preservação da vida
e na rejeição da guerra e violência:

A nossa vida é a nossa posse, e os seus benefícios para nós são muito grandes.151

Mas, contariamente aos confucionistas, que enfatizavam as relações entre os indivíduos e a sociedade,
acreditando na ideia de que o governo beneficiava as pessoas e que estas fariam o necessário para o governo ser
bem gerido, os daoístas não aceitavam essas premissas - defendiam a vida privada e desejavam que os
governantes deixassem as pessoas em paz, sozinhas, pois assim elas conseguiriam manter as suas mentes livres
para experienciar todos os aspetos da vida (Junqueira, 2013).

Os daoístas, assim como várias outras escolas filosóficas chinesas, tratavam Dào 道 como um conceito-chave.
Ao contrário dos confucionistas que o usavam para se referir a um comportamento eticamente correto, os
daoístas usavam-no para se referir ao curso da natureza, um curso que estava além da simples compreensão
humana, mas que eles deveriam seguir harmoniosamente, sem a pretensão de ir contra ela ou dominá-la. A
sociedade humana, antes de ser a expressão última do Dào 道, era vista apenas como uma pequena parte da

149
Citado em Kaltenmark (1972), Capítulo 1 – A antiguidade (pp. 15-57).
150
Mais informações em http://www.iep.utm.edu/daoism/.
151
Citado em Big Leung (2007), Chapter two - The Spirit of Chinese Culture: Its Human Centredness (pp. 7- 34).
Semelhanças Exaltação do mérito realidade, já que era a libertação dos
Bem-estar do povo padrões e hábitos comuns que
Guerra não agressiva conduziria à harmonia com o mundo
Importância de venerar o Céu e espírito ancestral natural - Dào 道 (Junqueira, 2013).
Confucionismo Pró-música
Mas como surge este pensamento tão
Pró-funerais
divergente das correntes dominantes da
Diferentes níveis de amor - "amor preferencial"

Aceitação do destino
época, concretamente do confucionismo
Moismo
e moismo?
Anti-música

Anti-funerais Confucionismo e moismo eram


Amor igual - "amor universal" movimentos alicerçados no discurso
Rejeição do destino ético, tendo como foco a sua aplicação
Ilustração 2 - Confucionismo vs. Moismo. política, em particular nos assuntos de
governação de estado. Tal como na
atualidade, na antiguidade nem todos tinham motivação ou aspirações políticas, pelo que estas escolas deixavam
um “vazio intelectual” para todos os que optavam por não se envolver nestes assuntos, sendo que o daoísmo
veio preencher esta lacuna. Curiosamente, o daoísmo acabou por agradar tanto aos outcasts como às figuras de
governação, sendo o próprio cânone “Laozi” considerado um manual de estratégia que ensina a viver e a vencer.

Nutrição do
self
•Proteção de
todas as
partes do
corpo

Treino
mental Dúvida
•Controlo do fundamental
desejo
Sistema •Mente Daoismo
inamovível
Método
filosófico filosófico
•Sentar no
olvidar Inferência pelo
paradoxo
Cosmogonia
•Unidade
suprema
•Constância

Ontologia
•Dao e
Uniformidad
e (conceito
de Tian Pian)

Ilustração 3 - Bases do sistema filosófico dos Livros de Laozi e Zhuangzi e a formação do daoísmo filosófico.152

152
Resumo da informação In Masayuki Sato (n.d.). Lecture Eight - The Formation of Daoism and the Book of Laozi.
Introduction to Classical Chinese Philosophy. National Taiwan University.
Cosmogonia: Etimologicamente a palavra cosmogonia vem do grego cosmos, que significa mundo, e gonia, que quer dizer
geração, nascimento. Trata ela do nascimento, o propósito e o fim de todos os seres sob a ação dos deuses. O Dicionário
Houaiss dá três definições para o termo, a saber: (1) princípios (religiosos, míticos ou científicos) que se ocupa em explicar
a origem, o princípio do universo; (2) conjunto de teorias que propõe uma explicação para o aparecimento e formação do
sistema solar; (3) qualquer fundamento teórico que busque explicar a formação das galáxias a partir de um princípio
primordial.
Academia Jixia
Para compreender o aparecimento do daoísmo é importante mencionar, que nos 150 anos de história do estado
de Qi 齊, quando sob o domínio da família Tian (?─384 AEC), assistiu-se a um investimento sem precedentes
na atividade intelectual, o que terá culminado no que ficou conhecido como “Academia Jixia”(Jixia zhi xue 稷
之學)153, que teve no posto de grão-mestre sénior (shang dafu 大 ) figuras como: Zou Yan 鄒 , Chunyu
Kun 淳于髡, Tian Pian 田駢, Jiezi 接子, Shen Dao 慎到 e Huan Yuan 環淵154.

Estes mestres, não estavam envolvidos diretamente nos assuntos de governação do estado, como os
confucionistas e moistas, mas participavam das discussões, especificamente na ordem/desordem (do
estado/sociedade). E foi assim que Tian Pian terá persuadido o rei de Qi com o método do Caminho:

Rei de Qi: A área que possuo é o estado de Qi. Desejo ouvir sobre o governo de Qi.
Tian Pian respondeu: As minhas palavras permitem-te obter um governo ordenado sem te
envolveres no teu governo, é como se conseguisses obter madeira a partir de nada.
Espero que consigas obter a governação ordenada de Qi espontaneamente.
Vou explicar a essência da minha teoria com vários exemplos ou múltiplos factos que
recolhi.
Como posso limitar a minha teoria para explicar o governo do estado Qi! Todo o
processo de transformação que responde a exigências ambientais tem a sua manifestação.
Se estamos de acordo com a essência natural das coisas e permitimos que estas coisas
funcionem espontamente para nós, nada é obtido inapropriadamente.155

Assim, o famoso Lǎozǐ (老子) não terá sido o primeiro tratado a falar sobre o método do Caminho, sendo que
esta obra terá sido fortemente influenciada pelo pensamento da Academia Jixia.

Eles (Peng Meng, Tian Pian e Shen Dao) consideravam que a primeira coisa a fazerem
era ajustar as controvérsias entre diferentes coisas. Diziam, “o Céu pode cobrir, mas não
pode sustentar; a Terra pode sustentar, mas não pode cobrir. O Grande Dao engloba
todas as coisas, mas não discrimina entre elas.”
Eles sabiam que todas as coisas têm aquilo que podem e o que não podem fazer. Portanto
diz-se, “se selecionas, não obtens tudoν se ensinas algumas coisas, deves omitir as outrasν
mas o Dao nada negligencia.”
(…)
Shen Dao descartou-se do seu conhecimento e também de todo o conhecimento de si
próprio, agindo apenas onde não tinha alternativa, e seguiu como seu percurso ser
indiferente e puro nas suas interações com outros. Ele disse que o melhor conhecimento
era não ter conhecimento, e que se tinhamos um conhecimento pequeno era provável

Ontologia: De modo geral e simples pode ser tomado como procura do ser, da realidade essencial, e não das aparências ou
fenómenos – investigação que tem constituído, através dos séculos, um dos temas essenciais da filosofia. A ontologia trata
do ser enquanto ser, isto é, do ser concebido como tendo uma natureza comum que é inerente a todos e a cada um dos seres.
Olvidar: deriva do latim oblitare, de obliviscor, -ci, esquecer, esquecer-se de. Verbo transitivo e pronominal. Significa:
(1) Perder de memória, deixar cair no esquecimento. = ESQUECER; (2) Desaprender.
153
Não se conhece os motivos que levaram a designar a academia desta forma, mas pensa-se que poderá estar relacionado
com a residência dos mestres – próximo da “Porta do Ji” (稷門), localizado na parte oeste ou sul da capital de Qi - Linzi
臨淄.
154
Masayuki Sato (n.d.). Lecture Seven - The Jixia Academy and Transformation of Intellectual Miliu. Introduction to
Classical Chinese Philosophy. National Taiwan University.
155
Citado em Masayuki Sato (n.d.). Lecture Seven - The Jixia Academy and Transformation of Intellectual Miliu.
Introduction to Classical Chinese Philosophy. National Taiwan University.
provar-se uma coisa perigosa. Consciente da sua inadequação, ele
nada empreendeu e riu daqueles que valorizavam habilidade e
virtude.156

Shen Dao foi um dos pensadores sócio-políticos mais proeminentes da história


intelectual humana tendo transformado completamente o estado real da
argumentação da questão sócio-política na história do pensamento chinês - após
Shen Dao, a questão moral orientada discurso sócio-político mudou para uma
perspetiva mais objetiva e analítica. As ideias de Shen Dao que causaram esta
"mudança de paradigma" podem sistematizar-se em três pontos157:

1. Shen Dao observou que a fonte de autoridade política vem do próprio


poder de autoridade e não da virtude ou sabedoria do soberano158; Figura 16 – Caractere chinês para
2. Argumentou que seria simplesmente absurdo defender a necessidade da Dao. O poeta Po Chu-i escreveu:
virtude moral, por exemplo, a lealdade a um estado ou a um senhor, para Aqueles que falam não sabem
manter a ordem sócio-política de um país – mais relevante que a nada,
autoridade do soberano e a lealdade cega dos súbditos, é a atribuição de Aqueles que sabem mantêm-se em
cargos em base da competência e pela justa distribuição dos recursos silêncio.”
por todos os membros da sociedade;
Estas palvras, como me disseram,
3. Providenciou as ferramentas conceptuais para analisar a ascensão e
queda de um estado: shi 勢 (poder de autoridade), fen 分 (divisão e Foram faladas por Lao Tzu.

distribuição) 159 , fa 法 (lei) 160 e gong 公 (igualdade e justiça — na Mas se devemos acreditar
atualidade traduzido como “público”). Que Lao Tzu era ele próprio um
dos que sabia,
Zou Yan 驟 (鄒) , foi segundo Joseph Needham o real fundador de todo o
pensamento científico chinês, uma vez que terá desenvolvido a teoria do Como escreveu um livro

dinamismo e mudança -Yinyang 陰陽 e Wuxing 五 . Zou Yan ficou famoso De cinco mil palavras?
por fazer dos movimentos cinco virtudes que reinam ciclicamente e que
correspondem, respetivamente a uma virtude dinástica; estas virtudes sucederam-se numa ordem diferente
(ordem do “triunfo”: terra, madeira, metal, fogo e água) da ordem dos elementos (ordem “genética”: madeira,
fogo, terra, metal, água). As mudanças das virtudes manifestam-se por períodos anunciadores e implicam, da
parte de cada nova dinastia uma reforma das instituições e da simbólica, por ex. a questão da cor dinástica foi
objeto de longas discussões durante os reinados da primeira dinastia Han, até que os partidários do Vermelho
(ou seja, a virtude do fogo) o fizeram finalmente prevalecer (Kaltenmark, 1972).

156
Cap. “Tianxia”, The Book of Zhuangzi, tradução para inglês de J. Legge; cit in Masayuki Sato (n.d.). Lecture Seven -
The Jixia Academy and Transformation of Intellectual Miliu. Introduction to Classical Chinese Philosophy. National
Taiwan University.
157
Masayuki Sato (n.d.). Lecture Seven - The Jixia Academy and Transformation of Intellectual Miliu. Introduction to
Classical Chinese Philosophy. National Taiwan University.
158
Esta ideia vem questionar a crença dominante de que o soberano governava por mandato celestial e que se não fosse
virtuoso então o Céu lhe retiraria o poder.
159
Este autor introduziu os conceitos da lei da oferta e procura, concretamente de distribuição (se um coelho correr na
praça 100 pessoas o perseguem, não porque possa ser dividido por 100 mas porque ainda não foi atribuído, mas quando
tenho montanhas de coelhos no mercado e os transeuntes não se interessam é porque a sua distribuição já foi definida, e
assim ninguém luta por eles). Então para a paz no estado é essencial que a distribuição de recursos e cargos esteja definida
e este aspeto interfere com a autoridade do soberano, mais que a virtude e lealdade.
160
A lei permite que as pessoas sejam tratadas com igualdade e que ninguém esteja acima dela.
Formação do daoísmo
Laozi
São autores de referência do daoísmo Zhu ngzǐ (莊子)161
e Lǎozǐ (老子)162, este último, alegadamente descendente
da família dos Lǐ 李 dos Reinos Combatentes. Sima Qian
enumera três nomes que poderão ser identificados como
o autor do “Laozi”163:

1. Li Er 李耳,
2. Laolaizi do estado de Chu 楚人 老萊子,
3. e o escrivão Zhou, Lao Dan 周史 老儋.

Sima Qian registou que a nona geração de descendentes


de Laozi terá vivido durante o período médio de Han,
assim sendo, Laozi deverá ter vivido durante o período
dos Reinos Combatentes164.

A obra é composta por 5635 (815 caracteres) palavras


distribuídas por 81 capítulos, divididos por duas secções:
(1) inclui os capítulos 1  3ι, sendo chamado o “Cânone
do Caminho”; e (2) inclui os capítulos 38  81, sendo o
“Cânone da Virtude” (ou poder procreativo). Em conjunto
o texto é também chamado Daodejing 道德經, O Cânone
do Caminho e da Virtude.

Conhecemos diferentes versões deste cânone,


nomeadamente a versão de Guodian 郭店, que é a mais
antiga remontando a 300 AEC; e a de Mawandui 馬王堆
transcrita no início do período Han e enterrada em 168
AEC. Não obstante, não existem evidências
Figura 17 – Versão de Guodian 郭店 do Laozi (300 AEC).
arqueológicas de que estas fossem conhecidas como
“Laozi” quando em circulação. Em 2ίίλ a Universidade
de Beijing adquiriu um texto em bamboo com 99% dos caracteres preservados, mas ainda não estará disponível
para o público165.

Segundo Lǎozǐ o Dào é uma entidade primordial e eterna, é anterior a todas as coisas visíveis e mesmo às
divindades superiores. É inacessível aos sentidos, pois não é algo de percetível, mas é deste “nada” que nasce o
mundo visível e no seio do qual nascem os seres particulares:

161
庄子 ou 莊子 Zhu ng zǐ (3θλ-286 BC), autor daoista, mais informações em http://www.iep.utm.edu/zhuangzi/.
162
老子 Lǎo Zǐ, Laozi ou Lao-tze (c. 500 BC), filósofo chinês, fundador do daoísmo, autor do livro sagrado do daoísmo
道德經|道德经. Mais informações em http://www.iep.utm.edu/laozi/.
163
A.k.a Dao De Jing.
164
Masayuki Sato (n.d.). Lecture Eight - The Formation of Daoism and the Book of Laozi. Introduction to Classical
Chinese Philosophy. National Taiwan University.
165
Masayuki Sato (n.d.). Lecture Eight - The Formation of Daoism and the Book of Laozi. Introduction to Classical
Chinese Philosophy. National Taiwan University.
Todos os seres deste mundo nascem do Visível; o
Visível nasce do Invisível.166

Esta oposição de sensível e supra-sensível implica a de


nomeável e não nomeável:

Um Dao de que se pode falar não é o Dao eterno;


Um nome que serve para denominar não é o Nome
eterno.
O que não tem nome é origem do Céu e da Terra;
O que tem nome é mãe de dez mil seres.167

Dào não é mais que uma maneira prática de o designar, não é


um nome, valendo salientar, que para os antigos chineses, o
nome não era distinto da essência do ser nomeado, o nome não
só qualificava mas também dava, a quem o conhecia e
pronunciava, poder sobre o próprio ser (Kaltenmark, 1972). O
nome verdadeiro do Dào transcende, é ele próprio
transcendente e eterno e, logo, incognoscível. Figura 18 – Versão de Mawandui 馬王堆(168 AEC), os
seus conteúdos são idênticos, mas o Cânone da Virtude
Max Kaltenmark (1972) comenta que o Dào tem, com efeito, antecede o Cânone do Caminho.
diversos modos: por um lado é transcendente e por outro, à
medida que se manifesta, torna-se imanente, penetra, anima e organiza os seres. Como produtor do Universo, o
Dào é um princípio feminino, é a mãe do mundo, sendo este princípio que faz nascer os seres e o seu Dé 得168,
que é a sua virtude alimentadora, sustenta-os e condu-los à maturidade. Mas para dar nascimento aos seres é
indispensável a colaboração dos subprincípios sexuados que são o Céu e a Terra, Yang e Yin, e, deste modo, a
Virtude substanciadora do Dào confunde-se com a Terra:

O Espírito do Vale não morre, é a Fêmea misteriosa.


A porta da Fêmea misteriosa, eis a raiz do Universo.169

À ideia de feminilidade está também ligada a de vacuidade (evocada pela imagem do vale), que tanto simboliza
a ausência de qualidades sensíveis do Princípio, como o vazio mental do sábio. Com efeito os daoistas condenam
o conhecimento discursivo como perigoso, pois introduz a multiplicidade na alma, visto que esta deve “abraçar
a unidade”, i.e., estar unificada no Dào. É necessário uma disciplina dos sentidos e das paixões para preservar
esta unidade:

166
Capítulo 40 do Dao de jing, citado em Kaltenmark (1972), Capítulo 1 – A antiguidade (pp. 15-57).
167
Capítulo 1 do Dao de jing, citado em Kaltenmark (1972), Capítulo 1 – A antiguidade (pp. 15-57).
168
Segundo Max Kaltenmark (1972), De designa um poder de realização em domínios particulares, ao passo que Dao
implica uma eficiência universal, por ex., o chefe político deve estar de acordo com o Dao para poder governar o mundo
inteiro, ele possui então uma virtude, um De, que exerce uma influência benéfica e vivificante nos seres que o rodeiam.
Graças ao seu Dao-De torna-se polo de atração ao qual se submetem os povos de todo o mundo, mesmo os bárbaros mais
afastados da capital. Para os confucionistas esta virtude resulta da prática das virtudes morais e pode ser adquirida pelos
sábios, mesmo que este não seja um governanteμ Confúcio era considerado um “rei sem coroa”. Com os taoistas, Dao e De
tomam um valor decididamente metafisico e mesmo religioso.
169
Capítulo 6 do Dao de jing, citado em Kaltenmark (1972), Capítulo 1 – A antiguidade (pp. 15-57).
As cinco cores impedem os olhos de ver.
Verdade
As cinco notas impedem os ouvidos de ouvir. Carlos Drummond de Andrade
Os cinco sabores tolhem a boca.170
A porta da verdade estava aberta,
Para a filosofia chinesa, os órgãos dos sentidos são aberturas por
onde se escapam os princípios vitais se não forem controlados; e mas só deixava passar
as paixões são causa de um deperdício de potência vital e espiritual, meia pessoa de cada vez.
pelo que era recomendável uma certa ascese171, mas esta visava a
utilização harmoniosa das faculdades sensoriais, e não a sua
supressão (Kaltenmark, 1972). Assim não era possível atingir toda
a verdade,
Lǎozǐ distingue várias espécies de Déμ há um De superior, o da
pessoa que nada faz para o adquirir e que pouco se diferencia da porque a meia pessoa que entrava
eficácia do próprio Dào - quando nos esforçamos por ser virtuosos só trazia o perfil de meia verdade.
segundo as normas sociais, perdemos essa virtude, essa força
E sua segunda metade
interior que é a única que alcança a santidade e adquirimos
somente pequenas vitudes, cada vez mais desprezíveis. Se voltava igualmente com meio
descemos mais baixo, a virtude da benevolência confucionista, perfil.
também se degrada e transforma-se na equidade, depois no E os meios perfis não coincidiam.
ritualismo, sendo esta última virtude a mais afastada do espírito
daoista (Kaltenmark, 1972).
Arrebentaram a porta. Derrubaram
Na sequência deste raciocínio, Lǎozǐ defendia o caminho da Ação a porta.
na Não-Ação (Wéi Wú Wéi 為無為):
Chegaram ao lugar luminoso

Os Dez Mil Seres172 fazem, mas não para se realizarem; onde a verdade esplendia seus
fogos.
Iniciam a realização, mas não a possuem;
Concluem a obra sem se apegarem Era dividida em metades
E justamente por realizarem sem apego, não passam.173 diferentes uma da outra.
Ação através da não-ação,
Atividade através da não-atividade,
Sabor através do não-sabor.174 Chegou-se a discutir qual a metade
mais bela.
O princípio da Ação na Não-Ação (Wéi Wú Wéi 為無為) significa
Nenhuma das duas era totalmente
as ações praticadas sem intenção, as quais preservam o Coração
bela.
vazio, livre, capaz de receber e agir sem apego ou aversão a
qualquer experiência ou fenómeno. Então não se trata de inação E carecia optar. Cada um optou
conforme
170
Capítulo 12 do Dao de jing, citado em Kaltenmark (1972), Capítulo 1 – A antiguidade
seu capricho, sua ilusão, sua
(pp. 15-57).
171 miopia.
Ascese: derivado do termo grego askesis, exercício. Significa a prática de exercícios austeros que levam ao
aperfeiçoamento (neste contexto, moral). É sinónimo de renúncia, regime de vida duro e mortificante que leva à virtude, à
perfeição.
172
A expressão “dez mil seres” (wàn wù 萬物) significa todos os seres. O caractere Wan (萬) tem o mesmo significado
que a palvra grega myriás, myriádos (dez mil), de que provém a palavra portuguesa “miríade”, que designa uma grande
quantidade indeterminada; o caratere Wu (物) pode significar coisas ou criaturas (seres); assim, a expressão “dez mil
criaturas/seres” pode traduzir-se por “todas as criaturas” ou “todas as coisas” (nota do tradutor em Tse, 2010, pp. 22).
173
Lǎo Zi 老子. Dao De Jing: o livro do caminho e da virtude [Trad. Wu Jyh Cherng]. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.
Cap. 2, p. 33.
174
Lǎo Zi 老子. Dao De Jing: o livro do caminho e da virtude [Trad. Wu Jyh Cherng]. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.
Cap. 63, p. 295.
absoluta, mas de uma atitude de não intervenção no decurso das coisas e de respeito pela autonomia do outro
(Junqueira, 2013). Com esta atitude, o daoista não faz mais do que conformar-se com o próprio Dào que se
mantem sempre sem ação e que, no entanto realiza tudo. Daqui resulta uma ética mais universalista que a dos
confucionistas - o santo daoista é o “bom salvador dos homens”, não rejeita nenhum homem e nenhum ser,
unicamente graças à sua virtude, atrai os seres e converte-os ao bem, sem que eles dêem conta disso, deixando-
os comportar-se conforme a sua espontaneidade natural (Kaltenmark, 1972).

Como quase todos os filósofos antigos, Lǎozǐ dirige-se ao príncipe a quem pretende ensinar o Wuwei e a não-
violência:

O melhor príncipe é aquele cuja existência é ignorada. 175


O delicado e frágil leva a melhor sobre o duro e forte.
Nada é mais brando, nada é menos resitente que a água e, no entanto, não há nada que
triunfe tão completamente sobre o duro e o forte.
Conhece a tua masculinade, mas prefere a tua feminilidade e serás a ravina do mundo; sê
a ravina do mundo e o De supremo não te faltará; então poderás reencontrar o estado de
infância.176

Outras ideias importantes, embora não exclusivamente daoístas, são a de interdependência e transformação dos
opostos:

A existência e a inexistência geram-se uma pela outra;


O difícil e o fácil completam-se um ao outro;
O longo e o curto estabelecem-se um pelo outro;
O alto e o baixo medem-se um pelo outro;
O som e o tom são juntos um com o outro;
O antes e o depois se seguem um ao outro.177

Uma das implicações destas ideias, presentes em diversos tratados daoístas, é o retorno a um estado natural
ideal, simples, em que as pessoas sentiam-se satisfeitas porque livres de especulações intelectuais e artimanhas
– colocar-se espiritualmente “fora de jogo”, é o estado dos Homens Sábios (Kaltenmark, 1972; Junqueira,
2013).

Sem sair da porta


Pode-se conhecer o mundo;
Sem ver através da janela
Pode-se conhecer o Dao do Céu
Quanto mais longe saímos,
Tanto menos conhecemos
Por isso, o Homem Sábio
Conhece sem caminhar,
Reconhece sem ver,

175
Capítulo 57 do Dao de jing, citado em Kaltenmark (1972), Capítulo 1 – A antiguidade (pp. 15-57).
176
Capítulo 82 do Dao de jing, citado em Kaltenmark (1972), Capítulo 1 – A antiguidade (pp. 15-57).
177
Lǎo Zi 老子. Dao De Jing: o livro do caminho e da virtude [Trad. Wu Jyh Cherng]. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.
Cap. 2, p. 33.
Realiza sem agir.178

Condição para governar o mundo segundo o


Laozi
Nível de princípio: Nível de adoção:
•a pessoa que consegue atingir o poder •a pessoa que consegue nutrir o próprio
de gerar corpo e coração/mente
•a pessoa que consegue seguir a regra •a pessoa que consegue sustentar a
da revolução do Céu e providência da posição de humildade
Terra •a pessoa que consegue governar sem
•a pessoa que consegue controlar a ordem verbal
mudança do mundo

Ao analisar as cláusulas deste Cânone, sobressai a sua estrutura curiosa, que mais parece uma compilação de
provérbios e aforismos comentados por um sujeito. As cláusulas apresentam-se com a afirmação proverbial
seguida da argumentação “filosófica” do sábio (shengren 聖人), estando as afirmações ligadas por termos como
gu 故 ou shiyi 是以 que significam "portanto"179. Isto transmite ao leitor um sentido de autoria singular da obra
e coloca o caminho do sábio acessível a qualquer um, um sentido que é reforçado pelo recurso a expressões
como “wu 吾” ou “wo ” que referem "eu" ou "meu", usadas como sujeito ao longo de todo o Cânone180.

Zhuangzi
Segundo Kaltenmark (1972), o Dào Dé Jīng é um pequeno livro de conteúdo extremamente rico, mas não é um
tratado de filosofia, os seus aforismos, dos quais alguns podem ser diversamente interpretados, propõem temas
de reflexão, mas não contêm nenhuma demonstração, razão pela qual o pensamento daoista teria ficado bastante
hermético sem Zhu ngzǐ (莊子), que apresenta uma obra bastante mais desenvolvida.

O livro de Zhuangzi demonstra um talento genial para o recurso ao diálogo imaginado e alegoria, pretendendo
destruir por completo a nossa compreensão padronizada e de orientação para valor do mundo. O principal tema
de diálogo e alegoria prende-se com a insignificância humana e o seu conteúdo é “verdadeiramente” filosófico,
tal como é considerado o trabalho Nietzsche181.

178
Lǎo Zi 老子. Dao De Jing: o livro do caminho e da virtude [Trad. Wu Jyh Cherng]. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.
Cap. 47, p. 234.
179
Masayuki Sato (n.d.). Lecture Eight - The Formation of Daoism and the Book of Laozi. Introduction to Classical
Chinese Philosophy. National Taiwan University.
180
Opus cit.
181
Masayuki Sato (n.d.). Lecture Nine - The Philosophy of Transformation and Oneness: The Book of Zhuangzi.
Introduction to Classical Chinese Philosophy. National Taiwan University.
Friedrich Wilhelm Nietzsche (Röcken, 15 de outubro de 1844 — Weimar, 25 de agosto de 1900) foi um filólogo, filósofo,
crítico cultural, poeta e compositor alemão do século XIX. Ele escreveu vários textos críticos sobre a religião, a moral, a
cultura contemporânea, filosofia e ciência, exibindo uma predileção por metáfora, ironia e aforismo. As ideias-chave de
Nietzsche incluíam a crítica à dicotomia apolíneo/dionisíaca, o perspectivismo, a vontade de poder, a "morte de Deus", o
Übermensch (Além-Homem) e eterno retorno. Seu questionamento radical do valor e da objetividade da verdade tem sido
o foco de extenso comentário e sua influência continua a ser substancial, especialmente na tradição filosófica continental
Zhuangzi viveu na cidade de Meng (estado de Song), tendo trabalhado para uma fazenda. Viveu no reinado do
Rei Hui de Liang e do Rei Xuan de Qi. Os seus argumentos abrangem praticamente todos os tópicos, mas foram
redigidos em base do pensamento de Laozi. O seu livro consiste de cerca de cem mil palavras organizadas em
diálogos imaginários, fábulas metafóricas, que criticavam a doutrina confucionista. Sima Qian 司馬遷 enumera
três capítulos como sendo obra de Zhuangzi: 漁父 Yufu, 盜跖 Daozhi e 胠篋 Quqie; posteriormente Guo Xiang
郭象 (d. 312) compilou-os na sua forma atual que consiste em três gruposμ “Capítulos interiores”, “Capítulos
exteriores” e “Miscelânia de capítulos”, sendo que este autor acreditava que os capítulos interiores
representavam o próprio pensamento de Zhuangzi.182.

Segundo Kaltenmark (1972), as concepções de Zhu ngzǐ sobre o Dào são as mesmas de Lǎozǐ - trata-se de um
absoluto inefável: O Dào é superior às coisas visíveis e não pode ser apreendido nem pelas palavras nem pelo
silêncio183. Embora, por vezes, se diga que o Dào é imanente, presente em todas as coisas, mesmo as mais vis,
a sua transcendência, assim como o seu caracter primordial, são mais acentuados: antes que existissem Céu e
Terra, ele existiu por toda a eternidade. Este princípio é o princípio da vida universal e das potências sagradas.
Sendo inefável só é exprimível negativamente: não possui qualidades sensíveis, não tem atividade, ainda que
seja suprema eficácia; não tem forma nem nome. As palavras de que somos obrigados a servir-nos só podem,
quando muito, representar os seres finitos e as suas qualidades – o Dào está fora do seu alcance. O Dào é,
sobretudo, um princípio de unidade e nele se resolvem todas as contradições: no seu seio, todos os seres são
unos e os juízos de valor que lhes dizem respeito são anulados. Mas o sentido do Todo encontra-se obscurecido
na maior parte dos homens que estão em oposição pelos seus preconceitos e opiniões - cada um acredita que a
parcela de verdade que detém é um absoluto e pretende impô-la aos outrosμ “estes espíritos estão como mortos,
já não é possível conduzi-los para a luz” (Kaltenmark, 1972).

Para Zhuangzi o “estado original” (Hundun 渾沌, caos, redemoinho ou vortex) – a partir do qual o universo
aconteceu – contém 4 níveis de significado184:

1. “wu 無” (nada)
2. “weiyou 未有” (pré-existência)
3. “shi 始” (caos original)
4. “yi 一” (unidade)

O governante do Mar do Sul chamava-se Luz, o governante do Mar do Norte chamava-se


Escuridão e o governante do Reino do Meio chamava-se Caos Primordial. De tempos a
tempos, a Luz e a Escuridão encontravam-se no Reino do Caos Primordial, que lhes dava
as boas vindas. A Luz e a Escuridão quiseram retribuir-lhe a cortesia e disseramμ “todos
os homens têm sete aberturas com as quais vêem, ouvem, comem e respiram, mas o Caos
Primordial não tem nenhuma. Tentemos dar-lhe algumas.” Assim, todos os dias eles lhe
abriram um buraco e, no sétimo dia, o Caos Primordial morreu.185

compreendendo existencialismo, pós-modernismo e pós-estruturalismo. Mais recentemente, as reflexões de Nietzsche


foram recebidas em várias abordagens filosóficas que se movem além do humanismo, por exemplo, o transumanismo.
182
Masayuki Sato (n.d.). Lecture Nine - The Philosophy of Transformation and Oneness: The Book of Zhuangzi.
Introduction to Classical Chinese Philosophy. National Taiwan University.
183
Citado em Kaltenmark (1972), Capítulo 1 – A antiguidade (pp. 15-57).
184
Para Laozi este “estado original” focava-se na criatividade/procriação.
185
Zhuang Zi (Chuang Tse) (2010). A virtude e o vício no caminho do homem perfeito [trad. Alberto Cardoso]. Largebooks.
Esta história reflete a visão do mundo de Zhuang, onde com a morte do caos começa a história humana e
assistimos à cisão do mundo em esfera celestial e esfera humana e passamos a contrapôr um mundo eterno, não-
existente, infinito, com caracter caótico - o mundo ideal; e um mundo transiente, muito limitado em termos de
tempo e espaço, com o caracter articulado - o nosso mundo.

Esfera
humana

Caos Esfera
celestial

COMEÇA A HISTÓRIA DO SER


CAOS PRIMORDIAL HUMANO ESFERA CELESTIAL – NATURAL E INFINITA
MORRE = ESFERA HUMANA – AÇÃO E FINITA
ARTICULAÇÃO

O que é celestial e o que é humano?


Beihairuo respondeu: todas as vacas e cavalos naturalmente têm quatro patas. Isto pode
ser chamado celestial. Os seres humanos empurram as cabeças dos cavalos para baixo e
perfuram os focinhos das vacas isto pode chamar-se ações humanas.
Exibir a sua natureza como “não-ação”, sendo assim reverente, pode ser chamado o
Caminho celestial. Exibir a sua natureza como “fazer”, metendo-se assim em sarilhos,
pode ser chamado o caminho do homem.
Portanto, não extingas a esfera celestial expandindo a esfera humana; não desprezes o
destino especulando sobre causa e razão. Aqueles que não têm a esfera celestial e a esfera
humana em confronto podem ser chamados “homens verdadeiros”.186

A visão do mundo de Zhuangzi seria esquecer/sair da esfera humana e vagabundear pelo reino celestial, onde
萬物齊 tudo constitui Um, e 逍遙 itinerância sem propósito. O objetivo seria então ampliar a esfera
celestial e diminuir a esfera humana até à sua extinção recorrendo a técnicas como: prática mental, sentar no
olvidar e proteger a vida.
Zhu ngzǐ 187 critica sobretudo as opiniões dos filósofos seus contemporâneos – confucionitas e moistas –
demonstrando que elas deixam de ter sentido se soubermos transcende-las colocando-nos no centro do núcleo
das teses e das antíteses e identificando-nos ao “eixo do Dào”, ou colocando-nos mentalmente “fora do mundo”,
onde não há evidentemente lugar para discorrer. O santo daoista adota consequentemente uma atitude de
perfeita neutralidade, deixa-se iluminar pelo Céu, mas precavê-se de desejar inculcar nos outros as suas
próprias ideias; deixa que as coisas aconteçam espontaneamente e evita intervir inoportunamente, para não
retirar aos seres a sua liberdade natural e, sobretudo, evita servir bem o público.

186
Cit in Masayuki Sato (n.d.). Lecture Nine - The Philosophy of Transformation and Oneness: The Book of Zhuangzi.
Introduction to Classical Chinese Philosophy. National Taiwan University.
187
Citado em Kaltenmark (1972), Capítulo 1 – A antiguidade (pp. 15-57).
Zhuangzi preconizava uma hierarquia de humanos bem
diferente dos seus contemporâneos:188
•天人 (Humano celestial)
Reino
1. Níveis de super-humanos: •神人 (Humano milagroso)
1.1. Não estar separado da sua fonte primária
constitui o que chamamos Humano celestial;
ideal •至人 (Humano perfeito)
1.2. Não estar separado da sua natureza essencial
constitui o que chamamos Humano milagroso;
1.3. Não estar separado da sua verdade real constitui
o que chamamos Humano perfeito. Reino •聖人 (Humano sábio)
2. Níveis humanos e sábios
•君子 (Humano superior)
2.1. Ver o Céu como sua fonte primária; os seus médio
atributos como a Raiz da sua natureza, e o Dao
como a Porta através da qual entra na sua
herança, sabendo também os prognósticos da
mudança e transformação, constitui o que •百官 (Oficiais
chamamos Humano sábio. Todos governamentais menores)
2.2. Ter a benevolência como a fonte de toda a
•民 (Povo/pessoas
bondade, retidão como a fonte de todas as nós governadas)
distinções, correção como regra de conduta, e
música como conceito de toda harmonia,
difundido assim uma fragrância de bondade e gentileza, constitui o que chamamos Humano superior.
3. Nível do humano comum
3.1. Ter as leis para atribuir diferentes condições sociais, os nomes como expressão externa dos deveres
sociais, a comparação de sujeitos como base de evidências, investigação como levando à certeza, para
que as coisas possam ser numeradas como primeiro, segundo, terceiro, e assim sucessivamente: isto é
a base do governo. As suas centenas de gabinetes são assim organizados, negócios têm o seu curso
regular, os grandes assuntos de roupas e alimentos são providenciados, o gado é engordado e cuidado,
os armazéns do governo são preenchidos, os velhos e os fracos, os orfãos e os solitários, recebem
consideração ansiosa: em todas as formas é provisão feita em modo de nutrição para o povo.
Percebemos que aquilo que constituía o humano ideal para o confucionismo está no patamar inferior do nível
médio de Zhuangzi.

Ainda segundo este autor, colocando-se no ponto de vista do Dào, o sábio compreende, tanto intelectual como
existencialmente, que o ser é unidade: não somente esta sintetiza as contradições concetuais como também é a
unidade cósmica no seio da qual se operam as modificações. A vida e a morte não são mais do que um caso
particular das alternâncias de que a natureza oferece numerosos exemplos; não são mais do que dois aspetos da
mesma realidade. Todos os seres passam por sucessões de vidas e de mortes, no decurso das quais revestem
diferentes formas. O daoista aceita estes factos com alegre otimismo, pois não liga as ideias de karma e de dor
a esta espécie de transmigração, como acontece no pensamento indiano. O retorno à indiferenciação do Dào é
comparável a um retorno à pátria de origem, e a nossa passagem sobre a Terra não passa afinal de um sono –
haverá um grande despertar pelo qual saberemos que estávamos a sonhar um grande sonho (Kaltenmark, 1972).

188
Masayuki Sato (n.d.). Lecture Nine - The Philosophy of Transformation and Oneness: The Book of Zhuangzi.
Introduction to Classical Chinese Philosophy. National Taiwan University.
Figura 19 – “Chuang Tzu Dreaming of a Butterfly”, Lu Chih (1496-1576), dinastia Ming.

Uma noite em que estive meditando


Horas longas nas cousas deste mundo
Pouco a pouco me veio o sono brando
E um sonho tão jucundo que ninguém já teve, assim:
Sonhei que era uma lépida e elegante borboleta voando,
De pouso em pouso, sobre o néctar dulcíssimo das flores.
Tempos e tempos, uma vida inteira, andei eu
Com outras companheiras, numa doideira,
Na estação quente dos amores.
Tudo me parecia tão real, tal qual estou dizendo,
E até me lembro que, numa tarde muito fria, quando o sol procurava,
Um vento tão gelado de repente me assaltou,
Tão mal, tão mal, fiquei, que logo ali, sobre um jasmim, morri!
Despertei: e acordado, ainda insecto morto me julguei!
Que sonhos tem a gente – extravagantes!
Sonhos?! – que fosse sonho, então, acreditei,
Mas após muito cogitar vejo só um caso emaranhado!
Justifico: é que a minha convicção
De existir como insecto foi tão firme antes
Como agora é de ser de humana geração!
E, portanto: fui antes um homem que sonhava ser uma borboleta,
ou sou agora uma borboleta que sonha que é um homem?
Erro do intelecto?
Não sei…189

189
Chuang Tzu e a borboleta. In Versão poética (adaptada) de Silva Mendes, Excertos de Filosofia Taoísta. Macau, Escola
das Artes e Ofícios, 1930.
Aqui entramos no conceito chave de Zhuangzi, o de transformação (wuhua 物 ), que o autor aplica de duas
formas190:
1. Os tipos ilimitados de transformações que podem ocorrer no reino ideal, este tipo de transformação
transcende as limitações de tempo-espaço e qualquer forma de existência: Nas profundezas do norte há um
peixe chamado Kun que é tão vasto que nem lhe conheço a medida. Transforma-se num pássaro chamado
Peng, cuja medida do dorso desconheço, mas que quando levanta voo as suas asas se assemelham a nuvens
que cobrem o céu.
2. Os vários tipos de transformação entre criaturas no mundo concreto que consiste na cadeia entre vida e
morte e morte e vida.

Relativamente a este segundo sentido de transformação, segundo Zhuangzi o caos originial degenerou-se e
articulou-se e isto resultou na transformação através da morte e vida, sendo que os humanos não podem controlar
a transformação, apenas podem viver e morrer neste processo. O que levanta a questão, como pode a pessoa
participar neste processo e “transformar-se”? Em teoria, os humanos insiginificantes não possuem esta
capacidade, contudo Zhuangzi vai discutindo entre a “não ação” e “treino deliberado”. É preciso recordar que
nesta visão o sábio ou santo daoista tem consciência de viver num mundo, se não completamente ilusório, pelo
menos num mundo em que tudo está em movimento, contingente e relativo, mas para lá do qual existe um
absoluto com o qual é possível comunicar mental e espiritualmente enquanto esperamos retornar para lá.
Zhu ngzǐ descreve miniciosamente as etapas que conduzem à união com o Dào e o êxtase - o Dào não é, com
efeito, o deus dos filósofos e, não sendo também um deus, é no entanto objeto de sentimentos religiosos. Então,
segundo Zhu ngzǐ191, como o Dào se obscurece nas consciências por causa dos artifícios da civilização, para
chegar à iluminação é necessária uma purificação espiritual, sendo a reflexão crítica que revela o caracter
relativo das ideias recebidas comunitariamente a primeira etapa necessária. Mas é depois de uma purgação de
caracter religioso que o adepto atinge o êxtase: sob a direção silenciosa de um mestre, despoja-se pouco a pouco
dos constituintes do seu eu social, perde a consciência do seu corpo, as suas perceções sensoriais deixam de
ser diferenciadas, “ouve com os olhos, vê com os ouvidos”, o que significa que está em comunhão com o todo,
com a totalidade do seu ser; tem a sensação de voar, de se deslocar livremente no espaço (e no tempo).
Exteriormente o homem em estado de extase é semelhante a um bocado de madeira seca, como se a sua alma,
a sua essência vital, o tivesse abandonado, pois efetivamente a alma foi “deleitar-se na origem das coisas”.

Em certos meios daoistas os adeptos entregavam-se a práticas fisiológicas (respiratórias, gímnicas, dietéticas)
destinadas a prolongar indefinidamente a vida. Para os daoistas a santidade não é separável de uma poderosa
vitalidade: é ainda graças ao Wuwei, evitando viver com demasiada intensidade, que se conserva a brandura e
a energia vital da criança e que, por isso, se pode esperar viver o máximo possível (Kaltenmark, 1972). Aliás,
foi graças à grande preocupação do daoísmo com a manutenção da vida (Yǎng Shēng 養生) que se acumulou e
transmitiu conhecimento ancestral relativo à fisiologia humana, medicamentos, entre outras práticas de
promoção da saúde, que são hoje parte do corpo de conhecimento da medicina chinesa.

Convém sublinhar que o mesmo processo que visa “esvaziar” a alma e atingir o êxtase é, na realidade, necessário
para poder exercer uma influência benéfica sobre os outros - o santo daoista não é necessariamente uma pessoa
que se retira do mundo, pois pode, ao mesmo tempo que está “fora do mundo”, viver como qualquer pessoa,
pode ser “santo interiormente” e “rei exteriormente” - ideal do príncipe que encontramos recorrentemente nos
pensadores chineses (Kaltenmark, 1972).

190
Masayuki Sato (n.d.). Lecture Nine - The Philosophy of Transformation and Oneness: The Book of Zhuangzi.
Introduction to Classical Chinese Philosophy. National Taiwan University.
191
Citado em Kaltenmark (1972), Capítulo 1 – A antiguidade (pp. 15-57).
Zhu ngzǐ foi criticado por ter querido conhecer somente a natureza e não a humanidade, os confucionistas
denunciavam as suas excentricidades e o seu amoralismo. Apesar disso, foi profunda a sua influência,
particularmente no budismo chan e, indiretamente, no neo-confucionismo.

O Rei e os Bárbaros

Como consequência de violentas guerras fratricidas, um rei perdeu até ao último dos seus
soldados. Apenas lhe ficaram dois criados.

Um dia, os Bárbaros chegaram às portas da cidade com intenção de pôr cerco ao palácio.
O rei ordenou então aos seus criados que abrissem todas as portas e janelas e, logo de
seguida, instalou-se na galeria a fim de observar a chegada dos invasores.

Enquanto ele se abanava indolentemente, viu-os avançar até à escadaria do palácio. A


sua serenidade perturbou os Bárbaros. Estes pensaram que os esperava uma armadilha
no interior. Em vez de pôr cerco aquele lugar, o chefe reuniu os seus homens e tocou em
retirada.

Então, o rei disse:

- Vejam, os Bárbaros que são a plenitude têm medo do vazio.

In. Sabedoria dos Contos, Alejandro Jodorowsky

Dào 道 Imortalidade

•Wéi Wú Wéi 為 •Qigong


無為 •Farmacopeia
Lǎozǐ (老子)
•Dào Dé Jīng
道德經

Zhuāngzǐ (莊
子)
Semelhanças Laozi Zhuangzi

•Dao como •Poder maternal como fonte da •Contrasta o poder


origem do universo e senhor criação e condição para a omnipotente e absoluto do
do mundo, o qual não pode existência de tudo Céu (Tian 天) com a vã e
ser nomeado nem conhecido •Condições para governar o insignificante existência
•Mundo está em constante mundo: nível de princípio e humana
estado de transformação e nível de obtenção •Tudo, incluindo os seres
mudança (bianhua 變化) e humanos, constitui a
todos os seres são inseparável unidade
transitórios •Celebra a vida mas não se
•Articulação do conceito de apega à vida
nada (wu 無) e não-ação •Para atingir a esfera celestial
(wuwei 無為) é preciso treino mental e
físico

Ilustração 4- Laozi vs. Zhuangzi.

Apesar de Zhu ngzǐ 莊子 e Lǎozǐ 老子 terem vivido durante os Reinos Combatentes, as suas publicações
ocorreram apenas durante a dinastia dos Hàn, entre IV-I AEC, e foram as noções destes pensadores que
influenciaram os pensadores médicos, incluisive o daoísmo médico de Wáng Bīng 王冰, na dinastia Táng,
contribuindo assim para a elaboração do conteúdo e publicação do “Cânone Interno”.
Síntese filosofia clássica

Kongzi

Discurso ético ou argumentação


•Ascensão do discurso ético
•Política moral - valor moral nos assuntos de estado

CRONOLOGIA DA FILOSOFIA CLÁSSICA CHINESA


Mozi

•Discurso ético alternativo ao de Kongzi

moral
•Política moral - valor moral nos assuntos de estado

Mengzi

•Apogeu do discurso ético


•Discurso argumentativo - o que é mais ético?
•Política moral - valor moral nos assuntos de estado

Mestres de Jixia

•Início do discurso analítico

Discurso analítico
•Questionamento do discurso ético - será suficiente para resolver a guerra?
•Sistema sócio-político e soluções práticas e objetivas.
•Via natural vs. Via moral?

Laozi e Zhuangzi

•Critica à validade do discurso ético - Para quê um discurso ético?


•Sistema sócio-político e soluções práticas e objetivas

Xunzi

•Recuperação do discurso ético incorporando o discurso ético no analítico


•Praticalidade dos valores morais

sincrético
Discurso
Hanfeizi

•Política pura e dura


•União da nação - razão moral por métodos amorais
“chinese style”
Além das influências sociopolíticas, não podemos retirar os aspetos culturais, simbólicos e linguísticos da
equação “Cânone Interno”. Tal como defende Jacques Gernet 192 , é importante manter presente as noções
próprias provenientes do linguístico cultural chinês, o qual se escreve com pincel (caligrafia), onde o sinograma
(Si 思)193, serve para embasar o pensamento.

O pensamento chinês possui correspondência e comunicação entre ambas as noções - Cérebro e Coração - o
qual difere do pensamento ocidental. Assim, o pensamento chinês antigo é uma maneira de se viver com o
Coração dirigindo o Pensamento, estabelece
relações justas entre a ordem reguladora do
Céu/Terra e o interior do Coração do humano,
e fornece o discernimento e a inteligência em
concordância com as relações de Yinyang e os
5 Movimentos.

194
Leon Vandermeersch aponta ainda a
“racionalidade divinatória” que foi feita com os
sinais escritos diagramáticos (Yao 爻), e depois
sinais escritos com caracteres chineses (Wen 文),
sem preocupações teleológicas, mas, que leva
em conta mudanças de configurações
diagramáticas, tratando-se de formas de “escrita
portadoras de sentido”. Então, a teoria está
Figura 20 – “Scholar by a Waterfall”, Southern Song dynasty (1127–
1279). construída sobre o pensamento correlativo do
saber-viver e fazer dos chineses, com o seu
modo de raciocinar, interpretar e vivenciar o mundo e o próprio Homem chinês.

Há uma perspetiva de “ordenação da mentalidade chinesa” correlativo-cosmológica, que é elaborada de


maneira não linear e circular, que se desenvolve através de procedimentos ritualísticos pela escrita e depois
desenvolve especulações sobre o pensamento feito de imagens, de sinais e de correspondências, com
características de racionalidade combinatória e correlativa, ou de correspondências ocorridas de modo
ordenado, ou ordem intrínseca do mundo e das coisas visíveis e invisíveis (Li), espontânea do mundo (Dao) e
as correspondências do Yinyang, como par de opostos complementares situados numa “razão inclusiva”

192
Citado em Junior (2012) - Capítulo 1, O Clássico Interno do Imperador Amarelo na Antiga China (pp. 24-73).
193
Sinograma: termo erudito para a expressão caractere chinês, do chinês, hàn zì (漢字). O prefixo derivado do radical
em latim, sino, sinos, ou China e do grego: (γ ά α), grama, grafia.
Sinologia: Vocábulo, substantivo feminino que deriva do latim: substantivo nominativo,vocativo sinae; sina, sinós; do
grego antigo, Σι άι, sinai, prefixo relativo a China; do grego: logos ( όγο ), estudo. Portanto, estudos chineses, da cultura,
civilização, idioma da China.
194
Citado em Junior (2012) - Capítulo 1, O Clássico Interno do Imperador Amarelo na Antiga China (pp. 24-73).
indiferente e que não há nada em comum com as ligações e
encadeamentos lineares, como ocorre no idioma indo-
europeu.

O pensamento médico chinês fundamenta-se também nas


teorias e noções feitas com o conceito da multiplicidade,
plasticidade e de totalidade do campo semântico do
sinograma contextual, numa abordagem da linguagem na
polissemia dos caracteres chineses feitos com o estudo do
conteúdo do texto.

Assim, contextualizando-se o significado dos sinogramas


textuais, considerando a multiplicidade de totalidade
semântica cultural numa interpretação e tradução
fundamentada nas noções subjacentes aos valores de
significância dos sinais chineses assimilados como termos
técnicos da medicina clássica chinesa presentes no Cânone
Interno, esta obra é suscetível, na recetividade textual, de Figura 21 - Amostra do frontispício do Cânone Interno, no
receber modificações profundas de significância (Junior, pincel de Wang Bing, dinastia Táng (retirado de Junior,
2012; pp. 54).
2012).

Estética chinesa clássica195


O Cânone Interno, edição de Wáng Bīng, consta da composição que obedece às características da “estética
chinesa” (Wén Qì 文氣)196 do texto de medicina, de acordo com os estilos de composição “estética” (Wén Yán
Wén 文言文) e (Gǔ Wén 文), assimilados dos textos daoístas dos Reinos Combatentes, com destaque às
obras de Zhu ngzǐ, Lǎozǐ e Huáinánzǐ provenientes da dinastia Hàn (206 AEC-220 EC). Trata-se de uma escrita
feita com os “ventos-sopros” (Qì 氣) manifestados nos caracteres chineses ou sinografia, sob um pensamento

195
Informações retiradas de Junior (2012) - Capítulo 1, O Clássico Interno do Imperador Amarelo na Antiga China (pp.
24-73).
196
Estética chinesa (wén qì 文氣): expressão literária do pensamento chinês de figuras combinatórias, correspondências
cosmológicas ordenadas conjuntamente forma ao conteúdo como num corpo: carne, fisionomia, osso, sangue e sopros,
escritos com pincel e nanquim. Os caracteres chineses são dispostos em quadrados de nove divisões, numa coerência
estrutural e sequencial (jiǔ gōng gē 九宮歌), segundo o método de alusividade e procedimento ritual (lǐ 禮). Disposição
em colunas verticais, de cima para baixo, lidos retroverso, com um sinograma associado a outro caractere, segundo o
contexto pincelado com sinais graúdos ao texto original, complementado sempre com comentários escritos com sinais
menores que os anteriores para propiciar o movimento ritmado e versivo com rimas no processual espontâneo e animador
conferido pelos sopros e o funcionamento de atividade própria, pincelados no papel de arroz, num corpo de sopros yīnyáng
do texto.
de “figuras combinatórias de
correspondências” (gǎn yìng xiàng 感應象)
inscrevendo o sinal chinês sempre num
quadrado (Fāng 方) de nove subdivisões197
que indica “norma e regra”.

Outra particularidade, salientada por Anne


Cheng198, tem a ver com o facto da escrita
chinesa ser especialmente concisa, alusiva e
permeada por paralelismos, segundo a noção
chinesa de Wén ( 文 ), que fundamenta e
designa a inteligência chinesa (Sī 思), que
pela dificuldade linguística é denominada
pela autora de “intuitivo-intelectiva”, não do
raciocinar melhor, mas de um vivenciar
melhor. Segundo Yolaine Escande 199 , o
modo alusivo e evocatório que “sugere sem
mostrar diretamente”, serve das omissões
propositadas com o implícito cultural chinês
para permitir a leitura intelectiva e a vivência
pessoal, propiciando o viver melhor ou Figura 22 - Amostra da “estética chinesa” de uma página do Cânone Interno
dos Táng no pincel de Wáng Bing (retirado de Junior, 2012; pp. 55).
saber-viver dos daoístas e assim dar acesso
à sabedoria como resultado da interioridade e não do convencimento.

Junior (2012), salienta ainda, que a estética permanece de acordo com a correlação do pensamento de
correspondências cosmológicas do daoísmo herdado das primeiras frases (文 Wen) escritas na carapaça de

197
Quadrado dos nove palácios (jiǔ gōng gē 九宮歌): nele são inscritos os sinogramas na confecção de uma escrita
chinesa numa estética singular, pincelado pela concretização dos sopros, vulgarizado como “caligrafia chinesa” (shū fǎ 書
法):

198
Citado em Junior (2012) - Capítulo 1, O Clássico Interno do Imperador Amarelo na Antiga China (pp. 24-73).
199
Citado em Junior (2012) - Capítulo 1, O Clássico Interno do Imperador Amarelo na Antiga China (pp. 24-73).
tartaruga, desde os Sh ng, feitas em duplas colunas que se
completam, pelo que o paralelismo estabelece a relação
entre as frases que se completam no sentido. Aqui, o lado
direito, considera-se o lado dos sopros Yáng (Yángqì 陽氣),
a coluna da esquerda é o lado Yīn (Yīnqì 陰氣). Assim, o
paralelismo segue a interação do Yīn Yáng ( 陰 陽 ),
expressões do Qì (氣), nos escritos subsequentes, a escrita
dos sopros (Wenqì 文氣).

Outra característica do estilo é a escrita ritmada e rimada


(Yán 言) - que dá o nome por extenso em chinês do estilo
de escrita com caracteres antigos (Wén Yán Wén 文言文),
seguindo as normas da escritura chinesa da antiguidade (Gǔ
Wén 文), conhecida como “escrita antiga ou tradicional”,
comum aos textos clássicos, com arranjo de caracteres Yáng
ou “plenos” e sinogramas Yīn ou “vazios”.

Sendo assim, o texto (Wénqì 文氣), a “escrita feita com


Figura 23 - Amostra do capítulo 1, do rolo 1, do δǎozǐ Dàodé sopros” do Cânone Interno, foi confeccionado com pincel e
Jīng 老子道德經 no pincel de Zhào εèngfǔ (retirado de
Junior, 2012, pp. 57). nanquim no rolo de papel de arroz, sendo que depois de
receber o formato de livro (Shū 書), se forneceu ao texto
original o aspecto escritural chinês no modo da correlação cosmológica daoísta na “arte do coração com pincel”,
a “método de escrita feita com sopros” (Shū Fǎ 書法).

De Yang para Yin

Consoante visto, o escrito chinês antigo possui características particulares, especificamente:

 Sequenciamento dos caracteres chineses dispostos na vertical – de cima para baixo, ou seja, desde o
Céu (Ti n ) - em forma de colunas paralelas, composto em páginas sequenciais retroverso de um
livro ocidental, da direita (começa no lado Yáng 陽) e continua à esquerda - em relação à mão esquerda
do “escritor chinês com pincel”;
 No plano do papel branco (branco é de origem no Qi ou sopro Yángqì 陽氣), pois na cosmologia de
correlação daoísta o movimento começa no Yáng 陽 e continua com o Yīn 陰, com pincel - tinta em
preto, em correlação cosmológica ao sopro Yīn (yīnqì 陰 氣).

Orley Junior (2012), resume que a composição estética chinesa pelos movimentos do pincel no papel,
primeiramente é confeccionada no alto da folha do papel de arroz que se considera o Céu (Ti n ) com seus
Qì 氣 ou sopros Yáng 陽 氣 acumulados e concretizados no nanquim e no canto direito da página, lado
correlativo e combinatório com os sopros Yáng (Yáng Qì 陽 氣), o escritor chinês tece o texto descendo a
coluna vertical, disposta, em colunas paralelas, cujo paralelismo segue a noção dos sopros Yīnyáng 陰陽氣 de
alternância entre as mesmas escrevendo-se de cima para baixo, do nível Yáng 陰 para o Yīn 陽; da coluna da
direita para a coluna da esquerda, seguindo a cosmologia-correlativa daoísta sempre iniciando no Yáng e
seguindo para o Yīn.

Há, ainda, na composição estética chinesa grupos de dois caracteres em colunas (héwén) ou “caracteres postos
juntos”, segundo Viviane Alleton200, porque na sua união dá-se a completude para se atingir a “virtus” (Dé 德),
ou “eficiência” (Dé 德) no sentido de obtenção (Dé 得) do Dào (道).

Pontuação

Segundo Orley Junior (2012), os caracteres chineses possuem a mesma dimensão incomparável às maiúsculas
e itálicos indo-europeus, porém, os comentários destes textos clássicos são acompanhados com caracteres
chineses, e inclusive são textos compostos por caracteres combinados e ordenados em arranjos de valor cultural
e semântico-fonético desde a antiguidade, sendo assim portadores do sentido da totalidade do sinal linguístico,
da face tónica e semântica, sempre em concordância com o contexto textual da época – que é o chinês antigo, o
estilo antigo clássico (Wén Yán Wén 文言文), que foi modificado drasticamente no transcorrer de dinastias
com o surgimento do Jīn Wén ( 文) ou “textos novos” em discordância no conteúdo, na forma e semântica.

A escrita fundamental do texto matricial do Cânone Interno (672 EC), também possui características Yáng (陽)
- uma vez que é feita em caracteres chineses maiores intercalados correspondentes ao texto, por vezes com tinta
vermelha; e com sinogramas menores, que corresponde ao tamanho Yīn, por vezes com tinta preta - a cor do
Yīn, correlacionando-se com os comentários contidos no corpo textual de modo sequencial, sem interrupções e
de maneira ritmada e versificada. Estes últimos sinais chineses cosmológicos, os Yīn, correspondem também
ao comentário especulativo do compilador, o que atribui à obra uma dinâmica sintética dos sopros regulares
(Zhèngqì 正氣), do invisível (Shén ou a expressão chinesa Shéndào 道)201 que assume forma da escritura
com o pincel, sendo condizentes com as influências celestes ou ordens intrínsecas (Shen ).

Esta maneira de expressar a arte da escrita com pincel e nanquim na composição do texto segundo o ritmo dos
sopros (Qì Yùn 氣 ) dá continuidade através de rimas e expressões ritmadas (Yán 言) e paralelismos (Duì Jú

200
Citado em Junior (2012) - Capítulo 1, O Clássico Interno do Imperador Amarelo na Antiga China (pp. 24-73).
201
Traduz-se como “espíritos” associados ao Yáng do Céu (陽 ) e Yīn da Terra (陰地) manifestam-se por intermédio da
qualidade interna do “recompilador com pincel” em consonância com a ordem intrínseca (Shén , Shéndào 道), dentro
da víscera (záng 臟) do Coração (Xīn 心) e expressos na tinta do pincel ao se “escrever com o shénqì” ou pincelar no papel
de arroz (Junior, 2012).
局) entre pelo menos duas frases versificadas do texto clássico, onde o texto não possui parágrafos, nem
pontuação, nem flexão verbal, o verbo ser está ausente, assim como o masculino, feminino e plural.

Céu (Tiān ), Terra (Dì 地) & Humanidade (Rèn 人)

Na análise de estética chinesa da dinastia dos Sòng, o crítico literário chinês Sū Shì 蘇 軾 (Sū Dōng Pō 蘇 東
坡 ), que viveu entre 1036-1101, dá continuidade ao pensamento daoísta de Wángbì 王弼 (226-249) 202 ,
comentador do Lǎozǐ. τ pensador Sūshì203 afirma que há uma inteligibilidade (Sī 思) do mundo e do ser humano
- Li (理) - que anima ou dá movimentação à forma (Xíng 形, que também se traduz por corpo). Assim, a escritura
da obra chinesa deveria conter qualidades “estéticas” essenciais e todas estas em conformidade com a correlação
do daoísmo, como a fisionomia ou expressão invisível-visível concomitante expressada no texto clássico
atribuído às “influências invisíveis” (Shén ), qualidades intrínsecas e interiores do autor, que dirigem o gesto
no pincel sobre o rolo de papel juntamente com os Sopros (Qì 氣). A textualidade, também deve ter a “ossadura”
(Gú 骨), a “carne” (Ròu 肉), o “sangue” (Xué 血), noções de movimentação de sopros (Qì 氣) formando um
conjunto “corporal de sopros do texto” de manifestação de sopros invisíveis (Qì 氣) concretizados no papel ao
seguir, o “caminhar” (Xíng ) do Dào 道 - homófono de (Xíng 形) forma ou corpo - sendo o conteúdo invisível
que fornece um corpo visível de sopros textual em correspondência com a ordem ou regulação, do Céu e da
Terra, para a textualização sábia e espontânea, concomitantes na textura de sopros do mundo e do ser humanao.
São qualidades invisíveis (Shén ) simultâneas e inseparáveis do visível estético-textual que segundo o
pensamento daoísta permeiam e se concretizam na continuidade em qualidades manifestas no espaço-tempo do
“corpo de sopros Yīn Yáng do texto”.

O comentador taoísta Wángbì204, primeiro crítico de estética chinesa do início da era corrente, designa a ordem
como a inteligibilidade do Céu (Ti n ) - Terra (Dì 地), de um Céu que nada fala, mas que pode ser acessado
pelo sábio chinês e assim se expressar na obra daoista – incluindo-se neste modelo o Cânone Interno. Wángbì
analisa ainda a ordem (Li 理) na estética chinesa semelhante ao Wen (文), como sendo a nervura do jade ou a
veia da madeira, a ordem invisível (Li 理) e a forma visível (Xíng 形, aspecto corporal), como conjuntivas e
constantes em união numa unidade com a origem das coisas, o Dào 道, ou o funcionamento da realidade. Assim,
não se costuma reproduzir apenas a forma (Xíng 形), mas também o seu conteúdo explícito e implícito cultural
da tradição mais antiga dirigido pela captação da inteligibilidade (Lǐ 理) das coisas feitas por quem recompilou
com pincel. Porém, os compiladores clássicos não são exatamente considerados como um autor da obra, mas
sim, como comenta Yolaine Escande205, aquele que permite a manifestação da textualidade em união ao Dào

202
Mais informações sobre este comentador em http://www.iep.utm.edu/wangbi/.
203
Citado em Junior (2012) - Capítulo 1, O Clássico Interno do Imperador Amarelo na Antiga China (pp. 24-73).
204
Citado em Junior (2012) - Capítulo 1, O Clássico Interno do Imperador Amarelo na Antiga China (pp. 24-73).
205
Citado em Junior (2012) - Capítulo 1, O Clássico Interno do Imperador Amarelo na Antiga China (pp. 24-73).
道, a via funcional, que guia (Dào ) e viabiliza (Dào 道) seguindo a “estética” chinesa da ordem ritual (Lǐ 禮)
e de regulação (Lǐ 理), que dá nascimento a tudo, o Dào (道).

Diálogos & Números


τ σèi Jīng 內經 foi escrito, na sua quase totalidade, baseado na tradicional forma de ensino da antiguidade: a
de pergunta-resposta, sendo composto por cento e trinta e dois tratados 206 . A maioria dos capítulos são
diálogos entre Huáng Dì 帝 e seu clínico-ministro Qí Bó 岐伯, embora também encontremos diálogos de
Huáng Dì 帝 com Léi Gōng 雷公, Guǐ Yǔ qū 鬼與 , Bó G o 伯高, Shǎo Shī 少師 e Shǎo Yú 少 , além
de capítulos que são apenas apresentações, sem a presença de diálogos.

τ σèi Jīng 內經 era composto por 18 volumes (pergaminhos), estando dividido em 2 partes: (1) Sù Wèn, com
9 volumes; e (2) Líng Shū também com 9 volumes - o Cânone Interno era composto literalmente por 18
pergaminhos (rolos), sendo conhecido como os “18 Juan”. A edição de Wang Bing é composta também por
duas partes, mas aqui, tanto o Su Wen como o Ling Shu estão formados por 24 volumes, num total de 81
capítulos (que estão divididos por temas). Com esta alteração Wang Bing teve o cuidado de manter a tradição
daoista numerológica: 24 (2+4=6), que é também é um número significativo, pois 6 é o trigrama Qian (Céu),
razão pela qual ambas versões preservam números celestiais207. Este ponto será discutido mais profundamente
na secção “Forma e Conteúdo”.

τ σèi Jīng 內經 listado na biblioteca dos Hàn (206 AEC-220 EC) era composto por 18 rolos - sendo nove rolos
para o Sùwèn 素問 e nove rolos para o Língshū 靈樞 - ficando conhecido como os “18 Juan208”. Isto não é
coincidência, 18 (1+8=9), é o número mais alto de todos e é o número do Céu209. No entanto, a recompilação
de Wáng Bīng, constitui-se no total de 36 rolos ou volumes, sendo que 24 rolos formam a primeira parte -
“Questões Simples” (Sùwèn 素問), e 12 rolos compõem a segunda parte - “Eixo Eficiente” (δíngshū 靈樞),
consoante apresentando no seguinte quadro:

Número do rolo no Sù Número dos capítulos do Sù Número do rolo no Líng Número dos capítulos do Líng
Wèn Wèn Shū Shū
1 1-4
1 1-4
2 5-7
3 8-11
2 5-9
4 12-16
5 17-18
3 10-12
6 10-20
7 21-24
4 13-19
8 25-30
9 31-34
5 20-28
10 35-38
11 39-41 6 29-40

206
Isto reforça o argumento do Nèi Jīng 內經 não ser um livro homogéneo, mas sim escrito e reescrito por diversos autores
de diferentes tradições e em diferentes épocas: ou seja, o nome Huáng Dì Nèi Jīng 帝內經 é posterior à elaboração do
seu conteúdo, embora nenhum dos capítulos que o compõe tenha persistido como um texto independente (Junqueira, 2013).
207
Fredes, Huang Di Nei Jing [Notas de seminário], 2015/16.
208
Juan = volume.
209
Fredes, Huang Di Nei Jing [Notas de seminário], 2015/16.
12 42-45
13 46-49
7 41-47
14 50-55
15 56-59
8 48-56
16 60-61
17 62
9 57-64
18 63-65
19 66-68
10 65-72
20 69-70
21 71-73
11 73-77
22 74
23 75-78
12 78-81
24 79-81
Total de rolos: 24 Total de capítulos: 81 Total de rolos: 12 Total de capítulos: 81
Versão Huángdì σèijīng Sùwèn Língshū de Wang Bing, tal como conhecida na atualidadeμ 36 rolos, 81 capítulos na primeira parte
e 81 capítulos na segunda parte (Orley Junior, 2012).

Cada uma das duas partes (Pi n 篇) contém oitenta e um capítulos (B Shí Yī 八 一), cujos números têm
fundamentação no daoísmo antigo. Orley Junior (2012), comenta que o texto possui o mesmo número de
capítulos que o Dào dé jīng de Lǎo zǐ (老子, 道德經), o que expressa a noção do 9x9=81, o duplo de nove, um
aspecto Yīn, outro aspecto Yáng, o número nove é considerado pela sabedoria daoísta como a plenitude do
Yáng, (yáng dé yáng), número da totalidade e de um ciclo completo para o ensinamento do daoísmo, o número
do palácio das luzes (Míngtáng 明堂) ou o quadrado dividido em nove partes do daoísmo assimilado pela
medicina de Wáng Bīng.

Entretanto, como o Cânone Interno de Wáng Bīng representa o resultado do acúmulo dos ensinamentos da
sabedoria chinesa do Imperador Amarelo, de pensadores do daoísmo e da medicina, segundo Orley Junior
(2012), a primeira parte da obra possui 24 rolos, pois este número no daoísmo aponta para os vinte e quatro
períodos dos ritmos dos influxos celestes (Ti n Yùn ) ou dos sopros rítmicos (Qì Yùn 氣 ); ao passo que
os 12 rolos da segunda parte do Clássico Interno, remete para um número que no daoísmo emblematiza o
conjunto regular da trama ou rede dos sopros (Mài Qì 脈氣), que corresponde ao número 6 (Liu 六) com o seu
aspecto Yīnyáng ou número dois - 6x2=12 – e o número doze (Shí Èr 二) é o número para o daoísmo
considerar a Terra (Dì 地), os doze períodos do dia e os doze ramos terrestres combinados com os dez troncos
celestes210 que compõem o calendário chinês cíclico (Ti n G n Dì Zhī 地支) e se associam à rede dos
sopros (Mài 脈) ou caminhos regulares invisíveis (Mài Jīng 脈經 “vias regulares dos sopros corporais”).

210
Tiān Gān Dì Zhī ( 地 支): Troncos celestes e ramos terrestres, termos técnicos relativos aos sinais celestes e aos
pontos cardinais. Estão associados ao pensamento do yīnyángwǔxíng com as correlações no céu, humanidade e terra.
Servem para a formulação do calendário circular chinês, medicina chinesa clássica, etc.
Troncos celestes (Tiān Gān )
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Madeira Fogo Terra Metal Água
JIA YI BING DING WU JI GENG XIN REN GUI
甲 乙 丙 丁 戊 己 庚 辛 壬 癸
O autor continua, referindo que estes são conteúdos expressos na forma numérica do ensinamento daoísta, sendo
que deste modo, o Sùwèn tem caráter celeste ou Yáng, enquanto que, o δíngshū, alude ao terrestre ou Yīn, do
mesmo modo que no Dào Dé Jīng a primeira parte (Shàng , ou do alto, Yáng) refere-se ao Dào 道, e a segunda
parte (Xià ou do baixo, Yīn) refere-se à sua Eficiência - comumente traduzido pelos jesuístas por virtus, ou
por alguns sinólogos contemporâneos como “Virtude” (Dé 德, em chinês) 211 . Assim, o primeiro volume,
Questões Simples é a parte do alto (Shàng) que contém os fundamentos, o segundo, o Eixo Eficiente (Xià, do
baixo), é um texto mais “clínico” de medicina. Dessa maneira, o conjunto dos textos constitui uma totalidade
da via espontânea. Convém acrescentar que nesta perspectiva, a sabedoria chinesa possui nocional de totalidade,
conjuntiva, não dualística. Segundo o daoísmo são as duas fases Yīnyáng, do mesmo Qì com o terceiro implícito,
inclusivo, não excludente, e por isso, não possui conceitos, estes são de origem grega, como o de contemplação
(do grego: theoria), a praxis aristotélica. Por outro lado, o texto compõe-se de conversação sob a maneira de
perguntas e respostas do Imperador Amarelo, o aspecto Yáng, feito ao seu conselheiro sábio da corte, o Qí Bó
(岐伯) o lado Yīn na abordagem do daoísmo antigo.

Em relação ao significado implícito dos “números”, há ainda um inter-relacionamento de conteúdos de números


de capítulos complementares, como por exemplo a complementação na relação do segundo capítulo com o
quarto e o oitavo. O segundo capítulo das “Questões Simples” aborda a conduta em relação aos sopros das
estações, que o quarto capítulo complementa com detalhes dessa relação humana com as estações por meio dos
sopros e a falta de comunicação de sopros entre o ser humano e o Céu-Terra que decorre nos desequilíbrios. A
base numérica do pensamento chinês nestes exemplos é binária, inclusiva tornando-se ternária, correlacional
pelo Yīnyáng. No oitavo capítulo abordam-se os centros de controlo da manutenção da regulação dos sopros e
da vida no interior das doze vísceras. Também, se relacionam dessa forma, com o primeiro volume nas
“Questões Simples”, fornecendo as regras de saber-viver e saber-fazer dos sábios da alta antiguidade e como
manter o equilíbrio do corpo. De modo de correlação chinesa, num paralelismo escritural têm-se a
correspondência e complementação feita com o primeiro capítulo do “Eixo Eficiente” que trata das nove agulhas
para se manter a vida, o equilíbrio na regulação dos sopros do corpo, como sendo a ordem do Dào em
consonância no corpo e como tratá-la. Ainda, o oitavo capítulo das “Questões Simples”, que aborda a noção das
vísceras yīnyáng, tem correspondência cosmológica (Gǎn Yìng 感應) com o capítulo oitavo do “Eixo Eficiente”

Yang Yin Yang Yin Yang Yin Yang Yin Yang Yin
Ramos Terrestres (Dì Zhī 地 支)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
子 丑 寅 卯 辰 巳 午 未 酉 戌 亥
Zǐ Chǒu Yín Maǒ Chén Sì Wǔ Weì Shēn Yǒu Xū Haì
Rato Búfalo Tigre Coelho Dragão Serpente Cavalo Cabra Macaco Galo Cão Porco

211
Tradicionalmente o Su Wen é chamado de Huang Di Nei Jing Su Wen, abreviado em Nei Jing; e o Ling Shu é referido
como o Ling Shu Jing ou o Zhen Jing (Cânone das agulhas, i.e. da acupuntura), pois Su Wen foca-se mais na filosofia e
diagnóstico, ao passo que o Ling shu desenvolve mais os métodos de tratamento e acupuntura Fredes, Huang Di Nei Jing
[Notas de seminário], 2015/16.
que discursa sob o título “nas raízes das influências eficientes” (Běn Shén 本 ) contidas nas vísceras Yīnyáng.
As emoções, comportamento nascem dentro das vísceras, com a movimentação do Qì, como podem se
desequilibrar e procedimentos que também significam dào seguindo a correlação yinyangqiwuxing no
tratamento e métodos (dào) de punturas. Assim, ambos se completam, relacionam-se mutuamente (Xi ng Yìng
相應), da maneira correlativa da relação Yīnyáng.
Conclusão
Conta um mito de um povo moçambicano que, no tempo em que os animais falavam, uma tartaruga quis reunir
toda a verdade. Para tal, pegou numa cabaça, juntou a verdade, e guardou-a lá dentro. Seguidamente, para
que ninguém lha pudesse tirar, pôs a cabaça ao pescoço e subiu a um alto coqueiro, a fim de aí esconder a
cabaça. Porém, uma vez que não tem dedos, quando já estava quase no cimo da árvore, escorregou e caiu,
partindo a cabaça. A partir desse momento, a verdade espalhou-se por toda a parte e nunca mais ninguém
conseguiu reuni-la de novo…

A Montanha Amarela é meu professor,

E eu sou o amigo da Montanha Amarela;

Da miríade das diferentes formas da natureza,

Os Picos Amarelos nada deixam a descoberto…212

212
“Returning Home”, caligrafia e texto de Shitao (Zhu Ruoji, 1642–1707), 1695, dinastia Qing.
ANEXO 1 – Cronologia histórica chinesa

Tabela 1 - Cronologia pré-dinástica e dinástica histórica Chinesa.

Períodos Pré-dinastias & Referências intelectuais


Dinastias
Cinco Neolítico anterior: Fú xī, Imperador esverdeado (madeira), Yijing – compreensão dos
Soberanos 10.000-6.000 AEC padrões naturais
Cinco Neolítico médio: 6.000- Shén nóng, Imperador vermelho (fogo), Benjing – estudo e aplicação
Soberanos 3.000 AEC das ervas medicinais
Cinco Neolítico posterior: Huáng dì, Imperador amarelo (terra), Neijing, artes de cura e
Soberanos 3.000-1850 AEC harmonização com a natureza, daoísmo primitivo
Cinco Neolítico posterior: Yáo ou Shǎo hào, Imperador branco (metal)
Soberanos 2357-2258 AEC
Cinco Neolítico posterior: Shùn ou Zhuān xū, Imperador preto (água)
Soberanos 2357-2258 AEC
Dinastia: Sān Xià: 2207-1766 AEC Yu, o Grande (大禹 dà-Yǔ), foi o primeiro governante e fundador da
Dài Dinastia Xia.
Dinastia: Sān Sh ng ou Yīn, século Inscrição ritual nos ossos oraculares
Dài XVIII-XI AEC
Dinastia: Sān Zhōuμ ocidental, século Inscrição no bronze
Dài XI- 256 AEC
Dinastia Dinastia Zhōuμ oriental,
770-256 AEC
Época Primavera e Outono: Kǒng zǐ (fundador do confucionismo)
adinástica 772-481AEC Mò zǐ (fundador do moismo)
Época Reinos Combatentes: Lǎo zǐ (fundador do daoismo)
adinástica 403-256 AEC Zhuāng zǐ
Mèng zǐ
Dinastia Qín: 221-207 AEC Primeiro Imperador: Qín shǐ Huáng dì
Legistas (Han Feizi)
Dinastia Hàn ocidental, Anterior: Rota da seda
206 AEC-9 EC Confucianismo adotado como filosofia do estado
Sīmǎ Qiān (145-85), Memórias históricas (Shiji)
Huái nán zǐ
Dǒng Zhòng shū
Yáng xióng
Dinastia Xīn de Wáng Măngμ λ- Liú Xiáng
23 EC δiú Xīn
Dinastia Hàn oriental, posterior: Escrita na seda com pincel
25-220 EC Huang Fu mi 皇甫謐 - Huang Di San Bu Jia Yi Jing aka Zhen Jiu Jia Yi
Jing 鍼灸 乙經 - obra mais antiga com comentários e conteúdos
relacionados ao Su Wen
Dinastia Três Wèi: 220-265; Shǔ: Daoísmo de Wáng bì comentador do Dáo de jing, funda a escola Xuán
Reinos 221-263; Wú: 222-280 Xué
EC
6 Reinos: 222-589 EC
Dinastia Jin Jìn ocidental: 265-316 Guō Xiàng
EC
Dinastias do Do norte: Tuò bá Wèi Entrada do Budismo no Norte da China
Norte e do Sul Wèi: 402
Dinastias Jin σo σorteμ Běi Qí (Qí Norte: budismo Kumârajîva, budismo Mâdhyamika
σorte) e Zhōu do σorteμ No Sul: budismo Quan yuan qi, monges Hui yang, Dào sheng
307-589 EC Quan Yuan qi 全元起 - Su Wen Xun Jie - primeira edição comentada do
No Sul: Jìn oriental, Liú Su Wen
Sòng, Nán Qí (Qí do
Sul)
Liáng: 502-557 EC
Dinastia Suí 581-618 EC Monge budista Xuán Zàng (yogacâra)
Dinastia Táng: 618-907 EC Yang Shang shan 杨 善 - Huang Di Nei Jing Tai Su - texto que
preservou a forma original da obra clássica
Wang Bing 王冰 - Zhong Guang Bu Zhu Huang Di Nei Jing Su Wen
Dài zōng
Lǐ bái
Dù Fǔ
Wáng Wéi
Cinco Desunião: 907-960 EC
Dinastias
Dinastia Sòng: 960-1279 EC Lin Yi, Sun Qi, Gao Baoheng, Sun Zhao, etc. - Chong Guang Bu Zhu
Huangdi Neijing Suwen 重廣補註 帝內經素問 - revisão da versão da
Wang Bing (1155)

 Shào Yōng (1011-1077)


Neoconfucionismo:

 Zhōu Dūn yí (1017-1073)


 Zhāng Zài (1020-1077)
 Irmãos Cheng - Chéng Hào (1032-1085) e Chéng Yí (1033-

 Zhū Xī (1130-1200)
1107)

 Lu Jiu yuan (1139-1193)


Dinastia Yuán: 1264-1368 EC Império Mongol da China

 Liu Yuansu (1120 – 1200), fundador da Han Lian Pai (Escola


4 Mestres Jin-Yuan:

 Zhang Congzheng (1156-1228), fundador da Gong Xia Pai


do frio e do fresco)

 Li Dongyuan (1180-1251), fundador da Bu Tu Pai (Escola de


(Escola de precipitar e atacar)

 Zhu Danxi (1281-1358), fundador da Yang Yin Pai (Escola de


reforçar a Terra)

nutrir o Yin)
Dinastia Míng: 1368-1644 EC Missões jesuítas na China
Ma Shi 马莳 - Huang Di Nei Jing Su Wen Zhu Zheng Fa Hui 帝内经
素问注证发挥 e Huang Di Nei Jing Ling Shu Zhu Zheng Fa Hui 帝内
经灵枢注证发挥
Wu Kun 吴昆 - Su Wen Wu Zhu 素问吴注, aprofunda os comentários e
explicações da obra de Wang Bing
Zhang Jie bin 宾 - Lei Jing 类经, organiza os vários capítulos em
Yang Sheng, Yin e Yang, Zang Fu, Jing Luo, etc., e recorre ao Yi Jing 易
经 e filosofia para enriquecer as suas explicações e comentários
Dinastia Qīngμ 1θ44-1912 EC Manchu.
Missão protestante na China
Zhang Zhi cong 志聪 - Huang Di Nei jing Su Wen Ji Zhu 帝内经素
问集注 e Huang Di Neijing Ling Shu Ji Zhu 帝内经灵枢集注, explica
os aspetos fundamentais dos comentários e explicações introduzidos
pelos autores prévios
Gao Shi shi 高世栻 - Huang Di Nei Jing Zhi Jie 帝内经直解, versão
simplificada da obra tipo "Nei Jing for dummies"
Zhang Qi - Su wen shi yi, identificação dos conteúdos da obra que o
autor considera que não fazem sentido ou estão descontextualizados
Hu Shu - Huang Di nei jing su wen jiao yi, introduziu a abordagem
moderna para interpretação do texto
Yu Yue - Nei jing bian yan, discussão de aspetos confucionistas da obra
República República da China: Transfere-se a Taiwan em 1949
1912
República República Popular da εáo Zé dōng, εaoísmo δeninista
China: 1949

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