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16 OPINIÃO barlavento.

pt | 26SET2019 | Nº2177

OPINIÃO JOSÉ CARLOS VILHENA MESQUITA | Historiador e professor universitário

A Pesca da Baleia no Algarve


A pesca da baleia no litoral algarvio foi, a marítima, com uma importância geo-estraté- Setembro de 1352 consta que em Porto Novo mor-
par da pesca do coral, uma das primeiras a gica incontornável. A sua configuração geo- rião Balêas, e que vinhão almocreves carregallas
serem desactivadas, pertencendo por isso, gráfica tornou-o, desde tempos imemoriais, para fóra a troco de trigo».5
e de há longa data, às chamadas «pescarias num amplo cais de acostagem.
históricas». Os algarvios são homens modelados pelo Esta situação – permutação de pescado
Contudo, temos hoje plena certeza de mar, pois que até nas pequenas povoações por trigo – vai repetir-se constantemente,
que a sua efectividade nos mares do Algar- costeiras se desenvolveu desde sempre uma sendo, por isso, um exemplo de economia de
ve ascende a tempos muito remotos. Desde intensa actividade piscatória. E a baleia seria mercado, visto que os excedentes produtivos
as colonizações fenícias, cartaginesas, grega, um dos seus alvos preferências. Repare-se do Algarve, pelo seu valor e procura, eram Pesca da baleia numa gravura francesa de 1577.
romana e árabe que existem provas arqueo- nos forais de Castro Marim (tanto o de 1277 transaccionados por mercadorias de pri-
lógicas, e até descrições narrativas, duma in- como o de 1282), Aljezur (1280), Cacela meira necessidade. Por outro lado, também
tensa actividade na captura de cetáceos para (1283) e Porches (1286), todos eles relativos se demonstra que a produção cerealífera no
lá das portas de Hercules, ou seja, nas costas a pequenos concelhos do litoral, nos quais os Algarve era, e foi sempre, deficitária.
do Algarve-Andaluz. «direitos da baleação» se continuavam a re- Por conseguinte, as pescarias algarvias
A sua importância económica foi, certa- servar para o monarca.2 contribuíam para o crescimento das transac-
mente, relevante. Por isso, a captura daquele E não cremos que D. Dinis, ao exarar esta ções comerciais e para o abastecimento do
cetáceo constitui um exemplo a reter na aná- cláusula nos citados forais, estivesse apenas seu mercado interno, com especial acuidade
lise dos forais de Silves, Tavira, Faro e Loulé, a copiar uma determinação dos antigos di- nas épocas de crise agrícola.
visto que os citados monarcas reservavam plomas de seu pai outorgados por volta de A intensidade do movimento comercial Monstro marinho, semelhante á baleia, nas
para si os direitos da baleação.1 1266, pois que, duas décadas decorridas, marítimo nos portos algarvios era de tal ilhas atlânticas, numa gravura espanhola.
Isto prova que a pesca da baleia conti- deve ter sido informado de que a pesca da forma cobiçada pelo corso marroquino que
nuava a processar-se com regularidade e, baleia constituía uma actividade comum a tanto D. Dinis como D. Afonso IV proveram a «os almoxarifes de Lagos e Tavira dessem ao
por certo, de forma bastante rendível, pois todo o litoral algarvio. Nesta experiência da vigilância destas águas com: Bispo e Cabido da Sé de Silves, a cada um, uma car-
de contrário não teria sido alvo dos interes- faina de alto mar consubstanciavam-se algu- ga de besta cavalar – dez arrobas – metade gorda
ses da Coroa. Esta constatação serve também mas das razões que explicam a presença do «huma Esquadra de guarda-costa de três Ga- e metade magra, por cada baleia ou cavalasso que
para evidenciar que, após a conquista do Al- Algarve no contexto dos Descobrimentos.3 lés e cinco navios grandes para protecção do Com- morresse nas costas do Algarve por conhecença,
garve e a unificação do território nacional, Muito embora a pesca da baleia fosse, em mercio maritimo, que era então grande, principal- como já seu pai e avô tinham feito».11
continuou a incentivar-se a navegação de al- número de capturas, progressivamente di- mente em pescarias, tanto das Provincias do Norte
tura, cujo alcance se estendia pelo sudoeste minuindo ao longo dos anos, registaram-se, de Portugal, como do Algarve, das quaes se provia O último testemunho comprovativo da
atlântico, visto serem estes os domínios na- contudo, algumas tentativas régias para a sua o Reino todo, e se exportavão grandes quantidades permanência no Algarve da pesca da baleia,
turais da pesca da baleia. protecção e incremento económico. Insere-se, deste genero para os Paizes estrangeiros, dentro e ainda que de forma esporádica, remonta ao
Mas se aqueles forais dizem respeito às neste caso, o diploma de D. Afonso IV, datado fóra do Mediterrâneo».6 reinado de D. João I, que, a 15-5-1386, deu
principais urbes do Algarve, poderia dedu- de 28-9-1340, através do qual se arrendaram ao seu anadel-mor dos besteiros, Estevão
zir-se que este tipo de pesca se confinava aos ao mercador Afonso Domingues todas as Entre as pescarias, que sustentavam o Vasques Filipe, as rendas e direitos da ba-
centros mais populosos e habitados pelos baleações do reino pelo espaço de seis anos. comércio internacional e os interesses dos leação de Lagos, acrescentadas das dízimas
antigos mareantes árabes, cuja experiência Durante este período a coroa forneceria àque- empresários estrangeiros, integrava-se a da das mercadorias estrangeiras alfandegadas
de alto mar justificaria o elevado rendimen- le rendeiro 60 moios de trigo de Beja ou de baleia, embora se notasse já uma sensível de- naquela vila.12
to do sector. Todavia, parece não ser assim. Serpa e 64 alqueires das salinas de Faro, que cadência no índice das capturas. Deste breve apontamento se pode con-
Os algarvios, do ponto de vista antropo- se destinavam à conserva da baleia, ficando as Como reflexo do desenvolvimento das cluir que até ao final do reinado do Mestre de
lógico, são fruto da miscigenação de várias famílias dos pescadores sob a protecção real.4 pescarias, e sobretudo do comércio externo, Avis os baleeiros lacobrigenses mantiveram-
raças e culturas indo-europeias, que ao longo Suponho que terá sido este o primeiro arren- era franco e notório, pelo menos desde o sé- -se ainda activos nas perseguições daquele
dos séculos se cruzaram na grande estrada damento da baleação do reino. culo XIV, que o porto de Tavira se distinguia cetáceo. As notícias que temos sobre este tipo
mediterrâneo-atlântica. O seu legado foi mui- No Algarve os baleeiros mantinham-se claramente dos restantes: de pescaria – exercida desde longa data no Al-
to vasto e a herança tecnológica ficou patente em laboração durante todo o ano e apenas garve – não ultrapassam o século XIV, sendo
no aproveitamento dos recursos hidrológicos sujeitos aos respectivos tributos foraleiros. A «admitia navios de alto bordo, o seu comércio de presumir que por essa altura as baleias se
e na agricultura, na mineração e na metalur- importância desta pesca no comércio algar- era florescente e avantajado e só para ele havia tenham afastado desta costa, pelo menos no
gia, nas indústrias da olaria e da cerâmica, na vio do século xv deve ter sido bastante sig- mais de setenta navios de alto bordo, propriedade número e intensidade de outrora, desactivan-
olivicultura, nos linifícios, nas cordoarias e nificativa, nomeadamente nos anos de escas- de seus habitantes, e que navegavam para diversos do-se a partir daquela centúria a sua captura.
espartos, na tecelagem e tinturaria, na vini- sez de trigo, pois da sua permuta por carne portos, além de um crescido número de embarca-
cultura e alcoólase, nas artes decorativas, na e óleo de baleia dependia a sustentabilidade ções costeiras e de pesca».7
música, na poesia, na arquitectura e em todas de muitas comunidades piscatórias: Notas:
as circunstâncias dependentes do génio in- Certamente, muitos desses navios de 1 Vide Alberto Iria, Descobrimentos Portugueses,
2 volumes, Lisboa, Instituto de Alta Cultura, 1956,
ventivo. Desta mesclagem genética resultou o «No reinado do Senhor D. Afonso IV, era hum «alto bordo» caçavam a baleia de parceria Vol. II, Tomo I, p. 209.
espírito e o carácter do povo algarvio, inclina- objecto mui attendivel da nossa industria nacional com os de Lagos, que na época eram os prin- 2 Idem, Idem, vol. II, Tomo I, p. 210.
do para o desfrute e sabor da vida. a Pescaria da Balêa feita nas costas do Algarve, cipais centros da navegação do alto. Na ver- 3 Cf. Idem, «A Tradição Marítima no Algarve
Não obstante a sua herança antropoló- porque de huma Carta de desaggravo daquelle dade, «onde se fazia a maior baleação era na anterior às navegações do século XV E DEPOIS
gica, o Algarve é essencialmente uma região soberano dirigida ao concelho de Tavira no 1.º de praia da Senhora da Luz, perto de Lagos, e AO SERVIÇO DO INFANTE D. HENRIQUE», IN LAS
CIENCIAS, MADRID, ANO XI, N.º 3, P. 599 E SS.
Porto Novo, pouco distante de Tavira, a qual
4 Idem, O Algarve e os Descobrimentos, vol. II,
sustentava 70 barcos, além de muitas embar- tomo I, pp. 214-215; Vide João Martins da Silva
cações de alto bordo».8 Marques, Descobrimentos Portugueses, vol. I, doc.
Devia ser intensa a procura deste ce- 63, p. 64.
táceo nas águas algarvias, especialmente 5 Constantino Botelho de Lacerda Lobo, «Me-
moria sobre as Pescarias em Portugal», in Jornal
na costa de Lagos, pois só assim se explica de Coimbra, Lisboa, 1812, p. 82.
os importantes privilégios concedidos aos 6 Inácio da Costa Quintela, Annaes da Marinha
baleeiros algarvios, em reconhecimento da Portugueza, tomo I, Lisboa, 1839, pp. 21-22.
importância económica dessas pescarias. 7 Damião Augusto de Brito Vasconcelos, Noti-
Demonstra-o a carta de confirmação de D. cias Históricas de Tavira (1242-1840), Lisboa, Liv.
Lusitana, 1937, p. 121.
Pedro I, datada de 29-3-1359, sobre os an-
8 Idem, Idem, p. 139.
tigos privilégios dos «maiorais da baleação»,
9 ANTT, Chancelaria de D. Pedro I, Liv. 1.º, fl. 35
cujos pormenores não discrimina e, por isso, v.º; apud João Martins da Silva Marques, op. cit.,
os desconhecemos.9 vol. I, doc. 92, p. 110.
A pesca da baleia prolongou-se pelo rei- 10 Cf. Constantino Botelho de Lacerda Lobo, op.
nado de D. Fernando e exercia-se tanto na cit., p. 82.
costa do Algarve como nas do Alentejo e 11 Damião A. B. Vasconcelos, op. cit., p. 139;
Vide Alberto Iria, op. cit., vol. II, tomo I, p. 218.
Estremadura.10 Data dessa época uma carta
12 ANTT, Chancelaria de D. João I, Livro 2.º, fl.
Regia, de 20-11-1367, na qual aquele mo- 27 v.º; vide J. M. Silva Marques, op. cit., Suplemen-
Esquartejar a baleia na praia de Moçamedes, postal de 1911. narca ordena: to ao vol. I, doc. 49, p. 68.

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