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BAHIA:

A CIDADE DO SALVADOR
E SEU MERCADO
NO SÉCULO XIX

Kátia M. de Queirós Mattoso


KÁTIA M. DE QUEIRÓS MATTOSO é professora titular da
Universidade Católica e professora visitante no curso de pós-graduação
da Universidade da Bahia.
Desenvolvendo diversas pesquisas sobre a história económica e social
do Brasil tem visitado, por diversas vezes, a França e os Estados
Unidos a convite de algumas universidades para ministrar cursos em
sua área de especialização.
Kátia Mattoso possui outras obras publicadas em português e
atualmente encontra-se no prelo um trabalho seu, a ser editado na
França, pela Hachette.

T O R A DE HUMANISMO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA “HUCITEC” LTDA.


BAHIA
A CIDADE DO SALVADOR
E SEU MERCADO NO SÉCULO XIX

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SISTEMA Ot BíóUGlLLAS E INFORMAÇAO-SB!
KATIA M. DE QUEIRÓS MATTOSO

BAHIA
A CIDADE DO SALVADOR
E
SEU MERCADO NO
SÉCULO XIX

P ontifícia
m s iiM cíió io oí ciisns^s
BD/O N M.

l BIBLIOTECA

EDITORA HUCITEC LTDA


Co-Edição
Departamento de Assuntos Culturais
Secretaria Municipal de Educação e Cultura
Prefeitura Municipal de Salvador
Direitos autorais 1978 de Katia M. de Queirós Mattoso. Direitos de publicação da
Editora de Humanismo. Ciência e Tecnologia Hucitec Ltda.. Alameda Jaú. 01420 São
Paulo, SP. Telefone: (011)287-1825. Capa e diagramaçáo Claus P. Bergner. Fotocom-
posição de Literal Serviços Fotográficos Ltda.. Rua Espirita. 42. Cambuci. São Paulo.
SP.

CIP-Brasil. Catalogaçao-na-Fonte
Cantara Brasileira do Livro, SP
A memória de meu pai, Dimitrios Mytilineos
À minha mãe, Photinie Mytilineou
As minhas irmãs: Sirago-Vera Mytilinéou
Matoso, Katia M. de Queirós. Adalgisa Moniz de Àragão, e
M382b Bahia : a cidade do Salvador e seu mercado no sé­ Jacqueline Mauro-Dreyfus
culo XIX / Katia M. de Queirós Mattoso. — São Pau­
lo : HUCITEC ; Salvador : Secretaria Municipal de
Educação e Cultura, 1978.
(Estudos brasileiros)

1. Salvador - Condições económicas - Império,


1822-1889 2. Salvador - Condições sociais - Impé­
rio, 1822-1889 3. Salvador - Descrição 4. Salvador -
História I. Titulo.

CDD-309.18142104
-330.98142104
-918.1421
-981.421

78-1071__________________________________________
Indics para catalogo sistemático:
1. Cidade do Salvador : Descrição 918.1421
2. Cidade do Salvador : História 981.421
3. Salvador : Cidade : Descrição 918.1421
4. Salvador : Cidade : Historia 981.421
5. Século 19 : Salvador : Cidade : Condições econó­
micas 330.98142104
6. Século 19 : Salvador : Cidade : Condições sociais
309.18142104
PREFÁCIO

Encaro com certo temor a tarefa de apresentar este livro de Katia


de Queirós Mattoso, já que ao prefaciador cabe indicar os caminhos
que o leitor deve percorrer para bem captar o essencial da obra com a
qual se vai defrontar. Temor que se justifica pela grandeza do livro
que foi lido com apaixonante interesse e cuja importância talvez corra
o risco de não ser suficientemente aquilatada. Mas é. também, com
alegria que o faço, !na certezade estar diante de uma obra que marcará
a historiografia brasileira, daqui por diante, pelas amplas perspectivas
que nela despontam.
Transparecem, logo de início, duas caracteristicas que se combi­
nam harmoniosamente: o estilo como forma expositiva e a erudição
sobre a qual se fundamenta o conteúdo; estilo-forma e erudição-
conteúdo que se integram para contar a história de Salvador e seu
mercado. E uma história que parte da descrição da terra dadivosa tão
decantada por cronistas e viajantes que anteviram o “paraíso" mas,
igualmente, presa nas armadilhas do clima, do solo e da vegetação de
ilusórias riquezas e grandezas, passando pelo enunciar de formas
predatórias de cultivo - o uso e o abuso da terra como se os solos
fossem minas lavradas pelo açúcar, o tabaco, a mandioca ou a
batata-doce. Estende-se além para anotar na biografia de Salvador
articulada à sua província os homens e suas tensões - maneiras de ser
e de viver -, de modo a captar tanto os ritmos lentos e profundos das
longas permanências sociais e mentais, quanto aqueles que mais se
aceleram, marcando os movimentos da demografia, dos produtos, dos
preços, onde se inscrevem as mudanças em curso. História urbana, por
excelência, mas. acima de tudo. História social que engloba os homens
em sua relação com a natureza, por eles vivida e transformada, e com
a sociedade por eles criada e recriada.
O leitor aí não encontrará os relatos da história política do gosto Salvador e seu Mercado no Século XIX — , a historiadora atravessou
tradicional, nem os esquemas teóricos —muitas vezes, teorizantes que toda uma fase de prolongadas e minuciosas pesquisas, passando pela
têm caracterizado, de certa forma, a produção historiográfica, socioló­ história económica quantitativa de inspiração francesa, debruçou-se
gica ou economicista, de tipo ensaístico no Brasil. Não encontrará, detidamente e com meticulosidade nas séries de preços e salários que
tampouco, os modelos quantitativistas de sabor exótico que têm ela construiu, nas séries demográficas paroquiais, refinou suas técni­
frutificado em meios universitários estrangeiros. Ele se defrontará, ao. cas aprendidas com os historiadores franceses e deu o salto para a
contrário, com uma história desprovida de nomes próprios e de fatos história social, seguindo as pegadas da “escola” vulgarmente conheci­
recortados ou episódios concatenados mais ou menos ao azar, à qual da como dos “Annales”, de Bloch, Febvre, Braudel, Labrousse, entre
não se colocam explicitamente problemas teóricos de marcos cronoló­ os mestres, para libertar-se da problemática francesa importada,
gicos ou marcos evolutivos, entre outros, mas que se dispõe a ir às impossível de reproduzir-se no meio colonial, tropical, escravista.
fontes arquivísticas e aos relatos do contemporâneos, a reler com nova
inteligência a historiografia tradicional da época, para fazer o a que Embora seja inegável que essa mesma historiografia foi para ela
poderíamos chamar de “geologia social do passado”, reconstruindo o uma fonte de inspiração e de reflexão, no seu melhor sentido, nota-se
real, embora à luz do presente e de suas preocupações atuais. que Katia Mattoso delimitou concretamente o seu espaço e o seu meio
histórico, sem transposições de outras realidades, sem compromissos
Por outro lado, é forçoso assinalar, a Bahia de Katia Mattoso não com jargões, sem extrapolações generalizantes no nível de uma
nasceu do acaso, nem é o produto acadêmico de um determinado “história nacional”, apenas atenta a todas as possibilidades que suas
projeto de pesquisa. Ela surgiu, aos poucos, como se estivesse em fontes de informações lhe podiam revelar.
gestação ao longo de quinze anos de convívio diário com os arquivos
de Salvador e do Rio de Janeiro, e de alguns mais de estudos e de Tais fontes, sempre apregoadas como sendo insuficientes e/ou
reflexões sobre a produção historiográfica estrangeira, francesa sobre­ inexistentes, existem de fato e esta é a grande verdade que Katia nos
tudo, e brasileira, resultando numa síntese de conhecimentos intensa­ aponta, contanto que saibam ser lidas e tratadas por quem sabe lè-las
mente acumulados, assimilados, filtrados e amadurecidos. e tratá-las com competência e seriedade. Aí estão elas nos livros de
cartórios, os Ofícios de Notas, as Varas de Órfãos e Sucessões, os
Os caminhos percorridos pela historiadora até atingir a sua Bahia registros de toda a sorte, os processos criminais, os recenseamentos
de hoje não foram fáceis nem lineares. Nasceu Katia Mytilineou na eclesiásticos, as correspondências oficiais, os livros paroquiais, os
Grécia, doutorou-se em Ciência Política na Suíça, casou-se no Brasil testamentos, os inventários. Outros de nossos grandes historiadores
e, talvez mesmo sem disso se aperceber, tornou-se brasileira e baiana, também se debruçaram sobre essas fontes, abrindo trilhas. O que
não apenas pelo casamento e pelas filhas nascidas em Salvador, mas importa na tarefa do historiador é delas retirar o que nelas se esconde
pela sua inteligência e fina sensibilidade de grega que ama o mare os mas segundo as perguntas que ele formular e as inquietações
horizontes abertos, que sabe penetrar na densidade do passado, que intelectuais que o movem. Em síntese, caberia ao historiador fazê-las
possui a experiência histórica dos fluxos e refluxos da grandeza falar. É um labor muito lento que exigem perseverança e clareza de
e da decadência, do esplendor e da pobreza, da dominação e objetivos, refletindo, ao mesmo tempo, a concepção que o historiador
da espoliação. Talvez o litoral baiano ensolarado lembre a Ratia, tem do presente e do passado que ele reconstrói.
historiadora, a sua Grécia de céu sempre azul até com ele se confudir
A Katia Mattoso coube, ao longo desses anos, desfolhar, uma a
e se identificar profundamente. Dai o calor —por vezes o carinho um
uma, as suas fontes, interrogá-las e criticá-las, valorizando-lhes o
pouco encabulado —com que nos leva a penetrar o seu universo
conteúdo, conferindo e comparando com outras. Tive o prazer de
baiano, fazeno-nos percorrê-lo e compreendê-lo em toda a sua
acompanhar essas diferentes fases de construção e evolução, desde as
complexidade humana e social. Reside aí uma das qualidades
séries de preços levantadas na Santa Casa da Misericórdia de
fundamentais da obra —o amor da autora pelo seu tema que é, em
Salvador até a atual fase das análises exáustivas de alforrias de
essência, o povo e a terra de Salvador. Além do mais, Katia é
historiadora porque não poderia ser outra coisa. escravos e de testamentos de escravos forros e homens livres.

A cada passo de suas investigações, Katia Matttoso dava-se à


Mas, para chegar à maturidade desta obra - Bahia: a Cidade de
gundo trazido pelas autoridades coloniais, “na tentativa de estabele­
tarefa de descrever e balancear os dados parciais obtidos em artigos cer sobre terras brasileiras, a organização social urbana da mãe
publicados tio Brasil e no Exterior, em seminários realizados com seus metrópole”. Este, mais aberto, possibilitando enriquecimento em
alunos de Salvador e com seus colegas de Universidades francesas e atividades mercantis (o grande e o pequeno comércio) e a mobilidade
norte-americanas. O importante para ela - e disso tomou consciência social pela constituição de camadas intermediárias de população,
gradativamente até se tornar hoje uma certeza - era afastar os falsos fortemente mestiçadas, daí nascendo “uma sociedade original, dinâ­
problemas, em parte transplantados das preocupações metodológicas mica, operativa”. Da fusão desse dois modelos, surge “uma sociedade
estranhas, e descartar-se da segurança falaz do quantitativismo puro rica porque aberta para todos, mas também sociedade de atitudes
das conjunturas económicas, até chegar à história social entendida, ambivalentes, esquartejada que ela é, entre o modelo branco, o
segundo M. Crubellier, como estudo dos grupos humanos apreendi­ modelo da mãe pátria, o modelo em suma, da Europa distante, e a
dos no seu “devertir temporal”, cônscia da advertência de Pierre Vilar: realidade de uma- dinâmica que lhe é própria e por isso original.
“Não mais estudar riquezas e pobrezas, mas enriquecimentos e Mescla de dois modelos onde finalmente o indígena acaba por
empobrecimentos”. Tratava-se para a historiadora de assentar a triunfar, mesmo se fica inconfessado”.
história social, não como Uma “descrição da sociedade”, do ponto de
vista das classes dominantes, mas como a descrição das estruturas Como se estruturava essa sociedade? Quais suas associações
sociais, sobre bases demográficas e económicas dentro de uma sociais? Como viviam suas classes? Como morriam? Como se manifes­
geografia precisa que se transforma com a própria história dos tavam suas tensões? Como lutavam pela sobrevivência? Ritmos
homens e seus determinantes. Para chegar até aqui ela compreendeu, lentos, sem dúvida, o das estruturas, quase imperceptíveis, mas
como Albert Soboul, que “toda estrutura é global onde os aspectos também pulsações aceleradas nos seus mercados apinhados, nas
qualitativos e quantitativos estão estreitamente ligados e solidários”. dificuldades do cotidiano, nos levantes negros, nas agitações que
abalaram as classes dominantes. Pois, no fundo, trata-se de contar
O livro foi concebido em três partes que não são independentes como se vivia e como se morria, os ricos e os pobres, a classe média
entre si. Diríamos melhor que ele se realiza em três ritmos simultâ­ cada vez mais numerosa, os senhores e os escravos. Daí não ser uma
neos. A primeira parte, a mais curta, intitulada Salvador na sua história de nomes próprios e, sim, da grande massa dos anónimos que
Província, não se limita a ser uma introdução geográfica nos moldes se diferenciava na hierarquia das classes e do sistema produtivo, nas
das teses universitárias francesas em que os chamados aspectos físicos mentalidades, nos níveis de vida e de aspirações, bem como nas suas
compõem um quadro prévio de referências isolado do restante. Talvez realizações e frustrações.
seja esta a de ritmo mais lento embora contínuo, pausado e nem por
isso menos brutal e persistente. A geografia, como a historiadora a faz, A terceira parte do livro trata do Mercado de Salvador no Século .
ganha vida e se transforma num componente essencial da explicação XIX. Problema de abastecimento - de organização do comércio -
histórica que não teria sido o que foi sem as peculiaridades da mas, sobretudo, da organização da produção, da estrutura da
morfologia do sertão e do Recôncavo, ao mesmo tempo dádivas e demanda, das modalidades de troca, dos instrumentos de pagamen­
armadilhas da natureza. Ai estão os caminhos, os cultivos, os solos, os tos, o que nos leva a refletir sobre os estrangulamentos estruturais que
ventos, as chuvas, o sol. a vegetação, os rios, as marés, elementos ainda hoje persistem. Entramos aí no ritmo das conjunturas de preços
primários de uma descrição maior: a produção, a distribuição, o e salários, saindo do qualitativo para o quantitativo, mas levando em
mercado de Salvador. conta diversas situações estruturais e conjunturais mais amplas.

Na segunda parte, dedicada a Salvador, Baia de Todos os Santos, Ao jovem pesquisador brasileiro este livro de Katia Queirós
é a cidade que “nasce e cresce abraçando o seu sítio”, apresentada em Mattoso é um modelo e um estímulo. Aos cientistas sociais, ele servirá
ritimo mais acelerado, em que as mudanças são perceptíveis através para abrir um debate que.espero, possa contribuir para aprimorar méto­
dos números da demografia e do movimento do porto ligado ao dos e técnicasde pesquisa como. também, para recolocar o problema da
Atlântico e ao hinterland. As hierarquias sociais contrapõem-se dois História como ciência em contacto com o conjunto das ciências
modelos, um rural e outro urbano em dois momentos históricos humanas.Bahia: Salvador e seu Mercado no Século X IX é uma prova
distintos: o primeiro baseado na estrutura económica específica da de que é possível fazer a história de longo fôlego no Brasil, com
grande propriedade exportadora/monocultora do Recôncavo, o se­
pesquisa exaustiva de fontes primárias, relejtura de velhos textos, ÍNDICE
domínio completo das técnicas de elaboração de dados; seriedade
intelectual e competência científica. Dessa forma, teremos condições de
sair da “vaguidão” de nossos conhecimentos sobre o Brasil, tão
deplorada por Francisco Iglésias.

Coube à Katia de Queirós Mattoso mostrar o caminho e dar o


exemplo com o seu trabalho dignificante de profissional consciente.
Ao fazer ressurgir a Bahia do século XIX, não é somente a decadência
e o marasmo que transparecem e, sim, uma Bahia que vive, cresce e se
agita, que se transforma aos poucos, deixando de ser, sem dúvida, o
centro de irradiação que fora na Colónia para se tornar uma cidade
com suas formas originais e próprias de convivência, que responde, à
sua maneira, aos problemas económicos, sociais, políticos, que chega
ao fim do século maior, mais ampla e populosa, com os ricos talvez
mais ricos e os desníveis ainda mais acentuados. É, sem dúvida, uma
parcela da tão falada realidade brasileira agora menos desconhecida. Prefácio de Maria Yedda Linhares IX

Rio de Janeiro, Introdução 1


dezembro de 1977
Maria Yedda Leite Linhares PARTE I - SALVADOR NA SUA PROVÍNCIA

LIVRO ÚNICO: DÁDIVAS E ARMADILHAS DA


NATUREZA

Capitulo I - Morfologia geral

• Generalidades
Uma micro-região escoadouro de uma imensa província........ 5
Limites, história morfológica................ 7

• Pequeno glossário de termos geográficos essenciais................. 10

A propósito de chuvas: frente fria ou frente polar.................... 11


A propósito do relevo: barreiras, tabuleiros, chapadas............ 14
A propósito dos sertões e do ag reste...........................................19

Capitulo I I - O Recôncavo

A cidade nos campos: interdependência........................................26


Metodologia ........................... 28
O Recôncavo: alguns aspectos de uma micro-região.............. 29

XV
As três variáveis ......................... . . . . . . . . . . . . . . . .......................... 37 I
LIVRO II: O PESO DOS HOMENS 115
Duas variáveis que dependem uma da o u tra ............................ , 37
O solo que se desgasta ...................... ' ........................................ 39
Capitulo I - Como definir o espaço urbano da cidade......................115
Os problemas agrícolas em meados do século XIX: um exemplo,
Santiago do Iguape..................................... ..................................... 39 Capitulo II - Os dados precários da demografia e sua manipulação
antes de 1872 127
“Riqueza e Opulência” do Recôncavo?................................ 46
Os recenseamentos ............................................................ 128
As estimativas ou avaliações da população do Salvador (1587-
1872).............................................. 130
PARTE II - A CIDADE DO SALVADOR, BAÍA DE TODOS
OS SANTOS
Capitulo III - Os dados demográficos e sua manipulação depois de
1872 133
LIVRO I: O SÍTIO
O Recenseamento de 1872 ..................................... ......................... 136
Capitulo I - Na baia de Todos os Santos.......................................... 61 O Recenseamento de 1890................................................................ 136
Comparação entre os dois censos ................ 137
Navios de longo curso (séc. XVI - XVIII)........................................ 62
Navios no porto........................... ..................................................... 65
Tipos de navios e homens a bordo...................................... ............. 68 Capitulo IV - Avaliação global da evolução quantitativa da
Navios de longo curso (séc. XIX). ................................................... 70 população do Salvador no século XIX
Navios de cabotagem ....................................................................... 72
Tentativa de reconstituição do número absoluto da população do
Salvador: 1805-1872..........................................................................137
Capitulo II - Um porto acolherdor e seguro?.................................... 75 Dinâmica da população da cidade do Salvador: 1800-1889..........139
O que escapa aos recenseadores........! ...........................................141
r
Marinheiros e navegantes ................... 142
Do porto natural antigo ao porto m o d e rn o .................................... 79 Migrantes temporários ........... 143
Africanos em trânsito........................................................................144
Os sangues misturados: mitos e realidades...................................... 147
Capitulo III —A cidade que nasce e cresce abraçando o seu sitio . . . 83
LIVRO III: HIERARQUIAS SOCIAIS E VIDA COTIDIANA
O sítio da cidade: horst egraben...................................................... 83
As três primeiras amarras da população: Sé, Vitória, Conceição
da Praia .................... ............................................ ......................... 88 Introdução: Estratificação social: visão de conjunto........................151
Capitulo I - A estratificação social: um modelo rural?.................155
Capitulo IV — A cidade do Salvador escapa à vocação das
metrópoles coloniais? 106 As hierarquias sociais no Recôncavo: 1600-1800........................... 155
As hierarquias sociais na cidade do Salvador: 1600-1800..............159
A estratificação e as hierarquias çociais em Salvador: mescla de
A metrópole: reflexões sobre um m odelo....................................... 107
dois m odelos......................... .................................- .......................167
XVI XVII
Capítulo II - Servidões e encantos da cidade 167 .Capitulo II - O mercado de trabalho 276

Salvador: a cidade no século X IX .............. ............................... [170 Estrutura dual do mercado de tra b a lh o ............................ .......... 277
A cidade na beira do m ar.................................................................171 Elementos comuns ao mercado de trabalho livre e escravo em
A cidade no a l t o ........................................ .................. . . . . ; ......... jl7ê Salvador........................................ ................... .......................... 280
No alto: ruas, praças e jardins da cidade ....................................... 180 O mercado de trabalho para os trabalhadores livres...................... 283
O mercado de trabalho para os trabalhadores cativos.................... 285
O salário e seu significado.......... ................................................ .. - 290
Capítulo III - Casas e estilo de vida 189

As casas: vida no interior................... 193

O LIVRO II: PREÇOS E SALÁRIOS NO MERCADO DO


Capítulo I V - A s relações sociais 201 SALVADOR (1800-1889) 293

Capitulo I: Os produtos de consumo e seus preços


A família como primeiro tipo de associação social......................... 204
As Irmandades religiosas como segundo tipo de associação social. 207 Fontes .................................................................................................295
A família: no centro das relações sociais......................................... 211 Métodos...............................................................................................297
As Irmandades e Ordens Terceiras: como entidades de controle Os produtos, sua escolha e a variação de seus preços
dos comportamentos sociais............................................................. 218 Os produtos e sua escolha.................................................................. 299
As associações de classe: novos mecanismos de controle social . . . 224 As variações de preços.......................................................................302
Tensões sociais, motins e revoltas armadas no século X IX ............228

Capitulo II - Os salários e suasflutuações

PARTE III - O MERCADO DE SALVADOR NO Fontes e m éto d o s.............................................................................. 352


SÉCULO XIX As três classes de salários e seus movimentos ....................................365

LIVRO 1 :0 MERCADO
Capitulo III - Flutuações de preços e de salários: uma comparação 367
A guisa de conclusão.......................................................................... 373
Capítulo I: - O mercado de trocas 239 Fontes e bibliografia..................................................................... 377

Generalidades............................................. 239 índice de mapas, plantas, figuras, e gráficos


Os parceiros das trocas: homens de negócio, comerciantes,
vendedores e caixeiros viajantes versus consumidores ..................247 A - Mapas
O mercado de oferta: os problemas de abastecim ento..................253
O mercado de demanda: os consumidores....................................... 260 Recôncavo: solos: levantamento sistemático
As modalidades de troca e os instrumentos de pagamento............261 natural (I)........................................... .....: ........................... . . .30/31
As modalidades decompra e venda...................... 261 Santiago do Iguape (II) ................................................................... 42
Os instrumentos de pagamento: o crédito e o problema da moeda. 266 A propósitodecana-de-açúcar(III)............................................ 48/49
O crédito............................................................................................. 266 Agricultura na Bahia: até meados do século XIX (IV ) .............. 55
A moeda e sua circulação..................................................................272 Corte geológico ideal generalizado (V )............................................ 87

XVIII XIX
B. Plantas
Toucinho: fig-M 316 fig. 14A 334
Povoamento primitivo da Bahia (V I).............................................. 93 Galinha: fig- *3 317 fig- J3A 335
Planta da cidade do Salvador, 1549 (VII)........................................ 97 Sal: fig-16 318 fig. 16A 336
Planta da cidade do Salvador nofim do século XVI (VIII).............. 98 Azeite de peixe: fig- 17 319 fig- 17A 337
Freguesia de N. S. da Conceição da Praia: Azeite de mamona fig-18 320 fig. 18A 333

Planta I X ........................................................................................... 103 II - índices económicos: fig. 1 9 ............................. ........................ 347


Planta X ............................................................................................. 104
Planta X I ............................................................................................. -105
III - Gráficos deflutuações anuais de salários
C. Figuras e gráficos a) Artesãos
I - Flutuações anuáis e índices de flutuações anuais de preços de
Mestre pedreiro e oficial de pedreiro: graf- I : ............................... 354
produtos
Mestre carpinteiro e oficial de carpinteiro: graf. I I ........................355
Servente homem e servente mulher: graf. I I I ................................. 356
a) Produtos de exportação
b) Empregados do setor privado
I. Flutuações Anuais 2. índices dasflutuações anuais
Açúcar: fig. 1 303 fig. IA 321 Professor e médico: graf. IV......................................................... .. .358
Café: fig. 2 304 fig. 2A 322 Cobrador e escriturário: graf. V........................... ........................... 359
Porteiro e enfermeiro: graf. VI......................................... ............... 360
b) Produtos de importação

I. Flutuações Anuais 2. / ndices,dasflutuações anuais c) Empregados do setor público

Farinha do Reino fig. 3 3 05 fig. 3A 323 Comandante geral, major-comandante, capitão: graf. V II............ 361
Azeite Doce (de oliva): Cirurgião-mor, alferes, tenente: graf. V III............................. .. .362
fig. 4 3J06 fig. 4A 324 l9 Sargento, 29 sargento: graf. I X ............•......................................363
Bacalhau: fig. 5 307 fig. 5A 325 Corneta e soldado, cabo: graf. X ................................................... 364
Vinagre: fig. 6 308 fig. 6A 326
Manteiga: fig. 7 309 fig. 7A 327
Chá preto: fig. 8 310 fig 8A 328 A breviaturas

APFB •= Arquivo do Estado da Bahia


c) produtos de produção e de consumo loca! AMS = Arquivo Municipal da cidade do Salvador
AN RJ = Arquivo Nacional Rio de Janeiro
1. Flutuações anuais ASCM = Arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Salvador
2. índices dasflutuações anuais AOSJ = Arquivo dos Órfãos de São Joaquim*
Farinha de mandioca: fig. 9 311 fig. 9A 329
Carne verde fig. 10 312 fig. 10A 330
Feijão fig. 11 313 fig. 1IA 331
Arroz fig. 12 314 fig. I2A 332
Carne de sertão: fig-13 315 fig. 13A 333

XX
XXI
INTRODUÇÃO

Bahia de Todos os Santos, Salvador, São Salvador, Salvador da


baía de Todos os Santos, ou simplesmente Bahia? Certamente cidade
bem amada essa cidade à qual se deram nomes e apelidos tão doces.
Mas o que então esconde a ambiguidade desses topônimos que, a
contento, confundem a região e a cidade, o Cristo e seus Saqtos, o
abrigo e o refúgio Salvador do porto na terra firme?

Nosso século XX, administrativo e frio, fixou, sem dúvida, o


vocabulário que deve lhe servir para recensear, explorar, disciplinar,
alimentar e Bahia é oficialmente o nome de um estado da federação
brasileira cuja capital chama-se Salvador. Mas a vida dos vocábulos é
mais longa que aquela desejada pela administração ou pelo dicioná­
rio: na linguagem de todos os dias, o baiano tanto pode ser o
habitante do estado da Bahia como o da cidade do-Salvador, sua
capital. Se tal confusão existe ainda hoje, quanto mais profunda não
deve ter sido a dos séculos passados! Contar a cidade e sua história foi
sempre contar toda a província. Como Roma para sua península e seu
império, Salvador foi a urbs, a cidade. Sentinela de Portugal, a antiga
capital brasileira é somente na aparência excêntirca e relação a sua
hinterlândia imediata, o Recôncávo, e em relação aos sertões do
interior. Pelo contrário, sua situação e sítio estabeleceram-na numa
excelente posição que lhe permitiu tornar-se o coração do país inteiro.
A história do seu desenvolvimento nas épocas do Brasil colonial foi
freqiientemente narrada. Pareceu-nos porém, que o século XIX era o
século esquecido. Tudo se passa como se os baianos tivessem receios
de falar desse passado mais próximo, ou como se preferissem o cintilar
dos fatos de outrora, às vivas cores e cheiros fortes do século passado.
Ora, este século XIX baiano, se for olhado de mais perto, é um século

I
apaixonante onde a vida palpita em vibrações de ritmo, um século de conhecido que até nos pareceu-indispensável demorar em algumas
verdadeira criação de uma nova sociedade, graças ao progresso descrições geográficas e pedológicas. antes de fazer viver lado a lado.
demográfico, ao aumento é depois cessação do tráfico de escravos, aos nos seus bairros e suas casas, suas famílias e suas associações, toda
progressos de todas as técnicas - agrícolas, industriais, comerciais, às umapopulação baiana bem próxima ainda daquela que conheceram
mutações da vida económica. os pais dos habitantes de Salvador de hoje.

Levaptes populares, mudanças de regime e de governos, guerras, Nossos agradecimentos vão ao Dr. Fernando Wilson Magalhães,
secas, efndemias, acompanham, explicam, ou suscitam uma evolução Prefeito da cidade e às professoras Maria Esteia Pita Leite. Secretária
lenta mas profunda que vai transformar a orgulhosa capital dos de Educação da Prefeitura de Salvador, e Maria Rosita Salgado Goes,
Senhores de Engenho dos anos de 1800 na vaidosa cidade dos diretora do Departamento de Cultura da Prefeitura, cuja inestimável
Negociantes dos anos de 1900. Esta mudança, somente pode ser ajuda tornou possível esta publicação.
explicada se colocarmos a urbe no seu contexto geográfico e social e
na vida cotidiana de uma cidade onde comem, bebem, riem, dormem
e circulam homens vivos. Nosso estudo se deseja sobretudo qualitativo
porque os estudos quantitativos em curso sobre a estrutura social
baiana não permitem ainda afirmações solidamente assentadas em
dados estatísticos.

Infinitamente mais ricos do que se pensava são nossos arquivos


com suas séries mais ou menos completas de inventários, de testamen­
tos, de cartas de alforria, de processos-crime, de decisões municipais,
de recenseamentos eclesiásticos ou leigos, de correspondências, de
atos de compra e venda, de hipotecas, de listas de preços e de salários.
Mas o estudo dessà documentação seriada não basta. Por isso
desejamos acrescentar-lhe uma nova e sistemática leitura da historio­
grafia tradicional, pois se os historiadores do passado nos parecem
hoje desusados e envelhecidos, não fica por menos, todavia, que eles
tinham olhos para ver e ouvidos para escutar e que sua própria
sensibilidade é para nós uma fonte preciosa para o estudo das
mentalidades e das estruturas da sociedade. Nossa descrição de
Salvador no século XIX, o ensaio de avaliar o peso de seus homens em
número ou em qualidade, as tentativas que fizemos para descrever
novamente os estilos de vida e captar os seus fundamentos ou as suas
evoluções no seio da vida familiar ou associativa, inspiram-se, então,
dessa dupla leitura: de um lado, as fontes primárias e de outro lado,
os escritos históricos e literários da época.

Cidade princeps ou cidade já adormecida, Salvador de qualquer


modo permanece, ao longo do século XIX, mercado, feira, porto,
lugar de trocas para populações vindas de todos os horizontes. É este
mercado de Salvador, um mercado com dimensões de toda uma
região, que procuramos estudar, não em suas dimensões internacio­
nais ou mesmo nacionais, mas na escala da Bahia do Agreste, do
Sertão, do Recôncavo. Horizonte talvez limitado mas tão mal

2 3
w-u-i f wr\; w bw i *w uv owi pvrioliuv « rvwV

C o n s s rv e o * s u *C9^vo.
I9 PARTE - Salvador na sua Província

Livro Único - DÁ DIVAS E ARMA D l LHA S DA NA TU REZA

O africano acorrentado, espantado e aturdido por algumas


semanas de estada no porão do navio que o trouxe para a nova terra,
descobre, ao ser desembarcado nos cais da parte baixa, uma cidade
opulenta e altiva: Salvador da Bahia de Todos os Santos, estirada com
arrogância sobre o esporão pedrento, verdadeiro promontório de
cerca de 60m que fecha e domina uma espaçosa barra de ilhas e
ilhotas.

É que, nos primeiros anos do século XIX, Bahia, vitrina


privilegiada das riquezas e das misérias de uma imensa hinterlândia
ainda mal conhecida: Bahia, nome de uma cidade que esconde o
nome de uma capitania tão grande quanto a França, Bahia é a
segunda capital portuguesa das Américas coloniais. Uma capital que
Lisboa tenta fazer respirar no seu ritmo mas que permanece
essencialmente o porta-voz e os olhos de uma vasta região da qual se
deve descrever o espaço físico, a morfologia, o clima e a vegetação
natural para tentar entender que riquezas promete, que quadro de
vida oferece e a que preço.

Capítulo I - Morfologia Geral

Generalidades

Uma micro-região escoadouro de uma imensa província

583.020 km2: tal é aproximadamente a superfície dos Estados da


Bahia e de Sergipe que formavam outrora a Capitania Geral da
Bahia. 583.020 km2 cuja morfologia permanece ainda para o geomor-

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e as ordens dos poderosos funcionários e comerciantes - que
fólogo de hoje um vasto território de averiguações, para o geólogo demandam a sua hinterlândia e, mais precisamente o seu Recôncavo.
uma fonte perene de descobertas e, para as instituições voltadas para
o desenvolvimento, um campo inesgotável de preocupações e de Entrelaçados, imbricados, Salvador e seu Recôncavo formam uma
promessas. unidade para o melhor e o pior. E como o Recôncavo e voltado para o
mar é toda sua costa e seus rios que são a própria vida da Província.
O crescimento da Cidade do Salvador é fruto de uma tripla
bênção: um sítio ao abrigo de uma baía segura, larga e profunda: uma Daí a necessidade de introduzir matizes, de distinguir entre a
hinterlândia próxima: o Recôncavo que abraça a cidade dele nascida, hinterlândia próxima e o longínquo interior, descrevendo o seu meio
da qual vive e faz viver - Salvador respiração do próprio Recôncavo - natural com suas dádivas e suas armadilhas, que facilitaram ou
e enfim as imensas possibilidades que oferecem as terras tropicais dificultaram a fixação do homem.
situadas do 109 ao 189 grau de latitude sul. O tempo das veredas ou
dos atalhos, aquele para o qual as distâncias se calculam em dias de
marcha, permitia um conhecimento do país, uma apreensão das Limites, história morfológica
formas e das paisagens que largamente compensava os benefícios que
a rapidez dos transportes do tempo das estradas de ferro ou do Limites: A Bahia abrange hoje uma superfície de 561.020 km2 aos
automóvel puderam trazer aos nossos conhecimentos. Depois, o avião quais devem ser acrescentados os 21.994 km2 do pequeno Estado de
e a química revelaram outras ignorâncias, suscitaram e ajudaram Sergipe, separado administrativamente de seu vizinho do sul em 1820.
pesquisas realmente novas: para os conhecimentos geográficos dos Na realidade, a antiga e indolente sede colonial de São Cristóvão
lugares e sítios não houve real progresso a não ser em uma data mostrou-se incapaz de sacudir uma letargia secular. Por isso, foi
relativamente recente e as ignorâncias de 1930 são bem próximas substituída oficialmente como capital pelo porto mais dinâmico de
àquelas de 1830. É a época em que a terra ocupada ou atravessada é Aracaju (1). O início de um desenvolvimento autónomo de Sergipe é,
terra conhecida. O mistério começa ali onde termina a caminhada, o portanto, recente.
cultivo, o pasto e o horizonte que o homem descobre de um alto.
Dessas ignorâncias o baiano do século passado tem plena consciência, Subir o majestoso Rio, São Francisco é praticamente contar os
porque vive perto da terra, perto do próprio ritmo das estações, numa trabalhos e os dias da Bahia na procura de limites precisos. A
perpétua tentativa de adaptar-se à gleba da qual é necessário extrair personalidade cedo afirmada da Capitania Geral da Bahia, finalmen­
seu sustento, sua própria vida. te só se chocou, outrora, à de Pernambuco. De seu delta em Paulo
Afonso, o São Francisco permaneceu por muito tempo baiano nas
Bahia é hoje explorada dos altos do céu pelo radar que procura suas duas margens. Somente após Juazeiro, ei-lo fronteira com sua
explicar-lhe as formações geológicas e descobrir-lhe os recursos irmã inimiga de Recife e de Olinda. Parecia correr do oeste para o
minerais e a potencialidade agrícola - seu soloé analisado para que se leste rumo ao Atlântico: na realidade quem se dava ao trabalho de
lhe conheça a pobreza em sais minerais ou em cálcio. Esses estudos ascendê-lo 50 a 100 km mais longe, descobria que o São Francisco
procedia do sul, da afastada Capitania das Minas Gerais. Dessa
medem o abismo de nossas ignorâncias no que diz respeito à história
geomorfológica da província, a fraqueza de nossos conhecimentos no maneira imensas extensões de terras baianas estendem-se ainda para
que se refere à explicação das mil e uma nuançes de seus climas. As ó oeste do São Francisco até os Estados vizinhos de Piauí e de Goiás
riquezas de sua flora foram descritas há muito tempo, mas o porquê e (2). Ao sudoeste, os vales do Rio Carinhanha e do Rio Verde são as
çomo do sucesso de tal ou outra cultura permanece ainda estudo de
laboratório. É, todavia, com a ajuda dessas novas pesquisas que se (1) - Até 1820 Sergipe fez parte da Capitania da Bahia a que se liga historicamente
deve procurar descrever e entender a hinterlândia que permitiu o o seu povoamento. Entre 1590 e 1800 foram criadas as vilas de São Cristóvão, capital de
capitania (1590), Itabaiana (1665), Brotas (1697) a atual Neópolis (1733), Lagarto
desenvolvimento e o crescimento da Cidade do Salvador. (1758) e Propriá (1800). Em 1822 tornou-se província e sua capital foi transferida de
São Cristóvão para Aracaju em 1855.
Mas o Salvador dos séculos passados não é a aranha tecendo o (2) - Piauí: bandeirantes e pecuaristas ligados ás famílias de Francisco Dias
pano de sua província. Ela é bem mais do que isto, a boca e o d’Avila e Domingos Afonso Sertão desbravaram e ocuparam o território piauiense em
escoadouro, a base e o refúgio de onde partem os principais caminhos fins do século XVII. Como centro de união de numerosas fazendas do Mafrense surgiu

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fronteiras naturais que separam Minas da Bahia (3). Enfim, na formá' imenso “Vale do Reno” - divide a dorsal brasileira em duas partes. A ”
de um pé alongado, ou na de um longo caule, o sul da Bahia se estira primeira, mais estreita, se alonga a leste ao longo das costas mas
ao longo do litoral sobre uma profundidade de somente 100 a 150 km separa-se do mar por uma franja sedimentar que se alarga na direção
até uns 30 km ao sul da fossa do Rio Mucuri (4): Sinal mesmo da leste (7). O resto da fossa, os restos da dorsal, são muito mais largos
corrida para as terras costeiras facilmente exploráveis que caracteri- (8). Disposição complicada, análoga, aliás, a da África Oriental, que
zou os começos do desenvolvimento da região. permitiu a conservação de numerosas formações detríticas antigas. Na
verdade, trata-se de um esquema por demais grosseiro que, de leste
História morfológica: A história geomorfológica da Bahia é ainda para oeste, fez suceder uma região litorânea relativamente plana, uma
mal conhecida “As superfícies de erosão as mais antigas foram em zona de colinas variadas e um planalto mais elevado. A Bahia é
grande parte apagadas pelos ciclos posteriores: as mais recentes, em diversa e sua história geomorfológica dá relevos mais complicados do
geral, são bem conservadas. Estas são representadas por vales que parece. Por outro lado, outra fonte de complicações é o fato de
“jovens” e “maduros”. Mas a superfície do Terciário Inferior (superfí­ que esta região teve sempre problemas de geomorfologia climática:
cie Sul Americana)! é a que possui maior extensão atualmente e é como exemplo, a repartição das massas montanhosas e a barreira
ainda a mais aplainada”. (5) Esta superfície, verdadeira dorsal do climática dos altos planaltos de Borborema, cujos 1.000 metros de
Brasil oriental, é o elemento fundamental da paisagem do Nordeste. altitude dominam o sertão semi-árido a oeste, e uma região úmida e
Mais para o sul, nos Estados do Espírito Santo, de Minas e Rio de quente a leste, desempenham papel importante na distribuição dos
Janeiro esta, pouco a pouco, se reduz até desaparecer completamente.. tipos de climas. Não são grandes as distâncias que separam as regiões
Aplainamentos e sedimentações,erosão e evaporação, rejuvenescimen­ mais ou menos secas das regiões mais ou menos úmidas. Ao longo da
to dos relevos e movimentos tectônicos ou mudanças climáticas evolução geomorfológica da região, Jessas diferenças introduziram
modelaram, em seguida, esta dorsal. Aqui nos interessa saber que importantes variáveis regionais na formação das superfícies atuais.
“Ela oferece um conjunto complicado de serras descontínuas, disper­ Sobre espaços relativamente reduzidos se encontram tipos morfológi­
sas, às vezes encaixadas, e planaltos e chapadas construídos por cos, solos, climas e, por conseguinte, •as vegetações naturais mais
fragmentos de cobertura arenítica do cretáceo. No centro e ao norte diversas. Esses “sistemas”, chaves da cartografia de hoje, explicam
do Estado da Bahia a originalidade da dorsal brasileira provém da também a cartografia de ontem. O glossário dos termos geográficos
existência de uma fossa tectônica enchida por espessos sedimentos do que entraram na linguagem corrente e são usados nas descrições da
cretáceo e que vai desde c Rio São Francisco até o Atlântico onde se região se assemelha ao tesouro de Ali-Babá!s,encontram-se palavras,
termina na Baía de Todos os Santps”. (6) oferecidas pela bela toponímia dos mapas baianos que formam uma
Esta fossa cretácea de direjçjão N.E., verdadeiro graben - um verdadeira constelação de pedras preciosas mas cujo significado
precisa ser melhor entendido em vista de uma correta utilizaç ão.
a Vila da Mocha, atual Oeiras (1717). Foi capital até 1852 quando esta foi transferida
para Teresina fundada especialmente para ser o centro político-administrativo do Piauí. Por isso antes de descrever de modo detalhado o Recôncavo
Goiás: o povoamento do território goiano prende-se à descoberta do ouro. Em baiano, onde, aliás, serão encontrados alguns exemplos sui generis de
1725, Bartolomeu Bueno da Silva descobriu ouro no rio Vermelho. Ali fundou a atual solo, de climas, ou de vegetação, é útil descrever, através do seu
Goiás, elevada a esta em 1736, enquanto que a Capitania só foi criada em 1748.
vocabulário, as terras habitadas, percorridas, exploradas sob a
(3) - O rio Carinhanha é um afluente da margem esquerda do rio São Francisco. O
rio Verde um pouco mais a montante é, um afluente da margem direita. Entre os dois proteção mais ou menos longínqua mas sempre vigilante da adminis­
confluentes o próprio rio São Francisco serve, sobre uma extensão de 30 km, de limite tração soteropolitana. Mas não se deve esquecer que o próprio
entre os Estados da Bahia e de Minas Gerais. vocabulário é fonte de confusão. Com efeito, geógrafos, geólogos,
(4) - O rio Mucuri corre para o Atlântico e torna-se baiano a cerca de 15 km em geomorfólogos se apropriaram dos termos da linguagem popular e
aval da cidade mineira de Nanuque. sob pretexto de os explicar “cientificamente” freqiientemente os
(5) - SILVA, Teresa Cardoso da. Problèmes géomorphologiques eí paleo- bloquearam numa de suas definições quando não lhes deram um
-gèographiques du Nord-Est du Brésil Thèse presenteé pour le Doctorat d’ Université.
Strasbourg, 1959, p. 9.
(6) - TRICART, Jean e SILVA, Teresa Cardoso da. Estudos de Ge omorfologia da (7) - É particularmente desenvolvida no atual Estado de Sergipe.
Bahia e Sergipe. Salvador, Fundação para o desenvolvimento da Ciência na Bahia, 1968, (8) - Como veremos mais adiante formam em particular a estrutura dos
P- 7‘ “planaltos” da Chapada Diamantina.

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sentido praticamente sem relação com o sentido dado pela toponímia unidade no sertão quanto no taboleiro. O clima é o único fator de
local (9). Para explicar as relações do homem brasileiro com o seu unidade ou de diferenciação e evidentemente os microclimas não
meio geográfico uma história do vocabulário geográfico é necessária. faltam numa tão vasta região. Veremos mais adiante as farsas e
Esta história está por se fazer. Apesar de que o nosíso glossário de facécias das que é capaz o clima do Recôncavo. Todavia, quanto mais
termos geográficos referente ao interior da província baiana parece o oceano está longe mais os espaços climáticos são grandes, de tal
demasiadamente claro, na verdade, porém, este se afasta da realidade, modo que as paisagens são primeiramente caracterizadas por sua
pois que recobre com o mesmo vocábulo com a mesma vegetação. Eis porque esse glossário inicia-se por uma tentativa de
denominação morfologias de origens e formas variadas. Elucidar compreensão dos tempos que se manifestam, isto é, essencialmente
essa confusão é o nossb objetivo nas linhas que se seguem. dás chuvas que caem ou que não caem.
Descreveremos em seguida as duas principais formas de paisagens:
Pequeno glossário de termos geográficos essenciais
taboleiros e chapadas, pois ambas são o suporte dessa vegetação
natural cujas grandes áreas são primeiramente climáticas. Essa vegeta­
-Porque este glossário
ção natural - agreste, mata, caatinga - não cobre ainda hoje a maior
Recôncavo significa fundo de baía e passou depois a abranger as parte das terras baianas?
terras vizinhas adjacentes, com mangues, baixios, serras e tabuleiros.
Para ser lucrativa, a colonização teve ao mesmo tempò de prover as Como o lavrador, da fábula de La Fontaine que “ao sentir
suas próprias necessidades e enriquecer também a mãe pátria. A aproximar-se a morte” chamou seus filhos e legou-lhes por única
herdade o conselho de cavar a terra sem se deixar vencer pelo cansaço
região que iremos descrever em traços gerais e às vezes um tanto
ou pelos pedregulhos, o geógrafo do século XX tenta oferecer aos
toscos, os homens da epoca colonial a descobrirem quilómetro por
criadores e lavradores de hojee de amanhã suas descrições atuais. Ele
quilómetro: o litoral, quase sempre relativamente baixo ao longo de
seus 1.000 km de orla, não apresentava maiores problemas para a procura explicar um solo cheio de contrastes onde a seca encontra o
circulação, bastava costear a orla marítima. De barco os próprios ri'a!s oásis verdejante, onde a fruta amadurece ao lado dos espinhos.
dos rios não eram obstáculo à circulação. Penetrando às vezes muito
profundamente no interior das terras, facilitam a circulação muito A propósito de chuvas: “frente fria ” ou “frente polar
mais que a obstaculizam. Longas praias sucedem-se, interrompidas às
vezes por escarpas nunca muito elevadas, ou pelos recifes de um cabo, A “Frente Fria” ou “ Frente Polar” é a chave das variações
deixando na hora de maré alta, uma estreita banda de terra a seco. Até climáticas da Bahia. Evidentemente a Bahia está na zona dos climas
o século XX a praia costeira fbi o caminho ideal, maleável e suave aos semi-áridos do hemisfério sul e este clima semi-áridoé um grande fator
pés do viajante. de unidade para o interior do Estado: o sertão. O clima da Bahia a
leste da chapada Diamantina se caracteriza pela alternância de duas
As traições deste novo “oceano” com suas bruscas mudanças de estações: O INVERNO (março a setembro) época, teoricamente, de
tempo, suas tempestades tropicais súbitas? traições conhecidas. Mas chuvas, e o VERÃO (setembro a março) ou estação seca. Visão
quandç o colono decide afastar-se das costas, subir os rios aparente­ simples, dir-se-ia mesmo simplista, mas que permanece fora de nosso
mente hospitaleiros, acolhedores, ir além das colinas que fecham ó propósito atual de melhor precisar. Nos limitaremos por enquanto a
horizonte da magra planície costeira, o que descobre? Todos se descrever sumariamente o mecanismo que explica certos aspectos das
empenharam em descrever esta região como uma sucessão de três oposições climáticas que permitem falar da existência de um clima da
paisagens diftrentes que da própria planície levam para. o sertão costa em oposição a um clima do interior.
passando pelo planalto dos taboleiros. Na verdade há tão pouca
No interior a estação de chuvas é caracterizada por chuvas raras e
como as temperaturas permanecem altas, devido as altitudes, há forte
(9) - Veremos, por exemplo, mais adiante, como o termo de “Barreiras” foi evaporação. A frente polar é o regulador do mecanismo dos climas de
deformado pelos geomorfologos. Do mesmo modo as palavras “chapada” e “mata”
tabuleiro é também um desses termos gerais da linguagem popular da qual os toda esta região: a mediocridade das altitudes facilita, com efeito, a
geomortologos se apropriaram com mais ou menos sucesso. mobilidade das massas de ar vindas do extremo sul. No seu ponto de

10 II
partida essas massas de ar são frias, muito f ias. O jogo climático se Jeste e pelo papel do Oceano como regulador ou perturbador do clima
faz entre esta frente fria e as massas de ar quente das regiões onde correntes marinhas profundas emergem para resfriar a superfí­
equatoriais que vêm a seu encontro. A frente fria s'e compõe cie carregada de umidade, que os ventos se encarregam de empurrar
simultaneamente de massas de ar frio vindas do Atlântico Sul e de para o litoral. Por outro lado, as diferenças de altitude entre a costa e
massas de ar frio vindas do Pacífico através do sul do Contiâente onde a hinterlândia provocam numerosos micro-climas. Linhas de instabili­
os Andes são relativamente baixos e não formam uma barreira dade vêm perturbar o jogo demasiadamente simples dos avanços e
climática importante. Quanto às massas de ar, os ventos (alísios ou recuos da frente polar. O estudo climático detalhado do Recôncavo
outros) vindos do Atlântico Nordeste, estes não atingem o interior da nos fornece um excelente exemplo. De qualquer modo, o inverno nas
Bahia. Com a frente fria unicamente se misturam as massas equato­ costas baianas é muito mais úmido que no interior por duas razões: o
riais oceano cujas águas-se esquentam ou se resfriam menos rapidamente
que o ar regula prinUoalmente as temperaturas no verão e, por outro
Durante o inverno do hemisfério austral, o equador térmico - lado, os alisios de todo tipo, vindos do mar são carregados de umidade
essencialme-nte móvel - sobe em direção do hemisfério Norte. As que depositam em chuvas durante o inverno, quando encontram o
massas de ar quente equatorial continental subsistem apenas na obstáculo das colinas e quando são esfriados pela terra. As diferenças
Amazônia e abandonam o Nordeste brasileiro às correntes vindas do de temperatura influem cada vez mais na medida em que nos
sul. As massas frias “polares” podem subir do Sul para o Norte até as afastamos do equador e que nos dirigimos para o sul. Em geral, chove
regiões tropicais. Os céus do sertão são então abandonados aos mais no inverno na costa sul do Estado da Bahia que na costa
combates das correntes atlânticas polares contra as correntes equato­ sergipana. Também em geral, em nenhuma parte das costas baianas
riais. ou na sua hinterlândia próxima há uma verdadeira “estação” seca. Há
períodos de seca. É fora de nosso propósito estudar agora até onde,
Quando a massa de ar frio da frente polar consegue subir para o como e porque se estendem para o interior as influências oceânicas do
Norte, traz consigo, com a queda da temperatura, as chuvas que lhe Leste atlântico, mas não se deve esquecer que os vales são verdadeiros
são a consequência. Uma vez caídas, as chuvas são acompanhadas de corredores abertos ao Oceano que permitem ao clima mais úmido das
um tempo relativamente frio e estável até que o reaquecimento, costas lutar com mais ou menos sucesso contra a aridez do sertão (10).
devido ao sol ou ao avanço da massa de ar tropical, ganhe de novo. Na
realidade, na medida em que a frente fria avança para o Norte, Relemos, cinquenta anos depois, a pobre descrição que Argollo
diminui de intensidade e esquenta-se: em geral, na nossa região as Ferrão faz dos climas do Estado da Bahia (11). Sistematização
quedas de temperatura não ultrapassam 10 graus. interessante porque ao procurar a oposição entre o clima da Bacia de
São Francisco e o clima atlântico, o autor acaba por ser obrigado de
subdividir o clima atlântico segundo os mesmos critérios pluviométri-
No verão a frente polar recua. O continente reaquecido provoca a
cos utilizados para sua primeira divisão: toda a região cujas águas são
formação de uma massa de ar tropical continental seco e quente.
drenadas pelo São Francisco, “o alto sertão”, não receberia nenhuma
Ausência de chuva e calor reinam no sertão. Todavia, na base da chuva de inverno (junho a setembro), enquanto que na região onde as
massa tropical o reaquecimento do solo pode provocar certas instabili­ águas são drenadas para o Atlântico os ventos sul - nossa frente fria -
dades locais - por conseguinte algumas chuvas - principalmente se trazem chuvas de inverno. As chuvas de verão são simplesmente
este fenômeno é adicionado à influência das diferenças de altitudes.
qualificadas de chuvas de trovoadas e Argollo Ferrão descreve mais
Outras chuvas de verão podem ainda se explicar pelo avanço em
três zonas de vegetação do que três zonas climáticas quando distingue
direção do sul de massas de ar quente equatorial continental da
climas da mata, climas da mata de cipó e climas da caatinga.
Amazônia quente e úmida. Fenômenos relativamente raros, essas
chuvas de verão, mas que permitem algumas vezes à vegetação Esse tipo de afirmações mostra maravilhosamente as incertezas
de rebentar em dois dias onde se encontravam plantas ressecadas pelo
verão.
(10) - Exceção do vale de São Francisco mas válido no Vaza-Barris, devido à
orientação do relevo E.O.
No litoral as lutas entre frente polar e as correntes equatoriais se (11) - FERRÃO, V. A. Argollo. A Bahia agrícola; zonas climáticas. Salvador.
complicam pela entrada na contenda das correntes atlânticas vindas do “Diário Oficial 1823-1923”, 1923, p. 91-98.

12 13
de uma terminologia climática demasiadamente rígida quando se trata Uma “barreira horizontal”? ou escarpada? Com efeito “as formas
de regiões tão diversas. E se os homens de 1923 analisam tão mal os topográficas correspondentes, chamadas TABULEIROS constituem
climas da Bahia, inútil dizer como os baianos dos séculos XVIII e. planícies de nível que quase pouco excedem 100 metros de altitude.
XIX são impotentes quando se trata de domar os azares de uma Esses tabuleiros. . . vêm morrer nas margens das lagoas e geralmente
pluviosidade imprevisível da qual, entretanto, depende sua alimenta­ no litoral em escarpas íngremes. Essas escarpas íngremes constituem
ção. exatamente a expressão fisiográfíca normalmente designada por
barreiras” (13). Escarpamentos vermelhos e brancos dasi costas e rias
Inverno mais ou menos úmido do Recôncavo onde descobrimos descritos por Hartt em 1865 que dão uma paisagem de falésias
com os habitantes de Salvador pelo menos três regiões climáticas, abruptas, baixos planaltos dos tabuleiros nas proximidades do litoral,
inverno mais ou menos seco de todos os sertões onde a orientação dos foram indistintamente chamados Barreiras. Hoje os geólogos^ reser­
relevos desempenha papel fundamental: o historiador de hoje deve vam este termo a certas formações de rochas terciárias do Recôncavo
desconfiar de expressões tais como seca excepcional ou chuvas haiano e procuram colocar no nada não científico todas as falsas
inesperadas. O passado sempre se enfeita de cores claras: para os utilizações desta palavra que descreve magnificamente certas escarpas
nossos antepassados a qualidade dc tempo que faz está nas colheitas da paisagem dessa região. A cidade de São Salvador plantada sobre
mais ou menos boas, na pesca mais ou menos fácil e abundante. E o uma escarpa que se estira ao longo de uma bacia aberta - Salvador
vocabulário que se refere ao relevo é tão incerto como o que se refere que, apesar de tudo aquilo que freqiientemente tem sido dito, não se
ao tempo. parece com a Atenas da Acróptde (14) mas que se acha edificada num
alto tectônico, com o aspecto das barreiras mas que vem morrer
A propósito de relevo: barreiras, tabuleiros, chapadas suavemente nas praias.

Em princípios do século XVI Pero Vaz Caminha na sua descrição Salvador, apesar de suas encostas mais ou menos íngremes e sua
das primeiras terras brasileiras designa como BARREIRAS uma fachada altiva, possui toda uma hinterlândia de tabuleiros.
feição geográfica da costa brasileira, pois barreira é um vocábulo que O terciário superior legou seus TABULEIROS, baixos planaltos,
significa escarpa, terreno escarpado ou barranca (12). Desde então o de altitude em geral pouco elevada, resultantes de uma inversão do
termo “formação Barreiras” ou mesmo “Série Barreiras” foi abusiva­ relevo. Estes tabuleiros, apresentam na sua frente um aspecto típico
mente utilizado no Brasil para designar todas as “rochas” não de cuesta com formas abruptas moldadas por ciclo posterior que lhes
consolidadas que recobrem o cristalino ou que parecem ter sido cavou os vales. Estes foram conservados porque eram formados de
depositados de modo discordante sobre rochas de idade cretácea”. sedimentos margosos ou arenitos, rebeldes a qualquer alteração. Uma
Chamou-se “barreiras” a qualquer sedimento neógeno ou plioceno, rápida evaporação e uma péssima drenagem permitiu que em partes
pouco consolidado, de origem continental, fluvial ou lacustre, deposi­ fossem recobertos por uma superfície ferruginosa estéril a CANGA,
tado de maneira mais ou menos horizontal. verdadeiro cimento cor de vinho tinto, que, somente se torna
permeável quando o nível laterítico não é muito sólido nem contínuo.
(12) - Não sc deve confundir as Barreiras dos geólogos e dos geógrafos com as
Barreiras que são depressões cavadas no alto das chapadas argilosas para a conservação Os planaltos dos tabuleiros têm entre 100 e 600 m de altitude.
das águas fluviais. São extremamente variados na sua modelagem e os acompanharemos
Uma tentativa para definir com precisão ós termos que a literatura antiga chama no seu rumo Sul-Norte, ao longo da fossa (geológica) que vai do
de “séries das barreiras, série Barreiras, formação das Barreiras ou formação Barreiras”
foi empreendida em 1958 por Sylvio de Queirós Mattoso e Forbes S. Robertson num Recôncavo ao vale inferior do São Francisco.
artigo publicado no Boletim Técnico da Petrobrás (Ano II, n° 3:37-43), intitulado “Uso
geológico do termo “.B a r r e ir a s Os autores mostram neste artigo com clareza as “Perto da Baia de Todos os Santos predominam as fácies
confusões introduzidas pelo uso. Lembramos que a palavra “série” possui um
significado geológico preciso, no sentido que este sempre representa um limite
temporal. E então impossível falar de “série Barreiras” pois as rochas em questão são (13) - MATTOSO, Sylvio deQueirós, e ROBERTSON, Forbes S. Uso geológico...
na maiona das vezes de idade desconhecida. Quanto à “formação Barreiras na bacia op. cit., p. 37-43.
sedimentar do Recôncavo, Bahia, fica dependendo da definição, seção tipo e localidade (14) - AGOSTINHO, Pedro. Embarcações do Recôncavo. Um estudo de Origens.
tipo”. As formações barreiras, são, em geral, argilo-arenosas. Salvador, Publicações do Museu do Recôncavo, Wanderley Pinho, 1973, 46 p. ilustr.

14 15
margosas. Essas fácies continuam para o Norte até Catu e para o dessas depressões que, na cristã, tem a mesma origem que o
N.W. até meio caminho entre Mata da Aliança e Salvador. O relevo planalto-tabuleiro do nível superior. A cerca de 100 m mais abaixo os
margoso é ondulado e apresenta numerosos outeiros às vezes vales quaternários desenham sua rede de encostas íngremes: numero­
sulcados. Esses outeiros não ultrapassam 100 m de altura e são sas, facilitam a circulação mas suas encostas abruptas cortam o
dissimétricos, sendo sua enconta mais comprida pam o Norte e mais planalto e são obstáculos que retardam a marcha tão fácil sobre o
curta para o Sul” (15). De fato trata-se de material fraco que permitiu planalto. Estradas de ferro e caminhos serão obrigados de adaptar-se
uma dissecação intensa com colinas de encostas íngremes. aos vales abruptos e aos planaltos variados.
Mas a partir do Sul de Catu aparecem os arenitos: a paisagem se Finalmente, ao extremo Norte da"fossa os quartzitos começam a
modifica. O planalto toma-se mais uniforme. O encontro entre esses alternar com os arenitos e as margas (19). Os planaltos apresentam
dois tipos de relevo, o relevo margoso e o relevo arenítico, dá à então cornizas íngremes que ao contato de fácies arenítico esboçam
paisagem o aspecto de “imprecisa cuesta com uma rede de outeiros uma nova cuesta na direção N-.S. É a paisagem do vale Vasa Barris e
testemunhos” (16).
da região situada a leste de Cipó.
Esta cuesta quase paralela à costa continua a N. E. até os vales
inferiores dos rios Itapicuru e Real. De forma que, somente atrás da Assim, numa região de climas bastante variados, pois pouco
cuesta, acima da costa de 100 m de altitude, com,a predominância das afastada do oceano, o planalto dos Tabuleiros (20) é uma região
areias e dos arenitos, afirmam-se os baixos planaltos marcadamente extremamente 'diversa também do ponto de vista morfológico como
horizontais dos verdadeiros tabuleiros”. De modo geral, esses tabulei­ do ponto de vista pedológico. Quem quiser cultivar em qualquer parte
ros parecem corresponder a zonas onde uma espessa camada de o mesmo produto encontrará grandes dificuldades. O estudo mais
arenitos macios vem coroar a série cretácea. Ao N do Itapicuru estes minucioso do Recôncavo interior mostra todos os problemas que essa
começam quando a corniza de arenitos atinge uns 30 m de espessura, diversidade colocou e hoje ainda coloca para a exploração agrícola.
enquanto que os outeiros-testemunha que os precedem têm uma
corniza de somente alguns metros (17). Os tabuleiros evocam assim os planaltos que separam o litoral da
dorsal. Vimos que estes tabuleiros não formam relevos homogéneos,
Estes planaltos são às vezes muito dissecados, como acontece ao que são tão variados quanto a morfologia da fossa cretácea que os
N de Alagoinhas. Os vales são então muito largos e numerosos. Mas gerou. Quanto à dorsal, ela nos oferece ainda paisagens variadas:
com maior frequência suas vastas superfícies são planas, seus vales trata-se das CHAPADAS tão numerosas nos mapas da província que
estreitos e raros nas encostas íngremes. São thamados Tabuleiros no melhor a caracterizam. Essas chapadas, alturas e peneplanos sedimenta­
seu nível superior, aquele que atinge 500 m na SERRA (18) de res, interrompem a monotonia de imensas áreas cristalinas do embasa­
Massaranduba e 600 m na Serra dos Arraias ao norte de Ribeira mento. São, como os tabuleiros, o resultado da inversão do relevo
Pombal. Ali a topografia é realmente plana enquanto que ao nível mas, em geral, de altitude bem mais elevada: em média 900 a 1.000
inferior, em torno de 350 m de altitude, largas depressões correspon­ m. Seus sedimentos provêm da dorsal cujo material cristalino
dem à superfície de erosão menos acabadas. A cidade de Ribeira do àdmite-se tenha sido facilmente evacuado quando dos períodos
Pombal, por exemplo, se desenvolveu a 350 m de altitude numa úmidos do terciário. A chapada das Mangabeiras forma a noroeste
uma espécie de fronteira natural entre os Estados da Bahia e do Piauí.
A Serra Geral ou G rande chapadão ocidental da Bahia desenha a
(15) - SILVA, Teresa Cardoso da. Problemas geomorfológicos... op. cit.. p. 28. fronteira natural com o Estado de Goiás. Para quem percorre a parte
(16) - Idem, p. 28: os outeiros -testemunhos, situados acima de São Sebastião são oriental da dorsal que também é a parte oriental do Estado da Bahia,
otimos exemplos.
(17) - idem... p. 28.
(18) - A palavra “serra” não possui definição morfológica ou pseudo-cientifica.
Foi uma palavra que resistiu às sistematizações contemporâneas. Chama-se “serra" ou (19) - SILVA, Teresa Cardoso da, Problèmes géomorphologiques... op. citp. 30.
monte" qualquer elevação bastante comprida e com cursos de formas relativamente (20) - Os tabuleiros são formados por materiais porosos e permeáveis, com baixa
jovens. Por exemplo, numerosas chapadas e numerosas cuestas são chamadas vulear- capacidade de alteração de água e de sais solúveis. Em seus vales, a umidade e o
m ente “serras”. 6 acúmulo de sais minerais propiciam uma fertilidade melhor.

16 17
a chapada Diamantina forma um importante conjunto de terras altas apesar de que a navegação fluvial tenha desempenhado seu papel na
que fecham o horizonte (21). A maior parte das alterações do sistema penetração interior do nordeste, sua contribuição foi relativamente
morfológico de origem, se explicam pela pobreza de águas subterrâ­ fraca porque todos os rios, exceto o São Francisco, assim mesmo
neas. O litoral é rico em águas subterrâneas. O interior só oferece interrompido por numerosas quedas d’água, não oferecem boas
possibilidades de infiltração pouco profunda e uma evaporação direta condições de navegabilidade. Trata-se de fato, de rios irregulares,
importante. A dorsal cristalina representa 90% do NE baiano: os cujos leitos são pouco profundos. Mesmo um rio importante como,
CHAPADÕES são testemunhos de sua antiga cobertura sedimentar. por exemplo, o Açu só pode ser percorrido por barcos durante a
Frequentemente terminam por escarpamentos compostos desses res­ estação úmida e até somente 20 a 30 km de sua embocadura.
tos sedimentares que dão o embasamento cristalino da dorsal (22).
São de altitude bastante elevada. Afastados do mar, foram pouco
atingidos pela erosão regressiva. Sua originalidade deve-se aos A propósito dos sertões e do agreste
sedimentos que os formaram e cujos elementos foram fornecidos pela
dorsal. A resistência das rochas silicosas, em particular dos quartizitos
que se alteram dificilmente, eliminou a maior parte dos processos No Nordeste brasileiro quem fala em interior das terras fala em
químicos que de costume caracterizam os solos dos países tropicais. sertão e pensa em termos de uma imensidão seca onde abundam-os
Aqui “os solos delgados deixam transparecer no modelo o esqueleto xique-xique, os cardeiros e as bromeliáceas. A palavra SERTÃO é
estrutural” (23). uma palavra tão pouco precisa que designa nos dicionários qualquer
região “mais afastada dos terrenos cultos”, qualquer “mato ou floresta
longe da costa” (24). Porém, sua etimologia derivaria da palavra
Para os geógrafos, as chapadas são fôrmas originais dos relevos, “deserto”. A vegetação do sertão pode ser de mata ou de caatinga,
mas, finalmente, do ponto de vista pedológico não trazem absoluta­ mas alguns autores opõem sertão e caatinga, chamando sertão as
mente elementos novos aos solos do vasto sertão interior. Para o vastas regiões demasiadamente secas para que ali possam brotar as
criador de gado ou o agricultor, essas chapadas são simplesmente “mimosáceas”, as “cesalpináceas”, as “euforbiáceas” ou “herbáceas”
planaltos elevados na mata e no sertão. O que importa para eles é que necessitam de mais água do que as bromeliáceas. Prazer das
saber o que é capaz de brotar e vingar e como circular sobre estas classificações das quais a linguagem e a sabedoria popular zombarão
terras. Mais uma vez o vocabulário, que se compraz em qualificar com por muito tempo.
uma só palavra todos esses territórios é cheio de ensinamentos: o
sertão começa ali onde terminam as terras de fácil acesso e fáceis de Tão imprecisa como a palavra sertão é também a palavra mata.
serem cultivadas. O sertão é variado mas acha-se longe e é sobretudo Mas, como ela, representa na linguagem popular certa qualidade de
seco: mais ou menos longe? Começa a dois dias de marcha do litoral? paisagem. Os tempos geológicos, os climas, o homem depredador
A menos de 600 mm de chuva por ano? Na verdade é impossível dizer contribuíram para a destruição quase total da “MATA VIRGEM” ou
onde o sertão começa a nao ser pelo estudo da linguagem popular. floresta virgem natural primitiva do Nordeste brasileiro que se
Mas foi sempre a pé ou a cavalo que do mar se atingiu o sertão. Pois, estendia sobre as terras aluviais relativamente recentes, trazidas pelos
rios ç pelas chuvas. Essa floresta só subsiste no seu estado primitivo na
(21) - A chapada Diamantina é um composto de terras altas, estudadas por Jean Amazônia e atualmente mesmo as florestas do sul do Estado da Bahia
Tricart e Teresa Cardoso da Silva (op. cit., p. 147-167), principalmente na sua parte são secundárias como também as das regiões não cultivadas do
oriental. Os escarpamentos enérgicos da chapada Diamantina são esculpidos em Nordeste. A “MATA ÚMIDA”, que necessita de água para
granitos, xistos, quartzitos e gnãjisses e elevam-se até uma altura de 900 a 1800
m. Esta chapada tem uma direção Sul-Norte. Região tímida e bem drenada, foi desde o
desenvolver-se, só é encontrada no vale do S. Francisco e em algumas
século XVIII colonizada por agricultores cultivadores de mandioca para o abastecimen­ áreas litorâneas do Estado. Na época colonial era a terra de eleição do
to das boiadas. Pau-Brasil. Rapidamente, porém, tornou-se a zona da agricultura de
(22) - Os escarpamentos são freqiientemente chamados de “serra” (cf. nota 17) subsistência ou de cana-de^çúcar, tornou-se o agreste (25) que se
“Os sopés das chapadas são também procurados pelas populações nordestinas por
serem zonas de clima mais úmido favorecidas pelas chuvas, de relevo e onde a água
pode ser encontrada com mais facilidade”. Atlas do Brasil, op. cit., p. 216. (24) - CALDAS AULETE, DicionárioContemporâneodaLingua Portuguesa, 5 voL,
(23) - TRICART, Jean et SILVA, Teresa Cardoso da. Estudos de geomorfologia... 2- ed. brasileira, Ed. Delta, Rio de Janeiro, 1968.
op. cit. p. 147. (25) - Cf. p. 2[2mais adiante.

18 19
degrada em caatinga (26) a partir do momento em que se toma curticantes” (31). Essas folhas são pequenas, orientadas de modo a
demasiadamente seco para ser “MATA SECA”. Isto mostra quão diminuir a incidência dos raios de sol, protegidas por cera. São tão
pouco precisos são os limites entre a caatinga e a mata úmida, quão espinhosas que a própria folha é com frequência um grande espinho.
pouco precisa é fínalmente, a palavra mata a qual designa qualquer No solo desprovido de vegetação brotam scrubs de folhas caducas,
extensão de florestas, de capoeira, de urze não cultivada (27). Na agrupadas de maneira mais ou menos densa; as favelas. . . cuja
mata chamar-se-á “CERRADO” certas zonas, onde florestas ou epiderme “ ao resfriar-se, a noite muito abaixo da temperatura do ar,
bosques são compostos de árvores retorcidas entre as quais brotam as provoca, a despeito da secura deste, breves precipitações de orvalho;
gramináceas, alimentação do gado (28). Trata-se de verdadeiras por outro lado, a mão que a toca, toca uma chapa incandescente de
extensões da paisagem do sertão: “CERRADOS FECHADOS” ardência inaturável. O umbuzeiro. . . árvore sagrada do sertão. Sócia
quando as árvores são próximas uma da outra, “CERRADOS fiel das rápidas horas felizes e longos dias amargos dos vaqueiros. . .
RALOS” quando as árvores são distantes uma da outra para permitir desafiando as secas duradouras, sustentando-se nas quadras miserá­
uma circulação fácil dos animais. A paisagem do cerrado oferece veis mercê da energia vital que economiza nas estações benéficas, das
geralmente duas camadas de vegetação: as ervas e, acima delas os reservas guardadas em grande cópia nas raízes. E reparte-as com o
arbustos. As “barbas de bode” são boa alimentação para o gado. homem. . . Alimenta-o a umbuzada e mitiga-lhe a sede. Abre-lhe o
Quanto às folhas duras dos arbustos nodosos, estas são relativamente seio acariciador e amigo, onde os ramos recurvos e entrelaçados
grandes e ásperas para conservar a umidade o mais tempo possível. parecem de propósito feitos para a armação das redes bamboantes. ..
Em geral, os solos permeáveis facilitam a absorção das águas que se O gado, mesmo nos dias de abastança, cobiça o sumo acidulado das
conservam ao contato da camada inferior impermeável. Reserva suas folhas. . . As juremas prediletas dos caboclos - o seu hachich
preciosa para os meses da seca. Se essa camada impermeável não capitoso fornecendo-lhes grátis inestimável beberagem que os revigo­
existir, a mata se transforma em caatinga nos lugares onde as quedas ra depois das caminhadas longas” (32).
de chuva são insuficientes.
Inútil tentar a enumeração das mil variedades de mandacaru, de
cabeças de frade, de cactus, de euphorbiáceas (33) da caatinga. Os
Chamar-se-ão então CAATINGA ou CATINGA todas as regiões botânicos, ávidos de classificação, distinguem a mata branca densa e
áridas cobertas por arbustos e por árvores de menos de 7 metros de espinhosa nas zonas atlânticas, o scrub lenhoso mais aberto com
altura. Na caatinga a insuficiência de água não permite ao capim feições de estepe com arbustos dispersos e entre essas duas variedades
brotar, abrigado pelas árvores nodosas. Na linguagem indígena o “scrub em moitas”, caatinga de plantas baixas formando moitas
caatinga significa floresta aberta (29) mas esta linguagem popular esparsas, separadas pelo solo nu. Nos solos pedrentos onde dominam
esconde várias formações diferentes (30). Euclides da Cunha faz a facheiros, macambiras e xique-xique encontra-se o scrub suculento. O
distinção quando diz, com muita propriedade: “Ao passo que a botânico Nelson Moreira descreve perfeitamente essa vegetação de
caatinga o afoga; abrevia-lhe o olhar; agride-o e estonteia-o, enlaça-o caatinga.
na trama espinescente e não o atrai; repulsa-o com as folhas
“Durante o período de seca, a caducidade das folhas de maior
(26) - Cf. p. 20 mais adiante. porte dos elementos desta região, os galhos ressecados sinuosos alguns
(27) - O Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (9* edição, 1957) diz caídos no chão, o solo totalmente descoberto de vegetação emprestam
“terreno onde crescem árvores silvestres; bosque; selva”. à paisagem um ar desértico e triste e uma coloração monocromática-
(28) - O “cerrado” é descrito no “Atlas do Brasil”, publicado pelo Conselho acinzentada. Este aspecto desolador que perdura geralmente por oito
Nacional de Geografia em 1960, onde o capítulo dedicado à vegetação do Nordeste é
de autoria de Nélson Moreira da Silva (pp. 202-204). As principais espécies
encontradas são: o “pau de colher de vaqueiro”, a “mangabeira”, o “cajuí”, o (31) - CUNHA, Euclides da. Os Sertões, Rio de Janeiro, Francisco Alves Editora,
“pau-terra” e o “pau-santo”. 1954, p. 7-8.
(29) - De “caa” - mata e “Tinga” - clara, aberta. Cf. Nélson Moreira da Silva, (32) - Idetn p. 38:42.
Atlas do Brasil... op. cit., p. 198. (33) - SILVA, Nélson Moreira da, Atlas do Brasil... op. cit. p. 200.
(30) .- Luetzelburg descreveu duas classes e dois grupos de caatinga, levando em O autor enumera: mandacarú, faixeiro, xique-xique, guípà,. pereiro, faveleira,
conta as qualidades do solo,o sistema fluvial, a topografia e a atividade dos habitantes. jurema, marmeleiro, umburana, umbu, macambira, caroá, baraúna, aroeira, pinhão
Atlas do Brasil, op. cit., p. 198. bravo, juazeiro, icó, canafístula, griseb e pau-festiro.

20 21
meses, podendo, como já tem acontecido, prolongar-se por mais de conquistado pela penetração dos cultivadores, dos criadores e dos
um ano, muda completamente, num espaço de três dias em média, missionários. No agreste os estabelecimentos sedentários foram logo
quando das primeiras chuvas. Então, este imenso deserto, apareiite- numerosos enquanto que o vasto sertão permanecia a área privilegia­
mente inanimado, modifica sua aparência oferecendo maravilhoso da das boiadas itinerantes e dos exploradores curiosos das entradas e
colorido: árvores e arbustos cobrem-se de folhas verdes, nas mais das bandeiras.
variadas tonalidades, o solo nu quase que desaparece sob as
gramíneas rasteiras que se insinuam entre os elementos de porte mais Tocadores de BOIADAS e capatazes de gado foram cedo
elevado; trepadeiras e epífitas desabrocham em flores sobre os rechaçados do agreste para o sertão onde “Estiram-se então nas
arbustos florescentes1” (34). planuras vastas. Galgando-as pelos taludes de que as soerguem
dando-lhes a aparência exata de tabuleiros suspensos, topam-se, a
Retenhamos, finalmente, com a imprecisão dos vocábulos que centenas de metrqs, extensas áreas ampliando-se, boleadas pelos
falam de caatinga rala, de mata fechada (35) de cerrado ralo ou quadrantes numa prolongação indefinida de mares. É a paisagem
fechado (36), de caatinga densa ou de mata densa (37), que os sertões formosíssima dos campos gerais, expandida em chapadões ondulantes
têm solos mal protegidos contra as chuvas violentas e as variações - grandes tablados onde campeia a sociedade rude dos vaqueiros (39).
térmicas consideráveis entre o dia e a noite. A vegetação adaptou-se O lirismo de Euclides da Cunha descrevendo a austera “zona ingrata”
aos rigores climáticos mas as cores rosa, vermelho, avermelhado e (40) dos sertões, das chapadas e dos tabuleiros e sua admiração
róseo dos sertões são o reflexo das duras lixiviações de solos perante a força com a qual os pastores sonharam domar a caatinga
superficiais. explica-se e justifica-se. É o homem do sertão conduzindo seu
rebanho, sua boiada itinerante na busca de uma alimentação
Somente quando se aproxima suficientemente do oceano e de mesquinhamente distribuída que abriu as estradas do sertão sem
suas chuvas benfazejas é que a mata muda de aspecto. limites, tão sem limites que os caminhos palmilhados pelas manadas
sãq numerosos ao infinito e traçam, no sertão, uma rede de ligações e
O AGRESTE é essencialmente uma região de transição: muito de contatos que, durante muito tempo, foram as únicas vias de
reduzida na hinterlândia de Salvador, mais larga para o Norte para o comunicação. Conhecem-se na França e na Suíça as drailles, esses
São Francisco e Sergipe. O agreste corresponde a uma zona menos caminhos abertos pela transumância periódica dos rebanhos de
árida de que o interior, menos úmida que a costa. Sua vegetação ovelhas que descem das alpagens de verão com a chegada dos
natural se compõe de árvores ou de arbustos densos e verdes. Para o primeiros frios e sobem de novo para os capins verdejantes logo após
sul, em direção de Jequié, se transforma em verdadeira savana onde o derreter da neve: drailles das ovelhas das Cevennes ou dos Alpes do
em certos lugares os termitas desempenham um papel considerável sul, atalhos percorridos por boiadas com vacas bem gordas, caminhos
(38). Mas seus recursos são tão variados quanto a variedade dos solos bem traçados e mal amados pelos camponeses sedentários. Os
dos quais descrevemos a complexidade ao descrever as colinas dos pisoteados, as plantas arrancadas pelos animais gulosos tornam de
tabuleiros. A unidade do agreste reside na sua distância do mar, nas fato inutilizáveis para o cultivo as áreas percorridas pelos rebanhos: o
suas precipitações anuais entre 700 a 1000 mm de chuvas aproxima- pouco de adubo natural recuperado, nunca compensa o desastre
damente. Após as regiões litorâneas, o agreste foi o primeiro causado pela passagem dos animais devastadores, principalmente em
climas secos onde os sulcos e a erosão apropriam-se rapidamente
(34) - Idem, p. 200. desses vazios, abertos na vegetação natural. Mas no sertão os
(35) - TRICART, Jean e SILVA, Teresa Cardoso da. Estudos geomorfológicos... problemas da criação se colocaram de maneira bem diferente. Os
op. cit., p. 64 e 66. imensos espaços do sertão são o reino das boiadas: são elas que abrem
(36) - Cf. Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa e A lfa do Brasil, op. os caminhos para as novas pastagens. Se for muito espinhenta, a
cit. caatinga é atravessada por homens cobertos de vestes em couro e o
(37) - TRICART, Jean e SILVA, Teresa Cardoso da, Estudos geomorfológicos, op.
cit., p. 65. vaqueiro sabe se dirigir olhando para as constelações astrais ou pela
(38) —TRICART, e CARDOSO DA SILVA (op. cit. p. 75) citam na região situada a
oeste de Ibiquera tiermiteiras de 3 m de altura e 4 m de diâmetro separadafs uma (39) - CUNHA, Euclides da. Os Sertões... op. cit., p. 7-8.
da outra por distâncias de 20 a 25 metros. Em clima seco as termiteiras fossilizam o solo
(40) - Idem p. 9.
superficial, alimentado por materiais finos, vindos das profundezas.

22 23
altura do sol. Os rios não são mais obstáculos ao deslocamento dos o CS o co o co rH cs
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VIAÇÃO FÉRREA DA BAHIA - Extensão em tráfego


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de transporte privilegiado para concretizar esse desenvolvimento. Eis r**
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(42) -FERREIRA, Manoel Jesuino. A Província da Bahia Apontamentos. Rio de CA
O Hl íu u. ti. u. U a u« ti. (í, H. 4> o
janeiro, Typographia Naval, 1875, p. 77-82. o w w w cu tí w M w w tí o Q
(42a) - ARAÚJO PINHO, Joaquim Walderley. A viação da Bahia. In Diário Oficial.
1823-1923. Bahia, Imprensa Oficial, 1923, p. 132-143.
25
24
I

agrícolas para a via férrea e favorecer o aumento dos créditos desta, o


Não há dúvida que o gado pode vir de longe, pois, por si próprio
governo tem se preocupado em abrir estradas que vão até ela” (43).
Não bastava ter as estradas de ferro, era necessário e primordial se locomove. Mas, mais do que qualquer outra cidade, Salvador
torná-las accessíveis aos homens e às mercadorias. acha-se ligada à sua hinterlândia imediata da qual ela é o mercado e o
ponto de ligação com o mundo externo, e sobretudo a sua respiração,
Mas o Recôncavo e o Agreste permanecem sempre melhor o seu eco sensível. Não há uma família da cidade que não esteja
servidos que o sertão. Apesar de ter sido previsto desde 1855 um ligada a uma família do campo, não há uma trovoada na baía que não
plano oficial de agrupamento das estradas em artérias principais de encha as águas dos rios, não há uma má colheita ali que não trague a
comunicações da Capital com os pontos extremos da Província, os fome. Ontem como hoje, Salvador não é somente o porto que se alastra
atalhos das mulas e das boiadas vão permanecer por muito tempo ao longo da cidade baixa, é também uma cidade onde. os limites
ainda como estradas pioneiras como os únicos caminhos de ligação administrativos não contam, onde as paróquias urbanas nunca se
entre o vasto interior parcialmente povoado e Salvador, a capital. A esquecem de suas irmãs dos campos, onde a densidade humana
procura na década de 1840 e principalmente após 1881, de diamantes permanace importante até dezenas de quilómetros no interior das terras.
e de ouro, que levou os exploradores rumo a chapada Diamantina ou Na verdade é impossível compreender Bahia, a cidade, sem tentar
rumo ao vale do Rio Verde, ou ainda rumo à Serra de Jacobina, foi de compreender o Seu Recôncavo. Ora o Reconcavo é essencialmente uma
muito curta duração para permitir a consolidação de uma economia região agrícola. Nas suas terras são plantadas as canas-de-açúcar, o
de subsistência no sertão. A falta de transportes fáceis impediu, por tabaco e os gêneros de subsistência tais como a mandioca, o feijão, o
muito tempo qualquer agricultura comercial. Até viu-se perderem-se milho, sem falar nas árvores frutíferas, cocos e laranjeiras, limoeiros e
grandes colheitas de mandioca (44) e recentes colonizadores do sertão mangueiras, e dos mil e um jardins de hortaliças cujos produtos
retomar o caminho do êxodo para voltar a viver mesquinhamente procuram abastecer uma cidade gulosa e sempre faminta. Mas em que
perto das costas litorâneas, onde os caminhos d'água asseguram pelo ambiente ecológico são produzidas essas riquezas?
menos um mínimo de abastecimento e onde as frequentes chuvas não Logo um problema se tom a evidente: será que estudar os solos
põem a agricultura na dependência material das secas. do século XX é também estudar os solos dos séculos XVIII e XIX? Em
se tratando de solos que têm sido explorados desde há séculos, estes
O sertão das boiadas é bem o lugar dessas contradições descritas não já estariam transformados e desgastados? O agricultor brasileiro,
por Euclides da Cunha: “Barbaramente estéreis; maravilhosamente colono de outrora, o cultivador de hoje nunca teve em relação à sua
exuberantes... é um vai fértil, é um pomar vastíssimo sem dono” (45). terra uma mentalidade de usufruidor prudente. Com efeito, este
nunca foi o “lavrador” francês de La Fontaine. Tudo se passa como
Capitulo II - O Recôncavo se, apesar de seu apego ao solo de sua nova pátria, o espírito de
aventura dos primeiros colonizadores vindos para “explorar o novo
A cidade nos campos: interdependência mundo, nunca se tivesse transformado, como se o sentido de
propriedade tivesse se dissociado da preocupação de conservar, de
manter e de cuidar de sua terra. Desejo e necessidade de uma
Como já dissemos, a cidade do Salvador não pode ser de mçdo exploração imediata que vai até o uso e o abuso das riquezas
algum isolada nem de sua baía da qual é a guardiã, nem de sua ofertadas: certamente inconsciência, freqúentemente urgência, mas
hinterlândia. o Recôncavo, seu celeiro de açúcar e de tabaco, de também confiança perante a imensidão das terras oferecidas. Assim as
mandioca, de coco, de bananas e de laranjas, de peixes e camarões. dádivas da natureza foram desperdiçadas. Deve-se então falar de
“exploração mineradora” dos solos.
(43) -Estradas:Alagoinhas até o Engenho Europa em Santo Amaro: estrada entre
Alagoinhas e a vila de Inhambupe; entre Alagoinhas e Ouriçangoinhas: entre Serrinha Os solos do Recôncavo foram - e ainda o são freqúentemente -
e Ouriçangoinhas etc. FALA do Presidente da Província Joaquim da Silva Gomes minas lavradas pelo açúcar, tabaco, mandioca ou batata doce. A mina
3/11/1864. explorada, o solo, torna-se praticamente inutilizável, tendo sido bom
(44) —SANTOS. Milton. Zonas deprimidas, zonas pioneiras. In "Revista Brasileira somente para uma mata pobre ou para magras colheitas. Mesmo em
dos Municípios," IBGE (Rio) 53/54: 19-24, 1961. janeiro-julho.
(45) - CUNHA. Euclides da. Os Senões... op. cit., p. 46. 1976, o agricultor do Recôncavo recebe mal os que dão conselhos ou
os que vendem fertilizantes: diante da transformação de um solo
26
27
empobrecido por culturas incosideradas, resiste ou prefere abandonar alguns aspectos da paisagem rural do Recôncavo de há mais de um
a lavoura. Daí as dificuldades encontradas pelo historiador, obrigado século: a repartição da propriedade, a repartição das culturas (50). Os
a imaginar para a Bahia um ambiente geográfico, que não é mais o de pedólogos de hoje vão nos explicar as riquezas e as fragilidades do
hoje, no momento em que se trata de solos e de suas possibilidades Recôncavo e de seu “massapé” nos azares de um clima tropical que
agrícolas. Ora quem pensa na Bahia dos séculos XVIII e XIX, pensa conhece mil imprevistos. Talvez nos ajudem a compreender como
imediatamente na Bahia capital do açúcar, na opulenta cidade dos uma cidade como Salvador, com uma hinterlândia agrícola^tão
senhores de engenho e de seus escravos, na cidade dos ricos próxima e tão rica, pode ser tão sensível aos “choques económicos”, às
mercadores. Le Lannou qualifica os plantadores de cana da costa variações das conjunturas climáticas ou políticas.
oriental de sedentários empanturrados (46). Ele viu muito bem que a
usura dos solos nunca foi compensada (47). Mas uma afirmação dessa Estudamos, primeiro, portanto, esse dado constante da geografia
natureza coloca um duplo problema: porque essa mentalidade de física do Recôncavo: o solo. Depois, através das variações de seus
“proprietário de mina” no agricultor brasileiro? e sobretudo, como e climas e da utilização de suas terras, as evoluções que as nossas fontes
porque esses solos tão ricos foram empobrecidos? Não basta constatar, permitem captar na repartição da propriedade e das culturas.
é preciso também compreender: porque esse “massapé” essa rica terra
do Recôncavo que gruda à sola do pé de qualquer baiano, que é seu
maior orgulho e sua fortuna, porque esse massapé pesado e opulento O Recôncavo: alguns aspectos geográficos de uma micro-região
se revelou terra de armadilhas, terra mal amada?
A hinterlândia de Salvador, o “Recôncavo” é uma região
Metodologia essencialmente costeira, que tem a forma de um retângulo com o lado
maior na direção NE-SO que recebe bem os muitos ventos que a
Temos, porém, a possibilidade de comparar ontem e hoje. atingem.
Ontem, é um recenseamento de terras ordenado pelo governo de 1850
a fim de que fossem arrolados os títulos de propriedades de terras no Situada entre os meridianos 379 e o 39g a oeste de Greenwich,
Brasil (48). Hoje, é um estudo que relaciona a qualidade dos solos, cavalga os 12ç e 13g paralelos sul. Seus quase 10 000 km de terras
organizado péla administração de 1970 em vista de um projeto de emersas são limitadas a leste pelo Atlântico, ao sul pelos Municípios
desenvolvimento agrícola do Recôncavo (49). de São Miguel das Matas, Lago e Valença, a oeste pelos de Santo
Estevão, Antonio Cardoso e Castro Alves, em fim para o norte seus
Eis o caminho que seguimos: num primeiro tempo, descreveremos limites são comuns com Feira de Santana, Coração de Maria, Pedrão,
esse Recôncavo de mais de 700.000 hectares de terras abertas sobre a Alagoinhas e Entre Rios.
imensa baía de Todos os Santos: já dissemos e repetimos que é
impossível saber onde começa o Recôncavo, onde acaba a cidade. Daí No conjunto, trata-se de terras baixas, excetuando-se somente a
a necessidade de descrever a hinterlândia. Depois de que, baseados região de Cruz das Almas, largamente abertas sobre o mar. Terras que
num exemplo concreto, que é o estudo mais aprofundado das terras
de uma ^paróquia exemplar no século XIX, tentaremos salientar
(50) - IGUAPE, Cf. A.P.E.B. Secção Histórica Presidência da Província, série viação
1858-1865, vol. nç 4.712. Este volume foi escolhido entre 30 outros porque tratava de
(46) - LE LANNOU, Maurice. Le Brésil. Paris, A Colin, 1955 p. 44. uma freguesia bastante característica e porque o vigário, encarregado deste trabalho,
(47) - Idem p. 47. foi particularmente consciencioso. Na realidade esse recenseamento geral das terras
(48) - MATTOSO, Katia M. de Queirós e GARCEZ, Angelina Nobre Rolim. Fontes brasileiras encontrou grandes dificuldades: “Only the vaguest of descriptions were
para o estudo da propriedade rural: o Recôncavo baiano 1684-1889. Anais do VIII offered to the parish clerks unles there had been at some earlier date a judical survey
l'123*^976NaC'° nal de Professores Universitários de História,” São Paulo (3): 1121- already registered". (Cf. Warren Dean, Landpolicy on nineteenth century Brazil. The
Hispanic American Historical Review, Duke University Press; 606-625, november
(49) - Estudos básicos para o projeto agro-pecuário do Recôncavo. Salvador, Secretaria 1971).
de Planejamento, Ciência e Tecnologia, (SEPLANTEC) e Conselho de Desenvolvi­ No recenseamento de 1855, a freguesia de Santiago do Iguape possui 6 366 habitantes
mento do Recôncavo (CONDER) 1975, 7 volumes. Especialmente o tomo II do 1» dos quais cerca de 10% sabem ler. Há ainda 2 035 escravos dos quais 501 nascidos na
volume: Recursos Naturais, vol I. África, e 1152 homens e 883 mulheres.

28 29
I FVAMTAMFMTD QIQ rFM Á Tim MATI IRAI
são também ricas em águas doces. Em grande parte essa hinterlândia Os próprios rios são submissos às marés: o majetoso Paraguassu
é composta de uma fossa, de um rio e da maior baía do litoral que as frágeis embarcações podem percorrer até a cidade de
brasileiro com seus quase 750 km2 de águas vivas salinas, e seus;i;90 km Cachoeira, não é bastante profundo para navios de alto mar. Os rios
de costas: uma baía articulada, aberta sobre o oceano, Açu e Subaé têm águas mais rasas (51) e já ao sul, o Jaguaripe não é
parecendo barrada apenas pela Ilha de Itaparica, longa mais um rio de baía como também ao norte o rio Pojuca, o mais
e estreita, tão verdejante quanto o continente da qual se separa importante do Recôncavo, cuja bacia cobre 3000 km2, e não o é.
a S. O. por um pequeno corredor marinho que vai da Ponta Os grandes fornecedores d" água para o abastecimento de
do Garcez a Matarandiba. Se sobre a sua maior largura interior a Salvador são os rios joanes e seu afluente o Ipitanga, que desaguam
baíade Salvador pode atingir até 50 km de Sul a Norte, não há nem 10 fora da baía.
km entre o continente e a ponta mais próxima de Itaparica. Mas neste
corredor estreito, a barra é dura e perigosa e só podem tentar os Recôncavo onde a água penetra por toda parte, onde no litoral
navios vindos do litoral sul. A entrada da baía, a entrada real e a mais cada qual deseja possuir seu barco, onde os pobres se alimentam
acolhedora, acha-se a Leste onde a barra é mais fácil de ser quase exclusivamente de pescado (52) e donde ninguém gosta de se
transposta, entre a ponta extrema do promontório sobre a qual se afastar muito longe das costas. Tempestades, recifes e embocaduras
encontra edificada Salvador" e o Sul de Itaparica. Entrada majestosa de rios, não parecem, todavia, ter contribuído em que fossem
para um golfo majestoso que tem quase 90 km de largura e abre-se preferidas as vias terrestres, às estradas costeiras. João Capistrano de
entre o Farol da Barra e o Forte de Caixa Prego longe, muito longe, Abreu conta em seus “Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil”
na extremidade sul de Itaparica. No falar popular do Brasil “chegar como, em 1808, o desembargador Tomas Navarro viajou por terra
de Caixa Prego” significa chegar do fim do mundo! Transposta a entre a Bahia e Rio de Janeiro para estudar uma “nova linha de
barra, com a Itaparica a bombordo, os navios percebem, a tribordo, a correio”. Sua viagem foi sempre a beira-mar, exceto nos pontos em
praia dominada pela íngreme encosta, recoberta da vegetação tropical que morros muito íngremes ou amarrados obrigavam o rodeio, ou nos
que enfeita os morros sobre os quais instalou-se a cidade alta. Adiante rios sem canoas e sem pontes que o desembargador subiu até os lugares
Monte-Serrate é um forte de retaguarda, um aprazível pequeno forte vadeáveis (53). Se toda viagem longa se faz perto das costas, quanto
construído na ponta de uma curva harmoniosa da costa, capaz de mais todas as rápidas viagens neste Recôncavo onde, os pontos mais
abrigar o porto da cidade, forte branco cujas linhas arquitetônicas afastados, não distam mais de que um dia de viagem de barco da
puras se destacam hoje em contrabaixo de uma delicada fileira de capital.
palmeiras imperiais. Essas palmeiras imperiais, agora tão característi-
cas da paisagem do Recôncavo, datam, como aliás os simples A partir do momento em que um lugar não pode mais ser
coqueiros, da época colonial. Os primeiros foram trazidos das índias, atingido a barco; assim que se deve marchar longamente ou andar de
os outros de África. Ambos testemunhas da vocação marítima da
cidade.
(51) - “As terras que a cercam são baixas, sem entretanto apresentarem extensas
No interior da baía, inúmeras ilhas e ilhotas criam a proteção de áreas de mangues, em face da impotência dos cursos d'água no carreamento e
três golfos menores: entre Itaparica e o continente a baía de Itaparica sedimentos, inclusive o rio Paraguassu, que apesar de sua extensão de mais de 500 m
e duas outras baías sem nome, a primeira, abrigada entre a península quase não transporta material. Esta fraca sedimentação é explicada como base no ato
de Saubara - Iguape e o arquipélago formado pelas ilhas das Fontes, de os rios continuarem em cursos submarinos modelados em função dos níveis e ase
mais baixa que o atual. Posteriormente, com a elevação do nível relativo dos mares,
Bimbarra, Suape, Vacas, Santo Antonio e Frades, e, a maior das três verificou-se o afogamento dos baixos cursos surgindo rios com largas emboca uras e
baías, entre Itaparica e Salvador. Verdadeiro mundo colorido e vertentes abruptas", IN: Estudos básicos... op. cit.. p. 10.
variado essa baía de todas as ilhas, de todas as praias. As cóleras desse (52) _ Capistrano de Abreu viu muito bem os laços que ligavam o Recôncavo ao
mar interior são menos violentas que as do oceano, mas trata-se de Oceano e acrescentava: “o serviço dos engenhos fazia-se todo por mar: cada
um mar selvagem cheio de recifes e freqúentemente imprevisível. Os engenho possuía quatro embarcações: mil e quatrocentos se poderiam facilmente
a rigos verdadeiramente protetores para as pequenas embarcações ajuntar se o serviço real as reclamasse... Os engenhos não deviam se afastar muito do
litoral marítimo sob pena de, sendo um só o preço dos gêneros de exportação, não
surpreendidas pelos grandes ventos do NE e SE, longe dos cais ou poderem competir com os fazendeiros mais vizinhos do mercado, cujo produto não se
perto das barras de embocadoura dos rios, são relativamente pouco gravava com as despesas de transporte'’, (op. cit., p. 88).
numerosos. r (53) - Idem,op. cit., p. 109.

32 33.
cavalo para alcançá-lo, o homem do Recôncavo sente-se homem do quatro séculos de exploração, indo com frequência até o desperdício,
sertão. Aliás, já vimos de que a vegetação se modifica rapidamente criaram uma nova paisagem. O Recôncavo viu mesmo se sucederem
quando alguém se afasta do litoral, e os primeiros colonos não novas paisagens correspondentes aos diferentes produtos que foram,
apreciavam essa caatinga com a qual só se acomodavam porque cada um por sua vez, esperança e desespero dos proprietários de
“entre um tronco e outro há sempre comedia” (54) para um gado mal terras: pau-brasil, algodão, açúcar, tabaco, coqueiro, cacau, bananeira,
alimentado. Assim as terras afastadas ficavam para a criação (55). O etc.
Recôncavo, ele, é primeiramente terra oceânica e suas terras agrícolas
acham-se todas estreitamente dependentes das águas salgadas ou dos Não subsiste praticamente no Recôncavo nenhuma das espécies
rios marinhos. A água é no Recôncavo onipresente, em lençóis tropicais atlânticas originais. O regime de chuvas ajuda o homem: um
freáticos extremámente ricos. Essas reservas de água são mais ou estimula o outro na medida em que uma vez desmatado, o solo
menos próximas da superfície. Profundas, elas enriquecem o solo de torna-se cada vez mais sensível às influências climáticas. Três tipos
seus sais minerais como acontece ao noroeste do Recôncavo. Se, pelo fundamentais de vegetação acabaram se desenvolvendo, caracteriza-
contrário, forem próximas a superfícies cqmo é o caso na região de das simultaneamente pela sua distância do oceano e pela qualidade
Dias D’Avila e de Camaçari, as águas são filtradas por um solo dos solos sobre os quais se desenvolvem: a vegetação da mata, a
argilo-arenoso que as empobrece e não permite uma vegetação vegetação do agreste, mas somente a última das três corresponde a
luxuriante. Água presente em toda parte mas às vezes muito salgada - uma zona contínua, a vegetação do litoral. Segundo as condições
são os mangues - ou muito pobre em sais minerais - são as areias, climáticas, a mata é mais ou menos próxima da caatinga Nela
filtros naturais demasiadamente eficazes. dominam as palmeiras nativas, “palmeiras licuri” ou “cocos coronata”
cuja cera dá o famoso “pó de palha” e cujas Fibras são utilizadas na
Suave e variada é a paisagem do Recôncavo: terras relativamente fabricação de esteiras, chapéus, ou ainda as palmeiras ariri ou
baixas junto às costas onde pequenos outeiros vêm se mesclar com o licurroba (cocos vagens) cujo tronco horizontal e subterrâneo, deixa
litoral, onde os sedimentos do quaternário deixam aflorar algumas apenas aparecer na superfície as folhas.
rochas mais antigas caulinizadas, solos ferralíticos vermelhos domina­
dos pela branquitude das dunas que podem atingir até 50 m de altura. A mata gosta dos massapés profundos e dos tabuleiros (56).
Terras mais altas onde os planaltos e as colinas ondulam suavemente Desenvolve-se sobre uma zona mais ou menos paralela à costa,
numa altitude média de 200 m com vales abruptos. Os rios, todos passando pelos atuais municípios de Conceição de Jacuipe, São
muito ativos, têm constantemente trabalhado seus flancos em terraços Gonçalo dos Campos e Conceição de Feira. É a região onde
como, por exemplo, o Paraguassú e seus afluentes: Cachoeira e São predominava outrora como monocultura - seria preciso ver até
Félix são edificados sobre terraços altos deste tipo. Essa variedade de quando e como - a cana-de-açúcar do tipo plantation. Os agricultores
paisagem, o Recôncavo a deve à sua geologia: contraste entre o desta segunda metade do século XX, cultivam o tabaco, a mandioca, o
embasamento cristalino que representa 4.300 km2 dos 10.400 km2 do dendê, o amendoeiro etc. Mas da mata antiga, de seus cedros rosas, de
Recôncavo e que forma os pilares extremos a Leste e a Oeste da seus ipês roxos, jacarandás brancos, paus de marfim ou paus d’ alhos
região, e uma sequência sedimentar que preenche a sua parte central. sobraram apenas alguns raros exemplares:
Falha de Salvador a Leste, falha de Maragogipe a Oeste, são os
limites dessa região sedimentar argilosa ou argilo-arenosa. Numa área bastante reduzida do Recôncavo, região situada nas
proximidades de Conceição de Jacuipe até o sul de Feira de Santana,
Uma mata fluvial, análoga àquela que ainda cobre o extremo sul encontra-se uma zona de transição o litoral úmido e o sertão
do Estado da Bahia onde sua exploração é hoje intensa, es'tendia-se semi-árido. É o agreste. De sua primitiva flora subsistem apenas os
outrora em todo o Recôncavo. Transformações sucessivas devidas a juazeiros entre os marmeleiros. Á caatinga úmida com suas plantas

(54) - ídem, op. cit., p. 92.


(55) - A expansão da criação do gado metodicamente empreendida desde o final do (56) - As formações sedimentares - cretáceas são as que dão os famosos massapés.
século XVI atingiu sua mais forte expansão no século XVIII. Os Sertões da Bahia, mas Mas os solos argilo-arenosos cobrem a maior parte da região, Ao norte da cidade e
também dos estados vizinhos do Piauí e Pernambuco continuaram alimentando a sobre o promontório da cidade alta, as formações pré-cambrianas são os solos
cidade até o final do século XIX. vermelhos, tão característicos da paisagem de Salvador.

34 35
outras espécies a aroeira de praia, o capoeiro e coqueiros (cocos
xerófiJas relativamente altas e pouco densas a invadiu com numerosas
nucífera)” (59).
cactáceas e brumeliáceas.
Enfim, o litoral; uma banda de terra de aproximadamente 50 km As três variáveis
de profundidade apresenta uma grande variedade de associações
vegetais, com um habitat diferente para cada uma delas: mangues, Duas variáveis que dependem uma da outra: ventos e chuvas
dunas, restingas e praias podem ser reunidas em dois grupos: a Que trazem os ventos, as chuvas e o sol a esses dados estáveis de
vegetação do litoral arenoso (que depende mais das condições do
meio que de elementos climáticos) e a vegetação sub-litoral (os geografia do Recôncavo?
manguezais). A tabela que segue - registro das precipitações médias no
Recôncavo (60) - resume de maneira muito feliz as relações entre a
Esses manguezais, ligados a solos “pantanosos” muito salgados e temperatura e a pluviometria numa região onde as variações chmáti-
hidromorfos, vindos dos sedimentos finos dos estuários e dos fundos cas dependem essencialmente dos ventos que a varrem e das chuvas
da baía, encontram-se sempre numa zona ainda submetida à influên­ nue eles trazem, vez que as temperaturas são relativamente estáveis.
cia das marés. Na origem, essa formação se desenvolve graças a uma
planta chamada “mangue verdadeiro”, planta pioneira que cresce em TABELA O
ambiente salino de solo instável e pode ser reconhecida pelas raízes
adventícias (57). Outras plantas de manguezal podem, como o Tonçnciais S.T.
Muito
mangue siriba, atingir até 15 m de altura. Na medida em que o solo Médias mensais Secos Chuvosos
Chuvosos
torna-se mais firme, nascem outras associações onde se encontram, mm
sobretudo, mangues brancos. Nessa etapa de evolução, somente as
marés do equinócio cobrem o solo que permanece, todavia, bastante 79 Set.
84 Out.
salgado. As árvores tem então um porte de 5 a 8 metros. “Os mangues Nov.
156
dão caybros e marisco. E os apicus (que são as coroas que faz o mar 117 D ei.
entre si a terra firme e as cobre a maré) dão o barro para purgar o 85 Jan.
açúcar nas formas e para a olaria” diz Antonil (58). 85 Fev.
151 Março
Abril
235 Maio
Ali onde o litoral é arenoso “a vegetação é constituída de plantas 339
rasteiras, de arbustos... com raízes profundas... Há uma diversificação 191 Junho
Julho
fisionómica que vai desde a cobertura rasteira até a arbórea, em faixas 189
Agosto
paralelas, mais ou menos constantes, da praia para o interior. Quando 123
arbórea seus elementos apresentam troncos lenhosos, capas largas e Temperaturas médias mensais. São Francisco do Conde
irregulares distribuindo-se ora densa, ora agrupada. De altura não
excedente a 5 metros, estas árvores refletem, quase sempre, pela sua S =100 mm O^C
Jan 26g7 Maio 24% Set 23%
inclinação a ação constante dos ventos marítimos. São comuns entre CH = 100 a 200 mm
Fev26y8 Junho 23y5 Out 25%
M. Ch =200 a 300 mm Nov 25%
T = 300 a 600 mm Março 26y6 Julho 22y9
Abril 25g8 Agosto 22% Dez 26l,4
(57) -Atlas do Brasil, op. cit.. p. 208 e SEPLANTEC-CONDER, op. cit.. p. 25-27. SuperT = 600 mm
(58) - ANTONIL “Cultura e Opulência do rasil por suas Minas e Drogas" Texte de
1’édition originale de 1711. Traduction frança ise et commentaire critique par A. Mansuy.
Fonte: Seplantec- Conder
Paris, Travaux et Memoires de L'Institut des Hautes Etudes de 1'Amérique Latine, n9
21, 1968. Os caranguejos, ostras e outros crustáceos vivem com facilidade aos pés dos S i ? â tabela as
mangues vermelhos e dos avicennia cuja madeira podia ser utilizada nos trabalhos de
carpintaria e marcenaria. Cf. no texto de Antonil e nas excelentes notas 10 e 11 das temperaturas ^ e m í f i . S eTepcio-
páginas 150 e 151 da autoria de A. Mansuy.

37
36
Esses ventos, terror das embarcações demasiadamente leves, que O tempo que faz no Recôncavo é freqiientemente imprevisível,
se aventuram longe de um abrigo, podem chegar dos quatro pontos mas será que é também o caso para os solos que se desgastam? Será
cardeais. Ventos que, às vezes, disputam a dominação em torneios que a terra deixa-se mais facilmente domesticar e explorar do que ás
gigantes, onde giram como vira a maré, ou cavalgam as negras águas imprevisíveis da baía?
nuvens.
O solo que se desgasta
Com efeito, das quatro massas de ar que disputam o céu do
Recôncavo, os dois que de costume vencem são os alísios de SE vindos Para estudar os solos do Recôncavo, temos que partir da
de altas pressões quentes e úmidas do Atlântico sul e os alísios de NE suposição de que os climas de outrora eram mais ou menos idênticos,
vindos do centro das baixas pressões continentais em direção das altas na sua própria instabilidade, aos do século XX.
pressões dos Açores: vento NE das tempestades, ou o amigo que
impele as velas em direção do porto seguinte, segundo seu humoi. Lembremo-nos ainda dessa regra de ouro dos agrónomos que
determina que todo o solo contém certos elementos mais importantes
Os alísios de retorno NE e NO sopram também sobre o que outros pois o limiar das necessidades destes uma vez atingido, os
Recôncavo. Mas, sobretudo se vê brincar sobre o golfo todos esses outros elementos não reagem mais. Os engenheiros agrónomos que
ventos instáveis, esses ventos que chegam sem prevenir, na velocidade trabalham na África sobre solos semelhantes aos dos nossos tabuleiros
de um cavalo galopando, voz irada de Iemanjá, deusa de mar, amiga baianos (62) habituaram-se de distinguir três etapas de usura dos
exigente do povo do mar baiano. Os climatólogos explicam como solos devorados nas suas substâncias nutritivas por plantas exigentes e
essas “instabilidades” tropicais são ligadas aos movimentos ondulató­ pela falta de adubos. A partir do segundo ano de plantação o
rios “na protogênese da frente polar Atlântica... onde a sucção do ar rendimento de uma terra recém-plantada cai de 50%. O patamar
quente do quadrante norte em contato com o ar frio polar dá origem a seguinte se situa no 129 ano e o solo mostra-se definitivamente
ciclones a partir dos quais surgem instabilidades tropicais” (61). empobrecido depois de 30 a 32 anos de cultivo. Terra de “colheita”
nos primeiros anos da colonização (madeira) o litoral baiano se tornqu
Os máximos pluviométricos de abril e maio coincidem, frequen­ rapidamente terra de “exploração mineradora” da riqueza de seus
temente, no Recôncavo, com essas linhas de instabilidade decorrentes solos.
da luta entre o anticiclone atlântico e a massa equatorial continental.
A mandioca, planta débil, sem sombra, que não protege um solo
Portanto, dominação dos ventos alísios SE, benéfica nos meses de contra a erosão logo desgastado pelas chuvas, é o tipo de cultura à
julho a agosto, combatida com mais ou menos sucesso em novembro e qual nenhum solo resiste. A bananeira, o coco, e sobretudo a
dezembro pelos ventos do NE. A estação fria de junho a setembro é a cana-de-açucar, que em grande parte é reinvestida in loco por seus
única na qual alguns períodos de calmaria podem impedir aos restolhos e cobre assim bem o solo, são entre as culturas dessa região,
veleiros de transportar sua carga das ilhas para a baía. de porto a as plantas mais protetoras do precioso humus. Mas o que se plantava
porto. Junho é o mês das maiores tempestades, aqueles onde os ventos em meados do século passado e por quê?
quereladores e queixosos zombam dos saveiros pretensiosos que
gostariam de poder desafiar barras e recifes. Examinemos para isso uma freguesia rural bastante característica
desse Recôncavo açucareiro, pérola da coroa brasileira, o Iguape

nal), Itaparica (demasiadamente marítima), Santo Antônio de Jesus (demasiadamente Os problemas agrícolas em meados do século XIX: um exemplo,
no limite do Recôncavo) e a própria Salvador que são os cinco municípios nos quais Santiago do Iguape (63)
foram efetuadas contagens entre 1945 e 1970 e cujos resultados foram publicados pela
SEPLANTEC. Aliás, São Francisco do Conde foi também escolhido para um projetode
pesquisa das Universidades Federal da Bahia e Columbia (EUA) sobre a vida social no (62) - Algumas das reflexões desse parágrafo foram sugeridas pelas conversas com o
Estado da Bahia cf. mais adiante, nota 68. Prof. Perraud, pedólogo francês da ORSTOM (Organização de Pesquisa Cientifica nos
Cf. também no mapa: pluviometria para a cana-de-açúcar (segundo dados da
SEPLANTEC) p. 42. Territórios da Ultra-Mar).
(63) - MAURO-DREYFUS, Jacqueline. "U ne paroisse du Recôncavo vers 1860 -
(61) - Ibidem, p. 35.
Santiago dTguape”. 1975, 40 p., manuscrito inédito, Cf. mapa sobre o Iguape p 42.

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Nos limites das bacias hidrográficas do Paraguassú e do rio Açú a que pertencia ao Tenente-CoTonel Francisco Gomes Moncorvo cobre
oeste e noroeste da península do Iguape, a freguesia de Santiago do 5590 ha, isto é, 1/4 das terras da freguesia. Quatro outros proprietá­
Iguape se aninha a borda do mar, no fundo da baía de Todos os rios possuem entre 1000 e 2000 ha, as propriedades de 100 e 300 ha
Santos. A vôo de pássaro, 15 km somente a separam de Cachoeira. Ela são uma dezena, as de 500 a 1.000 ha, oito, e vinte e cinco
representa 5% da superfície do Recôncavo. A média anual de chuvas proprietários possuem menos de 100 ha. Assim 25% do solo pertence a
se situa entre 1000 e 1700 mm por ano. Como no resto do Recôncavo, um proprietário, oitenta a doze proprietários e uma dezena de
terra de velha tradição agrícola, um recenseamento de propriedades proprietários possuem entre 4 e 40 ha, o que representa 0.01% do total
foi possível. Por ordem de S. M. o Imperador, todas as Terras da das terras da freguesia. No conjunto, vinte e oito proprietários dos
freguesia foram cadastradas entre 14 de fevereiro de 1858 e 15 de
quarenta e cinco possuem explorações agrícolas que cobrem 50 a 300
janeiro de 1860 (64). Nessa época, quarenta e cinco proprietários
ha (67). Onde encontram-se os “latifundia” de várias dezenas de
possuíam sessenta e quatro propriedades (engenhos, fazendas, terras, milhares de ha dos quais nos fala a historiografia tradicional? Aliás na
fojos e marinhas) compostas por cerca de 20000 hectares de terras de mesma época e sempre no Recôncavo, os sete engenhos do total das
vários tipos. Essas propriedades eram todas contíguas (65). Insistimos terras pertencentes ao “Engenho Freguesia” estudado por Wanderley
em outra parte sobre os laços que unem a cidade e seu campo: treze
dos quarenta e cinco proprietários do Iguape redigiram em Salvador
sua declaração para o recenseamento possuindo, pois, casa na cidade
de onde encaminharam por portador sua declaração de propriedade (67) - O modo de descrição que o escrupuloso e preciso vigário do Iguape quis impor
ao vigário da freguesia, encarregado do recenseamento. Alguns deles a seus paroquianos sem ter logrado muito sucesso compreende: a data do registro, o
residem na época em outro engenho do Recôncavo. Esses não total da taxa paga para o registro, o nome ou nomes dos proprietários com seus títulos e
patentes, o nome da propriedade, a descrição do solo e das culturas, a origem da
residentes fazem cultivar suas terras por outros? Eis aqui um propriedade (herança, compra, dote) os limites (vizinhança, demarcação, limites
problema sobre o qual o recenseamento não permite que se responda. naturais, estradas), a superfície. Dados que permitiriam que se tentasse a elaboração de
O que fica claro é que doze proprietários residentes ou não dividem um cadastro. Por outro lado, o documento traz ainda a indicação do lugar em que foi
entre si, em proporção mais ou menos igual, 80% do solo explorado e redigido o registro (na propriedade declarada, em outra propriedade do Recôncavo,
em Salvador, na sede da freguesia) e a data da redação da declaração. Na maioria das
suas propriedades nessa freguesia são raramente contínuas. outras freguesias do Recôncavo, os registros são muito menos descritivos. O artigo 10C
da Lei (cf. CÓDIGO PHILIPPINO... op. cit. p. 1103) exigia apenas “o nome do
Uma sondagem efetuada nos registros de outras freguesias do possuidor, a designação da Freguesia em que são situadas (as terras); o nome particular
Recôncavo mostrou o mesmo tipo de repartição de terras: as da situação, se o tiver; sua extensão, se for conhecida, e seus limites”. Eis um pedido de
propriedades são fragmentadas e nunca têm mais de 1000 hectares. registro medianamente preciso. A título de exemplo transcrevemos um registro da
freguesia de Santiago do Iguape.
No Iguape somente o engenho São João do Açú ou “Engenhoca” (66) “Foi me apresentando no dia vinte e três de janeiro de 1859 pagou mil trezentos e
sessenta e dois reis.
(64) - A.P.E.B. Sec. Histórica, Presidência da Província, Série viação, op. cit., O vigário Umbelino José de Az9
Enquanto que a lei de recenseamento das terras de 1850 foi imperfeitamente aplicada Julio Américo da Silva possue nà Freguesia de Santiago do Iguape uma propriedade de
no resto do Brasil e mesmo na Província da Bahia, o Recôncavo foi privilegiado. Cf. Engenho denominado Sancta Catharina, que houve por legitima de seus Pais, cujos
Código PHILIPPINO ou ordenações e leys do Reino de Portugal, 14? edição. In. terrenos principião no rio Sicupema e findar-se na estrada de Patatiba contendo em si
Cândido Mendes de Almeida. Rio de Janeiro, Instituto Philomático, 1869-1870, 2 vols, seis centas tarefas (258 ha) de massapé, silões e mattas, dividindo-se pelo sul, com
p. 1084-1121, lei de 18 de setembro de 1850 e avisos até 26de setembro de 1857. marcas com as terras da Fazenda de Sancta Catharina, e pelo Noroeste também com
(65) - A provisão de 3 de novembro de 1681 que interditava que os engenhos fossem marcas com as terras do Engenho da Praia de Manoel de Lima Rocha Pitta e Argollo.
a menos de uma légua um do outro a fim de não desperdiçar as reservas em madeira e Possue também mais na mesma Freguesia de Iguape quatro sortes de terras,
para impedir a vagabundagem do gado de uma propriedade para outra, tinha sido bem denominadas dos Órfãos; que foram compradas aos herdeiros do Engenho Engenhoca,
esquecida. Renovada por alvará de 13 de maio de 1802 que modificava a distância e se achão encravadas no meio das terras do referido Engenho Sancta Catharina,
exigida de uma légua para meia légua, essa proibição certamente não foi aplicada no começando ellas no rio Sicupema a limitar-se na estrada de Patatiba. Iguape 13 de
Recôncavô. O recenseamento nos descreve propriedades demarcadas, onde qualquer janeiro de 1859” (APEB - Série Viação Iguape, vo. nQ4712. folha 8 e 80).
proprietário sabe muito bem onde começa sua terra e aonde termina a propriedade do Observamos que a Lei (art. 102) autoriza o vigário a dar conselhos sobre o modo de
vizinho. Aliás o aviso de 22 de novembro de 1854 nos fala da “Sciencia própria que os descrição das terras mas obriga-o em aceitá-las tais quais o proprietário as declara
Parochos devem ter se deus Fregueses” código PH1LIPPINO... op. cit., p. 1102. mesmo se são cheias de erros notórios; “se porem as partes insistirem ao registro de
(66) - “Engenhoca” é já um diminutivo. Testemunha de uma partilha anterior? Cf. suas declarações pelo modo porque se acharam feitas, os vigários não poderão
art. 98, 99 e 100 do CÓDIGO PHILIPPINO, op. cit., p. 1103. recuza-las” (Código Philippino... op. cit., p. 1104). Entende-se então porque os registros
contém tantas imprecisões.

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de Pinho cobrem 3.624 ha, ou seja 518 ha por Engenho (68). Trata-se,
entretanto, de uma “grande propriedade” do Recôncavo”. Porque os
historiadores teimam em falar dos “latifundia” açucareiros da hinter­
lândia baiana no século XIX? “Nesta zona floresceu no período
colonial e continuou pelo século XIX um sistema de monocultura
(plantation agriculture) e de produção de açúcar. Grandes latifúndios,
monocultura e escravatura são os fatores históricos os mais caracterís-
ticos do património social do Recôncavo” (69). Na realidade, no
século XIX, a época em que o grande proprietário, senhor de
engenho, reinava sobre uma agricultura de monocultura açucareira
parece bem terminada para o Recôncavo. As terras se fragmentaram.
No Iguape percebemos de imediato como o embricamento das
parcelas esconde laços familiares estreitos entre os membros da
comunidade agrícola. Tem-se parentes - às vezes da mão torta - até
entre os mais pobres. Talvez a abolição da instituição do morgado em
1835 tenha acelerado um movimento de desmembramento que as
crises do açúcar, a destruição inconsiderada da mata - reserva de
madeira indispensável - as novas culturas e o embargo imposto pelos
comerciantes da cidade sobre os campos, haviam esboçado.

Mais de uma dezena de “Engenhos” do Iguape não mais


funcionam como aqueles engenhos descritos pç>r Antonil e Vilhena.
São de fogo morto. Fragmentados, freqúentemente desprovidos do
“engenho para fazer açucai” , constituem uma nova geração de
engenhos, filhos empobrecidos pelas partilhas e pela usura do solo.
Senhor de Engenho sinónimo de grande proprietário latifundiário?
Na mentalidade e na memória dos baianos, talvez, mas não mais na
realidade do recenseamento de 1860. Lembremos de que esta lei de
recenseamento - feita, é verdade, para todo o Brasil, um Brasil
agrícola com terras ainda para serem conquistadas - considera como
propriedades demasiadamente pequenas para pagar os selos de
cadastramento, qualquer propriedade de menos de 90 ha, aproxima-

(68) - PINHO, José Wanderley de Araújo. História de um Engenho do Recôncavo.


1552-1944, Rio de Janeiro, Livraria Valverde, 1946, sobre a evolução do significado da
palavra engenho, Cf. nas notas da tradução de Antonil por A. Mansuy, op. cit., p. 61-89
e seg.).
(69) - WAGLEY, Ch. AZEVEDO, Thales de., COSTA PINTO, Luiz A. Uma
pesquisa sobre a vida social no estado da Bahia (with english text.) Salvador, Museu do
Estado. 1950, n* 11, p. 11. Inspirados pelas descrições de Antonil (1711) ou de Vilhena
(1800) todos os historiadores descrevem o Recôncavo do século XIX como se fosse o
Recôncavo do século XVIII. Entretanto devemos reconhecer que Vilhena dá do
massapé uma magnífica descrição, sempre atual (VILHENA. Luís dos Santos, A Bahia
do século XVIII, Editora Itapuã, coleção Baiana, 1969, 3 vol. p. 175). O mesmo autor
afirma que a cana se planta também em “salões”, mas não dá nenhuma indicação
sobre as superfícies das propriedades de sua época.

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damente. Ora, vinte e cinco dos quarenta e cinco proprietários do de massapé? José R. de Almeida assim descreve seu Engenho
Iguape são donos de terras de menos de 90 ha. E presume-se que essas denominado “Cabonha”: “engenho de moer cana com uma porção de
terras os fazem viver! E suas declarações de propriedade são cheias de terras de silões e áreas cobertas de matas e descobertas em cultura de
ostentação e de apego a essas terras. canas e pastos para animais”. Esses “silões”. que são encontrados em
outras treze descrições são terras argilo-arenosas, têm freqúentemente
Esta terra, de que modo é explorada? Na mentalidade do a mesma cor avermelhada que o massapé e José d’Almeida ao não
agricultor baiano do século XIX, o sentido de propriedade confunde- confundi-las, certamente representa uma exceção na sua fregue­
se, frequentemente, com o sentido da propriedade da safra que esta sia. Mas o mapa de solos mostra claramente que e abso­
produz; uma terra que pouco vale por si mesma e que só se toma lutamente impossível que trinta e um de nossos proprietários de
atraente na medida em que possui condições para produzir... De 1860 possuam todo esse massapé orgulhosamente mencionado ao
modo que se não deve ficar surpreso se, apesar do silêncio da lado dos mangues (71) desdenhados, e das matas apreciadas porque
regulamentação, os habitantes da freguesia de Santiago do Iguape suas capoeiras e seus arbustos são indispensáveis para qualquer
tenham-se mostrado bastante prolixos na descrição de suas terras e de exploração (72). Massapés argilosos, ricos em cálcio e silões ou salões
suas culturas. O meticuloso e escrupuloso vigário de Santiago do argilo-arenosos se repartem de fato o solo da freguesia do Iguape
Iguape, deixou-nos essas descrições sobre as terras e suas culturas. como aliás repartem entre si quase todo o Recôncavo. Ora, o que
Que terras, que solos e para que tipo de culturas? É praticamente acontece se a cana-de-açúcar for cultivada sobre estes solos? A tabela
certo de que o vocabulário utilizado em 1860 é ainda o mesmo que 111 da p. 42 è clara: “massapés” e “silões” são boas terras para a cana
fora utilizado por Antonil em 1711. Dez dos quarenta e cinco quando as condições climáticas são favoíveis. Mas as “condições
proprietários, frequentemente por sobrançaria altiva, pois são os mais favoráveis” não são as mesmas para dos massapés e para os solos mais
importantes entre todos, não condescendem em descrever os solos de arenosos (73). E o que é verdade para o Iguape é também verdade para
suas terras, vez que não eram obrigados pela lei a fazê-lo. Mas trinta e todo o Recôncavo.
um proprietários dizem possuir terras de massapé. Três proprietários
insistem mesmo em afirmar que todas as suas terras são de O mapa que segue é um mapa das chuvas do Recôncavo. A cana
“massapé”. Massapé, vocábulo milagroso, palavra chave, miragem ou precisa de 2000 mm de água por ano. Se o solo guarda a umidade,
realidade? Esse massapé fascinante, tão cantado pór toda uma pode se contentar com 1000 mm. “Massapés e “salões” têm boa
literatura consagrada ao Recôncavo é um solo argiloso e pesado, mais fertilidade química. No Iguape como em todo o Recôncavo, são as
ou menos avermelhado escuro e que cola à planta dos pés. De chuvas, e somente elas, que trazem alegria ou desolação, segundo a
estrutura cristalina, é bastante rico quimicamente. Composto de uma qualidade dos solos. Daí a necessidade de dar às secas ou às chuvas
camada de alumine entre duas camadas de silício, seus cristais são excessivas uma importância que poderia parecer à primeira vista
fortemente entrelaçados. Úmido, sofre forte expansão, seco, se retrai. grande demais. É interessante notar que em 1959, os geógrafos,
Isto dá um solo folhado e consistente em período seco, e extremamen­
te pesado e plástico em períodos de chuva. A tração animal toma-se
impossível, ou quase impossível, e sua impermeabilidade coloca proble­ (71) - Cf. Antonil (op. cit). Essa formação vegetal cobre quase todo o contorno da
baía a partir do momento em que as correntes são bastante fracas para permitir aos
mas para a cultura da cana (70). Problemas tanto mais graves que - o aluviões de se depositar. Como Iguape estamos no fundo da baía e ha cinco proprietários
mapa dos solos em anexo é claro - os solos de massapés encontram-se que a ela se referem. Vilhena diz que “seus mariscos são um admirável subsidio para o
praticamente todos em regiões de forte pluviosidade. Inúmeras pergun­ sustento dos escravos e regalo dos Senhores”, op. cit., vol. I p. 188),
tas surgem se sobrepormos o mapa das precipitações pluviométrícas ao (72) - As matas são mencionadas 10 vezes. Alguns proprietários fazem a diferença
mapa pedológico. entre matas e capoeiras que são matagais muito parecidos com a savana. Sobre o termo
capoeira cf. in Consuelo PONDE DE SENA, Introdução ao estudo de uma Comunidade
Será que toda freguesia do Iguape cultiva sua cana sobre terras do Agreste Baiano - Itapicuru 1830-1892. Salvador, Universidade Federal da Bahia,
1977. (Tese de mestrado-mimeografada). A autora explica como o termo capoeira ou
(70) - Os massapés são indicados com o sinal no mapa de solosp. 30- 31 . As descrições capueira'deriva do tupi Ko-puera que significa “roça abandonada da qual o mato já
dos solos e climas atuais foram estabelecidos a partir de dados extraídos dos estudos da tomou conta”.
SEPLANTEC- CONDER (op. cit). Não nos estenderemos eiri longas descrições dos (73) - Antonil, como aliás Vilhena, não têm muita consideração pelos salões: “se o
massapés e dos salões, abundantemente já descritos por. toda uma literatura antiga e senhor d ? engenho não conhecer a qualidade das terras, comprará salões por
moderna.
massapés” ... (Antonil, op. cit., p. 90)

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Primeiro problèma - a chuva. Sabemos hoje que no massapé
reunidos em Congresso Internacional de Geografia no Rio de Janeiro impermeável, nos anos de seca, quando a pluviosidade se situa entre
(74) afirmaram de que o solo da península do Iguape é constituído 1200 e 1500 mm a cana cresce bem e dá rendimentos honestos,
por areias pobres em elementos fertilizantes e que ali só se cultivava a enquanto que nos anos chuvosos (entre 1800 e 2200 mm) a safra é má
mandioca, enquanto que no resto do município de Santo Amaro com para não dizer . catastrófica (76). Pelo contrário, nos silões
seus ricos massapés - o massapé recebe sempre o adjetivo de rico! - argilo-arenosos, que possuem profundidade maior, e melhor drena­
concentrar-se-ia a maior parte da economia açucareira da Bahia! A gem, o fenômeno pode ser exatamente inverso: bom rendimento nos
verdade é porém mais matizada. Ser proprietário no Iguape, como anos de muita chuva, mau rendimento nos anos secos. Sem instru­
também em quase todo o Recôncavo, era cultivar olhando para o céu mentos sofisticados, sem adubos e técnicas de irrigação, um bom
sem entender porque a trovoada, bênção para uns, é catástrofe para rendimento fica em torno de 55 toneladas por hectare, um ifíau
outros. rendimento em torno de 35 toneladas por hectare. Nos 25 anos que
vão de 1945 a 1970, cerca de 21% dos anos foram demasiadamente
“Riqueza e Opulência”do Recôncavo? secos (em relação à média) e 17% demasiadamente úmidos. Final­
mente, para entender plenamente os azares das safras no Recôncavo,
No que diz respeito à cultura e à exploração da cana-de-açúcar o é sempre necessário comparar o mapa dos solos com o mapa das
Iguape de 1860 parece ser a fiel testemunha de três tipos de chuvas. É também necessário não esquecer que os solos plantados
problemas que o Recôncavo enfrenta: a curto prazo, o problema do com cana desgastam-se lentamente e que o tempo tem também suas
tempo que está fazendo, o tempo das secas catastróficas ou das chuvas manhas. No Recôncavo os solos argilo-arenosos são mais frequentes
por demais abundantes. A prazo mais longo, os problemas do que os massapés concentrados. Exceção feita de uma zona que fem a
desgaste do solo, de seu empobrecimento e o problema da fragmenta­ forma de arco em círculo ao Noite do fundo da baía a N. E. de
ção da propriedade pelo jogo das heranças ou das crises económicas. Salvador e de Itaparica, entre a Mata de São João e Pojuca.
“Para tudo meu Filopono, há terras, para tudo há comodidade, para
tudo é próprio o terreno e o clima, e o que unicamente falta é a Segundo problema, o problema do desgaste do solo. Já temos
deliberação, a indústria, e a vontade, que a não faltarem estas, a dito que mesmo se a cana-de-açúcar não é uma planta'por demais
experiência de todos os dias mostra, não haveria quem pudesse dar destruidora do solo que a alimenta, entretanto acaba por desgastar este
consumo às produções de uma terra que com pouco e informe solo. Os solos do Recôncavo foram lavrados como se fossem minas, as
trabalho retribui cem por cem de semente que lhe lançam” escreve minas acabam sempre por se esgotar. Em que velocidade e -como?
Vilhena em 1799 (75). Crítica altiva esta de Vilhena. Crítica que Seria necessário para sabê-lo fazer uma amostragem de massapés e de
mostra que se Vilhena sabe olhar, ver e descrever, é, entretanto, silões cultivados e não cultivados e compará-los em laboratório (77).
incapaz de compreender que a cultura da cana choca-se a problemas Mas parece que este desgaste do solo foi ainda mais importante do
que de longe ultrapassam a imaginação do agricultor do século XVIII. que geralmente se pensa. Coincidindo este desgaste com as secas ou
com chuvas mal distribuídas ele aumenta as dificuldades devidas ao
parcelamento das propriedades.
(74) - DOMINGUES, Alfredo José Porto e KELLER, Elsa Coelho de Souza.
Bahia, guia de excursão n° 6 realizada por ocasião de 1& Congresso Imernacionai di
Geografia Rio de Janeiro, Conselho Nacional de Geografia, 1958. Esses geógrafos de Terceiro problema, o problema do parcelamento: existiriam
20 anos atrás são menos próximos ainda das realidades do que Antonil ou Vilhena, a novas terras a serem ocupadas pela lavra da cana no século XIX?
menos que se admita de que as paisagens de fato mudaram. Com efeito, os dois autores
opõem dois recôncavos: “se pode falar em dois Recôncavos. O Recôncavo do
massapé e o Recôncavo do arenito” (p. 173). O primeiro ' em formações continuas" (!) (76) - SEPLANTEC-CONDER, Estudos Básicos... op. cit., p. 470 cf. também com
situar-se-ia ao norte (região de Santo Amaro) enquanto que no Sudoeste e oeste os mapas I, II, III e tabela n9 III.
(Saubara - Iguape, Maragogtpe e Jaguarípe) só existiriam solos arenosos “pobres em (77) - Eis um ótimo programa de pesquisa interdisciplinar. Pode-se, porém,
elementos fertilizantes”. O mapa dos solos p. 30 mostra que o massapé de Santo Amaro indagar se existem muitas terras de massapé não cultivadas. Falando de massapé, José
se estende até o mar na direção sul, até Terra Nova para o Norte, e até Candeias e da Silva Lisboa escrevia em 1781: "Há no Recôncavo em que há mais de 60 anos se
Simões Filho para leste e que há ainda massapé a oeste de Iguape, ao sul de Pojuca e planta cana no mesmo lugar sem jamais serem estrumadas, coisa esta que jamais se
nos arredores de Itanagra... Por outro lado, solos argilo-arenosos cobrem a maior parte pratica”. LISBOA, José da Silva, Carta a Domingos Vandelli. Bahia, 18 de outubro de
do resto do Recôncavo! v 1781. Rio de Janeiro, Anais da Biblioteca Nacional, 1910, p. 499.
(75) - VILHENA, Luís dos Santos, A Bahia... op. cit., vol. I, p. 188
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Com efeito, ao jogo das partilhas que nos foi dado apreender ao vivo outro proprietário do Iguape, Manoel Ferreira de Câmara Bittencourt
no Iguape, somam-se as consequências da lei de 13 de novembro de e Sá que, ao lado de outras inovações técnicas, conseguiu construírem
1827 que aboliu a exigência de uma licença de Engenhos e precede de seu Engenho uma “fornalha” capaz de economizar dois terços de
oito anos aquela que abolia o morgado (78). Se a safra de açúcar é madeira, material tão precioso e importante para a fabricação do
insuficiente seja porque a superfície de cada Engenho se reduz após açúcar (80)1-' As máquinas a vapor, introduzidas em numerosos
cada nova partilha, seja porque não choveu o necessário para cada Engenhos do Recôncavo a partir dos começos do século XIX são
qualidade de solo, seja ainda porque o solo empobreceu-se definitiva­ outras tantas respostas à procura constante de melhores rendimentos.
mente, o Engenho não pode mais viver, e seu senhor é obrigado a Finalmente, especial atenção foi dada ao problema esssencial: o dos
pedir emprestado, permitindo assim ao comerciante da cidade de transportes. Poçém, a aplicação de uma regulamentação fiscal cega,
mostrar suas capacidades em ganhar dinheiro. Observamos com inapta e retrógrada em vez de aliviar os compromissos assumidos
atenção nosso mapa da pluviometria do Recôncavo: em 1975 a zona pelos Senhores de Engenho, contribuiu em aumentar mais ainda as
recomendada para a cultura da cana (zona A) é uma zona onde não dificuldades que atravessava a economia açucareira.
há massapé. Essa é ainda aquela que, no Recôncavo, se acha mais
afastada do mar, aquela sobre a qual na época colonial e no século Os transportes no Recôncavo eram um pouco as estradas e as
XIX se cultivava pouco ou nada de cana-de-açúcar! Por quê? há pontes, mas sobretudo, como já foi visto, a navegação. Os raros
várias respostas possíveis mas cada uma delas fornece uma única caminhos coloniais eram os que partiam de Cachoeira para o norte
chave para resolver o nosso problema. Com efeito, neste caso, com via Jacobina, em direção de Maracas, Caetité e o Rio das Velhas em
frequência imbricam-se estreitamente problemas geográficos e pro­ Minas Gerais. Caminhos antigos que tomavam os animais de carga e
blemas humanos. as boiadas. A primeira estrada pavimentada pelo sistema de “Mac
Adam” data de 1851: partia de Santo Amaro e tinha a extensão de
Hoje esta zona A, situada numa região geralmente seca demais 150 braças. Todavia, o primeiro plano geral para o desenvolvimento
para a cana, pode ser irrigada sem dificuldade graças às grandes de uma política rodoviária data somente de 1917 (81), e foi a ligação
riquezas em água do subsolo e da hidrografia - riqueza que, como já Salvador-Feira de Santana a primeira a ter sido realizada. No
vimos, caracteriza todo o Recôncavo. Isto não era o caso outrora. Recôncavo os numerosos rios com seus vales abruptos e sua íngremes
Então que tipo de defesas os Senhores de Engenho podiam opor aos encostas, criavam mil obstáculos imprevisíveis. Debalde reclamavam-
problemas colocados pelo desgaste do solo, o parcelamento da se ponte e “vapores”. Aqui ainda o rio Paraguassú foi o primeiro
propriedade e os azares do clima? Estudar as lutas dos Senhores de contemplado ganhando seu primeiro navio a vapor e sua ponte em
Engenho nos permitiria talvez conhecer melhor as dificuldades do 1819 (82). Para o açúcar o essencial era que a caixa na qual vinha
Recôncavo. Aos homens da Bahia não faltaram nem a coragem nem a
imaginação como pensa Vilhena. Vejamos como, apesar da utilização Iguape, solteiro, em 3 de agosto de 1785. Foi este Manoel de Lima Pereira, casado com
de novas variedades de cana, de uma nova tecnologia na moagem e uma sobrinha do Capitão-mor Christovão da Rocha Pita, senhor do engenho da Praia
das melhorias no transporte do açúcar, foi impossível aos Senhores de no Iguape a quem tornou conhecida na Bahia a cana cayana”. Em 1860 o engenho de
Engenho lutar vitoriosamente contra as armadilhas da natureza e da Praia não mais exisita.
(80) - O engenho da Ponta ainda existia em 1860. Os esforços de alguns pioneiros
economia do Recôncavo: o açúcar. são mencionados por Rômulo de Almeida em “Traços de História Económica da Bahia
no último século e meio". Salvador, Instituto de Economia e Finanças da Bahia, n° 2,
Mais uma vez o Iguape toma-se exemplar. Foi um proprietário 1951. O desperdício da mata é amplamente comentado.
desta freguesia. Manoel de Lima Pereira, que introduziu na-Bahia a (81) - A abertura de estradas de rodagem na Bahia se deu tardiamente. O primeiro
nova variedade de “Cana Cayena” mais resistente (79). Foi ainda um plano de Estrada de Rodagem do Estado foi apresentado à Câmara junlamente com a
mensagem do Governador do Estado em 17 de julho de 1917. Recebendo aprovação,
transformou-se em Lei de nc 1.227 a 31 de agosto de 1917.
(78) - Entre 1800 e 1835 o número de engenhos no Recôncavo dobrou: passou-se (82) - "Foi Felisberto Caldeira Brandt Pontes, futuro marquês de Barbacena que.
de 400 a 811. Mas o processo dessa evolução é ignorado, como também são ignorados depois de ter trazido da Inglaterra a primeira máquina a vapor para usina de açúcar,
os tamanhos e a produtividade dos novos engenhos. inaugura, em outubro de 1819, o “vapor de Cachoeira", uma das maravilhas no
(79) - José Wanderley de Araújo, História de um Engenho... op. cit. p. 110, nota 2: folclore do sertão e cuja máquina, vinda de Inglaterra, foi montada num barco
"Aparece o Cel. Manoel de Lima Pereira, morador do Iguape, como solteiro, em 29 de construido no estaleiro da Preguiça” ... ALMEIDA, R. de. Traços de História... op. cit.. p.
agosto de 1783. Também o Cel. Antonio de Souza Pereira, morador em São Tiago do 5.

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acomodado, chegasse o mais rápido e economicamente possível à seu navegadores até o mais profundo do interior das terras. Marinheiros e
porto do embarque mais próximo de Salvador. Com efeito, o dízimo pastores são os grandes viajantes da província, uns tomando a
pago em meados do século XIX sobre cada caixa de açúcar era sucessão dos outros; caminhos de águas e de boiadas são as
proporcional à despesa com o seu feitio, embarque e despacho. Sendo verdadeiras ligações, as verdadeiras rotas para os homens e para as
assim, uma caixa vinda de um Engenho áfastado do porto de mercadorias.
embarque pagava mais dízimo que a caixa cujo açúcar tinha sido Uma antiga proibição de 1688 e de 1701 (86) interditava a
produzido num Engenho próximo ao porto de embarque: o Engenho criação de gado numa área de 10 léguas do “beira mar” e ao longo
afastado do mar pagava por seu açúcar um carreto suplementar, o dos rios, a fim de que o gado não disputasse à cana, e até mesmo à
“transporte terrestre” (83). Curioso sistema que, finalmente, desfavo­ mandioca ricas terras de cultivo. Thales de Azevedo explica como no
recia toda tentativa de expansão da cultura açucareira em direção do século XVIII as autoridades coloniais tomam consciência dos proble­
interior das'terras. mas que coloca o abastecimento numa região de monocultura. De
qualquer modo açúcar e criação não podem coabitar. Certamente os
Data de 1860 a primeira ligação ferroviária de Salvador em Engenhos de açúcar precisam do gado para fazer funcionar
direção ao rio Joanes com seus primeiros 18500 km que terminavam o Engenho e para o transporte. No Iguape “pastos” e “terras
em Aratu (84). Será que a estrada-de-ferro vai desencravar Salvador e para' criação de gado” são citados várias vezes pelos proprietários
dar à cidade os meios de ter ligações mais fáceis com o resto da quando do recenseamento de 1860. Bois de trato, magras vacas
província e, quiçá, do Brasil? Não há dúvida que este novo meio de para pouco leite, cavalos e mulas para montaria e transporte
transporte suscita imensas esperanças mas seu desenvolvimento é são indispensáveis. Em terreno argiloso e pesado, é penoso
demasiadamente lento. Durante grande parte do século XIX são os na época de fortes chuvas caminhar sobre um solo plástico e
velhos tradicionais meios, marítimos e fluviais que são explorados: inole; é preferível guindar-se em dorso de animal, principal­
Cachoeira, Santo Amaro, Nazaré, Valença, Belmonte ao sul; Aracaju, mente quando as distância são relativamente importantes se
Penedo, Maceió ao norte, servidos por companhias de navegação se deseja deixar sua propriedade. A criação de gado vacum, foi logo
constituídas com capitais baianos e ingleses desde meados do século assim uma preocupação para o Recôncavo e um problema de
XIX. O próprio rio São Francisco recebe em 1870 seu primeiro navio abastecimento para a cidade. Vilhena nos descreve muito bem as
a vapor, o “Presidente Dantas”, que chega até Juazeiro (85). Um boiadas dos anos de 1800 e a chegada na Feira de Santana de pobres
barco depois pode levar passageiros e mercadorias até Bom Jesus da animais esqueléticos, vindos de longe, apenas alimentados com ervas
Lapa. achadas ao longo da caminhada, já devastadas pelas boiadas prece­
Como todas as riquezas da região, o açúcar do Recôncavo dentes, -empurrados por vaqueiros vestidos de couro e montados a
permaneceu assim por longo tempo na dependência de transportes cavalo, até os currais (87). Certamente as boiadas vêm de muito longe
para Salvador e as distâncias percorridas abrangem facilmente 1000
elementares onde as embarcações mais maleáveis, mais leves desem­
penham até princípios do século XX um papel essencial. Povo de Í km (88). É que o Recôncavo com sua grande umidade não possui
terras para a criação. Uma vegetação exuberante contém água em
demasia para bem alimentar os animais e os obriga percorrer
(83) - Segundo o "Livro de matricula dos engenhos da Bahia 1807 - 1874” Cf. distâncias excessivas para satisfazer seu apetite. Por outro lado, as
MATTOSO, Katia M. de Queirós e GARCEZ, Angelina Nobre Rolim, Fontes para o chuvas abundantes lixiviam o solo e empobrecem-no em cálcio,
estudo... op. cit., p. 1121 e 1123.
magnésio e outros sais minerais, prejudicando o desenvolvimento dos
(84) - Sobre as estradas de ferro e seu desenvolvimento na Bahia cf. Joaquim
Wanderley de Araújo Pinho: A viação na Bahia. Salvador, Diário OFcial, 1825-1923, p. animais e a qualidade de seu leite. Somente na região do Paraguassú,
132-Í43. Devem ser distinguidas as concessões outorgadas pelo poder para além de Santo Antônio, onde reaparece a base cristalina (89) - o
central (Salvador - Rio São Francisco, central da Bahia, ramal do Timbó) das
concessões outorgadas pelo governo provincial como as de Santo Amaro, Bahia-Minas (86) - AZEVEDO, Thales de, Povoamento da cidade do Salvador, 3* ed., Editora
ou do Tramroad de Nazaré. Itapuã, Coleção Baiana, 1969, p. 278 - 280. A 1* edição é de 1949.
(85) - PINHO, Joaquim W. de Araújo. A viação na Bahia... op. cit., p. 132-143 (87) - Luis dos Santos VILHENA, A Bahia..., op. cit., voL 1, p. 127 e 160.
Somente em 1847 a navegação regular a vapor atinge Santo Amaro pelo Rio Sergi e Nazaré (88) - Quando, por exemplo, as boiadas vêm dos centros de criação do Piauí ou de
pelo Rio Jaguaripe em 1852. Maceió, ao Norte, e Caravelas ao suL são regularmente Goiás, da outra margem do Rio São Francisco.
servidas por mar pela companhia Santa Cruz (cf. Parte 11. cap. I). (89) - SEPLANTEC-CONDER, Estudos básicos..., op. cit., p. 496

52 53
outro lábio do horst de Salvador - com um solo rico em cálcio,
magnésio e potássio, e nas regiões de massapé ricas em cálcio os
animais não têm este aspecto miserável que caracteriza ainda hoje o
gado criado no Recôncavo. Outrora, as imensas boiadas - boiadas de
mais de 300 cabeças não era coisa rara - vinham de todos os
horizontes longínquos da província da Bahia, do Piauí e de Goiás.
Assim foram elas responsáveis pela conquista de um imenso território,
abrindo caminhos, levando e trazendo notícias, desempenhando um
papel de intermediário entre as regiões costeiras de ocupação densa e
de grande consumo e o vasto sertão de povoamento ralo, ou as regiões
de mineração que sem o gado não poderiam desenvolver-se (90).

Era um luxo para os baianos consumirem carne? Eis uma


indagação que pede resposta e será discutida na 3- parte deste
trabalho. Porém, uma coisa é certa: farinha de mandioca, farinha de
pau, tapioca, aipim e inhame são a base da alimentação em toda a
província a tal ponto que se chama ainda de mandioca “qualquer
comivla” em todo o Brasil atual. Essa tubércula (91) que crua contém
ácido cianídrico mortal, toma-se depois de cozida ou torrefata um
alimente le base ao mesmo tempo que pode ser uma reserva de fácil
armazenamento ou que pode ser conservada sob a terra durante 2 a 3
anos: num campo de mandioca é sempre- possível colher somente
algumas tubérculas e deixar as outras enterradas. As “pequenas
culturas” freqiientemente mencionadas no Iguape são, talvez, somen­
te de mandioca e milho. Esses produtos parecem ter sido bastante
cultivados na nossa freguesia do Iguape, o que permite aventar a
hipótese de que as quantidades produzidas ultrapassavam as necessi­
dades do consumo local indo então os excedentes para o mercado
consumidor de centros maiores como Cachoeira ou mesmo Salvador.
De qualquer modo elas asseguravam à freguesia uma independência
apreciada em relação ao mercado de Salvador, centro de abasteci­
mento e de distribuição. Porém por outro lado, se os excedentes eram
vendidos em Salvador estes teciam com a cidade laços estreitos e
bastante diferentes daqueles tradicionalmente descritos quando o

(90) - “Hm outros termos - e ao contrário da via marítima - o caminho terrestre da


Bahia ao Maranhão trazia logo consigo o frete e o meio de Transporte". João
Capistrano de Abreu, Caminhos..., op. cit., p. 260. E ainda “o gado transporta o dono. E
pululam fazendas e nascem estradas e o povoamento quase contínuo se torna ao menos
no sentido longitudinal. A população baiana transborda para o Maranhão, Piaui;
remonta depois para todas as descobertas auríferas que sem gado teriam perecido nc
nascedouro”. Idem, p. 131.
(91) - Thales de Azevedo explica como os portugueses aprenderam facilmente dos
indígenas tupis a utilizar essa raiz que exige uma verdadeira “indústria” tanto na
maneira com que se planta, como o que se deve fazer para retirar os elementos tóxicos
(op. cit., p. 254)
i
54
Recôncavo aparece como zona de monocultura latifudiária de cana- povos do Brasil tinham razão ou não de basear na farinha de
de-açúcar. Este importante desenvolvimento do cultivo da mandioca mandioca toda a sua alimentação. Auguste de Saint Hilaire, o viajante
não deve surpreender, vez que essa tubércula se adapta a quaisquer francês naturalista que percorreu o Brasil por volta de 1820, assume
tipos de condições climáticas: certamente afirmamos mais acima que uma atitude muito crítica a respeito do uso da mandioca como base de
esta cultura desgasta o solo e de maneira muito rápida por causa da alimentação da população. Jennie Gregory num trabalho sobre as
pouca proteção que a este fornece, mas ela tem capacidade de se vitaminas que data de 1938, acusa a mandioca de favorecer certas
desenvolver tanto em alta como em baixa altitude, e do equador até o doenças como o beribéri (96). Mas em geral todos concordam para
23° grau de latitude (92). A mandioca suporta de 600 a 2500 mm de reconhecer o valor nutritivo do pão da terra (97). O problema maior é
chuvas anuais e temperaturas de 18 a 30 graus centígrados. Os climas de conservar fresca a farinha pois se deteriora com facilidade e depois
do Recôncavo lhe são muito favoráveis. Mas como a mandioca é uma de um mês de torrada não é mais consumível. Com efeito a mandioca
tubércula, ela não pode ser cultivada nos massapés demasiadamente é rica em hidratos de carbono e em vitaminas B, dois elementos que
pesados e em terras baixas mal drenadas onde a umidade apodreceria por si só justificam a presença da mandioca na mesa de todos os
a raiz durante sua longa permanência na terra. Segundo José da Silva brasileiros. Aliás, na sua chegada da África, os escravos enfraquecidos
Lisboa, em 1781, cultivavam-se pelo menos quatro qualidades de por uma longa travessia durante a qual amontoados no porão do
mandioca na Bahia e a que dava as maiores tubérculas permanecia navio só recebiam rações alimentares de sobrevivência, eram submeti­
pelo menos 18 meses enterrada no solo. Silva Lisboa admira que esta dos a um “regime de engorda” composto principalmente de farinha
cultura dê maravilhosos rendimentos por muito pouco trabalho (93). de mandioca e de laranjas (98). N o final do século XVI, Gabriel
O mapa anexo (94) testemunha da repartição das culturas desse “pão Soares estimava de que “um alqueire dela da medida da Bahia que
da terra” noséculoXVIII na capitania da Bahia. Não esqueçamos que tem dois de Portugal, se dá de regra a cada homem para um mês, a
desde o século XVIII “uma série de Ordens Régias Obrigava os qual farinha de guerra é muito sadia e desenfastiada, e molhada em
senhores de Engenho e mercadores de escravos plantarem mandioca. caldo de carne ou de peixe fica branda e tão saborosa como cuscuz”
Essas Ordens eram renovadas cada vez que isto se fazia necessário; (99). Mas, por outro lado, é tambéem verdade que o uso único e
mesmo após a Independência, em pleno século XIX, tinham ainda exclusivo da mandioca sem o acompanhamento de outros alimentos
força de execução” (95). Ademais, discutia-se muito para saber se os ricos em proteínas e sais minerais, nutre mal o seu homem: “Sadia e
desenfastiada” sim, mas quando acompanhada por.carnes e peixes,
(92) - SEPLANTEC-CONDER. Estudos básicos..., op. cit., p. 491 - 505. A
ovos e leite, verduras e frutas.
tubércula deve permanecer pelo menos 10 meses enterrada.
(93) - “A cultura de mandioca forma a base da subsistência dos povos do Brasil.
Distinguem-se 4 qualidades a melhor pela grandeza da sua raiz, não adquire a sua O autor mostra como a lei antiga que obrigava os lavradores de cana do
Recôncavo a plantar 500 covas de mandioca por escravo, se chocava “aos princípios de
perfeita madureza senão com ano e meio de terra... uma causa contemplàvel: cada
preto sem dificuldade pegara e planta todos os dias 100 covas de mandioca: qualquer divisão do trabalho desenvolvidos por A. Smith” .
terra a mais medíocre (sic! Viu-se o que se devia pensar a respeito) produz 20 alqueires (96) - GREGORY, Jennie, A.B.C. o f vitamins. Baltimore, 1938. Obra citada porC.
por mil covas. Dois negros que trabalhassem juntos terão em 10 dias planta para 40 B. Schmidt, cf. nota 97
alqueires; em outros 10 dias teriam colhido e'preparado a farinha com o trabalho (97) - Sobre a mandioca vero excelente livro SCHMIDT, Carlos Borges - “Opão
remido. EI rei dá ao seus soldados huma quarta de farinha cada 10 dias; deste modo os da terra". São Paulo, Prefeitura municipal, 1959. Trata-se de uma monografia escrita
ditos pretos consumirão por ano 20 alqueires e lhe restarão ainda outros 20 para a para um concurso nacional sobre o folclore brasileiro.
venderem, tudo fruto de trabalho de 20 dias. Não é fácil achar país onde com 20 dias (98) - C. B. Schmidt, O pão da terra... op. cit., p. 285-286. O autor explica que as
de trabalho se tenha pão para todo o ano e ainda alguma coisa de mais” . José da Silva próprias folhas da mandioca como leguminosas comestíveis contêm 8% de proteínas,
Lisboa, Carta... op. cit. p. 503. 5000 UI de vitaminas A e 50 a 100 UI vitaminas B que completam as qualidades
(94) - Mapa sobre a agricultura na Bahia nos séculos XVI-XVII e XVIII. nutritivas da tubércula.
Orientação Katia M. de Queirós Mattoso, organização Sônia de Oliveira Leão. (99) - C. B. Schmidt, O pão da terra... op. cit., p. 289 o qual cita Gabriel Soares de
(95) - Sobre o papel da mandioca na conjuntura económica da Bahia, cf. Souza: Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1938, p.
MATTOSO, Katia M. de Queirós. Conjolncture et Société au Brésil à la fin du X V III 195. Segundo Roberto Simonsen na sua “História Económica do Brasil" (São Paulo,
siècle: prix et salaires à la veille de la Révolution des Alfaiates - Bahia 1798. Cahiers des Editora Nacional, 469 p., 1967, p. 462-463), hum alqueire da Bahia é igual a 36,27 litros.
Amériques Latines. Paris, 5° 33-55, 1970, e Os preços na Bahia de 1750 a 1930. InL ’ A farinha de mandioca é ainda chamada de farinha de guerra pois servia de base à
Histoire Quantitative du Brésil, 1800-1930. Paris, CNRS, (1973, p. 167-182. Cf. também alimentação dos soldados e por oposição à farinha do Reino, farinha de trigo,
Ròmulo de Almeida, Traços de história... op. cit. p. 6. importada de Portugal.

56 57
subsistência no Recôncavo ficam na dependência das chuvas ou das
Produto sem dúvida de primeira necessidade seu preço em secas, do solo que reage diferentemente quando se trata de massapé
Salvador nos dá o pulso da saúde do mercado consumidor da cidade. ou de silões. Não há, portanto, que se admirar se o abastecimento da
Mas não se deve esquecer que qualquer dono de um pedaço de terra, cidade foi um problema crónico para seus habitantes e para os
mesmo íngreme, mesmo mal drenado, pode produzir por sí próprio as poderes públicos. Mas deste problema falaremos novamente quando
tubérculas necessárias à alimentação de sua família. O Pequeno analisaremos a estrutura do mercado consumidor de Salvador. Mas
proprietário, o escravo liberto que possuem atrás de suas moradas de antes é preciso falar da cidade e de sua baía, de seu porto e de suas
porta e janela um pequeno quintal, produzem mandioca mesmo se as freguesias, de seu papel como Metrópole regional no século XIX. E
condições geomorfológicas e pedológicas não são boas, mesmo se o ainda preciso falar de sua população, de seus modos e estilos de vida.
solo é desgastado e a tubércula cada vez menor. A rigor, se o dono
dispuser de mais terra planta um pouco mais longe, mesmo nas
íngremes encostas que são impróprias à cultura da cana.
A mandioca usa terrivelmente a terra que a alimenta: solo, água
e climas unem-se em combinações infinitas. Combinações que
acabam por tornar os rendimentos cada vez mais fracos. Daí ser a v!
cidade do Salvador obrigada de procurar cada vez mais longe este
produto básico para a alimentação de seus habitantes.
E as condições são praticamente idênticas para o outro alimento
de base da população brasileira: o “feijão das águas” que se planta
em março e se colhe em junho e o “feijão da safra" que se planta em
rntfa *

julho e se colhe em setembro (100). Segundo Teodoro Sampaio,


que escreve em 1923 sobre a agricultura baiana, os grandes mercados
para a farinha de mandioca são, para o Recôncavo, Feira de Santana,
Santo Amaro, PojuCa, Alagoinhas. Maragogipe, SãoGonçalo e Nazaré
das Farinhas; Mundo Novo, Morro do Chapéu. Saúde, Macaubas,
Rio Branco e Barreiras para o sertão (101). Mas no século XIX é a
mandioca plantada no litoral e somente ela que possui condições de
transporte para abastecer a cidade do Salvador.
Assim, apesar dos esforços para melhorar as comunicações e os
meios de transporte, mesmo no princípio do século XX, as terras
realmente afastadas da capital, contam muito pouco no abastecimen­
to de todos os dias de uma cidade gulosa como Salvador e das zonas
litorâneas de povoamento denso. De longe só chega mesmo a carne
que anda e os caminhões de hoje ainda utilizam os caminhos traçados
pelas tropas de mulas e boiadas de ontem (102). E as culturas de

(100) - SPIX, J. B. vone MARTlUSvon./t/ravéiáfl Bahia; exerptosdaobra Reise


in Brasilien por von Spix e von Martius. transladados a português por Manoel A. Pirajá
da Silva e Paulo Wolf. Bahia, Imprensa Oficial, 1916, 230 p„ p. 107. vel, defeo.de seu território com relativo sucesso. Porém, durante todo o século XIX se
discute muito para saber se se deve impedir a “ mesquinha plantação ou se, pelo
(101) - SAMPAIO, Theodoro, O Estado da Bahia, Agricultura, Criação de gado. contrário, esta devia ser protegida contra um “laisser-faire” que estava na moda. Sobre
Indústria e Comércio. Bahia. Imprensa Oficial. 1925. ilus. o assunto ver as excelentes páginas de Thales de Azevedo “Povoamento...” op. cit., p.
(102) - Em suma a criação de gado foi facilmente orientada, desde o século XVII 294-299.
na direção dos sertões e do agreste do Itapicuru, do Vasabarris e de Sergipe, em terras
impróprias às culturas industriais. Mas a mandioca, produto de subsistência indispensá-
59
58
11* P A R T E -A CIDADE DO SALVADOR, BAÍA DE TODOS
OS SANTO S

Livro I - O SÍTIO

Capítulo I - Na Baia de Todos os Santos

A baía de Todos os Santos é um mar interno para saveiros e


canoeiros, canoas e tábuas, jangadas e balcões de todo tipo que
raramente se aventuram a' passar da perigosa barra que os separa do
oceano sem limites, “Mar Grande” das poderosas e grandes embarca­
ções. A cada um sua tarefa: naus, fragatas, navios e bergantins vindos
de além das Dhas, podem desprezar a barra e trazer da Europa, da
África e da Ásia, suas “peças” de ébano, seus produtos de luxo, seus
comerciantes fogosos e empreendedores. Mas são os marinheiros do
Recôncavo que garantem a subsistência diária e as trocas de todos os
dias. Marinheiros de um mar interno quase tão impetuoso como seu
irmão, o Oceano, marinheiros de rios mais calmos que se afundam
como dedos para o interior das terras, amam os cais de sua cidade, as
praias de sua baía. Pescadores ou transportadores de bens, conhecem
as inúmeras riquezas de sua terra e sabem das traições de suas águas,
de seus céus. Vivem do ritmo próprio dessas terras internas das quais
conhecem a imensidão e as necessidades. São os irmãos do roceiro que
planta a mandioca de seu sustento, ou o açúcar, o tabaco, o café e o
algodão de seus fretes. Bahia e seu Recôncavo, de águas e terras
molhadas por nevoeiros marinhos, são a boca atlântica de terras
imensas que por ela respiram.

Já importante no final do século XVI, Salvador era “o pulmão


por onde respirava a colónia” e, mais tarde, a Província e o Estado da
Bahia. Porto exportador e importador, a Bahia sempre ocupou os
primeiros lugares entre os portos brasileiros. Dos motivos que para
isto contribuíram destacam-se: a importância da cidade como cabeça
política administrativa da colónia, primeiro, da Província e Estado
mais tarde; sua localização no meio da extensa orla marítima
brasileira e sua maior proximidade da Europa que os portos do Sul

61
(103), sua diversidade na exportação de produtos primários como o
açúcar, o tabaco, os couros, a farinha de mandioca, a aguardente, o navios quando, no fim do século XVI (1593), inicia-se o sistema de
algodão, e tantos outros; seu papel de redistribuidor de mercadorias navegação em comboios, enquadrados por navios de guerra (106).
importadas. Mas sobretudo, sua facilidade de acesso para o abasteci­
mento dos navios e seu ancoradouro, relativamente abrigado. As “Em que época se efetuam as travessias? Os navios da rota das
múltiplas funções e os bons desempenhos fazem de Salvador um lugar índias ou de Angola deixam Lisboa em fevereiro ou março, de
de encontro para embarcações de todo tipo. Mas que embarcações? maneira a transpor a linha (Equador) antes de junho, sendo os meses
de junho a setembro os menos favoráveis para essa passagem, e os
Navios de longo curso (séc. XVI - XVIII)
mais favoráveis, os meses de janeiro a março. Em setembro, outubro e
novembro se tem também alguma chance de não ser imobilizado,
Primeiramente, as que vêm de longe, de muito longe, atravessan­ pelas calmarias. Mas as frotas da índias evitam esse período tardio
do mares e oceanos, navegando por longo tempo ao sabor de uma que as obrigaria a esperar a monção em Moçambique durante todo o
navegação baseada em estimativas, castigados por ventos nem sempre verão austral. Pelo contrário os navios que se destinam ao Rio da
v°vi vvm ° U Presos em Perigosas calmarias. Navegar nos séculos Prata têm interesse de zarpar em setembro. A travessia dura dois
AVI, XVII e mesmo até os extremos fins do século XVIII (104) é meses e meio ou três: o encontro se dá em Buenos Aires em começos
prova de coragem invulgar, porém largamente compensada por visões de janeiro quando começa o verão austral. Para o Brasil, tanto se pode
definitívS rápÍd° S 6 consideráveis- miragem de um enriquecimento deixar Lisboa em janeiro-março como em setembro-novembro (107).
Os navios que vão às índias ou que delas retornam não passam longe
do Brasil mas falta-lhes tempo para parar: na ida arriscam-se a perder
Caravelas, galeotas, fragatas, brigues e bergantins; naus, navios a mònção do Sudoeste. Na volta o risco é menor: voltam para Lisboa
urcas, sumacas e até avisos - estes navios minúsculos de grande para ali estarem no mês de outubro antes que comece o mau tempo da
velocidade que num constante vai e vem traziam as ordens da zona temperada. De qualquer maneira evitam o mau período para
Metropole e levavam-lhe as respostas - cingiam os mares em todas as atravessar o Equador de sul para o Norte, período que vai de
direções: de Portugal para a África, para o Brasil, para o rio da Prata,
para as índias distantes. Do Brasil para o Rio da Prata, para as índias, dezembro a março” (108).
para a Afnca, para Portugal, finalmente. Viagens simples de porto a “ Para circular na costa do Brasil, o momento o mais favorável se
p o rto m as tam b ém v iag en s trian g u lare s tip o Portugal- coloca entre princípios de outubro a fins de abril no sentido
G uine-Brasil-Portugal. 6
Pernambuco-Bahia: os navios percorrem então essa distância em 4 ou
5 dias, as vezes em 3, impelidos pela monção Nordeste. Os ventos do
A principio (séc. XVI), a tradição portuguesa permite a liberdade Suleste sopram a partir do final de abril e começos de outu ro e
de trafego marítimo dentro de seus domínios. As embarcações têm a favorecem a navegação no sentido Bahia-Pernambuco. O que explica
possibilidade de deixar os portos portugueses e brasileiros como o
desejarem. Trata-se porém de liberdade relativa pois as condições
impostas pela arte de navegar do tempo limitam as iniciativas: é (106) - LOBO, Eulalia Maria, LAHMEYER. As frotas do Brasil. Ja h rb ^ h fur
preciso aproveitar os ventos propícios tanto na ida como na volta e Geschichte von Staat, Wirtschaft und Geselschaft Latein - Amenkas. (4): 465-488,
sobretudo, evitaras perigosas calmarias (105).
(107) - “No tocante à navegação para o Brasil, diz um missivista do século XVIII,
invocando sua experiência de trinta anos nas coisas do mar que os navios deviam
Os mesmos problemas, as mesmas limitações encontram os procurar a verdadeira monção, saindo|de Lisboa entre 15 a 25 de outubro, para chegar
a Pernambuco até 15 de dezembro, de onde, com menos de uma semana^ estariam na
Bahia, alcançando o Rio até o fim de dezembro graças - acrescentada excelente monção
PA\j|0Sé
raulo. Cia. Editora R? b,1968.
Nacional, e™ d° p. 2.AMARAL A Bahi° ' » Carreira da índia. São que nesse tempo era possível apanhar no sul”. R. do Amaral Lapa, A a ia e a
PUF(I|967 p ^ I l V ^ 0 ’ Frédér'C' L ’exPmsion europêenne (1600-1870). 2* ed.. Paris, (108) -^Afirmação um tanto taxativa, matizada no trabalho de Amaral Lapa,
citado acima. Segundo quadros fornecidos por este autor (p. 330-343). entre o
PUF**1969 pC28N 290U’ C° nquêle el exPhi,a'ion des noureaux mondes. Paris, século XVI e o final do século XVIII (1799), teriam entrado no porto de Salvador, 15s
embarcações do roteiro de índia. Dessas 253 embarcações. 154 aam estiveram entre
1701 e 1799.
62
63
que as frotas do Brasil cheguem em Lisboa em outubro ou novembro. A respeito da rota Bahia-Costa d:’ África, não encontramos dados
No sentido contrário, os navios têm interesse de partir entre setembro referentes aos tempos de viagem de ida e de volta. Sabe-se, entretanto,
e fevereiro. Daí a ordem real de 11 de agosto de 1632 que obriga os que para disciplinar as trocas com aquele continente foi criada na
navios com destino para o Brasil a deixar Portugal entre 1'-’ de outubro Bahia, em meados do ^éculo XVIII, uma companhia composta de 24
e o último dia de fevereiro. Naturalmente, o mau tempo pode retardar mercadores os quais enviavam para a costa da Mina, 24 navios
a data de saída de oito a quinze dias” (109). anualmente, saindo estes sempre em grupo de três navios. Este
A duração média de uma viagem de Lisboa a Bahia era de sistema de monopólio teve vida muito breve pois durou apenas de
aproximadamente dois meses e alguns dias. Esta média permanece 1743 a 1756, restâbelecendo-se após essa data a liberdade de comércio
praticamente inalterável até a introdução da navegação a vapor no mas com uma limitação importante: os navios deviam ser de porte
século XIX (110). F pequeno e não podiam carregar mais de que 3.000 rolos de tabaco.
Apesar de várias tentativas de criar companhias de comércio privile­
Na rota Portugal-índias que implicava quase obrigatoriamente giadas para a África, a Bahia continuou comerciando livremente com
na escala da Bahia, o tempo de navegação foi sensivelmente reduzido aquele continente mesmo até depois da abolição do tráfico negreiro,
no século XVIII. Para isto contribuiu um conhecimento mais perfeito em 1850(114).
do percurso, o incremento comercial, inclusive o intercolonial. que
estimulava a empresa marítima no aperfeiçoamento das embarcações Qualquer que seja a rota, os tempos de navegação são longos,
e na assistência mais eficaz que estas recebiam em terra... (111). muito longos. Longos são também os tempos de permanência nos
Porém, apesar destas melhorias, eram ainda os ventos que disciplina­ portos. Dessa conjuntura o porto de Salvador não escapava. Mesmo
vam as viagens e conforme a direção que estes tomavam falava-se em no auge do ciclo do-ouro (primeira metade do século XVIII) a Bahia
monção favorável ou desfavorável. Os navios partiam do Reino “em permanece uma região de grande importância económica, desenvol­
março ou abril sendo este último mês considerado já tardio em certas vendo intenso comércio com o Oriente, com a África, com Portugal,
épocas, os navios de carreira costumavam chegar à índia em com as Minas Gerais e a Paraíba pela via do São Francisco. Centro
setembro, saindo de volta, normalmente, até princípios de fevereiro distribuidor do ouro para Lisboa e Pernambuco, a exportação de seu
do ano seguinte” (112). Durante a viagem Lisboa-Bahia, de 60 a 70 açúcar e tabaco conserva-se importante apesar das continuas queixas de
dias em média em condições normais, os navios chegavam a Bahia seus fazendeiros e de seus comerciantes. O açúcar da Bahia é ainda o
entre maio e julho. Sua permanência no porto nunca era inferior a que obtém melhor preço no mercado de Lisboa (115).
três meses, tempo considerado normal para o abastecimento e para as
reparações que os navios necessitavam. Navios no Porto

Na rota de retorno do Oriente, a chegada em Salvador se dava em Como já aludimos a instauração no final do século XVI do
fins de abril e até princípios de junho, pois segundo alguns roteiros os sistema de navegação por frotas anuais vai acarretar uma série de
navios deviam partir de Salvador em princípios de fevereiro, enquan­ dificuldades, principalmente no que diz respeito ao abastecimento de
to outros davam a data de 10 de janeiro como último limite,para a navios no porto.
partida. Segundo Amaral Lapa “deviam, porém, partir da Bahia em
fins de abril, pois assim teriam maio, junho e julho para chegar a No século XVIII, as frotas eram constituídas por uma centena de
Lisboa, o que parecia ser o mais aconselhável” (113). navios e, segundo a legislação de 1690, estas eram obrigadas a partir
de Portugal entre 15 de dezembro a 20 de janeiro, dando-se o seu
retorno para Lisboa entre fins de maio e até 20 de julho (116). Essa
imposição de datas fixas provocou na época grandes queixas por parte
tnn^tTrn r MAVRO- Frédèric. Le Portuga! et L'Atlantique au X V II e siècle.
IJ/U-/670. Elude economique. Paris. S.E.V.P.E.N. 1960 p. 71-72 (114) - VERGER, Pierre. Flux et reflux de la traite des nègres entre le golfe de Benm
(M0) - Idem. p. 72.
et de Bahia de Todos os Santos du X V IIa u X X I e siècle. Paris, LaHaye, Mouton, 1968,
(III) - AMARAL LAPA. J. R.do. A Bahia e a Carreira... op cif. p. 139
(M 2)-Idem . p. 140. p. 97-121.
(113)- Ibidem. p. 140. (115) - LAHMEYER LOBO M. E. As frotas do Brasil... op. cit., p. 474.
(116) - Idem, p. 474.
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dos produtores e das Câmaras, pois as datas não coincidiam com as


datas das colheitas dos produtos de exportação o que obrigava guerra da índia incorporada à frota, 1 navio avulso, 1 de licença,
estocar, com prejuízo, os gêneros. Daí a ordem del-Rei, de julho de ambos mercantes, 2 naus de guerra, 1 navio de aviso, 1 navio de
1691, mandando as frotas obedecerem na volta ao Reino as seguintes guerra de Goa com escala na Bahia.
datas: Rio de Janeiro, 15 de dezembro, Bahia, fim de dezembro, de 1746 - 1 navio de licença de comércio, 1 aviso.
Pernambuco até 20 de janeiro (117). 1747 - 23 navios mercantes, 1 nau da índia da frota, 1 nau de guerra
de comboio, 2 navios de comércio de licença. 1 aviso. 1 nau de Macau
As frotas de comércio que deixavam Lisboa incorporavam navios com escala na Bahia.
destinados à Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro, Paraíba, além de 1748-42 navios mercantes, 1 nau da índia. 1 nau de guerra de
outros portos brasileiros, bem como os que iam para a Angola, Macau comboio, 1 nau de licença, 1 nau de Goa com escala na Bahia, 1 aviso.
etc. (118). Com as frotas que partiam da Bahia se dava a mesma coisa: 1749 - 1 nau de licença, 3 da índia com escala na Bahia.
em fevereiro e por alguns dias reuniam-se em Salvador os navios 1750 - 20 navios da frota, 2 naus da índia com escala na Bahia.
vindos do Rio com as naus de índia que, por sua vez uniam-se à frota 1751-1 nau de licença, 1 aviso.
baiana para sair em um só comboio para Pernambuco (119). Assim, 1725-25 navios da frota, 1 nau de guerra de comboio, 1 nau de
na prática, as resoluções de ordem real de 1691, que estabeleciam licença, 2 naus da índia com escala na Bahia, 1 nau de guerra, 1 aviso.
datas fixas, não foram obedecidas o que acarretava durante vários 1753 - 32 navios da frota, 1 nau da índia incorporada à frota, 1 navio
meses a presença de numerosos navios no porto. Abolidio em 1765, o mercante.
sistema de navegação em comboio foi restabelecido entre 1797 e 1801 1754- 20 navios da frota. 1 nau da índia incorporada à frota, 1 nau de
quando foi definitivamente extinto. guerra de comboio, 1 navio mercante, 2 avisos.
1755- 19 navios da frota, 2 naus da índia, incorporadas, 1 nau de
Quantos navios compunham a frota da Bahia? A composição guerra de comboio. 1 nau de licença.
numérica da frota da Bahia variava muito. Havia até mesmo anos que 1756- 21 navios da frota, 1 nau de guerra de comboio. 1 nau de
não vinha frota para a Bahia. A tabela que segue dá conta das entradas licença, 1 navio mercante do Rio de Janeiro com escala na Bahia.
no porto de Salvador das frotas vindas de Portugal entre 1739 e 1763: 1757 - 1 nau de licença, 1 nau da índia com escala na Bahia.
1758 - 33 navios da frota, 1 nau da índia com escala na Bahia, 1 aviso.
1759 - 30 navios da frota, 1 nau da índia, 1 navio mercante, 1 nau de
TABELA N‘-‘IV guerra, 1 aviso.
COMPOSIÇÃO NUMÉRICA DAS FROTAS DA BAHIA: 1739- 1760 - 1 navio mercante, 1 nau de guerra, 1 nau de Macau com escala
1763 na Bahia.
1761-1 nau de licença, 1 navio mercante.
1762 - 31 navio de frota, 1 nau de guerra de comboio. 1 nau da índia
1739 - 3 navios mercantes da frota. incorporada à frota.
1740-40 navios mercantes. 2 naus de guerra de comboio. I de licença. 1763 - 53 navios da frota, 1 nau de licença. 3 navios mercantes, 2 naus
1 iate. de guerra, 1 aviso (120).
1741 -32 navios mercantes. 1 nau de guerra de comboio. 1 nau de
Macau via Salvador. 2 naus de guerra. “Portanto 17 frotas em 25 anos e 21,6 entradas de navios
1742 - 2 naus de licença de comércio. mercantes provenientes da Bahia, em Lisboa, em média, por ano,
1743 - 1 nau de licença de comércio, 1 nau de guerra e 1 aviso. incluindo além dos mercantes da frota os de licença e as naus do
1744-37 navios mercantes. 2 naus da índia. I nau de licença. 1 nau Oriente que fazem escala na Bahia. Se computarmos as naus de
de guerra, 1 aviso. guerra (24) e os avisos (9) considerando que as primeiras transporta­
1745 - 33 navios mercantes. 1 nau de guerra de comboio. 1 nau de vam ouro do estado e ambos mercadorias, atingimos a média de 22,9
entradas por ano em Lisboa” (121).
(117) - AMARAL LAPA, J. R. A Bahia ea Carreira... op. cit., p. 154.
(118) - Idem, p. 156. (120) - LAHMEYER LOBO, M. E. As frotas do Brasil... op cit., p. 473-474.
(119) - íbidem, p. 156. (121) - Idem, p. 474.

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Trata-se, pois, de frotas numerosas e frequentes, num período em de capacidade estimada pode ser controlado pela única informação
que a atividade produtiva de exportação da Bahia, principalmente no concreta que possuímos:
concernente ao açúcar, está se recuperando lentamente. -
“No começo do século XVIII, D. Lourenço de Almeida chegara
Extrapolando estes dados para o período que se segue a 1763, e, de Angola para empossar-se no governo da Bahia e escrevia para
pelo menos, até o fim do período colonial acrescentando ainda um Lisboa, ao Secretário de Estado, dizendo: “neste porto se acham ao
número ideal de navios vindos de portos brasileiros e africanos, todo 90 navios: 8 naus de guerra da Corôa, e Junta, 3 da índia, 54
pensamos que se pode calcular uma entrada média anual no porto da navios mercantes, os maiores que andam na Carreira, da frota do Rio
Bahia de pelo menos 90 a 100 navios, com permanência de um até três de Janeiro 25, os quais vieram acabar de carregar, e refazer-se de
meses. Mas, de que tipo de navios se trata? mantimentos na Bahia, em tempo que pela grande seca que tem
havido, são custosíssimos de achar... “e acrescentava” em todos estes
Tipos de navios e homens a bordo navios seguiam ir 9 para 10 mil pessoas entre os da guerra, marítimos
e passageiros11.” (124)
Os estudiosos das construções navais do passado, que analisaram
os problemas de arqueamento e de tonelagem dos navios que cingiam É evidente que se trata de uma situação excepcional dificultada
os mares, têm demonstrado as dificuldades que existem em chegar a ainda pela existência de uma seca. Mas, para uma cidade que contava
uma tipologia geral classificatória dos navios de outrora. na época um pouco mais de 20.000 habitantes (125), a presença de um
contingente de população flutuante, que representava quase a metade
Frédéric Mauro, que estudou longamente o assunto, propõe uma da população fixa, seguramente trazia sérias perturbações ao mercado
classificação a partir da combinação de certas variáveis. A primeira consumidor. Um mercado que aliás sofria de serias distorções do tipo
variável a ser determinada é a própria função que o navio desempe­ estrutural como veremos mais adiante. Mas, quer fosse no princípio
nha, isto é, se é um navio mercante ou de guerra. Depois, e somente do século XVIII, quer no princípio do século XIX, este número
depois, deve-se estudar o seu tamanho e por conseguinte sua excessivo de consumidores temporários provocava sérios transtornos
capacidade e velocidade (122). Evidentemente, trata-se de um proble­ no abastecimento em víveres da população sempre contribuindo para
ma capital que, malgrado os esforços feitos, permanece ainda sem aumentos desmedidos de preços dos gêneros de primeira necessidade
resposta satisfatória. Todavia, o que interessa diretamente este estudo (126).
é saber que número de novos consumidores era despejado no mercado
de Salvador com a chegada das frotas, ou com a entrada de um Se há navios que vêm de longe, de muito longe, atravessando
número avultado de navios de longo curso no porto de Salvador. mares e oceanos, há também navios de longo curso que palmilham as
Infelizmente os dados que possuímos são muito precários. Se, por um costas pondo em contato regiões afastadas. Essas embarcações devem
lado, podemos calcular a média entre tripulantes e soldados que trazia transpor dois obstáculos: os que vêm do Norte, o famoso cabo de
uma nau da índia, embarcação de grande porte, utilizada na carreira, Santo Agostinho, os que vêm do Sul, os 8 ilhotes dos Abrolhos.
é-nos, por outro lado, impossível conhecer com precisão o número de Embarcações que trazem para Bahia estes víveres de primeira
homens que vinham a bordo dos navios mercantes. necessidade: carnes secas de São Pedro do Rio Grande, farinha de
Antonina, de São Mateus, de Paraíba e Rio Grande do Norte (127).
i
Para as naus das índias, a média pode-se estabelecer em torno de
350 pessoas (123). Esta média pode também ser conservada para'as (124) - AZEVEDO. Thales de. Povoamento da cidade... op. cit., p. 286.
fragatas e naus de guerra. Mas quando se aborda o problema dos (125) - Idem. p. 185.
navios mercantes, considerando os de todo tipo, temos que partir para ( 126 ) - Cf. parte llí deste estudo.
a estimativa e propor uma média variável entre 50 e 100 pessoas, (127) - “O comércio interno dos baiknos. com as regiões afastadas da colónia é
entre marinheiros e passageiros, para cada navio. Este último cálculo igualmente considerável e extenso: com o sul. de modo especial, sendo muito lucrativo
o do Rio Grande, dada a maneira indolente e irregular na qual é conduzido. Uns
quarenta navios, de duzentos e cinquenta toneladas cada um. acham-se nele empenha­
í 122) - MAURO, F. L ' Expansion européenne... op. cit. p. 277. dos: raramente completam suas viagens em dois anos. embora a distância seja apenas
(123) - AMARAL LAPA, J. R. A Bahia e a Carreira... op. cit., p. 305-321. de vinte graus ao sul. Transportam quantidades insignificantes de água ardente, açúcar.

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embarcações de longo curso das quais 1361 são mercantes e 32 de
Sua história, aparentemente menos heroica, é mal conhecida, seus guerra (130). E m l871-72 são 461 navios que frequentam o porto
tempos de viagem ignorados, suas peripécias esquecidas. Ainda à trazendo tripulação de 11.239 marinheiros. Em 1873-74 são 1509 os
espera de quem lhes desvende os mistérios. navios que aportam e 46.516 o número de marinheiros (131).
Fin^Jaaente, em 1891 o porto de Salvador foi frequentado por 730
Navios de longo curso (Séc. X IX e XX) navios dos quais 577 eram movidos a vapor e 153 a vela (132).
N o mesmo tempo a população da cidade crescia: passava-se
As novas conquistas na arte de navegar, o emprego nas longas
dos 50.000 habitantes no princípio do século XIX para 108.138
travessias de embarcações movidas a vapor, a abertura dos portos às
habitantes em 1872 e 144.959 em 1890. A situação de abastecimento
nações amigas, em 1808, vai modificar o panorama das navegações
da cidade melhorava, porem, Salvador era um dos portos mais caros
transatlânticas. Essa mudança é porém lenta. Os marinheiros têm
do Brasil.
agora bom conhecimento do regime de ventos e das correntes
marinhas em todas as marés do mundo. Possuem ainda, no século
Segundo Amade E. B. Mouchez (133), as aguadas eram fáceis e
XIX, indicações de roteiros ideais para os veleiros que ainda cingem
eram feitas ou na fonte da Gamboa, ou na de Água de Meninos, sita
os mares, traçados pelo tenente Maury. Estas rotas, porem, pouco
ao Norte do Arsenal da Marinha. Os navios se abasteciam em frutas
diferem dos antigos caminhos marítimos dos séculos XVII e XVIII
(mangas, bananas, laranjas e abacaxis), legumes e peixes excelentes,
(128). Por outro lado, o cronómetro marinho, que havia atingido sua
mas a carne de carneiro e de vitela era desconhecida e as galinhas e
forma perfeita no final do século XVIII, só é utilizado pelos navios
carne de boi de péssima qualidade. Os víveres tinham dobrado de
mercantes a partir da primeira metade do século XIX (129). Mas, não
reço nos últimos dez anos (1855-1865) e eram tão caros quanto no
resta dúvida que já se possuem melhores conhecimentos geográficos,
o que torna a navegação mais segura. Todavia, só o uso generalizado
Sio de Janeiro. Mouchez atribuía essa carestia ao número cada vez
maior de paquetes que demandavam o porto de Salvador e à progressi­
do navio a vapor, nos fins do século XIX, traz maiores benefícios,
va diminuição do braço escravo cuja força de trabalho era empregada
encurtando tempos e oferecendo maior conforto às tripulações e aos
nos trabalhos agrícolas e no transporte de mercadorias (134). Pode-se
passageiros.
ainda acrescentar que a presença de um forte contingente de
A abertura dos portos, em 1808, abre novos contatos com as marinheiros (46.516 em 1873-74) e a deficiência crónica no abasteci­
mento do mercado em gêneros alimentícios, pioravam a situação,
nações européias e americanas: Grã-Bretanha e seus domínios,
cidades Hanseáticas, Itália, Holanda, França, Portugal, Espanha, mesmo sé o tempo de permanência no porto tinha sido encurtado: no
máximo 15 dias contra 1,2 e até 3 meses nos séculos XVII e XVIII.
Bélgica e tantos outros, entram no circuito das trocas comerciais
diretas. O porto de Salvador serve de ponto de arriba aos navios que
vêm descarregar suas mercadorias, carregar os produtos da terra, e Para este encurtamento do tempo de permanência no porto
fazer seu abastecimento em água e víveres. Fluxo e refluxo constante concorria também o estabelecimento, a partir de meados do século
e incessante, condicionado todavia pela situação de mercado, pela XIX, de linhas regulares de comunicações, quer seja para o exterior,
maior ou menor aceitação que tinham os produtos de terra no
mercado externo. Em 1868 entram no porto de Salvador 1398 (130) - FALLA recitada na abertura da Assembleia Legislativa da Bahia (Bahia
1868), p. 15.
(131) - FERREIRA, M. J. A Província da Bahia... op. cil.. p. 90-91.
louças e artigos europeus (principalmente ingleses e alemães) que trocam, em sua maior (132) - VIANNA, Francisco Vicente. Memória sobre oEstado da Bahia Feita por
parte, excetuando o sal, num comércio de contrabando com os espanhóis de ordem do Exmo. Sr. Dr. Joaquim Nabuel Rodrigues Lima, Governador do Estado da
Maldonado e Montevidéu, recebendo em prata. Durante esse tráfico, ocupa-se a Bahia, pelo Diretor do Archivo Público, Dr. Francisco Vicente Vianna. auxiliado pelo
tripulação em carregar o navio com carne seca e couros, produtos do bom gado amanuense da mesma repartição José Carlos Ferreira. Bahia Typographia e Encader­
existente nas savanas vizinhas do Paraguai. Depois de abatidas as reses, sua carne é nação do Diário da Bahia, 1893, p. 170.
cortada em pedaços finos, de uns dois pés de comprimento, salgada, secada ao sol e (133) - MOUCHEZ, Amade E. B. Les côles du Brésii Description el instruciions
defumada, sendo os couros curtidos ao mesmo tempo". LINDLEY. Thomas. Narrativa nautiques. Ile section, De Bahia à Rio de Janeiro, Dépôt des cartes et de la marine
de uma viagem ao Brasil. São Paulo, Cia. Editora Nacional; 1969, p. 171. Paris, Imprimerie Administrative de P. Dupont, 1864, p. 40-41.
(128) - MAURO, F. L ’expansion européenne... op. cil.. p. 112. (134)- Idem, p. 41.
(129) - Idem, p. 111.
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ou para os portos brasileiros. Todas essas linhas eram propriedade de intimidade vivida por Salvador, a capital, com a sua hinterlândia
Sociedades cujos membros eram armadores estrangeiros e suas sedes próxima' e seus portos mais afastados, tinha por elo principal o mar
se achavam nos países de origem destes (135). Os paquetes que pois eram precárias ou inexistentes as vias terrestres.
serviam as linhas transportavam mercadorias e passageiros e usu­
fruíam de contratos privilegiados: as subvenções recebidas do governo Mar da baía, ou mar aberto, condutor de homens, condutor de
brasileiro criavam verdadeiros monopólios, ferozmente defendidos gêneros, por vezes caprichoso e traiçoeiro, mas sempre presente para
pelos seus usufruidores. Este era o caso, por exemplo, da Companhia oferecer seus serviços. Deste mar, a embarcação é o corpo, as velas e
“Liverpool, Brazil and River Plate Mail Steamers”, que, em 1867, os remos seus braços, os homens sua alma na velha tradição da
recebeu autorização com privilégios para o transporte de malas de humanidade. Tradição ainda presente nos dias de hoje, ainda que
correio e para a realização de duas viagens mensais, com paquetes menos visível, encolhida que foi no tempo pelos avanços da moderni­
saindo dos portos de Liverpool, Antuérpia, Londres, Portugal e até de zação que criou novos condicionamentos, novas alternativas. Os
Nova York (136). velhos saveiros de carga transformados em iates de lazer passaram a
contar outras histórias.
Navios de cabotagem
Essa navegação de cabotagem, de pequena cabotagem, sofre, em
“O comércio realizado nas mediações da Bahia, grande parte do
meados do século XIX, um primeiro golpe: encontra na sua frente um
qual com o interior é espantoso. Oitocentas lanchas e sumacas de
forte concorrente na muito cfficial “Companhia de Navegação Baia­
vários tamanhos trazem diariamente sua contribuição para o comércio
com a capital: fumo, algodão, drogas diversas de Cachoeira; o maior na” que, como suas congéneres da navegação de longo curso, tem sua
sede em Londres, usufrui de contratos privilegiados e, apesar disto,
sortimento de louça comum de Jaguaripe; aguardente e óleode balela,
queixa-se sempre de insuficiência de lucros o que lhe permite distribuir
de Itaparica; farinha (de mandioca) e peixe salgado de Porto Seguro;
com parcimónia dividendos a seus associados locais (139). Esta
algodão e milho dos Rios Real e São Francisco; açúcar, lenha e
companhia que introduz um toque de modernidade nas velhas rotas
legumes de todos os lugares. Uma riqueza em gratí desconhecido na
marítimas, outrora exploradas a remo ou a vela, utiliza, navios a
Europa, e assim posta em circulação...”. Com este testemunho de
Thomas Lindley, aqui aportado nas raias do século XIX (137), vapor e esséncialmente explora três roteiros:
concordam os testemunhos de mais de centena de viajantes que
passaram da Bahia nos seus três séculos de história vivida. Ainda no A Linha Norte, cujos vapores tocam nos portos de Aracaju. Penedo
final do século XIX, estimava-se em um milhar as embarcações de e Maceió, realiza em 1868 quatro viagens por mês. Seus vapores saem de
todo tipo que faziam o comércio dos rios e da baía de Todos os Santos Salvador nos dias 6, 15, 21 e 30 para harmonizar com a chegada dos
(138). vapores nacionais e estrangeiros vindos do Norte ou do Sul. Salvador é
ainda na época, porto reexportador de mercadorias para o Norte (140).
Barcos-do-Recôncavo, saveiros de carga, saveiros de pesca,
lanchas-rabo-de-peixe, jangadas de xaréu, jangadas a remo, jangadas
a vela, canoas e barcaças, coalhavam diariamente a enseada do porto, A Linha Sul conduz os vapores da Companhia aos portos de
despejando na terra mercadorias, mercadorias as mais variadas e
várias centenas de marinheiros, de comerciantes e de passageiros:Essa (139) - FALLA recitada na abertura da Assemblèia Legislativa da Bahia... (Bahia,
1871) p. 23-28. O primeiro privilégio para a constituição de uma linha regular de
navegação foi obtido em 1836 por João Diogo Sturtz, privilégio que passou mais tarde
(135) - Havia, em 1893, 9 companhias estrangeiras que exploravam linhas a Diogo Asthley e C. Em 1847, Fundou-se a Companhia Bonfim, encarregada da
regulares de vapores de longo curso que tocavam em Salvador. Destas, 3 eram inglesas, navegação- interna da baía indo até o porto de Valença. Em 1852, sob iniciativa do
2 francesas, 2 alemãs. 1 americana do norte e I italiana. Para mais detalhes cf. F.V. comerciante Antonio Pedroso de Albuquerque foi fundada a Companhia Santa Cruz
v'ianna. Memória sobre... op. cit., p. 167-170. para promover a navegação costeira de Maceió, ao norte, até Caravelas, ao suLAmbas
(136) -A sede da companhia estava em Liverpool, cf. F. V. Vianna, Memória companhias foram, em 1862, incorporadas sob a denominação de Companhia Bahiana
sobre... op. cit.. 167. de Navegação a vapor.
(137) - LINDLEY, Th. Narrativa... op. cit., p. 171. (140) - FALLA, recitada na abertura da Assemblèia Legislativa da Bahia... (Bahia,
(138) - MOUCHEZ, A. E. B. Les cotes du Brésil... op. cit., p. 52. 1869). Relatório de Hugh Wilson ao Presidente da Província. Barão de São Lourenço.

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Camamu, Ilhéus, Canavieiras, Porto Seguro, São José, Colónia
Leopoldina, numa viagem redonda mensal. Este sistema inaugurado “companhia de Navegação Baiana” permitiu que vivessem os velhos
em 1853, era considerado, em 1868, inconveniente porque o navio lobos do mar e as mil embarcações de outrora continuavam ainda
chegava com frequência em portos abarrotados de mercadorias, sem numerosas, muito numerosas mesmo, a rasgar as águas da baia em
possibilidades de tudo carregar pois todos esses portos eram de busca do porto da formosa capital de São Salvador. Mas. que porto?
barja-fora o que castigava muito passageiros e mercadorias. Por isso a
companhia propunha desdobrar esta viagem mensal em três viagens
com itinerários diferentes (141). Capítulo II - Um porto acolhedor e seguro?

A Linha interna, ou linha do Recôncavo ia até Caravelas (sic!) e Vindas do Ocidente, da África ou Oriente; das costas Norte ou
se desdobrava em vários itinerários: Sul brasileiras, as embarcações que demandavam o porto de Salvador
descobriam, ao chegar nas entradas da Baía de Todos os Santos uma
A Linha de Santo Amaro era quase exclusivamente de passagei­ larga enseada que por si mesma era um porto, o maior porto do
ros e servia a região do Agreste baiano (Alagoinhas, Purificação, Mundo. “Porto que poderia abrigar no seu seio todos os navios do
Inhambupe e Feira de Santana) pois Santo Amaro desempenhava o mundo” como dizia Maurício Lamberg por volta de 1897 (144).
papel de ponto de ligação entre o litoral e o interior.
Mas a imensa baía não é o porto de Salvador. Este se reduz a um
Na Linha Cichoeira-Maragogipe eram utilizados principalmente pequeno golfo natural, frente ao horst dominando a praia e sobré a
vapores de carga pois a cidade de Cachoeira mantinha relações com qual levantou-se o primeiro núcleo da cidade em meados do século
todo o sertão do Oeste. De Cachoeira saíam os caminhos para Feira, XVI (145). “Protegidas de qualquer vento e cercadas por uma
Caetité, Lençóis, Barra do Rio de Contas e era dali que partiam as paisagem exuberantemente rica, as frotas podem entrar com seguran­
tropas para Curralinho, Tapera, Jacobina, Monte Alto e Urubu. ça e ancorar num golfo que parece ter sido feito pela natureza para ser
o empório do mundo e para receber suas frotas” (146). Opinião
A Linha Nazaré-Valença-Caravelas ligava à capital importantes entusiasta, aliás compartilhada pela maioria dos viajantes que chegam
cidades. A primeira, Nazaré, era produtora de farinhas (mandioca); a Salvador. Outra porém era a realidade.
Valença, a segunda, fazia figura de cidade industrial com sua
manufatura de tecidos, fundada emi 1844. Finalmente, a terceira, Apesar de ser considerado como um bom porto, Salvador apresen­
Caravelas, era conhecida como grande produtora de farinha, de tava para a navegação da época uma série de dificuldades. Vários
feijão, e de algodão (142). motivos faziam com que os navios fossem sempre objeto de grandes
precauções quando aportavam ou zarpavam. As barras de entrada na
A mesma “Companhia de Navegação Baiana”, absorvida em Baía ofereciam, às manobras de entrada e de saída, várias dificulda­
1894 pelo “Lloyd Brasileiro”, explorou por pouco tempo uma linha de des que eram muitas vezes agravadas pelos baixios, pelos ventos e
navegação do litoral da cidade que saía do porto da cidade baixa para pelo intenso movimento de embarcações. Exigia-se grande perícia
a Ribeira de Itapagipe, com escalas em Jequitaia, Roma (Boa para se evitarem abalroadas e soçobros (147). Avé-Lallemant chegan-
Viagem), Mont-Serrat e porto do Bonfim (143). Em 1898 explorava
linhas que ligavam Salvador com Madre de Deus, Santo Estevão e, (144) - O mesmo dissera Lindley em 1802:"havendo espaço para que se possa
Bom Jesus. reunir sem confusão todas as esquadras do mundo" (op. cil.. p. 160) e Asschenfeld:
"tão grande que talvez todos os navios a vela do mundo aí pudessem ancorar com
seEurança" (ALGEL, Moema Parente. Visitantes estrangeiros na Bahia oitocentista.
Contudo, apesar de representar uma forte concorrência, a Salvador-Bahia. 1975. p. 147 (Tese de mestrado - UFBa.)
(145) - SAMPAIO. Theodoro. História da fundação da eidade do Salvador, Bahia.
(141) - Idem. T;pografía Beneditina, 1949. ,
(146) - SCULLY, William. Brasil: Its Provinces and chief cities. the manners ana
(142) - FERREIRA. M. J. A Província da Bahia... op. cil., p. 90-91. customs o f the people, agricultura/, commercial and other statistics taken from the latest
(143) - FALLA, recitada na abertura da Assembléia Legislativa da Bahia.. (Bahia, offtcial documents; with a variely o f useful and entertaining know ledge, hoth for t te
1866Lp. 37-40.
merchant and the emigram. London, Murray. 1866, p. 348-349.
(147) - AMARAL LAPA, J. R. do. A Bahia e a Carreira... op. cit., p. 141.
74
75
do na Bahia pelo Rio de Janeiro, a bordo do paquete “Paraná”, e após passagem dominada pelo Morro de São Paulo e seu cabo de pequenos
6 dias de viagem, assim descreve sua chegada: “sua entrada (da baía) penhascos avermelhados de 60 m de altura.
é fácil e segura, não necessita de auxílio de piloto nem balizas para
indicar o caminho. Contudo logo ao Sul dessa entrada, no meio de A entrada da baía achava-se balizada por dois faróis: o de Santo
vasta extensão de águas navegáveis, ergue-se um banco de areia Antônio “que poderia ter sido melhor situado para os navegadores se
medindo nos lugares mais rasos apenas 15 pés de profundidade, pelo fosse construído na ponta de Itapuzinho”, cuja altura era de 12 m
que as embarcações.de grande calado terão de evitá-lo. De ambos os acima do nível do mar, e o de São Paulo, cuja torre branca tinha 8 m
lados do banco, porém, as águas são profundas e seguras, mesmo para de altura.
os maiores navios de linha” (148).
Transposta a barra aberta que vai de um farol a outro, um só
Mas se para os paquetes a vapor do século XIX era fácil entrar na perigo ameaçava os navios cujo calado era superior de 4 a 5 metros:
baía sem piloto, isto não ocorria no tempo da navegação a vela, pois era o banco de areia de Santo Antônio cuja profundidade menor era
se tratava de embarcações cujas reações, diante de dificuldades de 5 a 6 metros. Era necessário contornar este banco, ou pelo
imediatas, eram mais lentas: os movimentos dependiam afinal do Sul, utilizando a grande passagem, ou pelo Norte, utilizando a
bel-prazer dos ventos. Por esta razão desde os primeiros tempos de pequena passagem. De costume os navios a vapor e os veleiros
navegação, medidas de assistência às embarcações aportadas haviam preferiam a rota Norte, ou pequena passagem, que os guiava entre o
sido tomadas. Marinheiros experimentados na arte de navegar, e nas banco de areia de Santo Antônio e a ponta de Santo Antônio. Este era
técnicas necessárias à condução dos navios ao ancoradouro, eram o caminho mais curto principalmente quando se chegava pelo NE e
enviados ao morro de São Paulo que comanda a barra sul da entrada por Itapuzinho. Ali as profundezas nunca eram superiores a 15 m.
na baía, a fim de vigiarem o mar na época em que eram esperadas as
frotas do Oriente (149). Outro recurso empregado para facilitar as Se o navio preferisse ter espaço para bordejar - e isto acontecia
manobras e a balizagem das barras, era a manutenção de faróis com frequência por mau tempo - devia tomar a rota Sul, ou passagem
acesos, principalmente o de Santo Antônio da Barra que comandava a grande, rota que deixava o banco de areia de Santo Antônio a Leste.
eiltrada norte da baía, ou barra grande. Neste caso se devia evitar os recifes de Prapatingas que avançam até 2
milhas a Oeste ao largo da ilha de Itaparica e se prolongam com toda
Vejamos com maiores detalhes em que consistiam essas dificulda­ sua largura até a barra de Jaguaripe. Ficava porém uma entrada real
des. Para isso demos a palavra ao comandante Mouchez cujas de 4 milhas de largura onde o bordejar era fácil. Avançava-se
instruções náuticas de 1864, ensinam como entrar no porto com toda sondando o fundo do mar e modificando o rumo cada vez que a
segurança (150). profundidade alcançava 10 m.

Segundo o capitão de fragata francês, a chegada à terra não Porém, na altura do paralelo do farol de Santo Antônio, era
apresentava nenhuma dificuldade, se os ventos estivessem soprando necessário redobrar os cuidados pois ah os recifes Prapatingas
na direção NE, se chegue pelo N do cabo de Santo Antônio após ter estendem-se muito além da ponta NE de Itaparica, estreitando o
margeado as pontas de Itapõa e Itapuzinho, cobertas de dunas e de canal de passagem que passa a ter apenas 2 milhas de largura. Por
coqueiros. Neste rumo se devia desconfiar da deriva das correntes Sul, outro lado, ao largo da ponta de Nossa Senhora da Penha, o mar
freqúentemente rápidas ao longo da costa. Se pelo contrário os ventos esconde novos bancos de areia e recifes perigosos. Quase todos os
dominantes chegassem de SE (151) a baía deveria ser abordada pela naufrágios que se deram na baía de Todos os Santos foram causados
por pilotos imprudentes que jogaram os navios contra os recifes de
Itaparica ou da Penha.
(148) - AVÉ-LALLEMANT, Robert C. Viagem pelo Norte do Brasil no Ano de
1859. Trad. de Eduardo de Lima Castro, Rio de Janeiro, InstitujtoiNacional do Livro
1961,-2 vols, vol. I, P- 17-18. Para ancorar no porto, três escolhos deviam ser evitados. O
(149) -AMARAL LAPA, J. R. do.A Bahia e a Carreira... op. cit., p. 143 - 144 . primeiro era o conjunto de rochas denominado Panella, banco de
(150) - MOUCHEZ, A. E. B. Lescôtesdu Brésil... op. cit., p. 30-60., recifes de forma circular de meia milha de diâmetro, cujo centro se
(151) - Cf. p. 76 P parte desse trabalho, dedicada à ação dos ventos na baia de acha a três quartos de milha a NO do forte de São Marcelo. Em certos
Salvador.

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pontos desse banco de recifes o mar tem uma profundidade de apenas geral acompanhadas por horas de calmaria. Mas por volta de 10 a 11
5 m. Porém, era nos arredores de Panella que se encontravam os horas da manhã, a brisa levanta-se de novo, soprando de Leste-SE,
melhores ancoradouros com 20 a 24 m de profundidade a Oeste, 15 a até o pôr do sol, trazendo mansamente para o porto os navios que o
16 m ao Norte, ao Sul e a Leste; entre o banco e o forte de São demandam. O sol nos trópicos se deita cedo; entre 5 a 6 horas da
Marcelo há 12 a 13 m de profundidade. Infeliz o navio que deixava tarde. Ness horas a brisa novamente cai e o veleiro imprudente é
cair sua âncora sobre um fundo rochoso! obrigado a esperar até 9 da noite para entrar no porto quando se
levantam as brisas noturnas que sopram de vários pontos da baía, até
O segundo escolho a ser evitado era a carcaça do navio o levantar do sol. Baía generosa que oferecia aos veleiros a gama
“France” incendiado e afundado a 26 de setembro de 1856 em 8 m amiga de seus ventos e de suas marés e que, afinal, transformava seu
de profundidade. porto em porto acolhedor e seguro.

Finalmente, o terceiro escolho era um banco de areia situado


pertíssimo da terra e curiosamente assinalado por uma bóia vermelha. Do porto natural antigo ao porto moderno
Era o banco da Gamboa, ou bane da ciudad (sic) por se achar pertíssimo
da cidade. Este banco, prolonga a costa do forte da Gamboa até 400 a
“Da barra ao largo do forte de Santo Antônio, nos
600 m de distância e seus fundos de 2 a 3 m são fáceis de serem
evitados. Recomendava-se o maior cuidado para não imitar esse confins da grande península, até a ponta de Monte-Serrat
grande transatlântico que, em 1860, não conhecendo o significado da (pequena península dentro de maior) e a praia de Itapagipe,
bóia teve a absurda idéia de passar entre esta e a terra. Naturalmente fica o ancoradouro bem abrigado de todos os ventos e em
o paquete encalhou. Felizmente a maré estava baixa e o fundo pouco lugar desimpedido, havendo espaço para que se possam reunir sem
resistente. A maré alta desencalhou o navio que acabou não sofrendo confusão todas as esquadras do mundo”, assim opinava o contraban­
nenhuma avaria! dista inglês Lindley no alvorecer do século XIX (152). Todavia, apesar
dessa opinião otimista, aliás, endossada pela maioria dos visitantes
que vieram à Bahia no século passado (153), já na segunda década do
Banco arenoso de Santo Antônio, recifes Prapatingas, recife e mesmo século XIX, as autoridades e os particulares preocupavam-se
bancos da Penha, rocha Panella, banco de Gamboa eis os nomes dos com os problemas de um porto tão visitado. Ainda que possuísse
perigos reais a exorcisar para quem desejava abrigar-se no ancoradou­ ótimas condições naturais, o porto pedia certas melhorias.
ro dos navios de guerra, que se encontrava a SO do “porto do mar”,
com os navios de guerra brasileiros dispostos o mais perto possível do
arsenal da marinha, e os navios de guerra estrangeiros arrumados o Coube ao conde dos Arcos a primeira iniciativa de melhoramento
mais longe. Os navios mercantes podiam se abrigar de todos os do porto da Bahia. Desde 1816, este capitão geral pretendia melhorar
as condições de embarque e de desembarque de passageiros e de
ventos, deitando suas âncoras a 400-600 m da rocha Panella.
Certamente o porto era sempre tão atravancado, os navios eram tão mercadorias principalmente para os barcos vindos dos portos de
mal alojados que era preciso ter o máximo de cuidados para não interior 'da baía. Estes eram muitas vezes obrigados a arribar em
deitar a âncora sobre a âncora do vizinho. Isto obrigava com frequên­ diversos pontos do golfo por não poderem dobrar o promontório e
cia procurar um ancoradouro mais distante, isto é, distante do cais, o recifes da ponta de Monte Serrat. Projetou-se abrir, na época, um
que dificultava o desembarque cômodo dos passageiros e das canal entre o braço do mar de Itapagipe, no lugar denominado
mercadorias. Mas nunca era preciso temer o mau tempo. O mar somente Papagaio e a praia de Jequitaia. Este canal iria permitir, às embarca­
castigava os navios ancorados ao largo na hora da viração ções de cabotagem, um fácil acesso ao ancoradouro de Itapagipe ao
da maré nas épocas de nova lua ou de lua cheia, quando as trovoadas mesmo tempo em que iria descongestionar o porto da cidade
reservando-o para as embarcações de longo curso (154). A idéia porém
de SO coincidem com as mais fortes marés. Mas então, bastava
esperar que o mar se acalmasse para sair do porto tranqiiilamente.
Aliás, para zarpar, era conveinte aproveitar a doce brisa matinal, brisa (152) - LINDLEY, Th. Narrativa... op. cit., p. 160.
((53) - Cf. com a minuciosa tese de mestrado de Moema Parente AUGEL,
N-NE que, com a vazante, conduzia rapidamente os navios para o Sul dedicada aos visitantes estrangeiros na Bahia no século XIX. Obra citada na nota 144.
do banco de Santo Antônio. As brisas matinais vindas da terra são em (154)- SPINOLA, Celso. Portos do Estado da Bahia Jjn Diário Oficial. Publicação

78 79
não vingou: o projeto foi considerado dispendioso pelo governo havia sido decidido, quando os concessionários comunicaram ao
colonial agonizante. Esquecido, o mesmo projeto veio à tona em 1845. governo a dissolução da sociedade reclamando inclusive uma índemza-
O então Presidente da Província, general Andrea, propôs retificar o ção que não foi atendida (156). Tal desinteresse temsua exphcaçao: a
traçado original do projetado canal, revestindo suas margens com um década dos 70 trouxe para a economia baiana uma das piores cnses de
cais e ruas longitudinais, o que permitiria embelezar o porto e facilitar sua história, principalmente para seu principal produto, o açúcar. Por
as comunicações. As obras para a execução do novo projeto, embora outro lado, o próprio mundo ocidental entrava em fase de depressão
iniciadas, foram interrompidas em 1849 por ter sido julgada sua económica. Essas sombrias perspectivas devem ter pesado na decisão
execução dispendiosa para os cofres públicos. dos meios capitalistas internacionais para sustar a execução do
projeto Um projeto cujo capital investido havia de ser remunerado, e
A partir de meados do século XIX a iniciativa de melhoria do principalmente, assegurado por receitas do governo. Assim o projeto
porto passa das mãos do governo para as mãos dos particulares, o que ficou esquecido até 1887 quando o Governo Imperial declara caduca
aliás acontecia com a maioria das obras de infra-estrutura das quais a a concessão porque “os concessionários não cumpriram as clausulas
cidade de Salvador era carente. da concessão relativas à incorporação da Companhia e ao começo das
obras” (157). Findava-se assim o período Imperial com o porto de
Em 1854, um dos grandes negociantes da praça, João Gonçalves Salvador guardando ainda suas feições arcaicas, com seus trapiches da
erreira, apresentava ao governo Imperial um projeto de melhora­ era colonial servindo sempre, com seu banco de areia da Gamboa
mento do porto: propunha conquistar ao mar uma extensa zona, a fim presente, com seus recifes da Panella e sem quebra-mar.
de aumentar o bairro comercial até o forte de São Marcelo. Na zona
assim aumentada, o projeto previa o estabe^cimento de canais onde O advento da República em 1889 despertou de novo o problema
iicanam abrigados com segurança os navios que demandavam o da modernização do porto. É que este evento político era contemporâ­
P ° ? o -0 projeto foi considerado grandioso e foi abandonado. De 1854 neo do período de incremento da produção cacaueira no Sul do
a 1871 os poderes públicos limitam-se a executar obras de pequeno Estado, obrigatoriamente exportada por este porto (158). O cacau se
porte que são mais paliativos do que uma verdadeira política de firmava como principal produto de exportação e, conseqúentemente,
melhoramentos básicos (155). como principal fonte de renda da nova estrutura financeira descentra­
lizada que conhecem os Estados da federação. Assim em 189 o
No idos de 1870 a iniciativa privada retomou sua ação ofensiva governo provisório da República, concedia nova autorização a
Baseados no decreto Imperial n<? 1746 de 13 de outubro de 1869 os Augusto Cândido Starache e Frederico Mercê para organizarem uma
herdeiros de João Gonçalves Ferreira, bacharéis Francisco Ignácio sociedade para a execução de obras de melhoramento do porto. Esta
Ferreira e Manoel Jesuino Ferreira recebiam autorização do Governo concessão foi transferida à “Companhia Docas e Melhoramentos da
Imperial para construir cinco docas e armazéns para carga e descarga Bahia” que logo após passou a chamar-se “Companhia Internacional
de navios. Segundo o plano apresentado, essas docas deviam ser de Docas e Melhoramentos do Brasil” antes de receber sua denomina­
constrmdas entre a Alfândega e a praia de Jequitaia, com privilégio ção definitiva de “Companhia Cessionária de Docas da Bahia . U
de 30 anos. Tratava-se de um projeto que visava a substituir os velhos financiamento por capital estrangeiro iria tornar realidade um
trapiches da era colonial por modernos armazéns. Mas estes trapiches empreendimento fadado ao insucesso até então. Mas, novos prazos
tinham proprietários e estes se julgavam com direitos às marinhas foram necessários para que a Companhia e o governo se pusessem de
fronteiras. Seus protestos porém não foram atendidos e em 1872 acordo e somente no ano de 1906 a Companhia deu por inauguradas
organizava-se em Londres uma sociedade denominada Bahia Docks as obras (159).
Lompany Limited que no ano seguinte submetia à aprovação do
governo os planos de execução. Chegou o ano de 1879 e nada ainda (156) - FALLA. recitada na abertura da Assemblèia Legislativa da Bahia... (Bahia,

*860(157) _ FALLA, recitada na abertura da Assemblèia Legislativa da Bahia... (Bahia,


p°l65"l70árÍ° da independência da Bahia’ 1823-1923. Salvador, Imprensa Oficial 1923,
*^ ( ' l 58)5- recitatja em abertura da Assemblèia Legislativa da Bahia...
1856).'lp565.fA L L A ’ reCÍ‘ada " a abertura da ^sem bléia Legislativa da Bahia... (Bahia, * (159) — CALMON, Francisco Marques de Goes. Vida económico-financeira da

80 81
Em 1920 a situação das construções para o melhoramento do Participando do grande esforço de urbanização da cidade do
porto de Salvador era a seguinte: Salvador, inaugurada no primeiro governo de J.J. Seabra, a “Compa­
nhia Docas da Bahia” havia ainda construído edifícios públicos como
Quebra-mar exterior Sul: esta obra destinada a proteger os cais a sede dos Correios, o Mercado Modelo e a Capitania dos Portos.
da ação dos ventos do quadrante sul, estava praticamente concluída. Havia também contribuído decisivamente ao alargamento da rua do
Tinha 920 m de extensão e nurtca sofreu qualquer dano a “ despeito Arsenal da Marinha e à construção dos cais Comendador Ferreira.
dos fortes temporais do Sul, reinantes nas estações invernosas”.
Inaugurava-se assim o século XX com um porto que adquiria
Quebra-mar interior: de 1.100 m destinados a proteger os cais da ares modernos, adaptado às novas exigências de uma navegação com
ação dos ventos Noroeste, havia já 700 m construídos. navios de grande'porte movidos a vapor. Era o meio de contato por
Cais Miguel Calmon:_ era um cais de saneamento pouco profundo excelência com o exterior, com as terras molhadas pelas águas da baía
de Todos os Santos, com as longínquas cidades litorâneas do Estado,
(1,5 m). Destinava-se a acostagem de pequenas embarcações que com o Brasil do Norte e do Sul (160). Mas o que o porto ganhava
serviam o litoral da Bahia de Todos os Santos, trazendo para a capital, como eficiência, o perdia em poesia: os grandes e os pequenos do mar
mercadorias e gêneros de subsistência. Praticamente concluído, eram irremediavelmente separados por linhas rígidas de estratifica­
faltava-lhe apenas o fechamento de pequenos trechos, correspondente
ção: de um làdo os veleiros e as barcaças, de outro lado, os grandes
às bacias de São Joquim e da Jaquitaia.
vapores.
Cais de cabotagem: tinha este cais uma profundidade um pouco
maior que a precedente (2m,20) e destinava-se a receber os veleiros Capítulo III - A cidade que nasce e cresce abraçando seu sitio
que faziam o serviço de pequena cabotagem dos portos do Sul do
Estado da Bahia. Era de 20 m a extensão deste cais. Lenta, aparentemente, foi a nossa abordagem da cidade. Como o
viajante, vindo da Europa, da África ou do Oriente, que só atinge
*■ Salvador após longa travessia, após longas caminhadas - se nela
Cais de atracação de 8 m: este cais de 1.378 m de extensão tinha chega por terra - da mesma forma o historiador achou-se obrigado de
toda a sua muralha pronta, mas, em 1920 somente 920 m eram
cercar-se de mil e uma precauções teóricas e metodológicas. Foi-lhe
entregues ao tráfego de navios de grande calado.
também necessário não separar a cidade nem de sua província, nem
de sua hinterlândia: as descrições geográficas de terras próximas e
Cais de atracação de 10 m: encontrava-se este cais com suas obras afastadas, dos mares também, traçaram um contexto no qual os
semi-acabadas pois possuía somente 364 m de muralha pronta, das problemas da cidade vão ser mais ou menos resolvidos. Mesmo para o
quais 200 m já com aterro feito, permitindo assim a atracação de turista contemporâneo Salvador é um mercado com mil coisas para
grandes cargueiros. comprar, um rincão de repouso ou de festas, de sol e de espetáculos
;grandiosos. Este mercado de Salvador depende de seu contexto
Afora essas obras de construção, a bacia do mar, destinada ao geográfico e económico. Fantasia colorida de Alecrim? é possível.
ancoradouro dos navios, havia sido praticamente toda dragada e Mas eis-nosenfim na cidade do Salvador, sentinela excêntrica da baía
oferecia assim maior segurança aos navios de grande calado. Faltava, de Todos os Santos, que tão rapidamente se tornou a capital de terras
porém, construir um canal de 10 m para o acesso aos cais dos grandes afastadas.
vapores que demandavam o porto pela entrada sul.
O sítio da cidade: horst e graben
Em terra firme, o porto era ainda dotado de 8 grandes armazéns O sítio de Salvador é estudado nos limites do atual “município”
internos, de um armazém externo, de um armazém inflamáveis, etc. pois suas fronteiras atuais são praticamente as mesmas que os limites
do antigo “termo” da cidade. Estes limites partem da praia do
Bahia (Elementospara a História) de 1808 a 1899. Bahia, Imprensa Oficial do Estado
1925, p. 82-83.
(1601- C. SPINOLA, Portos do Estado da Bjahia... op. cil.. p. 165-170.

82 83
Ipitanga, aberta no Atlântico, ao norte do aeroporto 2 de julho para emergidos formam verdadeiras pequenas planícies costeiras, nos pés
encontrar, pelo Norte do bairro de Brotas, o fundo da baía de Aratu. da escarpa da falha.
Depois de que, os limites acompanham a margem Norte do canal de
Cotegipe, deixando à cidade todas as praiías da costa até a ponta do No seu conjunto, o horst cristalino apresenta uma inclinação
Passé. Neste ponto os limites municipais atravessam o mar em linha geral em encosta suave na direção SE, na direção do Atlântico de mar
reta de NE a SO até 2 km no mar ao largo de Itaparica para aberto para onde correm todos os rios, mesmo os que nascem a pouca
reencontrar finalmente a terra firme na ponta de Santo Antônio da distância do mar interno. Os rios das terras sedimentares ao oeste são
Barra. curtos e correm em direção da barra.

Assim a extensão do município de Salvador abraça, ao Norte a Essa suave inclinação do horst em direção ao Atlântico é ocultada
ilha de Maré e seus ilhotes. Esta extensão é coberta por vastas por um relevo acidentado. É de fato impossível descrever a topografia
superfícies de mar interno pois, na sua maior largura, há quase 15 km dos vales e valezinhos, das encostas e curvas que resultam de todas as
de oceano entre o sítio de Plataforma e os limites mais ocidentais do fraturas e deslocamentos do horst da qual os geólogos nos contam a
município, ao largo de Bom Despacho de Itaparica. Este mar história. Disto tudo resulta um relevo infinitamente variado cuja
municipal é um verdadeiro canal, com forma de um tridente de altitude média é de 30 a 60 m com picos de 90, 100 e 110 m e fortes
Netuno, entre os dentes do qual emergem as cúpulas da ilha da Maré encostas de 35 a 40 graus. Nos vales em forma de V, encontram-se
e as penínsulas de Aratu e de Matoim. Em toda parte, os fundos da sedimentos recentes, que também são encontrados em camadas
baía são formados por rochas sedimentares; as rochas cristalinas horizontais sobre as mais altas cristãs.
encontram-se somente no continente e em mar aberto.
Temos assim, face a Sudoeste, um horst de relevo abrupto que
A ponta sul da península de Salvador tem a forma de um domina de 60 a 90 m as planicies sedimentares, completamente
losango. A sua costa oeste se desenvolve exatamente ao longo de uma afogadas na direção Sul, e mal emergidas mais para o Norte. Um
imensa falha, chamada falha de Salvador, que acompanha a direção horst de superfície deslocada, atormentada, que desce por uma
SO NE. Esta falha separa o cristalino antigo da bacia sedimentar encosta amortecida para o Leste e para o Atlântico. No litoral
jurassica-cretácea. Trata-se de verdadeiro horst cujo graben é a baía. Atlântico, a base cristalina se termina de baixo de um cinturão de
O outro lábio desta imensa falha, que certamente provocou um dunas recentes, formadas de areias por decomposição de seus quartzos.
deslize de cerca de 3.000 m, deve ser procurada no outro lado da baía, Essas dunas que, por causa de humor variável dos ventos que sopram
nos limites SO do Recôncavo. A escarpa abrupta sobre a qual a do mar aberto, não têm direção preferida, prolongam-se ao longo da
cidade ancorou-se, representa os 60 a 110 m superiores, hoje ainda costa oceânica, ao Norte do rio Joanes, bem para além dos limites
visíveis, das bordas desta enorme escarpa da falha ao longo da qual os municipais. Brancas colinas, ofuscantes sob o sul ardente, de 20 a 30
mares, pelojogo das marés, formaram um golfo afogado, um ria. m de altitude, mas cobertas por uma vegetação rala e pobre. Os perfis
topográficos EO ou NS que atravessam os terrenos sedimentares do
A história geológica antiga - que provavelmente começou antes Norte do município e o horst atlântico entre Passé e a embocadura do
do cretáceo e foi até meados do cenozoico - marca profundamente o rio Pituaçu, no Atlântico, mostram todas as encostas que compõem a
sítio de Salvador. De fato, todo um sistema de falhas paralelas à infinita variedade do sítio de Salvador.
grande falha de Salvador, encontra-se hoje, usado, apagado. Mas
outras falhas que lhe são perpendiculares deram aos rios seus cursos Tal sítio tem condições de oferecer conforto aos habitantes da
de ângulo reto. Principalmente, uma série de fraturas e de desloca­ cidade que se deixaram seduzir por sua situação estratégica?
mentos deixaram, no próprio horst, traços extremamente nítidos. Não
se deve esquecer que na frente da falha de Salvador corre a costa, Solos e águas são os dois pontos sensíveis sobre os quais se deve
deixando apenas na cidade baixa uma praia estreita, da ponta insistir um pouco, vez que a topografia, apesar ou por causa mesmo
extrema sul da Barra até o ponto chamado São Joaquim. Somente de seus acidentes, parece favorável ao estabelecimento urbano.
depois, com Itapagipe e Plataforma, Periperi e Paripe, indo em
direção de Aratu e para o Norte da baía, os terrenos sedimentares Abaixo de 80 m de altitude, os solos do horst são derivados da

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alteração de rochas cristalinas que o compõem. São, portanto, uma cidade úmida onde o grau hidrométrico do ar pode subir até
principalmente argilosos (caoliníticos) mas sólidos. Na posição hori­ 100%. Sítio cujo equilíbrio ecológico natural permitiu, em 1549, a fácil
zontal, estes solos gozam de certa estabilidade, mas, em forte encosta, e perene fixação de seus primeiros habitantes. Salvador é sem dúvida,
os deslizamentos de terras são frequentes. Encostados porém ao a cidade de Todos os Santos que lhe deram suas bênçãos e sua
cristalino encontram-se, com frequência, restos de dunas antigas que proteção.
permitem melhor infiltração de águas e onde, apesar das vertentes, o
solo é mais estável e excelente para a construção de casas e ruas. Mas,
acima de 80 m de altitude, encontra-se, como já vimos, uma camada
quase horizontal de sedimentos cenozoicos plásticos, idênticos aos que
podem ser encontrados mais abaixo, na região sedimentar também
jurassocretácea a Oeste da falha de Salvador, ao fundo da baía, e em
toda a região NO da cidade. Essas argilas deslizantes são .solos
instáveis, pouco propícios às fundações de construções, excelentes
porém para as culturas. Aliás é privilégio da cidade do Salvador
oferecer a seus habitantes, boas terras para hortas e jardins, justamen­
te nos lugares impróprios às construções. A rocha-mãe cristalina do
Iwrst possui todos os elementos nutritivos necessários às plantas, até
mesmo o cálcio. Porém, os solos de decomposição antiga são
lixiviados pela erosão e cabe às raízes profundas das plantas repartir
no interior dos solos, a alimentação necessária em sais minerais. As
chuvas e o vento do mar trazem o potássio e o iodo, indispensáveis. O
sol e as chuvas são sempre presentes e o sub-solo é um verdadeiro
reservatório de água para uma vegetação tropical úmida e luxuriante.
Até a mais abrupta encosta, a dos reversos da falha, desce gradativa­
mente para a praia ou para o Norte, em direção dos terrenos
sedimentares, e oferece, - para as culturas em terraço de bananeiras,
árvores frutíferas, hortaliças e mandioca - uma magnífica exposição
para o levante.
C 1 - encostas formadas sobre e acompanhando o sentido de
zonas de fratura F: locais instáveis para construções, sujeitas a
Sobretudo, a imensa riqueza da cidade alta, são suas águas, deslizamentos. Caso da encosta entre a cidade alta e a cidade baixa.
presentes em toda parte. Esta água é tão presente que os homens do Com frequência são encostas mais abruptas.
século XVI escolheram o sítio em função também dela. Pois, a base
cristalina do horst é absolutamente impermeável e a espessa camada C 2 - encostas inclinadas ao contrário das zonas da fratura F.
de solo, derivada de sua decomposição, é tão porosa que serve de Com frequência são encostas mais suaves. Constituem locais estáveis
reservatório de águas, sempre renovadas pelo clima tímido. Porosida­ para as construções.
de que é de 20% e que permite a cada m3 de solo conter 200 1.
d'água. Este solo atinge com frequência mais de 30 m de espessura. C 3 - em locais de cota superior a 80 m e às vezes mais baixo mas
Daí ser fácil imaginar o imenso depósito em água que representa o superior a 70 m, encõntram-se sedimentos argilo-arenosos, permeá­
solo da cidade alta: basta cavar para encontrar um poço. Basta um veis, com boa drenagem interna, que oferecem condições favoráveis
afloramento ao contato da rocha-mãe com seu solo de decomposição
para que surja uma fonte. Fontes que encontram-se na base do horst às construções. É o caso de toda a extensão da cristã A.
como também sobre qualquer pista de fratura antiga. Águas cristali­
nas, naturalmente filtradas, ricas em sais minerais, rios de vales Cristã B: solos argilosos pouco permeáveis, fofos quando úmidos,
estreitos favorecendo a formação de reservatórios naturais ou artifi­ caso usual quando se trata de solo derivado da decomposição das
ciais como o Pituaçu ou o Ipitanga. Salvador é a cidade das mil fontes, rochas do cristalino em Salvador.

86 87
FT - zonas de pequena espessura de solo, inferior a 3 m. Patriarca de uma grande linhagem (162), Caramuru é, na historiografia
Velocidade de alteração da rocha mais ou menos equilibrada com baiana um personagem muito discutido apesar de sua auréola de
velocidade de erosão. Zona de aquífero freático próximo à rocha sã, primeiro herói destemido. Vários historiadores (163) vêem nele o
portanto em condições de solubilizar e transportar químicos libertados representante de interesses contrários aos de Portugal, principalmente
durante a decomposição da rocha, quando essas encostas têm solos dos interesses franceses, cujos navios e mercadores são os grandes
com menos de 3 m de espessura, elas são férteis, pois as raízes das beneficiários da Bahia na época. Por mais de 20 anos, Diogo Alvares
plantas atingem a zona rica em elementos químicos nutrientes, está em constante contato com eles, recebendo suas mercadorias e
liberados da rocha. facilitando sua troca com o pau-brasil, o algodão e a pimenta
produzidos pela nátureza com abundância. É em navio francês que o
E - zonas de solo muito espesso, mais de 3 m, pode atingir 20 m e Caramuru volta para a Europa na década dos 20, indo para a Corte
ocasionalmente mais. Trata-se de solos antigos, muito lixiviados, do Rei da França onde celebra seu casamento com a índia Catarina
empobrecidos, incapazes de suportar agricultura por período prolon­ Paraguassú. Bênção da Igreja que legitima parte de sua descendência
gado sem reposição de elementos químicos nutrientes, isto é, de e confere as primeiras cartas de nobreza a sua progenitura da qual
todo baiano quatrocenião pretende descender. “A partir da segunda
fertilizantes/! 61) metade do século dezessete a mania nobiliárquica parece ter atingido
na soterópole as raias do ridículo.,desencadeando-se verdadeira corrida
em busca de veias antigas de sangue azul, principalmente entre os
As três primeiras amarras da população: Sé, Vitória e Conceição da
descendentes diretos, colaterais e mesmo afins de Caramuru, visto que
Praia o Boca do Inferno (Gregório de Matos) lhes pespega a eles, três sátiras
das mais candecentes, entre as isoladas que dirige a outros:
Mas na história do povoamento da colónia brasileira nestas
bandas do Brasil, o atual sítio de São Salvador não foi a primeira
-U m calção de pindoba a meia zorra
escolha dos que aqui se propunham viver. Se 1549 marca a chegada Camisa de vineu manteu de arara
oficial do governo metropolitano na Bahia, com seu séquito de
homens de armas, seus oficiais administrativos, seus artesãos e Em lugar de cotó, arcóe taqueira.
Penacho de guarás em vez de gorra
homens degredados, esta chegada representa, por outro lado, a
segunda tentativa oficial para que fosse estabelecida uma comunidade
- Que é fidalgo nos ossos cremos nós.
colonizadora. Na história da urbanização primitiva da Bahia, três fases
podem ser distinguidas. Cada uma dessas fases expressa de modo Pois nisso consitia o mor brazão
Daqueles que comiam seus avós ( 164)
claro os azares da política portuguesa, ora ausente, ora decisivamente
empenhada em firmemente conquistar suas terras americanas, recém
descobertas. (162) l- PINHO, José Walderley de Araújo. História social da cidade do Salvador
(Tomo 1“ Aspectos da História Social da Cidade - 1549-1650) Salvador. Prefeitiíra
O que marca a primeira fase, (1500- í534), é a ausência de Municipal. 1968. p. 49-83.
qualquer atitude que levasse ao estabelecimento real do domínio (163) - A personagem de Diogo Alvares; é presente em todos os compêndios de
português no Brasil. Inteiramente voltados para a consolidação das História do Brasil. Vários também são os autores que lhe dedicaram estudos. Dentre
estes, destacamos alguns, interessantes pelo seu caráter polémico:
conquistas que pontuam a marcha em direção do extremo oriente, o - NEIVA. Artur. Diogo Alvares Caramuru e os Franceses. Revista brasileira. (Rio)
Brasil representa para os portugueses apenas um episódio dessa ANO I (3): 185-210. 1941.
marcha. Contudo, a baía de Todos os Santos, descoberta pela armada - LEITE. Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, Rio. 1945, vol. I. p.
de Américo Vespúcio em 1503, acolhe entre 1509 e-1511, seu primeiro 151 e vol. II. p. 312.
habitante português, Diogo Alvares, pobre camponês alentejano, - EDELWEISS. Frederico. Diogo Alvares- CA RA MU RU. In Ensaios biográficos.
Salvador, Universidade Federal da Bahia, Centro de Estudos Baianos, 1976, 141 p.
apelidado o “Caramuru” pelos indígenas que, facilmente, o adotam. 63-70.
(164) - Citado por F. EDELWEISS, Nossa Senhora da Conceição da Praia. A
primeira Igreja da cidade do Salvador e o âmbito primitivo de sua freguesia. In o
(161) —MATTOSO, Sylvio de Queirós. Notas sobre a geologia da área de Caji. Bi-centenário de um monumento baiano. Salvador. Editora Beneditina Ltda. 1971. p.
Salvador, projeto CREA 9290-D.65 Região, 5 de julho de 1976.- 65-68 (Coleção Conceição da Praia. vol. II).

88 89
Mas que pensar de um Caramuru trânsfuga? A reabilitação que que o Caramuru construiu a modo do gentio a sua gamboa de
lhe faz Frederico Edelweiss é convincente. Vejamos os argumentos. pescar... a qual ocupava o sítio oride agora está o largo da Barra”
Edelweiss não exclui a possibilidade de Diogo Alvares ter naufragado (168), Povoamento instalado rente ao mar que olhava para o desem­
ao Brasil a bordo de navio francês. Na época, o tratado de amizade barque e o varadouro das embarcações de longo curso vindas buscar
franco-português estava em vigor e os navios com frequência tinham as riquezas da terra.
a seu bordo tripulações compostas de homens de várias nacionalida­
des. Por outro lado, c que realmente se sabia do domínio português e A década de 1530 é marcada por um desejo de mudança: diante
de seus limites na costa americana? É perfeitamente lícito pensar què das contínuas e regulares incursões de navios estrangeiros - na sua
o Caramuru ignorava de que a Bahia era posse do El-Rei português maioria franceses - em terras brasileiras, o governo português torna-se
visto que esta era principalmente visitada por navios franceses. sensível. A expedição colonizadora de Martim Afonso de Souza
Ademais, para este homem simples o conceito de “comércio clandesti­ (1531), que cria o primeiro núcleo de povoamento estável em São
no” estava fora de seu alcance mental. Porém, como indica F. Vicente (São Paulo) é um passo decisivo. Em 1534 EI - Rei decide
Edelweiss “essa amizade, sem dúvida criou-lhe uma situação difícil ao colonizar o Brasil pelo sistema das capitanias hereditárias, modalida­
estabelecer-se o governo colonial, principalmente depois da vinda de de que havia permitido a conquista das ilhas do Atlântico. Dividido o
Tomé de Souza, a qual não interrompeu, logo, o comércio francês Brasil em 15 capitanias, coube a Francisco Pereira Coutinho a
(165). O auxílio furtivo ou indireto de Caramuru a um ou outro navio colonização da Bahia. Iniciava-se assim a segunda fase de povoamen­
normando terá criado certa indisposição entre o patriarca e o governo to.
geral. Este pensava e agia dentro das rígidas normas das suas funções,
o outro estava preso áo passado por fortes laços de amizade. Este Aportado na baía de Todos o$ Santos em fins de 1536, o
conflito cruel devia pesar duramente nos últimos anos de Diogo donatário Francisco Pereira Coutinho e seus companheiros trataram
Alvares, se é que também não os abreviou. Mas fez o que pôde a logo em se fortificar na saliência da montanha onde mais tarde seria
serviço de seu rei. Auxiliou Tomé de Souza na construção da cidade e construído o baluarte de São Diogo. Assim, o donatário dominava
forneceu-lhe a maior parte da carne e da farinha de mandioca, o pão tanto a praia de Caramuru como a entrada da baía. “Em qual sítio fez
da terra...” (166). uma povoação e fortaleza sobre o mar... onde agora chamam de vila
velha, a Gamboa de pescar no pé desta fortaleza”. Fortaleza cujos
Se a atitude, por vezes considerada ambígua, tem levantado muros eram construídos de “tapume e pau-a-pique”. A fortaleza do
polêmicas em tomo da personalidade de Diogo Alvares, um consenso Coutinho ficou, por tanto, no outeiro que hoje se chama Santo
quase unânime localiza o primeiro povoamento de origem européia Antônio da Barra, talvez, segundo Pedro Calmon, na plataforma (sic)
“ao pé da praia branca” entre os atuais fortes de Santa Maria e de São onde anos mais tarde, seria erguida a igreja desta invocação (169).
Diogo.
Poucos são os documentos que dão conta dessa experiência de
Segundo o testemunho de Pero Lopes em 1531 “Ao mar da ponta colonização e povoamento. Sabe-se, entretanto, que na redistribuição
do padrão (Santo Antônio da Barra) se faz uma restinga d areia, e a das terras recebidas pela coroa, Pereira Coutinho contemplou não
lugares pedra: entre ela e a ponta podem entrar naus: no mais baixo somente os homens que o acompanhavam mas também o antigo
da dita restinga há braça e meia. Aqui estivemos tomando água e morador da terra, o Caramuru. Diogo Álvares recebeu das mãos do
lenha... Nesta baía achamos um homem português que havia 22 anos donatário a sesmaria da terra que já ocupava assim como o outeiro da
que estava nesta terra...” (167). “Entrada ou esteiro entre mangues em Graça que lhe ficava nas imediações. Legalizava-se assim, dentro da
nova estrutura, uma posse que até então tinha contado com a
(165) - Hipótese que parece bastante verossímiL Mas por enquanto faltam-nos aquiescência de seus donos primitivos, os indígenas. A sesmaria que
estudos sobre as trocas comerciais entre França e Brasil, anteriores a 1549. Entretanto, recebia Caramuru vizinhava a leste com a de Paulo Dias, homem
os arquivos dos portos normandos e bretões encerram, nos seus livros notariais, nobre e genro deste, e a oeste com a do Padre Francisco de Azevedo.
preciosíssimas informações deste tipo (Informação do prof5 Pi erre Jeannin da Ecole des
Hautes Études en Sciences Sociales -Paris. França).
(166) - F. EDELWEISS, Diogo Alvares... op. cil., p. 69. (168) - SAMPAIO, Theodoro. História da Fundação da cidade do Salvador, op. cit..
(167) - CALMON, Pedro. História da Fundação da Bahia Salvador-Museu do p- 138.
Estado da Bahia, 1949, p. 43. (169) - CALMON, P. História da fundação... op. cit., p. 91.

90 91
Na área mais tarde conhecida por Recôncavo, receberam sesmarias
Afonso Torres, poderoso armador de Lisboa e João de Vellosa, o MAPA TZT

primeiro a ter levantado um Engenho. Aliás, segundo a tradição, o


próprio Pereira Coutinho teria iniciado o levantamento de dois outros
Engenhos. Nada. porém, sabemos sobre essas tentativas de organiza­
ção económica do espaço ocupado, com a introdução de uma
atividade de plantio: a cana-de-açúcar e seu beneficiamento indus­
trial.

Os insucessos do empreendimento colonizador são conhecidos.


Dez anos bastaram para que o Pereira Coutinho abandonasse a
experiência. Insucessos geralmente explicados pelo desentendimento
que teria surgido entre os aborígenes e os homens do Pereira, logo
transformados em luta aberta, estes queimando e destruindo os
estabelecimentos daqueles. Discórdia também entre os próprios
colonos, incitados à revolta por certo padre de nome Bezerra contra o
seu donatário, que fugiu para a capitania vizinha de Porto Seguro de
onde jamais voltaria (170).
Porém, se por um lado essas dissenções mostram as fraquezas da
liderança do Coutinho, por outro lado não bastam para explicar a
derrota. Os elementos de explicação devem ser procurados na análise
das forças económicas e dos apoios que o donatário dispunha na
metrópole. A concessão de sesmarias a Afonso Torres, rico armador
português sugere alianças e compromissos com o mundo financeiro
que nunca foram estudados. Pero de Campos que agasalhara os
foragidos em Ilhéus, dizia que Francisco Pereira Coutinho havia sido
mal sucedido por nunca ter posto “nenhuma diligência acerca de a
povoar” (172). Essa insuficiência numérica de portugueses coloniza-
dores pode ser o reflexo da insuficiência de meios investidos no
empreendimento. Seja como for. no final da década dos 1540 a Bahia
aparece como deverç>q partir da estaca zero. Â fuga do Pereira
Coutinho seguiu-se a destruição completa do seu núcleo de povoa­
mento por navios franceses. Mas, quando em 1549, as forças
metropolitanas vieram estabelecer o governo geral, encontraram,
além dos restos calcinados da pequena povoação do Pereira, cerca de
50 moradores de origem européia vivendo sob a proteção de
Caramuru e de seus índios. Instalados no povoado do Caramuru,
deslocado da praia para as cercanias da atual Igreja da Graça, no
outeiro do mesmo nome, esses quarenta a cinquenta moradores vão
representar um apoio considerável para Tomé de 'Souza e seus
homens. Traço de união entre o velho e o novo mundo, a eles deve-se

(170) - Idem. p. 95.


(172) - CALMON. P. História dafundação... op. cit.. p. 96.

92 93
Não há dúvida de que as considerações de defesa militar, tanto
em grande parte o sucesso da implantação definitiva dos portugueses contra as incursões de navios corsários estrangeiros - lembremos que
em terras baianas: haviam aprendido a lidar e conviver com os foi fácil aos franceses exterminar a vila do Pereira - quanto contra os
indígenas e. sobretudo, haviam conseguido organizar seu espaço nos ataques dos indígenas, tiveram grande importância na escolha do sítio
moldes europeus, erigindo suas capelas da Graça e da Vitória em nesse trecho da costa da baía. Mas não foram exclusivas. Esta escolha
torno das quais a vida comunitária se desenvolvia. Primeiros povoa- foi ainda condicionada por ser o sítio dominando uma enseada
dores das terras do além-mar, a elevação em freguesia de seu natural que permitia a reunião de grande número de navios o que
estabelecimento em 1552, tendo como matriz a Capela de Nossa fínalmente era uma faca a dois gumes: em caso de ataque por mar, a
Senhora da Vitória (173), representa o reconhecimento de sua concentração de forças numa distância não atingível pelos canhões da
existência. Existência independente do burgo da cidade, levantado época, podia ser uma ameaça poderosa para os defensores da cidade.
légua mais longe e baía dentro, entre abril e maio de 1549, mas cuja Outro elemento também que não deve ser negligenciado é a própria
vida participam à pari entière, nela integrando-se perfeitamente: O geologia do sítio que, como já vimos, oferecia terrenos próprios às
seu reconhecimento prefigura assim o próprio destino da cidade edificações, às culturas e uma fartura de águas perenes para saciar a
fadada cedo a transpor os muros primitivos que a cercavam, sede e prover às outras necessidades de seus habitantes.
espalhando seu povoamento pelas elevações, encostas e vales que a
circundavam. O sítio escolhido, uma atividade febril por parte dos futuros
Com a chegada dos portugueses liderados por Tomé de Souza moradores permitiu que a cidade fosse construída num tempo
(1549) inicia-se a .fase definitiva de povoamento e colonização da mínimo: entre abril e junho de 1549 eram edificados os armazéns da
Bahia. Poucos são os documentos que permitem estabelecer com cidade baixa, os edifícios públicos na cidade alta (Casa da Governan­
segurança a data exata da fundação do novo núcleo. Mas esteja nasce ça, Palácio do Bispo, Câmara Municipal, Igreja da Ajuda) e várias
com o nome de cidade. Segundo o regimento dado a Tomé de Souza, casas de moradores depois de montados os baluartes e fechada a cerca
era vontade de EI - Rei que fosse construída "... huã fortaleza e que a protegia. Evidentemente se tratava de construções bastante
povoação grarde e forte em hum lugar conveniente para dahy se dar precárias pois já em 1551 parte dos muros que defendiam a cidade era
* i! é-í

favor a ajuda as outras povoações e se ministrar justiça” (174). O destruída pelas chuvas. Precariedade que, aliás, devia-se à pobreza do
regimento acrescentava ainda que a nova cidade fosse construída material utilizado - as edificações eram de taipa - e à ação da
“mais para dentro da baía”. Excluía-se assim a possibilidade de natureza que assim começava seu longo combate contra os homens
edificar sobre as ruínas da vila velha do Pereira. depredadores de seu equilíbrio ecológico.
O ponto escolhido foi uma “área de terreno irregular de perto de
um quilómetro de comprimento por mais ou menos 350 metros em Não concordamos com Pedro Calmon quando este afirma que os
linha direta no ponto mais largo”. Esta área ficava mais para dentro portugueses pouco se interessavam em “traçar geometricamente uma
da baía. para o norte e fora escolhida por apresentar uma morfologia vila, com a predileção das linhas retas que tinham os espanhóis, nos
que estabelecia defesas naturais: “A subida pela montanha íngreme seus desenhos declarados na arte clássica: mas de acomodar no exíguo
era difícil e penosa, mas a coroa da colina era quase plana e as suas recinto os serviços iégios” (176). Na época dos descobrimentos, as
vertentes, da banda da terra, davam para o vale do rio das Tripas, tendências geometrizantes estavam sendo adotadas em quase todas as
que a cercava e a defendia, ora mais caudaloso, ora menos profundo, experiências urbanísticas européias e era por seus princípios que se
ora fazendo charcos e lamaçais... Diante da ribanceira havia um orientava também o urbanismo colonial português. O caso de
“porto acomodado” em que o mar era mais limpo com a vantagem de Salvador é único e exemplar: tanto na parte inicial, como na parte
“uma grande fonte bem à borda d ‘água” que servia para a aguada desenvolvida no final do século XVI, a cidade apresenta um traçado
dos navios" (175). regular ainda que se possa admitir que uma diferença sempre existe
entre os traçados reais e o desenhos modelares (177). O que é preciso
lerrbrar é que havia certa preocupação de manter as diretrizes iniciais.
(173) - Idem. p. 101.
(174) - DIAS. Carlos. MALHEIRO e outros. História da Colonização Portuguesa
no Brasil. MOMXXIV. Porto. Litografia Nacional. 3 vols.. 3‘-' vol. p. 345.
(175) - CARNEIRO. Edison. A cidade do Salvador. Rio de Janeiro. Org. Simões. (176) - CALMON. P. História da Fundação... op. cit.. p. 166.
1954. 167 p. 59. (177) - Cf. plantas nç VII e VIII.

95
94
mesmo se sua importância ia enfraquecendo com o passar do tempo, o P U » T » 04 CIDADE 00 SAlHàOOU 04 BAHIA 0£ TOOOS OS SAHTOS
que indiscutivelmente ocorreu em Salvador. Disto eram responsáveis, L — L i- . — * PH— PO I-0OÇOO P.
em grande parte, as desigualdades naturais devidas à topografia thom á d« souza om 1349.

acidentada onde as terras, como vimos, nem sempre eram propícias às


construções. Eram também responsáveis os homens que plantavam
suas casas desordenadamente, onde bem lhes parecesse, infringindo
assim regulamentos e ordens que emanavam da governança local. Na
ânsia de crescimento e de fortalecimento da capital, os governos
propunham mas os homens dispunham.
As plantas do primitivo núcleo da cidade, traçadas por T. Sampaio
são muito claras a este respeito:

I porta* 4a cidad#
A palácio *1
j posso *m forno do* muro*
B balaarta*
( caminho *m dogrous
C jfio ji 4a ij« < *
l • caminho *m rompa
C p a lie i* 4a k .*P *
D cata 4a câmara
M • caminho para a vila volha
* ifffja 4a CMcaiçã* |*rMi4a)
I ■ caminho para o cológto

G haspital

..___ - do b rasil d * 1611 " d o in stitu to h lsto rio o •


cópia rsduzlda do original o xlstonto no manuacrlto razoo do o sto d o do o rcsi os
g o o g ro tlco brasllo iro
• s c a la 1 /2 4 4 2
PLANTA VII (173)

(178) - SAMPAIO. Th. História da Fundação... op. cit.. p. 185. (planta)


97
96
«C
IMO
!Dl SU
IMD
OI 10fiHD
OSE
Í010 S
»l O primeiro núcleo de povoamento na cidade alta era composto
de 7 ruas das quais 4 eram longitudinais e 3 transversais (180). Essas 7
ruas que tinham nomes pitorescos como a de Pão-de-ló ou das
I Vassouras, desembocavam em dois largos, o largo da Ajuda que
ficava defronte ao templo da mesma invocação (181) e o largo da
feira, principal praça da cidade nascente pela sua função económica e
por se achar localizada frente aos edifícios públicos, ainda que
modestamente construídos de taipa, como o Palácio do Governo e a
Câmara do Senado. Praça de feira que com o alastramento da cidade
fora de seu perímetro primitivo, marcado pela cerca, perdeu logo seu
caráter comercial para se tornar praça de parada das tropas e ponto
de encontro para os habitantes da soterópole.

Duas portas, colocadas nas extremidades Norte e Sul rasgavam


os muros que protegiam Salvador apesar de também construídos de
taipa de pau-a-pique. As portas, batizadas nas invocações de Santa
Luzia (Sul) e Santa Catarina (Norte) “tinham duas pontes levadiças
sobre o fosso... as quais (portas) affectando a forma de castello,
tinham ao alto as suas setteiras, pouco acima do parapeito, no longo
do qual, por tudo o circuito fortificado corria o caminho da ronda”.

Diverso foi o destino para com as portas da cidade. A de Santa


Luzia, mais tarde cognominada porta de São Bento, por levar em
direitura àquele convento que ficava-lhe aos pés, atravessou dois
séculos e meio sendo sempre o ponto no qual ia ter o caminho que
“através de várias aldeias de índios, levava à vila velhá onde
continuavam os sobreviventes da malograda empresa do donatário
Coutinho” (182). e os descendentes e amigos do Caramuru. Outro foi
o destino da porta de Santa Catarina cujo desaparecimento precoce
deveu-se à rápida expansão da cidade para o norte e isto uns trinta
anos após a primeira construção da cidade. Derrubada pela inclusão e
ocupação do segundo despenhadeiro que forma o horst de Salvador,
sobre o qual se construíram a Misericórdia, a Igreja da Sé e seu
Palácio Episcopal, o Colégio de Jesus e o Con\'ento de São Francisco,
a porta fora reconstruída nas cercanias da atual praça do Pelourinho.
Nesta praça, ia morrer o caminho Norte da cidade que lev.ava os
habitantes em direção do convento de N. S. do Carmo e, mais tarde,
ao forte e à Igreja de Santo Antônio além do Carmo (183). Muros,

(180) - SILVA. Alberlo. A cidade d'E! Rei. Aspectos seculares. Salvador, Prefeitura
Municipal do Salvador. 1953. p. 19-33.
(181) - Idem. p. 26.
(182) - SAMPAIO. Th. História da Fundação...op. cit., p. 184.
(183) - CARN EIRO. E. A cidade do Salvador, op. cit., p. 66.
(179)- Idem, p. 256 (plantas).

98 99
portas e cidade alta eram protegidos por 6 baluartes, dois frente ao tempo, aquele do gentio bravo e ameaçador era passado” (185).
mar e quatrodo lado da terra. Novos núcleos de povoamento nasciam em torno da ermida de N. S.
do Desterro como o povoamento do Campo da Palma e o bairro do
O burgo fortificado ao alto prolongava-se também em direção à Desterro (186). Já no governo de Luiz Brito e Almeida (1573-1578) a
parte ribeirinha ao mar: alfândega, armazéns e casas de morada cidade não tinha mais muros e a construção de novos, por volta de
tinham sido erigidos em torno da ermida de N. S. da Conceição, 1598, a protegiam e defendiam muito mal. No final do século XVI
primeira igreja levantada na cidade. Segundo Frederico Edelweiss, dois novos caminhos ligavam a cidade alta a seu porto e ancoradouro:
esta igreja fora levantada na primeira metade do mês de abril de a ladeira do Tabuão e a da Misericórdia que levavam gente e
1549. Acredita-se que por diversos anos a povoação da Praia - traço mercadorias aos cinco pontos de desembarque: o varadouro onde se
de união entre a metrópole e a cidàde colonial nascente - fora o querenavam as embarcações, o porto dos pescadores, o do Desembar­
núcleo mais povoado da cidade. Povoação da Praia ou Ribeira, gador Baltazar Ferraz, o das amarras e o dos padres. A Ribeira do
abraçava nos primeiros tempos a Ribeira do Góis e a Ribeira dos mar de simples entreposto de mercadorias havia se transformado em
pescadores. É por isso que decorridos dois anos de sua fundação, mercado ativo, provido de mercadorias trazidas pelos índios do
Antônio Cardoso de Barros achava a cidade alta “mui vazia, assim de Recôncavo e pequenos lavradores de Paripe. Desde 1575 os moradores
casas como de gente”. A primitiva Ribeira, estendia-se no trecho da cidade alta vinha abastecer-se na cidade baixa pois a praça do
limitado em seu cumprimento pela atual praça Cairu e a Fonte das mercado transferida da praça do palácio para a praça do São Bento
Pedreiras. Duas ladeiras ligavam inicialmente a cidade alta à sua era insuficiente. Mas sobretudo o que realça o mercado da cidade
Ribeira: a ladeira da Conceição, construída por Felipe Guilhem, e o baixa é sua intensa atividade como porto exportador e importador. O
caminho do carro ou, sugestivamente, a ladeira da Preguiça, mais aumento no volume de negócios é atestado pela multiplicação dos
longa e muito mais suave, da qual fora empreiteiro Jorge Dias. A Engenhos de açúcar. É este que fixa o comerciante na beira-mar onde
ribeira das naus era protegida pelo forte da Laje e pelo forte de Santa se encontravam os armazéns, e as ainda modestas habitações dos
Cruz, localizado na Preguiça, possivelmente junto às Pedreiras (184). artífices e obreiros de toda espécie. Em 1612 há até um batalhão de
homens pagos, encarregados da vigilância e da manutenção da ordem
pública. Em 1623 o povoado da cidade baixa passa à categoria de
W N D /n fl

Construída entre abril de 1549 e os primeiros meses do ano de


1551 a cidade do Salvador tinha se tornado uma realidade física. freguesia sob a proteção e invocação de N. S. da Coneição da Praia. A
Pouco porém sabemos da vida própria de seus habitantes e das funçoês existência das três freguesias da Sé. Vitória e Conceição da Praia são a
sociais que ali se desenvolviam. Um ano mais tarde, em 1552, seus própria expressão do esforço colonizador bem sucedido, solidamente
dois principais núcleos de povoamento eram erigidos em freguesias: a ancorado. Mas além do que já existe é o que está nascendo e
freguesia da Sé, envolta por muros e fortificações, e a freguesia de crescendo que testemunha a vitalidade e dinamismo da colonização: a
N.S. da Vitória, nos campos, apenas protegida pela flora natural. cidade alta continua se desenvolvendo em torno dos conventos de N.
Legalizava assim, EI-Rei, a existência desses dois povoados, um no Sra. do Carmo (1586) e de Sao Bento (1584). Os moradores se fixam
burgo propriamente dito, o outro extra - muros. Este último já “no caminho que vai para a vila velha” e em direção de Santo
prefigurando a vocação dinâmica do sítio prítnitivo que logo iria Antônio além do Carmo e N. S. da Penha de Itapagipe. Dinamismo
extravasar seus limites estreitos para abraçar, vorazmente, os seus aliás atestado pela própria cronologia da fundação de novas paró­
arredores, num jogo dialético incessante de campo-cidade. quias. de novas freguesias: Santo Antônio além do Carmo (1648),
Senhora de SanfAnna (1673). Santíssimo Sacramento da rua do Paço
Com efeito, no tempo de Mem de Sá “a cidade havia já (1718), N. S. de Brotas (1718). N. S. do Pilar (1718), São Pedro o Velho
transbordado do seu recinto primitivo. As suas portas sob o castelo já (1676) N. S. da Penha (1760). Um mundo pleno onde os habitantes
se não fechavam e os seus muros destruídos pareciam dizer que o seu mourejam e labutam para ganhar o pão de cada dia em mil e uma
atividades, todas elas ligadas à grande dominante que é o comércio.
Unica nota destoanle neste surto de crescimento é a freguesia da
(184) - Há divergências profundas entre os historiadores locais a respeito do papel Vitória. Pouco a pouco, na medida em que ia se fortalecendo a nova
desempenhado pela “povoação da Ribeira” nos primeiros anos da fundação da cidade.
•Também, discussões acirradas se desenvolvem em torno da localização e utilização de
certos prédios e ladeiras. Tomamos como base o estudocorretoelúcidode E.Edelweiss, (185) - SAMPAIO. Th. História da Fundação... op. cit.. p. 255.
Nossa Senhora da Conceição... op. cit., p. 65-86. (186) - Idem. p. 261.

100 101
urbe e que iam desaparecendo as ameaças hostis dos índios e das
invasões estrangeiras (187). o velho povoado decaía, o núcleo
primitivo desaparecia e seus moradores dispersos consagravam-se a
atividades rurais que. aliás, são também a vocação de outra paróquia MURO X
dita “urbana”, a de N. S. de Brotas! Curiosa concepção de cidade
R. S. DA COKCHPÃO OA PRAIA - ISSO
onde uma freguesia de povoamento esparso, caracterizada por
funções económicas tipicamente rurais, e isto até meados do século
XIX, acede à condição de núcleo urbano! Mas isto confirma quanto a
cidade está finalmente imbricada com o campo. Vejamos se é possível
encontrar nas linhas que seguem, uma resposta a esta situação
aparentemente paradoxal.

PLANIA IX (1 8 8 )

(187) - As expedições contra os índios, empreendidas por Mem de Sá nos idos de


1560, afastam definitivamente o perigo que representava a presença do gentio. Por
outro lado, as incursões estrangeiras cessam, até. pelo menos, a primeira década do
século XVII.
(188) e (188-) - In F. EDELWEISS. Nossa Senhora da Conceição da Praia... op.
102 cit., anexos à pag. 286. jq j
«SPECTO AIUAL DEPOIS
09 ATERRO M PRAIA 1371

PRIMEIDO DÍSEmiMliro

2 l adei ra da c en c ei f ãa
3 ladaira da pragaiça

4 rihaira do goi s
5 cidade f o r ti f ic ad a

6 forte da lage
7 farta tanta cruz
PLANTA XI (1 8 9 )
• p ed re ir a»

PLANTA X {1 a=?a)

(189) - Idem.
104
Capítulo IV - A cidade do Salvador escapa à vocação das metrópoles A metrópole: reflexões sobre um modelo
coloniais?
l Que é uma metrópole e como se define? Há tempo que o número
O que de certo modo caracteriza a cidade do Salvador é de ter de população aglomerada, variando entre 100 e 700 mil habitantes,
sido fundada ex-nihilo. De fato, nestas bandas do Novo Mundo, os tem sido abandonado como critério para definir a cidade-metrópole.
europeus encontraram populações indígenas que viviam em estado Hoje os cientistas, sociais valem-se sobretudo de critérios funcionais
semi-nõmade e cuja organização económica amparava-se em ativida­ para definir a metrópole. “A metrópole é aquela cidade que não
des quase exclusivamente extrativas. Essas populações, compostas por depende de outra, que situa-se no ápice da organização urbana;
tribos variadas, frequentemente se opunham em guerras exterminado- fazendo assim face, sem qualquer dependência, a outras cidades, que
ras e conheciam um desenvolvimento sócio-cultural que, segundo os se acham na mesma situação” (192). Por outro lado, a metrópole
nossos critérios ocidentais, não ultrapassava o nível de simples cultura exerce sobre a área que a envolve de mais perto, uma ação que a
pouco evoluída. Não havia, portanto, nenhuma “cultura adiantada” transforma tornando-a urbanizada. A metrópole ainda molda as
indígena do tipo que fora encontrada pelos espanhóis no México, na atividades do campo que lhe é subordinado, de acordo com suas
Guatemala ou no Peru (190). Consequentemente, não havia riqueza necessidades e preferências, dando-lhe seus instrumentos de desenvol­
concentrada que pudesse ser rapidamente espoliada. E se nos vimento, e desta maneira, organizando-lhe o espaço.
primeiros anos, o pau-brasil tomou as viagens Velho Mundo-Brasil
economicamente viáveis, a médio e longo prazos esse produto de larga É evidente que esta definição de metrópole adapta-se imperfeita-
aceitação no mercado europeu, era insuficiente para sustentar um mente ao modelo de “metrópole” colonial cuja própria existência
processo de colonização. A grande “invenção” dos portugueses foi a depende da vontade e das necessidades de um outro centro. Este
decisão de criar um mercado produtor de açúcar o qual exigia centro detém os atributos de dominação e acha-se quase sempre
abundância de terras, uma boa base financeira e um ambiente localizado em área geográfica relativamente afastada. É o caso por
ecológico propicio. Produto de consumo crescente na Europa, o exemplo, das grandes metrópoles dos países colonizadores, Lisboa,
açúcar é a primeira riqueza do Brasil pois fixa-lhe a população Londres, Antuérpia, Amsterdam, Le Havre, Sevilha etc. Daí a
colonizadora e torna viável a conquista permanente das -terras necessidade de procurar uma definição mais apropriada. Segundo
descobertas. Assim ao imperativo de ordem político-administrativa Pierre George existem dois tipos de metrópoles. O primeiro tipo
que motivou a fundação da cidade em 1549, é necessário acrescentar o constitui-se por “organismos completos característicos do conjunto
imperativo económico para que se possa ter uma visão global do dos mecanismos económicos do mundo capitalista”. O segundo tipo
processo. Cria-se assim na Bahia, ponte avançada da Metrópole, uma de metrópole é representado por cidades de especulação comercial,
economia agrícola de tipo monocultora, complementar da ecoiiomià fundadas por populações imigrantes durante a época colonial e
portuguesa. A produção maciça de um produto único, o açúcar, e a possuindo apenas dois setores de atividade: o primário, ou melhor, o
atrofia dos setores artesanal e manufatureiro (191) cria para a cidade controle do setor primário regional, e o terciário”. As metrópoles
uma situação de estreita dependência còm a mãe-pátria. Aliás, essa coloniais, em geral, integrar-se-iam nesta segunda categoria. Este seria
situação de dependência que se traduz pelo binómio dòminador- b caso de Salvador, cidade-porto eminentemente comercial, cuja
dominado não é própria à capital da colónia lusitana. Em toda parte atividade principal é o envio para fora dos bens produzidos na sua
do Novo Mundo colonizado pelas nações ibéricas, esse tipo de relação hinterlândia. “Tais metrópoles, refletindo como as demais, a econo­
é predominante. Predominância que leva a refletir se é apropriado mia a que servem, trazem em sua fisionomia e em sua fisiologia, as
utilizar o vocábulo de “metrópole” para caracterizar as cidades que marcas bem nítidas do mundo rural a que se ligam, mas via de regra
presidem ao destino de uma região mais ou menos extensa. Mas o que por serem meras intermediárias do mundo capitalista è dos vorazes
é a metrópole e como se pode falar em “metrópole colonial”? interesses das nações imperialistas, em muito pouco podem exercer o
papel metropolitano que, por sua massa, em outras condições, seria de
(190) - BRAUDEL, Fernand. Civilização material e capitalismo (séculos X V — esperar. E por outro lado, mercê daqueles recursos que acumulam, em
XVIII). Lisboa, edições Cosmos, 1970, p. 40-41, Mapa de civilizações “culturas” povos
primitivos por alturas de 1500 - - Segundo G. W. Hewes). (192) - SANTOS, Milton. O papeI metropolitano da cidade do Salvador. In
(191) - São por demais conhecidas as proibições impostas pela Metrópole Revista brasileira dos Municípios, IBGE, (Rio, Ano IX: (35-36): 185-190, Julho-
portuguesa no que tange o desenvolvimento de atividades manufatureiras no Brasil
colonial. Dezembro, p. 183.

107
106
detrimento de sua região, cada vez se distanciam das demais categoria dominante, cuja força consiste na produção e comercializa­
aglomerações, crescendo macrocefalicamente, enquanto as pequenas ção direta do açúcar produzido, coincidam com os da Metrópole, o
cidades, criadas para estender ao campo as suas influências, jamais papel da administração real foi de benévola tolerância. Mas em
lhe conseguem igualar o passo, ò ritmo de crescimento, quanto mais meados do século XVII, as modificações ocorridas nas relações
superá-lo, como de certo modo seria desejável” (193). económicas em que se baseava até então o processo de colonização,
determinaram uma total reformulação das relações metrópole-
Esse crescimento macrocefálico da metrópole de tipo colonial é colónia. As atribuições da administração real aumentavam, limitando,
característico de nossa época mas poderia ser, por analogia, adaptado por conseguinte, o poder quase absoluto que até então usufruíam os
ao caso de Salvador no período colonial e mesmo independente do Senhores, de Engenho. Este poder foi posto em cheque não somente
século XIX. pela administração real que adota uma atitude de participação direta,
mas também pela marcha ascendente de uma burguesia comercial
Com efeito a estrutura urbana é sujeita a um processo de origem reino/ que arrebata das mãos dos produtores a comercialização de sua
social, ele mesmo condicionado pela organização político- produção agrícola. Essa mudança que atinge a estrutura social, até
administrativa instalada pela mãe pátria. Essa organização político- então bastate simplificada (194), traduz-se pela formação de categorias
administrativa conheceu, entre 1500 e 1889, quatro fases. intermediárias na população da cidade, quase todas integrantes da
classe mercantil, cujos objetivos acham-se estreitamente identificados
com os da metrópole. Por sua vez, forte pelos apoios que encontra in
A primeira fase corresponde grosso modo às primeiras décadas loco, a Metrópole portuguesa imprime uma nova orientação à sua
dos 1500, quando o Brasil é o palco de uma exploração grosseira de política administrativa. Essa nova orientação, desabrocha sobre uma
recursos naturais. Nesta fase não há preocupação de uma dominação política de urbanização, que deve ser entendida como um esforço
efetiva através do processo de povoamento e colonização e identifica- contínuo para controlar e influir sobre o espaço dominado. Controlar
se pela ausência de qualquer tipo de organização quer seja económica e influir sobre as transformações que ocorrem por causa da centraliza­
ou político-administrativa. Com a necessidade de proteger a conquista ção económica, do desenvolvimento de uma agricultura de subsistên­
das incursões estrangeiras, inicia-se uma segunda fase, a das capita­ cia e de um setor artesanal que vêm atender as crescentes necessida­
nias herediatárias. Nesta fase, o Estado coloniza dor atribui amplos des de uma população urbana em crescimento constante. Essa política
direitos a particulares os quais ficam encarregados de organizar urbanizadora tem como decorrência direta uma rede urbana: ambas
economicamente o espaço que lhes foi cedido, assim como estabelecer determinam os papéis que os centros urbanos vão desenvolver no
formas incipientes de organização político-administrativa. A instaura­ sistema em via de formulação. Sistema que pode ser auferido através
ção do governo geral em 1549 é a primeira manifestação de uma do estudo da criação de novas vilas e de novas cidades no final do
atitude por parte do Estado que visa a implantação de uma século XVII. Pela criação de vilas e de cidades, o Estado metropolita­
organização económica e político-administrativa mais complexas. no cria postos avançados de controle das populações que, em
Porém, apesar dessa mudança de atitude, o Estado permanece ainda povoados concentrados ou dispersos, iniciaram a ocupação efetiva do
ausente na medida em que continua abandonando às mãos de território da colónia. A instauração de um regime de controle efetivo
particulares grande parte do poder político, da organização económi­ por parte da administração real, marca o início da quarta fase que
ca e mesmo da urbanização. Assim o Estado se limita a estimular as pode ser estendida até nossos dias (195).
iniciativas particulares, sem delas participar diretamente, e a coorde-
naro setor militar e administrativo da colónia nascente. O governo local, (194) - Apesar de não existirem estudos específicos sobre a estrutura e hierarquias
com tudo aquilo que implica em decisões a serem tomadas, esta nas sociais do primeiro século de colonização, algumas evidências esparsas indicam que os
mãos dos organizadores do espaço económico - os senhores de grupos sociais eram pouco diferenciados. Por exemplo, os produtores de açúcar eram
Engenho - que, através de sua participação na Câmara do Senado, ao mesmo tempo comercializadores. de sua produção, mandando diretamente esta para
o mercado europeu. Cf. Stuart. B. SCHWARTZ. Sovereighty and Society in Colonial
exercem uma influência que, com frequência, se opõe à própria Brazil The lligh Coun o f Bahia and its Judges 1609-1751. Califórnia. University of
política da metrópole colonizadora. Enquanto os objetivos desta Califórnia Press. Berkeley - Los Angeles - London. 1973. p. 95-171 e Anita
NOVINSKY. Cristãos novos na Bahia São Paulo. Editora Perspectiva. 1972.
(195) - REIS FILHO. Nestor Goulart. Evolução urbana do Brasil. 1500-1720. São
(193) - Citado por M. SÀNTOS In O papel metropolitano... op. cit., p. 185. Paulo. Editora Pioneira. 1968.

108 109
Salvador, porém, é um caso à parte, pois desde os primeiros anos
de sua fundação mereceu de cuidados especiais por ser a cabeça da Pela conquista dos sertões através da expansão do gado vacum,
colónia. Cidade real, foi “logo dotada de um quadro urbano que pode cuja criação era proibida a menos de 100 léguas do litoral, Salvador,
ser comparado com as.experiências de maior importância da mesma estabelece, a partir do último quartel do século XVII, correntes de
época nas índias e com as obras de urbanização colonial de outras trocas com um espaço que vai cada vez mais se alargando. Este espaço
nações” (196). Contudo, em 1693, Salvador deixa de ser a única vai conhecer o seu máximo de extensão nas três primeiras décadas do
cidade da Bahia, com a fundação no Recôncavo das vilas de São século XVIII. Com efeito a descoberta de ouro em Minas Gerais
Francisco do Conde, Nossa Senhora do Rosário de Cachoeira e de provoca um deslocamento de população para o interior das terras.
Qual foi a contribuição, em homens, da Bahia, não o sabemos. Mas
Nossa Senhora da Ajuda de Jaguaripe. Mais para o sul é fundada na
mesma data a vila de Camamu. esta população, que consagrava a totalidade de seus esforços à
atividade mineradora, necessitava do concurso de terceiros para o seu
Até que ponto a criação desses novos núcleos urbanos veio sustento. Sendo a carne de boi o essencial da alimentação das
contestar a hegemonia exclusiva da capital sobre o espaço dedicado à populações, as fazendas de gado se multiplicaram nas zonas semi-
agricultura de exportação e de subsistência é-nos difícil saber. Por áridas e o Rio São Francisco tornou-se a grande via de comunicação
enquanto, dentro desta perspectiva, faltam-nos estudos históricos entre o Nordeste e o centro da colónia, entre a região de produção e a
sobre o Recôncavo. Aparentemente, Salvador continuou desempe­ região de consumo. O papel de Salvador foi essencial: redistribuidor
nhando seu papel de cidade-metrópole colonial, pois possuía o de bens manufaturados importados, abastecedor em gêneros alimentí­
dinamismo capaz de tornar suas funções vitais interessantes a um cios e fornecedor de mão-de-obra escrava, ele domina de longe os
vasto espaço regional, e dispunha de instrumentos suficientes para outros centros económicos da colónia. Ademais, a descoberta de ouro
impor-lhe sua dominação. Dominação que, aliás, lhe era delegada por no próprio território da Capitania, inicia, em 1724, o povoamento do
um centro maior, a Metrópole, que de longe lhe controla as atividades planalto a que se dá o nome de Chapada Diamantina Desta maneira
imprimindo-lhe seus próprios ritmos. Este espaço que a cidade Salvador se beneficia do duplo tráfico de gado e de puro. “É o início
controla como intermediário de outro centro onde as decisões finais de uma organização do espaço em que Salvador se afirma como praça
são tomadas, varia de extensão segundo o próprio ritmo da conjuntu­ que abastecia vasta região do Piauí até Minas Gerais e como
ra. exportador de açúcar, fumo e ouro. Torna-se assim uma metrópole de
uma região muito mais extensa que o seu arrière-pays ” (197).

Praça forte nos primeiros anos da colonização a cidade do Contudo, a cidade de Salvador, metrópole regional com vasta
Salvador é já no final do século XVI uma praça comercial de primeira influência, vai conhecer uma primeira regressão: a mudança da sede
importância. A cana-de-açúcar. plantada a princípio nas cercanias do da colónia, em 1763, para o Rio de Janeiro, a queda na produção
burgo fortificado, alastra-se a partir do final da década dos 1560, aurífera em Minas Gerais, imprimem uma mudança conjuntural
ocupando uma primeira zona úmida litorânea que margeia os rios do importante. Os antigos mineradores, privados de sua atividade
Recôncavo. Já em meados do século XVII novas zonas sub-litorâneas essencial, procuram, ou fixar-se na região tomando-se agricultores e
são ocupadas e economicamente exploradas através da plantação de criadores de gado, ou voltar para o litoral onde se verifica uma
tabaco, de açúcar e por culturas de subsistência. Porto de exportação reanimação da atividade produtora de açúcar. Recrudescência da
de açúcar e de tabaco, Salvador é também um importante porto de atividade agrícola pelos estímulos que recebe da conjuntura interna­
importação, pois permanece, por longo tempo, o único entreposto de cional que lhe é favorável. Salvador adapta-se à nova situação.
gêneros alimentícios e produtos manufaturados vindos de Portugal. É
também o maior mercado de escravos. Assim ao lado de sua função
militar e administrativa de sede da colónia. Salvador desempenha Todavia, a conquista de espaço pelo gado possibilitou o estabele­
uma função de metrópole colonial regional, posto avançado do cimento no interior das terras da capitania baiana de embriões de
capitalismo comercial português. Até meados do século XVII é a cidades que funcionavam como traços de união entre a cidade-porto e
capital económica do Recôncavo. o mundo rural. Esse mundo rural, que vivia em terras afastadas do

(196). - Idem. p. 73. (197) - SANTOS, Milton. O centro da cidade do Satvador, Salvador, Livraria
Progresso, s/d.

110 111
litoral, praticava a policulturá de gêneros de subsistência e vivia quase impede que a cidade desenvolva um setor produtivo ligado à
que em regime de economia fechada. Mas sua presença, assegurava à atividade industrial, além na açucareira. Os esforços empreendidos
cidade do Salvador uma área de influência extensa, organizando em meados do século XIX em torno da indústria têxtil não consegui­
assim o seu espaço em que iam distribuídas as mercadorias vindas do ram criar um fluxo contínuo nem nas operações, nem na produção,
além-mar. Assim, por ser uma cidade-porto, intermediário necessário nem nos benefícios. Por outro lado, faltavam as condições para o
entre as forças do capitalismo, estrangeiro e seus grupos sociais desenvolvimento de uma indústria de base - o que aliás, era próprio a
urbanos ou rurais, Salvador conservava uma importância regional todo o Brasil - e a Bahia, assim como as áreas por ela influenciadas,
significativa. Por essa razão, em meados do século XIX, a província da continuavam consumindo produtos manufaturados estrangeiros. As­
Bahia tenta implantar um novo sistema de comunicações com o sim, Salvador no século XIX, não perdeu sua característica de
desenvolvimento de uma rede ferroviária. Este novo sistema de metrópole colonial, de cidade intermediária, simples entreposto de
comunicação visa a um duplo objetivo: primeiro, a construção de uma mercadorias e ponto avançado do capitalismo internacional do qual é
estrada de ferro em direção ao São Francisco, seguindo os multissecu­ um bom tenente. Até por volta de 1950 a principal “indústria”
lares traçados dos caminhos de gado, e, segundo, o estabelecimento de soteropolitana era a de produtos alimentícios. Esta representava 45%
linhas férreas que pusessem em contato os centros produtores do da atividade industrial contra 15 da indústria têxtil (2 10). Essa falta de
Recôncavo, Santo Amaro, Cachoeira e Nazaré das Farinhas, com indústria, sc refletia no baixo padrão da vida da população que vivia
Salvador, a capital. Pretendia-se assim organizar sub-regiões. Mas as de atividades comerciais, de biscates, e da função pública que tentava
capitais sub-regionais não tinham ambições de vida própria, absorver, nos seus diversos serviços, um excedente crónico de
restringindo-se apenas a fazer penetrar no meio rural as influências de mão-de-obra.
-anannmt

Salvador (198). Centralizavam a produção agrícola do Recôncavo e


do sertão e reenviavam-na à capital, donde era dirigida para o
No final do século XIX e principalmente a partir da segunda
exterior. Tipo de organização de um espaço sub-regional que, na
década do século XX, Salvador conhece uma segunda fase de
-

realidade, reforçava a dependência da região em relação à cidade do


Salvador (199). regressão. A cidade que outrora comandava o comércio de todo o
Estado e ainda o de grandes áreas dos Estados vizinhos'como Sergipe,
f Alagoas, Pernambuco, Piauí e Minas Gerais, vê sua área de influência
Desta maneira durante todos os séculos de sua existência, a restringir-se consideravelmente. O principal responsável por essa
cidade do Salvador foi o ponto de concentração para os recursos involução foi falência no programa de desenvolvimento de comunica­
financeiros, económicos, sociais e políticos, responsáveis do seu ções rápidas e baratas (202). Assim, pouco a pouco “as cidades do
macrocefalismo. Cidade macrocéfala pelas funções monopolizadoras planalto ocidental ligam-se comercialmente a outras de Goiás, outras
que exercicia mas também pela atração que exercia sobre as sanfranciscanas satisfazem necessidades não primárias como educa­
populações rurais. Em apenas um século a população da cidade cionais e de produtos industriais fabricados em Belo Horizonte e
triplicou: em 1800: 50.000 h; em 1872: 129.000; em 1890: 144.000 outras cidades mineiras como Pirapora. Montes Claros e Januária, o
hab. Aumento pelo qual, como veremos, não pode ser responsável mesmo acontecendo com inúmeras localidades do sudoeste a quem a
somente o crescimento vegetativo da popu\ação. Aliás, essa afluência passagem Rio-Bahia (na década de 1950) veio trazer essa oportunida­
de população reflete-se na paisagem urbana de Salvador pelo de” (203).
alargamento de seu quadro urbano, com a intensa ocupação dos
bairros de Nazaré, do Barbalho e, em menor grau, da Vitória (200).
(201) - SANTOS, M. O pape! metropolitano... op. cit., p. 188.
(202) - A história dos transportes no Estado da Bahia está ainda por ser feita.
Todavia, apesar deste aparente dinamismo, a metrópole sotero- Sobretudo no que diz respeito à política ferroviária que. aparentemente, conheceu um
politana esconde no seu bojo fraquezas que lhe são fatais. O comércio, desenvolvimento precoce mas que não se consubstanciou numa política continua.
atividade por excelência intermediária e instigadora de consumo, Faltam também estudos sobre a política rodoviária. Por outro lado. é interessante notar
que, apesar de ter ocupado no século XIX boa posição nos transportes marítimos, no
decorrer do século XX sua frota mingou e se tornou obsoleta, diminuindo assim as
(198) - Idem, p. 30-40 viagens da Navegação Baiana (cf. M. SANTOS. O papel metropolitano... op. cit., p.
(199) - Ibidem, p. 41. 190).
(200-C f. Recenseamentos de 1872 a 1890. (203) - SANTOS, M. O pape! metropolitano... op. cit., p. 188.

112 113
que vivia ou se deixava viver carregando no seu seio os homens
No que diz respeito ao extremo sul do Estado, e mais precisamen­ responsáveis por sua existência, por sua perenidade, homens dele
te ao eixo Ilhéus-Itabuna, este conhece, graças ao desenvolvimento da nascidos, criados e vividos nela e para ela.
cultura de cacau, um dinamismo que contrasta com a depressão que
castiga as culturas tradicionais do Recôncavo e, principalmente o Mas, que homens, quantos homens para uma cidade, metrópole
açúcar. Para essa depressão contribui a obsolência nos métodos de colonial de existência atribulada, feita de altos e baixos, expressão
produção de açúcar “quase imutáveis desde o primeiro século de própria da vida que nela pulsava, imprimindo-lhe seus ritmos?
colonização” (204) apesar dos esforços de renovação para uma produ­
ção e industrialização mais racionais que representa o estabelecimento
de Engenhos Centrais (205). Mas. no momento de decadência da
economia açucareira, os cacauais do sul da Bahia começa a produzir LIVRO I I - O PESO DOS HOMENS
em escala comercial. Assim “o pólo da economia estadual e a fonte de
recurso para o tesouro se transferem para a região cacaueira”. O historiador que se debruça para desvendar os ritmos de uma
Todavia a cultura do cacau “não estava em condições de permitir uma população do passado, encontra no seu caminho certos problemas que
acumulação de capitais em favor da capital Salvador, em cujo porto, exigem solução prévia, antes mesmo que o próprio problema da
porém, concentrava-se a exportação” (206). Grande parte dos exce­ dinâmica populacional seja colocado (209). Estes problemas que são
dentes destes capitais procurava investimentos fora do Estado, metodológicos levam a duas indagações fundamentais:
notadamente no Rio de Janeiro. Por outro lado, o sul do Estado deixa
de se abastecer em bens de consumo na capital, abrindo comércio Há, primeiro, que considerar o como definir o espaço urbano, isto
direto com as cidades de Vitória do Espírito Santo, Rio de Ja é. como fixar com precisão os limites que permitem ver com claieza
neiro e com as cidades mineiras de Nanuque, Teófilo Otoni e Carlos onde termina a cidade e onde começa o campo. Em seguida, é
Chagas que passam a fornecer para aquelas populações até gêneros necessário decidir de que tipo de informações se pode utilizar para
de alimentação (207). reconstruir a evolução do número absoluto dos habitantes da cidade
sem perigo de traçar um quadro aquém ou além da realidade.
Finalmente, em direção do Nordeste, nas proximidades das
fronteiras com Sergipe e Pernambuco, é com as cidade sergipanas e Capítulo 1- Como Definir o Espaço Urbano da Cidade
pernambucanas que se comercia e Juazeiro, capital do médio São
Francisco,“não prolonga até a sua área regional apenas a influência Como definir o espaço urbano de uma cidade como Salvador,
de Salvador, pois leva até essas populações, inúmeros produtos que infimamente entrelaçada com sua hinterlândia próxima, da qual
Recife lhe pode fornecer e Salvador não... e que lhe chegam por retira os próprios elementos de sua existência e que, por sua vez. faz
preços melhores que os da capital baiana” (208). viver tanto bem quanto mal? Para que isto possa ser feito é necessário
voltar mais uma vez às origens, isto é, à própria fundação da cidade
Assim a influência de Salvador, como metrópole colonial regional, em 1549.
foi se encolhendo no tempo e por mais de meio século a cidade viveu
sobre suas glórias do passado. Passado de cidade aparentemente Fundada por decisão real, Salvador, como todas as cidades e vilas
poderosa quando brilhava como cidade-fortaleza, como cidade- do Império português, foi criada com um termo e dotada de um
metrópole - ponto avançado do capitalismo internacional - cpmo
cidade-comuna e cidade-religiosa primeira entre todas. Uma cidade (209) - Os estudos de demografia histórica são no Brasil recentíssimos. O trabalho
pioneiro da profa. Maria Luiza MARCÍLIO. A cidade de São Paulo - Povoamento e
(204) - SANTOS. M. O centro da cidade... op. cit., p. 42. População 1750-1850, São Paulo. Editora Pioneira, 1974. tem inspirado várias monogra­
(205) - A política de estabelecimento de Engenhos Centrais na Província da Bahia, fias na sua maioria ainda inéditas. Para a cidade do Salvador e, especialmente. para o
carece de estudos. Entretanto, foi na Bahia que se instalou o quinto Engenho Central século XIX. há o estudo de Johildo LOPES DE ATHAYDE La ville de Salvador au
do Brasil. “Bom Jardim” em Santo Amaro, a 21 de janeiro de 1880. XIX e siècle - Aspccts démographiques (d\ après les registres paroissiaux), ( esc
(206) - SANTOS. M. O centro da cidade... op. cit., p. 43. mimeografada). Trabalho alentado pela massa de documentação manipulada e
(207) - SANTOS, M. O papel metropolitano... op. cit., p. 189 infelizmente, de utilização dificil para o conhecimento <ja evolução e dinamit
(208) - Idem. p. 189. populacional da cidade, na época.

114 115
Resta a cidade do Salvador. Como vimos linhas atrás, esta
rossio. O temio da cidade representava o território sobre o qual se
exercia a autoridade municipal. O rossio era uma parcela do termo, conheceu seu máximo de expansão, quanto ao número de freguesias
demarcada junto aonúcleo urbano, e utilizado para atender à criadas, no final do século XVIII. Com efeito, apenas uma freguesia, a
pastagem dos animais de uso doméstico dos moradores, e para o dos Mares, fundada em 1871, veio completar a lista das freguesias
fornecimento da lenha, principal combustível para as necessidades ditas “ urbanas”, elevando seu número para 11.
domésticas. O rossio representava ainda uma área que atendia ao
próprio crescimento da formação urbana. Das freguesias “urbanas” existem três descrições mais ou menos
detalhadas: a de 1757, a de 1801 e a de 1829. Vejamos de que maneira
os autores dessas descrições caracterizam as freguesias da capital e,
Cidade real e sede d„ governo geral da colónia, Salvador recebeu em segunda, comparemo-las com o recenseamento de 1870.
um termo de grandes dimensões, expressamente determinado no
Regimento de Tomé de Souza: “El-Rey he que a dita povoação seja A descrição de 1757 é uma obra coletiva: a pedido do Governo
tal como atras fica declarado ey por bem que ela tepha de termo e de Sua Majestade os curas das paróquias de Salvador descrevem os
limite seis legoas para cada parte e sendo caso que por allgua parte territórios de sua jurisdição eclesiástica e fornecem dados sobre o
não aja as ditas seis legoas por não aver tanta terra, cheguara o ditp número de sua população. Cada um dos curas das 9 paróquias então
termo atee onde cheguaram as terras da dita capitania, o qual termo existentes (214) respondeu ao inquérito pedido de forma muito
mandareis demarquar de maneira que em todo tempo se posa saber desigual. Há quem precise o número de fogos e de almas que existem
onde parte” (210). Cabia ao Senadoda Câmara, dentro de seu termo, na paróquia, indo até distinguir entre almas de comunhão e almas de
dar as terras em foro ou mesmo conceder pequenas sesmarias (211). confissão, como é o caso, por exemplo, do cura da freguesia da Sé,
Chão devoluto dentro da cidade pagava foro perpétuo. Gonçalo de Souza Falcão (215). Há outros, como o vigário de N. S. da
Conceição da Praia que dão informações globais: “há na dita
freguesia 4.000 almas de comunhão”. Mas todos os vigários colabora­
Que limites atingia o termo de Salvador e que “freguesias rurais” ram respondendo. Todavia, não é isto que nos interessa. O que se
englobava? Os documentos consultados dão fé de que, o termo da deseja saber é somente de que maneira responderam os vigários de
cidade do Salvador, tal como havia sido delimitado no século XVI, duas freguesias: a de N.S. da Vitória e a de N.S. de Brotas. Por quê?
não sofreu nenhuma modificação até meados do século XX (212). Porque essas duas freguesias, englobadas nos limites urbanos da
Faziam parte do termo da cidade as freguesias de São Bartolomeu de cidade do Salvador, são na realidade de povoamento esparso, diz o
Pirajá, São Miguel de Cotegipe, N.S. da Encarnação do Passé, Santa vigário de N.S. de Brotas. Pedro Barbosa Gondim que “o povo habita
Cruz de Itaparica, Santo Amaro de Itaparica, Santo Amaro do espalhado”. Quanto ao número de habitantes para as duas paróquias,
Ipitanga, Sr. do Bonfim da Mata, N.S. do Ó de Paripe, N.S. da este é muito fraco: 45 almas residem na freguesia de N.S. de Brotas e
Piedade do Matoim. Na contra-costa da parte norte, o termo da 1500 na de Vitória que foi. lembremos, uma das primeiras de
cidade englobava ainda as freguesias de S. Bento do Monte Gordo e
Salvador. Enquanto que a Sé. paróquia mais populosa da cidade, está
de São Pedro do Assu da Torre. Nestas freguesias vivia, até o final do
com 8.442 almas, e o Paço. freguesia menos populosa, com 2.018.
século XIX uma população de tipo agrícola sob forma de povoamento
disperso, existindo apenas aqui e acolá embriões de povoados em tomo Mas, sobretudo, o que deve ser realçado é o caráter rural,
das igrejas matrizes das freguesias, compostas de casas de porte exclusivamente rural, dessas duas freguesias cujos moradores são
relativamente humilde (213)* aos quais faltava o essencial da estrutura lavradores de mandioca, cultivam hortaliças e árvores frutíferas e há
de um aglomerado concentrado. até pescadores que do sítio denominado das Armações (Armação do
Saraiva e Armação do Gregório) partem à caça da baleia. Mundo
(210) - M ALHEIRO Carlos e outros, História da colonização... op. cit., p. 345-46.
(211) - REIS FILHO, N. G. A evolução urbana... op. cit., 112.
(214) - As duas outras paróquias da cidade do Salvador foram fundadas,
(212) —Quando foram destacados os municípios de Simões Filho e Lauro de respectivamente em 1760 (N. Sra. da Penha) e 1871 (Mares).
Freitas.
(215) - CERQUEIRA DA SILVA. Ignácio Accioty. Memórias Históricas e
(213) - O porte humilde das casas das freguesias suburbanas é atestado nos Políticas da Província da Bahia, do Coronel... Mandadas reditar e anotar pelo Governo
Inventários e Testamentos de pessoas falecidas. Cf. APEB, Seção judiciária. Série deste Estado. Anotador: Dr. Braz. Bahia. Imprensa Oficial. 1937. vol. 5. p. 371.
I nventários e Série Testamentos (1805-1891, 64 Livros).

116 117
rural vivendo em povoamento disperso, aproveitando da riqueza do
solo e da abundância de água para suas culturas, suas freguesias de A observação de Vilhena é bastante clara: o autor admite ter
maneira alguma podem ser consideradas como centros urbanizados usado de dados já envelhecidos. Com efeito o autor utilizou o mapa
vez que lhes faltam os serviços básicos, ainda que incipientes', que de população da capitania da Bahia de 1775 que havia sido levantado
existem nas paróquias centrais da cidade do Salvador. Pergunta-se para fins militares. Por outro lado, este mapa é praticamente
então, que diferença existe entre a freguesia de N. S. de Brotas, inutilizável para uma análise demográfica mais fina. Como, por
freguesia da cidade, e a freguesia de São Bartolomeu do Pirajá, exemplo, calcular a média de pessoas que compõem cada fogo, se
freguesia do subúrbio: as características são as mesmas e só há foram computados junto os fogos referentes aos conventos, à viúvas,
diferença no fato de que a freguesia de N.S. de Brotas fica, na com o resto da população?
distância, talvez mais perto do centro da cidade.
Mas não é certamente isto que nos interessa indagar no
Nosso segundo informante é o professor de grego Luís dos Santos momento. O que é interessante verificar é que 20 anos mais tarde, as
Vilhena. Vilhena ao enumerar as freguesias da cidade do Salvador, freguesias de N.S. de Brotas e de N.S. da Vitória são ainda as menos
em 1801, distingue entre freguesias da cidade e freguesias dos populosas da cidade. Mesmo uma freguesia nova como a de N. S. da
subúrbios da cidade: Penha, criada por desdobramento da freguesia de Santo Antônio
Além do Carmo em 1760, é superior em número de fogos e almas de
FREGUESIAS DA CIDADE que a de N.S. de Brotas. Aliás, se compararmos o número de fogos e
de almas das duas freguesias soteropolitanas consideradas rurais, com
o número de fogos e de almas das freguesias ditas suburbanas,
FREGUESIAS FOGOS ALMAS GENTE QUE PODE DAR veremos que há maior identidade nos dados entre elas que se
comparadas com os dados das freguesias da urbe:
SÉ 1.483 8,946 293
CONCEIÇÃO DA PRAIA 913 8.017 183
PILAR 461. 4.119 92
SANTO ANTONIO ALÉM DO FREGUESIAS DOS SUBÚRBIOS FOGOS ALMAS GENTE QUE PODE DAR
CARMO 800 3.000 160 DA CIDADE
N. S. DA PENHA 249 1.260 50
SANT‘ANNA DO SACRAMENTO 996 4.170 199
N. S. DAS BROTAS 189 1.063 38 SÃO BARTOLOMEU DE PIRAJÃ 156 897 31
SÃO PEDRO 0 VELHO 1.232 6.680 246 N.S. DOÓ DE PARIPE 127 644 25
s. s a c r a m e n t o DA RUA DO SÃO MIGUEL DE COTEGIPE 120 1.316 24
PAÇO 402 2.075 80 N.S. DA PIEDADE DE MATOIM 194 1.695 39
N. S. DA VITÓRIA 355 1.582 71 SANTO AMARO DA IPITANGA 400 3.036 80
SÃO PEDRO NÓ SAUIPE DA TORRE 110 835 22
SENHOR DO BONFIM DA MATA 112 851 22
SANTA VERA CRUZ DE ITAPARICA 387 2.897 77
SANTO AMARO DE ITAPARICA 187 1.425 37
Vilhena observa o seguinte: “achavam-se nestas freguesias 7.080 298 2.497 60
N.S. DA ENCARNAÇÃO DO PASSÉ
fogos e 40.992 almas a maior parte pretos e mulatos cativos. Das 5
partes dos fogos 4 são para clérigos, as viúvas, pretos e pardos forros
etc. Da outra quinta parte dos fogos que são os pais de famílias, se
sentou que sem opressão se podia tirar para fornecimento da tropa de
linha 1.412 homens, ficando o resto para os corpos de milícias; hoje
porém que há mais fogos e mais almas, é impossível o tirar-se a
metade daquele número” (216). Observa Vilhena que “continham estas 10 freguesias 2.091 fogos e
16.093 almas e para os mesmos fins se deverá destinar a quinta parte
de seus fogos e vinham a ser 417 homens para a Tropa paga, e o resto
(216) L. dos Santos V1LH ENA, A B ahia no século X V I I I ... op. cil., v. 2 p.460-461.

119
118
postura n” 39 por exemplo proíbe na cidade, nos subúrbios ou nas
para os Corpos de Milícias de Itaparica, .Pirajá e Torre de Garcia povoações de seu distrito construir casas, cercas e muros, ou fazer
d’Avila, que estas freguesias abraçam” (217). modificações na frente dos edifícios que alterem seu prospecto, sem a
devida licença da Câmara, a fim de se lhe dar o necessário
Nota-se ainda que Vilhena, ao descrever a cidade, coloca a alinhamento. Aos contraventores impunha-se multa de I0S000 réis ou
freguesia de N.S. de Brotas entre “as mais freguesias que há no termo 5 dias de prisão firme, além da demolição da obra às custas do
desta cidade, segundo as notiícias que tenho podido conseguir” (218). proprietário (220). Do mesmo modo abrangentes eram as posturas
referentes à limpeza. Era por exemplo, proibido criarem-se porcos
Freguesias urbanas, freguesias rurais? Eis uma questão que ainda soltos ou enxiqueirados dentro da cidade e povoações do distrito. Esta
permanece em aberto no alvorecer do século XIX. Mas continuemos a criação só era permitida a um quarto de legua distante da cidade ou do
nossa demonstração: povoado, e a multa era de 6S000 réis ou 3 dias de prisão (221). As
valas e riachos que atravessavam os subúrbios e a cidade em terrenos
A informação que em seguida utilizamos é de Domingos José de particulares, deveriam ser limpos e desentupidos por estes, e
Antônio Rebello. Na sua “Corografia ou abreviada história geográfica dessecados os pântanos e as águas estagnadas. A multa era de 10S000
do Império do Brasil”, de 1829. Rebello, ao descrever a cidade do réis ou 5 dias de prisão (222). Inúmeros são os exemplos, mas, o que é
Salvador, enumera entre as “freguesias do subúrbio e terreno da interessante notar é que para os edis municipais de 1831 a cidade e
cidade lado a lado: N.S. da Penha de Itapagipe. N.S. das Brotas, São seu termo fazem uma só unidade e a vida nos povoados do termo é
Bartolomeu do Pirajá. Santo Amaro do Ipitanga, Sr. do Bonfim da um prolongamento da vida da urbe: o cidadão de Paripe é também
Mata. N.S. do Ó de Paripe, N.S. da Piedade de Matoim, N.S. da soteropolitano. E de tal forma campo e cidade são imbricados que a
Encarnação do Passé e. na contra-costa da parte norte, as freguesias própria Câmara de Salvador sente a necessidade de demarcar o
de São Bento do Monte Gordo e São Pedro do Assu da Torre. Mas perímetro urbano quando é instituído o imposto das décimas, em
Rebello deixa de citar três freguesias da II ha de Itaparica. Vera Cruz e meados do século XIX. Em maio de 1857, dois membros indicados
Santo Amaro. Se aceitarmos essas informações como sendo corretas, o pelo governo provincial e municipal (223) deram o seu laudo que fora
perímetro urbano da cidade encolheu-se vez que a importante devidamente aprovado:
freguesia de N.S. da Penha deixou de pertencer a este, para não falar
na freguesia de N.S. das Brotas que sistematicamente é considerada “ A comissão encarregada da demarcação dos limites da cidade
como “ suburbana” (219). para o pagamento da décima urbana... acordou na seguinte demarca­
ção para "fixar os ditos limites. Pelo lado do litoral o limite será
Aliás essa dificuldade de conceber os limites exatos do perímetro determinado pela linha do mesmo litoral entre o morro do pharol da
urbano se faz sentir também nos atos das autoridades públicas do Barra e a ponta de Nossa Senhora da Penha, e continuará sem
século XIX. As posturas municipais, os testamentos e inventários de interrupção ainda pelo mesmo litoral, dobrando pela enseada do
pessoas falecidas na cidade e seu termo, e um censo anterior ao censo porto denominado Ribeira de Itapagipe, e seguindo pelo porto dos
oficial de 1872. são bons exemplos desta situação: Tainheiros até o alambique dos Fiaes inclusive, onde terminará o
limite em linha recta para a estrada das Boiadas, a sahir em frente do
A série de posturas municipais, aprovada em 1831. fornece portão do mesmo alambique dos Fiaes, e descerá depois por ella até o
alguns exemplos esclarecedores. Tratando-se, por exemplo, de postu­ paredão do tanque da Conceição, donde subirá pela mesma estrada
ras referentes às modalidades de edificação de prédios, os regulamen­ até o Largo da Lapinha, da qual descerá pelo beco próximo ao dito
tos editados pela Câmara do Senado de Salvador, aplicam-se largo e que vai ter à fonte do Queimado, da qual subirá pela estrada da
indistintamente à cidade e aos chamados “povoados”do termo. A
(220) “ -4A/S, Livro de Posturas Municipais - 1829-1859 (n*‘ 119.5). foi. 23.
(217) - Idem. p. 460-461. (221) - Idem. postura ^ '3 5 . fols. 21-22.
(218) - Idem. v. I. p. 36. (222) - Ibidem. postura n'’ 30. foi. 19.
(219) - RE3ELLO. Domingos. José Antonio. Corografia ou abreviada história (223) - Pelo governo provincial foi designado o Dr. Francisco Pereira de Aguiar e
geográfica do Império do Brasil. Bahia. Typographia Imperial e Nacional. 1829. pelo município. Francisco Antonio Filgueiras. Cf. Affonso RUY História da Câmara
Impressa na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. 1929. p. 140-165. Municipal da cidade do Salvador. Salvador. Oficina Tipográfica Mahú. 1953. p. 309.

120 121
IE

Cruz do Cosme, e seguirá por esta até o Largo da Cruz do mesmo documento deixa perceber uma certa previsão a médio prazo de que,
nome, do qual descerá pela ladeira que vai passar frente do edifício da as áreas ruralizadas próximas a aglomerados talvez mais compactos,
Quinta dos Lázaros, seguindo por aí até a travessa que adiante existe viessem a ser ocupados de modo mais intensivo e permanente,
à esquerda, e que comunica com a rua da Valia pela qual subirá a passando assim para o perímetro urbano. Aliás a demarcação desses
linha de limites até a trifaccação da mesma rua da Valia, onde tomará limites urbanos era somente válida por 4 anos (226).
o rumo que se dirige à fonte das Pedras, e por elle seguirá até o
cruzamento com a travessa ou rua do Sangradouro por onde i Por outro lado, a demarcação dos limites da cidade não afetava
c o n tin u ará ate o m atatu . lim itando-se neste em frente os limites de cada paróquia. Porém, é preciso dizer que, se os limites
da roça de Thomaz da Silva Paranhos, inclusive esta, e dai paroquiais são determinados com precisão quando se trata de áreas
voltará pelo mesmo Matatu e seguirá até o alto de Joaquim José de densamente povoadas (227), o mesmo não acontece quando estes
Oliveira, e daí pela estrada de Brotas até defronte da casa da limites se encontram em campo aberto, onde o povoamento é ainda
Boa-Vista, por cuja estrada se dirigirá ao Dique e deste ponto, esparso. Que esta situação pouco nítida tenha criado embaraços e
tomando para o lado do norte, irá continuando a margem do mesmo confusões é perfeitamente possível. Deve-se ainda acrescentar que o
Dique até o ponto que ficar por baixo da casa grande do Garcia, e no entrelaçamento entre populações do termo e população da cidade,
alinhamento subirá até a esquina posterior da mesma casa, e daí continua. É, pelo menos o que evidenciam certas velhas atitudes que
seguirá em linha recta a embocadura da estrada do Rio de S. Pedro dizem respeito ao costume dos habitantes do termo de utilizar os
para a Graça, continuando por esta estrada até o largo do mesmo serviços da cidade quando se trata, por exemplo, de legalizar, através
nome onde o limite contornará a frente dos terrenos contíguos ao de registro, atos de direito civil. Testamentos, aberturas de inventá­
mosteiro da Graça, e descerá por esse mesmo largo até confrontar rios, registros de compra e venda de bens mobiliários e imobiliários,
com o ângulo posterior da casa que foi do finado Christa d'Ouro, e daí perfilhações de filhos naturais, hipotecas etc., são registrados nos
seguirá em linha recta para a casa de Frederico Helssemann, sito no tabeliões da cidade. A cidade e seu termo são um vasto mundo de
alto do morro da Barra e deste ponto se dirigirá também em linha intercomunicações em todos os sentidos. Daí a dificuldade que tem o
recta para a torre do pharol, qúe foi o ponto de partida. legislador para lhe demarcar os limites, dificuldade que se sente a
cada passo, quando se trata de aplicar as leis do município ou as leis
“Ficarão, pois, sujeitas à décima todas as edificações, não só da província.
comprehendidas dentro do supradito limite mas também as que
tiverem frente e serventias directas pelos mesmos portões de suas casas Outro exemplo típico dessa incerteza - o nosso último - é um
ou roças, para a linha dos limites já escripta. e que for face da rua ou recenseamento da população da Província da Bahia de 1870, docu­
praça, embora o edifício esteja fora da área comprehendida dentro mento que até agora permaneceu inédito (228):
dos designados limites”... (224).
No “quadro da população livre à escrava da província da Bahia”,
Segundo Affonso Ruy, a Câmara havia aproveitado a divisão de 22 de abril de 1870, levantado pela repartição de polícia da Bahia e
paroquial, repartindo a cidade em 10 freguesias (225). Porém, alguns assinado por seu chefe, a Capital. Salvador, figura dividida em 2
comentários se impõem: primeiro, com a fixação dos limites urbanos, distritos. Seus efetivos somados totalizam uma população de 77.686
partes significativas da freguesia de N.S. das Brotas, cujos terrenos habitantes, da qual 61.198 são livres e 16.488 escravos. Conforme
iam até o sítio da Pituba, e de Nossa Senhora da Vitória que com esta pode ser visto (229) a divisão da cidade em distritos fez desaparecer a
vizinhava nas margens do Rio Vermelho, foram deixadas de fora. antiga repartição geográfica entre freguesias urbanas e freguesias
Segundo, essa delimitação que assim amputa as duas freguesias de
parte de seus territórios, mostra que se tratava realmente de freguesias
(226) - Idem. p. 311.
pouco povoadas, onde as construções não eram aglomeradas, de (227) - Nos referimos aqui às freguesias do Centro da cidade como: Sé, Conceição
caráter mais rural do que urbano. Finalmente, o último parágrafo do da Praia. Pilar. Santo Antonio Além do Carmo. Santana, São Pedro, Paço.
(228) - APEB, Seção Histórica, Presidência da Província: Quadro da População
Uvre e Escrava dg Província da Bahia. Chefatura de policia, 22 de abril de 1870
(224) -Idem . p. 309-310. (Documentos avulsos).
(225) - Fbidem. p. 310. (229) - Cf. mapa acima.

122 123
I
QUADRO DA POPULAÇÃO LIVRE E ESCRAVA DA PROVÍNCIA DA BAHIA (II)

POPULAÇÃO POPULAÇAO
DELEGACIAS ESCRAVA OBSERVAÇÕES
LIVRE

Cachoeira 57:700 15 020


Taperoà 11226 2005
Tapera 14810 2076
Abrantes 19834 2.420
Inhambupe 18.944 3939
Valença 9948 1:185
Macaúbas 24 d 00 2404
Alcobaça 5237 1267
Monte Santo 9:749 699
Chique-Chique 13400 456
Urubú 13:126 1033
Cana vieiras 3:146 297
Itaparica 754? 910
Camamu 8:700 805
Carinhanha 9837 534
Santa Rita 4.068 303
Villa da Barra 6531 854
Villa de S. Francisco 28009 9285
Tucano 646 223
Camisão 23537 5 832
Campo Largo 11878 789
Itapicuru 18501 2:764
Monte Alegre 5 051 571
Geremoabo 13890 1541
Impai. Via da Victoria 11819 1846
Santo Antonio da Barra 14837 1024
Rio das Egoas 179561 7973 371
Monte Alto 16880 4932
Santa Izabel do Paraguassú 17880 1945

957 206 179.561

REPARTIÇÃO DA POLICIA DA BAHIA, 22 de Abril de 1870


O Chefe de Polícia
(assinatura Ilegível)

suburbanas. O termo usado para caracterizar os dois distritos é o de


delegacia. Que territórios abrangem esses dois distritos, não sabemos.
Com efeito não há meios para conhecer os critérios que serviram para
o levantamento do quadro. Porém, a leitura desse quadro permite
uma série de constatações:

125
Verificamos primeiro, que da antiga divisão em freguesias três sistematicamente considerada por seus habitantes ou pelos viajantes
somente ficaram fora dos distritos da Capital: Mata de São João passageiros como “a cidade” propriamente dita (231).
(3.700 hab. livres e 1.800 escravos). Abrantes (19.834 hab. livres e
2.420 escravos) e. finalmente, a Ilha de Itaparica com seus 7.542 A segunda solução, “Solução aberta”, mais humana e menos
habitantes livres e 910 escravos. legalista seria considerar a área da cidade da maneira mais ampla
possível. Aqui as consideraiões ligadjas ao fenômeno de maior ou
Segundo, que as três freguesias do termo, supra mencionadas, são menor grau de urbanização, seriam|substituidas|pe!ajinfinita variedade
as que, geograficamente, distam mais da cidade do Salvador. Talvez de gestos diários que são os responsáveis pelas relações sociais,
tenha sido por essa razão que vieram a constituir delegacias separa­ fundamentais a toda sociedade. Também, essa segunda solução talvez
das. permitisse entender melhor o porquê da disparidade enorme que
existe entre os dados que querem nos informar sobre a população de
Terceiro, se somarmos os 36.206 hab. que totalizam a população Salvador principalmente antes de 1872. A vantagem dessa solução é
das freguesias supra mencionadas aos 77.686 hab. do Salvador, temos que ela diminui para o historiador o impacto de certos erros de
um total geral de 113.892 hab. para o termo e sua cidade, em abril de avaliação dos contemporâneos: aqueles que se devem às diferentes
1870. Mas sabemos que em 1872, a cidade sem seu termo, tem 108.138 interpretações do que í a cidade propriamente dita e do que são os
habitantes. Evidentemente os dados são díspares pois mesmo se seus subúrbios. De qualquer maneira, mesmo para a “grande
admitirmos que a cidade tenha tido realmente 77.686 hab. em 1870. Salvador”, os dados demográficos de que dispomos permitem medi­
como é que se poderia explicar o aumento da população de 39.2^ em ções relativamente pouco precisas. Assim, num primeiro tempo, nos
apenas dois anos? A menos que tenha havido entre 1870. e 1872 (230) limitaremos a reunir os dados demográficos precários utilizáveis antes
um surto violento de migrações do campo para a cidade ou do de 1872 e depois de 1872. Em seguida, empreenderemos a crítica
exterior o que não parece ter ocorrido. Além do mais esses 77.686 hab. desses dados, procurando compreender porque aparecem, com fre­
representam ainda o conjunto da população urbana, suburbana e do quência, tão pouco comparáveis entre si.
termo.
Capítulo II - Os dados precários da demografia e sua manipulação:
Mas é tempo de terminar essa longa análise em torno da antes de 1872
dificuldade que há de conceituar com precisão os limites da cidade.
Vimos que as dificuldades são muitas. Vimos quanto é necessário ao Duas são as fontes habitualmente utilizadas para o estudo da
historiador conhecer a legislação, conhecer os hábitos e costumes que população: os recenseamentos, feitos para fins fiscais, eclesiásticos ou
com frequência a esta se superpõem, anulando-a nos fatos da vida mesmo militares, e as avaliações que podem repousar sobre uma série
cotidiana. Mas o historiador é obrigado à escolha.No caso da escolha de dados estatisticamente testados, ou então sobre simples estimativas
dos limites geográficos, ou espaço a ser estudado, duas atitudes nos globais. Há, evidentemente, a fonte muito importante dos registros
pareceram possíveis. paroquiais, que contabilizam os atos de nascimento, casamento e
óbito de determinada população em certo momento. Mas seus dados
precisam de elaboração para poderem ser utilizados. Não existindo
Primeiro, a “Solução estreita”, considerar como área tipicamente ainda nenhum estudo de demografia dinâmica e diferencial para a
urbana, a área que não apresenta grandes descontinuidades no seu Salvador do século XIX (232), força nos é feita de estudar o material
tecido urbano; que é provida dos serviços básicos como: iluminação, existente, de criticá-lo tentando captar os perigos de uma confiança
água, esgoto, serviços de limpeza, e de transportes regulares. Seria demasiada e as causas de distorção que podem explicar como os
ainda considerada como área urbana aquela área que fornecesse um recenseamentos e as avaliações oferecem resultados aparentemente
bom desenvolvimento dos setores secundário e terciário e fosse pouco comparáveis.

(230) - A documentação posta a nossa disposição, e constituída pelas FALLAS (231) - A centena de viajantes que aqui aportam durante o século XIX, sempre se
dos presidentes da província da Bahia, no referido periodo. não informa sobre referem às freguesias do centro da cidade quando se trata de descrever Salvador.
possíveis movimentos migratórios do interior em direção da capital. Salvador. (232) - Cf. nota n®209 do texto.

126 127
O s recenseam entos: até fins do século XVII, os cômputos da
população colonial baiana, e mais especialmente da cidade do •r; o
Salvador, não passam de vagas estimativas. O primeiro do que temos
notícia data de 1706 e é eclesiástico. Trata-se de um registro dos fogos
e pessoas em idade de confissão assentados nos livros da Mitra. Um
en •Sc
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ano mais tarde “o sínodo arquidiocesano de 1707 fazendo cumprir G 3 &2 ° o
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legislação cianônica já vigente em Portugal, obrigou os párocos a fazer 1H .SP O
anualmente, por si e não por outrem entre a dominga da Septuagési­ 8 cT»oC3 > aN>To3
ma e a Quinquagésima, rol pelas ruas e casas, e fazendas de seus ■£ •§ ca>-t3
O
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P« «o c
paroquianos anotando os seus nomes e sobrenomes, local de residên­ I | o
eu
cia, e indicando separadamente cada pessoa; por meio de uma z •§ ! ^2 £ ctí .2
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convenção em letras, deviam indicar as pessoas que não chegavam à 1 1 co n3 8 O o

CENSOS E RECENSEAMENTOS DA POPULAÇÃO DA CIDADE


puberdade, isto é aos quatorze anos nos homens e os doze nas
E.
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mulheres, e os maiores, obrigados a confissão e comunhão. Um ano ' 3 -a M O *o■*


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depois, para atender a uma ordem vinda do reino, o governador Luís 0'
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César de Meneses, pedia aos vigários que lhe fornecessem, pelo rol de
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cj .
desobriga, a relação dos pais de família que houvesse em suas , « 9 MO
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freguesias, com o número de filhos machos e suas idades e ainda o V", 3crçj« u S” uo õ £

DO SALVADOR: 1707 - 1872


Q: •I ti
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número de fogos ou lares” (233). Desta maneira tornava-se obrigató­ 1 i i ‘i I I I I I


rio o recenseamento anual da população e os seus resultados deviam
também servir para os fins administrativos, principalmente militares, «3
O
da colónia. Se esta determinação foi ou não seguida, não sabemos, CO VO VO
VO Os c^- O
pois nenhum destes censos foi até agora localizado. r-
vq
p p
vo VO* VO
04 rH CO
A primeira estatística realmente completa e detalhada data de
1775. Trata-se de um mapa em que a população vem classificada por OS O CO C4 vo Os o CN vo
O r- vo C4 CO O o i-H 00
grupos de idades, cor e estado civil, incluindo os números de O
vq cq Os vq <N vq vq

nascimentos e de falecimentos (234). Entre o rol de desobriga de 1706 e Q rH


<N
Os
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■^T
CO
O O co
-tf" ■*fr co
Os
CO
•o C— t
vo
r-’
V
o mapa da população de 1775, três outros censos são mencionados
pelos historiadores, mas nem todos foram eclesiásticos. Há também a
menção de um censo em 1780 (235) último doséculo XVIII.
Os

Para o século XIX e antes do recenseament^, oficial de 1872 OS


O
OO
vq

localizamos até agora três tipos de informações que podem usufruir CN co

da denominação de censo ou recenseamento: o censo eclesiástico de


1805, a indagação do Conde da Ponte de 1807 e o já citado
recenseamento de 1870. O quadro que segue agrupa, cronologicamen­ vo t- o4 0 vo r~ -
Os r—i »—i OO VO 1—«
te estes censos: <N vq co cq p co vq
vo v o V r * vo*

(233) — AZEVEDO. Th de. Povoamento... op. cit.. p. 182.


(234) - Does. Arq. Marinha e Ultramar, doc. n" 8750. v.l, p. 289. Apud
AZEVEDO, Th. de, O povoamento... op. cit.. p. 183 (nota 191).
r- 00 r- o s vo v o O v o c~~ O
(235) - MATTOSO. Katia M. de Queirós. Fontes para a História Demográfica da o r-H vo V) U- D - CO O O t"
c- t— r* r- r- r - r - o o oo 00
cidade do Salvador. Atti del XL Congresso Internazionale Degli Americanisti. Roma- H H r—4 H rM r—i v— i r—4
Genova (4): 247-256,3-10 Settembre, 1972. p. 249.

128 129
H

A observação da tabela n° VI faz ressaltar a disparidade que


existe entre os dados fornecidos pelo menos em dois momentos para
os quais possuímos dados passíveis de comparação:
Assim, em 1775 o total da população da cidade tanto pode ser de T)
40.992 habitantes como de 33.635. Dentro de uma perspectiva de •G
crescimento da população soteropolitana, a primeira cifra, 40.922 hab. m
parece mais plausível, comparada à segunda, 33.635 hab., que _
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marcaria um retrocesso pouco explicável da população em relação ao a O ia
2 ;8 > . GJ cd
ano de 1757 que nos dá 34.170 hab., (236). Qá tj *-J o «? | oS
0 3 *cd
O segundo momento cujos dados podem ser comparados são os •0 | 05l Vs5 _l , £G> 5 o
anos de 1805 e 1807. Temos para o ano de 1805: 45.600 hab. e para o % s < B
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ano de 1807, 51.112 habitantes o que indicaria uma progressão da 3 -3 1 S H &


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população da ordem de 12% e, anualmente, a população teria W '8 8 -g o ■g * O>>'2-5H rj % >"o 3U MaQÚRl|
progredido cerca de 6%! Mas se agora compararmos esse último dado a £ S CQPu, tu
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de 1807 (51.112 hab.) com os dados fornecidos pelo recenseamento OOOO OOO OO o o o5,o O O ,0 ,0 ,o
O" O" O" O' O" O o»Já 0 0-0 »cd »cd V «Cd <cd «cd *ed *cd
de 1870, essa progressão é para a totalidade do período de 26,06%, (3 <3 e3 t í
•ed »cd *ed *cd *ed
cd cd cd cd cd
0 -0 0

sendo o percentual anual de 0,41%, deveras insignificante (237). Daí u « « « g ;G G3iG ;G G3 ;3 G3 iG

< >>>► 22222 < >22 2 2 2 2 2 2


resultar um certo desconforto que nos sugere a necessidade que há de Q <<<< < < < < < < a <<< < <<
salientar melhor os inconvenientes que este tipo de documentação o_
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apresenta e os cuidados que devemos tomar para manipulá-lo. B ~Tis
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Às estimativas ou avaliações da população de Salvador: 1587-1872 Jo<®
uca ocu -i
Já por volta do final do século XVI começam as primeiras I”1•<
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00 00 00 00 00 00
avaliações ou estimativas da população de Salvador. Estas geralmente 05 U5 O ca ca OOOO 0 0 0 0 0 oo oo
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fazem parte de “tratados descritivos” gênero muito em voga na O
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© p p p edp p p p p cdp P p p p p p p
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literatura de então. É graças a este tipo de obras que somos 3
ca ca

informados sobre os inícios do povoamento. A escolha de um período


tão longo (1587-1872) tem por objetivo nos possibilitar talvez a * ca
0
descoberta de alguns traços comuns da evolução da. população %
u 1
soteropolitana que possam permitir a pesagèm global que pretende­ o
3 ca
mos. ès D
05
Assim, para este efeito, arrolamos o maior número de testemu­
nhos, principalmente no que se refere ao século XIX, Eis como se bJ
§ Q O
apresentam essas estimativas: H C oO
3 Q

(236) - Com efeito, entre 1756 e 1775 nenhuma catástrofe de caráter extraordiná­
rio (epidemia, guerra, fome. alta brusca de preços dos produtos alimentícios) foi
registrada. É porém digno de nota que entre 1759 (Censo do Conde de Arcos) e 1775 >4 otN
(Censo de Manoel da Cunha Meneses) a população da cidade parece ter permanecido O
imutável.
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(237) - Mas temos de admitir, porém, que no período 1807-1870 se verificaram § c- t— c^r-r-oooooooocooooooo
o
guerras (1822-23). movimentos sociais (1824-1837) epidemias (1850-1857) e. até certo
ponto, uma alta de preços de produtos de abastecimento bastante forte o que talvez
(238)-C f. MATTOSO. Katia M. de Queirós. Fontes para a História Demográfica
explicasse o fraco crescimento notado. •. 5 _ 1____ -1 _ _ __ . ~ - n , anoi/snqrlrtC í l ’ f K l Kl IAO r9 fí tl OPR) I . /H f l H € ).

131
130
O rápido exame do quadro acima permite verificar o quanto •Toma-se assim como base aquilo que é visível, isto é o movimento da
díspares são os dados de população estimada. Díspares mas ao mesmo cidade e do porto e o movimento dos navios no porto. Mas como para
tempo homogéneos na medida em que a ordem de grandeza desses os recenseamentos, veremos mais adiante que as enormes diferenças
dados denota uma certa tendência à superestimativa da população. encontradas nas avaliações da população de Salvador nos testemu­
Agrupando as avaliações, podemos distinguir dois períodos: nhos da época, explicam-se por uma variedade de razões cujo peso é
preciso medir.
O primeiro período vai de 1800 a cerca de 1820. Neste período, as Em resumo, as avaliações só podem ser tomadas como simples
estimativas feitas pelos viajantes, que são os nossos principais indicadores da visão que pessoas estranhas à Bahia tem da cidade
informantes, dão conta de uma população que flutuaria entre dois
naquele período e se não nos informam sobre a quantidade da
limites extremos: 70 a 115 mil, isto é, que a população é avaliada população, pelo menos nos permitem visualizar, através deste prisma
nesses primeiros 20 anos do século XIX por valores cuja diferença deformante, a importância da cidade em relação às suas congéneres
percentual é de 64,28% e esses valores sugerem que a população da Europa ocidental: Salvador é no conceito de seus viajantes uma
soteropolitana é ora subestimada, ora superestimada. Com efeito, se grande cidade marítima (240). Do ponto de vista do estudo demográ­
compararmos as estimativas de Turnbull (90 a 100.000 hab.) e de fico, esses informes nos dão apenas certas ordens de grandeza pouco
Lindley (100.000 hab.)com os dados dos também problemáticos censos aproveitáveis.
de 1805 (45.600 hab.) e 1807 (51.115 hab.), verificamos que a relação é
uma relação de um para dois.
Capítulo III - Os dados demográficos e sua manipulação: após 1872
O segundo período inicia-se praticamente em meados do século
XIX e termina nas vésperas do primeiro censo oficial, em 1872. Nesse Com o último quartel do século XIX entramos definitivamente
período verificamqs uma coerência talvez maior entre os dados que na era estatística do cômputo da população. Com efeito, para o
dispomos: entre o valor mais baixo que é 140.000 hab., o valor mais período posterior a 1872, contamos com os recenseamentos oficiais:
alto de 185.000 hab., a diferença percentual cai para 32,14%. Se agora No período que nos interessa (1800-1889) dois censos foram
compararmos as avaliações de Braz do Amaral (150.000 hab.) e de realizados: em 1872 e 1890.
Canstatt (150.000 hab.) com os resultados do considerado excelente A l9 de agosto de 1872 realizou-se a primeira indagação
censo de 1872, vemos que entre os 129.109 hab. que tem a cidade e censitária de âmbito nacional. Esta baseou-se nos critérios estabeleci­
seu termo segundo o censo e os 150.000 hab., dos dois autores dos para o censo experimental, efetuado no município neutro do Rio
mencionados, a diferença percentual que indica o exagero nas de Janeiro em 1870, onde se procurou estabelecer as condições
estimativas de ambos é de apenas 23,92%. específicas para a formação da Diretória Geral de Estatística que faria
o censo geral de 1872.
Mas quer se trate do primeiro ou do segundo período a
Segundo o julgamento de Giorgio Mortara (241), nos limites dos
discrepância entre os dados dos censos e recenseamentos e as
erros normais desses levantamentos, os resultados deste censo de 1872
estimativas é evidente. Como explicá-la? Certamente a maioria das
estimativas são feitas por viajantes que aqui aportam e que permane­ podem ser considerados fidedignos.
cem na cidade apenas alguns dias ou mesmo algumas horas (239). O número de habitantes do Império foi apurado em 10.112.000 e
o da província da Bahia em 1.379.616. A cidade e seu termo tinham
(239) - E o caso por exemplo para John Turnbull (1800 - 1803 - 4 dias). John
129.109 moradores, e as 11 freguesias da cidade somavam 108.138
Mawe (1804-1810 - que nunca esteve na Bahia mas visitou outras partes do Brasil). habitantes assim distribuídos:
Oustav Beyer(1813 - alguns dias). James Prior (1813 - um mês). Príncipe Maximiliano
W ied-Neuwid(l8I5-18I7-algunsdias), L. F. de Tolenare (1817-4 meses), Von Spix (240) - Na mesma época, por exemplo, a população de Bordéus (França) passa de
e von Martius (1817-1820 - alguns dias), Samuel Greene Arnold (1847-48 - alguns 90 992 h (1801) a 361.678 h (1911). Por volta de meados do século XIX (1841) Marsella
ias),R. Ch. B. Avé - Lallemant (1855 e 1859 - alguns dias). Portanto a avaliação feita tem 155. 095 h, Rouen 99. 942 h. e Nantes 84. 409 h. GUILLAUME. Pierre. La
pode tanto se referir a sua primeira estada(!855). antes da epidemia do cholera morbus, populalion de Bordeaux au XIXe. siècle. Paris, A. Coin. 1972, p. 232 e 248.
como na sua segunda (1859). William Scully (1866 - período de estada desconhecido), (241) - MORTARA, Giorgio. Aspectos gerais da população do Brasil. Rio. 1947, p.
Oscar Ca nstatt ( 187 1 - a Iguns dias).
4.

132 133
Porém já em 1898, Sá Oliveira (243) afirmava que, nas comarcas
^co^tovovovocoocsr- ro
00 em que assistia os recenseamentos de 1872 e de 1890 “a organização
H H^tlOONVOCnTtHONNVO
h os "t vo ^ <n vo o r*# estatística foi das piores”. Também, de acordo com os técnicos do
O «Ò^tc^íor-icnoovoiocoio oo
H o IBGE (244) o censo de 1872 foi feito com muita boa vontade “mas
< com controles inadequados”. Por causa disto, os resultados das várias
> apurações desse censo variam, apresentando diferenças bastante
OO v o o
O OO OO ON O T j- T f T t
a\rJ-vo«OCOfnOOON^H o
U o tn ^ h (S ^ h in h o
CN sensíveis entre os dados parciais. Por isso aqueles que os utilizaram
(S (S r-l (S H H nos fornecem cifras que com frequência não são concordantes. Isso
a
explica, por exemplo, que o presidente da província Freire de
O ^ ^
NC14V©COTt<ST-CONC^'-VOC-'~
v o o o m o o h «O Carvalho, em sua fala de 1876, nos tenha dado um total para y
< OttSiHt^rícíTi-ioN <í- H população da Bahia de ordem de 1.450.000 enquanto que Vicente
5 VO Vianna em sua “Memória sobre o Estado da Bahia” de 1893, somava
I essa mesma população a 1.380.670.
to^voíooNOO^or-^tco
ONONHOOHONHHOCÍ
•HrHfSTfOfSTtlOm IO Porém quaisquer que sejam as ressalvas que se possam fazer a
respeito do censo de 1872, este foi um dos mais sérios dos que tiveram
lugar no Brasil. Considera-se, geralmente que o censo de 1890 traz
T3 resultados bastante fidedignos. Neste censo encontram-se 173.879
c or-rfO o o o o t~-co>o o o co
H 0 \ 0 \ -t N O Sco o ONMO O habitantes na capital e 1.870.093 no Estado.
9 n. ^ H. 't ^ r^. 5
ci ci > -<t ov (n r* io 't ^í
TABELA IX

Janeiro (Seção de Livros Raros) 56,5, 1 —6v I I —Bahia, Sergipe e Paraná).


O N O O C ^O «O V O O \V O V O O C S RECENSEAMENTO DE 1890 (245)
COO^HCOONVOTfOVJr-t
h ^ o o cr» io <o n o Tt
t'* vo oo «h m th cn oo •-< t-í c i
-O FREGUESIAS POPULAÇÃO
cã HOMENS MULHERES TOTAL
^4-o\r^ococsoor^o<SH
c o ^ r o o o v o * o o\ oo
oqoNTrco^vqoocs^csco <0 SÉ 9.941 11.059 20350
<o <oonco v)i-1 co ^ n h rs O
vo SÃO PEDRO 9.669 10.381 20.050
SANTANA 10.940 13327 24.417
CONCEIÇÃO DA PRAIA 4.262 3.204 7.466
o VITÓRIA 7.180 8.685 15.865
s
aí PASSO 2.186 2.833 5.019
< 4 PILAR 5.927 5.423 11.350
O Q
o SANTOA ANTONIO ALÉM DO CARMO 10.570 12.023 22.593
Q 8 BROTAS 2.841 3.126 5.?67
S S: MARES 2.055 2.208 4.263
á w t«j PENHA 3.167 4.252 7.149
< TOTAL 67.838 77.121 144359*
o íto
z
o A cidade e suas 11 freguesias sem as freguesias do termo.
H §
§< t*J
a OC (243) - SÁ OLIVEIRA, J. B. Evolução psíquica do povo bahiano. Bahia, 1898.
0 (244) - Caracteristicas demográficas do Estado da Bahia, Rio de Janeiro, IBGE,
1 H 949. p. 315.
b O (245) - SYNOPSE DE RECENSEAMENTO DE 31.12.1890. Rio de Janeiro,
H
fficina de Estatística, 1898.

135
134
Em torno do conteúdo desses dois censos, feitos a 18 anos de observar neste censo é a relação entre população feminina e
distância um do outro, vários comentários podem ser feitos. Analise­ masculina: esta relação estabelece uma vantagem para as mulheres
mos primeiro cada censo em separado antes de comparar-lhes os que é da ordem de 12%. Também, a hierarquia das freguesias quanto
ao número de população continua sendo a mesma que em 1872.
resultados. . . ..... Comparação entre os dois censos: a comparação dos totais de
Censo cie 1X72: Conforme pode ser observado na tabela n' VIII.
este censo conservou como circunscrições a divisão eclesiástica da cidade população dos dois censos evidencia um incremento de população da
que era de 11 freguesias. Em cada freguesia, os recenseadores ordem de 34,05%, sendo o crescimento anual de cerca 1,9%. Mas que
distinguiram entre população livre e população escrava e separaram crédito pode ser dado aos resultados do censo de 1890? Com efeito se
os habitantes por sexo, fossem eles livres ou escravos. Os resultados calcularmos as t-axas de crescimento da população por freguesia,
alcançados quanto ao número de habitantes em cada freguesia notaremos que para sete destas freguesias (Sé, São Pedro, Santana,
confirmam o que já se sabia através da tradição e da documentação Conceição da Praia, Vitória, Pilar e Santo Antônio) a taxa de
qualitativa: as mais populosas paróquias são a do Santíssimo crescimento é absolutamente uniforme: 35,99%. As outras freguesias
Sacramento de Santana (17.954 hab.) e a de Santo Antônio Além do apresentam taxas de crescimento variáveis: Passo (38,03%), Brotas
Carmo (16.636 hab.) seguidas pelas da Sé (15.111 hab.). São Pedro (17,22%), Mares (14,53%), Penha (28,64%).
(14.743 hab.) e Vitória (11.666 hab.). As menos populosas são as Como explicar a uniformidade dos resultados nas paróquias mais
paróquias do Passo (3.636 hab.) e dos Mares (3.722 hab.). A importantes da cidade? Duas hipóteses podem ser formuladas:
composição da população por sexos dá uma ligeira vantagem aos Ou a indagação censitária não foi realizada e então os recensea­
homens contra as mulheres (9,83%). Por outro lado, a porcentagem de dores atribuíram uma taxa ideal de crescimento de 35,99% às
escravos na população global de cada freguesia sugere, aparentemen­ freguesias que apresentam resultados uniformes e iguais, ou a
te o que já tinha sido consagrado pela tradição, isto é, uma forte indagação foi realizada mas sem que fossem observados os limites de
concentração de escravos nos bairros comerciais e bairros residenciais cada freguesia. Neste caso o total de população encontrado foi
para classes de pessoas abastadas: rateado por partes iguais nas freguesias cujas taxas apresentam igual
incremento.
Mas é hora de concluirmos esta longa demonstração. Em linhas
PERCENTUAL DA POPULAÇÃO ESCRAVA POR FREGUESIA (246) muito gerais podemos dizer que os elementos que possuímos, sejam
eles extraídos dos censos, das avaliações ou mesmo dos próprios
%
recenseamentos oficiais não permitem que procedemos com seguran­
FREGUESIAS
ça a reconstituição da população de Salvador e de sua dinâmica. Porém
SÉ 13,88 a tentativa de reconstituição não deve ser abandonada, e na falta de
SAOPEDRO 15,91 estudos baseados em dados concretos que dessem conta dos nascimentos
SANTANA 2,56 e óbitos da população de Salvador no século XIX, algumas hipóteses
CONCEIÇÃO DA PRAIA 20.94
VITÓRIA 19.18
podem ser testadas. Estas nos levam a uma visualização do processo de
PASSO 12,04 evolução da população que ainda que imperfeito, pode sugerir certas
PILAR 10,89 ordens de grandeza indispensáveis. E o que vai ser tentado no Capítulo
SANTO ANTONIO 6,68 seguinte.
BROTAS 11,66
MARES 3,86 Capítulo IV -Avaliação global da evolução quantitativa da população
PENHA 17,58 de Salvador no século XIX
Uma primeira análise nos permitirá a reconstituição anual do
Recenseamento de 1890: a escravidão tendo sido abolida em 1888, número absoluto da população de Salvador entre 1805 e 1872. A
não há mais distinção entre população livre e população escrava. segunda, nos levará à formulação de algumas hipóteses em torno da
Todavia, o universo espacial do recenseamento continua sendo a dinâmica dessa mesma população entre 1800e 1889.
divisão eclesiástica por freguesias. O que há de significativo para Tentativa de reconstituição do número absoluto da população de
(246) — Tabela estabelecidaa partirdos dados fornecidos pelo Recenseamento de
Salvador: 1805-1872
1872. (cf. nota 242). Essa reconstituição parte das seguintes premissas:

136 137
1" que os dados i tilizados são corretos; Evidentemente, se compararmos os resultados dessa reconstitui­
29 que o incremento percentual da, população foi igual para todos os ção com as periódicas avaliações feitas pelos viajantes em Salvador no
anos do período considerado; século XIX, estes ficam muito aquém da realidade: por exemplo,
39 que os efeitos das epidemias, guerras, perturbações sociais se podemos aceitar como plausível para o período; 1810-1820 a média de
igualam, em seus resultados: 80.000 habitantes para a cidade do Salvador e nesse período os dados
O nosso ponto de partida é constituído pelo total da população de nossa reconstituição não ultrapassam a casa de 55.000 h, o que
fornecido pelo censo de 1805: 46.600 hab., o nosso ponto de chegada é realmente é muito pouco. Por outro lado, sabemos também que
representado pelo total de população de 108.138 hab fornecido pelo nenhuma população cresce, durante um longo período de tempo,
recenseamento de 1872. Entre 1805 e 1872 a população da cidade do uniformemente. O crescimento da população conhece seus revezes e
Salvador conheceu um aumento de 57,83%. Portanto, a taxa de as evidências históricas que temos sobre este período, quer sejam,
incremento anual dessa população foi de 1,013% ligadas aos acidentes demográficos, provocados pelas inúmeras con-
turbações de ordem social ou militar, (247) quer sejá pelas condições
TABELA X sanitárias (248) da própria cidade, sugerem uma evolução feita de
INCREMENTO DA POPULAÇÃO DE SALVADOR: 1805-1889
regressões, de incrementos e mesmo de estagnações na situação
ANO POPULAÇÃO TOTAL ANO POPULAÇÃO TOTAL populacional. É esta dinâmica, ainda que baseada em dados de
alcance muito limitado, que a nossa segunda demonstração vai tentar
1805 45.600 1839 70.744 sugerir.
1806 46.192 1840 71.663
1807 46.793 1841 72.595
1808 47.401 1842 73.539 Dinâmica da população da cidade do Salvador: 1800-1889
1809 48.017 1843 74.495
1810 48.642 1844 75.463 Nos servimos para esta análise, de dados, sobre a mortalidade de
%. 1811 49.275 1845 76.444 Salvador, extraídos do registro de óbitos das 11 paróquias da cidade
■vp* 1812 49.915 1846 77.438
1813 50.564
(249). Desses dados, apresentamos as médias anuais de óbitos por
1847 78445
1814 51.221 1848 79464
períodos de 10 anos e as hipóteses de base que formulamos são as
1815 51.887 1849 80.497 segui nres:
1816 52.562 1850 81.544
1817 53.245 1851 82.604 l9 Os dados que nos são fornecidos são corretos;
1818 53.937 1852 83.678 29 O número de óbitos é proporcional à população presente;
1819 54.638 1853 84.766 39 Os efeitos das epidemias e endemias se igualam em seus
1820 55.349 1854 85.868
1821 56.068 1855 86.984
resultados em cada decénio.
1822 56.797 1856 88.115 ’ MÉDIAS ANUAIS DE ÓBITOS POR PERÍODO DE 10 ANOS (250)
1823 57.536 1857 89.260
1824 58.284 1858 90.421
DECÉNIOS MÉDIAS DECÉNIOS MÉDIAS
1825 59.041 1859 91.596
1826 59.809 1860 92.787 1800-1809 1.390,6 1850-1859 2.755,5
1827 60.586 1861 93.993 1810-1819 1,775,4 1860-1869 2.484,0
1828 61.374 1862 95.006 1820-1829 1.778,4 1870-1879 2.650,2
1829 62.172 1863 96.241 1830-1839 1.911,6 1880-1889 2.663,8
1830 62.980 1864 97.492 1840-1849 1.921,0
1831 63.799 1865 98.759
1832 64.628 1866 100.337 (247) - Cf. nota 237 e IIP parte do presente trabalho.
1833 65.468 1867 101.634 (248) - Cf. p. 167 e passim.
1834 66.319 1868 102.951 (249) - Dados coletados por Johildo Lopes de Athayde e utilizados in MATTOSO.
1835 67.182 1869 104.288 Kátia M. de Queirós e ATHAYDE. Johildo Lopes de Epidemias e Jluluações de preços na
1836 68.055 1870 105.635 Bahia no sk u k XIX. In. L'Histoire Quantitative du Brésil de 1800 à 1930. Paris. CNRS.
1837 68.940 1871 107.003 1973. p. 183-198.
1838 69.836 1872 108.138 (250) - Segundo os dados coletados por J. L. de Athayde.

139
138
Dois momentos essencialmente significativos aparecem da leitura único meio que dispomos vez que faltam estudos demográficos
desta tabela. O primeiro momento se situa no limiar do primeiro decé­ rigorosos, é proceder a uma avaliação baseada nas estimativas.
nio do século XIX, 1800-1810, quando o número de óbitos aumenta
bruscamente. O segundo momento se situa em meados do século e se
Quanto ao provável número da população de Salvador durante o
evidencia na passagem do decénio 1840-1849 para o decénio 1850-
1859. Aqui temos também um aumento brusco de óbitos. Como século XIX, pensamos que este flutuou entre 80 e 100.000 hab no
explicar estas evidências? Nossas explicações permanecem no mo­ período 1810-1870. Para o final do século, os censos oficiais, apesar de
mento ao nível das hipóteses. Três explicações nos parecem possíveis: suas evidentes deficiências, são os únicos controles que possuímos
sobre a evolução demográfica da população de Salvador. Por esta
1. Um aumento rápido da população devido a uma forte corrente i- razão, somos obrigados a utilizar-lhe os resultados: 108.138 hab, em
migratória. Lembrajnos de que o ano de 1810 vê a conclusão do 1872 e, dezoito anos mais tarde 144. 959 hab. Finalmente, apesar da
primeiro tratado Anglo-Português de proibição do tráfico negreiro. precariedade das nossas informações, apesar das dificuldades sempre
Aproveitando-se ainda das liberdades existentes, os mercadores de relacionadas à interpretação de dados quantitativos - quer seja de
escravos teriam introduzido maior número de escravos. Por outro lado ontem ou de hoje_ - parece-nos que as cifras, aparentemente
um certo definhamento das atividades agrícolas (251) teria trazido demasiado precisas, e resultando de uma evolução que mostramos
para a cidade novos habitantes. não ser linear, expressam verdadeiramente o peso dos habitantes de
Salvador. No decorrer da primeira metade do século XIX, a
A mesma explicação é válida para o decénio 1840-1849 que população da cidade parece ter dobrado, apesar das 'guerras, dos
precede a abolição definitiva do tráfico, época também de relativa conflitos sociais e dos surtos epidêmicos. Mas não se deve esquecer
astenia nas atividades agrícolas, ligadas à produção açucareira. nem a falta de precisão na definição do perímetro urbano e nem,
principalmente, o caráter aproximativo dos dados fornecidos pelos
2. A segunda explicação consistiria em admitir que houve em recenseamentos e avaliações.
ambos períodos uma melhoria na fidelidade com que eram regis
trados os:'Ióbitos. O que escapa aos recenseadores
3. Finalmente a terceira explicação poderia considerar que houve O primeiro problema a ser apontado é relativo aos critérios que
uma piora nas condições sanitárias da cidade (252).
foram adotados para a elaboração destes censos ou estimativas. Estes
Afora esses dois momentos de brusca mudança, o período de nos são praticamente desconhecidos, de modo que qualquer tentativa
1820-1840 sugere um relativo decréscimo da população, que no de comparação entre um e outros se torna extremamente delicada.
período 1850-1890, mesmo considerando os grandes estragos provoca­
dos pela epidemia do cholera morbus, a popuiação se teria mantido Já em 1799 Luís dos Santos Vilhena advertia que o fazer um
mapa de população não era tão fácil como se supunha. Porque “os
estável, ou talvez com lento crescimento devido à progressiva melhora pais de família receosos de que lhe peçam filhos para soldados, não só
de condições sanitárias.
ocultam muitos, como nem dão os nomes nos rois de confissão e o
Essa análise mostra o quanto é perigoso proceder à reconstituição mesmo praticam com os escravos, receosos de alguma capitação ou
linear dos efetivos da população. Não resta dúvida que depois disto o tributo, segundo o número de escravos que constar possuem. Ade­
mais, no exame dos censos eclesiásticos é necessário ainda considerar
que dos mesmos eram frequentemente excluídos os inocentes, párvulos
(251) - Nos primeiros anos do século XIX, a produção açucareira conhece
e pagões que não haviam ainda atingido a idade de confissão.
algumas dificuldades, ligadas principalmente a problemas de financiamento da
produção (cf. BRITO, João Rodrigues de, A economia brasileira no alvorecer do século Outra exclusão que se deve ainda levar em conta é relativa à
XIX. Salvador, Livraria Progresso, s/d 185 p.) e ao bloqueio continental. Os preços se composição dos fogos, com efeito, durante a época colonial,
recuperaram por volta de 1815.
(252) - Porém, essa piora nas condições sanitárias da cidade permanece no âmbito distinguiam-se os indivíduos que não eram proprietários de terras e
da hipótese na medida em que não possuímos dados que permitam afirinjá-la. com lavraram terras alheias (lavradores livres e lavradores obrigados), e os
segurança. agregados. Os primeiros não faziam parte do fogo do proprietário e

140 141
eram por .isso computados separadamente com seus familiares e'
escravos. Os últimos eram contados no fogo da família do chefe. Daí.
todo o cuidado que se deve ter ao utilizar estes censos, principalmente; Há, todavia, uma informação que faz a quase unanimidade de
quando o estudo objetiva atingir um conhecimento mais profundo e' todos. É a afirmação de que diariamente entram em Salvador 800 a
preciso da estrutura familiar naquela época (253). 1.000 embarcações que fazem o comércio interno da baía. A dois
marinheiros por embarcação de pequeno porte (255) são 2.000
pessoas a mais na cidade todos os dias. A esses marinheiros da baía
Outro aspecto também negligenciado é o que diz respeito ao devemos somar os navegantes que nos vêm de longe, a bordo de
estabelecimento na cidade de uma população de migrantes. Migrantes
navios de longo curso. Para esse contingente de população, nossos
cujo estabelecimento pode ser provisório durando apenas alguns'
dados são muito precários pois raras são as informações encontradas
meses mas que pode ser também definitivo. Há também que
em documentos publicados (256). Assim mais uma vez somos
considerar a possibilidade de um movimento oposto: habitantes da
obrigados a fazer cálculos estimativos: segundo a já mencionada
cidade que a deixam em período de marasmo económico ê dé epícíemias informação de Mouchez (257) no ano 1873-74 teriam entrado no
a ela retornando ou não, quandoVa situação .melhora. Dois movimentos porto de Salvador 46.516 marinheiros o que dá uma média de cerca
que ora incham os efetivos d a \ população,, ora contribuem para de 127 marinheiros por dia. Pensamos que essa média pode ser aceita
o seiu decréscimo.
como média geral diária provável para todo o período considerado,
apesar de ter sido bastante variável o número anual de entradas de
Todavia, todos os recenseamentos e avaliações que pretendem
navios de longo curso: 1398 embarcações em 1868; 730 embarcações
medir de modo mais ou menos preciso os efetivos da população da cida­
em 1891. De qualquer maneira, não estaremos longe da realidade se
de, preocupam-se sómente com a população constante, ali residente. Ora,
considerarmos que há uma população marítima diária flutuante em
a população flutuante, é uma presença muito importante numa
Salvador de cerca de 2.200 marinheiros. Esta população de marinhei­
cidade-porto como Salvador. Há os que vêm do mar a bordo de
ros alimenta-se com os produtos do mercado de Salvador de onde
navios e embarcações mais leves, há os que vêm do campo, que vêm
também retira mantimentos para poder prosseguir viagem. Utiliza-sc
do sertão, principalmente a partir da segunda metade do século XIX,
também dos serviços que a cidade lhe pode oferecer, inclusive os
quando melhorias nos transportes e comunicações, ligam Salvador
serviços sanitários em épocas de epidemia como foi no caso da
com sua hinterlândia mais distante. Há também que considerar que
febre amarela que assolou a população da cidade nos primeiros anos
Salvador é mercado de escravos e se o número destes não avultou
da década de 1850 (258) e das outras epidemias endémicas como a
consideravelmente, todavia importava bastante. Mas que meios temos
varíola, a malária e o beriberi, devido às más condições de asseio da
para avaliar a população flutuante com mais ou menos precisão?
cidade e de seu porto.
Marinheiros e navegantes
Migrantes temporários
Poucas são as informações que permitem avaliar a população do No que diz respeito a esta categoria de população flutuante,
mundo marinho, marinheiros das embarcações de longo curso e das
escassos são os dados que possuímos. Em linhas muito gerais,
de cabotagem (254). São mais uma vez os viajantes, que nos dão podemos dizer que enquanto as comunicações com as terras do
alguns elementos que podem ser, de vez em quando, controlados por interior eram poucas e problemáticas, poucos deviam ser os que em
dados oficiais. Mas não se deve esquecer de que estes viajantes podem épocas de secas prolongadas demandavam o litoral em busca de
ter duas atitudes opostas: uma atitude mais timorata, outra mais meios para sobreviver. Isto explica a ausência na documentação
arrojada. São essas atitudes que explicam as diferenças na avaliação. consultada deste tipo de migrantes temporários que uma vez a crise

(253) —Cf. MATTOSO, Katia M. de Queirós. Fontes para a história demozráfica (255) - MOUCHEZ, A. E. B. Lescôtes du Brésil... op. cit., p. 50.
op. cit., p. 250. 5 J (256) - Nas FALLAS dos presidentes da província da Bahia, encontram-se
(254) - Essas informações poderiam ser encontradas no material da Alfândega da esporadicamente dados referentes ao número de navios entrados no porto de Salvador
Bahia depositado no Arquivo Público do Estado. Cf. MATTOSO, Kátia M. deQueirós e ao número de marinheiros a bordo.
e JANCSO, Istvar. Como estudar a história quantitativa da Bahia no século XIX. In (257) Cf. nota 255
Uhistoire quantitative de 1800 à 1930. Paris, CNRS, 1973, p. 370. (258) - FALLA recitada na abertura da Assemblèia Legislativa da Bahia (Bahia,
1850).
142
143
Primeiro período: é ainda o período do tráfico legal sem restrições
passada, retornavam em seus lugares de origem. Mas, a abertura de (1800-1815). Para este período dispomos de dados fornecidos por M.
estradas de ferro e a relativa melhoria trazida na tradicionais vias de Goulart, Pierre Verger, Luís Viana Filho, Nina Rodrigues (261). Estes
comunicação, traçadas pelas andanças das boiadas, que se verificam a
dados ora são anuais, ora globais e então estendem-se por vários anos.
partir da segunda metade do século XIX vai permitir um fluxo de Por esta razão preferimos dar as médias anuais tais como foram
imigrantes para a capital. Já na Fala do presidente da Província do
ano de 1871 (259) há referência da presença na cidade de avultado deduzidas pelos seus autores.
número de retirantes não vacinados que fugiam da terrível seca que anos m é d ia a n u a l
assolou o nordeste entre 1868 e 1871. Em 1878, havia abrigados no
Arsenal da Marinha da cidade 780 flagelados que vinham chegando 1801 - 1810 7.500 a 7.700 escravos (262)
da distante província do Ceará. A partir desta época as informações 1811 - 1815 5.500 a 5.700 escravos (263)
avultam sobre a chegada de retirantes (260), porém, os documentos
oficiais não trazem dados numéricos passíveis de serem quantificados. Segundo período:( 1815 - 1830) é o período do tráfico ainda legal porém
Por outro lado, deve-se ainda considerar que quando as secas adstrito ao Sul do Equador. Há para esse período três informações que
atingiam até as regiões do litoral, os lavradores das redondezas cuja se completam e se controlam (264):
produção nunca ultrapassava a satisfação de necessidades imediatas,
também deviam demandar a Capital, que lhes ficava mais próxima, ANO N9 DE ESC. (265) N9 DE ESC. N? DE ESC.
em busca de condições mínimas para sobreviver. Esta chegada
intempestiva de novos contingentes de população, não somente 1815 6.907 6.750 -
4.139 5.376 —
agravava as próprias condições de hospedagem oferecidas pela 1816
6.070 —
1817 5.802
cidade, mas devia também sobrecarregar o mercado de procura de 8.706 —
1818
alimentos, cuja oferta ia diminuindo, vez que este também dependia, 1819 7.033 —
em parte, das condições locais de produção. Para concluir, podemos 1820 7,722 —
dizer que no estado atual em que se encontram as pesquisas sobre este 1821 6.689 —
8.418 7.656 8.825
assunto, é impossível avançar qualquer hipótese para medir o fluxo 1822
2.672 2.744
desse tipo de população temporária. 1823 2.302
2.994 7.137 2.449
1824
4.259 3.840 —
1825
Africanos em trânsito 1826 7.858 4.090
1827 10.186 2.941
1828 8.127 —
Finalmente o terceiro grupo de população flutuante que chega no 12.808 14.623 —
1829
porto de Salvador é constituído pelas levas de escravos vindos da 1830 8.425 7.008
África. Iniciada nos primeiros anos da colonização no século XVI a
importação só iria terminar em 1850 com a abolição do tráfico.

Hunca se fez, nem nunca talvez poderá ser feito um cálculo (261) - GOUL/1 PT, Maurício. A escravidão africana no Brasil, 3’ edição, São
acurado do número de escravos importados para a Bahia no século Paulo, Alpha - Omega. 1975, 300 p.
XIX. Porém os dados pacientemente coletados por vários pesquisa­ - VERGER, Pierre. Flux e reflux... op. cit., nota 114. .
dores nos dão uma idéia de ordem de grandeza da chegada no porto - VIANA FILHO. Luiz. O Negro na Bahia Rio de Janeiro, Jose Olympio, 1946.
- RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. Revisão e prefácio de Homero
do elemento africano, e três períodos podem ser distinguidos. Pires. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1932.
(262) - GOULART, M. A escravidão africana... op. cit., p. 266.
(259) - FALLA recitada na abertura da Assembleia Legislativa da Bahia (Bahia, (263) - VIANA FILHO, L. O negro na Bahia... op. cit., p. 98.
1871). (264) - VERGER, P. Flux e reflux... op. cit., p. 665-666. r A C Ç r ilM f , M
(260) - A melhor fonte encontrada até agora são as FALLAS dos presidentes da (265) - Trata-se de dados publicados por Francisco Marques de GOES CALMON
Província. Contudo, essa documentação deve ser completada com a Correspondência em Vida económico-financeira da Bahia (Elementos para a H isto ria)* 1808-1899.
dos presidentes da província com o Governo Central e com os Relatórios das juntas de Bahia, Imprensa Oficial do Estado, 1925, O autor dos Ensaios sobre fabnca de açúcar.
Saúde.
145
144
Assim, no segundo período, seguindo os dados coletados por da população fixa (271) como também as condições da procura de
Goes Ca mon (coluna 1) a média de importação de escravos de 1815a bens de subsistência, vez que este contingente abastecia-se também no
1830 foi cerca de 7.023 escravos enquanto que, segundo os dados do mercado de consumo de Salvador.
Foreign Office, essa mesma média é de 6.196. Podemos então afirmar
que, segundo os dados que possuímos, a média anual de importação de Os sangues misturados: mitos e realidades
escravos flutuou entre 6.196 e 7.023 escravos, sendo que os últimos
anos de década de 1820 têm as médias as mais altas. Essa população de Salvador, cuja importância numérica tenta­
mos grosseiramente avaliar, possui traços inconfundíveis de miscigena­
Terceiro período (1831-1851): é o período do tráfico clandestino. ção em todas as suas camadas sociais.
Segundo Verger (266) e Bethell (267), após um crescimento lento mas
constante no primeiro quartel do século XIX, seguido por uma Já no final do século XVI, Gabriel Soares estimava a população
aceleração nos três últimos anos da década dos 1820, o tráfico quase soteropolitana como sendo composta de 2.000 brancos, 4.000 pretos e
estagnou nos primeiros anos da década dos 1830 (268) reiniciando sua 8.000 índios catequizados, desprezando por completo a população
expansão após 1835. O novo auge nesse períouo se situaria entre 1846 mameluca e os mestiços de negros, brancos ou cafuzos (272). Com o
e 1849: passar dos tempos, esse aparente equilíbrio entre a população branca
e a população de cor, índia ou negra, desaparecia em favor de um
aumento da população mestiça, principalmente mestiça de preto com
ANOS N9 DE ESC. (269) N? DE ESC. (270) branco e conseqiientemente de uma diminuição do elemento “bran­
1840 1.675 1.413 co” apesar do processo de “embranquecimento”, imposto pelo modelo
1841 1.410 1.470 “branco” que domina social e economicamente.
1842 2.360 2.520
1843 3.004 3.111 Os dados que possuímos sobre a composição racial dos habitantes
1844 6.201 6.501 de Salvador no século XIX são raros: segundo o censo de 1807,
1845 5.582 5.582 haveria na cidade sobre uma população de 51.112 habitantes 28%
1846 7.824 7.354 brancos, 20% mulatos e 52% negros (273). No censo de 1872 dão-se as
1847 11.769 10.064
1848 7.393 7.299
seguintes porcentagens sobre a população total de Salvador que era
1849 8.401 8.081 de 108.139 hab: 35,2% brancos, 44,3% mulatos, 18,3% pretos e 2,2%
1850 9.102 9.451 caboclos. Por volta de 1951, sobre 400.000 habitantes que tinha a
1851 785 — cidade, havia 33% de brancos, 47% de mestiços e 20% de pretos (274).
A marcha de “embranquecimento” aqui observado favorece a
população mestiça (47%) transição obrigatória do processo. Assim
Há, portanto, nessa primeira metade do século XIX, um número para a Bahia, o branco “fino” autóctone tornava-se cada vez mais
importante de escravos que demandam o mercado escravo de uma “lembrança histórica” (275). Esta é a evidência dos dados.
Salvador.

Sua permanência na cidade, a menor que fosse, deve ter influído Todavia, na análise demográfica que foi aqui tentada há um
não somente em alterar as variáveis de batismos e de óbitos aspecto que nem sequer foi tocado por falta total de informação. É o
(271) - Como já referimos, somente um estudo demográfico diferenciado,
Rio. 1834. é o Marquês de Abrantes. Miguel Calmon du Pin e Almeida. Os dados das tomando como base os registros paroquiais de batizados e óbitos, poderá esclarecer
duas outras colunas foram colhidos por P. Verger. esse importante assunto.
(266) - VERGER, P. Flux e rejlux... op. cit., p. 666. (272) - SOARES DE SOUZA. Gabriel. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. São
(267) — BETHELL Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil. Rio de Paulo, Cia. Editora Nacional. 1938, p. 134.
Janeiro. Editora Expressão e Cultura, 1976. (273) - AZEVEDO. Th. de Povoamento da cidade... op. cit., p. 224.
(268) - Idem. p. 369. (274) - AZEVEDO. Th. de Les elites de couleur dans une vitle brésilienne. Paris,
(269) - V ERG ER. P. Flux e reflux... UNESCO, 1953. p. 21.
(270) - BETHELL L A abolição do tráfico... op. cit., p. 371-373. (275) - Idem, p. 24.

146 147
problema do fluxo para a cidade da população emigrada branca no proposta de divisão da sociedade baiana entre dois extratos principais,
século XIX que pudesse ser comparada à renovação constante do brancos-senhores e os pretos-escravos, que se transformaram com o
estoque africano, principal responsável do alto grau de mestiçagem da passar dos tempos em ricos (brancos) e pobres (pretos) não seria a conse­
população soteropolitana. Renovação que, aliás, é também responsá­ quência de uma negação involuntária e inconsciente da forte mestiça­
vel pela dificuldade que há de traçar limites bem definidos entre as gem dapõpulação da cidade? Uma tentativa de esquecer de que vários
diversas categorias raciais, se forem utilizados os termos tradicionais brancos de hoje são os mulatos e pretos de ontem e de anteontem? Por
de brancos, mulatos e pretos. outro lado. a supervalorização a todo custo do “modelo branco” para o
qual aspira aparentemente a sociedade global.não teria influído em que
Segundo os estudiosos da situação racial em Salvador, na Bahia, fossem menosprezados valores sociais de outro tipo, ora negando-lhes
“branco” pode querer dizer “uma pessoa de características predomi­ qualquer influência, ora restringindo-os como simples expressões de
nantemente brancas qualquer que seja a sua origem racial incluindo grupos marginais, não integrados nesta sociedade? (279) E finalmente,
mulheres com sangue levemente misturado do africano ou do a indagação fundamental: o problema do rico (branco) e do pobre
ameríndio; e no caso de indivíduos portadores de certo prestígio, (preto) seria mais um problema nascido da própria estrutura económi­
incluem-se mestiços mais escuros é, ocasionalmente, até mesmo um ca escravista, dominada de fora, dentro do esquema de colonialismo
preto... ao passo que preto na Bahia pôde se referir a “uma pessoa clássico, do que um problema de raça escravizada e espoliada? Se há
com traços negróides bem visíveis ou, por vezes, apenas “uma pessoa escravização é de uma classe social que se trata, e não de uma raça,
de status inferior” (276). Termos que segundo Pierson são “mais pois dentro desse esquema a cor de pele e a origem são simples
categorias de aparência física do que de raça” e que se referem ainda acidentes históricos. Principalmente quando se estuda Salvador,
à “categorias de posição social de modo que a ascensão social pode cidade majoritariamente mestiça.
libertar uma pessoa de cor de sua categoria de cor” (277). É o que
aparentemente acontece com as inúmeras variedades de mestiços Falar desses assuntos é colocar o problema dos fundamentos da
(278) que, ora são “brancos” se forem socialmente bem sucedidos, ora sociedade baiana. Fundamentos sociais, fundamentos legais, ligados à
mulatos, simplesmente. hierarquia social, estudada na sua estratificação em grupos, nos seus
modos de vida, nas suas relações de dia a dia.
Essas observações contemporâneas em torno do caráter ambiíguo
dos termos designativos utilizados para indicar a origem racial e social
dos habitantes de Salvaçlor só podem ter sentido para nós se forem
reexaminados a partir dos seguintes critérios:
Há, primeiro, que perguntar que significado exato possuem esses
vocábulos quando aplicados na realidade passada de Salvador no
século XIX. Em seguida, deve-se indagar sobre que oportunidades de
mobilidade social oferece a sociedade global aos recém - egresssos do
sistema servil e seus descendentes, se comparadas às oportunidades
oferecidas aos brancos emigrantes livres.
A sociedade global do tipo escravista, vigente até 1888, foi um
freio à ascensão social para suas camadas escravizadas e livres mais
humildes ou, pelo contrário, foi esta mais aberta, mais permissível que
a sociedade de livres que lhe sucede, legalmente, a partir de 1889? A

(276) - PIERSON, Donald. Brancos e pretos na Bahia... 2* edição. São Paulo, Cia.
Editora Nacional. 1971, p. 33. ( 2 7 9 ) “A contribuição do escravo preto ou índio para a formação brasileira, é
(277) - Idem, p. 33. além daquela energia motriz quase nula" (Caio PRADO Jr. Formação do Brasil
(278) - Mulatos, pardos, cabras, mamelucos, cafusos. Contemporâneo. 5* edição. São Paulo, Editora brasiliense, 1957, p. 270)

148 149
Livro III - Hierarquias sociais e vida cotidiana

Introdução -/< estratificação social: visão de conjunto


I

Não há dúvida que a organização económica de qualquer sociedade


influi decisivamente sobre a sua estratificação social. A cidade do
Salvador e seu Recôncavo são o exemplo típico do sistema agro-
indústrio-mercantil que se estabelece em terras brasileiras. Este
sistema baseou-se na produção maciça de um só produto, a cana-
de-açúcar, no seu beneficiamento nos Engenhos e na sua exportação
para o exterior em busca dos mercados consumidores. Produção
•#* maciça que exigia, de um lado, a existência de extensas terras para o
cultivo da cana e para o suprimento de sua força motriz e de
transportes, assim como para prover a sua alimentação e desenvolver
o gado vacum; e de outro, a presença de uma mão-de-obra numerosa
para a execução das tarefas agro-industriais. Esta mão-de-obra é
buscada na África e seu tráfico, e os lucros que proporciona,
completam e enriquecem o fluxo comercial que assim se estabelece. A
presença de uma avultada mão-de-obra escravizada imprime, desde o
início, uma característica especial a essa sociedade em formação na
medida em que a primeira estratificação social na colónia brasileira
aparece como fundada na cor da pele e no estatuto legal de 'seus
membros: de um lado os brancos-senhores que integram as camadas
de mando, de outro, a massa servil adstrita às tarefas de produção.
Surge assim de maneira absoluta e definitiva uma imagem da
estratificação social brasileira pobre e imprecisa. Pobre porque, parece
praticamente como se tivesse sofrido nenhuma alteração desde os
primórdios da colonização até a época da industrialização moderna
do século XX. Imprecisa, porque se deseja que possua valor universal,
ignorando a imensidade do território brasileiro, a diversidade de suas
realidades regionais e de suas caminhadas que imprimem a cada uma
delas seu próprio ritmo.

151
representa um grupo mais ou menos extenso, seu regime económico,
Segundo Caio Prado Jr. somente os grupos dos senhores e dos
escravos são bem classificados na hierarquia e na estrutura social. “Entre seus modos de pensar e de agir. Para conhecer uma sociedade é
preciso combinar vários conjuntos de fatores, ligados por um jogo de
estas duas categorias, nitidamente definidas e entrosadas na obra da
colonização, comprime-se o número, que vai avultando com o tempo, ações e reações recíprocas. Assim a estrutura social é entendida como
dos desclassificados, dos inúteis, dos inadaptados: indivíduos de um conjunto orgânico de relações e ligações lógicas e, ao mesmo
ocupações mais ou menos certas e aleatórias, ou sem ocupação tempo, económicas, sociais e psicológicas que o “passar do tempo não
alguma” (280). Essa camada intermediária assim definida, compõe-se consegue consumir totalmente e veicula com lentidão, e que é
sobretudo de mulatos e de pretos forros, mestiços, índios... “que não necessário estudar, não apenas de um ponto de vista estático, mas
sendo escravos e não podendo ser senhores, se vêem repelidos de também dinâmico. Para isto é preciso multiplicar os critérios de
qualquer situação estável” (281). No mais baixo escalão dessa referência. Critérios que se agrupam por categorias para dar escalas
“subcategoria colonial”, Caio Prado coloca os vadios desocupados que diferentes de estratificação social (284), mas que exigem estudos
se tornam criminosos. Por outro lado, essa subcategoria foi responsá­ assentados sobre dados empíricos, estudos até agora inexistentes na
vel de todas as perturbações de ordem social verificadas na época da historiografia nacional e mesmo da Bahia.
Independência (282).
Há porém, com base no que já existe, a possibilidade de repensar
o problema da estratificação e hierarquias sociais, pelo menos no que
Não difere muito a visão de Fernando de Azevedo: “Se (pois) diz respeito à Bahia, e, principalmente. Salvador e seu Recôncavo no
quisermos ter uma imagem de diversidade da estrutura social e século XIX. A leitura da historiografia tradicional baiana, os novos
económica da sociedade colonial, no Nordeste e no Recôncavo, temos estudos que estão se desenvolvendo, permitem pelo menos que sejam
de figurar toda uma hierarquia lançada sobre as bases da escravidão, feitas certas observações que possam servir como hipóteses de
em que se sucedem de alto para baixo, como camadas superpostas, a trabalho:
aristocracia da terra, a burguesia urbana de caráter mercantil,
aristocratiza sob as influências do patriarcalismo, a pequena burgue­
sia, mal definida, a massa indefinida, a massa informe do povo e a A primeira, diz respeito à imagem dicotômica da estratificação
plebe, indisciplinada e turbulenta, sempre disposta a se acender à social da sociedade baiana tomada como um todo, isto é, sem
reação ou a abalar, pela revolta o edifício social” (283). diferenciar a estrutura social agrária, da estrutura social urbana. O
que se verifica é que essa dicotomização nunca foi rígida e absoluta.
Com efeito, a sociedade baiana, como aliás toda sociedade colonial, se
Essas análises de hierarquia e estratificação social carecem de caracterizou desde o primeiro século da colonização, por uma
indicação dos critérios tomados como base. Certamente, foram mobilidade social no seu sentido ascendente e descendente. Com o
utilizados vários informes, vários dados coletados em várias fontes passar dos anos, e a miscigenação atuando de maneira decisiva,
como documentos oficiais e narrativas de viajantes, que por . oresen- importante parte da massa servil liberou-se da opressão da escravidão
tarem certo grau de concordância, passaram a desempenhar ' papel através do processo da alforria, vindo a integrar as categorias livres da
de critérios classificatórios, ainda que abstratos. estrutura social e mesmo, às vezes, as categorias de mando, por
processo ainda imperfeitamente conhecido. A existência de fatores
Todavia, o conhecimento da estrutura social teir. outras exigên­ que atenuavam os antagonismos e tensões que separavam os dois
cias. Uma análise social correta não pode se satisfazer com um extratos (senhores-escravos) é hoje admitida pela maior parte dos
conhecimento abstrato das realidades sociais. Conhecer uma estrutura estudiosos. Esses fatores eram mecanismos de reajuste contínuo na
social é captar a realidade do homem comum do “homem médio”, medida em que existia uma dinâmica, baseada nos “talentos” do
com todas as suas misérias e problemas cotidianos, do homem que indivíduo, isto é, na sua capacidade de enriquecer, que lhe permitia
transitar pela escala total da hierarquia social, promovendo-se assim a
(280) - PRADO Jr, C. formação do Brasil... op. cit.. 279-280.
ascensão automática de grupos de cor, socialmente embranquecidos, e
(281) - Idem. p. 280.
(282) - Ibidem,p. 281-283. (284) - MOUSNIER. Roland. Les Hiérarchies Socialesde 1450à nosjours. Paris,
(283) - AZEVEDO. Fernando de. Canaviais e Engenhos na vida política do Brasil.
2* edição. SãoYaulo, Edições Melhoramentos S/A. s/d, p. 86. PUF, 1969, p. 11-14.

152 153
mesmo porprocionando, ainda que em escala menor, a ascensão Quando se trata de estudar uma determinada estrutura
individual a posições em camadas superiores. Tratava-se pois, apesar social, num período histórico cronologicamente determinado -
da existência de uma legislação metropolitana que buscava tolher em nosso caso o século XIX - é absolutamente imprescindível que se
essa mobilidade (285), de uma sociedade aberta onde os preconceitos tente conhecer, ainda que de maneira imperfeita, as mudanças, no
de estatuto, social eram atenuados e pouco lembrados. A sociedade tempo, desta mesma estrutura. Essa posição parte do pressuposto que
colonial baiana, como também a sociedade baiana no período apesar da permanência da estrutura económica, a sociedade secreta
imperial independente, que se inicia em 1822, são sociedades com elementos que lhe são próprios e que podem provocar certas
enormes possibilidades de assimilação, sociedades tolerantes (286). mudanças sem que o arcabouço primitivo venha a ser por isso
Contudo, esse caráter de tolerância é limitado, pois sempre dependeu, derrubado.
para ser plenamente exercido ou então momentaneamente abolido, Por outro lado, quando se fala em estrutura da sociedade, deve-se
da existência ou não de antagonismos, principalmente presentes nos sempre distinguir, pela maneira mais nítida possível, entre estrutura
grupos de mando e que se desenvolviam em torno de impasses da sociedade rural, e estrutura da sociedade urbana. Principalmente
económicos. É o que vai acontecer com a abolição da escravatura, com quando se trata de uma cidade como Salvador, primeiro, capital da
o lançamento sobre o mercado de trabalho de um forte contingente de colónia, depois grande metrópole regional, mas tão infimamente
população trabalhadora livre que vai disputar seu lugar ao sol, na luta ligada à sua hinterlândia. O problema que aqui se coloca é saber que
diária para seu sustento, num momento em que as forças tradicionais influências recebeu do campo, como sobre elas influiu e que tipo de
produtoras definham. Daí por diante a sociedade baiana torna-se modelo de estratificação finalmente adotou.
intolerante e fecha-se dentro de um esquema de estrati ficação rígida,
o qual adota como linha de demarcação o elemento cor da pele: de
um lado os senhores - “brancos”, do outro os pretos-pobres. Assim, a Capítulo I - A estratificação social: um modelo rural?
análise que faz o eminente sociólogo Thales de Azevedo da sociedade
baiana em meados desse século é perfeitamente justa: uma classe alta
ou elite composta de três categorias: as famílias tradicionais, as Para responder à questão é preciso procedermos a uma análise,
famílias ricas e as famílias sem tradição, uma classe média composta no tempo, de dois modelos: do modelo da sociedade rural, e do
de pequenos e médios comerciantes, proprietários e profissionais, modelo da sociedade urbana. É evidente que ao falarmos em modelo
funcionários públicos médios, técnicos e empregados no comércio de sociedade rural, nos referimos àquele que nasce no bojo de uma
que, segundo o autor, gózam de certa independência económica, e, atividade económica, marcada pela produção em larga escala de um
finalmente a classe baixa ou pobreza que compreende todos aqueles produto único - no caso o açúcar - que demanda os mercados
que vivem do trabalho manual (artesanato, indústria) e braçal (287). externos. Por outro lado, para melhor captar a realidade e a evolução,
no tempo desses dois modelos, achamos que era conveniente exempli­
ficar colocando-nos em dois momentos históricos: o primeiro se situa
Essa primeira constatação permite que introduzamos mais duas no final do primeiro século de colonização, por volta de 16Q0, o
observações:
segundo, no final do período colonial, isto é, por volta de 1800.
(285) - Estamos nos referindo aos dispositivos legais que existiam e que impediam, O modelo de estratificação social rural: as hierarquias sociais no
por exemplo, a ocupação de certos cargos a homens de cor e a cristãos novos.
(2 8 6 ) Apesar das proibições a que nos referimos na nota acima, as séries Recôncavo
documentais tais como, os testamentos, os inventários, atos de perfilhações etc.,
mostram de maneira convincente que as sociedades setecentista e oitocentis/tp foram “Como a grande exploração absorve a terra, o senhor rural
altamente tolerantes e com grandes capacidades de assimilação. Testemunha disto a monopoliza a riqueza e com ela seus atributos necessários: o prestígio
maioria dos documentos mencionados acima que, raramente, fazem menção da origem
raciaj do indivíduo. Ultrapassadas as duas primeiras gerações, isto é, a geração de e a dominação”.
quem veio da África e á geração de seus filhos brasileiros, a cor deixa de figurar como
critério discriminatório. Os únicos documentos onde esta caracteristica é indicada são A posição privilegiada do Brasil durante o primeiro século da
as listas eleitorais, os recenseamentos oficiais, e os atos dos registros paroquiais. colonização como quase único produtor mundial de açúcar permite a
(287) —AZEVEDO, Thales de. Classes sociais e grupos de prestigio. In Ensaios de constituição de grandes fortunas. Segundo Caio Prado Jr., em 1584,
Antropologia Social. Salvador, Universidade Federal da Bahia, 1959, p. 105-120. teria havido mais de cem colonos que possuíam entre 1.000 e 5.000

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cruzados de renda, e alguns, mais ainda: entre 8 a 10.000 cruzados. tecelões, oleiros, pedreiros etc. Subcategoria que se formou lentamen­
Riqueza que se apóia no trabalho de uma massa de pessoas te e que tem ainda poucos efetivos (288). O segundo subgrupo
escravizadas. A sociedade que nasce no campo é grosso modo dividida compreende os escravos ditos domésticos, isto é, aqueles que servem
entre os srénhores - produtores e proprietários dos meios de produção na casa do senhor como: amas-de-leite, amas, lavadeiras, cozinheiras
e comercialização do produto de exportação e seus principais etc. O terceiro, abrange o maior número de escravos: são os do serviço
beneficiados de um lado, e os escravos - trabalhadores que participam do eito, homens e mulheres indistintamente (289)
do processo de produção do qual são os agentes principais mas que
não gozam de seus benefícios. Dois séculos mais tarde, no começo do século XIX, esta
hierarquia social do mundo rural enriqueceu.-se sensivelmente, mas
Em tal sistema produtivo, as relações sociais que aparentemente conservou sua feição de pirâmide.
podiam se estabelecer entre os dois grupos são simples: a massa servil
se acha inteiramente dominada por aqueles que detêm os bens de
produção. No cume, como sempre, o senhor e sua família em torno da qual
gravitam o capeláo (pelo menos nos Engenhos de certo porte),
parentes próximos ou afastados e um grupo que pouco a pouco foi se
Estrutura-se assim, aparentemente, um tipo de sociedade pouco firmando, o grupo dos agregados. Num nível ligeiramente abaixo, os
diversificada e pouco hierarquizada em que o poder do senhor de lavradores “livres” e “obrigados” ora proprietários da gleba que
Engenho é quase absoluto. Esta sociedade rural desenvolve-se princi­ trabalham, ora simples arrendatários por contratos que freqiiente-
palmente em torno do Engenho de açúcar que desempenha papel mente se transformam em verdadeiras enfiteuses (290). Grupo
nuclear de atração, e pode-se dizer que cada Engenho é uma aglomera­ diversificado e solidário representa o domínio “branco” sobre o
ção autónoma de população sobre a qual reina o poder patriarcal. mundo dos trabalhadores. Mundo de trabalho que também possui sua
Com efeito o poder público intervém raramente, somente se solicitado, hierarquia na medida em que certas posições de responsabilidade e de
o que parece ter sido muito raro. mando, são desempenhadas simultaneamente por homens cujo esta­
tuto legal pode ser de livres ou de escravos estes últimos, porém,
Todavia, apesar do caráter dicotômico desta sociedade, seria predominando. Esse é o caso por exemplo dos feitores: feitores mores,
inexato admitir a ausência de toda hierarquia. feitores da moenda, feitores da lenha, feitores dos partidos. A esse
segundo grupo, deve-se ainda incluir os mestres-de-açúcar, os ban-
Já por volta de 1600 três grandes categorias podem ser identifica­
das com mais ou menos segurança:
(288) - Agradecemos os professores Antonio Barros de Castro e Stuart B. Schwartz
Vem primeiro, no cume da pirâmide social, o senhor proprietário que gentilmente discutiram este aspecto sobre o qual estão atualmente trabalhando. O
produtor, sua família (esposa e filhos) seu parentesco (irmãos, trabalho ainda inédito de Stuart Schwartz sobre a utilização de mão-de-obra
escravizada no século XVI mostra que os primeiros africanos vindos para a Bahia eram
cunhados, primos). Logo abaixo encontramos o grupo dos trabalhado­ artesãos especializados.
res especializados livres, na sua maioria ainda de origem lusa como (289) - SOARES DE SOUZA. Gabriel. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. 3*
mestres-de-açúcar, banqueiros e ajuda-banqueiro, purgador, caixeiro edição.São Paulo. Cia. Editora Nacional. 1938.
do Engenho, calafates, caldeireiros, carpinteiros, pedreiros etc. São - GANDA VO, Pero de Magalhães. Tratado da Província do Brasil. Rio de Janeiro.
trabalhadores que recebem salário anual e que têm a possibilidade de .Instituto Nacional do Livro, 1965.
se locomover, mudando inclusive de função se algo mais interessante - CARDIM. Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Introdução e Notas de
Baptista Caetano. Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. 2g edição. São Paulo. Cia.
lhes fosse oferecido. Não se deve excluir a hipótese de que vários Editora Nacional. 1939.
destes artesões e trabalhadores especializados se tornam os primeiros - Diálogos das grandezas do Brasil. Introdução de Capistrano de Abreu. Notas de
lavradores de cana. Finalmente , o terceiro grupo é constituído pelos Rodolfo Garcia. Rio de Janeiro, Officina Industrial Gráfica. 1930.
escravos. Escravos de procedência indígena, e escravos de origem (290) A enfiteuse é um contraio pelo qual um proprietário de qualquer prédio
africana. Sobretudo a partir dos anos de 1570 três subgrupos podem ser transfere o seu domínio útil para outra pessoa, obrigando-se esta a pagar-lhe certa pensão
distinguidos. O primeiro é composto pelos escravos que possuem uma determinada a que se dá o nome de foro on cânone. Cf. Stuart B. Schwartz. hree l.ahor in a
S/ave Tconomr: The lavradores de cana o f Colonial Bahia. In Colonial Rools ol Modcrn
qualificação: calafates, carpinteiros, pintores, sapateiros, barbeiros, Brasil. Ed. Da uri! Alden. Califórnia. Universitv ofCalifornia Press. 1973. p. 147-197.

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queirós e ajuda-banqueiros, os purgadores do açúcar e os caixeiros do As hierarquias sociais na cidade do Salvador
engenho. Em posição intermediária entre o cume e a base da
pirâmide, esse grupo social carece de estudos, como aliás pouco se Cidade nascida sem nenhuma base infra-estrutural anterior, apesar
conhece ainda sobre o grupo dos lavradores livres e obrigados (291). da presença de um grupo de colonizadores antigos, a cidade do Salvador
è contudo uma cidade que nasce já socialmente estruturada. Com
Na base da pirâmide, os escravos, exclusivamente africanos e efeito, Tomé de Souza trazia, com os 1.500 homens que o acompanha­
Crioulos mas representando várias etnias e tribos, fato que rompe com vam, a micro-imagem daquilo que mais tarde viria a ser a sociedade
a aparente unidade da massa servil. Essa massa servil continua da capital: nobres oficiais e soldados, arquitetos da conquista e da
dividida nos três subgrupos identificados no esquema de hierarquia segurança, clérigos e religiosos responsáveis pela catequese dos
social precedente: escravos que possuem qualificação, escravos do­ gentios; artesões e oficiais mecânicos de arte e ofícios sem os quais a
mésticos, escravos do eito. Porém esses subgrupos não devem ser cidade nem vive, nem se desenvolve. Mas trouxe sobretudo os homens
considerados como rígidos. Pensamos que não seria de todo imprová­ responsáveis pelo bom êxito do empreendimento. Os homens que
vel acreditar que em tempo de colheita e de moagem, quando era dispunham de meios financeiros próprios ou de apoios sólidos na
necessário dispor de toda a força produtiva, vários dos escravos metrópole para erigir o sistema produtivo agro-indústrio-mercantil,
domésticos, os menos indispensáveis à manutenção da Casa Grande, fadado a atravessar vários séculos.
passavam a servir o senhor no campo em serviços do eito.
Por volta de 1600, Salvador já se firmou como capital da colónia
Seja como for, e apesar da estratificação dicotômica senhor- e como grande centro produtor de açúcar. Mas o que sobretudo
escravo, existe entre esses dois extremos toda uma hierarquia social importa é o desenvolvimento das atividades comerciais que nascem
que com o passar dos tempos foi se enriquecendo., A existência dessa da agricultura de exportação. Atividades comerciais que sa desenvol­
hierarquia mostra que mesmo num mundo fechado, como o é o vem em vários níveis e que permitem, ainda que sob forma incipiente,
Engenho, há um esquema para o qual pode funcionar certa mobilida­ a existência de algumas categorias intermediárias cujo estatuto sodal
de social. Mas resta saber de que tipo de mobilidade social se trata e não está ainda perfeitamente firmado. Estruturada dentro do esque­
que tipo de envergadura ela podia ter. Com efeito, não se tem por ma de sociedade escravocrata, que legalmente separa os indivíduos
enquanto nenhum exemplo de ascensão social, que da categoria de em dois grupos, a sociedade de Salvador aparece como sendo compos­
escravo elevasse o mesmo para a categoria de senhor de Engenho. ta por três grupos.
Mas certas evidências deixam supor de que um número razoável de
escravos, particularmente bem dotados e privilegiados, conseguiam ao
menos tornar-se livres. Mas esta liberdade física e moral nem sempre No primeiro grupo encontramos, de um lado, os representantes
representava, a liberdade material nem a oportunidade de ascen­ do poder civil, militar e religioso, isto é os altos funcionários da
der socialmente. administração real, os oficiais das patentes o clero secular e
regular. De outro lado encontramos os senhores de Engenho. Esses
Reinando; sobre uma tal estrutura e hierarquia social, o senhor senhores de Engenho que até 1640 são também responsáveis da
monopoliza os dois principais atributos da riqueza: o prestígio e a comercialização de sua produção, têm um poder que dificilmente
dominação. Mas qual a envergadura do prestígio e da dominação? chega a ser limitado pelas autoridades civis e militares (292).
Ultrapassam as fronteiras do Engenho ou não? Eis o que nós Dominando quase que exclusivamente a administração local, atra\;és
procuraremos responder, tentando descrever as hierarquias sociais da da ocupação das primeiras posições na Câmara do Senado, os
cidade de Salvador. senhores da produção e comercialização da agricultura de exportação
frequentemente hostilizam ou são hostilizados por uma administração
real que contudo se mostra, nessa época, abertamente tolerante.
(291) - Por enquanto, o estudo de Stuart B. SCHWARTZ (cf. nota 290) é o único
que possuímos. Sobre as outras categorias intermediárias cf. MATTOSO. Kalia M. de Atitude que há de deixar os empreendimentos prosperarem com o
QUEIRÓS. Os escravos na Bahia no alvorecer do século XIX (Estudo de um grupo
social). Revista detyHstjpria.(São Paulo). 97:109-135, 1974. O estudo sistemático da série
de inventários, depositados no Arquivo Público do Estado da Bahia, poderia oferecer (292) - Cf. Affonso RU Y. História da Câmara Municipal da cidade do Salvador, op.
elementos esclarecedores do assunto. cit.. p. 9-173 e. do mesmo autor. História Política e Administrativa da cidade do Salvador.
Tipografia Beneditina Lida.. 1949.

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mínimo possível de entraves e de solicitações: o sucesso da coloniza­ mostra que certas categorias sociais adquiriram contornos mais
ção está na mão dos particulares. nítidos. Neste período, quatro grupos podem ser distinguidos (297).

O segundo grupo é composto por uma população bastante rala de No primeiro grupo (298) encontramos os altos funcionários da
gente livre. Funcionários subalternos da administração real, soldados administração real (299), os militares de altas patentes (300), o alto
dos regimentos, pequenos comerciantes como taberneiros, vendeiros, clero secular e regular (301), os grandes mercadores (302), os grandes
presentes em todo porto, e artesões. Esses artesões que ajudam a proprietários rurais (303). São as camadas que compoêm a chamada
edificar a cidade na espera de oportunidades melhores que os façam “elite” da sociedade baiana, faminta de distinções e honrarias, que se
sair da condição de'simples assalariados (293). consubstanciam no reconhecimento de suas origens nobres frequente-
mente sancionadas pela obtenção de um título de nobreza, do qual é
Finalmente, o terceiro grupo, no qual se fazem presentes os pródigo o período Imperial no que diz respeito aos proprietários
escravos, mas cujo número deveria ser.bastante minguado pois é ainda rurais (1822-1889).
minguado o número daqueles que podem possuir escravos sem ser
proprietários de terras de lavoura. Mas há os poderosos da adminis­ O segundo grupo se diferencia do primeiro apenas por seus níveis
tração real, há os conventos que, entretanto, utilizam-se de seus salariais inferiores - quando se trata de funcionários - ou por seus
serviços. Abaixo dos escravos, os mendigos e os vagabundos que toda níveis de renda - quando se trata de comerciantes, de lavradores -
sociedade, qualquer que seja sua base estrutural, secreta: marinheiros proprietários, de profissionais liberais, e de alguns mestres de ofícios
que se tornam' sedentários ou são abandonados, no caso de moléstias, nobres (304). Ternos, assim, neste segundo grupo os funcionários
soldados fugidos, aventureiros em busca da riqueza e, quiçá, primei­
ros escravos alforriados (294). População marginal que vive às custas intitulado Para uma metodologia em história social: a história social de Salvador no
da comunidade, dela tentando obter seu sustento diário (295). Não se século XIX. Salvador, 1974, (datilografado). Esta análise foi utilizada por Lstván
deve esquecer que mesmo em Salvador as atividades urbanas não são JANCSO em Contradições, tensões, conflitos: a inconfidência baiana de 1798. Rio de
suficientemente produtivas para adquirir uma dinâmica própria e Janeiro, 1975, 160 p. (tese de livre-docência - mimeografajda) p. 43-49.
(297) - O novo esquema que propomos inspira-se nas 7 categorias sociais dadas por
vivem atreladas ao grande comércio importador-exportador. VILHENA: Corpo de Magistratura e finanças, Corporação ecleasiástica. Corporação
militar. Corpo dos Comerciantes. Povo Nobre. Povo Mecânico. Escravos (L. dos S.
Em suma, uma sociedade bastante diferenciada mas praticamen­ VILHENA. A Bahia... op. cit.. v. I. p. 55-56 (Os critérios de estratificação social que
te impossível de ser caracterizada por falta absoluta de estudos utilizamos são: o estatuto social, o poder e a situação económica Este último critério tem por
empíricos concretos. O modelo fica, portanto, abstrato e serve apenas base os rendimentos anuais líquidos, fornecidos pelo próprio VILHENA para as três
como simples sugestão para futuras indagações. primeiras categorias sociais de sua classificação. Esses dados numéricos foram tomados por
base e. por analogia, atribuídos às outras categorias sociais, cujos rendimentos são
mencionados por Vilhena.
Mais preciso é o panorama que temos das hierarquias sociais da (298) - Incluídos todos aqueles cujos rendimentos anuais líquidos são superiores a
cidade do Salvador por volta dos 1800. Apesar de se tratar de uma 1:000 de réis.
descrição ainda baseada em dados puramente qualitativos (296) ela (299) - General Governador. Chanceler,.Ouvidor Geral do Crime. Ouvidor Geral
do Civel, Tesoureiro Geral, Agrajvistas, Deputado da Junta da Arrecadação da Real
Fazenda, Secretário de Estado e Governo, Intendente Geral do Ouro, Intendente da
(293) - Como, por exemplo.se tornarem lavradores d,e cana ou mesmo senhores de Marinha, Provedor da Alfândega.
Engenho. (300) - Coronéis, Tenentes-Coronéis, Sargentos-mores.
(294) - A primeira alforria de que temos notícia data de 1549. Em 9 de agosto (301) - Arcebispo. Vigário Geral, Deão, Cónegos e Meio-Cónegos.
daquele ano. o padre Manoel da Nóbrega escrevia a respeito da falta de mulheres (302) - Comerciantes que possuem grandes cabedais e comerciantes que mercade­
“todos se me escusam que não têm mulheres com que casem, e conheço eu que jam com seu nome e com cabedais petencentes a terceiros. O que caracteriza este grupo
casariam se achassem com quem: em tanto que uma mulher, ama de um homem de classe comercial dos outros grupos mercantis é que suas operações transcendem o
casado que veio nesta armada, pelejavam sobre ela a quem a haveria por mulher, e uma âmbito local, integrando-se no circuito do grande comércio internacional.
escrava do Governador (grifo nosso) lhe pediam por mulher e diziam que lha queriam (303) - Senhores de Engenho e Fazendeiros de gado. Não foram incluídos os
forrar" (Apud P. CALMON. História dafundação... op. cit.. p. 176. íavradores de tabaco e de gênero de subsistência pois tradicionalmente se acredita que
(295) - AZEVEDO, Th. de, O povoamento da cidade... op. cit.. p. 152-181. tais proprietários rurais eram de pequeno porte, o que ainda precisa ser provado.
(296) - A análise que segue, é baseada na obra de L. dos SANTOS VILHENA. A (304) - Pessoas cujos rendimentos anuais flutuam entre 5005000 e l.OOOSOOO de
Bahia no século X V lll. op. cit. que permitiu a elaboração de um ensaio inédito réis.

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médios da administração real (305), os militares oficiais de patentes te perceptível nós inventáriospost-mortem: a preocupação de poupan­
inferiores (306), o clero secular e regular (307), òs comerciantes ça. Preocupação que permeia todas as categorias sociais, pois, mesmo
varejistas que distribuem principalmente os gêneros de alimentação os mais pobres, têm sua ação da Caixa Económica ou sua apólice de
(308), os proprietários rurais, fazendeiros ou criadores médios (309), dívida pública (312).
os profissionais liberais (310), os homens que vivem de seus rendimen­
tos, e os mestres de ofícios nobres. Desses subgrupos, ou subcategorias, Rendimentos baseados nos salários, no trabalho escravo, nos
dois necessitam de uma definição melhor: os homens que vivem de investimentos bancários e imobiliários, nas rendas também que
suas rendas, e os “mestres” artesões de ofícios nobres: provêm de empréstimos a curto prazo que faz de todo possuidor de
dinheiro líquido, qualquer fosse a sua quantidade, um agiota em
Incluímos no grupo dos homens que vivem de suas rendas os potencial: emprestava-se e tomava-se emprestado em todas as camadas
aposentados do serviço público, os aposentados de atividades mercan­ da sociedade (313).
tis e uma categoria de pessoas que vivem exclusivamente de rendas
auferidas do trabalho escravo. Nesta categoria encontram-se muitas A segunda categoria que necessita de melhor definição é o grupo
mulheres viúvas e solteiras mas também muitos homens de profissão dos “mestres” de ofício. O sistema de corporações de ofícios nunca
não definida livres ou recém egressos da escravidão, mas cujo número conheceu na Bahia o desenvolvimento que conhecera alhures e
de escravos possuídos ultrapassa largamente as necessidades de uso mesmo em Portugal. Segundo Maria Flexor “dos naturais da terra e
doméstico. A crer na evidência dos inventários examinados no portugueses que haviam iniciado sua atividade mecânica em Salva­
período 1808-1889, sobre um total de 800 inventariados, cerca de 50% dor, poucos foram os que se submeteram aos exames se se levar em
vivem exclusivamente do trabalho escravo, principalmente até a conta o longo período examinado neste estudo” (314). Todavia,
década de 1860. A abolição do tráfico em 1850, a paulatina segundo a mesma autora, “os ofícios não eram considerados “vil”
depreciação no preço do escravo que se seguiu (311), e o aparecimento trabalho manual, próprio de èscravos, pelo contrário, foi exercido -
de novas oportunidades de investimento quer seja na compra de ações mantidas as devidas proporções - pela maioria de brancos e alguns de
bancárias ou de apólices da dívida publica, quer seja na compra de “status social” de maior relevo como fts militarfts graduados”(315).
bens imobiliários, vai trazer uma modificação de atitude pérfeitamen- Mas se isto foi verdade para os primeiros séculos da colonização isto
(305) - Juiz da Coroa da Fazenda, Guarda-Mor e Distribuidor do Tribunal da
não o é mais para o século XIX, pois “o número maior de escravos e
Relação, Escrivão dos Agravos e Apelações; Tabelião da Ouvidoria Geral do Cível, mulatos que exerciam ofícios, aparece no século XIX, quando os
Contador da Junta da Associação da Real Fazenda, Tesoureiro dos Miúdos, Escrivão poderes da Câmara já não eram exercidos no controle dos que
da Ouvidoria Geral do Crime. Juiz de Fora do Civel, Presidente do Senado da Câmara, ingressavam nas profissões mecânicas e as Irmandades profissionais
Escrivão do Senado. Almoxarife da Ribeira da Intendência da Marinha e Armazéns não possuíam mais sua antiga organização rígida ou então haviám
Reais, Patrão-Mor da Ribeira, Provedor da Casa da Moeda, Ensaiador da Casa da
Moeda etc. desaparecido”. Com efeito a partir da década de 1830 “passaram as
É interessante notar que nesta lista de servidores civis são incluídos alguns cargos profissões a serem exercidas independentemente de qualquer inter­
de grande prestigio como Juiz da Coroa da Fazenda ou Presidente do Senado da venção da Câmara” e em meados do século “já havia nítida distinção
Câmara que deveriam permitir a inclusão de seus possuidores na primeira categoria. entre o técnico, especialmente o estrangeiro, e o artífice tornado
Este exemplo mostra quanto pode ser frágil uma classificação baseada em um único desprezível, por seu trabalho manual...” (316).
critério.
(306) - Capitão, Tenente, Ajudante de Sargento-Mor. Alferes.
(307) - Curas, Vigários, Capelões, Coadjutores e todo o clero regular.
(308) - Aqui distinguimos três categorias; a dos comissários (volantes ou não), a (312) - Cf. APEB, Seçãc Judiciária: Série Livros de registros de testamentos,
dos atravessadores de gêneros e a dos comerciantes varejistas. Para mais detalhes cf. 1805-1891 (64 volumes) e inventários post-mortem (1750-1914).
Katia M. de Queirós MATTOSO Para uma metodologia... op. cit.. p. 65. (313) - Do negociante de grande trato ao escravo, todos praticam o empréstimo a
(309) - É uma categoria tecnicamente pouco diferenciada do resto dos proprietários juros. Encontram-se nos testamentos e inventários frequentes referências a dívidas do
rurais na medida em que não se tem nenhum estudo que dê conta do tamanho das passivo e do ativo que podem envolver às vezes somas extremamente vultosas (várias
propriedades rurais no Recôncavo e fora dele. Cf. Ia. parte deste trabalho. dezenas de contos de réis) como também montantes irrisórios de alguns réis.
(310) - Bacharel em leis. Bacharel em letras, médico. (314) - FLEXOR. Maria Helena. Oficiais mecânicos na cidade do Salvador.
(311) - MATTOSO, Katia M. de Queirós. A carta de alforria como fonte Salvador. Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal, 1974, p. 31.
complementar para o estudo da rentabilidade da mão-de-obra escrava urbana (1819-1888). (315) - Idem. p. 37.
In Moderna História Económica. Rio de Janeiro, APEC, 1976, p. 149-163. (316) - Ibidem. p. 39 e seg.

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Há portanto, impossibilidade de distinguir entre mestres, oficiais e de escravos urbanos: os escravos para uso doméstico e os escravos de
aprendizes de um determinado ofício. Impossibilidade, aliás, confir-. ,ganho, isto é, os que trabalham no mercado de trabalho e constituem
mada por outra série de documentos, aquela referente" a salários de um investimento rentável para seus senhores.
artesões como pedreiros, carpinteiros, pintores etc. A análise desta
documentação permitiu observar que o título de “mestre” é dado a
oficiais consagrados como tais mais pelo consenso popular do que por A condição dos escravos domésticos urbanos não devia diferir
certidão oficial, e a mesma pessoa que aparece num ano com o muito dos escravos domésticos do Engenho: ambos gravitavam em
qualificativo de mestre, pode, meses depois aparecer na mesma torno do senhor e' de sua família e viviam na sua intimidade,
documentação como simples oficial, com todas as diferenças salariais tratava-se de um grupo aparentemente privilegiado. De fato o é,
que isto implica (317). Por esta razão só são considerados como quando laços de a,mizade o prendem aos membros da família, quando
verdadeiros “mestres” os oficiais de ofícios “nobres” assim adjetivados serve patrões de slatus social superior. Mas não o é quando serve
como os ourives, os pintores, os canteiros, torneiros e entalhadores em famílias de categorias médias onde muitas vezes |passa dos afazeres,
madeira que representam ofícios altamente especializados e, geral­ domésticos aos trabalhos da rua sem maiores compensações (323).
mente, pouco difundidos entre a massa e por isso mais resguardados.
Com efeito o “possuir escravo” é largamente difundido em todas
O terceiro grupo (318) compreende os funcionários subalternos as categorias sociais e não são raros os escravos que são donos de
da administração real (319), militares (320), profissionais liberais
escravos, mesmo que seja por um curto período. Esses escravos
secundários (321), oficiais mecânicos (322) e pequenos comerciantes
domésticos, como os outro escravos urbanos, gozam de certa liberdade
que vivem pelo comércio ambulante de venda de frutas, de doces e
nos seus movimentos, na medida que podem circular livremente nas
salgados. Na maioria das vezes essa categoria social é composta por ruas, encontrar-se com outras pessoas da mesma condição, dentro,
homens e mulheres livres recém-egressos da escravidão. A esse
todavia, de horários estipulados pelos próprios poderes públicos. Mas
terceiro grupo devemos ainda acrescentar a gente do mar, pescadores
suas possibilidades de comprar a liberdade são menores do que a dos
e marinheiros do Recôncavo, condutores de gêneros alimentícios e escravos de aluguel e dependem quase que exclusivamente de seu
fornecedores de pescado à população.
relacionamento com os membros da família que servem (324).
Finalmente o quarto grupo é representado pelos escravos, pelos
mendigos e pelos vagabundos. Assim os escravos de ganho parecem constituir o grupo escraviza­
do materialmente mais privilegiado pois têm a possibilidade de
Marginalizado legalmènte, o escravo nem sempre o é material­ usufruir "de uma parte de seus ganhos diários. A esse respeito se impõe
mente na medida em que potie desempenhar certas funções na distinguir entre os escravos de aluguel, ou arreto, e os escravos de
dinâmica económica urbana. Estas funções o colocam numa posição ganho. Os primeiros*são geralmente alugados à particulares por um
de certa independência material, imposta pelas próprias modalidades período de um ano no mínimo, podendo o contrato de locação ser
de seu exercício. Pois é necessário distinguir duas grandes categorias renovado se as partes assim o desejarem (325). Os outros viviam de
vendas na rua, do exercício dé profissões artesanais, de carregar todo
(317) - Cf. Illa. parte deste estudo, na parte dedicada nos artífices assalariados. tipo de materiais numa cidade de topografia acidentada, de ruas
(318) - Neste grupo acham-se todos aqueles cujos rendimentos não são superiores relativamente estreitas que dificultavam os transportes por tração
a 5005000 réis.
(319) - Esta classe de servidores públicos é a mais numerosa. Os salários que
percebem seus membros flutuam entre 44S000 réis anuais (salário de um meirinho ou (323) —A série de cartas de alforria por nós explorada dá frequentes informações
de um escrivão) e 470S000 réis anuais (salário de um escrivão do Almoxarife de sobre escravos que simultaneamente desempenham funções ligadas a afazeres domésti­
Intendência de Marinha). Na impossibilidade de relacionar no bojo deste trabalho cos e trabalhos de rua.
todas as classes desses funcionários subalternos, remetemos à relação dada por (324) - Cf. MATTOSO, Katia M. de Queirós. A cana de alforria como fonte... op.
VILHENA A Bahia no século XVIII, op. cit., vol. II p. 334-344. Cf. também na Illa. cit., 157.
parte desse estudo, capitulo consagrado a salários dos servidores públicos. (325) —José Fábio Barreto Paes Cardoso está elaborando, sob nossa orientação,
(320) - Sargentos, cabos, soldados. um estudo intitulado Modalidades de loca/ção de mão-de-obra escrava na cidade do
(321) - Sangradores. cirurgiões, pilotos, médicos etc. Salvador, Bahia (1827-1887), baseado em documentos encontrados no Arquivo
(322) - Pedreiros, carpinas, marcineiros. tanoeiros, sapateiros etc. Municipal.

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Mas por outro lado, essa classificação só pode adquirir seu pleno
animal. Esses escravos podiam continuar vivendo nas casas de seus significado no momento em que ela deixa de ser estática, no momento
senhores, mas com frequência deles se separavam, assumindo assim o em que se abre suficientemente para permitir que seja captada sua
encargo de seu próprio sustento. Situações aparentemente privilegia­ própria dinâmica, baseada nas relações sociais de seus membros, nas
das mas dependentes das condições oferecidas pelo mercado de relações entre os dois extremos dentro dos quais flutua toda socieda­
trabalho. Mas des.te aspecto falaremos mais adiante. de: a riqueza e a pobreza. Que categorias sociais estão expostas a um
perigo imediato dé pauperização, quais permanecem ao abrigo deste
N a última escala desse quarto grupo colocamos os mendigos e os tipo de acidente, eis uma questão fundamental à qual tentaremos
vagabundos. Pelas descrições que nos deixaram os contemporâneos, responder no capítulo seguinte. Mas antes de alí chegar, e para
quer seja os viajantes, quer seja os membros dos governos municipal e concluir, resta-nos fazer uma última indagação, a saber: que influên­
provincial seu número parece ter sido bastante importante (326). cias a estratificação social urbana dé Salvador recebeu do campo,
Eram constituídos, esses dois grupos, por fugitivos de todo tipo como sobre elas influiu e que tipo de modelo finalmente adotou.
(soldados, marinheiros, escravos), por doentes e dementes abandona­
dos, por desempregados ocasionais ou crónicos. Categorias marginali­ A estratificação e as hierarquias sociais em Salvador no século XIX:
zadas da sociedade “representavam essa “plebe”, indisciplinada e mescla de dois modelos
turbulenta, sempre disposta a se ascender à reação ou a abalar, pela
revolta, o edifício social” (327). Desamparadas pelos poderes públicos A comparação dos dois modelos, rural e urbano, da estratificação
(328) viviam da caridade da população para a qual constituiam um social de Salvador e de seu Recôncavo permite constatar a mistura de
peso muito grande. Categorias “ perigosas” cujo número crescia em dois modelos. O primeiro modelo é o modelo rural baseado numa
períodos de crises do mercado de trabalho, de crises alimentares, estrutura económica específica, a da grande propriedade, cujas forças
frequentes e agudas, de crises epidêmicas também. produtivas destinam-se à produção em larga escala de um produto
único para a qual é preciso possuir uma vultosa mão-de-obra. A
Eis o que a documentação qualitativa e alguns resultados parciais solução dada para o suprimento do mercado de mão-de-obra foi a
das pesquisas em curso permitem que vislumbremos da estrutura e instauração do regime escravocrata que legalmente separa a socieda­
hierarquias sociais da cidade do Salvador no século XIX. Evidente­ de entre livres e escravos. Constituindo os livres uma minoria, são
mente, este esquema é provisório por isso falho e passível de críticas. obrigados a instituir um controle rígido sobre as suas forças produti­
Porém, pensamos que tem sua operacionalidade na medida em que vas. Desse controle rígido nascem relações sociais do tipo subordinati-
evidencia a existência de grupos intermediários que atenuam a visão vo que culminam no esquema de dominação patriarcal.
um pouco rígida de uma sociedade dividida em senhores e escravos.
O segundo modelo é o trazido pelas autoridades coloniais
(326) - A história dos grupos sociais marginais da sociedade baiana está ainda por portuguesas em 1549, na tentativa de estabelecer sobre terras
ser feita. Apesar das frequentes menções que encontramos quer seja nas obras dos brasileiras a organização social urbana da mãe metrópole (329).
viajantes estrjangeiros) quer] nasj FALLAS do governo provincial, a ausência de Assim, desde o início da colonização há uma relativa homogeneidade
organizações públicas de amparo a esses grupos nos priva de dados quanti|tjativos da população, pois os grupos permanentes da cidade se identificam,
referentes ao número exato dos indigentes na Bahia do século XIX.
(327) - AZEVEDO, F. de. Canaviais e Engenhos... op. cit., p. por um lado, com as camadas de mando, representadas pela
(328) - Segundo Affonso Ruy, somente por volta de meados dò século XIX a oficialidade civil e militar do governo metropolitano, por outro lado,
Câmara Municipal empreende tentativas para “extinguir os focos de vadiagem onde com a camada senhorial rural na categoria de “brancos-senhores”
estropiados e cancerosos vivem da caridade pública em promiscuidade com falsos possuidores de escravos. Com efeito, a transferência para a cidade da
mendigos e malandrto$J”. Em' 1855, uma lei provincial de 30 de abril, autorizava a
fundação de um asilo de mendigos, mas foi vetada pelo Desembargador José Luiz de
instituição escravista e seu desempenho na execução das tarefas
Almeida Couto, Presidente da Província. A única instituição de socorro era ’um sociais, amplia para esta o sistema de trabalho instaurado. O escravo
Albergue que funcionou nas imediações do Convento de São Francisco, dirigido pelos
padres, verdadeiro “pateo de milagres” o qual se manteve até 1873 quando pela lei
provincial 1335 de 30 de junho, estabèleceu-se o recolhimento dós mendigos em um (329) - P. CALMON, História da fundação... op. cit., p. 219-235.
dos prédios das Quintas dos Lázaros, tendo sido recolhidos 88 mendigos e vagabundas Th. SAMPAIO. História dafimdação da cidade... op. cit.. p. 271-295.
de ambos ós sexos. Três anos mais tarde (1876) era inaugurado o asilo de mendiuãade E. CARNEIRO, A cidade do Salvador... op. cit., p. 70-103 e 127-143.
na Boa Viagem. A. RUY, História da Câmara... op. cit., p. 307-308. . ' 1

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passa do desempenho de tarefas produtivas ao desèmpenho de governadores, que antigamente governavam, nãó só esta capitania,
funções que evidentemente não geram um fluxo de renda significati­ como todo o Brasil, ou de algumas das diversas personagens, que em
va. Mas a ampliação, para a cidade do sistema escravocrata transfere, vários tempos aqui aportaram. O certo é que se encontram bastante
para a sociedade urbana, o esquema de relações sociais de tipo sujeitos, que não terão dúvida em tecer sua genealogia mais comprida
subordinativo: que imperava no campo. O desenvolvimento na que a dos hebreus, e disputar nobreza com ós grandes de todo o
cidade de relações do tipo patriarcal foi a principal contribuição da mundo, quando a que tem pode bem ser lhes provenha das
estratificação social rural. desenvolturas de seus pais, ou avós, descoberta com umas armas, que
por vinte e tantos mil réis mandam vir da Corte;... Outros há que
Contudo, e apesar dessa influência, a estrutura social urbana tendo seus pais vindo não há muitos anos para o Brasil, para serem
permanece mais aberta. O enriquecimento, no tempo, das atividades caixeiros, quando tivessem capacidade para o ser, porque á fortuna
comerciais secundárias d.o tipo varejista, as oportunidades dadas ao lhes foi propícia, ajuntaram grandes cabedais, cuidam de seus filhos,
escravo urbano de comprar sua liberdade por carta de alforria, a que o Imperador da China é indigno de ser seu criado. Outros porém
miscigenação da população, permite uma mobilidade social que há que se preocupam da mania de ser nobres, antes que tivessem com
possibilita a constituição de camadas intermediárias de população que ostentar essa quimérica nobreza, e se chegaram a ter alguma coisa
praticamente inexistentes no Recôncavo (330). É dessas camadas de seu, tanto se carregam dos apelidos de muitas das famílias ilustres
intermediárias, fortemente mestiçadas que, em parte, se renovam as da Corte, e tanto se empavonam com esta imaginação, que têm para si
categorias superiores da sociedade de origem brasileira ou reihol, e que um duque é nada à sua vista. Há outros que entusiasmados sem
são por elas acolhidos os que sofrem revezes materiais definitivos São fundamento, de que são alguma coisa neste mundo, vivendo em sua
essas camadas intermediárias que introduzem uma faixa de acomoda­ casa envolvidos na sórdida miséria, quando saem fora se empavezam
ção na rígida divisão soeial, constituída apenas por senhores e de tal forma, que até lhes custa reverenciar a Deus. Há porém outros
escravos. que sendo verdadeiramente nobres e ricos, vivem, e se dirigem pelos
ditames da modéstia, razão e política: seguindo inteiramente uma
Nasce assim um tipo de sociedade original, dinâmica e operativa moral toda cristã”. (331)
que apesar de buscar suas formas de afirmação simbólica no Julgamento severo este de Vilhena, mas confirmado também pela
desenvolvimento de comportamentos de tipo estamental, permanece
profundamente permeável. Daí a incessante preocupação dos que literatura da época (332).
ascendem socialmente de fazer a prova de suas origens nobres que Sociedade rica porque aberta para todos, mas também sociedade
este arguto observador social que foi Vilhena soube tão bem de atitudes ambivalentes, esquartejada que ela é, entre o modelo
descrever: branco, o modelo da mãe-pátria, o modelo, em suma, da Europa
distante, e a realidade de uma dinâmica que lhe é própria e por isso
Há nesta cidade, e nos consta por todo o Brasil, ramos de muitas
original. Mescla de dois modelos onde finalmente o indígena acaba
famílias ilustres, se não é que os apelidos são bastardos, dúvida a que
por triunfar, mesmo se fica inconfessado.
nos conduzem as nossas ordenações, e algumas leis, onde vemos a
qualidade de gente com que no princípio se começou a povoar esta
região, sem contudo nos persuadamos de que procedem todas as Capítulo II - Servidões e encantos da cidade
famílias de semelhantes tronos;... o certo é que a duração dos tempos
Esta sociedade, que cresceu e se multiplicou diversificando-se,
tem feito sensível confusão entre nobres, e abjetos plebeus; outros há
vive num ambiente espacial que ela organizou de tal modo que este
que se haviam em deduzir a sua prosapia dos caboclos, ou índios,
quando outrojs se gloriam de descenderem de alguns dos ilustres ajuda manter suas particularidades e originalidades.

(330) - Na realidade, pouco sabemos sobre o processamento das cartas de alforria (331) -SA N TO S VILHENA, L. dos./i B ahia... op. cit.. v.I. p. 51-52.
nas areasj ruraisj Porjoutrolado' a falta|de censos rurais não permite que saibamos se ao (332) - A maioria dos viajantes refere-se a essa “pretensão à nobreza que possuem
lado dos senhores de Engenho e dos lavradores livres e obrigados, existiu uma categoria as categorias altas da sociedade baiana. Um bom indício dessa atitude é a procura
de trabalhadores rurais livres oriundos da classe servil no período que antecede a constante de distinções, graças honoríficas e títulos nobiliárquicos por parte dessas
abolição da escravidão. categorias cuja história está ainda por ser feita.

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Apreender esse crescimento da cidade no século XIX, ver de que foram fixados por volta de 1857 (334). A segunda cobria um território
maneira se distribui a população nas freguesias e bairros, conhecer que se estendia desses limites alé os limites com as freguesias do
suas habitações e seu estilo de vida, é acrescentar uns tantos outros termo. A terceira, compreendia as freguesias periféricas, ou freguesias
elementos que permitem melhor captar o funcionamento dás relações do termo. Mas já na época se tornava evidente que não havia
sociais. nérihuma razão válida que justificasse essa distinção entre cidade,
subúrbios e freguesias do termo que de fato eram submetidos ao
Salvador: a cidade no século XIX mesmo regime municipal (335). A prova disto pode ser dada através
de dois exemplos: todas as leis municipais eram aplicáveis igualmente
'r .Èntre Bonfim e o Cabo Santo Antônio rasga-se uma formosa nas três divisões da cidade e os habitantes dos subúrbios e das
bàía, de duas léguas de largura, no fundo da qual aparece a cidade de freguesias do termo podiam se tomar membros das ordens terceitias e
S. Salvador, edificada em anfiteatro sobre uma encosta muito irmandades religiosas que tinham sede na cidade.
escarpada. Vários edifícios consideráveis lhe dão uma aparência de Os autores do século XIX, principalmente os viajantes, emitem a
opinião que Salvador era uma cidade convenientemente povoada não
grandeza e de magnificência... O golpe de vista encantador que a
construção em anfiteatro dá à cidade, perde muito do seu valor tendo nem muito nem poucos habitantes. Mas desconhecemos, para o
quando se põe em terra. A montanha desce tão bruscamente para o período anterior ao censo de 1872, a densidade por freguesia dessa
mar que na praia não mais há mais espaço do que o necessário para população. Por volta do final do século as freguesias da Sé, Santo
construir uma só rua, cujas casas de um lado são banhadas pelo mar e Antônio, além do Carmo e N. S. de Santana são as mais povoadas.
do outro apoiadas de encontro na montanha... Esta cidade baixa é o Todos os caminhos e as ruas da cidade dirigiam-se para o núcleo
■centro dos negócios; observa-se ali uma grande atividade: transportes principal, formado pelas duas freguesias mais antigas da cidade, a
contínuos de mercadorias, lojas muito frequentadas; gritos de negros freguesia da Sé, no topo da colina, e a freguesia da Conceição da
que vão e vêm num espaço tão estreito que ainda mais aumenta o Praia, na beira do mar.
tumulto. Se é acotovelado, fica-se atordoado. Quando não se tem mais
o que tratar nesta parte da cidade procura-se deixá-la com prazer A cidade na beira do mar
mais vivo quanto ela é obscura e muito pouco asseada... Uma vez
chegado à cidade alta, encontram-se ruas largas, calçadas e bem Na parte ribeirinha da cidade, o comércio desenvolvia suas
alinhadas; as casas são decentes ,e despidas das tristes grades atividades num espaço limitado por duas construções religiosas, a
mourescas que se observam com tanta frequência em Pernambuco” belíssima basílica de N. S. da Conceição da Praia edificada perto do
(333) bairro denominado da Preguiça, de um lado, e a Igreja de N. S. do
Pilar, do outro. Nesse espaço, que compreendia até por volta de 1870
Assim se exprimia em 1817 Tollenare e com ele praticamente
uma única rua no sentido longitudinal, encontravam-se os prédios da
concordam todos os v isitantes de Salvador do século XIX: do encanto
Alfândega, o Celeiro Público, o Arsenal da Marinha, o Consulado, o
primeiro que oferecia a cidade assentada no alto, seguia-se o desencan­
elegante prédio da Bolsa de Mercadórias (336), construído na época
to que no desembarque acompanhava a todos; mas a impressão
geralmente melhorava quando se subia os morros. Para um europeu do governo do conde dos Arcos, numerosos trapiches e armazéns de
do século XIX Salvador era uma cidade considerável. ^ onde se aviavam as mercadorias que demandavam os mercados
externos e se recebiam as que eram importadas. Nessa parte ainda da
O Salvador do século XIX conservava os velhos limites da cidade cidade havia as lojas comerciais, a praça do comércio e os principais
do século XVIII com suas 10 paróquias. Mas uma tripla divisão se
havia operado no decurso dos séculos: a cidade, os subúrbios e as ( 3 34 ) -Cf. p. 124-125 do presente trabalho. . . . . . .
freguesias que compunham seu termo. A primeira era a cidade (335) - Com efeito, as posturas municipais votadas pela Camara Municipal de
propriamente dita, tal como era circunscrita pelos limites que lhe Salvador eram executáveis em todas as freguesias que faziam parte do termo da cidade.
Por outro lado a freguesia de São Bartolomeu de Pirajá é considerada como Freguesia
da capital ilustrada da Bahia” no Processo-crime instaurado contra o seu pároco padre
(333) - TOLLENARE, L.F. de. Notas Dominicais tomadas durante uma viagem em José Joaquim Fernandes de Britto APEB, Seção Judiciária, Processos-Cnme, 1868.
(336) - Prédio da atual Associação Comercial da Bahia cuja construção fora iniciada
e "° ' em ’816' 18,7 e 1818 Salvador’ Uvraria Progresso. 1956, p. no governo do conde dos Arcos e inaugurado em 1816.

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mercados da cidade. Mercado de atacado com lojas e depósitos permaneciam inativos mas trabalhavam na confecção de chapéus de
abarrotados por todo tipo de mercadorias que iam dos produtos de .palha, de cestas, de cadeias de fio de ferro para prender os papagaios,
luxo aos produtos alimerttícios de primeira necessidade (337); merca­ de gaiolas para os pássaros, de .colares e pulseiras com pérolas de
do de escravos onde as transações se efetuavam ora nas ruas epraças origem vegetal ou animal. Essa população que ficava à espera de
que ficavam “atravancadas de grupos de seres humanos expostos à ganhar o pão cotidiano era alimentada por negras ganhadeiras que
venda em frente às portas de diversos negociantes a que pertencem” desde as primeiras horas da manhã lhes vendiam canjicas e mingaus
(338); ora em prédio próprio como aquele descrito pelo alemão de tapioca, quentes acaçás, arroz e carne seca, carne de baleia,
Freyreiss: “Os escravos, amontoados às centenas num barracão, estão inhames cozidos, caruru etc. (340).
vestidos apenas com um lenço ou trapo de lã em torno do ventre. Por
uma questão de higiene são-lhes raspados os cabelos. Assim nus e Quanto aos vendedores ambulantes, estes vendiam tudo que o
pelados, sentados ao chão olhando curiosamente os que passam, não dinheiro podia comprar, iniciando assim naquelas paragens uma
diferem muito, na aparência, dos macacos. Muitos escravos, acrescen­ intensa atividade durante o dia:
ta o naturalista alemão, já vêm da África até mesmo marcados a ferro
quente, como animais” (339). “Nos espaços que deixam livres, ao longo da parede, estão os
vendedores de frutas, de salsichas, de chouriços e de peixe frito, de
Mercado de varejo também, com suas mil e umas lojinhas e azeite e doces, negros trançando chapéus ou tapetes, cadeiras com
tabernas, farmácias, livrarias, botequins e tendas onde se vendiam seus carregadores, cães e porcos e aves domésticas, sem separação
artigos de joalheira, roupas, sapatos, alimentos e bebidas, remédios nem distinção; e como a sarjeta corre no meio da rua, tudo ali se atira
para se sanar o corpo e a mente e onde se ofereciam os mais variados das diferentes lojas, bem como das janelas. Ali vivem e alimenta-se
serviços à população residente como para a de passagem: ali tinham animais... (341).
seu ponto os alfaiates, os barbeiros, os tanoeiros, os serralheiros e
funileiros, os fabricantes também de rapé, cuja lembrança perdurou pór Não menos sugestiva é a descrição do pastor protestante Schwie-
muito tempo na denominação de becos e de ruas: rua do peso do fumo, ger do final do século: “Na cidade baixa está instalado o grande
rua das grades de ferro, beco dos tanoeiros, beco dos barbeiros, rua dos comércio e também o colorido mercado onde são oferecidos sob
caldereiros etc. Mundo de tabalho colorido ao qual deve ser árvores verdes, saborosas frutas e legumes, camarões e peixes,
acrescida a multidão dos vendedores ambulantes e os grupos de macacos e papagaios, maravilhosas araras coloridas ou azuis cor de
escravos, organizados em cantos. Segundo Pierre Verger, nos Arcos de aço, além de genuínos cristais de rocha e lindas ametistas azul claro”
Santa Bárbara encontrava-se o canto dos Guruncis: alguns passos (342).
mais longe, entre os Arcos de Santa Bárbara e o Hotel das Nações Aliás, a praça do mercado da cidade baixa era, até o fim do
agrupavam-se os Haussás. Por sua vez os Nagôs, mais numerosos, século, a única da cidade onde tudo podia ser vendido: por exemplo,
reuniam-se nos cantos do mercado, na rua do comércio ao lado dos na rua das Pedreiras e na frente dos Arcos de Santa Bárbara se
Cobertos Grandes e em vários pontos da rua das Princesas, inaugura­ encontravam os pontos de venda para peixe e fatos de gado cuja
da em 1866. Carregadores de mercadorias ou escravos de ganho, vendagem na cidade alta era proibida nas praças centrais (343).
obedeciam às ordens de um capitão de canto, responsável perante as
autoridades pelo bom desempenho e obediência dos membros de seu Assim, mesmo para um observador superficial, a cidade na beira
grupo. Enquanto esperavam o apelo de um cliente, os negros não mar representava um impressionante conjunto arquitetônico e ao
mesmo tempo um buliçoso labirinto de becos e ruas estreitas e
(337) - SPIX. Johann Baptist von e MARTIUS, Karl Friedrich Phillip von. Através
da Bahia. Trad. do Dr. Manoel A. Pirajá da Silva e Dr. Paulo Wolf, Bahia. Imprensa
Oficial do Estado, 1916, p. 54-57. (340) - VERGER, P. Flux e reflux... op. cit., p. 525-526.
(338) - LINDLEY, TTi., Narrativa de uma viagem... op. cit., p. 128. (341) - GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país
(339) - FREYREISS, Georg, Wilhelm. Beitrãge zur naheren Kenntnis des Kaiser- durante parte dos anos de 182/, 1822 e 1823. Trad. e Notas de A. Jacobina Lacombe.
thums Brasiliens nebst einer Schilderung der neuert Colonie Leopoldina und der São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1956, p. 145.
wichtigsten Erwerbszweige fiir europàische Ausiedler, so wie auch einer Darstellung der (342) - SCHWIEGER, Henry. Eine Ozeanfahrt nach Brasilien, Hamburg, Herold,
Ursachen, wodurch mehrere Ansiedelungen missgluckten. Erster Theil. Frankfurt am 1898. Apud Moema Parente AUGEL Visitantes estrangeiros... op. cit., p. 152.
Main, 1824. Apud Moema Parente AUGEL, Visitantes estrangeiros... op: cit., p. 218. (343) - AMS. Livros de Posturas op. cit., fls. 91-93v.

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tortuosas que vinham dos sopés dos morrós e cortavam verticalmente a mesquinho e acanhado, a cidade-porto só podia deixar má impressão
grande rua longitudinal. Mais tarde, com a conquista ao mar de novos aos que a visitavam. Princlpalmente para aqueles pouco acostumados
terrenos, novas ruas paralelas à primeira vieram desafogar um espaço a certos cheiros de frutas tropicais e de comida exóticas. Assim ainda
ocupado palmo a palmo (344). Mas apesar das freguesias ribeirinhas em 1909 o médico francês Latteaux dizia ter desembarcado “em meio
ganharem mais espaço, não perdiam uma das suas características mais de imundices e detritos sem nome. É infecto. Acreditar-se-ia estar
comentadas por quase todos os testemunhos da época: sua falta de em certas cidades do Oriente por onde jamais passou uma vassou­
asseio. Assim, por volta de 1820 Maria Graham declarava que a ra” (347).
cidade comercial era “sem nenhuma dúvida o lugar mais sujo em que
eu tenha estado”, declaração com a qual concordava F. Denis Cidade suja, mas cidade viva onde os gritos do vendedor
considerando que esta parte da cidade era “o lugar mais feio da ambulante, gabando suas mercadorias, era acompanhado pelo canto
terra . Anos mais tarde o inglês Kidder dizia que “a cidade baixa não ritmado dos carregadores negros que iam levando pesados volumes de
oferece atrativos para o estrangeiro”, “a sargeta fica mesmo no meio, um canto para outro; cidade suja, mas cidade colorida, cidade alegre
de modo que a rua se torna asqueirosamente imunda”. Mas é o pelas vestes de seus habitantes, pela cor de suas peles. Uma
cônsul inglês Wetherell que viveu na Bahia entre 1843 e 1857 que nos cidade-porto enfim onde os mais humildes cotejavam os mais
deixou uma imagem bem mais forte: “De manhã ao se passar pelas soberbos na vida de dia a dia. Esses “soberbos” eram os grandes
ruas da cidade baixa, o nariz do transeunte é assaltado por uma comerciantes, baianos ou estrangeiros, que mais do que ninguém
profusão de cheiros ’ e isso devido sobretudo às diferentes frituras que presidem ao destino da cidade e ao dos seus habitantes. Não obstante
se fazem ali exalando todas “um cheiro horrível” de tal modo que a migração de numerosas famílias de comerciantes para bairros mais
não pode agradar a ninguém permanecer alí a não ser a título de novos e mais sadios, como o da Penha ou da Vitória, a cidade no porto
pura curiosidade (345). permanece ainda um lugar predileto para os burgueses mercadores
Falta de asseio contra a qual procurava lutar a Câmara que do alto de suas casas de três, quatro até cinco andares (348)
Municipal publicando e reiterando posturas que viessem disciplinar dirigem os destinos de seu pequeno império. A descrição da casa do
ou abolir certos gestos da população já seculares, como o hábito de grande negociante deixada pela tradição histórica é clássica: no térreo
jogar todos os detritos e águas sujas no meio da rua. Diga-se ainda, o armazém, depósito de mercadorias; no primeiro andar, os aposentos
que a cidade da praia, pela sua posição e situação era alvo de despejo da família do comerciante; no segundo, abrigam-se’ os caixeiros; no
de aguas e de imundícies das casas edificadas no topo dos morros, terceiro, a escravatura, no quarto e quinto, novamente as mercadorias.
apesar de existirem posturas que obrigavam que tais despejos fossem As casas são geralmente construídas com materiais leves, numa
feitos longe no mar (346). Desprovida de canalizações e esgotos; mistura de tijolos e de barro, e mais pesados de pedra e cal, possuem
centro da venda de produtos como por exemplo, carnes, peixes, fatos vários cômodos e são freqúentemente enfeitadas por fora com
frutas etc., de rápida deteriorização, principalmente nos meses dé azulejos vindos do Reino. O resto da população, quando é comercian­
verão, de grande densidade demográfica durante o dia, com todos te com loja, mora na sobre-loja, senão nos cômodos em que são
aqueles vendedores e ganhadores que lhe percorriam um espaço físico divididas as casas (349). Apesar de ser nos olhos dos viajantes a parte
mais densamente povoada da cidade, na realidade são relativamente
(344) - Os primeiros aterros visando alargar o espaço da cidade a beira-mar
poucos os habitantes ali residentes e os que ali residem, literalmente
começaram na segunda metade do século XIX, tendo sido inaugurada a rua amontoam-se uns sobre os outros em inverossímeis condições de
denominada das Princezas em 1867.
(345) - M. GRAHAM, Diário de uma viagem... op. cit., p. 145 - F. DENIS. Lettres
familières et fragments du journal intime de Ferdinand Denis à Bahia (1816-1819). (347) - LATTEAUX Dr. A travers le Brésil. Au pays de Por et des diamants. Paris,
Editadas e comentadas por Léon Bourdon. Coimbra, Editora Ltda., 1957, p. 17. D. Ailland Alves et Cie, 1910, p. 82. .
Reminiscências de viagens e permanência no Brasil Rio de Janeiro eprovíncia (348) -RUY, Affonso. A importância do bairro da Conceição da Praia no século
de Sao Pauto, compreendendo noticias históricas e geográficas do império e de diversas XVIII. In Bicentenário de um monumento baiano. Salvador, Editora Beneditina Ltda,
províncias. Trad. Moacyr N. Vasconcelos. São Paulo, Martins, 1940, p. 7 WETHE- 1971, p. 131-142. ^ .. .
RELL Brasil. Apontamentos sobre a Bahia, 1842-1857. Apresentação e tradução de (349) - OS INVENTÁRIOS POST-MORTEM DO SÉCULO XIX cuja serie esta
Miguel P. do Rio-Branco. Bahia, Banco da Bahia, s/d (1972). p. 99 e seg. sendo estudada são. em geral, pouco informativos sobre o número de cômodos e sua
(346) - AMS. Livro de Posturas Municipais 1829-1859. Posturas np 3 1 46 e 48 foi 20 distinção específica. Por outro lado, carecemos de plantas que sejam contemporâneas
e seg. das casas.

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inconforto (350). Quanto aos outros, uma vez a jornada de trabalho (353) ; com o cair da noite, lá pelas seis horas da tarde, quando se via
terminada com o deitar do sol, espalham-se pelas ladeiras e outros “subir por São Bento os comerciantes anafados a limpar o suor dos
caminhos por todos os cantos da cidade construída no alto ou rostos lustrosos, a negraria dos mercados e cais, de cesto à cabeça, em
prolongando-se pela praia até a península de Itapagipe. Caminhada magotes faladores, empertigados caixeiros com ares de sócios de casas
longa e cansativa se se anda a pé pois as ladeiras são íngremes, mal fortes, meninos e raparigas que vinham de compras sobraçando
pavimentadas e as distâncias longas numa cidade que só ganhou seus pacotes, vendedores de gazetas a apregoar o Diário e a Tribuna...
primeiros transportes coletivos na segunda metade do século: bondes Burburinho que refluía aos bairros da cidade alta pela ladeira da
conduzidos por tração animal e carros de aluguel. Porém, pagar a Conceição, pela Gameleira e pelos transportes urbanos, onde vinham
passagem é ainda caro, especialmente para uma população trabalha­ os representantes do comércio em grosso, capitalistas, diretores de
dora que vive do dia ao dia conforme os azares da conjuntura do bancos, estrangeiros, senhoras de boa sociedade, a minoria cujo
amanhã. Os outros, os privilegiados, os mais ricos, usam as cadeiri­ sistema nervoso já afrontava a ascensão pelo “Parafuso da Praça’
nhas de arruar levadas por escravos que apesar de inconfortáveis, pelo (354) .
menos os protegem das chuvas violentas do inverno, do calor
abrasador do verão, da lama e das imundícies. Palanquins, cadeiri­ Caminhos enladeirados, elevador e planos inclinados (355) que
nhas de arruar que ainda enfeitam o cenário de Salvador mesmo levavam a população de trabalhadores para o coração da cidade no
quando os transportes modernos ganharam definitivamente a bata­ alto, à freguesia da Sé, de onde se distribuíam pelas freguesias já
lha: na última décadà do século XIX ainda há baianos que teimam em florescentes no início do século como São Pedro o velho, o Paço, Santo
ser levados a braço para onde quiserem(351), talvez por ser o Antônio Além do Carmo e Nossa Senhora de Santana. Freguesias
transporte mais barato. Caminhos e ladeiras que permitem fugir de onde as casas de residência entremeiam-se com edifícios públicos e
um bairro “onde não circula senão um ar quente, pesado e carregado religiosos, com jardins e largos, feiras e praças públicas.
de miasmas nauseabundos’ segundo o testemunho de Mouchez em
1861. Sem dúvida, a mais bem aquinhoada em edifícios públicos e
religiosos é a freguesia da Sé, pulmão administrativo da cidade e da
O principal caminho que sai do porto leva os transeuntes para o Província com sua praça do palácio onde vizinham o Paço Municipal,
subúrbio da Penha e dali para as freguesias do sudoeste do termo, de testemunho do poder local - na época, é verdade, bastante cerceado -
São Bartolomeu de Pirajá até N.Sra. da Piedade de Matoim, na com o Palácio do Governo, a Casa da Moeda e o Tribunal da
enseada de Aratu. Quanto às ladeiras, até aproximadamente 1890, são Relação. Atravessando na direção norte a rua de Misericórdia, onde
aquelas mesmas, descritas por Vilhena no final do século XVIII (352), se erguia o orgulhoso prédio setecentista da Santa Casa, chegava-se ao
mas Salvador ganha naquela data a ladeira da Montanha, larga, Palácio Episcopal, sede do governo eclesiástico e à Igreja primacial da
espaçosa e menos íngreme que permite a passagem de pedestres e de Sé, fadada a desaparecer no século seguinte no Terreiro de Jesus por
carruagens, unindo assim mais facilmente o porto à cidade no alto. cinco edifícios, religiosos dos mais imponentes da cidade: a igreja dos
A cidade no alto Ignacianos com em anexo o seu espaçoso colégio; São Pedro dos
Clérigos e a Igreja da Ordem Terceira de São Domingos; o convento
Vai e vem incessante, que crescia consideravelmente em dois dos Franciscanos com sua Igreja dourada e a da Ordem Terceira da
momentos do dia: cedo pela manhã quando se “via passar negocian­ mesma denominação com sua curiosa fachada, ornada no mais puro
tes em rumo da cidade baixa, ganhadeiras, operários, um ou outro estilo plateresco.
reverendo, cabisbaixo, caminhando vagarosamente para os templos” Do Terreiro de Jesus e sempre em direção norte, uma vez
atravessados o largo do Pelourinho - enfeitado por sobrados de vários
(350) - Segundo Moema Parente AUGEL “ali moravam os negros livres e os
estivadores em miseráveis mansardos”. M.P. AUGEL, V isitantes estrangeiros... o p cit.. (353) - MARQUES, XAVIER, O Feiticeiro. Rio de Janeiro, Livraria Leste Ribeiro,
1922,61.
Livraria Econômlc^ 19^6,Ip,(?Ò2 - 104 ^e*r,,I^a ^ arrUar' In A Bahia de outrora. Bahia. (354) - Idem. p. 70. .
( 3 5 5 ) _ O elevador foi inaugurado em 1871. Havia sido construído sob a direção do
(352) - L. dosj Santos VILHENA, A Bahia no século X V I11. op. cit., v. I., negociante Comendador Antonio de Lacerda.

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perderia no século XX com a expansão do povoamento nessa nova
andarçs e pela Igreja do Rosário dos homens pretos - e as portas do direção.
Carmo - já na época derrubadas - subia-se ladeira acima à rua direita
que levava ao majestoso Convento do Carmo e à Igreja da Ordem Aliás, não é somente a freguesia da Vitória que guarda esse
Terceira do mesmo nome e para além, ao forte e Igreja de Santo caráter semi-rural e suburbana. Uma vez ultrapassadas as linhas que
Antônio Além do Carmo. Dali, e pelas ruas laterais perpendiculares limitam o bairro dos Aflitos, o bairro de Nazaré, o bairro do Barbalho
que vinham ter nas ruas direitas do Carmo e de Santo Antônio, as e o bairro da Soledade que coroam a cidade na parte da terra firme,
freguesias da Sé e de Santo Antônio comunicavam com a freguesia de abrem-se caminhos que levam para o Rio Vermelho, e para Brotas,
Santana do Sacramento com seus bairros da Saúde, de Nazaré, do em direção de Itapagipe também. Assim, duas outras freguesias, a da
Destêrro. da Palma, do Barbalho, da Liberdade e da Lapinha. Penha e de Brotas, geralmente englobadas entre as freguesias urbanas
Comunicação que se tornou mais fácil quando na segunda metade do de Salvador, ficam fora de seu perímetro (357). Freguesias que se
século XIX canalizou-se e aterrou-se o rio das Tripas, permitindo o caracterizam ou por atividades de caráter nitidamente rural e por uma
surgimento da rua da Vala em 1851, da ladeira da Independência, em população rala, como é o caso de Brotas, ou pelo contrário por uma
1854, e da Barroquinha em 1859. Eram assim supressos os pontilhôes, atividade económica industrial, portanto moderna, pois afora os
meios de comunicação da era colonial entre esta e aquela outra parte tradicionais estaleiros da Ribeira, e de vários Engenhos de açúcar, e
da cidade. Da freguesia de Santo Antônio Além do Carmo e do bairro na freguesia da Penha que elegem sede às fábricas têxteis e outras
da Soledade, saíam caminhos enladeirados como a ladeira de Água manufaturas de produtos alimentícios, de espirituosos e outros.
Brusca e da Soledade que levavam para as freguesias suburbanas da Criação de novas atividades que permitem a fixação naquelas
beira-mar dos Mares e de N. S. da Penha. paragens de uma mão-de-obra artesanal que pouco a pouco foi
expulsando os antigos residentes, ricos comerciantes que ali possuíam
Da praça do Palácio e em direção sul, a rua direita do Palácio suas casas de veraneio. Enquanto o bairro da Vitória se aristocratiza­
levava para o bairro de São Bento e para a freguesia de São Pedro o va, o bairro de Itapagipe se proletarizava, mas a história dessas
Velho em cuja rua direita vinham dar um sem número de ruas expulsões ou apropriações nos é ainda desconhecida. O fato é que a
. paralelas ou perpendiculares que abrigavam uma população cujas península de Itapagipe já se integra plenamente com a cidade de
residências vizinhavam com o convento dos Terezios, com o Convento Salvador, quando na segunda metade do século XIX, linhas de
de N.S. da Piedade dos frades Capuchinhos, com as Igrejas de São transportes terrestres e marítimos ligam a paróquia da Penha com as
Raimundo e do Rosário do João Pereira, com o Convento das Irmãs paróquias do centro da cidade.
Concepcionistas da Lapa de onde partiam ruas que ligavam essa parte
da cidade com os bairros da Palma, do Desterro, de Nazaré, do
Tororó e dos Barris. Continuando sempre na direção sul e uma vez Restam ainda as numerosas paróquias do termo, todas elas rurais
atravessando o Convento das Mercês, os caminhos levavam para o e tão distantes da urbe como na era colonial. Porém, os velhos atalhos
forte de São Pedro e para o bairro dos Aflitos onde, junto ao quartel plasmados pelos pés dos homens e dos animais, as velhas rotas dos
encontrava-se o tão cantado jardim público. Para além do forte de navegadores do Recôncavo continuam levando para a cidade homens
São Pedro e umá vez atravessada a praça do Campo Grande, e mercadorias, e o habitante desse primeiro Recôncavo próximo, se
começava a estrada da Vitória em cujos terrenos que a bordejavam sente tão soteropolitano quanto o morador do Paço ou de Santana.
erguiam-se as residências particulares dos ricos habitantes da cidade. Onde começava o Recôncavo, onde terminava a cidade? Mas
Segundo o testemunho de Kidder “lugar nenhum (existe) que rivalize voltemos para ela, para essa cidade de 5 freguesias, dita cidade alta
com o morro da Vitória. Ali “encontram-se os mais belos jardins da onde se encontrava a maior parte da população. Esta população
Bahia, as mais encantadoras alamedas, e as mais vastas extensões de morava na maior promiscuidade social pois lado a lado viviam
sombra. Ai se acham também as melhores casas, o melhor clima, a assalariados livres, forros e escravos, mestres artesãos e funcionários,
melhor água e a melhor sociedade” (356). Bairro novo no território de burgueses e nobres, ocupados com todo tipo de comércios e ativida­
uma freguesia das mais antigas da cidade de Salvador, a Vitória des, numa “babel de casas, igrejas, conventos, um caos de voelas,
guardava porém seu caráter de bairro suburbano e semi-rural que só praças, recantos e travessas, que sobem e descem e em cuja conexão,

(357) - Cf. p. 124-125 deste estudo.


(356)- D.P. KIDDER. Reminiscências de viagens, op. cii.. p. 38.

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só depois de algum tempo, pode o recém-chegado descobrir alguma transitava por ruas e passeios, praças e jardins. A maioria dos
ordem” (358). Promiscuidade social que evidenciavam os prédios contemporâneos, sobretudo ôs viajantes, considerava esses como mais
residenciais onde ao lado de modestas casas térreas de porta e janela, “belos”, e essas ruas como “largas calçadas e bem alinhadas” e mais
erguiam-se sobrados de dois ou mais andares ocupados por'uma ou “limpas”, do que as ruas e praças da cidade na beira do mar. Tudo
várias famílias e mesmo alguns palácios nobres como a casa dos 7 porém era relativo. Aqui como na cidade da Conceição da Praia e do
Candieiros, o Paço do Saldanha, o solar do Ferrão. Promiscuidade Pilar a conservação e limpeza das ruas era um eterno problema. Em
social que a documentação da época permite apreender, apesar de vão a Municipalidade multiplicava suas posturas que proibiam o
incompleta e pouco informativa. Em meados do século XIX na nia despejo nas ruas de águas sujas e sanitárias, o abandono de lixo em
direita da Ajuda, que faz parte do 219 quarteirão do curato da Sé praças públicas, o passeio de animais domésticos e outros, que às vezes
moram lado a lado, no mesmo prédio ou na mesma rua: crioulos morriam e apodreciam sobre as vias públicas (361). À cidade no alto
livres que exercem a profissão de costureira, de pedreiro de criado ou só era apenas menos suja. Segundo o testemunho de Wetherelí que
de criada; pardos livres que são ama de leite, lente aposentado, escreve na década dos 1840 “ a pavimentação das ruas é das piores:
professor de francês, alfaiate, sapateiro, marceneiro, estudante, save- enormes pedras intercaladas com pequenas, sem a menor regularida­
rista; africanos libertos que continuam exercendo suas atividades de de, por vezes juntas e apertadas, por outras quase soltas, tornam
ganhador ou de lavadeira, e finalmente os brancos que são emprega­ perigosa qualquer caminhada. Uma vez estragadas, as ruas parecem
dos públicos, estudantes, donos de venda, procuradores de causas, nunca ser consertadas, ficando asssim condenadas a se tornarem, com
caixeiros e negociantes (359). Diversidade social que é aliás corrobora­ o decorrer do tempo, quase intransitáveis” (362). A esta intolerável
da por um outro tipo de documento: o de qualificação de votantes. situação os poderes públicos procuravam trazer algum tipo de alívio,
Para o ano de 1862 temos para esse mesmo 219 quarteirão do curato ora encarregando a si próprios a tarefa da pavimentação, ora deixando-a
da Sé as seguintes profissões: advogados, médicos, artistas, músicos, às mãos dos particulares, isto é aos moradores da rua, Assim, apesar do
ourives, marcineiros, empregados públicos, sapateiros, saveristas, decreto de 1850 que teve como efeito a pavimentação das
charuteiros, negociantes, alfaiates, escrivães, pedreiros, caixeiros, principais artérias do Comércio até a calçada do Bonfim, a iniciativa
pintores, calafates, ferreiros etc (360). privada era ainda freqúentemente solicitada Porém, não há dúvida
Evidentemente, se trata de representantes de categorias sociais que a segunda metade do século trouxe neste particular notáveis
intermediárias da estratificação social mas de onde o elemento melhorias. Na cidade alta, nivela-se o Sodré e a ladeira de Santa
burguês, representado.pelos profissionais liberais e negociantes é em Teresa. É feito o nivelamento do Campo Grande. Concluem-se
número bastante significativo: dos setenta e seis votantes do 219 também as obras do arco sobre a rua da Vala que comunica o largo de
quarteirão, vinte e três pertencem a estas categorias profissionais. Nazaré com o do Barbalho ao mesmo tempo que inicia-se a
Caldeamento portanto racial mas também caldeamento social que macademização da rua da vala que se torna assim uma das principais
impede em que as freguesias possam ser socialmente definidas com artérias da cidade (363). Por volta de 1864 conclui-se o desaterxo do
precisãp, a partir da atividade económica e grau de riqueza de seus Campo da Pólvora, extinguindo-se assim um montículo existente e
habitantes. que servia de lugar de execução dos condenados à morte. Abre-se
também a rua que ligava o Retiro ao Engenho Conceição (364). No
No alto: ruas, praças e jardins da cidade ano de 1867 é embelezada a praça D. Izabel, frente à Igreja da Sé
Cinco anos mais tarde, em 1872 uma comissão de moradores
procedem ao nivelamento e calçamento do trecho da cidade entre
Toda essa população, tão ricamente colorida e contrastada, Santo Antônio da Mouraria e o largo de Nazaré e um ano mais tarde
dá-se a cobertura da estrada que liga a Soledade ao bairro de Quintas.
(358) - R. Ch. B.AVÉ-LALLEMANT. Viagem pelo Norte do Brasil no ano de 1859. Finalmente, ainda na década dos 1870 é inaugurada a nova Praça do
op. cit., v. I, p. 2 0 .
(359) - APEB. Seção Histórica Série Recenseamentos, Quadro da população do 2IÇ
Quarteirão do Curato da Sé (1855). Inspector Eduardo Firmino Silva. Esta documenta­
ção foi posta à nossa disposição por Ana Amélia Cabral Vieira do Nascimento a quem (361) - Cf. AMS Livro de posturas municipais -1829 -1859.
agradecemos. 362) - J. WETHERELL Brasil Apontamentos... op. cit.. p. 19,
(360) - APEB. Seção Histórica Presidência da Província Qualificação de Votantes. (363) - A. RUY, História política e administrativa... op. cit.. p. 553.
Maço n9 2808 (Curato da Sé - 1862). (364) - Idem, p. 582.

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Mercado à rua da Vala, frente à rua do Taboão, onde se vendiam Ruas sujas, ruas estreitas, pois a determinações que regulavam os
gêneros alimentícios e é terminada a ladeira da Montanha, nova via alinhamentos das casas nunca eram obedecidas (367). Cada um
ligando a cidade baixa à cidade alta. Melhorias sensíveis que tornam construía como bem lhe parecesse. Estreiteza das ruas que dificultava
os bairros mais acessíveis a seus moradores facilitando-lhes assim a a circulação, principalmente na cidade alta. Diz Wetherell que “a
circulação. impressão mais curiosa que a parte alta da cidade oferece a um
Cidade sem esgotos, o asseio, das ruas é um dos grandes estrangeiro é a de abandono. Quase ninguém, a não ser uns pretos,
problemas para os administradores da cidade, o Conselho municipal. circula pela cidade durante as horas mais quentes. Mas acrescenta
Quer fosse na cidade baixa quer na cidade alta as condições estão as “Hoje no entanto” a marcha do progresso” já chegou até aqui e
existem numerosos veículos: há duas linhas de bondes e muitos carros
piores possíveis. O costume de deixar no centro das ruas uma sarjeta
para o escoamento das águas pluviais, torna este canal, na prática de aluguel; bondes de mulas são usados para carregar sal, pedras,
diária, um veículo de despejo de águas sujasf’cujos eflúvios não são terra etc” (368). “Marcha do progresso” que inaugura no percurso
o pior castigo que o pedestre tem que suportar, já que ele se acha a Munganga (Coqueiros de Água de Meninos) até a baixa do Bonfim,
cada passo na possibilidade de ser enlameado e sujo” (365J. Com um serviço regular de “bonde de burro” em 1866, cujo concessionário
efeito, as sarjetas viviam imundas e só se achavam temporariamente é o empresário austríaco Rafael Ariani, substituído, em 1869, pelo
limpas quando desabavam os aguaceiros. Águas sujas às quais se deve serviço da linha férrea Urbana dos veículos Económicos. Integra-se
ainda acrescentar lixo e outras imundícies contra as quais dificilmente assim à cidade a antes longínqua freguesia da Penha. Com a
se lutava. Até 1856, eram os habitantes da cidade obrigados a inauguração, em 1871, da linha férrea Trilhos Centrais que vai da
limparem as ruas em que moravam e a observar as posturas que Barroquinha até as Sete Portas integra os terrenos conquistados pela
mandavam despejar, as imundícies no mar e o lixo em sítio da canalização e aterro do rio das Tripas. “Marcha do progresso” que
cidade, escolhido pela Câmara Municipal. Mas a partir desta data, e permite ainda o uso de uma locomotiva movida a vapor, de rodas de
como consequência do Cholera morbus que assolou a cicfade em 1855. grande grossura, forradas de borracha vulcanizada, qué sobe a
a lei provincial n- 588 autorizou o governo, por meio de arrematação íngreme ladeira da Conceição da Praia e percorre as ruas da cidade
ou administração, o controle do asseio da cidade. Assim a responsabi­ sem o auxílio de trilhos (369). Daí por diante os esforços para facilitar
lidade passou das mãos da administração local para as mãos da a circulação dentro do perímetro urbano ligando os bairros mais
administração provincial sem que por isso a situação melhorasse. afastados ao centro da cidade, tornaram-se constantes(370). Porém a
Onze anos mais tarde, falida a tentativa do governo provincial de circulação permanece difícil nas ruas, ruelas, becos e cantos do centro
manter a cidade limpa, através de contratos passados com particulares da cidade, e os habitantes têm que percorrer às vezes importantes
que disto se encarregassem, a incumbência volta de novo para a
Câmara Municipal. Seu serviço continuava porém deficiente e por (367) - AMS, Livro de Posturas Municipais 1829 - 1859: A'Postura 39 (foi 23) proibia as
volta de 1870 a chefatura de polícia dispendia mensalmente 20 contos edificações e alterações das frentes dos edifícios na cidade, nos subúrbios e nas povoações
de réis para “Fazer retirar das ruas e praças os depósitos de do distrito sem a devida licença da Câmara. Era demolida toda obra que ficasse fora do
alinhamento traçado pelà Câmara. Entendia-se “por alinhamento de qualquer casa. muroe
imundícies” (366). A formação, em 1873. de uma empresa encarrega­ cercado.tanto a projeção ou extensão da linha em seu comprimento.como aproporção que
da de construir esgotos nas freguesias da capital e a assinatura de um se deve guardar na largura da rua ou entrada..."pela postura 40 (foi 24) determinava-se que
contrato com o governo provincial permaneceu letra morta até 1881 as ruas e estradas a serem abertas deviam ter 6 braças ( 13m.20) de largura.
pois este contrato nunca conseguiu lograr a aprovação da Assembléia (368 -J. WETHERELL Brasil Apontamentos... op. cit., p. 59.
provincial. Assim, no ano de 1880,0 governo recorreu mais uma vez à (369) - BARBOSA Mons, Manoel de Àquino. Efemérides da Freguesia de N.
Senhora da Conceição da Praia, Salvador, Editora Beneditina Ltdâ, 1970, p. 130.
iniciativa privada assinando um contrato com vários cidadãos para o (370) - Por exemplo, em 1873, o governo provincial elabora regulamentos para as
serviço do asseio da cidade que mais uma vez não resolvia o empresas de trilhos desta Capital marcando os horários e preços das passagens nos
problema: era paliar a uma necessidade que exigia soluções mais veículos. Por outro lado, a lei do orçamento n9 1335 (1873) autorizava o governo a
drásticas. contratar com a Empresa dos TRILHOS CENTRAIS a construção de dois viadutos,
um sobre a estrada da Vala e outro sobre o Taboão para a construção de uma linha
férrea unindo os bairros da Lapa, Nazaré e Barbalho e daí as principais ruas da cidade
até o terminal da Barroquinha. Cf. AMARAL José Alvares do. Resumo cronológico e
(365) - J. WETH ERELL Brasil Apontamentos,., op. cit.. p. 19. noticioso da província da Bahia desde o seu descobrimento em 1500, 2* edição, Bahia,
(366) -A RUY. História política e administrativa... op. cit., p. 563. Imprensa OficiaL 1922,495 p.

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distâncias antes de chegar às grandes artérias servidas pelos transpor raro privilégio de dispor, par« seu convívio social, de praças, de largos,
tes coletivos de jardins e de vários passeios que o levavam para fora do ambiente
Ruas sujas, estreitas e também mal iluminadas, pelo menos até a asfixiado de sua rua.
adoção e generalização, da iluminação a gás carbónico em 1862. Até As praças primeiro. A primeira praça, a mais importante porque a
1826 a cidade não possuía iluminação. Somente em 1829, a Câmara mais antiga era a praça do Palácio. Tinha sido aberta em abril de
Municipal providenciou a instalação dos primeiros lam­ 1549, sobranceira à Ribeira chamada do Goes e nela, como vimos, se
piões alimentados com azeite de baleia (371). Tratava-se porém de achavam localizados os principais edifícios da administração e
uma iluminação de conservação difícil, cuja precariedade deixava às governo públicos. Praça onde se reunia a população da cidade em
escuras a maior parte das ruas da cidade: transitar durante a noite era ocasiões de festejos públicos, mas também em períodos de crises,
um ato de coragem pois não eram poucos os perigos que se deviam fossem elas políticas ou simplesmente reivindicatórias por melhores
enfrentar. Ruas sujas e mal calçadas, frequentadas por marginais de condições de vida (375). Masiestando no coração administrativo da
toda espécie na busca de meios para sobreviver, punham o cidadão cidade, era a praça passagem obrigatória para todos aqueles que
pacato constantemente em alerta: o roubo era o menor dos infortú­ vinham para o centro da cidade de modo que era constantemente
nios que lhe podia acontecer! animada pelas idas e voltas dos transeuntes. A segunda praça mais
E à falta de iluminação somava-se também a falta de um antiga era a do Terreiro de Jesus que nos primeiros anos da
policiamento adequado. Com efeito, somente em 1825 o governo da colonização havia sido a maior praça da cidade. Praça sobre a qual
iam dar uma multidão de ruas que lhe Ficavam transversais, era o
Província criou o Corpo de Polícia para servir na capital como
também no interior (372). Corpo de polícia cujos efetivos, porém, não ponto de afluência daqueles que vinham das freguesias de Santo
bastavam para eficientemente controlar a grande capital. Assim, no Antônio Além do Carmo e de Santana e dos bairros mais longínquos
ano de 1857, é criado um corpo auxiliar, que fora dissolvido em 1879, dos Barris, de Nazaré, do Barbalho e. da Solédade, principalmente
o da guarda urbana de Salvador (373). Mas nem por isso os após a abertura da rua da Vala. Rumo à direção sul, e uma vez
problemas de policiamento haviam sido resolvidos. As Falas dos atravessados o largo de São Bento e a rua direita de São Pedro, o
Presidentes da Província como também a renovação constante de transeunte ia ter na Praça da Piedade, dominada pelo convento dos
certas postura municipais (374), testemunham ter sido o policiamento frades capuchinhos. Seguindo sempre o rumo sul, e depois de
uma constantes nas preocupações dos poderes públicos. atravessada a rua direita das Mercês, quase em frente do Forte de São
Pedro, o soteropolitano descobria a beleza do Campo Grande.
Imagem um pouco triste desta cidade de ruas mal pavimentadas, Largos e campos vinham completar os logradouros públicos da
sujas, mal iluminadas e mal policiadas que é preciso agora colorir pòr cidade no alto: Largo do Accioli, Largo dos Aflitos, Largo da Vitória,
uma visão mais sorridente e alegre. Pois se ao sair de casa o baiano do Largo da Graça, Largo da Lapa, Largo da Palma, Campo da Pólvora,
século XIX enfrentava mil e um empecilhos, tinha por outro lado o Largo de Nazaré, Largo do Barbalho, Largo da Saúde, Largo da
Soledade, Largo do Chinelo, Largo de Santo Antônio, Largo do
(371) -A. RUY, História Política e Administrativa... op. cit., p. 475-476. Em 1854, um Pelourinho. Dezoito relativamente amplos espaços de congraçamento
decreto da Assembleia provincial propunha a substituição da iluminação pública com público que eram completados pela Praça Conde dos Arcos e pelo
azeite de baleia, pela iluminação a gás carbónico. Em 1861 era inaugurada a nova Largo da Preguiça na parte da cidade baixa, sem esquecer os Largos
iluminação na cidade baixa primeiro, e depois na cidade alta, através de 1475
combustores. Cf. A. RUY, História Política e Administrativa op. cit., p. 582. do Pilar, o do Noviciado e os afastados largos e praças da freguesia
7 Já em 1812 fôra criada uma companhia de voluntários e corpo de anilharia dos Mares e da Penha (376)
de milicianos. Foi porém, a lei provincial n° 29 (1835) que criou o corpo de polícia.
(373) - Lei n° 605 criando a guarda urbana da Capital. Esta foi dissolvida pela lei nQ Praças, largos e campos onde a, população cruzava diariamente
1924(1879). F
(374) - Cf. AMS. Livro de posturas municipais 1829-1859. Há renovação constante (375) - Por exemplo, os motins da população contra a carestia dos gêneros
das posturas que visam disciplinar as atividades da população de Salvador. Uma das alimentícios que se verificaram em 1858 (fevereiro-março) e 1878 (março).
posturas cuja renovação é sempre constante é a que se refere à obrigação dos escravos (376) 7- Cf. A.P.E.B., Biblioteca. PLANTA DA CIDADE DE SÃO SALVADOR,
possuírem um bilhete assinado pelos seus senhores se saíssem de casa à noite (postura Capital do Estado Federado da Bahia. Organizada pelo Engenheiro Adolfo Morales de
134 de 6 de julho de 1850) fls. 102v-103). los Rios (1894), Editada por Ramon Alargon.

184 185
quer seja em simples passeios, ou por necessidade de comprar ou (379) . Jardim que segundo Martius era formado por “alamedas de
vender mercadorias. Pois além de simples pontos de reunião, vários laranjeiras, limoeiros, jambeiros, mangueiras e árvores do pão, decisas
desses logradouros eram pontos de mercado. Assim, por volta de 1831 e aparadas arcas de pitangueiras, além de muitas plantas em filas
multicores com um pavilhão construído com arte e em estilo de
eram praças para o mercâdo público: o campo lateral da Igreja da
templo grego, de onde se descortina maravilhosa vista, tendo-se de
Soledade, o campo de Santo Antônio na frente da fortaleza, o Largo
um lado a baia e suas numerosas ilhas e do outro o oceano bravio”
da Saúde; o Campo da Pólvora, o Campo da. Igreja da Vitória, o
(380) . Mais tarde, lá pelo fim do século, Lamberg descreve o passeio
Largo dar Pelourinho, o Largo de São Bento, o Largo da Cabeça’, a
público como “um parque magnífico, com árvores seculares, cuja
Praça da Casa do Comércio e o. Caes Dourado. Nessas praças
beleza, porém, era perturbada por estátuas pintadas de tamanho
vendia-se todo tipo de gêneros, com exceção do peixe e fatos de gado
natural, de mau gosto e sem arte” (38l). Jardim que na verdade era
cuja venda era circunscrita a campo fronteiro aos currais, na t*raça dos
Quinze Mistérios, na Praça dc Guadalupe, na Praça de São Bento, no pouco frequentado se acreditarmos o testemunho dado por Wetherell
(382). Não resta dúvida que poucos deviam ser aqueles que podiam,
Largo de S. Raimundo, na Rua das Pedreiras e, finalmente, frente aos
fora de condições excepcionais, gozar este tipo de privilégio.
Arcos de Santa Bárbara. Eram ainda-^destinados como praças de
mercado publico, os largos das Igrejas do Pilar e do Noviciado (3,7.7). Restava porém uma outra possibilidade. Esta parece ter sido
melhor partilhada por toda a população: era o uso difundido dos
Isto para o comércio ambulante e móvel. Quanto às quitandas piqueniques que levava importantes grupos de habitantes fora da
estas se localizavam na ladeira da Rua do Paço, na baixa dos cidade. Vários eram os roteiros. Os que ficavam mais próximos das
Sapateiros, na Rua das Laranjeiras, e na Rua da Piedade que ia para áreas urbanizadas eram os do Dique e da Vitória. No testemunho de
o largo de São Raimundo. Segundo determinação municipal “todas as F. Denis o dique era “um verdadeiro parque de laranjeiras, limoeiros,
mais praças, largos, cais e ruas, que não vão indicados, ficarão sempre mangueiras, coqueiros, elevando-se acima das mimosas e das pitan­
livre e desimpedidos para o trânsito e serviço público.” (378). gueiras com folhas de mirta e no meio do qual goza-se da vista de um
Resolução que aliás não impedia que os vendedores ambulantes lago - o célebre Dique - que bordeia a cidade em quase toda a sua
prolongassem até as ruas e casas dos habitantes da cidade essa extensão” (383). É no dique também que Xavier Marques campeia o
efervescência de comerciar que caracterizava a cidade. Por outro lado famoso piquenique da família Boto no seu romance O Feiticeiro .
a promiscuidade entre os pontos de venda localizados nas áreas Te'rra praticamente virgem, vizinhava com as roças da freguesia de N.
residenciais, dificultava seguramente a tarefa de mantê-las limpas e S. das Brotas e de lá se abriam os caminhos que levavam ao Matatu,
asseadas. Prolongadas estiagens multiplicavam certamente por mil os ao Cabula, para o Rio Vermelho também.
problemas postos pelas precárias condições sanitárias. Mas o povo
vivia, se comunicava e quiçá, se esquecia das duras condições da vida A Vitória é, no princípio do século XIX, ignorada (384).
diana e cada um, nesse mundo tão pouco asseptizado socialmente Ferdinand Denis e Tollenare são os primeiros a mencioná-la (385)
encontrava a própria razão de sua existência. Alegria e boa camarada­
( 37 9 ) _ BEYER, Gustav. Ligeiras notas de viagem do Rio de Janeiro à capitania de São
gem explodiam no meio de tantas condições adversas. Vivia-se, Paulo no Brasil, no verão de 1813, com algumas noticias sobre a cidade da Bahia e Ilha
mesmo se esse viver era um deixar ser vivido, na incerteza do dia dè Tristão da Cunha, entre o Cabo e o Brasil e que há pouco foi ocupada, ^ d u ç a c d e sueco
amanhã. pelo Dr. Alberto Lofgren. In Revista do Instituto Histonco e Geográfico de Sao Paulo
(12): 275-311, 1907, p. 275. . J D ... . ,a
Um amanhã que podia conduzí-lo - por que não? - a respirar um (380) - SPIX Von, e MARTIUS von. Através da Bahia., op. cit., p. 68.
ar mais puro, mais saudável no tão cantado jardim da cidade, o (381) - LAMBERG, Maurício. O Brasil. A terra a gente, Rio de Janeiro,
Passeio Público que fazia a admiração dos viajantes estrangeiros. Já
Ty(382)a- WETHERELL }. Brasil. Apontamentos... op. cit., p. 144: “os jardins têm sido
em 1813 o viajante sueco Beyer dizia que o “o viajante é agradavel­ ultimamente muito melhorados e vêm sendo cuidados com muito cannho sendo agora
mente surpreendido por um belo, extenso e bem tratado jardim regularmente tratados. Fico porém admiradíssimo de ver como sao pouco frequentados
público, que de noite costuma estar caprichosamente iluminado” pelos seus habitantes...”.
(3 8 3 ) _ DENIS, F. Lettresfamilières... op. cit., o. 18.
(384) - Nem Luis dos Santos VILHENA, nem Thomas LINDLEY se referem a esse
(377) - & M S L ivro de p o sturas m unicipais 1829-1859 fols 91-93v arrabalde que se tornaria em importante bairro residencial a partir da década de 1830.
(378) - Idem, foi. 93v. (385) - DENIS, F. Lettres familières... op. cit., p. 18: fala da freguesia da í on

186 187
No dizer de Kidder lugar nenhum existia que rivalizasse com o morro onde ao lado de seus encantos a cidade tinha também servidões das
da Vitória, pois ali “encontram-se os mais belos jardins da Bahia as quais dificilmente escapava.
mais encantadoras alamedas e as mais vastas extensões de sombra”
(386). De acesso relativamente fácil, para ela se dirigiam, em dias CASAS E ESTILO S DE VIDA
feriados e festivos, os que procuravam, nos campos, folguedos
diferentes e mais saudáveis. As casas: tetos de construções precárias
Mas áreas também mais distantes eram procuradas para as Praças, ruas, becos e travessas, ladeiras inevitáveis davam ao
excursões dos baianos. Ia-se, por exemplo, ao Bonfim, de barco, como baiano os meios de circular, de se comunicar trocando gestos e
Lindley, em 1802, ou de saveiro, como Kidder em 1839. Ambos palavras. Terminadàs porém as tarefas do dia, ele voltava para sua
Fizeram mais ou menos o mesmo percurso e ambos preferiram voltar casa, para seu quarto ou para seu cômodo. Mas em que tipo de casas
para a cidade por via terrestre, o primeiro pelo caminho da praia; o vivia o baiano do século XIX?
segundo subindo a ladeira que passava frente ao Convento da
Soledade (387). Com a introdução, a partir da segunda metade do Pelo que resta das construções residenciais oitocentistas, é
século XIX, dos transportes coletivos, alcançava-se o Bonfim mais possível ver o contraste que existe entre estas e os edifícios públicos e
facilmente. Xavier Marques falando da festa do Bonfim nos deixou religiosos, cuja forma rica e opulenta domina ainda de alto certas
uma descrição encantadora: “os apitos dos condutores de bondes partes da cidade: contraste pela falta de originalidade e de variedade
trilavam em baixo na estação. Aos carros vazios que partiam nos modelos construídos, tristemente alinhados lado a lado.
sucediam-se novos comboios, trazendo da cidade mais gente portado­
ra de cera, a ouvir missa e pagar promessa. A devoção não lhes Já Rugendas, nos idos de 1820, limitava suas observações a um
reprimia o grito de folgar. Eram raparigas da plebe, de saia e torço, comentário discreto “as casas têm em geral, três quartos e mesmo
argolões de perchibeque nas orelhas, negras tilitantes de cordões de cinco andares, mas não comportam senão três ou quatro janelas nas
ouro e figas de prata: cafajestes, rufiões, malandros chasquedores que fachadas”:,(389)-. Mouchez atribuía a altura dos prédios à falta de
levavam ro sítio sagrado um tanto de alegria e salacidade pagã” espaço, o que podia ser verdade nas freguesias da Conceição e do
(388). Pilar, onde aliás os prédios elevados deviam ser mais numerosos do
que na cidade no alto (390). “Casas altas e ruas estreitas, onde não
Ia-se ainda para São Lázaro, para o Matatu e para o Cabula, Rio circula, senão um ar quente, pesado e carregado de miasmas
Vermelho e Nazaré, todos sítios ainda agrestes onde a flora tropical nauseabundos” (3911). Por volta de 1868, Canstatt acrescentava que “a
exuberante crescia livre e desimpedida, oferecendo assim esconderijos construção de casas não oferece nenhuma variedade notável, são
aos amores nascentes e aos cultos africanos oprimidos. Cinturão verde todas simples e feias, raramente uma casa particular se distingue no
da cidade, que nela penetrava insinuando-se entre as casas construí­ estilo da vizinha e a uniformidade das ruas só é atenuada pela
das nas encostas dos muros, entre as pedras toscas que cobriam as interrupção das filas de casas por alguma Igreja ou Convento” (392).
ruas e as praças na procura de manter um equilíbrio ecológico já
Esta uniformidade no estilo arquitetônico tinha ainda o inconve­
seriamente ameaçado. Assim o baiano vivia, na sua vida de dia a dia,
niente de produzir moradias pouco arejadas e pouco adaptadas ao
essa dialética entre a natureza exuberante e devoradora que tudo
queria dominar e a obra do homem arrogante, mas frágil. Uma vida clima tropical quente e úmido. Wetherell achava “extraordinário que

(389) - RUGENDAS, João Maurício. Viagem pitoresca através do Brasil. São Paulo.
como sendo “erguida sobre um risonho promontório”. Por sua vez L.F. de TOLLENA-
RE em suas Notas Dominicais... op. cit., p. 297 nos diz que ali residiu numa casinha Livraria Martins Editora, 1954. p. 52.
(390) - Por causa da exiguidade da área constituída por uma estreita faixa de terras,
humilde e duvida “que se possa encontrar algo mais interessante do que os vales
por um lado limitadas pelo mar e por outro, pelo horst sobre o qual se edificou a
românticos que se avizinham da Vitória”
cidade. Tratava-se também da parte por excelência comercial, onde os prédios serviam
(386) - D.P. KIDDER. Reminiscências de viagem... op. cit., p. 38. de entrepostos de mercadorias.
(387) - LINDLEY, Th Narrativa de uma viagem... op. cit., p. 99 e. KIDDER, (391) - A.E.B.MOUCHEZ. Les côtes du Brêsil... op. cit.. p. 46.
D.P. Reminiscências de viagens... op. cit., p. 52. (392) - CANSTATT, Oscar. Brasil. A terra e a gente. 1871 Rio de Janeiro. Pongetti.
(388) - MARQUES XAVIER, O Feiticeiro... op. cit., p. 340. 1954, p. 251-252.

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num país tropical como este seja tão reduzido o número de casas com Desde os primeiros tempos da urbanização do sítio escolhido, as
varandas” e acrescentava “as moradias têm freqúentemente o que informações abundam sobre os desmoronamentos que atingem partes
aqui chamam varandas: trata-se de uma sala sobre o comprido da da cidade. Na sua ânsia de construir, aproveitando de todo o espaço
casa, quase que inteiramente perfurada por janelas, mas isto de fato disponível, o baiano destruiu o equilíbrio ecológico dos morros sobre
não passa de uma simples galena que faz parte da casa. Os balcões do os quais plantou sua cidade. Tendo ocupado primeiro os estreitos
primeiro andar são os lugares procurados para despreguiçar, em dias tabuleiros desses morros, pouco a pouco as casas foram se alastrando
de procissão ou de festa importante, esses balcões são cobertos com nas encostas, destriiindo assim a vegetação que protegia. Nessa
fazendas de damasco e se tiver alguma coisa para ver, neles se ocupação inconsiderada do espaço, sem as necessárias obras de
apinham as beldades e as elegantes da cidade. Também encontram-se sustentação, as construções ficavam a mercê dos caprichos da
alguns balcões nos quais existem venezianas... com dobradiças na natureza que assim se vingava. Longo é o rosário das catástrofes do
parte de cima e projetando-se ligeiramente sobre a balaustrada do século XIX. A memória histórica as registrou quase todas.
balcão. Os lados são de madeira e levam uma pequena abertura, em Os meses de junho e julho de 1813 foram terríveis. Após 45 dias
geral em forma de cruz, que serve comó vigia...” (393). de chuvas ininterruptas, em 14 de julho há desmoronamentos sobre
É evidente que temos aqui; uma descrição de casas grandes de quase toda a face da cidade voltada para o mar: desmoronamentos na
vários andares, casas geralmente rotuladas de sobrado que tanto Cruz do Pascoal, caindo a terra sobre o trapiche denominado
podiam se constituir numa moradia de uma só família, como abrigar Barnabé; desmoronamentos na ladeira da Misericórdia, Conceição e
várias famílias ou mesmo pessoas isoladas. Mas ao lado dos sobrados Gamboa que matam e ferem muitas pessoas. Tamanho foi o receio de
não era pequeno o número de casas térreas de porta e janela ou, no ver desabar toda a parte da cidade que olha para o mar que durante
máximo, de duas janelas na frente da rua. Casas que se alinhavam oito dias a cidade do beira-mar ficou paralisada. Até o expediente da
uma perto a outra!, nunca deixando espaço entre elas, ocupando lotes Alfândega cessou. Quinze dias mais tarde novos desmoronamentos
geralmente mais compridos do que largos, o que dava fachadas sobre ocorreram, desta vez perto do Forte de Santo Antônio Além do
as ruajs acanhadas e estreitas. Assim no século XIX toda a superfície do Carmo. Foi tão grande o medo da população e do governo que o
espaço urbano das freguesias centrais é inteiramente ocupado por então governante, o Conde dos Arcos, chegou até conceber um plano
habitações ou por restos delas (394). para mudar a cidade, fazendo uma nova no trecho compreendido
entre o Noviciado (Calaçada) até Itapagipe, onde o terreno é plano.
Os materiais utilizados para tais construções são os mais diversos Trinta anos mais tarde (1843) novas desagregações de terras são
possíveis. Com efeito há casa construídas de pedra e cal, que vizinham verificadas, novas vidas são ceifadas, e os prejuízos registrados são
com casas em que se empregavam os tijolos ou mesmo o simples consideráveis. A queda de um forte temporal em 1862 causa estragos
adobo de taipa. Há casas térreas assoalhadas de madeira, há outras de em terra e sinistros nos ancoradores dos navios. É considerado pelos
chão batido, mas quase todas elas são cobertas por telhados de contemporâneos como o mais forte nos últimos dez anos. Em 1871, e
telhas-vermelhas, que o Recôncavo de iMaragogipe produz com sempre em consequência das chuvas, desmoronou-se a parte central
abundância. Pintadas geralmente de várias cores, com suas janelas de da Ladeira da Conceição da Praia ofendendo algumas casas na
madeira de pintura também colorida que uma postura municipal Preguiça. A história registra ainda dois desmoronamentos importan­
obriga abrirem-se para dentro de casa, como aliás as próprias portas tes: o que ocorreu em 1873 na Fonte Nova, causando a morte de 7
(395), as residências dos baianos, ricos ou pobres, apresentam um ar pessoas e o de 1880 que, apesar das obras de sustentação das encostas
de solidez, infelizmente desmentida pelos fatos. Com efeito a pereni­ voltadas para o mar, executadas pelos governos Provinciais, destroem
dade das construções depende da morfologia do terreno e do tempo várias casas, inclusive na ladeira da Praia (396). A esta lista já
que faz, dois elementos da natureza sempre onipresentes na vida dos comprida de calamidades poderíamos, mentalmente, acrescentar
soteropolitanos. Depende também das ações dos homens. todos os desmoronamentos que por ter atingido áreas de habitações
humildes, afastadas da cidade, a história não registra. Seja como for a
(393) - WETHEREfL, J. Brasil. Apontamentos... op. cit., p. 32-33.
(394) - São numerosas as posturas que se referem a terrenos sobre os quais erigem-se
ainda ruínas de edificações Cf. AMS. Livro depostufas municipais: 1829-1859: posturas (396) - MATTOSO, Katia M. de Queirós. Bahia: Cronologia 1750-1930. (trabalho
n9* 39 (foi. 23) e 49 (foi. 29). inédito, 177 p. datilografadas). Cronologia estabelecida com base na bibliografia
(395) - AMS Livro de posturas municipais 1829-1859: postura 43 fols. 26-27. historiográfica tradicional da Bahia no período considerado.

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angústia do cidadão soteropolitano não devia ser diferente da de seu Em 22 de junho de 1871 é organizada uma associação sob o nome
irmão do Recôncavo, marinheiro ou lavrador: todos olhavam para os de “voluntários contra os incêndios”. Essa associação é composta por
céus e deles dependia sua felicidade ou sua desgraça. Mas fortemente pessoas que pertencem à classe mercantil sob a direção ativa de duas
enraizados sobre o pedaço de terra, símbolo de sua fixação na cidade, Companhias de Seguros contra o fogo, Aliança e Interesse Público. De
obstinadamente continuavam a reerguer sobre os escombros suas iniciativa particular essa associação reflete a atitude governamental
casas destruídas na esperança de que a má sorte pudesse definitiva- da época que prefere deixar nas mãos dos particulares todos os
mente ser conjurada. serviços que deviam ser da sua competência. A constituição porém
dessa organizàção não possui meios para prevenir a ação do fogo. No
Frágeis e precárias as construções o eram também pela ação dos ano seguinte (1872) dois incêndios destroem um prédio fronteiro ao
homens: o incêndio era um outro flagelo e angústia permanente. Aqui Teatro Público onde estava estabelecida a Sociedade Recreativa e, à
também a lista é comprida. Em junho de 1833 o fogo destrói na rua das Princezas, o prédio onde funcionava o Banido do Justino. Para
freguesia da Sé atrás da Igreja Catedral uma série de casas. As chamas o ano| de 1876, dão-se notícias de mais sete incêndios: prédios e lojas
consomem o precioso acervo do tabelionato de Antônio Lopes de da cidade alta (freguesia de São Pedro) e da cidade baixa (freguesia
Miranda. Em plena revolta da Sabinada (1837) quarteirões inteiros da da Conceição da Praia) são completamente destruídos. A mesma
cidade são destruídos; no Duarte, no Beco do Mocambinho, no Largo ocorrência, se repete nos anos seguintes de 1877 e 1878: incêndio no
da Piedade, na Rua Nova do Comércio, em Santa Bárbara, na trapiche de piaçava à Rua das Pedreiras, freguesia da Conceição, de
Ladeira da Conceição da Praia e na Preguiça. A 3 de novembro de propriedade do coronel Pedroso de Albuquerque; incêndio na
1848 o fogo abrasa a cidade baixa, chegando a ameaçar o próprio mercearia dos negociantes Gavazza e Irmão, à Rua da Alfândega
prédio da Alfândega. Para debelá-lo ajudaram até tripulantes de (ambos em 1877); incêndio do Banco da Bahia no ano seguinte.
navios franceses e ingleses ancorados no porto. Pela primeira vez foi Finalmente, o último incêndio de que se tem notícia é o que destrói
usada uma bomba contra incêndios adquirida na Inglaterra pela um armazém no cais Dourado (397).
Associação Comercial. No ano seguinte, novo incêndio destrói na
freguesia do Pilar o trapiche Quarta Prensa. Outro trapiche é atingido Sobre essa longa conjuntura de incêndios, alguns comentários
pelo fogo no ano de 1850. destruindo duas mil caixas de a,çúcar ali podem ser feitos. Primeiro, nota-se que a maior frequência do
armazenadas. Os trapiches continuam desfrutando de má sorte pois fenômeno ocorre na área comercial da cidade, mais vulnerável pela
em 1856, duas grandes propriedade alfandegadas, o Quirinoe o Pilar multidão de pessoas que trafegam e pela estreiteza das ruas que
são destruídas, consumindo-se todos os gêneros ali existentes e sempre ficam apinhadas de gente de toda espécie. Segundo, os
criando graves prejuízos a seus proprietários; em 1857 é também incêndios que abrangem áreas mais extensas ocorreram sempre em
consumido pelas chamas o trapiche Carena. Em 1859, e em pleno períodos de crises sociais: em 1837 (Sabinada), em 1856/57 (Sequelas
verão, é o prédio onde funcionava o Banco da Bahia que pega fogo. do Cholera Mórbits): em 1877/78 quando a crise de abastecimento e
Uma ação rápida e bem coordenada permite que sejam salvos seus carestia da vida provoca um movimento popular bastante sério.
papéis e valores. Sintomaticamente, são lojas de comestíveis ou armazéns de gêneros
alimentícios os mais atingidos. Seriam então todos eles incêndios
Até 1871 o combate aos incêndios depende da colaboração dos criminosos? Eis um belo tema de investigação, mas por enquanto é
habitantes da cidade. Esta colaboração nem sempre benévola, é difícil de responder afirmativamente a esta pergunta.
disciplinada por uma postura municipal: declarando-se na área
Construídas precariamente, ameaçadas pelo fogo e pelos desaba­
residencial um incêndio, os habitantes das casas vizinhas (15 casas de
cada lado do prédio onde se deflagrou o incêndio e as trinta casas que mentos, as casas dos baianos não deixam de ser verdadeiros lares que
ficam na frente do outro lado da rua) são obrigados a abandonar escondem abastança e miséria, alegrias e tristezas.
imediatamente suas residências e prestar socorros. As pessoas que
possuem poços de água particular são obrigadas a deixar suas casas As casa: vida no interior
abertas para que a água possa ser utilizada na extinção do incêndio.
Severas multas são aplicadas aos que não obedecem às determinações Casas assobradadas ou casas térreas de porta e janelas, tinham
da municipalidade.
(397) - Idem.

192 193
quase elas todas um corredor estreito e obscuro que da porta da rua Quando a casa tinha mais de um andar o primeiro e segundo
levava para o pátio interno, o indispensável quintal, cujas dimensões andar eram sempre ocupados por famílias da mesma categoria
variavam em função da importância da construção. A soma de vários sócio-econômica. Os útimos andares, “atingíveis por escadas íngremes
quintais constituía assim, no meio de uma quadra, um espaço mais ou e imensas” eram preferidos por famílias mais pobres~ou por estudan­
menos verde o qual ia dar a parte mais íntima da casa, a cozinha. tes.
Plantados, ou construídos com dependências puxadas fora, esse
quintais eram com frequência o palco da vida íntima dos moradores .Quem morava nas sobrelojas das casas não “era lá grande
que por eles vizinhavam. Em “cenas da vida baiana” temos a única, personagem no rol das coisas” a menos que fosse o dono do negócio.
mas rica, descrição dessa vida social, ignora\ia pelos que passavam Mas mesmo assim, tais moradores não eram considerados como
pela porta da rua. Uma vida que ficava exposta aos olhares “gente de primeira”. O mesmo acontecia para as famílias que
impiedosos dos vizinhos que, na casa dos outros, contemplavam suas moravam numa loja ou num pavimento térreo: eram considerados de
próprias alegrias e misérias: ‘segunda linha” (400).
“Lá se foram já muitos meses que morava eu em certa casa muito I

mal construída sem ar e sem luz,e com todos aqueles incómodos que As famílias abastadas, grandes comerciantes, grandes proprietá­
tão facilmente olham-se ainda em muitas casas por falta de boa rios rurais e alguns profissionais liberais privilegiados habitavam
construção, e do nenhum cumprimento das leis da Câmara a este sobrados de vários andares e as suas famílias ocupavam todos os
respeito - Causa admirável! - Dir-se-ia que muitas casas foram feitas pavimentos. Os bairros de São Pedro e da Vitória eram lugares de sua
para homens de outra espécie da nossa, para se não ocuparem de predileção.
satisfazer certas necessidades indispensáveis a toda a humanidade, e
que devem ser tomadas em consideração, não só por quem edifica; Quanto à população trabalhadora que vivia sempre na incerteza
como pela autoridade local em contemplação de saúde: pública - se é do dia de amanhã, ela se acomodava comó podia em casas térreas, de
que a saúde pública mereça de qualquer Câmara Municipal o maior porta e janela, de um a dois cômodos de chão batido, raramente
desvelo possível” (398). assoalhado. A depender da categoria social a que pertenciam,
possuíam móveis mais ou menos numerosos feitos de madeira de lei
Aliás, essa deficiências internas que apresentavam as habitações ou de madeira branca.
de então não escapavam aos mais argutos dos viajantes que passaram
por Salvador. De Maria Graham (1821-22) à Maurício Lamberg A gente pobre geralmente se contentava de um ou dois catres,
(1885-1897) todos são unânimes em apontar os desconfortos e a falta uma mesa, algumas cadeiras ou bancos, um ou dois baús nos quais
de higiene das casas baianas: “Das portas abertas das casas emanava eram guardadas as roupas de uso próprio e as da casa. Nas residências
uma espécie de bafio que, como tive a ocasião de observar, se faz de pessoas medianamente remediadas os móveis eram mais numerosos
sentir em móveis abandonados e que se origina da estagnação do ar e diversificados. Tomemos um exemplo do inventário dç Domingos
muito carregado de umidade...” (399).
Joaquim Alves, dono de uma ferraria que residia ao Largo da Piedade
O grosso da classe média morava em casas comuns de duas óu (401): Domingos José possuía duas mesas de jacarandá, um sofá, uma
três janelas e uma porta “Casas com divisões comuns e denominações mesa* redonda, 24 cadeiras, uma cama, outra cama de jacarandá, um
para cada cômodo: sala de visita, quarto da sala, quarto do meio, guarda-roupa e um aparador. Quanto às residências dos ricos, estas
quarto de dentro ou de sala de jantar, sala de jantar, copa (quando eram adornadas com móveis de jacarandá ou de vinhático, com
havia) cozinha e dependências (quando existiam) dentro de casa lustres de louça, com grandes espelhos e com oratórios com suas
confundidas com a cozinha”. Não havia água encanada nem esgotos é imagens aparelhadas de ouro e prata. Era também nas residências das
os banhos eram tomados de caneco numa bacia.
(400) —VIÀNNA, Hildegariíes. A Bahia já fo i assim (Crónicas de Costumes), Salvador,
(398) - A. RON Zl Cena da vida baiana. As minhas amáveis vizinhas quando eu morava Editora Itapuã, 1973, p. 1-6. Admirável costumbrista, Hildegardes Vianna merece o
a rua.. In SALLES, David (Organização e introdução) Primeiras manifestações da titulo de historiadora social pelo vigor e sensibilidade de seus retratos que Talam no
ficção na Bahia Salvador, UFBa., 1973, (Coleção Estudos Baianos nç 7) p. 103. mais profundo de nós mesmos.
(399) - O. CANSTTAT, O Brasil., op. cit., p. 248-249. (401) - APEB Seção Jurídica Série inventários, ano 1871, inventário-maço 9/7179.

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pessoas abastadas e ricas que se encontravam o maior número de oportunidade de frequentar os lares baianos e os que o fizeram
cômodos com destinação bem precisa como sala de visitas e sala de emitiram às vezes julgamentos apressados e pouco lisonjeiros. É o
jantar. A primeira servia para receber as visitas de cerimónia, a caso por exemplo de Maria Graham que achou a mulher baiana
segunda constituía o lugar de reunião para a família e seus amigos muito desleixada; andando no seu interior despenteada e semi-nua e
mais chegados que gozavam do privilégio de dividir a intimidade pouco propensa a exercer sua função de donatrde-casa, apesar de
familiar com os donos da casa. Mas todas as casas, das mais humildes ajudada nesses afazeres por um exército de escravos. Segundo sempre
às mais ricas, reservavam sempre um cômodo para receber suas visitas o mesmo testemunho as mulheres da época recebiam uma educação
pois um alto grau de sociabilidade caracterizava os habitantes da rudimentar que se resumia na aprendizagem da costura ou do
cidade de Salvador. bordado, no toque do violão ou do piano e raramente na aprendiza-,
gem de uma língua estrangeira (403). O fato é que as mulheres das
As famílias baianas eram geralmente numerosas. Compunham-se altas e médias categorias sociais da cidade viviam reclusas nas suas
geralmente do chefe da família, de sua mulher e de seus filhos. casas, saindo somente para ir à Igreja ou para freqiientar reuniões
Quanto mais abastada e rica era a família mais filhos ela tinha (402). sociais nas quais iam acompanhadas de seus pais e maridos. Essa vida
Essa família nuclear era geralmente dilatada pelo costume que se de reclusa da mulher baiana, das categorias economicamente mais
tinha de amparar na sua velhice ou em caso de necessidade os pais e favorecidas, não passou despercebida pela maioria dos viajantes
mães, as irmãs solteiras ou os parentes empobrecidos. Freqiientemen- estrangeiros que das mulheres baianas só conheceram as humildes
te também filhos ou filhas recém-casados continuavam morando sob ganhadeiras que corriam as ruas para vender suas mercadorias. O
o teto pátrio até que pudessem voar pelos seus próprios meios. Aos francês Diigrivel, por exemplo, só viu passar nas ruas mulheres
parentes que transformavam assim as famílias nucleares em famílias cobertas da cabeça aos pés - as famosas “caponas” mensageiras' de
extensivas, não era raro virem se ajuntar agregados que nãc negócios ilícitos e reprováveis pela moral da época (404) - que lhe
pertenciam à categoria de parentes. Tratava-se, geralmente de antigos disseram ser “mulheres de pouco”. Wetherell, que morou na Bahia
escravos alforriados ou de empregados no comércio, quando o chefe por muitos anos, escreveu que “as senhoras não costumam sair para
de família era comerciante, ou simplesmente de amigos pobres, mal compras, escolhendo o que desejam entre a mercadoria oferecida
sucedidos na vida que encontravam num lar amigo o amparo e o calor pelos muitos vendedores ambulantes que de porta em porta exibem”
humano que a vida lhes havia negado construir com seus próprios ante o olhar entusiasmado das belas senhoras, as lindas futilidades da
meios. Assim constituída, a família extensiva se completava ainda França. E Canstatt dez anos mais tarde confessava que não teve a
pelos escravos cujo número era bastante variável, ou por domésticos, oportunidade de conhecer as mulheres residentes na cidade “uma vez
quando, a partir de meados do século a domesticidade começa ser que elas nunca se apresentam na rua como é de costumç na
lentamente substituída por uma nova categoria de empregados livres, Alemanha, mostrando-se no máximo e excepcionalmente na varanda
na sua maioria ex-escravos. da casa” (405). Reclusão que, aliás, é perfeitamente compreensível se
levarmos em conta o sistema social vigente na época, onde a presença
Família onde o pátrio poder reinava de maneira absoluta, maciça de uma população escravizada impunha que certas tarefas
reproduzindo na urbe relações sociais de tipo patriarcal, nascidas, domésticas de fora da casa fossem executadas pelas mãos dos
havia mais de três séculos, nas grandes unidades de produção que serviçais. Mas, por outro lado, a mulher baiana do século XIX se
eram os Engenhos e as Fazendas. A alma da casa era a mulher à qual legalmente não é à part entière igual ao homem ela desempenha
cabia a administração de seu pequeno domínio, do qual raramente se funções sociais de extrema importância: primeiro como educadora de
afastava. seus próprios filhos e dos filhos que outros lhe confiam (406); como

Poucos são os testemunhos que temos sobre a mulher baiana do (403) - GRAHAM, M. Diários de uma viagem... op. cit., p. 148.
século XIX. Dos viajantes que aqui vieram a maioria não teve a (404) - DUGRIVEL, A. Des bords de la Saône à la Baie de San Salvador ou
Promenade sentimentale en France et au Brésil, Paris, Lecour Librairie - Editeur, 1843,
p. 358.
(402) - MATTOSO. Katia M. de Queirós. Um estudo quantitativo de estrutura social: (405) - CANSTTAT, Oscar. Brasil., op. cit., p. 272
a cidade do Salvador, Bahia de todos os Santos no século XIX. Primeiras abordagens, (406) - Educadora no lar de seus próprios filhos, freqúentemente de filhos de
primeiros resultados. In Estudos Históricos, MaríIia(São Paujo) 15: 7-28, 1976. parentes falecidos, de agregados ou de amigos, mais freqúentemente ainda dos fjlhos

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também chefe de família cuidando dos negócios deixados pelo pai ou catecismo, foi introduzido algum trabalho manual. Foi também
pelo marido falecidos (407) ou mesmo como mãe solteira, responsável criado na ocasião o Liceu de Artes e Ofícios o qual devia ministrar
e chefe de família numerosa (408). Aspectos da atividade e responsa­ uma educação profissional aos filhos menores dos artistas. O Ato
bilidade feminina ainda pouco conhecidos e que mereceriam estudos presidencial de 1881, reformou o ensino instituindo as salas de Asilo
mais aprofundados. (Jardins de Infância) e cursos de pedagogia e prática dos métodos de
ensino. O currículo do primário se enriqueceu; ministravam-se aulas
de leitura, escrita, elementos de gramática portuguesa, aritmética,
Seja como for, a mãe é a célula central da família e o melhor desenho linear, noções de geografia e de história, elementos de
arquiteto de sua coesão e solidariedade. É ela que inspira o respeito e ciências naturais, religião, civilidade, prendas domésticas e lições das
consideração cheia de atenção dos filhos para com seus pais que nos coisas (410).
dizeres do suíço Tschudi “fazem da vida familiar brasileira um
exemplo do qual muitas nações têm necessidade”: (409). Porém , apesar desse esforço de am pliar a rede de
ensino.complementando assim a instrução que vinha sendo ministra­
Filhos que eram educados segundo as posses de seus pais, o que da petos educandários religiosos (411), pequena parte da população
incontestavelmente favorecia as camadas abastadas, numa cpoca em estudantil em potencial podia usufruí-la. A massa da população pobre
que a instrução estava a cargo de instituições particulares. Com efeito, que, seguramente, constituía os 2/3 da população soteropolitana de
durante o primeiro Império, o poder central continuou criando então, continuava sendo excluída da aprendizagem das letras. Da
cadeiras avulsas de primeiras letras ou avulsas de latim, grego e aprendizagem das letras sim mas não da aprendizagem da vida, que a
francês. Somente o Ato Adicional (1834) permitiu às Assembléias criança e o adolescente recebiam do amor de sua mãe, e da solicitude
Legislativas Provinciais elaborarem leis sobre questões do ensino de seus familiares, compadres e amigos, que velavam sobre a sua
primário e secundário. Sob esse impulso criaram-se o Liceu Provincial educação. Pois, se a história vitupera contra os vadios e os marginais
e a Escola Normal mas ambos dispunham de poucas vagas, geralmen­ da sociedade de então, ela se esquece que no segredo de muitos lares
te preenchidas por aqueles que tinham costados fortes e formavam na humildes se preparavam muitos artesãos respeitados pela sua compe­
realidade bacharéis que iam procurar empregos nos cargos públicos. tência e trabalho seguro.
No segundo Império, vinte anos de discussões sobre projetos desabro­
cham finalmente na lei orgânica de 1860, modificada pelo regulamen­ Educação e instrução incipientes que se iam completando para os
to de 22 d e abril de 1862. Esse regulamento fazia aparecer mais ricos com cursos superiores feitos na Bahia (Faculdade de
discriminações como a que vedava a admissão de escravos ou filhos Medicina) ou no Exterior (outras partes do Brasil e Europa). A vida
de escravos nas escolas, e a criação de duas escolas normais: uma para cultural baiana se restringia à existência de uma biblioteca Pública
moças, outra para rapazes, e ainda cóm professores distribuídos de parcimoniosamente frequentada (412), a um teatro cujos programas
acordo com o sexo. O regulamento suprimia também as aulas avulas.
Essa lei orgânica de 1860 foi reformada duas vezes: em 1873 e 1881. (410) —TAVARES, Luiz Henrique Dias. Evolução educacional bahiana (Súmula até
Na de 1873, ao lado do ensino geral de línguas, geografia, história e 1930), In Arq. Univ. Bahia - Fac. Filosofia (Salvador) 4: 197-208, 1957-58.
(411) - Principalmente os conventos femininos da Soledade e das Mercês das irmãs
ursulinas e a Casa da Providência.
naturais do marido, a mulfier baiana ingressa também no magistério como professora a (412) - Fundada em 1811, a Biblioteca Pública é já mencionada no relato de James
partir de 1832. Longa é a lista das educadoras baianas do século passado e que PRIOR. Voyage along the eastern cost o f África to Mosambique, Johanna and Quiloa to
mereceriam de um estudo. St. Helena, Rio de Janeiro', Bahia Pernambuco; in the Nisusfrigate. London, Printed for
(407) - São frequentes os casos em que as mulheres tomam a direção dos negócios de Sir Richard Phillips and Co., 1819, p. 105. O referido autor fala da existência de 5.000
um pai, um marido, um irmão falecidos (cf. APEB; Seção Judiciária, Série inventários). volumes, de jornais em diferentes línguas e de panfletos ingleses. Cf. também com as
Sabe-se também que no século XVIII, quando ainda existia o controle municipal sobre obras de Maximiliano, Príncipe de WElDj-NEUWID. Viagem ao Brasil São Paulo, Cia.
os ofícios mecânicos, as viúvas tinham o direito de encabeçar os negócios (Cf. M. Editora Nacional. 1940, p. 448; F. DEN1S. Lettresfamilières... op. cit., p. 72; L.L. de
FLEXOR. Oficiais mecânicos... op. cit., p. 34) TOLLENARE, Notas Dominicais... op. cit., p. 320; J.J. TSCHUDI, Reisen... op. cit., p.
(408) - K. M. de Queirós MATTOSO, Um estudo quantitativo... op. cit., p. 7-28. 44. Em 1817 TOLLENARE calculava em 4.000 volumes o acervo da Biblioteca dos
quais pelo menos 3.000 em francês. Na época de TSCHUDI (1863) havia, segundo
(409) - TSCHUDI, Johann, Jacob von, Reisen durch Sudamerika Leipzig, Broc- aquele autor 16.000 volumes na sua maioria em língua estrangeira o que limitava ainda
khaus, 1866-1869, 5v. APUD Moema Parente AUGEL, Visitantes estrangeiros... op. cit.. mais o número de pessoas que podiam consultá-los.

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Ignácio de Loyola e dos irmãos Maristas começaram a desempenhar
nem sempre eram da melhor qualidade. Avé-Lallemant assistiu duas •suas atividades mais tarde na época da República.
vezes à apresentação de “Dom João” e achou que “o mundo brasileiro
apresentou-se também da mesma maneira, seleto e distinto”, mas Assim a família permanece, durante todo esse período, o núcleo
acrescentava que não havia visto em nenhum palco, coristas de feições principal da formação dos baianos. Família legitimamente constituída
mais horrendas nem iguais comparsas” (413). É também semelhante o pelos sacramentos da Igreja, mas também família natural onde o
testemunho de Wetherell: “embora as peças apresentadas sejam ou chefe, o responsável, era a mulher, aceita sem preconceitos pela
péssimas traduções de obras francesas, ou estúpidos dramalhões sociedade global. Ser filho de família natural não parece ter sido um
portugueses e, os cenários e o vestuário dos atores sejam dos mais sério empecilho para a integração nem para a ascensão social dos
pobres, os teatros estão quase repletos” (414). indivíduos, pelo menos nas categorias médias e baixas da população.
O que importava era possuir bens, ser rico. Então as origens humildes
ou mesmo ilegítimas eram esquecidas e o que finalmente dava a
Os baianos cultos, ou pertencentes à sociedade, encontravam-se tônica nas relações sociais eram as festas familiares, as festas profanas
nas famosas reuniões de saraus onde quebravam suas lanças em e religiosas, os encontros nas ruas e nos mercados, o contato diário
duelos retóricos brilhando por sua inteligência mnemónica (415). com a vizinhança pelas portas e janelas da frente da rua, pelos pátios
Uma imprensa bem desenvolvida publicava jornais e revistas, palco e internos em que iam dar as casas construídas no centro da cidade.
tribuna onde ia se desgastar a belicosidade dos baianos (416). Homens Esta convivência viva e ativa tecia a trama dos contatos sociais que
ilustrados,profundos.conhecedores da literatura, principalmente fran- transcendiam os estreitos limites das categorias sociais para abranger
-cesa pouco ou nada produziam: um só grande poeta, Castro Alves, a sociedade global numa comunicação livre e aberta de todos os seus
um só grande romancista, Xavier Marques (417). membros.
De qualquer maneira o século XIX marcou um progresso em
relação ao passado no setor da educação permitindo inclusive sua Capítulo IV - A s relações sociais
laicização. Pois, na realidade, somente as mplheres, continuam
recebendo instrução em educandários religiosos os quais faziam séria Comunhão perfeita entre os membros da sociedade baiana que
concorrência às escolas leigas, especialmente no que tangia o recruta­ precisa, porém, ser entendida dentro de um duplo esquema social, um
mento de estudantes. Por longo tempo, as camadas superiores da sendo decorrência natural do outro. Na base, a existência legal, até
sociedade da Bahia mandavam suas filhas aos colégios de freiras e é 1888, de uma sociedade civil que separa os indivíduos em três
famoso o papel que desempenhavam na formação das mulheres categorias distintas: os livres, os libertos e os escravos. Pode se dizer
sem nenhum exagero que durante todo o século XIX, parte importan­
baianas os conventos da Soledade e das Mercês, das irmãs ursulinas.
te da população soteropolitana é composta por homens recém-
Os grandes educandários masculinos como dos padres de Santo
egressos da escravidão e por escravos. Com efeito, o processo de
libertação dos escravos, através das cartas de alforria, adquire seu
(413) - R. Ch. B. AVÉ-LALLEMANT, Viagem pelo norte. op. cit.. p. 47. desenvolvimento máximo a partir do momento em que acabq o
(414) - J. WETHERELL. Brasil. Apontamentos... op. cit., p. 79. tráfico negreiro, a partir do momento em que o possuir escravos
(415) - PINHO, José Wanderley de Araújo, Salões e Damas do Segundo Reinado. 3? deixou de representar, para a grande massa da população, um meio
edição. São Paulo. Livraria Martins Editora, 1959, p. 25-56.
(416) —O primeiro jornal de Salvador foi Idade de ouro do Brasil cuja publicação
seguro de se ganhar dinheiro, isto é, a partir do momento em que o
iniciou-se em 14 de maio de 1811. Vários outros jornais , como por exemplo “n baiano encontra novas oportunidades para investir seus capitais
Constitucional foram publicados na mesma cidade durante a primeira metade do disponíveis. Essas novas oportunidades aparecem com o desenvolvi­
século XIX. Entretanto a imprensa jornalística da Bahia adquire sua plena maturidade mento das Instituições de crédito, com a nova orientação que tomam
a partir da segunda metade do século com a publicação do Diário da Bahia (1833-1858)). as atividades comerciais, com as tentativas de se criar um setor
do Jornal de Noticias (1883-1917), etc. Em 1880 publicavam-se em Salvador ós
seguintes Jornais: Diário de Notícias, Diário da Bahia, O Monitor, Gazeta da Bahia, secundário (indústrias alimentícias e têxteis) que venham de um lado
Jornal de Notícias, o Alabama, Gazeta da Tarde, todos eles diários. Em dias absorver os capitais disponíveis e, de outro, criar condições de
indeterminados eram ainda publicados a Gazeta Médica, a Escola, a Voz do Comércio, ampliação do próprio mercado consumidor da cidade. E assim que
o Bahiano e o Balão.
explicamos o avultado número de cartas de alforria outorgadas a
(417) - Cf. D. SALLES, Primeiras manifestações... op. cit., p. 129.

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escravos que injetam no mercado de trabalho e consumidor de respeito, se são contrários à opinião que julgue mais fundada. E o
Salvador, cerca de setecentos escravos libertos, por ano (418). A superior o recebe de boa cara, concordando, freqúentemente, com ele.
absorção desse contingente populacional recém-liberto é facilitada O sistema não fica nisso, mas estende-se aos mulatos e até mesmo aos
primeiro, pelo fato de se libertarem quase sempre escravos que têm a negros...'’ (420) e acrescentava “Atribuo essa promiscuidade à igno­
possibilidade de prover a sua subsistência por seus próprios meios, rância geral que impregna o país, pois nenhum povo tem pretensões e
sem constituir um peso para a sociedade global e, segundo, pelas mais hauteur ou reserva do que o brasileiro, ao passo que, na realidade,
características de assimilação que possui a sociedade baiana. menos a possui a sua própria sociedade” (42D-
Essa assimilação exerce-se em dois níveis: ao nível racial e ao Vinte anos mais tarde, Spix e Martius diziam que “Mesmo nas
nível social. Dois níveis que tanto podem ser sucessivos (a integração classes mais elevadas observam-se, às vezes, traços que lembram a
racial primeiro através do processo de branqueamento do indivíduo, a mistura de indígenas e negros, principalmente em algumas famílias
ascensão social, em seguida) como também concomitantes quando burguesas que se orgulham com razão de sua origem considerando-se
por exemplo um sucesso material incomum-permite ao indivíduo brasileiros legítimos. Não obstante isto, há preconceito contra a
ascender a escala social sem que seja necessário passar por um procedência mestiça. Assim, muitas pessoas querem procurar provas,
processo de branqueamento visível. Todavia, não resta dúvida de que por certidão de batismo, terem uma cor que dificilmente lhes poderá
esse processo de ascensão social é limitado: o grande pulo se dá com a reconhecer o julgamento imparcial do estrangeiro. Finalmente, as
passagem da condição de escravo à de homem livre e na primeira mais ligeiras variantes de cor não fazem perder o prestígio na
geração o indivíduo permanece colocado nos primeiros escalões mais sociedade. Vêem-se nela, sem que isso cause estranheza, pessoas de
baixos da hierarquia social. Mas já na segunda geração e, mais cor acentuadamente mestiça” (422).
provavelmente, na terceira, seus traços raciais se perdem por completo
e quanto maior for seu sucesso social, menor é a referência às suas Wetherell, por sua vez confessava que “Não existem classes
origens (419). fechadas de sociedade. Qualquer que seja o lugar onde se vai, nota-se
que todos os tipos de pessoas são aceitas no mesmo pé de “camarada
Esse fenômeno de caldeamento racial e social não passou muito bem”. Nas recepções encontra-se, entre algumas das melhores
despercebido dos viajantes estrangeiros que nos deixaram descrições pessoas, visitas que, na Inglaterra, seriam corridas da sociedade
extremamente lúcidas sobre a abertura e permissibilidade da socieda­ respeitável” (423).
de local. Nada melhor do que trazer seus testemunhos em apoio de
nossa hipótese. Finalmente, o último testemunho é do alemão Detmer: “mais do
que tudo, impressiona que no Brasil, apesar da sensível diferença
Por volta.dos 1800, o inglês Lindley se confessava surpreendido quanto à propriedade, não existe praticamente nenhum preconceito
de ver “como se observa pouco neste país a matéria de subordinação racial. Ricos e pobres, instruídos e não instruídos relacionam-se uns
de classes. A França, em sua fase de mais completa revolução e com os outros do modo mais cordial. Freqúentemente o que sobressai
igualdade dos cidadãos, jamais o excedeu a esse respeito. Vê-se, aqui, de maneira mais louvável, é o relacionamento puramente humano,
o empregado branco conversar com o patrão em termos de maior nenhum orgulho de um lado, nem de outro, nenhuma desagradável
igualdade e cordialidade, discutir-lhe as ordens e questionar a seu
(420) -Th. LINDLEY, Narrativa de uma viagem... op. cit.. p. 71.
(418) - MATTOSO, Katia M .de Queirós. A propósito de cartas de alforria - Bahia (421) - Idem, p. 72.
1779-1850, Anais de História, ASSIS (São Paulo) 4: 23-52, 1972. (422) - SPIX von e MARTIUS von. A traves da Bahia... op. cit.. p. 76.
(419)- -A carta de alforria... op. cit., p. 150-153. Contemporâneo dos SPIX e MARTIUS. o cônsul francês Jacques Ouinebaud dá
As referências sobre a cor dos indivíduos para além da segunda geração também seu testemunho: "a casta negra liberta ou crioula, é sempre mais ou menos o
(primeira geração o negro, nascido na África; segunda geração, os filhos deste nascidos objeto de desprezo dos brancos. A situação social lhes inspira então o horror de seus
no Brasil) inexistem em séries de documentos como os testamentos e os inventários mestres, e os coloca em oposição ao seu sistema de civilização" (Cf. MATTOSO. Katia
post-mortem. Todavia tal informação encontra-se, esporadicamente nas listas de M. de Queirós. O consulado francês na Bahia em IH24. Anais do Arquivo do Estado' da
qualificação de votantes e nos recenseamentos. São frequentes nos atos dos registro Bahia (Salvador) 39: 149-221. 1970. p. 213.
paroquiais. (423) - J. WETHERELL. Brasil. Apontamentos... op. cit.. p. 80e passim.

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manifestação de servilismo”, e concluía, “justamente nós, alemães,
dev eríamos tomar como modelo esse exemplo dos brasileiros” (424). uniões livres são mais numerosas entre a população que integra as
camadas mais humildes da sociedade baiana. Em segundo lugar, pela
Sociedade aberta, permissível, cuja hierarquia é preciso tentar frequência pela qual encontram-se formas de família onde o chefe
compreender através dos comportamentos e dos comportamentos mantém ao lado de sua família legalmente constituída, outra família,
efetivamente sociais. O que é particularmente social, são as relações esta natural, sobre a qual exerce seu poder de chefe e de pai (426).
entre os homens e entre os grupos de homens. Essas relações se Bastante corrente na sociedade baiana, principalmente entre os
manifestam, no caso da Bahia, nas associações e nos conflitos sociais. membros das camadas sociais melhor aquinhoadas, esse fenômeno
Sobre as primeiras temos algum tipo de informação: são as associa­ social cria uma situação que leva à necessidade de melhor conceituar
ções que ligam as famílias do mesmo ramo, os habitantes da mesma a família distinguindo-lhe os diversos tipos:
rua, do mesmo bairro, da mesma irmandade religiosa. Dos conflitos
sociais pouca coisa sabemos, principalmente quando se trata de Chamaremos de família legal pura, a família nuclear tradicional,
identificar esse tipo de movimentos para a segunda metade do século composta pelo pai, pela mãe e pelos filhos do casal.
XIX. Mesmo assim uma análise pode ser tentada; ela permite que
sejam colocadas algumas hipóteses que venham abrir novas perspecti- Podemos chamar de família natural pura, a família nuclear.não
vas para o estudo da sociedade baiana. tradicional porque baseada sobre a união livre dos cônjuges, mas
composta pelo pai, pela mãe e pelos filhos do casal.
A família como primeiro tipo de associação social
Entre esses dois tipos de famílias puras tomam lugar na
hierarquia familiar um sem número de combinações de tipo familiar
Numa sociedade tipicamente arcaica como é a sociedade baiana
do século XIX, a família no seu sentido mais amplo possível, que apresentam as seguintes modalidades:
desempenha um papel de coesão social importante. Vimos que há 1. A existência na família legal ou natural pura dos filhos
dois tipos de famílias: a família legítima e a família natural. A contraídos antes do casamento ou da união dos dois cônjuges e que
primeira é sacramentada pela igreja, a segunda recebe seu sacramento são nela incorporados.
pela vontade dos dois “cônjuges” que, em certa altura de suas vidas,
juntam suas experiências comuns, formam uma família que nem por 2. A existência na família 'egal de filhos ilegítimos, contraídos
isso se disfaz mais facilmente do que a família legítimamente durante o casamento por um ou por outro dos cônjuges (são os filhos
constiuída. Com efeito, a evidência que temos de séries documentais espprios, os únicos que não têm direito à herança paternal), ou
ainda pouco exploradas nesse sentido (425) mostra, freqúentemente, a quando o casamento terminou por um desquite (fala-se de divórcio na
perenidade das uniões livremente consentidas e não sacramentadas época) ou pelo falecimento de um dos cônjuges.
pela Igreja, enquanto que freqíientemente uníes sólidas se desfazem 3. A existência paralela de dois, às vezes três tipos de família com
no decurso da existência dos dois cônjuges. o mesmo chefe, que assume sua responsabilidade e sua paternidade.
Os filhos ilegítimos são educados pelas suas mães respectivas, são
Nada fundamentalmente distingue esses dois tipos de família. legalmente reconhecidos por seus pais e passam possuir direitos à
Ambas possuem as mesmas características e ambas são moldadas herança praticamente iguais aos filhos nascidos do matrimónio
segundo o velho sistema patriarcal que atribui um papel preponde­ legítimo.
rante ao homem que é seu chefe. Todavia, as possibilidades que tem a
mulher de arcar com as responsabilidades do lar são mais frequentes Neste ponto, a sociedade brasileira ao reconhecer os direitos dos
nas uniões livres do que nas uniões legais. Primeiramente, porque as filhos ilegítimos é uma das mais avançadas na época. Talvez seja por

(424) - DETMER, W. Bolanische Walderungen in Brasilien: Reises kizzen und (426) - Em 416 inventários post-mortem analisados no período 1832-874. 36.05? dos
VegetationsiIder. Leipzig. Verlag von veit & Co. 1897. p. 65. Apud Moema Parente testadores (homens e mulheres) que possuem famílias legalmente constituídas possuem
AUGEL, Visitantes estrangeiros... op. cit.. p. 187-188. também filhos naturais que reconhecem no ato da morte. Dos 416 inventariados. 27 sãO
(425) - APEB. Seção judiciária. Séries de testamentos e inventários. eles próprios filhos naturais. A série testamentos nos deu. para o período 1805-1874.
cerca de 15? de testadores que são filhos naturais.
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parentesco tendem a se ampliar: os proprios parentes e agregados
causa disto que as uniões ilegais são tão numerosas. Mas do ponto de multiplicam para fora de casa estes laços. Chega-se assim a uma
vista dos comportamentos esse fenômeno tem uma enorme influência parentela e a um compadrio também extensivos que possui a
sobre as relações sociaijs. Estas ficam menos formais; mais amplas, e solidariedade como principal característica. Solidariedade perceptível
permitem a integração em meios sociais superiores de toda uma em toda parte, que ricos e pobres dividem igualmente, mas sobretudo
camada da população, geralmente recrutada entre as categorias os pobres. É essa solidariedade, que extravasa os contornos unicamen­
menos favorecidas da sociedade global. Pelos laços de um indiscutível te familiares, que salva às vezes as famílias da ruína; é essa mesma
parentesco o mulato, e às vezes o negro, opera assim uma rápida solidariedade que permite ao escravo se libertar e se inserir na
ascensão social sob a égide de um sistema patriarcal aparentemente sociedade global. A Soterópolis é um vasto mundo feito de alianças.
rígido, mas-na realidade extremamente fluído e coopera dor. É uma
primeira forma de comportamento social que vitoriosamente trans­
cende as limitaçõçs impostas por uma sociedade legalniente dividida Alianças que são possíveis porque o próprio sistema patriarcal
entre brancos e pretos, senhores e escravos. permite que seja assim. Numa sociedade dominada pelo pátrio poder
os laços intra, inter e extra-familiares se tecem em função da parentela
A instituição familiar torna-se assim um dos veículos da promo­ e da clientela. Assim às linhagens propriamente familiares
ção social. Qual agora a amplitude desse processo, não temos por acrescentam-se linhagens de clientela, extra-parental. Se utilizarmos o
enquanto possibilidades de medí-la (427). Mas não resta dúvida que a termo de linhagem para a clientela é porque as fidelidades ultrapas­
mesma foi mais importante que geralmente se pensa. Aliás, sua sam largamente a vida de uma geração e se estendem sobre várias
importância é atestada pelos próprios testemunhos dos viajantes acima gerações. E é esta solidariedade entre as linhagens de parentela e de
citados, surpreendidos de encontrar nas camadas superiores da clientela que explicam, até certo ponto, a permissividade e a abertura
população soteropolitana, pessoas de tez mais escura do que se havia de uma sociedade, à primeira vista, rigidamente estratificada a partir
de esperar. do binómio senhores e escravos, quando na realidade não o é. Daí a
dificuldade que temos de pensar na sociedade baiana dentro de um
Família legal ou família natural, pura ou sob forma de várias esquema de estratificação social perfeito, em que as categorias sociais
combinações, a família baiana é, como já vimos uma família possuem contornos nitidamente perceptíveis, que permitam chegar a
extensiva: pais, irmãos, primos, sobrinhos, filhos casados, agregados uma visão correta de sua hierarquia social.
de todo tipo moram sob o teto do mesmo chefe de família,
principalmente quando a sorte não lhes foi feliz. Raras são as famílias, Evidentemente, esta análise permanece por enquanto no campo
e isto é verdade para todas as categorias sociais, que não possuem seus das hipóteses por ser, no momento atual, puramente qualitativa.
agregados. Nas famílias de posses, os agregados raramente trabalham Pesquisas no campo empírico, com a exploração de séries de
por sua própria contai Executam na verdade pequenos serviços documentos quantificáveis, são necessárias para que possamos mati­
domésticos, e são principalmente os companheiros dos donos da casa. zar o esquema que, atualmente, propõe, como foi dito, uma visão
Nas famílias modestas, o trabalho do agregado faz parte do orçamen­ dessa sociedade ao mesmo tempo rígida e imprecisa. Mas não resta
to familiar e a contribuição que este dá para a manutenção da casa é dúvida que a família no seu sentido mais amplo e suas relações deve,
às vezes superior ao que o próprio dono da casa oferece (428). até certo ponto, nortear nossas pesquisas pois é através do conheci­
mento de seus múltiplos mecanismos que teremos propostas válidas
Familia extensiva que incha os efetivos da casa numa promiscui­ para o estudo das hierarquias e da estratificação social.
dade, às vezes, inacreditável mas através da qual os laços de

As Irmandades religiosas como segundo tipo de associação social


(427) - Somente as biografias familiares podem dar conta desse fenômeno.
Recenseamentos, atos de batismos, casamentos e óbitos, testamentos e inventários G papel desempenhado pelas Irmandades religiosas como centros
podem permitira elaboração dessas biografias.
(428) - São frequentes as menções nas cartas de Alforria de escravos alforriados que de contatos e de comportamentos sociais é ainda importante na Bahia
permanecem como agregados após sua libertação. As mesmas referências são encontra­ do século XIX. Pelo menos até por volta de 1870 quando essas
das também nos testamentos.

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instituições religiosas entram irremediavelmente em decadência-até que desempenha quase que em exclusividade até o século XIX, pelo
perderem, no nosso século, seu significado social (429). menos no que diz respeito à assistência hospitalar, à assistência aos
As irmandades foram produzidas pelo sentimento religioso expostos, aos presos da cadeia, às jovens desamparadas que acolhe no
coletivo e representam, no Brasil, manifestações de uma adaptação às seu Recolhimento (43Í). Mas a Misericórdia não será a única
condições locais das Irmandades medievais que existiam em Portugal. irmandade a oferecer um alto nível de assistência social. Todas as que
Gilberto Freyre sugere que a posição relativamente fraca dò catolicis­ se criam depois dela e, apesar de terem um caráter religioso mais
mo no Brasil foi fator contribuinte para a iniciativa particular acentuado do que esta, oferecem a seus irmãos, brancos, pretos ou
resultando na Instituição das Irmandades (430). mulatos, assistência financeira, dotes para as moças órfãs ou desam­
Essas Irmandades, se formaram de leigos unidos sob a proteção paradas, visitas aos seus indigentes enfermos e, principalmente, a
de uma ordem religiosa para esforçar-se na propagação da fé católica. possibilidade de se ter um enterrodecente.
 Irmandades cabia, em última instância, a tarefa da catequese da Das Irmandades de brancos, além da de Misericórdia, as mais
população. Mas além disso, as Irmandades também serviram para a importantes na Bahia são as que nascem sob a égide das Ordens
superação dos choques que não podiam deixar de nascer dentro de religiosas: são as Ordens Terceira de São Francisco e de Nossa
uma sociedade formada por grupos multiraciais e em perpétua Senhora do Carmo que reúnem membros da comunidade branca,
gestação. Assim as Irmandades aparecem como reguladores da pertencentes à elite social. Ordens Terceiras que secaracterizavam por
sociedade colonial, absorvendo os excessos de cada grupo social, e se sua intolerância enquanto que, com o passar do tempo as outras.
tornando ponto de convergência para elementos similares. Elas Irmandades de brancos “ se tornavam mais conciliadoras, à proporção
que os mulatos ascendiam socialmente, distinguidos por títulos nobres,
preencheram um papel psicológico na formação de entidades sociais e os negros conseguiram sua independência” (432).
no meio da maior diversidade étnica, transcendendo com frequência a
hierarquia social baseada ná posse de bens e de fortuna. No outro extremo, as Irmandades dos nomens de cor. As
Com efeito desde o princípio a Instituição das Irmandades vai primeiras a serem constituídas são as Irmandades dos pretos e as
obedecer e acompanhar a estratificação que aparentemente divide a principais dentre elas na invocação de Nossa Senhora do Rosário,
sociedade baiana em dois extratos principais, identificados como predileta dos negros brasileiros.
senhores - brancos, de um lado, escravos - pretos, de outro.
Poucos são os estudos que possuímos sobre as Irmandades
As primeira Irmandades a serem instituídas foram as Irmandades
religiosas da Bahia. Para o século XIX identificamos mais de 30
dos brancos e primeira entre todas a Irmandade da Santa Casa de Irmandades de homens de cor mas seus compromissos permanecem
Misericórdia. Esta Irmandade nasce no século XVI comc uma ainda ignorados (433-). Todavia, tanto os visitantes do século XVIll
entidade, na realidade de cunho mais social do que propriamente como os viajantes do século XIX ficaram impressionados pelo “zelo e
religioso, pois seus objetivos visam proporcionar à população da entusiasmo dos negros perante as manifestações externas da religião
soterópplis uma série de serviços de assistência social. Encargo aliás católica, mas foram poucos os que deram conta do legado cultural dos
cultos africanos que sobreviveram debaixo da aparência externa da
religião ortodoxa”. Partilhamos por inteiro essa opinião de Russell-
(429) - A decadência das Irmandades Religiosas é atestada nos testamentos:
enquanto, que no período 1790-1826: 85? de africanos libertos e 83? de africanas
Wood na medida em que as evidências que possuímos para o século
libertas pertencem pelo menos a uma Irmandade religiosa, no período de 1863-1890. XIX através dos testamentos, dos informes da tradição oral, ainda
somente 1? dos homens e 13? das mulheres são membros de Irmandades. Os dados pouco explorados, permitem que descubramos pouco a pouco a
referentes ao resto da população não foram ainda computados. Porém, tudo indica de
que o fenômeno é idêntico. Aliás, essa decadência é ainda atestada pela fusão de várias
Irmandades, como é o caso por exemplo das Irmandades do S. Sacramento e de N.S. (431) - RUSSEL-WOOD. A.J.R. Fidalgos and Philanthropists. The Santa Casa de
da Conceição da Praia, em 1868 (Cf. BARBOSA. Manoel de Aquino. Efemérides op Misericórdia o f Bahia. 1550-1755. Berkeley. Universityof Califórnia Press. 1968.
cit.;P. 109). J (432) - A.J.R. RUSSEL-WOOD. Aspectos da vida... op. cit.. p. 153.
(430) —RUSSEL-WOOD. A.J.R. Aspectos da vida social das Irmandades leigas da (433) - A lista dessás 30 Irmandades foi preparada com base nos testamenios. Cl.
Bahia no século XVIII. In Bicentenário de um monumento... op. cit., p. 145-160. p. 160. APEB. Seção Judiciária. Livros de registros de testamentos:. 1805-1891.

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importância dessas agremiações como conservadoras da herança relações sociais entre grupos racial e economicamente díspares. Não
cultural africana. Concordamos também com a opinião do mesmo há dúvida, que ao permitir em que cada grupo encontre sua
autor quando chama a atenção sobre o fato que é necessário “evitar a identidade social na Irmandade, esta preencheu um papel psicológico
simplificação ao ponto de considerar todos os negros de um só ponto importante na formação das entidades sociais. Valorizou as categorias
de vista e ter em mente que, além da estratificação étnica das sociais menos favorecidas, amortecendo os choques que se poderiam
Irmandades dos negros existia também uma distinção tribal” dando produzir no meio de uma sociedade caracterizada pela diversidade
como exemplo que as primeiras Irmandades do Rosário foram étnica e económica; deu-lhes também a possibilidade de se sentirem
exclusivamente dos negros de Angola e a Irmandade do Senhor de “iguais” incentivando seu gosto pelo poderio e pela procura de
Redenção na Bahia (1752) foi Gêge (434). A questão é de saber se responsabilidades. Aos comportamentos individuais, estabelecidos a
essas distinções tribais continuam existindo no século XIX, quando partir de uma relação dominador-dominado, se sobrepunha uma
novas condições impostas pelo tráfico negreiro permitem a importa­ relação de grupo. Assim a sociedade baiana do século XIX, aparece
ção de escravos de todos os mercados negreiros africanos, multiplican­ como uma sociedade bastante igualitária por causa de sua grande
do assim as etnias e as tribos. Aliás o próprio Russell-Wood mostra permissibilidade, pouco individualista, também. É uma sociedade que
como, no século XVIII, a natureza exclusiva das Irmandades do oferece a seus membros, qualquer seja o grau que ocupam na escala
Rosário, limitadas a homens angolanos, influiu no florescimento de social, a possibilidade de exercerem seu poder e suas responsabilida­
Irmandades mais flexíveis como a de Santo Antônio de Catagerona des.
(1699) e a do Senhor dos Martírios (1764).
A família: no centro das relações sociais
Entre esses dois extremos de Irmandades de homens brancos e de
homens pretos, fundaram-se pouco a pouco Irmandades cujos mem­
bros eram exclusivamente mulatos como os de Bom Jesus da Cruz e É no âmbito da família, ou das famílias, tomadas no seu sentido
de Nossa Senhora do Boqueirão. Cronologicamente, as Irmandades mais amplo, ou em torno delas, que se tece a trama das relações
de mulatos aparecem depois de fundadas as Irmandades de brancos e sociais. As festas familiares são a melhor ocasião de congraçamento
de pretos seguindo assim “a mesma ordem que este grupos étnicos se dos parentes, do agregado, dos vizinhos da rua ou do bairro.
foram estabelecendo socialmente e realizaram a sua integração como Nascimentos, casamentos e mortes são atos primeiro públicos antes de
elementos sociais” (435). serem privados. Vive-se de casa aberta.

Além dessa Irmandades baseadas sobre a cor de seus mem bros e Tudo começa com a festa do noivado. “Noiva-se” na presença da
não sobre o seu estatuto legal na medida em que pouco importava se família, na presença dos amigos, dos vizinhos, dos serviçais da casa.
a pesscfa fosse livre ou escrava para ser admitida, existiam Irmandades Mas casa-se também sem noivar e mesmo sem casar quando se trata
que agrupavam seus membros segundo as profissões ou ofícios que de camadas pobres da população. Noiva-se tendo namorado o noivo
estes exerciam: Santo Antônio da Barra para os negociantes. Sã; pela janela mas noiva-se também com o eleito escolhido pelos pais, e
Jorge para os ferreiros, São Crispim para os sapateiros (436). É, aliás, a escolha não se discute. No ato do noivado é freqúentemente
comum que a mesma pessoa faça parte de várias Irmandades. mostrado o enxoval e a roupa da noiva. A assistência admira para
comentar depois e achar defeitos. Os indispensáveis “come-se e
Seja como for, o que importa mostrar é que através desse tipo de bebe-se” vêm abrilhantar a cerimónia depois de que cada um se
associação que, como já dissemos, transcendia a hierarquia social, retira, levando consigo o que alimentar semanas e semanas de
baseada na posse de bens e de fortuna, a sociedade de Salvador do conversas.
século XIX evidencia a existência de um poderoso elemento de coesão
social de tipo corporativo, regulador dos comportamentos e das « Casa-se geralmente na sua própria categoria social mas os
casamentos desiguais não são raros: o pobre português desposa a rica
(434) - P. VERGER, Fluxe reflux... op. ci/.. p. 527. mulata, a branca pobre o mulato talentoso. A sociedade baiana é
(435) - A.J.R. RUSSEL-WOOD. Aspectos da vida... op. cit.. p. 151. hipergâmica principalmente nas suas categorias intermediárias, aque­
(43(5)-Idem. p. 149. las prestes a chegar perto do topo da hierarquia social.

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Os dias de casamento preferidos são o sábado e a quinta feira; convidada de cuspir dentro. No primeiro banho do recém-nascido
nunca se casa na sexta porque dá azar. A cerimónia religiosa colocava-se uma peça de valor para que o menino ficasse rico.
é geralmente celebrada na Igreja Paroquial do noivo ou da noiva e Recebia também uma medalha de Nossa Senhora que acompanha uma
assistida por parentes e amigos. Segundo as posses da família o figa de arruda. O batizado nunca era celebrado nos dias imediatos ao
sacramento é celebrado com grande séquito de padres. Os filhos das nascimento mas esperava-se o menino crescer um pouco. Evidente­
famílias da "aristocracia comercial e de senhores de Engenho casam mente este ato era mais uma oportunidade para que os parentes e
freqúenteme-nte em casa. Até a proclamação da República o casamento amigos se encontrassem. Os padrinhos eram geralmente escolhidos
é só religioso e é testemunhado por dois ou mais padrinhos, a entre os parentes ou amigos. Pelas evidências documentais que temos
depender do número de pessoas que se deseja assim honrar. O ato é (437), a procura de ter padrinhos pertencentes às altas categorias
assinado pelos nubentes e as testemunhas e a tradição permite em que sociais não parece ter sido sistemática. Com efeito não se busca a todo
a noiva guarde seu nome de família. E este nome que ela continuará custo a pessoa influente. Isto é particularmente verdadeiro nas
usando no decorrer de sua vida de mulher casada, e deste nome camadas humildes da população, entre os membros da categoria de
podem herdar alguns dos filhos do casal. Esta tradição que tanto escravos recém-libertos onde, freqiient emente a pessoa indicada como
prejudica os estudos demográficos de reconstituição de famílias, é sendo padrinho ou madrinha pertencem ao mesmo grau social. Mas é
ainda muito viva no século XIX. necessário acrescentar que se tratava geralmente de escolha de
pessoas que possuíam algum tipo de bens.
As viagens de núpcias inexistem na época. Após a festa de praxe
que acompanha à celebração do ato religioso, os nubentes se retiram A vida de família alegrava-se ainda com as festas de aniversário e
para a sua residência, ou para o quarto que lhe é atribuído sob o teto formaturas, nas categorias evidentemente abastadas; o pobre desco­
familiar. Em regozijo do feliz acontecimento, se tomou o hábito no nhecendo esse tipo de divertimento para si. Mas na medida em que
século XIX de alforriar escravos da casa. ele era ligado a esta ou outro família ou grupo de famílias, participava
de suas festividades como se fosse próprio membro dela. Aniversários
e formaturas que pontuavam a vida da família baiana e das quais a
O nascimento da criança é a segunda grande festa da família Imprensa da época nos dá frequentemente conta. Principalmente da
baiana. Uma festa que se prepara durante os longos meses de
gestação em que a mulher é submetida a uma série de proibições e de formatura que era um acontecimento considerado mor na vida do
rituais que devem lhe assegurar a feliz chegada da hora. Mulher indivíduo, tão importante quanto seu casamento. No século XIX
escravos são liberados em honra do recém-formado doutor.
grávida não deve passar sobre cordas porque assim “amarra a
barriga” dificultando o parto. Se enjoar muito deve tomar chá de
canela. Se o casal deseja ter um menino, mata uma galinha e deixa Einalmente, o último grande ato do homem: a morte. A morte
seu coração inteiro, se quer menina, parte o coração da galinha. Aliás, temida por todós numa cidade que oferecia condições sanitárias
ventre redondo é menina, ventre pontudo, menino. precárias e onde grassavam as doenças e epidemias. A movtalidade
infantil parece ter sido catastrófica mas ainda ignoramos a n.édia de
vida de um adulto: 45, 50, 55 anos? O fato é que a morte atemoriza a
Chegada a hora, manda-se chamar a parteira e as indispensáveis todos e era sempre presente e lembrada. Nem que seja pela figa usada
vizinhas experientes. Dá-se à mulher ovos quentes, café e vinho do
por todos, à qual se atribuem qualidades de conjurar a fatalidade.
Porto para fortalecê-la. Nascida a criança, é da mãe que a parteira cui
Pela Igreja também que, através de suas pregações, fixa para o baiano
da primeiro, segundo a tradição que quer “se o menino morrer, morreu:
é mais um anjo para Deus”. a imagem de um Deus que não é o Deus bondoso e misericordioso do
Novo Testamento mas um Deus vingador e ciumento. Assim, cedo o
baiano se prepara a enfrentar essa morte que o levará à presença de
Após o parto, a parturiente era submetida a uma dieta mui(£> seu Criador. Preparação que se faz em dois tempos: primeiro pela sua
rigorosa: só a galinha era o prato mais recomendado (dava-se até para
admissão em uma das numerosas Irmandades religiosas que lhe dará
as escravas), era interditado comer repolho, abóbora, maxixe, fruta-
pão, melancia, abacaxi, cozido, feijoada, fígado, banana prata, couve
etc. O recém-nascido, se sobrevivesse, recebia nos olhos gotas de limão (437) - Pelo rol dos afilhados em cada testamento e inventário, pois são raríssimas as
e se mostrado para uma pessoa que possuísse bons dentes esta era pessoas que não têm afilhados.

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a segurança de gozar de um enterro decente, depois, pela redação de
seu testamento, expressão de suas últimas vontades, onde as preocu­ mentos de pessoas pouco remediadas, dos bens deixados, parte
pações de ordem religiosa superam de muito as que devem levá-lo substancial ia para o pagamento dos oficiantes da Igreja e das missas
cumprir suas obrigações familiares. que se mandavam rezar. Os funerais eram solenes mesmo para o
africano recém-egresso da servidão.
Com efeito, grande é o número dos que testam no “vigor da
saúde estando no mais perfeito juízo e entendimento que Deus me fez Em 1805, Damiana Vieira, africana da Costa da Mina, liberta de
mercê dar-me, temendo a morte, ignorando a hora que Deus nosso José Vieira e de sua mulher Teresa Josefa da Conceição pelo preço de
Senhor será servido levar-me, faço e ordeno...” Frases iniciais do 100$000 réiis, viúva do capitão José Gonçalves de Barros, ganhadeira
testamento que são, em regra geral, acompanhadas por encomenda- de profissão, é irmã de sete Irmandades (440). Ela pede que seu
ções e invocações desse tipo: “Encomendo a minha alma ao todo corpo seja amortalhado no hábito do Seráfico Padre São Francisco e
Poderoso que a criou e a Jesus Christo seu Unigénito filho meu acompanhada pelo seu Reverendo Vigário, seu sacristão e mais oito
Senhor que a remiu com seu precioso sangue, a Virgem Maria sacerdotes. Seu corpo devia ser conduzido no esquife da Irmandade de
Santíssima Nossa Senhora, o Santo de meu nome, o Anjo de minha Nossa Senhora do Rosário das Portas do Carmo e acompanhado por
guarda e peço todos os demais Santos sejam meus advogados desde todas as Irmandades a que pertencia. Deixava ainda esmola de 20 réis
agora até a hora de minha morte”. para cada um dos 12 pobres que acompanhassem seu corpo até o
lugar de sua sepultura, na Igreja do Rosário de N. S. das Portas do
Ou ainda: “Encomendo a minha alma a Santíssima Trindade que Carmo. Mandava celebrar doze missas de corpo presente, seis pela
a criou e rogando a Maria Santíssima Madre de Deus e Anjo de alma de seu marido defunto, 6 pela alma de sua filha também morta e
minha guarda e Santo de meu nome a todos os Santos e Santos da quatro “pelas almas daquelas pessoas com que tratei negócios de
Corte Celestial queiram interceder por mim agora e quando a minha comprar e vender”. Sem filhos deixava por todo bem uma escrava
alma de meu corpo sair que como verdadeiro cristão espero salvar-me única, “coartada” a 505000 réis e “alguns móveis limitados de pouco
pelos merecimentos do mesmo Unigénito filho de Deus”. valor”.
Depois de que se mencionavam as Irmandades as quais o Já Joaquim de São José, africano, maior de 60 anos, ex-escravo
testador pertencia, pois com frequência a mesma pessoa era membro de Serafim Gonçalves, viúvo em primeiras núpcias de Rosa Barbosa,
de mais de uma Irmandade. Havia mesmo pessoas que eram africana que o mesmo libertou para com ela casar, e casado com
membros até de 8 Irmandades e isto, mesmo entre os membros de Maria do Bonfim, também africana, liberta pela filha de seu marido,
categorias sociais humildes como a de ex-escravos. Geralmente, nesse
Veríssima, sem profissão declarada, redige seu testamento em 1857
grupo social as preferências iam para as Irmandades do Rosário, de (441). Neste ato, se declara irmão das Irmandades de São Benedito e
São Benedito, do Convento de São Francisco e de Bom Jesus da de São Vicente Ferreira, ambas ligadas ao Convento de São
Redenção (438). Francisco. Pede que seu corpo seja amortalhado no hábito de São
Francisco e que seu enterro seja feito'com “a decência que for
Até por volta dos anos de 1860, raras eram as pessoas que possível”. Pede que sejam rezadas duas capelas de missas pela sua
deixavam a eleição de seus familiares à maneira com que desejavam alma e mais duas pela alma de sua primeira mulher, Rosa Barbosa.
ser sepultadas. Raras também eram as pessoas E)ue desejavam ser Deixa a sua filha Veríssima Maria Rosa de São José uma casa na Rua
sepultadas simplesmente, sem pompa nenhuma (439). E nos testa- de Baixo e “quatro crias, filhas de Maria do Bonfim ora minha
mulher, as quais serão batizadas e criadas como propriedade da dita
(438) - Cf. APEB. Seção Judiciária. Livros de registros de testamentos - 1803-1891. minha filha Veríssima” (!).
(439) - APEB. Seção Judiciária. Livros de registros de testamentos: no período
1790-1826. sobre 100 testados, todos eles de ex-escravos. somente 21.3*? dos homens e
(440) - APEB. Seção Judiciária. Livro dt Registro de testamentos. nv 2 fols. 154v-157:
24? das mulheres deixam à eleição de seus familiares o modo de ser sepultado. Já no
período 1863-1890. dos homens. 32? não mencionam o modo de sepultamenlo. 36? N.S. do Rosário das Portas do Carmo. Bom Jesus das Necessidades e Redenção. São
deixam à eleição de seus familiares e 23? especificam que deve ser sem pompa. Nas Benedilo de São Francisco. Santa Efigênia de São Francisco. N. S. do RpSário de Santa
mulheres, as respectivas porcentagens são 19.3.45.1 e 25.8?. Ana. N. S. do Rosário da Conceição da Praia. Bom Jesus dos Martírios.
(441) APEB. Seção Judiciária. Livro de registro de testamentos. nv 40, fols. 29v-32.
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Espetáculo público dos funerais que igualava assim ricos e que estavam vivendo sob o estigma da condição de cativo,
pobres, brancos e pretos, livres e recém-libertos numa mesma resocializando-os e dando-lhes uma nova personalidade. Evidente­
cerimónia de esplendor. Mas, quantos eram aqueles cujo corpo era mente para que isto fosse possível, certas normas e regras sociais
furtivamente conduzido para a sua última morada aos cuidados da deviam ser obedecidas à risca e estas eram geralmente impostas de
caridade pública? cima. O modelo de comportamento era um modelo branco, baseado
sobre as relações de tipo patriarcal de dominador-dominado, de
Xavier Marques nos deixou a descrição de um enterro pobre: protetor-protegido:
“Da Rua de Baixo surgiu o préstito de um enterro a mão, composto de
uma irmandade de negros, revestidos de capas de cor de lírio, negras “Bôto levantou-se, espiou e reconheceu Belmira, a lavadeira
de taboleirihhos e bandejas de flores, uma dentre ellas levando o “filha de santo1” , alta, magra, de saia branca e focinheira cor de
banco para descanço do caixão, no longo itinerário dos defuntos melado.
pobre'” (442).
Enfiou a cabeça pelo reposteiro e chamou-a:
Seja como for, a morte estava no centro das preocupações do Queres falar comigo?
baiano e o “bem morrer” seu último ato social. Morta a pessoa, seu Ai yoyô. É sua negra. Dá licença?
corpo era velado pelos familiares e a vizinhança até que fosse levado Entra por aquela grade.
para a Matriz de sua freguesia Depois da saída do corpo, o dono da
casa jogava um copo de água em direção do préstito fúnebre dizendo Introduzida no reservado da loja, Belmira rasgou um sorriso de
“eu te conjuro! Deus te leve”. Varria-se também a casa após a saída afago e requebrando os olhos raiados de açafrão, disse em tão de
do corpo para o defunto não voltar. Na volta do enterro, a família do lástima.
defunto oferecia aos que dele haviam participado um lauto banquete
em memória do defunto. Encerrava-se assim a vida daquele que tinha Sua negra ainda esta cativa yoyô...
vivido e que tinha amado (443). Como? desde que fizeste santo... ainda não le resgaste?
Não sinhô. Stou servindo à mãe do terreiro e o papai, trabalho na
Casamento, nascimento de filhos, aniversários, formaturas e horta no Matatu; quando venho de lá é para o serviço de casa na Rua
enterros eram eventos na vida das famílias baianas que ultrapassavam do Alvo. Manué quer me comprar, mas o dinheiro que ele tem não
os estreitos limites familiares para serem atos de vida pública chega...
partilhados por todos. Nos momentos de alegria, nos momentos de Quanto falta, Belmira?
tristeza, renovavam-se os laços de amizade, consolidavam-se freqúen­ Duzentos, meu sinhô.
temente as solidariedades entre os membros da parentela e da Duzentos mil réis? Caro te avaliaram. Mas isso te deve lisonjear
clientela sobre a qual toda família, a mais humilde que fosse, podia muito.
contar. As responsabilidades tornavam-se mais fáceis de serem
carregadas pois contava-se sempre com o apoio de um parente de um Eu quero voltar para onde está Manué. Vosmecê me ajuda voltar
amigo livremente escolhido. Não são raros os casos de chefes de para onde está Manué?" (444).
família que confiavam a educação de filhos menores a escravos de
confiança, liberados por cláusula testamentária. Assim de protegido o E evidentemente o Bôto emprestou o dinheiro que libertou a
escravo se tornava protetor da família que o tinha educado e formaao. Belmira que passou a ser sua obrigada e sua “cliente” nessa franja de
Essa troca incessante de serviços e de responsabilidades, da solidarie­ população onde o prestígio se contava pelo número de protetores que
dade humana que não desprezava nenhuma condição social, imposta se podia enumerar.
pela lei, mantinha a sociedade baiana aberta, facilitando o trânsito dos
Comportamentos de dependência que se refletiam em todos os
(442) - MARQUES XAVIER. Ofeiticeiro... op. cit., p. 70. escalões da hierarquia social mas que permitiam contatos dos quais
(443) - Estas páginas sobre o nascimento, a vida e a morte dos baianos baseiam-se no
livro de Carlos B. OTT. Formaçção e evolução étnica da cidade do Salvador ■o Folclore
baiano. Bahia. Mané Editora. 1955. 2v. v. I, p. 177-191. (444) - MARQUES XAVIER. O feiticeiro... op. cit.. p. 161.

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nasciam solidariedades que, em última análise, uniam seus membros no comportamento das Ordens Terceiras de São Francisco e do Carmo,
fora dos limites estreitos, impostos pela categoria social à qual o da Santa Casa de Misericórdia, fechadas para todos aqueles que não
indivíduo pertencia. E foi a família baiana, tomada no seu sentido fazem jus à cor branca ou a um elevado status económico, mas
mais amplo que possibilitou o nascimento de tais comportamentos também no comportamento de N. Sra. do Rosário dos Pretos da Baixa
ainda sobreviventes nos dias de hoje. dos Sapateiros, a mais prestigiosa Irmandade da Bahia que, sistemati­
camente, recusa a presença do branco.
Às Irmandades e Ordens Terceiras: como entidades de controle dos
comportamentos sociais. As Irmandades Religiosas, de brancos ou de pretos foram
inúmeras e não seria exagero avançar a hipótese que ultrapassam a
centena. Quer se trate de Irmandades brancas ou pretas a história de
Se a família, no seu sentido mais amplo, permite relacionamentos sua fundação é igual: um grupo de homens se reúne numa sociedade
individualizados, que põem em contato membros pertencentes a de tipo corporativo e elege uma Mesa Administrativa. Esta redige um
várias categorias sociais, definidas pela sua função sócio-econômica e Compromisso que tem que ser aprovado pelas autoridades civis e
pelo seu estatuto jurídico, as Irmandades e Ordens Terceiras servem religiosas. Compromisso em que se expressam as intenções religiosas e
também como centros de relacionamento social. As relações, do filantrópicas da Irmandade que pede assim seu reconhecimento legal.
comportamento individual, sobrepõe-se uma relação de grupo para
grupo, de estrato para estrato, dentro do esquema da estratificação As intenções religiosas eram aparentemente simples pois todas as
escravista e da hierarquia social que divide a população e dois Irmandades sem exceção se propunham zelar pela propagação da fé
estratos, os livres e os escravos. Hierarquia social que permite a católica. Mas aventa-se também a hipótese de que as Irmandades de
organização dos grupos dentro de cada estrato, que serve de ponto de pretos e mulatos, por exemplo, eram organismos sociais que permitiam
contato e, frequentemente, de veículo para apaziguar os antagonismos a conservação da herança cultural africana não tanto pelas práticas
que poderiam nascer de contato de dois grupos juridicamente hostis. religiosas que se iam conservando, mas principalmente pelas solida­
Dessa hierarquia um dos símbolos mais falantes são as Irmandades e riedades que ofereciam permitindo assim a resocialização e repersona-
Ordens religiosas. lização do negro dentro de uma sociedade global que, à primeira
vista, lhe era hostil. Resocialização e repersonalização que se eviden­
Já dissemos que as Irmandades e Ordens religiosas são manifes­ ciava pelo alto nível de assistência social que essas Irmandades
tações de um sentimento coletivo e que foram criadas para completar ofereciam ajudando seus membros a se libertarem (se fossem
a catequese da Igreja mas sobretudo para prestar a seus membros, escravos), a receber assistência financeira, quando necessitados, a ver
uma série de serviços de ordem social que a então administração local suas filhas moças amparadas no caso dos pais nada possuírem, e
era incapaz de manter. principalmente a oferecer a segurança de um enterro decente. Esse
tipo de solidariedade se estendia em todas as Irmandades e Ordens
Organizada nos moldes de uma Associação que possuía seus Terceiras e talvez não seja exagero dizer que na primeira metade do
próprios estatutos chamados Compromissos, a Irmandade foi, nos século XIX a quase totalidade dos baianos faz parte de pelo menos
primeiros séculos da colonização, a própria expressão do estatuto legal uma Irmandade religiosa. Essas Irmandades entram porém em
de seus membros vez que existiam lado a lado Irmandade de brancos, decadência a partir do momento em que os poderes locais (municipa­
de pretos e mais tarde de mulatos. Mas com o passar do tempo, com o lidade) começam seriamente a se interessar pelos problemas sociais de
desenvolvimento da miscigenação e com a multiplicação das oportu­ sua cidade, criando suas próprias instituições de amparo à população,
nidades económicas oferecidas que permite a formação de categorias (445) mas principalmente a partir do momento em que se criam
intermediárias, houve uma certa flexibilidade na maneira de conceber associações leigas que assumem o papel anteriormente desempenhado
a Irmandade religiosa. Ela deixa de ser unicamente a Instituição cujos pelas Irmandades.
membros são os brancos ou pretos, ou membros desta ou daquela
etnia para tornar-se mais tolerante, mais aberta, permitindo também Associações de grupos, de estratos sociais, as Irmandades e
o caldeamento social do baiano. Mas este fenômeno é reduzido. A
(445) - Af. RUY. História Pohiica e Administrativa... op. cit.. p. 559 e 594-594 e. A
tolerância exerce-se no nível das camadas médias da população e as História da Câmara... op. cit.. p. 306-307.
camadas altas permanecem tão intolerantes como antes: a prova está
219
218
Ordens Terceiras entravam em contato quando das celebrações O presidente da Irmandade arrogava-se, na oportunidade, impor­
públicas ou religiosas que pontuavam a vida social do baiano durante tância quase igual a do Imperador do Espírito Santo. Ia em pessoa
o ano civil e litúrgico. Essa lembrança de práticas sociais antigas é até convidar o presidente da Província, tratando-o então por “colega”. Já
hoje viva pois ainda se pode contar um bom número de festas se viu que alguns presidentes da Bahia foram irmãos do Senhor dos
religiosas e civis que continuam sensibilizando o cidadão baiano das Martírios. E todo ufano da sua efémera prestância. marchava à
categorias sociais médias e baixas. Festas religiosas como as da esquerda do delegado imperial, logo atrás do pálio.
Conceição da Praia que abre o ano litúrgico na Bahia, do Natal, de N.
Senhor dos Navegantes, de N. Senhor do Bonfim, do “Encontro” do
Senhor dos Passos e de sua mãe Maria Santíssima, da Procissão do Abriam o cortejo, seguindo imediatamente a cruz da Irmandade,
Senhor Morto na Sexta-feira da Paixão, da “queima de Judas’’ no Adão e Eva, expulsos do Paraíso Terreal, vestindo saial de penitência,
acompanhando-os o Anjo Exterminador, de espada flamejante em
Sábado de Aleluia, da procissão do Corpus Christi, da festa do
Espírito Santo, da festa de Santo Antônio de Pádua, de São Cosme e punho. Depois viam-se a Arvore do Bem e do Mal, e outros
“figurados” próprios das procissões antigas. Especialmente as quares-
Damião e da celebração do Dias de Todos os Santos e Finados. Festas mais. Por isso dizer-se que esta o foi, a princípio.
profanas das “congadas” e bailes pastoris e do carnaval; festas cívicas
de 2 de julho, de 7 de setembro e de 15 de novembro (446). Mas
no século XIX essas festas maiores da população baiana eram Vinham agora todas as irmandades dos homens de cor, existentes
enriquecidas por numerosas procissões de caráter religioso, organiza­ na capital, transportando os andores, que ultimamente saíam, de São
das por uma ou várias Irmandades e cuja lembrança ficou registrada Bernardo, São Domingos, São João do Prado, São Francisco de Paula,
na história como as procissões da Rasoura, das Quarentas Horas, do Senhor . Deus Menino, Nossa Senhora da Consolação, Santíssima
Triunfo da Cruz de Cristo, dos Fogaréus etc. Em “ Procissões Trindade, cuja representação em vulto é aliás proibida pela Igreja, e
tradicionais da Bahia” (447), José da Silva Campos nos deixou a mais outros três, em dias mui remotos. Por fim, em riquíssima charola,
descrição de várias delas. Nada melhor de que dar-lhe a palavra: a bela imagem do Senhor dos Martírios.

Uma das procissões mais antigas da Bahia era a de Senhor dos O andor da Santíssima Trindade de outrora tinha grandes
Martírios (Senhor Bom Jesus dos Martírios) cuja Irmandade era dimensões, de sorte que saía pelos fundos da igreja, passando pelo
formada por crioulcs naturais da Cidade da Bahia. Segundo Silva terreno, então devoluto, ora ocupado por um prédio, no lado
Campos, essa Irmandade existia desde o final do século XVIII e esquerdo. O que figurava ultimamente no cortejo, muito menor, era
primeiro funcionou filiada à Capela do Rosário das Portas do Carmo, de data recente.
passando depois para a Capela da Barroquinha (1779) que pertencia a
brancos. Extinta na primeira metade do século XX, a Irmandade Em dias passados, o trajeto da procissão fazia-se de porta a porta
crioula tinha membros honoríficos entre os quais figuravam os da cidade. Assim. Galgava a Ladeira de São Bento, indo até o portão
governadores e presidentes da Província: da Piedade, quando ali existia realmente uma daquelas portas.
Cruzavam a Praça da Piedade. Tornava pelo Duarte, Cabeça e Rua
“Tinha o préstito grande imponência, em dias idos, pelo seu luxo de Baixo. Subia o Largo do Teatro, ganhando as ruas do Pão-de-Ló e
e extensão. O acompanhamento era dos maiores que se viam em atos do Saldanha. Atravessava o Terreiro. Descia o Maciel, dando a volta
dè semelhante natureza, aqui na Bahia, pois a crioulada de ambos os ao Largo do Pelourinho, e pela rua das Portas do Carmo, Terreiro,
sçxos timbrava em acudir em massa, pondo à luz do sol as suas outra vez. ruas do Colégio, atrás da Sé, e da Misericórdia, praça e rua
mel..ores roupas, e exibindo quanto ouro possuía. O pessoar feminino Direita do Palácio, ia por fim recolher-se. Nos últimos tempos, porém,
do sodalício distinguia-se trazendo a tiracolo uma fita de seda roxa, reduzia- de muito e muito o seu giro.
bordada a ouro.
Ainda que há uns trinta anos passados tinha a procissão álgum
(446) C.B. OTT. Formação e evolução... op. cil.. p. 169-177. brilhantismo e mui grande concorrência, figurando no cortejo três
(447) - SILVA CAMPOS. José da. Procissões tradicionais da Bahia. (Obra póstuma).
Prefácio de .Arnaldo Pimenta da Cunha. Salvador. Secretaria de Educaco e Saúde. bandas de música. Havia tocata no adro da igreja, iluminação feérica,
1941, ornamentação profusa, e o mais.

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Decaída da sua velha pompa, era por derradeiro tosco e
malamanhado e pouco edificante arremedo do que fora até os fins do No seu artigo cincoenta e dois, estatuia o “compromisso” que
império, mais ou menos. Saiu a última vez, como é de crer em 1932 E “sendo a veneração do Senhor Bom Jesus da Cruz o principal fim
desta Confraria, por conta do Presidente e dos Mesários corre a
p ú b f ic o ” ' ( 4 4 8 ) ^ ° 6 m d h 0 r qUC n à ° VO' ta m a ' S 3 6 a P re s e n ta r disposição de sua festividade no dia 21 de Setembro de cada ano, e
quando acontecer ser dia de serviço, se faria a mesma festividade na
segunda dominga de Outubro, se antes o não puder ser”.
Outra procissão importante por seu esplendor e brilhantismo era
aquela organizada pela Confraria do Senhor Bom Jesus da Cruz Durante os últimos tempos, o dia consagrado à festa ficou sendo
fundada pela iniciativa de um pardo no século XVITT. E"sta confraria invariavelmente aquela dominga.
saía em procissão, ou em 21 de setembro de cada ano, ou então no
segundo domingo do mês de outubro: Saindo da Palma, seguia a procissão pelas ruas de Santo Antonio
da Mouraria, Ferraro, Independência, Gravatá, Tijolo, São Francisco,
A festa do Senhor da Cruz com a sua procissão dispendiosa, e Cruzeiro de São Francisco; passava por defronte de São Domingos,
conforme a qualificou Amaral, em 1880, foi até há poucos anos atrás e descia o Maciel de Cima; beiradejava o alto do largo do Pelourinho,
uma das mais concorridas e brilhantes da cidade. O dia era dos mais subindo as Portas do Carmo; atravessava pela segunda vez o Terreiro,
jubilosos, dos mais solenes para a população. Os mulatos, todos passando em frente da catedral; enfiava pelas ruas Direita do Colégio,
chibantes, todos ensimesmados, pois o Divino Salvador, sob aquela do Liceu e da Misericórdia; cruzava a Praça de Palácio, e descia a
invocação, era-lhe o Pai querido, tendo alicerce tal devoção na Rua Chile, dobrando a dos Capitães, que seguia até a ladeira da
circunstância de haver sido a festa instituída por um homem pardo. Praça; descia esta, atravessava o Largo de Guadalupe, e subia enfim a
Era dia escolhido para batizados, pedidos de casamento, estréia de Ladeira da Palma. Este foi o trajeto de 1893. Seria sempre o mesmo?
roupa nova, almoços opíparos, reuniões íntimas. Enfim’ um Deus-
nos-acuda no seio da sociedade café-com-leite, que saía à rua em Nenhuma procissão da cidade alta, exceção feita da do Senhor
massa, com os seus melhores vestidos, a fim de tomar parte nas dos Martírios, antigamente, fazia mais longo giro. E como seria para
solenidades internas e externas que se efetuavam na Palma. os andores descerem o empinado trecho final da Rua dos Capitães?
Não media sacrifícios a Irmandade a fim de que a festa do seu Avultado número de irmandades tomava pane n o tOiljc. no
Orago competisse em brilho com a das Angústias e da Conceição da qual figuravam São Guilherme, São Gonçalo Garcia, Santa Helena,
Praia ao tempo as de mor soada na Bahia, tirante a do Bonfim. Para Santo Agostinho, Nossa Senhora da Palma, e Senhor da Cruz. Nps
isso seus membros trabalhavam o ano inteiro. As diversões no rossio últimos anos vinha também a imagem de São M irtiniio. a qual e:>iu
da igreja tinham estupenda concorrência, mal se podendo locomover da charola ao.descer a procissão a ladeira da Praça, isso foi em 1925.
uma pessoa. Iluminava-se o quartel do 9°. cuja frente se elevava Muita gente, dada a horóscopos, vaticinou logo que nunca mais sairia
onde corre agora o muro traseiro do quartel-general da região militar, à rua o devoto préstito. E assim foi realmente” (449).
rranqueado o seu portão ao público, nos alojamentos das praças e em
outros cômodos do estabelecimento havia animadas danças Desta maneira, a sociedade global, até meados do século XIX,
conservando-se a Capelinha de Nossa Senhora do Rosário, erguida nò possuía, através da existência das associações religiosas, seus mecanis­
centro do pátio, aberta e acesa até tarde. mos de controle social que regulavam os comportamentos e as
relações sociais de seus membros e que possibilitavam a existência de
O presidente da Confraria apresentava-se na procissão de casaca hierarquias sociais, cujas bases repousavam sobre a estratificação de
e luvas de pelica, envergando opa de seda. Posteriormente foi a casaca tipo escravista e sobre critérios económicos sócio-profissionais. Lenta­
substituída pela sobrecasaca, ou pelo fraque. Mas as luvas de pelica mente, porém, esse panorama se altera. Como já aludimos, a partir da
ficaram como uma tradição. segunda metade do século XIX, as Confrarias e Irmandades religiosas
começam a ser substituídas por associações de classe que passam a
(448) -Idem. p. 78-82.
(449) Ibidem. p. 89-90.
222
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funcionar como novos mecanismos de controle dos comportamentos e título pomposo que traz o jornal que a mesma publicava, o Auxiliador
das relações sociais. da Indústria Comércio e Agricultura (451).
No mesmo ano e alguns meses mais tarde é fundada a
As associações de classe: novos mecanismos de controle social “Sociedade dos artífices”, sob a liderança e iniciativa de alguns
carpinteiros do Arsenal de Marinha, conduzidos por João Isidro
A partir da terceira década do século XIX, Ientamente mas Pereira. Associação de classe que se propunha principalmente desen­
seguramente, as Irmandades e Ordens Terceiras começam a perder o volver um programa de assistência entre os seus membros (4152). Aliás
seu papel absoluto de reguladores da sociedade. Novas associações essa preocupação com a assistência social é a tônica de todas as
criando novos tipos de solidariedade a eles se substituem. Por outro associações que se criam na época na Bahia, quer se trate de
lado, o Estado passa a executar uma série de tarefas que até então associação de .classe que reúnem operários e artesãos, ou de associa­
eram confiadas aos particulares, no que se referia à caridade pública. ções reunindo os representantes típicos do grande Comércio e da
Há também, difusa nas camadas superiores da sociedade, a vontade Produção. A diferença que existe entre os dois tipos de associações é
de sé aproximar cada vez mais do modelo das sociedades européias uma diferença qualitativa: os pequenos tentam se defender das
nas quais o sentimento e as práticas religiosas do.Ancien Regime estão incertezas do dia de amanhã, os grandes dos percalços que ameaçam o
em crise há mais de século (450). Ao que se deve acrescentar ainda o seu futuro.
desejo de aparecer como uma nova sociedade, liberal, despojada da E as associações se sucedem.
velha roupagem colonial e ansiosa para enveredar os caminhos do
progresso. As idéias filosóficas da época não são por pouco na Em 1840, como se não bastasse a “Sociedade de Comércio e
mudança dessas atitudes: liberalismo e positivismo são as duas Agricultura”, é instalada a “Associação Comercial da Bahia”, com­
tendências dominantes. A religião cessa de ser o denominador comum posta de banqueiros e de comerciantes, nacionais e estrangeiros,
de associação. A este se superpõe o da classe profissional, da corretores e auxiliares de comércio com o objetivo também, de
associação leiga. promover o comércio e agricultura. Segundo -Goes Calmon. sua
instalação coincidiu com o despertar de um grande surto de atividades
As primeiras associações deste tipo de que temos notícias datam comerciais, demasiado para as combalidas forças financeiras da época
1832. (453). Essa Associação vai desempenhar, no contexto económico e
social da Bahia, um papel preeminente, principalmente pela força
A 10 de março de >832 instalou-se no Convento da Vila São política que adquire, tornando-se o arbítrio nos problemas que
Francisco do Conde, no coração do Recôncavo, a “Sociedade de nascem e se avolumam com o passar do tempo (454).
Agricultura Comércio e Indústria’ composta de quarenta e quatro
proprietários e sob a iniciativa de Miguel Calmon de Pin e Almeida, O ano de 1854 vê nascer outras associações: A “Sociedade
futuro Marquês de Abrantes. O objetivo dessa associação de classe é Colonial” (sic) funda-se como uma sociedade de ajuda mútua dos
de fomentar as atividades económicas da província. Na realidade, requerentes e procuradores do Foro da capital baiana; a de Dezes-
formada por senhores de Engenho e Comerciantes da Praça, à seis de Setembro” congrega membros da comunidade portuguesa e se
sociedade objetiva dominar a cultura e comercialização do açúcar, ’e é propõe de dar assistência hospitalar a seus patrícios fundando um
mais uma sociedade de agricultura do que outra coisa, apesar do hospital na freguesia da Penha, em Itapagipe. O hospital é inaugura-

(451) - M ATTOSO. Katia M. deQueirós. Bahia: cronologia... op. cit.. p. 81.


0pa ril Cf'kH,L^ 9 'ChL' Pié' é haroci ue el déchristianisation en Provence au XVIIle (452) - Idem. p. 81. Essa associação ainda existia em 1880.
(453) - CALMON. Francisco Marques de Goes. Vida Económico-financeira da
. Religion et Rêvoluihin. La déchristianisation de l'an 11. Paris. Hachette. 1976 Bahia... op. cit.. p. 61.
Flammaríonm“ “”Wrpho'es de ,a f É,e en Provence de 1750 d 1X20. Paris. Aubier- (454) - SANTOS. Mário-Augusto da Silva. A Associação Comercial da Bahia na
Primeira República: um grupo depressão. Bahia. 1973. mimeogr. (Dissertação mestr..
OZOUF. Mona. Lafêie révolurionnaire. 17X9.1709. Paris. Gallimard 1976. Fac. Fil. e Ciên. Hum.. UFBa.).

224 225
do em 1866. Nesse mesmo ano de 1866 é criada a “Associação A década de 1870 e seguintes vêem florescer outras associações
Beneficiente Dois de julho” para o estabelecimento de um asilo para de classes.
os inválidos da guerra contra o Paraguai. Parece, entretanto, que essa
associação beneficiente nunca funcionou (455). Fundam-se a “Associação tipográfica da Bahia” com 68 membros
fundadores, e a “Companhia de operários livres União e Indústria'
Na mesma década dos 1860, em 1869 instala-se a primeira cuja principal finalidade era encarregar-se do tráfego de mercadorias
associação cujo objetivo é a libertação de escravos. Mas a Sociedade e gêneros despachados da Alfândega para o Comércio, bem como do
Libertadora 7 de-setembro não é a primeira associação desse tipo. embarque e desembarque de quaisquer volumes e sua condução nos
Segundo Manuel Quirino tinham anteriormente sido organizadas cais da cidade. Essa sociedade era composta de oitenta e cinco
sociedades de libertação de escravos que chamavam-se juntas. Essas cidadãos brasileiros e seu principal instituidor foi o crioulo Alferes
juntas reuniam um certo número de associados sob a liderança de um Hygino Carneiro que voltara do Paraguai, como também vários dos
dentre eles, aquele que maior confiança inspirava ao grupo, e formavam outros membros da Companhia. Mas, como a “Associação Beneficien­
uma caixa de empréstimos, financiada pelos pecúlios que te 2 de Julho”, esta também foi logo desorganizada: num regime
ia depositando cada um dos membros da associação. Não existia social onde ainda imperava o trabalho servil os proprietários dessa
nenhuma escrita das somas depositadas, porém, o responsável do mão-de-obra dificilmente poderiam aceitar a constituição de um
caixa possuía, para cada um dos membros da associação, um monopólio sobre uma das principais atividades económicas da cidade
bastonete sobre o qual ia marcando o dinheiro depositado. Os como era do transporte de mercadorias. Transporte ainda organizado
membros da junta reuniam-se geralmente nos domingos para efetuar com base nos “cantos” formados por africanos pertencentes a mesma
os depósitos e discutir sobre os empréstimos. Se um dos associados etnia, conforme foi visto em capítulo anterior (458).
tinha necessidade de alguma soma, possuía o direito de retirá-la,
pagando para esse efeito um juro proporcional ao tempo de duração A última associação de classe que foi formada no período que nos
do empréstimo. Evidentemente como não havia escrita, havia fre­ interessa foi a “Liga Operária Bahiana” composta por artistas
qúentemente erros ou prejuízo para os participantes. Algumas vezes, o (mestres em construção) brasileiros, em 1881.
ígf 5i

associado pedia o dinheiro necessário para a sua liberdade, mas mais


tarde pagava em juros o duplo da soma que havia pedido. No final de Todas essas associações de classe, formadas por trabalhadores
cada ano, como se faz nas sociedades económicas a responsabilidade qualificados e mesmo sem nenhuma qualificação, marcam o desejo de
limitada, havia distribuição de dividendos (456). Assim com suas se romper com as velhas tradições coloniais, num momento especial­
atividades de amparo, a junta de inspiração leiga, se substituía a mente crítico na Bahia quando a sua economia atravessa crises
missão então exercida pelas Irmandades religiosas. Essa concorrência sucessivas que lhe serão, até certo ponto, fatais. Assim o espírito de
pode talvez ter decidido da sorte das Irmandades religiosas que solidariedade, formado por práticas seculares de associação, cria
entram pouco a pouco em decadência. Algumas dessas juntas novos mecanismos de defesa que se não chegam sempre a atingir os
chegaram até nós mais sob a forma de sociedade de libertação mas seus objetivos, perpetuam, entretanto, o modelo de uma sociedade de
sob aquela de associações de ajuda mútua como a conhecida fundamento coletivista. Os comportamentos sociais, individualizados
“Sociedade Protetora dos Desvalidos”, cuja sede encontra-se ainda no no bojo da família que tece a tjama das relações sociais, encontram
coração da velha cidade, no Cruzeiro de São Francisco. Ainda no sua expressão externa nas novas associações de grupo de caráter
mesmo ano de 1869 organizou-se mais uma sociedade abolicionista, a socio-profissional. Esta é talvez a grande inovação da segunda metade
“Sociedade Humanitária Abolicionista” e, em 1883, a “Sociedade do século XIX que vem romper com a velha tradição colonial na
Libertadora Baiana” que, quatro anos mais tarde mudou seu nome procura de novos mecanismos reguladores do equilíbrio social. Mas,
para “Sociedade Abolicionista Baiana” (457). até 1889, a sociedade baiana é uma sociedade ainda aberta, hierarqui­
zada, na qual os contornos das categorias sociais que a compõem
permanecem ainda fluidos e imprecisos. Essa fluidez, essa imprecisão
(455) —MATTOSO. Katia M. de Queirós. Bahia: cronologia... op. cit.. p. 98. 109.
das categorias sociais gera frequentes contestações que se evidenciam
(456) - Apud P. VERGER. Fluxe rejlu.x... op. cil.. p. 518-519.
(457) - PIERSON. D. Brancos epretos... op. cit.. p. 135 e passim. (458)- MATTOSO. Kalia M. de Queirós. Bahia: cronologia... op. cil.. p. 112.

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gestação do Estado, os conflitos tornam-se mais raros mas, de certa
nos movimentos populares que pontuam a história da Bahia no século forma, também mais explícitos, apesar da manutenção de um
enquadramento sócio-econômico que permaneceu inalterável. Daí a
XIX. Esses movimentos são estritamente ligados às condições de uma
conjuntura extremamente precária e não podem dela ser dissociados. necessidade de distinguir as duas fases e tentar encontrar os argumen.
tos que se não explicam, pelo menos permitem avançar algumas hi­
póteses.
Tensões sociais, motins e revoltas armadas no século XIX
As tensões sociais que se manifestam no momento da descoloni-
Das tensões sociais que geram conflitos pouquíssima coisa zação e da gestação do estado nacional (1808-1850) são de duas
sabemos a não ser quando se trata de movimentos revoltosos, ordens. Há. de um lado, as tentativas de levantes e revoltas,
caracterizados como nitidamente políticos, como é o caso, por organizados e dirigidos por líderes oriundos da população servil e, poi
exemplo, da Sabinada em 1837 (459). Na verdade, a análise dessas outro lado, os motins, levantes e revoltas, conduzidos em nome das
tensões se complica pela existência de uma superposição de interesses lideranças locais e que principalmente sensibilizam os membros da
divergentes.emanados das diversas categorias sociais da sociedade baiana população livre da cidade do Salvador. Contemporâneos, esses
e que desabrocham sobre conflitos que opõemjas categorias privilegiadas levantes e revoltas possuem, contudo, motivos que lhe são próprios
entre si e estes mesmos privilegiados aos menos bem aquinhoados apesar de terem nascido no mesmo ambiente e terem sofrido as
mesmo se, aparentemente, sua materialização em lutas armadas apre­ consequências da mesma conjuntura política e económica.
sentam, à primeira vista, um desenrolar coerente e unívoco (460).
É rica a cronologia dos levantes de negros na Bahia entre 1807 e
No estudo das tensões em Salvador do século XIX, Darece-nos 1835 (462). Liderados por escravos da nação Haussá, o levante de
apropriado distinguir duas fases. Evidentemente esse corte não 1807 (28 de maio) havia planejado reunir nas portas da cidade os
objetiva romper a continuidade do processo histórico, mas apenas escravos vindos dos engenhos do Recôncavo com os da urbe que
salientar algumas caracteríisticas próprias a cada uma dessas fases. conjuntamente, atacariam os brancos, matariam seus senhores, enve­
nenariam as fontes públicas e tomariam algum dos navios ancorados
Num sentido amplo, a primeira fase abrange os ar.os compreen­ no porto para seguirem viagem para a África. Denunciado a tempo, o
didos entre 1808 e 1850. Isto é, desde a transmigração da família real levante foi frustrado e seus líderes foram condenados à morte.
portuguesa até os últimos sobressaltos (461) que sacodem o governo Todavia, essa ação punitiva não impediu que se reproduzisse uma
pessoal de Dom Pedro II, já assumido em 1840. Caracterizado em nova inssurreição. Nos meses de dezembro-janeiro de 1808-1809, novo
grande parte pelas lutas em prol da Independência nacional, este levante foi organizado por escravos Nago e Haussá, unindo mais uma
período é ainda o palco no qual se estrutura e se assenta a organização vez os escravos do campo e da cidade. Desta vez o segredo foi muito
político-administrativa que dá, ao Estado nascente, sua feição definiti­ bem guardado e a$ autoridades da época foram obrigadas a uma
va e coesa. verdadeira ação militar atacando os insurretos nas suas posições
entrincheiradas no caminho das Boiadas, a cinquenta quilómetros da
A segunda fase, corresponde aos anos de 1850 e 1889, anos que se cidade. Outro levante em 1810- foi igualmente reprimido pelas tropas.
apresentam como sendo os da consolidação da Independência e do Quatro anos mais tarde, eram os escravos das pescarias de Manoel
Regime Imperial. Com efeito, nesse período as tensões sociais Ignácio da Cunha Menezes, de João Vaz de Carvalho e de alguns
aparentemente perdem da violência que possuíam na época da lavradores das redondezas que a 28 de fevereiro atacavam as
instalações pesqueiras, matando o contramestre e sua família e alguns
brancos que alí se achavam pondo em seguida fogo nas instalações.
(459) - VIANNA FILHO. Luiz. A Sabinada. Rio de Janeiro. José Olvnipio Edilora. Após uma resistência de várias horas no povoado de Itapoã, as tropas
1938
de infantaria e cavalaria da cidade venciam. No campo de batalha
(460) - Ver o excelente estudo de João José Reis. A Elilc Baiana face uns movimentos
sociais. Bahia: 1X24-1X40. Revista de História (São Paulo) 108: 341-384. 1976 -
Utilizamos este estudo para a análise dos movimentos sociais da fase 1808-1850.
(461) - As revoltas nas Alagoas( 1844). Farroupilha (Rio Grande do Sul, 1835-1845) (462) -• P. VERGER. Flux e reflux... oo. cit.. p. 328-350.
ea Praieira (Pernambuco) de 1848 - 1850.

229
228
contavam operar sua junção com os escravos dos engenhos do
eram encontrados os corpos de cinquenta e seis negros, quase todos Recôncavo. Este plano tinha mais chances de sucesso que as
Haussá. Segundo os testemunhos da época os lemas dos ínsurretos precedentes tentativas de levantes que sempre começavam fora da
haviam sido “Liberdade! Viva os Negros e seu Rei” e “Morte aos cidade e tornavam as chances do ataque final problemáticas, pois as
Brancos e aos Mulatos”. Em fins de maio do mesmo ano o advogado tropas encontravam-se geralmente alertas e na defensiva” (464).
Lasso denunciava ao governo da Bahia a organização de um novo
levante de Haussás previsto para a véspera de São João com a ajuda Foi uma denúncia de última nora que fez malograr a revolta.
de negros de outras raças^da cidade e do Recôncavo. As investigações Mesmo assim, durante algumas horas, o pequeno grupo dos insurretos
feitas na época não permitiram verificar a veracidade da denúncia conseguiu intimidar os guardas do palácio, resistir ao batalhão de
mas mesmo assim o então governador, Conde dos Arcos, proibiu os infantaria e obrigar a polícia a se fechar no quartel da Mouraria,
divertimentos habituais às festas juninas. A 15 de novembro o tendo apenas encontrado alguma resistência e contra-ataque no
tribunal condenou os inculpados no movimento de 28 de fevereiro em quartel de Cavalaria, em Água de Meninos (465). Organizado por
Itapoã: quatro escravos de Manoel Ignácio foram enforcados na africanos de religião muçulmana o levante visava fazer a guerra aos
Praça da Piedade na presença das tropas e de populares e vinte e três brancos e dele participava um grande número de escravos alforriados,
foram açoitados e deportados para Moçambique. Levantes localiza­ na sua maioria, Nago, liderados por letrados Haussá, Nago e Tapa. As
dos no Recôncavo e nos arredores da cidade ainda se verificaram em condenações foram severas pois os cabeças do movimento foram
1816 e 1822. Aproveitando-se do clima de insegurança e inquietação executados e os outros inculpados em número de 286 (260 homens e
geral que se instala em Salvador nos anos que diretamente se seguem 26 mulheres) açoitados, condenados às galeras ou deportados para a
à proclamação da Independência, novos levantes de escravos se África (466).
verificam em 1826, 1827, 1828, 1829, 1830 e 1835. Destes levantes os
mais importantes são os dois levantes urbanos de 1830 e 1835. O Apesar de imperfeitamente estudados nas suas motivações pro­
levante de 10 de abril de 1830 segue-se ao assassinato do Visconde de fundas, não há dúvida que os levantes de escravos nesse período
Camamu, presidente da província (28 de fevereiro). Várias lojas da obedeceram a uma linha de preocupação que dificilmente se aparenta
cidade baixa que vendiam armamentos foram atacadas e os insurre- com as linhas político-ideológicas que inspiram os motins e revoltas
tos, após terem liberado escravos recém-chegadbs da África, que se da população livre de Salvador. O que importa para a população
encontravam no depósito de Wenceslau Miguel d ’ Almeida, e terem escravizada é conseguir a sua liberdade e freqúentemente, como é o
resistido às investidas da polícia refugiavam-se nas matas de S. caso por exemplo do levante de 1807, os meios para retornar a África.
Gonçalo e de Oitim onde, mais tarde, seriam aniquilados pelas Por outro lado, a hostilidade manifestada contra os brancos e mulatos
tropas. Mas não há dúvida que o ultimo levante de escravos, o de nos parece ser muito mais uma atitude consciente contra a população
1835, foi o mais grave de toda essa série de inssurreições. Cuidadosa­ livre que goza de privilégios a ela negada, do que uma atitude de
mente preparado, este levante devia iniciar-se na madrugada da oposição racial, tendo em vista a ampla miscigenação da população
dominga de 25 de janeiro em que se celebrava a festa de N. S. da Baiana e a inexistência de fronteiras raciais nitidamente demarcadas
Guia na Igreja do Bonfim onde, segundo a tradição, reuníam-se desde em todos os escalões da sociedade de então. A conquista da liberdade
a véspera os habitantes da cidade. “A hora prevista era aquela em que era o pré-requisito absoluto da inserção na sociedade global, o bem
os escravos saíam das casas para irem buscar água nas fontes públicas. mais precioso e a visão do “branco” como inimigo não se prende à cor
Assim podiam se juntar em grande número aos insurretos. O plano da pele mas sim ao fato que ele representa o cidadão à part-entiére
havia sido inteligentemente estabelecido. Os revoltosos deviam simul­ cujos privilégios são meios de existência e de sobrevivência.
taneamente provocar incêndios em vários pontos da cidade para
distrair a atenção da polícia e da tropa e atraí-los fora de seus Mas, finalmente, quem se aproveita desses levantes? Evidente­
quartéis. Os revoltosos aproveitar-se-iam assim da confusão para mente não são os insurretos nem a população escravizada que vê sua
atacá-los e desarmá-los (463). Uma vez donos da cidade, os revoltosos-
\
(463) - Naquela época, as Corças policiais da cidade eram bastante debilitadas pois (464) - P. VEGER. Flux e rejlitx... op. cil., p. 335-343.
saíam de um período, de crise aguda motivada pelos movimentos políticos dos anos de (465) - Idem p. 338.
1830. 1831. e 1833. e pelo fato de serem pouco numerosas, não ultrapassando as 500 (466) - Ibidem. p. 346-350.
praças.

231
230
relativa liberdade cerceada: o levante de 1807 teve como resultado a opinião de pessoas sem. vivência com a realidade social e racial da
proibição da livre circulação dos escravos após as nove horas da noite Bahia e que viam os problemas com olhos de verdadeiros brancos que
sem a autorização de seu se ior; após o levante de 18 14 proibem-se as eles eram. Para os baianos, os “brancos da terra”, o argumento “perigo
batucadas de dia como de noite apesar de consideradas como um negro” era muito mais um elemento de tática e de estratégia, do que
divertimento que tinha como objetivo tornar os escravos alegres(467). uma convicção realmente profunda. Argumento semelhante ao utili­
Uma postura municipal de 1833 punia com 8 mil réis de multa ou 4 dias zado em outras sociedades da época; os pobres de Paris e as classes
de prisão os donos de tendas, botequins e tavernas que permitissem “a proletarizadas não eram então vistos como “classes perigosas”? (471).
demora de escravos por mais tempo que o preciso para as compras que
vão fazer” (468). Outra postura municipal proibia a venda de armas ou Todavia, a população escrava não possui o monopólio da
de instrumentos cortantes a escravos. Disposições legais que ao infligi­ agitação e da intranquilidade pública. Entre 1822 e 1837, aos levantes
rem multas severas aos proprietários dos escravos faltosos conseguem negros se sobrepõem motins e revoltas lideradas por membros da
enquadrar estes controlando-lhes todos os movimentos e não há dúvida população livre que são, acreditamos, manifestações das tensões
que a montagem perfeita desse aparelho de repressão seja uma das sociais internas que existem no momento da descolonização. Estas
causas da ausência de levantes de negros a partir da década dos 1840. tensões se desenvolvem em dois níveis. Há, primeiro, as contradições
que existem no bojo da própria elite baiana. Entre 1822 e 1837 dois
Os grandes aproveitadores dos levantes dos negros são as classes parecem ter sido os problemas fundamentais. O primeiro,
dominantes que utilizavam o espectro da “avalanche negra” para desenvolveu-se em torno da oposição já manifesta nos últimos
aterrorizar as camadas livres da população obrigando-as a se subme­ decénios do século XVIII entre nacionais e portugueses. Tal oposição
terem à sua autoridade e direção isto quaindo lhes convém. Todavia é originava-se, sem dúvida, de razões económicas. Repetidas vezes era
importante salientar que, na realidade, o argumento “perigo negro” é denunciada a dependência em que a classe produtora - formada na
parcimoniosamente utilizado pelas elites baianas. Pelo contrário, os sua maioria de brasileiros natos - se achava do grande comércio,
baianos nãó hesitam em servir-se da população de cor em circunstân­ quase por inteiro nas mãos dos portugueses, principais beneficiários
cias extremamente delicadas como quando da formação de batalhões de uma atividade ejconômica que por seu turno dependia das
que lutaram nas guerras da Independência, ou contra os revoltosos da condi|ções do mercado externo. O segundo problema, que se configu­
Sabinada em 1837 (469). Quem mais explora o tema do perigo negro ra como uma oposição nacional à administração colonial portuguesa,
na Bahia são os estrangeiros aqui residentes como os cônsules Jacques atinge o seu auge com a proclamação da Independência.
Guinebaud (francês), William Pennel (inglês) e o comandante naval
francês Albert Roussin (470). Mas se tratava evidentemente da
Esta gerou a esperança do estabelecimento de uma administração
favorável aos interesses nacionais e, principalmente, aos das classes
(467) - Ibidem. p. 329-330. Ver também a postura municipal n'1 70 in Livro de produtoras. Foi em tomo desses dois problemas que giraram as
Posturas M unicipais: I829-IR5V. fols. 38-39. reivindicações das elites baianas de 1822 a 1837 e as guerras de
(468) - A.M.S. L ivro de Posturas M unicipais: 1829-1859.
foi. 37.
(469) - O batalhão dos "periquitos" que. por exemplo, se amotina em 1824 era Independência (1822-23), as revoltas federalistas de 1831 e 1832 e a
composto por soldados pardos. Em 1837. a Sabinada incorporou os negros entre as suas Sabinada de 1837-38, foram à procura de soluções quais sejam a
mglhores tropas organizando o batalhão chamado "Leões da Pátria”. E só podia ser libertação económica do domínio luso representado pelos mercadores
assim numa cidade onde 70rí da população era declaradamente de cor. portugueses e a criação de condições que tomassem a economia baiana
(470) - O cônsul J. Guinebaud escrevia ao Ministro da Marinha em 5 de dezembro indeperídente de toda ingerência nacional ou estrangeira. As atitudes
de 1824 o seguinte: "É de se supor que o Imperador abrirá enfim os olhos sobre o antilusas assumidas pela elite local após um ano de tergiversações
extremo perigo de admitir Negros em suas tropas. A casta negra, liberta ou crioula (sic).
é sempre mais ou menos objeto de desprezo dos brancos. A situação social lhes inspira
então o horror de seus senhores, e os coloca em oposição ao seu sistema de independência da B ahia ( IR22).
Anais do Arquivo Público (Salvador). 41: 116-168. 1973.
civilização". MATTOSO. Katia M. de Queirós. O Consulado fra n c ê s na B ahia em 1824. p. 131.
Anais do Arquivo Público (Salvador). 39: 149-221. 1970 p. 213. - E William Pennell declarava em 1823 que com a próxima saida das tropas
- Por sua vez Albert Roussin declarava em 1822 "separados pelos interesses e planos do portuguesas a população da Bahia ficava exposta ao perigo da população negra. Apud
futuro, deveriam pelo menos unir-se contra a gente de cor exatamente o que não P. VERGER. F lu.xe reflux... op. cit.. p. 333.
fazem: jrelo contrário, foram vistos procurar muluamenle a assistência desses perigosos (4 7 1 ) _ CHEVALIER. Louis. Classes la horieuseset classedangereuses. Paris. Plon.
aliados". MATTOSO. Katia M. deQueiros. A lherl Roussin: testem unha das lutas pela 1958. p. 566.

232 233
(472) as lutas contra um Estado novo com pretensões centralizadoras justifica numa sociedade que, apesar de imperfeitamente conhecida
e de dominação económica dão a tônica a todos esses movimentos. pode, todavia, ser visualisada como composta por um grande número
de indivíduos (477) que vivem no limiar da pobreza por força mesmo
Porém, as tensões que se desenvolvem a nível das elites locais nãó do tipo de trabalho social que executam - artesanato e pequeno
são únicas. Contradições também existem entre as classes dominantes comércio. O saque das lojas portuguesas abarrotadas de mercadorias
e as camadas populares que imprimem aos movimentos que eclodem “era uma promessa dada e freqúeiitemente realizada pelas tendências
um caráter social na medida em que “no escuro campo da ira popular aparentemente mais radicais desses movimentos e o espólio da luta
contra o elemento português, começa a se esclarecer uma série de deveria ser uma visão agradável aos olhos de gente tão espoliada por
interesses próprios, embora imediatistas dos rebeldes. Não se tratava senhores, atravessadores, negociantes, espoliação intensificada pela
mais apenas de uma luta entre “ patriotas” e “marotos” mas *sim de crise do tempo” (478).
pobres versus ricos” (473). Não são políticos nem tão pouco ideológicos
os motivos que arrastam as camadas populares na aliança precária Não há dúvida de que os movimentos sociais na Bahia, depois da
com as camadas dominadoras da sociedade. A batalha que estas Independência e até mesmo do século XIX, são manifestações que
empreendem é uma luta pela sobrevivência, por uma porção de evidenciam as tensões existentes no momento da descolonização entre
farinha, por um emprego, numa época de crise económica que resulta as camadas sociais que forma a elite da cidade de Salvador (brasileiros
da desorganização da produção que eleva os preços dos produtos de natos e portugueses) e entre essa mesma elite e as camadas populares.
subsistência e mantém os salários em níveis baixos (474). Foi essa Todavia, as contradições’que abalaram a coesão das classes dominan­
necessidade de sobrevivência que levou pouco a pouco os mais pobres tes encontraram sua solução na nova aliança que se concluiu entre a
a se cobrirem com bandeiras como a “República” ou a “Federação’’ classe produtora e a classe mercantil, entre os brasileiros natos e os
pois sobre tais fórmulas politicas não tinham aparentemente nenhu­ portugueses. Com efeito, foi preciso muito pouco tempo para que o
ma noção exata, a não ser aquela percepção de concretude apenas sentimento lusófobo das classes dominantes se transformasse em
reivindicatória que clamava contra a falta de pão e o abuso da lusófilo, quando ficou patente a necessidade que havia de restabelecer
opressão” (475). Com efeito, em quase todos os movimentos e revoltas os laços económicos que uniam produtores e comercializadores dos
que se verificam entre 1822 e 1837 o espectro da fome que ameaça a produtos primários de exportação. A partir de 1828 (479), são
população de Salvador parece ter sido o elemento motor de sua inúmeros os pedidos que clamam o retorno dos capitalistas portugue­
participação e ação, evidenciada pela dose de espontaneísmo que os ses à Bahia e são as próprias classes produtoras, as que tinham
caracterizou. Concordamos com João José Reis quando escreve que “c lançado a fórmula antilusa, que mais insistem em nome da “natural”
espontaneísmo das irrupções sociais desse período, se traduz nas inclinação do brasileiro para a “nobreza e a agricultura” (480).
dificuldades que os rebeldes frequentemente encontram em exprimii
qual seria exatamente o conteúdo de suas reivindicações. Afinal (4 7 7 ) _ Nas grandes cidades industriais da França no século XIX a percentagem dos
contra o que lutavam? Que realidades pretendiam reformar e qual a pobres é de aproximadamente 709F. Não seria exagerado calcular para a Bahia na
profundidade dessa reforma? Quais as soluções propostas? Os méto­ mesma época uma percentagem em torno de 90H.
dos de mudança? São perguntas que dificilmente recebem respostas a (478) —J.J. REIS. A Elite Baiana... op. cit.. p. 372.
(479) - Ver /Correspondência dos Presidentes da Província ao Ministério do
partir do corpo de proposições levantadas pelos insurgentes. Nenhum Império" no APEB. série Pesidência da Província, anos 1827-1835.
programa a ser cumprido a longo prazo parece ter sido traçado...’’ (480) - Na representação dos proprietários do Recôncavo de 18 de maio de 1831
(476). O espectro da fome como elemento motor das revoltas se lê-se o seguinte: “A agricultura sofre, e desfalece quando não tem Capitais para
sustentar e refazer a sua fábrica: estes são indispensáveis em toda a parte, e muito mais
no Brasil, cuja riqueza hé sempre dependente dos produtos de sua lavoura, e esta
também depende dos avanços dos capitalistas, que para pobreza e vergonha da Nação
(472) - TAVARES. Luís. Henrique Dias. A Independência do Brasil na Bahia. Rio de vão ser agora deportados... O comércio perseguido, e atacado sem segurança algumg.
Janeiro. Civilização Brasileira. 1977. fugitivo levando consigo muitos mil contos de réis em valores reais (...) deixa esta
(473) - J.J. REIS. A Elite Baiana... op. cit.. p. 343. Província vaziadecapilaes e de concorrentes no mercado, onde nossos gêneros descerão
(474) - MATTOSO. Katia M. de Queirós. Sociedade e Conjuntura na Bahia nos anos do nível de seu custo: mesmo nessa minguada produção que possa depois obter-se. e
de luta pela Independência. Universitas (Salvador) 15/16: 5-26. 1973. não havendo produtos do Paiz. já pela falta dé capitaes. já pela baixa de preços, que
(475) - J.J. REIS. A Elite Baiana... op. cit.. p. 343. desanimão aos seus produtores como poderá prosperar a Patria. a Nação..." Apud J.J.
(476) - Idem. p. 370. REIS, A Elite Baiana... op. cit.. p. 366.

234 235
Mas por outro lado, a “paz social” não concernou a totalidade da Evidentemente, tal situação provocava a carestia dos gêneros de
população. Entre camadas dirigentes e categorias populares as primeira necessidade para a alimentação da população (482) e esta
contradições sociais, por volta de 1840, não trouxe, em definitivo, era “uma das mais graves questões que ocupa o espírito público”,
nenhuma modificação estrutural importante que a estas favorecesse. como declarava o presidente João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu,
Pelo contrário, a solução das contradições no seio das elites, o em 1857.
fortalecimento do Estado Nacional, a organização do governo provin­
cial permitiram o estabelecimento de um aparelho de vigilância e de Para sustar a constante majoração do preço da farinha, a Câmara
repressão que se, nem sempre dominou as explosões da ira popular, Municipal votava, em 16 de janeiro de 1857 uma resolução localizan­
contudo contribuiu para a manutenção do status quo. Desprovidas de do a venda daquele gênero nos barcos, no celeiro e nas tulhas
lideranças que soubessem encaminhar suas reivindicações no plano municipais, sendo estas abertas em todas as freguesias da cidade.
político, as categorias populares da cidade do Salvador mostram-se Porém o presidente da província suspendeu por seis meses a execução
pouco combativas. De 1850 a 1889 apenas dois motins populares do ato municipal, até que a Assembléia resolvesse. Diante das
ocorrem na cidade apesar da presença de crises sociais tão importan­ tergiversações do poder provincial, a Câmara resolveu executar a
tes quanto as que se verificaram na primeira metade do século. postura. Porém o governo manteve sua posição garantindo os
comerciantes pela polícia e suspendeu os vereadores por seis meses. O
O motim de 28 de fevereiro de 1858 inscreve-se num período epílogo foi o motim denominado de “carne sem osso e farinha sem
onde as crises epidêmicas entremeiam-se com crises de abastecimento caroço”. “Tomando como pretexto a transferência das penitentes da
da cidade, devidas às intempéries climáticas. As crises epidêmicas são Misericórdia para a Lapa, o povo reunido na praça do palácio, em
ligadas ao surto da febre amarela que debilita a população da cidade í
atitude hostil, protesta contra a alta dos gêneros alimentícios e
entre 1849 e 1854, imediatamente seguida pela do choleramorbus que clamando pela baixa dos preços da farinha, invadiu o paço da
castiga severamente os soteropolitanos e os habitantes do Recôncavo Câmara, subiu à torre cujo sino foi tocado a rebate e aos gritos de
nos anos de 1855 e 1856. Por outro lado, os anos de 1851 e 1852 foram “queremos carne sem osso e farinha sem caroço” tornou à rua,
extremamente chuvosos, destruindo as safras não somente dos apedrejando o Palácio do Governo, partindo as vidraças e ferindo o
produtos de exportação mas também de gêneros de primeira necessi­ capitão Elias Rodrigues da Silva, comandante da guarda, só serenan­
dade como a farinha de mandioca. A esses anos de chuvas ininterrup­ do os ânimos pelas 7 horas da noite, com a interferência das patrulhas
tas seguem-se, a partir de 1853, anos de seca. Circunscrita nas áreas militares” (483).
sertanejas da província, a seca atinge também o litoral em 1858.
Epidemias e intempéries climáticas acabam por desorganizar o Em consequência do definhamento da lavoura por causa da falta
mercado consumidor da cidade cujo abastecimento também dependia de braços para os trabalhos agrícolas e da terrível seca que assolava o
de importações de gêneros alimentícios do exterior ou de outras nordeste desde 1877 os preços dos gêneros de consumo estavam
regiões do país. No seu relatório o então presidente da província, novamente em alta sensível nos primeiros meses do ano de 1878.
Álvaro Tibério de Moncorvo e Lima declarava em 1856: “uma das Existia na cidade do Salvador, grande estoque de farinha de
dificuldades que muito nos ameaçarão durante a epidemia cholerica mandioca mas o preço continuava subindo, tornando-se quase
foi a falta de carne verde e de farinha, gêneros de que a nossa inacessível a algumas classes. A principal causa, denunciada pelo
população faz o seu ordinário alimento, aumentando-se o receio de próprio presidente da província, Barão Homem de Mello, era a
uma fome, por se dar também nessa época falta de carne seca, e ser o exportação da farinha para fora da província. Algumas casas de
peixe e o bacalhao geralmente repelidos como nocivos à saúde, além comércio despachavam com antecipação grandes quantidades de
de ser o peior o suprimento do último, que em sua maior parte farinha e para satisfazer esses despachos enviavam agentes às cidades
achava-se deteriorado. Sofrendo esta capital os rigores da epidemia e mercados do interior, encarregados de comprar por mais alto preço
todos fugirão de aproximar-se-lhe, e pois os lavradores, criadores e toda a farinha que encontrassem, e no porto da capital compravam
negociantes principiarão a encurtar suas relações, começando logo a
sentir-se a falta com o seu encarecimento, e a do gado pelas escassas
remessas, que não chegarão para o abastecimento do mercado” (481). (482) Ver na III parte a análise das curvas de preços dos principais produtos
alimentícios nesse período.
(481) - FALLA. recitada na Assembleia Legislativa da Bahia (1856) p. 85. ('483) -A. RUY. A História da Câmara Municipal... op. cit.. p. 221.

236 237
todos os carregamentos que entravam. Para proteger o consumidor
baiano, a Câmara Municipal propôs o controle da exportação do PARTE III - O mercado de Salvador no século X IX
gênero,' o que provocou protestos dos comerciantes que viam na
medida, que queria proteger a cidade da fome, uma restrição à LIVRO I- O Mercado
liberdade do comércio. Serri que chegasse verdadeiramente a se
amotinar, na noite de 30 de março, o povo dirigiu-se em grande
multidão ao Palácio da Presidência, pedindo medidas que “fizessem
cessar o estado aflito em que iam sendo arrastadas as classes menos
favorecidas”. E Rui Barbosa comentava na ocasião: “quando as crises
alimentícias dizimam ã subsistência do povo, o pobre pão de sua
mesa, vozes absurdas, incríveis percorrem as camadas, preparando
surdamente a desordem”, e relembrava “não fique esquecida a
truculência perversa que o grito parvo e mau de carne sem ossos e
farinha sem caroço, por mais irrisório que seja e por mais inofensivo
que pareça, foi a senha entre nós, de um movimento sedicioso, de uma
farsa de violência, cujo desenlace, bem cheio de sangue podia ter
sido” (484). Severa advertência do político baiano mas que surtiu
efeitos mitigados: na reabertura dos trabalhos da Assemblèia, Anto- Cidade nos campos, cidade por excelência comercial, cidade
nio Carneiro da Rocha, deputado, apresentou dois projetos de lei que metrópole regional e centro de distribuição de mercadorias, a cidade
reforçavam as medidas propostas pela vereiação: a criação de um do Salvador, no século XIX, é contudo uma cidade que sofre de mau
imposto de 100 réis sobre cada litro de farinha exportada e a abertura abastecimento, da má distribuição de gêneros de primeira necessida­
de um crédito de 100 contos para a compra de farinha e sua venda ao de, indispensáveis à manutenção de seus habitantes em crescimento.
povo a preço de custo (485). Tratava-se, todavia, de medidas Mau abastecimento e má distribuição dos quais são responsáveis não
paliativas pois a estrutura e o funcionamento do mercado de somente os homens gananciosos mas também o solo que se usa, ó
abastecimento da cidade ficavam inatingíveis. A curto prazo, tempo que faz, as grandes distâncias que separam com frequência as
tranquilizava-se a turbulência da população; a longo prazo, os áreas de produção do centro de consumq e o incesfante vai e vem de
problemas permaneciam insolúveis. É desses problemas que falare­ uma população flutuante que vive deste mercado. Mas queTnercado?
mos em seguida tentando captar a realidade de um mercado local de
consumo que se desenvolve em torno daqueles que têm o que oferecer Capítulo I - O mercado de trocas
e os que, possuem os meios de comprar o que se lhe é ofertado.
Teremos assim uma nova dimensão sobre a cidade, sobre os seus Generalidades: Várias são as funções de um mercado como o de
habitantes, suas relações sociais, ora pacíficas, ora tumultuosas, pois é Salvador, cuja vida económica é essencialmente comercial, apesar das
do pão que vive o mundo. • tentativas de “modernização” com o estabelecimento de atividades
industriais que nascem sem prosperar, por volta da segunda metade
do século XIX (486).

Em primeiro lugar o mercado de trocas, a nível internacional,


domina de longe todas as atividades comerciais e financeiras da
Bahia. Tradicional, esse mercado tem por incumbência de Colocar
nos mercados consumidores externos uma produção de produtos
primários e de trazer para o mercado consumidor interno bens aqui
(484) - Idem. d. 314.
(485) - Ibidem, p. 314. Ver também FALLA recitada na Assemblèia Legislativa da (486) —PAMPONET SAMPAIO, José Luís.E v o lu ç ã o de u m a em presa n o co n texto da
industrialização brasileira. A C om panhia Em pório In d u stria l d o S o rte, 1891-1973.
Bahia (1878). Salvador. 1975. (Diss. d e Mestrado. UFBA).

238 239
Na pauta das exportações da Bahia encontram-se principalmente
não produzidos quer seja manufaturados ou mesmo alimentícios. Nas os produtos de exportação tradicionais como o açúcar, o fumo, o
mãos de grandes comerciantes, na sua maioria estrangeiros à Bahia algodão, a aguardente, o couro e, ainda o café (491) e os diamantes.
(487) , desse comércio depende a saúde material da província, de sua Estes últimos, criaram uma efervescência e uma esperança que durou,
capital, Salvador, e dos homens que nesta habitam. Um mercado infelizmente, pouco tempo: descobertos nas lavras Diamantinas em
internacional que pulsa segundo as condições dos mercados externos 1842, a prosperidade que criaram foi seriamente abalada com a
(488) , mas também segundo os azares de uma produção que sofre das descoberta das grandes minas diamantíferas da África do Sul em
influências de crises internas, ligadas às intempéries climáticas, às 1867. “Depois deste fato, ainda continuou porém mais modesto e
conturbações de ordem política, à falta de um crédito organizado, ao muito incerto, o comércio dos diamantes, aliás até hoje. Os carbona-
processo inflacionário e à deterioração da moeda nacional (489). Há dos vieram aliviar a situação. Encontravam-se com os diamantes, mas
ainda as epidemias que ora atacam a produção - como foi o caso da não tinham valor. A partir de 1870, começaram a ser comprados
doença da cana-de-açúcar em 1873 - ora os próprios homens com por preço modesto para corte de diamantes, polimentos etc. Depois,
surtos epidêmicos como o foram a febre amarela e o cholera morbus, sua aplicação industrial avultou, sobretudo.a partir da perfuração do
na década dos 1850. Crises que esgotam as forças da província as Túnel de São Gotardo, e por ocasião da abertura dos canais de Suez e
quais ainda vacilam sob o peso de uma importação que sempre do Panamá. Tornou-se então um negócio altamente lucrativo, de que a
sobrepujou a exportação, permitindo a fuga de capitais para fora e o Bahia era praticamente o único detentor, pois a contribuição de
empobrecimento gradativo das forças económicas locais, incapazes de Bornéo foi muito pequena” (492). Quanto ao cacau este surgiu aos
encontrarem alternativas que viessem modificar os termos de trocas poucos, tomando vulto somente após 1890 (493).
em favor da Bahia. De 1840 a 1890 o quadro do comércio exterior da
Bahia se deteriora: Produtos de exportação cujo preço dependia das condições
oferecidas pelos mercados externos, num período em que a concorrên­
cia internacional se tornava acirrada pelo desenvolvimento de novos
Quadro do Comércio Exterior da Bahia centros de produção, como foi o caso por exemplo do açúcar, apesar
(por decénios) (490) de um mercado consumidor em expansão, fruto do importante
crescimento demográfico que caracterizou o mundo no século XIX.
Decénios Importação Exportação (491) - “O café que em quantidade relativamente pequena foi sendo exportado vinha
a princípio quase exclusivamente do extremo sul do Estado, da colónia alemã para
1840-1850 90.321 000$000 76 j888000$000 cima de Caravelas, a qual teria fracassado com a abolição da escravatura (40). Depois
1850—1860 ganhou o café osmunicipios da orlado Recôncavoe algumas roças isoladas aqui e acolá
155.880.000$ 000 121.818000$000 com as quais criaram a esplêndida variedade do “café da Chapada” (Diamantina). Mas
1860-1870 179.205 0001000 169.511000$000 só excepcionalmente se observou o regime de maiores plantações como as do Vale do
1870-1880 197.6740001000 166.961000I000 Paraíba. A produção foi pequena, mas das que contribuíram, pela variedade, para
1880-1890 226.1190001000 140.240 0001000 reduzir o desequilíbrio na economia exportadora do Estado". R. ALMEIDA. Traços d e
H istó ria ., op. cit., p. 9.
(492) - R. ALMEIDATtoçoí de H istó ria ., op. cit., p. 10.
(493) - Eis o quadro da exportação do cacau em toneladas no século XIX-

(487) -As grandes casas exportadoras acham-se nas mãos de portugueses, alemães, 1834 27 1870 1.216
franceses e ingleses. E quando se trata de grandes negociantes brasileiros, estes são 1840 103 1880 1.669
estranhos à Bahia como é o caso, por exemplo de um Antonio Pedroso de Albuquerque 1850 304 1890 3.503
que vem do Rio Grande do Sul ou de um Aristides Novis, originário de Goiás, dois 1860 579
nomes que dominaram a praça, no século XIX. In GARCEZ, Angelina Nobre Rolim e MATTOSO, Katia M. de Queirós,
(488) - Cf. ALMEIDA, Rômulo. Traço.^da H istória... op. cit., p. 15-17. Introdução ao E studo dos M ecanism os de fo rm a ç ã o d a propriedade no E ix o Ilh éu s-lta b u n a
(489) - Cf. BUESCU, Mircea. 300 anos de inflação. Rio de Janeiro, APEC, 1973, p. (1890-1930). Anais do VIII Simpósio Nacional dos Professores Universitários de
122-208. Segundo este autor, o período 1850 a 1869 seria uma fase de agravamento da História (Aracaju-Setembro de 1975), (São Paulo): 579-594, 1976. Ver também
inflação, a década de 1870 a 1880 um período de inflação decrescente, e os últimos anos GARCEZ, Angelina Nobre Rolim e FREITAS, Antonio Fernando Guerreiro. História
do Império seriam caracterizados por um equilíbrio. econ ó m ica e social d a região cacaueira. Rio de Janeiro, Cartográfica Cruzeiro do Sul,
(490) - GOES CALMON, F.M. Vida E conóm ico-financeira, op. cit., p. 81. 1975.

240 241
Quanto aos produtos de importação, eram numerosos e diversos.
Por volta, por exemplo, de 1875 os principais produtos importados na as vendas mediante letras com prazos fixos e não longos, exigindo dos
Bahia eram manufaturas de algodão, de linho, de lã e de seda; vinhos, compradores o reduzirem à mesma espécie os seus anteriores débitos,
drogas e medicamentos; ferragens, calçados, chapéus, objetos de ouro não lhes facilitando sem o cumprimento desta condição, novas compras,
e prata, pólvora, papel, farinha de trigo, carvão de pedra, bacalhau e ainda que pela maneira hoje adaptada” (498).
peixes, manteiga etc. (494). Com exceção da pauta “ferramentas”, a I
estrutura das importações, principalmente após a abolição do tráfico De qualquer modo era certamente sobre os bens de importação
negreiro (495) é prepohderantemente uma estrutura de bens de que os grandes comerciantes calculavam os seus lucros (499) numa
consumo. Partilhamos inteiramente a opinião de Rômulo Almeida época em que os produtos primários de exportação, tradicionais ou
quando diz ‘?Tenho a impressão de que se deve estudar a influência novos, sofriam da concorrência estrangeira, da degradação dos termos
que terá no futuro o “crédito em mercadorias” que o comércio de câmbio (500), das crises de produção interna e da inflação que os
importador, sobretudo inglês, proporcionou à Bahia, já desde antes a acompanhava. Veremos mais adiante como esses fatores influíram
abertura dos portos, segundo o testemunho do Des. Brito e talvez sobre o comportamento dos preços de alguns gêneros de consumo de
muito mais depois: influência benéfica na medida em que representou orimeira necessidade, tornando as crises de abastecimento endémicas
bens de produção, e quiçá maléfica na extensão em que fomentou o
padrão de consumo suntuário de u’a minoria de senhores e de Mas a praça do comércio da Bahia não é unicamente importante
doutores, o qual estava acima das possibilidades normais, gravando a por ser praça de comércio internacional. Ao lado dessa função principal
futura balança de pagamentos e concorrendo para as quedas de ela desempenha outra, tanto quanto imporante, pois Salvador é ainda
câmbio. Esses hábitos suntuários contribuíram para agravar as crises,
impedindo a formação de melhores reservas nos anos prósperos. (498) - FA LLA recitada na abertura da Assembleia Legislativa (1850), p. 55.
Constituem, em suma, um fator de maior descapitalização, alem de (499) - “ Pela falta de crédito e pelas outras condições internas e externasde nossa
economia o comércio, se em parte financiava fregueses, mesmo na crise, e os aliviava
desequilíbrio no balanço de pagamentos” (496). Aliás, esses “hábitos do pior, em parte se locupletava dos paradeiros e das aperturas. É certo também que
suntuários” aos quais se refere o eminente economista baiano não muitas das queixas sobre ele vinham dos devedores imprevidentes e pródigos. Todavia,
eram restritos apenas às camadas de senhores e doutores da sociedade as fortunas foram feitas pelo comércio". R. ALMEIDA, Traços económicos... op. cit., p.
de Salvador: na composição dos bens dos inventariados que perten­ 15.
cem às categorias mais humildes da população baiana, como por (500) - F lutuação cam bial -1 8 0 8 -1889 - M édias anuais e m p e n c e ingleses
exemplo, nos inventáriosposi-mortem de escravos libertos, os objetos 1808 =72,0 1826=48,1 1844=23,1 1862 = 26,3 1880 = 223
de luxo (jóias de prata e ouro, roupas de seda etc.) são às vezes os únicos 1809 = 73,6 1927 =35,2 1845=25,4 1863 = 27,2 1881 = 21,2
1810 = 71,7 1828=31,6 1846=26,9 1864 = 26,7 1882 = 21,1
bens possuídos e não é raro encontrar dívidas do passivo que se referem
1811 =73,6 1829=24,6 1847=28,0 1865 =25,0 1833 = 2 1 3
a compras de objetos luxuosos (497). Aliás, qualquer medida que visava 1812 =76,6 1848=25,0 1866=243 1884 = 20,6
1830 = 22,8
restringir a modalidade do “crédito em mercadorias” era sempre 1813 =76,6 1831 =25,0 1867=22,4 1885 = 183
1849= 253
duramente ressentida: queixando-se da situação crítica em que se 1814 =76,1 1832=35,1 1850=28,7 1868 = 17,0 1886 = 18,6
achava a economia da Bahia em 1850, o então presidente da Província* 1815 =64,0 1833=37,8 1851 =29,1 1869 = 18,8 1887 = 22,4
Francisco Gonçalves Martins, atribuía essa situação “a resolução tomada 1816 =57,0 1834=38,7 1852=27,4 1870=22,6 1888 = 253
pelos negociantes Ingleses e de outras Nações de não venderem ao 1817 = 72,3 1835=39,2 1853= 283 1871=24,3 1889 = 26,4
Comércio do País suas mercadorias pela mesma forma por que se fazião 1818 =66,1 1836=38,4 1854=27,6 1872 = 25,0
taes transações anteriormente. adaptandoelles a nova prática de realizar 1819 =57,8 1837=29,5 1855= 273 1873=263
1820 = 51,5 1838=28,6 1856= 273 1874 = 25,7
1821 =50,0 1839=31,6 1857= 263 1875=273
(494) - FERREIRA. MJ. A Província da Bahia... op. cit.. p. 86-88. 1822 =49,0 1840 = 31,0 1858 = 253 1876=25,3
(495) - “Ainda em 1816. os escravos constituem mais de 25% do total (das 1823 = 50,7 1841 =30,3 1859=25,6 1877=243
importações). Considerados na importação são eles bens de produção" R. Almeida 1824 = 48,2 1842 = 26,8 1860=25,8 1878=223
Traços de História... op. cit.. p. 15.
(496) - Idem p. 16. 1825 =51,8 1843 = 253 1861 = 2 5 3 1879 = 21,3
(497) - MATTOSO, Katia M. de Queirós. Testamentos d ’esclavjes libérés à Bahia au 1
XIXe. siècle. Une sourcepour Tétude des mentalilés d'un groupe social” (no prelo). In WESTHPALEN. BACH e KROHN: CENTENÁRIO: 1828-1829. Bahia, s.c.p.
1928. p. 87.

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no século XIX, uma importante praça de distribuição de mercadorias Cachoeira e até os princípios do século XX, apesar da existência de
importadas que alimenta regiões ainda longínquas graças ao desen­ uma rede ferroviária já importante, mas seguramente insatisfatória,
volvimento dos transportes marítimos, graças também à sua velha continuava-se comerciar pelo velho sistema das tropas (506). Essas
tradição de supridora dos sertões (501). Mercadorias importadas do tropas de tropeiros levavam para as cidades e povoados distantes todo
exterior mas também de outras regiões brasileiras, principalmente da tipo de mercadorias e, seguramente, traziam de volta o que se
do sul (Rio Grande do Sul e São Paulo) que durante todo o século produzia de economicamente significativo, como por exemplo algo­
XIX abastecem o mercado de Salvador em gêneros alimentícios de dão - “que dava com gosto nas terras altas” no sertão de Caetité - ou o
grande necessidade como a carne seca (xarque) e a farinha de “café da chapada” (Diamantina) ou mesmo os diamantes e carbona­
mandioca. Assim pela importação dessas mercadorias a Bahia se tos das lavras diamantinas, a carnaúba, o ipeca, o tucum, a piaçava,
integra na economia nacional de trocas mas se relativamente conhece­ que figuram na pauta das exportações baianas, ainda que numa
mos o que ela importava (502) desconhecemos o que ela exportava frequência irregular. Todavia.esse" importante fluxo comercial interno
para essas regiões, a não ser que este fluxo comercial tenha sido é-nos pouco conhecido pois faltam-nos estudos dedicados ao comércio
inteiramente compensado por um pagamento em dinheiro, como foi o inter-provirícial e provincial (507).
caso para as importações inter-estaduais em princípios do século XX
(503) . Mas, não há dúvida que no comércio inter-provincial a Bahia Perfeitamente integrado no mercado internacional, nacional e
ocupa uma posição de destaque e faz figura de capital do Nordeste, regional, grande centro redistribuidor de mercadorias, o mercado de
apesar da existência de um poderoso concorrente, Pernambuco. Este Salvador é também um mercado local, um mercado para a cidade e as
comércio inter-provincial se faz primeiramente por via marítima freguesias de seu termo, um mercado sobre o qual vivem e se
(504) , via que permite atingir as capitais do litoral norte como Aracaju abastecem as cidades, vilas e povoados do Recôncavo, este arrière
e Maceió em Alagoas e as cidades litorâneas do Sul do Estado até pays que lhe é tão intimamente ligado. É este mercado local que
Caravelas. Mas as vias terrestres são também usadas. Utilizam-se sobretudo nos interessa pois dele depende a sobrevivência dos
primordialmente os velhos atalhos e veredas abertos pelas caminha­ soteropolitanos; trata-se porém de um mercado cuja estrutura e
das do gado, este gado que continua vindo para a cidade do Salvador mecanismos são bastante complexos.
sempre de muito longe. O transporte se faz nas costas dos animais, as Primeiro, por ser um mercado exportador de matérias primas,
mulas, e as expedições que se organizam formam verdadeiras tropas. principalmente agrícolas, é um mercado extremamente vulnerável
Cada grande casa mercantil que se prezasse possuía seus tropeiros pois é exposto às flutuações de mercados consumidores cujo controle
com seus caixeiros viajantes que freqúentemente se tornavam comer­
ciantes respeitáveis após a dura aprendizagem do métier, sertões a
dentro (505). O ponto de partida dessas tropas era a cidade de - WILDBERGER. Arnold. N o tícia histó rica de iVildberger e C ia Salvador.
Tipografia Beneditina. 1942, 115 p.
(501) - Ainda por volta de 1912 “e por algum tempo mais. numa tendência (506) - OLIVEIRA. J M. Cardoso de. D ois m etro s e cinco. A ven tu ra s de M arcos
decrescente, o comércio baiano alcançava todo o norte de Minas. Goiás e o sertão de Parreira (C o stu m es Brasileiros) 3* edição. Rio de Janeiro. Livraria Briguet. 1936. Há
Pernambuco e Piauí, além de Sergipe”. R. ALMEIDA. Traços económ icos... op. cit.. p. nesse romance de Cardoso de Oliveira a descrição de uma viagem para o sertão baiano
extremamente informativa, apesar de certos exageros literários.
(502) - Vale assinalar que nos raros dados estatísticos que possuímos sobre as (507) - Com efeito, não existem dados que possam nos orientar sobre esse
exportações e importações baianas, nunca são fornecidos dados referentes a importa­ importante comércio interno que. até certo ponto, era um complemento importante do
ções inter-provincjiais. de modo que carecemos da oportunidade de poder avaliar, circuito comercial externo e sem dúvida uma fonte de renda não desprezível para as
ainda que imperfeitamente, o volume e o valor dessas importações. casas comerciais baianas. Não havendo nenhum controle oficial sobre as mercadorias
(503) - R. ALMEIDA no seu trabalho Traços económ icos, op. cit.. p. 16 chama a saídas da cidade, nem tampouco sobre as que eram importadas por via terrestre, é-nos
atenção sobre o fato que o dinheiro baiano foi um dos financiadores das importações difícil de ter uma idéia correta sobre o volume das quantidades transacionadas. E
essenciais à industrialização do sul, sendo um grande freguês da indústria e da mesmo se um dia for tentado fazer a história do abastecimento a partir do estudo das
agricultura do sul. tornando-se inteiramente dependente dela. quantidades transportadas pelas estradas de ferro, seus resultados deverão ser olhados
(504) - A criação de linhas de navegação com capitais baianos em meàdos do século com muita desconfiança, uma vez que se sabe que nem todas as mercadorias eram
XIX, tinha por objetivo tornar o transporte de mercadorias a serem distribuídas transportadas por esse meio e que. principalmente, o contrabando era muito
autónomo de imposições exteriores, e baratear, em favor dos grandes comerciantes, os importante. Somente os livros de contabilidade das casas comerciais, o exame das
custos. contas que prestavam os seus caixeiros-viajantes poderiam nos esclarecer sobre a
(505) - WESTPHALEN, BACH e KROHN, Centenário: 1828-1928. Bahia, s.c.p
1928. estrutura e os mecanismos de tal prática comercial.

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lhe escapa. Sofre assim de uma série de imposições vindas de fora que contingente de população flutuante pode ter influenciado na marcha
principalmente se materializam pela obrigatoriedade que tem de dos preços na Bahia. Mas, não resta dúvida que, a estrutura social de
compensar os valores exportados por vultosas importações que como tipo escravista, a qual mantém um importante setor da população
já vimos, linhas atrás, são constituídas na sua maior parte por bens de num regime especial, na medida em que este tipo de consumidores
consumo imediato e não por bens de produção ou bens duráveis. Por tem um raio de necessidades a serem satisfeitas bastante limitado, e os
outro lado, esse mercado exportador sofre das irregularidades que imprevistos criados pelos surtos epidêmicos criam condições de
provêm de flutuações negativas de câmbio (508) da falta de uma mercado que tanto podem ser rígidas como elásticas, mas quase
estrutura creditícia que viesse aliviá-lo no momento de dificuldades sempre imprevisíveis a médio ou a longo prazo. Essas peculiaridades
oriundas de crises na exportação, e dos processos inflacionários que se na estrutura do mercado de Salvador, às quais se deve ainda
desenvolvem com mais ou menos virulência no período considerado acrescentar o fato que a quase totalidade dos senhores de engenho são
(509). Este mercado exportador sofre também das consequências da abastecidos por adiantamentos sobre as futuras safras em artefatos e
instabilidade política que particularmente caracterizou o período 1822 bens de consumo, gera atitudes altamente especulativas nos meios
a 1840, das guerras e revoluções que se desenvolveram nos mercados comerciais que trabalham na incerteza do dia de amanhã: usufruir o
consumidores e que nem sempre lhe foram propícios, como foi o caso mais de lucros possíveis no menor espaço de tempo, parece ter sido a
para a guerra de Criméia (1854-55), mas sofre também das guerras preocupação principal mesmo se, a médio e longo prazo, essa atitude
continentais em que o Brasil foi envolvido como as lutas cisplatinas levava à deterioração dos termos das trocas no mercado interno, da qual
entre 1825 e 1828 e a guerra do Paraguai de 1864-1870. Mas as maiores vítimas eram, sem dúvida, os consumidores.
sobretudo sofre pela falta de uma política coerente por parte dos
poderes públicos que interpretavam à sua maneira os princípios do Responsáveis do abastecimento de uma cidade cuja hinterlândia
liberalismo económico o qual avantajava as importações em detri­ quase nada produzia (511) os mercadores tinham os meios de impor
mento das exportações, apesar das tímidas tentativas de remediar a sua dominação através da manipulação das quantidades e da
situação através da adoção de paliativos, como foi por exemplo a qualidade dos gêneros ofertados à população. Mas para bem entender
tarifa aduaneira de 1844 que visava, limitar a influência anglo- o funcionamento dessa estrutura mercantil, é necessário caracterizar
portuguesa na vida económica brasileira. os parceiros das trocas, desarticular os mecanismos de oferta e de
procura e também insistir sobre as modalidades e os meios de
Segundo, o mercado de Salvador é também um mercado pagamento utilizados.
importador de mercadorias. Essas mercadorias hão de ser vendidas
para que se possa recuperar, com lucro, os capitais nelas investidos. Os parceiros das trocas: homens de negócio, comerciantes, vendedores
Mas o escoamento dos gêneros importados depende de um mercado ambulantes e caixeiros-viajantes versus os consumidores
consumidor capaz de absorvê-los e de um mercado que, logicamente,
deve estar sempre em expansão. Mas de que maneira pode se Em outra parte deste estudo (512) tentamos dar uma imagem da
expandir o mercado de consumo da cidade do Salvador, dominado hierarquia social de Salvador no século XIX. Entre os grupos sociais,
por uma estrutura social legal do tipo escravista e que sofreu sérios que formam as categorias dessa hierarquia social, o grupo dos
golpes nos efetivos de sua população com as epidemias de febrç comerciantes, de todo tipo, é de longe o mais importante. Com efeito,
amarela e do cholera morbus? (510). Num mercado de cidade-porto a análise das quatro categorias que propusemos permite ver que o
como o de Salvador, há, evidentemente um outro tipo de consumido­
res importantes. Veremos mais adiante como a presença de um forte
(511) — No seu discurso de abertura da Assembleia Legislativa de 1860. o presidente
Herculano Ferreira Penna informava que a província da Bahia recebia considerável
(508) - Cf. nota 500. fornecimento de carne seca do Rio Grande do Sul e de farinha de mandioca de Santa
(509) - Em 300 anos de inflação op. cit. Mircea Buescu demonstrou que o período Catarina e acrescentava “É para lamentar, senhores, que o lavrador baiano, o rico
1822 a 1870 é um período de agravamento da inflação com uma tendência decrescente senhor d'engenho. dispondo de tantos e tão férteis terrenos, abandone o cultivo da
de 1870 a 1880 e um equilíbrio na fase de 1880-1889. mandioca: e dos cereais, e se deixe collocar na triste necessidade de comprar estes
(510) - Os estudos demográficos em curso ainda não propuseram nenhuma cifra gêneros à outras Províncias para o sustento da escravatura empregada na lavoura!"
exata sobre os danos provocados por essas duas epidemias que se sucederam. A FALLA, recitada na abertura da Assembleia Legislativa (1860).
historiografia tradicional fala em 40.000 mortos para a cidade e seu Recôncavo. (512) — Cf. parte II deste estudo.

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negociante (513) é praticamente presente em todas elas. Nessas quatro Membros das chamadas profissões liberais que, através do comércio,
categorias é possível distinguir várias classes de comerciantes: homens frutificam capitais disponíveis? Instituições religiosas, proprietários
de negócio, comerciantes, caixeiro-viajantes (ou mascates) e vendedo­ agrários, ou ainda pessoas residentes fora da colónia? Não temos a
res ambulantes. É evidente que a categoria de caixeiros-viajantes só possibilidade de responder a tal indagação. Ademais, pode-se pergun­
interessa indiretamente ao nosso intento de caracterizar os parceiros tar se, na realidade de funcionamento dessa prática comercial, havia
das trocas. Contudo, sua importância é capital num sistema comercial realmente essa distinção entre negociantes que comerciavam com seus
que se completa por um circuito interno onde o caixeiro-viajante próprios recursos e outros que negociavam com cabedais alheios.
representa o prolongamento natural dessas atividades que, antes de Acreditamos que é mais lícito pensar que, as duas modalidades de
tudo, visam lucros seguros e contínuos. financiamento do mercado exportador e importador, mencionadas
por Vilhena, coexistiram no âmbito dos negócios das grandes casas
Mas que tipo de realidades encobrem as apelações acima .comerciais da Bahia. Aliás, os comentadores das atividades comerciais,
propostas? Que informações empíricas o século passado nos deixou baianas no século XIX, como por exemplo Góes Calmon (516), falam
que permitam conhecer quantitativamente esse grupo social, homogé­ das grandes casas exportadoras-importadoras da época sem sequer se
neo pefo tipo de função social que desempenha mas, ao mesmo preocupar de distinguir estes negociantes que operavam com capitais
tempo, heterogéneo pelo volume de negócios com que trabalha? próprios e outros que buscavam negociar com capitais de terceiros
(517). Devemos ainda acrescentar que, nos inventários post-mortem,
Já Vilhena, no princípio do século XIX, havia-se mostrado muito referentes ao século XIX, há frequentes menções de participações nos
perplexo para descrever o mundo comercial da Bahia de então, pois
confessava lhe “faltarem luzes” para tanto. Se havia então limitado
(516) - GOES CALMON. F. M .de. Vida económico-financeira... op. cit.
em tecer algumas considerações gerais que, entretanto, permitem uma (517) — Por volta de 1825. o grande nome no comércio da Bahia era José de
classificação por ordem de importância, mesmo se esta permanece Cerqueira Lima. importador de escravos e exportador e importador de vários outros
precária e insuficientemente definida. gêneros. Os outros grandes negociantes eram: Antonio Pedroso de Albuquerque, José
Alves da Cruz Rios, João Victor Moreira. Pedro Rodrigues Bandeira. Manoel José
No ápice da organização comercial, encontramos os homens de Machado. João Barbosa Madureira. Manoel João dos Reis. Manoel Francisco Moreira.
grandes negócios, isto é, os comerciantes que se ocupam da exporta­ Francisco Manoel de Abreu, João Gonçalves Ferreira. Inocêncio José Gomes. Antonio
José da Silva Braga. José Ignacio Accioli, Antonio da Silva Paranhos, Francisco Martins
ção dos produtos primários para os mercados internacionais dos quais Costa. Estes negociantes eram na sua maioria comissários de açúcar e adiantavam
importam bens manufaturados, produtos de subsistência e escravos provisões de boca e vestuário aos senhores de Engenho emprestando-lhes dinheiro a
(514)*A estes grandes comerciantes cabe o financiamento da produ­ juros altos. Outros, negociavam com tabaco e algodão. (F.M.G. CALMON. Vida
ção agrícola, prática esta que, como veremos mais adiante, continua económico-financeira...op. cit.. p. 40-41).
Em 1860. os principais comerciantes de origem portuguesa eram: o Comendador
presente mesmo quando são criados órgãos financiadores como os Pedroso de Albuquerque (sic.). Francisco José Godinho. Antonio Francisco de
Bancos e as Caixas Económicas. Segundo Vilhena, esses grandes Lacerda. Justino José Fernandes, Manoel José de Figueiredo Leite e Joaquim Pereira
comerciantes dividiam-se em dois grupos: no grupo dos comerciantes Marinho (cujo vulto de negócios dominava o de xarque. Foi o substituto do poder
que possuíam os seus próprios cabedais e no grupo daqueles que capitalista exercido por Pedroso de Albuquerque, sendo o maior adquirente dos bens
“comerciam só com o seu nome e com cabedais de personagens a que por ocasião da morte deste... “Soube aproveitar das crises de dinheiro e dos apertos
continuados da classe dos lavradores e senhores de engenho, para aumentar o número
seria menos decente a saber que comerciam...” (515). Quais teriam considerável de seus prédios, comprando-os a vil preço”)>Havia ainda Francisco Adães
sido essas personagens? Servidores da administração colonial cuja Villas Boas, Joaquim José Rodrigues. José Ferreira Pontes. Luis Ruiz Dutra Rocha.
posição era incompatível com o desempenho da atividade mercantil? Cândido Pereira de Castro. José Antônio dos Passos. Manuel Joaquim Alves. Manoel
dos Santos Neves, José Teixeira Ribeiro. Francisco Fuz Mesq"ita, Cezimbra e Irmão.
Euisde Souza Gomes, Joaquim Pereira Pestana. Januário Cyrillo Costa, Antonio
(513) - O termo é aqui tomado no seu sentido genérico: aquele que exerce a Francisco Brandão, Manuel C. Moreira Jr. Pedro Brandão da Fonseca.etç.
profissão de negociante qualquer seja o vulto de seus negócios. Comerciantes estrangeiros: Morgan F.. Richard Lattan e C. Albin. Crabtre e Co.
(514) — A importação de gêneros tais como feijão, arroz, manteiga, toucinho, Schmidt Pemupt e C., Johnston Ambers e Co.. E. Benn e Co.. Whately Brable e Co..
produtos já produzidos no país, é ainda muito frequente na pauta das importações da Dalglish Cumpson e Co.. Wilson Scot e Co.. etc... (CF. F.M. de G.. CALMON. Vida
Bahia no século XIX, além da importação dos gêneros tradicionais como farinha do económico-financeira... op. cit., . 74-75). Estas listas de casas comerciais ficariam mais
Reino ou azeite de oliva. A imprensa da época dá notícias de tais importações. Quanto “falantes" se possuíssemos estudos micro-económicos para algumas delas. Na falta de
ao tráfico negreiro, este permaneceu vigoroso até sua extinção definitiva em 1850. arquivos particulares, podem ser utilizados com algum proveito os inventários
(515) - VILHENA, L. dos Santos. A Bahia... op. cit., p. 56. post-mortem de alguns desses grandes negociantes.

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capitais comerciais das grandes casas mercantis e um grande capitalis­
ta como Joaquim de Pereira Marinho não deixava de utilizar, para os retalhistas que existem na cidade. Porém, não se pode dizer, à luz dos
seus negócios, as parcas poupanças de gente miúda, como as dos conhecimentos atuais, qual era o número dessa nova categoria de
escravos africanos libertos, mas economicamente bem sucedidos (518). comerciantes e o vulto dos seus negócios. Por outro lado, é também
Vilhena acrescenta ainda, a esses dois grupos de grandes negociantes, difícil afirmar que a categoria dos comerciantes varejistas se distin­
juma terceira categoria: a dos comissários. São, segundo Vilhena, guia perfeitamente da dos grandes negociantes importadores e
negociantes não matriculados mas “... como porém todos despacham, exportadores: pelo contrário, tudo leva a crer que os importadores
pagam direitos e carregam efeitos, demos-lhe a consolação de eram também varejistas nos gêneros de primeira necessidade “como
chamar-lhes comerciantes, sejam os gêneros de que forem”. Verdadei­ são farinhas e carnes, além de outros mais usados” como diz Vilhena
ros outsiders que comprometiam a dominação monopolística dos (522). De qualquer modo quem tivesse nas mãos a exportação dos
homens de negócios matriculados, sua ação é severamente criticada gêneros primários e o domínio sobre a importação de bens de
por Vilhena, o qual nutre pouca consideração a seu respeito (519). consumo, pertencia à categoria dos grandes homens de negócios que
É-nos porém difícil saber se no século XIX e, principalmente, após a detêm o monopólio da fixação dos preços de venda.
proclamação da Independência existe ainda esse tipo de “grande
negociante” (520).Porém,pensamos,atítulode hipótese, que as pessoas Entre os grandes do comércio, negociantes exportadores-
que se estabelecem na praça da Bahia no final da déca a dos 1820, importadores (523), varejistas e comerciantes retalhistas, é necessário
contam geralmente com sólidos apoios financeiros de casas exporta­ também mencionar a existência de uma outra categoria de gente de
doras e importadoras que passam a representar. Quanto aos que vem comércio os chamados a travessa dores de gêneros, intermediários
sem este apoio, geralmente se empregam como caixeiros nas firmas entre os produtores de bens de consumo de primeira necessidade, tais
locais e pouco a pouco, por seu trabalho e sua poupança conseguem se como a carne e a farinha de mandioca, e o comércio varejista da
transformar em sócios das casas em que trabalham, ou abrem suas cidade. Pouco conhecemos sobre esta categoria de comerciantes, os
próprias casas de negócios (521). Evidentemente, essa categoriá de quais com frequência aparecem como negociando também direta­
negociantes, comissários ou caixeiros, nãò'se encoútra sorflente entre mente com a população, infringindo assim as leis segundo as quais
as fileiras do grande comércio. É uma categoria também presente em este comércio varejista devia ser desenvolvido ‘ por negociantes,
atividades de menor vulto como as dos simples comerciantes grossis­ devidamente registrados nos róis da Câmara Municipal. Esses atra-
tas não envolvidos no comércio internacional e que são os intermediá­ vessadores de gêneros aparecem também como os açambarcadores
rios entre os importadores e a grande variedade de negociantes dos gêneros produzidos localmente e identificam-se, até certo ponto,
como os caixeiros-viajantes cuja função principal é de escoar no
interior da província os gêneros importados pela sua capital, Salvador.
(518) — MÁTTOSO, Katia M. deQueirós. T e s ta m e n ts d ’esclaves libérés, op. cit. Acreditamos que essa categoria de gente de comércio era ligada às
(519) - “Não há dúvida que estes bastardos, deveriam ter seu noviciado no grandes casas mercantis da Bahia que assim detinham o monopólio
comércio pela tortura em que muitas vezes põem os legítimos comerciantes, vindo por
isso a fazer uma tal desordem nas compras dos efeitos, que ou se não hão de comprar da oferta de produtos sobre o mercado.
para fazer as precisas remessas, ou há de ser infalível o prejuízo, e quem não conhece
ser isto prejudicial ao todo?” L. dos S. VILHENA, A B a h ia ., op. cit., p. 56. Grande era a variedade dos comerciantes retalhistas numa cidade
(520) - “Grande negociante” porque lida com gêneros de exportação e importação,
integrando-se assim no circuito de um mercado internacional. Freqúentemente, a sua
porto como a de Salvador onde o comércio era a atividade económica
atividade comercial tem caráter provisório, não ultrapassando uma única operação principal. Havia, primeiro, os comerciantes retalhistas estabelecidos
comercial; por exemplo o comissário volante que passava da metrópole para a colónia
trazendo consigo certas mercadorias que, uma vez vendidas, lhe proporcionavam lucros (522) — Foi-nos ainda impossível localizar os livros de matriculas das casas
suficientes para a compra de gêneros de exportação que trazia de volta para a comerciais, anteriores ao período republicano. Após 1889, os dados contidos na coleção
metrópole. de livros do "Im posto In d ú stria s e p ro fissõ e s’’ (A . P .E .B ., seção adm inistrativa) p o d em dar
(521) - A literatura da época avulta em exemplos desse tipo. Ver por exemplo, a um a idéia do núm ero destes esta b elecim en to s com erciais.
ascensão dos portugueses nas obras de Aluizio de Azevedo como o Cortiço ou o (523) — Nos livros clássicos da historiografia económica da Bahia faz-se com
M ulato. Por outro lado, em vários estudos.sobre a Bahia mas numa época mais recente frequência a distinção entre o negociante exportador e o negociante importador para o
(1890-1930), historiadores e sociólogos têm se ocupado com essa classe mercantil. Cf. século XIX. F.M. de Goes CALMON por exemplo, na sua obra já citada, refere-se ao
Mario Augusto da SILVA SANTOS. O s ca ixeiro s d a B ahia: seu p a p el conservador na fato, que no século XIX, a importação de mercadorias fica nas mãos de firmas
Prim eira R ep ú b lica Salvador-Bahia, 1974, (mimeog.). importadoras estrangeiras (cf. Vida E co n ó m ico -fin a n ceira ., op. cit.) Daí a necessidade
de se proceder a estudos micro-económicos para elucidar esse mecanismo.

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em lojas disseminadas nas freguesias do centro da cidade: armazéns, tiam a manutenção e a sobrevivência de uma parte da população que
tabernas, padarias, quitandas, lojas de secos e de molhados serviam uma vivia numa cidade onde, como veremos mais adiante, o mercado de
população de ritmo crescente e ser dono de uma loja era já gozar de um trabalho oferecia poucas oportunidades. Porém, não resta dúvida, de
prestígio social de certa importância. A esta primeira categoria de que a multiplicidade de intermediários comerciais entre os produtos
comerciantes retalhistas devemos ainda acrescentar o número infinito ofertados à população e os consumidores, agravava ainda mais a
dos feirantes e vendedores ambulantes de toda espécie que levavam aos marcha ascendente dos preços pela necessidade que havia de todos
bairros residenciais e até a porta das casas dos fregueses, as iguariaj lucrarem alguma coisa. Assim o consumidor da cidade do Salvador
comestíveis e os bens mais duráveis. Era uma categoria de gente de enfrentava dificuldades insuperáveis face ao sistema estabelecido.
comércio que o soteropolitano cotejava no dia a dia de sua vida, numa
época em que conservar alimentos de um dia para outro era operação Mas quem é este consumidor? Não seria exagerado dizer que
difícil e numa cidade onde, a precaridade das condições da maioria da toda a população da cidade e de seu termo, e mesmo, do Recôncavo
população que vivia ameaçada pela indigência, raramente permitia a frequentemente também cidades e vilas dointeriorda Província (529),
constituição de estoques para produtos menos perecíveis, como por os mais ricos como os mais pobres dependem, para a sua subsistência
exemplo, feijão, carne seca e farinha de mandioca. diária - a mais frugal possível, a que se reduz no consumo da carne
“Só a classe dos vendedores ambulantes dava para compor várias verde ou seca, da farinha de mandioca e do feijão - do funcionamento
sequências representativas da beleza que havia em tudo, desde o homem do mercado de oferta que vem a ser o do abastecimento. A esta
do pão e a mulher do mingau que eram madrugadores, até a mulher do população baiana residente, devemos ainda acrescentar a população
acarajé que era notívaga”. flutuante de marinheiros que, em número ainda considerável, se
“Gente vendendo coisas variadas...” (524): pão, massa, leite', carne, abastecia no mercado de Salvador.
taboca, pirolito, queimado, doces de banana e de goiaba, mingau,
cuscuz, acaçá, cocada, fato de boi, verduras, carvão etc.”(525). O mercado de oferta: os problemas de abastecimento
Por outro lado, havia os vendedores de miudezas, pulga-prenha ou
mascates que colocavam junto à freguesia feminina meias e peças de Durante todo o século XIX, a situação de abastecimento da
rendas, bicos e entremeios, aplicações, fitas, rolinhos, carretéis e rolos de província da Bahia e, especialmente da cidade do Salvador, era
linha, tubos de retrós, pressões, botões, pentes, fivelas para cabelo,]escoL irregular e deficiente. Para isto concorriam vários fatores: os primei­
va,brilhantinas,pentes finos, espelhos etc. “Tudo barato e bem ordiná­ ros, relacionam-se a problemas de produção e produtividade local, os
rio” (526). A estes vendedores ambulantes, na sua maioria estrangei­ segundos provêm da falha de comunicação e de transportes adequa­
ros (527) juntavam-se as caixinheiras, “tias da Costa”, que em dos, os terceiros são oriundos da própria estrutura comercial da cidade
bauzinhos de folha- as caixinhas - levavam, para os domicílios de suas que além de exportadora-importajlora é também distribuidora de
freguesas, costuras alheias ou próprias, uma série de produtos gêneros alimentícios para boa parte do nordeste brasileiro. Finalmen­
oriundos da África, e ainda palas de criança feitas com rendas de te, há de considerar a atitude ambivalente, e timorata dos poderes da
almofada, croché, tecido enfeitado, bordados cheio ou aberto, vestidi- administração local e regional, que ora liberavam os preços, ora os
taxavam, obedecendo a impulsos e contingências do momento.
nhos de cassa francesa bordada para o menino e moças, camisas de
pagão etf. (528). Os problemas ligados à produção e produtividade de gêneros
alimentícios são antigos, porquanto existem desde o primeiro século
Todas essas atividades ambulantes retalhistas eram atividades da colonização.
modestas pelos diminutos capitais de que necessitavam, mas permi-
(529) — Na grande seca do final da década de 1850 há na documentação do APEB
(524) — H. VIANNA, A B a h ia j á f o i assim ... op. cit., p. 74. (Seção histórica), no maço de correspondência d a Presidência do Governo corresponden­
(525) - Idem, p. 75-77.
te às secas do período 1845-1860 várias cartas das autoridades da região do Rio das
(526) - Ibidem, p. 78-80.
Contas (Sta. Isabel, Lençóis, Andarahy) pedindo o despacho da cidade do Salvador, de
(527) - De origem geralmente italiana ou árabe. No final do século XIX começam a gêneros alimentícios para socorrer as regiões atingidas pela seca. Pedem-se ainda
aparecer os russos que são judeus fugidos dos frequentes pogrom s que ocorriam na socorros para Caetité, Monte Alto, Urubu. Chique-Chique, Bonfim e Juazeiro. Pedidos
Europa Oriental. do mesmo teor são encontrados para os anos de 1878, 1879, 1882, 1886, 1889. (cf. APEB
(528) — H. VIANNA, A B a h ia j á f o i assim ... op. cit., p. 81-83. Seção histórica. P residência d a Província, maço SECA: 1861-1889).

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contínuas, no século XIX, as importações desses gêneros até mesmo
Há, primeiro, o “pão da terra”, a farinha de mandioca que serve do exterior, como é o caso do feijão que nos vinha de Lisboa, ou de
de base a toda alimentação pois está presente na mesa do pobre como outras regiões brasileiras, ou como o arroz que vinha do Maranhão
na mesa do rico. Debalde as autoridades coloniais se esforçaram, (534).
através de recomendações expressas, para obrigar os cultivadores de
gêneros de exportação ao cultivo da mandioca; debalde também os Reduzida e por isso insuficiente para atender o mercado, a
presidentes da província tentavam renovar a obrigação segundo a produção de mandioca e de cereais sofria de baixa produtividade
qual todo lavrador de açúcar era obrigado ao plantio de 500 covas de devido às frequentes inclemências climáticas às quais nos referimos na
mandioca por escravo: os altos preços dos produtos de exportação primeira parte deste trabalho e das quais falaremos ainda mais
desviavam os trabalhadores e fazendeiros dessa cultdra. Ademais, ser adiante. Vale, porém, lembraraquique em épocas de chuvas anormais,
lavrador de gênero, de subsistência era encontrar “entraves descaroça - e se os solos eram demasiadamente argilosos, a produção acabava
dores, no desembarque, no fisco, na compulsória entregá ao Celeiro apodrecendo antes mesmo de ter amadurecido, enquanto que na época
Público... (530); era gozar de um prestígio social secundário, como de secas, o sol queimava tudo. A esses azares, nascidos das intempé­
dizia o Desembargador Rodrigues de Brito ao escrever “Como se os ries climáticas, se deve ainda acrescentar o cansaço da terra que
lavradores de pão deveriam ser considerados como pessoas de inferior tornava a produção cada vez mais minguada, o uso de práticas
qualidade à sua (dos lavradores de cana), a quém fosse lícito de tirar agrícolas arcaicas e, sobretudo, a falta de qualquer tipo de incentivo
partido do seu suor, e indústria” (531). Por outro lado havia a crença financeiro.
bem arraigada a qual interpretava a seu modo os princípios da teoria
fisiocrática da época de que devia existir uma divisão das tarefas Cultivados para atender necessidades imediatas das populações
agrícolas o que fazia o lavrador F. da Câmara declarar que não baianas que vivem fora do circuito do comércio exportador-
plantava “um só pé de mandioca, por não cair no absurdo de importador que dominava na capital, estes gêneros de subsistência
renunciar a melhor cultura do país pela pior que nela há” (532). chegavam ao mercado da cidade do Salvador em pequenas quantida­
des pois sofriam também da deficiência crónica que havia nas
Contudo, apesar do cultivo de mandioca ser desprezado nas áreas comunicações e nos transportes, principalmente os terrestres. Com
de lavoura tipicamente cana vieira, a mandioca era cultivada no litoral efeito, apesar das tentativas feitas para a melhoria dos mesmos, apesar
norte, na vila de Cotinguiba, porto principal da capitania de Sergipe da implantação de uma rede ferroviária, os centros de produção de
d’El Rey; no litoral Sul nas cidades-portos de Maragogipe, Nazaré, gêneros de subsistência ficam, pelo menos até por volta do fim do
Jaguaribe, Cairu, Ilha de Boipeba, Camamu, Marau, Ilhéus, Bel­ século, fora do circuito comercial a não ser quando se acham
monte, Porto Seguro, Prado, Alcobaça e Caravelas (533). Todavia, localizados no litoral marítimo (535).
o que essas áreas produziam não era suficiente para o abastecimento
do mercado da cidade do Salvador. Por esta razão, a farinha de Outro produto de largo consumo era a carne. Carne verde e carne
mandioca era importada de mercados exportadores tão longínquos seca eram alimentos indispensáveis para a população de Salvador.
como Antonina (Paraná) ou Rio Grande do Norte e, apesar do Mas como já vimos, o fornecimento da carne à Bahia era dificultado
desenvolvimento de outros centros produtores, na própria província, pela falta de mangas perto da capital ou no caminho das boiadas, pois
no decorrer do século XIX, a farinha de mandioca continuou na pauta as áreas de criação ficavam a centenas de quilómetros distantes do
das importações do comércio inter-provincial. centro de seu consumo (536). Numa carta ao Presidente da Província,

Quanto aos cereais do tipo feijão, arroz e milho, eram também (534) - Em 1817 SPIX c MARTIUS (A tra vés d a B ahia, op. cit., p. 107) notavam que.
cultivados nas áreas supra-mencionadas que se identificam assim no Recôncavo, por causa do clima úmido e quente deviam se desenvolver muito bem
as culturas de milho, arroz e feijão. Todavia essas culturas eram na época pouco
como áreas produtoras de gêneros de subsistência, mas ainda eram exploradas. Por sua vez F. V. VIANNA (M e m ó ria doE sta d o da B a h ia ., op. cit., p. 287)
dizia, em 1893, que a Bahia produzia milho, feijão, arroz, trigo e muitos outros
(530) - R. ALMEIDA, Traços de história... op. cit., p. 6. produtos, porém em escala tão pequena que sua importação era necessária “apesar de
(531) - BRITO, Des. João Rodrigues de. C artas E conôm ico-P oliticas. Bahia, 1823 p. termos os melhores terrenos e os melhores incentivos de exploração”.
99. C ita d o por R. ALMEIDA, Traços económicos, op. c it., p. 6. (535) - Cf. também na I* parte deste estudo.
(532) - Idem, p. 100; idem p. 6. (536) - Idem.
(533) - Cf. mapa n® IV da I* parte deste trabalho.
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datada de 5 de janeiro de 1865, José de Azevedo Almeida expunha da semanariamente, podendo ter no mercado durante o dia e de sol a sol
seguinte maneira o problema do fornecimento de carne verde à a carne exposta à venda, não sendo permitido ao Criador que quiser
capital: "... Há três zonas de criação de gado na Bahia. A primeira vender por menos. Outra experiência podia ser posta em prática que
que chamaria Sertão baixo collocada no norte da Província, compre- seria de muita utilidade para a população; a Câmara devia ter
hende as Comarcas de Feira de Santa Anna, Inhambupe, Itapicuru, açouguçs seos próprios aonde fosse exposta à venda toda a carne de
Geremuabo, Monte Santo, e Jacobina, a segunda que chamarei Sertão gado que se matasse, percebendo a mesma um tanto para cada rez,
alto, ou do Valle de São Francisco, comprehende as Comarcas de sendo os açougues tão somente franqueados aos Criadores, Marchan­
Sento-Sé, Villa da Barra de São Francisco, e Urubu, a terceira Zona tes ou Agentes destes e daqueles sendo obrigados a declararem o
que chamarei de Caetité, collocada ao ocidente da província compre­ preço das carnes; desta forma ficava cortada a revendagem nos
hende as Comarcas do Rio das Contas e de Caetité. Entre as açougues que é uma das causas de se vender a carne por maior preço
Comarcas da primeira zona, as mais produtivas são as de Feira de do que se fora vendida por conta de seos donos; a não ser por estes
Santa Anna, Monte Santo, e Geremuabo, pouco produzindo as de meios lembrados que se possa obter preços mais razoáveis, não vejo
outro: as estações favoráveis é que farão aparecer a concorrência...’
Itapicuru e Inhambupe, mas estas mesmas que mais produzem,
quando encontram seguidos annos de chuvas, à raça dos gados é tão (537).
má, e a produção tão mal regulada que nunca chega para fazer
abastecer o mercado que é o da Feira de Santa Anna. A segunda zona Essa análise lúcida do problema de abastecimento em carne no
é igualmente produtiva como a primeira, porém, está situada em mercado de Salvador dispensa comentários. Há porém, de notar que
posição tão alta onde só há uma estação chuvosa, chamada trovoadas. nas duas propostas apresentadas, como medidas saneadoras do
O inverno ali é desconhecido e por isto mesmo aquela produção não mercado de venda ao consumidor, são os marchantes grossistas de
pode chegar a seu principal mercado que também é a Feira de Santa carne que são favorecidos, em detrimento dos retalhistas açougueiros,
Anna se não em tempo de chuvas, pois só com ellas quando as tidos como responsáveis pelas altas demasiadas que sofrem os preços
péssimas estradas teem aguadas e pastos, é que podem transitar 150 a deste produto. Na realidade, porém, o que se procurava era manter o
200 léguas. A terceira zona de Caetité, também produz sofrivelmente monopólio de fornecimento da carne que estava nas mãos de alguns
gados mas sofrendo os mesmos inconvenientes, e obstáculos já grandes capitalistas locais e preservar os seus direitos em nome de
notados acontece ser muito mais habitada do que todas as outras, e uma liberdade de comércio que só favorecia a eles, apesar da sugestão
por isso é ahi que o gado é mais caro do que em outra parte da dada da necessidade que havia de estabelecer, semanalmente, um
província, sendo seus principais mercados os lugares das Lavras preço máximo de venda. Ora, inexistindo a concorrência livre, o preço
Diamantinas. Da província do Pyahuy porém é que nos vem muitos máximo tinha de ser ditado pelos que detinham o monopólio do
gados se a estação é regular, nos meses de março a julho, que fazem fornecimento do mercado.
abundância, se bem que as carnes não sejam boas a razão da
longitude e péssimas estradas. As províncias de Goyaz e Minas que Quanto -à carne seca, que também conhecia um consumo
trazem para esta cerca de 16 mil cabeças de gado por anno, que os bastante largo, esta era importada do Rio Grande do Sul e seu
vendem aos negociantes que fazem soltas a fim de refazerem de um fornecimento esteve durante praticamente todo o século XIX nas
para outro anno, e a não ser isto o que seria desta capital se não mãos do grande negociante Joaquim Pereira Marinho.
tivesse estes meios das soltas que lhes estão próximas? E ainda assim,
quando a estação não corre regular, estes mesmos gados morrem ou Assim, quer se trate de farinha de mandioca ou de cereais, de
ficam em estado de não poderem vir para a capital, e é preciso neste carne verde ou de carne seca, o que caracteriza a estrutura do
caso que aparece a escassez, e as carnes sobem a um preço fabuloso. mercado de abastecimento da cidade do Salvador é seu caráter
Para remediar este mal, e a população ter este gênero de primeira monopolista e açambarcador. Aliás, não podia ser diferente pois eram
necessidade sempre por um preço razoável só há no meo entender os os grandes negociantes que possuíam as facilidades de crédito e
meios em seguida lembrados. A Assemblèia autorizar a Câmara a principalmente de armazenamento de estoques dos gêneros cada qual
Convidar os Criadores, e soltadores de gadôs que quisessem fornecer
a Capital com um número certo de rezes podendo matar as que (537) - APEB. Seção histórica Presidência da Província (Agricultura, Indústria,
quizerem além do número marcado, estabelecendo o preço máximo Comércio) Abastecimento. CARNE: 1848-1867, maço n94628.

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possuindo seus próprios trapiches. Ademais, o circuito comercial centro de consumo, teria permitido um preço de venda mais adequado
exportador-importador, cujos lucros dependiam do comportamento às posses da população consumidora.
dos mercados externos e das oscilações do câmbio, encontrava na
atividade comercial inter-regional e local o complemento indispensá­ Por outro lado, nas próprias áreas produtivas, a inexistência de
vel que permitia dividir os riscos, assegurando uma margem de lucros feiras livres ou de mercados controlados pela municipalidade fazia
compensáveis. Por isso a história do abastecimento do mercado de com que o produto fosse açambarcado já na produção, pelos que
Salvador acha-se intimamente ligada a história da cidade do Salvador dominavam financéiramente a região, oferecendo aos produtores
como centro distribuidor de produtos alimentícios para as províncias preços mínimos e auferindo os lucros de comercialização (539).
do norte. Não resta dúvida que o comércio da Bahia desempenhou
esse importante papel durante todo o século XIX. Desempenho que, Finalmente, as grandes casas exportadoras-importadoras e distri­
se de um lado, salvava as casas comerciais baianas de um estado de buidoras de gênefos da Capital tinham â possibilidade de se abastecei
depressão que poderia ter se tornado crónico, por outro lado, não somente nos centros de produção mas mesmo quando as cargas
prejudicava fundamentalmente o abastecimento do mercado consu­ chegavam no portojda Bahia, indo buscá-las em pleno mar. Desviava-
midor da cidade, obrigando a população viver à mercê dos grandes se assim uma grande quantidade que devia na realidade ser armaze­
negociantes. Com efeito, bastava que uma necessidade se tornasse nada no Celeiro e tulhas públicas. As quantidades armazenadas assim
premente em alguma área que se achava sob o controle dos privadamente, ora eram dispostas no mercado local, se este oferecia
comerciantes da Bahia, para que a população soteropolitana sofresse margem de bons lucros, ora eram expedidas para outros centros de
na carne as consequências. Um exemplo basta para ilustrar essa consumo onde podiam ser vendidas a preços ainda mais compensado­
afirmação: res. Longa é a história'das lutas empreendidas entre os grandes
monopolistas do comércio eos poderes públicos (540). Mas a vitória
O abastecimento do mercado de Salvador em farinha de
mandioca foi sempre um grande problema. Vimos, linhas atrás, como (539) - A esse respeito, o requerimento de Raimundo Monteiro delífattos de 1852,
uma baixa produção obrigava à importação desse alimento de morador da vila de Camamu. é muito elucidativo. Diz ele: “tendo além de alguns
primeira necessidade de área's; que ficavam distantes do centro escravos empregados na lavoura de mandioca, huma caza de negócios de molhados na
consumidor. Apesar do funcionamento desde o final do século XIX de fazenda Acarahi a huma legoa de distância da mesma vila. aonde não só vende os
um Celeiro Público que tinha como objetivo armazenar o gênero e gêneros rellativos aquelle negócio, mas athé compra farinhas e mais cereais, adianta
dinheiros aos lavradores que o procurão, exercendo assim todas as demais transações
disciplinar o seu preço de venda; apesar das inúmeras tulhas commerciais com tulha própria para depósito dos gêneros quer de sua lavoura quer de
municipais que tinham também a mesma função, este gênero entrava seo negócio, de cuja tulha somente embarca para a Capital, e nunca retalha para
em relarivamente pequenas quantidades, principalmente nos anos de consumo da terra, chega a sua noticia de que a Câmara Municipal tem apresentado húa
intempéries climáticas - chuvas desastrosas ou secas prolongadas. As postura, afim de fazer-se feira dentro da villa a qual foi approvada pela Assembléia
relativamente pequenas entradas de farinha de mandioca deviam-se a Provincial no sentido da copia junto, e com o esclarecimento que deu o Dr. Tiburcio.
como Deputado, autor do substitutivo que consta do periodico justiça também junto, e
uma série de fatores que os poderes públicos não podiam dominar, porque talvez se queira dar uma interpretação diversa, e o supplicante deseja sempre
malgrado seus esforços. Primeiro, os próprios centros produtores, obrar com acerto, caso tenha de ser victima da exceção arbitrária dessa postura, vem
localizados no litoral Sul da Bahia, tinham a possibilidade de solicitar de V.Excia. o seguinte esclarecimento: Se o supplicante como lavrador com
encaminhar a sua produção para outros centros consumidores que tulha própria para deposito, como outros muitos, pode ser forçado a abandoná-la,
edifficando outra em diverso lugar: e bem assim si: como negociante, está privado de
não eram Salvador: os mercados do Rio de Janeiro, de Pernambuco promover o recçbimento dos gêneros para os quais tem adiantado dinheiros e fazendas:
eram abastecidos por farinha de mandioca produzida em Caravelas, e, finalmente se está ou não no direito de continuar nas costumadas vendas e compras
Alcobaça, Camamu etc. (583). A razão dada pelos produtores para de gêneros do lugar não retalhando e antes embarcando, como sempre embarcou para
esse descaminhamento da produção eram os preços mais altos que a Capital em lanchas também da propriedade do supplicante, no que confia dará V.
eram conseguidos nas outras praças. Perdia-se assim uma parte da Excia. mais húa prova da continua rectidão e justiça..." APEB Seçã o histórica
P residência da pro vín cia (Agricultura, Indústria. Comércio) Abastecimento: gêneros
produção principal que por ser localizada em áreas mais próximas do alimentícios: 1823-1889. maço np 4631.
(540) - Muito expressiva foi a luta que a Câmara Municipal de Salvador sempre
desenvolveu em prol de defesa dos interesses das camadas populares da cidade.
(538) - APEB. S e çã o histórica P residência d a P rovíncia (Agricultura, Indústria. Reduzida, porém, pela reforma dos municípios, ocorrida em 1828, num papel
Comércio) Abastecimento: gêneros alimentícios 1823-1889, maço n? 463l. meramente administrativo, a Câmara via suas resoluções combatidas na Assembléia

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sempre ficou do lado dos que dispunham dos capitais, dos que de um outro tipo de consumidores: eram os marinheiros e navegantes
representavam as forças vivas da. Província, cuja vida administrativa que, aqui aportados, também se abasteciam nas mesmas fontes.
dependia de seus sucessos comerciais. Nas grandes secas que assola­ Consumidores privilegiados, porque dispunham com facilidade dos
ram o nordeste em 1834, 1844-45, 1857-1860, 1878-79 e 1889, a instrumentos de pagamento, sua presença agravava ainda uma
farinha foi desviada para o norte, deixando a população da cidade situação de abastecimento precário e insuficiente. Havia ainda, como
sem recursos de abastecer-se com esse precioso alimento. já foi aludido, um outro tipo de concorrência, essa principalmente
presente nas épocas de maior crise, quando as secas ou as inundações
Com um abastecimento irregular e deficiente o mercado de oferta drenavam da cidade do Salvador quantidades enormes de alimentos
de produtos alimentícios da cidade de Salvador era um mercado ao que iam socorrer as vilas e cidades do interior da Província. Não seria
mesmo tempo elástico e inelástico. Elástico, porque as quantidades então exagero afirmar que a maioria dos habitantes da opulenta e
dos gêneros de primeira necessidade variavam segundo as condições poderosa cidade do Salvador quase sempre viveram com o medo do
impostas pela produção e pela importação dos gêneros alimentícios. espectro da fome, verdadeira espada de Damocles prestes a se abater
Inelástico, porque as quantidades oferecidas não se adaptavam às sobre eles.
necessidades crescentes de consumo da população soteropolitana, fixa
e flutuante, mas flutuavam em função dos interesses dos que População com demanda crescente, imperfeitamente adaptada a
detinham o monopólio de sua distribuição local e inter-regional. uma oferta precária e insuficiente, a população da cidade do Salvador
sofria também dos efeitos de uma situação monetária bastante
O mercado de demanda: os consumidores problemática que deteriorava ainda mais os termos de trocas,
impondo modalidades de pagamento que, interessantes a curto prazo,
Assim, era um mercado de abastecimento irregular e deficiente acabavam por arruinar as classes menos favorecidas a médio e longo
que a população de Salvador enfrentava no dia-a-dia de sua prazos.
existência. Uma população que, apesar dos flagelos das guerras e das
epidemias que assolaram a Província, encetara um ritmo crescente, As modalidades de troca e os instrumentos de pagamento
triplicando os seus efetivos até o final do século e, por conseguinte,
aumentando sempre a demanda de gêneros de primeira necessidade. O dinheiro, raro na praça do Salvàdoí, era, na realidade, também
Todavia, apesar do caráter ainda semi-rural que a cidade apresentava, um velho problema (542). Raro não somente pela falta de um crédito
apesar da existência de múltiplas roças que ficavami-lhe nas proximida­ oficialmente organizado que pudesse vir ao auxílio dos necessitados,
des, poucos eram os soteropolitanos que se dedicavam à cultura de mas raro também na sua circulação,I raro como instrumento de troca
gêneros alimentícios, afora as culturas ditas de quintais que os indispensável numa economia urbana de caráter eminentemente
abasteciam com frutas e hortaliças. Por isso mesmo sua existência e comercial como era a de Salvador. Essa falta de numerário que se
sobrevivência dependia das feiras e dos mercados locais e a estes traduzia quase sempre pela falta de moeda divisionária tinha uma
procuravam se adaptar, segundo as oscilações da conjuntura do influência muito grande e decisiva sobre as modalidades de compra e
momento que com frequência lhes era desfavorável (541). Mas sobre venda de mercadorias quer se tratasse de operações do tipo grossista
essas feiras, esses mercados, os soteropolitanos sofriam a concorrência ou do tipo retalhista. Influenciava também a manipulação dos pesos e
medidas utilizados na época. Mas quais eram es as modalidades de
Provincial a qual pertencia o referendo das decisões tomadas. Por exemplo, em 1831, a compra e venda? Que tipo de pesos e medidas erám utilizados?
Municipalidade propôs uma postura segundo a qual toda pessoa que vendesse a
traficantes gêneros comestíveis do País, de primeira necessidade antes do povo ser As modalidades de compra e venda
suprido, deveria ser punida com a pena de 30(5000 réis ou 8 dias de prisão. Levada à
aprovação da Assembléãh Provincial, a postura foi pura e simplesmente suprimida.
AMS Livro de Posturas Municipais: 1829-1859, post nQI,t5, foi. 57v.). Quer se comprasse a grosso ou a retalho as duas modalidades
(541) - Podemos, todavia, sugerir que à medida em que as estradas de ferro
estabelecem ligações diretas entre certas vilas do interior (agreste e sertão) com a
(542) - Durante toda a época colonial há repetidas representações sobre a falta de
Capital, lá pelo fim do período estudado, as famílias, oriundas do interior recebiam
numerário na praça de Salvador. Mesmo o estabelecimento no século XVIII de uma
parte de sua alimentação de suas propriedades agrícolas. Acreditamos porém, que seu
número devia ser bastante limitado. casa de moeda não conseguiria sanar a situação.

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parecem ter sido as mais usadas: as compras efetuadas com moeda de
contado, isto é, compras que exigiam o imediato desembolso de ao ombro, de porta em porta da freguesia, anunciando a sua chegada
dinheiro no ato da compra, e as compras a prazo, nas quais o de maneira mais ou menos discreta. O verdureiro possuía uma tabela,
pagamento era efetuado em tempo posterior ao da compra, tempo aparentemente complicada, traduzida automaticamente por quem
acertado entre o vendedor e o comprador. Quanto à terceira comprava: 5 por 1,2 por 1,5 por 2, (tantas unidades disto ou daquilo-
modalidade que consistiria na troca pura e simples de mercadorias, banana, tomate, molhos de vagem, quiabo etc. por um ou dois tostões,
sem intervenção de numerário, nada nos autoriza dizer se era ou não como já tinham sido por um dois vinténs).
praticada. Pensamos, contudo, que se tratando de uma economia
urbana, e se tratando sobretudo de uma cidade cuja hinterlândia “ Em tempo dé chuva ou de seca, o verdureiro inventava casar
quase nada produzia para o consumo de seus habitantes, essa verduras. Tais consórcios geraram até charges nas revistas de terra,
modalidade de compra e venda, baseada na troca, devia ser pouco pelo pitoresco da inovação. Chuchu só podia ser vendido casado com
difundida. A não ser, talvez, em certos grupos de vendedores couve, abóbora com maxixe, quiabo com beringela, giló com alface e
ambulantes de alimentos onde, por exemplo, o peixe seria trocado por aí além. Para os fregueses amigos fazia concessões especiais, como
contra uma porção de carne moqueada ou um punhado de farinha. trocar os noivos. Casava chuchu com beringela, ou abóbora com
alface, segundo o pedido do comprador, arrumando também por
Nas compras efetuadas com moeda de contado havia vendas a um tostão um alentado molho de coentro misturado com hortelã e
preço fixo e vendas nais quais o preço era ajustado entre o comprador galho de salsa.
e o vendedor. Sobre as vendas com preço ajustado, Vilhena nos
deixou uma boa descrição quando este autor alude ao fato que certas “Contudo o verdureiro não escapava do ajuste. O que era de 3
mercadorias perecíveis, como o peixe ou a carne, eram vendidas a passava para 5 ao regateio. Era um lenga-lenga o tal ajuste que
preços inferiores à medida que o dia ia passando e que a mercadoria atingia o veftdedor de bananas, de laranjas, quantos dessem ao
ia se deteriorando (543). O preço que era alto e fixo na abertura do clássico a como é? Não se perguntava a quanto é? Quanto é? sugeria
mercado, ia diminuindo e se tornando um preço de ajuste ao cair do negócios mais altos, sendo pergunta reservada para vendedores de
sol apesar do fato que a maioria dos vendedores, para manter seus mais categoria. Categoria por que gabarito era palavra desusada.
níveis de lucro, procediam a um “arranjo” de suas mercadorias
tornando-as imediatamente consumíveis ao transformar, por exemplo, “O a como é? exprimia o início de um diálogo trabalhoso entre as
a carne fresca em carne moqueada ou assada e o peixe fresco em partes interessadas, vencendo de regra o comprador...” (545).
peixe frito (544).
E só podia ser assim numa cidadd onde a maioria da população
Sobre a modalidade de venda e compra por preço de ajuste eis vivia no limiar da pobreza, desconhecendo o que poderia trazer o dia
o que nos diz ainda Hildegardes Vianna: de amanhã. Desprovida de uma poupança confortável que lhe,
permitisse constituir estoques de alimentos, o soteropolitano procura­
“A gente de preço fixo era o homem do pão, da massa, do leite, va usufruir o máximo de uma estrutura de mercado cujos termos de
da carne, do sorvete, da taboca, do pirolito, do queimado, da louça troca lhe eram basicamente desfavoráveis. Assim, o pechinchar se
vidrada (nem todos, aliás) a mulher do mingau, do cuscuz, do acaçá, tornava a regra entre o vendedor e o comprador, ambos procurando
da cocada, do acarajé, da gamela do fato. Os outros eram de ajuste. tirar o máximo de proveito do diálogo que se entabulava. Mas é
todavia, necessário lembrar que certos gêneros como, por exemplo,
O verdureiro, por exemplo, tipo que não mercava, era do ajuste, aqueles que supostamente eram taxados, como a farinha de mandioca
apesar de todos os pezares. Vinha com seu tabuleiro à cabeça, cavalete e a carne de boi, ou que eram monopólio das casas importadoras
como o feijão, o arroz ou a carne seca davam pouca margem à
(543) - L. dos Santos VILHENA, A Bahia... op. cit., p. 129. '
pechincha a menos que fossem comprados já em estado de completa
(544) - Todavia, uma postura municipal de 1829 proibia terminantemente a venda de deterioração como freqúentemente acontecia (549).
abortos ou terneiros, e de carnes e fatos moqueados ou assados “como prejudicial ao
público para serem de ordinário corrompidos como mostra a experiência” AMS Livro (545) - H. VIANNA. A Bahiajá fo i AA1M... OP. CIT., P. !Cr.
de Posturaki Municipais. 1829-1889, foi. 6. (546) - Uma postura municipal de 1844 rezava que “toda pessoa que tiver em sua
casa dê mercado generos avariados, ou viciados, assim como quem os vender pelas
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263
português. Arroz,Tarinha de mandioca, feijão e sal eram vendidos por
A segunda modalidade de venda e compra, a que instituía-um
prazo para o pagamento das quajntias compradas, era de certo modo alqueire; usava-se a arroba como peso para a farinha do Reino, para a
Carne verde, o Bacalhau, o Toucinho, o Açúcar, o Café. Por sua vez os
também uma transação para a qual o preço era ajustado. Todavia, se
líquidos eram vendidos por canadas: azeite de oliva, azeite de peixe,
na modalidade de compra com dinheiro de contado o comprador
tinha alguma chance de conseguir um preço mais justo e menos azeite de mamona; vinagre, aguardente etc. Produtos nobres, como o
extorsivo, o comprador que se abastecia a prazo era obrigado aceitar chá e a manteiga, tinham seu peso expresso em libras. Um alqueire
os ditames impostos pelo vendedor e pagar mais caro pelos riscos continha 36,27 litros mas era geralmente subdividido em meio
assumidos por este. Riscos ligados às bruscas oscilações dos preços para alqueire (18,135 litros), em quarta (9,07 litros), em meia-quarta (4,535
a alta, riscos também oriundos do medo que o vendedor tinha de litros) e em selamin ou litro (1,14 litro). Por sua vez a arroba pesava
nunca recuperar o seu dinheiro (547). 14,74560 e era subdividida em j meia arroba, em quarta de arroba e
em libra ou a arrátel (0,46080 quilos). Cada canada continha 6,85
Qual era o vulto dessa modalidade de venda e compra a prazo, litros mas os líquidos podiam ser vendidos também em quartilhos e
é-nos difícil dizer. A frequência, porém, com que temos encontrado! meio-quartilhos (548) . Segundo a legislação municipal vigente na
na nossa documentação seriada de testamentos e inventários post- época, esses pesos e medidas eram auferidos pelas autoridades
mortem, menções sobre dívidas oriundas desse tipo de crédito ao municipais duas vezes por ano, em janeiro e julho. Por determinação
consumidor, nos leva a crer que esta era bastante divulgada e municipal era proibido o uso de peso maior de meia arroba sem a
praticada, principalmente nos períodos de marasmo económico, devida licença da Câmara (549). Essa medida tinha por objetivo de
portanto de preços mais baixos. A retração relativa do mercado distinguir os comerciantes grossistas dos comerciantes retalhistas para
consumidor, mesmo para os gêneros de primeira necessidade, criava efeito dos impostos que eram cobrados para cada categoria de
talvez condições que, a curto prazo, eram favoráveis aos consumidores comerciante.
pois permitiam-lhes prover as suas necessidades mais prementes
adiando-lhes os compromissos, mas a médio e longo prazos, produ­ Não há dúvida que os grandes pesos como o alqueire, a arroba e
ziam efeitos catastróficos sobre a magra poupança que, porventura, os a canada eram utilizados nas transações de certa importância, e de
mesmos podiam constituir em períodosi mais prósperos: tudo o que se número limitado deviam ser as famílias baianas que compravam os
ganhava passava para o pagamento de dívidas anteriormente contraí­ seus gêneros alimentícios em grandes quantidades. A grande maioria
das. da população baiana por nunca possuir meios para constituir estoques
de alimentos em casa (550) comprava em pequenas quantidades. Ora,
Em suma, nas relações de mercado de compras e vendeis diárias quer se trate de alqueires, de arrobas ou de canadas, todos esses pesos
de alimentos o vendedor era quase sempre um privilegiado. Mas não e medidas são pesos e medidas de capacidade, isto é, de peso variável,
poderíamos terminar esse parágrafo sem mencionar um outro elemen­ apesar do empenho que poderia existir por parte dos comerciantes a
to necessário para a efetivação do ato de mercadejar que é o uso de não lesar o consumidor, vendendo-lhe por um preço quantias justas.
pesos e medidas utilizados para a venda ao consumidor. Por outro lado, sendo pesos e medidas de capacidade, a própria
composição do produto podia favorecer ou desfavorecer o consumi­
Até 1874, ano de adoção do sistema métrico na Bahia eram dor Há por exemplo, entre a farinha grossa de mandioca e a farinha
utilizados os velhos pesos e medidas, herdados do dominio colonial fina de mandioca uma diferença granulométrica que favorece o
ve .dedor quando a farinha é grossa e pode encher, por exemplo, um
no primeiro caso à 105000 reis ou 5 dias de prisão; no segundo a
oost ^ra' 1 » ,-AMS U Vode Posturas Municipais: 1829-1889, foi. 78v, ( 5 4 8 ) _ Cf. Tabela sobre pesos e medidas no nosso trabalho Os preços na Bahia de
deienorados é O q k M » , 1750 a 1930... op. cit., p. 170. Cf. também com S1MONSEN, Roberto C. História
Económica do Brasil... op. cit.. p. 462-63. „ r„i
d ,<^ c7rav ^ na,rri^n,°' ? r i Ser ^ ito 1 ue na a'>álise a que procedemos de 200 testamentos (549) - AMS Livro de Posturas Municipais: 1829-1859: foi. 83v, postura n- 6_- e foi.
afncanos libertos, foi-nos poss.vel medir a extrema honestidade de que faz
prova essa categoria dc testadores. As dívidas do passivo que portam às vezes sobre 84, postura n9 64?.
(550) ->Nos 1.140 inventáriospost-mortem que temos examinado, nunca encontramos
E n a d a s e T s ,'36, f 2° ’ 5° ’ ,0° ° U 2° ° réÍS’ -£ p r e minuc^merne avaliações de gêneros de consumo estocados contrariamente ao que existe na Europa
eJS « jS m 'ed lú m 'eíe'S ,d S .'n J"*° 1"' na mesma época.

264 265
litro com uma quantidade menor do que quando ela é fina e por isso sobre o mercado de Salvador, todavia, tornava-se uma constante,
exige uma maior quantidade para encher o mesmo litro (551). Essa malgrado os esforços de injetar-lhe novas forças com a criação, no
instabilidade nas medidas de capacidade usadas até 1873 devia ser século XVIII, de uma Casa da Moeda. A primeira emissão fiduciária
altamente prejudicial ao consumidor que freqúentemente comprava de que se tem notícia data de 1796. Porém esta, segundo Pinto de
por preço ainda mais alto os gêneros de seu sustento. Para o Aguiar, não possuía características bem definidas. Esta emissão tinha
vendedor, essa situação proporcionava a possibilidade de um lucro sido feita com um empréstimo de 10 milhões de cruzados, com resgate
extraordinário. A adoção a partir de 1874 do sistema métrico deve ter fixo e juros de 5%, elevados a 1% em certas circunstâncias. As apólices
aliviado um pouco a situação do consumidor. Porém quem sabe dizer eram de 100$000 réis e eram autorizadas a correr “como Letras de
se seu uso foi imediatamente generalizado? A persistência ainda nos Câmbio”. Um ano mais tarde, o empréstimo era ampliado para 12
dias de hoje do uso de litro nas feiras onde se abastece um população milhões de cruzados, os juros estabelecidos a 6% e as apólices
passavam a valer 505000 réis. Tendo sido dispensado o endosso para a
de baixos recursos, sua vigência ainda em certas áreas do interior do
Estado, mostraria que durante muito tempo as velhas práticas circulação, as apólices adquiriram características tipicamente monetá­
seculares continuaram em vigor. Aliás, a adoção das balanças rias. Ao mesmo tempo mandava-se abrir empréstimo idêntico de 3
métricas não devia ser uma garantia segura para o consumidor, pois milhões no Rio de Janeiro e de 200 contos na Bahia.
estas também podiam ter seus pesos viciados, lesando mais uma vez
os consumidores. Data dessa época o plano de D. Rodrigo de Souza para o
saneamento do meio circulante. Para a colónia, D. Rodrigo propunha
a fundação de Caixas de crédito que viriam absorver os capitais
Havia, porém, outros elementos que prejudicavam os termos de estrangeiros que afluíam para a colónia. Tais caixas eram concebidas
troca: a ausência de um crédito organizado, os problemas que
como 'Bancos emissores locais. Todavia o projeto não foi adiante
apresentava a circulação monetária que se traduzia pela carência porque como todas as transações comerciais se faziam através da
crónica de moedas divisionárias afetavam também a vida do baiano. metrópole, raros eram aqueles que conheciam as normas mercantis
dos povos mais avançados, de modo que o papel moeda teria em tal
Os instrumentos de pagamento: o crédito e o problema da moeda
meio uma acolhida pouco calorosa pois a experiência que dele se
O Crédito tinha era a dos títulos oficiais que viviam em regime de crôn ico atraso.
Por outro lado, a parte mais importante do comércio da Bahia era
constituída por “casas aviadoras” que financiavam com bens todas as
Já tivemos a oportunidade de aludir em outras partes deste
atividades produtivas, recebendo em pagamento o produto das safras.
labalho o quanto a inexistência de um crédito organizado tinha sido
Portanto os comerciantes não tinham interesse que se criasse um
prejudicial às classes produtoras de gêneros de exportação durante o
Banco pois assim perderiam o controle exercido sobre a massa
período colonial (552). É que Portugal foi, das nações exploradoras- produtora (554). Aliás, a moeda papel gozava de tão pequeno crédito
colonizadoras. a única que não se preocupou em estabelecer um que a metrópole portuguesa foi obrigada em 1801 a restabelecer, por
sistema bancário como haviam feito seus principais concorrentes a decreto, o custo do papel moeda ao par da moeda metálica ao mesmo
Inglaterra e a Holanda (553). Na sua colónia brasileira quem exercia o
tempo èm que proibia todos os descontos sobre o mesmo. Um alvará
papel de banco eram as grandes casas comerciais às quais era ligada a do mesmo ano obrigava a que todas as operações de compra e venda
sorte dos produtores agrícolas. Por outro lado, a única circulação fossem efetuadas a metade por papel moeda, o que era, na realidade,
monetária que se conhecia era a da moeda metálica, cuja raridade forçar o seu curso. Em 1803, outro alvará vinha proibir a circulação do
(551) —Em 1969, tivemos a curiosidade de fazer uma experiência na feira de São ouro em pó como moeda no Brasil e transferia para o Rio as Casas de
Joaquim: comparando a capacidade de vários litros utilizados pelos comerciantes Moeda da Bahia, de Minas e de Goiás, de modo que nos parece justo
daquela feira, encontramos diferenças de até 250 gs. Por outro lado, umã medida litro afirmar que em princípios do século XIX a circulação monetária
de sal fino deu exatamente 1 Kg, enquanto que a èonversão convencional do litro é de' brasileira era essencialmente metálica, e que ela representava a
400 g.
(552) - Sobre a política da organização de estabelecimentos de créditos oficiais, cf. totalidade do volume de circulação existente. Somente a partir de
com o excelente trabalho de Pinto de Aguiar, BanCos do Brasil colonial. Bahia
Sindicato dos Estabelecimentos Bancários no Estado da Bahia, 1960.
(553) - O primeiro Banco em Portugal foi fundado em 31 de dezembro de 1821. (554) - Pinto de AGUIAR, Banco do Brasil... op. cit:, p. 9-38.

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266
1808 é que vamos encontrar tentativas de estabelecimento de um Entre 1851 e 1860 o princípio da unidade de emissão veio
sistema Monetário Brasileiro. Segundo Dorival Teixeira Vieira, havia, nova mente à tona com a criação do terceiro Banco do Brasil que
na origem da circulação da moeda metálica um certo caos pois nada obtinha a autorização do Governo Imperial de negociar a sua fusão
menos de que 3 espécies de moedas de ouro circulavam nas praças com outros bancos provinciais, transformando-os em suas filiais: “a
locais, as metropolitanas, as coloniais, desvalorizadas em relação às cada banco absorvido e transformado em filial sucedia-se a criação de
da Metrópole, e a moeda de ouro mineira cuja circulação se limitou novo banco emissor, vendo-se o Banco do Brasil obrigado a pedir ao
àquela capitania. Quanto às moedas de prata, circulavam duas Governo Imperial que provocasse a extinção dos bancos particulares e
espécies, as nacionais e as coloniais. Segundo sempre o mesmo autor, impedisse a criação de novos, única maneira de conseguir a almejada

iTf/ii iiUrií r i i( ii'Tiiii*<i|»illTirn»ifflTTT r h ' n T i n r ~ i r i r i r r í r i " < t f W i > r r n i T i n ^ r n ^ n r ~ r “gT"T


a desordem monetária provinha do fato que as cinco espécies que unidade bancária. A reorganização bancária de 1860, com este
aqui circulavam, a p sa r de ter o mesmo valor nacional, tinham de objetivo, fugindo à realidade, acarretou, nada mais nada menos, que a
fato valores reais diferentes o que causava movimentos especulativos falência do Banco do Brasil, em 1864" (557). De 1864 a 1888 a
de grande monta e contribuía para a sua evasão. Evasão que, por sua emissão passou novamente para as mãos do Tesouro até 1888. quando
vez, obrigou a sua substituição gradativa por notas de banco (555). o foi novamente instituída a pluralidade emissora. Essa situação
que se tornou possível graças ao estabelecimento de órgãos emissores complexa não deixara de repercutir também na Bahia e desde cedo se
isto é, de Bancos. tratou de organizar um sistema bancário próprio, aproveitando
principalmente o período de maior liberalização, quando a tese da
Todavia, desde o momento em que se cogitou disciplinar o meio pluralidade da emissão vencia. Criar novos instrumentos de financia­
circulante, e dar ao crédito uma organização oficial, duas tendências mento era aliviar as dificuldades em que vivia a praça da Bahia e
se destacaram. A primeira tendência defendia o princípio de que a injetar no meio circulante espécies que pudessem dinamizar, até certo
emissão de notas de banco só deveria ser feita por um único banco ponto, o comércio local.
emissor oficial enquanto que a outra afirmava que as emissões
deveriam ser confiadas a bancos emissores múltiplos, de preferência
.

Em 1817 era criado o Banco da Bahia que funcionou como filial


• •

particulares. Essas duas tendências dominaram o cenário bancário do primeiro Banco do Brasil. Primeira caixa de descontos, era
brasileiro durante todo o século pois houve alternância entre os destinado a facilitar as operações mercantis estendendo seu comércio
princípios da unidade e da pluralidade emissora: e contribuindo assim para a prosperidade da agricultura. Com a
bancarrota do primeiro Banco do Brasil, o Banco da Bahia encerrou
Por ocasião de fundação do primeiro Banco do Brasil (1809) sua atividade e entrou em liquidação em 1829.
aplicou-se o princípio da unidade de emissão. Liquidado em 1829, a

)’ in ;Viiriiiii)i in.:' t ' >“ r ifiriiiiffin'j1"Tirr-i- -jy,rriTTiWiaini^i?niii~'~i'r^miipijiiii0HiiinTff


emissão passou para o Tesouro que desempenhou o papel de único
órgão emissor até 1839 quando a iniciativa particular manifestou-se Extinta a caixa de descontos, em 1834 fundou-se a Caixa
criando bancos. Estes bancos “emitiam os chamados vales bancários, Económica da cidade da Bahia com um capital inicial de 9:411S600
(na realidade verdadeiras notas) sem pedir a autorização do governo e réise cujas ações valiam apenas 300 réis cada. Segundo os estatutos, os
de tal modo se implantaram e adquiriram a confiança do público que, objetivos da Caixa eram "a acumulação de pequenas quantias
em 1855, o Estado teve de reconhecer o fato e regulamentá-los” empregadas em comércio lícito’ e a oferta "às classes laboriosas meios
de aumentar os seus capitais reunidos, habituando-se à ordem e
economia, e socorrendo-as contra a indigência . Seu capital era
aplicado à compra de apólices da dívida pública ou a descontos de
(556) VIEIRA, Dorival Teixeira. O problema monetário brasileiro. São Paulo bilhetes da alfândega e suas operações limitavam-se sobre penhores
Instituto de Economia "Gastão Vidigal". 1952. p. 11-13. Diz o autor que. entre 1810 e de ouro, e a hipotecas de prédios contados nos limites da décima
. â moeda cunhada no Brasil apresentou 267.4? de aumento sobre o volume das urbana. Tratava-se evidentemente de um estabelecimento bancário
emissões... ou seja as notas do 1° Banco do Brasil representavam aproximadamente a
quarta parte do volume de moeda presumivelmente existente. Entre 1822 e 1830 baixou
para 135%. Para o período 1821-1840 nada se pode dizer por causa do derrame de metálica alcançou 20.8? do volume das notas para cair. na década seguinte (1881-1890)
too® I r 3' ^ " tre 1841 e 1860 a moeda metálica era superior ao volume de notas em para 10,9?.
' N° Penodo 1860-1870 a preponderância cabe à nota que é de 12.8? superior ao (556) - D.T. VIEIRA. O problema monetário... op. cit.. p. 14.
volume desta, notando-se uma pequena reação entre 1871-1880 quando a circulação (557) - Idem. p. 14.

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Essa febre de criação de estabelecimentos bancários (562) tinha
que pretendia socorrer as categorias médias da população de Salvador entretanto um efeito negativo: na medida em que permitia a emissão
das quais recebia a poupança. Ofícialmente reconhecido em 1860, em de papel fiduciário em quantidades enormes, aliviava as necessidades
1893 iria se transformar no Banco Económico da Bahia (558). mais prementes dos meios comerciais mas, por outro lado, contribuía
para inflacionar o meio circulante e excitar uma alja de preços para os
década de 1840-1850, período bastante promissor para a gêneros de primeira necessidade. Alta que era suportada pelo
economia baiana, instigou à formação de bancos que viessem oferecer consumidor humilde o qual, aliás, por falta de garantias, não tinha
os instrumentos de crédito que eram reclamados com urgência pelos acesso a este crédito, e nem contava, como veremos mais adiante, com
meios capitalistas locais visto a carência que apresentava o meio uma remuneração que realmente acompanhasse o ritmo inflacionário.
circulante. Em 1845 era fundado o Banco Comercial de Província da
Bahia com capital de 2 mil contos. Era um Banco de depósito e de Mas essa febre obedecia os próprios impulsos do governo
descontos e tinha a faculdade de emitir letras e vales pagáveis ao Imperial. Este adotara a pluralidade emissora como medida para
portador, a prazo não maior de dez dias e de valor não menor de sanear o meio monetário. Acreditava-se que a criação de bancos
100$000. não podendo sua emissão exceder a 50% do capital efetivo. regionais verdadeiramente emissores, levaria ao controle do caos
Era na realidade um banco emissor de papel moeda (559) e em 1855 fiduciário local, pondo em circulação um papel moeda garantido pelo
iria ser transformado em filial do terceiro Banco do Brasil, encerrando poder público. Foi para atender a essa solicitação que em 1858 foi
suas atividades em 1866. fundado o “Banco da Bahia” cujos objetivos eram “atender as
reclamações locais e fosse verdadeiramente um instrumento popular
Todavia o mal estar financeiro persistia e em 1848 eram criados do desenvolvimento e do progresso de sua terra” (563). Fundado em
três outros estabelecimentos bancários: a “ Sociedade do Comércio da 1858 coin um capital de 8.000 contos dos quais foram imediatamente
Bahia" com funções mercantes e hipotecárias em toda a Província e realizados 4.000 contos, o “Banco da Bahia gozava do desconto e da
cujo capital era flutuante; o “Banco Hypotecário da Bahia” que emissão de papel moeda. Apesar da “lei dos entraves” o Banco
habilitava os seus acionistas para se servirem do seu próprio capital conservou sua faculdade emissora até 1898 quando a ela renunciou.
assinado, porque os autorizava a descontar letras sob garantia de suas Pelo decreto que autorizou seu funcionamento, o Banco da Bahia não
ações até os 2/3 do valor com que tivessem entrado em dinheiro e a podia emitir bilhetes de menos valor a 10$000 réis de modo que suas
“Caixa Comercial da Bahia” com fundo incerto e retirável à vontade emissões só podiam favorecer as classes produtoras e mercantis e
dos acionistas, cujo capital, mais tarde, tornou-se fixo. Em 1853 eram nunca a massa popular para a qual uma nota de 105000 representava
criadas a “Caixa de Reserva Mercantil” que funcionou com capital uma quase fortuna. Aliás, os empréstimos que o Banco concedia eram
flutuante até 1860 e foi liquidado em 1901, a “Caixa Hipotecária da empréstimos feitos ao Governo provincial e às classes mercantis de
Bahia” com capital de 1.200 contos e a “Caixa de Economias da grande trato pois nem a própria agricultura exportadora dele se
Cidade da Bahia” cujos estatutos foram aprovados em 1860. Este beneficiava. Por outro lado, apesar de multiplicação dos instrumentos
último estabelecimento era um banco de capital flutuante e sua de crédito, em relação à situação vigente no início do século, a
finalidade era “proporcionar a todas as classes da sociedade meios Província da Bahia continuou sentindo a falta de capitais principal­
fáceis de acumular capitais”. Foi liquidado em 1877. Finalmente em mente nas duas últimas décadas que antecederam a proclamação da
1855 era fundada a Caixa União Comercial da Capital da Bahia República.
(560). Todos esses estabelecimentos funcionavam de maneira mais ou
menos clandestina (561). Assim, restava às classes menos favorecidas da cidade do
Salvador, continuar se beneficiando das velhas modalidades de
</o5L -/„ZE*E?a ThaleS de‘ CV1E1RA LINS- E- Q- História do Banco da Bahia
WPI1-IV5n. Rio de Janeiro. Livraria José Olympio Editora. 1969. p. 57. (562) - Aliás, a febre da criação de bancos atingiu também as cidades do Recôncavo
(559) - F. M. de G. CALMON.tiWa Económico-financeira op cil p 63 com a criação de Caixas Comerciais em Cachoeira. Nazaré, Valença. etc., enquanto
(560) - Th de AZEVEDO e E.Q. VIEIRA UNS. História do Banco da Bahia op que em Santo Amaro era fundada a Caixa Comercial de Santo Amaro. Cf. F.M. de G.
cit., p.61-62. ” CALMON. Vida Económico-financeira, op. cit., p. 71-72.
(561) - Com efeito, a maioria deles tem suas atividades legalizadas por volta de 1860 (563) - Th de AZEVEDO e E.Q. VIEIRA LINS. Historiado Banco da Bahia... op.
quando se deu a reforma bancária pela publicação em 22 de agosto de 1860 da lei cit.. p. 64.
1.083, conhecida como lei dos entraves.
271
270
credito emprestando e tomando emprestado de terceiros, num comér­ Quanto ao movimento da circulação monetária, a tendência geral
cio paralelo de crédito cuja amplitude nos é praticamente desconheci­ foi o aumento constante do volume de notas principalmente no
da. Somente as categorias melhor aquinhoadas, aquelas que, graças período da guerra do Paraguai em que o governo foi obrigado a emitir
ao seu trabalho ou os apoios encontrados, conseguiam constituir uma para fazer face às despesas de guerra e as tentativas de reduzir o meio
magra poupança, participavam do esforço modernizador do crédito, circulante foram sempre pouco intensas. O crescimento desmedido do
comprando ações bancárias ou se tornando donas de apólices da volume de moeda em circulação, com predominância de nota de
dívida pública, principalmente a partir do momento em que possuir banco que era inconversível, trouxe como consequência a desvaloriza­
escravos de aluguel não era mais negócio rentável (564). Mas, até que ção monetária.
ponto elas foram realmente beneficiadas por esses investimentos não
o sabemos, pois, seria preciso um estudo sobre as condições sob as A princípio a moeda papel valia mais que a própria moeda de
quais se procedia a liquidação dos estabelecimentos de crédito de 1$000 ouro, mas sua depreciação foi rápida de modo que a partir de
caráter mais popular como, por exemplo a “Caixa de Economias da 1830 iniciou-se um esforço de revalorização, porém, o ajustamento
Cidade da Bahia”, para medir as perdas e ou lucros. entre o ouro e o papel só se fez em 1850. De 1850 a 1869 a
desvalorização foi tão lenta que alguns economistas falam de período
De qualquer maneira, o que mais interessa ao presente estudo é de estabilização da moeda. Porém, o período subsequente, 1869-1889
conhecer que influências exerceu o sistema emissor brasileiro sobre a demonstrou uma nítida tendência à desvalorização.
evolução do volume das moedas em circulação.

A moeda e sua circulação Por outro lado, o Brasil adotou, para as trocas internacionais, o
padrão ouro cujo valor, na época, era menos sujeito às flutuações de
Como já vimos, até 1808 a circulação monetária era essencial­ preços. Todavia, o ágio do ouro acompanhou a desvalorização da
mente metálica (565). Por isso, os problemas de conversibilidade não moeda: Eis alguns dados:
se colocavam. Com a emissão porém, de notas de banco o problema
de conversibilidade dessas notas foi aparecendo. O século XIX é ÁGIO DO OURO
caracterizado por uma alternância entre conversibilidade e inconversi-
bilidade do papel moeda e mesmo por uma coexistência das duas 1821 : 28%
modalidades. De 1810 a 1821 as notas eram garantidas por um lastro 1 8 3 1 :210%
que as tornava conversíveis. De 1821 a 1830 o curso da moeda papel 1840 : 42%
1850 : houve ágio da moeda papel devido ao afluxo
se tornou forçado, declarando-se por lei sua inconversibilidade do ouro com a descobe.ta das minas da Cali­
durante b período 1830 a 1853. Todavia, somente as notas do tesouro fórnia
circulavam sem garantia pois a dos bancos particulares eram conversí­ 1860 : 6%
veis à vista, o que lhes dava a preferência do público. De 1853 a 1864 1867 : 12%
houve coexistência das duas práticas pois as notas do tesouro 1880 : 23%
continuavam a ter curso forçado e a dos bancos curso legal. 1890 : 20%
Finalmente o período 1864 a 1888 foi de inconversibilidade. Em
suma, entre 1810 e 1888 somente nos primeiros anos do período
houve real conversibilidade da nota de banco. A s consequências do ágio crescente do ouro foi a queda constante
do câmbio (566) o o a e deteriorou mais ainda os termos de trocas no
mercado externo e provocou o desdobramento dos preços, isto é, que
(564) - Os testamentos e inventários pertencentes a pessoas oriundas das camadas
médias da sociedade de Salvador, contêm preciosas informações sobre a posse desses a mesma mercadoria passou a ter preços diferentes, conforme se
valores. Às vezes uma meia dúzia de apólices é o único bem possuído por um tratasse de pagamento efetuado em uma ou outra espécie de moeda.
escravo africano liberto. Esse “desdobramento de preços perdurou em toda a história económi­
(565) - Deve-se, porém, levar em conta a circulação de um tipo de moeda fiduciária ca do Brasil. Não só os preços se desdobravam, o que apresentava
emitida pelas “casas comerciais" cujo montante desconhecemos. Porém, como os vales
emitidos não circulavam no mercado de varejo, este tipo de moeda era restrito às
operações de maior importância. (566) - Cf. cóm a nota 500.

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grandes inconvenientes por significar impossibilidade de negócios libra de cobre custava 360 réis e amoendada permitia a fabricação de
moedas no valor de 2S000, de onde um lucro certo de 1$640 ”.
seguros como, principalmente, desenvolveu-se a especulação sobre a
moeda, descontrolando o mercado e elevando os preços. Tal elevação Na Bahia o início da cunhagem de moedas de cobre no valor de
acompanhou o ritmo de crescimento do volume das notas; há uma 80 réis e de peso incerto, deu-se em junho de 1823. Daquela data, e
estreita relação entre o aumento do volume das emissões e a elevação por mais de 30 anos, há referências constantes de derrames de moedas
dos preços, tanto assim que a correlação entre os dois fenômenos, falsas no mercado de Salvador (569). Desses derrames participavam
calculada para um período de 130 anos, foi de mais 0,93. Não há, pois pessoas influentes do mundo comercial e agrícola da Bahia e
dúvida, quanto à sua interdependência” (567). acreditava-se de que várias fortunas se edificaram com base nessa
especulação. O caso mais conhecido é o do comendador Antônio
As alterações dos preços provocados pelo seu desdobramento Pedroso de Albuquerque, depois Visconde de Pedroso e Albuquerque,
constante, agravava o estado de economia e facilitava a especulação um dos mais fortes negociantes da praça que nunca conseguiu obter
causando grande instabilidade no comércio. Em todos os empreendi­ um título de nobreza brasileira por ter sido acusado de praticar o
mentos, os riscos de perda eram grandes e todos procuravam tráfico negreiro e de fabricar moeda falsa. Contra essa última
realizar operações onde os lucros fossem grandes e rápidos mesmo se acusação se defendia declarando “... quando tinha na Bahia, o cobre
esses lucros fossem posteriormente acompanhados por desastres de bom cunho valioso ágio, 40 por cento sobre o mao, transferiu o
lamentáveis. Especulava-se sobre o preço das mercadorias, sobre o suplicante da Corte para aquela Província, violando as ordens que
crédito e sobre o câmbio e o exemplo era dado pelas próprias então existião, cerca de 240 contos de reis; mas erão da melhor moeda
autoridades do governo. Todas essas operações são por demais do Império, mas a teve a Presidência em suas mãos mas lhe foi por
conhecidas para que seja necessário apreseniá-las detalhadamente ella mesma entregue! He isso comerciar com moeda falsificada?
(568). Entretanto uma dessas operações nos toca de mais perto e Não, Senhor, nunca tal comércio maculou a sua probidade” (570). De
merece que nos detenhamos um pouco mais, pois provocou transtor­ qualquer modo, não deixava de ser uma operação especulativa.
nos incalculáveis à economia local durante várias dezenas de anos.
Trata-se da falsificação de mo.edas cujo exemplo fôra dado pela Não sabemos com precisão qual o vulto do derrame de moeda de
própria Corte que, por volta de 1810, iniciou a prática de recunha- cobre falso na Bahia. Num relatório apresentado pelos comerciantes
gem de moedas de prata vindas das colónias espanholas. Como essas locais em 1827, falava-se que a moeda de cobre tanto falsa como
moedas tinham uma quantidade de prata bem superior ao mil réis verdadeira, em giro no mercado da Bahia, devia ser em torno de três e
português, bastava que se comprassem pesos pelo seu valor comercial meio a 4 milhões. Porém, no fim do mesmo ano falava-se de uma
que era de 750 réis e que apenas com uma recunhagem se mudasse o circulação de 5 mil contos de réis e até mais (571). O fato é que todos
seu valor que passava para 960 réis. A operação era tão lucrativa que os planos apresentados para recolher a moeda falsa falharam de
“o próprio povo percebeu isto e passou a adquirir pesos e fazer a modo que o governo imperial não teve outro meio senão promulgar,
recunhagem nas próprias casas”. Têm-se notícia que esta operação foi em 1834, uma lei pela qual se declarava extinta a moeda de cobre na
largamente praticada na Bahia a qual mantinha relações estreitas com Bahia, sendo somente reconhecida como única válida para todo o
as províncias cisplatinas. Império, a moeda cunhada no Rio de Janeiro (572). Mas nem por isso
a circulação da moeda falsa foi sustada.
Mas na Bahia, foi principalmente a especulação com a fabricação (569) - Em 20 de dezembro de 1853 foram apreendidas pela polícia diversas fábricas
de falsa moeda de cobre que trouxe consequências nefastas para a de moeda falsa (cédulas e cunhos de moedas metálicas). Algumas prisões foram feitas e
economia popular. Neste caso também o exemplo foi dado pela Corte. vários indivíduos foram, na ocasião, processados.
“O ágio do cobre sobre a nota de banco fez com que D. Pedro I, (570) - ANRJ. Seção histórica. Mercês, graças e títulos honoríficos. Antonio Pedroso
de Albuquerque (Visconde de Pedroso e Albuquerque).
mediante três alvarás de 6, 9 e 20 de setembro de 1822, declarasse que (571) - ESCRAGNOLLE Luiz Affonso d’. O visconde de Camamu e o derrame de
fossem enviadas para as Províncias máquinas de amoendar cobre, moedas falsas de cobre na Bahia, ANAIS do Io Congresso de História da Bahia.
porque isto seria uma fonte de renda para o país, uma vez que uma Salvador, Tipografia Beneditina Ltda.. 1950, 4voIs., vol 4. p. 143-169.
(572) - Diz Dorival Teixeira Vieira que "por ocasião do recolhimento da moeda falsa
de cobre em 1837, verificou-se que o montante de sua circulação equivalia a 31.225
(567) - D.T. VIEIRA, O problema monetário... op. cit. p. 57. contos de réis”, op. cit., p. 64.
(568) - Cf. D.T. VIEIRA, O problema monetário... op. cit., p. 61-72.

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mercado de sociedade livre e mesmo demasiadamente moderno. O
Evidentemente, o derrame de falsa moeda de cobre favoreceu os risco, porém merece ser corrido pois permite levantar algumas
que com ela especulavam, mas foi extremamente prejudicial para a hipóteses que se podem tornar temas de estudos futuros. Com efeito,
grande massa da população que se servia dessa moeda subdivisionária tudo o que é possível aventar nesse terreno são conjecturas vez que as
para as suas compras diárias e mesmo j>ara constituir eventual obras da historiografia baiana silenciam a respeito e que, somente por
poupança. O clima de desconfiança que se estabeleceu fez com que referências indiretas podemos inferir algumas informações. Aliás, é
ninguém quisesse vender a prazo, ninguém quisesse vender por conta preciso dizer que esse tipo de estudo de relações de trabalho no Brasil
de compras ou de cobrança de dívidas, o que aumentava o preço dos nos séculos passados tem até agora, chamado pouco a atenção dos
gêneros de primeira necessidade e como diziam os próprios comer­
estudiosos e quando se fala no problema de mão-de-obra e de seu
ciantes, “os soldos das Tropas, dos Artífices e dos Empregados potencial de oferta interna, é sempre em função das atividades
públicos em breve-serão mui inadequados ao seu sustento” (573).
produtoras de gêneros de exportação (575). Pouca ou nenhuma
Aliás, essa situação de desconfiança, obrigou as autoridades munici­ referência se faz ao mercado de trabalho urbano que não sendo
pais, publicarem, em 1831, uma postura segundo a qual “todo aquele produtivo - pois a economia agrícola domina no campo e a indústria
que recusar as moedas de cobre de 80, 40, 20 e 10 réis será multado encontra-se em estado nascente - economicamente falando pouco
pela primeira vez na quantia de 305000 e sofrerá 8 dias de prisão”. representa. Pensamos porém, que mesmo se o setor secundário, no
Reincidindo, pagaria 605000 réis de multa e 30 dias de prisão. A que diz respeito à indústria, é pouco ou nada desenvolvido, há
mesma postura rezava ainaa que “só poderá recusar-se como falsa a
contudo no mesmo setor uma outra atividade, a das construções, tanto
moeda de cobre que for visivelmente imperfeita em seu cunho ou que
públicas como privadas, que conheceu em Salvador no século XIX,
tiver de menos a oitava parte do peso legal, isto é a moeda de 80 réis
um desenvolvimento cujo estudo não pode ser posto de lado, mesmo
que pesar menos de 7 oitavas a de 40 réis que pesar menos de 3
se não se deve exagerar a sua importância. Por outro lado, sendoa
oitavas e meia; a de 20 réis que pesar menos de uma oitava e 3/4 e a
cidade de Salvador uma cidade eminentemente comercial, especiali­
de 10 réis que pesar menos de 63 grãos” (574). Era abrir a porta a
zada no comércio exportador-importador e de distribuição de merca­
inúmeras e sem fim contestações. dorias no âmbito regional e inter-regional, essas atividades comerciais,
Assim, o meio circulante sofreu ainda durante os 30 primeiros acrescidas aos serviços que a cidade então oferece, geram oportunida­
anos da Irídependência dos efeitos dessa circulação ilegal, altamente des de emprego para a população trabalhadora de Salvador de então,
prejudicial à bolsa popular. Dura era a vida do baiano que enfrentava que não devem ser desprezadas. Trata-se, pois, de um mercado de
as consequências de um abastecimento precário, de uma concorrência trabalho cuja estrutura e funcionamento é necessário conhecer.
por parte de consumidores flutuantes, de um sistema de crédito e de
circulação monetária que exigia por parte dos comerciantes um aa- Estrutura dual do mercado de trabalho
titude onde a procura do lucro mais alto era o principal motor. A vigência, até 1888, do sistema escravista no Brasil é responsável
Espoliado, pisado, sofrido, o baiano encontrava, porém, nas mil e uma pela estrutura dual que oferece o mercado de trabalho em Salvador
solidariedades que nasciam de suas relações diárias, forças e apoios no século XIX. Há, por um lado, o mercado de trabalho para
para viver e sobreviver. Pois era nas suas relações de trabalho que trabalhadores livres (brancos pobres, pretos e mulatoslivrese forros) e
encontrava seus meios de existência. por outro lado, o mercado de trabalho para trabalhadores servis, os
escravos. Duas formas de trabalho que coexistem e que colocam para
nós problemas ligados não somente à oferta mas também à demanda
Capítulo II - O mercado de trabalho de mão-de-obra, isto é, ao funcionamento dessè mercado.

Numa economia dominada pelo sistema escravista, falar em Funcionamento do mercado dual de trabalho
mercado de trabalho é talvez correr o risco de atribuir às formas que
assume o trabalho em Salvador, no século XIX, feições de um Para caracterizar o funcionamento do mercado de oferta de trabalho

(573) - L.A. d’ESCRAGNOLLE, O Visconde de Camamu, op. cit., p. 147. (575) - FURTA DO, C/elso. Formação Económica do Brasil. 6a edição. Rio de Janeiro,
(574) - AMS Livro de posturas municipais: 1829-1859. foL 62, postura nç 103. Fundo de Cultura, 1964, p. 141-162.

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na cidade do Salvador partimos da hipótese de que esse mercado tem
um funcionamento análogo ao mercado de trabalho em sociedades pelos poderes públicos em 1848 de não mais utilizar os escravos como
que ignoram o trabalho servil. Isto é, que os trabalhadores, quer se mão-de-obra para a realização de obras públicas, deixando esse setor
trate de livres, quer se trate de escravos, entram no mercado em nas mãos dos trabalhadores livres (578).
igualdade de condições. Com efeito, fossem livres ou escravos, ambos
os grupos de trabalhadores ofereciam sua força de trabalho individual Esses poucos exemplos mostram a complexidade do problema.
ou coletivamente, negociando seus contratos (576), e recebendo suas Mostram ainda a surda luta que se desenvolvia entre os trabalhadores
remunerações. A única diferença - mas fundamental - que existia livres e os donos da força de trabalho escravo (579) para a conquista
entre trabalhadores livres e trabalhadores escravos residia no fato de do mercado que, como não podia deixar de ser, oferecia um número
que os escravos eram obrigados a pagar a seus senhores uma parte de empregos limitado. Daí a necessidade que há, para que se tenhà
substancial da renda diária, semanal ou mensal usufruída. um melhor conhecimento do problema, de multiplicar as pesquisas
tendo em vista cortes cronológicos - antes por exemplo de 1850 e
Posta a hipótese pode aparecer como pouco matizada, pois, na depois - que possam dar conta das mutações ocorridas, mutações que
realidade, as coisas não se passavam assim tão simplesmente. Alguns na realidade se operam vagarosamente no tempo. Essas pesquisas
exemplos podem muito bem ilustrar a ressalva que fazemos: permitiriam apreender o momento em torno do qual a forma de
Quando por exemplo se trata de uma eventual concorrência entre
to: “ Logo depois da lei de 1850 sobre os saveiros, devia Exmo. Sr. ser uma
um grupo de trabalhadores livres e um proprietário locador de consequência clara e perpétua que não fossem os livres afastados de qualquer serviço
escravos, o proprietário de escravos pode se entender diretamente profissional do mar em que se achassem empregados para se dar lugar a escravos. Não
com os empregadores (Conventos, Instituições hospitalares, Órgãos tendo porém assim acontecido virão-se os estivadores obrigados em 1855 a representar
governamentais ou simples indivíduos) e colocar sua mão-de-obra ao ante o Presidente Dr. Tibúrcio contra o mal que lhes causava a dita introdução de
detrimento de trabalhadores isolados livres ou recentemente alforria­ escravos em sua profissão visto que o Capitam do Porto d'então lhes não dera o devido
deferimento. Foi por aquele Presidente ouvido a justa queixa dos estivadores e logo
dos. prohibida dahi em adiante a admissção de escravos. Mas pela perturbação dos ânimos
nascidos da invasão da cholera-m orbus foi se insinuando a desobediencia a referida
Por outro lado certas funções, certos ofícios são vedados aos disposição do governo e dahi por diante crescendo, até que atualmente parece ser esse
escravos: abuso inversamente aquilo que o Governo tivera ordenado.
a) todas as funções públicas, mesmo as mais humildes, como as Ora, não podendo mais a maior parte dos abaixo assignados soffrer penúrias, eles.
suas esposas, e seos filhos pela introdução desses escravos que alias seos senhores
de soldados e de policiais, são vedadas ao elemento escravo. podem ocupar como serventes e ganhadores em terra. se. além de que escravos não tem
b) segundo a conjuntura, certos ofícios podem também fechar o família, fizerão ver ao actual Capitam do Porto os males que sofrem por somente abuso
seu acesso a mão-de-obra escrava. Em 1850, por exemplo, somente já reconhecido por terminantes ordens, pois que até o Capitam do Porto Diogo Ignácio
aos nacionais livres dá-se o direito de possuir saveiros (embarcações a Tavares em seo tempo fez uma circular pela qual determinava que ainda os próprios
estivadores não pudessem ter escravos no serviço desta ordem, sem que o fizessem
vela utilizadas na navegação de cabotagem) sobre os quais navegam público pela imprensa, e isto mesmo no caso de não haver homens livres que se
marinheiros pertencentes à camada livre da população. Os escravos, quizessem dar a este trabalho.
mas também os estrangeiros são assim proibidos de exercer esta E como não tinhão attendidos. talvez pelo que o dito Capitam do Porto, nomeado ha
profissão. pouco, não esteja siente das referidas ordens nem saiba quanto sofrem muitos cidadãos
c) em 1861, uma outra categoria de trabalhadores, os estivadores, por não acharem em que se empregarem, sendo por isso injustamente considerados
como reós de polícia, ou preguiçosos, e maus pais de família, por tudo isto P.P. a V.
protestavam junto ao Presidente de Província contra o “nocivo e Excia. se digne de fazer entrar no devido vigor a justa proibição de escravos no serviço
costumaz ascendente que há formado o abuso da introdução de da classe de estivador, a fim de se não tirar o pão quotidiano a muitos pais de familia
escravos no serviço da profissão de atividades no porto desta cidade” qUe a este trabalho se tem dado progressivamente..." No rosto do documento
(577). No mesmo sentido podemos ainda citar a resolução tomada colocou-se a' indicação que os “supplicantes serão attendidos". APEB. S eção histórica.
Série P residência da Província: J u íz e s (capita!) maço 1855-1861 (Escravos, maço n"
2886).
(576) -Na maioria dos casos, tratava-se evidentemente de contratos verbais, pois (578) - APEB, Seção histórica. Presidência da Província Viação e Obras Públicas
somente quando se tratava de obras de vulto ou de locações de serviços que 1847-1849.
ultrapassavam um tempo curto, é que podem ser encontrados contratos devidamente (579) - Pela evidência que temos tido através da análise dos inventários post-m o rtem
registrados nos livros públicos dos tabeliães. e dos testamentos, até 1860. aproximadamente. o possuir escravos é um fato que não se
(577) - A argumentação utilizada pelos estivadores justifica que citemos o documen- limita apenas nas camadas altas da populáção. Vários escravos libertos são donos de
vários escravos cujos serviços alugam para viver.

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Para o período posterior a 1876 e até 1887. quando se dá a fusão
trabalho livre se torna um imperativo fundamental para a sociedade de várias unidades fabris fundadas entre 1834 e 1886. não mais
baiana urbana (580). Isto é, o momento em que o trabalho servil deixa possuímos dados numéricos sobre os trabalhadores da indústria têxtil
de ser rentável para os donos de escravos ou seus empregadores e por (582). Evidentemente, os dados que possuímos para 1875-76. mostram
isso é paulatinamente substituído pelo trabalho livre. a exiguidade do mercado de oferta de empregos industriais, eviden­
Quer se trate de trabalho livre ou de trabalho servil, existem, ciada. aliás, pelo pequeno número de operários que se acham
porém, certos elementos que nos parecem comuns às duas formas de empregados: 478. E verdade que para duas dessas indústrias não
trabalho; todavia, e\istem outros que são específicos a cada um dos possuímos dados e tentar inferir o número de operários pelo número
dois grupos considerados. Conhecer as semelhanças e as diferenças de teares que cada fábrica possui torna-se tarefa impossível, pois não
que existem entre os dois! grupos é abrir caminho para uma melhor há nenhuma relação entre estes e aqueles (583).
conceituação do mercado de trabalho de oferta e de procura na cidade
do Salvador. Mas a atividade têxtil não é a única atividade industrial de
Salvador na época. Há ainda manufaturas de calçados, rapé. biscoitos,
Elementos comuns ao mercado de trabalho livre e escravo em Salvador gelo. óleo, móveis, alambiques, cigarros, charutos, fundições de ferro e
de bronze; e ainda manufaturas de pregos, de velas, de refino de
Como já aludimos linhas atrás, partimos da hipótese de que o açúcar, de sabão e de sabonetes, de chocolate, de cerveja, de luvas, de
mercado de trabalho de Salvador funciona como qualquer outro fósforos, de massas alimentícias, de serrarias, de ferro esmaltado etc.
mercado de trabalho. Mas de que tipo de mercado se trata? O (584). Porém, sobre essas atividades manufatureiras não temos
reduzido desenvolvimento que conhece o setor secundário da cidade nenhuma informação quanto ao número de operários empregados.
do Salvador, no que diz respeito às atividades industriais, não nos Aliás, se deve ainda considerar como provável que todas essas
autoriza considerar que se trata realmente de um mercado que possa atividades, de tipo industrial secundário (de transformação) se
absorver um grande número de assalariados, sejam eles livres ou desenvolveram e evoluíram numericamente em função do aumento
escravos. Essas atividades industriais se resumem na existência de da população da cidade e de suas necessidades, o que deve ter
alguns estabelecimentos fabris sobre os quais possuímos os seguintes ocorrido a partir da segunda metade do século XIX. Por outro lado.
dados para o ano de 1875-76 (581). sendo a cidade de Salvador um mercado distribuidor de mercadorias
manufatureiras importadas, pressupõe-se que o crescimento desse tipo
de manufaturas só foi possível quando a concorrência externa
Ano de fundação Fábricas N9 de operário» permitiu que assim fosse. Seja como for. o número restrito de
atividades do tipo industrial oferecia poucas oportunidades de
1834 Santo Antônio do Queimado 90 emprego para uma massa trabalhadora que, para sobreviver, era
1835 N. S. da Conceição 60 obrigada a recorrer a outras atividades, que não as industriais. Essas
1858 Modelo 110 oportunidades de emprego eram fornecidas pela indústria de constru­
1870 S. Salvador Sem indicação ções civis e navais e pelo setor terciário cuja oferta crescia na medida
1873 N. S. do Pilar 120 em que a cidade ia crescendo, exigindo cada vez mais o desenvolvi­
1873 N. S. da Penha 98 mento de certos serviços essenciais a seu funcionamento.
1875 S. Bráz da Plataforma Sem indicação

Não há dúvida que a indústria de construções quer seja a do setor


(580) - Pensamos que a abolição da escravidão em 1888 veio apenas referendar o público ou do setor privado, oferece várias oportunidades de emprego
movimento de substituição da mão-de-obra escrava pelo,trabalho livre, pelo menos nas
atividades desenvolvidas nos setores secundário e terciário. Aliás, o número crescente
de alforrias que se verifica a partir da década dos 50. injetava no mercado de Salvador (582) - Idem. tabela n94, p. 63.
um número importante de trabalhadores livres que tinham de prover a sua subsistên­ (583) - Há por exemplo na fábrica de Sto. Antônio do Queimado 30 teares e 100
cia. C/MATTOSO Katia M. de Queirós. A C arla de alforria com o f o n te ... op. cit.. p. fusos para 90 operários, enquanto que a fábrica N.S. da Conceição opera seus 35 teares
152. e 1200 fusos com 60 operários. Ibidem. tabela n9 3. p. 60.
(581) - J.L. PANPONET SAMPAIO. Evolução de um a empresa... op. cit.. tabela n9 3. (584) -F.M.G. CALMON, Vida E conóm ico fin a n c e ira ... op. cit.. p. 115-11ó.
p. 60

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para os habitantes de Salvador. Principalmente a partir da segunda população de Salvador. Esta encontrava sua principal saída no
metade do século XIX, quando teve início uma política de obras pequeno comércio ambulante de todo tipo e nos serviços de ganho
públicas que, como vimos, se propunha mudar as feições arcaicas da mais pesados, que exigiam maior força física do que conhecimentos,
cidade e melhorar as condições de vida de seus habitantes (585). Não como o de carregador de cadeira e o de mercadorias, de fornecedor de
há dúvida que o governo provincial foi um dos grandes empregadores lenha e de água potável, enfim de serviços de todo tipo. Mas, mesmo
públicos de mão-de-obra. Porém, a oferta de empregos nas constru­ nesse caso a oferta devia ser limitada pois esse tipo de funções não
ções públicas não parece ter satisfeito plenamente a demanda, a julgar podia crescer indefinitivamente. Por outro lado, pode se pensar que
pelas reclamações constantes da população livre a esse respeito. numa sociedade de tipo escravocrata, a tendência do setor terciário é
Quanto ao famoso Arsenal da Marinha, que empregava, até princí­ possuir uma demanda sempre superior à oferta, pelo menos enquanto
pios da década de 1830, um bom número de mão-de-obra artesanal, o número de escravos tinha possibilidade de aumentar, o que foi o
este. com o passar do tempo, entrou em decadência deixando de ser caso até 1850.
um recurso importante para a mão-de-obra em demanda. Mas,'por
A inexistência de um verdadeiro setor secundário que viesse com
enquanto, não sabemos quantos empregos eram oferecidos pelo setor
o tempo multiplicar as oportunidades de emprego, o relativo dinamis­
público ou privado, ligado às construções civis ou navais (586). O que
concretamente pode ser dito é que o maior número de pessoas que mo do setor terciário criava, assim, para as pessoas em busca de
fazem estado de uma profissão declaram quase sempre possuir ofícios trabalho, situações difíceis e impunha, tanto aos trabalhadores livres
ligados à indústria de construções. Ofícios cuja aprendizagem, como como aos trabalhadores escravos, condições que eram específicas a
já vimos, não era regulamentada mas que eram ensinados e aprendi­ cada grupo.
dos no próprio desempenho da função: entrava-se como aprendiz
junto a um “mestre ’ e uma vez os rudimentos da arte conhecidos O mercado de trabalho para os trabalhadores livres
passava-se imediatamente a exercer a profissão como qualquer outro
profissional. Assim, o que distinguia o mestre do»simp!es operário, A mão-de-obra livre é composta de brancos, pretos e mulatos, i s
eram seus anos de experiência e o conceito que o mesmo gozava no brancos podem ser descendentes de portugueses, de portugueses
consenso público. Era este que o consagrava “mestre”. Evidentemente recém-chegados de PortLstJ ou de outros países europeus (589) e de
este tipo de mercado de trabalho vivia nas contingências da conjuntu­ pessoas vindas de outras províncias brasileiras ou do interior do
ra económica do momento pois era ela que ditava o prosseguimento e Estado. Há também os “brancos da terra”, isto é a gente mestiçada
a execução das obras públicas ou seu embargo (587). mas cuja elevação na escala social já os capacita passar a linha de
demarcação racial.
Ficava o setor do Terciário. Numa cidade da importância
administrativa como era a de Salvador, os empregos ligados à A menos que sejam completamente desprovidos material e
administração pública e privada eram numerosos e foram crescendo espiritualmente, os brancos têm em gtral a possibilidade de usufruir
com o passar do tempo (588). Mas neles só podiam ingressar pessoas das melhores oportunidades pois também possuem o melhor preparo:
que possuíssem um certo grau de instrução e que gozassem do se instruídos, eles ingressam ao serviço público, ou privado, ao
estatuto de livres, o que deixava por fora uma grande parte da comércio (590), Instituições de Caridade etc, onde passam a exercer
funções de empregadas.
(585) - Cf. II* Parte do presente estudo.
(586) - A série Viação e O bras Públicas que existe no APEB é uma das séries mais Vários, porém, possuem ofício: são pedreiros, carpinteiros, cartei­
importantes que aquele arquivo possui. Ali se encontrariam certamente dados numéri­
cos que poderiam esclarecer a importância desse setor. ros, pintores, ferreiros, serralheiros etc. E entre este contingente que se
(587) - O papel do governo Provincial como fornecedor de empregos deveria r.ecrutam os mestres de obras ou os feitores quando se trata de ofícios
merecer um estudo particular. íigados à indústria de construção. Os brancos também exercem os
(588) - José Francisco Silva Lima nos diz que em 1841 o funcionalismo era limitado.
1/20 ou menos do atual (1906) o que mostra uma certa evolução apesar de estarmos
mais uma vez privados de dados numéricos para fazer a comparação. Cf. LIMA J.F. (589) - Há desde o final do século XVIII muitos espanhóis originários do bispado de
SILVA. A B ahia h á 66 anos. R em iniscências de u m com em porâneo. por Senex, pseud tui. conforme podemos ver nos testamentos.
Bahia. s.c.p. 1907. (590) - Como caixeiros de Casas Comerciais.

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oncios que chamamos de nobres como o de ourives, de talhador, de repugna exercer os ofícios mais baixos, aqueles que os nivelam com a
relojoeiro, de marcineiro, que são aLtamente prezados. nopulação escrava: “A Bahia que possue uma numerosa populaçao
contudo há dificuldade de conseguir-se todos os obreiros livres,
Quanto às mulheres, elas podem ser professoras públicas desde a geralmente há queixa nisto; existem, Exmo. Sr. em meo poder mais
década de 1830, mas a maioria exerce as profissões tradicionais de 60 pedidos para lugares de feitores, apontadores, mas ninguém
femininas como as de bordadeiras, de costureira, de doceira, e às vezes para trabalhar, há repugnância, eis ahi o exemplo mais evidente em
de lavadeira ou de engomadeira, se a necessiâade for premente. que vivem, preferem pois a vadiação a hum trabalho honesto, pelo
Todavia, exceção feita das professoras, das enfermeiras nas Institui­ qual conseguem o pão necessário para o sustento de suas famílias, e
ções hospitalares e de caridade, das:regentes das casas de Recolhimento habilitão-se desta maneira para os empregos de feitores, e apontado­
que recebem um salário mensal, todos os outros trabalhos femininos res, pois quanto a mim, prefiro um feitor dentre os melhores
são remunerados por .tarefa feita, modalidade que raramente se trabalhadores, de que de um homem que não sabe trabalhar, e não
encontra entre os assalariados homens. Por isso não se pode realmente pode mandar em consequência disto os outros (593). A meio século
falar na existência de um assalariado feminino para as mulheres de distância a situação permanecia a mesma descrita por Vilhena no
brancas, ou tidas como tais. final do século XVIII.
Quanto ao nível de relações entre patrões e seus assalariados Evidentemente, essa classe de população livre quando não pode
pouca coisa sabemos, exceção feita para a classe dos caixeiros que gozar de altos salários prefere usufruir os lucros que oferece o
gozam de uma situação economicamente privilegiada pois, além do exercício do pequeno comércio ambulante ou não, sem as duras
salario, eles ainda usufruem de casa e de comida que recebem de seu imposições do horário a cumprir e da tarefa a executar. Aliás, esse
empregador. Mas essa vida quotidiana promíscua entre empregado e meio de se ganhar o sustento diário, que possibilita com frequência
empregador deve ter tido seus inconvenientes. Aliás, o uso de amealhar poupanças, é preferido também pelas mulheres mulatas e
hospedar sob o teto familiar seu braço direito é também desenvolvido pretas que vêm engrossar as fileiras das ganhadeiras de todo tipo.
entre os artesaos e não são poucos os europeus que convivem com
seus oficiais também vindos da Europa. Às vezes, a situação para o Porém é justamente nestas atividades ligadas ao pequeno
oficial e bastante vexatória e se assemelha a uma quase escravidão comércio que os trabalhadores livres sofrem a maior concorrência dos
Bartholomeu Podestá pobre chapeleiro italiano aluga sèus talentos a cativos aos quais, como vimos, certos ofícios começam a ser vedados
a n n ç n n o C1-° A n g d ° H o g g io p a r a Um P e r íõ d o d e 5 a n o s e a ra z ã o d e na medida em que cresce a população livre da cidade. Seja como for a
4UU5.UUU reis por ano, a fim de pagar os 2:000$000 de réis que lhe população livre tem maiores possibilidades de usufruir de empregos
ornou emprestado quando ainda na Europa para socorrer e alimentar estáveis e de exercer profissões mais lucrativas.
sua família ali residente (591).
O mercado de trabalho para os trabalhadores cativos
Na categoria dos trabalhadores livres encontramos ainda a gente
de cor (pretos e mulatos) que tanto podem ter nascido livres como O número de trabalhadores cativos dos dois sexos é ainda
também serem forros de data recente. Esta categoria de trabalhadores considerável no século XIX (594). Essa classe de trabalhadores e
livres exerce geralmente as mais baixas profissões mas não é raro formada de negros africanos e de mulatos e negros nascidos no Brasil.
encontrar pardos e mulatos que são professores de música, de língua Parte significativa desse contingente tem sua força de trabalho
estrangeira (francês) ou mesmo ocupando algumas das funções mais empregado nos afazeres domésticos, vez que a consideração social
humildes que oferece o serviço público ou privado. É nesta categoria baseia-se em grande parte no número de escravos possuídos. Ha
que se recrutam geralmente os estivadores, os saveiristas e marinhei­
ros, e os oficiais empregados nas obras públicas do governo onde são
preferidos aos escravos (592). Porém, a esses trabalhadores livres 1847-1849: “que ainda havendo número completo de pessoal em alguma obra,
apparecendo um lidá-se logo ordem para ser despedido um captivo...”
(593) - Idem. Esse documento é assinado pela junta administrativa das Obras
20459^ _A M S' " Série Liyros de nola e escrituras de escravos. Livro 66.1S (1870) foi.
(5 9 4 ; _ Cf. MATTOSO, Katia M. de Queirós. A carta de alforria comofonte... op. cit.,
(592) -APEB. Seção histórica. Presidência da Província Viação e Obras Públicas p. 151.

284 285

/
muitos que trabalham porém, no mercado de Salvador prestando
serviços considerados os mais vis e fisicamente mais extenuantes como ainda compensações a serem pagas pelo dono do escravo se este
o de carregadores ou de simples serventes (595). Há contudo entre os fugisse, fosse preso ou morresse durante o tempo de sua locaçao
trabalhadores cativos vários que possuem ofícios artesanais apesar do Porém, os três quartos dos contratos que estudamos referiam-se ã
fato que a qualificação profissional na época não tem o aspecto locação de mão-de-obra escrava qualificada.
rigoroso de hoje. A prova disto é que, com freqfiência, o mesmo
escravo pode possuir mais de uma qualificação, afora o trabalho não Esse tipo de contrato era passado entre o dono do escravo e o
qualificado ou sem profisão: barbeiro e tocador de flauta, sapateiro e locador. Há, porém, casos em que o próprio trabalhador alugado
alfaiate, pedreiro e pintor etc. No fundo a qualificação é função de assina o contrato com o seu locador. Trata-se geralfnente de escravos
mercado: Se este exige mão-de-obra qualificada usam-se as prendas recém-libertos cujo preço de alforria foi pago por seu novo ou antigo
do escravo; se pelo contrário o mercado necessita de mão-de-obra não patrão. O adiantamento de dinheiro criava para o alforriado uma
qualificada, o oficial é transformado em simples trabalhador. Porque, obrigação contratual que o transformava em trabalhador sem salário
o que importa, é ser ele rentável para seu dono. até o pagamento total da dívida contraída que podia se estender por
vários anos. O máximo encontrado foram 7 anos (597).
Da mesma forma, é difícil distinguir os escravos de ganho dos
escravos domésticos na medida em que seu dono utiliza-se de seus Durante o período de vigência do contrato, locador e alugado
serviços ou os aluga para fora conforme as suas próprias necessidades: tinham as mesmas obrigações que as relacionadas no primeiro tipo de
o mesmo escravo pode ser ao mesmo tempo ganhador e doméstico. contrato de locação de serviços.
Quer fosse como simples ganhador ou como escravo alugado, o
Por isso o mercado de trabalho da mão-de-obra servil se elemento servil entra no mercado de trabalho de Salvador competin­
desdobra em dois tipos principais (596):
do com a mão-de-obra livre. Todavia, essa competição se restringe a
certas atividades desprezadas por essa população, o que não altera o
Há, primeiro, o mercado de compra de escravos que é frequenta­ caráter competitivo do mercado na medida em que uma competição
do por aqueles que desejam utilizar-se do trabalho escravo para se estabelece também entre os próprios escravos.
longos períodos!de tempo.
Isto se aplica principalmente aos escravos de ganho que traba­
Há, em seguida, um mercado de locação de serviços que lhando para fora das casas de seus senhores, são obrigados trazer-lhe,
frequentam os que desejam utilizar-se de mão-de-obra servil para diária ou semanalmente, a porcentagem que lhe é devida do produto
períodos curtos: um dia, uma semana, um mês, um ou dois anos, ou de seu trabalho. Infelizmente, faltam-nos por enquanto dados para
mais. Geralmente, os contratos de locação de serviços para tempos conhecer em quanto consistia essa porcentagem. Eram atividades tais
demasiadamente curtos são verbais, mas, quando se estendem em como as dos de carregadores e dos ganhadores de comércio ambulan­
períodos superiores a um ano, eles são sancionados por escritura te, que obedeciam a essa modalidade, espécie de contrato verbal entre
pública. Nessa escritura são estabelecidos: o preço e a duração da o escravo e seu dono.
locação, o tipo de serviços previstos.e as obrigações mútuas das partes
contratantes. Geralmente o locador se obriga a dar ao escravo, casa, É também necessário considerar que a mão-de-obra servil
alimentação, vestuário, médico e botica. Por sua vez o escravo é competia ainda com a mão-de-obra livre na medida em que os
obrigado trabalhar aos dias certos e a repor os dias em que não senhores possuidores de grande número de escravos, pelo status que
trabalhou por causa de doença”. Os contratos de locação previam gozavam dentro da sociedade global, tinham maiores facilidades de
colocar no mercado sua mão-de-obra disponível, do que o trabalhador
(595) - Alé por volta de 1850 é frequente encontrar mulheres empregadas como
isolado sua força de trabalho, mesmo se o governo da época tentava
serventes nas construções. r privilegiar a mão-de-obra livre.
(596) - Há, sem dúvida, um mercado de compra de escravo de caráter meramente
especulativo: se compra o escravo para se vender mais caro. Por exemplo, quando se (597) - AMS. Livros de notas e escrituras de escravos (1827-1887) Esse tipo de
compravam escravos que eram encaminhados para os mercados cafeeiros do Sul do contrato de locação de serviços encontra-se também na série Livros de notas e escrituras
Brasil
do APEB.

286 287
Em que nível se estabeleciam as relações entre trabalhadores Comparando as duas situações, vemos que ao trabalhador sem
livres e trabalhadores servis é dificil, por enquanto, conhecer. Porém, remuneração fixa ofereciam-se maiores possibilidades de formar uma
as inferências que podemos fazer das séries de documentos até agora pequena poupança na medida em que sua renda não era totalmente
coletados, as informações que veicula a tradição oral, mostram que apropriada pelo seu senhor. É esse tipo de trabalhador escravo que,
apesar da competição que indiscutivelmente existia entre esses dois com frequência, prefere ser mantido por seus próprios meios o que lhe
grupos de força de trabalho, as solidariedades eram múltiplas e o permite poupar o máximo (599).
trabalhador livre, recém-egresso da servidão, quando podia, ajudava
os seus congéneres cativos (598). Existia, acreditamos, uma consciên­ Finalmente, terceiro, havia os escravos que momentaneamente
cia da “condição de ser pobre” mas que todavia não se transformava saíam do domínio de seus senhores para passar para o domínio de
em consciência de classe, e isto somente nas categorias sociais que novos senhores. Referimo-nos aos escravos alugados. Estes, tinham
eram ainda próximas do status servil: uma vez subido socialmente, o seus serviços remunerados anualmente mas eram em geral, totalmente
antigo trabalhador desposava as atitudes das camadas “brancas mantidos pelos seus empregadores (600) que haviam assumido a
dominantes”, sua solidariedade passava a ser oferecida às pessoas de responsabilidade de os devolver gozando boas condições de saúde.
seu novo meio social.
Todavia, se conhecemos as modalidades em que se estabeleciam
No que diz respeito às relações que se estabeleciam entre as relações entre senhores e escravos, desconhecemos por completo de
senhores e escravos que trabalhavam fora das casas de seus donos, que maneira estas evoluíram no tempo e em que ocasiões. Sugeri­
existiam várias modalidades: mos, entretanto, que em período de preços altos dos gêneros de
primeira necessidade, talvez os senhores tenham preferido incumbir a
Primeiro, havia o escravo que trabalhava sob o regime de seus escravos a tarefa de sua manutenção. O mesmo acontecendo em
remuneração fixa, isto é, que recebia por quem utilizasse seus épocas de crise no mercado. Mas essa sugestão fica por enquanto no
trabalhos um salário diário. Era o caso dos escravos qualificados que campo das hipóteses.
exerciam uma arte ou oficio: pedreiros, carpinteiros, pintores,
tanoeiros, serralheiros, polieiros, calafates, funileiros, ferreiros etc. Resta ainda falar dos escravos domésticos apesar de que,
Nesse caso o ganho do trabalhador era inteiramente apropriado pelo voltamos a dizer, é dificil distingui-los dos escravos que trabalhavam
seu senhor a menos que este resolvesse dar-lhe um “agrado” pelos para fora de casa. O que se pode dizer é que em todas as casas
serviços prestados. Este “agrado” podia reverter-se numa verdadeira baianas, das mais humildes às mais nobres, a presença de pelo menos
remuneração no caso em que o senhor decidisse não prover por si um escravo doméstico era a regra. Isto entende-se perfeitamente
próprio a manutenção de seu escravo. Com efeito, ao senhor era quando se leva em conta o tipo de sociedade que é a sociedade baiana
facultado: manter totalmente seu escravo dando-lhe casa, roupa, onde um dos símbolos de elevação social é possuir quem execute os
alimento e cuidados médicos: manter parcialmente seu escravo, trabalhos mais pesados e degradantes. Nas famílias de grandes posses
dando-lhe por exemplo, somente casa e cuidados médicos, não prover há todo um séquito de domésticos servis com tarefas bem determina­
a manutenção de seu escravo que assim passava a se auto-sustentar. das: cozinheiros(as), copeiros, cocheiros, moços de recado, amas-secas
Nos dois últimos casos o senhor fornecia ao escravo os meios, isto é, e de leite, bordadeiras, lavadeiras, engomadeiras etc. As famílias
lhe deixava uma parte de seus ganhos para prover as suas necessida­ medianamente abastadas possuem dois a três escravos, geralmente de
des. sexo feminino. As famílias que freqúentemente vivem ao limiar da
pobreza, possuem uma escrava. Aparentemente, essas escravas não
Segundo, existia o escravo trabalhador sem remuneração fixa. É
o já mencionado caso dos ganhadores de todo tipo que, porém, eram percebem nenhuma remuneração mas a depender do grau de
obrigados a pagar uma espécie de salário fixo ao seu senhor. Também
nesta situação, o escravo podia ser totalmente mantido, parcialmente (599) - O grande número de escravos alforriados sem profissão declarada,
encontrados nos nossos estudos sobre Cartas de alforria, nos leva a supor que os
mantido ou não mantido por seu senhor. escravos de ganho tinham maiores possibilidades de reunir dinheiro para a sua alforria
do que os outros, principalmente quando se trata de alforria onerosa.
(600) - Em 126 escrituras de locação de serviços examinados, não encontramo;
(598) - Cf. II* parte deste estudo dedicado ao papel das irmandades religiosas e
associações de classe laicas. nenhuma em que o escravo é parcialmente mantido, ou mantido por si próprio.

288 289
intimidade e do apreço que gozam de seus senhores recebem doações, ções assim obtidas, fráo era rara. Nesse caso para conhecer a
podem ser alforriados na morte de seus senhores, ou podem ainda remuneração global final seria necessário poder examinar alguns
obter a permissão de negociar por sua própria conta nas suas horas casos individuais e construir séries de proventos recebidos pela mesma
livres. pessoa. Essa taref^ nos parece porém impossível, pois, em geral só se
possuem informações sobre um só salário, aquele considerado,
Dizer que os escravos domésticos eram privilegiados em relação principal. Dada essa situação, como falar de salário?
aos ganhadores de todo tipo, é esquecer as mil e uma opressões que
É preciso, também, lembrar que há casos em que os salários
lhes impunha o convívio diário e permanente com seus senhores.
monetários são completados por prestações in natura. Por exemplo,
Protegidos talvez melhor, materialmente, faltava-lhes porém, a com­
certos artesãos (pedreiros, carpinteiros) podem receber alimentação de
pleta liberdade de movimentos. Esta falta de liberdade não deve ser seu empregador (602). Assim sendo, seria necessário contabilizar
menosprezada pois era afinal nos escravos domésticos que nasciam as também os gastos feitos com alimentação para calcular as alterações
resistências e, às vezes, explodiam os ódios.
que sofre o salário monetário e conhecer seu novo nível. Na maioria
dos casos porém, essa operação torna-se impossível por causa das
Considerar os trabalhadores servis como mais bem protegidos do imprecisões que a documentação oferece; por causa também da
que os trabalhadores livres vez que sçus senhores eram por eles inexistência de regras uniformes e legalmente estabelecidas que
responsáveis na sociedade global, éesquecermais uma vez o gosto doce regulam essas situações. Ademais, as séries de salários que dispomos
que tem a liberdade sem barreiras legais. são de trabalhadores de construções ou de empregados de instituições
públicas e privadas, e estes salários não podem absolutamente ser
Mas quer se trate de mão-de-obra livre ou mão-de-obra escrava, considerados como exprimindo o custo da procução global de uma
o predomínio nas relações de trabalho do sistema patriarcal escravo­ economia essencialmente agrícola, orientada para a exportação.
crata, a inexistência de um mercado de trabalho verdadeiramente Assim sendo, os salários só podem exprimir uma fraca parte dà
assalariado - por causa do pouco desenvolvimento que conhece o setor realidade económica de Salvador na época, mesmo- pò'rque, éomo já
secundário - criam condições específicas nas quais o salário perde seu
caráter de dado económico e social fundamental. Então, o que dissemos, somente uma fraca parte da população ativa de Salvador
goza efetivamente da possibilidade de usufruir do privilégio de-ser
significa falar de salário quando se trata de uma sociedade escravista?
assalariada. Mesmo assim, nem todos esses assalariados podem ter a
segurança de um emprego regular e contínuo por causa das condições
O salário e seu significado que então existem no mercado de trabalho do Salvador:

Primeiro, pelo caráter competitivo de uma parte desse mercado


Não há dúvida de que as formas de trabalho assalariado ou não, onde, via de regra, os assalariados livres entram em concorrência com
que tentamos descrever ao longo desse capítulo são características de os assalariados cativos geralmente protegidos pela ação de seus
uma economia onde grande parte do trabalho social efetua-se no senhores que possuem os meios de avantajar sua própria mão-
quadro da escravidão e do artesanato. Nesse tipo de estrutura
de-obra.
econômica,osalário perdeseu caráterdedadoeconômicoe socialmente
fundamental (601). Por outro lado, mesmo se não possuímos dados
estatísticos precisos, podemos sugerir que somente 5 a 15% da Segundo, pela própria rigidez do mercado de oferta de trabalho
população ativa de Salvador era remunerada por meio de um salário que criava uma situação de sub-emprego crónico agravada ainda
e que este salário podia representar até só uma parte da remuneração pelos numerosos feriados durante os quais não se trabalhava.
recebida pelo trabalhador. Porque segundo uma prática que é um
Terceiro, pelo fato de os assalariados serem principalmente
traço característicodo assalariado baiano até hoje, a multiplicidade de
funções exercidas pela mesma pessoa, e por conseguinte de remunera- ligados a atividades oriundas do setor de construções as quais sofrem

(602) - No Arquivo da Santa Casa da Misericórdia encontramos informações


(601) - VILAR Pierre. Remarques sur Vhistoire des prix. Annales (Economies.
Sociétés. Civiíisations) (Paris) 4: 110-115. 1961. p. 110-111. esparsas a respeito desse assunto.

291
290
dos efeitos de crises sazonais na medida em que, em certas épocas do Em suma, o caráter específico que assume o mercado de trabalho
ano - principalmente no inverno que se traduz, na Bahia, por uma de Salvador por estar ligado a uma estrutura económica onde o
estação chuvosa que vai de abril a agosto - era impossível manter o trabalho social se efetua no quadro da escravidão e do artesanato; as
ritmo das construções (603). características às vezes não monetárias da remuneração salarial; a
rigidez da oferta, o caráter competitivo da demanda e as limitações
Essas razões nos levam a perguntar: se falar de salário, que valor impostas pelas condições climáticas em que vive Salvador, obrigam
atribuir ao salário do diarista, trabalhador que nos interessa mais colocar uma pergunta final: que valor económico atribuir a esse tipo
diretamente? de salário? Pensamos que é prudente atribuir-lhe um valor relativo,
mas não acreditamos que se deva renunciar a analisá-lo. Pois essa
Não há dúvida que entre o salário diário de um trabalhador e o tentativa de análise pode pelo menos nos dar uma idéia geral sobre os
seu salário efetivo há uma diferença qualitativa importante. O salário movimentos aos quais são submissos esses salários e permitir sua
diário expressa o salário que o trabalhador recebe ao fim de cada dia comparação com a marcha geral dos preços dos gêneros alimentícios
de trabalho executado. Por sua vez, o salário efetivo e a soma dos de primeira necessidade. Por outro lado. esse salário com todos os
salários diários que o trabalhador recebe no decorrer de um ano civil defeitos que possui é a única medida que temos para avaliar, de
de 365 dias. Mas desses 365 dias virtuais de trabalho devem ser maneira grosseira, o quanto podia ganhar um cidadão médio em
deduzidos todos os dias em que o trabalhador não trabalhou e, por Salvador na época... Podemos também conhecer, por extrapolação, as
conseguinte, não recebeu remuneração. Arrisquemos um cálculo: condições materiais da maior parte da população de Salvador que
primeiro é necessário deduzir os domingos: temos 52 domingos em vivia, no século XIX, no limiar da pobreza ou da indigência.
um ano: depois, as festas religiosas de guarda mais importantes: 20:
em seguida, as festas cívicas: 8 (604) e, finalmente os meses de inverno
durante os quais pensamos que as atividades se tornavam reduzidas:
35 dias em média (605). Isto nos dá um total de 115 dias em que o Livro II - Preços e salários na cidade do Salvador (18 8 0 -1889)
trabalhador não teve condições de trabalhar e perceber uma diária.
Deduzidos esses 115 dias dos 365 dias do ano, temos um saldo de 250 No longo capítulo dedicado à análise da estrutura do mercado de
Salvador e, principalmente, na análise do abastecimento do mercado
dias de trabalho efetivo sobre os quais deve ser calculado o salário
do consumo, nos empenhamos em mostrar quais eram os elementos
diário para se conseguir a soma do salário efetivo recebido em um condicionantes desse mercado. Vimos, assim, que a praça de mercado
ano. (606). Assim vemos que mesmo para esse tipo de trabalhadores,
considerados privilegiados, e sem por exemplo levar em conta as de Salvador era - por uma série de razões que não vamos repetir -
oscilações da conjuntura económica, a possibilidade de trabalho irregularmente abastecida. Essa situação se agravava ainda pelo
acha-se limitada por essa série de contingências reais. Veremos, caráter monopolista que tinha a oferta e pelo fato de Salvador ser
também um importante centro de redistribuição de gêneros alimi ití-
porém, quando analisarmos estes salários mais adiante que a situação
desses trabalhadores não era tão desesperadora como se pode pensar. cios de primeira necessidade. Ademais, sendo a cidade uma cidade-
porto, nela vinha se abastecer uma população flutuante de marinhei­
ros cujos efetivos eram bastante consideráveis, comparados à popula­
(603) - Seria interessante verificar se as obras eram. na época, planejadas em ção estável, e que possuía os meios de se abastecer, quaisquer fossem
função das mudanças climáticas. Este estudo tem possibilidades de ser realizado se as condições de mercado. Por outro lado, vimos também que os
forem estudados os maços de despesas feitas com construções ou reparos de casas de problemas de crédito e de circulação monetária influíam sobre as
instituições como a Santa Casa da Misericórdia e o Colégio de Órfãos São Joaquim
que possuem bom material para isto. modalidades de troca. Todos esses elementos criavam condições de
(604) - C. OTT, Formação e evolução étnica... op. cit.. p. 169-170. vida bastante precárias para o consumidor baiano, obrigado a
(605) - Foram considerados os quatro meses de inverno, de abril a agosto. Destes 4 suportar o ónus dessa situação.
meses foram extraídos somente os domingos (18) e foi considerado que o trabalhador
trabalhou nos 2/3 dos dias que sobraram.
(606) - Podemos ainda acrescentar que, mesmo para os assalariados mensalistas. Tudo isso, porém, tem sido analisado até agora de maneira muitc
são geralmente deduzidos os dias em que o assalariado não trabalhou, quando a geral e por isso, acreditamos, pouco convincente. De fato, até agora as
ausência é ligada a razões pessoais. Esta medida era adotada por Instituições do tipo nossas análises se basearam em fatos meramente descritivos, colhidoe
Santa Casa da Misericórdia, ou Colégio dos Órfãos de São Joaquim.
na sua maior parte em obras da historiografia tradicional. Por isso

292
29.'
Capítulo I - Os produtos de consumo e seus preços
faz-se necessário mudar de registro e tentar, na base de dados
estatísticos seriados, verificar se há correspondência entre as análises
Fontes
puramente qualitativas e os resultados que é possível obter pela
análise de séries estatísticas: v
Os estudos dedicados aos movimentos de preços têm seguido
duas tendências principais quanto à escolha das fontes.
.. Mas de que tipo de séries estatísticas dispomos? Infelizmente
somos obrigados de valer-nos de muito pouca coisa, pois possuímos A primeira dessas tendências é apresentada pelo economista
somente duas séries: a série de preços de alguns gêneros de americano Earl 5. Hamilton (608) o qual dera sua preferência aos
alimenta; o e algumas séries de salários. Evidentemente, nos faltam registros contábeis provenientes de instituições hospitalares, conven­
as series : )bre as produções agrícolas (produtos de exportação e de tuais e grandes casas principescas e senhoriais. Como cada uma dessas
subsistência) sobre as importações e exportações, sobre a produção instituições era obrigada efetuar regularmente compras para prover a
artesa na 1 ou sobre a circulação comercial que poderiam fornecer a alimentação das pessoas que viviam sob seus cuidados, estas possuem
este estudo elementos de grande valia. Aliás, faltam-nos também registros de preços de mercadorias compradas. Hamilton considerou
dados demográficos que pudessem nos informar sobre a dinâmica da que os preços registrados nas contas dessas instituições eram preços
populaça o da cidade durante o século XIX, como também séries das intermediários entre os preços de atacado e os preços de varejo,
flutuações monetárias. Essa falta de dados deve-se à falta de
estatísticas publicadas e também à falta de documentos primários e tal difíceis, porém, de ser qualificados.
situaçao limita enormemente as ambições do historiador que se vê A segunda tendência tem por principal defensor Ernest Labrous-
assim tolhido de realizar certos estudos. Tudo, porém depende do que
se (609) o qual preferiu como fontes para a coleta de dados as
estamos procurando. Se, por exemplo, pensamos que as séries de mercuriais (mercuriales) estabelecidas pelos poderes públicos, gera-
preços são suficientes para o estudo da conjuntura económica em mente as municipalidades, segundo as cotações dos preços do
dado período, estaremos cometendo um erro fundamental de aprecia- mercado. Essas cotações podiam ser semanais, quinzenais ou mensais,
çao: nao há dúvida de que os preços são uma variável económica e eram validadas pelo acordo tácito de interesses opostos, isto e, pelo
fundamental extremamente importante. Entretanto, o preço por si só acordo que se estabelecia entre a oferta e a procura, o que pressupõe a
mesmo não pode explicar tudo e na medida em que só se tem a existência de uma estrutura de mercado onde a concorrência livre
vanavel preço, o máximo que se pode tentar é avançar hipóteses e
hipóteses extremamente prudentes (607). realmente funciona.
A principal objeção que Hamilton faz ao uso sistemático das
Nossa intenção atual é modesta. O que estamos procurando é mercuriais é de que estas contêm dados já elaborados cujas bases
conhecer de que maneira atuam os preços de alguns produtos permanecem desconhecidas. Por outro lado Labrousse critica o
alimentícios sobre a praça de Salvador, e como se comportam os método de Hamilton afirmando que o tipo de dados por ele usados
salarios face as flutuações de preços. Duas análises que devem nos não fornecem toda a gama dos preços do mercado, sendo que, na
levar a melhor conhecer as condições materiais em que viveu o maioria dos casos, as operações registradas nos livros contábeis nao
habitante da soterópole no século passado.Mas, indiretamente, po­ correspondem a operações correntes, pois são feitas por corpos sociais
rem, as mesmas análises nos permitem verificar estatisticamente o poderosos, que gozam, às vezes de privilégios. O que resulta afirmar
comportamento da conjuntura económica da Bahia cujo conhecimen-
to ate agora era também puramente qualitativo. (608) - HAMILTON. Earl J. Money, prices and wages in Valência. Aragon and
\avarre. 1351-1500. Cambridge (Mass), Harvard University Press, 1926
War and prices in Spain: 1651-1800. Cambridge
(Mass). Harvard University Press, 1947.
(609) - LABROUSSE, Ernest. Esquisse du mouvement des prix el desrerenusem
Francean X VI11 siècie. Paris, Dalloz. 1932.
La crise de Véconomie française à ta fin de I An-
op f/f°p )20^C',02mendaÇÔeSde',ean Marczewski in L ’ Hisloire Quantitalive du tírésil... cien Regime et au dèbut de la Révolution, Paris, PÚF, 1943.,

295
294
de que estes preços não são preços correntes de mercado, mas preços Pensamos todavia que sua utilização pode fornecer uma idéia bastante
geraímente inferiores às cotações correntes. Uma terceira posição, correta sobre a marcha dos preços em Salvador no período que nos
adotada pelo historiador Vitoriano Magalhães Godinho (610), tenta interessa.
conciliar as duas tendências ao propor que sejam usados simultanea­
mente os dois tipos de documentos, uma série controlando a outra. Os maços de despesa da Santa Casa, anexos a seus livros de
Receita e Despesa, abrangem os documentos que tratam de várias
Quer se adote a -primeira tendência ou a segunda, quer; se tente despesas efetuadas pela Misericórdia durante o ano contábil. Até o
conciliar as duas tendências adotando a posição de Magalhães ano de 1826, a contabilidade da Santa Casa era dividida em duas
Godinho, a opção só é possível na medida em que o historiador partes essenciais: Receita e Despesa dos Tesoureirosda Casa (Consig­
encontra as fontes. Alas encontrar as fontes não basta: seguindo o nação da Casa, isto é, do Hospital de Caridade) e Receita e Despesa
princípio de que toda história de preços fundamenta-se essencialmen­ do Cofre (Consignação do Cofre, isto é, do Recolhimento de
te na elaboração estatística dos dados coletados, é necessário verificar mulheres). A partir de 1827, a Contabilidade da Santa Casa foi
se as fontes encontradas oferecem as condições exigidas para a unificada, não se fazendo mais a distinção entre Tesouraria da Casa e
elaboração dos dados que contém. Para tanto é necessário possuir do Cofre (613). Essa documentação inicia-se por volta de 1740,
fontes que preencham as condições de seriação, continuidade e termina-se nos nossos dias e apresenta-se em geral, bastante bem
homogeneidade de dados. conservada com exceção de alguns anos do século XVIII para os quais
várias peças eram inutilizáveis ou se tornaram inutilizáveis depois de
No caso da cidade do Salvador a procura feita junto aos arquivos consultadas.
conventuais do Carmo, São Bento e São Francisco não permitiu que
fossem localizados tais dados, e as informações que oferece nesse Temos, entretanto, até 1827, dois tipos de documentos em que se
sentido a documentação do Convento da Santa Clara do Desterro não encontram listas mensais dos produtos consumidos nas respectivas
preenchem satisfatoriamente! as exigências de seriação, continuidade e instituições com as respectivas quantias e preços. Todavia, entre os
homogeneidade (611). Por outro lado, foi-nos impossível encontrar documentos da Consignação da Casa e os do Cofre, há uma diferença
registros comparáveis às mercuriais utilizadas por Labrousse na essencial quanto à variedade dos produtos consumidos: geralmente as
França ou Magalhães Godinho em Portugal (612). Somente na Santa listas fornecidas pela consignação da Casa são mais ricas que as
Casa de Misericórdia é que conseguimos localizar uma documentação fornecidas pelo Cofre (613). Por motivos relacionados ao problema da
que oferecia as condições necessárias para a elaboração estatística dos seriação dos dados fomos, porém, obrigados a lançar mão das duas
dados encontrados e é sobre esta série que se alicerça o nosso estudo séries, utilizando a série do Recolhimento, sempre que se fez
de preços. necessário o seu uso. Mas para o século XIX essa substituição só foi
necessária para dois anos: 1818-1819 e 1824-1825.
Evidentemente, estamos perfeitamente atentos aos perigos que
oferece a utilização de uma fonte única, mas não tivemos escolha. Do ponto de vista das lacunas, a nossa documentação apresenta
uma interrupção contínua de 10 anos, de 1832 a 1843, o que nos priva
de conhecer as oscilações dos preços dos gêneros de primeira
(610) - GODINHO. Vjtorino Magalhães. P rix et m o n n a ie sa u P rotugal: 1750-1850. necessidade num dos períodos mais conturbados que Salvador
Paris, S. E. V. P. E. N„ 1955.
(611) - Para o século XVIII as contas referentes à manutenção das religiosas são
atravessou no século XIX.
trimestrais, mas mesmo assim muito lacunares.
(612) - Quanto as mercuriais não existe somente um tipo mas vários tipos e suas Métodos
finalidades são diversas. Nas principais cidades do pais cereais e farinhas eram vendidas no
Terreiro de trigo... Nas Cidades do Alentejo haviam sido criados, no último quartel do O estudo da história dos preços em Salvador foi realizado em
século XVI. Celeiros com uns ou granjas coletivas...” V. M. GODINHO. P rix e t m onnaies
op. cit.. p. 5.
No Arquivo Municipal de Salvador foram encontrados alguns livros de registro de (613) Para a caracterização dessa fo n te Cf. no sso s artigos C a m in h o s estatísticos na
história d a B a h ia Universitas (Salvador) 8/9: 135-153, 1971 e O s p reço s n a B a h ia ... op.
mercadorias que entravam no Celeiro Público, criado em 1785. Porém, nesses registros são
apenas consignadas as quantias entradas sem os respectivos preços o Ique toma sua cit.
exploração difíciL Nada foi encontrado a respeito das tulhas municipais. (614) -Idem .

296 297
quatro etapas fundamentais: a escolha do quadro cronológico- a isto é a duração aproximada de um ciclo curto. Com efeito, a
escolha dos produtos, a coleta e elaboração dos dados e finalmente elaboração dos gráficos das oscilações anuais dos preços, permitiu
sua analise. verificar que para a totalidade dos produtos, os ciclos curtos oscilam
entre 3 a 7 anos.
Na escolha do quadro cronológico procuramos abranger o maior
período de tempo mesmo se as nossas análises devessem ser circuns- Os dados obtidos pelo uso do método das médias móveis
critas a uma faixa de tempo mais curta. A escolha dos anos 1750 e quinquenais serviram de base para a elaboração dos índices para cada
1930 como anos baliza para o nosso estudo se impôs por quatro um dos produtos estudados.
razoes: primeiro, porque dispúnhamos de uma documentação seriada
e pouco lacunar para o período considerado; segundo, porque Foi também preparado um gráfico de preços reais utilizando a
achamos que seria interessante oferecer aos estudiosos da economia e libra inglesa como moeda padrão, admitindo-se que no período ela
da história económica as mais longas séries possíveis que pudessem não tenha sofrido variações em seu valor intrínseco.
servir a outros estudos além dos nossos; terceiro porque existem para
o período considerado, alguns estudos análogos no Brasil e no As unidades de medidas usadas no preparo dos gráficos foram
estrangeiro que permitem tentar certas comparações mesmo se os todas transformadas para o sistema métrico decimal, embora o preço
critérios de elaboração entre os vários estudos são diferentes; finalmen­ unitário tenha permanecido na moeda da época, o mil réis.
te pensamos que uma série relativamente longa poderia melhor
indicar os próprios ritmos da conjuntura que nein sempre coincidem Finalmente foi elaborado um útimo gráfico que compreende os
com os cortes cronológicos tradicionais. seguinte elementos:
1) geral de preços nominais no período 1750-1930, para o
í n d i c e

As preocupações que nos guiaram na escolha dos produtos foram qual foram considerados 11 produtos e tomado como base (índice.
de três naturezas diferentes. A primeira relaciona-se aos problemas 100) o ano de 1751.
das condições desejáveis para a elaboração de uma série cronológica 2) índice geral de preços nominais no período 1811-1930, com 15
e preços, seriação anual dos dados, sua expressão em moeda produtos e como ano base 1811 = 100.
corrente da época, sua homogeneidade em unidades de peso e medida
e sua homogeneidade do ponto de vista geográfico. A segunda. 3) índice do câmbio médio anual sobre Londres no período
ecorre do desejo de considerar apenas produtos realmente básicos na 1811-1930. Ano base 1811 = 100.
alimentação da população soteropolitana no decorrer dos cento e 4) índice de preços deflacionados ou reais (moedas padrão: libra
oitenta anos abrangidos pela pesquisa. inglesa).
Finalmente, a terceira, deveria dentro da medida do possível Por razões editoriais, é-nos infelizmente impossível publicar as
distinguir entre produtos de importação e de exportação, de produção tabelas dos dados brutos e dos gráficos elaborados, somente três series
e de consumo geral.
serão apresentadas: os gráficos referentes às flutuações anuais de
preços (fig. 1 a 18), os índices de flutuações de preços elaborados com
A coleta de dados permitiu que se constituissem séries mensais de base nos dados extraídos pelo método das médias móveis quinquenais
preços dos produtos escolhidos a partir de médias aritméticas dos (fig. IA à 18A) e o gráfico final que reúne os quatro índices
vários preços encontrados para o mesmo produto. O preço médio mencionados acima (fig. n9 19)
anual para cada produto é a média aritmética dos preços mensais.
Esse preço médio anual serviu para a elaboração dos gráficos que Os produtos, sua escolha e a variação de seus preços
indicam as variações anuais dos preços dos produtos estudados. A Os produtos e sua escolha
partir ainda desses dados brutos de variações anuais foram prepara­
dos vários outros gráficos: Assim para detectar a tendência de longa Como já foi referido linhas atrás, foram escolhidos 18 produtos que
duração, ou secular, foram elaborados gráficos segundo o sistema de nos pareceram ser expressivos do consumo alimentar da populaçao
medias móveis, cada valor calculado sobre um período de cinco anos. baiana.

298 299
Os 18 gêneros considerados para o estudo das flutuações dos preços primeira necessidade (615). Os produtos incluídos em cada grupo são
na Bahia foram grosseiramente divididos em três categorias: produtos os seguintes:
de exportação, de importação, de produção e consumo local.
Produtos de produção e de consumo local: Farinha de mandioca,
Gostaríamos porém de salientar que quando falamos em produto carne verde (de boi) feijão, arroz, carne de sertão, toucinho, galinha,
de exportação nos referimos apenas àqueles produtos que são objeto sal, azeite de peixe (baleia) e azeite de mamona. Oito desses dez
de comércio internacional e não de exportação e importaçãointepré produtos foram considerados como produtos de largo consumo pela
gional. população de Salvador, porém dois deles servem a um consumo que
não é alimentar: trata-se do azeite de peixe e do azeite de mamona
Devemos ainda precisar que, entre os produtos de exportação, que serviam como combustíveis para a iluminação pública e privada.
não figuram alguns dos grandes produtos da economia baiana como
tabaco e o cacau. Essa omissão deve-se exclusivamente a não termos Produtos de importação: Farinha de trigo, azeite de oliva,
encontrado na nossa documentação referência sobre esses produtos bacalhau, vinagre, manteiga e chá. Trata-se de produtos que na época
que pudessem ser quantificadas. Com efeito, aqui ou acolá, encontra- não eram produzidos no país, ou tinham uma produção inexpressiva.
se menção desses dois produtos, porém de modo bastante vago “para Com exceção do chá, que deve ter conhecido um consumo bastante
tabaco... 60 réis” ou “para cacau... 280 réis” etc., sem que fosse limitado, todos os outros produtos eram largamente consumidos,
precisado o volume transancionado. destacando-se principalmente a farinha de trigo, o azeite de oliva, o
bacalhau e o vinagre.
Todavia, tal divisão dos produtos em três grupos rigidamente
fixos, pode parecer arbitrária, principalmente no que diz respeito aos Produtos de exportação: Açúcar e café. Embora produzidos e
produtos de importação. De fato, estes não representam a realidade consumidos localmente seus preços são estabelecidos pelo mercado
comercial de uma cidade como Salvador, obrigada à importação da externo para o qual o grosso da produção é dirigido.
quase totalidade de seus gêneros de consumo alimentar. E isto porque,
como já vimos no capítulo dedicado à estrutura e funcionamento do Isto é o que se pode dizer quanto aos produtos. Todavia algumas
mercado de Salvador, as áreas de agricultura, próximas à cidade, considerações gerais se impõem antes de apresentarmos as flutuações
eram quase exclusivamente dedicadas ao cultivo dos grandes produ­ de seus preços, no período considerado.
tos de exportação. Por esse motivo encontramos freqúentemente Primeiro, podemos nos perguntar até que ponto esses produtos são
notícias em jornais da época de importações do exterior, além das realmente representativos do consumo da população de Salvador.
referidas no item importação, como: feijão, arroz, sal, toucinho, etc. Acreditamos que afora a farinha da mandioca, a carne verde e o feijão
Porque então fazer a distinção? Fizemos isto porque'nosso propósito é que são produtos básicos indispensáveis, todos os outros podem ser
de facilitar a apresentação dos dados e tentar ver se, segundo o grupo considerados como complementares, pelo menos para as camadas
a que pertence, o produto tem seu preço influenciado por fatores menos favorecidas dá população de Salvador. Nesse caso as oscilações
distintos. Porém, conforme poderá ser visto pelo exame dos gráficos e nas suas quantidades oferecidas e conseqiientemente nos seus preços-
das tabelas, tal não parece ter sido o caso pois, de maneira geral, todos principalmente em períodos de altas violentas - só afetariam catego­
os produtos obedecem ao mesmo ritmo de oscilações, quer se trate de rias sociais mais favorecidas e cujo leque de produtos consumidos era,
produto de produção e de consumo local, de importação ou de talvez, ainda mais diversificado (616).
exportação. Pensamos, que esta homogeneidade deve-se ao fato de se
tratar de preços vigentes no mercado de consumo, onde existe maior Segundo, esse quadro de produtos consumidos é incompleto na
interação entre um preço e outro, disciplinando a marcha de preços
que passa a formar um conjunto mais coerente. Porque não devemos
(615) - Substituir por exemplo a carne verde pela carne seca, ou pela carne de
esquecer que num mercado altamente especulativo como o de porco, de carneiro e de cabra, e a farinha de mandioca pelo arroz.
Salvador, há principalmente interesse de lucrar o máximo e não de (616) - Infelizmente faltam-nos por exemplo dados sobre os hábitos alimentícios
oferecer gêneros de substituição mais baratos que assim concorreriam diferenciados dos habitantes do Salvador. As poucas referências que possuímos não
para fazer baixar os preços dos gêneros considerados como sendo de permitem que chegjuemos a uma visão segura.
300
301
medida em que não foram incluídos outros gêneros que eram também
de grande consumo como, por exemplo, as frutas e hortaliças que
eram culturas de quintais (617). Deve-se ainda'considerar que havia
certos gêneros os quais, em caso de necessidade, podiam funcionar
como alimentos substitutivos de certos gêneros básicos de consumo,
além de nonmalmente, serem também consumidos: havia, por exem­
plo, um consumo relativo de carne de porco, de cabra e de carneiro
que podiam substituir a carne de boi em épocas de grande crise no
abastecimento desse produto. Entretanto, sobre estes produtos de
substituição e seu consumo não possuímos dados. Por outro lado, em
períodos de escassez na oferta de farinha de mandioca.ou de preços
altos, nada impede de pensar que era substituída por um maior
consumo de batata doce, de aipim e de inhame, gêneros sobre os quais
também não possuímos dados.

Em suma, a falta de dados mais ricos, a total falta que temos sobre
as quantidades transacionadas no mercado de Salvador, torna este
tipo de análise extremamente precária e seus resultados devem ser
olhados como sendo bastante relativos e de alcance limitado.
i
Feitas as ressalvas que julgamos necessárias, passamos agora a
apresentação dos gráficos e das tabelas que permitem tecer aígumas
considerações muito gerais sobre a marçha dos preços dos gêneros
estudados no mercado de Salvador.

As variações de preços

Uma observação preliminar se faz necessária: por nos termos-


proposto como data limite deste estudo o período 1800-1889, procura­
mos inicialmente uma data que fosse expressiva para um ritmo de
conjuntura e que se aproximasse o máximo possível de 1800.
Pareceu-nos então, que o ano de 1787 preenchia essa condição pois
por volta daquela data teve início de maneira incontestável um ciclo
económico de longa duração (ver fig. 1 a 18).

A observação das figuras 1 a 18, que dão conta das flutuações


anuais dos preços dos 18 produtos estudados, permite verificar que
para a totalidade dos produtos, os ciclos curtos oscilam entre 3 e 7
anos.

(617) - Nos maços de despesas da Santa Casa de Misericórdia tais produtos


aparecem. Porém, suas quantidades nunca são especificadas, de modo que não foi
possível procedera sua quantificação.

303
302
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306 307
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326 327
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330 331
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337
Por sua vez, o estudo das figuras IA a 18A que indicam a
MAMONA tendência de longa duração nos leva a fazer a seguinte reflexão: na
Fig 18A primeira vista, para os 18 produtos considerados, as flutuações das
ÍNDICE 1845 1865
* ( mCoias môvcb ou >*ouc » * is )

BASE 1845 100 540.881


* C P e so > L
curvas apresentam-se de modo bastante semelhante, principalmente
no que diz respeito aos períodos de baixa ou de alta acentuados.

Porém a curva de preços de cada um dos produtos apresentados


tem um comportamento próprio que as tabelas que seguem nos
parecem suficientemente demonstrar:

I. Gêneros de produção e de consumo local


(Períodos de alta e de baixa)

1. Farinha de mandioca Alta Baixa


1790-1796 1796-1804
1804-1817 1817-1820
1820-1825
1845-1858 1858-1863
1863-1869 1869-1873
1873-1879 1877-1882

2. Carne Verde (de boi) 1792-1798 1798-1810 (patamar)


1810-1823 1823-1825
1845-1859 1859-1864
1864-1881 1881-1889

3. Feijão 1790-1801 1801-1814


1814-1823 1823-1827
1845-1847 1847-1852
1852-1861 1861-1867
1867-1878 1878-1887

4. Arroz 1795-1799 1799-1808


KMOM 1808-1822 1822-1826
1845-1866 1866-1871
Kr-----<---- 1---------- •---- .---- .---- ----- r-- ---- •--- -r—
——,--- —
,---- .----- ------,---- , 1871-1879 1879-1887
1750 PM ITTQ 17*0 IT*0 1800 1*10 IMO B»0 1040 1850 IMO «TO ISOO IMO 1900 1*10 1*10 1950
5. Carne de sertão 1805-1819 1819-1824
1845-1858 1858-1865
1865-1881 1881-1888

6. Toucinho 1790-1799 1799-1806


1806-1815 1815-1820
1820-1825
1845-1859 1859-1866
1866-1871 1871-1878 (patamar)
1878-1886

338 339
16. Chá 1845-1875 1875-1889
7. Galinha 1789-1799 1799-1811
1811-1823 1823-1829
1845-1859 1860-1890
III. Gêneros de exportação
8. Sal 1801-1810 1810-1816
1816-1823 1823-1827 17. Açúcar 1886-1894 1794-1810
1845-1859 1859-1866 1810-1816 1816-1821
1866-1880 1880-1885 1821-1829
1845-1859 1859-1864
9. Azeite de peixe (baleia) 1801-1805 1805-1814 1864-1870 1870-1876
1814-1822 1822-1824 1876-1882 1882-1889
1824-1830
18. Café 1811-1821 1821-1826
10. Azeite de mamona 1845 -1859 1859-1865 1826-1830
1845-1865 1865-1868
1868-1876 1878-1884
II. Gêneros de importação
(Período de alta e de baixa)

Análise das tabelas acima permite verificar a sincronia que existe


entre os preços desses vários produtos. Essa sincronia se manifesta
11. Farinha de trigo Alta Baixa
1797-1804
principalmente em períodos de alta acentuada como 1790, 1798,
1790-1797
1804-1813 1813-1822 181 1-1822, 1845-1859. Há porém exceções: nós períodos 1811-1822 os
1822-1825 1825-1827 preços da farinha de trigo, do azeite de oliva, do toucinho, do
1845-1856 1856-1862 bacalhau, do vinagre e da manteiga, todos gêneros de importação,
1862-1867 1867-1889 caem sem que possamos encontrar outra explicação a não ser a de
considerar que naquele período havia estoques importantes no
12. Azeite de oliva 1791-1799 1799-1803 mercado que era necessário escoar a qualquer preço. O mesmo tipo de
1803-1808 1808-1817 (patamar) discrepância é notado no período 1845-1859 com uma queda
1817-1827 momentânea do preço do feijão entre 1847 e 1852 para o qual
1845-1869 1869-1875 também não achamos explicação.
1875-1880 1880-1888
Porém, apesar dessa grande amplitude, a alta violenta de preços
1790-1800 1800-1808
não consegue abranger mais do que uma dezena de anos. Esse
13. Bacalhau
1808-1814 1814-1820
período é por demais curto para uma acumulação suficiente de lucros,
quando observamos que as próprias altas são seguidas de períodos de
1820-1825 1825-1829 baixa de preços um tanto ou quanto bruscas. Essa situação não devia
1845-1868 1868-1873 permitir uma acumulação suficiente de lucros que sustentasse, ou
1873-1877 1877-1886 mesmo compensasse, os esforços dos meios empresariais baianos, daí
a atitude essencialmente especulativa destes. Quanto aos elementos
14. Vinagre 1788-1802 1802-1805
que condicionam as variações de preços, estes foram suficientemente
1805-1813 1813-1830
1845-1858 1858-1888
explicados quando falamos da estrutura e funcionamento do merca­
do de consumo de Salvador, para novamente repeti-los. Lembremo-
15. Manteiga 1805-1871 1871-1889 nos entretanto, que as oscilações, são função da produção e da

340 341
população tendesse a aumentar criando assim um desequilíbrio entre
produtividade dos gêneros produzidos in loco, do papel monopolista e a oferta e demanda. No decorrer desse estudo em várias oportunida­
açambarcador do mercado de consumo de Salvador, ao mesmo tempo des nos referimos à pressão que devia exercer sobre o mercado de
um mercado distribuidor de grande importância, e dos problemas demanda a presença de uma população flutuante de marinheiros,
oriundos do crédito e da circulação monetária. cujo número era praticamente imprevisível na medida em que se
desconhecia de antemão o número de navios que iam entrar no porto
durante o ano. Por alguns exemplos que foram dados (618), esse
A esta série de elementos é preciso ainda acrescentar o papel que
número era grande e era fator também de perturbação do mercado de
desempenharam, como elemento motor de alta de preços, direta ou
indiretamente, as secas. oferta de gêneros alimentícios.
TABELA XI
Na primeira parte desse estudo, falamos longamente sobre os
problemas oriundos das condições climáticas e que afetavam a ANOS DE SECAS E DE PLUVIOSIDADE ANORMAL NO NORDESTE
produção. Vimos assim que, a depender da ação dos ventos, havia NO SÉCULO XIX (618A)
anos de maior ou menor quantidade de chuvas caídas, anos de
pluviosidade catastrófica ou anos de seca rigorosa. Mostramos, para
os últimos vinte e cinco anos, para os quais possuímos dados 1859 - Seca
1809 - Seca
1860 - Seca
meteorológicos, o que foi a precipitação pluviométrica nos meses 1810 - Seca
1861 - Pluviosidade anormal
secos, chuvosos e torrenciais na Bahia entre 1945 e 1970. Há 1813 - Pluviosidade anormal
1862 - Pluviosidade anormal
incontestavelmente períodos extremamente secos que são seguidos 1816 - Seca
1865 - Pluviosidade anormal
por períodos de chuvas violentas. Que as secas - como aliás, as 1817 - Seca
1868 - Seca
1824 - Seca
chuvas torrenciais tenham tido alguma influência sobre certos 1869 - Seca
1825 - Seca
movijmentos altistas nos preços, não temos dúvida. Por exem­ 1830 - Seca
1870 - Seca
plo, a alta de preços nos anos de 1858 e de 1878 é 1872 - Pluviosidade anormal
1831 - Seca
certamente também motivada pelag secast Seu papel, porém, 1873 - Pluviosidade anormal
1832 - Seca
não nos parece tão importante como geralmente se pensa, e istc 1833 - Pluviosidade anormal 1877 - Seca
porque, como foi suficientemente demonstrado, poucas quantidades 1843 - Pluviosidade anormal 1878 - Seca
1879 - Pluviosidade anormal
de produtos alimentícios eram cultivadas na hinterlândia próxima a 1844 - Seca
1880 - Pluviosidade anormal
Salvador e mesmo na Bahia. Mas se a chuva torrencial ou a seca não 1845 - Seca
1852 - Pluviosidade anormal 1882 - Seca
afetavam a produção, tinham, porém, um papel importante na
1884 - Seca
medida em que, como já vimos, aumentavam o número de consumi­ 1857 - Seca
1885 - Seca
dores, o que facilitava o jogo especulativo. A cronologia das secas e 1858 - Seca
1888 - Seca
das chuvas torrenciais, no século XIX é imperfeitamente conhecida: 1889 - Seca

Isto é, que no período de 89 anos, verificaram-se 36 anos de Por outro lado, apesar da precariedade de dados que dispomos,
irregularidades climáticas durante os quais o mercado de consumo de foi verificado que a população de Salvador triplicou, entre .800 e
Salvador sofreu perturbações, ainda que nem todas as altas de preços
correspondam perfeitamente aos períodos de secas ou de pluviosidade
excessiva porque temos que levar em conta que a oscilação dos preços (618) - Cf. 11 parle desse estudo, p. 69-70 e p. 70-71'.
para a alta é o resultado não de um só fator mas de um conjunto de
fatores. É no conjunto de fatores que se encontram elementos para (618A) -Essas informações foram colhidas nas obra de: BRAZ DO AMARAL,
explicações corretas. Resenha Histórica... op. cti., p. 55 e 67; BARBOSA, Mgr Manoel de Aqu.no,
Ephemerides... op. cit., vol I, p. 164, RUY, Affonso. Historia política e administrativa op.
cit., p. 591 e SOUZA COLOMBO, A seca, sua incidência e medidas para minorar seus
Outro fator que se deve levar em conta para explicar a alta de efeitos. Rio, Boi. Geofrágico (II) 14: 181, 1944.
preços é o fator demográfico: haveria uma tendência altista quando a
343
342
1889, e isto maígrado as guerras e os surtos epidêmicos que a
dizimaram entre 1822 e 1857. Não há dúvida que houve períodos em
que a população da cidade diminuiu sensivelmente. Mas quem pode o 5? en rH VO *1 o\
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afirmanque nestes casos a demanda de gêneros também diminuiu? G w as vo VO
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Não esquecemos que nesses períodos o abastecimento torna-se ainda
mais precário, por isso insuficiente. Aliás, quando sé estuda o papel li
«S
das epidemias sobre as oscilações de preços, essas oscilações deveriam i
ser estudadas em período de tempo bastante longo, no mínimo um
decénio. Somente assim se pode ter uma idéia das interações entre a - 3
ai OO
vo
OO
OO
Tf
O
r~-
04
Tf
VO
Tf
r-
VO
vo
VO
O
marcha dos preços e as epidemias. Em Salvador, por exemplo, as £ *S r-' r*- OO OO OO 00 OO OS
2 rH
|
rH
1
H rri
1
rH rH
1
rH
1
rH
|
epidemias de febre amarela (1849-1850) e do cholera morbus (1855- OO
1
cn
1 1
os CS
1 1
On O
1 1
Os Os

1856), se manifestam num período de alta bastante acèntuada de 5 ^ VO OO o s CS wn r- r** Ox

(1) Máximo que refere-se ao período considerado para o qual empregamos o método das médias móveis.
■, r- r- t" OO OO oo OO OO
M h rH rH rH rH rH rH rH
preços, desde 1845, o que, até certo ponto, deve ter afugentado do
mercado da demanda uma parte expressiva da população baiana que
não possuia os meios para comprar mais caro. Subalimentada, essa <D

248,5
^ e>i en n Tj^ OO
população resistiu mal às investidas epidêmicas, daí o grande número «o

flíDICE GERAL NÃO PONDERADO (1751 = 100)


en en o f oo en oo en Q en o o
CS H vo en rH rH
de mortes verificados no período considerado. Há também de notar rH

que as epidemias contribuem para a alta de preços na medida em que


desorganizam a produção e o abastecimento, o que parece ter
acontecido em Salvador também. Assim, mesmo se a demanda havia 4-*
et
en en Tj" Os
CS Os

1905-1928
00 OO OO Os Os
decrescido, por causa da grande mortalidade na população, a oferta 00
et «o «o
t-
OO
r-
r-
h
00
r~
OV
r-
es
00
VO
OO
r—
oo •
f-
00
OS
OO
rH
também havia minguado. Resta saber como e em que ritmo uma e O •o rH rH rH rH rH rH rH rH rH rH

TABELA XII
1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
Tf
outra se recuperaram. .2
s
O
»o
O
vo
OO
vo vo
OO OO 00
oo
Tf
O
VO
Tf VO
Tf VO
OO
OO
r- r-' t-* h c- r- 00 OO OO 00
Pn rH rH rH rH rH rH rH rH rH rH rH

Mas, até que ponto, o que acaba de ser visto para os produtos
analisados indivrdualmente, é também válido para o movimento geral
dos preços na Bahia (619)? O g

o o cn CS OS O Os OS

1928
Ov
vo oo OS CS «O r- r- OS
8 'S r- 00 00 co oo OO
Como foi referido anteriormente, para a análise do movimento rH rH rH rH rH rH rH rH

de longa duração dos preços na Bahia, construímos curvas de dois


índices: um índice geral não ponderado que abrange 11 produtos
(620) e para o qual se tomou 1751 como ano base, e um índice geral
00 vo

(2) e (3) Precisão aproximativa de 0,2%.


CS

23
o «O 'O Os O Os
não poderá do de 15 produtos, tomando como base o ano de 1811 (cf. Sl rH rH ^ rH CS rH rH rH rH

fig. 19). Por ser a tendência geral das duas curvas, quase idêntica, O^
escolhemos para a nossa análise a que abrange o período mais longo,
isto a o período 1751-1930.

Nessa curva de índice de preços nominais, 8 grandes ciclos


podem ser observados entre 1751 e 1930. Seu tempo de duração varia cs
entre 10 e 23 anos (média de 16,5 anos por ciclo);

(619) - Os preços aqui referidos são evidentemente preços de produtos alimentí­


cios.
(620) - Arroz, farinha de trigo, farinha de mandioca, feijão, carne verde, galinha,
toucinho, azeite de oliva, açúcar, sal, vinagre.
OO

345
ÍNDICES ECONÓMICOS i X d a s n ív e is ouinouenaisi

Estes ciclos inscrevem-se dentro de 5 grandes períodos ou fases


que, com exceção da primeira (1750-1887), apresentam ritmos
bastante semelhantes isto é, períodos de alta acelerada, seguidos por
períodos de baixa bastante brusca. Esses períodos são

1750- 1787 = 37 anos


1787- 1821 = 33 anos
1845- 1887 = 42 anos
1887- 1905 = 18 anos
1905- 1928 = 24 anos

O que se nota, observando o quadro, é a grande amplitude de


duração dos três primeiroV períodos, enquanto que nos períodos
seguintes essa amplitude é mais curta. A que atribuir essa diferença?
Talvez,ela se explique em parte pelas diferenças na composição dos
produtos de exportação. Com efeito, as três primeiras fases 1750-1787, > - ÍN01 CE GERAL DE PRESOS - » PROOUTOS l»E» pP»d.,pA«l I7WIOO

1767-1821 e 1845-1887) referem-se ao período em que o comércio B - ÍNDICE GERAL DE PREÇOS - ,SPROOOTOS L í . ocr.d-.00ol ........ .
externo da Bahia era dominado pela exportação de açúcar, algodão,
c - CURVA DO ÍNDICE DOS PRESOS, CCFLACIORADA ( o.ílOPO « = OS I
café, fumo, diamantes, gêneros esses cuja demanda tende a diminuir
com a paulatina retração dos mercados externos. Para os dois D - FLUTUAS&0 DA TAXA 0C CÃWBlO ( L / l lOOOl «II ■ 100

períodos subsequentes (1887-1905 e 1905-1928) a composição na


pauta dos produtos do comércio externo muda com o aparecimento
do cacau, cujo volume de exportação avulta nos últimos anos do Se agora compararmos a curva do índice geral de preços
século XIX. Este cacau é exportado para um mercado consumidor nominais com a curva de flutuação da taxa de câmbio, verificaremos
crescente, porém seu preço é bastante flutuante o que deve ter que a flutuação da curva da taxa de câmbio é exatamente inversa da
contrjbuído para a existência de períodos muito mais curtos, mas flutuação de índice de preços: aos períodos de baixa de câmbio, isto é,
também muito mais nervosos que os três precedentes. Há também de deterioração do poder de compra da moeda brasileira, corresponde
que se referir ao fato que o período do encilhamento e da primeira sempre um período de alta do índice nominal dos preços. Há porém
uma exceção: entre 1845 e 1860, a alta verificada nos preços
guerra mundial criaram situações novas principalmente numa época nominais não foi provocada por uma baixa de taxa de câmbio pois a
em que a economia baiana entra em marasmo, apesar de certas paridade libra-mil réis permanece quase estacionária. Será que pode­
melhorias trazidas ao setor de crédito que tentam mudar a feição mos considerar este período como o único positivo na economia
tradicional da economia agro-mercantil. baiana? É dificil concluir nesse sentido, se levarmos em conta que essa
alta de preços é sustentada, de um lado, pela inflação, que talvez
Como última constatação, a observação da curva do índice de estimulasse o desenvolvimento, mas de outro lado, ela também é
longa duração mostra a rapidez com que os períodos de alta violenta sustentada pelas epidemias e pelas secas que ocorrem na década dos
são seguidos por períodos de baixa um tanto ou quanto violentas. Em 1850. Para ter uma resposta concludente teria sido necessário
seguida, os preços nominais parecem se estabilizar num nível bastante eliminar as flutuações devidas a esses dois fenômenos. Mas, por outro
baixo em relação ao nível em que se havia iniciado o período de alta. lado, a historiografia tradicional, considera este período como o
Isto nos leva a crer que os períodos de prosperidade — se é que os período de prosperidade, após a Independência.
períodos de alta podem ser considerados como tais —tiveram uma
duração relativamente pequena para que os lucros acumulados pu­ A análise da curva de flutuações da taxa de câmbio permite mais
dessem permitir a constituição de excedentes de capitais capazes uma observação: entre 1811 e 1930 essa flutuação se processa de duas
de serem investidos em novos empreendimentos.
347
346
maneiras: entre 1811 - 1830 e 1889- 1930 a depreciação do mil-réis
"se fez de maneira bastante acelerada; entre 1831 e 1888 a flutuação Essa constatação nos leva diretamente à análise de nosso último
apresenta ondulações menos bruscas. Esse período de flutuações gráfico: a curva do índice dos preços deflacionados. E ele que nos dá a
menos aceleradas corresponde, grosso modo, aos raros momentos em visão mars correta da tendência a longo prazo da conjuntura
que a economia baiana conheceu alguma estabilidade económica, económica baiana. Entre 1811 e 1929, quatro parecem ter sido os
mas que se inscrevem porém dentro de um quadro de definhamento períodos de relativa prosperidade da Bahia (cf. tabela n9 XIV). Esses
das atividades económicas. períodos têm uma duração de 9, 10, 11 e 21 anos e são seguidos de
períodos de depressão cuja duração é de 36, 3,25 e 1 anos. Se
somarmos os períodos que se acham acima de p e os períodos a baixo
TABELA Xffl de p verificamos que o tempo de duração dos períodos considerados
AFASTAMENTO DOS PICOS EM RELAÇÃO A MEDIANA (139,0)
prósperos é 14 anos inferior à dos períodos tidos como períodos de
depressão. Temos assim mais uma vez a confirmação de que a breve
Anos de pico
duração dos períodos de prosperidade não deve ter permitido uma
Afastamento máximo acumulação de recursos capaz de dinamizar a economia local.
e de depressão
máxima Valor Absoluto Relativo (%)
Finalmente, uma última análise,, se impõe: se compararmos os
nossos movimentos de longa duração, tais como eles se evidenciam na
1812 180,0 + 41,0 29,5— nossa curva do índice de preços deflacionada, com os movimentos de
1829 70,9 - 68,1 -49,0 longa duração .descritos por Kondratieff (622) verificaremos que as
1862 162,1 + 23,1 1 6 ,7 -
1868
fases são aproximadamente as mesmas:
133,8 - 5,2 -3 P
1875 172,9 + 33,9 2 3 ,4 -
1884 116,2 - 12,8 -9 ,2
1889 136.6 - 2,4 Movimentos Kondratieff Bahia
-1 ,7
1897 98,1 - 40,9 -2 9 ,4
1912 156,4 •F Movimento: 1787/1789- 1849/18% 1787/1790- 1842/1845
+ 17,4 12,5-
1919 235.4 + 96,4 Com máximo em 1810/1817 Com máximo em 1821/1824
6 9 ,3 -
1923 155,0 + 16,0 11,5— 2'-’ Movimemo: 1849/1851 - 1895/18% 1842/1845 - 1895/1897
1927 173,7 + 34,7 2 4 ,9 - Commáximoem 1872/1873 Commáximoem 1875
1929 (?) 127,8 - 11,2 -8 ,1 3'1Movimento: 1895/18% - 1932/1934 1895/1897-1926
Commáximoem 1920/1926 Commáximoem 1919

TABELA XIV A análise do comportamento dos 18 produtos que retivemos para


ilustrar a marcha dos preços na Bahia, assim como a dos índices finais,
nos fornecem dados suficientes para tentarmos uma explicação da
Períodos de índice
conjuntura baiana, corr as devidas ressalvas que se. impõem. Esta
Acima d e p Duração Abaixo de p Duração conjuntura, apresenta movimentos de longa duração, comandados
por acontecimentos próprios a cada fase que esclarecem as facetas
1811-1819 9 1820?1855
específicas dessa conjuntura:
36
1856-1866 10 1867-1869 3
1870-1881 11 1882-1906 25
1887-1821: fase a. - A produção açucareira (que faz figura de
1907-1928 21 1929- ? 1
produto dominante) é estimulada por várias condições:
Total 51 65
(622) - IMBERT. Gaston. Des mouvements de longue durée Kondratieff Aix-
en-Provence. La Pensée Universitaire. 1953. p. 54-61.

349
c) exportação de borracha da maniçoba e de carbonados que
a) Redução paulatina de “taxas, almotaçarias e condenações” alcançam preços compensadores no mercado externo;
que caracterizavam o “regime exclusivo” do mercantilismo colonial; d) “encilhamento” que multiplica as possibilidades de crédito.
b) papel desempenhado pela Mesa de Inspeção dAgricultura e
Comércio;
1897-1905: fase b. - Crise motivada por:
c) introdução de técnicas novas para a lavoura e produção do a) secas prolongadas que atingem o litoral;
açúcar;
b) preços do cacau por demais flutuantes;
d) guerras da Revolução e do Império;
c) restrições de crédito;
e ) desorganização da produção nas Antilhas (Haiti e Jamaica); d) não recuperação de produção e comercialização do açúcar;
j~) conjuntura económica internacional de prosperidade. e) preços do fumo estagnados.

1821-1842/45: fase b. - Depressão económica na Bahia ligada a: 1904-1928: recuperação. -A guerra de 1914-18 contribui para a
a) guerra da Independência na Bahia (1821-1823); melhoria da situação económica da Bahia;
b) inquietações sociais (1824-1837); a) restabelecimento dos preços dos produtos agrícolas (cacaú,
c) multiplicação dos engenhos; fumo, açúcar);
d) deslocamento da mão-de-obra para o novo espaço económico b) renascimento das culturas de algodão e de arroz;
cafeeiro que nasce no sul do Brasil; c) produção da farinha de mandioca aumenta e chega mesmo a
e) dificuldades de crédito; ser colocada no mercado internacional.
f ) conjuntura económica internacional desfavorável;
g) substituição do açúcar de cana pelo de beterraba; Como concluir? A estreita dependência que a Bahia teve, e tem,
h) diminuição no comércio da mão-de-obra servil. dos mercados externos a partir da época colonial foi a longo prazo
desfavorável à economia baiana. Esta dependência foi acentuando o
1842-45 - 1860: recuperação. —Reanimação da economia~baiana seu papel de "exportador de produtos primários e de importador de
ligada à comercialização de novos produtos que vêm ocupar lugar alimentos e de produtos industrializados, posição extremamente
importante na pauta das exportações: diamantes, algodão e café, e ao desfavorável para qualquer economia. Essa dependência está ainda
desenvolvimento de estabelecimentos de crédito. agravada pela depreciação contínua da moeda brasileira, fato que se
reflete no comportamento dos preços locais durante o período
1860-1887: fase b. —Fase de grande depressão motivada por uma considerado.
série de fatores:
a) guerra do Paraguai; A irregularidade das flutuações dos preços dos produtos de
b) crise agrícola ligada à lavoura algodoeira e à moléstia da importação e de exportação, impossíveis de serem controlados ou
cana; previstos na conjuntura geral do período, pode explicar a impossibili­
c) concorrência dos diamantes do Cabo; dade de constituição de reservas locais de capitais. Na falta de capitais
d) intensificação do êxodo da mão-de-obra servil para sul; não era possível mesmo dirigir qualquer investimento para atividades
<?) abolição da escravatura; produtivas, agrícolas ou industriais, o que acentuou a erosão da
J) dificuldades de crédito para o setor da agricultura; economia local.
g) a partir de 1873, depressão económica européia.
Além das flutuações dos preços, revelados pelos índices dos
1887-1897: recuperação. — Nota-se uma certa reanimação da produtos representativos, cujos gráficos apresentamos, os preços em
economia baiana, ligada às seguintes condições: geral foram extremamente desfavoráveis para a Bahia, como se
a) melhoria dos preços agrícolas no mercado internacional; depreende do gráfico de preços reais ou deflacionados. As desvalori­
zações da moeda brasileira nunca chegaram a compensar favoravel­
b) exportação do cacau cujo volume e preço tomam marcha
ascendente; mente a economia local.
351
350
Por outro lado, a industrialização no sul do Brasil apenas atuam no setor das construções: mestre pedreiro e oficial de pedreiro
deslocou o mercado importador e exportador, e não trouxe, aparente- (graf. n9 I), mestre carpinteiro e oficial de carpinteiro (graf. n9 IÍ) e
mente, nenhum beneficio concreto para a economia baiana. A Bahia servente homem e servente mulher (graf. n9 III). Com efeito, somente
passou a fornecer mão-de-obra e capitais ao sul, e a adquirir do Rio, para essas seis categorias de trabalhadores conseguimos obter dados
São Paulo e Minas Gerais, tecidos, artefatos e alimentos. que fôssem seriados e que se estendessem por um largo período de
tempo. Mesmo assim, pode ser observado que para as categorias de
Finalmente, o cultivo e a comercialização do cacau, embora date mestre pedreiro e de mestre carpinteiro, as séries são bastante
do século XIX, só a partir dos primeiros anos do século XX começa a lacunares. É que no século XIX, as obras de vulto eram com
trazer algum alívio para os meios empresariais baianos, já bastante frequência executadas por empreiteiros e os mestres de obra perce­
exauridos. Lento e tímido foi o início da recuperação da economia biam sua remuneração por fora das listas dos trabalhadores assala­
baiana, na primeira metade do século XX, como revela a curva de riados comuns. Utilizavam-se geralmente os serviços de “mestres”
preços reais deflacionados, quando se acelerou. (624) para as obras menos importantes como as de reparos. Contudo
conservamos os salários dos mestres pedreiros e mestres carpinteiros
Sem condições de formar capital e sem condições de Financiar seu porque consideramos que os mesmos, apesar de lacunares, apresenta­
desenvolvimento, é possível compreender porque foi tão prolongado o vam oscilações comparáveis às oscilações dos salários das outras
período da estagnação da economia baiana e explicar o deslocamento quatro categorias de trabalhadores entre a população livre e a
do centro de gravidade económica para outras regiões do Brasil, a população escrava de Salvador e não há nenhuma diferença entre os
partir do final do século XIX (623). salários destes e daqueles. É necessário ainda que se diga que, via de
regra, os serventes, homens e mulheres, são recrutados entre a
população servil da cidade.
Capítulo II - Os salários e suasflutuações
Os salários dessa classe de trabalhadores na construção são
Mas é hora de voltar ao nosso propósito inicial: nossa intenção salários diários e são expressos na moeda corrente da época o mil réis.
não é somente conhecer de que maneira atuam os preços de alguns Por causa das lacunas existentes nas seis séries apresentadas, fomos
produtos alimentícios sobre a praça de Salvador, mas também ver de obrigados a apresentar a flutuação anual bruta dos salários, sem
que modo se comportam os salários face às flutuações desses preços. proceder a nenhuma elaboração estatística. Para o período 1800-1840,
Esta última análise deve nos levar a melhor conhecer as condições utilizamo-nos dos dados coletados no arquivo da Misericórdia; para o
materiais em que viveu uma parte da população soteropolitana no período seguinte, 1841-1889, os dados do arquivo do Colégio dos
século passado. Órfãos de São Joaquim (625). Com referência ainda aos referidos
salários devemos dizer que em vez de elaborar uma média a partir dos
Fontes e Métodos vários salários encontrados para a mesma profissão, no caso os ofícios
de oficial de pedreiro e de oficial de carpinteiro, escolhemos
Para a constituição das séries de salários utilizamos dados sistematicamente o salário mais alto percebido por estes, por
coletados em três fontes diferentes: considerá-lo mais expressivo do que a média. Masnão hádúvida que o
salário mais baixo seria ainda mais significativo para a demonstração
Na Santa Casa da Misericórdia e no Colégio dos Órfãos de São
Joaquim foram coletados os dados referentes à mão-de-obra artesa- (624) - Como já referimos, o título de “mestre” perde, no século XIX, o
significado que tinha anteriormente. Freqúentemente é-considerado como “mestre um
nal. Apesar de ser muito amplo o leque de profissões artesanais oficial de grande capacidade ao qual se confia a execução de certas obras menores (por
utilizadas nos serviços dessas duas instituições , contudo só nos exemplo pequenas reparações em edifícios) e não é raro encontrar o mesmo mestre
foi possível constituir séries de seis categorias de trabalhadores que como simples oficial executando em obras onde se exigem maiores conhecimentos. Era
o verdadeiro “mestre” pedreiro um arquiteto à part entière no século XIX.
(625) - Somente até 1840 há no arquivo de Misericórdia listas de salários pagos a
mão-de-obra artesanal. Por outro lado, fundado em 1827, o Colégio dos Órfãos de São
(623) - O essencial da análiseda-conjuntura baiana no período 1787-1920 foi tirado Joaquim só começou a ter documentos relativos a despesas a partir de 1830,
de nosso estudo Os preços na Bahia... op. cit., p. 178*-182. aproximadamente.

352 353
GRAFJCO N
? I GRÁFICO Ne II

VARIAÇÕES SALARIAIS EM MIL R E IS (Diarisfos) VARIAÇÕES SALARIAIS EM MIL REIS (Diaristas)

MC5TWt
CARPWTBWC
A - -

354 355
--------
GRÁFICO NI III
que gostaríamos de fazer. Acontece, porém, que para vários anos "Só
VARIAÇÕES SALARIAIS EM MIL R EIS (Diaristas) possuímos um salário único para cada uma dessas duas categorias de
oficiais (626).

Os dados referentes a empregados do setor privado, que consti­


tuem a nossa segunda série de salários, foram coletados no arquivo do
Orfanato de São Joaquim e cobrem o período 1840-1889. Das diversas
categorias de empregados assalariados por aquela instituição (627),
foram escolhidas seis classes: professor, médico, cobrador, escriturá­
rio, porteiro e enfepneiro (graf. n? IV, V e VI).Todos esses assalariados
percebem remunerações mensais e somente o salário do médico é uma
remuneração por serviços prestados ao orfanato, porém, uma remune­
ração fixa. Há contudo uma interrupção de médico assalariado entre
1867 e 1877. Aliás, essa mesma interrupção é também observada para
o enfermeiro cujo salário desapareceu da documentação entre 1870 e
1884.

Finalmente, a terceira série de salários provém do setor público.


Esses salários dizem respeito às diversas classes que constituem a força
policial da Província da Bahia e cobrem o período 1835 a 1889. Os
l dados aqui utilizados foram coletados nos mapas publicados para cada
ano financeiro nas “Falias” dos presidentes da província. Das várias
classes de assalariados que compõem o corpo policial da província,
A .r \r foram escolhidos os seguintes: comandante geral da corporação,
major-comandante, (oficialidade maior), capitão, tenente, alferes,
cirurgião-mor, primeiro sargento e segundo sargento, todos eles de
infantaria (oficialidade menor), cabo, corneta e soldado (graf. n‘-’ VI,
VII, IX e X). Os salários do corpo policial são salários mensais,
/w v expressos em moeda da época, tendo que observar que o salário do
corneta e do simples soldado são idênticos para todo o período.
/V .

(626) - A média foi abandonada pois para vários anos só possuíamos um único
salário. Porém esse salário único possui um valor, via de regra, igual ou próximo (59E)
ao salário mais alto, verificado nos anos em que temos uma grande variedade de
salários.
(627) - Os outros empregados assalariados são: professor de desenho, (até 1858),
tipógrafo (1845-1859 e 1871-1873), professor de música (1873-1889). Reitor, Ecónomo
(com uma interrupção entre 1872-1875). Roupeiro (1859-1889), Feitor (1859-1872),
Cozinheiro (1860-1889) e Copeiro (1864-1889). A presença dessas duas últimas classes
de empregados coincidiu com o fato de que o colégio deixa de possuir escravos por volta
jlf:
dc 1860.

356 357
GRÁFICO Ní V

VARIAÇÕES SALARIAIS EM MIL REIS (Mensali(tas)

358 359
g r á f ic o NS VI G R Á F IC O Ni VII

VARIAÇÕES SALARIAIS EM MIL R EIS (Msnsalista») VARIAÇÕES SALARIAIS EM MIL REIS ( MensaliJtas)

360 361
G R Á F IC O N i VIN
GRÁFICO Ni IX
VARIAÇÕES SALARIAIS EM MIL R EIS (Mensalistas)
VARIAÇÕES SALARIAIS EM MIL REIS (Diaristas)

362 363
GRÁFICO N! X As três classes de salários e seus movimentos
VARIAÇÕES SALARIAIS EM MIL REIS (Diaristas)
A observação das três séries de salários nos impõe, uma primeira
observação de caráter muito geral: quer se trate de salários artesanais
ou de salários oriundos dos setores público e privado, todos estes
salários apresentam o mesmo comportamento - longos períodos de
estabilidade, seguidos por períodos de alta brusca e novamente por
períodos de estabilidade - e flutuam, de maneira geral dentro dos
mesmos limites cronológicos: 1835-1854, 1854-1863 e 1863-1888. Com
exceção do salário do alferes que sofre uma queda em 1861, todos os
outros salários estão em ascensão. Sendo por volta de 1878 extintos
certos cargos do corpo de polícia, não temos mais salários para
major-comandante e para cirurgião-mor a partir daquela data (628). A
longo prazo, a tendência desses salários é ascendente e extremamente
rígida. Estaríamos tentados a explicar essa rigidez por uma certa
escassez no mercado da demanda: sabe-se por exemplo, que nem
todos os cargos de soldado eram preenchidos e que a polícia
encontrava dificuldades também no recrutamento de sua oficialidade.
Mas isto não explicaria o comportamento idêntico dos salários
artesanais onde se supõe que a oferta era superior à demanda. Aliás,
por enquanto, esta hipótese tem que ficar no campo da suposição e
isto por duas razões: primeiro, pelo fato de existirem inúmeras e
repetidas queixas sobre a falta de mão-de-obra qualificada no
mercado de Salvador tanto por parte dos poderes públicos como por
parte dos setores privados que tentam paliar fundando estabelecimentos
do tipo Liceu de Artes e Ofícios; segundo porque há indícios de que
grande parte da mão-de-obra escrava exportada para o sul do país era
composta de artesãos (629). Ora, os artesãos escravos eram importantes
concorrentes para a mão de obra artesanal livre. Por outro lado, mesmo
um excesso de demanda pode criar o mesmo fenômeno de rigidez, na
medida em que o empregador pode decidir da manutenção de antigos
níveis salariais sem se preocupar com a mão-de-obra que, abundante, é
disponível e aceita tudo.

Assim, um excesso ou uma escassez de demanda seriam os


responsáveis por essa tendência rígida que possui o movimento de
salários no período considerado. Ademais, se compararmos a tendên-,
cia gçral dos salários com a tendência geral dcs preços (cf. fig. 1 a 18)

(628) - A partir de 1878 os soldados e oficialidade da corporação militar passam a


ser tratados por médicos do Hospital.
(629) - KLEIN, Herbert S. T he in tern a i slave trade in Ninetejenth C entury B razilsa
Atudy o f slave im portations in to R io de Ja n eiro in 1852. The Hispanic American
Historical Review, 51 (4): 567-585, nov. 1971.
364
365
verificamos que estes acompanham aqueles, principalmente no período Capítulo III - Flutuações de preços e de salários: uma comparação
de mais alta muita brusca de preços que ocorre entre 1845 e 1859.

Como duas das três séries de salários que estamos apresentando-


salários dos empregados dos setores público e privado - inciam-se em Pelo interesse que oferece, foi escolhido novamente, para o
1836 e 1840, respectivamente, tomamos como base de nossos comen­ confronto entre preços e salários, o período 1845-1863.
tários o ano de 1845. O nosso primeiro objetivo é demonstrar quais as Para analisar a variação dos preços no período supra menciona­
classes de assalariados que não foram contemplados adequadamente do, escolhemos três produtos que, indiscutivelmente, são produtos
com reajustes correspondentes aos aumentos do custos dos gêneros de básicos de alimentação para toda a população soteropolitana: farinha
primeira necessidade, pelo menos durante a primeira metade do de mandioca, carne verde e feijão.
período que vamos analisar (1845-1863), período que vai de 1845 a
1854. Aliás, esse período é também caracterizado como sendo uma As variações de preços desses três produtos são, em seguida,
fase de alta tanto nos preços como nos salários e que é interessante de comparadas às variações dos salários dos seguintes assalariado^:
examinar de mais perto porque criou, na época, uma situação comandante geral, capitão, primeiro sargento, soldado, pedreiro,
eminentemente crítica, não somente para os poderes públicos, como carpinteiro, servente homem, professor, escriturário e enfermeiro. As
também para a sociedade total. Por outro lado, ao escolher esse tabelas abaixo dão conta dessas variações:
período de alta nos preços e nos salários quizemos atingir um segundo
objetivo, qual seja, ver se realmente nos anos de alta brusca nos Variações de preços no período 1845-1863 (630)
preços, nota-se alguma especificidade no comportamento dos salários. 1854/45 1863/45

O exame das oscilações salariais apresentadas mostra que a 1845 1854 % 1863 %
frequência dos aumentos salariais, no período 1845-1863, foi a mesma
para as classes de assalariados com apenas uma exceção, a da Farinha de mandioca (S /l) 37,40 60,23 61,04 89,63 139.65
oficialidade superior que teve variações mais frequentes. Carne verde ($/kg) 217,10 227,86 4,96 209,00 -3,73
Feijão (S/kg) 134,17 152,11 13,37 327,32 143,96
Vemos ainda que até 1854, o aumento salarial é lentamente rit­
mado, vindo a se acelerar após aquela data e até por volta de 1863. A análise dos percentuais de aumento desses produtos mostra que
o maior incremento se deu no período de 1854-1863, com exceção do
preço da carne verde que caiu ( —3,73) depois de um ligeiro aumento
Ademais, observamos que no período 1845-1854, os incrementos (4,96) verificado entre 1845 e 1854. Entretanto, entre 1845 e 1863 os
salariais foram mais acentuados na oficialidade superior (comandante preços da farinha de mandioca e do feijão conheceram um incremento
geral), capitão, l9sargento e professor. Mas nesse incremento salarial, de 139,65 e 143,98%, respectivamente, que pode ser considerado como
só a oficialidade superior parece ter compensado o aumento dos bastante importante, ainda que nos pareça como sendo relativamente
preços dos gêneros alimentícios, os outros ficando apenas bem baixo se comparado com os aumentos que sofrem tais produtos
próximos deste. Quanto aos outros salários, vários deles permanecem atualmente.
estagnados, alguns até diminuem em vez de aumentar, como é o caso
para o carpinteiro e o servente homem.
Como foi o caso para os preços dos três produtos analisados
Finalmente, notamos que, depois de 1863, as flutuações que se acima o maior incremento salarial para todas as classes se deu no
verificam em certos salários não indicam uma tendência realmente período de 1854-1863. Entretanto confirma-se que no período de
altista, mas são mais flutuações de reajustes salariais. 1845-1854, apenas o aumento salarial do comandante geral parece ter
plenamente compensado a alta de preços verificada. Houve salários
Essas análises de caráter muito ge al nos permitem agora abordar que permanecem estáveis (pedreiros, escriturários e enfermeiros),
um outro aspecto: é a comparação que se pode fazer entre flutuações
de preços e flutuações de salários. (630) - Os preços dos produtos considerados são médias aritméticas anuais.

366 367
outros que diminuíram (carpinteiro e servente homem) e outros que Admitimos, como princípio, que as diárias na época, referem-se
parcialmente compensaram a alta verificada (capitão, l9 sargento, exclusivamente aos dias de trabalho efetivo do trabalhador durante
professor e soldado). um ano de 365 dias. Em Salvador, se descontarmos o conjunto de
domingos e feriados e os dias de invernq (estação chuvosa), chegare­
Variações de salários no período de 1845-1863
mos a 250 dias de trabalho possível.
1854/45 1863/45 Também nesse exempto o confronto é feito com os três artigos
% % principais de alimentação, farinha de mandioca, carne verde e feijão,
Comandante geral (m) 1.440$ •2265$ 57,33 32605
e toma-se como padrão de consumo uma família de cinco pessoas.
133,33
Capitão (m) 840$ 1080$ 28,53 1560$ 85,71
Possivelmente a família era, na época, muito maior, porém parte-se
1? Sargento (d) $800 1000$ 25,00 15400 75,00 também do princípio que os meninos mais velhos (maiores de 12
Soldado (d) $600 $640 6,66 15000 66,66 anos) e as mães poderiam ter uma fonte mínima de ganho (biscates,
Pedreiro (d) 15000 15000 0,00 1§440 44,00 serviços domésticos diversos etc) o que justifica admitir-se que o
Carpinteiro (d) 15120 15000 -7,14 15600 42.86 homem com a sua remuneração, cobria as despesas de alimentação de
Servente homen (d) $480 $400 -16,66 15000 108,33 cinco pessoas, sem recorrer a plantio próprio, criação de animais
Professor (m) 335333 405322 20,97 665666 100,00 miúdos, (porcos, cabras, carneiros) etc. no contexto urbano de
Escriturário (m) 375500 375500 0,00 835333
Enfermeiro (m)
122,22 Salvador da época. Três anos foram escolhidos para o confronto entre
105000 105000 0,00 205000 100,00 preços e salários: 1845, 1854e 1858.
m... mensalistas
d... diaristas
Pedreiro
Ganho anual Farinha Feijão Carne verde
No período de 1854-1863, todos os salários sobem, mas os (1) (kg) (kg)
incrementos que realmente compensam os aumentos de preços são os
1845 :2505000 $30,40 $134,00 $217,10. preço unitário
do comandante geral, do servente homem (categoria de trabalhadores consumo
251/semana 3kg/semana 3kg/semana
recrutada entre os escravos), do professor, do escriturário e do consumo anual
1.300/1 156 kg 156 kg
enfermeiro. Os outros aumentos salariais apenas ficam próximos ao 205904 335867 gasto anual
aumento de preços. 48S62Q
Total: 103$ 391 ou 41,36%

Nota-se ainda que os aumentos salariais de 1854 a 1863 se 1854 : 250 5 000 $50,71(1) $114 (kg) $221 (kg) preço unitário
deveram aos aumentos de preço ocorridos até 1853, por isso a 1.300/1 156 kg 156 kg consumo anual
defasagem no tempo que existe nas duas tabelas. 655923 175784 .345476 gasto anual
Total: 1185183 ou 47,27%
Mas qual o poder de compra com os salários usuais no período
estudado? Um único exemplo será tomado: o do pedreiro que passa 1858 :4005000
§190,21 (kg) $459,42 (kg) preço unitário
assim a representar o mundo de trabalho artesanal para o qual 15600/dia $101,94(1)
1.300(1) 156 kg 156 kg cons. anual
possuímos informações mais seguras. Com efeito sabemos que os 29,673 715670 gasto anual
1325522
salários dos artesãos - com raríssimas exceções que eliminamos Total:233$864 ou 58,47%
quando da coleta de dados —são salários monetários, não intervindo
nenhuma remuneração in natura, como é o caso para alguns salários
oriundos do setor de empregos públicos e privados. Por exemplo a É evidente que no período considerado (1845-1863), período de
oficialidade e os soldados do corpo policial tinham direito a rações maior incremento dos preços, apesar da alta verificada no salário do
alimentares, o mesmo ocorrendo com os empregados do orfanato de pedreiro, o percentual do gasto anual que ele tem com esses tres
São Joaquim que tinham, com frequência, direito à alimentação gêneros de alimentação básica foi aumentando pois passa de 41,36% a
oferecida pela instituição em que trabalhavam.
369
368
Farinha Feijão Carne verde
58,47% o que indica uma certa deterioração do poder de compra do (D (kg) (kg)
salário. Porém, em geral, o percentual para a efetivação dessas
compras é razoavelmente baixo na medida em que deixa uma 1873 : 625 $000 $86,61 $230,37 $487,71 preço unitário
2$500/dia 1.300/1 156/kg 156/kg consumo anual
margem para a compra de outras comodidades. Mas, se agora o
112$593 35$937 76$082 gasto anual
período de trabalho foi' mais reduzido, no caso, por exemplo, de Total:224$612 ou 35,93%
doença, a incidência (percentual) de gastos com alimentação devç
forçosamente crescer e o saldo para a compra de outros gêneros
Farinha Feijão Carne verde
indispensáveis como o sal, gorduras (vegetais ou animais) e açúcar,
(D (kg) (kg)
para a compra de roupa ou para pagamento de aluguel de casa, fica
menor. 1885 :500$000 $77,34 $225,00 §447,91 preço unitário
2§000/dia 1.300/1 156/kg 156/kg consumoanual
Essa observação nos leva a considerar um outro aspecto impor­ 100$542 35$100 69$873 gasto anual
tante: qual é a parcela mais elástica: a alimentação representada pelos Total: 205$515 ou 41,10%
três produtos básicos, ou as outras parcelas que se referem à
complementos de alimentação, à compra de roupas ou ao pagamedto
do aluguel de casa. Infelizmente, a ausência de dados para esses dois Os percentuais verificados nesses três anos tomados como
últimos itens, importantes para o estudo do custo de vida, não permite exemplo inclicam - com as devidas ressalvas que sempre devem ser
que respondamos à indagação. Não há dúvida que se pudéssemos dar feitas-que não houve deterioração no poder de compra de salário do
este balanço teríamos uma visão mais concreta do comportamento pedreiro. Pelo contrário, podemos mesmo considerar que houve uma
social a longo prazo da população consumidora do Salvador. melhoria em relação ao período anterior o que em parte explicaria o
porquê da ausência de movimentos populares no período considera­
Há todavia uma outra indagação à qual podemos responder: do, excetuando-se, é verdade, o ano de 1878 qué se inscreve dentro de
saber se o aumento percentual do gasto anual com os três produtos uma marcha altista de preços e de baixa do salário do pedreiro:
estudados, evidenciado no período 1845-1863, e que indica uma certa
deterioração do poder de compra do trabalhador pedreiro, verifica-se
também no período seguinte, 1863-1888, considerado como período Ganho anual Farinha Feijão Carne verde
de certa estabilidade nos preços e nos salários. Tomamos ao acaso um (D (kg) (kg)
ano em cada década seguinte: 1866, 1873 e 1885:.
1878 :450 $000 $103,38 $353,96 480 $000 preço unitário
1 $ 800/dia 1.300/1 156/kg 156/kg consumo
Pedreiro 134 $394 33$217 74$880 gasto anual
Ganho anual Farinha Feijão CAme Total:264$491 ou 58,77%
(1) (kg) (kg)

Aliás é interessante notar que o percentual de gastos para ã


1866 : 4001000 $71,94
compra dos três produtos estudados, no ano de 1878, é praticamente
$216,36 $335,38 preço unitário
251/semana 3kg/semana 3kg/ semana oonsumo
idêntico ao percentual do ano de 1858 (58,47%), ano que também foi
1.300/1 156/kg 156/kg consumo anual de comoção popular. Assim, parece, que a ira popular ajudava a
931522 33$752 52 $ 319 gasto anual restabelecer o relativo equilíbrio entre preços e salários, conduzindo à
intervenção dos poderes públicos, junto aos que detinham o monopó­
Total: 179$593 ou 44,89% lio do abastecimento da cidade. E se os preços não baixavam sempre
suficientemente, havia o recurso de elevar os salários.

370 371
Em suma, o confronto das oscilações de preços dos très produtos Porque de qualquer modo essa análise do salário do pedreiro é
de alimentação básica com os salários do trabalhador pedreiro mostra duplamente privilegiada: primeiro porque diz respeito a um trabalha­
que, na segunda metade do século XIX, o poder aquisitivo de que este dor bastante qualificado e, segundo, porque se refere a uma categoria
dispunha lhe deixava uma margem bastante confortável para a da população trabalhadora de Salvador que deve ter tido efetivos
compra de outros alimentos e de vestuário e para o pagamento de bastante reduzidos em relação ao todo, isto é, em relação à grande
aluguel de casa, se fosse o caso. massa de mão-de-obra disponível, sem nenhuma qualificação, e que
vive de expedientes.
Quando então os cronistas da época falam em fartura e vida fácil
não devemos de todo duvidar de seu testemunho: Eis como é descrita a Como, porém, avaliar a renda anual dessa massa de trabalhado­
situação, em Salvador por volta de 1840: res que vive de desemprego crónico e procura seus meios de vida ora
como ganhador, ora como vendedor ambulante? No estado atual em
“A alimentação era frugal e barata. Se não havia grandes que se encontram as pesquisas sobre esse assunto, nada é possível
fortunas como há hoje, também as despesas eram moderadas. Quem dizer. Todavia, pensamos, que as condições de vida dessa massa
possuísse cem contos de réis era já um ricaço. As fortunas eram mais popular, desprovida de meios, eram amenizãdas pelas inúmeras
sólidas, não sujeitas a rápidas oscilações de câmbio, e dos títulos de solidariedades que se estabeleciam entre os que gozavam de certa
companhias e de bancos, e as aventuras do jogo da bolsa. Os mais abastança e os que nada possuíam. Assim uns viviam da dependência
cautelosos guardavam o ouro nas burras, temendo confiá-lo a de outros, usufruindo apenas o estrito necessário para não morrer de
administração alheia. Uma família até dez pessoas não gastava no fome mantendo-se sempre no limiar da pobreza e da indigência.
passadio diário mais de dois mil réis, ou sete patacas. A carne fresca Aliás, o sistema patriarcal escravista, ajudava a manter este tipo de
não custava mais de uma pataca a libra, no máximo, e o mesmo a relações, propagando a crença medieval que os ricos deviam socorrer
libra de manteiga inglesa de barril; um queijo flamengo duas patacas aos pobres: qual a família que não possuía seus encostados, seus
e tudo o mais a proporção” (631). agregados próximos ou distantes. Promover a condição humana era
em última análise, manter a população numa situação onde as
Evidentemente o retrato traçado é demasiadamente saudosista e condições precárias de vida, a falta de oportunidades concretas, não
idílico para que se lhe atribua crédito absoluto. Porém, a tradição oral permitiam nenhuma explosão de tipo reivindicitário. Assim, a harmo­
guardou, .das condições do século XIX, uma lembrança otimista, nia social era conseguida a custo de submissões e de subserviências,
apesar das catástrofes que ocorreram. E é crença ainda arraigada que tão caracterísiticas da época, e ainda hoje existentes. Ser socialmente
então se vivia com mais fartura com menos despesa e com maior bem sucedido era talvez dobrar-se às regras do jogo impostas pelas
facilidade. camadas dominantes. Somente assim é que se tinha condição de
emergir, de mudar de vida. Mas, quantos foram esses bem sucedidos?
Mas até que ponto podemos generalizar a partir de exemplos O que, de fato era a mobilidade social na Bahia antes da abolição do
únicos? Não há dúvida de que essa generalização é perigosa, sistema escravista? Era a sociedade baiana tão tolerante como foi
sobretudo se levarmos em conta que o pedreiro, como trabalhador- sugerido quando falamos das hierarquias sociais em Salvador? Eis três
qualificado é um privilegiado, como, aliás, o são todos os assalariados perguntas que por enquanto ficam, apenas, formuladas.
da época. Por outro lado, não esquecemos que foi escolhido para essa
comparação o mais alto salário usufruído por essa classe de trabalha­
dores na construção, o que pode comprometer as conclusões pois'cria À guisa de conclusão
uma visão errónea da situação real do mundo dos trabalhadores. Por
isso há necessidade de multiplicar os exemplos, examinar outros casos Seria Salvador a cidade abençoada por Todos os Santos que vigia
individuais, constituir novas séries de salários, enfim aprofundar o a baía salvadora dos primeiros colonos ou será que ela é o porto de
estudo que aqui só fizemos esboçar. um mercado glutão onde Iemanjá, rainha do mar, desdenhando as
oferendas, esfomeia os homens, desmantela os navios, e só deixa a
uma população instável e insatisfeita o mínimo indispensável que lhe
(631)-J. F. SILVA LIMA, A Bahia há 66 anos... op. cil.,p. 103. impede morrer?

372 373
Dádivas e armadilhas da natureza, coragem e egoísmo dos os consumidores mais humildes para os quais é a própria vida. 90 a
homens explicam em parte a história de Salvador e de seu mercado no 95% da população de Salvador se abastece num mercado onde os
século XIX. A cidade se desenvolve numa total dependência: preços são, para ela. demasiadamente elevados. Terminal mal regrado
dependência do estrangeiro que compra seus produtos de exportação de circuitos comerciais mal organizados o mercado de Salvador é
e que manda o necessário que lhe falta e o supérfluo que a arruina; dominado por negociantes que podem aproveitar-se das mudanças de
dependência de sua hinterlândia que alimenta parcialmente seus conjuntura porque eles não vivem o dia a dia e não compram para si
habitantes e fornece seus mercadores. Funcionários ou escravos recém próprios o indispensável no espesso fervilhar das pequenas feiras com
desembarcados, marinheiros em trânsito, vaqueiros do sertão e do seus cheiros tropicais de peixes e frutas apodrecidas, de carnes
agreste, lavradores do Recôncavo próximo ou longínquo, são cada dia decompostas sob a ação de um sol úmido.
novos consumidores para os gêneros de subsistência em quantidades
sempre insuficientes. As crises de produção são crises de insuficiência Após um crescimento inteiramente fundado sobre a procura de
de produção e isto é verdadeiro mesmo para o açúcar quando não riquezas fáceis e sobre a escravidão, Salvador e seu Recôncavo,
mais será rentável para a exportação porque seu rendimento tornou- formam, no século XIX um mercado de tipo ainda colonial onde as
se insuficiente para competir com os custos dos açúcares estrangeiros prodigalidades da natureza podem se pagar muito caro: desperdícios
e inadaptações acabam por adormecer a cidade nos pesadelos dos
Pela sua situação como pelo seu sitio, Salvador é inseparável de levantes populares, das fomes e das epidemias. Os salários podem
sua hinterlândia: dela expõe os produtos à venda, os consome, os correr atrás dos preços, a oferta não se adapta à demanda. Os esforços
redistribui e a abastece com mil e uma mercadorias. A própria cidade de imaginação dos banqueiros e dos homens de negócios procuram
possui limites incertos: cidade nos campos, as culturas trepam ao criar novas fontes de lucros, mas Salvador, parece ter construído sua
longo das ladeiras enquanto que as casas escapam aos limites riqueza em bases frágeis: seu abastecimento depende de uma
administrativos para formar um tecido urbano frouxo aqui, apertado hinterlândia explorada até o desgaste e de produtos que vêm de muito
acolá, mas sempre flexível, adaptado a um solo repleto d’água, tudo longe. Ao mesmo tempo que a população cresce e que o porto, cada
em subidas e descidas. Um crescimento demográfico mal conhecido vez mais ativo, serve de intermediário para regiões longínquas, os
parece ter praticamente triplicado, no século XIX uma população poderes económicos, como os poderes de decisão, instalaram-se fora
muito mestiçada que obriga a cidade a um crescimento aparentemen­ de Salvador.
te inorganizado mas que leva em conta a generosidade do espaço e
das comodidades do momento. Aliás, a história morfológica, e a Mas, justamente, é a fragilidade do desenvolvimento de Salvador
pedologia, a vegetação natural e o clima de toda a Bahia interessam que fez sua originalidade: a Salvador do século XIX viveu na sua
os mercados do Salvador. Dos vastos espaços livres dos sertões, os maneira todas as pulsações de sua época. Suas respostas aos
vaqueiros conduzem a longa e penosa cavalgada das boiadas para os problemas postos pela conjuntura económica e política são suas
matadouros municipais, estreitamente controlados ou para açouguei­ próprias respostas: é uma cidade que permanece uma cidade colonial
ros clandestinos, desonestos. Os celeiros e tulhas oficiais também não com seus vastos limites, sua frente de mar majestosa, com suas fileiras
conseguem organizar o mercado de farinha: é clima duro para os de casas altas, apertadas uma contra a outra, frente ao porto
homens e os animais o clima da Bahia que torna os rebanhos abarrotado de navios e que esconde entre as bananeiras, as palmeiras,
famélicos e incertas as safras. O “rico” massapé não é a panacéia as laranjeiras e os jasmineiros de seus quintais, uma quantidi.de de
universal que vai dar aos cultivadores a segurança de uma produção construções precárias ao longo de ruas inclinadas e de circulação
rentável: aliás, ele é relativamente raro e como todo solo mal dificil. Ela abriga todo um “povo” que conhecemos ainda muito mal
conservado, se desgasta pois suas qualidades dependem essencialmen­ um “povo turbulento” cuja miséria provém das secas ou das
te de condições climáticas. Dizia Antonil “Riqueza e Opulência”: enchentes, das doenças, das longas distâncias, das ordens e contra-
certamente, mas só para os anos fartos. Quando a mandioca, alimento ordens da administração, da inexistência de uma verdadeira política
cotidiano absolutamente indispensável, apodrece na terra ou se municipal, da falta de dinheiro líquido, do gosto pela ostentação, das
resseca antes de crescer, quando seu preço aumenta porque vem cada sequelas de um sistema colonial e escravista. Para vencer essas
vez de mais longe para alimentar bocas cada vez mais numerosas, as dificuldades, os homens e as mulheres de Salvador inventaram uma
leis da oferta e da procura favorecem sempre os comerciantes e nunca sociedade, extremamente coerente onde antigas e novas formas de

374 375
associação se superpõem, se acrescentam e se imbricam. Essa
sociedade, fortemente hierarquizada, é imbuída de preconceitos
sociais mas é demasiadamente mestiçada para ser verdadeiramente D O C U M E N T O S M A N U S C R IT O S
racista. Ela amortece seus conflitos e suas tensões internas graças a
A R Q U I VO D O E S T A D O DA B A H IA
duas formas de relações sociais: a família baiana, de um lado, a
associação - ordens terceiras, irmandades, associações leigas - de outro Seção ju d iciá ria :
lado.
Livros de registro de testamentos (1805-1890). 64 vols
Inventários post - m ortem (1800-1889)
A família baiana do século XIX é uma família de coração grande
que alimenta e se alimenta de todo um mundo de parentes afastados e
Seção histórica:
de amigos próximos, de afilhados, de compadres e de comadres, de Fundo P residência da P rovíncia (1824-1889):
agregados. As associações religiosas ou leigas oferecem também aos
baianos do século XIX, os socorros e apoios morais e materiais Correspondência dos Presidentes da Província com o Ministro do Império
indispensáveis. Em períodos de crise, os ânimos exacerbidos dos (1824-1835). 12 vols
grupos menos favorecidos, frequentemente desabrocham sobre verda­ A gricultura, indiístria e comércio:
deiras mobilizações coletivas. Mas, não resta dúvida, de que a Secas: 1845-1860
sociedade do final do século XIX não mais é o que exatamente era no Secas: 1861-1889
princípio do século, graças a uma certa mobilidade social; as Abastecimento: gêneros alimenticios: 1823-1889. maço n9 4631
mentalidades mudara'm, a colónia tornou-se autónoma, a população Abastecimento: matadouro público: maços nos. 4628 e 4629
aumentou consideravelmente, novas técnicas agrícolas, industriais e Viação e obras públicas:
financeiras nasceram. Mas, o Salvador na beira-mar e no alto Obras públicas: 1847-1889 (documentos avulsos)
permanece, no final do século como no seu princípio, uma cidade Registros eclesiásticos de terras: vol. 4712 (Santiago do Iguape)
mulata, uma cidade de pequenos negócios e de grandes verdades, mas
S érie Judiciária:
uma cidade de convivências fraternas apesar de hierarquias que, por
Escravos: maço nç 2886
não conseguir adaptações económicas suficientes, vive ao limite da Policia:
indigência e da pobreza numa perpétua crise de subsistência, fonte de Qualificação de votantes (1862) maço n9 2808
descontentamentos que nascem e circulam nos mercados coloridos do R ecenseam entos:
Salvador da Bahia de Todos os Santos. Quadro da população livre e escrava da Província da Bahia. Chefatura de policia.
22 de abril de 1870.
Arrolamento do quarteirão n9 1 da Freguesia de São Pedro (1855)
Quadro de população do 219 quarteirão do Curato da Sé (1855)

A R Q U I VO M U N IC IP A L D A C l DA D E D O S A L VA DO R

LEITOR: O acsrvo do SBI oorlsnce a vocV


Cti -* '••tStí livro ti o V
376 377
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1889: IJJ 9 -3 2 9 a 1JJ 9-355 (Relatórios das Juntas de Saúde) R ecordações Históricas. Porto. 1921.
Ministério do Império (depois do Interior): Graças Honorificas: R esen h a h ist(trica, d a Bahia. Salvador. Tipografia NavaL 1941.
Requerimentos e propostas: documentos biográficos. 1808-1891. AMARAL José Alvares do. R esu m o cronológico e noticioso d a província da B ahia
desde o seu descobrimento em 1500. 2 - edição, Bahia. Imprensa Oficial, 1922.
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AMARAL Luís. H istória G eral d a A g ricu ltu ra Brasileira. São Paulo, Cia Editora
Maços de Despesa: Nacional. 1940. 3vols.
ANTONIL C ultura e Opulência do B ra silp o r suas M inas e Drogas. Texte deTédition
Tesoureiro da Casa (1749-1826): 58 maços
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