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O Governo das Almas:

A expansão colonial no país dos tapuia


1651-1798.

Marcos Galindo Lima


O Governo das Almas:
A expansão colonial no país dos tapuia
1651-1798.

Proefschrift
ter verkrijging van
de graad van Doctor aan de Universiteit Leiden,
op gezag van de Rector Magnificus Dr.D.D.Breimer,
hoogleraar in de faculteit der Wiskunde en
Natuurwetenschappen en die der Geneeskunde,
volgens besluit van het College voor Promoties
te verdedigen op donderdag 2 september 2004
klokke 14:15 uur
door

Marcos Galindo Lima

geboren te Garanhuns
in 1962.
Promotor:
prof. dr. Michiel Baud
Co-promotores:
Dr. John Monteiro
Dr. Marianne Wiesebron
Referent:
Prof. Dr. Geert Banck
A Mauro e Nice,
Maurenice, Mônica Marcio e Maurinho
A Stella
A Clarinha
À memória dos tapuia do São Francisco
Sumário
Agradecimentos ....................................................................................................... 0 9
Introdução ....................................................................................................................013
O Universo Tapuia. ...............................................................................................029
Imagens da barbárie .................................................................................031
A barbárie e o sertão.........................................................................035
O Tempo e o Espaço Tapuia. .............................................................041
O genérico tapuia..............................................................................043
Tapuias de corso. .............................................................................053
Agricultores sedentários. ................................................................062
Os Cariri. .............................................................................................080
Governo Nativo. ...........................................................................................102
Alianças Coloniais: caracterização...............................................104
Alianças introdutórias. ....................................................................106
O Compadrio. ....................................................................................110
Agregações .........................................................................................114
Ajuntamento das fazendas ..................................................115
Agregamentos paulistas. .....................................................119
Alianças e infra-estrutura colonial. .............................................122
Alianças Militares..............................................................................126

O Governo das Almas: a conquista espiritual do rio


São Francisco .............................................................................................................137
O Governo das Almas ...............................................................................137
Antecedentes: O Padroado Régio e os Capuchinhos.............138
Atividade Missionária
O ciclo missionário da costa..........................................................142
O ciclo missionário sertanejo ........................................................148
Expansão para o São Francisco....................................................150
Os primeiros conflitos com senhores de terras. ..............156
Estímulo à ação missionária nos sertões. .................................158
Expansão capuchinha. ...................................................................165
Jesuítas no rio São Francisco. .......................................................178
Novas disputas com a Casa da Torre................................179
Expulsão dos jesuítas do rio de São Francisco................182
O colapso das missões capuchinhas. .........................................186
O Governo dos Homens: a instalação do poder civil no
Sertão de Rodelas .................................................................................................. 191
O Governo dos Homens ........................................................................ 191
Desordem e nova ordem. .............................................................. 192
Crime e Castigo. .................................................................. 192
Justiça e jurisdição legal. .................................................... 197
Capitães-mor – o poder caçado. ....................................... 200
O pecado público. .............................................................. 203
Instalação das freguesias e vilas do sertão. ............................. 212
Política fundiária: novas cartas na mesa. ................................. 221
O Alvará de Terras de 1700. ........................................................... 226
Caminhos do Maranhão e do Brasil: a conquista d’El Rei 231
Anexação da conquista do Piauí ao Estado do Maranhão.. 240
O tempo do século: a submergência tapuia........................ 245
A decadência da Casa da Torre.................................................... 245
A submergência tapuia. ................................................................. 253
O Diretório dos Índios no sertão de Rodelas. ............... 253
A resistência nativa ao Diretório. ..................................... 255
Atividades produtivas. ....................................................... 260
A urbe versus o caos. ......................................................... 263
O poder da mistura. ........................................................... 264
Agregamento nas fazendas............................................................ 270
Sócios minoritários do projeto colonial. ................................... 274
Sem direito à história. ..................................................................... 279

Conclusão ..................................................................................................................... 287


Fontes & Bibliografia ......................................................................................... 295
Abstract .......................................................................................................................... 323
Resumo........................................................................................................................... 324
Samenvatting ............................................................................................................. 325
Lista de figuras ......................................................................................................... 329
Anexos ............................................................................................................................. 331
Glossário de termos históricos coloniais. ............................ 331
Quadro cronológico dos autores coloniais citados. ........... 343
Agradecimentos
A Stella minha parceira espiritual nesta caminhada, meu amor
respeito e eterna admiração. A minha filha Clara que a quinze anos ilumina
e enche de graça nosso ninho, companheira incondicional que viveu com
alegria um pouco de sua infância num studio de doutorandos.
A Quitéria, Bitinha e Miguel Pankararú, Manoel Tumbalalá,
Genilson Pipipã, Ibes Menino (in memória), Lorença e Reunita Fulni-ô, e
outros tantos amigos descendente diretos dos tapuia do São Francisco,
minha sincera amizade e respeito.
Reinaldo Carneiro Leão, José Gomes, Ney Dantas, Mario Helio,
Lodewijk Hulsman e Ricardo Paiva, amigos preciosos, companheiros de
idéias e sonhos. Georgina Limones, que de longe me alimentou com sua
força, sempre contigo no coração. A Lusilá Gonsalves, amiga sempre
presente. A Gabriela Martin, Armando Souto Maior. A Fábio Parenti, Alice
Aguiar e Silvia Cortês Silva, meu mais sincero reconhecimento pela perene
confiança.
Vânia Fialho, Conceição Torres, Rosimery Couto, Suely Manzi,
Sandra Nery Santiago, Jamille Barbosa, Suzana Browman, Mônica Rejane,
Adriana Holanda, leais amigos pelo constante estímulo. Ao amigo Pedro
Puntoni com quem aprendi muito sobre os tapuia. Ugo Maia Andrade pelas
animadas discussões sobre os povos do sertão e documentos do Arquivo
Público da Bahia; Yoni Sampaio, a Luiz e Valdir Nogueira pelo trabalho
com o livro de vínculo da Casa da Torre. A Cristóvão Ávila da Fundação
Casa da Torre, João Justiniano da Fonseca, Olavo Medeiros Filho, George
Cabral, João Renôr Ferreira de Carvalho, Hildo Rosa Leal e Consuelo
Pondé Sena pelo suporte documental. A Edwin Reesink pela leitura
paciente de meus textos, apoio e firme crítica, a Mísia minha comadre. A
Ernst Van den Boogart e Evaldo Cabral. A Benjamim N. Teensma pelas
leituras, orientações e confiança.
A família Midlin, Sr. José, D. Guita e Beti pela atenção e pelos
manuscritos de que me servi para este trabalho, especialmente da Relação da
Missão do padre Bernard de Nantes. Rosangela, Felipe e Dalton pelos
desenhos. A Pablo Galindo e Ann Blokland. Diederick Kortlang do
Arquivo Nacional dos Países Baixos, Mr. De Vries conservador de mapas
da Biblioteca Universitária de Leiden; A. C. Schuytvlot, Curador das
coleções especiais da Biblioteca da Universidade de Amsterdam, Wim
Klooster e Valeria Gauz da John Carter Brown Library, Mons De Cock do
Arquivo da Sociedade de Jesus no Vaticano; Monsenhor Farina Prefeito da
Biblioteca Vaticana. A querida amiga Isabel Souza do Arquivo da Câmara
de Guimarães e Maria José Moura da Biblioteca Nacional de Lisboa. A
Sátiro Nunes do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Aos amigos do
Centro de Documentação da América Latina em Amsterdam – CEDLA:
Graça, Cristina Malta. A Michiel Baud, Marianne Wiesebron, John Monteiro
pela valiosa orientação. Ao The Netherlands Foundation for the
Advancement of Tropical Research – WOTRO pela bolsa que me permitiu
realizar este trabalho. Aos Colegas do Departamento de Ciência da
Informação da Universidade Federal de Pernambuco.
Introdução
Stuart B. Schwartz, entre outros, tem lembrado que o período
compreendido entre o século do açúcar (1570 a 1670) e o ciclo do ouro no
centro-sul é uma das épocas menos estudadas do nosso passado. Não
obstante, ter sido nela que se “alteraram as configurações econômico-
demográficas da colônia e, por um curto período de tempo, propiciaram a
Metrópole portuguesa a ilusão de grandes riquezas e a vivência dessa
realidade efêmera.”(Schwartz, 2002:16) Schwartz aduz com razão este foi
um período capital para a consolidação da pecuária no interior da colônia,
especialmente nas quatro décadas que precedem o século XVIII.
Pesquisadores como Brás do Amaral, Felisbelo Freire, Francisco Borges de
Barros, Pedro Calmon, Basílio Magalhães, Barboza Lima Sobrinho, Serafim
Leite entre outros trabalharam muito para modelar uma teoria histórica para
os sertões interiores da Bahia e de Pernambuco no período. Todavia, a linha
discursiva escolhida por eles ora gravitava em torno da economia pecuária
ora em torno da Igreja, como se reduzisse a estes dois aspectos a história
daqueles sertões. O trabalho destes autores resultou num bom número de
estudos que abordavam diferentes pontos de vista de uma genealogia
histórica e dos feitos heróicos da expansão colonial, privilegiando sempre a
visão da vitória do modo cristão sobre a barbárie nativa do sertão
‘incivilizado’.
O Brasil efetivamente conhecido pelos europeus até a segunda
metade do século XVII era a estreita faixa costeira coberta pela floresta
tropical, antigo domínio de povos falantes da língua tupí, onde se explorava
a cana-de-açúcar e o pau-brasil. Ao poente desta faixa não se penetrava mais
que 200 quilômetros desde que os holandeses ocuparam Pernambuco em
1630 e inibiram a expansão da pecuária. Na documentação do século XVII
é comum se encontrar o termo fronteiras aplicado para distinguir os limites
de áreas ocupadas por portugueses daquelas dominadas por povos indígenas
não subjugados. Mathias da Cunha, em carta de 1688 ao mestre de Campo
Axiaoli de Vasconcelos, se referia à “fronteira principal dos bárbaros” (DH,
Vol X, 1929:319-320)1 e no Regimento do Governador Roque Barreto2, os
1Ainda Mathias da Cunha dizia em Carta de 14 de Outubro de 1688 ao Bispo de
Pernambuco: “o aperto em que aquellas fronteiras ficavam por falta de gente, armas, muninções e
mantimentos.” (DH, Vol X, 1929:322); O governador Luiz Gonçalves da Câmara em Carta
nativos do interior da Bahia eram tratados como “Gentio visinho do Estado”.
Registros como este demonstram a consciência da existência de uma
circunscrição livre do poder colonial português nos sertões interiores. Os
holandeses reconheceram este espaço. Roeloff Baro, funcionário da
Companhia das Índias Ocidentais, (WIC) foi chamado por Pierre Moreau
de “embaixador” dos neerlandeses no “País dos Tapuias”, geografia
representada em algumas peças cartográficas da época como no mapa Le
Bresil do Atlas de N. Sanson d’Abeville publicado em 1657.

Apesar de não ser formalmente reconhecido, o País dos Tapuias era,


de certa forma, uma realidade colonial. Até meados do século XVII as áreas
tradicionais dos povos nativos do sertão configuravam-se como uma região
pluriétnica fora dos domínios portugueses e permitida apenas à poucos
brancos acompadrados. Esta circunstância sugere uma dinâmica histórica

para o Capitão mor do Rio Grande assim se refere: “já considero terem partido da Paraíba as
munições para a fronteira dos Bárbaros” (DH, Vol X, 1929:415).
2 REGIMENTO que trouxe Roque da Costa Barreto, do Conselho de Sua Alteza., Mestre

de Campo e General do Estado do Brasil, a cujo cargo está o governo dele. Capítulo 20°
RIHB, tomo V:288-318.

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distinta daquela descrita pelos primeiros historiadores do sertão, esta
operada pelo encontro de dois vetores de força: o da frente colonial branca
que partia do Brasil costeiro, e a do país dos tapuias, reagente a primeira.
Sem lhes bastar a obviedade deste importante arranjo de forças, os autores
que se dedicaram ao estudo da expansão sertaneja, passaram ao largo sem
fazer conta de uma infinidade de questões que a evidência suscitava.
Entre as questões fundamentais esquecidas por estes estudiosos,
duas se colocaram permanentemente visíveis em nossas leituras, guiando e
orientando o pensamento que ora se apresenta neste trabalho. A primeira
delas inquiria sobre como – a partir da segunda metade do século XVII, nos
sertões do São Francisco, domínio tradicional de povos tapuia hostis aos
brancos – a pecuária logra em poucas décadas instalar e consolidar as
fazendas de gado pioneiras, num processo aparentemente negociado com os
nativos e sem notícia de grandes guerras tais quais as ocorridas durante a
fundação dos assentamentos do litoral e do recôncavo baiano? 3 Quando se
acata a hipótese desta relativa paz processual, a segunda questão emerge: se
não houve nestes sertões guerras, massacres e escravização na escala da
havida nos trabalhos de conquista e consolidação das bases do litoral, e se
tampouco houve migração massiva de brancos para o sertão que justificasse
uma miscigenação e apagamento radical dos índios, o que então aconteceu
com a população nativa da região?
A dedução natural seguida por uma expressiva fatia de historiadores
e antropólogos para explicar a pouca presença dos índios nos registros
documentais foi assumir – mesmo sem base factual que a sustentasse – a
escusa do extermínio como dedução lógica. Para estes, a ação colonial se
apresentava como um processo de aculturação, sob efeito do qual os povos
indígenas progressivamente foram perdendo seu espaço territorial e
atributos culturais, em um contínuo que principiava na época do contato e
findava com a sua “absorção” pela comunidade nacional.
Como explicar a gênese deste pensamento? Uma das respostas
possíveis parece estar na inserção historiográfica dos povos indígenas
brasileiros, feita por autores como Francisco Adolfo Varnhagen, que
defendiam o primitivismo dos nativos e a idéia de que estes povos viviam
em uma eterna pré-história, fadados ao subjugo e a tutela, sem direito à

3Não se considera aqui a guerra contra os Anaiô no rio do salitre (1674-1679) que,
segundo os autores que se dedicaram ao tema não foi fruto de um movimento contínuo e
persistente de resistência como as ocorridas no recôncavo baiano.

15
história, apenas à etnografia.4 Esta historiografia caudatária das demandas
do estado nacional brasileiro, então em formação, procurava se espelhar no
padrão de civilidade europeu e livrar-se da imagem selvagem, agregada a sua
ancestralidade indígena. Por quase um século a temática indígena
permaneceu esquecida, quando muito surgia de forma romântica, dominada
por relatos inspirados pelo positivismo evolucionista que acabaram por
desenhar para estes povos uma atuação de expectadores passivos do
processo histórico, e como tal, desabilitados socialmente a se articular frente
ao poder dos movimentos expansionistas.
Ao omitir um importante aspecto da narrativa colonial esta escrita
histórica acabava criando um explicativo desfalcado que não se sustentava
diante da crítica. Capistrano de Abreu, um dos mais brilhantes historiadores
brasileiros, diagnosticou pela primeira vez o silêncio o sobre o papel do
nativo na história do sertão e apontava para o hiato deixado por estudiosos
que davam excessiva ênfase a expansão da pecuária, “trabalhar com índios
nem é fácil nem agradável; mas também não é das maiores Áfricas: urge
fazê-lo”, conclamava Abreu (Capistrano de Abreu. [1889] 1982:11), poucos
entretanto enxergavam como ele. É deste período a célebre disputa entre o
poeta maranhense Gonçalves Dias que defendia a causa dos índios e o
historiador João Francisco Lisboa que o interpelou: “porque é enfim que a
história da civilização européia, em seu nascimento e nos seus progressos, se
há de ter como cousa mais somenos que a história de povos selvagens, da
sua decadência e extinção” (Lisboa, 1901, I:250).
Capistrano de Abreu também chamou atenção para região onde o
rio São Francisco alcança sua posição mais setentrional como espaço
fundamental para compreensão da história do Brasil. Em correspondência
com João Lúcio de Azevedo revelou o projeto de escrever um livro sobre a
história sertaneja – séculos XVI e XVII – em que se ocuparia da questão

4 Assim Varnhagen registrou sua opinião: “De tais povos na infância não há história: há só

etnografia. A infância da humanidade na ordem moral, como a do indivíduo na ordem física é sempre
acompanhada de pequenez e de misérias.” (VARNHAGEN, 1948, Tomo I:31) Sobre isto diz
Manuela Carneiro da Cunha: “A maior dessas armadilhas é talvez a ilusão de primitivismo.
Na segunda metade do século XIX, essa época de triunfo do evolucionismo, prosperou a
idéia de que certas sociedades teriam ficado na estaca zero da evolução, e que eram
portanto algo como fósseis vivos que testemunhavam do passado das sociedades
ocidentais. Foi quando as sociedades sem Estado se tornaram, na teoria ocidental,
sociedades ‘primitivas’, condenadas a uma eterna infância. E porque tinham assim parado
no tempo, não cabia procurar-lhes a historia.” (CUNHA, 1992:11).

16
que reputava ser da maior importância: “a conquista e o povoamento da
região entre o São Francisco e o Paraíba”.5
Nosso interesse acabava, involuntariamente, por focar-se no duplo
desafio deixado por Capistrano. O primeiro, de estudar os índios e o
segundo de pesquisar aquela região onde a frente de expansão colonial
baiana se encontrava com a frente maranhense que partia dos rios Mearim e
Itapecuru em busca do Estado do Brasil. O palco deste encontro foi
denominado pelos primeiros colonizadores como Sertão de Rodelas, espaço
geográfico que abrigou as primeiras fazendas de gado e testemunhou a
pactuação das mais antigas alianças seladas entre índios Rodeleiros e
brancos no Nordeste do Brasil. O sertão de Rodelas situava-se mais
precisamente no médio curso do rio São Francisco, no segmento
compreendido entre a barra do rio Grande e a cachoeira de Paulo Afonso,
confrontava-se ao Sudoeste com os sertões das Jacobinas e com o rio
Itapicuru, ao nascente com o Xingo e rio Pajeú, e ao norte com sertões do
Piauí, anexado no último quartel do século XVII por Francisco Dias de
Ávila e Domingos Afonso Sertão.

figura 2 - Sertão de Rodelas

5 CARTAS de Capistrano de Abreu para João Lúcio de Azevedo de 8 de março e 16 de

setembro de 1918. Tema que sempre ocupou seu espírito, dominava e vencia sobre
qualquer outro projeto. Explicação de José Honório Rodrigues, (ABREU, Capistrano de
1954:22-23).

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O projeto surgiu de discussões sobre a história dos índios do sertão
pernambucano quando eu era funcionário da regional nordeste da Fundação
Nacional do Índio – FUNAI. A investigação se ocupava de quase um século
e meio (1651 – 1798), período que compreende o início das “guerras dos
bárbaros” no recôncavo baiano, e a extinção do Diretório Pombalino que
secularizou as missões transformando as aldeias em vilas, marcando a
incorporação do “país dos tapuias” ao Estado brasileiro. Quando iniciamos
a pesquisa nossa opinião estava fortemente influenciada pela leitura de
historiadores da Igreja como Eduardo Hoornaert e Serafim Leite, em cuja
obra a ação missionária aparecia como o fio condutor através do qual os
índios emergiam na história. Esta influência nos levou, então, a concluir
pela idéia de que tanto a sobrevivência física dos grupos nativos
remanescentes, quanto o fenômeno contemporâneo da emergência étnica –
experimentada com grande vigor no Nordeste brasileiro – estavam
intimamente relacionadas com a ação missionária. Neste momento a leitura
de autores como Manuela Carneiro da Cunha, John Monteiro, Ronaldo
Vainfas, João Pacheco de Oliveira e Serge Gruzinski passaram a nos sugerir
um novo olhar sobre as fontes e a despertar uma opinião progressivamente
discordante dos nossos pressupostos iniciais. Este suporte teórico ao
mesmo tempo nos oferecia uma ampla gama de explicativos, distintos
daqueles do desaparecimento, insistentemente advogados pela historiografia
tradicional.
Não obstante a importância dos povos nativos na expansão colonial
– especialmente nos episódios encapsulados no denominado ciclo do gado
– o registro documental que permitiria recuperar a força do seu papel
histórico, somente em raríssimos casos se mostrava de forma bem
documentada e inequívoca, no mais das vezes valia a regra da omissão e o
registro tangencial de dados. Não era relevante para os autores coloniais
registrar as ações que de alguma forma sublinhassem posições políticas dos
nativos. Ao contrário, manifestações desta natureza deveriam ser relevadas
ou descaracterizadas na sua essência sob pena de expor as contradições do
discurso colonial, notadamente daqueles cânones que justificavam o próprio
processo expansionista, e em especial aquele que afirmava não terem os
índios qualquer expressão de fé, lei ou governo. Esta natureza do registro
documental serviu de escusa para muitos historiadores que preferiam seguir
a lógica colonialista estabelecida que discutir suas falhas e silêncios.
Antes de tratar do que se passou no Brasil cabe lembrar um pouco
do que acontecia fora. Nos anos 80 um movimento global de renovação
historiográfica passou a criticar as tendências que tinham feito a apologia do
processo colonial, bem como a reavaliar o pensamento de alguns críticos do

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colonialismo. Florencia Mallon, em célebre artigo, principiava exclamando:
“Este não é um tempo fácil para os estudiosos que trabalham com a
América Latina” (Mallon, 1994:1491-515), ela se referia as mudanças em curso
na condução dos movimentos políticos que desconcertavam os teóricos
marxistas, críticos do colonialismo. Mallon voltava sua atenção para a
promessa dos criticistas “Subalternistas” indianos, destacando a natureza
desta abordagem, como modelo analítico promissor para a América Latina.
Os subalternistas se aplicaram num amplo e radical procedimento de releitura
de sua própria história, questionando as bases colonialistas e se
empenhando numa dura crítica aos teóricos marxistas que preservavam o
germe do pensamento colonialista (Prakash, 1994:1485).
A esta época no Brasil o diálogo entre a história e a antropologia
produzia sua própria versão criticista, desenvolveram-se novas abordagens e
instrumentos analíticos que permitiam, de forma eficiente, inquirir as fontes
sobre o papel histórico dos índios. Pesquisadores como Manuela Carneiro
da Cunha, John Monteiro e Ronaldo Vainfas6 entre outros, promoveram
importantes estudos historiográficos que atuaram principalmente
demonstrando como as bases positivistas e evolucionistas haviam criado
uma imagem de inferioridade cultural para os povos nativos brasileiros;
criticando os teóricos marxistas – pioneiros da crítica colonial – que
conservavam posições derrotistas e disseminavam a idéia de que, os
remanescentes dos povos indígenas brasileiros estavam fadados a um
inevitável sufrágio, tragados pela sociedade branca e, finalmente,
combateram as posições dos teóricos estruturalistas e as tendências
globalizantes que conservam a imagem do índio ora como “inconscientes”,
ora como “inertes e inocentes” vítimas de “processos externos”. Como
resultado deste esforço surgiram novas narrativas que recuperavam o papel
dos índios desviando o foco da discussão regionalista para o campo teórico
e integraram tendências das escolas americana e européia a uma nascente
teoria etno-histórica brasileira que passou a ser conhecida como a Nova
História dos Índios no Brasil (Monteiro, 1995: 221-236).
No que pese o quanto já se avançou, ainda resta muito até que se
possa oferecer uma plataforma histórica de base ampla que dê relevo à ação
agente dos povos nativos, contudo, deve se enxergar nesta evidência mais
falta de estudos e de bons instrumentos metodológicos que ausência de
fontes e possibilidades. Alguns autores têm justificado o desinteresse pela
temática indígena na pouca oferta de fontes. O argumento, contudo, não

6Sobre a crítica colonialista da história indígena do Brasil ver: (CUNHA, 1992),


(MONTEIRO, 1995).

19
nos convence, o pesquisador dedicado se deparará com abundantes
registros históricos. O desafio que se impõe se situa na busca de
instrumentos teóricos e aplicações metodológicas que permitam uma
abordagem sistêmica dos dados. De modo geral, a ação dos povos nativos
se apresenta registrada de forma sutil, pulverizada em comentários
secundários e menções breves, inseridos em contextos coloniais de interesse
amplo. Assim, a abstração dos registros da sua participação histórica
depende tanto da objetiva interpretação dos silêncios quanto da leitura
positiva e linear dos registros.
A idéia inicial que movia nosso projeto era a de estudar os tapuia,
identidade historicamente construída que abrigava uma diversidade de
povos nativos habitantes do interior da colônia. Para este fim reunimos um
corpus documental a partir do qual passamos a tentar identificar
individualmente cada povo relacionando suas particularidades. Esta
iniciativa deveria resultar no desmonte do genérico tapuia e ajudar na
reconstrução de identidades étnicas reconhecíveis no contexto histórico.
Todavia, a experiência nos mostrou que, com base nos dados disponíveis, a
tarefa era impraticável, seja pelas diferenças inconciliáveis de natureza das
fontes, seja pela pouca precisão da informação histórica nelas contida.
Apesar do desengano a constatação nos indicava que, se não podíamos
observar diretamente estas identidades, nos era franqueado enxergar suas
ações através da investigação do seu coletivo. Por esta razão escolhemos
teorizar sobre um conjunto de fenômenos históricos que envolviam esta
pluralidade de nativos, atendo-se sempre que possível às particularidades e a
diversidade de circunstâncias próprias de cada caso.
Nosso propósito era identificar e demonstrar como as associações
entre índios e brancos agiram, não somente redirecionando o próprio
destino dos nativos, mas também, como operaram no substrato político
português, influenciando práticas que vão definir e reorientar o destino da
ação colonial em seu tempo e espaço. Buscamos identificar no ambiente de
nosso estudo as falhas, silêncios e impasses dos relatos daqueles que haviam
escrito sobre o assunto antes de nós. A leitura orientada nos dava a
dimensão do campo historiográfico, deixando claro o caminho que não
queríamos seguir. Cabia demonstrar a mecânica da prática de apagamento
histórico, primeiro identificando as marcas da ação agente dos nativos que
logravam subsistir nas entrelinhas do registro colonial e segundo refazendo
a leitura histórica dos registros documentais com o objetivo de preencher
parte das lacunas deixadas pelos modelos anteriores. A visualização desta
massa informacional, mascarada nas vagas da trama histórica, exigiu a
utilização de filtros lógicos. O conceito de agência parecia-nos um

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instrumento útil à tarefa de segregar os vestígios daquelas ações políticas
dos nativos, interferentes e co-operantes no processo histórico. Derivado
do termo agency do inglês, a noção tem sido utilizada para caracterizar um
conjunto de ações que se opõem à idéia de passividade historicamente
construída para os índios. Um conceito que busca “qualificar a ação
consciente dos povos nativos enquanto sujeitos da história, desenvolvendo
estratégias políticas e moldando o próprio futuro diante dos desafios e das
condições do contato e da dominação” como registrou John Monteiro
(Monteiro, 1995:221-236).
Não nos bastava apenas nos contrapor ao discurso historiográfico
dominante e atacar as perspectivas derrotistas demonstrando como a
história havia sido utilizada como instrumento de dominação e poder, este
trabalho já havia sido feito de forma muito clara por outros pesquisadores.
Tampouco se cuidava apenas de recuperar o status de agente histórico, com
uma reescrita emocional da história. O trabalho maior concentrou-se em
seguir a tendência da nova história dos índios no Brasil que procurava
construir uma outra lógica historiográfica que se põe a contra-corrente
daquela dominante, explorando suas linhas de falhas de forma a prover
diferentes relatos, a exemplo da que sugeria Prakash para história dos
subalternos no sul da Ásia.
O senso comum nutria a idéia romântica de que as sociedades
nativas do Brasil viviam antes da chegada dos europeus em uma perfeita
ordem e equilíbrio. Este senso não levava em conta uma dinâmica natural
pré-existente de extremada competição que faziam do estado de guerra uma
condição muitas vezes natural para grande parte dos povos que disputavam
entre si recursos naturais e espaços. Esta dinâmica, naturalmente impunha
uma ordem reconhecível entre seus partilhantes, forçando-os a se
adaptarem as mudanças e a desenvolverem complexas estratégias de
sobrevivência. A inserção dos europeus neste ambiente de disputas foi um
fato novo à ordem pré-existente, adicionando um diferencial de tamanha
envergadura que nos permite sugerir uma ruptura da ordem natural. Com
base nesta reflexão observou-se a expansão colonial procurando entender
os mecanismos de estabelecimento de uma cultura estrangeira no país dos
tapuia. Buscou-se captar o stress causado pelo encontro de complexidades
culturais, dissecando os mecanismos resultantes da dinâmica do encontro
das identidades cristã-ocidental e tapuia no processo de construção da
identidade “mestiça” do interior do Nordeste do Brasil.
Tomando estes referenciais como marco, nossa análise abordou as
fontes buscando segregar do registro documental dois tipos de informação:
Por um lado, os instrumentos e as fórmulas da intervenção ocidental no
21
universo tapuia e, por outro, as estratégias desenvolvidas por estes povos
no curso do processo histórico para enfrentar a ação colonial na busca do
reajustamento à nova ordem.
A observação empírica nos guiou entre duas dinâmicas atuantes no
processo colonial, arbitradas por nós para atuarem como planos
ordenadores que nos ajudavam a cercar as fontes e a construir nosso
modelo analítico. No primeiro momento a ruptura que impetrava uma
quebra na ordem daquela dinâmica pré-existente, e no momento seguinte o
reordenamento na qual os partilhantes do processo encontram em meio ao
caos uma ordem reconhecível e onde vão encontrar abrigo para construir
novas estratégias que incluíam as relações com um novo e poderoso
concorrente branco.
Com o plano de ruptura buscamos classificar os agentes operantes
na ação colonial que atuavam principalmente no âmbito da economia e da
religião. Interessava-nos sobremaneira compreender a visão dos criadores,
missionários e poder público sobre os nativos para entender como se
construíram as práticas de aproximação, de associação, de conquista, de
repulsão, e de guerra entre nativos e brancos. A discussão deste tópico foi
especialmente útil na compreensão da mecânica da expansão nos territórios
indígenas do rio São Francisco, e da sua inclusão posterior no universo da
pecuária.
O plano de reordenamento, a seu turno, teve a função de embasar,
problematizar e auxiliar na abstração das estratégias tapuia frente à expansão
colonial. Coube neste espaço entender os artifícios lógicos utilizados por
eles, intrumentalizados num conjunto de alianças e perdas negociadas no
processo colonial do São Francisco. Coube ainda neste plano entender a
forma pela qual os povos indígenas foram incluídos nas políticas locais; o
uso de mão de obra e as práticas de miscigenação. A análise e segregação de
algumas das estratégias utilizadas pelos tapuia, nos revelou como eles
lidavam com a expansão colonial e como elas lhes permitiram não somente
vencer o período de rompimentos e descontinuidade com seu curso
histórico no começo do século XVII, como os habilitaram a se manterem
articulados durante o período intenso de integração promovida pela política
do diretório pombalino.
O desenvolvimento dessas questões estão distribuídas pelas três
partes que compõem o trabalho: parte I: O Universo Tapuia, parte II: O
Governo das Almas e a parte III: O Governo dos Homens.
A primeira parte – O Universo Tapuia – pretende resumir o
conhecimento reunido sobre os povos habitantes tradicionais do semi-árido
22
– historicamente conhecidos pelo genérico tapuia – que estiveram no
campo de contato das frentes de expansão colonial atuantes no nordeste
brasileiro a partir do século XVI. Mais especificamente nos referimos
àqueles povos encontrados pelo vetor expansionista que se partiu da Bahia
em direção a região do médio curso do rio São Francisco denominada
sertão de Rodelas.
O universo tapuia está dividido em três capítulos: Imagens da barbárie; O
tempo e o espaço tapuia; e O governo nativo. No primeiro capítulo se discute a
noção da barbárie utilizada no processo de construção das identidades
nativas do litoral e do sertão. Deste debate de alteridades surge a figura de
uma supra-etnicidade imaginária genérica nomeada de tapuia que, a seu
turno, serviu historicamente para designar uma enorme diversidade de
povos, etnicamente distintos, submetidos ao projeto de redução e
dominação cultural da empresa colonial portuguesa. Este capítulo quer
mostrar como esta imagem historicamente construída se agregou no
decorrer do processo colonial a outra imagem, a da barbárie, e como elas
foram utilizadas para justificar perante a moral cristã, a expansão colonial
sobre povos presumidamente ‘despossuídos’ de Fé, Lei ou Rei.
No segundo capítulo: O tempo e o espaço tapuia, focalizamos as
sociedades tapuia com base na releitura em relatos do século XVI, como os
textos deixados pelo explorador Gabriel Soares de Souza e pelo Padre
Bartolomeu Guerreiro, iluminados pelas cartas do jesuíta Antônio Araújo.
Estes documentos testemunham um momento de mudança radical na
ordem dos povos nativos promovida pela ação das guerras que marcaram a
consolidação dos assentamentos pioneiros no litoral. Estas guerras forçaram
o êxodo dos povos tupis derrotados pelos portugueses para o interior do
continente, por entre os domínios territoriais de seus inimigos tradicionais
tapuia. Estes autores registraram a rota desta penetração delimitando a
reconfiguração de grandes áreas de domínio étnico. Nos apoiamos nesta
documentação para sugerir um modelo explicativo que procura justificar as
alianças promovidas entre estes índios e os exploradores pioneiros,
arranjadas em função das diferenças entre os dois blocos de povos nativos
que se encontravam no sertão do São Francisco.
No ultimo capítulo desta parte – o Governo Nativo – se discute as
diversas expressões da ação agente dos tapuia frente a nova ordem ocidental
que se instalou no Sertão de Rodelas na primeira metade do século XVII
baseado nesta prática de alianças.
A segunda parte, O Governo das Almas: a conquista espiritual do São
Francisco, trata da ação das missões atuantes na conversão dos povos nativos

23
do rio de São Francisco. O governo das almas está dividido em dois
capítulos: O primeiro e mais curto também, denominado governo das almas no
qual de discute as relações entre a igreja e o estado padroal português, bem
como as circunstâncias que condicionaram a existência das missões
religiosas dos capuchinhos franceses e dos jesuítas, as quais – sem prejuízo
das demais que desenvolveram projetos missionais no rio São Francisco –
foram as mais importantes para nosso objeto de estudo. O segundo capítulo
intitulado Atividade missionária discorre sobre os ciclos missioneiros do litoral
e do sertão, a expansão dos capuchinhos e jesuítas no São Francisco, os
conflitos com os senhores de terras, a expulsão da Companhia de Jesus e o
colapso das missões capuchinhas no rio São Francisco.
A terceira parte, O Governo dos homens: a instalação do poder civil no sertão
de Rodelas, analisa os eventos que deram lugar à conquista civil do sertão de
Rodelas e adjacências, dando relevo à presença do estado colonial nestes
sertões e as manobras da coroa para conter o poder dos senhores de terras.
Nesta parte propomos uma leitura nova para um conjunto de eventos
históricos, muitos deles já tratados por outros autores que tendem a
descrever esta região com excessiva independência da política colonial e
metropolitana. Nossa leitura procura mostrar um claro projeto da coroa
portuguesa – que teve lugar logo após a estabilização das conquistas do rio
São Francisco – materializado num conjunto de ações compartimentadas
que promoveram, ou pelo menos aceleraram o câmbio de poder na região.
Nesta parte buscamos explicar como e quanto estas transformações atuaram
sobre os povos nativos da região e ainda, qual o papel deles neste espaço de
câmbios marcados que, a partir do final do século XVII mudam a política e
a sociedade do sertão e se refletem ao longo do século seguinte, propiciando
o surgimento de novos arranjos de associações entre nativos e criadores de
gado e dando lugar ao surgimento de um novo tipo social – o agregado –
que vai ser discutido no capítulo seguinte.
O Governo dos homens está dividido em dois capítulos, o primeiro
também chamado Governo dos homens e o segundo nomeado de Tempo do
século. O primeiro capítulo trata da situação do governo civil em Rodelas e
está dividido em duas partes: a desordem, na qual se discute o caos da
violência, a ausência de justiça, o poder de polícia dos capitães-mores e
prática das uniões maritais não sancionadas pela igreja e a outra, a ordem, que
trata do estabelecimento do governo civil, da mudança nas regras de
distribuição fundiária, da instalação dos juizados ordinários, das ouvidorias
do interior e da conexão terrestre entre o Estado do Brasil e o Estado do
Maranhão através do Sertão de Rodelas. No segundo capítulo desta parte, O
tempo do século, se discute um dos temas chave desta tese, as estratégias dos

24
tapuia para sobreviver na nova ordem estabelecida com a chegada do
governo civil e com a decadência da Casa da Torre. O capítulo, ambientado
nos anos seguintes à saída dos jesuítas e capuchos, aborda a metamorfose
dos tapuia que passam a se acomodar no entorno das fazendas de gado
onde vão encontrar ocupação, segurança e abrigo. Nossa observação
focaliza a constituição de um novo tipo populacional mestiço, identificado
com os fazeres da pecuária, flagrando o momento em que estes índios
desaldeados, afastados das expressões culturais nativas vão submergindo em
um substrato caboclo, engrossado por uma legião de desgraçados,
dependentes de criadores empobrecidos pela crise que derrotava a
economia pecuária no final do século XVIII. Em meados deste século a
correspondência do Governador Luiz Diogo Lobo da Silva e os relatos do
Ouvidor Durão do Piauí descrevem os povos tapuia do sertão de Rodellas –
depois de dois séculos de contato – reduzidos a uma massa populacional
sem identidade, agregada às casas dos fazendeiros como sevos da gleba ou
transformados em força privada a serviço dos coronéis. Esta massa
marginal descrita pelo Ouvidor como diabos vermelhos, se associam à
aristocracia miúda local, junto de quem vão aparecer mais tarde nomeados
como cangaceiros ou jagunços, ressuscitando a ética e as táticas de guerra
dos primitivos tapuia. O restante dos nativos do sertão, parecem se
esconder em ninchos por eles mesmos criados na massa cabocla de onde
somente vão se erguer no século XX em busca de uma identidade perdida,
espalhada em milhares de fragmentos que permaneceram impressos no
tempo e no espaço do povo sertanejo.
Na primeira e na segunda parte da tese dedicamos espaços bem
delimitados para os índios e para os missionários, todavia o capítulo
dedicado à discussão do papel dos senhores de terras que deveria vir na
terceira parte – o Governo dos homens – acabou tomando um formato que
seguia em muitos aspectos, o tipo de narrativa linear de que pretendíamos
nos afastar, por esta razão diluímos o tema no corpo da tese. Não
poderíamos contudo, principiar nosso trabalho sem oferecer ao leitor pouco
familiarizado com a história colonial desta região, pelo menos uma breve
introdução ao sistema senhorial de colonização que tem seu exemplo mais
clássico na Casa da Torre, clã alicerçado pelo patriarca espanhol Garcia
D’Ávila, que chegou à Bahia em 1549, onde formou uma rica família
especializada na conquista de fronteiras e na exploração da pecuária. Desde
cedo, dos assentamentos do litoral, partiram expedições de sondagem para
o interior da colônia com a missão de verificar a existência de metais e
pedras preciosas noticiadas por exploradores, muitas delas promovidas por
parentes dos D’Ávila. As prospecções do século XVII negaram as

25
promessas de ouro e as reservas de salitre – usado no fabrico de pólvora –
revelaram não suportar exploração permanente. Quando a promessa dos
minérios se desvaneceu restou apenas o gado que havia se adaptado muito
bem ao ambiente seco e rústico do sertão. O rio São Francisco foi por
excelência o eixo em cujo entorno se espalhou a economia pecuária
mantendo com fartura uma teia de fazendas de gado. Respondendo aos
resultados que a pecuária apresentava e a permanente ameaça de conquista
do interior pelos holandeses, ocupantes da costa no do litoral nordeste
brasileiro, o governo metropolitano passou a conceder largas datas de terras
no interior da colônia a corporações como a Casa da Torre, iniciando um
processo marcado por uma nova e produtiva experiência de conquista e
pela desindividualização das iniciativas de expansão em benefício de um
projeto privado de regime senhorial.
As grandes extensões de terra concedidas aos sesmeiros eram
essencialmente titulações nominais de posse e devem ser observadas desde a
lógica colonial corrente em Portugal que reservava aos ricos a exploração de
áreas livres ou devolutas. Para atrair os nobres para a tarefa de distribuir a
conquista, a coroa portuguesa ofereceu uma série de incentivos,
especialmente a isenção do foro que permitia ao senhorio a exploração da
renda anual das possessões sub-concessionadas. No sistema sesmarial os
custos da expansão e exploração dos territórios conquistados eram
assegurados pela empresa colonial. Neste regime a defesa de interesses
coletivos dos foreiros junto a corte eram intermediados pela Casa da Torre
que aviava os projetos de entradas, pedidos de socorro e autorização de
investidas contra índios. No rio São Francisco e interiores da Bahia e
Pernambuco os contratos de arrendamento ou aforamento, pactuados entre
rendeiros e senhores de terras, eram elaborados na base de códigos de
confiança. Em questões que envolviam relações comerciais, tratos e
destratos o direito do uso e costume da terra era invocado para legitimar
situações que, em geral, beneficiavam os senhores de terras
Em 1679, D. Leonor Pereira, neta de Garcia D‘Ávila, por ocasião do
casamento da filha Catarina Fogaça com o tio Francisco Dias D’Ávila,
instituiu o Morgado que conferiu linhagem nobiliar ao clã.7 A personalidade

7 Coronel Francisco Dias D ‘Ávila 2°. Ver Certidão passada a D. Ana Maria de S. José e Aragão,

senhora da Casa da Torre, da escritura da instituição do morgado da Torre, feita em 21 de dezembro de


1679, e o registro do alvará de 23 de julho de 1681 da confirmação, às fls. 56, liv. 98 do
Registo de Patentes e Provisões Reais - Terras - Casa da Torre (Alvará e Escritura) - APEB
- Seção Colonial - Maço 602. Registo do Alvará por que Sua Alteza faz mercê a Francisco Dias
d'Ávila de lhe confirmar o morgado que nele fizeram Leonor Pereira e Catarina Fogaça por lhe casar com
26
jurídica do Morgado vinculava propriedades ou conjunto de bens em um
instituto inalienável e indivisível governado pelo filho primogênito. A esta
época entretanto, o antigo sistema de distribuição fundiária agenciado pelos
sesmeiros nos sertões não se adequava mais as novas necessidades da
colônia. Uma reforma política que promovesse o desmonte do poder
político da Casa da Torre era necessária e passava por uma complicada
manobra que não comprometesse o funcionamento da economia local,
profundamente dependente da pecuária, controlada pela rede da Torre.
No princípio do século XVIII, a pecuária perdera a efêmera posição
de arrimo na economia da colônia e a exploração de rendas já não era um
negócio tão atrativo. Esta conjunção de câmbios fizera que a Casa da Torre
aos poucos fosse concentrando seus interesses no Sertão de Rodelas onde
as sesmarias mais antigas continuavam abrigadas pela lei e onde seus
privilégios ainda valiam. O Morgado da Torre subsistiu até 1835, quando a
instituição Jurídica foi extinta no Brasil por força de Lei.8

sua neta e filha Leonor Pereira Marinho. Livro de Provisões Gerais n° 260 (1678-1683), fls. 671,
doc. 283. APEB. (DH, vol. XXVIII:50-51).
8 Ver resumè da arvore genealógica da família Dias de Ávila Pereira, reconstituída com base

nas informações de Luiz Alberto Moniz Bandeira e Pedro Calmon. (BANDEIRA, 2000),
(CALMON, 1939).

27
28
O Universo Tapuia.

Frei Antônio de Santa Maria Jaboatam “Como o gentio da América, e com muita
Novo Orbe Seráfico Brasilico - 1761- especialidade este das partes do Brasil, era entre
todas as nações do mundo, aquela gente, que só se
podia chamar naturalmente pobre, ou pobre por
genio da sua natureza, pois vivendo, e dando-lhe
Deus para moradia huma região a mais rica, e
abastada do mundo todo, elles entre o ouro, e prata,
pedras preciosas, todas mais, e grande riqueza do
Brasil, vivião entre ella com hum desprezo de tudo,
como verdadeiros pobres”.

Este capítulo pretende resumir o conhecimento reunido sobre os


povos habitantes tradicionais do semi-árido – historicamente conhecidos
pelo genérico Tapuia – que estiveram no campo de contato das frentes de
expansão colonial atuantes no nordeste brasileiro a partir do século XVI.
Mais especificamente nos referimos àqueles povos encontrados pelo vetor
expansionista que se partiu da Bahia em direção a região do médio curso do
rio São Francisco denominada Sertão de Rodellas, espaço geográfico que
delimita nosso estudo, compreendido entre a barra do rio Grande e a
cachoeira de Paulo Afonso. Esta região se amplia com as fronteiras
alargadas pela Casa da Torre no decorrer do século XVII, confrontando-se
com os sertões das Jacobinas e rio Itapicuru, ao nascente com o Xingo e rio
Pajeú, e ao norte com sertões do Piauí, anexado no último quartel do século
XVII por Francisco Dias de Ávila e Domingos Afonso Sertão.
O capítulo se divide em três partes, Imagens da barbárie; O Tempo e o
espaço tapuia; e o Governo nativo. Na primeira parte se discute a noção que
serviu para designar uma enorme diversidade de povos, etnicamente
distintos, submetidos ao projeto de redução e dominação cultural da
empresa colonial portuguesa. A esta imagem genérica agregou-se, no
decorrer do processo colonial, uma outra imagem historicamente
construída, a da barbárie, que serviu ideologicamente para justificar perante a
moral cristã, a expansão colonial sobre povos presumidamente bárbaros,
‘despossuidos’ de Fé, Lei ou Rei. Na segunda parte do capítulo: O Tempo e o
espaço tapuia, pretendemos focalizar a representação das sociedades tapuia
com base na releitura dos relatos coevos, onde se buscará extrair do
discurso colonial a informação filtrada referente à expressão dos povos
tapuia. Na ultima secção: o Governo Nativo, pretende-se destacar a ação
agente dos tapuia frente a nova ordem ocidental que se instalou no Sertão
de Rodelas na primeira metade do século XVII.

30
1 Imagens da barbárie.
Desde a restauração portuguesa e o coroamento de D. João IV, as
colônias do Brasil experimentaram uma notável expansão territorial. A
descoberta de minerais preciosos levou os vassalos lusos a ultrapassar os
limites pactuados em Tordesilhas. Dezenas de exploradores, notadamente
os bandeirantes paulistas e sertanistas baianos, deixaram o litoral se
espalhando pelo Centro-oeste brasileiro. A segunda metade do século XVII
foi um momento de câmbio para a política expansionista da igreja no Brasil:
a ação missionária retoma importância no cenário colonial português,
ocupando-se da redução dos nativos habitantes dos sertões conquistados.
A expansão nordestina inclui-se neste movimento de alargamento de
fronteiras.
É sobre o signo do eurocentrismo, do estigma, e da expansão que os
missionários lançam as bases de sua ação redutora. No Nordeste colonial
brasileiro, o termo tapuia podia ser usualmente traduzido como inimigo
infiel, quando muito indefessus evangelii minister (LEITE, 1945, vol. V:294),
aquele bárbaro que a caridade divina deveria conquistar para o grêmio da
Igreja e para a glória da Coroa Lusitana. A apreensão colonial via o homem
nativo – reagente a expansão – como uma extensão do meio, não servia aos
interesses coloniais entender sua cultura altamente especializada, adaptada
ao ambiente escasso do sertão. Neste contexto, o argumento da barbárie
versus civilização vai ser amplamente utilizado e reproduzido na expressão
do contato e do confronto para justificar a ‘conversão’ e as guerras justas.
A noção de barbárie como instrumento de subjugo e conquista foi
largamente explorada por vários autores. Para Ernst Van den Boogaart, os
europeus não estavam realmente interessados em entender as formas de
vida dos povos nativos. Particularmente, quando tratavam de estabelecer e
manter suas colônias, não conseguiam livrar-se de seus preconceitos, e
resumiram, muitas vezes, sua visão sobre as sociedades exóticas, a um
limitado número de aspectos de seu comportamento. O que teria permitido
conseqüentemente a formação de idéias estereotipadas, usadas para
justificar a conquista e dominação. (BOOGAART, 1979:519-538).
A análise de Boogaart sugere uma ‘inabilidade’ européia para
compreender povos de cultura exótica. Parece-nos, entretanto que a

31
justificativa da barbárie é parte de uma elaborada lógica, construída durante
séculos de contato, para justificar moral e civilmente o processo de subjugo
forçado de povos colonizados, com o intuito de amenizar os efeitos das
contradições do expansionismo, conduzido pela Igreja e pelo Estado. O
estatuto cristão chocava-se frontalmente com práticas como a escravidão e
o extermínio, deixando expostas as falhas do discurso de anima econômica,
que se ocultava sob a máscara da expansão católica. O problema do conflito
moral e ético exigia um argumento que contornasse suas contradições
internas, autorizasse a intervenção colonial, e desse sustentação jurídica à
guerra justa e à escravização, duas instituições fundamentais para a
conquista e estabelecimento de um modo de produção ocidental voltado
para o acúmulo de excedentes e para o mercado ultramarino. É esta idéia de
redução ao modo de vida ocidental que vamos encontrar nos escritos dos
autores coloniais.
Os exemplos eloqüentes desta lógica colonial converteram-se quase
numa introdução comum aos textos dos religiosos. Cristina Pompa
demonstrou como este pensamento foi utilizado pelos cronistas atuantes no
São Francisco para justificar a redução e a conquista. Em primeiro lugar,
para classificar a ‘desordem’, destacavam o que por eles era entendido como
barbárie, em seguida exaltavam a obra dos cristãos, e finalmente relatavam
os benefícios da conversão através da classificação da nova ‘ordem’. Relatos
de missionários como o do capuchinho Martinho de Nantes, foram
compostos como peças de propaganda (NANTES, [1706], 1979:XXIV-XXV).
nas quais seus relatores buscam destacar os sucessos do trabalho missional
como recurso de argumentação, expondo o que entendiam como barbárie,
para destacar em contraste, os frutos da redução, construído pela oposição
do antigo e do agora. (POMPA, 2001:363).
Os relatos mais produtivos sobre os povos nativos dos sertões,
naturalmente são aqueles testemunhos da convivência com estes povos por
força de sua ação catequizadora. Em cartas datadas de 1555, aos padres
irmãos de Coimbra, do jesuíta Juan de Azpilcueta Navarro, nos oferece um
dos mais antigos testemunhos de exploração no São Francisco e da idéia da
barbárie Tapuia:
Tapuzas que es un género de indios bestial y fiero, porque andan por los bosques
como manadas de venados, desnudos, con cabellos muy largos como de mugeres.
Su habla es muy bárbara, y ellos muy carniceros. (...) comunmente no tienen
superior, lo qual es causa de todos los males. Tienen tal ley entre si que recibiendo
el menor dellos una injuria de los christianos, se juntan todos a vengarla. Son
pobríssimos, ni tienen cosa propria ni particular, antes comen en común lo que
cada dia pescan y caçan. (NAVARRO, [1555], 1954).

32
Martinho de Nantes, o mais célebre dos missionários do sertão de
Rodelas descreve os Cariri que estiveram sob sua tutela, sempre de modo
pessimista. São exemplos de bestialidade, antes de que, por graça divina,
lhes fosse concedida a humanidade:
Devemos admitir que esses pobres índios, não tendo Fé, nem Lei, nem Rei, nem
artes, que são ajudas e guias de uma vida racional e política, haviam caído em
todas as desordens que podiam causar essas falhas gerais, e estavam de tal modo
embrutecidos, pela maneira de vida grosseira, fundada toda nos sentidos, que se
pode dizer que não tinham senão a figura de homem e as ações de animais e,
conquanto tivessem alguma forma de culto aos deuses que haviam imaginado, era
tão ridículo e vergonhoso o culto quanto as coisas que adoravam. (NANTES,
[1706], 1979:4).

O padre Bernard de Nantes, substituiu o confrade Martinho que


permaneceu por 23 anos nas missões do rio São Francisco, deixou-nos
também uma Relação na qual repete a mesma idéia a respeito dos Cariri:, diz
ele “eram, portanto, antigamente, homens em aparência e de fato selvagens,
demonstrando forma humana por fora, mas guardando instintos de bestas
por dentro, vivendo sem fé, sem rei e nem lei.(NANTES, 1702). Se aos
Índios mansos que se congregavam ao círculo da Igreja era reservado o
desprezo e a condição animal, aos arredios Índios brabos cabia o fogo e a
espada. Em 1656, o jesuíta Antônio Pinto justifica as guerras movidas
contra os tapuia do sertão das Jacobinas, argumentando que estes tinham
pouca disposição para a ordem cristã, eram insubmissos e não respeitavam a
propriedade alheia. “Assaltam com freqüência as Fazendas dos Portugueses
e se os apanham desprevenidos os matam e roubam. Por isso se lhes fez
guerra e se cativaram muitos e se lhes queimaram as Aldeias”, registrou o
jesuíta. (Sexennium Litterarum, 1651-1657, ARSI, Bras. 9, 16v-18) Para os
missionários, defender a fé, não significava advogar os índios e suas formas
de expressão, mas combater as ‘trevas’ para onde eles haviam sido
arrastados por obra do demônio. Azpilcueta Navarro, rogava a Deus que
por misericórdia tirasse os índios, a quem chamava de miseráveis, das
abominações em que estavam. Acreditava que os frutos sólidos da
conversão só apareceriam quando o sertão estivesse povoado de cristãos.
(NAVARRO, [1555], 1954).
Os missionários não duvidavam da disponibilidade do índio com
relação ao cristianismo, mas estavam embebidos de preconceitos a respeito
de sua cultura. Vittorino de Regnni autor de um bem documentado estudo
sobre os missionários capuchinhos na Bahia lembra, em boa hora que, para
os religiosos, o trabalho de conversão passava por dois estágios.
Primeiramente devia-se “elevar o índio ao nível de ser humano” e só depois
“erguê-lo ao estado da graça”(REGNI, 1988, vol I:119). A idéia parece

33
inspirada nos escritos do Jesuíta José de Acosta, para quem a salvação das
almas passava antes pela ‘homificação’ do ser selvagem, transformado, e
assim, sujeito ao direito temporal dos homens. Só quando alcançada a
condição humana estaria o bárbaro habilitado à conversão cristã. Este
pensamento estava presente no movimento da Igreja nova no Maranhão
liderado pelo Jesuíta Luiz Figueira. Nos idos de 1690, Vieira era visitador
das missões, nesta oportunidade, relatando a seu provincial o resultado das
missões entre os índios do sertão, deixou-nos a mais objetiva abstração
deste pensamento do ‘evoluir estratificado’, que os religiosos reservavam
para os nativos; segundo Vieira:
O fruto destas missões consiste em fazê-los de bárbaros, homens e de homens,
cristãos; e de cristãos, perseverantes na fé; e isto procuram e procurarão aqueles
missionários, acomodando-se a viver com eles, e a fazer ofício de cura, pai,
médico, enfermeiro, tutor e ainda mestre, para ensinar-lhes a roçar e plantar seus
mantimentos, porque tais são que antes haviam de ir caçando pelo mato e
buscando alguma fruta silvestre do que acomodar-se a trabalhar e plantar. (Anua
1690-91, ARSI, Bras.:295).
Este era o ideal utópico da redução, lento, ingrato e de frutos tardios
que, segundo os missionários, aos poucos elevaria as “bestas” ao estado
‘ominal’, contudo, a idéia da iluminação do gentio não era exclusiva dos
religiosos. O paulista Domingos Jorge Velho, conhecido preador de índios,
certa vez fora denunciado pelo frei Francisco de Lima, bispo de
Pernambuco pela prática de escravização e concubinato. Destemido, com
um discurso ousado e afinado com a fala colonial, justificava perante o Rei
sua conduta:
Vamos ao sertão deste continente, não a cativar (como alguns hipocondríacos
pretendem fazer crer a Vossa Majestade) senão adquirir o Tapuia gentio brabo e
comedor da carne humana, mas para o reduzir ao conhecimento da urbana humanidade,
e humana sociedade à associação racional trato, para por esse meio chegarem a ter aquela luz de
Deus e dos mistérios da fé Católica que lhes basta para sua salvação (porque em vão
trabalha, quem os quer fazer anjos, antes de os fazer homens). (ENNES,
1938:204-7)
Instrumentos da expansão, a igreja e a milícia se apresentavam como
ferramentas da redenção almejada. Os paulistas encontraram pela espada
seu espaço na colônia. Viera e Jorge Velho, defendiam uma espécie de
linearidade evolutiva para o espírito humano, partindo da ‘barbárie’,
passando pela redução, até a propalada ‘urbana humanidade’. Discursavam
como se houvesse uma hierarquia cristã, válida para os povos nativos, que
os qualificava através de variáveis tais como: canibalismo, uso de agricultura,
grau de sedentarismo, sistema de governo, regras sociais, grau de sujeição
colonial. Nesta escala estariam representados numa extremidade povos

34
aliados como os tupis do litoral e na outra os tapuia ‘bárbaros’ nômades do
sertão. Para guiá-los na ascensão espiritual, os tapuias ‘embrutecidos pela
barbárie’ necessitariam de tutores encarregados de lhes oferecer a luz cristã.
Vieira invocava constantemente para os religiosos a posição de redutores.
Parafraseando Cristo, referia-se certa vez ao clero como o sal da terra, cujo
efeito seria o de impedir a corrupção. “vós, diz Cristo Senhor nosso,
falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra,
porque quer que façam na terra o que faz o sal.” diz Vieira. (VIEIRA, 1968,
vol. I:340). Para os religiosos, mostrar os nativos como incapazes era
justificar a própria condição de “sal da terra”. Sendo estes Idefensus
necessitariam de tutores, procuradores universais dos seus direitos.
O argumento da incapacidade natural dos índios perdurou ativo por
muito tempo, um documento de 1721 que tratava da administração dos
índios, registrou o papel dos jesuítas como advogados da menoridade dos
nativos: “como de curadores dos miseráveis Índios aos quais a natureza não
deu capacidade, nem talento para se governassem”.(AHU, 1721, cód.
96:370v-371). O estado de menoridade do índio brasileiro só foi sancionado
pela lei de 12 de Maio de 1798, mas desde o princípio da colonização era
defendido pelo padre Manoel da Nóbrega. (REGNI, 1988, vol I:147).
Regnni lembra que a lei de 9 de setembro de 1678, “não punha outro limite
à liberdade do índio, senão o de sua menoridade social” (REGNI, 1988, vol
I: 130), colocando-o, como anteriormente, sob a tutela e proteção do
missionário para ser domesticado, evangelizado e encaminhado por eles
para uma forma de convivência civil com a população européia. (LEITE,
1945, vol. V:4).1 Mas não era só a barbárie do homem que incomodava os
missionários. A terra bruta e hostil do sertão também fazia parte deste
imaginário bárbaro que aguardava a caridade divina da redenção.

A barbárie e o sertão.
O espírito da barbárie, alimentado no senso comum, aplica-se
recorrentemente também aos sertões, como sinônimo de deserto. As
principais dificuldades para os ocidentais no sertão, segundo os discursos de

1 Sobre a discussão da incapacidade dos índios ver documento constante da Informação Geral da
Capitania de Pernambuco, 1749. É importante lembrar que os índios eram incapazes, mas não
iniputáveis. A ordem régia de 05 de novembro de 1700 declarava serem os Ouvidores juizes
privativos de todos as causas dos Índios e Tapuias; dois meses depois, 11 de janeiro de 1701, outra
ordem deixava a jurisdição do Governador à sentença breve e sumária da liberdade dos índios.
(ABN, 28, Rio de Janeiro, 1906:339).
35
autores coevos,2 eram a ausência de vias de acesso entre os centros
coloniais; de água regular nos caminhos; de fontes alimentares processadas.
Ajunte-se a isso, a presença de vegetação agreste de animais silvestres, a
hostilidade dos bárbaros selvagens e as secas cíclicas.
O sertão de tantos “perigos e vexações” a que não estavam
acostumados os ocidentais foi interpretado no imaginário dos cronistas
como espaço de trevas deserto e bárbaro, que a eles cabia iluminar.
Azpilcueta Navarro, 1555, registra a idéia de deserto em áreas ocupadas por
tapuias, anunciando a barbárie da terra como um dos pontos básicos do
discurso da conquista. “Nós fomos outro dia e passamos muitos
despovoados, especialmente um de vinte e três dias de caminhada, por entre
uns índios que chamam tapuias”, diz ele. (NAVARRO, [1555], 1954). Em
um documento célebre sobre a conquista do Piauí em 1697: a Descrição do
Sertão do Piauí, o padre Miguel do Couto (COUTO, [1697], 1938), desvela o
paradoxo e as contradições abrigadas no discurso do ‘sertão deserto’. No
mesmo texto em que destaca a barbárie do “despovoamento” – aqui
entendido como ausência de estruturas coloniais portuguesas – descreve
uma esplêndida diversidade de sociedades e vida no semi-árido. No
primeiro trecho, ele fala de “sertões desertos que correm para Pernambuco
pelos quais se não tem descoberto caminho nem se vadeiam, em razão dos
muitos gentios brabos que neles habitam”. Os trechos que se seguem da
Relação de Navarro e da Descrição do Piauí de Miguel do Couto, nos revela
uma rica diversidade de micro-ambientes e ecossistemas diferenciados, que
ofereciam, de forma desigual, uma infinidade de recursos encontrados numa
mesma região:
Este rio Parnaíba é muito grande corre do sul para o norte é todo capaz de se
navegar da Barra que faz no mar até 200 léguas ao Sertão que se tem descobertas
quase todas capazes de criar gado, e não estão povoadas por causa do muito gentio bravo
que na Beira dele habita, (...); os quais são abundantes de pastos e de varias frutas
como são Mangabas, Jenipapos, Araticuns, e outras muitas agrestes de que usam
os gentios, e os brancos em necessidade. (COUTO, [1697] 1938:386)

2 O Padre Miguel do Couto Carvalho celebrizou-se como autor da Dezcripção do certão do Peauhy,

contudo seu papel se estende além do cronista. Foi político hábil e esteve presente nos bastidores das
mais importantes decisões locais, granjeou respeito do bispo e do Rei por sua atuação conciliatória
entre pecuaristas e missionários, foi conselheiro da junta das missões e é o autor da proposta de
desmembramento da Comarca dos sertões do Piauí da Capitania de Pernambuco para a do
Maranhão, que acabou por estrangular o canal que a Casa da Torre tinha com o Desembargo da
Bahia que lhe permitia, via associações com os desembargadores, obter vantagens em suas causas
fundiárias contra seus foreiros; Frei Bernard de Nantes nos deixou sua Relação da Missão dos índios
Kariris de 1702; Padre Martinho de Nantes seu confrade fez publicar em 1706 a Relação sucinta e sincera
das missões no São Francisco, reeditada mais recentemente em 1979; e o padre André João Antonil
autor de Cultura e opulência do Brasil, impresso a primeira vez em 1711.
36
Ainda o padre Miguel do Couto nos dá outro bom exemplo da
copiosidade dos sertões que pouco antes classificava de deserto:
Especialmente notei a fertilidade daquela terra, em o ano de 1694 quando desta
povoação atravessei para o Pernagoa pela beira do Rio Goroguea, com o padre
Phelipe Bourel da Companhia de Jesus porque levando em nossa companhia 42
pessoas sem provimento de matalotagens achamos tanta abundancia de mel,
peixe, cassas e frutas que não experimentamos falta alguma 16 dias que
caminhamos pela beira do Rio; apartados porem dele, padecemos 5 de grande
fome, e sem duvida morreremos se a providencia divina nos não socorrera por
um modo que sendo natural pareceu prodigioso, e foi que caminhando por entre
umas serras junto do Rio Corimataim, achamos um Riacho que em distancia de
uma légua tinha pelas beiras grande quantidade de ananases criados pela natureza
tão deliciosos no cheiro, e no gosto como os que se acham nas praças só tinham
diferença em serem todos brancos e mais pequenos; até chegarmos a povoada
nos servirão de regalo, e matallotagem, esta abundancia faz com que naquela terra
habitem muitos Tapuyas os mais bravos, e guerreiros que se acharão no Brasil
(...). (COUTO, [1697] 1938:386).
O jesuíta o espanhol Azpilcueta Navarro na relação de sua entrada
aos sertões de 1555, testemunha:
Ay mucha caça assi de animales como de aves; ay unos animales que se llaman
antas, poco menores que mulas, y parécense con ellas, si no que tienen los pies
como de buey. También ay muchos puercos monteses y otros animales que
tienen una capa por cima a manera de cavallo armado; ay raposas, liebres e
conejos como en essa tierra; ay muchas castas de monas, y entrellas unas pardas
con barvas como hombres; ay venados, gatos monteses, onças, tigres y muchas
culebras, (...). Ay unas aves que son como perdizes, otras como faysanes, con
otras muchas diversidades. También vi en poder de indios dos avestruzes.
(NAVARRO, [1555], 1954).
Este fenômeno observado nos cronistas brasileiros, é um recurso
clássico do colonialismo marcado pelo conflito de testemunhos paradoxais.
Ocorre que os depoimentos são montados sobre duas noções conflitantes.
A primeira e a da esterilidade da terra, contraditória a uma outra de
ecossistema diferenciado, capaz de atender de forma distribuída e ordenada
às demandas do abastecimento humano; a segunda e à noção de deserto,
antônima a de povoado, entendida corretamente apenas quando habitada
por cristãos. Esta noção percebia o território do sertão na perspectiva
patrimonialista – potencialmente produtivo ao modo ocidental – então
habitado por almas pagãs, carentes de conversão. Reuniam-se, então, as
condições básicas exigidas pela ética colonial para a conquista: a barbárie do
homem e da terra. (VARNHAGEN, 1948, vol I:15).3

3 Para Varnhagen, em “qualquer país, a povoação só toma o devido desenvolvimento quando os


habitantes abandonam a vida errante ou nômade, para se entregarem à cultura ou aproveitamento da
terra com habitações fixas” Em outras palavras, a ordem colonial justificaria a destruição da ordem
37
A imagem do sertão deserto não se confinou no período colonial,
atravessou o tempo e chegou aos cronistas contemporâneos, que muitas
vezes viam no semi-árido um continente bárbaro, ainda impenetrável e
estéril à reprodução dos sistemas produtivos ocidentais. Em um trabalho do
início dos anos setenta, relato final de importante pesquisa antropológica,4
Donald Pierson, discutindo a situação dos povos históricos tapuia,
relativizava o potencial de sustentabilidade do vale do rio São Francisco:
As origens dos diversos povos indígenas que habitavam o vale do São Francisco
ao tempo do contato europeu remontam à história desconhecida, o caráter semi
árido de grande parte da área, suas secas periódicas e sua deficiência em vegetação
natural comestível, tornaram improvável que jamais tivesse sido grande o número
da população aborígine desta parte do continente Sul Americano. (PIERSON,
1972, vol. I:26).

Fiando-se em informações de pesquisadores como Spix e Martius,


John C. Branner, Carlos Ott, Hohental Jr., e em suas próprias observações
de campo, Pierson enumera um grande número de sítios arqueológicos que,
segundo ele próprio, “sem dúvida provêm dos antigos aborígines”. No
entanto esta afirmação era uma contradição com a sua leitura de sertão,
porque estes sítios arqueológicos, tão difundidos, são um registro material e
gráfico da larga ocupação deste espaço desde tempos pré-históricos.
William. D. Hohenthal Jr., em um texto célebre sobre os povos indígenas
do São Francisco, (HOHENTHAL, 1960:37-71.) resultado da mesma
pesquisa de Pierson, ilustra bem o sentimento do sertão deserto. A exemplo
dos escritores coloniais, reproduz a imagem de esterilidade da terra, que lhe
nega a possibilidade de abrigar equilibradamente grandes contingentes
populacionais antes da chegada dos portugueses. O autor assegura que os
vegetais comestíveis em estado selvagem são raros, e continua, “os que
existem aparecem só em curtos períodos. É duvidoso, dada a escassez de
caça, que esta região tenha jamais abrigado grande população”. Hohenthal
insiste na idéia, que vai se apresentar como peça-chave na construção de seu
argumento para justificar a baixa densidade populacional dos índios do rio
São Francisco:
As tribos que habitavam a região restringiram-se, principalmente ao vale do rio
São Francisco e as margens dos grandes confluentes onde podiam pescar, pois
desses povos nem todos os grupos eram horticultores (...) Na realidade, a maior
concentração dos índios do Nordeste, no período de conquista, parece ter sido ao
longo da costa mais fértil. (HOHENTHAL, 1960:37).

nativa, pois a civilização só se completaria quando os povos nativos absorvessem o padrão das
sociedades ocidentais.
4 Esta mesma pesquisa contou com a participação do antropólogo William D. Hohental Jr. Que

escreveu nos anos 60, importante relatório sobre os índios do São Francisco, As tribos indígenas do
médio e baixo São Francisco publicada em síntese na Revista do Museu Paulista.
38
Ao contrário da idéia defendida por Hohental, os registros
arqueológicos e históricos mostram-nos que o semi-árido abrigou uma
considerável massa populacional. Os textos coloniais não negam a grande
densidade demográfica nativa nos sertões, nem registram áreas do semi-
árido, desabitadas ou estéreis; tampouco se encontram evidências de
concentração demográfica nativa as margens do grande rio São Francisco,
como enxergava Hohenthal. Os cronistas coloniais são unânimes em indicar
o inverso, muitas vezes adjetivando os sertões como ‘infestados’ por
‘bárbaros selvagens’, principal embargo para expansão dos criatórios de
gado, da fé cristã e da vida civilizada.
Percebe-se nos autores modernos a idéia da decadência do nativo,
muitas vezes invocada para justificar a pobreza, abandono e semi-barbárie
em que os mestiçados sertanejos se encontram mergulhados. Noutros
momentos transparece uma expectativa frustrada quanto ao nível cultural
dos povos nativos do vale do rio São Francisco. Em alguns casos nos
deparamos com comparações depreciativas com as “altas culturas” andinas
e meso-americanas. “Não havia cidades com grandes populações e uma
longa história anterior ao contato europeu, tal como existiram no Peru, no
México e em outras partes das Américas”, registrou Pierson. (PIERSON,
1972, vol:227). Esta frustração já havia levado Gilberto Freire ao mesmo
tipo de comparação com culturas africanas. Descrevendo a experiência
colonial portuguesa no Atlântico Sul, especialmente nas terras que mais
tarde seriam conhecidas como Brasil, o autor de Casa Grande e Senzala
registrou:
A terra e o homem estavam em estado bruto, suas condições de cultura não
permitiam aos portugueses intercurso comercial que reforçasse ou prolongasse o
mantido por eles com o Oriente, nem reis de Cananor, nem Sobas de Sofala,
encontraram os descobridores com quem negociar, apenas Morubixabas e
Bugres. (FREIRE, 1997:155).
Estas posições refletem um pensamento baseado na premissa
equivocada de que culturas nativas seriam, em uma escala linear, menos
“importantes” que as ditas “altas culturas”. A falha desta lógica reside na
inabilidade dos analistas em perceber as sociedades de caçadores coletores
como sistemas em equilíbrio com as demandas do seu meio ambiente, e
resultantes de variados processos adaptativos e complexas soluções de
abastecimento, sedimentados ao longo de milênios, e como tais
absolutamente coerentes com as exigências do semi-árido.
À imagem da barbárie do homem e da terra ajuntava-se e mesclava-
se a imagem genérica. Não se conheciam os limites da vasta hinterlândia que
cobria o semi-árido. O sertão genérico passa a ser descoberto à medida que

39
as frentes coloniais avançam em território tapuia e se estabelecem,
ocupando micro sistemas hidrográficos formados pelas bacias de rios e
riachos. Desvendam-se os sertões, nomeiam-se seus sub-espaços, seguindo
a cronologia da expansão, e constrói-se a geografia da conquista. Assim
surgem os sertões do Arabó, das Jacobinas, de Rodelas, do Piauí, do São
Francisco e outros tantos mais. Mas se a geografia da conquista desvenda e,
com o passar dos anos, confere identidade ao sertão, o mesmo não ocorre
com o Tapuia. O contato e o conhecimento destes índios não ajudou muito
a desfazer a imagem genérica que se reproduz historicamente e chega aos
nossos dias, transfigurada na figura do caboclo e do mestiço. O relato dos
escritores coloniais, especialmente dos missionários, selaram a união entre
as noções de sertão e barbárie, resultando deste casamento o senso comum
de que as regiões semi-áridas não conquistadas situadas atrás da linha
costeira, seriam domínio de uma imaginária horda étnica conhecida
genericamente como Tapuia. No que pese o esforço dos etno-historiadores
brasileiros em distanciar-se, o tanto quanto possível destas imagens
estereotipadas, percebe-se a nível de síntese, a resistência do senso comum
que traduz o sertão como espaço desértico e mono-étnico. A simplificação
descritiva torna-se especialmente visível quando os paradigmas históricos
são confrontados com os modelos arqueológicos que admitem muito mais
diversidade e complexidade que aquela enxergada na história, de tendência
simplista e genérica.As fontes são omissas quanto à descrição dos povos
nativos do sertão. Suas formas de expressão cultural foram registradas sob
forte apelo ideológico, dando vazão ao etnocentrismo dos cronistas dos
séculos XVII e XVIII, que ampliaram o imaginário da barbárie,
descuidando das particularidades da vasta diversidade contida na apreensão
genérica dos Tapuia.

40
2. O Tempo e o Espaço Tapuia.
Os povos indígenas estão presentes no São Francisco há pelo
menos nove mil anos (MARTIN, 1997:70), como testemunham os
numerosos sítios arqueológicos associados a grupos caçadores encontrados
nas bacias dos rios Pajeú, Moxotó, Ipanema, Salitre, e no sudoeste do Piauí.
(MARTIN, 1998:13).
A arqueologia desta parte do rio de São Francisco e regiões
circundantes define três horizontes culturais, a saber: 1 Extrativista5
evidenciado em restos de povos nômades, ou seja, aqueles extremamente
dependentes da demanda espontânea do meio-ambiente, portadores de
economia baseada na coleta e em complexas estratégias de abastecimento
que incluem migrações sazonais; 2 Semi-extrativistas, ou semi-nômades de
economia mista que se comportavam de forma semi-dependente das
demandas irregulares do semi-árido, e se serviam acessoriamente do cultivo
de alguns vegetais para balancear o abastecimento grupal; 3 Agricultores
sedentários que possuíam economia predominantemente dependente do
cultivo da terra mas utilizavam a caça e coleta como complemento protéico,
portanto, mais estáveis no que diz respeito às necessidades de
abastecimento. Eram, em geral, portadores de elaborada tecnologia
ceramista, marca evidencial dos povos agricultores.
Este modelo situa, de maneira inequívoca, o semi-árido como
domínio predominantemente extrativista, mas também situa positivamente
neste macro-domínio, áreas habitadas por povos agricultores, concentradas
em nichos protegidos tais como a Serra do Araripe e Serra de Dois Irmãos,
contrafortes da Serra da Borborema e cabeceiras do rio Preto e do rio
Grande do Sul, no extremo oeste do Sertão de Rodelas. (NASCIMENTO,
1991 143-207).

5 O termo extrativista tem sido utilizado modernamente na língua portuguesa para identificar métodos
produtivos baseados na coleta de produtos naturais não cultivados sem a preocupação com a
conservação de espécies ou do meio-ambiente. Entretanto, o termo também foi consagrado, noutra
via, pela literatura antropológica como conceito atribuído especificamente a sociedades
contemporâneas, portando assim, uma carga semântica distinta da que ora se pretende dar. Os outros
conceitos históricos disponíveis tampouco enquadram seus enunciados no sentido que nossa
descrição pede, assim, sem prejuízo ao conceito antropológico, se usa aqui o termo extrativista para
categorizar aquelas sociedades nativas, históricas ou pré-históricas, que viviam do aproveitamento de
recursos naturais, desvinculados dos sistemas produtivos coloniais.
41
As notícias mais remotas sobre os tapuia e os câmbios em sua
ordem espacial remontam ao período pré-colonial e sugerem que diversos
pequenos povos caçadores coletores teriam sido expulsos do litoral
nordestino, pelo avanço dos tupi em suas grandes migrações. (METRAUX,
1927:1-45). Estas hipóteses vem sendo levantadas de longa data, baseadas
principalmente na tradição oral destes povos, colhidas por autores como os
padres Nóbrega e Gândavo, entre outros, todavia, a principal delas é a do
explorador e senhor de engenho, Gabriel Soares de Souza, que nos deixou
um dos mais complexos relatos sobre o Brasil quinhentista, talvez também,
o mais reproduzido mito difusionista dos povos tapuias, no qual se registra
uma remota ocupação permanente dos “tapuia” na costa da Bahia, de onde
teriam sido expulsos pelos povos agricultores do litoral. Esta versão
recuperava a visão edênica da expulsão do paraíso, na qual os maus – os
tapuias – eram exilados para terras de provas e privações do sertão,
enquanto conservava os índios bons – os túpicos mansos – nas terras de
abundância do litoral.
Os primeiros povoadores que viveram na Bahia de Todos os Santos e sua
comarca, segundo as informações que se têm tomado dos índios muito antigos,
foram os tapuias, que é uma casta de gentio muito antigo, de quem diremos ao
diante em seu lugar. Estes tapuias foram lançados fora da terra da Bahia e da
vizinhança do mar dela por outro gentio seu contrário, que desceu do sertão, à
fama da fartura da terra e mar desta província, que se chamam tupinaés, e fizeram
guerra um gentio a outro tanto tempo quanto gastou para os Tupinaés vencerem
e desbaratarem aos tapuias, e lhos fazerem despejar a ribeira do mar, e irem-se
para o sertão, (...) e assim foram possuidores desta província da Bahia muitos
anos, fazendo guerra a seus contrários com muito esforço, até a vinda dos
portugueses a ela, dos quais Tupinambás e Tupinaés se tem tomado esta
informação, em cuja memória andam estas histórias de geração em geração.
(SOARES de SOUZA, [1587], 1987:299-300).

Esta notícia colhida por Soares de Souza entre os Tupinambás e


Tupinaés, dá suporte a diversas narrativas que aceitam o modelo de uma
interiorização geral dos povos tapuias, induzida pelos povos túpicos. Ocorre
que, para aceitar esta versão, nós nos obrigamos a creditar terem os ditos
povos tapuia, em algum momento de sua história, dominado
permanentemente territórios costeiros do Brasil, e por conseguinte, deixado
as marcas de sua economia extrativista. Os traços arqueológicos de uma
presumida ocupação massiva de povos caçadores coletores não foram
encontradas no litoral.
Os registros pré-históricos contudo, mostram-nos exceções, nas
quais alguns sítios de grupos portadores de economia extrativista são
registrados fora de sua área de ocupação tradicional no semi-árido,
notadamente restos de assentamentos pré-históricos localizados nas dunas
42
no litoral do Rio Grande do Norte, e outros dois acampamentos
temporários evidenciados no agreste pernambucano. (MARTIN, 1998,
vol.I:9-42).6 Estas ocorrências são suficientes para confirmar a ocupação
permanente e extensiva destes povos na faixa litorânea no nordeste e
agreste pernambucano.7 Este raciocínio não quer desqualificar as versões
oriundas de tradição oral dos nativos, mas pede uma análise mais cuidadosa
que permita observar, de forma conjugada e complexa, as fontes míticas ao
lado dos dados históricos, como veremos adiante.

O genérico tapuia
A divisão em classes dos grupos humanos históricos, habitantes
nativos do Nordeste do Brasil colonial, foi uma preocupação presente,
desde os primeiros contatos no litoral. Contudo, não se pode falar com
justiça em classificação, senão em observações genéricas sorvidas ao sabor
da intuição do senso comum colonial.
O século XVI foi o século do litoral, do estabelecimento das bases
coloniais da economia agro-açucareira, apoiada principalmente na força de
trabalho compulsório dos nativos falantes de língua túpica, habitantes da
costa. Neste momento a ação catequética assume papel decisivo, atuando no
reconhecimento, atração e redução da população nativa habitante da floresta
tropical que passa a ser adjetivada genericamente como “brasileiros” ou
“brasilianos”, qualificativo gerado da associação que faziam os europeus dos
‘índios mansos’ da costa ocupados do corte e processamento inicial do pau-
brasil.8 A estes povos do litoral – assimilados, conhecidos e aliados dos
portugueses – passa a ser associada a imagem do ‘amigo’ útil à civilização.
6 Segundo Gabriela Martin, “a presença de artefatos líticos da Tradição Itaparica em sítios do litoral,
abre uma nova perspectiva ao estudo desse horizonte cultural, considerado tradicionalmente, como
exclusivo de grupos étnicos adaptados ao Semi-árido sertanejo”. A autora, em outras publicações, se
refere também aos sítios dunares no Rio Grande do Norte trabalhado por Paulo Tadeu de
Albuquerque, in (MARTIN, 1997:146-149); Os sítios do agreste Pernambucano são: Chã do Caboclo,
escavado por François Gaston Larroche em Taquaritinga do Norte, Pernambuco, datado em 8.000,
B.P. (LARROCHE, 1991); e Furna do Caboclo, escavado por Jeanete Dias nos municípios de Brejo da
Madre de Deus. (MARTIN, 1997:74-83).
7 A exceção registrada no litoral norte-riograndense pode justificar-se por suas condições ecológicas.

Na costa potiguar, e até um pouco mais ao norte, atingindo parte do litoral cearense, a região semi-
árida e a caatinga avançam quase até o limite do mar, reduzindo a zona úmida da mata a uma exígua
linha de poucos quilômetros de largo.
8 “No Brasil, primitivamente, só havia uma profissão: a de ‘brasileiro’. Depois apareceu a de

pedreiro, carpinteiro, mestre de açúcar”. (SOUZA, 1939). Eduardo Hoornaert faz um apanhado
sobre o termo: “brasileiros eram aqueles que recolhiam pau-brasil para Portugal (...) os habitantes da
terra se denominavam até o início do século XIX pelas regiões e origem: baianos ou paulistas ou
mineiros ou pelo nascimento: Índios, Brasis, Mazombos, Crioulos, Mamelucos, Cafusos, Mulatos, Negros. O uso
comum da terminologia “brasileiro” no sentido atual provém da época da independência. Durante
43
Instalada a frente colonial do litoral, os interesses da empresa da
conquista vão se voltando para posições cada vez mais ocidentais, todavia,
até a segunda metade do século seguinte, não se conhecia muito além das
fronteiras da floresta tropical; a terra e o homem do sertão jaziam
incógnitos. Na ausência de conhecimento sólido sobre este universo
encoberto, passou a valer a imagem aterrorizante, forjada no imaginário dos
exploradores, caçadores de escravos que a herdaram dos tupis da costa,
tradicionais inimigos dos povos do sertão.9
As tentativas de categorização para os povos nativos terminavam,
no mais das vezes, por espelhar o senso comum colonial de um genérico
tapuia para as áreas interiores do nordeste brasileiro em contra-ponto com
os tupis do litoral. Pero Magalhães Gândavo registrou em 1576 o que se
sabia sobre os naturais do sertão do Brasil adentro:
Ainda que estejam divididos, e haja entre eles diversos nomes de nações, todavia
na semelhança, condição, costumes, e ritos gentílicos, todos são uns; e se em
alguma maneira diferem nesta parte, é tão pouco, que se não pode fazer caso
disso, nem particularizar cousas semelhantes entre outras mais notáveis, que
todos geralmente seguem.(GÂNDAVO, [1576]. 1995:99).
Após fazer um apanhado geral das etnias conhecidas habitantes do
litoral brasileiro, Gabriel Soares de Souza, passa a descrever o pouco que se
ouvia dizer sobre os nomeados povos Tapuia. A idéia geral em 1587, era a
de que seriam estes, uma ‘unidade de castas’ que ocupavam o território
desde o Rio da Prata no Extremo Sul até o Amazonas nos pontos mais
setentrionais do Brasil, então conhecido. Diz o cronista:
Tapuias, que é o mais antigo gentio que vive nesta costa, do qual ela foi toda
senhoreada, desde a boca do Rio da Prata até a do Rio das Amazonas, como se vê
do que está hoje povoado e senhoreado deles; porque da banda do Rio da Prata
senhoreiam ao longo da costa mais de cento e cincoenta léguas, e da parte do rio
das Amazonas senhoreiam para contra o sul mais de duzentas léguas e pelo sertão
vêm povoando por uma corda de terra por cima de todas as nações do gentio

todo o período Português, brasileiro é quem ‘faz brasil’ na “costa do pau-brasil’, Isto é: está engajado na
derrubada, no corte ou no transporte do pau-brasil”. (HOORNAERT, 1992, vol. II:32). Francisco
Adolfo Varnhagen registrou: “Essas gentes vagabundas que, guerreando sempre, povoavam o terreno
que hoje é do Brasil, eram pela maior parte verdadeiras emanações de uma só raça ou grande nação;
isto é procediam de uma origem comum, e falavam dialetos da mesma língua, que os primeiros
colonos do Brasil chamam de Geral, e era a mais espalhada das principais de todo este continente”
(VARNHAGEN, 1948, vol I:16).
9 Sobre as imagens da barbárie enquanto instrumento ideológico a serviço do projeto colonial

português ver: (RAMINELLI, 1996). Sobre a construção dos genéricos ver Beatriz Goes Dantas,
José Augusto L. Sampaio, Maria Rosário G. de Carvalho. (DANTAS et alli,1992). Ver ainda o
trabalho de Mario Maestri Filho, “Jesuítas e Tupinambás: A catequese impossível” (MAESTRI
FILHO, 1997).
44
nomeadas, desde o Rio da Prata até o das Amazonas. (SOARES de SOUZA, [1587].
1987:338)

Esta descrição que incluía como tapuia todos os povos não falantes
do tupi, era marcada pela imprecisão e pela falta de informação segura como
o próprio Soares de Souza alertava:
Corre esta corda dos tapuias tôda esta terra do Brasil pelas cabeceiras do outro
gentio (os povos túpicos), e há entre êles diferentes castas, com mui diferentes
costumes, e são contrários uns dos outros (...) são tantos e estão tão divididos em
bandos, costumes e linguagem, para se poder dizer deles muito, era necessário de
propósito e devagar tomar grandes informações de suas divisões, vida e
costumes. (SOARES de SOUZA, [1587]. 1987: 341).
A investigação pretendida pelo explorador nunca se deu, e esses
povos permaneceram desconhecidos até a segunda metade do século XVII,
quando as frentes de coloniais avançam no semi-árido, e passam a produzir
os primeiros conflitos de contado. Graças à natureza arredia e contínua
resistência a estas frentes de expansão, os povos do sertão foram
acumulando à sua imagem qualificativos contrários, tais como ‘brabo’ ou
‘indômito’ que, quando confrontada com uma outra desenvolvida para os
povos do litoral – ornada com adjetivos do tipo ‘mansos’, ‘domésticos’ –
resultava na projeção altérica do “outro”, o bárbaro.10
O inglês Cuthbert Pudsey, comerciante radicado em Pernambuco na
primeira metade do século XVII, é o autor de um relato pouco conhecido
no qual registra observações coletadas no nordeste brasileiro no período
entre 1629 e 1640.11 Pudsey deixou-nos um exemplo clássico da dualidade
do bom e do mal selvagem encarnado no binômio tupi x tapuia:
Este País ... foi povoado desde tempos imemoriais por selvagens,... uns chamados
tapuia e outros brasileiros. Os tapuia são seres de estranha desumana natureza,
por isto não são passíveis de serem colocados abaixo de sujeição, ou dentro de
qualquer forma regular de convivência, sempre mais aptos a destruir que a plantar
ou armazenar ... são exímios lançadores de dardos bem como atiradores de arcos,
vivem continuamente caçando animais selvagens nos matos, comendo peixes,
veados, mel silvestre, tatus, tudo consomem sem se preocuparem com sal,
mantém conversação íntima com o demônio e apreciam carne humana ... não
sabemos dizer quantos são eles, pois estão fora do país, quer dizer, no interior,
num lado e noutro do rio de São Francisco, dividem-se em aldeias, as quais
entendo serem famílias de seus filhos, uma aldeia deverá abrigar no máximo de
400 a 500 pessoas ... mais que isto eu não posso dizer sobre este povo porque não

10 Sobre a gênese e função colonial dos genéricos ver: Pedro Puntoni, (1998b). “Tupi ou não tupi ?: uma

contribuição ao estudo da etnohistória dos povos indígenas no Brasil colônia”. Ver ainda o estudo de Cristina
Pompa (2001). Religião como tradução Missionários, Tupi e “Tapuia”no Brasil Colonial e Ricardo Medeiros
(2000). A redescoberta dos outros: Povos indígenas do Sertão Nordestino no período colonial.
11 Sobre Pudsey ver artigo de José Antonio Gonsalves de Mello “O inglês Pudsey em Pernambuco”

publicado e no Diário de Pernambuco, edição de 19 de novembro de 1950.


45
sei até onde eles se estendem, aqui dizem ser a maior parte do país... os brasileiros
(povos túpicos) são os verdadeiros nativos e tomaram seu nome deste pais. São
muito industriosos para vida, suas esposas igualmente, plantam e colhem algodão,
fiam e tecem redes de dormir. São maravilhosos, doces e amigáveis uns para com
os outros, não possuem haveres, mas distribuem o que tem com seus pares, e
estão sempre disponíveis para qualquer um deles. (BN, n° I-12, 3 n° 17).
Pudsey, a exemplo de Gabriel Soares de Souza, acreditava que os
tapuia tinham sido os primeiros povoadores do Brasil, e destacava: eram
portadores de uma “estranha e desumana natureza” que não lhes permitia
sujeição. Eram extrativistas, numerosos e desconhecidos. Por sua vez para
os brasileiros12 – povos do litoral – Pudsey reservou adjetivos mais amenos,
destacando-os como doces, amigáveis, afáveis, conhecidos, agricultores e
industriosos ao modo ocidental.
Ambrósio Fernandes Brandão, autor dos Diálogos das Grandezas do
Brasil de 1618, contemporâneo do mercador inglês Cuthbert Pudsey, e
igualmente morador das fraldas do mar, oferece um relato, em
determinados trechos evidentemente aparentado ao de Pudsey, de forma
que se pode sugerir como hipótese de trabalho que pelo menos se
conheciam os textos, ressalvando-se ser o texto do inglês mais reduzido e
posterior ao de Ambrósio Fernandes. Na descrição de Brandão os tapuia
ocupam a ultima parte do texto e aparecem indistintamente como
extrativistas. Diz Brandônio:
Estes Tapuia vivem no sertão e não tem aldeias nem casas ordenadas para
viverem nellas, nem menos plantam mantimentos para sua sustentação porque
todos vivem pelos campos, e do mel que colhem das arvores e as abelhas lavram
na terra, e assim da caça, que tomam em grande abundancia, pela frecha, se
sustentam, e para isto guardam esta ordem: vão todos juntamente em cabilda
assentar seu rancho na parte que melhor lhes parece, alevantando para isso
algumas chupanas de pouca importância, e alli vão buscar o mel e caça por roda,
por distancia de duas ou três léguas. E enquanto acham esta comedia, não
desamparam o sitio mas, tanto que ella lhe vai faltando, logo se mudam para
outra parte, aonde fazem o mesmo; desta maneira vão continuando com sua
vivenda sempre no campo, com mudar sítios, sem se cansarem em lavrar nem
cultivar a terra; porque a sua frecha é o seu verdadeiro arado e enxada, a qual
também não usam, juntamente com o arco, como faz o demais gentio; porque
com ella tomada sobre mão, com a encaixarem em uns canudos que no dedo
trazem, fazem tiros tão certeiros e com tanta força que causa espanto, de modo
que case nunca se lhe vai a caça que lançam a frecha por esta via. E eu vi os dias
passados a um deste fazer um tiro sem arco, que alem de dar no alvo a que
atirara, passou por uma grossa porta. Também são na falla differentes; porque o
demais gentio os não entende, por terem a linguagem arrevesada, trazem o

12Pudsey registra equivocadamente que os povos da costa obreiros do Pau-Brasil teriam tomado de
empréstimo seu nome no o nome do país. Sobre o nominativo brasileiro ver nota 8 deste capítulo.
46
cabello crescido como de mulheres, com serem geralmente tão temidos de todo o
mais gentio que é bastante um só Tapuia para fazer fugir muitos; e assim entram
mui poucos por grandes aldeias mui confiados e dellas tomam tudo o que
querem, sem ninguém lhes vir a mão; e ainda as próprias mulheres lhes deixam
levar tão grandissimo medo lhes tem, cobrado. (BRANDÃO, [1618]. 1966:288-289;
Códice Vossius BUL, Voss. Var códice 14 L.Q.).

Quase meio século depois de Ambrósio Fernandes Brandão, o


padre Simão de Vasconcelos, em teoria melhor informado das coisas do
sertão pelos seus confrades, que então já se adentravam pelo interior do
continente, repete a mesma idéia genérica:
Ainda que todos estes bárbaros não sejam diferentes entre si em costumes e ritos,
e por isto todos são os mesmos e se chamam tapuias, contudo tanto pelas suas
aldeias em que moram, como pelos principais que obedecem, distinguem-se por
apelidos (cognominibus). (Anua de 1656. ARSI, Bras.3(1)300).
Noutro escrito, aprofundando-se mais ainda na lógica maniqueísta,
o padre Simão abstrai a noção que vai se tornar uma marca registrada na
documentação respeitante aos índios brasileiros, a condição de Brabo e
Manso, já presente no relato de Pudsey; diz sua crônica:
Todos os índios quantos há no Brasil, vemos que se reduzem a índios mansos, e
índios bravos. Mansos chamamos, aos que com algum modo de república, (ainda
que tosca) são mais tratáveis, e perseveráveis, entre os portugueses, deixando-se
instruir e cultivar. Chamamos bravos, pelo contrário, aos que vivem sem modo
nenhum de república, são intratáveis, e com dificuldade se deixam instruir.
(VASCONCELOS, [1663]. 1977, Vol. I:110.)
A lógica binária sedimentou a oposição entre mansos e brabos, tupi
versus tapuia, litoral versus sertão e, com o passar dos anos era reproduzida
como verdade tácita. Na virada do século, mesmo já estando os sertões
interiores quase de todo devassados, seja pelos mineradores, seja por
pecuaristas ou missionários, os tapuia permaneciam abaixo da categoria
contraditória ao interesse colonial. O capuchinho Bernard de Nantes
menciona a idéia em sua relação, comparando os nativos brasileiros.
Segundo sua classificação os tapuias, que habitavam o interior a 200 e 300
léguas da costa, viviam ‘obscurecidos pela paixão dos sentidos’. Já os índios
costeiros que mantinham contato mais freqüente com os brancos, eram
‘mais humanos’, diz ele: “os índios que estão mais próximos do mar são
mais humanos, devido à comunicação que eles têm com os brancos que
habitam os locais marítimos.”(NANTES, [1702])
O padre Fernão Cardim descreve os tapuia em 3 tipos deixando-nos
perceber uma ‘escala de civilidade’ que cresce de acordo com a proximidade
do litoral ao passo que se barbariza em direção ao interior. (CARDIM,
1938:174-181). Esta ordem vai ser reproduzida anos mais tarde por Garpar

47
Barleu, que invoca Tácito para fortalecer seu argumento de que “a orla do
oceano se vive com mais doucura” (BARLÉU, 1974:24-25).
Os exemplos deste pensamento são abundantes, podem ser
encontrados como um incipit comum que permeia e introduz a crônica
colonial. No século XVIII o discurso permanece quase que imutável,
ressalvado o caso de incomum lucidez do Frei Antônio de Santa Maria
Jaboatam, que revela a consciência da diversidade que abrigava o termo
tapuia; diz Jaboatam: “tapuia não é nome propriamente de raça ou nação, e
sim de diferença, valendo tanto como dizer contrário”. (JABOATAM,
1979/1980 [1761]) José Martins Pereira d’Alencastre na sua “Memória
Cronológica, histórica e corográfica da Província do Piauí” contestava
Jaboatam: “entendemos com outros, que a denominação de Tapuia
pertence a uma nação distinta das outras em índole, em hábitos, e
costumes”, opinava D’Alencastre. (D’ALENCASTRE, 1857: 5-164).
As primeiras classificações sistemáticas para os povos do semi-árido
só aparecem no século seguinte com o trabalho dos viajantes naturalistas.
Neste momento, a lingüística e a etnografia passam a ocupar o lugar até
então ocupado pelo senso comum. Naturalistas como D’Orbigny e Martius,
pavimentaram o caminho por onde os observadores contemporâneos
estabeleceram as classificações lingüísticas atuais.13
No século XX ainda persistia muita confusão sobre o assunto.
Algumas tentativas de classificação buscaram estabelecer uma unidade no
quadro fragmentário de informações etnográficas existentes para os povos
históricos das áreas interiores do Brasil. (HOHENTHAL Jr. 1960; Pinto,
1938; NIMUENDAJU, 1978). O amadurecimento da investigação histórica
e o surgimento do interesse etnográfico, passaram a exigir dos autores,
dados cada vez mais precisos sobre os índios do Brasil. Neste contexto a
disciplina lingüística passa a ser diferencial, separando os observadores
empiristas daqueles de sistemática científica.
Ocorre que nem sempre os dados históricos encontravam paralelo
com os lingüísticos, resultando daí a confusão descritiva que notara Rodolfo

13 Alcides Dessalines D‘Orbigny classificou os povos nativos da América Meridional abaixo das

seguintes classes: Pampeana, Andoperuana e Brasílio-Guarani, encapsulando os nativos brasileiros


quase que totalmente na última categoria, que segundo seus críticos, estava influenciada pelo
fenômeno da tupimania. (D’ORBIGNY, 1976). Martius utilizou o critério lingüístico para dividir o
universo nativo brasileiro nos seguintes grupos: Tupi e Guarani; Jê ou Tapuia; Guck; Grens; Pareci;
Goitacás; Aruaque; Lenguas ou Chiriguano; e grupos em vias de integração. Sua classificação serviu
de base para as modernas classificações que preserva ainda algumas de suas compartimentação em
troncos, mesmo quando a ordem de muitas das famílias e línguas contidas tenham cambiado e lugar.
Sobre autores atuais que ajudaram a estabelecer a classificação lingüística usada hoje no Brasil, ver:
(MELATTI, 1987 e Rodrigues, 1986).
48
Garcia, (MAMIANNI, [1698]. 1942:XXI-XXII) marcada pela profusão de
quadros etnográficos pouco confiáveis,14 geralmente baseados em dados de
diferentes matizes, portadores de pouca objetividade e muitas vezes, o que é
mais grave, sem base factual histórica que os sustentasse. Estevão Pinto
dedicou-se demoradamente à questão na tentativa de encontrar equilíbrio
neste campo instável; sugeria que o critério lingüístico fosse relevado em
favor do sociológico:
A verdade é que nem todos os distritos lingüísticos superpunham-se exatamente a
áreas de um mesmo tipo cultural, por isto que os fatos complexos não se apresentam
irrevogavelmente coesos ou idênticos no seio das diferentes famílias que
constituem o grupo lingüístico, e não mostram-se com as mesmas características
em grupos lingüisticamente distantes uns dos outros. Parece mesmo que, mesmo
no caso do Brasil, o critério sociológico deve sobrepor-se ao critério lingüístico.
(PINTO, 1938. vol I:152-153).

Em 1959 Eduardo Galvão inspirado na escola antropológica


americana, propôs a divisão dos povos indígenas brasileiros em áreas
culturais, compartimentadas em 11 regiões, aglutinando corpos mais ou
menos homogêneos por suas manifestações culturais. A divisão de Galvão
tentava importar a noção de área cultural e oferecer complexidade ao
quadro classificatório que então se baseava, quase que exclusivamente, no
critério lingüístico.15 Contudo, a aplicação da noção encontrava embargo
pela falta de dados seguros sobre os povos nativos, notados historicamente
em situações de reordenamento colonial, abrigados em reduções que
coletivizavam indistintamente as etnias. Galvão acentuava ainda que as
categorizações até então vigentes, misturavam grupos de diversos graus de
‘aculturação’ e mudança cultural. Desta forma, antes de se delinear qualquer
esboço classificatório, seria necessário identificar previamente o status
histórico tendo em vista as situações de contato e os resultado ‘aculturativo’,

14 Rodolfo Garcia registrou sua opinião na nota introdutória Catecismo da doutrina christãa na língua
brasílica da nação Kiriri. Composto pelo p. Luiz Vincencio Mamianni, da Companhia de Jesus, Missionário da
Província do Brasil; Varnhagen, que não escondia seu desprezo pelos nativos, criticava certa feita a
incúria dos historiadores induzidos “em anomalias e despropósitos, por não se ter prevenido” em
interpretar as diferentes grafias em que se apresentavam os denominativos desses povos, diz ele:
“cumpre, pois, não ligar muito a toda essa interminável nomenclatura bárbara, que alguns autores
apresentam, sem o menos critério e sem advertirem que as vezes contam a mesma tribo por duas ou
mais, se cada um dos visinhos de diferente lado a designava por diferente nome ou alcunha,
geralmente por injúria ou vitupério poucas vezes por honra ou apreço”. (VARNHAGEN, 1948, vol
I:26-29).
15 Classificação proposta na IV Reunião Brasileira de Antropologia de 1959, realizada em Curitiba. A

classificação de Galvão premiava a localização conhecida dos povos do começo do século até 1959.
(MELATTI, 1987:43-44) e (DIEGUES Jr. 1977:57-58); (GALVÃO, 1979:193-194).
49
servido-se para isto das categorias definidas por Darcy Ribeiro. (RIBEIRO,
1986:432 e ss).16
No que pese o muito que já foi escrito sobre a divisão histórica dos
grupos humanos nativos habitantes no nordeste do Brasil colonial, até os
anos 90 do século XX, o quadro etno-histórico permanecia elaborado sobre
base lingüística ou etnográfica. Graças a estudos recentes, (DANTAS, et
alli:431-556; PUNTONI, 1998; MEDEIROS, 2000; POMPA, 2001),
assentados em sistemática pesquisa de fontes primárias, revisitadas com um
novo olhar crítico,17 vem sendo recuperada uma significativa parcela da
história pertinente às sociedades nativas que dominavam o semi-árido
nordestino no momento da conquista e seu papel histórico no
estabelecimento da ordem ocidental em seus antigos domínios tradicionais.
Estes estudos também tornaram clara a questão dos genéricos – há
muito sentida,18 mas nunca abstraída de forma satisfatória – que aglutinava
em um bolo amorfo a diversidade étnica dispersa nos sertões interiores, sob
a apreensão indistinta de ‘tapuia’. Levantaram-se os nominativos dos
principais povos da região – ou pelo menos, daqueles que ficaram presentes
no registro histórico – e, com o auxílio de exaustiva pesquisa de fontes
primárias, apontou-se sua localização no plano geográfico. Contudo, pelo
que nos é permitido enxergar, esta nova imagem construída não espelha
mais que uma fração da enorme diversidade étnica que um dia existiu.
Um trabalho pioneiro desta nova história dos índios do Nordeste
foi “Os povos indígenas no Nordeste brasileiro” de Beatriz Goes Dantas,
José Augusto Sampaio, Maria Rosário Carvalho, publicado em 1992, que
buscava esboçar as linhas básicas da história dos povos nativos habitantes
do nordeste. No curso do texto os autores descrevem os tapuia como
“diversos povos adaptativamente relacionados à caatinga e historicamente

16 Darcy definia as seguintes categorias de situação de contato: os grupos isolados formados por
aqueles dos quais se registrava apenas contatos acidentais; intermitentes que mantinham relações
ocasionais com as frentes coloniais; os permanentes que mantinham contatos diretos e permanentes; e
os integrados, aqueles incorporados como mão-de-obra ou produtores especializados.
17 Nova História dos Índios no Brasil. Refiro-me a tendência moderna de observação e crítica

historiográfica influenciada pela escola Americana que fez escola no Brasil com os trabalhos
desenvolvidos por Manuela carneiro da Cunha, John Manuel Monteiro entre outros, bem como do
aporte renovado da antropologia de teóricos como João Pacheco de Oliveira, e ainda do esforço de
grupos como o Núcleo de História Indígena e do indigenismo da Universidade de São Paulo, PINEB
na Bahia.
18 Tapuia também o designativo, utilizado pelos povos do litoral para nomear seus contrários

habitantes do semi-árido, conforme registrou Varnhagen: “o Bárbaro, ou na língua geral Tapuí. Daqui
a idéia dos primeiros colonos transmitida pelos primeiros escritores, e ainda ultimamente por alguns
acreditada da existência de uma grande nação Tapuia; quando tapuia brancos chamavam ao índio aos
europeus que não eram seus aliados” (VARNHAGEN, 1948, vol I:18-22).
50
associados às frentes pastoris e ao padrão missionário dos séculos XVII e
XVIII”. (DANTAS et alii. 1992:433). João Pacheco de Oliveira, em artigo
na Revista Mana critica esta definição, argumentando que ela maneja com
“variáveis de natureza teórica muito distinta dentro de uma moldura que
tem caráter regional e particularizante”. Conclui sugerindo que o eixo
ordenador central deveria situar-se “na história e nas formas de colonização
ou nichos ecológicos e sua capacidade diferenciada de atender às demandas
das culturas e gerar processos adaptativos”. (OLIVEIRA, 1998, 4(1)47-77).
A crítica parece-nos apropriada. As tentativas anteriores de esboçar
a realidade esbarraram na ausência de relatos etnográficos e históricos
precisos, e na simples superposição de modelos lingüísticos às supra-
estruturas culturais, fundamentadas muitas vezes em apreensão genérica.
Ademais há de notar-se que em toda área do circuito missionário, observa-
se um conhecimento concentrado nos povos de fala Cariri, com cuja língua
os catequistas mantiveram contato mais estreito e legaram à posteridade sua
descrição. (MAMIANNI, [1699]. 1887); (MAMIANNI, [1698], 1942);
(NANTES, [1707], 1986). O fato é que a confusão sobre as etnias continua
para esta região, ou melhor, foi transportada do genérico tapuia universal
para outro genérico local Cariri, aparecendo equivocadamente na literatura,
não raras vezes grupos do São Francisco, Paraíba e Rio Grande do Norte
mesclados como Cariri; repetindo, de forma limitada, o fenômeno do
genérico. A este respeito registrou Rodolfo Garcia:
Sob o genérico de Tapuias andaram nos primeiros tempos confundidos com
outros índios que infestavam a região de seu domínio, por isto mesmo ainda hoje
torna-se difícil saber com absoluta certeza, entre tantas alcunhas tribais, quais
eram os de origem Quiriri, quais eram os Caraíbas e os Gês. (GARCIA, 1942:XXI e
XXII).

Foi nas terras dos Cariri e Rodeleiros que os primeiros missionários


instalaram, na segunda metade do século XVII, os postos mais ocidentais
do Nordeste. Mansos, dóceis e mais receptivos que os demais tapuias do
sertão, os Cariri ofereciam melhores condições para o contato e o
estabelecimento do projeto missioneiro. Assim, três décadas depois dos
pioneiros pecuaristas os religiosos se instalaram nas Jacobinas e depois nos
sertões de Rodelas, as primeiras missões jesuíticas do rio São Francisco.
Capistrano de Abreu e Thomas Pompeu Sobrinho destacam os
Cariri como dominantes. (POMPEU SOBRINHO, 1934. Tomo II:289-
305). A exemplo do tupi no litoral, a língua cariri tornou-se a ferramenta
que franqueava aos religiosos a interação com uma fração expressiva dos
habitantes nativos no rio São Francisco, mesmo privando da identidade uma
coletividade de povos a eles não aparentados. É natural que, em razão do

51
mais intenso contato com os conquistadores, o registro histórico, lingüístico
e etnográfico destes povos tenha sido mais efetivo que de outros não
falantes do cariri. Entretanto, o fato de os cariri serem melhor descritos e
discutidos, não nos autoriza a identificá-los como majoritários, ou mesmo
assentá-los numa posição de destaque histórico perante outros grupos do
nordeste. Este pensamento apenas transporta o genérico tapuia para o
domínio do cariri, escondendo uma rica diversidade de povos do semi-árido
que, a seu turno, produziram uma pluralidade de diferentes e ricos
processos históricos que se deram em distintos ambientes e momentos das
frentes de expansão da pecuária e do estabelecimento do processo colonial
no rio São Francisco.
Rodeleiros, Talmachiôs, Pipipães, Guerguês, Umãns, Vouvês,
Amoipiras entre outros grupos participaram intensamente do processo
histórico colonial no São Francisco, ficando porém, muitas vezes eclipsados
pelo destaque dado aos Cariri. Muitos destas etnicidades, por serem menos
refratárias à ação colonial em seus domínios, por não possuírem uma língua
conhecida, acabaram por assumir, no sertão, a condição de espelho altérico,
notadamente com os Cariri, sendo nomeados indistinta e genericamente
como de corso.
Pode-se abstrair dos autores coevos do rio São Francisco, com uma
boa margem de segurança, a presença de uma ocupação espacial inteligente
e equilibrada, regulada por um código rígido de distribuição dos domínios
entre as diversas etnias, respeitadas as formas tradicionais de exploração dos
recursos naturais do ambiente, de acordo com as demandas de cada grupo.
(GUIDON, 1992:40).19 Desta diversidade se podem vislumbrar dois
horizontes culturais básicos para a região: um primeiro horizonte extrativista,
no qual emergem como etnia predominante os semi-sedentários Cariri que
conheciam a agricultura de subsistência20 e, ao seu lado, aqueles nativos
nomeados tapuias de corso, formados por uma pluralidade de povos
extrativistas – em maior ou menor grau, nômades – que partilhavam
equilibrada, mas nem sempre pacificamente, o espaço com os majoritários
Cariri. O segundo horizonte cultural é o formado pelos povos agricultores
portadores de organização comunitária mais elaborada, sobre os quais se
possui informação muito limitada. Antes, portanto, de passar a descrever
aquelas tradições que historicamente foram atribuídas aos Cariri, deixemos

19 Esta circunstância encontra confirmação no registro arqueológico. Segundo Niede Guidon,

“grupos caçadores coletores viviam explorando de maneira equilibrada as múltiplas potencialidades


dos diversos ecossistemas da área.”.
20 Entendido aqui o termo agricultura de subsistência aquela destinada ao abastecimento da célula

familiar, sem acúmulo de excedentes.


52
ver o que se sabe, ou melhor – parafraseando Manuela Carneiro da Cunha –
relativizar nossas incertezas sobre estes povos não Cariri, os nômades e os
sedentários. (CUNHA, 1982:87).

Tapuias de corso.
Um ilustrativo fenômeno se dá no Sertão de Rodelas. Povos de
língua Tupinambá, exilados na margem direita do rio à altura da barra do rio
Grande, ofereceram a mais fina resistência aos missionários e vaqueiros por
quase dois séculos, principalmente aqueles assentados na região do rio
Grande do Sul e os das serras do Araripe e da Ibiapaba. Por seu caráter
arredio são nomeados genericamente como ‘tapuia bravios’, ou ‘de corso’,
enquanto outras nações identificadas como portadoras de economia
nômade são reconhecidas como ‘mansos’, como foi o caso dos Talmaquiôs.
Isto confirma o senso comum registrado pelo padre Simão de Vasconcelos
para os índios do Brasil que os resumia em “índios mansos, e índios
bravos”. Mansos eram chamados aqueles que possuíam algum ‘modo de
república, (ainda que tosca)’ e que eram mais tratáveis, se deixavam instruir
e preservavam as alianças com os portugueses. Os bravos eram os que
viviam sem governo estratificado, ‘modo nenhum de república’, que não se
deixavam instruir nem tratar. (VASCONCELOS, [1663]. 1977, Vol. I:110).
Os diversos povos, não Cariri, de variadas denominações, foram
registrados principalmente nos relatos dos missionários que geralmente
continham informação pobre sobre as áreas de ocupação tradicional, a
dinâmica de redução, relocações. Foram estes grupos, e sua alta capacidade
móbil no espaço hostil da caatinga que se insurgiram nos principais
movimentos de resistência contra as posições coloniais e causaram os
maiores danos aos portugueses, empreendendo um desarticulado processo
de reação, todavia, de grande poder destrutivo. Como reflexo de sua reação,
encontra-se também abundante informação nos registros oficiais e nos
pedidos de ‘mercês’ de pretendentes de terras, onde os aspirantes a
privilégios reais relatavam sucintamente os serviços de “limpeza étnica” e
participação nas guerras contra o gentio bárbaro, com os quais justificavam
os direitos pretendidos.
Os índios de Corso, caçadores-coletores nômades, também
conhecidos como bárbaros, andantes, ocupavam grandes regiões – áreas de
perambulação – uma vez que a economia extrativista exigia migrações mais
extensas a fim de atender as demandas de abastecimento grupais. Não
possuíam mais que instrumentos de pedra, osso ou madeira, úteis na caça e
coleta. Estes grupos, muitas vezes, eram formados por largos contingentes,
53
divididos em pequenos subgrupos, estratégia necessária como forma de
distribuir mais eficientemente as áreas de coleta. Elias Herckmans em 1639,
registrou:
Não têm lugares certos ou aldeias onde morem; vagueiam, ora demorando-se em
um sítio, ora em outro. (...) A gula dos tapuias é tal que, nas suas excursões, eles
não podem demorar-se em um lugar mais de dois a três dias; porquanto, tendo
comido tudo o que há aí, devem ir procurar outros sítios. (HERCKMANS, [1639].
1985, vol.2:99-112).

Os povos extrativistas mantinham um elaborado esquema de


aproveitamento racional do ambiente baseado na rotação de áreas de
perambulação, que dava tempo à restauração natural dos ecossistemas
explorados. Os portugueses não deixaram narrativas destas estratégias para
o rio São Francisco, como fizeram os cronistas holandeses21 para os sertões
setentrionais do nordeste. Entretanto o relato destes últimos pode nos dar
uma boa idéia de como se estruturava a economia destes povos,
evidenciando sempre, a presença de formas de exploração equilibrada da
diversidade ecossistêmica oferecida pelo semi-árido. Johan Niewhof notou
as estratégias de deslocamento coletivo dos tapuia, que incluíam passagens
pelo litoral em determinadas épocas do ano: “entre os meses de novembro,
dezembro e janeiro, quando o caju começava a amadurecer, eles (os tapuia)
vinham para o litoral do país, raros deles eram encontrados no interior.”
André Thevet, nas Singularidades da França Antarctica, oferece também
um bom relato sobre estas estratégias. (THEVET, [1558]:117) A imagem
abaixo representando os tapuias na coleta de caju, ajuda a ilustrar a
informação do alemão Jacob Rabe sobre os tapuia Janduí do Rio Grande do
Norte. Diz Rabe: “Vagueiam à maneira de nômades e não se detêm sempre
em aldeamentos ou territórios fixos, mas mudam de morada conforme a
quadra do ano e da facilidade de alimentação” (BARLEUS, 1974:260).

21 (NIEWHOF, [1649]. 1942:318). (BARO, [1647]. 1979); (MARCGRAVI, [1648]); (HERCKMANS,

[1639]. 1985, vol.2:99-112); (HULK [1635]. (Panfleto encadernado junto com a descrição dos índios
Mohawks 1644, pelo reverendo Johannes Megapolensis, postos na colônia Nova Neerlândia. Este
texto foi traduzido, analisado e publicado por Frans Leonard Schalkwijk sob o título ‘Tapuias no Rio
Grande do Norte no Tempo dos Flamengos’ in: RIAHGP. Vol 58, 1993:305-320). Um bom estudo
sobre os movimentos e intinerários migratórios de abastecimentos dos povos históricos habitantes
do semi-árido está na tese, Religião como tradução Missionários, Tupi e “Tapuia”no Brasil Colonial (Pompa,
2001). Sobre o assunto ver também “Índios do Açu e Seridó” (MEDEIROS FILHO. 1984). Contém
uma interessante compilação das estratégias Tapuias no Rio Grande do Norte.
54
Figura 3 - Tapuia colhendo caju. Xilogravura, 1558.

O clima do sertão, marcado pela má distribuição de chuvas, era


obstáculo ao desenvolvimento de economia dependente de ciclos climáticos
regulares. Contudo a diversidade e complexidade de ambientes permitiam
que os tapuias encontrassem eficientes estratégias para compensar a oferta
irregular dos recursos do sertão. Estes movimentos estão amplamente
registrados nas fontes históricas destacando os deslocamentos coletivos, no
mais das vezes, como estratégia de fuga frente aos efeitos da seca.22 Elias

22A seca, hoje relacionada aos efeitos globais do fenômeno El Niño, particularmente caracterizado
pela má distribuição de chuvas em certas áreas tropicais do planeta, atinge certas regiões mais
55
Herckmans deixou-nos na sua descrição dos tapuias setentrionais,
habitantes entre o território das Capitanias da Paraíba e Rio Grande do
Norte, um registro destas migrações:
Os Tapuias descem muitas vezes de suas terras para as extremas meridionais e os
limites do Brasil, o que sucede principalmente quando os verões são secos, e eles
não encontram bastante alimento em suas terras; pois eles mesmos consideram as
regiões inferiores do Brasil melhores, mais saudáveis e frutíferas do que os lugares
onde habitam, que dizem ser rochosos e mal providos de mantimentos.
A referência as ‘regiões meridionais limites do Brasil’ deve ser
entendida como as fronteiras do Brasil holandês, isto é, as fronteiras
ocidentais das Capitanias do Rio Grande, Paraíba, Itamaracá e Pernambuco
“terras baixas como litoral. (BLAEU Jr, Joannes. Nova et curata Brasília totius
Tabula. Ca. 1680). As áreas meridionais mencionadas por Herckmans, muito
provavelmente, devem ser a região agreste que separa a faixa úmida da mata
do sertão e os contrafortes da serra da Borborema, divisora das águas da
bacia do rio São Francisco. E continua Herckmans na descrição das
“latitudes mais amenas”:
Em suas terras não há gado ou animais que sirvam para alimento, salvo os porcos
selvagens, dos quais apanham alguns de vez em quando. Acrescentam que às
vezes lhes sucede viajar dois ou três dias sem encontrar água, a não ser a que
procede do orvalho da manhã e se junta nos cantos e recantos das penhas.
Também se encontra ali um mel tão espesso e branco como leite, eles o tiram das
árvores, e dele se servem para se alimentar. (HERCKMANS, [1639], 1985:99-112).
George Marcgrave, explorador holandês que excursionou pelo
interior do Rio Grande do Norte em busca das minas de prata, apoiado no
relato de Jacob Rabe, descreve o sertão da Capitania do Rio Grande e
oferece um depoimento bastante positivo sobre a capacidade de sustentação
do sertão, e das estratégias de deslocamento dos Tapuia:
Em direção do Norte, corre para o mar o notável rio mapreucauch, (...) repleto de
porcos aquáticos; em suas margens vagam cabras e avestruzes. (...) A uma
distância de mais de vinte cinco milhas do litoral acha-se o grande lago Bajatagh
com abundância de peixes (...). Atravessa-se o rio Otschunogh, abundante de peixes;
ai encontra-se grande abundância de animais silvestres e frutas. (...). Os selvagens
passam três meses, no decurso de cada ano, alimentando-se com estas frutas, (...)
Aqui nascem figos silvestres em grande abundância, (...) há ainda as raízes, com
que os selvagens fazem pão; chamam-se na linguagem deles Atug, Harag, Hobig,
Engepug (...)(BARLEU, [1648] 1974:269).23

profundamente que outras, e também está relacionado a outros fenômenos climáticos de longo ciclo
estudados pela teoria Ice Age Cf. http://www.sciam.com/2000/0100issue/0100hoffman.html
23 Texto de Georg Marcgrave incorporado por Barleus. Utilizamos aqui a edição brasileira de 1974.

Barlaeus registrou também: “quando trovejava (...) havia abundantíssimas pescarias na lagoa de
56
Cristina Pompa acentua, ainda um pouco reticente, “antes de ser
aquele vagar sem rumo que as outras fontes apresentam, parece obedecer a
um itinerário pré-estabelecido, ligado às estações, e portanto, a
determinados alimentos”. (POMPA, 2001:247). Não resta dúvida quanto à
função destas estratégias de deslocamento grupal. Salvo casos de guerras,
quando os Tapuia migravam em seu ambiente natural, estavam buscando
áreas ecologicamente refeitas, uma vez que sua ação extrativista rapidamente
exauria os circuitos explorados. Esta estratégia foi notada de forma
diferente por diversos autores. Herckmans lembrava que eles não podiam
demorar-se por mais de três dias em um só lugar “porquanto, tendo comido
tudo o que há aí, devem ir procurar outros sítios.” (HERCKMANS, [1639].
1985:99-112).
Os missionários imaginavam suas missões como o espaço fixo
limitado pelas cercas do aldeamento, mas tal qual os demais núcleos
urbanos coloniais, o desenvolvimento da pecuária e o assentamento de
populações em espaços fixos como fazendas e missões criavam novas
demandas de abastecimento alimentar. Para se auto-sustentar, as missões
necessitavam de espaços destinados à produção de víveres para manutenção
dos missionários e dos índios. Esta era uma das justificativas para a
solicitação das terras dos passais24 requeridas junto das igrejas, e as fazendas
e engenhos possuídos pelos jesuítas. Os missionários introduziram o
criatório e a agricultura movidos por força de trabalho dos tapuias, mas
estas não lhes eram atividades culturalmente pertencentes.
Nas ocasiões de seca, quando nas missões faltavam as condições
mínimas de abastecimento os tapuia não hesitavam em as abandonar e
buscar paragens onde pudessem se sustentar. Serafim Leite observou sobre
os Quiriris da aldeia de Saco dos Morcegos, situada em um dos mais áridos
sítios do interior da Bahia: “de caráter andejo a custo se fixavam à terra, e
nas ocasiões de seca, se dispersavam muitos, e nem todos voltavam”.
(LEITE, 1945, vol.V:290). O padre Vieira lembrava em suas ‘Cartas’ as más
condições de sustento deste sítio, em épocas de estio, afirmava: “Por falta
de água e mantimentos só assistiam seis meses do ano, e nos outros seis

Bajatach” Atualmente Piató. Em um fragmento de um diário de viagem ao Ceará, Georg Macgrave


registrou a abundância de caça no Semi-árido. Ver (BOOGAART e BRIENEN, 2003).
24 O Alvará de terras de 23 de novembro de 1700 explicitava a destinação destes espaços: “E aos tais

Párocos se darão aquelas porções de terra, que correspondem aos que ordinariamente tem qualquer
dos moradores que não são Donatários, ou sesmeiros, e que possam ser logradouros das casas, que
tiverem, para que possam comodamente criar as suas Galinhas e Vacas, e ter as suas Éguas ou
Cavalos, sem os quais nenhum poderá viver no Sertão”. Alvará sobre ter cada missão de indígenas
uma légua de terra em quadra. (AHU. [Registro de Provisões] - Códice 95, fl. 91v/92) - Lisboa, 23 de
novembro de 1700. Publicado com alterações e incorreções (ABN, Vol.28, 1906).
57
meses se metiam nos bosques a sustentar-se de caça e frutos agrestes”.25
Esta estratégia mal interpretada levava a conclusões como as do padre João
Moreira, citada por Serafim Leite, na qual ele classificava os Cariri como os
mais “fujões dos índios”.
Está claro que para os tapuias a noção de espaço e mobilidade tinha
um significado distinto daqueles dos missionários. Não se tem notícia de
núcleos nativos permanentes26 no interior; seus assentamentos, mesmo os
dos grupos mais sedentários, sempre foram temporários. (PROUS,
1992:252). Observadores coloniais como o padre Simão de Vasconcelos,
não conseguiam compreender estes êxodos cíclicos, percebendo-os
simplesmente como recusa à doutrina cristã e ao modo de vida ‘civilizado’.
Vasconcelos descrevia os índios como inconstantes, desnudos, pobres,
vagantes e ferozes por natureza, e como tal nocivos ao convívio colonial.
(Ânua de 1656, ARSI, Bras 3(1), 300), (LEITE, 1945, vol. V:271). O que ele
não podia perceber é que nesta aparente desordem e inconstância, residia a
ordem tapuia. Era ela que os conduzia ‘em corso’ por entre ecossistemas
diferenciados como os do Parnaíba, do São Francisco ou o das Jacobinas.
Ambientados milenarmente ao semi-árido, dispensavam matalotagem, o
sertão era sua extensão, na caatinga encontravam com a cumplicidade da
natureza, uma variedade enorme de recursos silvestres que lhes
proporcionava uma dieta rica e diversificada, exigindo-lhes um trabalho
contínuo de coleta ao modo extrativista.
Assim, foram os Orizes Procazes, que depois de aldeados,
retornaram a vida nômade, até que no princípio do século XVIII, inseridos
num acentuado contexto de guerra, aceitaram a redução. 27 Os Orizes foram

25 VIEIRA, Padre Antônio. Cartas do Padre Antônio Vieira, coordenada e anotada por J. Lúcio de

Azevedo, 3 tomos, Coimbra, 1925-1928.


26 Salvo os assentamentos semi-permanentes de comunidades extrativistas especializadas do litoral

(Sambaquis), dos quais se conhecem os restos de alguns assentamentos pré-históricos formados pelo
acúmulo de conchas de mariscos, restos da exploração contínua de áreas estuarinas. Estes sítios
arqueológicos se espalham pelo Brasil em uma área que se estende do litoral do Rio de Janeiro até a
Bahia e estão situados cronologicamente entre 6500 e 500 BP. (PROUS, 1992:252).
27 Serafim Leite não registra a redução inicial dos Porcazes, cita apenas os motivos da resistência

“presença de soldados, vindos de S. Paulo, se deve o haver-se malogrado a catequese dos Orises
Procases, que em 1696-1697 procuravam aldear os Padres Manuel Ribeiro e João Guincel, recusando-
se os Índios a serem aldeados, com receio de que os Brancos depois, achando-os aldeados, deitassem
fora os Padres e ficassem com êles como escravos.” Cf (ARSI, Bras, 9:435), Apud (LEITE, 1945, vol.
V:310). O próprio Serafim Leite nos dá notícia destes índios Acarazes Procazes “diferentes dos
Quiriris” aldeados no rio São Francisco, Cf. (LEITE, 1945, vol. V:294). (MONTERROYO. 1716:14).
Como se vê no título, estes índios já haviam sido reduzidos (provavelmente no ano de 1714, levando-
se em conta que o contato inicial com os Orizes teria sido feito em meados de 1713) disso nos dá
notícia Antônio Guedes de Brito em sua declaração de terras, diz ele: “povoei, descobrindo-as
fazendo estradas, e pazes com os índios Cariocas, Orizes, Sapoyas, e Caparaus descendo Aldeias para as
58
registrados em 1716 por Joseph Freyre de Monterroyo Mascarenhas, um
bem conhecido letrado português, certamente baseado em informações do
padre Euzébio Dias Lassos de Lima, pároco da Igreja de Nossa Senhora de
Nazaré de Itapicuru de cima, que realizou a ‘proeza’ da redução. (ARSI,
Bras, 9:435).
Sobre os demais extrativistas as informações são muito superficiais e
imprecisas. Muitas vezes, povos são nomeados na documentação como “de
corso” e por outros como “semi-sedentários” como é o caso dos Paiaiases,
os Sequaquerinhêns, e Rodeleiros entre outros. O padre Bernard de Nantes se
referia a estes extrativistas do São Francisco, muito superficialmente. No
final de sua relação; diz ele:
Eles só pensam naquilo que se apresenta atualmente perante os seus olhos, e não
buscam outra satisfação senão dos sentidos, que é comum aos animais,
caminhando nus como os animais, alimentando-se de frutas que encontram pelo
caminho que a terra dá espontaneamente. Alguns sentem prazer à maneira dos
bárbaros, sem vergonha uns dos outros, como ainda fazem alguns selvagens em
volta daqui, como os Aracuís, Umans, Jaicós, nômades que andam e vivem pelas
matas. (NANTES, [1702]).
Ainda no contexto desta fala dos ‘índios nômades’ Bernard de
Nantes, relaciona, sem comentários outros povos, dando a entender, serem
também extrativistas nômades:
Além das tribos mencionadas anteriormente, há ainda as tribos dos Persemius, dos
Ohiris, dos Uricujus, dos Payayas, dos Klejscus, dos Umãs, dos Guegues, dos Icós, dos
Macarus, dos Lhugos, dos Peraliconius, dos Jaicós, Caropotós, Chumarus, Carnijós e, mais
adiante nas terras recentemente descobertas, nos (rios) Canindés e no Piauí, os
Copinharós, Arroans, Copiaratis, Aubatés, Alongas, Precatis, Macuás, Aranhis, Bacharaus,
Rodeleiros e os outros que não têm nenhum missionário.” (NANTES, [1702]).28
No ano de 1687, a pedido do Governador de Pernambuco, o
bandeirante paulista Domingos Jorge Velho deixou as terras que estava
explorando no rio da Gourguéia na conquista do Piauí, para ir combater os
tapuias levantados no Assú e, em seguida, os negros aquilombados nos
Palmares. Para isso, levou consigo um exercito de “tapuias de guerra” que
havia agregado durante sua passagem no Piauí, os quais ele nomeia Oroazes,
e Cupinharoms.29 O paulista ainda tentou agregar uma ‘casta de Cracuis’ que

mesmas terras, com qual se segurarão as fronteiras do Inhambupe e Natuba” As Terras do Guedes de Brito.
(RIGHB. 1916, Vol XI:69-74).
28 Note-se aqui que em outros documentos os Alongas Payaiás aparecem como povos semi-nômades,

e os Rodeleiros seguramente eram agricultores. Bernard de Nantes refere-se também aos Ohris
(Orizes) como partilhantes do espaço do Sertão de Rodelas. (NANTES, [1702]).
29 “sem os tais índios Senhor da casta dos oroazes, e cupinharoms, como são os meus, senão pode

fazer a guerra desta qualidade, porque se bem é verdade, que sós são medrosos contra os brancos,
guiados, e cabeados por eles são tão valentes afoitos, e constantes nas batalhas que nenhuma outra
59
viviam entre o rio São Francisco e o Piauí, mas foi impedido pelo padre
Bernard de Nantes, como consta em sua Relação. Creio que sejam os
mesmos Ohris e Cupinharós, antes mencionados pelo padre Bernard.
O padre Miguel do Couto em sua Descrição do Piauí de 1697,
também relaciona superficialmente uma série de povos, sem referências de
filiação lingüística ou tipo de economia, tomando como ordenador de sua
descrição a malha hidrográfica da região. Esta circunstância, contudo, nos
permite reconstituir, com relativa segurança, um pouco da distribuição
espacial das etnias neste período. Segundo este cura os “Tapuyas bravos que
tem guerra com os moradores da nova freguesia de Nossa Senhora da
Vitória” eram os seguintes: No rio Mearim, afluente do Itapicuru estavam
os Gutamez e Goyias. Entre os rios Moni, e Igoarâ, também contribuintes do
Itapicuru, moravam os Macamasus. No rio Parnaíba os Goaras ou Goanares e
Aroachizes, pacificados pelo desembargador da Relação da Bahia doutor
Manoel Nunes Colares em Janeiro de 1697, e os Aranhez. Na Barra deste rio
Parnaíba viviam os Tramambés, aliados dos portugueses, e nas suas
cabeceiras os Carapotangas. Nos afluentes do dito Parnaíba, riacho Irusuy
situavam-se os Precatiz, também notados por Couto no rio Canindé; no
riacho, Savauhy viviam os Aroquanguiras.

nação no mundo, se os iguala não os excede; duzentos tapuias sós fugirão de dois Brancos, e sendo
acompanhados de dos Brancos, investiram resolutamente com dois mil outros Tapuias e os
derrotarão como já me tem sucedido algumas vezes.” Carta autografa de Domingos Jorge Velho
escrita do Outeiro do Barriga, Campanha dos Palmares de 15 de Julho de 1694 em que narra os
trabalhos e sacrifícios que passou e acompanha a exposição de Bento Sorrel Camiglio procurador dos
paulistas. (ENNES. 1938:204-7).
60
Figura 4 - Localização aproximada dos povos dispersos no território do Piauí,
de acordo com as indicações do padre Miguel do Couto.
Os tapuia Cupequacas e Corerás, os Ayitetus, os Abetiras, e os Beirtés
foram notados próximos uns dos outros, em riachos afluentes do rio
Parnaíba, que ele não nomeou. Os Cupicheres também sinalados em um
riacho que entra na Parnaíba, com a observação de que “tem o cabelo muito
comprido”, e os Nongazes na mesma parte, registrados como os que ‘comem
brancos’. No riacho Sambito, afluente do rio Potí, viviam “em paz com os
brancos” os Arûas. No rio da Gurguéia estavam os Corsiâs e os Lanseiros; nas
cabeceiras destes rios os Acuruás, e os Rodeleiros que “Pelejam com Rodelas”,
os Beiçudos que “tem os beiços tão grandes que no de baixo metem um
batoque tamanho como uma grande Laranja”; em um riacho que se mete no
Gurguéia vivem os Bocoreimas. Nas cabeceiras do Rio Preto estavam os
Anicuaz que ‘comem brancos’. Os Anassuz, foram localizados na Serra da
Ibiapaba, tal qual os Alongâz, (estes “por detrás dos Riachos Berlengas e
Santo Antonio, afluentes do Itaim Assú) “para qual se retirarão com medo
dos brancos”, vivem “com os caboclos’. Nas cabeceiras do rio Piauí
situavam-se os Arayez e os Acumez. No riacho do Canindé, afluente do Piauí
os Cupinharôz, “que tem feito mayores danos nesta povoação”, e mais acima,
nas cabeceiras deste riacho, estavam os Goaratizes e os Jaicôs. Miguel do

61
Couto localizou, também no Canindé, os Precatiz os quais havia antes
localizado no riacho Irusuí, com a seguinte notação: “se enterram debaixo
da terra para fazerem esperas aos brancos e com a barriga amarrada; com
cordas correm mais, do que cavalos, e não tocam a terra senão com az
pontas dos pez”. Na Serra do Araripe estavam assentados, os Ubatês, os
Meatanz e os Jendoiz,30 os Uriûs, e os Ycos, estes últimos com a observação de
que possuem “barbas grandes”. Miguel do Couto conclui esta relação
lembrando que os povos por ele notados são aqueles que “nos deram, ou de
presente dão guerra mais viva”, e lembrando que existiam no circuito da
freguesia de São José do Piauí, muitas outras nações das quais não se
conhece o nome. (COUTO [1697] 1938:370-389). As informações sobre os
índios da região, em geral são breves e pouco precisas, limitando muito as
possibilidades de reconstrução histórica de seu espaço de ocupação.

Agricultores sedentários.
Quanto aos povos sedentários do rio São Francisco pouco se tem
estudado, alimentando a impressão do genérico, principalmente quando se
percebe que, de fato, alguns estereótipos são descritos como uma interface
comum à maioria dos povos desta região. Contudo, quando se desloca o
foco de observação para a categoria lingüística e para a economia, percebe-
se um gradiente mais nítido, de onde sobressaem povos culturalmente
bastante distintos daqueles tapuia; tal é o caso dos Amoipiras, Rodeleiros,
Ubirajaras,31 entre outros, que foram notados como situados na porção
norte-ocidental de Rodelas. Também são mencionados na literatura povos
agricultores sedentários, assentados nos contrafortes da Serra do Araripe,
portadores de cultura cerâmica bem desenvolvida, tais como os Ubatês, os
Meatanz, os Jendoiz, os Uriûs, e os Ycos, registrados pelo padre Miguel do
Couto.
Desde muito cedo, os escritores coloniais notaram a presença de
povos agricultores de língua túpica, portadores de tradição ceramista
(POMPEU SOBRINHO, tomo II, 1934:289-305)32 nos sertões interiores

30 Jendoiz: nomenclatura muito próxima de Janduis. Não deveria surpreender-nos se nesta região do rio

São Francisco, estivessem, parte do ano, alguns dos Janduis do Rio Grande do Norte, aqueles aliados
dos holandeses, registrados por Herckmans e Baro.
31 Ubirajaras, ou Ubajaras. Ubajara é atualmente nome de localidade no ceará no complexo da Serra da

Ibiapaba.
32 Destacamos o aspecto ceramista da cultura material destes povos para identificar um atributo

consagrado pela arqueologia para diferenciar pela tecnologia e economia os povos agricultores dos
extrativistas. Thomas Pompeu Sobrinho se refere a Serra da Cacaria para justificar a presença de
povos agricultores não túpicos no interior do Ceará. (POMPEU SOBRINHO, tomo II, 1934:289-
305).
62
do rio São Francisco. (MONTEIRO, 2000, vol III:1010-1011).33 Todavia a
limitada informação disponível sobre estes povos, bem como o tratamento
histórico a eles dado acabava poros incluir no genérico tapuia. O mais
antigo testemunho da presença de povos túpicos no rio de São Francisco é
de 1587, e se encontra na obra de Gabriel Soares de Souza no capítulo
referente aos costumes dos Índios da Bahia, no qual estão incluídos os
Amoipiras e Ubirajaras. Segundo Soares de Souza estes índios descendiam
dos Tupinambá,34 e em data remota, perseguidos pelos contrários Tapuia,
teriam se adentrado nos sertões e se estabelecido no rio de São Francisco, o
qual denominam de Pará. No grande rio teriam encontrado as condições
adequadas de sobrevivência, e se multiplicado copiosamente, dominando
assim, aqueles sertões. Diz o testemunho de Souza quem são os Amoipiras
e onde vivem:
Quando os tupinaés viviam ao longo do mar, residiam os tupinambás no sertão,
onde certas aldeias deles foram fazendo guerra aos tapuias, que tinham por
vizinhos, a quem foram perseguindo por espaço de anos tão rijamente que
entraram tanto pela terra adentro que foram vizinhar com o rio de São Francisco.
E neste tempo outros tupinambás fizeram despejar aos tupinaés de junto do mar
da Bahia, como já fica dito, os quais os meteram tanto pela terra adentro,
afastando-se dos tupinambás, que tomaram os caminhos aqueles que iam
seguindo os tapuias, pelo que não puderam tornar para o mar por terem diante os
tupinaés, que como se sentiram desapressados dos tupinambás, que os lançaram
fora da ribeira do mar, e souberam destoutros tupinambás que seguiram os
tapuias, deram-lhes nas costas e apertaram com eles rijamente, o que também
fizeram da sua parte os tapuias, fazendo-lhes crua guerra, ao que os tupinambás
não podiam resistir; e vendo-se tão apertados de seus contrários, assentaram de se
passarem a outra banda do rio de São Francisco, onde se contentaram da terra, e
assentaram ali sua vivenda, chamando-se Amoipiras, por o seu principal se
chamar Amoipira; onde esta gente multiplicou de maneira que tem senhoreado ao
longo deste rio de São Francisco, a que o gentio chama o Pará, mais de cem
léguas, onde agora vivem; e ficam-lhe em frontaria, destoutra parte do rio, de um
lado os tapuias, e de outro os tupinaés, que se fazem cruel guerra uns aos outros,
passando com embarcações ao seu modo a outra banda, dando grandes assaltos,

33 John Monteiro, em recente publicação, lembra dos exemplos dos Tupinambá da bahia que teriam

mudado para o Araripe e daqueles citados pelo Padre Christobál de Alcuña que, saindo de
Pernambuco no início da colonização se exilaram em torno da Ilha de Tupanabara, e intermediavam
o comércio de escravos com portugueses no médio Amazonas “the latter groups, visited by several
Spanish and Portuguese expeditions in the mid-seventeenth century, confirmed that they “were
peoples who many years ago left the conquers lands of Brazil, in Pernambuco, in defeat, fleeing the
severity with which the Portuguese had been subjugating them” (MONTEIRO, 2000. vol III:1010-
11).
34 Tem os Amoipiras a mesma linguagem dos tupinambás; e a diferença que tem e em alguns nomes

próprios, que no mais entendem-se muito bem; e tem os mesmos costumes e gentilidades; mas são
atraiçoados e de nenhuma fé, nem verdade. (SOARES de SOUZA, [1587]. 1987:336) O termo
Tupinambá é também utilizado para identificar o tupi arcaico falado na costa do Brasil à época da
chegada dos primeiros colonizadores.
63
nos contrários, os amoipiras aos tapuias, que atravessam o rio em almadias, que
fazem da casca de arvores grandes, cujo feitio fica atrás declarado.
Encontramos nesta parte da narrativa de Soares de Souza uma
correspondência evidente com outras fontes históricas e arqueológicas. O
relato de Gabriel Soares é complexo e bem fundado, podendo ter colhido
suas informações dos sobreviventes da expedição de seu irmão, João
Coelho de Souza, que explorara o sertão do rio São Francisco, alcançando
“acima do sumidouro mais de 100 léguas”. Segundo os cálculos de Barbosa
Lima Sobrinho teria avançado muito além do Cabrobó, onde o rio toma
curso do Sul, à altura da “confluência do rio Grande ou Parnamirim”.35 É
também razoável supor que os primeiros contatos mais permanentes entre
brancos e índios desta região do rio São Francisco tenham sido feitos por
Belchior Dias Moreya, que após o ano de 1595 demorou-se na serra do
Orobó, próximo de Quebrobó, procurando minas de prata.36
Segundo Gabriel Soares de Souza, os Amoipira eram povos
agricultores de cultura material pobre. Serviam-se de instrumentos toscos,
como machados de pedra para derrubar árvores e preparar roças. Plantavam
mandioca e legumes com cavadores feitos de madeira afiados ao fogo;
pescavam com espinhos tortos que usavam ao modo de anzóis e caçavam
ordinariamente com arco e flecha. Usavam o cabelo copado, cortado sobre
as orelhas e as mulheres o traziam comprido; furavam os lábios e
introduziam neles pedras; pintavam-se com tintura de jenipapo. Na guerra
tocavam tambores (de um só tronco cavado por dentro com o auxílio de
fogo) e trombetas feitas de grandes búzios furados ou de ossos de animais
trabalhos e engastados na madeira. Durante toda a descrição, Soares de
Souza compara estes traços com os Tupinambás para concluir: “Em tudo o
mais seguem os costumes dos tupinambás, assim na guerra como na paz.”
(SOARES de SOUZA, [1587] 1987:334-36).

35 “Admitindo-se essa identificação, as cem léguas a que João Coelho de Souza Alcântara, para cima

do sumidouro equivaleriam a um ponto entre Santo Sé e Pilão Arcado. Se tomássemos cem léguas a
partir da cachoeira de Paulo Afonso, entenderíamos que a expedição chegara acima do Sobradinho,
(...) De qualquer modo, o trecho alcançado ficaria na curva do rio, muito acima de Cabrobó, onde o
São Francisco toma firmemente o rumo Sul.” (SOBRINHO, 1946:35).
36Francisco Adolfo Varnhagen publicou em sua História do Brasil o Relatório do coronel Pedro

Barbosa Leal ao Conde se Sabugosa, vice-rei do Brasil, datado de 23 de novembro de 1725, in index
de várias notícias pertencentes ao estado do Brasil e o que nele obrou o Exm° Sr Conde de Sabugosa
no tempo de seu governo. Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil – n° 346. Original
no Livro 7° a fls 62 da Coleção de Cartas, Ordens, Editaes etc relativas ao Brasil existente no Real
Archivo da Torre do Tombo, Armário de Mss. com Copia na Biblioteca Nacional “Códice sobre as
Minas da Bahia” (VARNHAGEN, 1948, vol I: notas da secção XXIV).
64
Figura 5 – Búzio utilizado para chamar gado – Canindé – Ceará
O catálogo dos jesuítas para os anos de 1590-1598 registra uma
missão volante aos Amoipira e menciona o “padre João Álvares, de
Pernambuco, diocese da Bahia, 38 anos, perito ha muitos anos no convívio
com os índios”, como responsável pela missão.37 (ARSI, Bras, 5. f 38v).
Depois desta expedição, mais de meio século se passou sem que se tivesse
notícia dos Amoypira, de forma que, quando foram contatados novamente,
pareceu uma nova ‘descoberta’, era assim que no início de 1656 o padre
Simão de Vasconcelos anunciava a seus confrades a ‘descoberta dos
Amoipiras’:
Nesta me pareceu dar conta a Vossa Patenidade de uma missão gloriosa que
atualmente trazemos entre mãos, e se porá em caminho no principio do mês de
Janeiro seguinte. Por ocasião de certa tropa que daqui despediu o ano passado o
Senhor Conde Govemador deste Estado pelo Sertão dentro a fazer guerra a

37 “haviam reduzido considerável número destes índios no século anterior como informa Serafim

Leite.” Sobre as primeiras expedições aos Amoipiras, (LEITE, 1945, vol. II:185ss). (Primus catalogus
sociorum qui in Brasiia vivunt, missus per patrem Femandum Cardim, Procuratore. Anno 1598. ARSI, Bras, 5. f
38v). Apud (POMPA, 2001:322-323).
65
certos selvagens, que assaltavam nossos confins, foi servido o ceu descobrir
noticias certas de um quase reino de indios mansos, dóceis, e da mesma nação, e
lingua que os que hoje temos nas Aldeias, chamam-se estes Amoypyras, e como
em todos estes sertões, por mais que buscamos, nao achamos ate agora indios
semelhantes ha muitos anos a esta parte, e Deus foi servido agora pela ocasião
sobredita descobrirmos estes, tantos em número, e tão aptos para a Igreja de
Deus, pareceu-me ocasião do céu, lancei mão dela com o favor, e proteção do
Senhor Conde Govemador deste Estado,38 que com ânimo verdadeiramente pio,
liberalidade de príncipe se ofececeu com despesas, favor, e diligência sua notável,
e com efeito o faz na verdade, em tal forma, que a missão esta entabolada, e
partirá no tempo sobredito de Janeiro seguinte. Carta do Padre Simão de Vasconcelos
sobre a missão dos Amoypyra. Bahia, Janeiro de 1656. (ARSI. Bras 3 (I):300.)

Aquela era uma época de baixo ânimo, as missões do litoral


achavam-se esgotadas pelas pestes e pela escravização. Os Amoipiras viriam
atender aos anseios espirituais dos missionários, e os temporais do
governador, certamente interessado no lucro advindo da força de trabalho
que poderia ser mobilizada entre estes índios, quando situados e
controlados em sítios próximos de sua jurisdição. Para esta missão foi
indicado o padre Rafael Cardoso, vindo do Maranhão. A expedição partiu
em janeiro de 1656, “tempo abundante de frutas, caças milhos, e outros
mantimentos daqueles sertões”, mas não conseguiu passar das serras das
Jacobinas onde os missionários contataram os tapuias Tocós, Sapoiáses e os
Païaïáses. Segundo o padre Antônio Pinto, redator da relação latina desta
empresa, porque os índios das Jacobinas se recusaram a guiar a jornada
(ARSI, códice Bras. 3(1), 300).39 É natural que não conseguissem o apoio
dos Tapuia; que segundo o testemunho de Soares de Souza, eram inimigos
tradicionais dos Amoipiras, e como tal não ousariam penetrar em campo
inimigo, nem mesmo quando escoltados por força colonial.
Segundo Soares de Souza, os Amoipiras mantinham guerra ordinária
e contínua com os Ubirajaras, seus vizinhos, ‘no sertão detrás de si’, o que
interpreto como sendo mais ocidentais a eles:
Pelo sertão da Bahia, alem do rio de São Francisco, partindo com os Amoipiras
da outra banda do sertão, vive uma certa nação de gente bárbara, a que chamam
Ubirajaras, que quer dizer “senhores dos paus”, os quais se não entendem na
linguagem com outra nenhuma nação do gentio; (...) não viram nunca gente
branca, nem tem notícia dela, e é gente muito bárbara, da estatura e cor do outro
gentio, e trazem os cabelos muito compridos assim os machos como as fêmeas, e

38 Jeronimo de Ataide, conde de Atouguia governou o Brasil entre 06 de janeiro de 1654 e 18 de julho

de 1657.
39 Documento citado por Serafim Leite. Diz ele, fez-se uma entrada com o fim de descer os

Amoipiras, gênero de brasis, com quem já tinham tratado os primeiros Padres e descido algumas
Aldeias deles para a costa do mar do seu “sertão para além das cabeceiras do Rio S. Francisco”, “o
mais célebre entre os outros rios do Brasil” (LEITE, 1945, vol. V:271).
66
não consentem em seu corpo nenhuns cabelos que, em lhes nascendo, não
arranquem. (...) Fazem ... suas lavouras, como fica dito dos amoipiras, e pescam
nos rios com os mesmos espinhos, e com outras armadilhas, que fazem com
ervas; e matam muita caça com certas armadilhas que fazem, em que lhes
facilmente cai.
A peleja dos ubirajaras é a mais notável do mundo, como fica dito, porque a
fazem com uns paus tostados muito agudos, de comprimento de três palmos,
pouco mais ou menos cada um, e são agudos de ambas as pontas, com os quais
atiram a seus contrários como com punhais; e são tão certos com eles que não
erram tiro, com o que tem grande chegada; e desta maneira matam também a
caça, que, se lhes espera o tiro, não lhes escapa, os quais com estas armas se
defendem de seus contrários tão valorosamente como seus vizinhos com arcos e
flechas; e quando vão a guerra, leva cada um seu feixe destes paus com que peleja,
e com estas armas são muito temidos dos amoipiras. (SOARES de SOUZA, [1587].
1987:337).

As notícias sobre esta parte do país eram, à época de Gabriel Soares,


muito primárias, resumindo-se a aspectos muito limitados do espaço. A
localização geográfica destes povos tampouco era confiável, as medidas de
deslocamento humano, tomadas pelo registro de passos convertidos em
léguas, não obedeciam a regularidade ideal, variando sensivelmente de
acordo com condicionantes tais como: relevo, clima, conformação do
terreno, cobertura vegetal, obstáculos, etc. As medidas colhidas eram
estimativas, aferidas após a checagem em consecutivas informações. Neste
caso, poucos exploradores haviam experimentado o percurso, variando de
informante para informante as distâncias oferecidas. Um documento,
todavia, até agora pouco aproveitado pelos pesquisadores, coloca um pouco
de luz sobre a situação dos ditos povos Amoypiras. Trata-se da “Informação
da entrada q- da Villa de São Paulo se pode fazer ao grãde Parâ, q- he o verdadeiro
Maranham .... Dada por Pero Domingues morador na mesma villa, e hú dos 30
Portugueses que no ano de 614 o descobrirão com o qual contestam os mais companheiros
que hoje vivem.” Esta interessante narrativa, traz em apenso uma outra derrota
titulada: “Relação dada pelo mesmo sobre a viage que fez da villa de S. Paulo para o
Rio de S. Francisco chamado também Parâ, conforme derrota que seguio, ou Relação
daiz entradas do verdadeiro Maranham, e Rio de São Francisco por via de São Paulo”.
(ARSI, Cód. Brasil-História 1620-1647:509-510) 40

40 Ao que indica o mais remoto registro do afamado “caminho do Maranhão”, “Informação da

entrada q- da Villa de São Paulo se pode fazer ao grãde Parâ, q- he o verdadeiro Maranham chamado
também Rio das Amazonas, cuja barra esta na costa de Pernambuco 340 legoas cotra as Antilhas, e
440 da Bahia do Salvador cabeça de todo este estado do Brasil, Provincia da Santa Cruz. Dada por
Pero Domingues morador na mesma villa, e hú dos 30 Portugueses que no ano de 614 o descobrirão
com o qual contestam os mais companheiros que hoje vivem.” Divulgado por Serafim Leite em
Páginas de História do Brasil, (LEITE, 1937:99-116); manuscrito do Arquivo Gesu (ARSI, Cód.
Brasil-História 1620-1647:509-510). (LEITE, 1945, Vol. II:185-186).
67
Esta narrativa é utilizada para argumentar a viabilidade do
descimento dos Amoypira e outras nações falantes do tupinambá para as
proximidades dos núcleos coloniais do litoral, em São Paulo e no Rio de
Janeiro. O documento compara este caminho via rio de São Francisco com
outro pretendido para a mesma tarefa, aviado a partir da Bahia.
Evidentemente estão encapsulados neste discurso interesses colonialistas
dos mercadores de escravos e produtores rurais destas áreas, empregados
desde muito cedo na exploração dos nativos mansos túpicos, então
esgotados no litoral, tanto ao sul quanto na Bahia e Pernambuco. Na
empresa destas descrições aparecem duas personagens. Na primeira derrota,
Pero Domingues, registrado como um dos 30 descobridores do dito
caminho ao Amazonas no ano de 1614, e na segunda, a mais rica para os
interesses desta pesquisa, possivelmente escrita por um jesuíta que assina
como Antônio Araújo, o qual nos dá interessante informação acerca da
composição e dinâmica migratória que se deflagra no litoral no princípio da
colonização, empurrando os povos túpicos em direção ao interior, domínio
majoritário de povos extrativistas do semi-árido. Diz Antônio Araújo:
Há se de advertir primeiro que o rio de São Francisco entra no mar largo entre o
cabo de Santo agostinho, e a cidade do Salvador Bahya de todos os Santos da
qual dista para o Norte 90 legoas, e da linha (equador) para o Sul, pouco mais de
onze graos. Sua barra he de tanta largura que quasi se não enxerga huá pessoa de
húa banda â outra.
Desta barra obra de 400 legoas pelo Rio acima, corre o Sertam do gentio
chamado Amoipira com o qual se foi ajuntar outro de varias nações, mas da
mesma lingoa Tupinabâ do Rio das contas entre a Capitania dos Ilheos e a Bahia
do Salvador, termiminô que descendo pelo Rio Paracatu abaixo, e desembocando
de São Francisco se foram por arte misturar se lhe os Tamiya, (Tamoyo) que
fogido dos confins do Rio de Janeiro, e passando por suas aldeias (onde se
detiverão 6 meses) se foy aposenytar no I una, Rio Preto, 8 jornadas mais adiante,
onde lhe ensinarão a arte de ferreiro, que dos Francezes tinham aprendido, e
outras muytas, que dividem aquelle grande sertam como em varios Reynos.
A manuscrito está dividido em duas partes. Na primeira, que
reproduzimos acima, o autor identifica o Sertão dos Amoypira situando-o
na margem esquerda do rio São Francisco,41 e declara mui sucintamente o
que então conhecia acerca da dinâmica de migração dos índios. A segunda
parte é a derrota onde estão registradas as distâncias percorridas e o tempo
gasto nelas, incluindo paragens e referências geográficas reconhecíveis. Com
estes dados pode-se, com segurança, identificar o caminho cursado pelos

41A 400 léguas de sua barra. Noutro texto que analisaremos adiante o Padre Miguel do Couto, 85
anos depois desta ‘descoberta’, situa este enclave em 500 léguas da dita barra do rio São Francisco, ou
seja 2.640 quilômetros, perfazendo mais que o total do percurso do rio, de forma, como dissemos
antes, não pode ser tomada como informação relevante.
68
índios no seu êxodo. O primeiro elemento para identificação do sertão dos
Amoypira é a notação do encontro rio Paracatu com o rio São Francisco.
Diz o texto:
Da barra do Parâcâtu obra de 15 Jornadas pelo Rio de São Francisco abaixo darão
com os portos dos Amôipiras.
À margem, o autor nota que o percurso se faz à razão de 3 léguas ao
dia. Isto multiplicado por 15 jornadas perfaz aproximadamente 300
quilômetros, abaixo de onde o rio Paracatú faz barra com o São Francisco.
Este ponto demarca as primeiras aldeias dos Amoypiras que, desta forma,
estariam situadas à altura do rio Corrente, afluente da margem esquerda do
rio de São Francisco que deságua quase à frente da atual cidade de Bom
Jesus da Lapa na Bahia. Segundo Gabriel Soares de Souza os Amoypira
estavam situados ao poente de “umas serras que se estendem por uma
banda e para a outra, e para o sertão mais de duzentas léguas”,42 o que
entendo ser a Chapada Diamantina que está na mesma latitude do rio
Corrente.
Seguindo a narrativa, o autor afirma que aos Amoypira foram se
ajuntar outros povos “de varias nações, mas da mesma língua Tupinabâ”
vindo eles do Rio das contas, entre a Capitania dos Ilhéus e a Bahia do
Salvador. Esta informação nos leva a conexão imediata com depoimentos
como os de Fernão Guerreiro, José de Anchieta e Fernão Cardim que
documentaram a conquista e dominação dos povos nativos do litoral
baiano. O jesuíta Fernão Guerreiro, em sua Relação Annual das cousas que
fizeram os padres da Companhia de Jesus... nos annos de 1602 e 1603, testemunhou
os abusos e o estado de permanente terror, violência e escravização
praticadas contra os povos do Brasil, após a chegada os Portugueses.
E para que isto se entenda melhor se há de saber que naqueles primeiros vinte
anos, depois que os nossos entraram no Brasil havia junto do mar tão grande
multidão de gente que dizia Tomé de Souza, que foi governador daquelas partes,
a El-Rey D. João III, que ainda que os cortassem em açougue nunca faltariam, e
assim nos primeiros quarenta anos, eram infinitos os que se convertiam, e as
igrejas eram muitas.

42 No capítulo CLXXXV do tratado descritivo, Gabriel Soares de Souza se refere aos Maracá

contrários dos Tapuia: “Pelo sertão da mesma Bahia, para a banda do poente oitenta léguas do mar,
pouco mais ou menos, estão umas serras que se estendem por uma banda e para a outra, e para o
sertão mais de duzentas léguas, tudo povoado de tapuias contrários dêstes ... ” Na seqüência o autor
refere-se aos Amoipiras como habitantes ao poente dos Maracá “que lhes ficam em fronteira da outra
banda do rio de S. Francisco”. Apoiado nesta referência, trabalhamos com a hipótese das serras
referidas serem da Chapada Diamantina, que engloba em seu complexo as Jacobinas e a Serra de
Tiúba, que estão na mesma latitude do rio Corrente, coincidindo assim os testemunhos de Soares de
Souza com o de Antônio Araújo.
69
Porém como os brancos portugueses iam povoando a terra, e fazendo engenhos
de açúcar e fazendas: e para isto tinham necessidade de muitos trabalhadores,
começaram de lançar mão dos naturais da terra, e o que pior é, a cativá-los para
diversas partes da mesma Província. Pelo que os pobres Brazis, como de sua
natureza são tristes e coitados, entraram em tamanha melancolia, que os mais
deles morreram e se consumiram: outros fugiram pela terra dentro e não pararam senão
dali a cento, ou duzentas léguas, e deixaram a fralda do mar despovoada.
Por onde, para os padres os tornarem a reduzir e trazer à Igreja, foi necessário, e
o é ainda hoje em dia, ir a buscá-los ao sertão, onde se acolheram, como vão
continuamente, fazendo para isso jornadas, em que gastam seis meses, e um ano,
e às vezes ano e meio, caminhando a pé, rompendo matos, padecendo grandes
fomes, sedes, calmas, perigos e trabalhos.43
O testemunho de Guerreiro completa o do seu confrade Anchieta,
lavrado algumas décadas antes, na qual testemunha a perseguição a estes
povos e avalia desoladamente terem sido ‘gastos’ em 6 anos oitenta mil
almas, mortos e aos poucos, substituídos pelos negros da Guiné. Desta
sorte concluía o jesuíta:
Agora pouco tempo há de seis anos a esta parte vieram duas grandes doenças,
bexigas e sarampão, ficaram tão diminuídas que se tornaram em três (aldeias), (...)
por algumas vezes com parecer dos governadores mandam os padres índios das
igrejas, e foram eles em pessoa ao sertão a descer gente para as fornecer, por se
não acabar o gentio delas, como foi na era de 1562. (...) Vão os Portugueses 250 e
300 léguas buscar este gentio por estar já mui longe, e como a terra está já
despovoada. (ANCHIETA, [1554-1594], 1933:376-378).

“O castigo sossegou definitivamente os tupis, cujo êxodo redobrou


por desconhecidos trilhos à procura de sertões onde o tiro do mosquete não
perturbasse os gênios da Selva”, registrou Pedro Calmon. Por um lado às
pestes de sarampo e varíola, por outro a hecatombe das guerras e a
expansão da lavoura canavieira seguiam consumindo a vida dos índios do
litoral. Em meados do século XVI a situação destes povos era dramática,
especialmente a dos Caeté que dominavam a costa entre as capitanias de
Ilhéus e Pernambuco. Acossados pelos colonos e instigados pelos franceses
com quem negociavam pau-brasil, empreenderam forte reação contra as
posições portuguesas.

Em 1555, após naufrágio na costa de Sergipe, os índios Caeté


capturaram e devoraram d. Pero Fernão Sardinha, o primeiro bispo do
Brasil, dando lugar em 1562 a uma encarniçada perseguição que não

43Fernão Guerreiro, Padre “Relação annual das cousas que fizeram os Padres da Companhia de
Jesus... nos annos de 1602 e 1603 ... pelo Pe. Fernão Guerreiro, da mesma Companhia, natural de
Almodavar, de Portugal, Lisboa, 1605”. Reproduzido nas Memórias para História do Extincto Estado do
Maranhão, Tomo segundo, de Cândido Mendes de Almeida. (ALMEIDA, 1874). Grifo meu.
70
poupou da guerra justa nem os Caeté aldeados. De acordo com o jesuíta
José de Anchieta, nesta guerra foram feitos 50 000 cativos, mas somente um
quinto sobreviveu para serem vendidos como escravos em Salvador, os
demais caíram vítimas dos implacáveis massacres e doenças. “Eram tantos
que parecia impossível poderem-se extinguir”, registrou o padre Cardim no
final do século XVI. “Porém” continua o religioso, “os portugueses lhes
tem dado tal pressa que quase todos são mortos e lhes tem tal medo, que
despovoam a costa e fogem pelo sertão a dentro até trezentas e
quatrocentas léguas”. (CARDIM, 1978:121).

Figura 6 – Mapa da dinâmica de fuga dos povos do litoral século XVI

71
Em 1560, por ordem da Rainha regente Dona Catharina, o
donatário da Capitania de Pernambuco Duarte Coelho e seus filhos
investiram agressivamente contra os Caeté pelo flanco setentrional para
liberar as terras em torno da capitania e franquear o acesso ao rio de São
Francisco. A tarefa iniciada pelo donatário de Pernambuco só foi concluída
após cinco anos de peleja, comandada por Jorge de Albuquerque que,
segundo Frei Jaboatam:
Deixou destruídas as principais aldeias dos gentio Caetés e alguns Potyguarés, que
já a este tempo occupavão a mayor parte da Capitania, mortos muitos,
afugentados os mais, e outros reduzidos à paz, e os moradores pacíficos e
socegados. (JABOATAM, [1761], 1979, Vol.1:181 e ss); (SOBRINHO, 1946:28).
Esta onda de terror se repetiu em 1590 noutra guerra geral movida
pelo governador Cristóvão de Barros com o fito de baixar escravos para os
engenhos e conquistar a bacia dos rios Vaza-Barris e Real, vetores naturais,
por onde, anos mais tarde a colonização avançou rumo ao São Francisco.
Em meio a estes dois vetores de força colonial encontravam-se os
Tupinambá, aos quais restava como opção a morte, a escravidão nos
engenhos ou a fuga.44 Assim, os poucos que conseguiram sobrevier,
demandavam o interior para livrar-se do apocalipse, fugindo “pela terra
dentro e não pararam senão dali a cento, ou duzentas léguas, e deixaram a
fralda do mar despovoada” como em tempo registrou Fernão Guerreiro.
(GUERREIRO, [1605] Apud ALMEIDA, (1860) vol II:502-556). Desta
forma, exilados de seus domínios tradicionais, povos de língua tupi foram
formando bolsões de refugiados, não somente no rio São Francisco, mas
também no Grão Pará. Parece-nos ser este movimento de fuga que Antônio
Araújo registra quando se refere aos migrantes do Rio de Contas.45 O

44 Fugiram em direção ao interior, rompendo caminho por entre os povos do sertão, seus tradicionais

inimigos. Registram-se casos de alianças entre os povos tupicos em fuga do litoral com os Tapuia,
como as que bem notou Maria Cristina Pompa destacando as ‘complexas relações de aliança’ entre
tapuias e brasilianos, registrada no diário de Roeloff Baro. (POMPA, 2001:23), “no dia 8, Vvioauin
veio procurar-me e tendo eu perguntado que fazia ele nestas matas, tão distantes de nós e de seus
compatriotas, respondeu-me que era por acusa da Guerra, mantendo-se em paz com seus vizinhos,
os Tapuias, e dando-lhes de boa vontade o que tinha, quando estes o vinham visitar” (BARO,
1979:95e97).
45 “Desta barra obra de 400 legoas pelo Rio acima, corre o Sertam do gentio chamado Amoipira com

o qual se foi ajuntar outro de varias nações, mas da mesma lingoa Tupinabâ do Rio das contas entre a
Capitania dos Ilheos e a Bahia do Salvador, termiminô que descendo pelo Rio Paracatu abaixo, e
desembocando de São Francisco se foram por arte misturar se lhe os Tamiya, (Tamoyo) que fogido
dos confins do Rio de Janeiro, e passando por suas aldeias (onde se detiverão 6 meses) se foy
aposenytar no I una, Rio Preto, 8 jornadas mais adiante, onde lhe ensinarão a arte de ferreiro, que dos
Francezes tinham aprendido, e outras muytas, que dividem aquelle grande sertam como em varios
Reynos.” Registrado na “Relação dada pelo mesmo (?) sobre a viage que fez da villa de S. Paulo para
o Rio de S. Francisco chamado também Parâ, conforme derrota que seguio. Ou “Relação daiz
72
manuscrito flagra ainda a rota de fuga dos Tamoyo ou Tamyã, esta partindo
do Rio de Janeiro, passando pelo rio Paracatu em direção a este reduto
túpico no São Francisco. Diz Araújo:
Termiminô que descendo pelo Rio Paracatu abaixo, e desembocando de São
Francisco se foram por arte misturar se lhe os Tamiya, (Tamoyo) que fogido dos
confins do Rio de Janeiro, e passando por suas aldeias (onde se detiverão 6
meses) se foy aposenytar no I una, Rio Preto, 8 jornadas mais adiante, onde lhe
ensinarão a arte de ferreiro, que dos Francezes tinham aprendido, e outras
muytas, que dividem aquelle grande sertam como em varios Reynos.

Figura 7 Ataque dos Tamoio na insula do Rio de Janeiro. 1598.


Provavelmente esta legião Tamoyo, seria formada por parte
daqueles povos que apoiaram Villegaignon no malogrado projeto da França
Antartica – assentado na Bahia de Guanabara em meados do século XVI –
derrotado pelas forças de Mem de Sá. (MONTEIRO, 2000:997).
(VARNHAGEN, 1948, vol I:322-370). Estes Tamoio, entre 1540 e 1550,
haviam desenvolvido um poderoso movimento de resistência que
congregava muitos grupos locais, chefiados militarmente pelo célebre

entradas do verdadeiro Maranham, e Rio de São Francisco por via de são Paulo”. (ARSI. Cód. Brasil-
Historia 1620-1647: 509-510).
73
Cunhambebe. Após a queda do enclave francês na Guanabara em 1560, os
Tamoyo foram perseguidos sem trégua; para escaparem a pena capital,
supomos que parte deles teria logrado desertar a costa carioca em direção a
Serra da Cantareira, onde estão as nascentes do Rio São Francisco, nas
proximidades do rio Paracatu, um dos seus formadores. Esta hipótese é
confirmada quando o autor da Relação menciona explicitamente que estes
Tamoyo conheciam e ensinaram aos Amoypiras a “arte de ferreiro, que dos
Francezes tinham aprendido”.
Esta parte do manuscrito comporta dubiedades sobre o destino
destes Tamoyo. Antônio Araújo afirma que eles se detiveram com os
Amoypira por seis meses, e depois foram se assentar no I una, ou Rio Preto,
‘8 jornadas mais adiante’, onde dividiam ‘aquelle grande sertam como em
varios Reynos.’ Ocorre que à montante do rio Paracatu desemboca um rio
Preto, o que poderia sugerir que da nascença do São Francisco os Tamoyo
tivessem tomado rumo oeste, negando assim nossa hipótese. Não
acreditamos, contudo, ter sido este o destino dos Tamoyo, preferimos a
explicação de que, chegados à situação dos Amoypira, cuja localização
entendemos ser a altura do rio Corrente, atual Estado do Tocantins; oito
jornadas adiante, segundo nossos cálculos, resultaria em aproximadamente
160 quilômetros, rio abaixo, à altura da barra do rio Grande do Sul. Esta
hipótese é confirmada com uma outra notícia: a Descrição do Sertão do Piauí,
escrita em 1697 por Miguel do Couto Carvalho, padre diocesano, ativo
personagem histórico atuante no Sertão de Rodelas no final do século XVII.
Referindo-se aos povos habitantes ao poente da conquista do Piauí,
denominados Rodelleiros, ele escreve:
O Rio Grande, e o Rio preto, grandes e caudalosos que correm para o sul e se
metem no Rio de São Francisco 500 léguas ao sertão a cima de sua Barra; junto
do qual estão estes dois Rios povoados com fazendas de gados com muitos
moradores. (...) estes rios estão ao sertão povoados de muitos tapuias bravos
valentes e guerreiros entre os quais se acham alguns que se governam com alguma
rústica política, tendo entre si Rei e chamando a seus distritos reinos, como são os
Rodelleiros que se contam com 7 Reinos, e são tão guerreiros que até agora não
foram ofendidos nem de entre eles se tem apanhado língua sendo muitas vezes
acometidos por grandes tropas de Paulistas; pelejam com rodelas muito grandes
feitas de um pau chamado craiba; as quais na batalha levam uns e outros ao
reparo delas pelejam com arco e flecha lanças, e cachaporras. (COUTO. [1697],
1938:371).
O Rio Grande, e seu afluente o Rio Preto, habitado por estes
tapuias Rodeleiros e seus demais reinos, está situado exatamente na

74
localização indicada por Antônio Araújo46 como destino final dos Tamoyo.
O que nos permite sugerir serem os Rodeleiros descendentes dos trânsfugas
Tamoyo, ex-aliados dos franceses no projeto da França Antártica que se
exilaram no São Francisco. A partir da localização fornecida pela descrição
do Piauí podemos sugerir algumas conexões. Couto notou que no rio da
Gurguéia estavam os Corsiâs Lanseiros, e na sua cabeceira os Acuruás, os
Rodeleiros, os Beiçudos. Nesta nascente estava situada a Lagoa do Parnaguá,
palco de importante guerra no São Francisco, a qual estava avizinhada ao
Sul com o Rio Preto, onde o mesmo informante notou os Anicuaz
‘comedores de brancos’. Esta referência nos remete à povos de tradição
túpica, entre os quais era comum a prática do canibalismo, tal qual fora
notada por Soares de Souza para os Caeté e Tupinambá. Estes tapuias
localizados entre as nascentes do rio da Gurguéia e do Rio Preto, estão
incluídos entre aqueles que Miguel do Couto se referiu como divididos em 7
Reinos, “se governam com alguma rústica política, tendo entre si Rei e
chamando a seus distritos reinos”; com a inclusão deste detalhe, os queria
diferenciar dos demais tapuia da região. A descrição de Miguel do Couto
não menciona língua falada por estes índios, diz apenas: “nem de entre eles
se tem apanhado língua” (COUTO [1697]1938:371), provavelmente os
locais do São Francisco conheciam apenas a língua Cariri. O tupinambá
seria, para a região, uma língua desconhecida. Diz o padre Fernão Cardim
sobre os índios da Bahia repetindo a informação dada por Soares de Souza,
sobre uma ‘corda’ de tupinambás vivendo no sertão: “Em toda esta
província há muitas Nações de differentes línguas, porém uma é a principal
que compreende algumas dez nações de índios: estes vivem na costa do mar
e em uma grande corda do sertão, porém são todos estes de uma só língua”.
Neste texto Cardim se refere a povos de língua tupinambá. Na seqüência do
texto ele nota especificamente aos Tamoio transmigrados. Diz ele:
Outra nação que se chama Tamuya, moradores do rio de Janeiro, estes destruirão
os portugueses quando povoarão o Rio, e deles há muito poucos, e alguns que há
no sertão se chamam Araripe. (CARDIM, 1978:121-122).
O etnônimo ‘Sertão de Rodellas’47, tem sido associado
historicamente aos tapuias Rodeleiros aldeados no rio São Francisco.

46 Devemos lembrar ainda que Antônio Araújo diz que: “dividem aquelle grande sertam como em

varios Reynos.” O que confirma o tipo de organização notada por Miguel do Couto: “se governam
com alguma rústica política, tendo entre si Rei e chamando a seus distritos reinos,”. (COUTO
[1697]1938:371).
47 Era costume nativo, designarem a si mesmo com o nome de seus chefes. Em Cadena Vilhasanti.

encontramos notícia de “um índio principal que o chamam o Rodella”. Creio ser mais provável que o
nome das suas aldeias no rio São Francisco tivesse adotado o nome do seu chefe, como era prática
naquele tempo, que serem nomeados estes índios por usarem Rodelas de osso no pescoço ou
75
Aparentemente estes índios se dividiam em dois assentamentos. Os mais
conhecidos foram os aliados históricos dos portugueses, chefiados pelo
Índio Francisco Rodella, cujas aldeias se situavam próximas à Ilha de
Tacuruba48 na margem baiana do rio de São Francisco. Os outros eram
aqueles, notados em 1697 pelo padre Miguel do Couto – hostis e
indomáveis, aguerridos combatentes dos Paulistas – habitantes dos
territórios situados entre as barras dos rios Grande e Negro, afluentes da
margem esquerda do rio São Francisco. Segundo Pereira da Costa, este
Rodeleiros foram batidos junto com os Acroás e Mocoases no ano de 1698.49
Infelizmente não encontramos ainda elementos que nos permitissem um
estudo mais acurado destes dois grupos de Rodeleiros, que parecem ter uma
origem comum.
A Serra do Araripe tida por Miguel do Couto como fronteira leste
da povoação de São José do Piauí, nos “sertões desertos” em direção à
Pernambuco, à época de sua visita, não havia caminho aberto. Dizia Miguel
do Couto que nesta área não “se vadeão, em razão dos muitos gentios
bravos que neles habitam”, e que a partir da conquista do Piauí apenas se
avistava a “boa serra chamada o Araripe que dizem ser muito alta, e que na
superfície tem de plano 50 léguas, de uma e outra parte esta rodeada de
varias nações de Tapuias bravos”. No final de sua descrição Couto vai
nomear alguns destes tapuias a que ele antes se referiu como habitantes do
Araripe, arrolando-os entre aqueles grupos que mantinham viva guerra com
os brancos; são eles: Ubatês, os Meatanz Jendoiz, os Uriûs, e os Ycos.
A localização da antiga missão do Rari (Araripe) permanece uma
incógnita. Segundo Capistrano de Abreu os montes do Rari,
corresponderiam a serra do Araripe. (ABREU, 1935:XXII). Cristina Pompa
discorda da informação, mas não oferece outra localização. (POMPA,
2001:205). A referência mais antiga sobre esta missão parece-nos ser a
relação de uma missão volante ao Sertão do Rari que aparece na Carta Ânua
de 1590 do Pe. Marçal Belliarte, onde se lê:

escudos em formato de rodela, como corre em versões pouco fundadas. (VILHASANTI, [1638],
1941).
48 Situada à altura da antiga Missão de São João Batista de Rodellas, atual cidade de Rodelas na Bahia,

hoje submersa nas águas da barragem de Itaparica. Mais sobre o papel dos Rodeleiros, ver no
capítulo das agências nativas.
49 Depois de serem batidos na guerra que se declarou em virtude da Carta régia de 17 de dezembro de

1699, por haver representado Dom João de Lencastre ‘ser impossível reduzi-los à obediência por
outras maneiras pacíficas, como era ordenado na Carta régia de 2 de dezembro de 1698, expedida por
efeito das queixas que levaram ao soberano os prejudicados em tais excursões.’Cerqueira e Silva,
Ignácio Aciolli. Apud. (PEREIRA da COSTA, 1974:58-59).
76
No meio do continente há uma região que na língua brasílica se chama Rari. Os
habitantes desta região, por meio de uma delegação, pediram ao padre Provincial
para que mandasse alguns dos nossos para semear a fé cristã naquelas aldeias.
Foram mandados três dos nossos, dos quais dois sacerdotes; ao mesmo tempo se
pediu a eles para persuadir os indígenas a descer para lugares mais próximos dos
Lusitanos e se dirigissem a nós o quanto antes. Com efeito, aprendi pela
experiência e pelo longo costume que as coisas cristas não podem ser bem
cuidadas a não ser no mesmo lugar onde moram os Neófitos, onde estejam
submetidos ao poder e a autoridade dos Lusitanos. Os nossos suportaram os
incômodos da viagem, cheia de trabalho e aborrecimento. Mediram uma distancia
de duzentas léguas, numa região de enormes desertos, totalmente sem água,
cortada por vales estreitos por causa dos rapidíssimos rios, encontraram homens
selvagens, que nem tem aldeias e nem cultivam mas vivem dispersos nos matos, a
maneira das feras, não raramente escaparam de violências e emboscadas pela
benevolência de Deus. Finalmente, sujos e magros, chegaram, ao lugar desejado.
E maravilhoso com quanto amor foram recebidos pelos índios que os tinham
chamado. Logo que conseguiram respirar depois dos incômodos da viagem, logo
purificaram (=batizaram) todas as aldeias, fizeram sermões, levaram os espíritos
para a piedade, imbuindo-os da noção de vida eterna. Finalmente, tratou-se com
os principais das aldeias, para que fizessem a viagem ate nós com todos os seus.
Abandonado o amor pela pátria em que foram criados, aquela multidão de
homens, com mulheres e filhos e aquelas “poucas coisas, se pôs num caminho
com certeza cheio de perigos. Frente a partida, o inimigo do gênero humano não
fez nada para dissuadir de tão saudável resolução aqueles homens que já estavam
fortificados pela graça do espírito santo. Até que enfim, conduzidos pelos nossos,
chegaram incólumes nestas aldeias cristãs, recebidos por todos com grande
consolação. Assim terminou a trabalhosa missão aos Rari. (Notationes annuae prov
bras Anni 1590. ARSI, Bras. 15:365 apud POMPA, 2001:322-323).

Por esta época João Coelho de Souza e Belchior Dias Moreya


circulavam no rio São Francisco em prospecção mineralógica. A migração
dos povos túpicos para este enclave no semi-árido, deve ter se dado em
épocas avizinhadas à expedição dos Souza e de Moreya; é razoável supor
então que estes índios, guardando ainda a viva memória da guerra movida
contra eles no litoral, tendo conhecimento destas expedições se
atemorizassem, procurando ato contínuo, compor pacificamente com os
missionários, na busca de proteção e na tentativa de evitar mais escravidão e
novas guerras. O catálogo de 1590-1598 menciona o nome do missionário
designado para estas missões: “missão aos Arari: Pe Affonso Gago, superior
de Pernambuco, diocese da Bahia, 39 anos, conhece a língua brasilica.
Morou muito tempo em aldeia.” (ARSI, Bras, 5:38v. Apud POMPA,
2001:322-323).
Estes enclaves túpicos pareciam estar coligados, ou pelo menos em
contato permanente. Em 1702, a informação das juntas das missões dá
conta de viverem na Serra da Ibiapaba 4.000 índios distribuídos em três
aldeias. Parte destes, seriam provavelmente os Alongazes, os quais, segundo
77
a informação de Miguel do Couto, teriam fugido do Itaim Assú para a
“Serra da Guapava”. Em 12 de março de 1720, no despacho de uma
Consulta apresentada pelo padre jesuíta João Guedes ao Conselho
Ultramarino, colhemos uma pista destas conecções. O petitório do
Missionário suplicava apoio da Fazenda Real para construção de um
hospício na Serra da Ibiapaba, para dalí “saírem em missão às capitanias do
Ceará e Piaugüí, e empenho que os índios da dita serra tem em descobrir
uns seus parentes que há 150 anos estão escondidos nas dilatadas serras de
Araripe, que se presume sejam quatro até cinco mil almas” (DH, 1953, Vol.
XCIX:122-125).
Este dado nos mostra existir reconhecimento formal de parentesco
de longa data entre estes grupos. Pela informação dos índios da Ibiapaba em
1720, seus parentes estavam no Araripe há 150 anos, ou seja em torno de
1570. Este dado dá sustentação à hipótese da migração dos povos do litoral
para estes interiores após as guerras de 1560, como foi visto. Anos mais
tarde vamos encontrar na “Informação Geral da Capitania de Pernambuco em
1749”, uma relação das aldeias da freguesia de Nossa Senhora da Conceição
de Rodelas, jurisdição pernambucana. Aparece ali uma Aldeia de Aricobé ou
nação de caboclos Aricobé, de língua geral sob invocação de Nossa Senhora
da Conceição, tutelada por um missionário franciscano da Bahia. (ABN,
1908. Vol. XXVIII:306).
Sessenta e cinco anos depois de a ânua de 1590 declarando haver no
meio do continente uma região habitada por brasis, chamada Rari, outra
epístola jesuítica confirmava assim o encontro: “um quasi reino de Índios
mansos, dóceis, e da mesma nação e língua, que hoje temos nas aldeias”.
(ARSI, Bras. 3(1), 300) Apud (LEITE, 1945, vol. V:271). Estes testemunhos
assomados aos de Miguel do Couto e aos de Gabriel Soares de Souza,
permite-nos divisar, dentro do Sertão de Rodelas um enclave étnico de
formação recente, onde se adensam grupos portadores de tradições culturais
que contrastam com aquelas que caracterizam o macro-domínio extrativista
dos ‘tapuia’. Em alguns casos, certos grupos são nomeadamente tratados
como povos agricultores, sem que se possa ainda fazer uma exata
delimitação das fronteiras destes macro-domínios étnicos. Pode-se, todavia,
com base nos dados apresentados, sugerir a existência de uma grande faixa
dominial de povos túpicos, situada à margem esquerda do rio São
Francisco, correndo ao sul desde a barra dos rios Carinhanha e Corrente a
14 graus da linha do equador, subindo até as cabeceiras dos rios Preto e
Grande – sempre margeando o São Francisco – passando pela lagoa do
Parnaguá em direção aos contrafortes da Serra do Bom Jesus, nascenças dos
rios da Gurguéia, Piauí, Canindé e Itaim, se alongando até a Serra do

78
Araripe, onde se interpõem outros domínios de povos extrativistas, que
separariam este macro-domínio da Serra da Ibiapaba, conhecido reduto de
povos túpicos.
A análise conjugada destes manuscritos mostrou-se fundamental
para atestar o movimento de relocalização destas duas importantes nações
túpicas do litoral para o rio de São Francisco, impactadas por distintos
vetores de força armada colonial; confirma a narrativa do cronista Gabriel
Soares de Souza que pode ser sugestiva para o entendimento de
movimentos de alianças e agenciamentos nativos, havidos na região com
base nas diferenças e afinidades inter-grupais que, a seu turno, vão ser úteis
à compreensão dos reordenamentos étnicos atuados sob o efeito da
conquista. Finalmente por contribuir decisivamente para a dissolução da
imagem historicamente construída do genérico tapuia nesta parte do país.
Que mais então se pode dizer sobre estes povos? Apesar dos
escritores coloniais observarem a pluralidade lingüística, a diferença marcada
de mobilidade entre os grupos extrativistas como estratégia de
abastecimento, e ainda considerando-se as evidências arqueológicas desta
parte do nordeste brasileiro, compreendemos que não se reúnem ainda
condições para determinar, com a precisa segurança, as fronteiras étnicas
que separam os grupos humanos da região. Desvinculadas de suas situações
tradicionais, muitas etnias foram unicamente registradas em contextos de
homogeneização, tais como agregações privadas, reduções seculares e
missões, nos quais, lentamente, foram perdendo o direito à identidade
original. Na maioria destes espaços a nominação oferecida pelos narradores
coevos reporta-se a um coletivo de povos abrigados sob designativos dos
grupos dominantes, ou daqueles que primeiro chegaram a estes
assentamentos.50 Desta forma a missão não pode ser considerada placet
privilegiado de onde o investigador possa colher informações para
reconstruir historicamente categorias identitárias, nem tampouco como
unidades ordenadoras de identificação dos povos nativos, como se tem
verificado com insistência em alguns trabalhos de síntese histórica regional.

50 A condição de estarem aldeados nem sempre era uma garantia de liberdade. Não são raros os

relatos que mostram sertanistas e senhores de terras manobrando, pela política ou pela violência, para
se apropriarem de índios aldeados em seu benefício privado ou do estado colonial.Ver abundante
informação sobre este tema em: (REGNI, 1988.); (LEITE, 1945 vol.V. passim); ver ainda,
(MIRANDA, 1969).
79
Os Cariri.
Os povos falantes da língua Cariri foram os que retiveram mais a
atenção dos cronistas, e possuem, no sertão de Rodelas os registros mais
abundantes. Estes povos ocupavam preferencialmente as áreas baixas
próximas aos terraços aluviais do rio São Francisco e seus principais
afluentes, de onde controlavam o acesso ao interior dos rios secundários,
estes dominados pelos “índios de corso”. Os Cariri conheciam rudimentos
de agricultura que lhes permitiam cultivar a mandioca e outras culturas em
regime de subsistência.
Segundo Rodolfo Garcia o termo Cariri “alterado em Kariri, é
qualificativo Tupi, que significa – calado, silencioso”. (MAMIANNI, [1698],
1942:XXII). As aldeias do rio São Francisco genericamente nominadas de
Cariris, se destacaram como força de reserva militar em todo o período
colonial, e cumpriram importante papel na estabilização dos territórios
ocupados. Sob sua influência, outros povos tapuias foram reduzidos ao
domínio colonial. Foi destas aldeias também que desertaram os tapuias,
mais tarde reconhecidos como Pimenteiras no Piauí onde, liderados por
Mandu Ladino, moveram ativa resistência à ação colonial nas conquistas ao
Nordeste do sertão de Rodelas. (CASAL, 1976:291; BEREDO, 1989:206).
Beatriz G. Dantas, referindo-se à dispersão geográfica destes índios
afirma que se reconhece, “sem dificuldade, a predominância da família
Kariri, presente desde o Ceará e a Paraíba até a porção setentrional do
sertão baiano, mas não se definem bem seus contornos”. (DANTAS, et al.
1992:432). O relato etnográfico permite-nos destacar uma possível unidade
de tradições pan-cultural Cariri, atuante principalmente na cultura material, e
nas tradições mítico-religiosa. Neste aspecto identifica-se uma vasta difusão
de práticas ritualísticas particularmente da celebração à divindade
Uiraquidzan,51 notada desde o Ceará até os sertões de Jacobina, na Bahia
muitas vezes sob nomenclaturas diferentes, todavia conservando no
substrato uma linha narrativa comum.
Os registros mais abundantes para os povos do sertão são, pois, os
de origem religiosa. Para as missões de Rodelas no rio São Francisco são
especialmente importantes as “Relações” dos padres Martinho e Bernard de
Nantes. Todavia, há de se atentar para o fato de que ambas são produto de
propaganda da fé, e como tal não lhes interessava a descrição dos povos.

51Serafim Leite, referindo-se aos índios da Bahia destaca esta difusão cultural: “Tanto os Païaïas,
quanto os Moritises, como os Quiriris, tinham o mesmo culto de Varakidrã.” (LEITE, 1945,. vol.
V:297).
80
Por esta razão o material de natureza etnográfica encontrado nestes textos,
como bem lembrou Cristina Pompa, é disposto em fragmentos, usados aqui
e acolá para apoiar o argumento da barbárie tapuia, antes dos missionários,
bem como para reafirmar o ‘progresso’ dos nativos depois deles. Fenômeno
semelhante observa-se na escrita dos jesuítas, predominantemente epistolar,
da qual também se podem colher fragmentos importantes para a recoleção
etnográfica. Este material, de modo geral é bem conhecido e discutido, de
forma que não nos ocuparemos neste momento em analisar o pensamento
missionário, como o fizemos antes. Interessa-nos agora dar relevo a uma
série de registros descritivos de fragmentos da expressão cultural nativa.
É impossível limitar com segurança as fronteiras culturais dos povos
com base nos relatos colhidos. Pode-se, contudo, estabelecer os traço gerais
desta cultura pan-cariri ou tapuia para esta região do Nordeste brasileiro e
também, verificar no relato histórico, as conexões possíveis com as
manifestações dos povos indígenas contemporâneos moradores da região
sãofranciscana. O leitor poderia questionar então se esta panorâmica pan-
cultural não seria, de certa forma, a reafirmação do genérico tapuia, ou
Cariri. Não acreditamos que o seja. Estamos procurando em primeira
instância desvincular a imagem genérica da visão que opõe litoral e sertão, tupi
e tapuia, demonstrando que nos sertões do Brasil houve uma convivência
pan-cultural e pan-lingüística, muito mais ampla que a que até hoje tem sido
aventada. Entendemos igualmente, que as tentativas anteriores de
estabelecer, com base nos dados históricos disponíveis, classificações
detalhadas de áreas etno-culturais amplas para o nordeste, têm sido um
exercício de pouco proveito, pois os dados disponíveis não respondem com
a precisão histórica que uma empresa desta demanda.
Cristina Pompa coloca na introdução de sua tese doutoral, que seu
desafio historiográfico foi o de fazer emergir, a partir dos textos coloniais, o
“ser Tapuia”, para perceber o quanto dele mudou e foi mudado – e não
apenas aniquilado – pelo “ser português” e pelo “ser missionário”, no
momento do contato e ao longo da catequese.” Esta é uma perspectiva feliz,
pois se distancia daquela limitada à narrativa da derrota dos povos nativos,
lugar comum nestes capítulos coloniais. Ao contrário, envolve-se de uma
noção viva da dinâmica humana que permite aos seres sociais se adequarem
de forma inteligente, frente a situações novas. A percepção de Pompa, faz-
se mais clara quando critica a ‘ingênua’ tendência historiográfica que pensa
“que os textos de missionários e viajantes não podem nos devolver nada
alem de informações sobre a cultura ocidental que os produziu” e conclui
acentuando a capacidade de dinâmica social tapuia, que lhes permitiu a

81
reelaboração de suas realidades em benefício de sua existência na nova
ordem ocidental imposta no sertão.52
De fato, observa-se que, embora o discurso colonial se esforce para
anular historicamente o “ser tapuia”, a dinâmica gestual destes povos foi
mais eficiente em manter-se. É na falha do discurso etnocêntrico que ele
emerge justo da pena do missionário.
Nas páginas que seguem, reunimos relatos dos missionários
apostólicos capuchinhos Bernard de Nantes, Martinho de Nantes e
Francisco de Lucé, do Jesuíta Manuel Correia e do padre diocesano Miguel
do Couto Carvalho, todos atuantes no Sertão de Rodelas no último quartel
do século XVII. O nosso objetivo aqui é de reunir, editar, organizar em
grupos temáticos os fragmentos de textos dos autores citados, conduzindo
o diálogo e a lógica das idéias, conectadas por pequenas inserções entre os
blocos de citações. Os diálogos se iniciam pela temática da religião e da
desqualificação civil dos nativos, suas divindades, costumes comuns, mitos
de criação, rituais de passagem, mitologia do Varaquidrã, arquitetura das
aldeias, epidemias, medicina natural, rituais fúnebres e canibalismo.
Para instalar a nova ordem cristã, cabia aos ministros da igreja
destacar aquilo que, no seu modo de entender, correspondia à pobreza
espiritual e gentilidade nos nativos. A visão cristã entendia que os povos do
rio São Francisco estavam entregues aos sentidos, não possuíam credos, fé,
leis, nem governo, como registrou o padre Bernard de Nantes:
Ora, de modo a dar um conhecimento claro sobre o estado presente em que se
encontram esses índios cariris e essa nova cristandade, convém primeiramente dar
a conhecer a respeito das condições passadas nas quais eles se encontravam, pois
é daí que se pode julgar de uma maneira sã o pouco ou muito do fruto que Deus
operou pelos ministros. Eram, portanto, antigamente, homens em aparência e
selvagens de fato, demonstrando forma humana por fora, mas guardando
instintos de bestas por dentro, vivendo sem fé, sem rei e nem lei, o que
demonstra certamente a língua deles que não admite essas 3 letras: “F”, “R” e
“L”, que constituem as três letras primordiais desses 3 substantivos, de maneira
que para dizer “Filipe”, eles dizem “Pilipe”, e para dizer “Pedro”, eles dizem
“Petro”, sem pronunciar de modo distinto nem o “L”, nem o “R”, mas
confundindo um com o outro.
Entre eles, cada qual é responsável por suas ações e não dão conta de ninguém.
Não conhecem nenhuma divindade, não têm nenhuma idéia concernente à
religião, não possuem nem templos nem altares. Eles tinham contudo uma idéia
confusa a respeito de Deus, porém idéia essa mesclada com tantas extravagâncias
que seria ridículo contá-las. “não conhecem nenhuma divindade, não têm

52 Pompa lembra ainda: o nativo “não é o objeto mudo da descrição alheia, mas se representa como

interlocutor, determinando as próprias condições do encontro”. (POMPA, 2001:3, 7 e 11).


82
nenhuma idéia concernente à religião, não possuem nem templos nem altares.
(NANTES, [1702].)

Semelhante opinião conservava o padre Martinho de Nantes. Em


muitos casos eram tão parecidas as idéias e estrutura das teses defendidas
em suas relações que se as deve entender como posição institucional dos
capuchinhos. Segundo Martinho de Nantes:
Tinham um deus para as culturas que a terra produzia; outro para a caça; outro
para os rios e as pescarias, e a todos esses deuses deixavam tempo para as festas
em sua honra, e manifestavam sua adoração com alguns sacrifícios, que incluíam
as mesmas coisas que recebiam, por meio de cerimônias pouco diferentes,
constituídas de danças, pintura do corpo, festins quase sempre impudicos,
praticando o adultério, a que não davam nenhuma importância.”
É preciso, pois, nos persuadirmos que tudo o que pode nascer de uma natureza
corrompida, instigada pelo Demônio, encontra-se entre os índios, que antes de
sua conversão são arrastados por essas ilusões. As diferenças são pequenas, para
mais ou para menos. Todavia foram encontrados alguns, nesse grande número de
índios, que se continham nos limites da lei natural (NANTES, 1979:4).53
O padre jesuíta Manuel Correia, escrevendo sobre os tapuias
chamados Moritizes informava que eles mantinham costumes aparentados
dos Cariri, especialmente as figuras míticas e rituais a Araquizã e Poditã, que
adiante veremos presentes em diversos grupos do Nordeste do Brasil.
Segundo o padre Manuel Correia:
De Araquizã (sic) e Poditã (sic), dois irmãos, da raça dos Tapuias, que habitavam a
Constelação de Orion, lhes vinha a chuva e os alimentos e a vitória certa contra os
inimigos. Nenhuma outra idéia tinham de Deus Imortal, que não afirmavam nem
negavam existisse. Conheciam o nome do mau Demônio. Mas não sabiam quem
fosse ou donde lhe viesse a arte de fazer mal. Tudo o que os velhos sonhavam
durante a noite, era oráculo para os novos. (Carta Anua de 1 de junho de 1693, ARSI,
Bras. 9:383 apud LEITE, 1945, vol. V:277-278).

O padre Bernard de Nantes menciona uma divindade Cariri


chamada Üanaquidze, que na morfologia da palavra, lembra muito Araquizã
dos Moritizes referida pelo padre Manuel Correia. Bernard de Nantes
informa ainda sobre a estratificação das divindades ou hierarquia do panteão
tapuia, encabeçado pelo Deus pai Ipadze seguido por Inhura o filho e
finalmente por Ibuiehohe que é identificado como o companheiro do Deus
superior. Segundo Bernard de Nantes havia:

53 É interessante notar opinião contrária nos relatos de Pudsey e Elias Herkmans. Segundo Pudsey

“As mulheres são belas, bem parecidas a andam nuas. Entretanto, apesar de serem uma gente
demoníaca, ainda assim punem muito estritamente qualquer um que seja encontrado em adultério, e
ainda com torturas. As moças também, se achadas culpadas da mesma ação, ficam para sempre
desonradas entre eles, e não são consideradas dignas, nunca mais, de serem esposas de qualquer um
deles, permanecendo durante toda sua vida como que exiladas entre eles.” (PUDSEY, [1640]:1v-2r.)
83
uma outra divindade chamada Üanaquidze, à qual são ofertadas certas vestimentas
curtas feitas de plumagem de pássaro, tais ornamentos são denominados
“waka”,54 com o qual eles se vestem quando do celebrar das festas. Mas esses três
deuses, convém observar que o primeiro o chamam “Ipadze”, que significa “pai”,
o segundo o chamam “Inhura”, que significa “filho”, e o terceiro “Ibuiehohe”, que
quer dizer “companheiro de deus.(NANTES, [1702]).
O padre Martinho de Nantes completa a informação de Manoel
Correia e de Bernard de Nantes com outra nomenclatura Üanaquidze que
para Martinho de Nantes era Toupart. Noutras narrativas vamos encontrar
diferentes nomenclaturas, todavia quando analisadas as atribuições de cada
figura mítica, identificam-se sem dificuldades suas correspondências. Diz
Martinho de Nantes: “grande deus do céu, Touppart,55 tinha mandado para a
terra um grande amigo para morar com eles. Chamavam-no o grande pai;
recorriam a ele em todas as aflições, a que ele sempre dava remédio.”
(NANTES, 1979:99-100). Segundo Bernard Nantes
Deus tinha dois filhos, e o caçula brigava com o mais velho, e ele o abandonou
por causa disso e foi-se embora. O mais velho, após vários anos sentindo a falta
do irmão, tinha dito a seu pai que ele iria até a terra para procurá-lo; ele veio e o
encontrou com os descendentes, que o maltrataram muito e, depois ele morreu
de sede, por isto sua mãe ficou desesperada, e após a sua morte ele aparecia
freqüentemente para eles, tanto num lugar quanto em outro e que por fim eles o
tinham visto subir ao céu por cima de uma certa montanha; depois disso eles não
o viram mais. (NANTES, [1702]).
A respeito da criação da mulher o padre Martinho de Nantes
informou que os Cariris acreditavam que antigamente só existiam homens
até que o Deus deles criou a mulher. Escreve:
Os cariris eram numerosos e não tinham mulheres, senão uma única, que era bela
e jovem, mas ainda não se casara. Pediram ao Grande Pai que lhes desse
mulheres. Ele o prometeu e o mandou a todos que fossem caçar. Em seguida,
disse a essa moça que catasse piolhos na sua cabeça. Ela obedeceu, mas
adormeceu e morreu. O Grande Pai a dividiu em tantos pedaços quantos eram os
homens da tribo e deu a cada um o seu pedaço, recomendando que o
envolvessem em algodão e o pendurassem em determinados lugares de sua casa, e

54 Segundo Helias Erkmans “Quando se celebra algum casamento, (...) enfeitam-se de toda a sorte de

penas vistosas, com o que parecem mais um pássaro ou um monstro do que um ser humano.”
(HERCKMANS, [1639], 1985:99-112). O Padre Serafim Leite tratando dos Païaïases transcreve a
Carta anua do Pe Antônio Pinto, que informa sobre as máscaras rituais destes índios, “Vestem ao
Tapuia o seu vestido, tecido de fôlhas de palma, de 15 (quindecim) pés de comprido, todo de pregas e
franjas, as quais caem um pouco acima dos joelhos. Na cabeça até os ombros tem o diadema, que
termina para o alto em ponta. Na mão direita uma frecha afiada.” Sexennium Litterarum, 1651-1657, do
P. Antônio Pinto.(ARSI, Bras. 9:16v-18). (Leite, 1945, vol. V:273).
55 Tuppart. Os índios várias vezes contaram a frei Martinho que o grande deus do céu se chamava

Tuppart. É pequena a diferença para Tupã. Mamianni, na Arte da Grammatica da Língua Brasílica da
Nação Kiriri, registra Tupã - Casa de Deus Era uma demonstração das afinidades encontradas em
diversos idiomas do gentio. (MAMIANNI, [1698]. 1942:6).
84
que fossem depois à caça e não voltassem senão depois de alguns dias.
Regressaram no tempo marcado e escutaram, ao se aproximar de casa, o vozerio
de todas essas mulheres, já ocupadas em preparar a comida de seus maridos.
(NANTES, 1979:101).

Os Cariri tinham um mito muito difundido sobre seu Deus Badzé,


mito esse que o padre Martinho e o padre Bernard registraram em duas
versões. A primeira delas, divulgada por Martinho de Nantes é a seguinte:
Eles me contaram várias vezes que o grande deus do céu, a que eles chamam
Tuppart, tinha mandado para a Terra um grande amigo para morar com eles, e
que vivia como eles, e vivia também nu. Parecia velho, mas não sentia as
fraquezas da velhice. Uma ou outra vez, podiam verificar que a rede em que ele
dormia era muito bonita e muito branca, conquanto de dia parecesse com as
outras. Chamavam-no o Grande Pai; recorriam a ele em todas as aflições, a que
ele sempre dava remédio.
Um dia, tiveram o desejo de comer porcos selvagens, ou os javalis desses lugares,
que nós, em França, chamamos marcassin. Pediram ao seu Grande Pai, que o
prometeu. Saíram todos de sua casa e foram, como de costume, para as tarefas de
todos os dias, deixando apenas os filhos menores de dez anos com esse Grande
Pai. Ele os chamou a todos, um por um: “Vinde comigo, meus meninos.” Vieram
todos. Depois, passando a mão pela cabeça, ele os transformou em pequenos
javalis e os despediu. Quando os pais regressaram, por volta do meio-dia, não
encontrando nenhum de seus filhos, recearam que o Grande Pai houvesse feito
com eles alguma coisa. Mas não ousaram perguntar-lhe onde estavam seus filhos,
pois que muito o respeitavam e temiam. Então, ele lhes disse: “Vocês queriam
javalis (no seu idioma, malanhoua); vão à caça e os encontrarão.” Foram à caça,
mas o Grande Pai fez subir ao céu todos esses javalis, galgando a grande árvore
que encontraram no caminho, e o Grande Pai subiu com eles. Os índios
perceberam que os javalis haviam subido ao céu pela árvore que haviam
encontrado. Foram atrás deles, mas demoraram muito na perseguição. Desde que
chegaram, encontraram muitos javalis; correram atrás deles e mataram muitos.
No entanto, o velho, encontrando-os no céu, na perseguição aos javalis,
encomendou logo às formigas que abatessem a grande árvore em que eles haviam
subido. As formigas se puseram logo em ação. É uma espécie de formiga
vermelha,56 que tem dois pequenos bicos ou antenas na cabeça, com os quais
corta facilmente as folhas das árvores. Os sapos se reuniram para deter as
formigas, cercando a árvore com os seus braços. As formigas, para que saíssem,
picaram-lhes rudemente as costas e eles abandonaram a árvore, pela dor das
picadas, e é daí que os sapos têm a pele rude e como empolada nas costas. Mas as
formigas derrubaram a árvore, de sorte que os cariris, concluída a caça, quiseram

56 Saúva Formiga vermelha ou Atta spp (nome científico), gênero Atta, é uma formiga cortadeira,

alimenta-se basicamente da seiva que as plantas liberam enquanto estão sendo cortadas. São
encontradas nas Américas com exceção do Chile. No Brasil ocorrem as seguintes espécies: Atta
capiguara (saúva parda), Atta sexdens (saúva limão), Atta bisphaerica saúva mata-pasto, Atta laevigata
(saúva cabeça de vidro), Atta robusta (saúva preta), Atta silvai e Atta vollenweideri. As rainhas seminadas
destas formigas (tanajuras) foram utilizadas pelos índios como parte da dieta sazonal na época das
chuvas quando elas saem das colônias para formação de novos formigueiros. Cf
http://pragas.terra.com.br/pragas/formiga/formiga_sauva.htm.
85
descer do céu pela mesma árvore em que haviam subido, mas a encontraram
derrubada. Ficaram espantados e temerosos. Atiraram diversas flechadas na
árvore, com o intento de a levantar de novo. Ela fazia também esforços nesse
sentido e chegou a levantar-se um pouco, mas de novo caía no solo.
Resolveram, então, prender-se uns aos outros pela cintura, para fazer uma corda
que lhes permitisse descer; mas a corda era curta. Caíram uns depois dos outros e
quebraram os ossos, na queda. Daí, dizem eles, é que temos os dedos das mãos e
dos pés partidos em tantos lugares e dobramos o corpo pelas fraturas que nossos
pais sofreram na queda. Enfim, regressaram às suas casas arrebentados. Cheios de
caça, fizeram grandes banquetes à custa de seus filhos transformados em javalis.
Em seguida, rogaram ao Grande Pai para que voltasse em companhia deles. Mas
ele não os quis atender e lhes deu o fumo57 como compensação. Eles o
denominam batzé. Essa a razão pela qual fazem oferendas com o fumo em
diversas ocasiões.58
O padre Bernard de Nantes registrou outra versão deste mito de
criação com algumas mudanças fundamentais: Na sua versão as crianças não
são transformadas em javalis, o Deus Badzé enviado pelo Deus grande para
viver na terra com os Cariri e contrariado, retorna para o céu levando os
toros de madeira:
Dizem que o deus deles, Badzé (é assim que eles chamam a divindade deles),
mora no céu, e que tendo um dia descido à Terra, vem visitá-los para fazê-los
testemunhar o seu afeto; eles para corresponder a isso, recebem-no cortesmente
sem se conter, tratam de festejá-lo. Para esse efeito, saem para caçar, os pequenos
e os grandes, matam grande quantidade de animais, reúnem-se carregados durante
3 horas e, tendo cozinhado tudo, ofertam a Badzé o primeiro prato o qual ele não
gosta e faz suas queixas. Para os punir pela falta de cortesia, deixa-os e volta

57 Fumo = Badzé. Chamam o fumo de pai. Tabaco “Quando iam caçar diziam que se não levassem

tabaco não achariam caça: se o levassem nada tinham que temer dos contrários, e que com a presença
dêle se acalmavam os ânimos perturbados e se dissipavam as iras das bebidas.” (NANTES, [1706].
1979:99-100). A carta Anua do padre Manuel Correia 1693 fala do ritual do fumo entre Moritizes.
Diz ele: “O rito da festa do “Varakidran” era assim, e talvez ainda seja algures, entre os gentios, e é o
único que os índios veneram. Ergue-se em terreno largo e aberto, uma cabana maior do que as
outras, cercada por todos os lados com muitos paus e palha, das quais pendiam muitas esteiras
tecidas de folhagem nova. No centro da cabana colocava-se uma cabaça ôca e sêca e com vários
orifícios, que êles, notadamente rudes, tinham por uma cabeça humana. Debaixo dela acendiam fogo
com lenha verde. O fumo subia pela cabaça e saia pelos orifícios em direcções diversas. Os mais
velhos da Aldeia punham-se à roda dela, e entre êles o Pagé principal, a quem os Varakidrenses
chamam Pai. Todos êles chupam o fumo de tabaco, de tubos ou cachimbos de barro (e fistulis figlinis),
que guardam com diligência para êste dia; ao mesmo tempo abrem a bôca e sorvem o fumo que sai
daquela cabaça furada, ou Ídolo. Até que ficam como tontos e embriagados.” (ARSI, Bras. 9:382).
(LEITE, 1945. vol. V:298-299).
58 O fumo subia pela cabaça e saia pelos orifícios em direcções diversas. Os mais velhos da Aldeia
punham-se à roda dela, e entre êles o Pagé principal, a quem os Varakidrenses chamam Pai. Todos
êles chupam o fumo de tabaco, de tubos ou cachimbos de barro (e fistulis figlinis), que guardam com
diligência para êste dia; ao mesmo tempo abrem a bôca e sorvem o fumo que sai daquela cabaça
furada, ou Ídolo. Até que ficam como tontos e embriagados.” (ARSI, Bras. 9:382). (LEITE, 1945. vol.
V:298-299).
86
incontinenti ao céu, levando consigo as toras de madeira.59 Os Cariri não deixam
de comer a caça, ainda que todos tristes. Alguns dias após, forçados pela fome,
voltam à caça, mas não conseguem nada. Eles têm que subir ao “céu” por uma
árvore muito alta; na qual eles entram por uma abertura e começam a caçar de tal
maneira que em pouco tempo se encontram providos, bem alegres com tal sorte
mas temendo serem pegos com a caça nas mãos eles tentam descer da árvore,
com a caça nas costas, pelo lugar através do qual eles haviam entrado. Todavia,
Badzé tendo visto o temor deles, ordenou às formigas que retirassem a terra junto
ao pé da árvore que por isso tombou; de modo que os caçadores, vendo-se
privados de sua escada, tentaram prender seus cintos uns aos outros para permitir
que escorregassem até a terra, avisando ao primeiro que descesse, sinalizasse para
os outros quando tivesse chegado no chão, balançando essa corda de cinturãos de
cipó. Ele promete fazer, mas tendo encontrado a corda curta demais, faz sinal
para eles alongá-la, balançando a corda, e esses acreditando que ele já tinha
chegado ao solo, se meteram a descer escorregando pela corda, uns após os
outros com tamanha precipitação que a corda, devido ao peso excessivo, acabou
se rompendo e eles caíram todos na terra; foi uma queda tão violenta que todos
eles deslocaram braços, mãos e pés, e por isso, dizem eles, que nós temos todos
os braços, mãos e pés tão chatos e com tantas emendas
O padre Bernard de Nantes registrou o ritual de passagem ofertado
à divindade chamada Politay para celebrar o ingresso dos rapazes na
puberdade:
Além desse deus Badzé, eles têm um outro chamado Politay, que na língua deles
quer dizer “moço”. Eles celebram a festa todas as vezes que algum jovem índio
atinge a idade da puberdade, o qual tem o lábio inferior perfurado com um osso
afiado destinado a esse uso pelo ministro desse deus formoso; e depois, pelo
buraco, lhe põem uma pequena pedra, geralmente de cor branca, que fica presa
por dentro, chamada de “romujhebbs”; eles jamais tiram essa pedra do lábio, nem
mesmo após a morte. Acabada a cerimônia, é a hora do banquete em homenagem
ao deus Politay, estimado por eles por ter o poder de tornar o jovem, assim
marcado, feliz, coroado de sorte e apropriado para a caça; eles chamam isso de
“thonne do duaplu”. (NANTES [1702]).
Este ritual é um dos que se difundiu largamente pelo Nordeste do
Brasil. Elias Herckmans o autor da Breve descrição da vida dos Tapuias, registrou
entre os Cariri da Capitania do Rio Grande do Norte o ritual, diz o autor:
os seus meninos. Quando estes atingem a idade de sete ou oito anos, os pais os
fazem homens, como eles dizem, o que se passa assim. Reúnem-se os amigos
com a costumada gritaria, e o mais velho deles levanta o menino e o mantém
suspenso, de modo que os outros lhe abram um furo no lóbulo ou parte inferior
de cada orelha, bem como no lábio inferior -acima do queixo, onde introduzem
uma pedrinha verde, branca, preta ou colorida, e nos buracos das orelhas
pauzinhos ou ossinhos adrede preparados. Esses são os sinais da sua virilidade,

59 tora grossa de madeira que eles chamam em língua Quiriri “motto”. (NANTES [1702]). Estas toras

tem um significado importante na cultura Quiriri que ainda não ficou bem claro. Aqui Badzé as leva
para o céu para punir os Quiriri.
87
(...) Uma vez que alguém tenha feito patente a todos que possui essas qualidades
varonis, é-lhe dada uma mulher com as seguintes cerimônias. Abre-se-lhe um
buraco em cada uma das faces para se meterem pauzinhos ou ossinhos brancos,
semelhando pedaços quebrados de cachimbo, tendo alguns 3, 4 e 5 polegadas de
comprimento, o que é um sinal certo de serem casados ao seu modo. Os que não
trazem esse sinal e todavia atingiram a idade viril, são tidos em pouca estima e
consideração. Também se permite abrir esses buraquinhos nas faces àqueles que
trazem duas cabeças dos seus inimigos, corno prova de os haver matado.
(HERCKMANS, [1639], 1985:99-112).

O padre Martinho de Nantes contribui com a informação de seu


confrade Bernard sobre a cerimônia de iniciação à puberdade:
Para serem felizes na caça ou na pesca, faziam queimar ossos de animais ou
espinhas de peixe e os mestres de cerimônia faziam beber aos jovens o suco de
certas ervas amargas60 e, esfregando várias partes do corpo desses jovens com os
dentes agudos de animais, incrustados em cera, misturados com cinza, os faziam
penetrar na pele com dores sensíveis, durante os dez dias que durava a festa. Era
necessário que os moços presenteassem com caças e pescarias os velhos, sem que
eles próprios saboreassem um só pedaço, ou não lhes davam, durante todo esse
tempo, senão uma sopa muito rala, feita com farinha de milho ou de mandioca, e
passavam a noite cantando e dançando. Regressavam de madrugada à caça e à
pesca, de sorte que essa dieta e esse exercício acabavam por emagrecê-los.
(NANTES [1706], 1979:6-7)

O padre Antônio Pinto registrou também uma celebração de iniciação


para as mulheres realizada pelos Païaïases. Segundo este autor jesuíta:
As moças, enquanto se não casam, andam nuas. Depois de casadas aplicam a si
um vestido pouco formoso, de fôlhas de árvores; e arrancam as sobrancelhas, as
pestanas e a unha do dedo polegar. Os seus cuidados não são mais que petiscar a
miúdo, e beber, e gastar o tempo em divertimentos. E assim levam vida tranqüila
e risonha.
As mulheres, excepto as virgens, andam tôdas com vestido conveniente.
Embelezam assim o rosto: com o dente fino de um rato riscam as faces, dando-
lhes o ornato que mais lhes apraz; quando começa a borbulhar sangue, juntam as
cinzas de um pau, a que chamam carendiciba, misturadas com o sumo do genipapo, e
com essa espécie de tinta, lavam as feridas, que depois de secas, ficam feitas riscas
de azul marinho, que nunca mais se apagam. (Sexennium Litterarum, 1651-1657,
ARSI. Bras. 9:16v-18).

60 São citadas na etnografia pelo menos duas beberragens alucinógenas, a primeira delas a feita da

semente queimada da arvore coparamba? E a segunda, talvez a mais conhecida a Jurema, ou ajucá,
ainda hoje utilizada pelos índios do rio São Francisco em seus rituais. Ver sobre o tema a dissertação
de Clélia Moreira Pinto, Sarava Jurema Sagrada: As várias faces de um culto mediúnico. ,. (PINTO, 1995);
Ver também a dissertação de Marco Tromboni Nascimento, O Tronco da Jurema: Ritual e etnicidade entre
os povos indígenas do nordeste - o caso Kiriri. (NASCIMENTO , 1994). Edwin Reesink estuda o complexo
da Jurema, ver O Segredo do Sagrado: o Toré entre os índios no Nordeste. Do mesmo autor veja: As muitas
faces da Jurema, de espécie botânica à divindade afro-indígena. Edições Bagaço, Recife 2002.
88
Segundo Bernard de Nantes, quando os Cariri promoviam alguma
festa, convocam uns aos outros e se reuniam em várias casas: “Nessa
ocasião, eles comem juntos num grande terreiro, cada qual trazendo sua
própria colher, mas as mulheres comem à parte, o chão lhes serve de mesa,
deixando que os cães, que estão sempre esfomeados, se mesclem
freqüentemente entre eles durante a refeição”. Mas a principal celebração
dos Cariris parece ter sido aquela dedicada a Varakidram conforme registrou
o padre Manoel Correia ou Ünaquidze se preferimos a denominação grafada
por Bernard de Nantes; Eraquidzam dos Païaïases também coletada pelo
padre Manoel Correia. O padre Manuel Correia em carta da Bahia de 1 de
junho de 1693, informa sobre a divindade Varakidran celebrada na aldeia do
Jeru pelos Cariris. Note-se o destaque para o uso das cabaças furadas
representando figuras antropomorfas e o uso do fumo:
Costumavam na Aldeia do Juru, antes do estabelecimento dos Padres, quando ali se
acolhiam os índios vindos do mato, celebrar a festa de Varakidran (sic), a que
acorriam não só o gentio de outras aldeias, mas muitos outros que andam pelos
matos, e até muitos índios cristãos, que já estavam nas Aldeias dos padres e ali iam
às escondidas, e era preciso impedir com palavras, ameaças e castigos para se
absterem dessas superstições.
O rito da festa do “Varakidran” era assim, e talvez ainda seja algures, entre os
gentios, e é o único que os índios veneram.
Ergue-se em terreno largo e aberto, uma cabana maior do que as outras, cercada
por todos os lados com muitos paus e palha, das quais pendiam muitas esteiras
tecidas de folhagem nova. No centro da cabana colocava-se uma cabaça ôca e sêca e
com vários orifícios, que êles, notadamente rudes, tinham por uma cabeça humana.
Debaixo dela acendiam fogo com lenha verde. O fumo subia pela cabaça e saia
pelos orifícios em direcções diversas. Os mais velhos da Aldeia punham-se à roda
dela, e entre êles o Pagé principal, a quem os Varakidrenses chamam Pai. Todos êles
chupam o fumo de tabaco, de tubos ou cachimbos de barro (e fistulis figlinis), que
guardam com diligência para êste dia; ao mesmo tempo abrem a bôca e sorvem o
fumo que sai daquela cabaça furada, ou Ídolo. Até que ficam como tontos e
embriagados.
Enquanto isto se passa dentro da Cabana, no terreiro os moços mais robustos,
todos emplumados de várias cores, e com riscas negras no corpo, andam à roda das
esteiras, que fecham a cabana, em danças desordenadas e gritaria desentoada. Os
chefes da dança e do coro, trazem cabaças vazias e furadas diante do rosto, e usam
flautas de osso de certas aves, mais para sibilar do que tocar, cujos ossos têm em
grande estima, e guardam com grande veneração, durante o ano. Desta maneira se
estende a festa por três ou quatro dias, até que saem da cabana os velhos ébrios do
fumo e concluem a festa com os seus vaticínios. Voltam-se para a gente que está à
roda, e começam a predizer o futuro, com mentiras que os ouvintes têm por mais
verdadeiras do que a própria verdade: se o ano há-de ser de sêca ou de abundância;
se hão-de apanhar muita caça ou pouca; se os ares hão-de ser salubres ou mortíferos

89
para o corpo; se hão-de morrer velhos ou novos; e outros oráculos como êstes, que
ninguém dos que os ouvem põe em dúvida. (ARSI Bras. 9:382).
Padre Antônio Pinto nos deixou um relato valioso sobre os costumes
dos índios denominados Paiaiases que ao lado do testemunho do padre
Manuel Correia sobre os Cariris da aldeia do Jeru, torna-se num excelente
quadro das práticas Cariris. Diz o padre Pinto:
Os Païaïases são muito submissos aos seus pagés a que chamam Visamus. Não têm
ídolos, nem divindades, se exceptuarmos uma semelhança de idolatria, no que
chamam seu deus Eraquizã [Erachisam], cujo dia festivo, anual, se celebra assim:
Fazem uma pequena cabana não muito distante da Aldeia. Juntam-se nela os pagés
mais velhos. Vestem ao Tapuia o seu vestido, tecido de fôlhas de palma, de 15
(quindecim) pés de comprido, todo de pregas e franjas, as quais caem um pouco
acima dos joelhos. Na cabeça até os ombros tem o diadema, que termina para o
alto em ponta. Na mão direita uma frecha afiada. Antes que entre na cabana
sagrada (a narrativa latina diz aqui templo) do deus Eraquizã, fazem os pagés ingente
alarido, e fogem todos os outros Tapuias para dentro das casas.

Figura 8 - Mascara de fibra de caruá “Praiá Mestre de ouro” Pankararu,


Tacaratu, PE.
Logo sai o Eraquiza, de horrendo e disforme aspecto. Dá volta a toda a Aldeia, e
se encontra alguém mata-o com a seta aguda, que leva na mão direita, para o
castigar da sua irreverência, que se atreveu a encontrar-se com tão grande deus.61

61 Um dos mais completos registros destas mascaras e artefatos dos Pancararus foi registrado por
Estevão Pinto no célebre artigo As mascaras de dança dos Pancararu de Tacaratu: remanescentes indígenas dos
sertões de Pernambuco. Publicado da revista Nordeste Indígena: N° 2, 1991. Este ensaio foi publicado
originariamente na Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Rio de Janeiro em
1938, sob o titulo “Alguns aspectos da cultura artística dos Pancarus”. No mesmo ano foi traduzido
para o espanhol e publicado na Revista Geográfica Americana, de Buenos Aires, ano VI, vol. X, n. 62,
sob o titulo “Las máscaras de danza de los Pancarús”, nome este também usado na recente edição do
90
Feito o reconhecimento, para diante das casas, toca a flauta (tíbia) diante delas,
signal para as oferendas de comer, e vai sentar-se no meio do terreiro, esperando-
as. Saindo então cada um de casa, leva-lhe com grande respeito as oblatas e
presentes. Concluída a cerimônia recolhem-se de novo às casas para que não os
ache o Eraquidzã, que se levanta e dá outra volta ao redor da Aldeia, e dirige-se à
cabana sagrada, donde saem a correr os pagés, apanham as oblatas e presentes e
voltam à cabana a banquetear-se. (Sexennium Litterarum, 1651-1657, ARSI. Bras. 9:16v-
18).

O padre Simão de Vasconcelos, na sua Crônica da Companhia de


Jesus, se referindo genericamente à ‘Tapuias’sem identificar grupo ou região,
notou a prática do uso de mascaras e fumo nas celebrações destes nativos,
práticas estas que chamam a lembrança dos costumes Cariris no São
Francisco como aquela relatada pelo padre Manoel Correia em 1693 na
aldeia do Jeru. Diz o padre Simão de Vasconcelos:
usam alguns um cabaço a modo de cabeça de homem fingida, com cabelos,
orelhas, narizes, olhos, e boca: estriba esta sobre uma flexa, como sobre um
pescoço, e quando querem dar seus oráculos, fazem fumo que sai pelos olhos,
ouvidos e boca da fingida cabeça, recebem pelos narizes tanto, até que com ele
ficam perturbados, e como tomados de vinho, e depois de assim animados, fazem
visagens, e cerimônias, como se foram endemoniados:62 dizem aos outros o que
lhes vem à boca, ou o que lhes ministra o diabo; e tudo o que dizem enquanto
dura aquele desatino, crêem firmemente, qual se fora entre nós revelação de
algum profeta. A uns ameaçam a morte, a outros más venturas, a outros boas; e
tudo recebe o vulgo ignorante, como dito de alguma Deidade. Em qualquer lugar
que aparece, fazem-lhe grandes festas, danças e bailes, como aqueles que traz
consigo espírito tão puro. (VASCONCELOS, [1663]. 1977, vol.II:121).
Padre Bernard, narrando os costumes dos Kulepós e Kracuís,
situados ao nordeste de Rodelas, registrou práticas culturais bastante
assemelhadas aquelas dos Paiaiases descritas pelo padre Antônio Pinto no
Sexenium Literarum de 1651-1657. Diz Bernard de Nantes:
Há cerca de um mês que os principais deles resolveram abandonar o Kiquimé (é
o nome do falso deus deles), e jogaram esse ídolo, por desprezo, num velho
galinheiro. Este ídolo é chamado de Kuleppos por outra tribo, e é a mesma
divindade. Estes chegaram em diligência enojados pela afronta que os kracuís

Journal de La Société das Américanistes (Nouvelle Série, t XLI, fasc. 2, Paris, 1952). Em 1946, o resumo
deste trabalho “The Pancararú” foi publicado por Robert H. Lowie no Handbook of South American
Indians, vol. I, Washington.
62 Este fumo que suponho se tratar da Canabis Sativa, me parece ser a mesma Erva Santa descrita pelo

padre Fernão Cardin: “Erva Santa – esta erva santa serve muito para várias enfermidades, como
feridas, catarros, &, principalmente serve para doentes de cabeça, estômago e asmáticos. Nesta terra
se fazem humas cangueiras de folhas de palma cheia desta erva, e pondo-lhe fogo por uma parte
põem a outra na boca, e bebem no fumo; he uma das delícias, e mimos desta terra, e são todos os
naturaes, e ainda os portugueses perdidos por ella, e tem por grande vício estar todo o dia e noite
deitados nas rêdes a beber fumo, e assi se embebedão delle, como fora vinho.” (CARDIN, [1625].
1978:49).
91
tinham feito contra o deus deles, Kiquimé. Eles haviam revelado aos kracuís o seu
ressentimento e reprovaram os deuses deles, pois eles os vendiam por duas
cabaças de mel, preço bem vil à liberdade por um deus, mas contudo isso era
ainda muito para um deus desse tipo.
Alguns anos depois que ele (Domingos Jorge Velho) chegou vindo do Piauí,
recentemente descoberto no interior desse Brasil, onde eu havia estado com um
padre63 que tinha me pedido para ajudá-lo a executar as funções curiais em sua
paróquia, que não tem menos de 300 léguas, chegamos até as terras desses índios
kuleppós, onde nós encontramos na beira do rio um velho índio ao qual pedimos
para que nos servisse de guia ao longo da ilha enquanto que nossa canoa descia
em direção ao meio das cachoeiras que são muito perigosas.
Indo assim chegamos a um certo lugar sombreado feito em forma de praça
redonda bem com vários enlaces de caroá em quinze ( ) pendidos ao redor de...
feitas de tábuas de árvores. Era o recinto principal deles e nosso condutor devia
ser um dos oficiais, pois ele disse, ao padre e a mim, que este estaria lá onde os
índios se reuniam e tratavam do culto do deus deles.
Perguntamos a ele onde estava seu deus, ele respondeu que guardavam os deuses
deles em casa. A curiosidade foi tamanha que nos desviamos um pouco do nosso
caminho para ir vê-los. Inicialmente o índio hesitou em levar-nos até a tenda,
talvez com temor que nós tirássemos o deus deles. Finalmente, tendo chegado na
aldeia, ele foi logo dizendo aos seus que nós tínhamos vindo para conhecer o seu
Deus, com o que eles não ficaram contentes. Ele nos mostrou duas cabaças, uma
grande, a outra pequena, feitas para os Deuses. A grande, disse que continha o
grande deus, e a pequena continha o pequeno deus.
Quisemos ver o que havia nessas cabaças. Ele resistiu e se irritou, até que vencido
pela insistência e pelo presente de uma moeda de prata que o padre lhe deu (ainda
que a moeda não tenha valor corrente entre eles que a estimam contudo por ver
que os brancos a fazem...), decidiu abrir as cabaças. Então nos surpreendemos ao
ver todos aqueles da casa, mulheres e crianças, principalmente os velhos, fugindo
ao mesmo tempo para se esconder nas matas. Nós perguntamos por quê fugiam,
e eles nos deram a entender que era o medo que eles tinham de morrer devido à
abertura das cabaças.

63 O padre a que Bernard de Nantes se refere é Miguel do Couto Carvalho, autor da Dezcripção do

certão do Peauhy de 1697.


92
Figura 9 - antropomorfo feito de cera de abelha. Petrolina – PE. Col.
Laboratório de arqueologia da UFPE.
Ele abriu pois a grande, generosamente, tendo feito primeiramente alguns sinais
de volta de mãos em cima e abanado 3 ou 4 vezes em volta. Eu quis ver o que
havia dentro, mas tudo estava escuro, foi então que ele tirou respeitosamente uma
pequena figura feita de cera negra onde estavam colocados alguns ossos de
pássaros e certas pedras verdes e pequenas.
Esses kuleppós e outras nações como os Uajás, Talmachions, Üakanous, Veleras
e outros que habitam junto desse rio acima, não deixarão de receber também a
doutrina evangélica se houver quem a anuncie para eles, todavia faltavam
operários para colher essa colheita e seriam necessários vários deles, uma vez que
eles são de diversas línguas tão separados uns dos outros, tendo cada qual o seu
(...); e ainda que um missionário fosse de uma tribo, a outra, para ensiná-los,
pouco adiantaria, pois estando os índios sós, eles voltariam facilmente aos seus
erros, a assistência prestada por aqueles que querem salvar almas é absolutamente
necessária para eles. (NANTES, [1702]).
Os índios acima foram classificados como tapuias de corso por
Bernard de Nantes. Contudo, apesar da diferenciação expressa e pela
referência de serem menos sedentários que os Cariri, mantinham com estes
costumes comuns. Parece que a nomeação de corso valia tanto quanto
arredio, independentemente de sua real situação. Continuando sua narrativa,
notou o padre Bernard de NANTES:
Eles só pensam naquilo que se apresenta atualmente perante os seus olhos, e não
buscam outra satisfação senão aquela dos sentidos, que é comum aos animais,
caminhando nus como os animais, alimentando-se de frutas que encontram pelo
caminho que a terra dá espontaneamente. Alguns sentem prazer à maneira dos
bárbaros, sem vergonha uns dos outros, como ainda fazem alguns selvagens em
volta daqui, como os Aracuís, Umans, Jaicós, nômades que andam e vivem pelas
matas.
A paixão obscureceu a razão desses miseráveis e o sentido de entendimento para a
assiduidade do pecado, que eles já não conhecem (pecar), que é muito obscuro. Eu
falo daqueles que estão a 200 e 300 léguas adentro no interior do Brasil, tais como

93
são aqueles, pois os índios que estão mais próximos do mar são mais humanos,
devido à contato que têm com os brancos que habitam o litoral.
Eles são de cor amarelada puxando para o vermelho, é por isso que os brancos
chamam eles de vermelhos. Eles são de uma estatura insignificante, na maior parte
das vezes; alguns tendo também uma estatura alta e feroz exatamente como os mais
selvagens que não têm outra preocupação a não ser aquela de procurar o que
comer. Cortam os pêlos do corpo, inclusive os supercílios e pálpebras, tanto
homens quanto as mulheres, mas somente os homens cortam o cabelo do alto da
cabeça, deixando um círculo de cabelo que não vai mais abaixo das orelhas.
Eles pintam o círculo de urucum e de diversas outras pinturas, principalmente
quando vão à guerra, e os mais disformes passam por mais valentes e mais terríveis,
e vendo essas deformidades bárbaras colocam mais terror nos seus inimigos.
Alguns usam uma tornozeleira de penas de aves em forma de chapéu, outros fazem
uma frisa à maneira de calção curto. Há uns que se lambuzam com mel grosso e
cobrem o corpo então com pequenas penas de pássaros de várias cores, o que os
faz parecer com estátuas de madeira. (NANTES, [1702]).
Sobre a arquitetura e a disposição das aldeias Cariri pouco se sabe. O
inglês Cuthbert Pudsey, reporta-se aos tapuia que viviam “fora do país, num
lado e noutro do rio de São Francisco”, ao ocidente da costa de
Pernambuco, provavelmente se referindo ao Sertão de Rodelas. Segundo
seu testemunho, os tapuia se dividiam em largas aldeias que podiam abrigar
entre 400 e 500 habitantes, que ele acreditava serem pertencentes a um
único núcleo ou “famílias de seus filhos”. (PUDSEY, 1640:1v-2r) Frei
Francisco de Lucé, capuchinho, companheiro de Martinho de Nantes
também se referiu a arquitetura Cariri, diz ele em seu Abragè:
Era formada de um grande galpão a maneira de meda, medindo, geralmente,
quarenta metros de comprimento por vinte de largura, cujas estruturas de suporte
eram feitas por uma sólida contextura de varas, cobertas por uma camada compacta
de palha de buriti. (...) podiam caber ate 200 pessoas. Geralmente era bem
estruturada; a cobertura em forma de carena era impermeável, mesmo aos
aguaceiros mais pesados. O pavimento, de chão batido, era enxuto e bem limpo. Na
penumbra do vasto ambiente se gozava de uma temperatura amena. Não havia
divisões, nem andares, nem janela nem chaminé. A fumaça do fogo aceso no centro
da maloca subia e, filtrando-se pelas brechas da palha, dissipava-se no ar. (...) Para o
índio a maloca servia de cozinha, sala de jantar, quarto de dormir, lugar de trabalho
e de reuniões no tempo das chuvas e de danças nas festas tribais. No perímetro
podia haver de 10 a 20 malocas, alinhadas em fila dupla; assim uma aldeia podia ter
de três a quatro mil pessoas.64

64 Abragé de la relation do père François de Lucè, Capucin de la Province de la Bretagne touchant

leurs missions du Brèsil. (QO, Ca. 1700, Portugal, 36:fl 162.) Publicado em (REGNI, 1988. vol.
I:176). Não conhecemos o documento original, citamos aqui a versão apresentada por REGNI,
subtraindo as impressões pessoais deste autor.
94
Figura 10 - Índias dançando em círculo - Zacharias Wagener.
Uma das manifestações mais notadas entre os Cariris eram as danças
realizadas em suas celebrações. O padre Bernard de Nantes registrou o
momento em que os Cariri passam a tomar, por empréstimo, a coreografia
dos negros levados para região, incorporando-as em sua acervo cultural. Diz
o capuchinho:
Eles gostam de dançar entre os banquetes à maneira dos negros, estilo que
adquiriram há pouco tempo, e lhes agrada mais que a antiga maneira que era
bárbara, como eu a vi praticada pelos índios kracuís, meus vizinhos. Eles dançam
60 ou 70, separados igualmente uns dos outros aproximadamente a um braço de
distância, todos em diversos círculos diferentes em distância do local da dança
onde estava um velho índio que ditava a marcha, tocando um instrumento
musical feito de um certo osso,65 antes de começar, ele fazia com que os outros
tomassem cada um uma posição diferente: para um, um braço para cima, outro
com o braço para baixo, outro com o pé para o ar, e ainda outro no chão, aquele
ali fica inclinado para um lado, aquele outro tomando suas diferentes posições, ele
fazia o sinal dando início à dança, coisa que eles seguiam todos saltando e orando,
cada qual guardando sempre sua primeira posição. (NANTES, [1702]).

65 “Feito o reconhecimento, para diante das casas, toca a flauta (tíbia) diante delas, signal para as

oferendas de comer, e vai sentar-se no meio do terreiro, esperando-as. Saindo então cada um de casa,
leva-lhe com grande respeito as oblatas e presentes.” (Sexennium Litterarum, 1651-1657, ARSI, Bras.
9:16v-18). Publicada por (LEITE, 1945. vol. V:273).
95
Figura 11 - Danças de negros em Pernambuco. Zacharias Waegner.
Outra tradição emblemática dos Cariri Setentrionais era a corrida
das toras. Gaspar Barleus, registrou que os Tapuia se divertiam “carregando
pequenas arvores e correndo”. Helias Erckmans associava este costume ao
ritual de virilidade reservado aos homens solteiros que queriam casar. Eles
tinham que provar “a sua força pelo fato de percorrer certo espaço
carregando algumas árvores pesadas” (HERCKMANS, [1639]. 1985:99-
112). (BARLÉU, 1974:261). Narrando a lenda de Badzé o padre Bernard
registrou que os Cariri acreditavam que este Deus, havia descido um dia a
terra, para colocar em prova o afeto deles; eles o haviam recebido em festa e
ofertam-no caça cozida, mas Badzé não gostou dos pratos e descontente
deixou-os, voltando imediatamente para o céu, levando consigo as toras de
madeira.66 Lê-se na relação de Bernard de Nantes:
Eles se divertiam muito durante esse tempo, e aqueles que correndo pudessem
carregar uma madeira formada de tora grossa que eles chamam de “motto” sendo
estimados mais valiosos e fortes que os outros, as mães principalmente
regozijavam-se muito, como também ficam tristes, e se jogam no chão quando
vêem os filhos vencidos por outros. (NANTES, [1702]).
Padre Antônio Pinto também registrou o costume da corrida de
toras entre os Païaïases. Diz ele:

66 “Um antigo ritual do lugar: a população sai para o campo para cortar madeira, cortando árvores

dos matos (...) com a chegada da banda de pífano os participantes da apanha da lenha carrega a tora
nas costas contornam o templo para depositar a lenha” Acreditamos que este ritual dos
remanescentes dos índios Xucuru do Arorubá seja uma manifestação residual da corrida das toras,
difundida entre os Tapuia. (ARAÚJO, 1985, 1 (1):55-62).
96
São dotados de maravilhosa agilidade de pés. A arte que mais ensinam aos
adolescentes é esta: colocam aos ombros grande peso, e logo se põem a correr,
indo outro atrás deles, e com um feixe de urtigas lhes fustiga sem cessar as
espáduas nuas; obrigados pela dor, correm acima das suas forcas, sem deixar
rastro. Assim se tornam insignes corredores, e muitas vezes vencem os mais
velozes animais, e a correr os caçam. Quando fazem guerra às outras nações, os
mancebos ficam na dianteira, para que, se caírem feridos ou mortos, os pais se
excitem à guerra, com ímpeto mais feroz; e, com o desejo de vingança, busquem
os que os mataram, e os vençam. (Sexennium Litterarum, 1651-1657, ARSI. Bras.
9:16v-18). (LEITE, 1945, vol. V:271-276).
As relações familiares entre os Cariris aparentemente eram mais
cordiais que as praticadas pelos europeus. A liberdade e o respeito que
governavam estas relações foi com freqüência entendida como
‘desgoverno’, o qual, deveria ser combatido em benefício da cristã
civilidade. Segundo o padre Martinho de Nantes:
As mulheres costumavam dominar seus maridos, os filhos não respeitavam pai e
mãe e nunca eram castigados. Conquanto tivessem em cada aldeia um capitão ou
governador, só existia autoridade em tempo de guerra. Havia entre eles feiticeiros
ou, para dizer melhor, impostores, que adivinhavam o que eles pensavam.
Prediziam coisas futuras, curavam doenças, quando não as produziam. Podia-se
acreditar que alguns deles tinham entendimento com o Diabo, pois não usavam,
como remédio, para todos os males, senão a fumaça do tabaco e certas rezas,
cantando toadas tão selvagens quanto eles, sem pronunciar qualquer palavra.
(NANTES, [1706]. 1979:4).

Quando os missionários chegaram ao rio São Francisco não havia


infra-estrutura urbana de nenhuma sorte. Neste ambiente as doenças
trazidas da Europa encontravam campo livre para se espalhar rápida e
livremente. O padre Martinho de Nantes relata a ocorrência de uma destas
pestes no São Francisco:
Depois de um ano de permanência, havendo sobrevindo uma espécie de peste,
que matou diversos, batizava os que encontrava em risco de morte, instruindo o
melhor que podia e julgando de suas boas intenções pela assiduidade na oração.
(NANTES, [1706]. 1979:10).

O padre Bernard de Nantes deixou registro de como estes índios


tratavam suas enfermidades e, que tipo de medicina possuíam. Diz o
capuchinho:
Quando estão doentes, eles não procuram nenhum remédio, a não ser a ajuda do
feiticeiro e deixam a doença agir à vontade. Vi outro que estava com ferida nos
pés; outros cortaram a mão deixando a carne apodrecer. E para gangrenar a
chaga, levam-na ao ar sem cobri-la, de maneira que seja os parentes dos doentes,
não fazem outra coisa senão observá-lo, é o que eles mostram demais na língua
deles, pois eles dizem “pide idce dadinne han y”, que significa: “eu estou aqui para
observá-lo”. Para comer, não dão ao doente nada de particular, deixando-o

97
freqüentemente exposto à fome como os ( ); e se eles conseguem algum peixe
ou caça, cozinham à maneira deles, sem sal nem outra coisa a não ser a água, e
estando meio cozida ou ligeiramente assada, já acham conforme o gosto; a
repartem sem distinção com o doente. A mãe do acamado serve no chão todas as
porções colocando em pequenos pratos de madeira, e a filha distribui em porções
a cada um deles, até os menores, comendo todos no chão separadamente uns dos
outros. Se o doente não come, guardam a porção para ele algumas vezes, sem
perguntar a ele se ele está com vontade de comer outra coisa, mas eles acham
bom assim; ainda que todas as porções sejam feitas e dadas à vista de todos, não
se ouve nunca murmúrio nenhum entre eles, ninguém se queixa de ter menos que
os outros, mas comem em grande silêncio. (Nantes, [1702]).
Os Moritises registrados pelo padre Manuel Correia na Anua de
1693, faziam uso da magia simpática para tratar das enfermidades. Diz o
padre Manuel Correia:
Os Moritises (em latim Moritizii), outro gênero de Tapuias, colocavam também nos
seus Pagés, que chamam Bisamuses, toda a sua esperança, e os chamavam logo que
estavam doentes. A cura constava de cantilenas desentoadas, fumigação e
aspiração, e com gestos descompostos, atribuíam enganosamente a causa das
dores do padecente, ou a eles ou aos seus parentes do lado paterno para que
julgassem que morriam por feitiço e deixassem como em testamento aos filhos, o
desejo de vingança. Desta maneira quase todos cuidavam que morriam por causa
dos seus inimigos, e assim, cada morte se tornava sementeira de outras. E não
poucos, por estes crimes alheios, eram queimados, por insinuação dos feiticeiros,
sem temerem castigo entre os Bárbaros estes semeadores de discórdias e autores
do mau conselho.
Depois do primeiro parto da mulher, o marido abstinha-se de muitos alimentos
mais que religiosamente, e o tinham como necessário para a saúde do filho;
espalhavam cinza nas encruzilhadas dos caminhos para que saindo da barraca não
fossem para o mato mais próximo, e os que se enganavam no caminho não
pudessem tornar aos seus. Fugiam da doença e da morte à maneira de animais
silvestres. No tempo da varíola, que para eles é peste, retiravam-se para o mato
mais longínquo, observando com cuidado o caminho, não seguindo vereda direita
mas em espiral e apagando na terra os vestígios da passagem, para que a morte
não visse o caminho batido, nem a febre os fosse descobrir nos seus esconderijos.
(Ânua, 1 de junho de 1693, ARSI, Bras. 9:383). (fragmento) (LEITE, 1945, vol.
V:277-278).
Segundo o padre Martinho de Nantes, os Cariri acreditavam que as
enfermidades eram colocadas por inimigos ou desafetos nas pessoas através
de feitiços, assim, para combater as doenças o expediente natural era a
contra-feitiçaria, todavia, nos casos em que o doente não se recuperava:
Atribuíam a culpa a alguém que o houvesse enfeitiçado e que estava impedindo o
efeito do remédio, e designavam o culpado, como se tivessem certeza, e logo os
parentes do doente, sem qualquer outra prova que a acusação, iam matar o
acusado, sem que ninguém comumente se opusesse, com o receio de serem
também acusados; de sorte que, se acontecia que morresse alguém muito

98
estimado e que houvesse chamado esses impostores para curá-lo, era raro que não
ocorressem outras mortes, antes ou depois de seu falecimento, o mais das vezes
antes, com o desejo de contribuírem para a sua cura, pois não acreditavam que
estava morrendo naturalmente, mas por força do enfeitiçamento, mesmo quando
morria de doença, exceto quando vítima de extrema velhice. (...) Assim ninguém
estava seguro de sua vida, podendo ser acusado de enfeitiçador por algum de seus
inimigos. E cuidavam de agir depressa, ao matar ou queimar os que eram
acusados de enfeitiçadores, para que não fossem suspeitos de serem eles próprios
os responsáveis; deixando morrer e matando algumas vezes seus próprios
parentes. (NANTES, [1706]. 1979:5).
Os Paiaiases, a seu turno, praticavam a eutanásia em casos que sua
medicina não conseguia resolver. Registrou o padre Antonio Pinto:
Quando algum está doente, leva-se aos pagés para o curarem. Colocam-se em
roda. O Pagé principal põe-se algum tempo, como a ladrar ao modo de um cão.
Acabando êle, começam os outros com iguais latidos. Entretanto o enfêrmo anda
de rastos à roda do círculo dos pagés, dando muitas voltas, enchendo a terra de
lágrimas, e o céu de clamores, sem lhe aproveitar o tratamento e cuidado dos
médicos, vítima como antes da doença. Se esta é mortal não o ocultam ao doente;
e os pais e parentes com paus, instrumentos, ou o que acerta de terem nas mãos,
batem à porfia no miserável e lhe aceleram a morte. Cortam o cadáver em
pedacinhos e os repartem a todos e a cada um, para o comer, o que fazem com
regalo. Se o defunto é casado, o coração e o fígado pertencem ao cônjuge
sobrevivente. Dos ossos mais acomodados a isso, fazem flautas; e do crânio,
trompas, que tocam na guerra. (Sexennium Litterarum, 1651-1657, ARSI. Bras.
9:16v-18). (LEITE, 1945, vol. V:271-276).
Parte dos índios do São Francisco enterravam seus mortos em urnas
funerárias de cerâmica. Esta prática tem sido registrada em todo o Brasil.
Na segunda metade do século XIX o visitante francês, Jean Baptiste
Debret67 registrou o ritual fúnebre que dois séculos antes havia descrito o
padre Manoel Correia entre os Moritizes, Registrou o jesuíta:
Metiam os cadáveres dos seus mortos dentro de um pote e o enterravam, para
que depois, não tendo quem lho desse, não sentissem a falta da vasilha para
cozinhar a comida. Era seu costume quando morria algum na Aldeia, espalharem
cinza à roda das casas para que o gênio mau não levasse da casa do que morreu
para as outras, a febre ou outra doença, e que eles cuidavam o impedia a cinza.
Também quando morria a mulher de algum, o viúvo corria logo para o mato, e
cortava o cabelo no cimo da cabeça e ai ficava algum tempo escondido. Quando
voltava à Aldeia era a vez de fugirem todos dele e de se esconderem no mato.

67 “Os coroados” diz Debret, “tinham, antigamente, o costume de enterrar seus chefes de um modo

peculiar: os despojos mortais do cacique venerada eram enfeixados dentro de um grande vasilhame
de barro, chamado “camucí”, que se enterrava assaz profundamente aos pés de uma árvore grande.
Nas derrubadas encontram-se muitos, hoje em dia. Essas múmias, revestidas de suas insígnias,
encontram-se perfeitamente intactas e são sempre colocadas na sua urna funerária de modo a
conservar a atitude de um homem de cócoras, posição natural do índio que descansa.” (DEBRET,
[1834-39]. 1954, tomo I:32).
99
Estavam persuadidos que o primeiro que se achasse com o triste homem,
contrairia a doença mortal, e não duraria muito. (Ânua, 1 de junho de 1693,
ARSI, Bras. 9:383). (LEITE, 1945, vol. V:277-278)
Padre Bernard, encontrou antigos sepultamentos realizados em
urnas funerárias de cerâmica cosida nas aldeias Cariri. Registrou o padre
Bernard de Nantes:
Antigamente, eles enterravam seus mortos sem outras cerimônias, como fariam
com uma carniça qualquer; apenas os colocavam em grandes potes de barro, que
eu mesmo encontrei em quantidade, ha pouco tempo, na beira deste rio, quando
uma enchente derrubara os barrancos e desenterrara os cadáveres que estavam
nos potes. Freqüentemente os enterravam antes mesmo da morte, sobretudo
quando muito velhos e com pouca esperança de vida, o que me faz pensar que
eles sentiam pouco a morte das pessoas idosas, apesar de chorar muito a morte de
seus parentes. (NANTES, [1702] ).

Figura 12 - Sepultamento de um chefe Coroado. Jean-baptiste Debret. [1834-39]


Os padres Azpicueta Navarro e Miguel do Couto registraram a
prática do canibalismo no rio São Francisco. Do relato histórico se pode
distinguir duas formas, o canibalismo tradicional e o endocanibalismo. Elias
Herkmans registrou a prática do canibalismo entre os Cariri no Rio Grande
do Norte, com a ressalva de que era praticado exclusivamente entre os

100
membros do grupo:68 O padre Bernard registrou o mesmo costume entre os
Xucurus do Arorubá que também circulavam no Rio Grande do Norte:
Há aqueles que comem os pais quando estes falecem, assim fazem os sicurus que
vivem em direção da serra do Urubá, tachando os brancos de desumanos porque
deixam os pais serem comidos pelos vermes da terra quando os enterram, e
consomem mais honoravelmente ... (NANTES, [1702].)
O padre Antonio Pinto também notou o canibalismo entre os
Cariris quando visitou aos Païaïases. Escreveu o padre Antônio Pinto:
Souberam os padres, por um Tapuia, que o principal tinha cativa uma índia
Tupin, que tomara em guerra com os pais dela. A estes, segundo seu nefando
costume, já os tinham devorado; a menina, como ainda não era desmamada,
criavam-na no cevadouro, para a seu tempo, que já não estava longe, a comerem.
Ao cabo de grandes rogos, dando-se-lhes resgates, alcançaram do Bárbaro que lha
dessem para a trazerem, e depois da necessária instrução no catecismo, se
baptizou. (Sexennium Litterarum, 1651-1657, ARSI. Bras. 9:16v-18). (LEITE, 1945,
vol. V:271-276).
Os fragmentos de informações deixados pelos autores coloniais
acima relacionados, foram dispostos, uns diante dos outros, no intuito de
provocar um diálogo entre os diversos testemunhos. Resulta deste diálogo
uma imagem um pouco mais definida, de parte da expressão cultural destes
povos, todavia, há de se atentar, mais uma vez que, esta imagem continua
sendo vista desde uma perspectiva muito distante do ponto de foco,
permitindo-nos apenas, delinear toscamente os contornos gerais das
sociedades tapuia do São Francisco.
Para ajudar a clarear mais um pouco, passamos adiante a discutir a
questão da participação destes povos como agentes ativos de seu processo
histórico. Esta discussão objetiva se contrapor a idéia míope que vê estes
povos como sujeitos passivos limitados a uma ação coadjuvante na
expansão colonial no rio São Francisco.

68 Registrou Helias Herckmans: “se morre algum deles, seja homem ou mulher, em sendo morto,

comem-no, dizendo que o finado não pode ser melhor guardado ou enterrado do que em seus
corpos” (HERCKMANS, [1639]. 1985).
101
3. Governo Nativo
O padre Bernard de Nantes, capuchinho francês missionário na Ilha
de Uracapá, no final do século XVII, registrava nas entrelinhas de sua
narrativa, uma ‘estranha’ consciência que possuíam os Cariri da sua
condição no jogo colonial. E alertava enfático sobre a vital necessidade de
mantê-los aliados, em benefício do avanço colonial no rio São Francisco:
“Eles não apreciam coisas forçadas, sendo amigos da vida em liberdade e se
o governo quiser conservar uma autoridade permanente sobre eles, deve
partir para a doçura, pois os índios contrabalançam facilmente o jugo
daqueles que lhes são severos” (NANTES, [1702]).
A narrativa da conquista das sociedades indígenas brasileiras até o
princípio do século XX não existia, ou tinha se tornado um apêndice da
história ocidental no novo mundo. A imagem construída por cronistas
coloniais como o padre Bernard de Nantes, foi sendo habilmente modulada
pelos teóricos colonialistas para justificar a ideologia integracionista do
Estado Nacional Brasileiro. Esta historiografia era parte de uma tendência
universal que percebia os povos nativos “como conglomerados estáticos,
sociedades isoladas que estiveram totalmente desaparelhadas para negociar
câmbios massivos, se organizar em movimentos durante o período
colonial”. (HILL, 1996:7).
Os primeiros críticos do colonialismo pouco fizeram para esclarecer
os silêncios e omissões da historiografia, o Índio brasileiro continuou por
longo tempo sendo representado como elemento histórico passivo, cujas
ações se limitavam a um conjunto amorfo de movimentos involuntários
enfeixados sob o título de resistência indígena, em geral representada na
literatura pelo conjunto de conflitos, combates e assaltos promovidos pelos
nativos em resposta a ação da expansão colonial em seus territórios
tradicionais. Estes eventos foram nomeados na literatura histórica como as
“guerras bárbaras”.
A etno-história e a antropologia histórica recente têm tratado a
questão sob uma perspectiva que destaca as alianças e escolhas dos povos
tapuias com o poder colonial, como opções conscientes que viabilizaram
sua sobrevivência durante o processo de ruptura da ordem nativa para a
ordem ocidental, e buscando “qualificar a ação consciente dos povos
102
nativos enquanto sujeitos da história”.69 Neste espírito, trataremos adiante
do conjunto destas ações voluntárias dos povos do rio São Francisco que se
encontram encobertas na nomeação genérica de ‘resistência indígena’.
A ação agente ou governo dos nativos se manifesta em níveis
diferenciados com variados parceiros, e em diversos momentos do processo
colonial. Com base na documentação analisada, dividimos em três classes o
conjunto dessas ações. Em princípio apresentam-se sobre a forma de
Alianças introdutórias que vão permitir a instalação ordenada da pecuária; em
seguida registram-se as primeiras Alianças militares, quando contingentes
tapuia passam a atender parte das demandas de guerra dos portugueses em
eventos tais como as lutas contra os holandeses, contra os negros do
Quilombo dos Palmares, e nas Guerras Bárbaras contra os tapuias inimigos
dos Portugueses. Por fim, no século XVIII, quando os povos tapuia perdem
importância como elemento de defesa no processo colonial, surgem os
agregamentos, onde eles são obrigados a administrar a própria sobrevivência.
Este é o nível mais fronteiriço entre a ação agente e o subjugo. Dá-se
quando o processo colonial está consolidado e os tapuia remanescentes
permanecem ligados – tutelarmente – às instancias de poder local (Igreja e
fazendeiros), administrando a sobrevivência diária, até a submergência em
um substrato ‘caboclo’, no qual vão permanecer até o século XX, quando o
ambiente político permite a etnogênese.70
Este modelo de resistência ou agência indígena repete-se em outras
áreas de expansão colonial; entretanto, o que vai distinguir o modelo no
Sertão de Rodelas, em um primeiro plano é sua condição geográfica de
portal, de cuja conquista vai depender a expansão para o Piauí; a defesa da
retaguarda do litoral; e o acesso e integração futura dos Estados do Brasil e
do Grão Pará.71 E em um segundo nível, a circunstância política de ter sido
esta área explorada pela Casa da Torre, que organizou economicamente o
espaço,72 e nele imprimiu um programa colonial controlado por regras
rígidas e eficientes, as quais discutiremos oportunamente.

69 Agency em inglês, busca qualificar a ação consciente dos povos nativos enquanto sujeitos da

história, desenvolvendo estratégias políticas e moldando o próprio futuro diante dos desafios e das
condições do contato e da dominação. (MONTEIRO, 1995:221-236).
70 Sobre a emergência étnica no São Francisco ver o excelente estudo: (ANDRADE, 2001);

(ARRUTI. 1995:57-94); (ARRUTI, 1999:183-222).


71 O tratado de Madrid em 1750 reintegrou as donatarias particulares à coroa e unificou os Estados

do Brasil com o Estado do Maranhão, este último criado em 1621.


72 A Casa da Torre ‘Organizou economicamente o espaço conquistado, estabeleceu relações sociais e

construiu um potentado político ao longo do rio São Francisco’ (BANDEIRA, 2000).


103
Alianças Coloniais: caracterização
Um fato singular na história da expansão colonial no século XVII, é
a condição de “olho de Furação” que assume esta região. Não obstante o
elevado número de aldeias espalhadas no sertão de Rodelas e a diversidade
de etnias que partilhavam o território, defrontadas com o pujante
reordenamento promovido pela pecuária, não foram registradas, na região,
guerras gentílicas que efetivamente ameaçassem o processo colonial. As
grandes “guerras bárbaras” limitaram-se no perímetro da conquista do São
Francisco, principalmente no Recôncavo baiano, associadas ao processo de
expansão para o Sertão das Jacobinas, entre os anos cinqüenta e setenta do
século XVII; e a mais importante das guerras bárbaras – envolvendo tapuias
ex-aliados dos holandeses e pecuaristas – nos vales do rios Açú e do Seridó,
capitania do Rio Grande do Norte.
Os conflitos do São Francisco foram experimentados de forma
distinta destas regiões, oferecendo resultados históricos muito particulares.
À luz desta evidência, interessa-nos discutir e fundamentar a idéia de que a
ausência de processos reativos armados – muitas vezes interpretada por
passividade e inconsciência – foi fruto de uma ação de resistência indígena
singular, frente às demandas políticas específicas da experiência local.
Desde o princípio da colonização até início do século XX são
registrados movimentos de resistência dentro dos limites dominiais
históricos da Casa da Torre.73 Via-de-regra a repressão destes levantes
foram operados pela própria Torre e seus rendeiros, sem intervenção de
milícias externas, com exércitos formados por tapuias aliados, como
veremos mais detidamente a seguir. O que se defende é a existência de uma
experiência desenvolvida entre brancos e alguns grupos de tapuia, na qual os
embates armados perdem espaço para alianças estratégicas que sustentam o
projeto colonial, encubando em ambiente protegido as células iniciais da
pecuária.
A diversidade de grupos que dominavam a região da ‘conquista’ do
rio São Francisco no século XVII era um dos pontos de embargo à
expansão colonial. À ação de povoar e colonizar impunha-se outra de

73 Gilberto Freire em ‘Nordeste’ atribuiu à Casa da Torre ‘a conquista e a colonização quase militar de

largos trechos do Norte.’ Observando o Brasil da posição do senhorial Freire defendia o pensamento
de que a gloria e a honra do Brasil pertenciam a aristocracia, ‘A conquista e a colonização quase
militar de largos trechos do Norte pela Casa da Torre – a maior Casa Grande do Brasil – e as guerras
contra franceses e holandeses, guerras feitas pelos Albuquerques e por outros fidalgos do canavial,
quase desajudados da Metrópole, mostram que esta civilização por natureza sedentária, comodista e
sensual foi capaz de ação militar, de agressividade, que qualidades de luta em sua própria defesa.’
(FREIRE, 1989:167).
104
conquista e persuasão, ou redução por via da guerra aos resistentes. Os
assentamentos pioneiros nestes sertões caracterizavam-se por uma extrema
vulnerabilidade como atestam diversos autores coloniais. Um documento
anônimo do final do século XVIII – Roteiro do Maranhão a Goiaz pela capitania
do Piahui – flagrou esta condição de provisoriedade: “levantada uma casa
coberta pela maior parte de palha, feitos uns currais e introduzidos os
gados, estão povoadas três léguas de terra e estabelecida uma fazenda”,
(RIHGB, vol. LXII, 1900:88).
O padre Miguel do Couto Carvalho relata a condição de
entrincheiramento dos vaqueiros e moradores: “compõem-se de fazendas
de gado sem mais moradores, distantes uma das outras ordinariamente mais
de duas legoas, em cada uma vive um homem com um negro e em algumas
se acham mais negros e também mais brancos só, mas no comum se acha
um homem branco só.” (COUTO, [1697], 1938:370-389). D. Francisco de
Lima bispo de Pernambuco em Carta de 18 de Maio de 1697 – informado
pelo relatório do padre Miguel do Couto sobre o estado das almas dispersas
nos sertões jurisdicionados ao bispado de Pernambuco – noticia ao
Conselho Ultramarino a situação de isolamento e desamparo espiritual dos
cristãos nos sertões de Rodellas. Diz ele: “No sítio que chama Cabrûbû
(Cabrobó) junto do rio de São Francisco (...) vivem estes homens sem
lembrança da outra vida, com tal soltura na que a passam, como se não
houvesse justiça, porque a de Deus não a teme e a da terra não lhe chega”
(AHU, Caixa 9, P.A.-PE). O relato da solidão dos pioneiros no Sertão de
Rodelas é completado pelo padre Bernard de Nantes. Diz o religioso:
dispersos por todo esse vasto Brasil que não tem no seu interior nem cidades nem
vilarejos, mas só florestas, montanhas e solidões pavorosas, plenas de onças e
jaguatiricas, e algumas casas de brancos e de negros que as criam, mas tão
separadas e distantes uns dos outros que cada morada, às vezes, parece mais bem
um eremita do que uma morada doméstica e comum. (NANTES, [1702]).
No final do século XVII a situação dos pecuaristas no rio São
Francisco permanecia inalterada, conforme testemunha uma memória
contemporânea a descrição do padre Miguel do Couto escrita pelo Conde
D‘arcos:
Entre estes brancos há tantas nações de Índios que passam de 500 de diferentes
línguas, que se acham comunicando com eles em amigável trato; cada uma destas
nações tem tantas aldeias e almas que podem formar um grande Reino (...) e tem
entre si aquelas diferenças e guerras com que atualmente se distraem para nossa

105
conservação, porque se todos fossem unidos, em nosso dano, obrariam os
estragos que a sua ferocidade e multidão nos faz temer.74
A memória do Conde D’arcos além de registrar as alianças dos
índios com os curraleiros que se “comunicavam com eles em amigável
trato”, denunciava mais que isolamento e solidão, alertava a Coroa sobre a
vulnerabilidade daquelas conquistas do sertão do São Francisco. Lembrava
que, em meio aos vazios das fazendas, circulavam livremente milhares de
tapuias que facilmente poderiam dominar os criadores. Diante de um
quadro tão desfavorável aos brancos, o sucesso da instalação de núcleos
coloniais passava antes pela construção de uma política de cumplicidade
com os nativos locais.

Alianças introdutórias.
Para uma boa compreensão dos fenômenos históricos que
envolveram índios e brancos nas conquistas do rio São Francisco no século
XVII, é importante afastar a idéia, ainda hoje advogada por algumas
correntes historiográficas, de que as alianças promovidas com nativos foram
simplesmente impostas pelos brancos. Esta visão simplista, remete à idéia
da dominação pura e do subjugo, que em absoluto não é bastante para
explicar a instalação da pecuária. O senso comum que afirmava não terem
os nativos, nenhuma expressão de fé, lei ou governo, de certo que ajudou a
construir uma área de pouca relevância para as alianças que governavam as
diversas formas de relação havidas entre índios e brancos no Brasil.
Testemunhos coloniais oriundos de várias partes da América Latina,
observados por estudos modernos, apontam para direção oposta daquela
pregoada pelos primeiros autores, destacando o papel de extrema relevância
para o fenômeno. No sertão de Rodelas, mesmo que não estejam explícitas,
predominaram as escolhas negociadas entre índios e brancos num lento
processo de aproximação e trocas que aqui cabem ser discutidas para uma
compreensão mais larga do processo.
O labor extrativista dos tapuia e a pecuária dos brancos, não eram,
entre si, atividades economicamente concorrentes. Certamente esta foi uma
condição decisiva na formalização das ‘pazes e amizades’, entre colonos e

74 “Memória de Miguel Nunes de Mesquita, o Conde dos Arcos e Francisco Pereira da Silva”, anexa à

Consulta do Conselho Ultramarino sobre o estado das Missões no Certão da Bahia e informando
acerca dos remédios apresentados provenientes da falta de Parochos e Missionários, Lisboa 18 de
dezembro de 1698. Tem anexo uma representação anônima e a informação do Secretário do
Conselho Ultramarino, Roque Monteiro Paim, sobre as quais versou o parecer do mesmo conselho.
(ABN, vol. XXXI:23). Publicado também por Braz do Amaral nos comentários às Memórias Históricas
de (ACIOLI, 1937, vol.V:314-334, nota 47).
106
alguns grupos tapuia, dominantes de áreas estratégicas, como os Rodella e
os Cariri. Estas alianças se converteram no principal instrumento para
organização do novo espaço tomado pelos pecuaristas. O estabelecimento
da pecuária nos sertões do rio São Francisco, implicava na ruptura da ordem
nativa pré-existente, fato que não se daria sem uma posição acordada entre
brancos e indígenas em benefício de interesses comuns.
As fontes coloniais pertinentes aos sertões do nordeste mostram
que, durante todo o período colonial, os interstícios que permeavam os
raros pólos de povoamento, mantiveram-se densamente habitados por
nações indígenas, gerando um sem número de conflitos, condicionando a
torrente da ocupação branca. Mas se toda esta conquista permanecia
“povoada em volta por diversíssimas gerações de Índios muito bárbaros e
cruéis”,75 como a colonização logrou avançar neste território hostil e
impenetrável conduzida por um punhado de vaqueiros desarmados? Para
abstrair esta questão, impõe-se indagar: como algumas etnias permitem a
instalação da pecuária em seus domínios? que circunstâncias históricas
viabilizaram local e regionalmente a expansão em direção do interior do
Brasil, justificando um projeto colonial amplo para a área? Como as
sociedades nativas se relacionaram com as instâncias de poder colonial que
se estabeleciam nos sertões do São Francisco?
Uma parte das respostas parece abrigar-se numa peculiar forma de
relacionamento que se firmou nestes sertões, que nomeamos alianças
introdutórias. No alicerce destas alianças operadas entre colonos e alguns
grupos nativos locais, está uma forma singular de compadrio que sustentou
a instalação dos currais pioneiros no país dos bárbaros, fraturando sua
impenetrabilidade e permitindo, aos poucos, que a colonização se espalhasse
pelo sertão de Rodelas.
A característica de expansão predominantemente negociada tornou-
se uma marca diferencial no processo histórico dos povos do rio São
Francisco, e é especialmente visível quando comparada com a resistência
indígena de outros povos tapuias do Nordeste. As alianças introdutórias
foram regidas por acordos de natureza comensalistica,76 na qual os tapuias

75 Como descreveu um século e meio antes o Jesuíta Azpicueta Navarro ‘un rio muy caudal, por

nombre, Pará, que según los indios nos davan información, es el Rio de S. Francisco, y es muy ancho.
(...) poblada al derredor de diversíssimas generaciones de Indios muy bárbaros y crueles’
(NAVARRO, [1555], 1954).
76 Comensal, do latim commensale. Cada um daqueles que comem juntos. Comensalismo refere-se aqui

à relação entre dois organismos, na qual um deles, o comensal, recebe benefício, sem que o outro seja prejudicado.
Logicamente esta relação não exista no processo colonial cujo princípio básico é o da dominação de
um sobre o outro. Usamos o termo para qualificar um resultado colonial, onde o estatuto da
107
cediam espaço para pastagens e currais, e ofereciam proteção aos brancos
contra os tapuias hostis não aliançados. Em troca recebiam resgates e se
protegiam contra a exposição direta à ação colonial. Estes acordos com os
brancos adicionalmente reforçavam seu poder contra os inimigos locais.
O padre Martinho de Nantes nos dá um bom exemplo de como se
dava a abordagem amistosa dos colonos, e como se firmavam estas alianças
introdutórias. Descrevendo sua chegada ao Brasil em 1671 o capuchinho diz
que esteve inicialmente em uma aldeia de índios Carirí77 como coadjutor do
padre capuchinho Teodoro de Lucé. Conta ele que no ano de 1670 fora
‘descoberta’ a dita aldeia por um português que estabelecera alianças iniciais
com os tapuia, com as quais obteve “liberdade e segurança, para a colocação
de rebanhos”. Com base nesta aliança inicial se estabelece uma típica
interface de compadrio recorrente em toda fronteira de contato branco-tapuia
do Nordeste. Esta relação explica como os colonos logram sucesso em
meio a hostilidade daqueles sertões.78
O texto da carta de sesmaria do sertão de Rodelas, celebrado na
primeira metade do século XVII, testemunha como os tapuia Rodeleiros do
São Francisco encubaram amistosamente os criatórios de gado nos
primeiros anos da conquista. O capitão Garcia D’Ávila e o padre Antônio
Pereira declaravam nele a abertura de novos caminhos, que fariam a
conexão do rio São Francisco com o sertão das Jacobinas via rio do Salitre.79
A conquista do sertão de Rodelas exigia a instalação de bases operacionais
que só seriam possíveis com acordo e proteção dos índios. Para isto
investiram mais de “2 mil cruzados de fazendas e roupas” que foram
distribuídas entre as muitas aldeias que compunham esta nação. Com esta

associação previa uma proteção mútua entre colonizador e colonizado, regido por uma especial
manifestação de compadrio.
77 ‘a setenta léguas de Pernambuco’, segundo I. Jofly seria a Aldeia do Burgo, ‘talvez a missão ou

aldeia mais antiga dos cariris seja a do Boqueirão, que, comunicando-se somente com Pernambuco,
vivia isolada na Paraíba.’ (JOFFILY, 1892:39-40). Antonil utiliza o termo Bugiarias de França para
peças de baixo valor usada em troca. (ANTONIL, [1711] 1969).
78 Vejamos o depoimento do padre Martinho: “A aldeia ou burgo de índios fora descoberta no ano

de 1670, por um português chamado Antônio de Oliveira, que, procurando pastagens próprias para o
seu gado, encontrou, na ribeira da Paraíba, uma tropa desses índios, que pescavam a cinqüenta léguas
da aldeia da Paraíba. Esse capitão, havendo obtido dos índios liberdade e segurança, para a colocação
de rebanhos, depois de lhes haver oferecido alguns pequenos presentes, veio incontinente a
Pernambuco, à procura de algum missionário, que quisesse estabelecer-se entre esses índios, para
melhor proteção do gado que lhe pertencia.” (NANTES, [1706] 1979:1)
79 Este caminho era densamente povoado por tapuias salteadores, o que fazia da tarefa uma empresa

de “risco de suas vidas e dispêndios de muita fazenda”. Em 1657 o Jesuíta Antonio Pinto declarava:
‘montes das “Jacuabinas” que se estendem ao norte por 40 léguas, notáveis pelo número dos seus
Tapuias em número de 80 Aldeias’. Sexennium Litterarum, 1651-1657 do Padre Antônio Pinto, (ARSI.
Bras. 9:16v-18). fragmento publicado por (LEITE, 1945, vol. V:271-276).
108
paga os anfitriões Rodeleiros “como naturais e senhores das ditas terras”,
diz o documento, entregaram-nas para a instalações do criatório.80
Em 1651 o conde de Castelmelhor, Capitão Geral do Estado do
Brasil, confirmava a carta de sesmaria de 1646.81 Neste documento ficam
claras as condições e relevância desta aliança para construção da base
colonial, a partir da qual se viabilizou o acesso com os tapuia e expansão
pelo rio São Francisco: “na parte onde chamam as aldeias do Rodela, a qual
eles tinham descoberto e povoado com muito dispêndio de sua fazenda, por
meio da qual haviam facilitado aos moradores vizinhos o comercio com
aquelas Aldeias”.82 ‘Facilitar o comércio’ além de significar possibilidade de
trocas, quer dizer sobremaneira: abrir o espaço, deixar caminho franco aos
vizinhos aliados.
As alianças introdutórias são características da primeira fase do
processo local, e apesar de fundamentais à expansão, eram contraditórias,
por longo termo, com o projeto ocidental. As alianças introdutórias vão
resistir ao paradoxo enquanto a pecuária necessita dos anfitriões nativos
para dar sustentação e seguridade aos currais; uma vez estabilizada a
expansão elas perdem sua função estratégica. A consolidação do processo
exigia uma cruel coerência colonial. Cabia então, como desdobramento
natural, a quebra oportunista das alianças originais. Neste momento a
expansão assume a subjugo dos índios como fundamental à continuidade;
salvo exceções – em que alguns grupos ou áreas geográficas colocavam-se
como estratégicas – os nativos em regra migram lentamente da condição de
associado para a de servo submisso, vassalo, e muitas vezes para a situação
de inimigo.

80 ‘Dizem o Capitão Garcia D’Ávila e o Padre Antônio Pereira que eles têm descoberto o Rio de São

Francisco lá em cima no sertão, onde chamam aldeias de Rodelas, a qual terra descobriram eles
suplicantes com muitos trabalhos que passaram de fomes e sedes, por ser todo aquele sertão falto de
águas e mantimentos, abrindo novos caminhos por paragens onde nunca os houve e com muito risco
de suas vidas e dispêndios de muita fazenda, resgates que deram ao gentio para o poder obrigar ao
conhecimento e povoação das ditas terras em que despenderam mais de 2 mil cruzados de fazendas e
roupas com todas aquelas aldeias, que são muitas, e por meio das ditas dádivas os ditos índios como
naturais e senhores das ditas terras lhas entregaram, e como tais as povoaram de gado’. Sesmaria do
Sertão de Rodelas, 1646. documento do Arquivo Wanderley de Pinho, apud (CALMON, 1939:65,
nota 60) ver também (FONSECA, 1996:25).
81 Carta de sesmaria pela qual foi vossa Excelência servido dar em nome de Sua Majestade as terras

nela contidas ao Capitão Garcia d’Avila e ao Padre Antônio Pereira. São Salvador da Bahia, 22 de
abril de 1651. (APEB. Seção Colonial, 1813, 602, caderno 3). Publicada em (FONSECA, 1996:25-27).
82 A prova das alianças anteriores a 1656 com os Rodelas. “aldeias do Rodela, a qual eles tinham

descoberto e povoado com muito dispêndio de sua fazenda, por meio da qual haviam facilitado aos
moradores vizinhos o comercio com aquelas Aldeias, de que resultará muito proveito à Fazenda Real,
e beneficio desta República” idem.
109
O Compadrio.
O Compadrio, como extensão do parentesco sancionado pelo
batismo católico, tem sido observado em manifestações tardias, no Brasil,
por diversos autores. Stuart B. Schwartz estudando a sociedade escravocrata
da Bahia colonial, analisa os rituais de batismo e o parentesco religiosamente
sancionado, para abstrair as estratégias de escravos e senhores, dentro das
fronteiras culturais deste relacionamento.83
Além desta bem estudada forma costeira de compadrio, sancionado
através do batismo cristão, uma outra, de natureza mais sutil, vai se delinear
nos sertões interiores do Nordeste do Brasil. Diferentemente da primeira,
esta não estava presa ao rito católico, mas ao rito vassalar das estruturas
oligárquicas, e se observa inicialmente nos agregamentos que resultam da
incorporação de grupos nativos à núcleos coloniais. Estes agregamentos
tinham uma ligação direta com as demandas de mão-de-obra, e as
necessidades de defesa das fazendas.
O termo Compadrio tem sua raiz etimológica no latim compater, mas
é do espanhol Compadrazgo que deriva compadrado e compadrio, o termo
é usualmente empregado para referir-se a aliança ritual de parentesco não
consangüíneo, pactuada no batismo católico.(VAINFAS, 2000:126-7) Na
hinterlândia do nordeste colonial brasileiro, entretanto, o termo encontrou
um conteúdo semântico distinto, advindo de singular interface construída
entre tapuias e brancos. No São Francisco apresenta-se como peça
fundamental, onde vão sentar-se as relações sociais vindouras. O
entendimento claro deste aspecto exige a discussão do conceito e sua
aplicação no caso do sertão de Rodelas.
Schwartz, estudando as estratégias de relacionamento social entre
senhores e escravos na Bahia, notou que o compadrio não teria partilhado
convivência confortável com a escravidão, “uma vez que estas duas
instituições comportavam linguagens aparentemente antitéticas”.
(SCHWARTZ, 1988:331). De fato, o compadrio invoca para si uma relação
do tipo vassalar, enquanto na escravidão o homem é propriedade de outro,
não apenas um servo de categoria inferior. No Brasil, o negro não privou de
relacionamento livre e gentil, valendo a apreensão de Moritz Schanzo para a

83 Katia Queiroz Mattoso que defende esta idéia em Ser escravo no Brasil. (MATTOSO, 1982); ver
crítica de Stuart B. Schwartz em Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-
1835. (SCHWARTZ, 1988:330-334).
110
condição do escravo na América. Nela o Negro era propriedade do seu
senhor “objeto de direito, não sujeito de direito”.84
É fato assentado que padrinhos e pais partilhavam, pela instituição
do compadrio, de um pacto de fidelidade que se estendia à vida secular,
condicionando relações sociais. Contudo, em última análise, o compadrio é
uma opção partilhada, dentro do contexto social da dominação, em cuja
relação o padrinho desempenhava um papel paternal, um certo nível de
proteção do padrinho em relação ao acompadrado.(GUDEMAN &
SCHWARTZ, 1988).
A condição de padrinho conferia, na sociedade colonial, um tipo de
status patriarcal ao senhor que detinha grande número de “protegidos”
afilhados. Esta mesma condição de acompadrado e de protetor, em níveis
diferenciados, vai ser presente como condutor permeando as relações entre
a Casa da Torre e seus associados, brancos e tapuias.
No Brasil costeiro, a igreja é quem assenta a pedra fundamental das
vilas coloniais. Os passais da igreja são logradouros onde a sociedade
colonial costeira pode partilhar convívio e encontrar um pouco de
sociabilidade urbana; absorver os dogmas cristãos e equalizar-se com as
práticas sócio-comportamentais ocidentais. Nas frentes de expansão que
avançam em direção ao rio São Francisco, os dados sugerem uma singular
formação. O clero romano chega com quase meio século de atraso,85 depois
que as relações inaugurais entre índios e brancos já têm frutificado uma
peculiar ética sertaneja de expressão secular.
Ora, se nas frentes do sertão do São Francisco as sociedades de
pioneiros sertanejos, nos primeiros anos da conquista, se desenvolveram em
ambiente ‘silvestre’, livres do grêmio regulador da igreja; e avizinhadas de
sociedades indígenas, é natural que as regras do convívio urbano ocidental,
não importassem tanto quanto no litoral. Ao contrário, é natural também
que, à medida que se incorporem as experiências locais ao código social,
surja uma ética cabocla, elaborada com devidos empréstimos e

84 “Podia ser vendido, como gado, trocado, alugado e empenhado; não podia pleitear em juízo, nem

adquirir bens, nem contrair legítimas núpcias; não possuía família reconhecida perante a lei, nem
mesmo tinha o governo de seus próprios filhos. A formação de sua vida de família dependia
exclusivamente do capricho do seu senhor, sem cujo consentimento não lhe era permitido alforriar-
se”. (SCHANZ, 1911:24).
85 Segundo Serafim Leite, os primeiros jesuítas só aportaram no rio São Francisco em 1669, diz ele “o

fundador das missões de Rodellas, da Companhia (Companhia de Jesus) foi o padre João de Barros,
que já desde 1669 fala da aldeia de Sorobeba com a qual estava em contato”. (LEITE, 1945.
vol.V:293).
111
contribuições culturais86 resultantes do somatório das diversas expressões
sociais partilhantes desta rede em construção.
Foi esta harmonia cultural ‘barbarizante’ que inflamou o bispo de
Pernambuco, Dom Francisco de Lima, contra o paulista Domingos Jorge
Velho. Em consulta de 1697 ao Conselho Ultramarino, diz o bispo:
Este Homem é um dos maiores Selvagens com que tenho topado: quando se
avistou comigo trouxe consigo Língua, porque nem falar sabe, nem se diferença
do mais bárbaro tapuia, mas que em dizer que he cristão, e não obstante o
houvesse casado depois, lhe assistem sete índias concubinas, e daqui se pode
inferir, como procede e no mais; tem sido a sua vida desde que teve razão (se he
que a teve, porque se assim foi, de sorte a perdeu, que entendo a não achará com
facilidade) até o presente anda metido pelos matos a caça de Índios, e de Índias
estas para o exercício das suas torpezas, e aqueles para os granjeios dos seus
interesses. (AHU, Caixa 9, P.A.-PE).
A dissolução dos costumes, foi uma preocupação constante, tanto
da Igreja, quanto do estado. O Ouvidor Geral da capitania do Piauí em
1772, Antônio José de Morais Durão, diz em sua relação: “Cuidam muitos
habitantes deste país em fugir da sociedade vivendo nos matos e brenhas,
onde se figuram mais livres e donde vem à falta de instrução que padecem, e
o respirar tudo a bárbaro e feroz.”87
Nos primeiros anos da colonização do Sertão dos Rodellas, o
compadrio assume fortes características locais. Emerge como uma das
interfaces desta nova sociedade de tapuias e brancos. Preservada da
influência corporativa da igreja, adquiriu contornos mais do tipo vassalar
que servil, distintos dos que observou Schwartz nos engenhos do litoral do
nordeste brasileiro. Valem contudo para o sertão, os laços fraternais,
observados por Henry Koster no Brasil do século XIX, que moldados pelos
usos e costumes locais, sacralizaram a instituição co-paternal.88
Em um parecer escrito em 1688 por José Lopes Ulhoa endereçado
ao Conselho Ultramarino, observamos os laços de intimidade que uniam
tapuias e colonos no Rio Grande do Norte, que se titulavam mutuamente
por ‘Compadres’. A capitania, a esta época, estava mergulhada no caos da

86 O Padre Bernard de Nantes capturou o momento de um destes empréstimos, quando os Carirí de

sua missão incorporaram a dança dos escravos das fazendas, utilizando-as em seus cerimoniais, diz
ele ‘Eles gostam de dançar entre os banquetes e à maneira de dançar dos negros, que eles adquiriram
faz pouco, por ter agradado mais que a antiga maneira deles, que era bárbara, como eu a vi praticada
pelos índios kracuís, meus vizinhos.’ (NANTES, [1702]).
87 Durão, Antônio José de Morais (Ouvidor) Descrição da capitania de São José do Piauí 1772. Oeiras ao

Piauí. 15 de Junho ele 1772. Publicado em (MOTT, 1985:22-41).


88 diz Koster: “esse relacionamento é considerado muito sagrado no Brasil, (...) um laço fraternal que

permite a um homem pobre dirigir-se a seu superior com uma espécie de afetuosa familiaridade,
ligando-os com laços de união, cuja não-observância seria sacrílega.” (KOSTER, 1817. v. I:316).
112
guerra dos Janduí no vale do rio do Açú. Ulhôa, sugeria que, para quietação
das ofensivas, e para evitar maior derramamento de sangue, que o governo
colonial usasse do serviço de “alguns vaqueiros moradores naquele sertão
com os quais esses tapuios comem e bebem e a quem chamam
compadres,”89 para informá-los de que se preparava uma grande ofensiva, e
assim persuadi-los a negociar a paz.
Esta mesma relação de compadrio registra o padre João da Costa na
ribeira do Açú, quando narra o traiçoeiro massacre dos Paiacú, perpetrado
pelo paulista Manoel Álvares de Moraes Navarro, em 1699.90 Em carta
dirigida ao Rei, datada de maio daquele ano, o padre revela que alguns dos
índios trucidados estavam empregados no trabalho das fazendas, outros
permaneciam nas casas de compadres, quando foram atraídos para morte e
escravidão pelo paulista. Diz ele: “vieram todos os que estavam ali mais
perto, uns trabalhando nas fazendas, e outros em casas de seus compadres,
trazendo os meninos e mulheres”.91 Aqui em meio a guerra declarada,
apreende-se que o termo ‘compadre’ refere-se àqueles que oferecem
proteção aos que encontram-se em posição desavantajada. Era o caso dos
Paiacú que, desesperadamente, buscavam entre seus compadres o couto que
não lhes valeu.
A relação de compadrio era uma instituição reconhecida pelo poder
colonial; nos papéis relativos ao capitão-mor João Tavares (1666-1670)
encontramos uma referência aos Jagoribaras como compadres, exatamente
no sentido aplicado pelo dicionarista Antonio de Morais Silva, que conferia
o entendimento de: aquele com quem se está ‘em boa amizade’. (MORAIS e
SILVA, 1813). Diz João Tavares sobre os filhos da nação Jagoribaras:
“nossos amigos e compadres, que vivem mestiços com os índios
avassalados”92.
O mestre-de-campo Antônio Guedes de Brito,93 perito na arte da
conquista, pela paz ou pela guerra, sabia da importância do compadrio

89 Ulhôa era candidato a capitão-mor do Rio Grande, recomendava ainda o envio de dois religiosos

da Companhia para os catequizar. Papeis de José Lopes Ulhoa vistos pelo Conselho Ultramarino, 23
de Março de 1688, (AHU, Rio Grande, caixa 1:26).
90 Este massacre se insere no contexto da Guerra dos Bárbaros na Capitania do Rio Grande do

Norte, foi comandado pelo Mestre-de-Campo Manuel Álvares de Morais Navarro, no qual foram
mortos mais de 400 tapuias e outros 260 foram feitos cativos entre as mulheres e crianças. In Carta do
Padre João Leite de Aguiar ao Rei, 05 de maio de 1696, (AHU, Ceará, caixa 1:46).
91 Carta do padre João da Costa, ribeira do Açu, 26 de Agosto de 1699, (AHU, Pernambuco, caixa

14). Grifo meu.


92 Provisão de 1676 e certidões anexas, (AHU, Ceará, caixa 1:30). Veja também, carta régia para João

Tavares de Almeida, 02 de Outubro de 1673, (DH. vol. IV:182).


93 Segundo Antonil, uma das maiores fortunas da Bahia colonial, que rivalizava em latifúndios com os

Dias d’Ávila da Casa da Torre. Os herdeiros do Mestre-de-Campo Antônio Guedes de Brito


113
destes índios, na consolidação das suas conquistas. Na declaração de seus
domínios senhoriais revela os sacrifícios que teve que suportar para manter
os tapuia Paiaiases aliançados: “entrei na Jacobina com quinze Currais de
gado e um de Éguas, fazendo pazes, e descendo grande numero de Aldeias
de Payayas (...), além do sofrimento que tive com os ditos Payayas em
matarem, e comerem mais de quinhentas cabeças de gado, sem por isso
descompadrar com os ditos Gentios, antes os conservar”.94
A manifestação do compadrio evolui durante o século XVII. No
século seguinte já não eram mais os pecuaristas que buscavam o abrigo do
entorno das aldeias indígenas, surgiam então os ‘agregamentos’ nos quais as
fazendas de gado passam a ser hospedeiras de nativos desaldeados, se
tornando o placet onde o compadrio se encontra com o seu senso mais
moderno.

Agregações
D. João III, ‘O Colonizador’, estava bem informado sobre as
alianças com os indígenas, e as hostilidades e guerras resultantes da
instalação dos núcleos pioneiros na Bahia de Todos os Santos. Em 1548,
lembrava a Tomé de Souza – o primeiro Governador Geral do Brasil – que
o gentil da terra havia feito guerra sem trégua ao antigo capitão da Bahia,
Francisco Pereira Coutinho, destruindo fazendas e causando considerável
prejuízo às posições portuguesas. Ordenava o Rei que o Governador Geral
do Brasil fortalecesse as alianças antigas, recomendando especialmente o
gentio da terra que permanecera de paz e “estão ora em companhia dos
cristãos, e os ajudam”.95 A experiência dos assentamentos pioneiros no
litoral mostrava ser escolha inteligente manter-se, no entorno da nascente
colônia, um certo número de índios aliados, para servir de escudo contra
outros nativos hostis, e atender às necessidades de mão-de-obra. Gilberto
Freire se reportando ao passado colonial, notou:
Cada engenho de açúcar nos séculos XVI e XVII precisava de manter em pé de
guerra suas centenas, ou pelo menos dezenas de homens prontos a defender
contra selvagens ou corsários a casa de vivenda e a riqueza acumulada nos
armazéns: esses homens foram na sua quase totalidade índios ou caboclos de
arco-e-flexa. (FREIRE, 1997:95).

possuíam desde o morro dos Chapéus, na Chapada Diamantina, até a nascente do rio das Velhas, no
coração das Gerais. (ANTONIL, [1711] 1969:186).
94 Descompadrar, grifo meu. As Terras do Guedes de Brito. (RIGHB. 1916, Ano XXIII, Vol XI, n° 42).
95 Regimento de Tome de Sousa de 17 de Dezembro de 1548 In: (TAPAJÓS, 1966, vol. 1:252-260).

114
Nesta configuração típica dos assentamentos pioneiros, as massas
indígenas, situadas ao largo das ‘Casas Grandes’,96 foram sendo lentamente
integradas à sociedade colonial, na categoria subalterna de agregado.
Ao lado da Torre de Garcia d’Ávila, em Tatuapara, se registram os
mais antigos agregamentos indígenas da Bahia. À volta de 1559, Garcia
d’Ávila, um dos homens mais poderosos e ricos da Bahia, já possuía sua
própria força, composta por índios pacificados. (BANDEIRA, 2000:96).
Foi por causa destes agregados que o padre Manoel da Nóbrega escreveu a
Tomé de Souza, reclamando que d’Ávila se obrigara, pelo favor que fizera,
junto ao Governador – pedindo-lhe para que conservassem estes mesmos
índios – a deixar “os meninos irem cada dia à escola a São Paulo, (...) mas
ele teve mau cuidado de o cumprir, sendo de mim muitas vezes
admoestado, antes deixava viver e morrer a todos como gentios”.
(NÓBREGA, 1931, vol. II:210).

Ajuntamento das fazendas


Às fazendas de gado somente estavam seguras junto dos tapuia
aliados. Foi por este motivo que a Casa da Torre instalou os currais
pioneiros, no entorno das aldeias dos Rodellas, de forma que, a princípio, os
agregados eram os brancos. No decorrer do tempo, novos grupos foram se
aproximando das fazendas, ampliando a rede de aliados, e fortalecendo a
posição dos pecuaristas, que passavam assim de agregados para agregadores.
Os domínios do criatório limitaram-se efetivamente, às áreas
economicamente aproveitáveis das margens do rio, deixando largos espaços
vazios entre os currais, por onde os índios tinham trânsito livre.
Considerando que a pecuária dos brancos e o extrativismo dos índios não
eram atividades economicamente concorrentes,97 os índios teriam bastante
espaço para viver ao lado das fazendas, desde que fossem considerados
aliados. Isto não implica em uma regra geral, na qual os índios se deixassem
reduzir, em assentamentos permanentes, por ‘persuasão’. Muitas vezes,
como no caso dos tapuia de corso, era justo a falta de opção que os
compelia a aceitar a opção da redução e paz forçada. Cabe entender,
contudo que isto também é uma forma de escolha estratégica. Nem todos

96 Segundo Gilberto Freire, a Casa da Torre teria sido ‘a maior Casa-Grande’ do Brasil, (FREIRE.

1989:167).
97 A concorrência entre os modos de produção ocidental e nativo não estava no plano econômico,

mas no ecológico, uma vez que o criatório, a longo termo acabava por trazer uma série de
implicações ecológicas que acabavam por inviabilizar o extrativismo nativo. Ver sobre este tema.
(ANDRADE, 1986); (MELLO, 1987. RIHGB, 356:312-315).
115
os grupos seguiram esta opção. Vamos encontrar notícias de índios de corso
livres no sertão do Pajeú, ao oriente do Sertão de Rodelas até a primeira
metade do século XVIII. Os Orizes Porcazes só vão ser reduzidos
definitivamente em 1713, e os Pipipães conservam-se independentes, na
Serra Negra ao Norte de Rodelas até a primeira metade do século XIX.
(ROSA, 1998; FRESCAROLO, 1886. RIHGB, vol. 46).
Índios não controlados eram contínua ameaça à vulnerável empresa
dos pioneiros. Desta forma, a guerra e a violência permanente tornaram-se
indispensáveis para manter afastados os grupos hostis, especialmente os
‘tapuias de corso’. Noutros casos, quando os pactos pioneiros se
desgastavam, expondo as diferenças entre os aliados, a guerra foi utilizada
para manter, sob força, o equilíbrio e as pazes antigas.
As alianças e agregações revelaram-se estratégias eficientes em duas
vias. Primeiro, permitindo aos aliados sobreviver junto às fazendas,
preservando um pouco de liberdade; e segundo, por permitir aos
fazendeiros, manter exércitos particulares, e reserva de força de trabalho
sempre disponível, a baixo custo, sem infringir as leis da Colônia contrárias
à escravização indígena.
‘Fora do caminho dos gados, o sertão continuou deserto e
desconhecido’, testemunha uma carta de sesmaria, datada de 1730, sobre as
terras das cabeceiras do rio Sambaúma e Itapicurú. (AAPB, vol. XII:8) Apud
(CALMON, 1939:72). Inventários de terra e população do sertão de
Rodelas mostram que meio século depois98 o quadro permanecia inalterado.
A mancha de ocupação da pecuária estava condicionada à possibilidades da
malha hidrográfica, e as fazendas situadas à margem dos rios e várzeas, ou
ainda a pequena distância de logradouros eram abastecidos com água e
possuíam pasto permanente. Este dado confirma a observação de Antonil
de que as fazendas e os currais de gado se instalavam onde havia “largueza
de campo e água sempre manante de rios ou lagoas”. (ANTONIL, [1711].
1969:184). Uma memória assinada por Miguel Nunes de Mesquita, o
Conde dos Arcos e Francisco Pereira da Silva em 1698, confirmava com
certa obviedade a escolha:
Neste Rio (São Francisco) maior vão a desaguar e a incorporar-se, por uma e por
outra banda outros muitos Rios os quais vão cruzadamente retalhando esses
sertões; e esses rios transversais também por uma, e outra, banda estão em mui

98RELAÇÃO de moradores (fazendas) 1779. – (APEB, Seção Colonial e Provincial. Colônia.


Caderno 4). manuscrito publicado por João Justiniano da Fonseca em Rodelas - Curraleiros, índios e
Missionários (FONSECA, 1996:142-156); e Códice serra talhada ou Livro de Vínculo do Morgado da
Casa da Torre contendo a relação das fazendas vinculadas, valor pago pelos rendeiros, limites
fundiários e logradouros. 1778-79. (IAHGP).
116
grande distancia de léguas descobertos e povoados, porque a água é o reclamo,
que convida para a habitação de suas margens, por ser na sua vizinhança mais
cômoda a vivenda.99
De fato, a maioria quase absoluta das fazendas da Torre estão
assentadas nas margens ou a pequena distancia do rio São Francisco, ou em
lagoas, e várzeas. Isto é natural, pois somente nestes locais seria possível ter,
com certa regularidade – água e pasto permanentes – recursos necessários à
pecuária.
Num processo movido contra a Casa da Torre, que tem por
embargante D. Brígida Roiz,100 recupera-se um ilustrativo caso onde os
tapuia Caracus, Enchús e Umans foram reduzidos pelo Capitão Francisco
Roiz de Carvalho no entorno da fazenda Riacho. Diz o documento:
Com muito dispêndio de sua fazenda reduziu a paz as nações dos Índios
Caracuhus, Ensús e humans despendendo muitas rezes para sustentação dos
padres Missionários que lhe dão pelo trabalho de os instruir em os mistérios de
nossa santa fé mandando-os batizar e casar e fazendo-os viver como cristãos.101
A documentação mostra que as reduções privadas eram uma prática
mais larga do que se supõe; e pode em parte explicar os baixos contingentes
das Missões, e as abundantes notícias de índios de corso e aldeias dispersas
até o século XIX na região. Por volta de 1675, João Peixoto Viegas,102
Antônio Guedes de Brito, e outros senhores de terras da Bahia,
pretenderam em vão relocar os tapuia Paiaiás para novas fronteiras, afim de
estes as protegerem contra outros tapuia levantados. Os interessados apelam
para o governador Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça, (1671-
99 “Memória de Miguel Nunes de Mesquita, o Conde dos Arcos e Francisco Pereira da Silva”, anexa à

Consulta do Conselho Ultramarino sobre o estado das Missões no Certão da Bahia e informando
acerca dos remédios apresentados provenientes da falta de Parochos e Missionários, Lisboa 18 de
dezembro de 1698. (ABN. Rio de Janeiro, Volume XXXI:23). Documento também publicado por
Braz do Amaral nos comentários às Memórias Históricas de Inácio Acioli. (ACIOLI, 1937, vol.V:314-
334).
100 Dona Brizida Roiz era a herdeira universal do Sargento Francisco Roiz de Carvalho, lugar-tenente

da Casa da Torre, e importante figura na expansão do Piauí. Francisco era irmão de Domingos Roiz,
cabo da entrada do rio do Salitre que foi combater os Anaiô que levantaram nos currais de Antônio
Peixoto. Veja interessante artigo de Sampaio, Yony. “A Colonização do Sertão Pernambucano e o
riacho da Brígida”. Revista de História Municipal . Neste texto o autor explora o caso da D. Brizida.
(SAMPAIO, 1992:25-35) Veja também do mesmo autor “Uma página esquecida no Sertão: sobre o
povoamento de Cabrobó e Salgueiro.” (SAMPAIO, 1997:125-137).
101 Embargo movido por Brizida Roiz de Abreu e seu marido o tenente Manoel da Silva Lima contra

ação de despejo do sítio Riacho, descoberto e povoado de gados pelo seu pai Francisco Roiz de
Carvalho (c.a. 1644), a pedido do Padre Pereira, senhor da Casa da Torre. Coleção Orlando
Cavalcanti – (IAHGP, Caixa 13, 2° pacote 1714:11).
102 Em 1681 João Peixoto Viegas era escrivão do Senado Câmara da Bahia, em 1683 aparece como

provedor da Mesa da Santa Casa da Misericórdia, da cidade da Bahia, e em 1687 assina um celebre
parecer sobre a crise econômica na colônia publicado nos anais da Biblioteca Nacional com prefácio
de José Honório Rodrigues, (ABN, 1950, vol. 20), (DH. vol LXXXIX:II).
117
1675) – ‘pouco favorável às missões’ (LEITE, 1945, vol. V:205-206) - para
que os Índios Paiaiás ‘não fossem confiados à administração dos padres’ da
Companhia. (LEITE, 1945, vol. V:206), (ARSI, Bras. 26:34v.). Em 1676, na
declaração de suas propriedades, Antônio Guedes de Brito afirmava ter
reduzido algumas aldeias Paiaias, no Porto da Cachoeira, Sertão das
Jacobinas, por volta de 1655. O senso comum daquela época associava à
titulação da posse sesmarial as populações humanas nela contidas, de forma
que, para estes senhores, os índios lhes era posse legítima, conquistada e
paga a peso de resgates, ainda que contrariasse dispositivos legais.
Em petição examinada pelo Conselho Ultramarino em 30 de abril
de 1705, Antonio da Silva Pimentel, morador no Sertão das Jacobina da
Bahia de Todos os Santos, rogava que o poder público o ajudasse no
sustento de uma aldeia de tapuias Paiaiases que tinha agregada a suas
propriedades, de que “ele é Senhor, e possuidor”, nas quais, havia “uma
Aldeia de Índios Payayazes, os quais sendo mestiços no trato com os
brancos, e muitos já instruídos na nossa Santa Fé Católica”. Antônio
Pimentel, conhecido ‘benfeitor do convento de São Francisco da Bahia’,103
buscava, por via de um artifício lógico, legitimar formalmente uma situação
ilegal, que a plasticidade e as contradições coloniais permitiam. Pimentel
dizia-se senhor destas terras e dos índios dela, e chamava a si a tarefa de
iluminar as almas de seus agregados, justificando que eles estavam:
Sem sacerdote que lhes diga missa, e administre os sacramentos, por que a
aspereza do sítio e o não haver emolumentos capazes de sustentar impossibilita
assistir com os ditos Índios, e procurando-se muitas vezes, pelos Padres
Missionários conduzi-los para alguma das Aldeias em que assistem padres, e
unindo-os na mesma vivenda poderem administrarem-lhe os Sacramentos, educá-
los na doutrina. (WILLEKE, 1974:89).
A concessão dos direitos de padroado lhe permitiria, escusado na
obrigação da fé, continuar explorando os índios. Enquanto a Coroa não se
resolvia sobre as disputas entre missionários e colonos sobre a
administração temporal dos índios, situações como esta são recorrentes.
Neste caso por alvará de 7 de maio de 1705 a Rainha deferiu o pedido,
alegando que o mesmo já havia passado pela Mesa da Consciência e
Ordens, instância jurídica encarregada da aplicação do Padroado nos
domínios portugueses. A soberana concedeu-lhe licença para erigir a igreja,
e fez ainda a “mercê do padroado dela, em que nomeará clérigo para pároco
sendo aprovado e a satisfação do arcebispo daquele Estado.”104

103Esta aldeia de índios originou a vila de Bom Jesus das Jacobinas. (WILLEKE, 1974:89).
104Afonso Costa, “História da Jacobina” in Jornal do Comercio. Rio de Janeiro 31 08 1952, divulgado por
Fr. Venâncio Willeke sem indicação de fonte. (WILLEKE, 1974:88-89). Ver também em Consulta ao
118
Muitas vezes contudo, as reduções resultavam de um permanente
processo de guerra ofensiva e defensiva. Neste ponto as milícias e
ordenanças cumpriram um papel decisivo organizando militarmente os
parcos recursos humanos disponíveis. Nos anos que antecedem a chegada
dos missionários, os pecuaristas e senhores de terras se capitalizavam ao
modo Paulista, agregando compulsoriamente contingentes de “novos
aliados” às fazendas, ou reduzindo-os em assentamentos controlados
militarmente denominados de “presídios”, “arrayais”, ou companhias de
ordenanças, comandados por oficiais legitimados por patente real onde os
índios viviam em regime de liberdade vigiada.

Agregamentos paulistas.
“Por várias vezes tenho dito, que os paulistas são a melhor, ou única
defesa, que têm os povos do Brasil contra os inimigos do sertão; pois só
eles são costumados a penetrá-lo, passando fomes e sedes, e muitos outros
contrastes, a todas as outras pessoas totalmente insuportáveis”, declarava
um parecer do procurador da Fazenda Real,105 sobre os mercenários
paulistas. De fato, estas milícias haviam adquirido larga experiência na
guerra, escravização, tráfico e redução de índios, especialmente de povos
túpicos, habitantes da costa do Brasil meridional,106 mencionados em
diversos momentos da expansão colonial como ‘armas perfeitas contra o
gentil bárbaro’. Por terem se notabilizado na arte desta guerra, foram
convocados na segunda metade do século XVII, ao Nordeste do Brasil para
combater nas Guerras dos Bárbaros, que assolavam as capitanias do Rio
Grande, Ceará, Maranhão e, posteriormente, para desbaratar os negros
aquilombados nos Palmares.107 No contexto particular, da expansão colonial

Conselho Ultramarino de 14 de Mayo de 1706, sobre o que pede o Antonio da Silva Pimentel e vay a
informaçao que se acuza. (AHU, códice 52:140-140v), ver também “Consulta do Conselho Ultramarino,
de 26 de novembro de 1691” e Consulta do Conselho Ultramarino - Sobre dona Joana de Araújo, viúva de
Antonio da Silva Pimentel, acerca das partilhas. (AHU, Códice 256:125v).
105 “Parecer do Procurador da Fazenda sobre as queixas e requerimentos dos paulistas.” Documento

n° 53 do dossiê anexo publicado por Ernesto Ennes em As guerras nos Palmares: subsídios para sua
história - Domingos Jorge Velho e a Troia Negra, 1687-1709 sem citação de data nem nome do parecerista,
contudo se aduz que seja datado dos últimos anos do século XVII, como se podem ver nos outros
documentos da peça jurídica em que está apenso. (ENNES, 1938:310).
106 Sobre este tema ver John Manuel Monteiro. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São

Paulo. (MONTEIRO, 1994).


107 Sobre a participação dos Paulistas no Nordeste colonial, ver a tese de Pedro Puntoni. A Guerra dos

Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão Nordeste do Brasil 1650-1720. (PUNTONI, 1998);
Confederação dos Cariris: ou Guerra dos Bárbaros de, Horácio de Almeida. (ALMEIDA, RIHGB, 1977:407-
433); de Olavo Medeiros Filho, Os Tarairus, O Rio Grande do Norte e a Guerra dos Bárbaros.
(MEDEIROS FILHO, 1991); do mesmo autor, O terço dos paulistas do Mestre de Campo Manoel Alvares de
Moraes Navarro e a guerra dos bárbaros, (MEDEIROS FILHO, 1987); De Maria Idalina da Cruz Pires.
119
no rio São Francisco, os paulistas celebrizaram-se no combate, redução e
incorporação de tapuias de corso que garantiu durante muito tempo a
segurança no interior da colônia.
O termo agregamento ocorre na literatura colonial, muitas vezes para
designar terços engrossados com tapuias ‘aliados’, que, uma vez integrados
às milícias coloniais, passavam a defender as frentes de expansão. Diversos
testemunhos coevos registram a prática do agregamento. Em carta ao
Príncipe Regente D. Pedro II (1667-1683), o mestre de campo Domingos
Jorge Velho reclamava o cumprimento do contrato da guerra dos Palmares,
acordado com o governador de Pernambuco em 1687. Nesta carta, o
paulista faz uma rica descrição sobre a composição, natureza e função do
seu exercito, “de 800 e tantos índios, e de 150 brancos”. Diz ele:
Peço licença para uma breve digressão, nossa milícia Senhor é diferente da
Regular que se observa em todo o mundo. Primeiramente nossas tropas com que
vamos à conquista do gentio brabo desse vastíssimo sertão, não é de gente
matriculada no livros de Vossa Majestade nem obrigada por soldo, nem por pão
de munição, são umas agregações que fazemos alguns de nós, entrando cada um
com os servos de armas que tem e juntos vamos ao sertão deste continente não a
cativar (como alguns hipocondríacos pretendem fazer crer a Vossa Majestade)108
senão adquirir o Tapuia gentio brabo e comedor da carne humana para o reduzir
ao conhecimento da urbana humanidade, e humana sociedade à associação
racional trato, para por esse meio chegarem a ter aquela luz de Deus e dos
mistérios da fé Católica que lhes basta para sua salvação.
O fala do mestre de campo era absolutamente coerente com o
discurso colonial; ressalvadas as obrigações vassalares. Estabelecia de
princípio, a natureza privada e de livre iniciativa de suas tropas, situando-as
fora da dependência política e econômica da Coroa. Coloca sua distinção
conceitual entre servidão e escravidão – tratando por ‘aquisições’ as
incorporações que fazia – para justificar, como um ato de caridade cristã, o
direito do conquistador de subtrair os tapuia vencidos de seu ambiente,
forçá-los ao trabalho compulsório, e submetê-los aos horrores da guerra.
De fato, posto que os agregados, teoricamente, se associam a estas
milícias como opção substitutiva à guerra, de forma ‘voluntária’ e grupal,
não poderiam, stricto senso, ser classificados abaixo do conceito de

Guerra dos Bárbaros, resistência indígena no nordeste colonial. (PIRES, 1990, n°2:146); de Affonso de. E
Taunay, História Geral das Bandeiras Paulistas. (TAUNAY, 1924-1950); do mesmo autor A Guerra dos
Bárbaros, (TAUNAY, 1936, RAM, vol. 22:1-331).
108 Refere-se a justificativa das acusações de trafico de escravos e concubinagem, que lhe havia
imputado o Bispo de Pernambuco. Ver em: carta inclusa do Bispo de Pernambuco Dom Francisco
de Lima de 18 de Maio de 1697. (AHU. Caixa 9, P.A.-PE).
120
escravidão.109 A negociação, pela qual os tapuia se submetem como súditos
do Rei, tornava-os, ato contínuo, servos reais e como tal, ‘livres’, condição
não permitida a escravos. Esta liberdade deve ser relativizada, uma vez que
estava vinculada à corporação miliciana, fora dela, qualquer tapuia, livre e
desaldeado, era considerado potencial inimigo.
Os tapuias, depois de integrados a estas milícias privadas – já então
vassalos reais – apoiados e comandados logisticamente pelos portugueses
vão ser usados para impor nova ordem em seus próprios espaços
tradicionais, reduzindo à obediência grupos não integrados, situados no
perímetro das conquistas. Com a convicção da caridade que opera, na obra
da conversão da ordem nativa à ‘urbana humanidade’. Diz o paulista: “e
desses assim adquiridos, e reduzidos, engrossamos nossas tropas, e com eles
guerreamos a obstinados e renitentes a se reduzirem”. Domingos Jorge
Velho arremata sua lógica, explicando que não considera injusto o uso da
força de trabalho dos tapuias na produção de alimentos, uma vez que isto se
faz para alimentar ‘a eles e a seus filhos como a nós e aos nossos’ bem como
é ainda um ‘irremunerável serviço’ de lhes ensinar a produzir ao modo
ocidental, ‘coisa que antes que os brancos lho ensinem, eles não sabem
fazer’.110
Esta larga tradição de alianças, agregamentos, concubinagem e
exploração secular da mão-de-obra nativa, estava no cerne das mais
importantes disputas, entre missionários e colonos. No que toca o encargo
da tutela temporal dos índios, o governo, foi omisso, oscilando sua política
paternalista entre seculares e regulares. A maior parte do tempo navegou à
deriva, ao sabor dos ventos coloniais, regendo-se pelas demandas dos
conflitos gerados nas frentes de expansão.
No vácuo de políticas objetivas, os colonos tomaram em surdina a
tarefa de reduzir e controlar os índios, agindo à margem da ação dos
redentores oficiais missionários. Não obstante a edição do Alvará de 30 de
julho de 1609, e da Carta de lei de 10 de setembro de 1611,111 onde se

109 “como alguns hipocondríacos pretendem fazer crer a Vossa Majestade”. Note-se que neste texto o
paulista refere-se especificamente a sua ação no caso da redução dos tapuia Oroazes, e Cupinharós
do Piauí. Contudo, a Guerra Justa permitiu a venda e escravização de Tapuias hostis no Nordeste
colonial. Os principais instrumentos deste negócio foram os paulistas, que montaram uma bem
organizada indústria de guerra no século XVII. (AHU. Caixa 9 P.A.-PE). Sobre este tema ver
(PUNTONI, 1998:passim).
110 Carta autógrafa de Domingos Jorge Velho escrita do Outeiro da Barriga, Campanha dos Palmares

de 15 de Julho de 1694 em que narra os trabalhos e sacrifícios que passou e acompanha a exposição
de Bento Sorrel Camiglio procurador dos paulistas. (ENNES, 1938:204-7).
111 Alvará de 30 de julho de 1609, “Gentios da terra são livres” e Carta de lei de 10 de setembro de 1611,

onde se declara a liberdade dos gentios do Brazil. (THOMAS, [1937]. 1981:226-233).


121
declara a liberdade dos gentios do Brasil e a tutela religiosa, as regras de
jurisdição temporal e espiritual, caíram em letra-morta. Multiplicaram-se os
conflitos que se prolongaram até a instalação do diretório pombalino,
quando, ‘aparentemente’, a coroa toma posição firme contra as agregações,
proibindo terminantemente a permanência de nativos em casas e fazendas
de particulares. Mais uma vez se tratava de jogo-de-cena, a coroa colocava
raposas para guardar galinhas. Enquanto com uma mão exortava os colonos
a abandonarem a exploração ‘nociva e desumana’ dos índios, com a outra
regulava esta mesma prática, regrando a exploração da mão-de-obra nativa,
sob o controle dos diretores de vilas e aldeias de índios que, via de regra,
eram os próprios colonos.

Alianças e infra-estrutura colonial.


Apesar da amizade com grupos majoritários, até o final do século
XVII não se podia falar verdadeiramente em trânsito livre no sertão do rio
São Francisco. As alianças inaugurais eram ilhas de aliados dentro de um
mar de tapuias hostis, os caminhos estavam controlados por inimigos, e os
núcleos coloniais não estavam fortes o suficiente para enfrentar, à força, a
oposição dos adversários locais. A saída foi uma longa política de negócios e
trocas, intercaladas por pequenas guerras ofensivas, sempre acompanhadas
dos tapuias aliados.
A economia do Sertão de Rodelas, das conquistas do Piauí e de
parte do Maranhão, dependiam do trânsito livre e paragens seguras, para
viabilizarem um fluxo contínuo de bens e mercadorias, essenciais à
estabilização da economia, tanto no sertão, quanto nos setores do litoral
dependentes dos produtos dos sertões. Após a retomada dos centros
produtores agro-açucareiros no litoral, a necessidade estratégica de pólvora
para alimentar os postos de defesa e as milícias e ordenanças, fazia da
descoberta de jazidas de salitre, entre as Jacobinas e o Sertão de Rodelas, um
assunto de segurança colonial de primeira magnitude.
As descobertas das minas de Itabaiana, Jacobinas na Bahia, e mais
tarde as Minas Gerais, criaram diferente ambiente econômico e um fluxo
adicional de tráfego na região que ainda permanecia dependente dos
humores de alguns grupos nativos, que permanentemente assaltavam os
caminhos. Os senhores de terras sesmeiros abriam estradas em curtos
segmentos, para interconectar suas conquistas e oferecer pronto socorro nas
necessidades. Estas estradas eram simples picadas, abertas a facão, que se
mantinham com o tráfego dos comboios de gado.

122
A decisão da coroa em promover a conexão entre os estados do
Brasil e o estado do Maranhão no final do século XVII, foi mais retórica
que factual, uma vez que caminhos vicinais já haviam sido efetivamente
abertos em quase todas as conquistas, desde as Jacobinas, seguindo rumo
norte pelo rio do Salitre (RIGHB. 1916, Vol XI, n° 42), através do rio São
Francisco pela passagem do Juazeiro e seguindo pelos rios Piauí e
Gourguéia em direção ao Parnaíba.112 Esta linha conectava o delta do
Parnaíba ao recôncavo Baiano, desaguadouro natural da maior parte da
produção pecuária a esta época. Affonso de Taunay lembra que o Capitão
Manuel Álvares Carneiro, acompanhado de uma pequena bandeira, já teria
em torno de 1684, logrado encontrar o roteiro para o ‘Caminho do Brasil’.
Contudo, a notícia oficial da descoberta do corredor do Maranhão só se
confirmou em 1695, por ordem de D. João de Lencastro.113 Bem antes desta
data, entretanto já se tem notícia verossímil de conexão entre a vila de São
Paulo e o Maranhão via rio de São Francisco.114 Em 1614 um grupo de
sertanistas paulistas conseguiram alcançar o delta do rio Amazonas, e
registraram uma relação, assinada por um Pero Domingues, da entrada que
teria feito em, acompanhado por 30 portugueses, partindo da vila de São
Paulo, até ‘o grande Parâ, que he o verdadeiro Maranham chamado também
Rio das Amazonas’. A derrota sugere uma busca velada, dos aventureiros
paulistas, por escravos túpicos.115 Supomos que, devido à distância entre São
Paulo e o delta do Amazonas, e a violenta reação dos colonos do Maranhão,
contra a tutela jesuítica e contra as leis de liberdade dos índios no início do

112 Veja no relatório do Padre Miguel do Couto nota sobre a ‘descoberta Oficial’do caminho do
Maranhão (COUTO, [1697], 1938), veja também “Relatório de João Velho do Vale” transcrito e
comentado por João Renôr em O Estado do Maranhão edições de 19 e 26 de novembro de 1989; 03 e
24 de dezembro de 1989; 04, 14 e 18 de fevereiro de 1990; 04 de março de 1990; 01 e 15 de abril de
1990, “Jornada de João Velho do Vale” (AHU, P.A. Maranhão. Caixa 8:10).
113 Em 1695, João de Lencastro o autorizou a explorar um caminho mais breve “gastando nela quinze

meses por ser mais de 300 léguas com grande risco em razão dos rios que passavam e gentio bárbaro
que habitava aqueles sertões. Veja “Patente de Manuel Gonçalves Pereira, de 28 de Março de 1695”,
Apud (TAUNAY, 1950, vol. 6:287-288).
114 “Informação da entrada que da Villa de São Paulo se pode fazer ao grande Parâ, que he o

verdadeiro Maranham chamado também Rio das Amazonas, cuja barra esta na costa de Pernambuco
340 legoas cotra as Antilhas, e 440 da Bahia do Salvador cabeça de todo este estado do Brasil,
Provincia da Santa Cruz. Dada por Pero Domingues morador na mesma villa, e hú dos 30
Portugueses que no ano de 614 o descobrirão com o qual contestam os mais companheiros que hoje
vivem”. (ARSI. Códice Brasil-Historia 1620-1647:509-510).
115 Dizia André João Antonil no princípio do século XVIII se referindo ao moradores de São Paulo

“... contentando-se os moradores com os frutos, que dá a terra abundantemente na sua superfície; &
com os peixes, que se pescão nos rios grandes, & aprazíveis; não tratarão de divertir o curso natural
destes, para lhes examinarem o fundo, nem abrir àquelas as entranhas, como persuadio a ambição
insaciável a outras muitas Nações: ou porque o gênio de buscar Índios nos matos desviou desta
diligência menos escrupulosa, & mais útil” (ANTONIL, [1711], 1969:129-130).
123
século XVII, o investimento inviabilizou-se, deixando contudo registrada a
ocorrência. (THOMAS, [1937]. 1981:226-233).
Em 1676 a Coroa enviou o desembargador sindicante Sebastião
Cardoso Sampaio para averiguar o estado das sesmarias concedidas no
Brasil. No final de sua missão Cardoso fez publicar um circunstanciado
memorial com a declaração das propriedades possuídas de “todos os
sesmeiros”. Neste documento evidencia-se o produto da política de alianças
com os indígenas que permitiram o estabelecimento de uma destas redes de
fazendas de criatório, infra-estrutura viária, estradas, caminhos vicinais,
passagens de rio, e apascentamento de tribos hostis. O mestre de campo
Antônio Guedes de Brito registrou na relação de seus títulos as benfeitorias
realizadas:116
Povoei, descobrindo-as fazendo estradas, e pazes com os índios Cariocas, Orizes,
Sapoyas, e Caparaus descendo Aldeias para as mesmas terras, com qual se
segurarão as fronteiras do Inhambupe e Natuba, que por algumas vezes tinham
infestado os Bárbaros rebeldes. (...) e por já ter feito a primeira estrada até
Jacobina pela parte do Norte, e sendo demais de quarenta léguas (...) não achar
nela Sitio algum que pudesse cultivar-se, nem em todo o tempo se poder passar
pelas faltas de água adita estrada, sendo que serviu de grande utilidade,(...)
Secundariamente abri outra estrada de Leste ao Este para a Jacobina, que me
custou grande numero de Fazenda e trabalho, (...) de maneira que tem sido
grandes utilidades as estradas, que se tem feito neste Sertão. (RIGHB. 1916, vol XI,
n° 42:69-74).

O padre Miguel do Couto relata a história da cooptação dos tapuia


Aroatizes e Goanares, relacionando este fato ao comércio de manufaturados
de algodão e gado, que principiava a movimentar o caminho entre
Maranhão e o Piauí. Segundo o clérigo, em Janeiro de 1697, teria vindo em
comitiva inaugural, junto com comerciantes de redes de algodão e mais
moradores da praça do Maranhão, o doutor Manoel Nunes Collares, que
seguia para o Desembargo da Relação da Bahia. No caminho encontraram
os tapuias bravos de nação Aroatizes, e Goanares, “com os quais ajustarão
pazes, que sendo firmes será em grande utilidade do comercio por ficar o
caminho sem impedimento”. (COUTO. [1697] 1938).

116 Este episódio se dá na fronteira Sul do Sertão de Rodelas, à altura das Jacobinas. Usamos aqui por

ser ilustrativa na compreensão da mecânica deste processo no Nordeste Colonial.


124
Figura 13 - Mapa da expansão dos núcleos coloniais via rio São Francisco e
caminhos e estradas abertos pelas frentes de expansão a partir de 1655.

É importante ter-se em mente que o processo colonial não agiu de


forma homogênea. Muitas áreas periféricas dos pólos de expansão colonial
como o sertão de Rodelas permaneceram por longo tempo em estado de
semi-isolamento, por falta de caminhos seguros. Em 1761 o governador de
Pernambuco Diogo Lobo da Sylva, recomendava ao sargento mor
Jeronymo Mendez de Paz cuidado adicional nas diligências das aldeias do
diretório, extremo oeste do sertão de Rodelas, por ‘serem caminhos
infestados de quantidade de índios brabos, que não poucas vezes costumam
sair e assaltar os comboieiros’.117

117Carta do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva para o Sargento Mor Jeronymo Mendes da Paz,
sobre se lhe dar parte do acerto com que se houve o Ouvidor das Alagoas nos estabelecimentos das
125
As pazes com os tapuia permitiram a lenta ocupação civil e o trafego
de brancos nas novas conquistas, enquanto criavam as bases do canal de
trafego que mais tarde conectaria o Estado do Maranhão à cidade da Bahia
no Estado do Brasil, via sertão de Rodelas, então recentemente aberto.118
Esta infra-estrutura, a seu turno, deu lugar ao desenvolvimento de uma
incipiente economia sertaneja, que encontrava mercado no litoral. Contudo,
até a segunda metade do século XVII, a passagem nestes territórios era livre
apenas para incursões militares, ou expedições e comboios segurados por
grupos armados.

Alianças Militares
O debate histórico sobre o papel da expansão colonial em direção
ao rio São Francisco – frente às demandas econômicas e de segurança do
litoral – mantém-se como um ponto pouco explorado no capítulo das
disputas luso-neerlandesas.119 É fato que a interiorização no Nordeste do
Brasil só deslancha, efetivamente, na segunda metade do século XVII, após
o abandono das posições holandesas no litoral. Esta circunstância encontra-
se repetida em vários modelos explicativos da expansão colônia,l120 sem que
sejam suficientemente discutidos os diversos fatores condicionantes desta
ordem. José Antônio Gonsalves de Melo levanta a questão das concessões
de terras, outorgadas em Pernambuco neste período, referindo-se a um
possível movimento fundiário demandado de Pernambuco121 que alcança a

novas Villas, Cautelas com que se houve a favor dos índios na Ilha do Pambú em resendir a
remarcação que della se havia feito a particulares, e o mais nela declarado. Recife, 1° de Dezembro de
1671. p130-131. “Livro de registro composto, principalmente, de cartas, Portarias e Mapas versando
sobre vários assuntos, relacionados com a administração dos índios, estabelecimento de vilas e
aldeias, Recife etc”. (BN, Cód. I, 2, 3, 35).
118 Segundo Pedro Puntoni, tal descoberta ocorreu apenas em 1695, quando um sargento-mor,

Francisco dos Santos, e alguns soldados aventuraram-se no sertão para “ver por donde poderá ficar
mais breve [o caminho], para que se facilite o comércio” (PUNTONI, 1998). Carta de João de
Lencastro para o governador de Pernambuco, 21 de maio de 1695, (DH vol. 38:339).
119 “José Antonio Gonsalves de Mello, considera a influência das lutas holandesas na penetração dos

sertões nordestinos e o recrutamento militar da sua população indígena um aspecto ainda por
estudar.” (MELLO, 1954, nota 53). Ver ainda do mesmo autor Três roteiros de penetração do território
pernambucano (1738 e 1802). (MELLO, 1966).
120 De Basílio de Magalhães Expansão geográfica do Brasil colonial, (MAGALHÃES, 1944); João

Capistrano de Abreu, Caminhos antigos e povoamento do Brasil. (ABREU, 1975); Felisbello Freire, História
Territorial do Brasil, (Bahia, Sergipe e Espírito Santo); (FREIRE, 1906) e Caio Prado Jr. Formação do Brasil
Contemporâneo. (PRADO JR. 1999).
121 Capistrano de Abreu dividiu em duas, as áreas de expansão da economia pecuária no Nordeste do

Brasil. A primeira delas, agenciada pelos baianos, que seguindo o rio São Francisco e o rio Itapicuru
ocupou o “sertão de dentro”. Esta área abarca a região que ocupa o atual estado da Bahia, inclusive a
margem ocidental do São Francisco, mais o Piauí e o “território dos Pastos Bons”, região do alto
Itapicuru e rio das Balsas até Tocantins. Uma outra, mais tardia, de iniciativa dos pernambucanos,
126
fronteira Oeste da capitania. José Antônio sugere “não ter sido simples
coincidência a sucessão de datas de sesmarias que logo depois de 1654,
começaram a ser concedidas na margem Norte do rio São Francisco e na
ribeira do Pajeú.”122
Interessa-nos analisar, também outros movimentos fundiários, mais
ao Oeste e ao Noroeste da conquista de Rodelas, que ocorrem um lance
antes, deste lembrado por José Antônio G. Mello. Pedro Calmon relaciona
as datas concedidas à Casa da Torre; resumindo sua análise dos dados
apenas em dizer que: “davam-l’ha com a mesma facilidade com que as
pedia. Mais por prudência e cortesia que pela importância das concessões”.
Calmon não se dá conta de um movimento estratégico de bastidores que as
datas sugerem. Das duas dezenas de titulações concedidas à Casa da Torre,
metade é efetuada durante os quase vinte e cinco anos da ocupação
holandesa. (CALMON, 1939:51). É justamente a parte mais substanciosa
das conquistas da Torre que incluem, além do Sertão de Rodelas, os vales
do rio do Salitre e porções meridionais que se estendiam até o rio Grande
do Sul.
Moniz Bandeira atenta para o fato de que não fora apenas a
expansão dos currais que impulsionou a conquista do sertão; a “ambição de
alcançar o Eldorado ou encontrar a serra resplandecente alimentava o sonho de
portugueses e mamelucos”. (BANDEIRA, 2000:123) Desde muito cedo,
mineiros e aventureiros se lançaram aos sertões em busca de salitre,
minerais e gemas preciosas; contudo, apenas na primeira metade do século
XVII se tem notícia comprovada de prata e salitre nos sertões interiores da
Bahia.123
Todavia deu-se a ocupação holandesa em Pernambuco, e muitos
planos foram circunstancialmente protelados a bem de interesses
prioritários. A Bahia converteu-se em couto seguro para resistência. Já em
1640, o conselheiro Adriaen van der Dussen alertava a Assembléia dos XIX
de que a conquista do Brasil estava permanentemente ameaçada pela

colonizou os “sertões de fora”, aquelas regiões que parte da costa, até atingir o Ceará. (ABREU, 1963
147 ss.).
122 José Antônio relaciona algumas destas datas de terra: “a de 20 léguas no rio Pajeú concedida à

Francisco de Brae, Nicolau Aranha Pacheco, Cristóvão de Burgos, Antonio Pereira Marinho e
Gonçalo Bras de Carvalho em 27 de setembro de 1659 e a de 30 léguas em quadra, no mesmo rio,
concedida à Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres dos Montes Guararapes, em 19 de agosto de
1660” (MELLO, 1954: nota 53).
123 Relatório do coronel Pedro Barbosa Leal ao Conde se Sabugosa, vice-rei do Brasil, datado de 23

de novembro de 1725, in index de várias notícias pertencentes ao estado do Brasil e o que nele obrou
o Exm° Sr Conde de Sabugosa no tempo de seu governo. (IHGB: n° 346); (WALBEECK, [1633],
1945,Vol. I:117 a 130).
127
resistência aquartelada na Bahia. Preocupava-o esta importante região não
controlada pelos neerlandeses; “enquanto os espanhóis forem senhores da
Bahia” alertava van der Dussen, “terão sempre muitas oportunidades para
nos molestarem”. O conselheiro revelava-se temeroso com a ação dos
baianos que “em qualquer tempo podem enviar suas tropas e seus ardilosos
campanhistas para nossa conquista, o que não podemos impedir.” Era uma
situação difícil para os combatentes holandeses, preparados militarmente
para outro tipo de guerra: a de ataque e defesa de objetivos fixos:
É quase impossível aprisioná-los, não só porque os nosso soldados não estão
habituados às matas como porque são escondidos pelos moradores portugueses,
(...) da Bahia podem ser enviados para ali bandos dessa gente em qualquer
ocasião, os quais põem em perigo os canaviais com a possibilidade de incêndio,
que podem ser ateados por um pequeno número de campanhistas.
Estavam na condição de Gulliver imobilizado, permanentemente
fustigados pelos pequenos, porém numerosos adversários. Temeroso
Dussen advertia:
Para completar a conquista do Brasil e fortalecer o que lá possuímos, é muito
necessário seja a Bahia subjugada. Assim será destruído aquele ninho de formigas,
de onde procedem incessantemente tantos bandos de perturbadores do sossego
do país e de causadores de permanente estado de alarme. (DUSSEN, [1640] 1981,
vol, I:226).

Figura 14 - Gravura de um panfleto holandês anterior à 1624 mostrando tropas se


deslocando pelo interior, da Bahia para Pernambuco. Reysboeck van het Rycke
Brasilien.

128
A Torre de Garcia d’Ávila em Tatuapara se transformara ao longo
da guerra num destes ‘ninho de formigas’. Moniz Bandeira lembra que a
Torre de Garcia d’Ávila continuou a funcionar como importante ponto
estratégico, entre Pernambuco e a Bahia de Todos os Santos, “companhias
de emboscada por ali passavam ou se concentravam para penetrar o
território de Sergipe e, atravessando o rio de São Francisco, estender as
operações de guerrilha até a Paraíba”. O socorro “prestado à restauração do
domínio português sobre o Nordeste Brasileiro ainda mais aumentou,
naturalmente, o acervo político do Senhor da Torre que, orientado pelo
padre Antônio Pereira, seu tio e cunhado, tratou de convertê-lo em terras e
expandir ainda mais seus domínios”. (BANDEIRA, 2000:148-9).
Os portugueses tinham a perfeita dimensão da importância
estratégica do sertão. A concessão de sesmarias nos sertões em parte se
justificaria pela necessidade de fomentar a ocupação da região, como forma
de proteger e assegurar a retaguarda da costa. Talvez seja isto o que indique
a dinâmica afermentada de concessões, observadas no período entre Agosto
de 1632 e Junho de 1658, formalizadas pelos governadores das capitanias e,
em curto prazo, confirmadas pela Metrópole.
Os prepostos da Torre pareciam entender a agonia holandesa e que,
provavelmente, se lhes esgotariam as chances de conseguir largas datas de
terras fora do contexto das guerras. Oportunistamente, no apagar-das-luzes,
entre Abril e Outubro de 1654, locupletam-se com quatro, novas datas
como se pode conferir na tabela abaixo.
Data Sesmaria Senhorio
31 de Agosto de 1632 10 léguas no rio São Francisco Francisco Dias d’Ávila
30 de Outubro de 1632 16 léguas no rio São Francisco ?
12 de Dezembro de 1650 ? Francisco Dias d’Ávila
22 de Abril de 1651 confirmação das antecedentes Francisco Dias d’Ávila
08 de Abril de 1654 confirmada em 30 de 04 de 1654 Francisco Dias d’Ávila
28 de Abril de 1654 Rio São Francisco arriba, 200 léguas de Pe. Antônio Pereira e Francisco Dias d’Ávila
Salvador
30 de Abril de 1654 Território adiante das Jacobinas Pe. Antônio Pereira
12 de Outubro de 1654 ? Francisco Dias d’Ávila
08 de Outubro de 1657 ? Francisco Dias d’Ávila
22 de Junho de 1658 Novas terras no rio São Francisco ?
Fonte: P.Calmon, p.51 nota 50 e Anais do Arquivo Público da Bahia, vol. XVII, 20.

Cumpre-se questionar então qual o papel do rio São Francisco –


neste palco de guerras, dominado pelas invasões holandesas, formação dos
Quilombo dos Palmares e desenfreada resistência dos povos tapuia, em
quase todas as conquistas do interior do Brasil – que justificaria uma política
fundiária tão desigual, e de resultados futuros desastrosos.
Mesmo durante o turbilhão da guerra do açúcar no litoral, a pecuária
no rio São Francisco manteve seu ritmo de crescimento. Evaldo Cabral,
lembra que, “a despeito dos sete anos de guerra, os currais do São Francisco

129
continuavam profícuos”.124 Gaspar Barlaeus se referia poeticamente à
pecuária dos sertões de Pernambuco, sem disfarçar uma pontinha de desejo.
“Pernambuco alegra-se com a sucessão de montes e vales”, diz Barlaeus:
“há também pastagens que nutrem copioso gado, de sorte que mereceria ser
chamado a ‘teta do Brasil’, designação que outrora os Italianos deram à
campanha.” (BARLEU, 1974:42). Esta economia, que excitara o forasteiro,
era uma peça chave na estratégia de abastecimento e manutenção das
conquistas. Mas parece não ter se reduzido somente ao abastecimento
colonial os interesses pelos sertões.
Diversos estudiosos do período de ocupação Holandesa,
demonstram como portugueses e holandeses procuraram, cada um, a modo
próprio, promover suas alianças com os tapuia na tentativa de desequilibrar
o poderio dos adversários, à custa da força militar dos nativos. (MELLO,
1987:221-5); (MELLO, 1998); (BOOGAART, 1979:519-38);
(CARVALHO, 1930:165-204); (WÄTJEN, 1938).
A explicação para a expansão portuguesa no interior do Brasil passa
evidentemente pela saída dos holandeses no litoral. Com recolhimento do
suporte oferecido pelos neerlandeses no nordeste setentrional, os tapuias
desta região perdem seu poder articulador o que, de alguma sorte, dava
unidade à massa tapuia dispersa em pequenos grupos. A falta deste suporte
deixava-os, diluídos e vulneráveis, rompendo então a “Muralha do Diabo”
que represava a dinâmica expansionista no litoral nos sertões de fora. A este
tempo, também, as Jornadas do Sertão e as Guerras do Orobó, vencem
parte dos tapuia do Recôncavo Baiano, convertendo, pela guerra, em
aliados, antigos inimigos renitentes. (PUNTONI, 1998:73-86).
Abertas as portas dos sertões setentrionais, no Rio Grande do
Norte e no Ceará, e do Recôncavo Baiano ao Sul, a dinâmica colonial
avança em um movimento de pinça, cercando e espalhando células
ocidentais dentro do país dos tapuia, germinando nos assentamentos das
Jacobinas e de Rodelas. (SAMPAIO, 1997:9). Esta mesma dinâmica deflagra
também um movimento contrário de resistência nativa, que explode nos
pontos de fratura deixados no rastro do avanço das frentes coloniais. A
quebra da aliança Janduí no Assú que sustentava a guerra com a ajuda dos
Xucurus, Canidés, Tarairius entre outros pequenos grupos, reverteu para o
lado português o placar do jogo e, com ele, as apostas dos jogadores, que
acabou por diluir a resistência dos Janduí e seus associados.

124 Segundo Evaldo Cabral de Melo “Havendo Bagnoulo mandado abater 5.000 rezes e tanger outras

8.000, os holandeses ainda haviam podido consumir mais de 3.000 cabeças” (MELLO, 1998:45).
130
As alianças estabelecidas por Garcia D’Ávila no sertão de Rodelas a
320 quilômetros da foz do rio São Francisco, para viabilizar a ocupação das
terras de suas “descobertas”, desdobraram-se além dos interesses locais da
Casa da Torre, passando a influir no equilíbrio de forças do litoral,
promovendo a efetiva abertura dos sertões interiores, até então
indevassáveis. O pedido de sesmaria do sertão dos Rodelas por Garcia
d’Ávila e pelo padre Antônio Pereira data de 1646;125 se dá sete anos depois
de ter sido registrada a primeira notícia de apoio formal, dos Tapuias
Rodeleiros aos portugueses, em 1639. Nesta data, Francisco Rodela, principal
dos Rodela, integra seus comandados às forças portuguesas que combatiam
os holandeses no litoral. A adesão destes tapuia foi festejada como grande
evento, e registrada com louvor pelos autores da época. (SANTA
TEREZA. Livro I:91); (CALADO,1985, Vol. 2:182); (VILHASANTI.
[1638] 1941:185).
Frei Guiseppe di Santa Tereza, na Istoria delle guerre Del Regno Del
Brasile elogia à participação dos Rodelas nesta guerra. Diz ele: “Felipe
Camarão trouxera da região encachoeirada do S. Francisco com duzentos
Tapuias de monstruosa corpatura”. (SANTA TEREZA, livro II:91). Em
1639 na Relação Diária do Cerco da Bahia 1638 o cronista espanhol Cadena
Vilhasanti menciona os feitos dos Rodela do São Francisco combatendo ao
lado dos Lusitanos: “O inimigo já desamparou as Alagoas e o Rio de S.
Francisco, segundo disseram dois soldados que tinham vindo de lá,
procedido de um índio principal que chamam o Rodela, que tinha muito
gentio naquele rio, que lhe matara agora 80 holandeses dos que ali estavam,
favorecendo um Português126 que se lhe acolheu para o sertão”,
(VILHASANTI. [1638] 1941:185), afirmou Vilhansanti.
Certamente esta tropa que Cadena afirma ter sido desbaratada pelos
Rodela, era um grupo que buscava alianças com os Tapuia do interior. Está
registrado na literatura, um contínuo movimento em direção ao sertão.
Alfredo de Carvalho identificou como uma das mais evidentes
preocupações dos Holandeses, “a aliança das tribos indígenas do País,
alianças que procuraram angariar e manter por todos os meios”; mesmo
quando, de modo geral, estes índios fossem considerados, ‘aliados infernais’,
era, contudo senso comum entre os holandeses, de que era melhor tê-los

125 Carta de sesmaria do Sertão de Rodelas, 1646. documento do Arquivo Wanderley de Pinho, apud
(CALMON, 1939: notas 65 e 60).ver também (FONSECA, 1996:25).
126 O Português favorecido pelos Rodellas que o cronista espanhol se refere creio ser o Capitão

Garcia D’Ávila, senhor da Casa da Torre, a quem estes índios haviam acolhido nos seus sertões.
Parece-nos ser ele o articulador da participação destes índios nas disputas Luso-batavas.
131
como aliados. (CARVALHO, 1930:165).127 José Hygino, um dos primeiros
a atentar para as alianças dos holandeses com tapuias, assinalava que: eram
“utilíssimos aliados pelo medo que essas hordas selvagens incutiam nos
Portugueses” mas que, contrariados, podiam comprometer a segurança da
colônia. Tocado pela duchtfilia que lhe era peculiar, ou influenciado pelo
carisma que o espírito humanista de Maurício de Nassau lhe inspirava,
revelava inocente: “Não os escravizaram, não os constrangeram ao trabalho,
e libertaram os índios escravizados durante o domínio de Espanha”.128 Na
verdade a política nassoviana para com os índios era mais dissimulada que a
portuguesa, mas as carnificinas contra tapuias e brasilianos impetradas pela
Companhia das Índias e seus empregados são dignas de nota.
(BOOGAART & BRIENEN. 2002).
Os Holandeses, desde 1631, já haviam selado suas alianças com os
Tarairiu da Capitania do Rio Grande do Norte, e com parte dos Potiguara
da Paraíba, o que, de certa forma, garantia a estes relativa calma no flanco
norte da conquista. Aos portugueses preocupava “a atividade aliançadora,
em favor dos holandeses, que vinha sendo empreendida por alguns índios
que, anteriormente a 1630, tinham sido conduzidos à Holanda e lá educados
por conta da Companhia das Índias Ocidentais. Serviam eles agora, de volta
ao Brasil, aos propósitos da Companhia, de conquistar o Nordeste”, afirma
José Antônio Gonsalves de Melo.129

127 Sobre este tema, veja o celebre texto de Ernst van den Boogaart. “Infernal Allies. (BOOGAART:
1979:519-38); (MEERKERK, 2001:31-80); (TEENSMA, B. N., 1986).
128 No Relatório de pesquisas José Hygínio Duarte Pereira 1885/1886 publicado na Revista do Instituto

Archeologico e Geografico Pernambucano, destaca o trecho final do 2° relatório que o conde Mauricio
apresentou aos estados-gerais em 1644, As Instruções de 23 de agosto de 1636 positivamente
recomendavam: “De brazilianen ende naturalen van t'Land, sullen in haere vryheit werden gelaten,
ende in geender wysen sal slaven worden gemaeckt, maer sullen nevens d'andere inwoon deren
gegouverneert, soo int politycq als int civil, ende naer de selve wetten worden geoordeelt.” “Os
brasileiros e aqueles que nasceram no país serão deixados em liberdade, e não serão feitos escravos de
modo algum, mais serão governados como os outros habitantes, tanto politicamente como em casos
civis, e serão julgados de acordo com as mesmas leis.” (PEREIRA,1886:49).
129 Deste ballet de alianças, emerge um interessante debate entre duas facções nativas combatentes

nesta guerra, registradas num conjunto epistolar, parte registrado em língua Tupi, trocadas entre
Felipe Camarão e Pedro Poty e Antônio Paraupaba. Nestas cartas as partes travavam um jogo de
convencimento mútuo, acerca das alianças na guerra do Brasil, revelando o que Darcy Ribeiro
chamou de “lealdades conflitantes”. São documentos raros, talvez os únicos registros autógrafos de
índios brasileiros, retratos de um dramático período para as populações nativas brasileiras,
especialmente as da costa, e conformam um precioso material para exploração das agencias nativas
no nordeste. As Cartas originais em tupi de Pedro Poti e Antonio Paraupaba, encontram-se no
Algemeen Rijksarchief de Haia, foram traduzidas por Pedro Souto Maior. (RIHGB, 1912:75 (1)),
(RIHGB, 1913:403-410; 428-432); SOUTO MAYOR, Pedro. Dous Índios Notáveis e parentes próximos,
Pedro Poty e Phelippe Camarão: Documentos interessantíssimos e inéditos. In: (RIC:61-71); SOUTO MAYOR
Pedro. A missão de Antônio Paraupaba ante o governo Hollandêz: Martírio e heroísmo de Pedro Poty. In:(RIC:72-
77); A carta de Felipe Camarão foi publicada na íntegra por José Antonio Gonsalves de Mello na
série Restauradores de Pernambuco que reúne Biografias de figuras do século XVII que defenderam e
132
Em carta ao príncipe de Orange, Maurício de Nassau, refere-se aos
tapuia do rio São Francisco – provavelmente Cariri da foz – como “um
gentio feroz, bárbaro, de costumes inteiramente rudes, da raça dos
antropófagos. Chamam-lhe Tapuias”. Estes índios encontravam-se em um
dilema vital de aliança, estavam situados em uma área estratégica, que mais
tarde firmou-se como a fronteira Sul do domínio holandês. Sua condição de
livre aliançado, os colocava numa perigosa posição em meio do fogo
cruzado entre portugueses e holandeses. A escolha natural para os índios
seria a do mais forte, a esta época assim pareceu a estes tapuia, que tomaram
o partido da aliança com os holandeses. Diz Nassau:
A duas léguas dos meus arraiais, acampam alguns, enviados pelos seus para nos
pedirem paz e aliança contra os portugueses.” (...) “são de corpo robusto, de boa
compleição e de porte elevado. Falavam uma língua que não podiam entender
nem os portugueses, nem os brasileiros, nem outros tapuias que estavam entre
nós. Todavia, com visagens e ademanes exprimimos mutuamente os nossos
pensamentos, principalmente este: que impedissem os portugueses moradores da
outra banda do rio de o atravessarem e trucidassem aqueles que o tentassem.
Compreenderam estas horríveis palavras e consentiram no pedido. Despedimo-
los depois, presenteados com bufarinhas e alegres com a conferencia e
amabilidade da nova gente. Estou que, doravante, os saqueadores dos inimigos já
não ousarão transpor o rio e talar-nos o território. (BARLEU, 1974:45).
Os portugueses entenderam a gravidade da questão, e investiram em
alianças com os Rodellas. A escolha do agente consular que iria representar
os interesses de Sua Majestade, na cooptação dos Rodellas, recaiu sobre
Felipe Camarão, capitão dos índios do Brasil. (MELLO, 1954:29-31). A
idéia era que estes índios protegessem o flanco Sul de Pernambuco,
queimando os engenhos ocupados pelos holandeses, isolando-os das
capitanias do Sul, e impondo como fronteira o rio de São Francisco.
(MELLO, 1954:32-33). Sua Magestade o Rei, em troca dos serviços,
prometia ao Camarão, que “os gratificará e lhes fará Mercê, como bons
vassalos”. (MELLO. 1954:33). Em correspondência ao Conde da Torre
datada de 1641, o rei lembrava que conviria ter sempre estes índios
contentes e conferiu mercê a Felipe Camarão. Assim diz a carta:
Conde amigo. Eu El Rei vos envio muito saudar. Tendo em consideração ao
muito que convém ter contentes aos Índios do Brasil pela importância do seu
serviço para aquela guerra, houve por bem de fazer mercê a Dom Antônio Felipe
Camarão da Comenda dos Moinhos do Soure (...) e também ouve por bem de

consolidaram a unidade Brasileira: Antonio Dias Cardoso, D. Antonio Felipe Camarão, Henrique Dias, Felipe
Bandeira de Melo, Francisco Figueiroa, Frei Manuel Calado Salvador. (MELLO, 1967:38-45). Theodoro
Sampayo publicou também a tradução do tupi de alguns destes documentos sob o título: Cartas
Tupis dos Camarões. (RIAGP, Vol. XIII, 1906:281-71).
133
fazer Mercê aos Índios por ser gente mui importante e de serviço para a guerra do
Brasil e convir tê-los contentes (...).130
Nelson Barbalho fornece subsídio adicional sobre o fato, diz ele:
Em 31 de Julho de 1639, D. Francisco Mascarenhas, Conde da Torre, já instalado
na Bahia com sua esquadra vinda da Europa para atacar Pernambuco e tentar
arrasar em definitivo o Brasil Holandês, resolvendo tática diferente, em
combinação com o governador geral, manda que Felipe Camarão marche por
terra com seus Índios, a fim de, atravessando o rio São Francisco, penetrar no
Sertão de Rodellas e, na aldeia indígena ali existente, procurar entendimento com
o seu chefe, o índio Rodella, convocando mais guerreiros para a luta e
requisitando-lhes bastimentos, depois do que, devidamente preparado, desça e
invada a mata do litoral. (BARBALHO, Vol.3:406).131
A seu turno Frei Manoel Calado assim registrou a posição das
tropas de Francisco Rodella: “O entrincheiramento feito, a disposição da
tropa e o seu armamento. Situava-se à margem direita do rio Guaju”. A
dependência portuguesa das tropas tapuia era da ordem de um para seis,
“defendiam-na pouco mais de 600 soldados, dos quais 500 índios, do sertão
do rio São Francisco”. (CALADO, vol II:257-261). Todas estas guerras
tinham uma lógica perversa para os povos indígenas: o grosso das tropas
beligerantes era contingenciado por forças nativas, envolvidas pelas
circunstâncias, numa guerra que pertencia aos europeus; e na qual, se
disputava, o direito dominial aos próprios territórios tradicionais dos índios
combatentes. (MELLO, 1954:45).
Não me consta que, além da patente de Capitão,132 outra mercê
tenha sido feita a Francisco Rodela ou a seus parentes tapuia, como paga
por seus serviços na Guerra do Açúcar. Certamente não era em troca destas
Mercês da Côrte, ou de ‘bufarinhas’ que ombrearam os Rodela com os
Mazombos. Os tapuia buscavam alianças que lhes permitissem administrar
livre e estrategicamente a sobrevivência de sua sociedade em seus territórios
ocupados, por quem quer que fosse.

130 Carta da Comenda dos Moinhos de Soure, Lisboa 3 de março de 1641, Livro 36, fls 10/10v. Torre do
Tombo, Chancelaria da Ordem de Cristo, (MELLO, 1954: 29-31).
131 As fontes sobre a participação dos Rodelas neste episódio foram publicadas com o título

“Documentos sobre vários Assuntos” (RIAP, n° 34, 1887:34/38). A Instrução que devia reger
Barbalho á da Bahia 31 de Julho de 1639 e a de Felipe Camarão também da Bahia de 17 de
Novembro do mesmo ano.
132 Patente de Capitão dos índios da Aldeia de Rodella rio Ryo de S. Francisco provida em Francisco

Rodella. Affonso Furtado de Castro de Mendonça. 1674. (BN:PB-365-96) “Nesse mesmo mês de
agosto de 1674, dia 29, segundo livro de registro de Patente do Estado do Brasil, arquivado na
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, são nomeados Capitães os índios Francisco Rodellas,
encarregado da chefia da aldeia dos Rodella, e Cabrobó, e Thomé Urará, encarregado do comando dos
Cariris da ilha de Uraracapá, sendo ambos documentos assinados pelo Governador-Geral Afonso
Furtado de Castro do Rio Mendonça Visconde de Barbacena.” (BARBALHO, Vol. 4:157).
134
Em dezembro de 1645 chegaram notícias ao Arraial do Bom Jesus
de que os flamengos e índios ameaçavam novamente os moradores do Rio
Grande do Norte. Dom Antônio Felipe Camarão recebeu ordem de seguir
para lá, o que fez com sua tropa “e com duzentos e tantos tapuias, que nos
tinham chegado do rio de São Francisco, mandados por o principal
chamado Rodella”. (CALADO, vol. II:225). Novamente as alianças luso-
tapuia se faziam ativas, e os índios do São Francisco foram mobilizados para
engrossar o poder de fogo contra as posições holandesas.
Os tapuia do São Francisco ainda foram convocados em diversos
momentos da expansão colonial. Para combater os bárbaros no Rio Grande
do Norte, contra os tapuia no Maranhão, ou no Rio Grande do Sul contra
seus próprios co-irmãos Rodeleiros, até que dissensionam com os colonos e
fogem para o Piauí, onde vão ser identificados como Pimenteiras segundo
informa Aires do Casal:
Os brancos dão-lhe o nome de Pimenteiras, porque no seu distrito há um sítio
assim denominado. Tem seus alojamentos entre as cabeceiras dos rios Piauí e
Gorguéia, na raia da província, ficando rodeados pelos estabelecimentos dos
conquistadores. Dentro de seu terreno há uma lagoa grande e piscosa, junto da
qual habitam considerável tempo do ano. Conjectura-se serem (ao menos em
parte) descendentes de vários casais que viviam domesticados com os brancos nas
vizinhanças de Quebrobó, e que desertaram pelos anos de 1685, a fim de não
acompanharem as bandeiras quando faziam guerra aos indígenas. (CASAL,
1976:291).

A maturação da economia colonial exigia a diversificação do


mercado para repor uma parte das perdas da economia açucareira,
fortemente abalada pela concorrência Antilhana.133 O somatório destes
fatores criara condições favoráveis à emergência da pecuária, que ajudaria a
sustentar o caixa da Coroa, surpreendida pela crise do açúcar na segunda
metade do século XVII. A expulsão dos Holandeses, a conquista do
Quilombo dos Palmares, e a vitória das guerras bárbaras do Rio Grande do
Norte encerram o ciclo crítico de defesa das Capitanias do Nordeste. Os
aliados tapuias, até então indispensáveis, assumem uma posição secundária
no grupo dos associados, e tornam-se gradativamente um entrave à
expansão no interior. A partir deste momento, os pactos assumem outra
configuração; os nativos, sem ter o que barganhar, passam a negociar a
simples continuidade num jogo onde ganha quem permanecer vivo.

133 Um bom testemunho desta crise econômica se pode encontrar na carta do padre Bernard de
Nantes, escrita na Bahia em 29 de junho de 1691, e endereçada ao Padre François Archange de Laval.
Esta epístola foi publicada nas páginas 18 a 26 da Gazeta Mercure Galant de abril de 1662. Outra
circunstanciada opinião pode ser vista no Parecer de João Peixoto Viegas sobre a quebra da
economia açucareira, dirigida ao Márquez das Minas aos 15 de junho de 1680. (ABN. 1899, vol.
XX:213-222).
135
Neste novo cenário, a pecuária ganha força na economia colonial,
ocupando espaços que até então eram dominados, quase que
exclusivamente pela agroindústria açucareira. Ao trabalho de conquistar
fronteiras para o gado unia-se a necessidade de controlar e transformar as
massas nativas em benefício do projeto colonial. A exemplo do que
acontecera no litoral quando os religiosos foram chamados a catequizar os
índios, na ocasião da expansão para o sertão renova-se a importância do
trabalho missional. No século XVII todavia, o cenário político europeu
também sofrera câmbios importantes, em Portugal os interesses padroais se
colocavam cada vez mais importância em detrimento dos interesses papais
representados pelas ordens religiosas que tradicionalmente se firmaram
como parceiras da coroa portuguesa, dando suporte às frentes de conquista
e expansão colonial.
O tempo desta mudança, no que diz respeito a expansão para o
sertão, é marcado historicamente pela saída dos holandeses dos centros
produtores de açúcar em 1654, evento que parece deflagrar uma onda de
interesses reprimida pela conquista da Companhia das Índias Ocidentais por
quase um quarto de século. É neste período que explodem a distribuição de
latifúndios gigantescos em sesmaria que, em poucos anos concessionam às
grandes corporações coloniais, quase toda área conhecida dos sertões,
especialmente aqueles banhados pelo rio São Francisco e rios secundários.
A ação missionária que estudaremos a seguir, se estende da chegada dos
missionários no início da década de 1670 ao colapso das missões
capuchinhas no apagar das luzes do século. Período marcado pela postura
coercitiva dos senhores de terras reagentes a divisão do poder temporal
imposto pelos missionários. A tensão política que caracteriza o período é
geradora eventos que portam um potencial histórico explicativo ainda sub-
utilizado.

136
O Governo das Almas
A conquista espiritual do rio São Francisco

“A principal causa, que obrigou aos Senhores Reys, meus


predecessores, mandarem povoar essa Capitania, e as mais do
Estado do Brazil foi a reducção do gentio della a nossa Sancta fé
cathólica: e assim vos encommendo façaes guardar aos
novamente convertidos, os previlégios, que lhe são concedidos,
repartindo-lhes terras conforme as leys, que tenho feito sobre sua
liberdade, e fazendo-lhe todo o mais favor, que for Justo: de
Regimento do que ha de uzar Fernam manneira que entendão que em se fazerem christãos não somente
de Souza Coutinho, Governador de ganhão o espiritual, mais tambem o temporal, e seja exemplo
Pernambuco, 14 de Agosto de 1670. para outros se convertem: e em seus aggravos e vexações
Capítulo IV provereis conforme minhas leys, e provisoes, dando-me conta do
(ABN, vol. XXVIII, 1908:5). que se fizer.”

1. O Governo das Almas


Muito papel e tinta já foram gastos para tratar das missões atuantes
na conversão dos povos nativos, habitantes ao longo do rio de São
Francisco. Serafim Leite em sua célebre História da Companhia de Jesus,
evidenciou um acervo documental sem precedentes para a história da igreja
no Brasil, Vittorino de Regni, mais recentemente, completou o quadro das
mais importantes representações missionárias presentes no São Francisco a
partir do século XVII, descrevendo a epopéia histórica dos Capuchinhos no
Brasil. Estudos recentes como os promovidos por Cristina Pompa, Pedro
Puntoni e Ricardo Medeiros sistematizaram a informação atual disponível e
construíram novos paradigmas, livres do fio apologético que conduzia a
história dos dois primeiros. No que pese ao importantíssimo papel
historiográfico da obra de Regni e de Leite, estas devem ser consideradas
principalmente como textos de referência de uma bem documentada versão
pontifícia da história, que deixam muitas questões em aberto, as quais
somente agora principiam ser respondidas, e ao mesmo tempo fazem
suscitar novas questões, principalmente àquelas ligadas ao papel histórico
das missões junto aos índios e colonos no Nordeste colonial. Assim, esta
situação, não obstante já ter sido bastante discutida, pede ainda digressões
que lancem um pouco de luz às questões relativas ao desenvolvimento e ao
colapso do primeiro ciclo missionário sãofranciscano, principalmente
aquelas de ordem política que envolvem a questão fundiária e o controle da
mão-de-obra nativa por parte dos missionários.1
São estas circunstâncias que discutiremos adiante, contudo, antes se
faz necessário contextualizar alguns antecedentes relativos a crise entre a
Igreja e o Estado português que condicionaram a existência das missões dos
Capuchos franceses e da Companhia de Jesus no rio de São Francisco,
principalmente aqueles relativos à trama histórica que conectam estas
missões ao macro universo da política patronal Portuguesa e à política
expansionista da Santa Sé para o Brasil.

Antecedentes: O Padroado Régio e os Capuchinhos


O clero que atuava no Brasil estava então dividido em duas grandes
classes: os seculares, formados sob o patrocínio direto do Rei de Portugal,
regidos pelos direitos de padroado confirmados pelo Papa; e o clero regular,
ligado às ordens religiosas por regras eclesiais que prestavam obediência
direta a Santa Sé. (ALMEIDA, 1967, Vol III:41-103).
A associação entre Igreja e Estado é uma marca constante do
processo expansionista, promovida pela Igreja Católica e os estados ibéricos
desde o final do século XV, para conquista de terras e povos desconhecidos
ao oriente e ocidente do meridiano de Tordesilhas. Regia-se por uma
combinação de direitos, privilégios e deveres concedidos pelo papado às
coroas de Portugal e Espanha, as quais se firmaram como patronas das
missões e instituições eclesiásticas católicas em vastas regiões da África, da
Ásia e das Américas. Estes direitos e privilégios nominados Padroado Régio,
advinham de uma série de bulas e breves pontifícios, que se iniciam com a
Bula Inter Caetera de Calisto III, em 1456, e culminam com a bula Praecelsae
Devotionis, de 1514.2 Através destes privilégios papais, Roma terceirizou a

1 Sobre este tema ver, História da Companhia de Jesus no Brasil de Serafim Leite. (LEITE: 1938-1950);
Storia dell'attività missionaria dei Cappuccini del Brasile (1538-1889) do frade Metódio da Nembro.
(NEMBRO, 1958); Os Capuchinhos na Bahia de Pietro Vittorino Regni,(REGNI, 1988); O padre
Bernardo de Nantes e as missões dos capuchinhos franceses na região do São Francisco do frei Francisco Leite de
Faria, (FARIA, 1965); Expansão geográfica do Brasil colonial de Basílio de Magalhães, (MAGALHÃES,
1944); As tribos indígenas do médio e baixo São Francisco de William D. Hohenthal Jr., (HOHENTHAL
Jr., 1960, vol. XII:37-71); A redescoberta dos outros: Povos indígenas do sertão nordestino no período colonial de
Ricardo Pinto de Medeiros, (MEDEIROS, 2000); Religião como tradução Missionários, Tupi e “Tapuia”no
Brasil Colonial de Maria Cristina Pompa, (POMPA, 2001) e A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a
colonização do sertão Nordeste do Brasil 1650-1720 de Pedro Puntoni, (PUNTONI, 1998).
2 sobre o padroado régio em Portugal ver: Charles R Boxer, Império Colonial Português. (BOXER,

1977:57 e ss); Tales de Azevedo, Igreja e Estado em tensão e crise: a conquista espiritual e o padroado na Bahia.
(AZEVEDO, 1978); Riolando Azzi, História da Igreja no Brasil. (RIOLANDO, 1992); Pietro Vittorino
138
Portugal e Espanha grande parte de suas atribuições de difusão da fé
católica. A extensão dos poderes concedidos aos reis patronais foi o agente
principal da crise entre Igreja e Estado, com vastas implicações políticas
para a ação missional nos domínios portugueses. Dentre as faculdades do
Rei, estava aquela de indicar a hierarquia do clero nas colônias, criar
bispados, construir e manter templos, além de pagar côngruas
(remuneração) aos párocos. (LACOMBE, 1993:57).3
No século XVI, o casamento entre Igreja e Estado experimentou
um período de concordância de objetivos, partilha de meios e satisfação de
resultados. Para Roma, o Novo Mundo ainda não era prioridade, seus
esforços estavam voltados para a reforma protestante e para a ameaça
islâmica na Europa. (CHANTÊLLIER, 1995:27). No século seguinte,
Portugal e Roma trilham caminhos distintos, e os antigos objetivos, meios e
resultados não serviam mais às partes da mesma forma, os privilégios do
padroado agiam contra os interesses da Igreja, então empenhada no
processo de contra-reforma e na expansão da fé católica sob a bandeira
pontifícia. “O papado estava agora perfeitamente consciente de que os
enormes privilégios que haviam sido concedidos tão facilmente ao
Padroado português e ao Patronato espanhol eram, em muitos aspectos,
inconvenientes e subversivos para a autoridade papal”, resumiu Charles
Boxer. (BOXER, 1977:263).
O Concilio Tridentino (1545-63) promovera um amplo processo
revisionista que levou ao recrudescimento de posições tradicionais católicas
e ao estímulo ao movimento missional que se desenvolvera na Europa pelas
mãos dos jesuítas e ordens mendicantes. A partir de 1622 este movimento
missionário passa a ser capitaneado pela poderosa Propaganda Fide,
(CHANTÊLLIER, 1995:22). criada pelo Papa Gregório XV (1621-23), e
também conhecida como o papa vermelho, pela dimensão dos poderes e
privilégios sem precedentes a ela conferidos. Este departamento eclesial foi
criado com a atribuição de estimular a propagação da fé em países que
estavam sob a influência de protestantes ou não cristãos e de retomar a
condução do processo de expansão do cristianismo católico, então sob o
forte domínio do aparato patronal.4

Regni, Os Capuchinhos na Bahia (REGNI, 1988, vol. 1:36-45); Américo Jacobina Lacombe, História
Geral da Civilização Brasileira, (LACOMBE, 1993:51-7).
3 Para Lacombe o Padroado consistia no “controle das nomeações das autoridades eclesiásticas pelo

Estado e na direção, por parte destes, das finanças da Igreja” “de tal maneira estava a administração
eclesiástica entrosada na maquina administrativa do governo civil, que seria difícil ao vulgo ver nela
não um departamento do Estado, mas um poder autônomo”. (LACOMBE, 1993:57).
4 Benigni, U.1998. Propaganda Fide. http://cawley.archives.nd.edu/propfide.htm

139
Esta iniciativa harmonizava com os desígnios tridentinos, que previa
o uso de agressivo procedimento de propaganda católica, impressão de
textos catequéticos e a criação de seminários para formação de missionários
apostólicos de acordo com a experiência na Holanda e Alemanha, onde esta
política havia se mostrado eficiente.5 (CHANTÊLLIER, 1995:33). Em 1627
a Santa Sé cria o Collegium Urbanum destinado a formar um agente clerical
com faculdades evangélicas exclusivas, identificado com os mais estritos
interesses da propagação da fé católica e encarregado da aplicação da nova
política de difusão da fé. No Brasil, esta política reservava para os
capuchinhos franceses uma espécie de monopólio catequético, caracterizado
por uma ação muito menos colaborativa no que tangia aos interesses
temporais de Portugal. Sobre a ação capuchinha resume Vittorino de Regni:
a hierarquia eclesiástica do Brasil era um prolongamento da de Portugal; estava
estreitamente ligada às normas do Padroado Régio, gozava de suas vantagens
como sofria seus condicionamentos. Somente os capuchinhos, exceção feita
apenas a alguns missionários Oratorianos6 que trabalharam por algum tempo em
Olinda, encontravam-se na verdadeira posição jurídica de missionários
apostólicos, enquanto, por serem estrangeiros, não eram súditos do Rei de
Portugal, não tinham casas formadas no Brasil, nem o governo de Lisboa lhes
autorizava construí-las; não eram ligados a determinada circunscrição diocesana
ou Província religiosa local, por conseguinte, eram livres para desenvolver a sua
atividade consoante as diretivas da Santa Sé. (REGNI, 1988, vol.I:284).7
Segundo Regni, os franceses respondiam diretamente a província
bretã o que lhes dava uma independência atípica com relação aos outros
religiosos atuantes no Brasil: “A propaganda Fide tinha todo o interesse de
proteger e favorecer a estes mais do que a missionários de outras ordens
que trabalhavam em estreita dependência da Coroa Portuguesa, em força de
seu direito de padroado”. 8(REGNI, 1988, vol. I:69-70).

5 Esta política de comunicação se percebe em Martinho de Nantes: “Talvez vos surpreenda, meu caro
Leitor, o não encontrardes nesta Relação ações fulgurantes, as aventuras e as maravilhas que haveis
lido nas relações das missões do Japão, do Peru, do Sião, da China, da Conchinchina, do Tonquim e
de alguns outros reinos nas Indias, onde tantos notáveis missionários revelaram seu zelo, e vários
deles se distinguiram pelo sangue que derramaram, assim como o de tantos que conseguiram
converter para a nossa fé.” (NANTES, [1706]. 1979:XXIII).
6 Sobre os oratorianos ver o que diz José Antônio Gonsalves de Mello em Notícia que dão os padres da

Congregação de Pernambuco acerca da sua Congregação desde a sua ereção, (RIAP, 1984, vol. 52:41-143).
7 Antes, no mesmo texto, Pietro Vittorino Regni, justifica a posição da Igreja quanto aos erros das

missões: “devem ser interpretados, (as falhas da ação missionária) na maior parte dos casos, aos
condicionamentos impostos pela política colonial, como pelo vasto direito de padroado de que
gozavam soberanos portugueses e pela maneira de se colocar o problema da catequese indígena,
conforme a mentalidade comum daquele tempo”. (REGNI, vol. I, 1988:118)
8 Atente-se de que tratamos aqui estritamente da ação da Propaganda Fide no Brasil. Charles Boxer

notou que os Jesuítas franceses, patrocinados por Luiz XIV, apoiaram ativamente os interesses
temporais da França na Ásia, e cita o diálogo havido entre o Padre Jean de Fontaney com um
religioso Agostiniano em Cantão, no qual o inaciano francês teria revelado que “não descansaria
140
Ásia e África – continentes onde o Padroado não tinha estabelecido
raízes tão profundas quanto no Brasil – são eleitos como destinatários da
ofensiva da Santa Sé. Tal ofensiva configurava-se em um levante frente o
monopólio colonial das nações expansionistas beneficiárias dos privilégios
de padroado, e, sobretudo, um aceno da igreja Romana informando que
suas antigas deliberações padroais estavam por caducar. Roma justificava
sua ação renovada, contraditória aos antigos acordos patronais,
argumentando que Portugal não possuía clero qualificado em quantidade
suficiente para a função, e que, por este motivo, havia falhado na tarefa da
conversão do gentil à fé católica em seus domínios. (BOXER, 1977:257 e
262).
A Coroa lusitana estava atenta aos efeitos destas mudanças,
sobretudo com a investida do clero regular sobre o clero local das colônias,
sobretudo na África e na Ásia onde seus domínios patronais não eram tão
fortes quanto no Brasil. (BOXER, 1977:263). Portugal reage energicamente
a favor de seus direitos padroais e ameaça expulsar de seus domínios,
missionários não autorizados pelo padroado. Este sentimento levou a uma
crescente e longa crise que se inicia após a expansão dos papistas na Ásia e
África e se arrasta até o rompimento de relações entre o Vaticano e Lisboa
(1760-70),9 com a expulsão dos Jesuítas dos domínios portugueses e a
imposição da extinção da Companhia de Jesus pelos reis católicos,
costurada politicamente pelo Marquês de Pombal. (PEDROSO,
1979:214).10

enquanto não tivesse corrido com todos os padres portugueses, e que traria todos os jesuítas
franceses que pudesse, somente para conseguir este fim”. (BOXER, 1977:270-1 e 257-78). Sobre o
Padroado Régio ver ainda Patronato e Propaganda nel Brasile de Metódio da Nembro, (NEMBRO,
1972:667-90).
9 Sobre este tema ver: Antônio de Souza Pedroso, o Visconde de Carnaxide, O Brasil na Administração

Pombalina: Economia e Política Externa. (PEDROSO, 1979:16 e ss); (BOXER, 1977:214). Para a questão
da crise entre a Igreja e o estado no Brasil, consultar Tales de Azevedo, Igreja e Estado em tensão e crise: a
conquista espiritual e o padroado na Bahia. (AZEVEDO, 1978); e Nilo Pereira, Conflitos entre a Igreja e o
Estado no Brasil. (PEREIRA, 1991).
10 Para Américo Jacobina Lacombe “este conflito não representa mais do que um aspecto local da

grande crise universal da Igreja naquele momento”. (LACOMBE, 1993:70).

141
Atividade Missionária
O ciclo missionário da costa
Os primeiros anos da conquista brasileira foram marcados pelo
assentamento de estabelecimentos coloniais, cultura de cana e engenhos
produtores de açúcar em pontos esparsos da faixa litorânea, notadamente
nas capitanias de Pernambuco e São Vicente. Com o estabelecimento do
Governo Geral e a chegada de Tomé de Souza na Bahia, em 1549 a
expansão da economia agro-açucareira e o povoamento no litoral tomam
novo impulso, associados a um violento procedimento de “limpeza étnica”.
(MAESTRI FILHO, 1997). A partir daí, observa-se grande
desenvolvimento da ordem jesuítica que encarna o espírito expansionista da
contra-reforma, avançando sobre as colônias portuguesas e espanholas sob
a umbrela do Padroado. Os missionários participam a este tempo
ativamente do jogo colonial, reduzindo os povos túpicos do litoral, dando
suporte à atividade econômica, controlando o uso da mão-de-obra e, muitas
vezes, promovendo descimentos forçados e guerras justas contra os nativos
‘infiéis’. Contudo, os frutos da catequese, neste primeiro século, se mostram
pouco produtivos.
Stuart B. Schwartz demonstra como a instalação dos engenhos e
outros núcleos coloniais no litoral brasileiro, na segunda metade do século
XVII, geraram novas demandas de abastecimento. Segundo Schwartz, para
criar força de trabalho nativa destinada à produção de alimentos e para a
faina nos engenhos, os portugueses experimentaram diversos sistemas de
labor. O primeiro foi o apresamento e escravidão do índio, aplicado pelos
colonos; o segundo – experimentado a princípio pelos jesuítas, e depois por
outras ordens religiosas – foi a formação de um campesinato indígena, por
meio da aculturação e da destribalização. O terceiro, usado tanto por leigos,
quanto por clérigos, foi a integração lenta dos índios dentro do mercado
capitalista, auto regulado, na qualidade de trabalhadores autônomos
assalariados (SCHWARTZ, 1978, AHR, 83(1):43-79). Acrescenta ainda
Schwartz que os três modos de apropriação da força de trabalho nativo nem
sempre se deram na mesma direção nem de forma homogênea. Conclui
aduzindo que os embates entre jesuítas e colonos espelhavam, na realidade,

142
o confronto entre estas diferentes estratégias, que tinham por fim o mesmo
objetivo: a europeização dos nativos americanos.11
O termo ‘aldeia’ tem aparecido com freqüência na literatura histórica,
não apenas como singular substantivo, designativo para sítio, vila ou
habitação indígena. John Monteiro, em texto recentemente publicado,
utiliza a expressão ‘aldeia’ para identificar o sistema de redução temporal e
espiritual aplicado aos índios do Brasil – montado no século XVI pelos
religiosos regulares, especialmente os Inacianos – dentro do plano de
expansão da igreja católica no Novo Mundo. (MONTEIRO, 2000, vol III,
Part I, 2000. Passim). Neste texto Monteiro procura mostrar como o
sistema de aldeias buscava “pacificamente, oferecer solução alternativa para
os problemas de dominação e recrutamento de trabalho, abaixo do ideal
colonial de desenvolvimento”.12 Assim, as demandas de força de trabalho
da economia agro-açucareira, assentada na faixa litorânea do Nordeste do
Brasil nos anos quinhentos, criaram as condições favoráveis ao
desenvolvimento de um sistema, inicialmente de base escravagista, operado
por mão-de-obra indígena controlada por religiosos. (SCHWARTZ, 1978,
AHR, 83(1):43-79).
No século seguinte vão se observar nos sertões interiores do rio São
Francisco diversos experimentos resultantes de formas locais de redução de
grupos nativos, dirigidos a atender as demandas de trabalho do sertão. Ao
lado das missões cristãs, e a exemplo daquelas reduções privadas associadas
aos engenhos do litoral, nota-se o surgimento de assentamentos, marginais
aos núcleos coloniais do interior – os agregamentos – que cumpriram
importante papel como solução coadjutória à conquista, e na consolidação
do processo colonial. Diferentemente do sistema aldeia conduzido por
missionários, estes assentamentos caracterizam-se por serem reduções de
expressão puramente secular, movidas pela iniciativa privada surgidas no
vazio e hesitações das políticas portuguesas respeitantes à exploração de
mão-de-obra nativa. Como vimos antes, nestes agregamentos, se
desenvolveu uma relação aparentada da servidão ‘feudal’ que se estendeu
como prática colonial até a instalação do Diretório Pombalino no século
XVIII.13 Os exemplos desta prática são eloqüentes, conquanto sejam

11 “In economic terms it was a contest between colononists bent on the imposition of a colonial slave

regime and Jesuits in pursuit of a Christianized indigenous peasantry capable of becoming an


agricultural proletariat”. (SCHWARTZ, 1978, AHR, 83(1):50).
12 “The mission villages, or Aldeias, sought to offer a peaceful, alternative solution to the problems of

domination and labor recruitment, thus consciously subscribing to the collective colonial ideal of
development” (MONTEIRO, 2000, vol III, Part I, 2000:998).
13 Na segunda metade do século XVIII o Diretório Pombalino secularizou as missões, transformou-as

em vilas, e promoveu um largo processo de redução dos aldeamentos existentes em Diretórios com

143
negados categoricamente. Registram-se aldeamentos privados entre
senhores de terras pecuaristas, tais como os de Antônio da Silva Pimentel,14
João Peixoto Viegas,15 Antônio Guedes de Brito,16 e Francisco Dias
d’Ávila, entre outros. (ALENCASTRE, RIHGB, Tomo XX, 1857:19).

Um dos pontos nevrálgicos dessa prática residia no controle


espiritual e administração temporal dos índios, em um momento em que as
demandas de segurança e mão-de-obra na colônia ainda dependiam
fortemente da força nativa. Os missionários reagiram permanentemente
contra as reduções particulares, argumentando que elas eram contrárias às
leis que garantiam a liberdade dos índios e que a administração destes havia
sido concedida aos missionários, tanto no temporal quanto no espiritual.
Aos portugueses não agradava, contudo, deixar a estratégica reserva de
mão-de-obra sob monopólio dos missionários, que tinham para os índios
planos diversos dos mais estritos anseios desenvolvimentistas dos
portugueses.
Com a chegada do primeiro bispo do Brasil, D. Pero Fernão
Sardinha em 1554, a ação jesuítica se vê pressionada a engajar-se
plenamente na formação de reduções gentílicas, cuja retórica era voltada
para conversão à fé católica, mas cuja prática se mostrara mais eficaz em
atender às demandas de força de trabalho dos colonos. Não obstante o
esforço dos padres da Companhia de Jesus em criar um proletariado de
agricultores nativos, útil ao sistema produtivo do litoral, o bispo Sardinha
manteve um áspero relacionamento com os missionários, combatendo
energicamente os métodos catequéticos utilizados pela Companhia de Jesus
para a conversão dos nativos. Américo Jacobina Lacombe vê, na campanha
do bispo Sardinha, razão para a condescendência dos Inacianos para com os
interesses dos colonos: “com esta mentalidade, não admira que o bispo
quebrasse a resistência dos jesuítas em admitirem como legítima a
escravidão dos selvagens”. Segundo o bispo – que nutria profundo desprezo
pelos índios – seria “lícito fazer guerra a este gentio e cativa-lo, hoc nomine et
titulo, que não guarda a lei da natura por todas as vias”. (LACOMBE,

administração secular tutelada ao Estado. Sobre o assunto ver Rita Heloísa Almeida, O Diretório dos
Índios: Um projeto de civilização no Brasil do século XVIII. (ALMEIDA, 1997).
14 Consulta do Conselho Ultramarino: Sobre o que pede o Antonio da Silva Pimentel e vay a informação que se

acuza. Lisboa, 14 de Mayo de 1706. (AHU, cód. 52:140-140v). Ver ainda Consulta do Conselho
Ultramarino, Lisboa, 26-11-1691. Sobre dona Joana de Araújo, viúva de Antonio da Silva Pimentel, acerca das
partilhas. (AHU, Cód. 256:125)
15 Sobre mudança das aldeias Paiaiás que pede João Peixoto Viegas, 1675. in: Carta Régia de 26 de

Agosto de 1680, (ADF, IV:253); (LEITE, Serafim, 1945. vol. V:279-80).


16 Declaração de posses de Antônio Guedes de Brito. Publicado em ‘As Terras do Guedes de Brito’.

(RIGHB. 1916, Vol XI:42).


144
1993:59). Contudo a apologia não cabe. A ação dos jesuítas não era
contraditória com a prática colonial, nem com sua conduta em outras
conquistas ao lado dos portugueses.
O fato é que os jesuítas participaram efetivamente dos descimentos
e da escravização dos índios, que alimentavam a economia no litoral. O
padre José de Anchieta, em 1563, desiludido com o insucesso da conversão
dos índios da costa pela persuasão, apregoava: “para este gênero de gente
não há melhor pregação do que espada e vara de ferro”.17 “Se tal disposição
de ânimo era a do missionário, homem de paz, que não seria a dos
guerreiros”, comentou Lúcio de Azevedo.18 É neste espírito de desânimo
que Manoel da Nóbrega sugere a mudança de estratégia para enfrentar os
brasis, dirigindo os esforços para a redução compulsória e para o uso da
força, como forma de combater os costumes nativos. (NÓBREGA,
1988:283). Diz Nóbrega: “este gentil é da qualidade que não se quer por
bem” e concluía defendendo que os nativos fossem escravizados ou
despejados, coisa que se poderia executar com pouco esforço, para que
assim a coroa de Portugal “tivesse grossas rendas nestas terras”.19 Deste
procedimento resultou que, até o final do século, a população das missões
na costa havia sido reduzida a níveis baixíssimos, dizimada pelas pestes e
pelas guerras, obrigando aos preadores a se internar no sertão até 250 léguas
em busca dos escravos de língua geral que para lá haviam se evadido.
(ANCHIETA, 1933:376-378).
Nos anos que se seguem à instalação do Governo Geral na Bahia, a
reação nativa, animada pelos concorrentes franceses, foi poderosa e
marcada por diversos momentos de intenso conflito. Por fim os povos
túpicos vergaram impotentes diante do poder bélico e militar português. O
resultado destes embates foi o extermínio quase absoluto dos povos do
litoral, sendo poupadas apenas aquelas nações que se submeteram ao jugo
ou se aliaram aos portugueses no combate a outros povos reagentes.20 Mem
17“Espada e a vara de ferro, que é a melhor pregação” Anchieta, José de. Carta ao Geral Laynez, do

Padre José de Anchieta Anchieta, São Vicente, 16 de Abril de 1663, (RIHGB, tomo II:246).
18 Registrou Lúcio de Azevedo: “Catequese uma idéia dos conquistadores e dos primeiros

missionários, era arte de reduzir os selvagens ao trabalho em proveito da civilização, isto é dos
civilizadores. Se tal disposição de ânimo era a do missionário, homem de paz, que não seria a dos
guerreiros” (AZEVEDO. 1947:254).
19 Carta da Bahia do Pe. Manoel da Nóbrega, de 8 de maio de 1558, (LEITE, 1940)
20 Este é um tema bem explorado. São especialmente importantes: Stuart B. Schwartz. Indian labor and

New World plantations. (SCHWARTZ, 2000:43-79); em recente coletânea editada por Frank Salomon e
Stuart B. Schwartz o assunto é revisitado em vários textos de elevado nível critico, entre eles: John
Manuel. “The crisis and transformations of invaded societies: coastal Brazil in the Sixteen century”.
Passim; Marcílio, Maria Luiza. The population of colonial Brazil (MARCÍLIO:37-57); Stuart B.
Schwartz. Colonial Brazil, c. 1580-c. 1750: Plantations and peripheries. (SCHWARTZ, 2000:423-99);
Indians e The Frontier in Colonial Brazil (SCHWARTZ, 2000:501-45); Robin M. Wright and

145
de Sá institui em 1556 o regime das missões no Brasil, atribuindo o governo
das almas dos nativos aos jesuítas, que então já se ocupavam da formação
dos aldeamentos. Este papel valeu aos Inacianos prestigiosa posição com
largo espaço nos negócios públicos da nascente colônia. Ainda no governo
de Mem de Sá, os índios do vale do Peruaçú (Paraguaçu) se levantam contra
os portugueses e foram mais uma vez rechaçados. Os cativos foram
reduzidos numa rede de assentamentos na periferia do Recôncavo. Desta
forma, surgiram as aldeias de Santo Antônio, a nove léguas de Salvador e a
de Santa Cruz na Ilha de Itaparica. Até 1651 haviam sido fundadas as
missões de Tatuapara,21 9 léguas ao norte de Salvador; a Aldeia de São
Pedro, a 22 léguas ao norte da Bahia; a aldeia de Santo André do Anhemby,
próxima ao rio Itapicuru. As aldeias do rio Vermelho, de São Thiago, do
Pirajá, do Espírito Santo e do rio de Joanes completavam o cinturão de
defesa da Bahia contra os inimigos do interior, permitindo que este núcleo
colonial se fortalecesse até que estivesse em condições de promover a
expansão que, anos mais tarde, rasgou os vales dos rios Real e Itapicuru e
depois do Vasa Baris. Esta rede de aldeias interligadas formaram também
um dos primitivos traçados viários que uniam a Bahia ao rio São Francisco.
A guerra, a escravização, a peste e a fome destruíram a força de
trabalho esvaziando a terra, enquanto se buscava converter povos nativos
em benefício do povoamento, do sistema produtivo e da fé católica.
Passado o momento inicial da conquista e estabelecidas as bases urbanas da
costa atlântica, a experiência etnocida parece ter revelado sua incoerência
aos jesuítas. O ciclo missionário que anos mais tarde se expandiria para o
interior da colônia, cambiou seu carisma missionário, deixando de ser
colonizador – no sentido de ser uma solução imediata para as demandas de
força de trabalho e segurança da colônia – para buscar um realinhamento
com os estritos interesses católicos de expansão da fé cristã, mesmo à custa
do descontentamento dos colonos e da Coroa Portuguesa. As mudanças no
pensamento do trabalho catequético se espalharam entre os jesuítas,
animando projetos missionais vitoriosos como os do Maranhão e do Grão
Pará, fundados em um comportamento muito menos aquiescente à política
portuguesa, tal qual o movimento da Liberdade dos Índios.22 Este movimento,

Manuela Carneiro da Cunha, Destruction, resistance, and transformation – Southern, Coastal, and
Northern Brazil (1580-1890) In: The Cambridge History of the native peoples of the Americas, vol III, South
America Part I. Edited by Frank Salomon e Stuart B. Schwartz. Cambridge University Press, 2000.
(WRIGHT & CUNHA, 2000).
21 Esta aldeia, mais tarde incorporada por Garcia d’Ávila se tornaria a mais importante fornecedora

de farinha de mandioca ou farinha de guerra para a Bahia e quartel general da Casa da Torre.
22 Utiliza-se aqui a expressão liberdade do índio do Jesuíta Luiz Figueira (1575-1643) extraído do Diálogo

da Igreja Nova no Maranhão de 1626. É importante se ter em conta que, apesar do conteúdo semântico
da expressão, a liberdade reivindicada era utópica, referia-se a liberdade do julgo patronal, não exime
146
conduzido pelos jesuítas, atingiu o clero regular de forma ampla no Brasil, e
baseava-se numa discussão jurídica de fundo teológico que garantia aos
povos nativos do Novo Mundo a condição de vassalos livres.23 A edição das
leis de 1609 e 161124 proclamava a liberdade aos índios do Brasil, coincidiu
com uma grave crise de mão-de-obra na colônia, e catalisou uma radical
reação dos colonos, extremamente dependentes de braços nativos. A reação
anti-jesuítica rapidamente propagou-se para diversas partes da colônia,
especialmente no Maranhão, na Bahia, e nas capitanias do Sul,
generalizando a crise e obrigando ao governo metropolitano rever suas
disposições sobre o assunto. (SCHWARTZ, 1973:123-39); (LEITE, 1945,
Vol V:3-24). Sobre esta matéria refletia Serafim Leite: “ordem sem dúvida
generosa e admirável para o tempo, mas que o tempo ainda não
comportava”. (LEITE, 1945. vol. V:5).
Em 1617 os jesuítas liderados pelo padre Luiz Figueira (1575-1643)
– grande entusiasta da “Igreja Nova” – chegam ao Maranhão, após a expulsão
dos franceses. (HONNAERT, 1992, vol I:81). Em 1643, Figueira atrai para
o Maranhão o jovem Antônio Vieira (1608-1697) que desempenharia um
papel fundamental na diplomacia da ação missionária brasileira. Encarado
com reservas por muitos historiadores, Vieira tem sua biografia adornada
por uma produção literária brilhante que lhe valeu lugar no panteão dos
consagrados escritores lusitanos. À parte das opiniões de mérito,
entendemos que seu consulado atuou silenciosamente como cunha entre o
Padroado português e a Igreja Romana, que se renovava, introduzindo o
lema “liberdade do índio” o qual vai dominar o pensamento missionário
deste momento em diante. A mudança que se processava na constituição
das idéias missionárias no Brasil estava estreitamente ligada ao método
missional e a opção política de preservação do rebanho, defendida na bula
do papa Paulo III (Verita Ipsa de 1537), e reafirmada pelo Concílio
Tridentino (1545-1563). No entanto, no que diz respeito ao modelo
profético messiânico de expansão da fé católica que marca a ação etnocida

o peso do subjugo católico como viva expressão da opressão colonial sobre os povos nativos no
Brasil. O texto epistolar proferido por Luiz Figueira em 1626 reúne o espírito de renovação que
soprava entre os Jesuítas. Ver os dois primeiros tomos da História da Companhia de Jesus no Brasil.
Passim de Serafim Leite, e a História da Igreja no Brasil de (HONNAERT; et alli, 1992,Vol I:81).
23 Basílio Magalhães denominou de “Paraguaização” este movimento emergente da experiência das

missões guaraníticas, baseado no princípio de liberdade dos povos nativos. (MAGALHÃES,


1944:30).
24 A lei de 1609 que garantia a livre condição dos índios, reeditada com modificações em 1611

provocou a ira dos colonos gerando um dos mais graves embates experimentados pelos Jesuítas no
Brasil. Alvará de 30 de julho de 1609 “Liberdade dos gentios da terra” (DH, C.P. 474:20-1);
(GEORG, 1981:226-33); e Carta de Lei de 10 de setembro de 1611, “declara a liberdade dos gentios
do Brasil, excetuando os tomados em Guerra Justa”. (ANDRADE e SILVA, Vol. I:309-12).

147
da igreja, o combate a qualquer forma de expressão nativa continuou sem
tréguas.
As disputas em torno da liberdade do índio marcaram o fim de uma
era missionária, stricto sensu colaboracionista ao projeto de colonização
sustentado na escravidão nativa. As entradas de resgate tornaram-se cada
vez mais dispendiosas, uma vez que os túpicos que sobreviveram às guerras
se internaram em latitudes cada vez mais profundas, ao passo que o uso da
mão-de-obra africana ganhava espaço, alimentando o mercado atlântico. A
economia agro-açucareira encontrara seu ponto de equilíbrio e se expandia,
dependendo cada vez menos dos nativos. Em 1624 sobrevém a primeira
tentativa malograda de ocupação holandesa na Bahia mas, em 1630, noutra
investida, capturam com sucesso a mais produtiva parte do domínio da
América portuguesa – Pernambuco – e estabelecem um enclave duradouro
de onde expandiram suas conquistas entre o Maranhão e a Foz do rio São
Francisco. A tomada de Pernambuco pelos holandeses paralisa a colônia e
os esforços conjugados do clero, coroa e vassalos portugueses, concentram-
se no isolamento e guerra contra os invasores, induzindo à diminuição do
ritmo de interiorização colonial iniciada algumas décadas antes. Por quase
um quarto de século o governo de Pernambuco e capitanias anexas foi
conduzido pela Companhia das Índias Ocidentais, até que em 1654, após
uma demorada e sangrenta disputa, os holandeses capitulam, marcando uma
nova era na história da colônia.

O ciclo missionário sertanejo.


“De Itapicuru-de-Cima a Geremoabo e daí acompanhando o São
Francisco até aos sertões de Rodelas e Cabrobó, avançaram logo no século
XVII as missões num lento caminhar que continuaria até ao nosso tempo”,
registrou Euclides da Cunha, no século XIX em Os Sertões, notando a
importância da ação da igreja nos interiores da porção norte-oriental do
Brasil. Reclamava, à época, “ainda não tiveram um Historiador” e concluía
reportando-se a obra apostólica:
Dizem, de modo iniludível, que enquanto o negro se agitava na azáfama do litoral,
o indígena se fixava em aldeamentos que se tornariam cidades. A solicitude
calculada do jesuíta e a rara abnegação dos capuchinhos e franciscanos
incorporavam as tribos à nossa vida nacional; e quando no alvorecer do século
XVIII os paulistas irromperam em Pambu e na Jacobina, deram de vistas,
surpresos, nas paróquias que, ali, já centralizavam cabildas.(CUNHA, 1985:169).
Desde Euclides, muitas águas passaram sob a ponte, muitos
investigadores aceitaram o desafio, também repetido por Capistrano de

148
Abreu. Contudo, muitos aspectos desta história permanecem em esboço e
continuam desafiando os historiadores. Trataremos nesta seção das missões
do Sertão de Rodelas – situadas nas ilhas e assentamentos continentais do
rio de São Francisco, entre o salto de Paulo Afonso e a Barra do rio Grande
– associadas historicamente aos assentamentos primitivos dos tapuia Cariri,
Rodeleiros e de uma diversidade de pequenas etnias incrustadas na área de
domínio senhorial da Casa da Torre.
A capitulação de 1654 reativou a corrida em direção ao “íntimo dos
sertões”, e junto com ela um novo ciclo missionário se inicia,
acompanhando e dando suporte ao processo de expansão colonial que
buscava o rio São Francisco.
O período missionário sertanejo pode ser dividido em duas fases. A
primeira, começa logo após a saída dos holandeses no início da segunda
metade do século XVII e se prolonga até o colapso das missões
capuchinhas e o despejo das missões jesuítas no rio São Francisco nos
últimos anos do século XVII. A segunda fase inicia-se nos primeiros anos
do século seguinte com a chegada dos italianos, dos franciscanos e dos
carmelitas que vêm assumir as missões do São Francisco fundadas pelos
franceses e jesuítas. Esta fase é marcada por uma ação muito mais
dependente da política portuguesa, e controlada à corda-curta pela Casa da
Torre. Nosso objeto de estudo neste capítulo concentra-se na primeira fase
deste ciclo sertanejo, no qual os missionários passam a atuar principalmente
junto aos Cariri, “índios mansos”, em cujos assentamentos fundam as bases
estratégicas de onde vão procurar atrair e missionar os grupos arredios que
habitavam aquela região.
Os anos seguintes à derrota neerlandesa no Brasil, como lembra
Puntoni, foram de reestruturação da economia devastada, reordenação da
açucarocracia e da sociedade colonial. As políticas de aliança e guerra para
com os grupos nativos também foram reavaliadas, resultando num
incentivo à missionação no Sertão interior, cujo crescimento acompanhava
de perto a expansão da pecuária. (PUNTONI, 1998b:53).25 Entretanto,
quando se abrem as portas do sertão, a orientação política dos missionários
também já não é mais convergente com os interesses imediatos dos
portugueses. Os jesuítas, encontravam-se então envolvidos no revisionismo
carismático que defendia a “liberdade dos índios” e, conseqüentemente,
seus próprios interesses temporais de controle da mão-de-obra nativa. De

25Sobre a reestruturação da economia canavieira pós-restauração pernambucana ver Olinda Restaurada


de Evaldo Cabral de Mello. (MELLO, 1975:249-94) do mesmo autor, Rubro Veio. (MELLO,
1986:151-93).

149
forma que a característica mais marcante da primeira fase deste ciclo
missionário é a condição de oposição velada aos interesses dos colonialistas
e da coroa portuguesa, movida tanto por capuchinhos franceses, quanto por
inacianos. No percurso histórico, esta condição vai resultar numa série de
embates inflamados e produzir um capítulo colonial permeado de percalços,
hesitações e conflitos.

Expansão para o São Francisco.


A expansão missionária em direção ao rio de São Francisco, entre as
décadas de 50 e 70 dos anos seiscentos, foi conduzida em duas frentes –
capuchinha e jesuítica – visando a explorar o pasto espiritual que se
estabelecia no rastro dos pecuaristas. A frente capuchinha partiu de
Pernambuco, subindo pela foz o rio São Francisco, enquanto a onda
jesuítica se expandiu e partir do Recôncavo baiano tomando rumo às serras
das Jacobinas e suas periferias, por entre as nascenças do rio Itapicuru e do
rio do Salitre, onde foram instalar suas bases sertanejas. Antes contudo, de
passarmos a discutir a expansão missionária, cabe contextualizar os
antecedentes históricos deste movimento.
Os sertões do Recôncavo foram, durante muito tempo, destino
privilegiado de mercadores de escravos de Salvador da Bahia, notadamente
os sertões do Orobó e Aporá, conforme registrou o mameluco Domingos
Fernandes, no seu depoimento ao Santo Ofício.26 Autores como Gabriel
Soares de Souza indicam esta região como sendo ocupada por uma
diversidade de povos de língua tupi que viviam em permanente conflito.
Alguns grupos nativos, como aqueles citados por Tomacaúna,
intermediavam escravos para os portugueses como forma de se manterem
necessários no abastecimento da mão de obra na colônia, como se pode
verificar no testemunho do Tomacaúna. A crescente demanda de escravos e
o aumento dos núcleos coloniais pelo interior do recôncavo fizeram desabar
as antigas alianças, e no princípio do século XVII já se registram os
primeiros conflitos envolvendo colonos e seus antigos fornecedores de

26 “Confessou que haverá dezesseis anos poucos mais ou menos que por mandado de Joam de Brito

d'Almeida, que foi governador nesta capitania na ausência do governador seu pai Luis de Brito que ia
para a Paraíba, foi ele confessante ao sertão de Arabo, por capitão de uma companhia, a fazer descer
o gentio para povoado, na qual jornada gastou quatro ou cinco meses e no dito sertão (...) haverá
quinze anos pouco mais ou menos que tomou ao mesmo sertão de Arabo, desta capitania, por
mandado de dito governador Luis de Brito, por Capitão doutra Capitania, a fazer descer gentios para
o povoado, na qual jornada gastou alguns seis meses”(...) Confissão de Domingos Fernãdes, Nobre
de alcunha Tomacauna mestiço cristão-velho no tempo da graça do Recôncavo no último dia dela 11
de Fevereiro de 1592. (ABREU, 1935:171).
150
cativos. Em 1612 ‘índios bravios’ invadem engenhos no distrito de
Capanema, no rio Paraguaçu, enquanto outros atacam no Aporá, causando
mortes, destruição, e obrigando aquela frente colonial a retrair-se. Por volta
de 1627 o estado de guerra se endemiza, atingindo além do Paraguaçu, o
Jaguaribe. Esta ofensiva provocou uma reunião em junta do poder colonial,
comandada pelo governador general Antônio Teles da Silva, quando
declarou-se guerra justa contra os tapuias levantados. Todavia esta
deliberação não teve aplicação prática, e nova reação às ofensivas nativas no
Recôncavo só teve lugar após a Restauração Pernambucana. (TAUNAY,
1950, vol. IV:316-18).
As notícias de ‘muitos haveres’ do Sertão que corriam à boca-pequena
na colônia, somadas aquelas que chegavam das explorações mineralógicas
de sertanistas como João Coelho de Souza (1581-1584)27 e Belchior Dias
Moreya (1593-1601)28 despertaram, desde muito cedo, a cobiça dos
aventureiros. Contudo, no período da União Ibérica (1580-1640), a política
do sigilo29 parece ter prevalecido com respeito às explorações mineralógicas
no interior do Brasil. No primeiro quartel do século XVII, muitas entradas
de prospecção mineral são registradas, mas a ocupação do Nordeste
brasileiro em 1630 inibiu a ação dos brasileiros. Os holandeses, contudo,
assim que estabilizaram suas conquistas no litoral, iniciaram prospecções
sistemáticas, a princípio reunindo as informações disponíveis e depois
diligenciando entradas ordenadas nos sertões.30 O comandante polonês a

27 Aditamento de Varnhagen à edição do Tratado Descritivo do Brasil de 1587 de Gabriel Soares de


Souza. (SOARES de SOUZA, 1971:15).
28 Belchior Dias Moréia, o Moribeca, segundo Pedro Barbosa Leal, iniciou suas pesquisas

mineralógicas em torno de 1593, partindo das margens do rio Real onde tinha suas propriedades,
subiu o rio Itapicurú até as serras do Bendutayu (serra da prata em língua indígena), rumou para as
serras das Jacobinas e da Pedra Furada, buscando o sertão de Massacará e a serra do Passacará,
atravessando as caatingas do Tucano, seguiu através do vales do rio Verde e Paramirim até chegar nas
cabeceiras do rio São Francisco. ‘Relatório do Coronel Pedro Barbosa Leal ao Conde se Sabugosa,
vice-rei do Brasil’, datado de 23 de novembro de 1725, in index de várias notícias pertencentes ao estado do
Brasil e o que nele obrou o Exm° Sr Conde de Sabugosa no tempo de seu governo. (IHGB, n° 346). Original no
Livro 7° a fls 62 da Coleção de Cartas, Ordens, Editaes etc relativa ao Brasil existente na Torre do
Tombo. Sobre Moreia e seus antecedentes ver (BANDEIRA, 2000:124-26).
29 Ceres Rodrigues de Mello em sua tese doutoral sobre os sertões Nordestinos assim trata a política

de sigilo: “Áreas sertanejas nordestinas permaneceram proibidas até que o rei se certificou de que
suas riquezas estavam abrigadas da cobiça de nações européias (...) a política de sigilo não se referia
ao conhecimento geográfico, mas ao descobrimento econômico de novas regiões e dos caminhos que
a eles ligavam. (...) não foi aplicada a todo o sertão sincronicamente, mas foi exercida à medida que as
minas gerais e novas foram descobertas, ou que as minas de Itabaiana e da Jacobina surgiram das
narrativas indígenas para a realidade econômica”. (MELLO, 1987, RIHGB, vol. 148 (356):306, 312-
15).
30
Carta de M. van Ceulen e Adriaen van der Dussen, para os Senhores XIX, 28 de Março de 1637.
Coleção Brieven en Papieren uit Brazilië (1630-1654) (ARA-WIC:1.05.01.01/24); ver também Carta do
Gouverneur-generaal en Raden, do Recife, para os Senhores XIX, 06 de Maio de 1637, Coleção

151
serviço da Companhia das Índias Ocidentais (WIC) Christoffel Artichiau
(Arzciszewski), em carta datada de 4 de novembro de 1635, informava aos
Senhores XIX notícias de jazidas mineralógicas, colhidas do frei Manuel
Calado, autor do Valeroso Lucideno, das quais destacava as de salitre, prata
e ouro, possivelmente existentes no interior do Nordeste do Brasil.31
Segundo Calado, Felipe III (1605-1650), Rei de Espanha, não desejava
estimular iniciativas de descobrimentos privados de seus vassalos no Brasil,
“tendo feito publicar que a ninguém era permitido explorá-los”.
(CARVALHO, 1907:1-34). (MELLO, 1979:131, nota 7). Registram-se pelo
menos seis grandes entradas dos holandeses em busca das minas de salitre,
ouro e prata, todos de sucesso limitado e que não resultaram em
empreendimentos produtivos. Estas iniciativas eram observadas a distância
por uma ávida platéia de exploradores portugueses alimentando a fantasia
de riquezas dos sertões, ainda hoje registradas no imaginário popular
nordestino.32 Os concorrentes enfileiravam-se silenciosamente, aguardando
oportunidade segura para explorá-las, contudo, a chance só viria na segunda
metade do século seguinte. A Casa da Torre sai na frente e pede em 1654 a
primeira grande sesmaria no Sertão de Rodelas, onde já vinha fazendo
incursões exploratórias e alianças com os Tapuia. Nas décadas seguintes a
Casa da Ponte, da família Guedes de Brito, e outros particulares abrem
estradas e solicitam sesmarias na região situada entre o nascedouro do rio
Itapicuru, passando pelas Serras das Jacobinas até a barra dos rios Grande e
rio Preto, e daí subindo pelo rio do Salitre, até a altura da passagem do
Juazeiro, então possessório da Torre. Em uma década, toda essa extensa
área havia sido loteada em grandes latifúndios que, aos poucos, foram sendo
ocupados pela pecuária.33 Os jesuítas acompanham a corrida do sertão,
rumando via Itapicuru em direção às Jacobinas, para onde – depois de

Brieven en Papieren uit Brazilië (1630-1654) (ARA-WIC:1.05.01.01/58). Conservam-se nos papéis do


Conde Maurício de Nassau no Koninklijk Huisarchief em Haia. (Arquivo da Casa Real), vários
documentos relativos a uma expedição enviada por ele em 1640 para descobrir as minas de prata de
Itabaiana; (GALINDO, 2001:376); (MELLO, 1959); Koninklijk Huisarchief, Inventaris van het Archief
van Johan Maurits, Vorst Van Nassau-Siegen (1604-1679) ’s-Gravenhage, eind 19de eeuw opnieuw
uitgetypt 1977. (Johan Maurits, Prince of Nassau-Siegen, 1604-1679. Inventário A4).
31
Carta de Christoffel Artichiau (Arciszewski) para os Senhores XIX, de São Gonçalo da Paripuera,
04 de novembro de 1635. Coleção Brieven en Papieren uit Brazilië (1630-1654) (ARA-WIC:
1.05.01.01/143).
32 “Quem quer que jornadeando pelo interior ... ao deparar com vetusta ruína de considerável edifício

... inquirir dos moradores próximos a sua origem, quais os seus primitivos construtores, terá sempre
como resposta: - é obra do tempo dos framengos”. (MELLO, 1979:6).
33 Note-se aqui mais uma vez a cronologia apressada desta conquista: 1666 – 1a visita dos jesuítas às

Jacobinas; 1669 - primeiros contatos deles com os Zorobabé do rio São Francisco; 1671-72 - chegada
dos capuchinhos; 1685 - instalação dos jesuítas em Rodelas.
152
conquistados os sertões do Arabó e Paraguassu – haviam se dilatado as
fronteiras.34
“No rastro do ouro, o couro”. Rapidamente se desvaneceram as
esperanças das afamadas minas de prata, de forma que a pecuária – álibi de
todos os exploradores35 – assume seu papel como expansor da economia
nos sertões. A experiência indicava que para o efetivo estabelecimento desta
economia, se fazia necessário, antes, uma larga política de estabilização que
incluía guerra e alianças com o gentio habitante das terras conquistadas.
A partir de 1651, após a limpeza étnica promovida no Recôncavo, se
observa uma série de entradas como as comandadas pelos missionários
Raphael de Jesus e Antônio Pinto em 1655. Não obstante o sucesso destas
explorações, somente em 1662 o padre visitador Jacinto Magistris oficializa
a liberdade para que os jesuítas expandam suas atividades fora do
Recôncavo, instruindo-os a retomarem o espírito das missões entre negros e
índios do sertão, interrompidas pelas guerras holandesas.36
Esta larga região encravada no poente do Recôncavo baiano, entre
os rios das Contas e Itapicuru, onde se situavam os sertões do Aporá e
Orobó, com o avanço das frentes pioneiras do interior, transformara-se em
foco de intensos conflitos, provocando o retardamento da frente baiana,
impedida de reação durante quase todo o período de ocupação holandesa.
Em 1651 os ataques dos índios do rio das Contas ameaçavam os núcleos
coloniais de Ilhéus e suas vizinhanças; à esta época, contudo, a guerra de
Pernambuco já permitia reação do estado colonial. Entre 1651 e 1656 se
realizaram três investidas37 contra os tapuias, todas sem sucesso e com
muita perda da Fazenda Real. As repetidas entradas, tanto as militares
quanto aquelas promovidas pelos pecuaristas, certamente deixaram os

34 Nossa Senhora da Trindade de Massaracá, provavelmente foi, em 1639, a primeira das missões
fundada nestes sertões pelos Inacianos. Às dos Cariri de Santa Teresa de Canabrava, Nossa Senhora
da Conceição de Natuba, Ascensão do Saco dos Morcegos e Nossa Senhora do Socorro de Jeru,
foram estabelecidas provavelmente na segunda metade do século XVII. (BARROS, 1919).
(DANTAS et alii, 1992:441).
35 Conquanto se tenha ciência que o impulso inicial para os sertões tenha sido movido pelo desejo de

encontrar as minas de prata e salitre de Belchior Dias Moreya, nos pedidos de sesmaria, o álibi
corrente para pedidos de grandes porções de terra era a expansão da pecuária.
36 “que no Brasil se retomasse o espírito das missões e da catequese dos índios e negros”. ponto 5°

da Instrução do Visitador Jacinto Magistris de 1662, (ARSI, Assistentiae , n° 627). Apud (LEITE, 1945.
vol. V:280).
37 As entradas eram dirigidas aos Sertões do Orobó, ao sul das Jacobinas. “a de Diogo de Oliveira

Serpa (1651), as tentativas do capitão Adorno (1651-54) e a expedição de Tomé Dias Lassos (1656) -
devem ser compreendidas como parte de um esforço do governo geral de formalização dos
mecanismos de repressão e controle das atividades agressivas das nações tapuias, que entravam em
contato com a fronteira da economia colonial e atalhavam seu desenvolvimento.” (PUNTONI,
1998:55 e ss).

153
índios da região temerosos de uma eminente guerra generalizada que então
já se insinuava. É neste contexto que acontecem as primeiras entradas dos
jesuítas às Jacobinas, explicando por esta via a boa receptividade que
tiveram os religiosos da Companhia nesta ocasião, conforme revela o padre
João de Barros:
Saberá Vossa Ra. que há muita gente aptíssima para a fé e, a exemplo destes, se
comporão os que chamam de corso, como já o vão fazendo os Separenhenupãs e
Borcas, que algum dia foram os tais, e hoje estão comnosco nesta aldeia dos
Sapoiá, de assento; os Secaquerinhens, que foram também andejos, hoje são
grandes Cristãos e admiram-se os brancos de sua devoção. Os Cuparãns querem
ser como eles; e assim mesmo outra aldeia de Sapoiases e outra de Paiaiases. Não
falo daqueles que deixamos por este caminho por onde passamos, que nos
importunavam para os bautizar, dos quais há muitas aldeias. (Carta do padre João de
Barros, ARSI, Bras, 3:51. Apud (LEITE, 1945. Vol V:282-283).

A entrada dos padres Raphael de Jesus e Antônio Pinto que se daria


em 1655 foi, de certa forma, uma sondagem preparatória à guerra contra os
Paiaiáses de 1658. (LEITE, 1945. vol. V:271 e ss). O que o padre Antão
Gonçalves não registrara em sua carta lavrada nas missões das Jacobinas no
ano anterior era o estado de guerra em que se encontravam nestes sertões,
desde a malograda bandeira do Capitão Domingos Barbosa Calheiros ao
sertão das Jacobinas em 1658, na qual os Païaïases ludibriaram os paulistas, e
com astúcia os foram desbaratando até a completa destruição da bandeira.
(DH, 1938, vol. V:321-327). (PUNTONI, 1998:85 e ss). Parece que os
índios pressentiam a guerra geral que seria declarada por Souza Freire
contra dos Paiaiáses, embora que, na prática, fosse levada a termo
indistintamente contra todos os tapuias habitantes dos sertões situados
entre São Salvador da Bahia e o campo das Jacobinas. Os índios se jogavam
para os padres, entendendo ser esta sua única possibilidade de sobrevida.
Em 1666 os jesuítas padre Jacob Rolando e o então irmão João de
Barros empreenderam outra entrada aos sertões da Bahia, desta vez
preparando a expansão católica que se seguia à conquista temporal. O
destino comum eram as aldeias das serras das Jacobinas, mais tarde
transformadas em missão, situadas na localidade de Jacobina Velha,
atualmente Bonfim da Bahia. Estas missões abrangiam no seu âmbito o rio
do Salitre, em cujas margens habitavam os Secaquerinhens, índios de corso
referidos pelo padre João de Barros. (LEITE, 1945, vol. V:282).
Quando o padre Jacob Roland e o irmão João de Barros chegaram
às Jacobinas em 1666, já encontraram alguns índios “de assento”, aliançados
com os senhores das terras. (LEITE, 1945. vol. V:283). Estavam formadas
as aldeias de Massacará no caminho das Jacobinas. Neste segmento
contataram os Sequakirinhens e fundaram entre os Sapoyas uma igreja de
154
São Francisco Xavier, onde permaneceu o irmão João de Barros, enquanto
o padre Jacob Roland retornou à Bahia para tratar de promover estas
missões. Na Bahia debatia se sobre a conveniência da instalação das
missões: se nos campos do sertão ou junto às estruturas dos jesuítas no
litoral. Venceu a indicação para formação de assentamentos no interior.
No ano seguinte, após entrada do padre Jacob Roland, verificava a
pacificação de quatro grandes e problemáticos grupos tapuia que se haviam
reduzido com os jesuítas. Anunciava-se ainda que outros se preparavam
para isto. Reinava entre os religiosos um clima otimista, exultava o padre
Antão Gonçalves: “será uma formosura ver este sertão, daqui a poucos
anos, todo de cristãos”. O irmão João de Barros, acompanhado do padre
Antão Gonçalves, anunciava já estarem reduzidos na Aldeia de São
Francisco Xavier os tapuia de corso Separenuparãns, Borcás e Sapoyás, e
preparavam-se para reduzir os Cuparãns, outra aldeia de Sapoyás e uma de
Paiaiás. (ARSI, Bras 3:51), citado por (LEITE, 1945. vol. V:283). Deve-se
ver neste evento muito mais um resultado da política da espada contra os
tapuia do perímetro do Recôncavo da Bahia que uma vitória da consciência
cristã. Entenderam os tapuia que se não alinhassem com os padres ou com
os fazendeiros, fatalmente teriam o mesmo destino de outros tapuia de
corso que resistiram e aos poucos foram desaparecendo.
Em 1668 o governador Alexandre de Souza Freire convocara uma
guerra, “a ferro e fogo” contra esses tapuias, ordenando a “degola dos
resistentes” e a justeza da escravidão aos que se aprisionassem.38 Após esta
guerra iniciada em 1669, o padre jesuíta Antônio de Oliveira formou a aldeia
dos Paiaiases, aparentemente composta por aqueles que conseguiram escapar
da fúria dos preadores de Souza Freire. (DH, vol.V:207-16). Em 1674 os
moradores de Jacobinas informavam “ora se tem reduzido a fé católica e
batizado uma aldeia de nação Sapoiá, para onde se enviou um missionário
religioso da Companhia de Jesus”. (DH, vol. XII:306).
A guerra aos índios dos sertões habitantes na região situada ao
poente do Recôncavo, combinada à ação dos missionários, foi a chave que
abriu a ocupação colonial, desde as cabeceiras do rio Itapicuru e dos sertões
que englobam as Serras da Tiúba e Jacobinas, conhecidas historicamente
como sertões das Jacobinas. A conquista deste estratégico espaço quebrava
um dos mais fortes flancos de resistência tapuia. A proximidade geográfica
com as nascenças do rio do Salitre afluente do rio São Francisco, converteu
esta região numa passagem obrigatória ao fluxo futuro da economia colonial

38Ordem de Alexandre de Sousa Freire, 06 de Dezembro de 1668, (DH, vol. VII:380-2). Ver também
Proposta de Alexandre de Souza Freire tomada em assento no dia 4/03/1669, (DH, vol. III:205-16).

155
que se desenvolvia nas margens do rio São Francisco e nas terras novas do
Piauí, recentemente conquistadas. As missões das Jacobinas, e Jeremuabo,
vão se converter, daí para adiante, na ‘cunha’ que vai permitir, na seqüência
histórica, as entradas e a redução de outras diversas nações dos sertões do
São Francisco.
A aproximação e redução dos povos Cariri, dispersos em uma área
que se estendia desde as Jacobinas até às partes mais setentrionais do
nordeste brasileiro, se colocava como prioritária. Os missionários.
entenderam desde cedo a importância de se associar com Cariri para facilitar
a conquista dos ‘índios de corso’ de diversas nações que ‘infestavam os
sertões’, os mais hostis à presença branca no semi-árido. Segundo Serafim
Leite, alguns assentamentos coloniais primitivos resultaram da reunião de
várias aldeias de diversos grupos tapuia, tais como: Separenhupãs, Borcás,
Sapoiás, Secarquerinhens, Cuparãns, Paiaiás, Mongurus, Caimbés, Topins, Cariacós.
(LEITE, 1945, vol. V:283); (AMARAL, 1915, vol. I:956-7). Estes índios
foram registrados em 1669 como habitantes do caminho entre o Itapecurú e
as Jacobinas, aberto por Antônio Guedes de Brito em 1651. (RIGHBA.
1916, Vol XI, n° 42). As aldeias de Santa Tereza de Cana Brava, Aldeia dos
Boimés no Itapicurú, aldeia dos Caimbés em Massacará; e a aldeia dos
Mongurus em Geremoabo.
As aldeias fundadas por Jacob Rolando e João de Barros em
decorrência de suas entradas de 1666 foram: Nossa Senhora da Natuba,
renomeada em 1758 como Vila do Soure; (LEITE, 1945. vol. V:287-8).
aldeia de Santa Tereza dos Quiriris em Cana Brava, fundada em 1667 por
Jacob Rolando e João de Barros, estava situada em um vasto tabuleiro cinco
léguas à esquerda do rio Itapicurú.39 Em 1658 recebeu o nome de Vila Nova
do Pombal; aldeia do Saco dos Morcegos “a mais setentrional deste grupo de
Quiriris junto a Massacará, fundada também em 1667 e Mirandela”.
(LEITE, 1945. vol. V:292), (DH, vol. XLII:254); (DH, vol. XLIV:139).

Os primeiros conflitos com senhores de terras.


Para os jesuítas o reconhecimento pleno das missões pelo poder
público, passava pela assinatura de terras livres de senhorio, onde os
grandes latifundiários não tivessem jurisdição temporal. Este procedimento
era justificado como garantia da liberdade dos índios e soberania das
religiões, uma vez que os senhores dispunham deles como se fossem

39Segundo o Padre Jacques de Cocle. Escapou a destruição em 1672 talvez por ser de “senhor,
diferente da Casa da Torre” (LEITE, 1945. vol. V:290).
156
“servos da gleba”.40 Reunidos os índios, cabia então a regularização dos
espaços. Quando os jesuítas pleitearam que a Coroa concedesse às missões
terras para o seu sustento, tiveram que enfrentar a fúria da Casa da Torre.
Em março de 1669, segundo o testemunho do padre Antônio Fonseca, por
ter ouvido dizer que o padre Jacob Rolando ia pedir a El Rei três léguas de
terras para cada aldeia para os Índios, Garcia de Ávila destruiu as duas
residências e igrejas que os jesuítas haviam erigido em Itapicurú e
Geremoabo, e a Igreja dos Caimbés, restando intacta apenas a aldeia de
Santa Tereza de Cana Brava, que estava fora dos domínios da Casa da
Torre. (ARSI, Bras 3(2) 104); (ARSI, Bras 3 (2), 94), Apud (LEITE, 1945.
vol. V:284). De fato, pouco antes o padre Jacob Roland havia deixado o
irmão João de Barros nas missões recém erigidas e retornado à Bahia para
pedir o apoio do governador para promover estas missões. (LEITE, 1945.
vol. V:282).
Por este sucesso, os jesuítas pretenderam interpelar in judice a Casa
da Torre e fazer apurar as responsabilidades através do Conservador
Eclesiástico. O padre Antônio Pereira, o grande articulador político da Casa
da Torre, e tio de Francisco Dias d’Ávila, percebendo a gravidade do
ocorrido e os prejuízos advindos da repercussão na corte da truculência do
sobrinho, agiu rapidamente para contornar a situação e, se antecipando a
qualquer reação, ofereceu pronto remédio para o sucedido.41 Neste
momento, do ponto de vista político era mais produtivo para os jesuítas
negociar e assegurar a retratação da Casa da Torre. O reitor do Colégio da
Bahia apreciou em assembléia com os demais padres da Companhia o
pedido de misericórdia da Casa da Torre, e resolveram “desistir de
conservador e mais estrondos e estrépitos judiciais”,42 tal como consta no
longo parecer do reitor do Colégio da Bahia que incluía, promessa de não
agressão futura, em compromisso escriturado em pública forma, constando
que a Casa da Torre, à sua custa, tornaria a reedificar o que havia
destruído.43 Nas palavras do padre Forti dirigidas ao padre Antônio Pereira
da Casa da Torre está clara esta negociação:

40 Num documento de 1719, publicado por Borges de Barros, o Preposto da Casa da Torre, Garcia

d’Ávila Pereira suplicava a El Rey protestando contra a criação de freguesias e nomeação de vigários
em suas possessões. Clamava o mestre de campo pelos direitos de capela e de apresentação do clero
que atuava em seu senhorio. (BARROS, 1920:88-92).
41 O padre Antônio Pereira honrou o compromisso. Em 16 de Janeiro de 1675 a correspondência

jesuítica informa que “Francisco Dias d’Ávila, vindo a melhor conselho, prometeu ajuda para as
missões dos Quiriris nas suas terras”. (ARSI, Bras 26:34).
42 Carta do padre Antônio de Forti para o padre Antônio Pereira da Casa da Torre de 7 de setembro

de 1669. (ARSI, Bras 3 (2) 89).


43 Parecer do padre Antônio Forti de 19 de agosto de 1669. (ARSI, Bras 3 (2) 94-94v). (LEITE,

1945. vol. V:285).

157
Para que vossa mercê não tenha a mínima moléstia; e esperamos que avistando-se
vossa Mercê com dois religiosos, que mando à Aldeia do Espírito Santo sobre
negócios, se concertará e comporá a coisa de maneira que nem nós fiquemos
prejudicados, e vossa Mercê fique com razão do seu sentimento e desconfiança
alhanada, e será sempre tudo a gosto de vossa Mercê. (LEITE, 1945. vol. V:285),
(ARSI, Bras 3 (2) 89).

O fervoroso defensor dos índios, Jacob Rolando, protestou


energicamente contra seus confrades pela decisão conciliatória. Julgava-se
desmerecido neste embate, do qual esperava ver – a si e aos tapuia
ultrajados – justificados exemplarmente. (LEITE, 1945. vol. V:285). No que
pese o barulho promovido pelo padre Roland, a estratégia de Forti foi mais
útil para o futuro da ação religiosa permitindo a consolidação das missões
dos sertões interiores das Jacobinas e adjacências, missões estas que mais
tarde serviram de base de apoio na expansão jesuítica rumo ao sertão de
Rodelas. Nas palavras de Serafim Leite: prepararam “à distância, as da
margem do rio de São Francisco”. (LEITE, 1945. vol. V:289). Em outra
perspectiva, contudo, a impunidade sedimentava nos senhores da Torre a
idéia de que eles eram intocáveis. Este sentimento certamente animou os
abusos posteriores, quando os senhores da Torre agrediam e intrigavam
livremente os índios contra os religiosos, como se verá a seguir.

Estímulo à ação missionária nos sertões.


No começo do século XVII, após o término das guerras que
inflamavam a linha periférica das fronteiras das novas conquistas, a Coroa
portuguesa se apercebeu da necessidade de investir na atividade catequética
como forma de manter estáveis as áreas de conquista no sertão. A ação
missionária, durante a ocupação do litoral, havia se habilitado
eficientemente para o serviço de estabilização de territórios conquistados,
cabia prestigiá-los. Esta política da Coroa em prol da ação missionária vai
ter continuidade no reinado de D. João V (1689-1750), principalmente no
tocante à formação de estruturas coloniais destinados à exploração dos
recursos do sertão.
Pedro Puntoni enumera dois fatores que, ao seu ver, foram
fundamentais ao estabelecimento da ordem colonial pós-guerra: o primeiro
deles “os novos termos para a conservação militar do domínio” no interior
da colônia, uma vez que existia, então, uma circunstancial garantia de não
agressão da parte dos inimigos europeus; ao passo que se insinuavam
ameaçadoramente os “inimigos internos”: negros levantados em quilombos

158
e o tapuia rebelde.44 O segundo fator seria “a maior diversidade das ordens
religiosas envolvidas como os novos grupos indígenas contatados”, que
exigiam a criação de eficientes “mecanismos de controle e de internalização
do processo decisório na burocracia imperial”. A estes fatores
acrescentamos ainda o combate à ameaçadora violência e a independência
civil em que viviam os colonos e índios nestas conquistas, que deveriam se
subordinar às regras comportamentais católicas.
Nos idos de 1675, Salvador Correia de Sá,45 então conselheiro do
Ultramarino, advogava o apoio real à formação de aldeias de tapuias via
ação missionária, como opção para defesa das células de povoamento do
sertão. Destacava em seu parecer as vantagens destas no combate aos tapuia
não aliados e nas ofensivas contra os mocambos dos negros e mulatos que
se exilavam nessas terras despovoadas.46 Correia de Sá invocava o exemplo
dos missionários capuchinhos no rio de São Francisco, como modelo de
redução à fidelidade real, e de conversão à fé católica dos povos do sertão.
Discutia-se então, no Ultramarino, a conveniência da instalação de missões
no interior do rio São Francisco, para as quais os padres franceses
peticionavam concessão. Correia de Sá defendia que se acatasse o
argumento dos capuchos e que se respeitasse a vontade dos povos tapuia
que não quisessem de “voluntário vir para o mar”; e mais que, em benefício
dos interesses da coroa, se permitissem estabelecer missões entre estes nos
sertões.
Vivia-se, aquela época, o frenesi das explorações mineralógicas, vistas
então como salvação da economia colonial combalida, após a saída dos
holandeses, e da concorrência da indústria agro-açucareira das Antilhas e da
derrocada dos empreendimentos coloniais dos portugueses na África e na
Ásia. (AZEVEDO, 1947. passim). Correia de Sá apoiava-se neste argumento
para sustentar a opinião da grande utilidade que havia em “se estender a
nossa comunicação e vassalagem para as notícias dos muitos haveres que se
entende há pela terra adentro, donde estes índios se conservam com o seu
natural”. A tese do ministro arrazoava com a experiência da América
espanhola que conservara no interior da colônia as aldeias nativas, utilizadas

44 Ver na tese de Pedro Puntoni, A Guerra dos Bárbaros, interessante discussão – já referida por nós

neste texto – sobre estarem os colonos de Pernambuco “ladeados, e quase cercados de dois grandes
inimigos pela parte do sul com os negros dos Palmares e pela do norte com os tapuias” Sobre os
tapuias que os paulistas aprisionaram na guerra e mandaram vender aos moradores do Porto do Mar,
e sobre as razões que há para se fazer a guerra aos ditos tapuias (BA, 1691, 54 XIII, 16:162).
45 Sobre Salvador Correia de Sá e Benevides, ex-governador do Rio de Janeiro, ver a obra de Charles

Ralph Boxer, Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola 1602-1686. (BOXER, 1973).
46 Voto de Salvador Correia de Sá sobre a missionação e o povoamento do sertão, Consulta do Conselho

Ultramarino, c. 1675, (AHU: Bahia, caixa 2:105), (PUNTONI, 1998:41).

159
na defesa dos interesses de Castela. Comparava a experiência dos espanhóis
com a desastrada exploração da costa portuguesa que tinha conseguido
despovoar o litoral, conservando o reino na ignorância sobre as
potencialidades do interior: “toda a costa do Brasil que está despovoada de
índios e com tão poucas notícias da terra adentro que quase não há
algumas”. Correia de Sá, arrematou seu parecer sugerindo que se
respeitassem as leis da liberdade dos índios, pois foi “feita com tão grandes
teólogos”; que se “lhes conceda licença que para irem assistir nas aldeias
pela terra a dentro, ensinar a fé” que assim os que quisessem vir se aldear
voluntariamente; que a coroa pagasse “seu estipêndio” (côngruas); que
sobre os que reduzissem, tivessem os religiosos jurisdição espiritual e
temporal com capitães locais subordinados ao governador, e que “em
nenhuma maneira vão com tropas de armas a desinquietar aqueles índios”.47
Neste longo parecer nota-se a preocupação do experiente ex-
governador em manter estável o interior, que se apresentava como frutífero
campo de dízimos reais. Mais tarde, em outro parecer, desta feita
defendendo a ação dos jesuítas, diria Salvador Correia: “a terra do Brasil não
se pode povoar com a gente que há de ir da Europa, e despovoado com a
guerra também não serve de nada”.48 Salvador de Sá enxergava neste
sistema de povoamento uma forma de resolver não só o perigo eminente
dos inimigos internos, mas também uma forma de expandir o domínio
português até os limites das colônias de Espanha.49
Outra evidência do clima que reinava favorável a missionação no
sertão aparece no capítulo quinto do Regimento do Governador de
Pernambuco Fernão de Souza Coutinho (1670-1674).50 Era uma diretiva
que instruía os governantes a prestigiar o trabalho missionário no sertão, e o
tratamento que haveriam de ter os governadores com os ministros do
eclesiástico incumbidos da conversão e doutrina dos gentios. Diz o
Regimento:

47 Parecer de Salvador Correia de Sá Sobre os tapuias que os paulistas aprisionaram na guerra ... (1691),

Consulta do Conselho Ultramarino, c. 1675, (AHU: Bahia, caixa 2:105). Grifo meu. Apud (PUNTONI,
1998:53).
48 Consulta do Conselho Ultramarino de 02 de Dezembro de 1679, (AHU, códice. 252:56v-58); (DH, vol.

88:168-71). (PUNTONI, 1998:54).


49 “Ficando só a raia no meio para o comércio, como experimentamos nestes reinos, por ser todo

aquele território unido com o nosso de Portugal e Castela” Voto de Salvador Correia de Sá sobre a
missionação e o povoamento do sertão, Consulta do Conselho Ultramarino, c. 1675, (AHU, Bahia,
caixa 2:105). (PUNTONI, 1998:41).
50 ‘Regimento do que ha de uzar Fernam de Souza Coutinho, Governador de Pernambuco,’ 14 de

Agosto de 1670. (AHU, cód. 169:37 v./43); Fernão de Souza Coutinho, tomou posse do Governo de
Pernambuco em 28 de Outubro de 1670, e serviu até 17 de janeiro de 1674, dia em que faleceu no
cargo” (ABN, 1908. vol. XXVIII:4-5).
160
Lhe encomendo muito os ministros que se ocupam na conversão e doutrina dos
gentios, para que sejam favorecidos em tudo o que para esse efeito for necessário,
tendo com eles a conta que é razão, fazendo lhes fazer bom pagamento nas
ordinárias que tem de minha fazenda para sua sustentação, porque de tudo o bom
efeito que nesta matéria houver me haverei por bem servido.51
Este dispositivo, associado ao Capítulo anterior do citado
regimento, foi invocado pelos missionários para conseguir suporte
financeiro da Fazenda Real, para suas atividades, como registra Martinho de
Nantes em sua relação.52 Estes estatutos recuperavam de modo enfático
temas que, de alguma forma, já estavam tratados desde o Regimento do
primeiro Governador Geral do Estado do Brasil, Tomé de Souza, de 17 de
Dezembro de 1548, no qual também se registra uma garantia retórica de
reservas de terras para os índios e seus aldeamentos.53 Todavia, foi
necessário em 1605 uma regulamentação normalizando a forma das doações
de terras. A lei estabelecia que os índios que estivessem aldeados ou os que
se encaminhavam à redução “fossem senhores de suas fazendas” e que seus
direitos fossem respeitados. As doações de terras para os índios deveriam
ser outorgadas pelo governador sob consulta aos missionários. A lei proibia
a transferência dos aldeamentos à revelia de seus moradores, isentava o
aforamento e de outras taxas as terras indígenas. Alertava ainda o Rei que as
disposições aplicavam-se também às concessões providas a particulares, que
estas continham cláusula de reserva aos prejuízos de terceiros, e para que
não pairasse dúvida sobre o conceito esclarecia a Lei: “por que na concessão
destas se reserva sempre o prejuízo de terceiro, e muito mais se entende,
quero que se entenda ser reservado o prejuízo e o direito dos índios,
primeiros e naturais senhores delas”.54 Todavia, pouco valiam as repetidas
leis que garantiam direitos aos nativos; rapidamente caíam em letra morta, e
as fronteiras coloniais continuavam dilatando-se indiscriminadamente sobre

51 Nos servimos da cópia Registro do Regimento que trouxe Roque da Costa Barreto, do Conselho

de Sua Alteza, Mestre de Campo e General do Estado do Brasil, a cujo cargo está o governo dele (fl.
4) com comentários do Vice-rei Dom Fernando José de Portugal, datada provavelmente do início do
século XIX, manuscrito da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro. Veja sobre este Regimento o
ensaio de Rodolfo Garcia, O Regimento de Roque da Costa Barreto e os comentários de D.
Fernando José de Portugal. In: Ensaio sobre a História Política e Administrativa do Brasil (1500-1800).
(GARCIA, 1975:138-145).
52 Diz Martinho de Nantes, relatando entrevista pessoal com o Governador Roque Barreto “Invoquei

o capítulo quarto do governo do Brasil, em que havia ordem do rei para ajudar os missionários e que
eu já havia recorrido duas vezes a esse preceito, tendo sido atendido. Ele me disse que o dispositivo
havia sido revogado havia dois anos.” (NANTES, [1706], 1979:92-3).
53 “se alguns dos ditos gentios quiserem ficar na terra da dita Bahia dar-lhes-eis terras para sua

vivência, de que sejam contentes, onde vos bem parecer.” Regimento de Tomé de Sousa de 17 de
Dezembro de 1548, (TAPAJÓS, 1966. vol. 1:252-60).
54 Lei de 5 de Julho de 1605. (AAPB, vol 29:24-30); (LEITE, 1945.vol II:68-9). Sobre este assunto

ver ainda: (REGNI, vol. 1, 1988:125).

161
as terras indígenas. Na tentativa de se fazer ordenada esta expansão, em
1680, outra lei reedita as disposições da anterior reafirmando:
E para que os ditos índios, que assim descerem, e os mais que são no sertão, sem
lhes poderem ser tomadas, nem sobre elas lhes fazer moléstia. E o governador
com o parecer dos ditos religiosos assinará aos que descerem do sertão lugares
convenientes para neles lavrarem, e cultivarem, e não poderão ser mudados dos
ditos lugares contra sua vontade, nem serão obrigados a pagar foro, ou tributo
algum das ditas terras, ainda que estejam dadas de sesmarias a pessoas
particulares, porque na concessão destas se reserva sempre o prejuízo de terceiro,
e muito mais se entende, e quero se entenda ser reservado o prejuízo, e direito
dos índios, primeiros e naturais senhores delas. “Lei de 1° de Abril de 1680.” (AAPB,
vol 29:221-2). (REGNI, 1988, vol. 1:125).

Queria o Rei neste documento manifestar dois pontos


fundamentais: 1- terra livre para os nativos, isenta de vassalagem senhorial,
2 - o apoio irrestrito às missões sertanejas, responsáveis pela estabilidade das
conquistas. A lei de 1680 tampouco conseguiu alcançar os frutos esperados,
mas se apresentava como um claro posicionamento da Coroa em defesa da
atividade catequética no interior e contra a série de afrontas que os
missionários, jesuítas e capuchinhos, vinham sofrendo da Casa da Torre.
Felisbelo Freire lembra da Carta Régia de 17 de Janeiro de 1691 a qual
proibia que “sesmeiros se fizessem senhores das aldeias dos índios que se
achavam no distrito das sesmarias, passando a commeter o excesso de lh’as
tomarem, como também as terras que lhes pertenciam, e se faziam
necessárias para a cultura e sustento de suas casas”.55 Mais tarde, quando as
ofensas do senhorio se radicalizaram, o Governo metropolitano faz publicar
a Lei de 23 de novembro de 1700,56 desta feita regulamentando a forma das
concessões de terras para as missões, e definindo sanções para os
transgressores. Esta Lei tem sido exaustivamente explorada como prova da
conquista temporal dos índios e dos missionários, contudo, fazemos dela
uma outra leitura, que discutiremos adiante.
Um instrumento decisivo para o controle dos povos nativos foi a
criação em 1681 da Junta das Missões de Pernambuco e de suas capitanias
anexas, palco de infindáveis eventos de ofensivas coloniais e resistência
indígena.
A Provisão de 1681, considerando os benefícios espirituais que a
Junta das Missões da Índia proporcionava, ordenava ao governador Ayres

55 (FREIRE, 1906, vol. I:139). Serafim Leite afirma “outro dos ardisz dos curraleiros, feitos capitães

de entradas, era pedirem e exigirem índios das aldeias dos padres e reterem-nos depois como se
fossem escravos seus”. (LEITE, 1945,.vol V:280).
56Alvará sobre ter cada missão de indígenas uma légua de terra em quadra de 23 de novembro de 1700. (AHU.

(Registro de Provisões) cód. 95:91v/92); (ABN, 1906, Vol.28).


162
de Souza de Castro (1678 - 1682) que erigisse, no Estado do Brasil, uma
Junta de Missões subordinada à Junta do Reino, a exemplo daquela criada
sob influência do padre Antônio Vieira no Estado do Maranhão em 1655,
destinada a policiar a questão do cativeiro dos índios,57 e tirar da alçada da
burocracia colonial a decisão da legitimação de assuntos como Guerra Justa,
cativeiro e liberdade dos índios.
Em 15 de Março de 1687, el-Rei de Portugal, D. Pedro II (1648-
1706), em carta para João da Cunha Souto Maior, governador de
Pernambuco (1685-1688), ordenava que notificasse aos prelados das ordens
religiosas que se ocupassem da propagação da fé e conversão do gentio. Diz
o texto da Carta Régia:
Por ser informado que as Religiões, que tem Conventos na Conquistas, se não
occupão n’aquelle principal exercicio, que foy o motivo das suas fundações que e
o Bem Spiritual das Almas na propagação da nossa Sancta Fé e conversão da
Gentilidade, havendo-se com menos zelo e culpavel descuido n’esta sua primeira
obrigação, em que devião empregar-se com tanto cuidado e disvello, como pede o
serviço de Deus, e o amor dos próximos, e que ao mesmo tempo se embaração e
divertem os Religiozos noutros interesses profanos, com que vem a cauzar
escandalo aquelles mesmos, que haviam de dar exemplo, e serem vistos n’aquellas
partes, em que ainda se conserva tanto a Gentilidade como respeito e veneração
de Mestres Spirituaes e Ministros Apostollicos, reprehendendo os vícios e
reformando os costumes tanto com a efficácia das palavras, como, com a pureza
das obras; e dezejando que todos os Religiozos saptisfação inteyramente n’este
particular a sua obrigação, para que o fructo da seara de Christo cresça, e se
augmente deitando novas raizes nos corações dos Gentios, para que doutrinados
e fortalecidos com a Luz da fé conheçam o caminho da salvação: Vos ordeno que
mandeis noteficar aos Prelados d’aquellas Religiões, que vedes que com menos
fervor e zelo se empregão na conversam das Almas, que não se occupando os
Religiozos, seus subditos, com o zelo e cuidado (...) não somente lho mandareis
estranhar com rigor e severidade, mas que procurareis se extingão as suas
Províncias, dando-se os Conventos d’ellas a outros Religiosos que mais
dignamente as occupem, empregando-se no serviço de Deus, bem dos proximos
e conversão dos Gentios (...) que sabendo que algum prelado procede com
ommissão vos farão logo sabedor d’ella para que informando-me possa eu
mandar tratar da execução d’esta minha ordem, que a todos os Prelados mando

57 “A Junta das Missões do Maranhão foi instituída por provisão de 9 de abril de 1655, que alterava a

de 17 de outubro de 1653. Segundo o biógrafo de Vieira, foi este que indignado com as medidas que
esta última impunha para a legitimação do cativeiro dos índios, por motivos diversos, e colocava na
alçada do desembargador sindicante, e dos ouvidores a deliberação da liberdade ou não dos cativos,
por iniciativa dos oficiais das câmaras do Maranhão e do Pará que, conseguiu em Lisboa a retificação
do rei. Nesta ocasião, além de garantir o governo dos religiosos nas aldeias e missões do sertão,
decretava El-Rei que houvesse uma Junta das Missões que deveria determinar a justiça do cativeiro
dos índios” (TAUNAY, 1950, vol.IV:228-35).

163
fazer prezente, para que advertidos e emendados tenha eu de hoje em diante mais
que agradecer-lhe, do que estranhar-lhe.58
Há de se considerar que a esta época crescia no sertão a atividade
dos capuchinhos, ligados à Propaganda Fide, e dos jesuítas, ambas ordens
religiosas problemáticas para a política portuguesa, enquanto no litoral havia
uma infinidade de outras ordens sem ocupação missional, custeadas pelo
Erário Real, sem cumprirem a aplicação básica do contrato de conversão do
gentio como se expressava nos regimentos dos Governadores.59 A seu
turno a Santa Sé pressionava Portugal, cobrando resultados de conversão
para tentar forçar a permanência dos capuchinhos no Brasil.60
Apenas 6 meses depois de publicada a resolução da Carta Régia de
17 de Setembro para que as ordens religiosas se ocupassem da conversão do
gentio do sertão, foi apreciado no Conselho Ultramarino suplica da
prestigiada abadessa das clarissas do Convento do Desterro da Bahia,
solicitando ao rei lhes concedesse “faculdade para receber por
supranumerárias algumas das muitas (donzelas) que desejavam servir a Deus
naquela sua casa”. O Procurador da Coroa foi de parecer contrário,
argumentando que nas ditas conquistas o ideal seria que “não houvesse
outros alguns conventos mais que os de missionários que tivessem por obrigação e
por instituto pregar o Evangelho e converter os gentios”. Constata-se, mais uma vez,
naquele momento histórico a importância da presença missionária no
sertão.
A ação missionária tinha por ofício a conversão do gentil, de função
vital à expansão da colônia. A partir de suas bases no sertão, os religiosos
mantinham a estabilidade nas áreas recém-conquistadas enquanto
promoviam o descimento de novos grupos acossados pela ação militar em
seus territórios tradicionais.61 Como já foi aventado, a ação religiosa era um

58 Sobre notificar aos prelados das religiões para que se occupem da propagação da fe e conversão do

gentio. Lisboa, 15 de Março de 1687. (ABN. 1908, Vol. XXVIII:265).


59 “A primeira coisa porque os senhores Reis meus predecessores mandaram povoar aquelas partes

do Brasil foi porque a gente dellas visse ao conhecimento de nossa Santa Fé Catholica, que he o que
sobretudo desejo, e assim em primeira obrigação.” Capítulo 4° do Regimento do que ha de uzar
Fernam de Souza Coutinho, Governador de Pernambuco, 14 de Agosto de 1670. (ABN. Vol.
XXVIII, 1908:5). (AHU, cód. 169:37v-43).
60 Segundo Charles Boxer Portugal não possuía clero qualificado em quantidade suficiente para a

função e que, por este motivo, havia falhado na tarefa da conversão do gentil à fé católica em seus
domínios. (BOXER, 1977:257 e 262).
61 Veja este trecho da relação do padre Martinho de Nantes, onde ele destaca a função de

estabilização das missões, junto aos colonos. “Hoje nada têm a temer”, relata o capuchinho, “da parte
dos índios que se converteram nem dos próprios selvagens, pois que os cristãos lhes servem de
trincheira contra eles; não ousam empreender coisa alguma contra os portugueses e têm participado
de suas guerras, que os colocaram em condições de não tomar nenhuma iniciativa, pela mortandade
de que têm sido vítimas. Os índios haviam antes matado, numa só noite, oitenta e cinco portugueses
164
complemento à guerra, fazendo com que a massa nativa reagente à ação
colonial fosse convertida em vassalos integrados ao sistema produtivo
colonial.62 Ao passo que os conventos, maior parte instalados nos grandes
centros urbanos, apenas vampirisavam o estado, consumindo fazenda e
donzelas em seus noviciatos.

Expansão capuchinha.
No final do ano de 1657, o Prefeito da Província Capuchinha da
Bretanha comunicava à Propaganda Fide que seus missionários no Brasil
haviam penetrado 100 léguas no sertão de Pernambuco, onde havia “grande
número de homens selvagens que viviam como animais”. (A.P. Acta, 26:588).
apud (REGNI, 1988, vol. I:97). O historiador dos capuchinhos, Vittorino de
Regni, é de opinião que os capuchinhos teriam atingido o Ceará, todavia
não oferece nenhum argumento sólido para basear sua afirmação. Supomos
que o provincial se referia aos sertões do São Francisco, onde desde 1629 se
tinha notícia destes índios.63 A esta época, partindo de Pernambuco para se
chegar até a região do sertão do São Francisco, o roteiro mais seguro era o
que seguia pela costa até a entrada da Barra do rio, subindo até Porto da
Folha, onde os transeuntes se refaziam para continuar viagem além da zona
encachoeirada do rio, acima do salto de Paulo Afonso. Tomando como base
as 100 léguas citadas pelo provincial capuchinho, esta distância os colocaria

e negros nas suas casas e, sem o nosso apoio, teriam morrido todos os portugueses do rio e os
selvagens teriam tomado conta de mais de cento e cinqüenta mil cabeças de gado. O Estado também
tirou vantagens de nossa missão, não somente pelas razões já apontadas, mas também pelo aumento
de súditos e fiéis, sempre dispostos a socorrê-lo na medida de suas forças”. (NANTES. [1706]
1979:22-23).
62 Pedro Ribeiro identifica duas atribuições básicas para a missão no sistema colonial: por um lado ela

é o complemento da vitória militar onde se convertem os vencidos em uma massa habilitada ao


trabalho das fazendas e engenhos; e por outro substitutivo da guerra que funciona reduzindo o índio
à condição de força de trabalho disponível ao colonizador sem a necessidade de recorrer à violência
das armas. (OLIVEIRA, 1985:36).
63 Cuthbert Pudsey, cronista seiscentista que deixou um dos mais remotos registros sobre os Cariri do

São Francisco sob a corruptela de Corareras, diz: “... não sabemos dizer quantos são eles, pois estão
fora do país, quer dizer, no interior, ou seja, no Rio Grande [do Norte] de um lado, e no Rio de São
Francisco de outro, dividem-se em aldeias, as quais entendo serem famílias de seus filhos, uma aldeia
deverá abrigar no máximo de 400 a 500 pessoas mas existem muitas aldeias....” (BN, n° I-12,3 n° 17).
(PUDSEY, 2000). O antuerpiano Johannes de Laet (1582-1649), registrava pouco depois de Pudsey,
na relação dos povos contrários aos Jandui, os Waiana, governados por um cacique chamado
Waracapá, (Uracapá) “que habitava para o interior e muito distantes do arraial e mantinham amizade
com os Portugueses”. (LAET, [1625-1636] ABN, vol.30, 1908; vol. 33, 1911; vol. 38, 1916; vols. 41-
41, 1919/1920). Este cacique Uracapá certamente é o mesmo de que Martinho de Nantes registra a
morte, seis meses antes de sua chegada ao rio de São Francisco “chamado Uracapá, e do qual a ilha
tomara o nome”. (NANTES, [1706], 1979:37). George Marcgrave também registrou “junto ao rio de
São Francisco” os Arodera (Rodelas) Cajau, Maquem e Poymé (Boimé). (MARCGRAVE e PISO, [1648],
1942),

165
no coração do sertão de Rodellas, à altura de Pambú. O rio de São
Francisco era o destino dos pecuaristas, era também onde se fazia mais
necessária a ação espiritual, todavia, por mais alguns anos, os capuchos
permaneceriam atuando apenas no litoral.
Em 1666 João Fernandes Vieira, pertinaz adversário dos capuchos,
levantou a suspeita de que o Governador de Pernambuco Jerônimo de
Mendonça Furtado (1664-1666), com o apoio dos missionários bretões,
queria entregar a capitania aos franceses.64 A presença de uma esquadra de
bandeira francesa, fazendo aguada no porto do Recife, reforçava a notícia
de uma iminente invasão. Estes boatos aparentemente haviam sido
ventilados pelo Mestre de Campo João de Souza e pelo próprio João
Fernandes Vieira, no intuito de desestabilizar o governo de Furtado de
Mendonça. Embaraçados pela turba promovida dos partidários de Vieira, os
marujos da esquadra francesa se abrigaram no convento dos capuchinhos na
Penha, onde foram alcançados pela ordenança e submetidos à rigorosa
vistoria em busca de armas, que finalmente não foram encontradas,
desfazendo-se, naquele momento, as suspeitas contra os frades e o falso
alarme contra os franceses.65 Naquele mesmo ano, o casamento do Príncipe
D. Afonso VI com Dona Maria Isabel de Sabóia,66 natural de Nemours, dá
a Portugal uma Rainha francesa e aos capuchinhos uma monarca protetora.
Sob seu patrocínio, receberam o reforço dos mais ativos missionários deste

64 Sobre este fato ver (RIAP vol. XIII:630-42), o texto O Marquês de Mondevergne em Pernambuco

1666, onde se encontra a tradução das Memoires por servir à Ministeire des Indes Orientales por Urbain Souchy
de Rennefort, Paris, 1688. É o relato de viagem da frota sob o comando de François de Lopis, Marquês
de Mondevergne, vice-rei das Índias Orientais Francesas, que arribou no Recife a 21 de julho de
1666. O texto descreve brevemente o Recife e Olinda neste ano e das circunstâncias da deposição do
quarto governador e capitão-geral de Pernambuco Jerônimo de Mendonça Furtado, conhecido pela
alcunha de Xumbergas. Sobre o caso envolvendo a frota francesa, os capuchinhos e Jerônimo
Furtado de Mendonça, ver o texto Deposição de Mendonça Furtado, Governador de Pernambuco –
ano de 1666, (ABN. vol. LVIII:119-21).
65 (REGNI, 1988, vol. I:95-96). Ver também Ordem régia de 1667 proibindo a permanência no Brasil

de religiosos da Ordem de São Francisco das Ilhas dos Açores “que haviam ausentado de sua
obediência”. Lisboa 3 de Setembro de 1667. (ABN. Vol. XXVIII, 1908:34).
66 Dona Maria Isabel de Sabóia, Rainha de Portugal, francesa de nação, fora esposa de D. Afonso VI,

que foi afastado do trono num rumoroso caso, em que se beneficiou seu irmão D. Pedro II. Segundo
Barboza Lima Sobrinho, “acabou herdando o trono e a mulher do irmão, pela anulação do
casamento anterior com D. Afonso VI. O segundo casamento se concluíra no ano de 1666, com D.
Pedro II. D. Maria Isabel nasceu em Paris e morreu em setembro de 1683” Ver as nota 22 de
Barbosa Lima Sobrinho à relação de Martinho de Nantes. (NANTES, [1706], 1979:114). Segundo
Varnhagen, Dom Pedro governava desde 23 de novembro de 1667, data em que seu irmão D.
Afonso VI foi deposto e preso em seu próprio quarto (23 de janeiro de 1668). D. Afonso era casado
com a princesa D. Maria Francisca Isabel de Saboya, Duqueza de Nemours e d’Aumale, mas por
impotência perpétua Coeundi teve seu matrimônio anulado; obtida a dispensa do impedimento Publicae
honestatis, casou com a Rainha o Príncipe D. Pedro, seu irmão. O Processo que relata este fato foi
reimpresso por Dr. Antônio Baião: Causa da nulidade de matrimônio entre a rainha D. Maria Francisca Isabel
de Saboya e o rei D. Afonso VI. Coimbra, 1925. (VARNHAGEN, 1948, vol.III:277).
166
ciclo, abrindo-se uma era de bonança para os missionários franceses que
foram tolerados por mais duas décadas até a morte da Rainha.
Martinho de Nantes e seu companheiro de estudos Anastácio de
Audierne aportaram em Pernambuco, em agosto de 1672,67 onde se
separaram. O padre Anastácio seguiu para a missão dos Aramurus, no Porto
da Folha,68 enquanto Martinho dirigiu-se para a ribeira do Paraíba,69 para
reunir-se com o padre Theodoro de Luçé, que ali já assistia há 15 meses.
Martinho demorou-se na ribeira do Paraíba por apenas oito meses, e em
abril de 1672, procurando campos mais profícuos, retornou a Pernambuco
de onde seguiu para o rio São Francisco,70 devendo ter chegado no sertão
dos Rodellas entre maio e junho de 1672, onde já se encontrava o padre
Francisco Domfront atuando entre os tapuia Rodelleiros, vinte quilômetros
rio abaixo da ilha do Uracapá.71

67 Na segunda relação do padre. Martinho de Nantes, aparece como data de sua chegada ao Brasil 3
de agosto. Na primeira relação, contudo, a data oferecida é 30 de agosto. Acreditamos haver na
segunda data um erro do próprio Martinho de Nantes, que escrevia de memória, ou quiçá do
impressor. Na página 96 Martinho diz que gastou 3 meses de viagem, sendo assim, nos parece mais
seguro a data de 30 de agosto de 1671 para sua chegada ao Brasil. Entendemos que devido a este
lapso de 27 dias pode haver desencontros na cronologia por ele citada no texto. Desta forma
aceitamos as datas oferecidas por ele como referenciais, admitindo variações que em alguns casos
podem chegar a três meses de descompasso entre sua narrativa e a documentação paralela por nós
consultada. (NANTES, [1706] 1979:27-30).
68 Audierne deve ter partido imediatamente para os Aramurus, atual Porto da Folha, na barra do rio

Ipanema, pois quando Martinho de Nantes passa por sua aldeia em 1672 já encontrou sua obra em
plena atividade. (REGNI, 1988, vol.I:145).
69 Em outubro de 1671 Martinho de Nantes encontra-se na missão da Ribeira do Paraíba. Não há

consenso sobre a localização desta missão, ver nota 5 de Barbosa Lima Sobrinho, páginas 105 e 106
da Relação do Padre Martinho. Suponho ser na atual cidade de Sumé na Paraíba, pois o padre M.
Nantes relata o encontro de uma pedra com inscrições lapidares, que pela sua descrição me parece ser
a Pedra do Ingá, em Ingá do Bacamarte – Paraíba.
70 Em 1672 já havia conexão viária fluvial estabelecida entre Pernambuco e Porto da Folha no rio São

Francisco. Nesta viagem Martinho de Nantes segue acompanhado de apenas um índio. Na sua
viagem anterior à ribeira do Paraíba foi “escoltado” por uma dúzia de índios, chamados caboclos.
Isto indica que as condições de tráfego nesta parte do rio de São Francisco eram seguras a ponto de
dispensar escolta de defesa. (NANTES, [1706] 1979:34).
71 Missão dos Rodelas, possivelmente atual sede dos Tuxá de Rodelas, antiga Missão de São João

Baptista de Rodellas. Segundo Halfeld 18 léguas, que dariam 118 km. (HALFELD, 1860).

167
Figura 15 – Principais assentamentos missioneiros do rio São Francisco e
adjacências.
A missão da ribeira da Paraíba se formara no início de 1670, quando
o padre Teodoro de Lucé, por convite do pecuarista Antônio de Oliveira,
instalou sua missão entre os Cariri. No ano de 1672 eles se desentenderam e
o fazendeiro representou na Câmara de Pernambuco que havia razão
bastante para suspeitar dos capuchinhos franceses. Oliveira acusava os
missionários de fornecer e “ensinar aos índios o manejo de armas”.
(NANTES, [1706] 1979:40). As acusações do pecuarista foram levadas por
João Fernandes Vieira ao Príncipe Regente, dando conta de que andavam
perambulando pela capitania de Pernambuco frades capuchos barbados que
poderiam ser perigosos, “por serem animados de sentimentos demasiado
nacionalistas e porque armavam os índios contra os portugueses”.72 Dom
Pedro, com base na denúncia levada por Vieira à Corte, (NANTES,
1979:40). passou em 25 de Agosto de 1672 Ordem Régia ao governador de
Pernambuco, Fernando de Souza Coutinho, falecido no cargo, e a Pedro
d’Almeida, seu sucessor, encomendando que se instaurasse inquérito e
seqüestrassem as armas, que supostamente estariam sendo utilizadas pelos
índios A iniciativa de Martinho surtiu efeito, e novamente foram debaldados
os esforços de Fernandes Vieira contra os capuchinhos, mas os franceses
tiveram que carregar consigo as reservas xenófobas que nunca se

72 “... e para defensa de tudo ofereço a V.A. o papel de advertências que será com esta”. (ANP,

Fonds portugais, cód. 25:93-94v e 96). (REGNI, 1988, vol. I:145), não consta data, mas o documento
está anexo a carta de João Fernandes Vieira ao príncipe regente datada de 25 de agosto de 1672.
168
desvaneceram. O apoio da rainha também não impediu que se procedessem
aos inquéritos de praxe a respeito das acusações, que segundo o padre
Martinho, os justificaram e deram mais autoridade que no passado. Em 9 de
setembro de 1674 – um ano antes de Salvador Correia de Sá advogar em
prol dos capuchinhos,73 o Governador Geral do Estado do Brasil, Afonso
Furtado de Castro Rio de Mendonça (1671-1675) tratou de desfazer as
intrigas de Vieira, escrevendo a Pedro d’Almeida, governador de
Pernambuco (1674-1678), aconselhando-o a não requisitar as armas de frei
Francisco Domfront, dado que “antes era preciso ajudá-lo por todos os
meios, pois seu serviço de evangelização era sumamente agradável ao Rei”.74
Declara o padre Martinho: “Deus abençoou o meu zelo na defesa de Sua
causa. Essa carta impediu nossa expulsão”.75
O estado de animosidade declarada, promovido na colônia pelos
antifranceses, certamente influiu para que os capuchinhos decidissem buscar
seu espaço entre o gentil dos sertões. O rio São Francisco era o ‘ímã de
atracção’,76 e a experiência mostrou ser ele o campo mais profícuo para o
trabalho missionário. Assim, os capuchinhos se instalaram inicialmente na
missão do Poxim;77 possivelmente desta base subiram o rio São Francisco e
ocuparam a região inferior da Cachoeira de Paulo Afonso, e de lá passaram
para o sertão de Rodelas, onde montaram seu quartel general, no coração
dos domínios da Casa da Torre. Em 1671 frei Anastácio de Audierne
iniciou a missão entre os índios Aramurus na Ilha de São Pedro no Porto da
73 Ver voto de Salvador Correia de Sá sobre a missionação e o povoamento do sertão, Consulta do

Conselho Ultramarino, c. 1675, (AHU, Bahia, caixa 2:105). Apud (PUNTONI, 1998:41).
74 Veja em Pietro Vittorino Regni, Os Capuchinhos na Bahia. O documento referido encontra-se no

Registro de Cartas dos Governadores da Bahia para Pernambuco e mais Capitanias do Norte, fl. 188, carta 437.
(REGNI, 1988, vol.I:146, nota 13); (BN, I, 4, 1, 48), ver também em (DH, vol. 10:112-113).
75 Algum tempo depois o superior dos capuchinhos, em Lisboa, padre Gabriel de Serrent, agradecia a

Martinho de Nantes pela sua carta informando que “sem ela, receava muito que nos houvessem
expulsado do Brasil” (NANTES, [1706] 1979:41); (AHU, cód. 250:4). (REGNI, 1988, vol. I:145-6,
notas 11 e 12).
76 Serafim Leite se referia ao rio de São Francisco como o “ímã de atracção; o sertão intermédio,

campo de exploração progressiva, para melhor conhecimento dos seus indígenas, e também de
competições.” (LEITE, 1945. vol. V:270-1).
77 Há discórdia entre os autores sobre a localização desta missão, Vittorino de Regni dá como

localização a atual Pacatuba, parece que apoiado na informação de Barbosa Lima Sobrinho, nota 39
da Relação do Padre Martinho de Nantes. Creio que Pacatuba realmente existiu como se pode
verificar no Documento XXXI de Regni (lista das nove missões etc.), mas Poxim também existia, não no
rio, mas no litoral ao norte da foz do rio S. Francisco (57 quilômetros). Segundo Martinho de Nantes,
Poxim distava exatamente 20 léguas de Porto da Folha (Aramurus). (NANTES, [1706] 1979:84). O
desacordo pode ser clareado com a descrição constante na Idéia da População da Capitania de
Pernambuco, de 1774 do Governador José Cezar de Menezes, na qual ele descreve a Freguesia de São
José, e Madre de Deos, Curato de Poxim, localizando-as “ao Norte da dita Villa (Penedo) dezoito
légoas: tem de costa cinco, e de fundo as mesmas: confina pelo Norte com a de São Miguel e pelo Sul
com a do Penedo: está cituada em uma amena planície distante do mar três quartos de légua, (...) estar
nas margens do Rio Poxim: tem na sua visinhança huma dilatada lagoa.” (ABN, 1923, volume XL).

169
Folha, região já desbravada e habitada por portugueses desde o século XVI.
(VARNHAGEN, Vol. I:205). Este enclave capuchinho no Baixo São
Francisco experimentou grande florescimento e seus sucessos com a
população ribeirinha chamaram a atenção do governo colonial.
A missão do Porto da Folha havia se tornado um centro de
convivência, e rapidamente se converteu numa espécie de base avançada
nos sertões, de onde os capuchinhos partiam para formar as missões
situadas depois do limite do Sumidouro do rio São Francisco, como
testemunhara o padre Martinho de Nantes durante sua passagem por esta
missão, em meados de 1672:
Enquanto estive na aldeia do padre Anastácio, observei o grande serviço que ele
prestava aos portugueses e aos seus negros, assim como também aos índios. Era
infatigável, ia e vinha, dia e noite, a todos os lugares a que fosse chamado.
Alcançava mesmo dez e doze léguas e ainda mais, cumprindo sua missão,
confessando os portugueses, exortando-os a libertar-se dos maus costumes. Teve
tanto êxito, com o socorro da graça de Deus, que eles se transformaram de todo,
(...) entregando-se à piedade e freqüentando os sacramentos; de sorte que, nos
domingos, somente lá para o meio-dia conseguia começar a missa, tantas eram as
confissões que se faziam. Razão pela qual era muito estimado e muito querido
nesse lugar, e com muita razão, pois que com tanto zelo trabalhava pela salvação
de todos. (NANTES, [1706] 1979:34). 78

78 Vitorino de Regni baseado nesta leitura de Martinho de Nantes, afirma: “Aos domingos, de modo

particular, o lugarejo se transformava numa espécie de Centro Paroquial para onde acorria o povo
dos arredores para se confessar e assistir às funções da igreja, de modo que o Missionário trabalhava
o dia inteiro, sem tempo sequer para alimentar-se” (REGNI, 1988, vol.I:148); ver ainda (NANTES,
[1706] 1979:50).
170
Figura 16 - Cachoeira de Paulo Afonso, Frans Post 1649. Museu de Arte de São
Paulo Assis Chateabriand.

171
Figura 17 - Rio São Francisco. Albernaz, João Teixeira [1616].
Fustigado pelos mazombos, o padre Martinho de Nantes escreveu à
D. Isabel de Saboia, suplicando-lhe que lhes “tomasse sob sua proteção”.

172
(NANTES, [1706], 1979:41). À sombra da rainha, as missões capuchinhas
progrediram prodigiosamente e, em torno de 1675, quando advieram as
guerras dos Anayô, levantados na Região do Curralo, 40 léguas ao poente do
Pambú, região onde alguns anos antes Domingos Jorge Velho andara
desinquietando os índios.79 Em 1674, os tapuias Anaio das sete aldeias dos
“guarguaes” que habitavam, no rio São Francisco, as terras vizinhas aos
currais de João Peixoto se levantaram obrigando aos curraleiros a
abandonar a região. Francisco Dias d’Ávila, parte mais interessada na saúde
econômica daquelas conquistas, se ofereceu ao governador geral para “a sua
custa, fazer guerra ou obrar o que eu lhe mandasse para se seguraram
aquelas povoações”.80 Em agosto de 1674, o capitão Domingos Roiz de
Carvalho, acompanhado de uma tropa de 55 homens de armas e cem índios,
derrotou os Anaio.81
Em janeiro do ano seguinte foi a vez dos índios Galacho, que haviam
dominado mais de 40 currais, matando alguns brancos e seus escravos. A
esta altura o clima de revolta havia dominado os índios, espalhando a turba
numa extensa área na barra do rio do Salitre. Em 1676, Martinho de Nantes
foi convocado pelo Governador Geral para fornecer Cariris flecheiros das
aldeias dos capuchinhos e a tomar parte da entrada, acompanhando o
“capelão ordinário dos portugueses do rio e dois outros religiosos de São
Francisco”. O padre Martinho registra que estes índios haviam dominado
uma extensa área de ambos os lados do rio São Francisco à altura da barra
do rio Salitre, onde haviam liquidado oitenta e cinco pessoas entre escravos
e brancos. O resultado da retaliação portuguesa foi sangrento: quando as
tropas comandadas por Domingos Rodrigues alcançaram os tapuia
levantados, eles já estavam quase mortos de fome e desarmados.
“Renderam-se todos, sob condição de que lhes poupassem a vida. Mas os
portugueses, obrigando-os a entregar as armas, os amarraram e dois dias
depois mataram, a sangue frio, todos os homens de arma, em número de
quase quinhentos, e fizeram escravos seus filhos e mulheres”. Arrematava
Martinho de Nantes, “por minha felicidade, não assisti a essa carnificina;
não a teria suportado, por injusta e cruel, depois de se haver dada a palavra
de que lhes seria poupada a vida.” 82

79 Sobre a passagem dos paulistas no Piauí consultar: (ENNES, 1938), passim; (MAGALHÃES, 1944).
80 Carta do governador geral para Francisco Dias d’Ávila, 08 de julho de 1675, (DH. Vol.VIII:416);
Carta patente, 05 de julho de 1674, (DH, vol.XII:313-15); (DH, vol.VIII:398); Carta patente de
Domingos Rodrigues de Carvalho, 06 de outubro de 1674, (DH, vol.XII:336-8); (CALMON,
1939:81-2); (MAGALHÃES, 1944 (anexos)).
81 Carta patente de Domingos Rodrigues de Carvalho, 20 de outubro de 1677, (DH, vol.XIII:17-21).
82 Relação de uma guerra em que tive que ir, por ordem do governador da Bahia, com os índios de

nossas aldeias, para reprimir o furor dos selvagens que, numa noite, mataram, no rio de S. Francisco,

173
Segundo o cabo desta entrada, o capitão Domingos Carvalho, foram
aprisionados seiscentos índios, entre homens, mulheres e crianças:
Conduzindo-os a pousado, se pretenderam levantar a traição por muitas vezes, e
por evitar o perigo eminente em que estava com duzentos Bárbaros (foram
executados) com o que ficou não só segurando a nossa gente mas dando maior
temor a todas as nações inimigas.83

Nesta guerra o lucro em escravos foi bastante considerável,


animando os portugueses a empreenderem outras iniciativas. No ano
seguinte, sob falsas acusações, o mesmo capitão Carvalho atacou a aldeia da
Cana-Brava nas Jacobinas, fazendo 180 mortos e 500 cativos. Os jesuítas e
capuchinhos interpelaram o governador, conseguiram demonstrar a
injustiça desta nova guerra, e libertar os cativos. Estas ofensivas haviam
deixado naqueles sertões um clima beligerante. Nos meses seguintes
espalhou-se na região das missões o boato de que os Cariri cristãos
preparavam um levante contra os curraleiros. (NANTES, [1706], 1979:57).
Incitados pelas notícias, alguns criadores preparavam defesa, enquanto
outros buscavam alianças com os índios desaldeados Tamaquiô 84 – inimigos
dos Cariri – prometendo em troca de sua ajuda parte nos despojos da
guerra. Martinho de Nantes, então vice-prefeito das missões do São
Francisco, agiu rapidamente e conseguiu desarticular a ação de portugueses,
que manobravam alguns associados ambiciosos e muitos fazendeiros
atemorizados. Todavia, mesmo depois de amainados os ânimos, continuava
crescendo no rio o clima de terror e de ameaça que pairava, na mesma
medida, sobre índios e curraleiros. Martinho de Nantes e seus
companheiros perceberam que, separados em grandes distâncias, estariam
vulneráveis; então, em 1677 passaram a concentrar os esforços na região da
curva do rio a altura de Uracapá e adjacências, onde suas posições pareciam
mais ameaçadas. Não se importando com o furor do senhorio, os capuchos
seguiam com sua obra, trazendo outros missionários para as ilhas vizinhas a
Uracapá, onde foram atuar principalmente junto aos tapuia Cariri e
Rodeleiros, e mais tarde reduzindo outros grupos arredios ou de corso nas
margens do rio. Os primeiros a chegar foram os padres José de

oitenta e cinco pessoas, tanto portugueses como negros, nas suas próprias casas. (NANTES, [1706],
1979:49 e ss).
83 No texto não aparece (foram executados), provavelmente por manha do Domingos Rodrigues,

mas é este o sentido aplicado. Cf. Patente de Capitão-mor da jornada que se faz ás Aldeias da
Natuba, provido em Domingos Rodrigues de Carvalho de 20 de Outubro de 1677. (DH, 1929,
vol.XIII:17-21).
84 Os Tamaquiôs ou Tamaquis eram aliados de Francisco Dias d’Ávila, lutaram com ele ao lado dos

Porcases e Mongurus na entrada do Rio Grande de 1688. Vide Patente de capitão mor das nasçam
dos Tamaquiz, provido em Francisco Dias d’Ávila, (APEB, Livro 5° de Patentes do Governo 1688-
1696). (BARROS, 1920:163-4).
174
Chateaugontier e Teodoro de Lucé, este último então assistente entre os
Cariri na problemática missão da Paraíba.85 Lucé situou-se na aldeia dos
Aramurus no Porto da Folha, onde estava então o padre Anastácio de
Audierne. Este foi transferido para Pambú, de onde atendia outras aldeias
de índios Cariri duas léguas rio acima. (NANTES, [1706], 1979:50),
(REGNI, 1988, vol.I:147). Desta forma, num curto espaço de três ou
quatro anos, a região foi conquistada pelos capuchos.
Para os índios esta era mais que uma ordinária invasão de domínios
como as promovidas por curraleiros, tratava-se de uma ocupação planejada
objetivamente para tomada do seu universo espiritual e cultural. Nota-se na
narrativa dos missionários que, até a chegada dos religiosos, os brancos
conviveram com os índios em ambiente de relativa tolerância cultural, em
alguns casos até de cumplicidade. Com a chegada dos missionários, os
índios ganharam advogados que asseguravam suas vidas. Todavia, se
fisicamente estavam abrigados, no plano cultural ainda não tinham
experimentado inimigos tão pertinazes. A perseguição às práticas
“gentílicas” foi sistemática e agressiva, forçando os nativos a desenvolver
complexas estratégias para se manter abaixo da censura cáustica dos
religiosos.86

Sentindo-se ameaçada em sua soberania política pela concentração


dos missionários em suas possessões, a Casa da Torre iniciou uma série de
hostilidades contra os religiosos, promovendo a invasão da Ilha de Uracapá
com os cavalos do rendeiro João Álvares Fontes, que devoravam as
plantações dos índios. Também colocaram o clérigo secular Pedro Carrilho
como capelão do Pambú, o qual ia atuar como agente da Casa da Torre,
perseguindo e jogando os índios e curraleiros contra os capuchos.
Certamente calculara Francisco Dias d’Ávila que, usando o cura diocesano
para atacar indiretamente os religiosos, permaneceria de mãos limpas na
disputa. A estratégia era pressionar os índios aldeados a evadirem-se das
missões intrigando-os contra os missionários. As missões do São Francisco
eram, entretanto, o último bastião dos capuchinhos no Brasil. Dado a
xenofobia que se nutria contra eles, fora dos sertões de Rodelas eles não

85 Advertência que será com esta. (ANP, Fonds portugais, cód. 25:93-94v e 96). Apud (REGNI, 1988,
vol. I:145).
86 Em 1691 os padres e os índios da aldeia dos Caruru haviam sido “vexados pelos curraleiros

visinhos, por se recusarem a administrar os sacramentos aos que viviam em pecado público,
obrigando-os a buscar sítio diferente para a aldeia, onde pudessem tranqüilamente servir a Deus e à
salvação dos índios, que lhes incumbia converter. Andaram em vão mais de 200 léguas, entre idas e
vindas, para pedir socorro aos senhores das terras, contra os inimigos que confiavam na audácia sem
se guiar pela razão.” Carta do provincial dos jesuítas Alexandre de Gusmão datada de 5 de maio de
1691, (LEITE, 1945, vol. V:299).

175
teriam espaço. Ao lado destas ofensivas, eclodiu nova onda de boatos sobre
um possível levante de índios Cariri contra os curraleiros. Certamente estava
por trás destes boatos a própria Casa da Torre, interessada em criar um
clima insustentável para os religiosos. Os criadores do rio São Francisco
continuavam em permanente estado de alerta depois dos acontecimentos do
rio do Salitre, onde os Anaiô levantados haviam trucidado oitenta e cinco
moradores e escravos no distrito deste rio.
Os capuchos reagiram. Em 1681 o padre Anastácio Audierne, então
vigário provincial, denunciava o “inimigo infernal”, o mestre de campo
Francisco Dias d’Ávila, que perseguia as missões do rio São Francisco e se
opunha à conversão do gentio. Dizia o missionário que este, “posto que
sempre fora contrário àquelas missões nas suas terras”, animado pelo
demônio, buscava desencaminhar as almas há tanto custo conquistadas e
estorvar este serviço a Deus. Audierne declarava em sua carta que passava
então aquele senhorio a “os perseguir às públicas mandando publicar nas
suas terras, que havia de lançar delas a quem os favorecesse com esmolas ou
ajudasse, lançando seis ou sete pessoas principais fora dos partidos que
tinham por serem seus amigos, atemorizando os mais com este exemplo”.87
A denuncia foi apreciada no Conselho Ultramarino, e a 21 de março
de 1681 o Rei despachava segundo o parecer do Conselho Ultramarino
ordenando que se tirasse “devassa com todo o segredo de todos os
procedimentos de Francisco Dias de Ávila, e dê conta a Vossa Alteza com
toda a brevidade, para que nisto se dê aquele remédio que convém e se
proceda contra esse sujeito, quando o mereça a exaltação com que nisto se
houve”.88 Contudo, como em outros casos anteriores, não se tem notícia
deste processo. O Rei bradava mas não agia, e mais esta ordem de devassa
caía em letra morta.
Os capuchinhos perceberam a gravidade da manobra e enviaram
Martinho de Nantes à Bahia a fim de tentar contornar a situação. Cercou-se
de bons argumentos e de aliados importantes, conseguindo convencer o
governador Roque da Costa Barreto (1678-1682) das injúrias do mestre de
campo Francisco Dias d’Ávila. Ciente das ofensivas da Torre, Roque
Barreto ofereceu um salvo-conduto, nos termos do que em 1672 o
Governador Afonso Furtado de Castro Rio de Mendonça concedera ao
padre Anastácio de Audierne na missão dos Aramurus. (NANTES, [1706],
1979:107).
87 Cópia desta carta encontra-se no Arquivo Histórico Ultramarino, Papéis Avulsos da Bahia, 20 de

junho de 1680, anexada ao parecer do Conselho Ultramarino sobre o assunto. (FARIA, 1965:251-95).
88 Consulta ao Conselho Ultramarino de 18 de março de 1681. (DH, vol. LXXXVIII:204-07);

(NANTES, [1706], 1979:108-9, nota n° 8).


176
Vendo desfeitas suas intrigas e acossado pelo governador, Dias
d’Ávila manobrou mais uma vez e procurou o padre Martinho de Nantes
quando este já retornava para o sertão, propondo uma paz negociada para
as missões no sertão de Rodelas. Confessou-se arrependido das intrigas e
prometeu tornar-se padroeiro das missões nas suas terras. O capuchinho,
embora não estivesse perfeitamente convencido das boas intenções do
mestre de campo, viu na sua atitude uma possibilidade objetiva de
consecução de seu projeto no São Francisco e cedeu ao cortejo. Como
prova de sua boa vontade propôs trocar o salvo-conduto que recebera do
governador por uma outra ordem subscrita pelo Senhor da Torre, na qual
ele declarava aos moradores e seus subordinados que em tudo respeitassem
e apoiassem os missionários. Dias d’Ávila, vendo o missionário de guarda
aberta, maliciosamente pediu-lhe uma declaração na qual constasse que
estariam eles, Senhor da terra e missionários, “de boa paz”. Para tanto o
mestre de campo serviu-se da escusa de que tal documento tinha a
finalidade de compor uma súplica de honrarias a ser enviada ao reino, de
que ele se dizia merecedor pelos serviços prestados nas guerras e nas
conquistas de que havia participado.
Encurralado Martinho de Nantes se viu na impossibilidade de negar
o pedido sob pena de pôr a perder a paz prometida. Para sair-se desta
encruzilhada compôs um texto de dúbio sentido nos seguintes termos:
Eu, frei Martinho de Nantes, capuchinho francês, missionário apostólico no
Brasil, junto aos índios chamados cariris, no rio São Francisco, terras do senhor
Francisco Dias d’Ávila por doação do sereníssimo rei de Portugal, certifico que há
sete anos nós fazemos pacificamente, meus companheiros e eu, nossa missão
entre os índios cariris referidos. Feito na Bahia de Todos os Santos, tal dia e tal
mês, do ano de 1683. Frei Martinho. (NANTES, [1706], 1979:82-3).
Na sua ausência Francisco Dias d’Ávila procurou o governador e,
como prova da má fé do missionário, apresentou a certidão. Mais uma vez
os ventos mudaram de direção, desta vez contra a maré dos capuchinhos. O
padre Martinho, já no sertão, noticiado pelos seus pares do oportunismo do
mestre de campo, escreveu uma nova carta ao governador Roque Barreto,
explicando a natureza da malsinada declaração e circunstanciando os
motivos pelos quais a havia concedido. Todavia o governador, irritado com
as sufocantes malinações de um e de outro lado, negou-se a ler ou mesmo
ouvir de imediato os argumentos do padre Martinho apresentados por seus
emissários. Contudo, posteriormente Roque Barreto tomou conhecimento
do teor do documento e, convencido, posicionou-se firmemente sobre o
assunto. A lógica leva-nos a crer que os jesuítas, que estavam vivamente
interessados nos resultados das contendas dos capuchinhos com a Casa da

177
Torre, tenham intercedido ou mesmo advogado a causa do padre Martinho,
como veremos adiante.

Jesuítas no rio São Francisco.


Durante uma década (1672 – 1682) os capuchinhos permaneceram
livres da concorrência de outras ordens religiosas no sertão de Rodelas,
período de maior prestígio de suas missões. Com a morte de Dona Isabel de
Sabóia em 168389 perdem sua protetora na corte, e mais uma vez se
intensifica o clima xenófobo antifrancês, acentuado depois de 1695, quando
se descobrem as Minas Gerais. Parece que os capuchinhos se aperceberam
que, com a morte da Rainha, não mais seria permitida sua expansão.
Procuraram, então, atrair religiosos de outras ordens para garantir a
continuidade do projeto missionário no São Francisco. Em 1683, o padre
João de Barros, superior da aldeia de Santa Tereza de Cana Brava,
“amiudava então as relações com os índios do Rio São Francisco”. (LEITE,
1945. Vol. V:293). Dois anos mais tarde, registrou o padre Martinho de
Nantes a visita de dois reverendos padres missionários jesuítas. Um era o
irmão João de Barros, e “um outro italiano” não identificado. Vinham
“expressamente de setenta léguas de distância para visitar a nossa missão,
em conseqüência do grande renome que havia conquistado, e
permaneceram três meses inteiros com os nossos missionários do rio de S.
Francisco”. Era uma sondagem preparatória à expansão das suas missões
das Jacobinas para a região do rio São Francisco.
Segundo Martinho de Nantes estes religiosos teriam ficado
vivamente impressionados com os resultados obtidos pelos capuchinhos
nestes sertões, e espalharam sua fama nos meios públicos da Bahia: “foram
mesmo, com os seus louvores, até o ponto de dizerem da aldeia de Uracapá
que ela parecia mais um convento de religiosos disciplinados do que uma
assembléia de cristãos leigos”. Martinho chamou para si a iniciativa do
convite para os jesuítas “participarem dos frutos que estavam sendo obtidos
junto ao gentio do rio S. Francisco, fundando missões, o que eles realmente
aceitaram”. Segundo o missionário, os jesuítas, “ficaram tão reconhecidos,
que, além dos testemunhos favoráveis com que distinguiram nossas
missões, tinham a humildade de declarar que nos éramos os fundadores de
sua missão”. (NANTES, [1706], 1979:18-9). Serafim Leite não se refere a
este fato, prefere destacar apenas que o padre João de Barros “já estava em

89 Dona Isabel de Sabóia faleceu em setembro de 1683, substituída no trono de Portugal, por D.

Maria. (NANTES, [1706], 1979:119, nota 36).


178
contato com os índios da Aldeia de Zorobabé90 desde 1669”, e que desde
1683 preparava suas missões com os índios do rio São Francisco. (ARSI, Bras
3:85); (LEITE, 1945. Vol. V:293).
Pouco depois já aparece na documentação jesuítica o registro de
algumas aldeias administradas pela Companhia de Jesus no rio São
Francisco. Em 4 de Junho de 1687 o provincial Alexandre Gusmão
informava que o padre João de Barros, “mandara fundar duas aldeias de
Quiriris, uma de Acarás e começar outra de Carurus, que com as fundadas
nos provincialatos anteriores perfaziam ao todo seis missões de Tapuias”.
(ARSI, Bras 3:234), (LEITE, 1945. vol. V:294). A Carta Anua de 1690-1691
registra o estado das cinco missões jesuíticas fundadas pelo padre João de
Barros no rio São Francisco, que então reuniam 3900 almas, divididas em
duas aldeias maiores e três menores. “Os padres assistiam até agora em uma
principal e visitavam as outras. Agora assistirão em duas ainda que uns
sejam Acarases e outros Procases, diferentes na língua para dobrar o
merecimento”. (LEITE, 1945, vol.V:295).

Novas disputas com a Casa da Torre


A expansão da Companhia de Jesus para o sertão de Rodelas não foi
um movimento pacífico. Não obstavam a Francisco Dias d’Ávila as
promessas de não agressão assentadas em 1669 e reafirmadas em 1675.91 O
senhor da Torre estava convencido da ameaça que representavam
missionários em suas terras. De certo que a experiência mostrara também
ser o confronto direto com os religiosos uma faca de dois gumes. Se em
1669 Francisco Dias nos sertões das Jacobinas optara pela truculência da
defenestração, agora agia mais sutilmente, colocando índios a seu partido,
atiçando-os contra os missionários, reeditando a tática que usara contra os
capuchinhos em 1681,92 conforme narra Martinho de Nantes:

90 Zorobabé é o nome de um antigo chefe tapuia, aliado dos portugueses desde a época das guerras

contra os holandeses, de quem a ilha na barra do rio Pajeú, onde se assentara uma das missões dos
jesuítas, herdara o nome.
91). Parecer do Padre Antônio Forti de 19 de agosto de 1669. (ARSI, Bras 3 (2)94-94v; Bras 26, 34).

(LEITE, 1945.vol. V:285).


92 Em consulta apreciada pelo Conselho Ultramarino a 18 de março de 1681, o provincial dos frades

menores capuchinhos denunciou arbitrariedades do coronel Francisco Dias d’Ávila que, por
intermédio de um capelão diocesano, incitava os índios contra os missionários na tentativa de
desestabilizar suas missões. (NANTES, [1706], 1979:110-1, nota 8); (DH, vol. LXXXVIII:204-7 e
vol. LXVIII)

179
Cerca de seis meses antes da morte do senhor arcebispo,93 houve uma grande
disputa entre o coronel Francisco Dias d’Ávila e os reverendos padres jesuítas,
por causa de uma missão no rio São Francisco, pois que atirara os índios contra
os referidos missionários, por meio de seus emissários, levando os índios a fugir,
dando-lhes presentes, não querendo que os reverendos padres jesuítas tivessem
missões em terras do rio São Francisco. (NANTES, [1706], 1979:90).
Esta reação estava intimamente relacionada com a movimentação
dos jesuítas para assegurarem terras para as missões no rio São Francisco.94
Desta feita os jesuítas não se calaram diante do ultraje, “apresentaram
queixas a monsenhor o arcebispo e ao senhor governador contra o coronel
e o fizeram citar perante a Relação, que é o parlamento do país,” revela-nos
Martinho de Nantes. Não encontramos na documentação pertinente o
registro destas denúncias nem a pormenorização dos fatos, contudo
acreditamos que os inacianos preparavam uma resposta exemplar para o
mestre de campo Dias d’Ávila. Confiados nas públicas diferenças entre
capuchinhos e o Senhor da Torre, os jesuítas procuraram Martinho de
Nantes no convento da Bahia para que este se “reunisse a eles” numa
aliança contra o inimigo comum. Diz o Padre Martinho:
Estavam decididos a levar por diante a questão com energia e que, infalivelmente,
obteriam todo o êxito que poderiam desejar, uma vez que diversas queixas já
haviam sido produzidas contra ele na Corte, no passado, sempre por motivos
semelhantes; que ele já era conhecido como inimigo das missões. (NANTES,
[1706], 1979:93).

O coronel Francisco Dias d’Ávila sentia-se acuado pelas sucessivas


denúncias sobre sua hostilidade contra missionários, como a que fora
apresentada pelo próprio governador em 16 de Março de 1681 ao Conselho
Ultramarino. (DH, vol. LXXXVIII:204-7). Não obstante a maculada relação
que o separava do padre Martinho de Nantes, foi se aconselhar com ele
sobre suas diferenças com os jesuítas. Sobre este encontro registrou o
capuchinho:
Ouvi com a maior atenção, disse-me que estava resolvido a antes perder todos os
seus bens do que admitir os padres jesuítas naquela missão, conhecendo bem,
dizia, os seus desígnios (dos jesuítas) e a sua habilidade para se tomarem senhores
dos lugares em que pusessem os pés. (NANTES, [1706], 1979:90-1).

93 Este fato deve ter se dado em fins de 1685 ou começo do ano seguinte pois frei João da Madre de

Deus, franciscano, segundo arcebispo do Brasil (1683-1686) “chegou ao Brasil em 20 de março de


1682 e morreu no exercício do cargo aos 13 de junho de 1686 na epidemia de febre amarela “bicha”
que assolara a Bahia.” (NANTES, [1706], 1979:120, nota 41).
94 Lei de 1° de Abril de 1680 que garantia terras para os índios misionados. (AAPB, vol. 29:221-2).

Apud (REGNI, 1988, vol. I:125).


180
O sempre atento padre Martinho reconhecia o poder da Companhia
de Jesus, tanto na colônia quanto na Corte, lembrava ao Senhor da Torre
que o confessor do rei era um jesuíta, e que eles estavam “presentes a todos
os lugares”. Nesta ocasião teria o capuchinho orientado o mestre de campo
lógica diferente da que seguia, indicando que ele se antecipasse aos fatos e, a
motu proprio, oferecesse as terras se disputava, ajudando-os a construir a
igreja projetada, pois esta seria a forma de inverter a ordem dos
acontecimentos, conquistar sua conveniente amizade e, “atrair as bênçãos
de Deus e a estima geral”, levando os reverendos padres jesuítas a
“tornarem-se seus panegiristas”. Não havia muito espaço para manobras, de
forma que o mestre de campo anuiu com a orientação e procurou a
composição que se impunha. Assim Martinho de Nantes conclui seu relato:
O assunto foi logo levado a monsenhor o arcebispo e ao senhor Marquês das
Minas, que era então o governador. Reuniram-se os membros da Relação (é assim
que se chama o parlamento da região). Convieram todos, facilmente, nas
condições propostas pelas duas partes, estando presente o coronel Dias d’Ávila,
disposto a concordar com tudo. Lavraram um documento autêntico, firmando o
acordo realizado, e todos ficaram satisfeitos. (NANTES, [1706], 1979:92-3).
Esta composição permitiu que os jesuítas desenvolvessem por mais
alguns anos, em relativa liberdade, suas missões. Contudo, enquanto as
missões jesuíticas e capuchinhas se espalhavam pelos domínios da Casa da
Torre, esvaiam-se as promessas de vida pacífica oferecida por Francisco
Dias d’Ávila, reacendendo os problemas de convivência com os religiosos.
Aos 5 de maio de 1691 o provincial dos jesuítas, Alexandre de Gusmão,
informava o despejo dos padres e os índios da aldeia dos Caruru.95 (LEITE,
1945.vol. V:299, nota 3).
Vexados pelos curraleiros visinhos, por se recusarem a administrar os
sacramentos aos que viviam em pecado público,96 obrigando-os a buscar sítio
diferente para a aldeia, onde pudessem tranqüilamente servir a Deus e à salvação
dos índios, que lhes incumbia converter.97
Em Abril de 1691 morreu o padre João de Barros, deixando no rio
São Francisco apenas uma residência da Companhia de Jesus, governada
pelo padre Agostinho Correia, secundado pelo padre Francisco Inácio, que
partia desta base para prestar assistência espiritual a outras aldeias vizinhas.
(LEITE, 1945.vol. V :297). Em 1696 havia em Rodelas e adjacências quatro

95 Aldeia dos Caruru ou Caruruzes, formada em 1687.


96 Este evento seguramente tão relacionado com a movimentação de regularização fundiária das
missões empreendido pelos jesuítas, quanto com o combate ao pecado público.
97 “andaram em vão mais de 200 léguas, entre idas e vindas, para pedir socorro aos senhores das

terras, contra os inimigos que confiavam na audácia sem se guiar pela razão.” (LEITE, , 1945.vol.
V:299).

181
grandes missões, a saber: Missão dos Rodellas cujo superior era o padre
Phelipe Bourel; Aldeia dos Zorobabé que abrigava as nações Caruruz e
Tacuruba, missionário João Guincel e o irmão Manuel Ramos; Aldeia do
Acará, fundada em 1672, cujo missionário era o padre Francisco Inácio
auxiliado pelo irmão Gabriel da Costa; e a Aldeia do Curumambá regida pelo
padre Agostinho Correia e o irmão Antônio Ferreira. (LEITE, 1945.vol.
V:302-3).

Expulsão dos jesuítas do rio de São Francisco.


O clima de animosidade foi constante e crescente na vida das
missões jesuíticas no São Francisco. Em 1694 faleceu o mestre de campo
Francisco Dias d’Ávila, deixando em aberto sua pendência com os
inacianos. Aos 18 de Junho de 1696, sem a influência política do senhor da
Torre os jesuítas obtiveram de D. João de Lencastre, governador general do
estado do Brasil (1694-1702), ordem para demarcação das terras das aldeias
de sua administração no São Francisco.98 Um mês após a expedição da
ordem, o padre Felipe Bourel, superior das missões de Rodelas, iniciou a
demarcação, começando pela aldeia do Acará, depois a do Corumambá, e
finalmente a aldeia do Zorobabé.
A reação foi imediata. Dois dias após a demarcação feita pelo padre
Bourel, os rendeiros do Morgado se reuniram na casa do procurador da
Casa da Torre, o sargento-mor Antônio Gomes de Sá,99 e decidiram
despejar os jesuítas. Ajudados pelos índios da aldeia da Varge, administrada
pelos capuchinhos e por um franciscano nomeado na memória dos jesuítas
apenas como ‘padre Agostinho’. No dia 26 de Julho os índios, liderados
pelo capitão Fernandinho, despejaram os missionários das aldeias do Acará
e Corumambá, e no dia seguinte o da aldeia dos Caruruzes na Ilha do
Zorobabé. Depois da saída dos padres derrubaram a igreja e a casa da
residência. Os missionários deixaram para trás seus pertences, e foram
constrangidos a viajar sem mantimentos. Em 19 de Novembro de 1696, o
provincial na Bahia, padre Alexandre Gusmão, assinava um documento

98 Ordem que passou o Senhor Dom João (Dom João de Lencastro) sinalando districto a três aldeas

do Achará, Rodelas e Caruru no Zorobabé (Anexo n° 3 à consulta ao Conselho Ultramarino de 18 de


Junho de 1696 – (AHU – P.A. BA, capilha 1697). (REGNI, 1988, vol. I:325-6); (FONSECA,
1996:96-7).
99 Mais tarde o sargento-mor Antônio Gomes de Sá vai se envolver noutro caso de despejo, desta

feita no Rio Grande do Sul, contra o vigário da freguesia e contra o juiz ordinário. Veja este caso no
Capítulo Governo dos Homens.
182
redigido pelo padre Felipe Bourel, narrando o despejo dos seis jesuítas
expulsos do rio São Francisco.100
De conhecimento dos fatos, D. Pedro II emitiu Carta Régia de 20
de Janeiro de 1698 ao Conde de Alvor, Governador Geral do Brasil,
ordenando que o ouvidor da comarca de Sergipe Del Rei tirasse uma ‘exacta
devassa desta expulsão’ dos jesuítas. O rei indicava para atuar como juiz do
processo o chanceler da Relação e cinco desembargadores, instruindo que
se procedesse com o rigor e a atenção que a matéria pedia. Consciente do
poder e prestígio dos agressores, o rei alertava para que se desse ‘execução
tudo o que se sentenciar contra os agressores’. Ordenava ainda a imediata
restituição das missões aos padres jesuítas:
Façais com que sejam logo restituídos os mesmos Religiosos às Aldeias e terras de
que foram [violentamente expulsos], sem ser necessário que se espere pela última
conclusão da sentença que sôbre a posse destas terras corria, pois se cometeu um
atentado para os privarem delas, sem ser por aquêles meios que dispõe a Lei,
passando-se ao excesso de tão ignominiosamente os tirarem e sem aquêle respeito
que se devia ao seu estado e às suas pessoas, e a uns Missionários que com tanto
fervor exercitavam as suas obrigações no pasto espiritual daqueles índios. E de
tudo o que se obrar neste particular me dareis conta para me ser presente o
procedimento que se há tido nêle.101
A Casa da Torre parece não ter sentido abalo em seu prestígio, nem
na Bahia nem em Lisboa. Ao contrário, nos anos seguintes verifica-se que
os Dias d’Ávila continuam influindo na distribuição de postos de
ordenanças, indicando ouvidores e juizes ordinários para o sertão de
Rodelas, que haviam sido lá colocados pela coroa para servirem de fiscais
públicos contra a violência da própria Casa da Torre. Era a política da
retórica sem lastro pragmático. Enganam-se, entretanto, os que enxergam
nesta atitude uma acefalia ou desgoverno português. Não reagir de forma
aparente, ou fingir não fazer nada era, em certas ocasiões, política tão
presente quanto intervir ostensivamente. A condução dos interesses da
coroa portuguesa nesta parte das conquistas não se portavam ao gosto da
corte; em Portugal se preparavam mudanças radicais que fermentavam ao
calor das disputas locais. A violência campeante, a ação despótica da Casa
da Torre e a independência dos missionários clamavam por uma resposta

100 Relação da maneira com que se botarão os PPes da Cormp.a de JESVS fora das suas missões no Rio de S.
Francisco, Baia, aos 19 de Novembro de 1696, Alexandre de Gusmão”. (APP, pasta 188:17); (ARSI,
Bras. 4:24v-25). (LEITE, 1945, vol. V:300-4).
101 Carta Régia ao Governador Geral do Brasil, ordenando que o Ouvidor da Comarca de Sergipe

d’El-Rey fosse tirar devassa contra Leonor Pereira Marinho e Caterina Fogaça sobre a expulsão dos
padres Jesuítas do São Francisco. Lisboa a 20 de Janeiro de 1698. (BARROS, 1920:330-1). Ver
também no (APEB, Livro 6° das Ordens Régias (1698-1699) f. 31 (a lápis) n°, 3-1-5). (LEITE, 1945.
vol.V:305).

183
firme; todavia, a Coroa se movia lenta e sorrateiramente, programando uma
ação planejada para minar em longo prazo as bases estruturais da política da
Torre, e promover a retirada de jesuítas e capuchinhos de Rodelas.
Nem a coroa nem os senhores desejavam ficar imobilizados pela
ação da igreja, como acontecera no litoral, sufocando a administração e a
fazenda portuguesa. Rodelas e sertões adjacentes eram um campo
estratégico no interior. As promessas de riquezas, especialmente minerais,102
e os estimulantes resultados da pecuária em época de crise açucareira faziam
das novas conquistas um espaço privilegiado, que a coroa queria deixar
longe das garras dos religiosos. É isto o que vai acontecer quase um século
depois com as Minas Gerais, onde a coroa criou um mercado reservado e
altamente controlado, no qual a igreja não foi permitida, nem tampouco a
ação de grandes seesmeiros. Todo o processo colonial nas minas foi
apropriadamente protegido para evitar os desconfortos observados no
litoral.
Apesar do barulho feito pelos jesuítas e a mise-en-scène da Coroa,
parece que a reação oficial resumiu-se à ordem de devassa que, muito
provavelmente, nunca teve termo. O gesto do governo parece falar muito
mais através do gélido silêncio dado ao caso. Com esta reação os jesuítas se
aperceberam da situação e, apesar da ordem real, não aceitaram mais as
missões do rio São Francisco. Vencidos pela violência e conscientes da
política tinhosa portuguesa, antes que lhes caísse a foice ao pescoço,
escolheram a saída mais honrosa: a renúncia das missões do rio São
Francisco como registrou o padre Alexandre Gusmão:
E a nós também se havemos de ter uma contínua desinquietação dos currais,
bois, éguas e vaqueiros visinhos, contra o costume das outras aldeias, que tem
distrito desimpedido; e se hão de ver esses exemplos repetidos e impunes; e se
havemos de ser missionários da Casa da Torre a seu mando e não missionários da
Companhia à ordem e obediência unicamente de sua Majestade e de quem esta
em seu lugar, para bem dos índios não convém voltar. (AHU, P.A. BA, 1697).
(REGNI, 1988, vol. I:128).

A devassa anunciada na carta de 20 de janeiro de 1698, e novamente


encomendada no Alvará de 23 de novembro de 1700,103 nunca teve termo;
102 É farta a documentação acerca da pesquisa mineralógica e do esforço de particulares em busca da
prata, ouro e salitre desde o século XVI. A julgar pelos indicativos de aventureiros, fica claro que a
coroa tinha ciência de que mais cedo ou mais tarde o minério apareceria. Estas evidências permitem-
nos tratar com a tese de que a coroa portuguesa tratou logo cedo de cortar o mal pela raiz, tirar os
possíveis concorrentes futuros, dos quintos e políticas reais.
103 “Eu El Rey faço saber aos que este meu Alvará em forma de Ley virem, que por ser justo se de

toda a providencia necessaria a sustentação dos Parochos, e Missionarios, que assistem nos dilatados
certões de todo o Estado do Brazíl, sobre o que se tem passado repetidas ordens, e que não executão
pela repugnancia dos Donatarios e Sismeyros , que possuem as terras dos mesmos Certões: Hey por
184
nenhuma ação punitiva imediata teve lugar no sucesso dos jesuítas. Sobre
isto diz João Justiniano da Fonseca:
Não encontrei notícia, nem em Serafim Leite nem em outro qualquer autor, de
que se punissem os culpados, como tão firmemente mandara a ordem imperial,
(...) definitivamente a ordem Real se diluía sem cumprimento. Este era mais um
alvará para nada. Acumulavam-se sem cumprir-se, as leis e alvarás para que se
distribuísse a terra ao índio. Tendo ficado sem nenhum efeito a demarcação que
pôs expulsos os jesuítas, não se fez nova sinalização nem se confirmou aquela.
(FONSECA, 1996:101-2).104

Como num jogo, tudo se compunha politicamente. Deixar os


vassalos da Casa da Torre se engalfinharem com missionários até que eles
expulsassem os jesuítas do São Francisco parecia ser uma boa tática, armada
para excluir a poderosa Companhia de Jesus dos sertões, deixando limpas as
mãos do Rei. Aceitar esta hipótese permite-nos entender como a Coroa
jogando com forças conflitantes, consegue livrar-se de missionários
incômodos, enquanto demonstrava abertamente que fazia o que podia para
defender os direitos dos índios, a expansão da fé e a igreja no São Francisco.
Contrariando Serafim Leite – que entendia a instituição dos juizados
ordinários como reflexo da Coroa Portuguesa à expulsão dos Jesuítas do
São Francisco em 1696 (LEITE, 1945. Vol.V:306) – acreditamos que esta
era uma ação que há muito tempo se maturava, coincidindo com o fato
sucedido com os Inacianos que, posteriormente, deu oportunidade a uma
justificativa mais ampla ao assunto. A prova disto é que o decreto de criação
dos juizados ordinários antes referido apóia-se indiretamente no relato de
Miguel do Couto sobre a violência no sertão de Rodelas e na consulta à
Junta das Missões sobre o caso da ‘decadência dos costumes’ do presídio
dos Palmares,105 não invocando em sua fundamentação os acontecimentos
da defenestração da Companhia de Jesus ocorrida um ano antes. A criação
das ouvidorias da Bahia e Sergipe, e a instalação dos juizados ordinários no
sertão devem ser entendidas em um ambiente mais complexo. Em primeiro

bem e mando que a cada uma Missão se dê uma legoa de terra, em quadra para sustentação dos
Indios e Missionarios” in Alvará de 23 de Novembro de 1700 sobre a medição da Legoa de terra para
as aldeas. (ABN, 1906, vol. 28).
104 Dizia Beredo Pereira na memória panegírica dedicada ao governador de Pernambuco: Breve

Compêndio do que vai obrando neste governo de Pernambuco o Senhor Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho:
“a primeira coisa que faziam os que intentavam mandar matar era primeiro procurar o dinheiro para
o salário das devassas que se tiravam, que muitas ficavam no esquecimento do tempo” (BUC, cód.
388:274-88), .(MELLO, 1979, RIAHGP, vol. 51).
105 Ver Consulta a Junta das Missões sobre o remédio temporal que se deve dar no Sertão de

Rodellas, e suas povoações, para se evitarem os repetidos e atrozes casos que ali se sucedem in Carta
régia ao Governador da Capitania de Pernambuco Caetano de Mello de Castro, sobre as mortes e atrozes casos que
sucedem no Sertão das Rodellas, e mandar que haja de cinco em cinco léguas um Juiz ordinário. Lisboa a 16 de
Fevereiro de 1698. (AHU, cód. 256:66).

185
lugar como medidas para salvaguardar a segurança individual dos
povoadores – freqüentemente desperdiçados pelos assassinatos encobertos
pela justiça privada local – essencial ao desenvolvimento das conquistas dos
sertões, e em segundo lugar como expressão da transferência de poder de
missionários e senhores de terras para a esfera do poder real.

O colapso das missões capuchinhas.

Em agosto de 1686 Martinho de Nantes recebeu no rio São


Francisco o padre Bernard de Nantes, que trazia ordem do provincial para
o substituir em sua missão de Uracapá. A mudança no time capuchinho do
sertão de Rodelas privava-os de um defensor aguerrido, marcando o final de
um período de acaloradas disputas. Bernard de Nantes, mais
condescendente com o poder político local, trouxe às missões um período
de calma relativa. A retirada de Martinho de Nantes do São Francisco, justo
no momento em que re-emerge o clima antifrancês após a morte de D.
Isabel de Sabóia, nos parece sugerir uma manobra estratégica, deliberada no
intuito de aquietar o ânimo dos embates políticos com a Casa da Torre.
Dois anos após a saída de Martinho de Nantes das missões do São
Francisco o rei advertia os governadores das capitanias da Bahia e Rio de
Janeiro para que “não esperassem a chegada de novos missionários
franceses” e que atendessem suas demandas com religiosos do próprio
Brasil.106
O ponto nevrálgico das relações da Santa Sé – via Propaganda Fide
– com a Coroa Portuguesa estacionava no infindável debate acerca da
fidelidade vassalar versus a fidelidade pontifícia dos vigários apostólicos
assistentes nas missões do Brasil. Portugal, por seus privilégios padroais,
julgava-se no direito de exigir do clero atuante no Brasil um juramento de
fidelidade, que conflitava com os princípios básicos de independência
reservado pela Propaganda Fide a seus missionários. Em suma, o juramento
ao monarca português anulava os privilégios da Propaganda Fide, e a
enquadrava na camisa-de-força padroal. Sem o poder de arbítrio sobre o
clero local e sem poder nomear seus bispos, a Santa Sé influía pouco sobre
o clero brasileiro. Portugal servia-se do impasse para promover
paulatinamente a insustentabilidade dos apostólicos, através da
impossibilidade de renovação do quadro de obreiros. De forma que, “é mais
correto falar de extinção gradual por falta de forças renovadas que de
expulsão dos franceses”, como bem resumiu Vittorino de Regni.
106 Carta de 15 de março de 1688 ao Governador da Bahia, (DH, vol 68:216-7); e na mesma data

Carta ao Governador do Rio de Janeiro, (AN, cód. 952, 4:187-8). (REGNI, 1988, vol. I:233-4),
186
Missionários velhos e doentes diminuíam o poder de ação das
missões, a situação agravava-se a cada ano, até que em 1692, sem esperanças
de receberem reforço de suas ordens, os capuchos aceitam prestar o
juramento de fidelidade ao rei de Portugal.107 Era tarde; mesmo acordando
em testemunhar a fidelidade exigida não mais lhes foi permitido o ingresso
no Brasil. Esgotadas as possibilidades diplomáticas, em 1693 dois frades da
província bretã foram enviados clandestinamente ao Rio de Janeiro,
contudo a manobra foi descoberta, o comandante do navio que conduziu os
religiosos foi preso, e os frades repatriados, (REGNI, 1988, vol. I:243).
complicando ainda mais a já delicada situação. No ano seguinte o provincial
dos capuchos bretões dirigiu-se pessoalmente a Lisboa na tentativa de
recompor-se perante a corte lusitana e buscar uma última vez a
complacência dos portugueses. A viagem foi em vão: D. Pedro II (1648-
1706) manteve firmemente sua decisão. Martinho de Nantes, em sua relação
assim resumia o fim das missões dos franceses no rio São Francisco:
A Corte de Portugal exigia de todos os missionários estrangeiros um juramento de
fidelidade que, no começo, era legítimo na sua forma, e estava mesmo de acordo
com o direito natural e divino. Mas depois lhe acrescentaram indevidamente um
prazo obrigatório. A Corte de Portugal, cheia de desconfiança, acrescentou
circunstâncias de tal forma onerosas, que a Sagrada Congregação proibiu o
juramento. Assim, todos os nossos missionários, que haviam vindo da França, em
número de oito, foram obrigados, como eu mesmo, a deixar nossas missões. A
obediência me convocou em primeiro lugar; os outros vieram depois. (NANTES,
[1706], 1979:94).

No final de 1700 aporta em Lisboa o padre Bernard de Nantes, após


permanecer por vinte e três anos no Brasil. Na capital lusitana encontrara
um grupo de capuchinhos que buscavam insistentemente obter a licença do
rei para socorrerem suas missões no Brasil. Aproveitando a ocasião da
presença do padre Bernard, o embaixador da França em Portugal o
presidente Rouillé, tentou mais uma vez convencer Dom Pedro II a rever
sua posição, mas encontrou o rei irredutível. A negativa era também a
resposta política ao rei da França. Assim em concordância com o provincial
dos capuchinhos, a 21 de outubro de 1700, o embaixador da França
escreveu ao seu rei em Paris, sugerindo que se deviam recolher os
capuchinhos franceses que ainda estavam no Brasil.108 No final do ano de

107 Carta de 4 de março de 1692 do Embaixador francês em Portugal para o Rei de França
comunicando: “quoyque les capucins françois ayent offert de faire au roy de Portugal le sarment de
fidelité, ou leur neanmois refuse de pouvoir a l‘avenir passer aux missions du Brésil” (QO, Portugal,
28:340v-341) – Apud (REGNI, 1988, vol. I:238).
108 Sobre o colapso das missões capuchinhas francesas no Brasil: (FARIA, 1965); (MAGALHÃES,

1944:289 e ss); Documentos coligidos por Cícero Dias no Catálogo de Documentos Referentes ao Brasil,
página 31 e seguintes, páginas 162, 166, 182, 183 e 185; e ainda (REGNI, 1988, vol. I:233 e ss).

187
1701 chegaram a Lisboa parte dos missionários do Brasil e os últimos
deixaram o Brasil em meados do ano seguinte.
Com a retirada dos padres franceses, El-Rey designou para as
missões deixadas pelos capuchinhos os padres terésios, que as ocupariam
por curto período. Em 1709, Garcia d’Ávila, herdeiro do finado Francisco
Dias d’Ávila, escreveu ao rei solicitando a substituição destes pelos
capuchos de nação italiana, alegando o pouco fruto que estes religiosos
tinham feito na cristandade do rio de São Francisco. O rei resolveu ser
conveniente a mudança:
Por ordem minha, e ser conveniente ao serviço de Deus e salvação daquelas
almas, entregaram-se as ditas missões aos capuchos italianos, por serem os mais
úteis nelas, como a experiência tem demonstrado no exemplo de sua vida, e
desinteresse dos bens humanos, pois só tratam da salvação das almas, e se
contentam com o que lhes dá a Providência Divina, no que se evita a despesa que
a Fazenda Real faz de trinta mil-réis cada ano de ordinário a cada um dos
missionários teresos. Fui servido resolver que os religiosos capuchos italianos
assistam às missões do distrito do rio de São Francisco, que ocupavam os
religiosos teresos, para o que mandei avisar nesta Corte ao superior dos capuchos
italianos, assista com os religiosos que forem necessários para as tais missões. E a
vós vos ordeno por esta mandeis suspender as despesas que se fazia com os
missionários de Santa Teresa todos os anos para suas côngruas da Fazenda Real,
porquanto Garcia de Ávila Pereira se obriga a assistir com a sua aos missionários
italianos, quando necessitem de alguma cousa para o seu sustento. (Carta ao
Governador Geral do Estado do Brasil, de 10 de dezembro de 1709. DH, vol 34:310-1).

Assim, a expulsão dos jesuítas e o sufocamento das missões


apostólicas francesas no Brasil no final do século XVII, fecham uma era de
intensa combatividade nos sertões interiores do nordeste do Brasil. É
curioso notar que as mudanças políticas que aparentemente causaram o
colapso das iniciativas dos inacianos e dos capuchos, começaram a partir de
1688, quando foi proibida a entrada de novos missionários franceses e
ganham força no reinado de Dom João V (1689 - 1750), decisivamente
orientado à pesquisa/produção mineral e a dilatação das fronteiras da
América portuguesa. Seu reinado foi a era da mineração do ouro e dos
diamantes, sob cujo efeito as frentes coloniais se expandiram
prodigiosamente para o centro-oeste e Amazônia, coadjuvado pelos
religiosos, notadamente os jesuítas e capuchinhos, como bem notou Lúcio
de Azevedo. (AZEVEDO, 1947) ; (AZEVEDO, 1950). Moura Neto
lembra que os “ganhos de capitais em terras e riquezas exigiram
mecanismos de controle que afetavam os direitos anteriormente concedidos
às missões”.109 De forma que apesar de cumprir papel fundamental neste

Introdução de Carlos Araújo Moura Neto à edição peruana dos Annais Históricos do Estado do
109

Maranhão de Bernardo Pereira de Beredo. (BEREDO, [1718], 1989:XLVII).


188
momento colonial, os religiosos perceberam duras mudanças na sua
condição de parceiros da expansão portuguesa, especialmente a partir da
última década do século XVII.
Assim, a retirada de jesuítas e capuchinhos, que à primeira vista
pode parecer com uma vitória do poder senhorial sobre o poder
eclesiástico, e até mesmo sobre o poder real, deve ser vista como prenúncio
de uma nova batalha, onde o poder real, sutil e decididamente, passava a dar
as cartas no jogo colonial que, no decorrer da primeira metade do século
seguinte, iria modificar a paisagem política do sertão ‘feudalizado’. Neste
ambiente de câmbios, a clientela missionária – os tapuias do grande rio –
se depararam com uma nova ordem, que os obrigaria a desenvolver
renovadas estratégias de associações, marcadas principalmente pela
submergência na identidade mestiça sertaneja. Agarrados aos núcleos
familiares e fazendas surgia o agregado, uma forma disfarçada de servidão que
atendia as demandas locais de mão-de-obra sem a tensão da escravidão, e
sem comprometer totalmente a liberdade dos que a ela ‘voluntariamente’ se
submetiam. Assim, melancolicamente se encerra o capítulo do primeiro
ciclo missionário no São Francisco com os inacianos e capuchos,
ironicamente se submetendo ao “auto-exílio”.

189
190
O Governo dos Homens
A instalação do poder civil no Sertão de Rodelas

“e assim vivem estes homens sem lembrança da


outra vida, com tal soltura na que passam, como se
não houvesse justiça, porque a de Deus não a teme
D. Frei Francisco de Lima e a da terra não lhe chega.”
Bispo de Pernambuco (AHU, P.A. PE, Caixa 9).

1. O Governo dos homens.


Após o assentamento do governo geral em Salvador da Bahia em
1549 e da conseqüente introdução de estruturas de controle civil, tais como
freguesias, bispado, ouvidorias, provedorias, fazenda real, câmaras, senado
das vilas, ordenanças, capitanias-mores e, finalmente, o próprio governo
burocrático, findou criada uma estrutura que passou a controlar a vida
pública dos brasileiros, conferindo status e fisionomia ao estado colonial. A
aplicação da nova ordem demorou-se no primeiro século na costa; a
conquista dos sertões foi um processo lento, e os ‘avanços’ da vida civil só
foram alcançar o interior no último quartel do século XVII. Até então valia
uma forma de governo de determinação livre, conduzida pelos senhores de
terras, e por alguns poucos que, de alguma sorte, haviam conseguido
acumular qualquer tipo de poder ou prestígio – econômico, político ou
militar – tais como os bandeirantes paulistas, missionários ou alguns
afidalgados ligados à burocracia. “Muito tempo”, dizia Capistrano de Abreu,
“viveu esta gente entregue a si mesmo, sem figura de ordem nem
organização”. (ABREU, 1954:223). Estes pioneiros estabeleceram regras de
convívio, muitas vezes marcadas pela violência e por práticas
comportamentais adversas aquelas previstas nos estatutos cristãos.
Sem embargo do papelório oficial derramado para coibir os
excessos, ondas de violência se reproduziam em cadeia e atingiam
indiscriminadamente a população do sertão de Rodelas. Fiados em sua
intangibilidade déspota e na inoperância do estado colonial, os príncipes
locais governavam sob o signo do terror. A situação manteve-se assim até o
final do século XVII, quando a descoberta das minas no alto curso do São
Francisco obrigou a Coroa a organizar suas estruturas no interior, iniciando
a expansão de seu aparato de poder. Esta expansão se deu de forma
sistemática, crescente e articulada, dando lugar ao estabelecimento de uma
nova ordem colonial, levada a termo por uma série de medidas editadas
principalmente a partir do último lustro do século XVII, instituídas
paulatinamente à medida que as demandas da colônia as exigiam.
Passaremos aqui a chamá-las de poder civil. As principais ações deste
processo foram: a instalação das ouvidorias, juizados ordinários, de
freguesias, vilas, e arraiais; a abertura de ligação viária entre os Estados do
Brasil e do Maranhão via sertão de Rodelas no rio São Francisco, custeadas
pela fazenda real; a determinação de novas regras fundiárias; e finalmente a
anexação das conquistas do Piauí ao Estado do Maranhão.
Estes câmbios iniciados no reinado d’El Rei D. Pedro II (1683-
1706), ganharam força com seu sucessor, D. João V (1706-1750), e foram
promotores das mais significativas mudanças havidas no interior,
particularmente no sertão de Rodelas, desde sua conquista. Contudo, no que
pese a importância destas mudanças, a historiografia dos sertões tem
passado ao largo de uma análise conjuntural do processo histórico que
envolve estes câmbios. No capítulo que se segue, procuraremos descrever
analiticamente os eventos que deram lugar à conquista civil do Sertão de
Rodelas e adjacências. Esta análise pretende dar relevo à idéia de corpo-de-
estado, ou melhor: a idéia da presença do estado colonial nestes sertões e
seus desdobramentos, buscando sobremaneira entender como e quanto
estas transformações atuaram sobre os povos nativos da região, e ainda:
qual o papel deles neste ambiente de câmbios marcados.

Desordem e Nova Ordem.


Crime e Castigo.
No stress da derrota holandesa de 1654, seguiu-se um período de
grave desordem social que atingia com largueza todos os segmentos da
sociedade colonial brasileira. Na angústia deste momento, em que os
mazombos buscavam sob os escombros da guerra encontrar uma nova
ordem, clamava Gaspar de Mendonça: “se desse sepultura à justiça que
morrera nesta terra e não há quem a enterre honradamente”. (MELLO,
1987:33). O crime grassava e a justiça não vinha, a situação era extrema e
urgia remédio. Francisco Barreto, personalidade-chave da restauração

192
pernambucana, alertava em carta a D. João IV: “receio que haja uma guerra
civil entre estes moradores sem respeito da justiça, porque se fundam em
que tem acolhimento nos interiores do sertão”.1 A Informação do Estado do
Brasil e de suas Necessidades, documento anônimo do final do século XVII,
alertava ao rei:
Em Pernambuco se acha, que mais gente se tem morto á espingarda depois de
sua restauração, do que matara a mesma guerra, com casos terríveis, e espantosos,
sem lá se ver justiçada pessoa alguma, e o ouvidor de Pernambuco, e os juizes
ordinários o mais que chegam a fazer é tirar uma devassa, e procurar as custas
delas, e donde não ha castigo não ha temor, e este ouvidor está exercendo o
crime e o cível, e a ocupação dos defuntos e ausentes e a de juiz dos órfãos
muitas vezes, e, pelas ferias vai à correição das vilas daquela capitania, ocasião
pela qual falta aos despachos cíveis e crimes, e às audiências necessárias e aos
despachos dos feitos que lhe vão à mão; podendo haver três ministros, um como
cível, outro como crime a outro dos defuntos e ausentes e procurador da coroa e
todos com o governador sentenciarem as causas crimes e executarem as
sentenças. Também se pode advertir, que a trapaça e a malicia humana, tem dado
no Brasil em inventivas, que um credito direito por justiça se não cobra em dois
anos, e nos mais pleitos se gastam, dez, vinte, trinta, quarenta a cincoenta anos
sem terem fim, em que Sua Majestade houvera de por cobro por serviço de Deus
a de seus vassalos, e credito de sua justiça. E também dos pleitos findos e
sentenciados, que não chegam a ter execução pelas inventivas, trapaças, a
maranhas com se lhes vem. (RIHGEB, tomo XXV, 1862:476-7).
Medidas enérgicas contra este estado de ingovernabilidade só viriam
com a posse de Francisco de Brito Freire (1664-1666), que trazia poderes
expressos do rei para responder breve e sumariamente, inclusive com pena
capital nos casos de assassinatos ou tentativas.2 O alívio foi efêmero, a crise
da segurança e da justiça se agravava com a crise da economia açucareira.
No final do século XVII a situação da segurança parecia fora de controle,
Berredo Pereira, no panegírico ao Governador de Pernambuco Câmara
Coutinho (1689-1690), registrou:
terra tão cheia de calamidades, tão abundante de soberbas e violentas mortes,
com desaforo, à espingarda, adonde se não conhecia El Rei mais que pelo nome,
vivendo cada um à eleição de sua vontade, sem haver quem desse castigo aos
malefícios, nem repreendesse violências, as quais se continuavam com soltura por

1 Carta de Francisco Barreto a D. João IV, 12 de março de 1654. (AHU, Pernambuco, IV). Apud

(MELLO, 1998:38).
2 Segundo José Antônio Gonsalves de Mello, Brito Freyre escreveu depois que, com tal providência,

conseguiu conter os crimes, a ponto de só uma morte violenta ter ocorrido ao tempo do seu
governo, quando no período de 1654 a 1660 constavam 437 delitos cometidos a espingarda, sem falar
nos cometidos a arma branca. Ainda naquele mesmo dia 8 de fevereiro de 1661, ofereceu o
pagamento de 500 cruzados e o perdão de qualquer crime, por mais atroz e enorme que fosse, a
quem descobrisse, com todo segredo, quem atirara a espingarda, na noite de 6 para 7 daquele mês,
contra Francisco de Miranda “dentro deste Recife”. O pagamento dos 500 cruzados seria imediato e,
acrescentava, “não os havendo da Fazenda Real, da minha própria”. (MELLO, [1675], 1977, vol. V).
193
falta de governo; (...) tudo corria por este caminho e se vieram a desvanecer
algumas que se lhes não dava de ninguém; fazendo séquitos de espingardas,
metendo terror e assoberbando àqueles que as não tinham ou, por temerosos do
Rei e da consciência, as não queriam fazer; nas Câmaras estavam servindo pessoas
que lhes não faltavam crimes e a tudo se dava passagem, ostentando-se alguns na
opinião de régulos. (MELLO, RIAHGP vol.51, 1979:257-300).
Não só no litoral, mas também nas novas frentes que se expandiam
para o interior, um perene estado de violência se instalara, onde se
afunilavam interesses coloniais, notadamente no sertão de Rodelas que se
consolidava como região estratégica, seja pela comunicação e unificação do
Estado do Brasil com o Estado do Maranhão, seja pelo potencial
mineralógico desconhecido e inexplorado, ou ainda, pela importância da
pecuária, que então, de certa forma, sustentava a economia debilitada pela
crise do sistema açucareiro.
A princípio, pensou-se que o uso de milícias seria suficiente para
controlar a violência endêmica dos sertões do São Francisco. Em 1686 o rei
escrevia ao governador de Pernambuco, João da Cunha Souto Mayor (1685-
1688), requerendo parecer sobre a solicitação do capitão do Rio São
Francisco Miguel Barbosa, que lhe havia representado sobre a “falta de
justiça” que ali reinava por ausência de infantaria. Barbosa sugeria ser
conveniente que houvesse no São Francisco uma companhia formada de
cinqüenta soldados revezados dos terços de Pernambuco a cada seis meses.3
Debalde, a solução das ordenanças pouco mudou a situação. Nestes sertões
o braço da nova ordem colonial ancorada na costa não os alcançava. Os
reclamos contra a violência e a impunidade partiam sempre do mesmo
endereço: os eclesiásticos que, a certo modo, na ausência de Justiça do
Estado, assumiram o papel de fiscalizar, coibir e denunciar ao poder
colonial as cavilosidades e desmandos de colonos e senhores de terras que
acoitavam criminosos e delinqüentes em suas redes de acompadrados. O
sertão de Rodelas no rio São Francisco fora descrito certa vez como rifugium
pecatorum, (POMPA, 2001:277) exílio privilegiado onde criminosos e
desordeiros se abrigavam, valhacouto para marginalizados de todas as
qualidades: povos túpicos perseguidos, negros fugidos dos horrores da
escravidão nos canaviais, homiziados culpados de faltas no litoral e
degredados exilados da metrópole e dos núcleos coloniais da costa. O padre
Martinho de Nantes registrou a idéia:
O Brasil é um exílio e um retiro para diversos criminosos, condenados seja pelo
Tribunal de Inquisição, seja pela justiça comum. Esse país se encheu assim de

3Carta para João da Cunha Souto Mayor Governador de Pernambuco, sobre o Capitão da Capitania
do Rio São Francisco Miguel Barbosa acerca de ser conveniente haver nela sicoenta soldados. 30 de
dezembro de 1646. (AHU, códice 256:66).

194
mais habitantes viciosos do que de outros, pois que ali se vive com muita
independência e libertinagem e os crimes raramente são punidos. (NANTES,
[1706], 1979:55).

Bernard de Nantes, sucessor do padre Martinho nas missões do São


Francisco trazia a mesma concepção do confrade: “este lugar é o refúgio
comum dos criminosos, assassinos e dos perturbadores da paz pública que,
para fugir da justiça que os persegue, vem se meter aqui, protegidos das
punições.” (NANTES, [1702]).4 O padre Martinho atentava ainda para a
influência desta marginália sobre os índios, defendia a importância dos
missionários que – na ausência do Poder Civil – assumiram a tarefa do
governo, da justiça e da paternidade tutelar, protegendo os nativos contra os
portugueses habitantes do local:
Os missionários, entre os selvagens, são obrigados a desempenhar a tarefa de
governadores, de juízes, de pais e de mães e de protetores contra as injustiças dos
portugueses, habitantes desses lugares, e dos quais a maior parte são criminosos
exilados de Portugal, ou gente viciosa, que, se encontrando afastados do governo
cento e cinqüenta ou mais léguas, oprimiriam os índios e cometeriam desordens
sem número, como faziam antes, à sombra da impunidade, (...) É preciso, pois,
admitir grande diferença entre as missões junto a povos policiados, que têm
príncipes e magistrados, e as que se estabelecem entre homens que vivem mais
como animais do que como homens, e que por isso e necessário domesticar e
proteger contra a violência dos opressores. (NANTES, [1706]. 1979:XXIII).
Bernard de Nantes viveu na região por mais de duas décadas,
também deixou raciocínio semelhante sobre a paternidade tutelar para com
os Cariri, e colocava-se como redentor e protetor universal deles contra a
exposição aos colonos, “agentes desencaminhadores da civilidade”:
O que atrasa também a conversão dos índios é o mau exemplo dos antigos
cristãos que na maior parte vêm para essas terras, vindo se estabelecer aí por
todos os lados, estando muito distantes de seus bispos, pastores e governo, eles
não se esforçam muito, e vivem ao natural. (NANTES, [1702]).
Mais adiante, na mesma Relação, o padre Bernard sintetizava seu
pensamento acerca da falta de estrutura judicial nos sertões: “o missionário
carece de todo apoio das autoridades civis, sobretudo para punir os
culpados, selvagens e brancos”, e concluía reclamando não ser “conveniente

4Relation de la Mission des indiens Kariris du Brezil situés sur le Grand fleuve de S. François du
costé du Sud a 7 degrés de la ligne Equinotiale. Le 12 septembre 1702. Pour F. Bernard de Nantes,
capucin predicateur missionaire apliqué. (Relação da missão dos índios Kariris do Brasil, situados no
grande rio São Francisco do lado sul a 7 graus da linha do Equinocial) do Frade capuchinho Bernard
de Nantes. [1702]. Manuscrito gentilmente cedido pelo Sr. José Midlin – São Paulo. Traduzido do
original em francês por Gustavo Vergetti a partir da leitura paleográfica de Pedro Puntoni em 1997.
Trata-se muito provavelmente da parte introdutória do Katecismo índico da língua Kariri, de Bernardo de
Nantes publicado em 1709 Leipzig, por B. G. Teubner.
195
que o homem de Deus também se torne o justiceiro, com grave dano para o
clima de família e de confiança que deve ser a base da relação entre ele e os
filhos espirituais.” (NANTES, [1702]).
D. Francisco de Lima, bispo de Pernambuco (1696-1704), instruído
pelo padre Miguel do Couto, cura do Cabrobó, a quem havia encarregado
da visitação daqueles sertões no ano de 1697, em carta inclusa à Consulta ao
Conselho Ultramarino informava da macabra estatística da violência nos
sertões de Rodelas:
Este ano mandei ao cura (Pe Miguel do Couto Carvalho) corresse o dito sertão
(Rodelas), e gastando mais de seis meses, não pode chegar a muitas povoações
dele, e nas que entrou achou muitas pessoas, que havia de anos não ouviam
missa, nem se tinham confessado, nem visto sacerdote com quem pudessem
fazer; e assim vivem estes homens sem lembrança da outra vida, com tal soltura
na que a passam, como se não houvesse justiça, porque a de Deus não a teme e a
da terra não lhe chega. Do Rol dos mortos no discurso do ano passado, que o
Cura me remeteu, por lho mandar pedir, consta faleceram 16 pessoas, das quais
uma só morreu de enfermidade, que tão benigno como visto he acima, porem,
que tem este de bom, tanto tem de mau os habitadores, porque os 15 foram
mortos a espingarda, com este estilo se trata e com este risco se vive entre eles.
(AHU, Caixa 9, P.A.-Pe).

Ignácio Accioli de Cerqueira e Silva, destacando a importância da


criação da vila de Jacobina como forma de levar a civilidade aos povos do
sertão, fez constar em suas Memórias históricas mais um exemplo do
desperdício de vidas nos sertões situados à fronteira sul de Rodelas: “na
Jacobina, do ano de 1710 até 1721 se haviam perpetrado quinhentas e trinta
e duas mortes com armas de fogo, quando do último ano, em que teve lugar
a criação da vila, até o de 1724 unicamente se contavam dois homicídios.”
(CERQUEIRA e SILVA, vol.I, 1835:160).5
A expansão colonial, notadamente após a reconquista dos domínios
holandeses, passou a exigir ampliação do aparato judicial para atender as
demandas das novas fronteiras, especialmente no sertão onde vingavam
formas espontâneas de direito conduzidas à mão-de-ferro pelos ‘príncipes
locais’. Sobre isto atentava Felisbelo Freire:

5 Felisbello Freire registrou: “O Ouvidor geral da Bahia, Manoel da Fonseca Brandão, por volta de
1783, representou à coroa portuguesa “sobre a freqüencia de delictos nas margens do S. Francisco,
refugiando-se os delinqüentes nas aldeias que por ahi existiam, impunes de seus delictos, pela
dificuldade de acção do Juiz de Jacobina, muito distante da Zona em Questão. Já existia então uma
povoação no Arraial de S. Antonio do Urubú que devia ser elevada a Villa, mas enquanto o ouvidor
esperava pelas ordens sobre essa creação, resolvera crear naquelas margens do rio dous julgados,
dando a cada um seu respectivo districto, assim como na Serra da Tiúba, onde refugiavam-se os
criminosos” (FREIRE, 1906:165).

196
Os crimes repetiam-se nestas localidades de uma maneira assombrosa, não
havendo a menor garantia por parte da justiça. O maior proprietário territorial era
um onipotente e senhor absoluto, perante cujas vontades e caprichos todos se
curvavam. O assassinato constituiu-se por muito tempo a solução dos pleitos e
dos direitos. (FREIRE, 1906:141).
No final do Século XVII estava claro que a ação das milícias e dos
juizados ordinários por si só, sem a fiscalização comunitária, não haviam
produzido os resultados almejados. Nesse momento a Coroa passou a
investir na qualificação e compartimentação da justiça nos sertões como
forma de atuar cada vez mais perto dos vassalos do interior.

Justiça e jurisdição legal.


Desde a instalação do governo geral, a região situada entre a foz do
São Francisco e a Bahia, incluindo toda sua extensão oriental, contava
apenas com uma ouvidoria. Para sanar este problema, o governo
metropolitano entendeu dividir a antiga ouvidoria da Bahia, criando por
Carta Régia de 16 de fevereiro de 1696 dois cargos de ouvidor e provedor,
respectivamente, para Sergipe e para a Bahia. Esta determinação de Lisboa
só foi atendida 4 anos depois, quando o governador geral do Brasil, Dom
João de Lencastre (1694-1702), delimitou a ouvidoria da Bahia, que estendia
seu distrito desde Itapoã até o limite sul da Capitania; enquanto a de Sergipe
Del Rey tomava a jurisdição partindo da fronteira da Bahia até a barra do
rio São Francisco (Portaria de 13 de julho de 1690). Nova divisão das
ouvidorias só aconteceria uma década depois quando foi criado o cargo de
ouvidor para a vila das Alagoas do Sul e rio de São Francisco.6 Sentindo
agravar-se a violência e a ausência de justiça em Rodelas,7 El Rei Dom
Pedro II (1683-1706) decretou, aos 2 de dezembro de 1697 a criação de
Juizados Ordinários de 5 em 5 léguas:
no que respeita ao remédio temporal que se deve dar no sertão das Rodellas, e
suas povoações para se evitarem os repetidos crimes e atrozes casos que ali

6 Ver também Consulta do Governador de Pernambuco ao Conselho Ultramarino onde responde a


Ordem que teve sobre a criação de Juiz de Fora para aquela Capitania e de Ouvidor para as Vilas das
Alagoas e Rio de São Francisco. (AHU, cód. 265:149-9v). Sobre o mesmo assunto ver Carta anexa de
24 de junho de 1700, (AHU, P.A.-PE, Caixa 10).
7 Com base na representação do Bispo Dom Frei Francisco de Lima e do Governador de

Pernambuco, Caetano de Mello de Castro (1693-1699), na qual se declarava a falta de Igrejas e


Paróquias e delitos que se cometiam no Sertão de Rodellas, Consulta da junta das missões, sobre o
que escreve o Bispo de Pe acerca do estado das missões na Capitania. Recife, 12 de Dezembro de
1697, (AHU, Caixa 9, P.A.-PE). Publicada com pequenas alterações sob o título: Consulta do Consoo
Ultr.o de 12 de Dez.o de 697, com a consulta incluza da Junta das Missões sobre o q- escreverão o
Bispo, e gov.or de Pern.co acerca da falta de Igrejas, e Parrochos nos Presídios dos Palmares e Certão
dos Rodellas, delictos q.e vive o M.e de Campo no Presídio das Alagoas. (ENNES, 1938: doc. 56).
197
sucedem, que ordinariamente ficam impungidas assim por se não ter notícia deles
pela distancia em que são cometidos, como por não haver medo de justiça
naquelas partes; que será razão se ordene que de cinco em cinco léguas, haja um
juiz ordinário com a jurisdição de tirar devassas, tomar as denunciações, e
querelas nos distritos que ali se fizerem e remetê-las por traslados ao Ouvidor
Geral de Pernambuco, ou ao ouvidor da Comarca da Bahia, Segundo a quem
pertencer a jurisdição para se procederem nesta matéria como for justiça. (AAPB,
VI-VIII:64), (LEITE, 1945, vol. V:306).
Sem demora a ordem para criação dos juizados ordinários foi
emitida ao governador geral do Estado do Brasil, D. João de Lencastro
(1694-1702), e ao governador da capitania de Pernambuco Caetano de
Mello de Castro, em cuja jurisdição territorial situavam-se os sertões dos
Palmares e de Rodelas. (AAPB, tomo VI-VII:330-331). 8
Curiosamente a expulsão dos jesuítas do rio São Francisco em 1696
parece ter sido para a metrópole um fato de menor valor, usado apenas para
compor um rol de justificativas que deram sustentação as mudanças que há
muito se gestavam. Vê-se isto nos termos do decreto que ordenou a criação
dos juizados ordinários, fundado no relato do padre Carvalho que dava
conta da violência campeante de Rodelas e na ‘decadência dos costumes’,
não invocando em momento algum os acontecimentos da defenestração da
Companhia de Jesus ocorrida um ano antes. A instalação do distrito
judiciário em Rodelas deve ser observado no ambiente mais amplo das
mudanças gerais que se produziam no Brasil interior como expressão da
transferência do poder privado para a esfera do poder real.
A morte de Francisco Dias d’Ávila em 1694 havia deixado a Casa da
Torre sem comando varão; enquanto o herdeiro Garcia d’Ávila não tinha
idade suficiente para assumir o morgadio da Torre, sua mãe D. Leonor
Pereira Marinho passou a conduzir os negócios da família, mas sem o
mesmo poder de comando do marido. Dois anos após a morte do mestre
de campo, o procurador da Casa da Torre no sertão de Rodelas, sargento-
mor Antônio Gomes de Sá, promoveu a expulsão dos jesuítas das missões
no São Francisco. Apesar do barulho, e não obstante o muito que se tem
escrito, parece que a Coroa considerava o fato como de importância
secundária, pois, como se não obstasse à ordem de devassa e à exigência de
punição dos culpados pela agressão, já no ano seguinte o mesmo sargento-
mor aparece em missão oficial, comandando as forças que avançavam sobre

8 Ver Carta régia ao Governador da Capitania de Pernambuco Caetano de Mello de Castro, sobre as
mortes e atrozes casos que sucedem no Sertão das Rodellas, e mandar que haja de cinco em cinco
léguas um Juiz ordinário. Lisboa a 16 de Fevereiro de 1698. (AHU, cód. 256:66).

198
os tapuias na lagoa do Parnaguá,9 e em 19 de Dezembro de 1701 uma
patente régia agraciava-o com o posto de capitão-mor da freguesia de Nossa
Senhora da Vitória no Piauí. (PEREIRA da COSTA 1974:65).
Todavia estes juizados ordinários, demoraram-se demasiado até
produzirem os resultados esperados, ou seja: conter a violência que vadeava
na região; em parte porque a Casa da Torre passou a controlar a nomeação
dos rábulas sertanejos, capitalizando a seu favor a ação da justiça,
protegendo seus associados, e punindo, pelo braço da lei, seus dissidentes.
No ano seguinte, denunciava o governador de Pernambuco, que o Juiz
ordinário e o pároco do Rio Grande do Sul haviam sofrido atentado “por
querer, por obrigação do seu cargo, evitar lhe as concubinas com que
andam a muitos anos desencaminhadas”. Com este atentado em Rodelas em
1699, a Coroa viu-se afrontada e enviou reforço para a região, ordenando
que em cada freguesia que então se criava houvesse um magistrado com
poderes especiais, a semelhança dos juizes de vintena10 que existiam no reino,
apoiado por milícia paga, destinada exclusivamente a dar guarda à justiça.11
A criação dos juizados ordinários fora apenas o primeiro movimento
ensaiado pela Coroa para tomar para si as rédeas do poder nesta estratégica
região, até então, sob domínio absoluto da Casa da Torre.

9 “por ordem de V.S.ª expressa, enviada ao Sargento Maior Antonio Gomes de Sá para que com
todos os Capitães daqueles descritos, façam mudar o gentio manso com suas famílias para o lugar
daqueles campos mais convenientes à oposição dos bárbaros e defesa das povoações”. (APB, Livro
de Alvarás 1650-1681:149v-151). Cadernos de notas de José Antônio G. Melo: (MELLO, 1962, vol
V).
10 Juiz eleito anualmente por outros juízes, procuradores e vereadores da Câmara. Tinha atribuição de

conhecer e decidir, verbalmente, sobre contendas entre os moradores de sua jurisdição, até a quantia
de no máximo quatrocentos réis, sem apelação e agravo nem abrir processo; não conhecer dos feitos
sobre os bens de raiz nem de crimes; prender e entregar aos juízes ordinários do termo os criminosos
que praticarem delitos em sua jurisdição. As funções de juiz de vintena eram exercidas por morador
das localidades afastadas da sede do município, com população entre vinte e cinqüenta habitantes.
Apesar de não atuar na Câmara, pode ser visto como um agente judicial desta nas pequenas
povoações. Ver mais no Ensaio sobre a História Política e Administrativa do Brasil, 1500-1808.
(GARCIA, 1975:35); Fiscais e Meirinhos, a administração no Brasil Colonial (SALGADO, (Org.).
1990:131-2); O Município no Brasil, 1532-1700 (ZENHA, 1948:59).
11 Carta do Conde de Alvor a Dom João de Lencastro Governador Geral do Estado do Brasil, sobre

as violências de Domingos Affonso Sertão. Lisboa, 13 de Janeiro de 1699. (BORGES de BARROS,


1920:364-5).
199
Capitães-mor – o poder caçado.
Na ausência do estado colonial, os senhores de terras
desenvolveram nos sertões uma complexa estrutura de defesa privada. Os
capitães-mores eram em teoria regulados pelos regimentos das Ordenanças
e das Fronteiras. Na prática, contudo, valiam usos e costumes locais: um
conjunto de normas consuetudinárias, construídas na relação estabelecida
entre conquistadores e conquistados.12 Esta regra permitia que tapuias e
pecuaristas foreiros estivessem submetidos à autoridade do senhorio, sem
que esta relação implicasse obrigatoriamente em sujeição. Assim,
organizações de defesa congregavam moradores brancos e índios
desaldeados – agregados dos núcleos de expansão – chefiados por capitães-
mores.
Paradoxalmente, estas estruturas, que haviam sido criadas para
oferecer segurança, passaram com o tempo a gerar violência privada a
serviço da corporação senhorial, que agia não somente contra os inimigos
da colônia, mas muitas vezes contra os próprios colonos e ministros da
Coroa: eclesiásticos e judiciários. Varnhagen lembrou certo momento a
importância que tiveram no Brasil estes capitães-mores nas vilas e freguesias
do sertão, “sendo causa de opressão e de terror dos povos, como chefes das
ordenanças e juizes sem apelação nos recrutamentos”. (VARNHAGEN,
1948, vol. III:420). Capistrano de Abreu reforça esta opinião: “Os Capitães
mores deixaram fama de violentos, arbitrários e cruéis” e continua:
“Questões de terra, melindres de família, uma descortesia mesmo que
involuntária, couzas as vezes de insignificância inapreciável desfechavam em
sangue”, conclui Capistrano. (ABREU, 1954:224-5).
Uma carta régia de junho de 1705, remetida a Francisco de Castro
Moraes, governador de Pernambuco (1703-1707), registrava: “os Capitães
Mores tratam aos missionários das ditas aldeias como seus capelães, sem
que tenham liberdade para repreenderem, e emendarem os vícios como tem
de obrigação”.13 A princípio os capitães-mores eram nomeados pelos
governadores e confirmados por patente vitalícia, mas não estavam sujeitos
às residências (correição) como os governadores e demais altos funcionários
da coroa. No final do século XVII, o despotismo destes agraciados

12 Estas estruturas seguiam os moldes das ordenanças medievais portuguesas, Cf: regimento de treze
artigos promulgado pelo Vice-rei Conde de Obidos em 1° de Outubro de 1663, onde se reúnem as
atribuições dos Capitães-mores como delegados dos governadores. (ABN. Vol. 4:136-45), e (DH, vol.
4, 118-25), e (D.H. vol.5, 374-84).
13 Carta para o Governador da Capitania de Pernambuco. Sobre se mandar dar a légua de terra aos

índios daquela Capitania. Lisboa, 5 de Junho de 1705. (AHU. Registro de Cartas do Conselho
Ultramarino – cód. 257:173).

200
conflitava com as necessidades políticas de modernização e
desenvolvimento da colônia, desta forma, em 1709 a Coroa determinou que
as câmaras das povoações passassem a prover estes postos mediante
eleição.14 Ocorria entretanto, que o posto de capitão-mor era chave para o
controle das conquistas; em muitas povoações, principalmente naquelas em
que havia pessoas sem qualificação suficiente para exercer a função, a
eleição era disputada com truculência e, “recaia quase sempre em quem o
potentado da terra indicava”. Os sufrágios eram realizados em geral “com
dolo e violência, de que resultavam crimes, despesas e descrédito de famílias
inteiras, criando-se ódios que se conservam de pais a filhos”.15
Em carta apreciada no Conselho Ultramarino, datada de 28 de
Junho de 1700, Dom Fernando Martin Mascarenhas de Lencastre,
governador Pernambuco (1699-1703), denunciava ao Rei uma série de
hostilidades havidas contra ministros da coroa em conflitos gerados por
ocasião da instalação das novas freguesias do Piauí e do Rio Grande do Sul.
Assustado o governador dava conta ao Rei dos fatos e da soltura de justiça e
da independência de poder que corria nos sertões de Rodelas. Lencastre
ponderava o dano e as conseqüências perniciosas da ausência de governo
naqueles sertões e, clamando pela interferência urgente da Coroa, pedia ao
Rei que enviasse um ministro especial guarnecido por soldados e oficiais
dos terços de Olinda e Recife, índios e tapuias das aldeias, acompanhados
de cabos e soldados milicianos de Rodelas. Finalmente o governador
mostrava a necessidade de independência desta intervenção do corrupto
circuito político baiano, comprometido com as oligarquias sertanejas.
A quem deveriam prestar respeito os vassalos do sertão ao seu
‘príncipe’ titular das terras, ou ao Rei, senhor dos senhores? A intervenção
tinha por finalidade de fazer entender aqueles régulos sertanejos a sua
condição de vassalos do Rei; e de que, a distancia daqueles sertões não
seriam impedimento para se fazer valer a Justiça Real:
Nenhum castigo será equivalente para a satisfação dele, e de mui prejudiciais
conseqüências se a atrocidade com que se cometem esta culpa ficar impunida
porque não só será arriscar o serviço de Vossa majestade e conservação de seus
vassalos mas absolutamente será dar ocasião a que de todo se perca o respeito as
pessoas que governam podendo seguir-se desta desordem, uma grande ousadia
nos delinqüentes tendo-se neste caso ser muito maiores inimigos os nossos
portugueses que os mesmos Índios sendo a sua obrigação de guardarem muito

14 Alvará de 18 de Outubro de 1709. Para essa eleição a Câmara devia ser presidida pelo corregedor

ou provedor de comarca. (LAXE, 1885:XV).


15 (VARNHAGEN, 1948, vol. III:420). Um ano mais tarde o Governador de Pernambuco redigiu

um regimento que regulava a ação dos Capitães Mores em sua jurisdição. Carta Régia de 5 de
Outubro de 1706. (ABN, vol 28:188-9).
201
pontualmente a obediência as soberanas disposições de Vossa Majestade que em
lhes dar Justiça, e nomear Jus-ministros que lhe administrem se encaminhou em
beneficio seu para que vivessem com toda a segurança, e se evitarem aqueles
repetidos Clamores dos insultos que se cometiam por falta de quem tomasse
conhecimento dos que se obravam naquelas distancias, aonde não podiam chegar
os Ouvidores Gerais; e que nestas considerações que Vossa Majestade seja
servido de ordenar que vá desta Corte um ministro a fazer esta diligencia, e tirar
devassa do que se executou com este Juiz no sitio e distrito do Rodellas pois
insinua D. Fernando Martins nas entrelinhas, será conveniente que vá deste
Reino, (...) lhe dê toda a gente e infantaria que for necessária, assim, dos terços
que guarnecem Olinda e o Recife, como dos Paulistas declarando hão de estar a
ordem deste ministro para executarem tudo o que ele lhe mandar, e possa passar
com toda a segurança ao sertão dos Rodellas sem temor da oposição que lhe
possam fazer estes delinqüentes, e tirar devassa deste sucesso, e proceder contra
eles com aquelas penas condignas à sua culpa para que sirva esta demonstração de
exemplo para refrear aos mais a que os não imitem em tão abomináveis e
horríveis procedimentos, digno este por tantas razões de um exemplar castigo.16
Para diligenciar esta missão o rei designou em 29 de Outubro de
1700 o desembargador João Guedes de Sá com poderes de tirar devassas,
pronunciar e prender culpados. Todavia a resposta era circunstancial,
atendia não mais que àquele fato isolado; a ocasião pedia reação duradoura
que atacasse efetivamente o poder paralelo sertanejo em suas bases. A
ocasião surgiu na consulta dos oficiais da câmara da vila das Alagoas do Sul,
apreciada no Conselho Ultramarino, na qual aqueles vassalos queixosos dos
comandantes paulistas suplicavam ao rei que não permitisse que os ditos
capitães-mores fossem perpétuos “pelas grandes vexações que com isso
padeciam aqueles povos”. Certamente estava a resposta aos alagoanos
endereçada aos vassalos rebeldes de Rodelas. A Coroa serviu-se do petitório
dos alagoanos para investir decididamente, acabou com o posto de capitão-
mor vitalício, instituindo a trienalidade do cargo, exigindo ainda que ao final
do período fosse tirada residência dos capitães mores: uma espécie de
corregedoria ordinária, antes aplicada apenas aos capitães-mor governadores
de capitanias e ouvidores. Esta resolução atacava indiretamente as redes de
poder dos senhorios e comandantes das forças militares que passavam a ter
responsabilidade jurídica sobre seus atos despóticos, antes acobertados pelo
pesado manto dos senhorios. Diz a Ordem Régia que, desta forma se
evitará:

16Ordem Real de 24 de setembro de 1700 com parecer do Conselho Ultramarino sobre Ação de
devassa no sertão de Rodellas para apurar e condenar culpados pelas violências cometidas contra o
Juiz do Rio Grande do Sul e Ministros eclesiásticos por parte de Portugueses afazendados. (IAHGP,
cód. de cópias do Livro de Ordens Régias, 1700 – 1704). Dizia, Gregório Varela de Berredo Pereira,
no final do século XVII: “a primeira cousa que faziam os que intentavam mandar matar era primeiro
procurar o dinheiro para salário das devassas que se tiravam, que muitas ficavam no esquecimento do
tempo e logo passeavam na praça” (PEREIRA, RIAHGP, vol. 51, 1979).

202
Aquele clamor que se repetia dos insultos e crimes que se cometiam por falta da
administração da Justiça, sendo esta culpa nascida dos mesmos Capitães mores,
que ou por omissão, ou por razões dos parentescos com os delinqüentes não
executavam o que dispunha a Lei; reconhecendo-se também que muitas vezes
sucediam estas extorsões a violências dos mesmos Capitães mores em satisfação
das suas vinganças, fiados na isenção dos seus postos: o que moveu a suma
Piedade de Vossa Majestade a que se nomeassem Ministros de Letras, para
defenderem e remirem de vexações que padeciam aqueles moradores que
estavam afastados das povoações principais.17
O problema não se circunscrevia apenas à perda de vidas humanas,
o problema da criminalidade e falta de justiça havia sido atacado com a
instalação dos juizados ordinários e com o desmonte do poder paralelo dos
capitães-mores. Outro problema antigo todavia permanecia provocando a
ação do estado colonial: o combate às uniões maritais livres. Para os
eclesiásticos, a salvação das almas estava sendo ameaçada pelas más práticas
comportamentais de colonos e índios. A população do sertão crescia
prodigiosamente, mas a custa de uniões que fugiam ao controle da igreja,
nomeadas na documentação como pecado público e concubinagem.

O pecado público.
Para os religiosos, estar em pecado público era manter, aberta e
publicamente, qualquer tipo de união carnal não legitimada pelos
sacramentos da regra católica. O combate ao concubinato foi certamente
uma das mais duras batalhas que os religiosos tiveram que enfrentar para
cativar o gentio para o aprisco do senhor. A ação missioneira implicava no
estabelecimento de uma nova ordem – baseada em costumes diversos de
uma outra preexistente – que se impunha como regra social não só dentro
cercas de pau-a-pique que abraçavam as missões. Os colonos também se
viram pressionados a mudar suas práticas e se submeterem às regras
comportamentais cristãs impostas pelos missionários, que combatiam
tenazmente as práticas barbarizantes, o concubinato e a escravidão indígena.
A oposição dos religiosos à práticas e costumes há muito
sedimentados, gerou uma relação pouco amistosa, notadamente nas três
décadas que sucedem à retomada do processo de interiorização da pecuária
via o rio São Francisco. O padre Bernard de Nantes se referia àqueles
sertões como a um tipo de exílio da iniqüidade: “este lugar é o refúgio
comum dos criminosos, assassinos e dos perturbadores da paz pública que,

17 Veja Consulta do Conselho Ultramarino de 28 de setembro de 1700, na qual o governador e

Capitão General da Capitania de Pernambuco responde à ordem que teve sobre informar no
requerimento dos oficiais da Câmara da vila das Alagoas do Sul. (ENNES, 1938:441-3).
203
para escapar da justiça que os persegue, vem se meter aqui, protegidos das
punições, vivendo a maior parte na concubinagem” e concluía melancólico:
“De que maneira então pode a castidade cristã persuadir esses índios já
inclinados ao vício? Qual é o caminho para tirá-los da pluralidade de
esposas à vista de tantos escândalos?” (NANTES, [1702]).
Não era só o concubinato entre brancos e nativos que preocupava
aos religiosos, as práticas de convívio natural dos tapuias também foi
combatida. Em 24 de Janeiro de 1685 o governador Antônio Luiz de Sousa
Teles de Meneses, marquês das Minas, passou ordem ao padre provincial da
Companhia de Jesus para combater a movimentação entre comunidades e
os índios que se ausentavam de suas aldeias para outras da mesma nação,
principalmente entre as do Lino (Junco), a do Fernando, a do Tucano, a do
Massacará, a de Sergipe Del Rei, a da Pacopatiba, e a da Cachoeira, “sendo
muitos já batizados e casados, deixando suas legítimas mulheres, e tomando
outras gentias com grande detrimento de suas almas, escândalo da nossa
Santa Fé e perturbação das ditas novas cristandades”, como registrou o
governador.18
A larga tradição de alianças, agregamentos, concubinagem e
exploração secular da mão-de-obra nativa, estavam no cerne das mais
importantes disputas entre missionários e colonos. Alexandre Marchant
lembra que uma das primeiras preocupações dos jesuítas, ao estudar a
localização dos futuros aldeamentos, era a de “segregar dos colonos, os
índios cristãos, a fim de evitar que se corrompessem uns aos outros”.
(MARCHANT, [1942], 1980:98).
É fato que as conquistas do Brasil eram tidas em Portugal como
praça de guerra, para onde raramente as mulheres tinham autorização de
embarque.(BOXER, 1981:258-9). João Justiniano da Fonseca, tratando
sobre Rodelas, resumiu bem o assunto: “não se fala de mulheres”, diz o
autor, “parece que mulheres não vinham, só homens de arma – soldados;
degredados – criminosos (...) por mulheres, as índias bastavam, mas, sempre
em aventuras ou concubinato, muitas vezes por meios violentos, jamais em
casamento”. (FONSECA, 1996:16). Esta particular característica do
comportamento sertanejo foi analisada por Luiz Moot em seu estudo
demográfico sobre o Piauí colonial. Fiando-se no relato do Padre Miguel do
Couto diz Moot:

18 Ordem dada pelo Governador e Capitão General ao Padre Provincial da Companhia de Jesus’, ou

‘Ordem que se passou ao Padre Provincial da Companhia passe recolherem os índios que andam fora
de suas aldeias. Bahia, 24 de Janeiro de 1685. (BN, II 33, 28, 11) (1° documento n° 45 do catálogo).

204
As mulheres embora fossem em número de 40 (crianças inclusive), residiam em
somente 24 fazendas (18,6%); destas, 18 abrigavam apenas uma representante do
sexo feminino e 6 mais de uma mulher. Tão excepcional a presença de um casal
branco nesta frente pioneira que, dentre as 40 mulheres existentes nas fazendas,
apenas uma, supostamente branca, que tem seu nome revelado. (MOOT, 1975:76).19
À medida que o fantasma da guerra se afastava do litoral, foi cogitada
a migração de casais açorianos para o Nordeste, sob a intervenção direta de
João Fernandes Vieira; todavia seu projeto parece ter naufragado no
embarcadouro,20 deixando no Brasil uma experiência do ponto de vista da
formação racial totalmente diversa da colonização da América do Norte por
exemplo, levada a cabo pelos pioneiros puritanos calvinistas, cuja
característica mais marcante está na base das células familiares, compostas
principalmente por casais de colonos brancos. No Brasil, na falta de
mulheres brancas os ‘pioneiros’ tomavam nativas como companheiras,
transformando-as em matriarcas das grandes famílias sertanejas, repetindo o
fenômeno do litoral que celebrizara as índias Maria do Espírito Santo
Arcoverde e Catarina Álvares Paraguaçu,21 mulher do Diogo Caramuru,
colocando-as na base da estrutura da fidalguia tropical no Brasil. Jerônimo
de Albuquerque, “o Adão Pernambucano” foi prestigiado por ter sido pai
de muitos mestiços e ter reconhecido mais de uma vintena deles.22
O padre Nóbrega, inconformado com as práticas ‘impúdicas’ da Bahia
colonial, afirmava que naquela terra havia um grande pecado, “que é terem
os homens quase todos suas negras23 por mancebas, e outras livres que
pedem aos negros por mulheres, segundo o costume da terra, que é terem
muitas mulheres”.24 Nóbrega preferia que antes viessem ao Brasil

19 “na fazenda Belo Jardim de Santa cruz está nela Domingos de Aguiar com sua mulher Mariana

Cabral: É o único homem branco que há casado nesta nova freguesia” Afirmava Miguel do Couto.
(COUTO, [1697], 1938:379).
20 Carta a João Fernandes Vieira sobre os casais das Ilhas dos Açores. Lisboa a 21 de março de 1676.

(AHU cód, 256:15v.) As 50 famílias açorianas pretendidas por Vieira para colonizar o Nordeste
foram se assentar no Grão Pará onde interessava para Coroa, àquela época, fomentar a colonização.
(VARNHAGEN, 1948, Vol. III:283).
21 Sobre D. Catarina Álvares Paraguaçu e a formação da sociedade colonial baiana, ver “O Feudo” de

Luiz Alberto Moniz Bandeira, especialmente o 1° capítulo.(BANDEIRA, 2000).


22 Sobre Jerônimo de Albuquerque ver ‘Testamento de Jerônimo de Albuquerque’ (GAMA, vol. I:85-

90). Ver também (RIAHGP, tomo IV, n° 28:111-2).


23 “Negros chamavam os portugueses não somente aos africanos, mas a qualquer de raça diferente,

baço de tez – etíopes, índios, malaios, chinos, americanos,cujos braços passavam a fazer na
metrópole o trabalho dos que a empresa bélica arrebatava.” (AZEVEDO, 1929:159).
24 Carta de Nóbrega ao Padre Simão Rodrigues de 9 de agosto de 1589 (M.B.1:119) Apud

(MONTEIRO, 1994:34). Ver também ‘Informação dos casamentos dos índios do Brasil’ RIHGB,
tomo, 1845).Ver também “Cópia de vnas cartas embiadas Del Brasil por el padre Nóbrega dela
Companhia de Jesus: y otros Padres que estan debaxo de su obediência: al padre maestre Simon
preposito de la dicha compañia em Portugal: y e los padres hermanos de Jesus de Coimbra.
205
prostitutas que se servissem os portugueses das nativas. Em carta de 8 de
agosto de 1549 clamava ao Rei que “remetesse órfãs, ainda que fossem
erradas, (...) mulheres, que fixassem pois aqueles moços inquietos, ou a
conquista Del Rey teria a sorte das capitanias malogradas, sobre cujos
destroços os Aimorés tripudiavam”. (CALMON, 1939:17). Referia-se
Nóbrega às porções do litoral baiano onde os Aimorés, aliados a mestiços
descendentes dos primeiros degredados chegados ao Brasil, assolavam a
capitania de Ilhéus. O padre Martinho de Nantes, tenaz combatente do
pecado público, em sua primeira relação notou os tapuias Cariri como
extremamente embrutecidos por sua sensualidade:
E como a sua nudez lhes fizera perder o pudor natural, não há tipo de
desregramento contra a pudicícia que não cometam, alguns em idades tão tenras
que poderia parecer incrível: numa palavra, era uma desordem assustadora. Não
há necessidade de dizer mais, para não ferir almas castas que pudessem ler esta
pequena Relação. (NANTES, [1706], 1979:6).25
O ambiente de soltura era muito atraente para os estrangeiros. A
sensualidade da índia e da negra, como demonstrou Gilberto Freire, ajudara
a criar um clima de liberdade na colônia. Hermann Wätjen, estudando o
Recife ocupado pelos holandeses, percebeu bem este espírito, onde cada um
fazia o que bem lhe aprazia: “Ordem e disciplina eram termos estranhos”, e
entre os militares uma espantosa corrupção de costumes fazia-se sentir.
“Furto, roubo, assassínios e homicídios, embriaguez e excessos
desordenados com mulheres faziam parte da ordem do dia”. Citando o dito
popular pernambucano coletado por Barleus, conclui enfático Wätjen:
“Alem do Equador não existe pecado, era como se a linha que divide o
globo terráqueo em dois hemisférios também separasse a virtude do vicio”.
(WÄTJEN, 1938:150-1).26

Tresladadas de Português Castellano Recebidas em ano de 1551.” Edição facsimilada 21. Lisboa,
Biblioteca Nacional, 1993.
25 Serafim Leite, fundado em copiosa documentação afirmava o contrário do cronista capuchinho:

“Os Quiriris revelaram, sob o aspecto da organização da família, sentimentos elevados, tinham da
pudícia mais nobre idéia que outros Índios. E os que eram casados, amavam-se até os zelos. Os
Quiriris procuravam ter também paz entre si, uns com os outros, dentro do mesmo grupo nada
propensos a brigas.” (LEITE, 1945). vol. V:311). Cutbert Pudsey oferece um relato que corrobora a
imagem formada por Serafim Leite, diz ele: “As mulheres são belas, bem parecidas a andam nuas.
Entretanto, apesar de serem uma gente demoníaca, ainda assim punem muito estritamente qualquer
um que seja encontrado em adultério, e ainda com torturas. As moças também, se achadas culpadas
da mesma ação, ficam para sempre desonradas entre eles, e não são consideradas dignas, nunca mais,
de serem esposas de qualquer um deles, permanecendo durante toda sua vida como que exiladas
entre eles”. (PUDSEY, [1640], 2000:1) (BN, n° I-12, 3 n° 17).
26 Gaspar Barléu, o cronista de Maurício de Nassau, registrou o ditame em língua latina: ultra

æquimocialem non pecari.: (Não existe pecado abaixo do equador). (BARLÉU, [1647] 1974,49-50);
(BARLAEUM, [1647]:79 e ss). O tema inspirou Chico Buarque e Ruy Guerra que em 1973,

206
É razoável supor que, dada a larga oferta exótica disponível, os
colonos não estivessem sentindo falta de mulheres portuguesas. A coroa, no
entanto, estava alerta à carência de famílias portuguesas nas colônias. Em 17
de Setembro de 1687 o Conselho Ultramarino apreciava petitório das
Clarissas do Desterro da Bahia,27 que suplicava ao rei lhes concedesse
“faculdade para receber por supranumerárias algumas das muitas (donzelas)
que desejavam servir a Deus naquela sua casa”. Estes claustros religiosos
concorriam contra os mais estritos objetivos de reprodução e povoamento
da colônia, oneravam a Fazenda Real, e desviava para a vocação religiosa
mulheres necessárias à multiplicação da população. Considerando estes
fatores, concluía o procurador do Ultramarino contra a petição das Clarissas
argumentando que em terra de conquista antes que convinha haver “cópia
de mulheres honestas para os casamentos dos homens que a ela iam”, para
aumentar a “propagação da gente de que os Reinos e ainda mais as
Conquistas devem abundar”.28
A propaganda missionária divulgava em seus relatos periódicos
informações de lenta vitória sobre as práticas das uniões nativas. Em
algumas narrativas nota-se a resistência ao sacramento do matrimônio
católico como uma fina oposição ao controle espiritual e temporal dos
missionários sobre os nativos, ou seja, uma contra-função política dos
indígenas ao casamento dos brancos. Na carta ânua ‘Litterae ex Brasilia’ de
1693, relatando-se os avanços nas missões administradas por jesuítas no
caminho das Jacobinas registrou o padre visitador:

compuseram a música “Não existe pecado ao sul do equador”, ressuscitando o dito popular no Brasil. Ver
também capítulo III de ‘Os Holandeses no Brasil’, ‘As conquistas de João Maurício 1637-1641’ de
Charles Boxer, nota 10 da edição holandesa.
27 O Convento do Desterro fundado em 1677, foi por longo tempo o único claustro no qual era

permitido a profissão de mulheres brasileiras. Para tanto foram ali criadas 50 vagas para religiosas de
véu preto e 25 para recolhidas de véu branco. As primeiras seriam moças brancas, de comprovada
limpeza de sangue, i. e., isentas da mancha da mestiçagem e de descendência de cristãos-novos; da
nobreza colonial e capazes de trazer um dote suficiente ao seu sustento. (AZEVEDO, 1978:97);
(VAINFAS. 2000:362-3); (MOTT, 1994). Ver ainda em Susan Soeiro, 1973, The Social Composition
of the Colonial Nunnery: a case study of the Convent of Santa Clara do Desterro, Salvador, Bahia -
1677/1800. n° 6 (Occasional Papers); da mesma autora: A baroque nunnery: the economic and social
role of a colonial convent Santa Clara do Desterro (1677-1800). 1974; de Ana Amélia Vieira do
Nascimento, ‘O Convento do Desterro’.
28 O parecer do procurador da coroa diz: “já em alguma ocasião dissera os inconvenientes grandes

que considerava em se haver dado licença para fundação deste convento na Bahia, terra de uma
conquista em que convinha haver cópia de mulheres honestas para os casamentos dos homens que a
ela iam, e por meio deles se aumentar a propagação da gente de que os Reinos e ainda mais as
Conquistas devem abundar, nas quais fora bom que não houvesse outros alguns conventos mais que
os de missionários que tivessem por obrigação e por instituto pregar o Evangelho e converter os
gentios” Grifo meu. Consulta ao Conselho Ultramarino Bahia de 17 de setembro de 1687. (AHU,
cód. I-, 8, 4, 17-18). Consultas do Conselho Ultramarino Bahia 1673-1695. (DH, vol. LXXXIX,
1950:81-3).
207
Por causa de sua inconstância (dos índios) achavam intolerável a lei do casamento,
e seu vinculo perpétuo, quebrado só pela morte. Tudo isso, pela graça de Deus foi
enfrentado e extinto, nesses últimos anos, com um assíduo trabalho de catequese e
freqüentes exortações em 4 aldeias de tapuia: Juru, Canabrava, Saco e Anatuba;
mesmo que algo tenha ficado até o presente, fica enterrado nos esconderijos, por
causa do medo. (Ânua ‘Litterae ex Brasilia’ 1693, ARSI, Bras 9:379). Apud (POMPA,
2001:409-10).

A cultura sertaneja se construía no seio das comunidades coloniais a


medida que as experiências sociais eram incorporadas dentro de um código
comportamental partilhado socialmente no sentido weberiano.29 Ora se
estas sociedades de pioneiros sertanejos se desenvolviam privadas do
convívio urbano, muito próxima do ambiente natural tapuia, sobre clima de
permanente ameaça, é natural que a resultante deste código em construção
fosse um estatuto onde as regras ocidentais tenham importância limitada.
Neste aspecto percebe-se que a igreja foi muito mais um campo onde se
podia partilhar convívio e encontrar um pouco de sociabilidade que
propriamente uma instituição cujos dogmas de regulamentação social
fossem plenamente respeitados e observados como prática social, tal qual
aconteceu no litoral.
Uma função importante das festas cristãs promovidas pelos
missionários era a celebração coletiva de casamentos. “Tudo isso” diz o
padre Martinho, “ajuda muito a fazer estimar essas solenidades e lhes dá
(aos índios) idéia plena do respeito pelo casamento, tanto mais quanto antes
não faziam nada semelhante, e para consolidar esse respeito sempre se faz
uma exortação pública”. (NANTES, [1706], 1979:14-15). Chamamos
atenção do leitor que o matrimonio católico não deve ser entendido apenas
como uma exigência de fundo moral, antes de tudo era um ato político. Tal
qual os sacramentos do batismo e da comunhão, a união formal legitimada
pela igreja, conectava em rebanho cidadãos – nativos e colonos – aos quais
a igreja oferecia pasto espiritual. A congregação em freguesia propiciava o
uso e a guarda das práticas cristãs, necessárias ao controle civil, sob o olhar
atento dos curas, ao tempo que garantia a função social dos religiosos na
colônia.

29 Quero referir-me ao sentido semiótico notado por Clifford Geertz “The concept of culture I

espouse is essentially a semiotic one. Believing, with Max Weber, that man is an animal suspended in
webs of significance he himself has spun.” Clifford Geertz quoted in Summer Institute of Linguistics
website, “A Lexicon of the Humanities” (http://gamma.sil.org/ humanities/ Geertz1973.htm),
capturado em 30 de Marco de 1999.

208
Cabe também se atentar para o fato de que nas frentes de expansão30
do interior nordestino, a igreja era retardatária, chegou após as relações
iniciais entre índios e brancos terem sedimentado alianças, e gerado os
primeiros núcleos familiares mestiços. A união legitimada pela igreja era
monogâmica, ao passo que as práticas, usos e costumes locais, tanto dos
índios quanto dos brancos, admitiam a poligamia,31 e assim haviam se
estabelecido ha pelo menos meio século antes da chegada dos padres na
região. Desta forma, as uniões maritais constituíram-se num importante
instrumento, utilizado por nativos e colonos para selar pazes e estabelecer as
relações de compadrio, fundamentais no instante da instalação da pecuária,
tal qual se verificou no litoral quando o casamento e o concubinato
“tornaram-se formas importantes através das quais os portugueses firmaram
sua presença entre os índios do Brasil”. (MONTEIRO, 1994:34).32
A igreja reagiu energicamente contra o pecado público, sem contudo
lograr regrar a vida social, como o fazia nos centros urbanos onde a ação
católica e seus instrumentos repressivos eram mais eficientes e melhor
observados. O discurso moralista dos missionários era inócuo a índios e
colonos do sertão, fazendo os ministros do eclesiástico apelar muitas vezes
ao poder público na tentativa de encontrar soluções temporais para seus
problemas espirituais, no mais das vezes sem resultado prático nenhum.
Nas palavras finais de sua relação nas missões do rio São Francisco, o padre
Bernard de Nantes revela o que ele desejaria para o maior avanço do serviço
divino:
Freqüentemente falta-nos autoridade para castigar e atemorizar os índios rebeldes.
Se o poder secular socorresse os missionários nesta questão, em pouco tempo se
conseguiram belas e gloriosas conquistas para a igreja. Seria necessário arrancar
dentre os índios todos esses membros podres que infectam os outros, tirar todos
os feiticeiros ou aqueles que dizem serem tais, todos os sedutores dos simples que
destroem muito mais que o missionário pode edificar, que matam impunemente.
Toda essa espécie de gente deveria ser punida pelo braço secular da lei e expulsa
das aldeias corrompidas pelos seus abusos. Vemos nós que nas repúblicas cristãs o

30 Sobre o conceito sociológico de frentes pioneiras, ou frentes de expansão, “Frente Pioneira:

contribuição para uma caracterização sociológica” (MARTINS, 1972, CCERU, 5, 102-12); Waibel,
L.H. “As zonas Pioneiras do Brasil”, (RBG, ano XVII, n° 4, 1955:389-417).
31 Este era um de grande relevância, no regulamento das missões do Estado do Maranhão incluía um

item específico recomendando o combate ao adultério. (REGNI, 1988, vol I:137, nota 70).
32 Em outro trabalhoJohn Monteiro registrou: “Not surprisingly the most successful early Portuguese

settlements were precisely those where significant alliances had been struck between European
adventures and native headmen. Characteristically these alliances were cemented by marriage
strategies, as headmen adopted” outsiders as sons-in-low. One notable case occurred in captaincy of
Pernambuco, were the proprietor’s brother in-low Jeronimo de Albuquerque married Tabajara
headman Arcoverde’sdaugther. Although this Luso-tabajara alliance broke down later in century,
when a native headman was enslaved by an unscrupulous Portuguese, it explains why the captaincy
prospered from an early date” (MONTEIRO, 2000, vol III, Part I:973-1023).
209
poder eclesiástico tem as suas dificuldades e censuras, e que sejam usadas suas leis
e seus castigos para punir os perdidos, e conter, cada qual no seu dever, sem o qual
o mundo cristão não serve mais, a não ser como companhia, toda a terra de
badernas e desordens. (NANTES, [1702]).
Em resposta a coroa publicou uma série de medidas de pouco efeito
visando coibir o uso de mulheres nativas “em desserviço de Deus”.33 O
rompimento da ordem espontânea de uniões e a implementação de uma
nova ordem cristã católica mostrou-se ser um dos maiores entraves à
expansão da fé nestes sertões. Quando os ministros da igreja iniciaram o
combate sistemático ao pecado público, gerou-se um denso clima de
revolta, muitas vezes acompanhado por levantes. As práticas das uniões
maritais no sertão iam além da capacidade dos missionários de modificá-las,
no entanto a batalha foi dura e espraiada. No Rio Grande do Sul, os
fazendeiros atentaram contra a vida do cura e do juiz ordinário durante a
instalação da freguesia daquele distrito, por estes ministros combaterem o
concubinato. No contexto das disputas de terras que culminaram com a
expulsão dos jesuítas das terras da Casa da Torre, em carta de 5 de maio de
1696, informava o provincial dos jesuítas, padre Alexandre de Gusmão que
as aldeias dos índios Carurus no rio São Francisco haviam sido vexadas pelo
mesmo motivo:
No rio de São Francisco foram vexados os padres missionários e os índios da
aldeia do Caruru pelos curraleiros vizinhos, por os padres se recusarem a
administrar os sacramentos aos que viviam impunemente em pecado público.
Obrigados a buscar sítio diferente para aldeia, onde pudessem tranqüilamente
servir a Deus e à Salvação dos Índios, que lhes incumbia converter, andaram em
vão mais de 200 léguas, entre idas e vindas, para pedir socorro aos senhores das
terras, contra os inimigos que confiavam na audácia sem se guiar pela razão.
(ARSI Bras, 4:9v); (LEITE, 1945, vol. V:299).

Na carta do bispo D. Francisco de Lima, inclusa na Consulta ao


Conselho Ultramarino de 29 de outubro de 1697, percebe-se outra disputa,
desta feita entre o referido bispo e o mestre-de-campo Domingos Jorge
Velho. O problema maior entre o paulista e o bispo de Pernambuco estava
em que, apesar de dizer-se cristão e casado, Domingos Jorge Velho
mantinha um harém privado, segundo o bispo de “sete índias concubinas”.
Conclui D. Francisco:
E daqui se pode inferir, como procede e no mais; tem sido a sua vida desde que
teve razão (se he que a teve, porque se assim foi, de sorte a perdeu, que entendo a
não achará com facilidade) até o presente anda metido pelos matos à caça de

33 ‘Sobre o que pede João Duarte do Sacramento acerca de se prohibir que os soldados do Certão

levem as índias para seus quartéis e que pa aquellas Aldeas se não leve a vender vinho ou aguardente
pellos certoes e Aldeas, donde assistem os Índios pello grande prejuízo que isso resulta”. Registro de
Provisões do Conselho Ultramarino, Lisboa, 26 de Março de 1683. (AHU, cód. 49:19-20).

210
Índios, e de Índias estas para o exercício das suas torpezas, e aqueles para os
granjeios dos seus interesses. (AHU, Caixa 9, P.A. Pernambuco).34
O segundo bispo do Maranhão, D. Timóteo do Sacramento dos
Eremitas de São Paulo, estava determinado a dar um paradeiro à situação
das relações não legitimadas pela igreja, e principiou, em 1697, uma cruzada
‘contra o escândalo dos concubinatos’ em sua diocese, formalizando
procedimentos de inquérito e prisão dos culpados. Sua ação atraiu a ira do
senado da câmara, o governador e demais autoridades daquela praça,
tomando o episódio contornos de guerra se prolongando até que o ouvidor
sitiou o paço episcopal, forçando o bispo a uma composição. A situação
não se aquietou por aí; até a morte de D. Timóteo em 1700, outros eventos
irromperam isoladamente, envolvendo o combate ao pecado público.
(LACOMBE, 1993, Tomo I, vol.II:68).
No litoral, a presença de núcleos familiares de origem portuguesa
dominava a pequena-corte açucareira; a oferta de mulheres européias era
muito maior, os mecanismos de controle social estavam muito mais
aguçados contra as uniões inter-raciais que no sertão, e a igreja exercia um
controle cerrado na população urbana e rural. No interior, como vimos
antes, as contagens populacionais mais antigas mostram uma irrelevante
presença de mulheres brancas. (COUTO, [1697] 1938:370-89); (MOTT,
1985. passim.) Naturalmente esta ausência fez com que a base familiar
sertaneja fosse construída a partir de ligações de colonos brancos com
mulher tapuia.
A resistência dos tapuias aldeados à mudança cultural foi contínua.
Permitiam-se os índios serem arrebanhados para os currais do senhor, mas
não se deixavam montar. Não obstante o esforço dos religiosos, as forças
apostólicas não foram suficientes para impor sua ordem linear no espaço
dominado por nativos e colonos. Falhara o projeto missional no objetivo
básico de evangelizar e de formar um campesinato nativo livre. Neste
sentido, foram os colonos e tapuias mais eficientes em atingir os objetivos
coloniais de fazer povoar, usando justamente o que os missionários
combatiam: o “concubinato” e o “pecado público”.

34 O Jesuíta Juan Antônio Ruiz de Montoya, referindo-se a mulheres nativas cativadas em campanha

pelos paulistas e suas práticas sexuais relatava: “casadas, solteiras ou gentis, o dono as encerrava
consigo em um aposento, com quem passava as noites ao modo de um Cabrão (Bode) num curral de
cabras” (MONTOYA, 1639:92v-93). Tradução minha. (ABREU, 1954:351).
211
Instalação das freguesias e vilas do sertão.
Os poucos curas e missionários assistentes em Rodelas até o final do
século XVII não eram suficientes para atender as crescentes demandas da
população que se assentava com as fazendas de gado, distantes umas-das-
outras dezenas de quilômetros. Um dos mais freqüentes argumentos
aventados para justificar a violência e a decadência dos costumes nos sertões
era a “soltura” com que viviam seus habitantes, mergulhados na ‘barbárie’,
distantes da urbanidade e da igreja. Logo depois da retirada dos holandeses
do litoral nordestino, manifestaram-se as primeiras opiniões que destacavam
a importância da formação de vilas e freguesias como fixadores das
conquistas, e como veículos de humanização e desbarbarização do espaço
do sertão. Em 25 de janeiro de 1656 o conde de Atouguia, escrevia ao rei
argumentando a incoerência de os governadores gerais não terem, como os
donatários, autonomia para a ereção de vilas:
A experiência mostra evidentemente quanto a falta desta jurisdição é causa de
não estar mais povoado este Estado (Brasil) pois na parte onde os donatários a
concedem a seus Capitães-mores, se multiplicam e vão multiplicando sempre as
vilas, como se viu na de Pernambuco e se vê com maior excesso na de São
Vicente, e pelo contrário, nas donde o poder toca ao governo se não acrescenta
uma só.35
Após a chegada dos primeiros colonos, as conquistas do sertão do
São Francisco permaneceram mais de meio século sem qualquer forma de
administração civil. A primeira iniciativa foi o estabelecimento do curato de
Nossa Senhora da Conceição do Pambú, mais tarde chamado de Cabrobó,
erigido sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição dos Rodelas.
(CALDAS, [1759], 1931, RIHGB, vol. 29:3-444). Em 1697 o bispo de
Pernambuco, D. Francisco de Lima, assim descrevia este distrito eclesial:
No sítio que chama Cabrûbû junto do rio de S. Francisco está um curato, cuja
Igreja de N.S. da Conceição, o ultimo que este bispado tem da banda do Sul; cujo
distrito continuando-se pela margem acima do dito Rio, que fica pela parte do
Norte não tem limite, compreendendo tudo o que de Santo Sê está da mesma
parte, e todo o Sertão a que chamam de Rodella, que pelas travessias do que he
cursado contêm mais de 400 léguas. (AHU – Caixa 9, P.A.. Pernambuco).

35Carta do Conde de Atouguia, Vice-rei do Estado do Brasil, 25 de janeiro de 1656, publicada por
Alberto Lamego em A terra dos Goytacá, (LAMEGO, 1913, vol. 1:100-1); (VARNHAGEN, 1948, Vol.
III:326). É interessante notar esta referencia do Conde de Atouguia à relação da ocupação no
Nordeste e de uma capitania do Sul. Um documento aproveitado por Capistrano de Abreu em
‘Capítulos de História Colonial’ – edição de 1928 – e depois no prefácio da ‘Visitação do Santo
Ofício às partes do Brasil – Confissões da Bahia’, ajuda a compreender como a tomada do Nordeste
pelos holandeses influenciou o desenvolvimento das Capitanias do Sul, carreando investidores e força
de trabalho para aquela região. (ABREU, 1928:189-0); (ABREU, 1935:XXV).

212
Estas também eram as fronteiras do sertão de Rodelas àquela época;
o limite ao Norte ainda não estava bem definido, mas a parte explorada
perfazia “mais de 400 legoas” onde, segundo o prelado pernambucano, se
encontravam “muitas povoações em grandes distâncias umas das outras”. O
isolamento dos moradores era causa de que milhares de uniões entre nativos
e brancos não fossem legitimadas pela igreja. Esta dispersão justificava o
isolamento e a falta de assistência religiosa dos colonos, usada pelo bispo de
Pernambuco para defender a criação de freguesias em seu distrito:
Alem de pouco devoto que são os moradores; as distâncias grandes em que
vivem, das Igrejas lhes dificultam, e fazem quase impossível vir a ela, e assim
passam todo o ano sem missas, e sacramentos porque não ha sacerdotes, que lhes
administre fora do cura nomeado. (AHU, Caixa 9, P.A. Pernambuco de 29 de outubro
de 1697).

A situação não era privilégio de Rodelas, reproduzia-se em quase


todo espaço das novas conquistas dos sertões. Em Lisboa maturava-se a
idéia de congregar os vassalos espalhados pelos sertões em povoações, onde
eles pudessem receber assistência religiosa e civil, e também, serem
eficientemente submetidos à vassalagem real. Em 23 de novembro de 1683
o Conselho Ultramarino apreciava correspondência do capitão-mor, dos
oficiais da Câmara do Rio Grande do Norte e do ouvidor da Paraíba, na
qual a idéia da formação de núcleos de povoamento aparece de maneira
muito clara. Pediam os suplicantes a presença de milícias soldadas da Coroa
para garantir a conservação do sertão que vinha sendo reconquistado pelos
tapuias, resultando em perda de vidas, graves danos aos pecuaristas e ao
fisco real. O Ultramarino entretanto, argumentando que a situação vivida no
Brasil, originava-se no desgoverno e independência dos vassalos, entendeu
sugerir outro remédio que não o solicitado pelos camaristas: a formação das
povoações. Diz o parecer:
Em benefício de seus vassalos e conservação das conquistas e porque em muitas
partes delas se acham espalhados muitos moradores em sítios tais que não só
recebe o serviço de Vossa Majestade utilidade alguma das suas pessoas, mas,
ordinariamente há grandes queixas da soltura e liberdade com que vivem de que
procedem inumeráveis delitos e ainda na obrigação de cristãos com pouco
conhecimento e temor de Deus, e morando em tal distância das igrejas que lhes
não é possível virem assistir aos atos dela, como são obrigados. E porque é justo
que neste particular se possa dar forma conveniente que procurará fazer
povoação a que os reduza fazendo-lhes regimentos, porque se governem assim
no político e civil, como na administração da justiça, para que por este meio se
evitem as desordens que costumam suceder naqueles sertões. (DH, 1950, vol.
LXXXIX:242-4).

Mais tarde o Governador Geral do Brasil, Luís Cezar de Meneses


(1705-1710), voltava a defender a criação de povoações como remédio

213
contra o crime e a desordem no sertão. Dizia que, para se atalharem os
insultos e excessos que se cometiam no Recôncavo da Bahia e nos sertões,
se fazia necessário a criação de muitas vilas, e que estas deveriam dar “as
mãos, umas às outras”, formando uma espécie de rede civilizatória. Cezar de
Menezes apoiava-se nos resultados obtidos nas conquistas das Jacobinas
para demonstrar o poder desta ação, destacando que “até gozar daquele
benefício” servia aquela região de “couto a criminosos, que desapareciam
nos dias em que os ouvidores estavam à correição, voltando logo depois
para repetirem os assassinatos, roubos e toda a sorte de malefícios”.36
Segundo sugerem alguns estudos de demografia histórica,37 a
ocupação branca nestes sertões, comparada com a do litoral no final do
século XVII, era baixíssima. Para entender esta circunstância cabe lembrar
alguns fatores que contribuíram para manter em baixa relativa a taxa de
povoamento de Rodelas. Primeiro deve-se atentar para o fato de que esta
região forneceu permanentemente elevados contingentes para as novas
conquistas que, partindo de Rodelas, se expandiam para o Piauí ao Norte e
Nordeste, e ainda nas frentes que se espalhavam desde a Gurguéia até os
rios Preto e Grande do Sul, alcançando o Tocantins no extremo Oeste.
Outro fator de igual importância histórica foi a migração interna entre as
conquistas dos sertões. (ANTONIL, 1711:131); (ABREU, 1954:232);
(AZEVEDO, 1929:134). Após as descobertas dos campos auríferos das
minas, pouco depois de 1690, partiram de Rodelas para o circuito mineiro
grandes levas de pecuaristas, levando consigo escravos e agregados. (ABN,
1939:147), (ABREU, 1928:189-90); (ABREU, 1935:XXV). Esta sangria por
um lado desfalcava a produção pecuária, e por outro dava lugar à evasão da
fazenda real que, até o final daquele século, não possuía instrumentos
eficientes de fiscalização. Para minimizar os efeitos do fluxo migratório e do
descaminho dos quintos, o governo colonial ordenou o fechamento das
fronteiras entre a Bahia e as comarcas auríferas, via o rio São Francisco.38
Por fim as guerras gentílicas, promovidas contra os ‘bárbaros’ das capitanias
do Rio Grande do Norte, do Ceará, do Estado do Maranhão, da conquista
do Rio Grande do Sul e dos Palmares, abasteciam-se constantemente das
reservas contingenciadas nas aldeias de tapuia reduzidos no rio São

36 ‘Justificativa do Governador Luiz Cezar de Menezes para criação da vila de Maragogipe em 16 de

fevereiro de 1724.’ Códice Manuscrito da Biblioteca Pública sem referencia de local, publicado em
História Territorial do Brasil, (Bahia, Sergipe e Espírito Santo) (FREIRE, 1906, vol. I:155).
37 Ver estudo de Luiz Mott baseado na análise da descrição seiscentista do Piauí do padre Miguel do

Couto Carvalho. (MOOT, 1975).


38 Ordem Régia para D. Fernando Martins Mascarenhas de Alencastre, proibindo o trafego de

pessoas, gado e mantimentos pelos sertões entre Pernambuco e as Minas de São Paulo. Lisboa 7 de
fevereiro de 1701. (ABN, vol.XXVIII, 1908:85).

214
Francisco e interior da Bahia. Do sertão de Rodelas e suas adjacências
também partiram levas de ‘índios mansos’ para formar os arraiais de defesa
situados nas fronteiras das conquistas.39
Para conter a sangria da população sertaneja, continuamente ceifada
à força dos crimes e desfalcada pelas migrações internas, e para combater as
uniões maritais que se formavam à margem da igreja, a Coroa iniciou a
instalação formal da jurisdição eclesiástica na região com o estabelecimento
das freguesias, passo inicial para o assentamento das povoações. Em
fevereiro de 1696, o Rei ordenava ao Ultramarino que desse vista à Consulta
da Mesa da Consciência e Ordens sobre seis curatos que o arcebispo da
Bahia, D. João Franco de Oliveira, peticionava que fossem criados. A
proposição foi aprovada pelo Conselho Ultramarino e sancionada pelo rei
em 28 de fevereiro daquele ano.40 Imediatamente aquele prelado passou a
percorrer o sertão da Bahia, ministrando crisma a cerca de 40 mil pessoas e
diligenciando a fundação dos curatos.41
Para instalar as freguesias da jurisdição de Pernambuco, o bispo
daquela capitania, frei Francisco de Lima, indicou o padre Miguel do Couto
Carvalho, que já no início do ano de 1697 noticiava a criação da paróquia do
Piauí, sob a invocação de Nossa Senhora da Vitória. (ENNES, 1938: 360-1,
363-64). A relação desta freguesia ou a Descrição do Sertão do Piauí, foi
remetida pelo padre Carvalho ao prelado de Pernambuco um mês após o
assentamento. (COUTO, [1697] 1938:370-89). A Relação do padre
Carvalho dissecou os limites da freguesia que se instalava no Brejo da
Mocha, demarcando o traçado primitivo da futura capitania do Piauí que,
anos mais tarde, foi anexada ao Estado do Maranhão. Em outro documento
o Bispo noticiava a relação da criação da paróquia do Rio Grande do Sul: “a
sua notícia, e descrição remeterei a V.M. na frota vindoura”. Não sabemos
contudo se D. Francisco tratava da breve descrição incluída por Miguel do

39 Registram-se aldeamentos privados entre senhores de terras pecuaristas, tais como os de Antônio

da Silva Pimentel. Ver: Consulta do Conselho Ultramarino: Sobre o que pede o Antonio da Silva Pimentel e
vay a informação que se acuza. Lisboa, 14 de Mayo de 1706. (AHU, cód. 52:140-140v). Ver ainda
Consulta do Conselho Ultramarino, Lisboa, 26-11-1691. ‘Sobre dona Joana de Araújo, viúva de
Antonio da Silva Pimentel, acerca das partilhas’. (AHU, cód. 256:125); João Peixoto Viegas. Sobre
mudança das aldeias Paiaiás ver: O que pede João Peixoto Viegas, 1675. Carta Régia de 26 de Agosto
de 1680, (ADF, vol. IV:253); Apud (LEITE, 1945, vol. V:279-80); Antônio Guedes de Brito, ver:
Declaração de posses de Antônio Guedes de Brito. Publicado em As Terras do Guedes de Brito.
(RIGHB. 1916, Vol XI, n° 42); e Francisco Dias d’Ávila, ver: (RIHGB, Tomo XX:19, 1857).
40 Consulta ao Conselho Ultramarino sobre a criação de 6 curatos – Bahia – 1695-1696 – 1724-1732’

(ABN, 1950, vol. XC:8).


41 Segundo Lacombe, a peregrinação do Arcebispo da Bahia deu-se entre 1697 e 1700. (LACOMBE,

1968, vol. 2:61).


215
Couto em sua relação do Piauí, ou de um outro documento
desafortunadamente perecido no tempo.42
Em 16 de maio de 1697, o Conselho Ultramarino emitiu parecer
favorável à multiplicação das missões e paróquias em Palmares e Rodelas, e
aos vinte e nove de Outubro aconselhou ao Rei que sustentasse a criação
dos dois curatos de Rodelas. Os curatos que cabiam a Pernambuco dividiam
eclesiasticamente o distrito das novas conquistas da Casa da Torre e de
Domingos Afonso Sertão, que se expandiam do núcleo de Rodelas no
Cabrobó. O governador determinou que os Senhores cedessem terras para
duas novas freguesias e seus respectivos passais. Ao mesmo tempo o bispo
de Pernambuco enviava para aqueles sertões quatro novos curas. Em 20 de
novembro daquele ano, o Ultramarino já apreciava os papeis remetidos pelo
bispo de Pernambuco referentes à criação da nova paróquia do Piauí; entre
eles constava o termo de instalação e benção da capela, o documento que
dava posse ao reverendo vigário licenciado Thomé de Carvalho e Silva, e a
Descrição do Piauí.43 A outra paróquia levantada por força da política de
ereção de povoados, foi a do Rio Grande do Sul, anunciada por Miguel do
Couto:
O Rio Grande, e o Rio preto, grandes e caudalosos que correm para o sul e se
metem no Rio de São Francisco 500 léguas ao sertão a cima de sua Barra; junto
do qual estão estes dois Rios povoados com fazendas de gados com muitos
moradores entre os quais se vai de presente fazer uma nova Matriz, por ordem
também do Ilustríssimo e Reverendíssimo Bispo de Pernambuco a qual ficará
distando desta do Peauhy (Nossa Senhora da Vitória) 220 léguas pelo caminho
sabido. (COUTO, [1697] 1938:370-89).
A decisão para criação das duas paróquias foi emitida para a Junta
das Missões em 13 de fevereiro. Aos 11 de junho, o bispo de Pernambuco
já comunicava ao secretário de Estado Roque Monteiro Paim: “Para o bem
espiritual das almas, como também para o aumento temporal do Estado; (...)

42 infelizmente não conhecemos este documento que certamente seria de grande valia para história do

São Francisco. ‘Carta autografa de D. Francisco Lima, Bispo de Pernambuco, de 11 de junho de


1697, remetendo a Roque Monteiro Paim a descrição do Piaui’ (ENNES, 1938:362).
43 A 4 de fevereiro do ano seguinte o Conselho aprovava as deliberações dos piauienses registrando

que eles se obrigavam a: pagarem a côngrua de dois mil reis por cada morador e dez tostões por
escravo; para construírem a igreja. Em anexo ao processo apreciado no Ultramarino acompanhava: o
termo de fundação da confraria de Nossa Senhora da Vitória do Piauí, datada de 11 de fevereiro de
1697; o termo em que os moradores se obrigavam a manter a igreja, datado do dia seguinte; além do
termo de posse do vigário. (ENNES, 1938:360 e ss).

216
outra paróquia (...) tenho mandado levantar, quinhentas léguas ao sertão da
barra do rio São Francisco”.44
Como vimos no capítulo anterior, esta região, fronteira extrema
ocidental do sertão de Rodelas, era domínio de povos tupis evadidos da
costa no final do século XVI, no encalço dos quais, desde princípio do
século seguinte, tropas de paulistas se embrenharam sertão adentro. Neste
ofício se encontravam Domingos Jorge Velho e sua tropa nas cabeceiras do
rio Gurguéia, quando o padre Miguel do Couto esteve na região preparando
a criação da freguesia do Rio Grande do Sul.45
Como resultado da expansão pecuária e da ação paulista,
rapidamente a região tornou-se um ponto de instabilidade ameaçador. Em
Janeiro de 1698 o Governador D. João de Lencastro, dava ciência pública
da petição de 150 moradores da Lagoa do Pernagua, Rio Preto, Rio Grande
e Rio de São Francisco, na qual se declarava o estado de hostilidade que se
instalara naqueles sertões, tendo os índios atacado e destruído diversas
fazendas, devorando senhores e escravos. Para atalhar a situação os
moradores solicitavam a fundação de um arraial de gentio manso, que
deveria ser erigido pelo sargento-mor Antônio Gomes de Sá, formado por
índios domésticos que viviam na região e que mantinham alianças tanto
com pecuaristas quanto com os índios levantados.46
Os arraiais, também referidos na literatura como presídios, foram
soluções tradicionalmente utilizadas para sustentar fronteiras e preservar
áreas de conquista recente; serviam também como marcos limitantes do
domínio dos brancos, levantados para separar estas conquistas de áreas
ocupadas por nativos em processo ativo de resistência. Os arraiais
funcionavam em quase absoluta independência do poder colonial, e eram
criados para atender as demandas dos grandes consórcios da pecuária que,
na prática, convertiam-se em poder militar organizado e permanente à

44 Certamente D. Francisco Lima superestimava esta distância que na realidade monta pouco mais de
150 léguas. Carta autografa de D. Francisco Lima, bispo de Pernambuco, de 11 de junho de 1697.
(ENNES, 1938:362).
45 Registrou Miguel do Couto “Para o poente (do Sertão de Rodelas) confina com os matos desertos

que correm para as índias de Espanha, pelos quais não há caminho nem se sabe de seu fim; por eles
dentro tem chegado algumas tropas de Paulistas avistar grandes rios, entre os quais contam o do grão
Pará, Parnaíba, Goroguea, Paraim, que todos correm para o Norte, (...) estão ao sertão povoados de
muitos tapuias bravos valentes e guerreiros entre os quais se acham alguns que se governam com
alguma rústica política, tendo entre si Rei e chamando a seus distritos reinos, como são os Rodelleiros
que se contam com 7 Reinos, e são tão guerreiros que até agora não foram ofendidos nem de entre
eles se tem apanhado língua sendo muitas vezes acometidos por grandes tropas de Paulistas;”
(COUTO, [1697] 1938:371).
46 ‘Provisão de D. João de Lencastre para mudança de aldeias no Parnaguá.’ (APEB, Livro de Alvarás

1650-1681:149v-151). Cadernos de notas de José Antônio Gonsalves Mello; (MELLO, 1962, vol V).
217
serviço dos senhores de terras. Ocorre entretanto que, à esta época, a Coroa
estava empenhada em reduzir o poder local destes senhores a níveis
administráveis politicamente, e assentar estruturas de poder descentralizado.
Desta forma, tal como havia acontecido no Rio Grande do Sul, em lugar da
criação de arraiais foi estimulado o desenvolvimento de povoações e a
fundação de freguesias, onde a defesa podia ser controlada pelos agentes do
Rei, principalmente em áreas onde havia demanda de guerra de resistência e
alto índice de criminalidade.
A 8 de Janeiro de 1697, D. João de Lencastro respondeu aos
vassalos do Parnaguá por provisão, confirmada em Carta Régia de 2 de
Dezembro do mesmo ano, na qual autorizava a formação do arraial, com a
declaração expressa de que, para este efeito, não deveriam se servir de
índios das missões do rio São Francisco.47 Ao lado desta medida, o
Governador Geral em 10 de novembro de 1698, ordenou que se fundassem
as povoações do Paranaguá e Santa Rita da Barra do Rio Grande do Sul. A
estas, segundo Urbino Viana, acrescentou logo após a do Campo Largo,
para que seus habitantes pudessem “opor resistência eficaz aos Acoroazes,
Mocoares Rodelleiros.” (VIANA, 1935). Apud (MEDEIROS, 2000:116).
(ALENCASTRE, RIHGB. Tomo XX:19, 1857). Em 13 de fevereiro de
1698, o rei ordenou a criação do curato da Serra da Barriga nos Palmares
fronteiriço a Piranhas, fechando o primeiro rascunho do mosaico
eclesiástico do sertão. (ENNES, 1938:360-1).
A criação dos curatos, freguesias e vilas encontrou, entretanto, forte
reação dos senhores, que não se acomodavam à idéia de ceder terras e
espaço político para os religiosos e moradores. A leitura ordinária que se
tem feito desta resistência prende-se em geral à idéia simples de avareza
fundiária; contudo, parece-nos haver um outro entendimento mais
complexo para a questão. Pouco se tem aventado sobre o direito de
padroado que era concedido ao senhorio por ocasião da concessão
sesmarial. Por este estatuto, competia aos donatários o privilégio da
edificação, dotação e paramentação das igrejas, bem como a indicação dos
vigários das freguesias, e o gozo das demais prerrogativas do padroeiro.
(SILVA, 1990). (RCH, vol, V:291-319).48

47 “Gentios Barbaros do rio S. Francisco, ordem para se os aldear” Carta Régia de 2 de Dezembro de

1698 para D. João de Lencastro, ordenando a criação de um arraial de índios mansos para combater
os Acoroazes, Mocoares Rodelleiros. (BORGES de BARROS, 1920:329).
48 A formação de freguesias era uma das faces da instalação de povoações, todavia esta ação limitava-

se a formação congregacional, ou seja a concordância dos católicos com a submissão a uma


determinada jurisdição eclesiástica. Reunidos em assembléia cristã, assumiam a condição de fregueses
e as obrigações paroquiais de ereção, doação de paramentos sacramentais, alfaias, imagens, adornos e
manutenção da igreja. A seu turno, a formação de povoações ou vilas era a instalação do próprio

218
Em 1697 o padre Miguel do Couto Carvalho49 anunciava a criação
da freguesia de Nossa Senhora da Vitória do Piauí, erigida em terras do
possessório de Domingos Afonso Sertão, que abrigava, além da área dos
passais, a casa paroquial e as estalagens levantadas para hospedar os
fregueses em trânsito que vinham assistir o serviço da igreja. Em Agosto do
ano seguinte, Domingos Afonso Serra, sobrinho do senhor das terras, a
mando do tio, despejou o vigário Thomé de Carvalho e Silva, um dos curas
designados pelo bispo de Pernambuco para Rodelas. Acompanhado de
índios e escravos derrubou as instalações da paróquia, e expulsou o cura.50
No rio São Francisco, o padre Thomé encontrou Miguel do Couto, que fez
este retornar ao Piauí “com cartas e ordens aos moradores para que
defendessem e ajudassem a reformar as casas e a igreja com mayor
grandeza”.51 Este episódio estava também conectado com pretensões dos
foreiros do Brejo da Mocha de se libertarem do domínio foral da Casa da
Torre e Domingos Afonso Sertão, e mais tarde, foi se desdobrar num
levante de foreiros, como discutiremos adiante.
Em 28 de junho de 1699 o governador de Pernambuco, D.
Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre (1699-1703), informava ao Rei
que na freguesia do Rio Grande do Sul, o juiz ordinário e o cura da
localidade haviam sofrido atentado, escapando da morte por não haverem
sido encontrados em suas residências.52 Como vimos antes, a motivação

poder civil, ou seja: a criação da Casa de Câmara, cadeia, eleição dos vereadores camaristas, e
nomeação de Juizes Ordinários. Sobre a administração de vilas no Nordeste colonial ver (SOUZA,
2002).
49 O Padre Miguel do Couto Carvalho, era irmão do prestigiado Capitão-mor Antônio de Carvalho e

Almeida, sucessor de Bernardo Vieira de Melo na capitania do Rio Grande (1701-1705). Parece que o
Padre Miguel do Couto se valeu do prestígio do irmão foi até a Portugal tratar pessoalmente do
assunto com o Rei, isto se depreende da série documentos que se desdobram desta viagem, e em cujo
texto testemunham sua presença na corte informando e assessorando o Rei numa série de medidas
pertinentes a instalação do poder civil em Rodelas. Esta atuação permite-nos entender o Padre
Carvalho como eficiente arquiteto, sob cuja ação foram promovidas as mudanças que marcariam
adiante a quebra do poder dos grandes senhores de terras, seguido da derrocada dos Jesuítas e
Capuchos no sertão de Rodelas. Em curto espaço de tempo medidas ordinárias evoluem para firme
legislação, materializada no emblemático Alvará de 23 de novembro de 1700, que pode ser invocado
como divisor de águas, a partir do qual uma nova ordem se estabelecia. O Alvará regulou para todo o
Estado do Brasil a questão fundiária, envolvendo senhores de terras e a Igreja, a formação de
aldeamentos, povoações, direitos dos vassalos e atribuições de distritos e jurisdições.
50 Assim registrou Odilon Nunes o episódio: “Em agosto de 1696, Domingos Afonso Serra, a gente

de escravos, invade a sede da freguesia (Oeiras), desacata o padre Tomé de Carvalho, xingando-o e
forçando-o a abandonar sua igreja. Arrasa então, as palhoças que o cura mandara fazer para arranchar
seus paroquianos nos dias de festas e no cumprimento de seus deveres religiosos” (NUNES, 1972);
(PEREIRA da COSTA. 1974:66).
51 Carta Regia ao Governador Geral do estado do Brasil, D. João de Lencastro, sobre as violências de

Domingos Affonso Sertão’. Lisboa, 13 de Janeiro de 1699. (BORGES de BARROS, 1920:364-5).


52 Ordem Régia com parecer do Conselho Ultramarino sobre Ação de devassa no sertão de Rodellas

para apurar e condenar culpados pelas violências cometidas contra o Juiz do Rio Grande do Sul e
219
apontada pelo governador para o atentado era o combate ao concubinato.
De fato este deve ter sido um dos agentes da discórdia, mas não se pode
deixar de ver na criação das vilas e dos juizados e no conseqüente
reordenamento das forças de poder local, motivo bastante para reação
violenta dos senhores de terras, tal qual aquela havida poucos meses antes
no Brejo da Mocha, no Piauí.
Cientificado das ocorrências do Piauí e do Rio Grande do Sul, o Rei
ordenou a 13 de janeiro de 1699 que o Governador Geral do Estado do
Brasil, D. João de Lencastro, enviasse a Rodelas o ouvidor geral de Sergipe,
Diogo Pacheco de Carvalho, para tirar devassas, prender os responsáveis
pelos abusos, e enviar as peças e os culpados à Relação da Bahia, a qual
deveria fazer a justiça necessária. A ordem instruía ainda que eram
obrigados os culpados a reedificarem as casas e igrejas derrubadas à custa de
sua própria fazenda, “mandando-se concertar ou fazer de novo no sítio que
for mais acomodado, e próprio para se tratar do bem das almas desta
Freguesia sinalando-se ao Cura os passais e logradouro que lhe forem
necessários para a sua assistência”. (BARROS, 1920:364-5).
Não confiando na isenção do ouvidor de Sergipe, ou por temer que
este também fosse desrespeitado – ato que, certamente resultaria numa
desgastante e cara intervenção da metrópole – uma semana depois a coroa
despacha nova carta, esta para o Governador de Pernambuco, D. Fernando
Mascarenhas Martins de Lencastre, ordenando a criação do cargo de juiz de
vintena para atuar em Rodelas, sobre os quais antes nos referimos. Estes
magistrados atuavam com especiais poderes judiciários. Estavam habilitados
a atribuição de penas, antes delegada à Relação da Bahia, a julgar e
sentenciar sobre a matéria específica. A Ordem Régia estendia a culpa dos
atos dos criminosos a seus mandantes, fugindo o foco do executor para o
autor intelectual dos delitos, mandava seqüestrar bens e aplicar penas
pecuniárias. Atribuía aos corregedores e ouvidores das comarcas a obrigação
de visitar a cada três anos os moradores do sertão, e por fim, para garantir a
segurança dos novos ministros do judiciário, resolvia:
Que se crie em cada uma das tais freguesias um Capitão-mor, e mais cabos de
milícia e que nestes postos se nomeiem aquelas pessoas que forem mais
poderosas, os quais serão obrigados a socorrer e ajudar os juizes, dando-lhe toda
ajuda e favor para as diligências da justiça. (ABN, 1908, vol. XXVIII:341).
A medida desautorizava o ouvidor de Sergipe e a Relação da Bahia a
quem, por esta nova decisão, caberia apenas acatar a resolução dos

Ministros eclesiásticos por parte de Portugueses afazendados. Lisboa a 29 de Outubro de 1700.


(IAHGP cód. Ordens Régias 1700 – 1704).

220
vintenários. Mais que isto, a Coroa dava prova clara que não confiava na
isenção da justiça da Bahia,53 mandando inclusive força policial de Olinda
para garantir o cumprimento do processo. Contudo, a questão da terra
ainda se arrastaria sem solução por muito tempo.

Política fundiária: novas cartas na mesa.


Em 20 de janeiro de 1699, na mesma data da Ordem Régia que
autorizava a nomeação dos juizes vintenários, outra carta seguia, desta feita
destinada ao Governador Geral do Estado do Brasil, D. João de Lencastro,
autorizando as denunciações de sesmarias devolutas no sertão:
Sendo um dos motivos mais [ilegível] o não se povoarem os Sertões dele, por [se]
forem dados a duas ou três pessoas particulares que cultivam as terras que podem
deixando as mais devolutas sem consentirem que pessoa alguma as povoe, salvo
quem a sua custa as descobrir, defender, e lhe pagar dizimo de foro por cada
sitio cada um ano. (...) se as tais pessoas não tiverem cultivado, e povoado parte
de suas datas, ou todo, denunciando qualquer do povo a tal parte, e sitio, e
descobrindo. Hei por bem se lhe conceda (...) por sesmaria que está inculta, e
despovoada, o que se decidirá breve, e sumariamente com declaração que o tal
sitio, ou parte denunciada não exceda a quantidade de três léguas em comprido e
uma de largo, ou légua, e meia em quadra, e excedendo esta quantia se dará esta
ao denunciante, e o mais aquém parecer, guardando-se a declaração em todas
com quem se lhe partir, e que estas pessoas a quem se derem de futuro as tais
sesmarias se ponha alem da obrigação de pagar dízimo a Ordem de Christo, e as
mais costumadas a de um foro, segundo a grandeza, ou bondade da terra. (APEB.
Seção Colonial/Provincial. Ordens Régias / maço 5, 1698-1699:113).

53 Num documento anônimo do final do século XVII o autor alertava ao rei: “(...) se deve advertir,

que assim como Sua Majestade de três em três anos manda tirar residências aos seus governadores,
também as devia mandar tirar aos desembargadores da Índia, e do Brasil; porque nestes estados não
são somente régulos, são deuses, e também dos provedores da fazenda real, e do infernal tribunal dos
defuntos e ausentes de que nem os presentes, nem os vivos se vêem livres, e exemplos das ladroices
deste tribunal, e do juízo dos órfãos também onde ha milhares de ladroices. Também se pode
advertir que em Pernambuco se acha, que mais gente se tem morto á espingarda depois de sua
restauração, do que matara a mesma guerra, com casos terríveis, e espantosos, sem lá se ver justiçada
pessoa alguma, e o ouvidor de Pernambuco, e os juizes ordinários o mais que chegam a fazer é tirar
uma devassa, e procurar as custas delas, e donde não ha castigo não ha temor, e este ouvidor está
exercendo o crime e o cível, e a ocupação dos defuntos e ausentes e a de juiz dos órfãos muitas vezes,
e, pelas ferias vai à correição das vilas daquela capitania, ocasião pela qual falta aos despachos cíveis e
crimes, e às audiências necessárias e aos despachos dos feitos que lhe vão à mão; podendo haver três
ministros, um como cível, outro como crime a outro dos defuntos e ausentes e procurador da coroa e
todos com o governador sentenciarem as causas crimes e executarem as sentenças. Também se pode
advertir, que a trapaça e a malicia humana, tem dado no Brasil em inventivas, que um credito direito
por justiça se não cobra em dois anos, e nos mais pleitos se gastam, dez, vinte, trinta, quarenta a
cincoenta anos sem terem fim, em que Sua Majestade houvera de por cobro por serviço de Deus a de
seus vassalos, e credito de sua justiça. E também dos pleitos findos e sentenciados, que não chegam a
ter execução pelas inventivas, trapaças, a maranhas com se lhes vem.” (RIHGEB, Tomo XXV,
1862:476-7).
221
As conquistas no Brasil, tanto as do sertão quanto as pioneiras do
litoral, haviam sido obra de nobres afidalgados ou senhores de cabedal, que
assumiram a tarefa do seesmeiro. Estes conquistadores agiam como
terceirizadores, a quem a coroa portuguesa repassava a atribuição, o ônus e
as benesses da conquista. Os privilégios que os senhores das terras
usufruíam sob forma de mercês não resultavam de direito próprio, mas de
transferência voluntária do soberano. (AZEVEDO, 1929:13).54 Cabia ao
conquistador montar entradas, investir capital, e fazer guerra aos índios. Por
esta obra lhe era concedido em mercê a donataria55 das extensões
conquistadas, as quais se obrigava o sesmeiro a redistribuir e fazer

54 Sobre o fundamento das Mercês, ou merecimentos veja-se estes dois exemplos de época: “porque
os príncipes são obrigados a remunerar os serviços, que se lhes fazem por dívida – não civil – mas
moral, que os D.D. chamam antidoral; como também pra que outros se animem com o exemplo do
prêmio a obrar outras e maiores proezas; pois destas se segue aumento do domínio, e do patrimônio
real, quietação e riqueza dos vassalos, que é todo o fim das máximas do estado.” In: Parecer do
Procurador da Fazenda sobre as queixas e requerimentos dos Paulistas. (ENNES 1938:310); “Pela
lição desta história conhecerão que (...) as mercês dos reis se conseguem com trabalho; e ambiciosos
da boa fama, que é o patrimônio da honra, ajustaram a sua fidelidade, e valor ao dos seus
antepassados, servindo bem a vossa Majestade. (...) que maior serviço para um monarca, que guiar
aos seus vassalos ao templo da fama sem errar o passo caminhando pela estrada Real de generosos
serviços ao seu Rei. (...) Toda esta história refere ou os Domínios, que Deus deu aos Senhores Reis
gloriosos progenitores de Vossa Majestade, ou as vitórias que o assombroso valor dos seus vassalos
conseguiram.” Manuscrito (BN, 1762 9,3,13). ‘História Millitar do Brasil: Desde o anno de mil
quinhentos quarenta e nove, em que teve principio a fundação da Cidade de São Salvador da Bahia de
Todos os Santos até o de 1762. Offerecida A El Rey Fidelíssimo D. José o I° N. S. Composta por D.
Jose Mirales, Tenente Coronel de hum dos regimentos da Goarnição da mesma Cidade do Salvador;
e acadêmico numero da Academia Brasileira dos Renascidos’. (MIRALES, [1762] 1900).
55 Donataria aqui deve ser entendida como sinônimo de Seesmeiro e senhor de terras, conforme

aparece em alguns documentos coloniais. Segundo João Lúcio de Azevedo, “Alvitrou-se repartir o
território em donatarias. A experiência fez-se com Martim Afonso de Sousa, e, decorridos dois anos,
foi propósito assente continuar por este modo a exploração colonial. Tornou-se ao sistema por que
se tinham povoado as ilhas do Atlântico, sem ônus para a coroa. Os gastos tocavam aos donatários,
que exerciam a governança, arrecadavam tributos, nomeavam magistrados a oficiais públicos, e
fruíam os privilégios de jurisdição dos antigos senhores no reino. A eles incumbia também o encargo
da defesa, para o que lhes era concedido importarem, livres de direitos, armas, artilharia e munições,
tendo os moradores obrigação, em caso de guerra, de servir às suas ordens.” (AZEVEDO,1929:243).
Com ligeiras modificações, os direitos e deveres dos Senhores de Terras nos sertões do Nordeste do
Brasil do século XVII se acomodavam ao quadro delineado por Lucio de Azevedo para os primeiros
donatários do Brasil. Certas vezes, os senhores de terras são mencionados na documentação com o
título de donatários. “que na Bahia fizesse algum Regimento, em que se desse a forma com toda
clareza e especialidade para os tais donatários administrarem as ditas aldeias” diz o ‘parecer do
Conselho Ultramarino sobre conceder a Gaspar de Matos, a administração da aldeia de Santo
Antônio de Igaripe na Bahia’, Lisboa, 9 de junho de 1687. (BN. Cód. I-,8,4,17-18); (DH, 1950, vol.
LXXXIX:79-80). Mesmo quando nomeados seesmeiros, o perfil das atribuições destes senhores
aproxima-se mais do donatário, que do antigo distribuidor de terras devolutas de Portugal feudal,
conservando contudo do primeiro, as redes de relações e o parentesco herdado dos longes do
feudalismo. Pode-se vislumbrar nos senhores de terras uma expressão tropical destas duas faces do
feudalismo português. Os donatários e os sesmeiros, guardadas as distâncias que a experiência
brasileira exige, especialmente aquela gestada no íntimo dos sertões, onde o homem e o ambiente
nativos condicionaram seu desenvolvimento.

222
produtivas. Sobre a prática da conquista no Portugal feudal registrou Lúcio
de Azevedo:
Nos primeiros tempos troço de prófugos, que baixavam das montanhas a saltear
os arredores; ao diante exércitos, capitaneados por condes e bispos e reis; onda
crescente, a espraiar nos domínios do infiel; a reconquista tendia a granjear terras,
para se estabelecer nelas, e homens para as cultivarem. A presa pertencia ao
caudilho que a realizava. Se era o rei, premiava ele os companheiros de armas,
distribuindo-lhes parte das terras; se algum dos subalternos, um quinhão,
geralmente o quinto, pertencia ao monarca, supremo chefe. (AZEVEDO, 1929:12-
13).

O modelo da expansão nos sertões no Brasil serviu-se da velha


fórmula portuguesa, copiando seus sucessos, vícios, e gerando os grandes
latifúndios presentes em todas as conquistas portuguesas da América. Em
nenhuma outra colônia a concentração fundiária ganhou tanto relevo
quanto no Nordeste do Brasil; tampouco em nenhum outro caso o governo
português necessitou usar de tanta energia para corrigir os efeitos desta
política. A diáspora portuguesa neste campo era patente; se por um lado a
política clientelista de mercês tornou efetivo o povoamento no sertão nos
primeiros ciclos de sua conquista, por outro impediria no futuro o
desenvolvimento das estruturas que ajudara a firmar, notadamente quando
as instalações coloniais estavam se consolidando e as demandas dos foreiros
– sócios minoritários da expansão – deixavam de ser satisfeitas pelos
senhores de terras. Neste momento as alianças entre rendeiros e senhores
perderam a força, e passaram a ameaçar o sistema senhorial construído para
viabilizar o empreendimento da conquista dos sertões.
A vantagem do sistema sesmarial estava em fazer funcionar
eficientemente a pecuária através de uma rede de foreiros, concentrando o
poder nos donatários. A desvantagem residia na extrema desigualdade que
penalizava aqueles situados na parte operativa do empreendimento,
encarregados de transformar as terras conquistadas em lucros para a
empresa colonial.
Quando surgiam os conflitos com nativos que ameaçavam parte dos
investimentos privados, os senhores recorriam à Coroa, argumentando
ardilosamente que estes embates afetavam sensivelmente a economia local e
os recolhimentos da fazenda real, esquecendo convenientemente que esta
era uma obrigação dos povoadores constante do pacto que lhes garantia a
mercê das sesmarias.
A expansão era o mecanismo pelo qual os senhores de terras
agregavam novos associados, reunindo-os em pequenos consórcios. Os
senhores de terras financiavam os custos da conquista: limpeza étnica,

223
abertura de estradas, instalação de currais, e resgates que eram negociados
com grupos nativos locais, aos quais os consórcios de conquistadores se
associavam em alianças inaugurais para estabelecerem as fazendas de gado.
Como a conquista era privada, os senhores da iniciativa solicitavam
formalmente aos governadores das capitanias correspondentes a concessão
dos direitos sesmariais, conforme o costume da época. Uma vez
materializada a conquista cabia a coroa confirmar por Carta Régia as
doações feitas por seus governadores.
Por direito natural, o senhor de terras podia cobrar renda anual dos
seus foreiros, sem que tivesse mais obrigação para com a Fazenda Real que
pagar o foro da Ordem de Cristo. Esta isenção fiscal vinha do tempo das
donatarias ou capitanias hereditárias, quando a Coroa, para atrair nobres
abastados, interessados na conquista do Brasil, oferecia concessões de
sesmarias ilimitadas e isentas de qualquer foro, pensão, ou tributo, “salvo o
Dizimo a Deus, que pagarão dos frutos da terra e criações que houver”,56
conforme rezavam os antigos documentos de concessão de datas. Nas
sesmarias distribuídas até o último quartel do século XVII, os senhores
auferiam a renda anual dos foreiros sem renderem tributos à Fazenda Real.
Esta era uma ação entendida como subsídio de conquista, estimulada nestes
termos pela coroa. Em algumas regiões onde o subsídio fundiário era mais
necessário, se demorou por mais tempo.57 Nestas concessões cabiam à
Coroa apenas os quintos indiretos, coletados via os contratos da carne,
recolhida nos postos de abate e feiras de gado, principalmente em Goiana,
capitania de Pernambuco, e Capoame, no Recôncavo da Bahia.
No final do século XVII a colônia atravessava o auge da crise
açucareira; a coroa buscava avidamente novas fontes de entrada de caixa,
enquanto grande parte das terras produtivas permaneciam com estes
senhores, e com eles os foros amparados pela forma da lei antiga. As velhas
estruturas ‘feudais’ agora desajudavam a Coroa. Em benefício do progresso
da colônia e da saúde da fazenda real, a política fundiária deveria ser
reformada, o que implicava, a certa medida, numa ruptura com os senhores

56 Sesmaria do Sertão de Rodelas, 1646. documento do Arquivo Wanderley de Pinho, (CALMON,


1939:65 nota 60); (FONSECA, 1996:25); (COSTA PORTO, 1980:74).
57 Em Memória sobre as Sesmarias da Bahia o Marquês de Aguiar escreveu: “Aos Capitães donatários das

Capitanias do Brasil era permitido pelas doações e foraes dar e repartir as terras de sesmarias
conforme a ordenação, e com a obrigação dellas, à toda pessoa de qualquer qualidade e condição que
fosse, livremente sem foro nem direito algum, somente o dizimo à Deus, que era obrigado a pagar à
Ordem de Christo, entrando neste número os seus filhos, exepto o morgado e parentes, não
podendo dar-lhes mais porção do que concediam a um estranho, nem toma-las para si em tempo
algum, ou para sua mulher e filho herdeiro, nem pôl-as em outrem para depois as haver por qualquer
modo que fosse, a não ser por compra verdadeira das pessoas que lhas as quizessem vender passados
oito anos depois das terras serem aproveitadas.” (RIHGB. Tomo III, 1860:374).

224
de terras, com quem a coroa portuguesa havia privado durante muito tempo
uma eficiente política de resultados, útil ao povoamento, ao aproveitamento
econômico do sertão e ao progresso sinérgico da colônia. Contudo, esta
ruptura não podia ser feita de forma abrupta e aberta, antes se
recomendavam a astúcia e a esperteza. A forma mais amena para executá-la
era seguir a política que já vinha sendo aplicada para suprimir lentamente
dos senhorios o poder político.
A determinação de 20 de janeiro de 1699 quebrava a velha ordem
consuetudinária das conquistas, e resgatava o direito de foro para a fazenda
real. A Ordem determinava que os grandes sesmeiros que mantivessem
propriedades “incultas e despovoadas”, podiam ser denunciados por
improdutividade, e as possessões apontadas ser entregues aos seus
denunciadores, desde que estas não excedessem três léguas em comprido e
uma de largo, ou légua e meia em quadra. (APEB. Seção
Colonial/Provincial. Ordens Régias 1698-1699, maço 5:113). Com este ato
o rei cobrava a cláusula da produtividade não cumprida dos seus vassalos
abastados. A lógica era a de que, se a empresa colonial não distribuía
eficientemente as terras conquistadas, não geravam frutos, nem dízimos
para a fazenda real, e impedia outros empreendedores interessados de o
fazerem de ânima própria. Uma vez que a terra estava livre de índios e
devassada, então se faria por gravidade e dinâmica natural, o que antes fizera
pelo poder de conquista dos senhores de terra.
Para a Coroa, as conquistas do sertão de Rodelas e outros interiores
já não mais necessitavam de subsídios, a economia se sustentava por si. No
princípio do século XVIII a colonização de alguns setores dos sertões já
estava estabilizada. Os índios rebeldes haviam sido tangidos para as
fronteiras de novas conquistas no Piauí, Maranhão, e ao Tocantins. As
guerras repressivas até então se davam caso-a-caso, numa mecânica de
contra-reação legitimada por guerra justa autorizada pelo poder colonial.
Na carta de 12 de Dezembro de 1697, o bispo de Pernambuco, D.
Francisco de Lima, informava que os gados do sertão da Bahia geravam
dízimos passantes de quatro mil cruzados para os quintos reais. Esta renda
vinha do contrato das carnes oriundas destes sertões. (AHU, Caixa 9, P.A.
PE); (AAPB, VI-VIII:64); (ENNES, 1938:349-51). Era justificada neste
quadro econômico que a Coroa modificava as regras de concessões
sesmariais. Se instituía, paulatinamente, a política de redução e distribuição
de terras, passando os novos títulos doados a pagar à Fazenda Real o foro
que, até então, era cobrado pelos agraciados. Costa Porto escreveu que era
“usual apontar-se a Carta régia de 27 de setembro de 1695 como fixadora
do teto máximo das datas em cinco léguas, a seguir reduzindo para três, pela
225
carta de 7 de dezembro de 1697, e, depois, sucessivamente, para duas, uma
e meia légua, em alguns casos”. (COSTA PORTO, 1980:74). Varnhagem
reportando-se ao processo destas mudanças diz:
Distinguiram-se algumas modificando o método das cobranças, (foro) e outras
limitando a extensão das sesmarias, declarando devolutas as não demarcadas,
nem aproveitadas, ordenando que não passassem de uma légua em quadra as que
se dessem na estrada de Minas, e até já atingindo o grande segredo de ajudar a
fixar o domínio legítimo da propriedade da terra e a diminuir a cobiça de ter
muitas terras só em nome aprovando o estabelecimento de um tributo ou foro
ou antes censo se decidiu que em Pernambuco fosse de 6$000 nas terras situadas
até 30 léguas do Recife, e de 4$000 quando a maior distância. (VARNHAGEN,
vol I:328-9); (RIHGB. Tomo III, 1860:374).
Já se instalaram os juizados ordinários, diminuíra-se o poder dos
capitães-mores, se instalaram freguesias e algumas povoações e,
principalmente se criaram mecanismos para controlar as rendas dos
aforeamentos e o gigantismo das datas de terra, fonte de onde emanava o
poder senhorial. Parecia que faltava apenas a consolidação em política desta
série de medidas na forma de uma ação deliberada, planejada e instituída
pelo poder real para estabelecer uma política fundiária e de administração de
seus vassalos do sertão.

O Alvará de Terras de 1700.


Em 24 de setembro de 1700, na azáfama da criação de novas
paróquias nos sertões interiores, o Conselho Ultramarino apreciou carta do
governador de Pernambuco D. Fernando Martins Mascarenhas de
Alencastre, a qual dava conta ao Rei de que os grandes senhores de terras
dos sertões da Bahia, Pernambuco, e Piauí teimavam em não cumprir as
ordens reais e se recusavam a ceder terras para as novas freguesias e
missões. O episódio do desmanche da casa do cura no Piauí e o atentado
contra o pároco do Rio Grande do Sul, havidos entre agosto de 1689 e
meados de 1699,58 afrontavam as determinações do poder real. Para
resolver o impasse, o governador sugeria que, caso os sesmeiros
permanecessem em recusa, que se fizesse valer a lei e confiscassem suas
donatarias para o domínio da Fazenda Real:
Três vassalos de Vossa Majestade moradores na Jurisdição da Bahia que são a
Casa da Torre os herdeiros de Antonio Guedes de Brito e Domingos Affonso

58 Ordem Real com parecer do Conselho Ultramarino sobre Ação de devassa no sertão de Rodellas

para apurar e condenar culpados pelas violências cometidas contra o Juiz do Rio Grande do Sul e
Ministros eclesiásticos por parte de Portugueses afazendados. (IAHGP, cód. Ordens Régias –
Pernambuco – 1700-1704).

226
Sertão, sendo senhores de quase todo o sertão de Pernambuco, e havendo em
tanta distancia somente três paróquias eretas, e duas para se erigirem de novo, e
sendo as missões de 30 até 35, não era possível acabar com eles a que
concedessem para sustentação de cinco párocos, cinco léguas de terras, uma para
cada um, e aos Missionários os Índios e Tapuias de suas missões, outra légua para
cada uma delas não obstante as repetidas ordens que ha de Vossa Majestade para
este efeito se devia passar ordem ao principal para a Bahia para que todas as
pessoas que tivessem datas de terras no sertão e inegando a légua que se concede
aos missionários; e que se deve mandar dar aos Párocos perdessem as ditas datas,
as quais desde logo ficariam devolutas para a Fazenda de Vossa Majestade.
(IAHGP, cód. Ordens Régias – Pernambuco – 1700-1704:174)

Era paradoxal: o governador de Pernambuco pedia à Coroa ordem


para cumprir a Lei já promulgada em diversos atos reais. O Ultramarino
opinou que a matéria era justa e de suma importância, parecendo ao
Conselho que o Rei ordenasse aos governadores das conquistas que se desse
a providência necessária e cumprimento às ordens que haviam se expedido a
favor das missões. No parecer de 20 de Novembro daquele ano, o
Ultramarino sugeria que o Rei passasse um Alvará em forma de Lei
consolidando em política o que se havia ordenado em missivas anteriores.
O Alvará determinava tanto o cumprimento das ordens de regularização
fundiária das missões, quanto a situação de terras para as novas paróquias
dos sertões de Rodelas e do Piauí. Registrava a lei:
Se desse a cada uma missão uma légua de terra e em circuito fazendo na aldeia para
a sustentação do Pároco missionários e miseráveis índios a que a suma Cristandade
de Vossa Majestade tanto atendeu a que por este meio se pudessem melhor
conservar e radicar na fé. (IAHGP, cód. Ordens Régias – Pernambuco – 1700-1704:174-
174v).

À margem do documento aparece extensa nota regulando que a


légua de terras deveria ser “em quadro e não em circuito”, e que as terras
não teriam de ser necessariamente as mesmas onde estavam situadas as
missões, podendo acontecer que estas se achassem em lugares que não
tivessem “terras capazes de dar o fructo das mesmas aldeias o necessitam e
que estejam junto de rios ou de serras em que se não possa verificar esta
repartição”. A nota regulava ainda que as aldeias haveriam de se compor
com pelo menos “cem casais, e sendo algumas pequenas juntas ou
separadas umas das outras, em pouca ou menos distancia, se repartirá entre
ellas a legua em quadro”, respeitando sempre a vontade dos Índios
mediante aprovação da Junta das Missões. A ordem previa ainda que, à
medida que a população fosse crescendo, se dividissem em novas aldeias,
reservando sempre a estas, nova légua de terra. Três dias depois se editava o
Alvará sugerido pelo Conselho, incorporando no texto as anotações

227
pertinentes à questão da propriedade das terras das missões que havia ‘à
margem’ do anterior.59
A execução do Alvará foi confiada aos ouvidores gerais, os quais
deveriam determinar o distrito e medição das terras “com conhecimento
sumario”, informando a situação das aldeias e das igrejas paroquiais.60
Apesar do alvará mencionar explicitamente que sua aplicação era geral para
todo o Estado do Brasil, estava claro que fora escrito para atender as
demandas específicas do sertão de Rodelas e adjacências. A 22 de maio de
1703, o Rei escrevia ao ouvidor geral da Paraíba, Christovão Soares
Reymão, para tratar da “inteligência da Lei para a forma que deve usar na
repartição da légua de terra que se há de dar a cada aldeia dos índios.” Nesta
missiva fica patente o espírito da Lei a ser aplicada com exclusividade aos
tapuias do interior, conforme se registra duas vezes no mesmo documento:
Se deve entender que as Aldeias declaradas na ordem hão de ser assim as dos
índios Tapuias como as que chamam Cabuculos (caboclos) (...). Me pareceu
mandar-vos declarar por esta que a Lei de 23 de novembro de 1700 se deve dar a
execução dando aos Índios a terra que nela se ordena para sua vivenda com
declaração que a dita Lei compreende somente aos Tapuyas que vivem no sertão
e não aos Cabuculos que vivem na Marinha.61
Ao lado da determinação de distrito para as paróquias e missões, a
Coroa dava início com esta legislação a um largo processo de registro
sesmarial, com efeito nos sertões interiores, onde o controle fundiário e
fiscal era mais frouxo. Mais tarde, para diligenciar as demarcações, a Rainha
D. Catarina de Bragança designou dois encarregados especiais: para o Sertão
de Rodelas, o desembargador Diogo Pacheco; e para os sertões do Piauí, o
desembargador Carlos de Azeredo Leite. Em 09 de Abril de 1704, a Câmara

59 “aos índios e não para os missionários se manda dar esta terra porque pertence aos Índios, e não a

elles”, reservava-se contudo, aos religiosos, o usufruto das ditas terras para garantir o sustento das
missões, notando que a fundação das Igrejas, deveria ser feita “nas terras dos seminarios (sesmeiros)
e donatarios, conforme o Bispo entender que convem para a cura das almas, e para se lhe
administrarem os sacramentos”. Esta indicação separava as terras das missões das terras das
freguesias que então encontravam em processo de formação, as quais passavam por força do decreto
“a ser logradouros das casas que tiverem para que [os vigários] possam crear comodamente as suas
galinhas e vacas e ter as suas eguas ou carneiros sem as quaes nenhum poderá viver no sertão.” Esta
reserva também prevenia contra o crescimento abusivo do patrimônio das igrejas, tal qual ocorria no
litoral.
60 Consulta ao Conselho Ultramarino de 24 de Setembro de 1700 e Alvará de 20 de Novembro de

1700. (IAHGP, cód. Ordens Régias – Pernambuco – 1700-1704:174).


61 Carta para o Desembargador Christovão Soares Reymão, sobre a inteligência da Lei para a forma

que deve usar na repartição da légua de terra que se há de dar a cada aldeia dos índios. Lisboa, 22 de
maio de 1703. Registro de Cartas do Conselho Ultramarino. (AHU. Códice 257:127v-128). Ver
também Carta para o Ouvidor Geral da Parahiba Christovão Soares Reymão, sobre a diligência de
tombar as terras que ficam para a parte do Açu, ... Lisboa, 03 de março de1701. (AHU, cód.
257:71v).

228
de Olinda representou na Corte sobre a perturbação que causava aos seus
moradores a diligência de regularização de que se havia encarregado o
desembargador João Puga e Vasconcelos, argumentando que a necessidade
mais premente de regularização situava-se nas terras do sertão. Aos 19 de
Agosto do mesmo ano a Rainha escreveu a João Puga, orientando que devia
“entender-se só com as que estão pelos dilatados dos sertões”, onde era
‘logo necessária’. (AHU.– cód. 257:157v- 158).
Apesar do esforço em Lisboa e dos Governadores Gerais na
colônia, a resistência dos senhores de terra permanecia inquebrantável. As
Ordens Régias, uma após outra, caiam em letra morta sem aplicação prática
no interior. O poder dos donatários se mostrava mais efetivo que o
longínquo poder do Rei, fazendo valer o que escreveu Gregório Varela de
Berredo Pereira em panegírico ao governador de Pernambuco, Câmara
Coutinho: “terra tão cheia de calamidades, tão abundante de soberbas (...)
adonde se não conhecia El Rei mais que pelo nome, vivendo cada um à
eleição de sua vontade.” (RIAP, 1979, v.51:257-300). Assim, as mudanças
pretendidas pela coroa levariam muito mais tempo para se consolidarem do
que se esperava na metrópole.
Depois da saída dos capuchos e dos jesuítas a conquista do rio São
Francisco foi entregue a missionários aquiescentes à Casa da Torre, sem
autoridade política. O poder eclesiástico passou a pressionar a coroa,
denunciando que as ordenações Reais, tão rigorosamente afirmadas, ainda
continuavam sem cumprimento. Em resposta a Infanta escreveu 5 de Junho
de 1705 a Francisco de Castro e Moraes, Governador da capitania de
Pernambuco (1703-1707), cobrando posição firme do nas demarcações:
Eu a Rainha da Grã Bretanha Infanta de Portugal etc. Por ser informada por
pessoas dignas de crédito que os Índios dessa Capitania se não tem dado a Légua
de terra, que mandei repartir para eles; (...) Me pareceu ordenarvos [como por
esta o faço] ponhais todo o cuidado e diligência a que se não continuem estes
abusos; e que se dê a execução inviolavelmente a resolução que fui servida tomar
nesta matéria da légua de terra para os Índios tão conveniente para a conservação
das ditas aldeias. (AHU, cód. 257:173).
Sem a fiscalização e cobrança dos jesuítas e capuchinhos
interessados no assunto, a determinação de terras para os índios nunca teve
cumprimento pleno. Os registros de violências e desmandos continuaram,
os senhores de terras preservaram sua autonomia por longo tempo, e as
terras para os Índios, ainda hoje – três séculos depois – permanecem sem
solução definitiva. Como se vê na documentação discutida, a referida lei
estava inserida em um plano mais amplo de domínio colonial, e foi utilizada

229
pela Coroa Portuguesa para interferir politicamente nos problemas que
envolviam missionários, senhores e a administração dos índios do sertão.
O Alvará em forma de Lei de 1700 concedia apenas “uma légua de
terra em quadro” para cada missão.62 Apesar do que possa parecer, não foi
um benefício para os índios, como muitos querem; a bem da verdade, a lei
de 1700 era um engodo, um retrocesso às conquistas alcançadas na época de
D. João de Lencastro. (AHU – P.A. BA, capilha 1697). A proclamação do
Alvará de 1700 declarava vassalos todos os índios aldeados; todavia, na
aplicação da lei, o que valia mesmo era a idéia de fronteira na qual os
desaldeados que não aceitavam a redução compulsória passavam
prontamente à condição de inimigos. Esta intenção fica muito clara na Carta
Régia destinada ao desembargador Christovão Soares Reymão:
E dando-se aos Índios terras em que vivam como homem socialmente e meus
vassalos se fugirem a minha obediência e se forem para o mato para lhe se fazerem
transífugos, pois em lhes faltando de comer no sertão vem roubar os portugueses
no povoado em assaltos e passam a traidores e ladrões ficam dignos de morte e de
lhes fazer guerra e assim os que resistirem morram e os que se renderem na força
das armas fiquem cativos. (AHU, cód. 257:127v-8).
Desta forma, qualquer nativo fora dos aldeamentos seria considerado
inimigo. A nova política era, de certa forma, uma ordem de guerra genérica
a todos os não aliados dos portugueses e, antes de qualquer coisa, uma
imposição de redução forçada que delimitava verdadeiros campos de
concentração de uma légua, absolutamente insuficientes para atender as
demandas de índios e missionários.
A formalização das freguesias a seu turno dava oportunidade à
criação de uma infraestrutura que deixava em meio ao sertão postos
conquistados administrados pelos representantes do Rei. Estes postos
articulados permitiam o escoamento da produção pecuária e mineira, dava
espaço para fiscalização da Fazenda Real, e otimizavam a segurança,
guardando os caminhos que então se conectavam, deixando o sertão livre
não somente para os vaqueiros, comboieiros, tangerinos de gado e
conquistadores, mas para o tráfego do comércio entre o Maranhão e o
Brasil e para o progresso da colônia.

62 Anos mais tarde, tratando do estabelecimento das vilas do Diretório pombalino em Santa Maria da

Boa Vista e Ilha da Assunção no Rio de São Francisco, diria o Governador Luiz Diogo Lobo da
Sylva em carta ao Ouvidor Geral das Alagoas, Dr. Manuel Golveia Alvarez: “tendo a experiência do
muito que padeciam os Índios pelo restrito da limitação da légua que se lhes assinou quando se
estabeleceram” Livro de registro composto, principalmente, de cartas, Portarias e Mapas versando
sobre vários assuntos, relacionados com a administração dos índios, estabelecimento de vilas e
aldeias, Recife etc. ou registro de correspondência do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva entre os
anos de 1761 e 1762. (BN - I, 2, 3, 35 fls, 127-128).

230
Caminhos do Maranhão e do Brasil: a conquista d’El Rei.
A ocupação portuguesa do Maranhão foi um impulso tardio, que
respondia à ameaça de Daniel de la Touche nas porções setentrionais do
Brasil. Contra esta ação, os portugueses reagiram enviando a “Jornada
Milagrosa”63 que derrotou os franceses na Ilha de São Luiz em 1617.
Na seqüência os portugueses passaram a investir na região, que
então tornara-se vital na estratégia de preservação do império lusitano do
Atlântico, compensando a perda das possessões da África e da Ásia para os
concorrentes Europeus, como atentou Lúcio de Azevedo. (AZEVEDO,
1929:107 e ss). A Carta Regia de 13 de Junho de 1621 cria o Estado do
Maranhão, composto pelas capitanias do Maranhão, do Grão Pará e Ceará.
(VARNHAGEN, vol II:186). Não obstante o potencial natural, a região não
conseguiu firmar-se na produção agro-açucareira que dominava os
interesses mercantis da época. O baixo desenvolvimento comercial do
novo estado não permitia que a economia fizesse uso largo de mão-de-obra
africana, fazendo com que o nativo assumisse o papel servil.
Diversas tentativas de colonizar o Maranhão fracassaram, os
portugueses só lograram povoar a região quando a Coroa tomou as rédeas
do processo e passou a planejar, estimular e conduzir a expansão da “frente
litorânea” dirigida a ocupar os vales dos rios Itapecuru, Munim, Pindaré e
Mearim, região que mais tarde vai se consolidar como centro de produção
algodoeira e de comércio agrícola.

63 Jornada Milagrosa, assim se refere Manoel Bonfim a campanha de Jerônimo de Albuquerque

Maranhão contra La Ravardière. (BOMFIM, 1997:224). Sobre a tentativa de instalação da “França


Equinocial” e sobre a Jornada de Mathias de Albuquerque ao Maranhão ver (DUTRA, 1973, n° 36);
(RIAHGP, 1976, vol. XLVIII:9-125).
231
Figura 18 - Vaqueiro com vara tangerino. Aquarela de Charles Landsser, 1885. Col.
Cândido de Paula Machado.

232
Em 1682, na expectativa de estimular a produção e organizar a
coletoria da fazenda real, o governo metropolitano criou a Companhia de
Comércio do Maranhão, e em 1691 a Provedoria do Estado. Não obstante
o permanente estímulo, a economia maranhense não respondeu como se
esperava, permitindo apenas o desenvolvimento de uma tênue conexão –
mais burocrática que comercial – com a metrópole, de onde chegava ao
porto de São Luiz apenas um navio a cada ano. (CABRAL, 1992:77). Diante
do estanque da empresa colonial maranhense a metrópole buscou outra
estratégia e passou a estimular a conexão com o vizinho Estado do Brasil. A
comunicação marítima contudo era contingenciada pelo regime dos ventos,
que fazia impossível que embarcações saídas do Brasil alcançassem muito
além da costa do Ceará.
Na impossibilidade de vencer a natureza, o esforço voltou-se para a
busca de um caminho terrestre, partindo do Mearim e Itapecuru onde, no
final do XVII, situava-se a expansão da frente maranhense. O desejo natural
dos transeuntes recaia numa conexão segura, que encurtasse a viagem para
os centros econômicos de Pernambuco e para a capital da colônia em
Salvador. Por muito tempo o tráfego se fez pela região costeira conhecida
como os lençóis maranhenses, todavia este caminho era muito longo e
dominado por dunas móveis e lagos temporários, ademais desprovidos de
fortificações de defesa que amparassem os caminhantes, constantemente
fustigados pelos assaltos dos tapuias.
No final do século XVII, as conquistas de Rodelas e do Piauí já
chegavam às cabeceiras do rio Parnaíba, 100 léguas ao norte da passagem do
Juazeiro em Rodelas, quase alcançando as nascenças dos rios Itaim e
Mearim. Permanecia efetivamente indevassada apenas uma estreita faixa de
terra entre a frente do São Francisco e o núcleo de expansão da frente
maranhense, por onde os Paulistas há muito vadeavam a cata de escravos e
minérios.64 Esta atividade, contudo, não deixava caminhos abertos,

64 Entre o fim do século XVI e início do seguinte se registra notícia concreta da ação de bandeirantes

paulistas trafegando desde São Paulo, via rio de São Francisco até o Pará e Maranhão. Um
documento, até agora pouco aproveitado pelos historiadores, informa sobre a movimentação de
tropas de paulistas entre São Paulo e o Grão Pará ainda no final do século XVI. ‘Informação da
entrada q- da Villa de São Paulo se pode fazer ao grãde Parâ, q- he o verdadeiro Maranham chamado
também Rio das Amazonas, cuja barra esta na costa de Pernambuco 340 legoas cotra as Antilhas, e
440 da Bahia do Salvador cabeça de todo este estado do Brasil, Provincia da Santa Cruz. Dada por
Pero Domingues morador na mesma villa, e hú dos 30 Portugueses que no ano de 614 o descobrirão
com o qual contestam os mais companheiros que hoje vivem.’ Esta interessante narrativa, trás em
apenso uma outra derrota titulada: ‘Relação dada pelo mesmo sobre a viage que fez da villa de S.
Paulo para o Rio de S. Francisco chamado também Parâ, conforme derrota que seguio, ou Relação
daiz entradas do verdadeiro Maranham, e Rio de São Francisco por via de São Paulo’. Ao que indica
parece ser o mais remoto registro do afamado “caminho do Maranhão”. Divulgado por Serafim Leite
233
mantidos por fluxo resultante de tráfego permanente. Ao final do século
XVII, a economia do Maranhão, a expansão das conquistas dos sertões, e a
pecuária geraram um pequeno deslocamento do foco colonial para o
interior. O estímulo à mineração e, principalmente, a firme decisão da coroa
em tomar para si o governo do poder civil nestas novas conquistas, foram
fatores fundamentais para a abertura oficial da conexão terrestre entre o
Estado do Maranhão e o Estado do Brasil.
Em Novembro de 1676, oficiais da Câmara do Maranhão
informavam ao Príncipe Regente D. Pedro II (1667-1683) haverem
empreendido a “descoberta do Rio Paraguassú”65 que fazia fronteira entre
aquele Estado e o do Brasil. Em Dezembro do ano seguinte o rei respondia
ao governador do Maranhão, Ignácio Coelho da Silva, declarando que:
“conviria continuar-se aquele descobrimento por se entender que este rio
vai dar ao de S. Francisco”. (ABN, 1ª Parte, vol. 66:41-2). Após esta notícia
passou-se longo período até que nova iniciativa fosse notificada.
O governador do Maranhão, Gomes Freire de Andrada esteve
vivamente empenhado no descobrimento do caminho para o Brasil,66 para
cuja missão havia encarregado o capitão-mor do Cabo do Norte, João
Velho do Vale.67 Desta empresa, segundo Domingos Teixeira, biógrafo de
Gomes Freire, teria o capitão-mor escrito uma derrota que Capistrano de
Abreu julgava perdida ou extraviada. (TEIXEIRA, 1727, vol. II:246).

em Páginas de História do Brasil, (LEITE, 1937:99-116); (ARSI, Cód. Brasil-História 1620-1647:509-


10). (LEITE, 1945, Vol. II:185-186).
65 Paraguassu Para= rio, Assu= grande ou seja Rio Grande. Capistrano de Abreu identifica este rio

como o Parnaíba. (ABREU, 1954:209).


66 Informação do Rio dos Tucãtins que tirou o Sr. Gomes de Freire de Andrade sendo Governador e

Capitão General do Estado do Maranhão, e o deixou ao Sr. Artur de Sá de Menezes, seu sucessor.
Trata-se de um parecer escrito pelo Governador do Maranhão, Gomes Freire de Andrade, entre
1697-1698, onde se descreve a descoberta do Rio Tocantins. Tive oportunidade de consultar este
manuscrito posto à venda por: J.L. Silva - Livreiro antiquário Livraria Histórica Ultramarina, Ltda.
Lisboa. Enumera diversos grupos indígenas da região e algumas estratégias de alianças com os
sertanistas paulistas; ao meu ver está ligado ao movimento de expansão da frente maranhense e com
a descoberta do caminho do Brasil. Infelizmente minha consulta não pode ser aprofundada. Creio
que os paulistas referidos neste documento são os mesmos da Informação acerca dos moradores da
vila de São Paulo, prestada pelo secretário do Conselho Ultramarino. 6 de junho de 1674:
“Ultimamente passou um cabo com 200 brancos, 200 mestiços e 400 arcos desta vila (São Paulo) à
sua custa cortando imensidade de caminhos e vindo parar nas cabeceiras do rio Tocantins, e Grão-
Pará, onde está assistente com esta gente e se tem notícia que deram com minerais por terem
formado casas e aberto estradas para a vila de São Paulo, como avisou o Governador do Maranhão
Pedro César, por cuja causa S.A. foi servido enviar por via do Maranhão ao Padre Antônio Raposo,
natural da Vila de São Paulo, com cartas a este cabo e para trazer respostas e aviso da causa de sua
demora naquele sítio, e partiu a 8 de maio passado (1673)” (ABN, vol 39:132-3); (BN Inventário dos
documentos relativos ao Brasil, VI, 8 fls 1566-1584); (VARNHAGEN, 1948, Vol III:238 e 278).
67 Sobre a atividade de João velho do Vale durante as guerras holandesas no Grão Pará, ver Francisco

Adolfo de Varnhagen. História Geral do Brasil. (VARNHAGEN, 1948, Vol. III:195-6).

234
“Creio que cairia em delírio se lesse o roteiro de João Velho do Vale”
revelou em carta a João Lúcio de Azevedo.68 O interesse de Capistrano
nesta parte da história do Brasil é revelado em outra carta, ao mesmo
correspondente, na qual tratava do auto-abandono à sua obra capital:
“Precisaria para que me atraísse encontrar documentos relativos à região
entre o São Francisco e o Parnaíba, aonde acho que está o nó de nossa História”.69
Felizmente o revelador documento objeto do desejo de Capistrano não foi
extraviado, mas arquivado em local inespectado. O relatório de Velho do
Vale foi encontrado, transcrito e comentado por João Renôr.70
Em carta de 21 de Junho de 1692, o governador do Maranhão
Antônio de Albuquerque Coelho Carvalho, noticiava ao rei estarem tropas
de paulistas combatendo o gentio de corso na capitania do Pará, bem como
ocupados em “descobrir o descobrimento do Caminho do Brasil”. Em 3 de
dezembro do mesmo ano, o Rei respondeu informando que, por ordem do
Governador Geral do Estado do Brasil, “andava na mesma diligência” o
capitão-mor da conquista, Francisco Dias de Sequeira,71 e que os paulistas
estavam no Ceará desinquietando e cativando índios aldeados da Serra da
Ibiapaba. O Rei fez constar ao governador do Maranhão que: “me faria
grande serviço, mandando um cabo com quatro soldados e alguns índios a
impedir-lhes os intentos”.72 Neste documento não fica claro se o
impedimento solicitado referia-se apenas à ação contra os índios aldeados,
ou se também à busca pelo caminho do Brasil. De qualquer sorte parece
que o intento da Carta Régia era afastar os paulistas da região da descoberta,
forçando-os a se concentrarem na guerra aos índios de corso, que

68 Carta para João Lúcio de Azevedo de 14 de setembro de 1916. (ABREU, 1963:142).


69 Carta para João Lúcio de Azevedo de 8 de março de 1918. (ABREU, 1954:24-5). Grifo meu.
70 Veja “Relatório de João Velho do Vale” transcrito e comentado por João Renôr em O Estado do

Maranhão edições de 19 e 26 de novembro de 1989; 03 e 24 de dezembro de 1989; 04, 14 e 18 de


fevereiro de 1990; 04 de março de 1990; 01 e 15 de abril de 1990. O texto tão desejado, certamente
desapontaria o historiador cearense. Nele não se revelam as questões fundamentais sobre a
colonização dos sertões interiores que Capistrano esperava desvendar. Contudo, do ponto de vista
etno-histórico é uma peça promissora para a análise das estratégias de alianças intertribais e entre
nativos e brancos no interior maranhense, trabalho que ainda encontra-se por fazer.
71 Segundo Miguel do Couto Carvalho este paulista estava situado em um arraial no Piauí no ano de

1697, diz o vigário: “Entre estas duas fazendas (Francisco de Xavier o sítio de Catherina no riacho
Caterina) estão uns olhos de água a que vulgarmente chamam Brejos em os quais está situado o
Capitão mor dos Paulistas Francisco Dias de Sequeira com um Arraial de tapuyas com os quais faz
entrada ao gentio bravo e lhe tem o encontro para que não ofendam a povoação tem algumas plantas
de farinhas aros, Milhos, feijões, e frutas, como são bananas, batatas, que tudo se dá com grande
abundancia mostrando a fertilidade da terra e a incúria dos moradores que por sua preguiça não tem
frutos de que vivam”. (COUTO [1697] , 1938:379).
72 Carta Régia ao Governador do Maranhão Sobre a noticia que se teve de andarem os Paulistas com

as suas tropas vizinhas a Capitania do Pará eficaz remédio para a extinção dos Tapuyas, se diz ao
Governador continue na resolução de conservar os índios naquele lugar onde estão situados. Lisboa a
3 de Dezembro de 1692. Livro Grosso do Maranhão, 1ª Parte. (ABN, vol. 66:134-5).
235
interessava sobremaneira a coroa, deixando para o capitão-mor Francisco
Dias de Sequeira – em missão oficial – a conquista do dito caminho.
A partir de 1694 se deflagra uma verdadeira corrida pelos
descobrimentos desta conexão, tanto pelo lado maranhense quanto pelo
pernambucano e baiano. Segundo A. Tounay, em data pouco precisa antes
de 1695, um sertanista por nome de Manoel Álvares Carneiro, vindo do
Brasil, havia logrado com sucesso alcançar o Maranhão “com uma pequena
tropa de soldados e índios”. Por ordem do governador daquele estado,
Carneiro retornou em 1694 pela mesma via, com a missão de “fixar a exata
rota deste caminho do Brasil, no qual gastou 4 meses, padecendo das
inclemências do tempo com grande risco de vida”. No ano seguinte, o
recém chegado Governador General do Estado do Brasil, D. João de
Lencastro, autorizou a Manoel Carneiro a aviar caminho mais breve, no qual
consumiu “quinze meses por ser de 300 léguas com grande risco em razão
dos rios que passavam e gentio bárbaro que habitava aqueles sertões”.73
A descoberta do caminho definitivo só se deu oficialmente em 1695,
por obra do sargento-mor Francisco dos Santos que, acompanhado de
alguns soldados promoveu uma entrada para examinar por onde poderia
ficar “mais breve o caminho para que se facilite o comércio”.74 Apoiado na
derrota de João Velho do Vale, o sargento-mor oficializou a “descoberta”.
Chegando à Bahia foi recebido com sua companhia de índios pelo
Governador Geral. Após o ato foi providenciado o comunicado oficial ao
Rei; de imediato enviou-se nova expedição para que refizesse o caminho,
desta feita com a presença do capitão-mor André Lopes e mais seis
soldados e vinte e cinco índios, enviados de Pernambuco para “se graduar o
sertão e dividirem com certeza as terras que tocam a cada Estado e se evitar
o embaraço das jurisdições”.75 A comitiva chegou a São Luiz em Outubro
de 1695, trazendo correspondência do Governador Geral do Estado do
Brasil. Em carta de 20 de Janeiro de 1697, o Rei agradecia a Antônio de
Albuquerque Carvalho, Governador do Maranhão, o empenho no
descobrimento da estrada daquele Estado para o Brasil:
Viu-se a vossa Carta de 20 de Junho do ano passado em que dais conta da
diligencia que tendes feito no descobrimento da estrada que se acha já facilitada
para a comunicação dos moradores desse Estado para o do Brasil. E pareceu-me
agradecer-vos (...) a diligencia e Zelo com que vos tendes havido no
descobrimento deste caminho o que é mui conforme ao que sempre esperei do

73 Ver Patente de Manoel Gonsalves Pereira, de 28 de março de 1695. (TOUNAY, 1950, vol 6:287-8).
74 Carta de João de Lencastro para o Governador de Pernambuco, de 21 de maio de 1695, (DH, vol.
38:339).
75 Carta de João de Lencastro para o governador do Maranhão, 16 de Julho de 1695, (DH, vol

38:342-4).

236
vosso honrado procedimento, e assim deveis continuar nas expedições em ordem
a que se estabeleça perpetua esta estrada para que os moradores de uma
conquista com outra possam comunicar-se e recebam os interesses que se podem
prometer de seus tratos, e do que nisto fores obrando me dareis conta.76
Além das cartas do Governador do Maranhão e o do Governador
General do Brasil, o Rei recebeu notícia do jesuíta Jacob Cocleo.77 As
diversas comunicações foram apreciadas no Conselho ultramarino que
emitiu o seguinte parecer:
Por Decreto de 11 de dezembro do ano passado, manda Vossa Majestade que
vendo-se neste Conselho a carta do Governador e Capitão Geral do Brasil que se
remeteu a Vossa Majestade por via do Secretário Roque Monteiro Paim sobre o
novo caminho que se descobriu para o Maranhão com outra do mesmo
Governador e do Padre Jacobo Cocleo que lhe escreveram nesta matéria, e o que
referia no extrato, que fez das mais que recebeu, se consulte a Vossa Majestade o
que parecer. E sendo tudo visto: Pareceu ao Conselho representar a Vossa
Majestade que o que se há obrado neste particular está bem feito, e que se deve
agradecer a Dom João de Lencastro a diligência com que se tem havido em
estabelecer este caminho daquele Estado para o do Maranhão, em que se
reconhece que havia de custar trabalho esta introdução, assim em romper as
estradas como em facilitar as mais dificuldades, que se podiam oferecer, em
negócio de tanta importância, e que pelo tempo adiante poderá bem ser que a
experiência faça com que se encomendem algumas coisas neste caminho para o
abreviar porque no princípio nem tudo se pode perceber e alhanar.78
Descoberto ou oficializado o caminho, tratava o Rei em agradecer o
empenho dos envolvidos. Na verdade este gesto deve ser entendido como
uma advertência de jurisdição que informava ser aquela conquista
pertencente à coroa, assim como os direitos e privilégios a ela concernentes.
A estratégia de reservar à campanha o status de empresa de Estado e não de
vassalos, poupava mercês e chamava à coroa os direitos de conquista e

76 Carta Régia a Antônio Albuquerque Coelho de Carvalho, Governador do Maranhão sobre se lhe

agradecer o cuidado no descobrimento da estrada daquele Estado para o Brasil. Lisboa a 9 de Janeiro
de 1697. Livro Grosso do Maranhão, 1ª Parte. (ABN, vol. 66:164-5).
77 Havia uma corrida pelo descobrimento do caminho que unisse os dois Estados. Por um lado

aquela do Maranhão principiada por Gomes de Freire, e por outro lado as iniciativas que partiam de
Pernambuco e da Bahia pelo lado do estado do Brasil. Pereira da Costa refere-se a uma carta do
Senado da Câmara da Cidade de São Luiz do Maranhão, dirigida a El Rei dom Pedro II
comunicando-lhe: “O descobrimento do caminho e comunicação daqui para Pernambuco e Bahia
por uma escolta de soldados e índios, que o Governador mandou acompanhados por uns homens
que daqueles campos tinham vindo com os seus primeiros descobridores.” Carta do Senado da
Câmara de São Luiz do Maranhão para o rei D. Pedro II sobre o descobrimento do caminho e
comunicação para Pernambuco e Bahia. São Luiz do Maranhão, 11 de maio de 1698. (PEREIRA da
COSTA. 1974).
78 ‘Parecer do Ultramarino sobre agradecer a Dom João de Lencastro diligência em estabelecer

caminho do Estado do Brasil para o do Maranhão.’ Lisboa, 27 de janeiro de 1698. Consultas do


Conselho Ultramarino - Bahia 1695 – 1696 - 1724 - 1732. (AHU, cód. I-8,4,6) (DH, vol. XC
1950:30-1).
237
exploração foral das novas conquistas. Ato contínuo à descoberta, o Rei
escreveu aos governadores e enviou o doutor Manoel Nunes Colares,
desembargador da Relação da Bahia, junto com uma comitiva de
negociantes de algodão, para tomar posse do novo caminho, fato registrado
pelo padre Miguel do Couto em sua descrição:
Para parte do Norte confina esta povoação com a costa do mar correndo do
Ceará para o Maranhão para a qual tem dois Caminhos, abertos ambos em o ano
de 95 um vai ao Maranhão, e outro a serra da Guapaba [Ibiapaba].(...)79 Para o
Maranhão há também caminho seguido que dizem terá 90 Léguas e já com
principio de comercio de redes, pano de algodão e cuias que nesta povoação
trocam por vacas com tenção de as levarem para as terras do Maranhão, junto
com os homens deste negócio e outros moradores desta povoação veio da dita
praça o Doutor Manoel Nunes Colares para o Desembargador da Relação da
Bahia em o mês de Janeiro deste ano de 1697 e no caminho toparam com os
tapuias bravos chamados, Aroatizes, e Goanares com os quais ajustarão pazes,
que sendo firmes será em grande utilidade do comercio por ficar o caminho sem
impedimento.80
Do Brejo da Mocha, onde se formava a povoação de Nossa Senhora
da Vitória, para o rio de São Francisco havia dois caminhos, (vide mapa
página 113), conforme registrou Miguel do Couto:
Para a parte do sul confina esta povoação com o Rio de São Francisco para o qual
tem dois caminhos com distancia igual de 40 Léguas cada (...) o primeiro que se
abriu se segue por um Riacho chamado o Peauhy do qual tomou nome esta
povoação por ser o primeiro que se povoou e vai sair no Rio de São Francisco a
uma fazenda chamada o sobrado 10 Léguas a cima do Santo Sê (...). O segundo
caminho se abriu da cabeceira do Canindé, e vai sair na cachoeira do Rio de São
Francisco. (COUTO, [1697], 1938:371-372).
A tese da descoberta da passagem entre os Estados do Maranhão e
do Brasil como empreendimento real confirma-se mais adiante. Um ano
após seu anúncio oficial, o governador do Maranhão informava que já
iniciara as doações de sesmarias nas “terras novamente descobertas”. O Rei
respondeu instruindo que as doações deveriam respeitar as novas regras de
distribuição fundiária estabelecidas, pelas quais os novos beneficiários se
obrigariam à:

79 Este caminho deve ser o que em 23 de agosto de 1686, o Governador do Maranhão, Gomes
Freire, comunicou a El Rei. Segundo o informe a estrada ligava aquela capitania ao Ceará, pelos rios
Munim e Itapecuru. (PEREIRA da COSTA, 1974:50).
80 Apesar de não se fazer referência explícita a missão de Nunes Colares, se deduz a natureza oficial

dela, uma vez que, ordinariamente, os chegados da Metrópole desembarcavam diretamente em


Salvador. Somente uma missão oficial obrigaria a um Desembargador que se dirigia à Relação em
Salvador a empreender uma viagem terrestre de tão longa distância por um caminho recém
descoberto. (COUTO, [1697], 1938:371-372).

238
Pagarem os dízimos nessa Capitania, e a porem as tais terras desimpedidas dos
gentios brabos a sua custa por serem pessoas poderosas e se acharem com posses
e prontos para logo as cultivarem de gados (...) não excedendo cada sesmaria de
três léguas em comprido e uma de largo, e seja a pessoas que as possam cultivar,
e tratar do seu beneficio com a clausula de que não as tendo povoado dentro do
termo da Lei que são obrigados a cultiva-las a façais executar tirando-lhas e
dando-as a quem faça o que eu ordeno em minhas reais ordens.81
A economia daqueles sertões, contudo, estava profundamente
dependente da ação dos grandes senhores de terras. A intenção pretendida
pela Coroa operava de forma muito radical sobre as práticas locais, e
ameaçava inviabilizar os investimentos futuros na região. Num documento
do final do século XVII, um autor anônimo, se referindo aos sertões
localizados entre o Maranhão e a Bahia, alertava:
Até o tempo presente se não tem vulgarmente descoberto por os moradores
todos morarem a beira-rio, e não haver gente de poder para penetrarem o sertão
por temor do gentio, onde todas as serras são minas de prata que pelo sertão da
Bahia com muita facilidade se podem conduzir por não haver distância grande de
uma a outra parte, e as terras plainas com muitas águas capazes de se situarem
com gados se se dessem a pessoas poderosas que o possam fazer com brevidade,
com que brevemente se povoarão as taes terras, e se proverão do necessário para
os caminhantes que forem da Bahia para o Maranhão, e do Maranhão para a
Bahia. (RIHGB, Tomo XXV, 1862:465-6).
Como forma de limitar o poder político dos senhores de terras,
além das medidas restritivas que reduziam o tamanho e regulavam a
distribuição de sesmarias, a coroa projetou a estrada do Maranhão e, vendo
nela um investimento atrativo, resolveu tornar-se, ela própria, a condutora
da iniciativa. Com esta estratégia se anulava a possibilidade dos senhores
reivindicarem direitos e participação nas novas conquistas. Na prática,
impossibilitando a cobrança do foro pelos rendeiros; obrigando os
interessados a executarem a limpeza étnica por iniciativa própria; limitando
o tamanho das doações; e condicionando a confirmação da doação das
datas à efetiva e imediata ocupação, a Coroa conseguiu afastar do Maranhão
os grandes senhores de terra, que possuíam experiência e cabedal para
empreenderem largas conquistas. Parece entretanto que o remédio acabou
matando o paciente, pois as medidas restritivas terminaram por afastar
também os pequenos investidores que não tinham poder político nem
econômico para custear e diligenciar as conquistas.

81 Carta Régia ao Governador do Maranhão sobre as datas da terra de sesmaria se lhe ordena as deve

dar na forma que lhe está ordenado. Lisboa em 9 de Janeiro de 1697. Livro Grosso do Maranhão, 1a
Parte. (ABN, vol. 66:166).
239
Na teoria a lei era democratizante, mas na prática revelou-se anti-
produtiva, o resultado foi que nas áreas onde valiam as antigas regras de
conquista, como o Piauí, Paranaguá e Rodelas, o processo conduzido pela
Casa da Torre e Domingos Affonso Sertão funcionou e fez produtiva a
atividade pecuária. Nas novas conquistas do Maranhão, que ficaram sob a
responsabilidade real, essas atividades simplesmente minguaram e não
frutificaram como a coroa planejara; tal foi o exemplo da região dos Pastos
Bons que, não obstante terem melhores condições de clima, relevo,
vegetação e oferta de água que os vizinhos do Piauí e São Francisco,
permaneceram sem ocupação efetiva até o século XVIII. (CABRAL, 1992,
Passim).

Anexação da conquista do Piauí ao Estado do Maranhão


As entradas repressivas eram também uma excelente oportunidade
de conquistar domínios de grupos hostis, eliminar os resistentes, expulsar os
sobreviventes e anexar novas fronteiras. As guerras, segundo João Lúcio de
Azevedo, tinham que ser incessantes, por constituírem a principal indústria,
a paz não convinha, prosseguindo-se nas conquistas só pela cobiça.
(AZEVEDO, 1929:167). As guerras de 1674 a 1679, levantadas para dar
cabo dos Anaiôs e Gurguês no rio do Salitre são um bom exemplo para
ilustrar como colonos capitaneados pelos grandes senhores de terra,
estenderam a fronteira do sertão de Rodelas até a região da Gurguéia.
(PUNTONI, 1998:68-73). Na conquista que se derivou desta guerra
destacaram-se como os investidores majoritários, Domingos Afonso Sertão
e Francisco Dias d’Ávilla.82 Nos anos seguintes se observa grande
movimento expansivo ao Norte destas conquistas e, no princípio da década
de 80 do século XVII, Domingos Jorge Velho e seus agregados, juntam-se
ao empreendimento de Dias d’Ávila e Afonso Sertão,83 distendendo mais
uma vez as fronteiras do sertão de Rodelas, agora até o rio Potengi ou Poti,
o rio dos Camarões.

82 Esta guerra foi deflagrada contra estes índios em resposta à ofensiva havida na região da barra do

rio do Salitre da qual resultaram mortos 85 moradores entre escravos índios e inumeráveis animais,
conforme relata o padre Martinho de Nantes na “Relação de uma guerra em que tive que ir, por
ordem do governador da Bahia, com os índios de nossas aldeias, para reprimir o furor dos selvagens
que, numa noite, mataram, no rio de S. Francisco, oitenta e cinco pessoas, tanto portugueses como
negros, nas suas próprias casas.” (NANTES, [1706], (1979:49 e ss).
83 Ver documento de sesmaria da viúva de Domingos Jorge Velho, D. Jerônima Cardin de Frois e

Cristóvão Mendonça Arrais e mais oficiais da Guarnição dos Palmares. (PEREIRA da COSTA,
1974:69-71).

240
As conquistas se faziam com exércitos comandados por colonos que
viam nelas oportunidade de se tornarem fazendeiros. “Na empresa, quase
incruenta para os nossos, o despojo recompensou com largueza os menores
soldados. À fidalguia, além da participação no saque, couberam as mercês
régias”, registrou J. Lúcio de Azevedo noutra passagem sobre o processo de
conquista. A condição de senhor era um status reservado a muito poucos.
Isto todavia não afastava a ambição de ascensão social de alguns
conquistadores, principalmente depois da promulgação das novas
ordenações sobre o direito fundiário na colônia. Com a notícia da
homologação da freguesia da Mocha, confirmada em Carta Régia de 6 de
Fevereiro de 1698, pequenos investidores que haviam participado da
conquista do Piauí animaram-se a libertarem-se da condição de rendeiros.
(PEREIRA da COSTA, 1974:57). Assim surgiu no Brejo da Mocha um
movimento encabeçado por Lourenço da Rocha Marinho.84 Ele e outros
fazendeiros se insurgiram contra o pagamento foro cobrado por Domingos
Affonso Sertão e Francisco Dias d’Ávilla, senhores das terras que
ocupavam. Parece que a Carta Régia de 20 de Janeiro de 1699,
determinando a livre denúncia de terras devolutas, tinha o objetivo de
intimidar os grandes senhores e prestigiar os foreiros levantados;85 o
resultado, mais uma vez, foi distinto do esperado: os senhores não se
intimidaram e reagiram firmemente contra a decisão da Coroa. A prática de
resolver as pendências locais pelo poder das armas havia se tornado
expediente comum no São Francisco.86 A motivação era sempre a mesma: a
disputa de poder político emoldurado em questão fundiária.

84 O nome de Lourenço Rocha Marinho não aparece na relação de rendeiros situados nas fazendas

relacionadas pelo padre Miguel do Couto em sua descrição do Piauí. Tampouco aparece com
subscrevente do termo de criação da freguesia de Nossa Senhora da Vitória do Piauí, o que nos leva a
crer, ser ele um empreendedor autônomo, tentando por vias próprias, encontrar um espaço entre os
grandes senhores.
85 Pela decisão real os possuidores de terras do Piauí que não as cultivassem, por si, por seus feitores,

colonos ou constituintes, perderiam as terras para os denunciadores Como vimos antes, esta lei
estava inserida em um plano político mais amplo, e, mais tarde vai ser incorporada no Alvará em
Forma de Lei de 23 de novembro de 1700, com aplicação geral em todo o Estado do Brasil, com
efeito nos sertões administrados por grandes senhores de terras. (PEREIRA da COSTA, 1974:60).
86 Em maio de 1696, os padres e índios da aldeia do Caruru foram expulsos de suas missão no rio

São Francisco. Carta do provincial Alexandre Gusmão de 5 de maio de 1696. (ARSI. Bras, 4:9v);
(LEITE, 1945, vol. V:299). Em novembro do mesmo ano os senhores de terras ordenam a expulsão
dos Jesuítas de Rodelas “Relação da maneira com que se botarão os PPes da Cormp.a de JESVS fora
das suas missões no Rio de S. Francisco”, Baia, aos 19 de novembro de 1696. (APP, Pasta 188:17);
(ARSI, Bras. 4:24v-25); (LEITE, vol V:300-4). Em agosto de 1698, os seesmeiros ordenaram o
desmanche do núcleo da Mocha e a expulsão do Padre Thomé. A ordem foi executada por
Domingos Affonso Serra, que pôs a baixo as igrejas e casas levantadas pelos fregueses e expulsou o
Vigário Thomé de Carvalho. No testamento de Domingos Afonso Sertão, encontramos referencia ao
levante de rendeiros: “Declaro que sou senhor e possuidor da metade das terras, que pedi no Piauy
com o coronel Francisco Dias d’Ávila e seus irmãos, as quaes terras descobri e povoei com grande
241
Em carta datada de 8 de Outubro de 1699, dirigida ao secretário de
Estado, Roque Monteiro Paim, apreciada pelo Conselho Ultramarino em 18
de Janeiro de 1700, o bispo de Pernambuco, D. Francisco Lima, dava conta
das graves diferenças que havia encontrado entre os moradores do Piauí
quando lá esteve em diligências para a medição das terras reservadas para a
criação das freguesias e para a ereção das igrejas no Brejo da Mocha. (AHU
cód. 257:35v-36). O bispo de Pernambuco voltou convencido de que um
conflito eminente se armava e alertou a Coroa. Na tentativa de conter os
excessos, em 13 de Janeiro escreveu ao governador general do Estado do
Brasil, D. João de Lencastro, ordenando que o ouvidor geral de Sergipe Del
Rey, Diogo Pacheco de Carvalho, fosse ao Piauí, acompanhado de milícia,
para tomar ciência, devassar os culpados e intervir no caso, a fim de evitar
que se iniciasse disputa violenta.87 Em 20 de Janeiro de 1700, o Rei escreveu
ao governador de Pernambuco, Dom Fernando Acis Mascarenhas Almeida,
encomendando o mesmo cuidado:
Mandando ver pelo meu conselho Ultramarino a conta que me mandou o Bispo
dessa capitania por via do Secretário Roque Monteiro Paim das diferenças em
que achou os moradores do Piauí quando foi em visita sobre a medição das suas
terras. Me pareceu encomendar-vos façais muito pelos compor de maneira que
não cheguem aquele rompimento de que se pode temer algumas ruínas dando-lhe
a entender que nestas suas contendas devem esperar o recurso da Justiça sem se
valerem de meios violentos, que neste caso não só não serão prejudiciais, mas
desagradáveis e quando não bastar esta insinuação para os apaziguardes; vos
ordeno façais passar o Ouvidor Geral ao dito distrito, com alguma gente que se
acompanhe para o respeitá-lo para que os una, e ponha em boa paz, e proceda
contra os culpados, que se não quiserem reduzir ao que for razão. (AHU. Cód.
257:35v-36).
Para o Rio Grande do Sul o Conselho Ultramarino sugeria que
enviasse “em direitura do Reino” o desembargador João Guedes de Sá,
acompanhado de milícias de Olinda e do Recife e de alguns paulistas, para
devassar e prender culpados. O parecer do Ultramarino foi acatado e
despachado aos 24 de Setembro de 1700, apenas um dia após a assinatura
do Alvará de terras de 1700.
A presença do ouvidor geral de Sergipe e do desembargador da
Relação, e da força militar enviada para garantir o cumprimento do alvará de

risco de minha pessoa, e considerável despeza com o adjutório de sócios, e sem elles defendi também
muitos pleitos, que se moveram sobre as ditas terras, ou parte d’ellas”. Testamento de Domingos
Affonso Certão, descobridor do Piauhy, (RIHB, tomo XX, 1857:144-5). Um pouco mais tarde, em
fins de 1699 ou começo de 1700, atentaram contra a vida do Pároco da freguesia do Paranaguá. Carta
Regia ao Governador Geral do estado do Brasil, D. João de Lencastro, sobre as violências de
Domingos Affonso Sertão. Lisboa, 13 de Janeiro de 1699. (BARROS, 1920:364-5).
87 Carta Regia ao Governador Geral do estado do Brasil, D. João de Lencastro, sobre as violências de

Domingos Affonso Sertão. Lisboa, 13 de Janeiro de 1699. (BARROS, 1920:364-5).

242
1700,88 parecia ter acalmado os ânimos por algum tempo. Contudo, a
experiência mostrava que estas medidas só teriam vida útil enquanto
estivessem guardadas por força militar, o que não poderia acontecer
permanentemente. Em carta régia datada de 4 de Fevereiro de 1701, o rei
ordenava ao governador do Maranhão que informasse sua opinião –
ouvindo os moradores do Piauí – sobre a representação do prefeito da
província de Santo Antonio do Estado do Maranhão, frei Jeronimo de São
Sacramento, e do padre Miguel do Couto Carvalho, sobre a mudança da
jurisdição das fazendas e moradores situados nas conquistas do Piauí para o
Estado do Maranhão.89 O Rei tinha pressa, pois não esperou o resultado da
consulta, e em 3 de Março do mesmo ano despachou nova carta régia ao
governador de Pernambuco, já comunicando a separação da capitania do
Piauí de Pernambuco, e sua anexação ao governo do Estado Maranhão;
decisão confirmada por resolução do Conselho Ultramarino em 11 de
Março do ano seguinte. (PEREIRA da COSTA, 1974:64). Dois dias depois,
outra Carta Régia dirigida ao Governador do Maranhão informava a
confirmação e a declaração de que os dízimos referentes àquela freguesia
ficariam pertencentes ao Estado do Maranhão.90
A separação das conquistas do Piauí da jurisdição da Bahia e de
Pernambuco deu ocasião para o deslocamento do eixo das contendas de
terras para o Maranhão, atando as mãos dos grandes senhores de terras que
dominavam os canais da justiça e da burocracia colonial da Bahia e de
Pernambuco. Este movimento fecha um ciclo de intenso movimento da
Coroa portuguesa pela instituição do poder civil no sertão de Rodelas e
conquistas vizinhas pela Coroa.
Como veremos adiante, anos depois da expansão da fronteira do
Piauí, Garcia d’Ávilla, filho do célebre mestre de campo Francisco Dias
d’Ávila, falecido no final do século XVII, herdara junto com as grandes
possessões de terras vinculadas ao morgadio da Torre, um infindável
88 Pereira da Costa informa que: “Neste ano (1701) se baixou Carta Régia dirigida ao Desembargador

Carlos Azeredo Leite enviando-lhe cópia do Alvará sobre repartição de terras às aldeias dos índios e
passais dos párocos, (Alvará de 23 de novembro de 1700) e ordenando-lhe que fosse à freguesia do
Piauí a devassar o excesso que se cometeu contra o cura da dita freguesia, e executasse ali o referido
alvará.” (PEREIRA da COSTA, 1974:66).
89 (PEREIRA da COSTA, 1974:60); “Parecer do Conselho Ultramarino sobre Consulta feita pelo

padre Frei Jerônimo de S. Sacramento da Província de Santo Antonio do estado do Maranhão, e o


Padre Miguel do Couto sobre mudança jurisdição das fazendas e moradores do Piaui para o
Maranhão”. Lisboa 4 de março de 1702. (IAHGP, cód.Ordens Regias 1700-1704:221); ver também
Sobre informar com seu parecer ouvindo os moradores daquele distrito acerca do que representaram
os Padres Jerônimo de S. Francisco e Miguel de Carvalho. Lisboa, 04 de fevereiro de 1701. Registro
de Cartas do Conselho Ultramarino. (AHU, Pernambuco, cód. 257:69/69v).
90 Carta Régia ao Governador do Maranhão de 13 de março de 1702. (PEREIRA da COSTA,

1974:67).
243
número de litígios judiciais, impetrados por antigos associados que
buscavam à luz da nova legislação sesmarial, libertarem-se do jugo do
senhorio. A maioria destas questões teve foro na praça de São Luiz para
onde, após a anexação da conquista do Piauí ao Maranhão, em 1702
correram os pequenos rendeiros em busca de decisão mais isenta favorável
a seus pleitos. Nesta praça, além de a Casa da Torre não possuir uma rede
de influência estabelecida entre os magistrados, tal como ocorria na Bahia,
contavam com o beneplácito do governador do Maranhão, que buscava
atrair interesses econômicos como forma de combater a inanição do seu
Estado.
Fechava-se o século dos desbravamentos, e iniciava-se o da
manutenção e desenvolvimento do sertão. O poder civil instalado pela
Coroa punha-se como uma cunha entre os senhores e foreiros, controlando
a ação das oligarquias locais, mas não lograra plenamente o objetivo
precípuo de tomar o poder nos sertões, todavia, produzira mudanças
significativas que iria ter reflexos produtivos com a aplicação da política
pombalina meio século depois. Neste raciocínio, a Lei de terras de 1700,
pode, de certa forma, ser considerada um ensaio geral para a criação do
Diretório Pombalino de 1758 que secularizou as aldeias e, por força de
decreto, as transformou em vilas. As duas iniciativas tinham em comum o
princípio da homogeneização e da integração dos nativos em um substrato
sertanejo.

244
2. O tempo do século: a submergência tapuia.
A coroa sempre viu os índios como peças tuteladas a quem podia
movimentar livremente em função de suas demandas políticas; os
missionários também. Os primeiros, justificados na conversão do homem
gentil ao civilizado e na criação de vassalos úteis e produtivos ao Estado; e
os missionários apoiados em seu papel de redentor espiritual, reservando
sempre um pé no temporal, de onde podiam manobrar os privilégios da
regência dos índios. O novo século trouxe uma nova ordem, caracterizada
pelo abandono da rígida tradição catequética de orientação apostólica dos
missionários capuchos franceses e jesuítas. Estas mudanças, de certa forma,
prenunciavam outras ainda mais amplas que viriam na segunda metade do
século, marcadas pela conversão das missões em paróquias, pela
substituição dos missionários por curas seculares, e pela congregação de
moradores das aldeias e das fazendas em vilas. As alianças de compadrio
estabelecidas entre senhores e foreiros, após um século de conquista se
esgotavam; antigos rendeiros ganhavam liberdade enquanto os sesmeiros
assistiam lentamente seu poder se resumir. No bojo deste processo nascia
naquelas freguesias fundadas no final do século XVII, uma semi-
independente oligarquia sertaneja, que passava a ocupar o lugar dos
capitães-mores e procuradores, antigos capatazes dos senhores de terras. No
entorno das fazendas de gado se comprimiam nativos que deixavam suas
comunidades originais para se agregarem à população marginal desses
assentamentos coloniais, gerando lentamente uma camada social mutante
formada por nativos desvinculados da produção social, que viviam em
estado de extrema miséria ou que, direta ou indiretamente se dedicavam a
atividades marginais à pecuária.

A decadência da Casa da Torre


Após um século de expansão a Casa da Torre, dividida em várias
frentes, tornara-se um organismo pesado, vulnerável e impotente para
manter intocável seus domínios. Como vimos anteriormente, não
interessava mais à Coroa portuguesa estimular a ação de povoamento via
grandes sesmeiros que, a partir do final do século XVII, passara a legislar
orientando uma política não só de restrição aos grandes latifúndios, mas de

245
coerção de privilégios, pondo uma cunha no poder dos morgados, e
deixando livre o caminho para que a ação natural agisse em favor da
distribuição das grandes possessões de terras.
As pendências geradas pela transferência de foro e anexação da
capitania do Piauí ao Estado do Maranhão, continuaram produzindo efeitos
ao longo do século. Ex-foreiros organizados, valendo-se dos hiatos da
legislação e dos interesses do governo maranhense, passaram a buscar
naquela jurisdição91 amparo para os pleitos de terra que, naturalmente, lhes
seriam contrários na Bahia. A lei de 1699, confirmada no Alvará de 23 de
novembro do ano seguinte, estabelecia o direito da denúncia de terras
devolutas. Esta lei, combinada à transferência do foro de Salvador para São
Luiz, estimulou muitos ex-rendeiros a se habilitarem à aquisição de seus
títulos de terra no Maranhão. Para conter a demanda das causas perdidas
naquela praça, a Casa da Torre, apoiada no argumento de que o governador
daquele Estado, Christovão da Costa Freire, vinha conduzindo as questões
de terra com dolo – por não citar Garcia d’Ávilla Pereira nos lugares
públicos da Bahia – solicitou ao Rei que lhe nomeasse juiz privativo para
julgar aquelas causas do Piauí. Em 1718 o Rei emitiu provisão real
concedendo ao suplicante o privilégio solicitado. Diz a petição:
Coronel Garcia de Avilla Pereira morador no termo da cidade da Bahia em razão
de que entre os bens que lhe pertenciam eram varias terras no sertão que foi de
Pernambuco e foram dadas de sesmaria pelos governadores da dita Capitania nos
anos de 658, e 667, e 684 a seus pais avós e mais parentes sendo em algumas
delas sócio Domingos Affonço Certão nas quais sesmarias se compreendia o
distrito chamado hoje a Capitania do Piauhy de cujas terras e das mais contíguas
ao mesmo Piauhy que eram pertenças das ditas sesmarias estava de posse por si e
seus antepassados tendo-as povoado com gados seus e de vários rendeiros a
quem as dera de arrendamento (...) sucedendo mandarem separar a dita Capitania
do Piauhy da de Pernambuco anexando-a ao Maranhão com este motivo e por o
dito Garcia de Avilla Pereira viver muito distante do Piauhy os mesmos rendeiros
que traziam de arrendamento as tais terras como seus Colonos fingindo-as
incultas e devolutas as tinham pedido de sesmaria ao Governador do Maranhão
Christovão da Costa Freire havendo-se com tanto dolo que devendo citar ao dito
Garcia de Avilla Pereira de quem sabiam eram as ditas terras ou por editais nos
lugares públicos da Bahia e em Pernambuco fabricaram e se puseram uns editos
no mesmo Sertão do Piauhy aonde só viviam as mesmas ditas partes
interessadas.92

91 Estes eventos contrariam a opinião de Pereira da Costa que acreditava ter sido esta transferência de

foro apenas uma formalidade jurídica sem aplicação pragmática. (PEREIRA da COSTA, 1974:65-6).
92 Provisão Real a pedido do Coronel Garcia de Avilla Pereira para nomeção de juiz privativo para

das causas de terras no Piauhy. Lisboa, 8 de Março de 1718. (AHU, códice 92:174).

246
A petição de Garcia d’Ávilla jogava com idéia sofismática tentando
convencer a magistratura da suposta injustiça e mostrando que os rendeiros
podiam tratar na praça da Bahia, sob o pressuposto que estes tinham seus
negócios naquela cidade. Sabe-se, entretanto que a realidade não era bem
esta, primeiro porque os comboios ganadeiros eram conduzidos à Bahia por
contratados e não necessariamente pelos próprios fazendeiros; segundo
porque naqueles sertões viviam rendeiros e procuradores, representantes
legais da Casa da Torre, de forma que não era válida a alegação do
suplicante de que não conhecia os editais; e finalmente porque, sendo ele
uma única pessoa, seria mais lógico que, como parte denunciada, viesse se
defender no Maranhão, que deslocar centenas de contendores colonos à
Bahia.93
Depois de perder o foro privilegiado de Salvador, onde tinha
instalada sua rede de influência na Relação da Bahia,94 e depois de muito
resistir a levar suas contendas no Maranhão, onde os resultados geralmente
eram favoráveis aos seus contrários, a Casa da Torre procurou a estratégia
de indicar magistrado especial para aquelas disputas, o qual poderia ser mais
facilmente manobrado que os do Maranhão.
No ano de 1728 o ex-governador do Maranhão, Maya da Gama, a
pedido do rei, empreendeu longa jornada terrestre, que tinha por finalidade
observar e relatar a situação das estruturas viárias, portos e defesa no
Nordeste. Partiu por terra de São Luiz penetrando pelo Mearim até o Brejo
da Mocha no Piauí. Neste espaço o mercado da consciência pública era tão
declarado que Maya da Gama se defendia antecipadamente de qualquer mau
juízo que dele pudessem fazer: “tendo eu corrido todos os domínios de
Vossa Majestade em Portugal, Índia e Brasil me parece que não achei em
parte alguma a onde os vassalos de Vossa Majestade experimentassem de
outro vassalo mais violências, nem matéria mais digna da real atenção” e,
tomando Deus como testemunha, concluía: “nem uma vaca, nem uma

93 No ano de 1728 Maya da Gama, ex-governador do Maranhão, empreendeu longa jornada por

terra, partindo de São Luiz penetrou pelo Mearim até o Sertão de Rodelas. Sua Viagem era de
natureza investigativa, deveria observar e relatar a situação das estruturas viárias, portos e defesa no
Nordeste. Sua missão dedicou alguma atenção a questão fundiária no Piauí onde já haviam entre 80 e
100 causas contestatórias em andamento: “quando não bastassem estas informações jurídicas sobrava
o que ví e ouvi em todo o Piauhy no que ficandosse alguns 80 ou cem povoadores com quem talvez
se dissimularia por fazer posse para que pagassem de muitos anos a esta parte a pensão de 10 mil reis
de cada um ano” (MAIA da GAMA, [1728], vol II, 1944:27).
94 Diz Maya da Gama sobre esta rede: “e voltar a Bahia encontrando sempre o poder da dita casa

(Casa da Torre) com tantos Procuradores na Bahia e em Portugal que rara é a causa que se finalize, e
só tenho notícia de que saiu uma por correr no eclesiástico e não sei se outra no secular e se puder
haver as copias as juntarei a esta conta e deixo aqui um pequeno lugar para a citar.” (MAIA da
GAMA, [1728], vol II, 1944:28).
247
vitela, nem ouro, nem prata, nem cavalo, ou sela aceitei em todo o Píauhy.”
De passagem pela Mocha, Maya da Gama registrou o estado da questão
entre a Casa da Torre e os rendeiros:
a muito que Vossa Majestade fez ao tal Garcia de Avilla para que as suas causas
corressem na Bahia diante do seu juiz o que seria justo no tempo em que não
havia ouvidor no Piauhy,95 mas agora que o há de nenhuma sorte convém nem é
justo que as causas corram logo na Bahia senão perante o Ministro da Vila de
Moucha e Piauhy, e ao depois por apelação e agravo vão para a Bahia a onde toca
pelas ordens de Vossa Majestade porque de outra sorte é fazer injustiça aos
vassalos, e impossibilitá-los a defesa das suas fazendas porque os demais deles se
não atrevem a ir a Bahia a gastar, nem podem legalmente justificar a sua posse, e
a sua justiça, nem ir a Bahia e esperar dilações e pedindo carta de inquirição por
não ter aí testemunhos e tornar ao Píauhy; e voltar a Bahia encontrando sempre o
poder da dita casa com tantos Procuradores na Bahia e em Portugal que rara é a
causa que se finalize. (MAIA da GAMA, [1728], vol II, 1944:28).
Concluindo opinião sobre o assunto, o ex-governador do
Maranhão sugeria ao Rei que evitasse os “danos, prejuízos e violências aos
seus vassalos mandando logo, e já que as causas corram no Piauhy diante do
Ouvidor letrado e derrogando o mais em contrário e que só por apelação e
agravo vão para a Bahia”. As contestações dominiais da Casa da Torre não
se circunscreviam àquelas conquistas do Piauí;96 apesar da sangria do poder
donatarial, Rodelas continuava sendo um ‘principado’, cujo monarca era o
titular da Casa da Torre. Para contrabalançar as perdas produzidas pela
mudança na legislação fundiária que naqueles sertões estimulavam a
independência dos foreiros, os grandes senhores investiam no controle das
instâncias judiciais locais instaladas no final do século XVII, logrando com
sucesso indicar os postos de juizes ordinários97 que trabalhavam em seu
benefício. Esta prática ficou registrada em diversos depoimentos como o do
ex-governador do Maranhão, Maya da Gama. Processos conduzidos no
Cabrobó e Pambú, como “ações de força”, eram elaborados e julgados
95 A Ouvidoria Geral do Piauí foi criada na Vila da Mocha (Oeiras) aos 18 de março de 1722 quando

ainda era governador do Estado do Maranhão João Maya da Gama. (PEREIRA da COSTA.
1974:90).
96 Desde a fundação da freguesia de Nossa Senhora da Vitória em 1697, o Piauí passou a ter vida civil

independente de Cabrobó, núcleo original de onde partiu a expansão. O Sertão de Rodelas, já a partir
do século XVIII aparece como julgado sediado na povoação do Pambú e suas contendas eram
preferencialmente debatidas na Bahia. Sobre a instalação dos juizados ordinários diz João Justiniano
da Fonseca: “Parece que também essa determinação não se cumpriu, uma vez que não há notícia
disso. O juizado era o de Jacobina e outro só veio a surgir, como segundo no século XIX, em
Pambú” informa equivocadamente João Justiniano da Fonseca. (FONSECA, 1996:103).
97 Sobre a câmara da cidade de Oeiras no Piauí, registrou o Ouvidor Antonio José de Morais Durão:

“os cameristas nada de propinas; mas daqui nasce a repugnância com que servem, não obstante os
prestígios de que ficam gozando e não obstante chamarem-se regularmente os próprios vaqueiros
para servirem de juízes e vereadores.” Durão, Antônio José de Morais (Ouvidor) Descrição da
capitania de São José do Piauí 1772. Oeiras ao Piauí. 15 de Junho ele 1772. (MOTT, 1985:22-41).

248
sumariamente, muitas vezes sem a presença dos suplicados, seus
procuradores ou testemunhas de defesa arroladas nos autos.98 Este controle
freqüentemente permitia que se encerrassem as contendas logo na primeira
instância e somente processos de apelações ou agravos fossem conduzidos
para a Relação da Bahia.
Numa das raras peças judiciais que restaram do julgado de Pambú
(Cabrobó), Lázaro Pereira da Silva – oficial de sapateiro morador na fazenda
do Arocó, testemunha arrolada numa ação de embargo de despejo movida
por D. Brizida Rodrigues de Abreu em 1714 – revela a cruel dinâmica da
justiça em Rodelas. Esta Senhora era filha do capitão Francisco Rodrigues,
irmão de Domingos Rodrigues de Carvalho, ativo procurador e um dos
mais experimentados cabos de guerra da Casa da Torre. Segundo o termo
de embargo,99 em torno de 1644, o pai da embargante, a pedido do padre
Antonio Pereira, abriu e povoou a fazenda Riacho e outras circunvizinhas
que perfaziam “mais de dezesseis légoas de comprido e muita largueza”. A
troco de resgates reduziu a paz às nações dos índios Caracus, Enchus e
Umãns que ocupavam a região, “colaborando com muitas rezes para
sustentação dos padres misionarios que os catequizaram”. Por sua
conquista, ganhou da Casa da Torre o direito de explorar o sítio na
qualidade de foreiro. Após a morte do capitão Francisco Rodrigues, sua
herdeira, D. Brizida Rodrigues e seu marido, o tenente Manoel da Silva
Lima, sofreram uma ação de despejo sem motivo declarado, e em resposta
moveram embargo contra a Casa da Torre, conforme testemunha Lázaro
Pereira:
Brizida Roiz de Abreu herdou do Capitão Francisco Roiz de Abreu seis mil
cabeças de gado vacum assituadas em um sítio chamado Riacho, terras que seu pai
e ela embargante pagaram e pagam renda aos senhores da Casa da Torre por
estar nos limites de sua sesmaria de que o Capitão Francisco Roiz de Carvalho foi
o povoador e descubridor e que a embargante não foi chamada para o libelo que
o Dr. Dezembargador André Leitão de Melo ofereceu contra seu marido, o
tenente Manoel da Silva Lima e outros. idem
No correr do depoimento, Lázaro Pereira testemunhou a conexão
dos donatários com o judiciário; segundo ele, o desembargador André
Leitão de Melo, ex-juiz togado, mantinha relações de compadrio com
Garcia d’Ávilla e havia se tornado procurador da Casa da Torre.

98 O termo ação de força era utilizado para designar ações judiciais de despejo litigioso de colonos,
amparada por força militar.
99 Embargo movido por Brizida Roiz de Abreu e seu marido o tenente Manoel da Silva Lima contra

ação de despejo do sítio Riacho, descoberto e povoado de gados pelo seu Pai Francisco Roiz de
Carvalho (± 1644), a pedido do Padre Pereira, senhor da Casa da Torre. (IAHGP, Coleção Orlando
Cavalcanti, 1714, Caixa 13, 2° pacote).
249
Certamente, em troca de seus favores na Relação da Bahia, o
desembargador Leitão recebera o direito de arrendamento da fazenda
Riacho, então ocupada pela dita D. Brizida Roiz. Diz o sapateiro:
Jura ele testemunha que quando o Dr. Dezembargador André Leitão de Melo
veio de Portugal veio por Juiz de Fora e que o dito tomou o Coronel Garcia de
Ávila por seu compadre, e que quando foi para Portugal que acabou de Juiz de
Fora, fora por procurador do dito Garcia de Ávila Pereira e que sendo Juiz de
Fora lhe dera Leonor Pereira Marinho (viúva de Francisco Dias d’Ávilla) o
arrendamento do sítio Riacho e que quando veio de Portugal veio por
Desembargador da Relação deste Estado. (IAHGP, Coleção Orlando Cavalcanti,
1714, Caixa 13).100

Dezessete anos depois do início do processo de embargo, a


contenda envolvendo a fazenda Riacho continuava ativa, conduzida então
pelo herdeiro de D. Brizida e seu marido, o capitão-mor Carlos de Faria
Machado, que defendia seu possessório com um pequeno exército de
homens armados. Esta mobilização era uma reação à nova sentença
favorável ao despejo que o desembargador Leitão e a Casa da Torre haviam
conseguido por volta de 1725. Todavia, as autoridades coloniais intimidadas
pela reação dos rendeiros não deram cumprimento à ordem, pois até o ano
de 1731 os despejantes não haviam encontrado qualquer oficial do poder
público que se atrevesse a dar execução da sentença, escusada
sistematicamente por quatro oficiais do governo. Sem conseguir executar a
sentença, os impetrantes resolveram apelar novamente à corte de Lisboa,
solicitando mais uma vez o cumprimento da decisão de despejo:
Preferindo, as ultimas sentenças ha cinco ou seis anos pedir em concede-las a
Vossa Majestade lhe mandasse passar provisão para que o Ouvidor de
Pernambuco as desse a execução e o Governador da mesma Capitania lhe desse
para isso toda a ajuda, e favor, e servindo então o dito cargo o Dr. Manoel do
Monte Fogaça, que se Recolheu a este Reino na presente frota, se escusou de ir
fazer a dita diligência por ser a dita fazenda distante do Recife mais de 150 léguas
sendo os caminhos ásperos, e perigosos e pelas muitas ocupações do seu ofício, e
com a noticia recorreram segunda vez os suplicantes a Vossa Majestade pedindo-

100 Maya da Gama denunciou no seu Diário de Viagem arbitrariedades praticadas pela Casa da Torre

contra seus antigos aliados que confirmam os depoimentos das testemunhas do embargo de D.
Brizida, diz a narrativa: “estando todas estas terras povoadas de gentio e não penetradas nem
povoadas, e indo vários descobridores com despesas de suas fazendas e com evidente perigo de vida
morrendo muitos e matando-lhe o gentio e outros parentes e escravos descobriram sítios, e
povoaram-nos e defenderam nos do gentio com perigo, e morte de muitos e depois de estabelecidos
vinham os Procuradores da Casa da Torre, e por força, ou os faziam despejar, ou os faziam passar
escritos de arrendamento para o que fizeram sempre Procuradores os mais poderosos, mais
facinorosos, e mais temidos que sempre até hoje em dia usaram e usam destas violências com a maior
vexação força, violência, e injustiça feita aos vassalos de Vossa Majestade que se pode considerar e
me constou juridicamente por muitas informações tiradas por testemunhas”. (MAIA da GAMA,
[1728], 1944:27).

250
lhe novas ordens para o Dr. Antônio Rabello Leyte quando foi por ouvidor das
Alagoas, e sem embargo de as levar e prometer ir fazer a dita diligência depois se
escusou também dela com os mesmos motivos, e temendo o poder dos
suplicados, e seus sócios que também foram compreendidos na dita condenação
e espalharam a voz de que na dita fazenda se achavam alevantados 50 criminosos
que não haviam permitir que nela entrasse justiça e foi preciso aos suplicantes
pedir a Vossa Majestade terceiras ordens para o Dr. Carlos Pereira Pinto que
tinha acabado de Ouvidor das Alagoas; e em sua ausência para o Dr. Lourenço
de Freitas Ferraz e Noronha, que tinha acabado de juiz de fora da Vila de Santo
Antonio do Recife, e Vossa Majestade foi servido manda-las passar por resolução
tomada em Consulta que se lha fez por este Tribunal; e com a chegada da dita
frota souberam os suplicantes que nem estas ultimas ordens tiveram efeito, por
que o dito Dr. Carlos Pereira Pinto veio nela para esta parte, e o Dr. Lourenço de
Freitas se escusou também da dita diligência.101
Os suplicantes solicitavam ao Rei permitisse o conde de Sabugosa,
vice-Rei do Brasil, que nomeasse para a diligencia qualquer desembargador
da Relação da Bahia, ou qualquer ouvidor, ou juiz de fora que estivessem
servindo no Brasil ou no reino. Os interessados pediam ainda que em caso
de renúncia dos indicados que se nomeasse outro no lugar dos que se
escusassem, ou fossem “julgados suspeitos, ou impedidos por morte ou
qualquer outra causa até com efeito se fazer a dita diligência ordenando-lhe
mande para ela toda ajuda, e favor”. Não conhecemos o resultado desta
disputa, mas certamente a experiência dos foreiros levantados mostrava que,
contra o poderio dos donatários, somente valia a resistência organizada e
armada dos rendeiros. Assim, mesmo com o governo civil instalado no
sertão, a ação da força ganhava espaço como expediente natural para a
solução das diferenças. O poder da Casa da Torre – então administrada pela
viúva de Garcia d’Ávilla – já não era tão sólido quanto na época de seu
sogro, o mestre de campo Francisco Dias d’Ávilla. O morgadio não mais
ousava praticar tão livremente os costumeiros expedientes de violência nas
disputas de terras.
O espaço entre as fazendas era enorme; assim, as terras livres,
principalmente aquelas situadas em área de fronteira de sesmaria – onde os
limites não se faziam suficientemente claros – se tornaram alvo de ocupação
por posseiros. No princípio do século XVIII, antigos rendeiros e
conquistadores tardios, passaram a se apossar de terras situadas nestas
linhas, iniciando nova série de contestações nas propriedades da Casa da
Torre; tal foi o caso dos sítios do Xangô, Pau Grande, Boqueirão e Talhada,
101Carta Régia sobre o que pede o Desembargador Leytão de Mello e o Coronel Garcia de Ávila
Pereira. Lisboa, 20 de Abril de 1731. (AHU, códice 56:327v-8). Lê-se na decisão real: “de 25 anos a
esta parte, pouco mais, ou menos, que tem passado depois, que o antecessor, e pai do suplicados e
outros seus sócios se levantarão com a dita fazenda, e com a mesma violência se tem conservado e
conservam nela”.
251
situados na borda Leste das sesmarias da Torre, tomados pelo alferes
Faustino Vieira de Sande e seus associados no ano de 1747, conforme se
verifica no auto de sumário de força impetrado pelo mestre de campo
Francisco Dias d’Ávilla, herdeiro de Garcia d’Ávilla Pereira:
Em um dos dias do mês de Dezembro do ano passado de 1747 se intrometeu
Faustino Vieira de Sandes a perturbar aos Suplicantes do dito seu possessório,
sem título algum, que válido possa ser, e a título de uma nula medição que a seu
arbítrio fez fazer em as ditas terras a revelia, e sem citação dos suplicantes se
introduziu nos sítios chamados Xangô, Pau Grande, Boqueirão e Talhada e
outros vários, que eram do dito possessório dos suplicantes, levantando neles,
currais e casa e fazendo outros muitos atos espoliativos. (IAHGP, Coleção Orlando
Cavalcanti, 1749, Caixa 13).

Estes sítios estavam situados ao nascente da atual cidade de


Tacaratu, alguns deles em terras, até poucos anos atrás reclamadas pelos
índios Pankararu, como é o caso do sitio do Boqueirão hoje denominado
Caldeirão. De acordo com o testemunho do agricultor Manoel Rodrigues
Teixeira que morava no Brejo da Água Branca, Vieira de Sande e os
posseiros por ele comandados estavam decididos a ir às últimas
conseqüências, haviam construído uma casa forte e juntado um séqüito de
criminosos, todos armados que “não largavam as armas da mão nem para
urinar”, conforme testemunhou o pecuarista Manoel Rodrigues da Silva,
morador no sítio da Tengamunhé:
Seu pai dele testemunha povoara de gado o sítio do Mulungu ou Pieaiqui
pagando renda dele a dita Casa da Torre, é até o ano de mil setecentos e quarenta
e três para quarenta e quatro em que José Martins Bezerra e seus filhos
intentaram apossasse delas potenciosamente das quais foram expulsos por
vontade de uma sentença de força que contra eles lançou o Coronel Francisco
Dias de Ávila, e depois no anos de quarenta e sete se introduziu o Alferes
Faustino Vieira de Sandes também potenciosamente adonde se achava no tempo
presente de morada no dito sítio do Boqueirão adonde tem notícia certa que
estava fazendo uma casa forte acompanhado de muitos homens todos armados e
a maior parte deles criminosos e sabia de notícia certa que o dito Faustino Vieira
havia feito medição naquelas terras abrindo picadas afincando marcos tudo sem
citação das partes a sua revelia trazendo juiz da vila do Penedo. (IAHGP, Coleção
Orlando Cavalcanti, 1749, Caixa 13:5-6).

Neste caso, a exemplo dos rendeiros do Piauí que se abrigaram na


jurisdição do Maranhão, os contestadores usaram do expediente de trazer
jurisdição externa para fugir daqueles foros onde os donatários conseguiam,
ao poder de sua influência política, conduzir em seu benefício a consciência
dos magistrados. Faustino de Sande, valendo-se da inexatidão dos distritos
judiciais que naquela área limitavam a comarca das Alagoas com as
capitanias da Bahia e de Pernambuco, invocou a dúvida em seu benefício e,
ao abrigo da jurisdição alagoana, trouxe para demarcar as terras apossadas

252
um magistrado ordinário da vila do Penedo. A seu turno os senhores de
terras trataram de pedir na justiça a concessão do privilégio de juiz especial
para julgar suas causas. Mais uma vez não se sabe o resultado da disputa,
mas a julgar pelo número crescente de novos processos levados pela Torre
no sertão de Rodelas, se pode supor que em muitos deles os contestadores
obtiveram sucesso, animando a outros a contender na mesma linha.
O tempo cursava, e os grandes senhores sentiam o peso da nova
ordem estampada nas vitórias de seus contestadores. As perdas cresceram e
a exploração fundiária deixou de ser um bom negócio; para evitar o colapso
geral a Casa da Torre iniciou na segunda metade do século XVIII a inversão
do patrimônio fundiário em outras formas de capital, e no decurso do
século desmontou progressivamente os latifúndios do Piauí, Maranhão e
Ceará, resumindo seus interesses forais nos sertões marginais do São
Francisco, no sertão de Rodelas, lugar de onde no início do século XVII
iniciara sua expansão. (BANDEIRA, 2000:355 e ss).
É razoável supor que este desmanche tenha implicado na
desmobilização de considerável contingente humano que vivia debaixo de
sua proteção nos arraiais e aldeias livres controladas pelo potentado. Nos
dois casos de contestação antes relatados, o poder de resistência dos
foreiros estava dependente do adjutório de milícias privadas, as quais bem
poderiam ser formadas pelos resíduos destes desmontes então consorciados
aos novos senhores.

A submergência tapuia.
O Diretório dos Índios no sertão de Rodelas.
Na segunda metade dos anos setecentos o mundo assistia a
emergência de uma nova era político-administrativa portuguesa, sob o
comando de Sebastião José da Carvalho e Melo (1699-1782), marquês de
Pombal, primeiro-ministro do Rei Dom José. A decadência nas exportações
de vinho, açúcar e tabaco e, a partir de 1762, a queda da produção aurífera
brasileira, embarcara a economia portuguesa, numa crise sem precedentes.
Ao lado dos problemas de caixa, o regalismo e o poder da nobreza lusitana
amplificavam o desequilíbrio, que acabava por enfraquecer o poder do
Estado e da Coroa. No vácuo de governabilidade deixado pelo Rei D. José
I, Pombal iniciou uma reação de grande envergadura, que trouxe Portugal
de volta ao foco da cena política internacional.
Após a promulgação do Tratado de Madrid em 1750, o problema
da manutenção das fronteiras brasileiras partilhadas com a América
253
Espanhola passou a exigir a aplicação de esforço diplomático adicional no
sentido de regular e promover a ocupação da região Amazônica.
(AZEVEDO, 1932); (PEDROSO, 1971). (MENDONÇA, 1960). A esta
época a Companhia de Jesus, tornara-se o grande vetor da expansão
estratégica do Amazonas, exercendo grande poder nos desígnios de ambos
Estados Ibéricos que disputavam a região. Para conter a influência política e
econômica da Companhia de Jesus, que se dava em grande parte pelo
controle e administração da reserva de mão-de-obra dos nativos, D. José I
sancionou aos 3 de maio de 1757 o Directório que se deve observar nas povoações
dos Índios do Pará e Maranhão,102 e em 17 de agosto do ano seguinte fez
publicar Alvará confirmatório que estendia sua ação para todo o Estado do
Brasil. O Diretório consolidava em legislação, matéria colonial que vinha
sendo experimentada de longa data, especialmente aquelas que tratavam da
secularização da ação indigenista, e da instalação de um poder civil no
interior. A secularização da administração das aldeias indígenas e a
substituição de missionários religiosos por diretores leigos, em voga desde
1755,103 atingia diretamente os interesses dos jesuítas, que tentaram em vão
resistir à implementação do Diretório, movimento que culminou com o
confisco das propriedades da Companhia de Jesus e no banimento de sua
ordem do Brasil, entre os anos de 1759 e 1750.
O Diretório declarava indistintamente livres e vassalos do Rei
todos os nativos, os quais deveriam ser ocupados na defesa das fronteiras e
na produção agrícola. Para tanto deveriam ser criadas vilas, formadas pela
reunião de aldeias, governadas por um diretor secular a quem caberia a
atribuição de promover a ‘civilização’ dos índios e intermediar as relações
entre índios e colonos. Segundo o Diretório, a civilização dos índios deveria
ser atingida por uma série de medidas que atacavam pontos estratégicos tais
como o combate às tradições ancestrais; a proibição do uso da língua nativa;
a luta contra o concubinato e a poligamia, além da promoção da mestiçagem
através do incentivo dos casamentos mistos; ao estímulo à produção
agrícola e comércio; ao pagamento de tributos; a fundação de escolas
especiais e o convívio comunitário com brancos. Em sua aplicação contudo,
o Diretório se mostrou mais eficiente como desagregador e agenciador de
mão-de-obra compulsória, que como instrumento de transformação do
segmento nativo em benefício de um projeto colonial amplo. Em 1798,

102 Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão enquanto Sua

Majestade não mandar o Contrário. Lisboa, Officina de Manoel Rodrigues, 1758.


103 Alvará Com força de Ley que restitui aos Índios do Grão-Pará a liberdade de suas pessoas, bens e

comércio, e que sejam governados no temporal e no espiritual pelos Governadores e ministros, e


pelos seus principaes, e justiças seculares, com inhibição das administrações dos regulares. Lisboa 7
de junho de 1755. (ALMEIDA, 1977:371 el ss).

254
depois de reiteradas denúncias de corrupção e abusos o Diretório foi
abolido.104
Em Pernambuco o Diretório encontrou o consórcio de um
abnegado burocrata, o governador Luiz Diogo Lobo da Sylva. A leitura do
registro da sua correspondência que se conserva na Biblioteca Nacional do
Rio de Janeiro,105 mostra como o projeto de secularização das missões
encontrou campo fértil na capitania; com efeito, na região do Rio São
Francisco, onde, na segunda metade do século XVII, missionários capuchos
e jesuítas haviam formado um enclave religioso composto por dezenas de
missões que, como vimos antes, a certo modo controlavam parte do poder
político da região. Este poder, apesar de amainado no final do século com a
renúncia forçada dos missionários religiosos; em meados do século seguinte,
ainda se interpunha como ‘obstrutor’ ao modelo de civilidade desejado pelas
autoridades portuguesas, interessadas em acelerar o processo de integração
das massas nativas reservadas em missões a benefício do povoamento e do
estímulo a atividades produtivas.

A resistência nativa ao Diretório


A saída dos capuchos e jesuítas das missões no Rio São Francisco
deflagrou um processo de evasão das aldeias. Sem os missionários que os
escudavam, muitos índios preferiam se aventurar no vácuo das fazendas e
terras não conquistadas que se submeter aos novos curas que não tinham
com eles o mesmo trato de seus antigos catequistas. A promulgação do
Diretório e a ação intempestiva dos agentes do governo intensificaram o
clima de incerteza na região ribeirinha. Levas de nativos aldeados ou em
processo de redução não se acomodaram à nova ordem das vilas e reagiam
silenciosamente fugindo e congregando-se em grupos arredios nas
adjacências do rio São Francisco. Estes grupos, com certo grau de
organização, passaram a oferecer uma resistência eficiente e ameaçadora ao
poder colonial. Para combatê-los o governador Lobo da Sylva enviou
bandeiras comandadas pelo sargento-mor Jerônimo Mendez, conforme
registrou em carta de 13 de Maio de 1761 ao governador interino Thomaz
Ruby de Barros e Barreto:

104 Sobre o Diretório dos índios veja: Colin MacLachlan, ‘The Indian Directorate: Forced
acculturation in Portuguese America’ The Américas, 28, 1972; Carlos de Araújo Moreira Neto, Índios da
Amazônia, de maioria a minoria (1750-1850). (MOREIRA NETO, 1988); John Hemming, Amazon
Frontier, (HEMMING, 1987).
105 Livro de registro da correspondência do Governador e Capitão General de Pernambuco, Parayba,

e mais Capitanias anexas, Luiz Diogo Lobo da Sylva. (1761 e 1762). BN - I, 2, 3, 35.
255
Além de tirar do corso muitos que andavam no exercício dele, fora da precisa
obediência, e só em exercícios destrutivos, e rumorosos aos moradores dos
distritos em que seguiam os seus giros. E como nesta parte era mais prejudicada a
que fica adjacente ao Rio de São Francisco, e por queixas que tive das freguesias
circunvizinhas, conheci o dano que padeciam os moradores brancos, que aí
habitavam, e o grande corpo que iam formando os índios de corso, com outros
que agregavam ao seu partido. (BN - I, 2, 3, 35:36).
Para sobreviver, os evadidos assaltavam fazendas, cobravam dos
fazendeiros e transeuntes uma espécie de pedágio, pago ao preço do boi
vivo, em troca da garantia de não hostilização; tática ainda usada com
sucesso um século e meio depois pelos cangaceiros que circulavam na
mesma região.106 A ação dos resistentes, qualificada pelo governador como
extorsão inaceitável, foi combatida com o poder da milícia. Diz o
Governador em carta de 24 de Junho de 1761 a Jerônimo Mendes:
No que respeita aos Índios dispersos e de corso, que escaparam o ano passado,
remontando-se para as distâncias que V.M. diz, será conveniente consolidados
que sejam os estabelecimentos em que se acham reduzidos da mesma sorte, que
se praticou com os seus companheiros, o que se entende, não crescendo o seu
número de sorte que se possa recear a repetição das mesmas extorsões que
praticavam antes de os reprimirem. (BN - I, 2, 3, 35:72-72v).
Em 1761 a forma mais segura de se trafegar pelo sertão ainda eram
os ‘comboyos’107 que conduziam o gado de diversos produtores pelos ermos
do caminho a salvo dos assaltos. Os neófitos do corso,108 unidos a outros já
habituados à prática, imprimiam seu terror na região que conectava Rodelas
a Parnaguá, no extremo sul do Piauí, área de domínio tradicional de povos
túpicos, que desde o século XVII vinham empreendendo poderosa
resistência ao processo colonizatório. Durante algum tempo os evadidos
foram permitidos entre as fazendas de gado mantendo algum tipo de aliança
com os curraleiros.109 Em carta a Jeronimo Mendes o governador informava
sobre o assunto:

106 Sobre as táticas do banditismo ver (MELO, 1993); (MATTA MACHADO, 1978). (BEZERRA,

1940).
107 “Já disse a V.M. que se acaso carecia de algum socorro, me avisasse, que não faltarei com tudo o

que me disser lhe é necessário, nem menos com a pólvora, e bala quando houver ocasião de
comboio, que apossa conduzir, a não haver circunstância que positivamente obrigue logo a remetê-
la” Carta de Luiz Diogo Lobo da Sylva, Governador de Pernambuco ao Sargento Mor Jeronimo
Mendez da Paz, Sobre várias matérias a respeito dos estabelecimentos, Parayba, e mais Capitanias
anexas. Recife, em 24 de Junho de 1761. (B.N. cód. I, 2, 3, 35:72v).
108 Recebiam o designativo ‘de corso’, não somente aqueles ‘nômades’, mas aos que de algum modo

impingiam resistência ao processo redutivo.


109 Por “haver gentios bravos próximo a Aldeia do Aricobé” o Ouvidor das Alagoas – um dos

encarregados da instalação do Diretório – se negara a ir ao Rio Grande do Sul. “na impossibilidade


que V.M. contempla de poder ir a ela, pelo seu remontado, e referido risco” Carta do Governador
Luiz Diogo Lobo da Sylva ao Dr. Manoel de Gouvêa Alvarez, Ouvidor das Alagoas Sobre a mudança

256
O dito Ouvidor me diz não passara a Aldeia do Ariçobé, pela distância em que
lhe ficava, e seca lho embaraçar, além de serem caminhos infestados de
quantidade de Índios brabos, que não poucas vezes costumam sair e assaltar os
comboieros, com risco de vida, dos que giram por aqueles distritos.110
Os problemas dos fugitivos do Diretório não era prerrogativa
apenas no Rio Grande do Sul. A resistência dos índios de corso na região da
serra do Arorubá, onde foi ereta a vila Real de Cimbres, em Serra Talhada e
no Moxotó, se espalhava rapidamente ensejando medidas repressivas, para
as quais Jerônimo Mendes sempre se mostrou bem preparado:
Por reconhecer nele que nas operações militares que tem havido no Ararobá,
Serra Talhada Moxotó, e outros lugares contra os Índios levantados, não só os
reduziu a obediência devida, mas evitou quanto lhe foi possível adiantar o
formidável partido, com que se iam fortalecendo, e nos dariam o primeiro
cuidado, sem fazer os estragos de mortandades, e outras hostilidades, que muitas
vezes se não pode omitir em semelhantes circunstâncias.111
A operação militar a que o Governador se referia era a bandeira de
repressão conduzida pelo sargento-mor Jerônimo Mendes para abafar um
levante que se espalhou do Moxotó a Cimbres, o qual encontra-se
registrado numa das raras devassas que se conservam desta época. O
referido documento narra que aos 13 de Outubro de 1759, no sítio do
Cancalaco na ribeira do Moxotó, estando os vaqueiros no campo com
outros comboieiros reunindo cavalos, se depararam com um grupo de
índios desaldeados das nações Pipapans, Chocós e Paraquiôs, encontro este
que resultou num conflito no qual acabaram mortos o capitão Manoel
Pereira de Andrade e Domingos Gomes da Sylva, e feridos, Antonio
Couros Sardinha e seu escravo Ignácio Correya. Segundo a testemunha do
processo, Antonio Correia, morador do Brejo Manari no sertão do Arorubá:
Andando o Capitão Manoel Pereira no campo em uma junta de boiada com
Manoel da Eylveyra (Oliveira) ajuntando cavalaria e vendo uns urubus chegando
a ver o que lhe saíram os ditos Índios nomeados e os mataram e fizeram disse ele
testemunha sabe por ser publico e notório o furtarem os ditos Índios por esta

da dita Vila, e outros pontos mais nela declarados. Recife. 30 de Janeiro de 1662. Registro de
correspondência do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva (1761 e 1762). (B.N. cód. I, 2, 3,
35:166v).
110 Carta do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva ao Sargento Mor Jeronymo Mendes da Paz,

sobre se lhe dar parte do acerto com que se houve o Ouvidor das Alagoas nos estabelecimentos das
novas Vilas, Cautelas com que se houve a favor dos Índios na Ilha do Pambú em rescindir a
remarcação que dela se havia feito a particulares, e o mais nela declarado. Recife, 1° de Dezembro de
1671. Registro de correspondência do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva (1761 e 1762). (B.N.
cód. I, 2, 3, 35:130v).
111 Carta do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva ao Dr. Manoel de Gouvêa Alvarez, Ouvidor das

Alagoas Sobre a mudança da dita Vila, e outros pontos mais nela declarados. Recife. 30 de Janeiro de
1662. Registro de correspondência do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva (1761 e 1762). (B.N.
cód. I, 2, 3, 35:166v).
257
Ribeira Mochoto e Pajahú e Rio de São Francisco useiros e viseiros a fazer
semelhantes delitos disse mais ele testemunha que sabe que maior parte deles são
pagões e vivem de corso pelas catingas e fora de todo o grêmio da Igreja.112
Índios de corso ou dispersos eram uma ameaça constante; o
sucesso do projeto exigia um esforço de reconquista para que eles viessem
engrossar a estatística das vilas eretas. O sargento-mor fez guerra aos índios
levantados no “Ararobá, Serra Talhada, Moxotó (...), não só os reduziu a
obediência devida, mas evitou quanto lhe foi possível adiantar o formidável
partido, com que se iam fortalecendo”, registrou o governador.113 Parte
destes contingentes arredios foram reunidos por Jerônimo Paz: os Pipipans
na Serra Negra,114 os Paraquiôs em Águas Belas,115 e o restante na Ilha do
Pambú:
Pela Carta de V.M. de 28 de Agosto, fico na inteligência de terem em Junho
próximo passado, buscado sessenta e sete Índios de um, e, outro sexo, e diversas
idades de Nação Enxu,116 essa Missão do Quixaló, com animo de se
estabelecerem nela, por não lhes ser agradável agregarem-se a Ilha de Santa
Maria, aonde os pretendia unir o sargento mor Jeronimo Mendes de Paz, (...) não
posso deixar de louvar a V.M. o recolhe-los nesta, a fim de evitar que os mesmos

112 O Auto da Devassa descreve com detalhes os requintes da violência: “os mataram a fechas que

são armas naturais dos Índios convém a saber foram as feridas dos ditos defuntos Manoel Pereira e
flechado por todo o corpo espichado pelos baços e pés em cruz e o dito Domingos Gomes lhe
fizeram o mesmo flechado por todo o corpo cabeça travada e escravada em cruz e Antonio de
Coures Sardinha flechado em um braço direito que lhe atravessou de uma parte a outra e o escravo
do dito Couros chamado Ignacio nos membros” Instrumento em Pernambuco forma com o theor de
hua carta passado a requerimento do Illustrisimo e Excelentisimo Senhor Gobernador e Capitão
Geral destas Capitanias Luis Diogo Lobo da Silva. Recife de Pernambuco, 31 de Janeiro de 1761.
Documento de Devassa, (AHU, cód. 1919).
113 Carta do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva ao Dr. Manoel de Gouvêa Alvarez, Ouvidor das

Alagoas Sobre a mudança da dita Vila, e outros pontos mais nela declarados. Recife. 30 de Janeiro de
1662. Registro de correspondência do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva (1761 e 1762). (B.N.
cód. I, 2, 3, 35:166v).
114 Sobre os índios Pipipans ver “Serra Negra: refúgio dos últimos “bárbaros” do Sertão de

Pernambuco” monografia de graduação (ROSA, 1998). Ver também “Informações sobre os índios
bárbaros dos sertões de Pernambuco: ofício do bispo de Olinda, D. José de Bragança e Miranda” do
frei Vital Frescarolo. (RIHGB, 1883 [1827]. vol.46 (1-2):103-19).
115 “A Manoel Leite não dei ordem alguma contrária ao que V.M. mandasse, e só lhe disse, que visto

o receio que contemos leva em se obrigarem os Paroquios a se unirem a Povoação de Agoas Belas”.
Carta de Luiz Diogo Lobo da Sylva ao Sargento mor Jeronimo Mendes Sobre se lhe aprovar o meio
por que uniu a Ilha da Assumpção os Índios do Pambú, e mais Nações do Mato, e outros para a Ilha
do Aracapá, e mais particulares em que entram vários procedimentos dos Missionários do Rio de São
Francisco. Recife, 8 de Maio de 1761. Registro de correspondência do Governador Luiz Diogo Lobo
da Sylva (1761 e 1762). (B.N. cód. I, 2, 3, 35:35).
116 Em torno de 1644, o Capitão Francisco Rodrigues, a pedido do Padre Antonio Pereira, abriu e

povoou a Fazenda Riacho e outras circunvizinhas que perfaziam ‘mais de dezesseis légoas de
comprido e muita largueza’. A troco de resgates reduziu a paz as nações dos índios Caracus, Enchus e
Umãns que ocupavam a região. Embargo de força de D. Brizida Roiz de Abreu contra a Casa da
Torre. (1714). ] (IAHGP, Coleção Orlando Cavalcanti, 1714, Caixa 13)

258
se espalhem pelos matos, de que se lhes podiam seguir as conseqüências de
viverem como brutos.117
Estes índios, ou pelo menos parte deles, não se acomodaram por
muito tempo às vilas onde o sargento-mor os havia assentado. Uma década
depois novas ocorrências, envolvendo eles e fazendeiros do Pajeú e Moxoto
motivaram mobilização do poder público. Desta feita o capitão-mor
Christovão da Rocha Pitta118 moveu um Termo de Justificação – instrumento
jurídico pelo qual se preparava Guerra Justa – contra as nações “Ohê,
Pipipam, Xocôs Umans, e Manguenza, Cabelo Ruivo, Caracuy”, as mesmas
que, por ordem do governador da capitania de Pernambuco haviam sido
reunidas em 1761 nas vilas do Diretório e então retornavam ao corso.
Segundo João Barboza de Faria, testemunha da Justificação, estes índios:
Das vilas fugiam e com mais desaforo em vingança fizeram as referidas mortes e
mais insultos que estão atualmente fazendo como é notório que para os
vaqueiros escaparem como a sua vida a ele testemunha e mais fabricas das
fazendas andam nos pastos com muita vigilância com armas na mão como que
andassem em uma guerra.
O principal problema enfrentado nas fazendas situado entre os rios
Moxotó e Pajeú eram os freqüentes ataques às fazendas e o roubo de gado.
Normalmente casos de abastecimento alimentar se resolviam com acordos
solidários entre fazendeiros e índios, no qual os primeiros cediam algumas
cabeças de gado e os índios não hostilizavam as fazendas, usando esta
fórmula a pecuária logrou se estabelecer em Rodelas na primeira metade do
século XVII. O tempo passou e o desenvolvimento da economia do gado
foi reduzindo as áreas de perambulação utilizadas pelos índios para
complementar seu abastecimento, quebrando o frágil equilíbrio das alianças
que uniam em compadrio tapuias e pecuaristas. Na segunda metade do
século XVIII as antigas práticas ameaçavam a economia em alguns setores
de Rodelas, conforme testemunhou João Barboza:

117 Carta do Governador de Pernambuco e anexas Luiz Diogo Lobo da Sylva a Manoel Felis da
Costa, Missionário da Missão da Telha sobre se lhe louvar recolher os Índios Enxuz a Missão do
Quixalo, evitando por este meio, que os ditos se espalhassem, e que chegando a ela o Sr. Juiz de Fora
determinará o que lhe for mais conveniente. Recife, 21 de Setembro de 1761. Registro de
correspondência do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva (1761 e 1762). (B.N. cód. I, 2, 3, 35)
118 Christovão da Rocha Pita era sócio da Casa da Torre, não pagava foro de nenhuma de suas

fazendas, todas lançadas no patrimônio vinculado à Casa da Torre, a saber: Serrinha; Curralinho;
Paulista; Jardim; Irapua; Pedras. No Livro de Vínculo do Morgadio aparecem com a seguinte
declaração: “Da qual é dono o Senhor Capitão Mor Christovam da Rocha Pitta morador na Cidade
da Bahia. Esta Fazenda não paga coisa alguma enquanto o Senhor Morgado não mandar o
Contrario.”: Códice serra talhada ou Livro de Vínculo do Morgado da Casa da Torre contendo a
relação das fazendas vinculadas, valor pago pelos rendeiros, limites fundiários e logradouros. 1778-
79.(IAHGP. Origem: Cartório de Serra Talhada).
259
Insultos roubos e mortes que fazem estes Índios por matarem comerem e
desperdiçarem grandes copias de gados vacuns (...) do justificante e da viúva
Senhora Dona Roza Maria de Araújo possui também neste Cabrobo três
fazendas de gado antigamente populosos e hoje se acham quase despovoadas de
gados pelo mesmo gentio e alem destes todas as mais fazendas vizinhas como
ficam a fazenda do Aricory onde ele testemunha é criador e a fazenda do Olho
de Água e juntamente as fazendas do Riacho da Brizida do Capitam Luiz da
Costa Agra e seus cunhados e outros varias fazendas da dita Ribeira do Pajaú
como é patente estarem todas extintas de gados pelos mesmos gentios ê notável
o prejuízo do justificante e dos mais moradores senhores das ditas fazendas do
que toca aos dízimos.
Estes índios viviam do que coletavam da natureza, e para sustentar
o grupo existiam áreas de exploração tradicional de caça. Entre o Moxotó e
o Pajeú havia uma faixa de descontinuidade de povoação de quase 600
quilômetros,119 que facilitava a sobrevivência de grupos isolados. “É patente
a todos neste continente viverem dispersos facinorozamente vadios nos
ditos sertões gerais que como feras transitam neles sem temor a deus e das
justiças”, registrou João Barboza. Com a chegada da pecuária, estas áreas
foram ficando cada vez mais restritas; o resultado era previsível, e o choque
da propriedade privada com a propriedade coletiva se enunciava. O ato de
caçar o gado solto no pasto era para os índios coleta; já para os criadores era
apropriação indébita: roubo. A resistência dos pecuaristas resultava em
embates que não raramente se convertiam em mortes, ferimentos graves e
principalmente um clima de hostilidade permanente entre índios e
pecuaristas.
As mortes causadas pelos embates não pareciam ser motivo
bastante para justificar a guerra geral; nesses casos a pratica era despachar
bandeiras repressivas como a de Jerônimo Mendes, enviada anos antes para
apaziguá-los. A justificativa de uma guerra era formalização indireta do
argumento da quebra dos dízimos, que sempre falava mais alto frente aos
governadores.

Atividades produtivas
Desde o princípio da colonização local, os índios que foram
tutelados pelos missionários ficaram em uma espécie de campânula

119 por onde se acham as ditas fazendas situadas de gados Vacuns por uma banda e outra do dito Rio

nascente e poente corre grande distancia de sertões despovoados que da parte do nascente am de ser
mais de cinqüenta léguas e da parte do poente hão de ser outras tantas pouco mais ou menos cujos
gerais de sertões se acham infestados de varias nações de Gentio de cabelo corredio chamados Ohê,
Pipipam, Xocôs Umans, e Manguenza, Cabelo Ruivo, Caracuy, e de outras nações. (NANTES,
[1702])

260
gerenciado por religiosos à margem da economia regional. Ao defender
espaços apropriados à atividade agrícola, o Diretório buscava integrar os
Índios no processo produtivo ocupando uma “massa inerte”, ao tempo que
desafogava a coroa do pesado fardo das missões. O administrador dos
índios assumia em alguns momentos o papel do feitor, noutros o do
contratador, em um regime muito próximo daquele das encomiendas, aplicado
na América espanhola. Em carta ao sargento-mor Jerônimo Paes, o
governador orientava:
Como apartados da vista do Diretor, converteram o resto que lhe ficar, não em
as beneficiar, mas sim em se embrenharem nos matos, e fazerem os seus panecês,
ou passarem em uma criminosa ociosidade a que são propensos quando se vêem
apartados da direção de quem com zelo os dirige, e faça aplicar como Sua
Majestade Fidelíssima determina, para o que é essencialmente conveniente não
situar as referidas Vilas em sítios em que as referidas terras dedicadas as lavouras,
e agricultura deixem de ficar tão próximas a elas, que das mesmas estejam
ocularmente vendo os Diretores a forma porque aplicam o tempo, e que sem
incômodo se possam recolher todas as noites as mesmas Vilas, e irem sem o
mesmo, e perca de tempo considerável na madrugada seguinte continuar o seu
trabalho.120
Assim a agricultura era entendida pelo Diretório não só como
veículo de civilização; sua aplicação deveria também prevenir a evasão das
vilas e, por conseguinte, a formação de novas células reagentes ao processo
intentado. A proximidade das vilas viabilizaria o comércio e o
abastecimento destas de gêneros agrícolas de primeira necessidade. Neste
sentido orientava o sempre atento Lobo da Sylva:
Estas (vilas) se devem distribuir quanto for possível, e não repugnarem os
referidos embaraços, cedendo aqueles que por sua natureza forem
incontrastáveis, e supridos e com a extensão de toda a que se julgar precisa para
lhes segurar o sustento naqueles anos em que por invernosos corra risco, risco de
não poderem ter frutos nas invernadas, afim de que quando faltem um, achem
refúgio nas outras, e possam sem obstáculo adiantarem a agricultura que se lhes
procura promover, para aquele muito preciso que esta lhes fique o mais visinho,
que for possível das Vilas, e Povoações em que residirem os novos
estabelecidos.121
A diretiva para escolha da terra a ser utilizada para ereção das vilas
estava baseada na idéia do desenvolvimento de atividades produtivas, tendo

120 Carta do Sargento-mor Jeronymo Mendes da Paz, e Vigário do Cabrobó Zacharias Diniz a Sua
Excelência Reverendíssima, D. Francisco Xavier Aranha. Registro de correspondência do
Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva (1761 e 1762). (B.N. cód. I, 2, 3, 35:146v).
121 Carta do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva ao Dr. Manoel de Gouvêa Alvarez, Ouvidor das

Alagoas sobre a mudança da dita Vila, e outros pontos mais nela declarados. Recife. 30 de Janeiro de
1672. Registro de correspondência do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva (1761 e 1762). (B.N.
cód. I, 2, 3, 35:166-166v).
261
a agricultura e o comércio como sustentáculos econômicos dos novos
empreendimentos, e os índios como mão-de-obra regular e paga para este
fim. O projeto não considerou, entretanto, que a agricultura não fazia parte
da cultura da maioria destes povos. Os índios reunidos eram principalmente
povos extrativistas, caçadores e coletores, podendo conhecer alguma
agricultura de ciclo curto que contribuía de forma complementar, mas não
como base econômica de suas sociedades. Mesmo daqueles povos
agricultores no Araripe, no Rio Grande, no Sertão de Buíque, no Arorubá e
na Serra da Borborema, não se tem notícia de que produzissem excedentes
agrícolas comercializáveis. O Diretório, entretanto, planejava utilizar a força
de trabalho dos índios para aumentar a produção local de
hortifrutigranjeiros, farinha de guerra e algodão, que era insuficiente para
atender a demanda crescente de produtos agrícolas criada pelo incremento
da população reunida nas vilas.
Informação que me deu pessoa que entendo ser fidedigna, das comodidades que
os Índios tinham na Ilha do Pambú, e capacidade que na mesma havia de se
estabelecer nela a nova Vila que se erigiu na Ilha da Assumpção, atendendo a
maior extensão da primeira, e Ilhas adjacentes, e próximas que a circulam, férteis
por natureza, e aptas a produzirem todos os frutos de que careciam para a sua
subsistência, e vender aos moradores circunvizinhos, ou passageiros, o que lhe
cresce dos mesmos frutos que cultivassem, com que se lhe facilitava adiantarem
os seus interesses pelo meio da Agricultura que se lhe deve, com especial cuidado
promover como caminho mais sólido a tirá-los da miserável indigência em que
até agora tem vivido, e conducente a civilizá-los na forma que se solicita.122
O clima semi-árido não permitia o desenvolvimento de cultura
regular; os poucos espaços agricultáveis estavam ocupados pelos pastos, e a
ausência de cercas não permitia a convivência pacífica da pecuária com o
plantio. Nas áreas de brejo e nas ilhas isoladas da pecuária se encontrava
ambiente propício para agricultura. Para o Diretório a fórmula parecia
simples, era só juntar mão-de-obra e terra fértil que os frutos da terra
brotariam, ledo engano! a agricultura não conseguiu se firmar no São
Francisco, pela inexistência de cultura agrícola, fato notado de longa data
pelos primeiros colonizadores do sertão como o padre Miguel do Couto:
Entre estas duas fazendas (São Francisco de Xavier e Sitio de Catherina) estão
uns olhos de água a que vulgarmente chamam Brejos em os quais está situado o
Capitão-mor dos Paulistas Francisco Dias de Sequeira com um Arraial de tapuias
com os quais faz entrada ao gentio bravo e lhe tem o encontro para que não
ofendam a povoação tem algumas plantas de farinhas arroz, milhos, feijões, e
frutas, como são bananas, batatas, que tudo se dá com grande abundancia

122 Carta do Sargento-mor Jeronymo Mendes da Paz, e Vigário do Cabrobó Zacharias Diniz a Sua

Excelência Reverendíssima, D. Francisco Xavier Aranha. SL, ± Dezembro de 1761. Registro de


correspondência do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva (1761 e 1762). (B.N. cód. I, 2, 3, 35:146).

262
mostrando a fertilidade da terra e a incúria dos moradores que por sua preguiça
não tem frutos de que vivam. (COUTO, [1697] 1938:370-89).

A urbe versus o caos.


Além da agricultura e do comércio, predominava no pensamento do
Diretório a idéia da massificação e da extinção de qualquer expressão de
diversidade, em nome de uma linearidade européia que se contrapunha ao
“Caos” identificado com a expressão nativa. O pensamento do Diretório
defendia a ordem ocidental com suas instituições – a escola, a igreja, a urbe,
a cultura agrícola geradora de excedentes, o Mercado – como instrumentos
de civilidade, sob cujos efeitos o nativo sairia naturalmente do estado de
primitividade e ignorância para um patamar mais elevado de cultura,
tornando-se um ser produtivo à sociedade.
O termo de criação da Vila da Assunção (Ilha do Pambú)
testemunha a aplicação da fórmula. Neste documento o governador Lobo
da Silva ordenava ao seu diretor “na forma das Leis, e determinações do seu
regimento, e Diretório”, que impusesse um traçado linear urbano, que se
construíssem as casas em arruamento, ficando seus quintais paralelos. Os
terrenos deveriam ser distribuídos de acordo com o tamanho de cada
família, fazendo com que todos ficassem “com igualdade, e a mesma boa
perspectiva, e as ruas todas direitas, e largas”. Orientava ainda que a vila
fosse dotada de praça espaçosa, de pelourinho e de casa de cadeia,
reservando rocios e terreno junto da igreja para os passais. Na casa grande
que havia sido dos missionários deveria ser instalada a casa de câmera e de
audiência, ‘tudo na forma dos apontamentos, e determinações do dito
termo. Com respeito ao uso da mão de obra determinava que o diretor
registrasse no termo de criação da vila a forma da “aplicação, e distribuição
dos trabalhadores, que devem ocupar-se com zelo, e cuidado nas ditas obras
públicas”, cuidando para que não houvesse desentendimentos entre os
moradores na divisão dos espaços e construção das suas casas, repartindo-
os de forma que também se ocupassem das lavouras, olarias e currais
destinados ao abastecimento da vila.123
O projeto do Diretório de transformar o assentamento em vila
progressista não vingou;124 anos mais tarde já se podia ver o relaxamento da

123 Termo de Registro da mudança da Vila da Ilha da Assumpção para a do Pambú. Vila Ilha de
Assumpção. 24 de Setembro de 1761. Registro de correspondência do Governador Luiz Diogo Lobo
da Sylva (1761 e 1762). (B.N. cód. I, 2, 3, 35:168v-9).
124 Era este o anseio do Governador: “Constando-me (...) pelas vantagens que lhe resultam da melhor

qualidade das terras de que se compõem, e suas adjacentes destinadas a cultura indispensável aos
263
rigidez inicial. Alguns índios passaram novamente a ser explorados pelos
fazendeiros, enquanto outros fugiam para as regiões entre o Pajeú e o
Moxotó ou para a Gurguéia. A vila acabou sendo transferida para o
continente, e a ilha do Pambu, ou ilha da Assumpção como é atualmente
conhecida – onde vivem atualmente os índios Truká – recebeu esta
denominação no ato da criação em 1761 com invocação de Nossa Senhora
da Assensção, precedida do título de Vila, que acabou se perdendo no
tempo. Até então era conhecida como ilha do Pambú, certamente por ficar
defronte à fazenda pioneira do Pambú, que Martinho de Nantes já registrara
em sua Relação.125 Com sua decadência a posição de destaque na região
passou então à vila do Cabrobó, subordinada a Flores, que se tornou cabeça
da comarca do São Francisco.

O poder da mistura.
Se a prática do uso da força de trabalho indígena era combatida por
instrumentos legais, consuetudinariamente era livre e estimulada, e o
governador estava diante de uma contradição colonial que o direito
ortodoxo não alcançava. Do registro epistolar de Luiz Diogo Lobo da Sylva
se aduz que uma massa enorme de tapuias jazia anônima e
propositadamente submersa em outras categorias da população, como
forma de esquivar os beneficiários das leis coloniais que regulavam o uso de
mão de obra nativa fora da tutela temporal e espiritual dos missionários.126

referidos Índios, de que não só se lhe seguirá terem os frutos precisos para o seu passadio, mas
superabundantes, a interterem, e animarem o justo comércio, e a constituírem-na florente, (sic) e
civilizada em breves anos,” Registro de correspondência do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva
(1761 e 1762). (B.N. cód. I, 2, 3, 35:164v).
125 “Tendo chegado cerca de meio-dia à capela de Pambu, construída pelos portugueses toda de taipa.

Reúnem-se aí, pelo Natal e na Páscoa, vindos de trinta léguas e mais em redor, para aí cumprirem as
suas devoções e na qual mora o capelão quando cumpre o seu giro, isto é, quando percorreu para
mais de cem léguas para cima e trinta léguas para baixo, a confessar os habitantes de um lado do rio
ao subir e de outro ao descer, dizendo missa de dez em dez léguas, nos lugares em que os
portugueses se reúnem para se confessar. Tendo, dizia eu, chegado a Pambu, fomos descansar à
sombra, para tomar a nossa refeição sob uma espécie de abrigo coberto de palha, e feito
expressamente para a proteção de suas assembléias. (...) O português (Francisco Rodrigues) me
perguntou o motivo de minha presença. Declarando-o, ele manifestou toda a sua alegria e me pediu
para que me instalasse na ilha de Pambu, bem defronte, onde havia uma bonita aldeia de cariris.”
(NANTES. [1706] 1979:35-6).
126 Uma série de Bandos, Leis e Alvarás foi lançado, na tentativa de conter a escravização e o uso

ilegal da mão-de-obra indígena, baseadas principalmente nas leis de 1609 e 1610 sobre a Liberdade
dos Índios. Sobre isto ver legislação publicada na ‘Descrição de Pernambuco 1746’, Carta de 8 de
Março de 1693, sobre vários pontos a respeito dos Índios, e Jurisdição que neles tem os Missionários
no espiritual, e os Capitães Mores no temporal, e outras circunstancias. (ABN, vol. XXVIII,
1908:265). Sobre a Jurisdição que se tem concedido aos Missionários sobre os Índios se Omnimoda no
Espiritual e Restricta no Temporal, de 27 de agosto de 1717. (ABN, vol. XXVIII, 1908:278). Sobre a

264
Para conter os abusos, Lobo da Sylva fez publicar uma série de editos
proibindo a exploração do trabalho indígena, além de ordens de devassa
contra fazendeiros que abrigavam tapuias em suas casas sem o devido
amparo legal, ignorando os bandos e ordens régias emitidas pelo governo
colonial. De ânima abalada com os usos e costumes da colônia, desabafa o
Governador:
Sem embargo dos bandos que se tem publicado, em que se proibe conservarem
os moradores Índios em suas Casas e Fazendas, (...) e não satisfeitos com esta
transgressão, passam a tirar das referidas Povoações, por todos os meyos que se
lhe facilita, como deixalos retirar para as em que são obrigando-os a Residir, por
mais que os Diretores os procurem, malogrando-se desta forma a sua
deligencia.127
Um dos principais fatores de estímulo ao agregamento nas fazendas
parece ter sido a necessidade de mulheres. No final do século XVII o padre
Miguel do Couto já registrava a presença marcante de mulheres tapuias
servindo como concubinas nas fazendas. (MOOT, 1975. 1975:76).128 Muito
antes da instalação do Diretório, registram-se na documentação colonial
denúncias contra vaqueiros, trabalhadores e soldados milicianos que se
valiam constantemente de mulheres nativas para satisfazerem seus apetites,
organizando redes de abuso, muitas vezes agenciadas pelos próprios
capitães das aldeias e missões, como podemos conferir no diário do ex-
governador do Maranhão, Maya da Gama, sobre os índios da Aldeia da
Serra de Ibiapaba:
A grande Aldeia da Serra de Ibiapaba que tem mais de três mil almas com o Índio
Governador chamado Dom Felipe, e outro Mestre de Campo, e com dois
religiosos da Companhia de que é superior o Reverendo Padre Francisco de Lira,
o qual me informou da pouca obediência dos ditos cabos e do seu escandaloso
viver, amancebados, sem atenção as mulheres, e dissolutos com muitas, o que
obrigou a deter-me ali dois dias e convocados todos machos, e fêmeas, à igreja
pelo dito Padre lhe fiz uma larga prática expondo-lhe a forma em que Vossa
Majestade pelas suas reais Leis, e ordens queria que eles se governassem e a

repartição das aldeias, que se encarreguem tanto a Missionários religiosos, como a clérigos seculares.
22 de Outubro de 1736. (ABN, vol. XXVIII, 1908:279); e Provisão Real, de 13 de Março de 1721.
Sobre restituir administração temporal dos índios aos missionários Jesuítas. (AHU, cód. 96:370v-
371); Consulta e parecer do Conselho Ultramarino, de 14 de Dezembro de 1701, Sobre poder
temporal e espiritual dos missionários sobre os índios aldeados nas missões na Paraíba. (IAHGP,
cód. Ordens Regias 1700-1704).
127 Carta de 11 de março de 1761 ao Capitão mor do Rio Grande do Norte, Joaquim Felix de Lima,

Sobre se remeter o Bando acompo das penas em que corre quem tiver Índios em suas Cazas sem
Licença e ajuste dos Diretores e o mais nella declara. Registro de correspondência do Governador
Luiz Diogo Lobo da Sylva (1761 e 1762). (B.N. cód. I, 2, 3, 35).
128 “na fazenda Belo Jardim de Santa cruz está nela Domingos de Aguiar com sua mulher Mariana

Cabral: É o único homem branco que há casado nesta nova freguesia” Registrou Miguel do Couto.
(COUTO, [1697] 1938:379).
265
obediência que deviam ter aos seus Missionários, como ministros de Deus e seus
Párocos, e superiores na forma das reais ordens, e que não deviam dispor cousa
alguma sem o seu parecer, e principalmente as mulheres, e raparigas para os não
mandarem para casa de brancos, nem mulatos, nem para fora da Aldeia pelo
evidente, e certo perigo que corria a sua honra, e honestidade, e repreendi os
cabos asperíssimamente, e da parte de Vossa Majestade estranhado-lhe o seu
escandaloso procedimento, e vícios e o mal que usavam das veneras e hábitos
com que Vossa Majestade os tinha honrado (...) muitas mulheres que tem a dita
Aldeia sem modo de vida, e muitas sem maridos por serem muitas mais as
mulheres que os homens. (MAIA da GAMA, [1728]. 1944:60).
Maya da Gama registrou que assistiam na aldeia do Ibiapaba “vadios
brancos, mulatos, e mestiços, e solteiros”, que só deveriam ser ali admitidos
durante as “festas de Semana Santa”. Sugeria ao Rei que fora desta época só
se permitissem a presença dos “casados, com suas famílias, se prendendo os
vadios” e punindo, os cabos dos índios responsáveis pelos desvios. Sugeria
a nomeação de um “cabo superior branco, não para tirar a jurisdição ao
missionário e superior da dita aldeia, mas para concorrer com ele, e com o
seu parecer, e disposição para o castigo dos culpados”, e só nesta forma,
concluía Maya da Gama, “se poderá fazer bem o serviço de Deus e de
Vossa Majestade e por aqueles índios e cabos em inteira obediência aos
Padres, e os puderam estes obrigar a viverem conforme as leis de Deus, e de
Vossa Majestade.” (MAIA da GAMA, [1728]. 1944:63). Em certa medida as
sugestões de Maya da Gama preconizavam aquelas outras que viriam a ser
aplicadas pelo Diretório algumas décadas mais tarde.
A liberdade dos costumes variava de lugar-a-lugar, mas de modo
geral o poder da mistura sempre se mostrou, no sertão, mais forte que as
regras coercitivas. Impotente para impor um comportamento ao ‘modo
cristão’, a igreja parecia relaxar, e as práticas locais tão combatidas pelos
missionários encontravam seu caminho natural por toda a colônia, sem que
o governo nem religiosos pudessem efetivamente as debelar. Na ausência de
homens – ocupados nos arraiais, empregados nas fazendas ou mortos pelas
guerras – as mulheres nativas passaram mais livremente à poligamia,
assumindo sem reservas as práticas ancestrais de união marital.
Na época de Maya da Gama ainda se intentava impedir as ligações
carnais entre brancos e tapuias, um quarto de século depois, no contexto da
criação do Diretório Pombalino, a coroa toma o caminho inverso, lança um
alvará em forma de Lei afirmando não incorrer em infâmia português
branco, na colônia ou no reino, que desposasse mulher índia. Aos que
assumissem a condição marital com nativas se oferecia em mercê a
preferência na ocasião da ocupação dos postos públicos. A determinação

266
habilitava ainda os filhos mestiços à mesma condição de ‘dignidade’ de
outros nobilitados a quem antes estavam reservados estes cargos:
Eu El Rei faço saber aos que este meu alvará de lei virem que, considerando o
quanto convém que os meus reais domínios da América se povoem, e que para
este fim pode concorrer muito a comunicação com os índios, por meio de
casamentos: sou servido declarar que os meus vassalos deste Reino e da América,
que casarem com os índios dela não ficam com infâmia alguma, antes se farão
dignos de minha real atenção, e que nas terras em que se estabelecerem serão
preferidos para aqueles lugares e ocupações que couberem na graduação das suas
pessoas, e que seus filhos e descendentes serão hábeis e capazes para qualquer
emprego,129 honra ou dignidade, sem que necessitem de dispensa alguma, em
razão destas alianças em que serão também compreendidas as que já se achavam
feitas antes desta minha declaração.130
Os agentes do Diretório acreditavam que integrados ao sistema de
Vilas, os Índios poderiam ser absorvidos pela sociedade envolvente com
mais facilidade e menor custo emocional. O código induzia a miscigenação,
mas queria que ela se desse sem fortalecer o poder senhorial.131 Não
obstante a lei não tratar dos casos não legitimados pelo sacramento católico
do casamento, pode-se entender esta posição, de certa forma, como a
assunção legal da vitória das práticas locais sobre a normalização da igreja, e
da “morenidade” mestiça do sertão. Apesar da declarada aplicação geral do
Diretório para os Estados do Brasil e do Maranhão, o exemplo do São
Francisco deve ser analisado dentro do contexto amplo do Diretório, mas
com o foco fechado sobre as idiossincrasias que marcaram sua aplicação no
Nordeste do Brasil, onde a política fundiária foi um dos marcos relevantes
do processo conduzido draconianamente pelo governador Diogo Lobo da
Sylva. Os missionários originariamente criaram no São Francisco as missões

129 Dois meses depois de declarar livre de infâmia aqueles brancos que desposassem mulheres nativas,
a Coroa retira dos missionários regulares a jurisdição temporal e espiritual dos índios, e nas novas
vilas declara-os como privilegiados para servirem como “Juizes ordinários, Vereadores, e Oficiais de
Justiça, os índios naturais delas, e dos seus respectivos distritos”. Alvará Com força de Ley que
restitui aos Índios do Grão-Pará a liberdade de suas pessoas, bens e comércio, e que sejam
governados no temporal e no espiritual pelos Governadores e ministros, e pelos seus principaes, e
justiças seculares, com inhibição das administrações dos regulares. Lisboa, 7 de junho de 1755.
(ALMEIDA, 1977:371 e ss).
130Alvará em forma de Lei Sobre os vassalos deste reino e da América que casarem com Índias não

ficam com infâmia alguma. (AHU. Cód. 103:28). Alvará em forma de lei de Lei 4 de Abril de 1755.
Publicado em Almeida, Mons. Luis Castanho de. 1967. “Clero secular diocesano brasileiro
setecentista” (IHGB, 1963. vol. III:92) Publicado parcialmente na Compilação da Legislação
Portuguesa, 1750-1762 de Antônio Delgado da Silva, (SILVA, 1830:367).
131 Conforme defendia o Diretório dos Índios: “Entre os meios mais proporcionados para se

conseguir tão virtuosos e útil, e santo fim, nenhum é mais eficaz, que procurar por via de casamentos
esta importantíssima união. Pelo que recomendo aos diretores, que apliquem um incessante cuidado
em facilitar, e promover pela sua parte os matrimônios entre os brancos e os índios”. (Diretório, artigo
88:36).
267
nos assentamentos primitivos dos Rodeleiros em Cabrobó, depois outros
grupos foram sendo agregados em reduções espalhadas ao longo do rio.132
O projeto do Diretório previa reunião de pequenas aldeias em vilas
seculares, formadas por esta massa nativa, associada a brancos e negros da
região. Diogo Lobo encomendou a tarefa da criação das vilas do Diretório
inicialmente ao sargento-mor Jeronymo Paes que deslocou no sertão de
Rodelas diversas comunidades que estavam espalhadas em grande extensão,
unindo-as principalmente em dois pontos: na Ilha de Santa Maria e na Ilha
do Pambú, onde estes índios viriam sofrer um intenso processo de
massificação e homogeneização cultural em uma forma muito mais
integracionista que quando os missionários os tutelavam.
Os índios que estavam na Ilha do Pambú, (ver mapa) situada
defronte do atual povoado do Pambú, foram transferidos à força para a Ilha
da Vargem de qualidade muito inferior à do Pambu, ao que tudo indica para
atender aos interesses temporais do vigário do Cabrobó, Zacharias Diniz,133
interessado nas terras da Ilha dos índios. A negociata das ilhas deixou o
governador de Pernambuco em posição desconfortável, por ter confiado
desmedidamente em Jerônymo Mendes. Para tentar reverter a situação e
continuar a tarefa iniciada pelo sargento-mor, o governador enviou para a
região o Dr. Manoel de Golvea Álvares, ouvidor da comarca das Alagoas.
Os índios deslocados de Pambú se aproveitaram do momento favorável e
requereram o retorno para seu sítio de origem; Lobo da Sylva, em comum
acordo com o ouvidor das Alagoas e com o bispo de Pernambuco,
aquiesceu ao pedido e restitui-lhes a ilha do Pambú em toda a sua extensão:
O Ouvidor das Alagoas confirma (...) que quando os ditos Índios só na posse da
metade da referida Ilha (Ilha do Pambú) gozavam do dito benefício, em extensão
tal, que além de suprir todo o necessário para o seu passadio, lhes crescia para o

132 Em média, não alcançavam duas centenas de habitantes, em 1742 havia na Ilha do Irapuá 200

índios; em São Felix 200 Indios; no Aracapá 260; na do Pambú 360 índios; na da Vargem, 320 índios;
no Araxá, 260 índios; A maior delas era a de Rodelas com 600 índios; a Ilha de São Pedro, 320 índios.
(APF, acta 1742:177). Appud. (REGNI, vol.I 1988).
133 O Governador refere-se aqui aos Vigário do Cabrobó, Zacharias Diniz e a seu antecessor

Francisco Ferreira. Diz o texto “com o pretexto de segurar o patrimônio das Igrejas, constituído nas
mesmas Ilhas, que por dever maior atenção ao Reverendo Vigário, segundo o expressa nas sobreditas
cartas, que o Cômodo dos Índios, em que devia interessar-se, me faz suspeitar não ser tanto o zelo de
firmar o patrimônio das referidas Igrejas, como a utilidade que lhes podia provir de seguir na criação
dos gados na Ilha do Pambú o mesmo sistema, que praticou os seu louvável antecessor, a qual não
sei se mais atento a estes temporais interesses, que em morigeral (sic) como era obrigado a vida dos
seus fregueses: Morreu com bastante dinheiro, e não me consta deixasse comprovadas virtudes,
porque se fizesse com o seu exemplo recomendável.” Carta do Governador Luiz Diogo Lobo da
Sylva para o Dr. Manoel de Golvea Álvares, Ouvidor das Alagoas, sobre lhe pedir o seu parecer para
se mudar a Vila da Ilha da Assumpção para a Povoação do Pambú. Recife, 14 de Dezembro de 1671.
Registro de correspondência do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva (1761 e 1762). (B.N. cód. I,
2, 3, 35:145).

268
comércio que dos frutos que lhe sobravam faziam, o terão com maior largueza
permitindo-se-lhes toda, e as imediatas com exclusiva das pessoas próprias que as
ocupavam, e outras que na sua ausência solicitavam introduzir-se nelas.134
O Diretório abria a porta para não-índios, cedendo terras reservadas
a vilas para nativos e brancos. Muitos casos de litígio de terras que hoje se
dão em áreas indígenas, envolvendo índios e posseiros, advém desta
política, inclusive a própria ilha da Assunção e da área dos índios do Pambú,
que atualmente buscam o reconhecimento do governo sob o etnônimo de
Tumbalalá.135 Apoiar retoricamente os índios era antes de qualquer coisa a
defesa do projeto político do Diretório, que trabalhava arduamente para
expurgar da região os últimos missionários capuchos italianos,136 e dividir o
poder do senhorio, enquanto fundava, à força de decretos, uma vila após
outra, equipada com infra-estrutura administrativa delegada do poder real.
O Diretório portava um discurso de proteção e preservação dos direitos dos
Índios, dando a eles a preferência sobre qualquer outro interesse.
Deve-se entender que, a pesar do discurso paternalista e tutelar, o
Diretório não estava interessado em preservar as identidades nativas, ao
contrário, era seu projeto explícito promover a criação de um estrato
mestiço, colocando junto brancos e nativos em vilas urbanizadas ao modo
ocidental para que, neste ambiente, a cultura nativa fosse adquirindo “aquela
regularidade” necessária à “civilização dos miseráveis índios”, a ser
alcançada através da comunicação e do comércio.137

134 Carta do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva ao sargento Mor Jeronymo Mendes de Paz sobre
se mudar a Vila da Ilha da Assumpção para o Pambú. Recife, 29 de Janeiro de 1762. Registro de
correspondência do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva (1761 e 1762). (B.N. cód. I, 2, 3, 35:163).
135 Sobre a emergência étnica no São Francisco ver valiosa dissertação de Ugo Maia de Andrade, Um

rio de histórias: a formação da alteridade Tumbalalá e a rede de trocas do sub-médio São Francisco.
Neste trabalho o autor avança com maestria sobre a linha que separa a antropologia e a história,
tecendo uma rica narrativa sobre os índios do Pambu, hoje autodenominados Tumbalalá.
(ANDRADE, 2001).
136 O Sargento-mor Jerônimo Mendes deixou uma memória comparativa entre os Missionários

Capuchos italianos com os Jesuítas, “Paralelo dos missionários capuchinhos e jesuítas do Bispado e
Capitania de Pernambuco ou Relação abreviada em que se mostra a semelhança das práticas e
máximas dos missionários jesuítas com a dos Padres capuchinhos na administração das missões que
tinha no Bispado e Governo de Pernambuco.” A obra movia uma campanha difamatória contra
religiosos estrangeiros, aproveitando-se do clima de animosidade existente na colônia. (AHU. P.A.
Bahia, doc. n° 5.358: libelo de Jerônimo Mendes.); (ALMEIDA, 1914:444-54).
137 Para este “virtuoso fim” o artigo 80 do Diretório dos Índios indicava: “pode concorrer muito a

introdução dos Brancos nas ditas povoações, por ter mostrado a experiência, que a odiosa separação
entre uns e outros, em que até agora se conservavam tem sido a origem da incivilidade a que se
acham reduzidos; para que os mesmos índios se possam civilizar pelos suavíssimos meios do
comércio, e da comunicação; e estas povoações passem a ser não só populosas, mas civis; poderão os
moradores deste Estado, de qualquer qualidade ou condição que sejam, concorrendo neles as
circunstâncias de um exemplar procedimento, assistir nas referidas povoações, logrando todos os
269
Agregamento nas fazendas.
Os índios que permaneceram sob o governo do Estado
submergiram por mais de um século na sociedade que se forjava no sertão,
conservando a condição de nativo tutelado; muitos outros grupos,
entretanto, permaneceram individualmente em pequenas comunidades, ou
abrigados nas fazendas de gado. A documentação mostra-nos que depois do
desmonte da ação missionária muitos índios sobreviveram assentados nas
fazendas sob o pseudo titulo de fâmulos (servos), ou mesmo integrados nas
famílias como agregados; continuaram, compulsória ou voluntariamente,
entranhados no aparato social familiar, e foram no correr dos séculos,
reproduzindo uma forma de ser tapuia na família sertaneja. É de todo claro
que nem a igreja nem tampouco a coroa conseguiram estancar a prática da
agregagem e do concubinato; uma vez incorporados às fazendas, livres do
agente regulador da igreja, os tapuias são aparentemente fagocitados numa
casta ‘bastarda’ que, lenta e livremente, vai se integrando à sociedade
colonial, via famílias agregadoras, perdendo a identificação nativa, enquanto
adquiriam a de vermelhos; justificando o desaparecimento da categoria
populacional nativa nos raros censos coloniais que restaram oriundos das
fazendas da Casa da Torre.138
O evento do Diretório e a transformação das aldeias em vilas deram
forma as sombras daqueles que, fiados na inoperância da justiça colonial,
reproduziam acobertadamente um sistema secular de exploração de mão-de-
obra, que atendia com tapuias parte da demanda de força de trabalho local,
mas esta não deve ser considerada uma forma ordinária de menos valia;
tratava-se, antes disso, de uma relação muito mais complexa e de grande
potencial esclarecedor para a interpretação histórica da formação social
sertaneja que, até agora, não tem recebido a devida atenção dos
historiadores. Estas relações eram, em última instância, contrárias ao
estatuto ditado pelo Diretório dos Índios que portava uma contradição de
difícil administração – o estímulo à mestiçagem e o controle do uso da mão-
de-obra nativa – pois nem sempre se podia asseverar onde terminavam as
relações pessoais e onde principiavam as de trabalho.
Para combater a prática, o governador Lobo da Sylva delegou, na
forma do artigo 75 do referido Diretório, que os diretores das vilas do
sertão elaborassem mapas dos ausentes e fizessem recolher às vilas aqueles

privilégios que Sua Majestade foi servido conceder aos moradores delas”. (Diretório dos Índios. Artigo
80:34).
138 (COUTO, [1697] 1938); (IAHG, Códice Serra Talhada da Casa da Torre); (MOOT, 1975:55).

270
que viviam desautorizados nas fazendas sem o pagamento de estipêndios
como determinava a regra. Em vilas como a de Águas Belas, entretanto as
determinações não surtiam o efeito esperado; assim em 1° de Fevereiro de
1761 o governador lançou um bando naquela vila a ser publicado ‘ao Som
de Caixas’ cobrando o recolhimento dos índios exigido pela lei:
Constando-me, que não obstante ter mandado o Diretor João Rabelo da Costa,
(...) recolher a Povoação de Nossa Senhora da Conceição de Agoas Bellas todos
os Índios, de um e outro sexo, e idade, que andam dispersos pelos distritos deste
governo, (...) E para evitar continuem nesta desordem, e busquem logo as suas
respectivas Vilas os que sem a predita licença se acharem, ou sejam a elas
conduzidos os que voluntários o não fizerem.
A letra do Diretório era essencialmente integracionista; promovia
tanto a introdução de brancos nas vilas dos índios, quanto a repartição deles
para a educação e para o trabalho nas casas dos moradores, desde que
estivessem abrigados por ‘famílias abastadas ou remediadas’, que
possuíssem cabedal, moral e financeiro, para pagar seus estipêndios, e
pudessem oferecer guarda e proteção que os habilitassem a ‘vida racional’.
(Diretório dos índios. Artigo 59:26). A determinação do governo era clara:
deveriam ser recolhidos indistintamente todos os índios que estivessem
dispersos nas casas dos moradores, fazendo-os assentar sob o governo dos
diretores das vilas recém criadas. Na opinião dos moradores que resistiam a
determinação, a lei deixava margem para a dúvida; segundo estes, os índios
eram livres para viver onde desejassem, e não podiam ser obrigados a ir para
as novas vilas contra sua vontade. O governador ignorava as relações de
parentesco e afeto que poderiam ter se criado ao longo da convivência, e
rebatia o argumento dos colonos na fria forma da Lei conforme registra o
referido bando:
Lhe embaraçaram praticá-lo aos condutores encarregados desta diligencia, os
moradores daqueles em que efetivamente se achavam os referidos Índios, com o
fundamento de que lhes era livre ficarem aonde lhes fosse voluntário, não
podendo ser obrigados a viver nas suas Vilas, o que nasce da má inteligência, que
dão as Reais Ordens, que expressamente lhes proíbe a uns a eleição da
assistência, e a outros o induzí-los a que não busquem a de que são originários,
nem delas se tirem, ainda por tempo limitado, sem permissão de seu respectivo
Diretor, (...) façam logo e sem demora ir em companhia dos condutores que o
mesmo destinar todos os índios que se acharem nos seus distritos, pertencentes a
Vila da sobredita Direção, tendo cuidado de o fazer embolsar peremptoriamente
de tudo que pelos moradores que delas se serviram se lhes tiverem devendo. 139

139Bando do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva. Recife, 10 de Março de 1761. “Constando-me
que não obstante a publicação das Leis que Sua Majestade Fidelíssima foi Servido estabelecer, para a
regularidade do Regimem dos Índios deste continente, (...) em que se proíbe a liberdade que até agora
seguiam os moradores de os tirarem a seu arbítrio das aldeias a que pertenciam, retendo-os em suas
271
O bando, apoiado na letra do Diretório, determinava o fim da
tolerância aos moradores que mantivessem índios em suas casas, usufruindo
o seu trabalho sem o pagamento devido dos seus serviços; denunciava o
desamparo a que se submetiam as mulheres e filhos dos índios que se
ausentavam de suas comunidades para se empregarem nas fazendas.
Lembrava o governador da: “falta do socorro com que pelo seu trabalho
lhes podiam assistir e era impraticável nas distâncias a que se remontavam,
das que não só se originava os sobreditos prejuízos, mas o de passarem a
segundas núpcias de se meterem a corso, e esquecerem-se das Leis do
cristianismo, executando-se em hostilizar as fazendas dos moradores”. O
bando tinha o poder de ordem judicial, a qual os diretores, na qualidade de
oficiais do Estado tinham obrigação de dar cumprimento; contudo a
execução da ordem encontrou firme resistência na vila de Águas Belas, onde
João Rabelo, diretor da vila, acabou sendo assassinado por fazendeiros que
insistiam em conservar os índios agregados.140
Quando o Diretório chegou, alcançou muitos índios que conviviam
pacificamente em aliança com colonos, como os Pegas, e os de Monte
Alegre, os quais “separados das parcialidades que lhes fomentavam os
brancos, que pelos quererem na escravidão em que os tinham, os animavam
a liberdade de se oporem a lei, e vagarem por onde lhe parecia, segundo a
sua fantasia.”141 A idéia do Diretório caminhava no sentido oposto;
interessava ao governo formar vilas que congregassem cidadãos, rendessem

casas, e fazendas de que resultava os inconvenientes de largarem os domicílios das mesmas a que
estavam agregados, e de ficarem impunidos das desordens que nelas cometia, (...) não se seguir a
tolerância de os consentirem alguns dos ditos moradores, por conveniência própria nas suas casas, e
fazendas, sem que lhe servisse de obstáculo todos os referidos danos, por atenderem só ao benefício
de lhes não pagarem os seus jornais. Ordeno aos Capitães Mores dos distritos a quem este for
dirigido, que logo que receberem o façam publicar pondo-os na inteligência de que todo o morador
de qualquer qualidade, que admitir em sua casa, ou fazenda índios sem licença por escrito minha, ou
do Diretor, e que acabado o tempo porque esta se lhe conceder o não mandar entregar a cada
Povoação, ou Vila a que compete, será preso na Cadeia da Cabeça da Comarca, não a havendo nas
Vilas mais próximas ao distrito da transgressão, e autuado por desobediente para se lhes imporem as
penas que por tais lhes correspondem, (...) E para que chegue a noticia de todos e senão possa em
tempo algum alegar ignorância, se lançará este Bando, em todos os distritos, e capitanias da jurisdição
deste quando e novos estabelecimentos, registrando-se primeiro na Secretaria deste (...) as das ditas
Capitanias, Câmaras, e nas das novas Vilas.” Registro de correspondência do Governador Luiz Diogo
Lobo da Sylva (1761 e 1762). (B.N. cód. I, 2, 3, 35:40-41v).
140 Escrevendo para o Ouvidor das Alagoas, o Governador Lobo da Sylva registrou sumariamente o

caso, instruindo-o para que na ocasião que ele passasse em Águas Belas, devassasse o caso do
assassinato de João Rabelo da Costa. Carta de Luiz Diogo Lobo da Sylva para o Dr. Manoel Gouvea
Álvares. Recife, 1° de Novembro de 1761. Registro de correspondência do Governador Luiz Diogo
Lobo da Sylva (1761 e 1762). (B.N. cód. I, 2, 3, 35)
141 Carta do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva ao Dr. Manoel de Gouvêa Alvarez, Ouvidor das

Alagoas Sobre a mudança da dita Vila, e outros pontos mais nela declarados. Recife. 30 de Janeiro de
1672. Registro de correspondência do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva (1761 e 1762). (B.N.
cód. I, 2, 3, 35:167).

272
vassalagem ao Rei, e servissem à produção controlada e geradora de quintos
para a Fazenda Real. A serviço dos senhores e fazendeiros, a força de
trabalho nativa era convertida em poder particular. A estratégia da disputa
fica clara na carta de 1° de Novembro de 1761, do governador Lobo da
Sylva para o ouvidor das Alagoas:
Não duvido de que eles entrassem no pensamento de que lhe eram inúteis os
Diretores, tanto por se capacitarem Lograr toda a inteligência necessária para se
regerem, como por haver interessados em que os mesmos sem inspeção destes
ficassem em estado de não haver quem encontrasse os injustos meios com que os
desfrutavam, e obstasse as negociações que a simplicidade dos Índios, e ambição
dos brancos lhes permita: O certo é que este artigo142 tem sido um dos mais
custosos, e todos os brancos que deles se serviam, sem lhes pagarem o seu
trabalho, como a experiência me tem feito evidente nas mais que se tem erigido
no meu tempo, e se faz patente a malícia com que se armaram contra os ditos
Diretores, matando o de Agoas Bellas, razão para argüirem como fizeram notório
no ajustado do seu procedimento ao mesmo passo que não sei se possa dissolver
com razão concludente os fundamentos que V.M. lhes dava para lhes serem não
só úteis, mais indispensáveis aos referidos Diretores, em quanto não tem as luzes
necessárias a bem de se regerem, da mesma sorte que ao Menor, demente, e
pródigo, quando dissipa os bens que lhes pertencem, e não sabe regê-los sem que
perca a liberdade na providência de tutores, e curadores, que a lei lhe dá, em seu
notório benefício. (...) As reflexões que V.M. lhe fez sobre a economia particular
e direta atirar lhes os abusos de saírem acompanhados de suas mulheres, e
famílias para qualquer parte a que lhe se lhes faz preciso ir por força dos seus
trabalhos, caçadas, e outras diligencias são de grandes conseqüências, por
adiantarem os serviços domésticos, no tempo que perdiam inutilmente, e
abreviarem, o que gastavam os maridos naquelas digressões em que não
consumiram tanto sem as referidas, e escusadas companhias.143
Os agentes do Diretório falharam em não considerar que a ação dos
servidores públicos sertanejos dependia das políticas locais que, muitas
vezes, se sobrepunham ao interesse do Estado que representavam, assim,
neste ambiente, a corrupção fluía sem controle, resultando paradoxalmente
no contrário do que seu discurso preconizava. O uso compulsório da mão-
de-obra nativa desregrada pela regra diretória deixava na mão dos diretores
os instrumentos necessários para o uso da força de trabalho indígena em
benefício de particulares, como ocorreu no caso da ilha da Assunção ou na
vila de Soure, onde Mathias da Silva Bonito, coronel regente do Acaracú,
facilitava a ação dos fazendeiros contra os agentes do Diretório:

142 Artigo 75 do Diretório dos Índios obrigava o controle dos índios evadidos, confecção de mapas de
ausentes e a restituição às vilas daqueles índios que se achassem nas casas dos moradores, (Diretório
dos Índios, art. 75:32).
143 Carta do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva ao Sr. Dr. Manoel Gouvea Álvares, Ouvidor

Geral da Comarca das Alagoas. Recife, 1° de Novembro de 1761. Registro de correspondência do


Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva (1761 e 1762). (B.N. cód. I, 2, 3, 35:126v-127).
273
Consta-me que mandando o Diretor da Vila de Soure José Pereira da Costa em
virtude das ordens que lhe tenho dado, e Bandos que mandei publicar por
todas estas Capitanias Condutores da dita jurisdição de V.M. para induzirem os
Índios que se acham neste distrito obrigados a reduzirem na mesma e devendo
V.M. auxiliá-los e fazer-lhe entregar os que sem permissão por escrito do dito
Diretor se achassem nele o fez tanto pelo contrário que em coisa alguma do
que devia obrar em virtude dos referidos Bandos, e ordens concorreu para
que tivesse efeito a dita diligencia, antes dissimulou ocultarem-nos os
moradores que deles se estavam servindo, de sorte que não puderam por em
pratica a fim a que se dirigiam.144
À parte de pequenas modificações, a nova regra findava por não
combater efetivamente o sistema de agregamentos, que a seu turno parece
ter sido o principal caminho da mescla entre brancos e índios nos sertões do
São Francisco.145 Com o decorrer do tempo o Diretório passou a estimular
atividades produtivas geradoras de capital, e rapidamente converteu-se num
mercado de serviços reservado a um pequeno grupo de funcionários
públicos que agiam guiados em teoria pelo Diretório, mas na prática
advogando interesses pecuniários privados. Casos como este vão se repetir
até a extinção do Diretório em 1798, quando a Coroa, impotente diante da
cultura local, relaxa com as medidas radicais e punitivas à exploração dos
Índios.

Sócios minoritários do projeto colonial.


É digno de nota o pouco interesse acadêmico pelo fenômeno do
agregamento, de largo uso social em toda América portuguesa desde épocas
coloniais. No sertão do Nordeste brasileiro, contudo, o fenômeno adquiriu
maior peso histórico e sociológico que nas demais áreas. No período
formativo da sociedade sertaneja, uma enorme massa populacional em
câmbio acelerado se afastou da vida comunal tapuia enquanto se associava
às fazendas de gado. O processo de agregamento implicava
obrigatoriamente noutro desagregatório que fragmentara as comunidades

144 Carta do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva a Mathias da Silva Bonito, Coronel Regente do

Acaracu. Recife em 28 de Mayo de 1761. Registro de correspondência do Governador Luiz Diogo


Lobo da Sylva (1761 e 1762). (B.N. cód. I, 2, 3, 35:45-45v).
145 O termo ‘agregado’ foi aqui usado pelo Governador Lobo da Sylva para qualificar índios

desaldeados que se encontravam associados às casas e fazendas de colonos. Em carta para o Ouvidor
da Comarca das Alagoas, o Governador assim se refere: “a liberdade que até agora seguiam os
moradores de os tirarem a seu arbítrio das aldeias a que pertenciam, retendo-os em suas casas, e
fazendas de que resultava os inconvenientes de largarem os domicílios das mesmas a que estavam
agregados”. Bando do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva. Recife, 10 de Março de 1761. Registro
de correspondência do Governador Luiz Diogo Lobo da Sylva (1761 e 1762). (B.N. cód. I, 2, 3,
35:40-41v). Para saber mais sobre o agregamento como fenômeno colonial ver “O papel do agregado
na região de Itu, 1780-1830” de Eni de Mesquita. (MESQUITA, 1977, vol.6:16 e ss).

274
nativas originárias, e atomizava suas funções em milhares de células
coloniais. Em um ambiente de ruptura com a ordem natural onde os nativos
se viam obrigados a se separar de seus parentes o agregamento parece ter
sido uma solução que restabelecia laços de parentesco, dissolvidos pela
intervenção colonial. No tratamento do tema cabe-nos encontrar respostas
para algumas questões tais como: onde reside o conteúdo sociológico do
termo agregado?; como se estratificou a sociedade em contato no sertão? e
finalmente, o que resultou deste encontro de sociedades?
A literatura considera três categorias básicas; a primeira dos
senhores que ocupam o topo da pirâmide; a segunda dos rendeiros no
intermédio; e os índios e escravos na base. Na verdade este é um modelo
reproduzido em diversos autores, como Oliveira Viana,146 que não ajuda
muito na abstração do conteúdo sociológico da categoria. Antônio Cândido
assim enxergava a matriz familiar brasileira: “um núcleo central branco e
composto de um casal branco e seus filhos legítimos, e uma periferia não
bem delineada, composta por escravos e agregados”.(CANDIDO, SD:294).
A descrição de Antônio Cândido parece muito com a de Gilberto Freire,
ambas privilegiando o espaço do litoral onde a cultura açucareira dominava
a paisagem. Mas no sertão, país do gado e do tapuia, esta categorização não
se aplica.
Vivamente influenciada pela tempestade pombalina que soprara nos
domínios ultramarinos portugueses, vamos encontrar na célebre Relação da
Capitania de São José do Piauí, escrita em 1772, um dos mais ricos
depoimentos deixados por uma autoridade atuante no Piauí colonial. O
texto é de autoria do ouvidor do Piauí, Antônio José de Morais Durão.
Amargo, coalhado de preconcepções e embebido de etnocentrismo, parece
retratar a frustração do funcionário público que por força da obrigação
recebe a tarefa de governar a ouvidoria de Oeiras no Piauí, cabeça de uma
extensa comarca decadente encravada na porção central do nordeste
brasileiro. O ouvidor, totalmente isolado de sociabilidade e do trato urbano
e na mais absoluta solidão intelectual dedicando-se ao exercício da pena nos
reservou esta extensa descrição.
Segundo o ouvidor do Piauí, os agregados estavam divididos em
dois tipos: “uns que em algumas ocasiões servem como criados inerentes às
famílias, outros que nem servem, nem na família se incluem, antes têm fogo

146 “Na sua estrutura social, esses latifundiários possuíam três classes perfeitamente distintas: a classe
senhorial; a classe dos homens livres rendeiros de domínio, e a classe dos escravos, que não os
operários rurais.” (OLIVEIRA VIANA. 1923:65). Esta definição de Oliveira Viana foi bastante
criticada. (NEME, 1971:242).
275
separado, posto que dentro da mesma fazenda.” Estas duas formas de
manifestação dos agregados devem ser analisados em separado.
O primeiro grupo, formado por aqueles agregados fixados mais
permanentemente às famílias e que prestavam alguma forma de serviço à
célula colonial. É a confiança que faz do agregado um familiar; nas casas dos
fazendeiros o agregado era mantido mediante um estatuto de fidelidade, e
de um jogo psicológico na qual era convencido que sua posição na família
era uma concessão pela qual ele devia pagar com trabalho e fidelidade. O
agregado não tinha direito de protestar ou se rebelar contra sua condição, a
quebra da confiança era punida com o banimento. Neste ambiente violento
e hostil do sertão colonial, o banimento era, de certa forma, uma sentença
de morte social, às vezes até física.
Uma distinção fundamental se faz necessário: a agregação não era o
mesmo que escravidão; uma das mais marcantes características verificadas nos
textos históricos é a liberdade do agregado, mesmo que limitada em certos
aspectos; a relação estabelecida entre agregado e agregador aproximava-se
mais do senso sociológico de servidão, o qual reflete uma relação de
dependência entre uma camada social de condição ‘secundária’ uma
aristocracia, à qual se prende na obrigação de prestar serviços e render
tributos. Em suma esta era uma relação do tipo servil – vassalar – e, antes
de mais, um sistema de castas não declarado. João Justiniano da Fonseca,
baseado em sua vivência sertaneja, formula um perfil para a categoria:
O agregado em geral, representava a figura do homem que construía sua casinha
de taipa, alguma coisa como o barraco da cidade grande, plantava de meia um
pedaço de chão, criava galinha e mais que isso, poderia ter um porco no
chiqueiro. Prestava serviços eventuais, a dia. Constituía família e se multiplicava,
mas não lhe era permitido criar ou construir residência sólida, por isso vivia de
favor. Tinha uma obrigação irrecusável: atender ao chamamento do senhorio,
quando este precisasse de seu trabalho, e um direito sagrado, receber o custo da
diária, em regra arbitrada pelo senhor. Não era escravo, mas também não era um
cidadão independente, parece que meio termo. Criar na fazenda não se permitia
ao vaqueiro, pelos animais ganho em quarteação, isso mesmo, dentro de um
certo limite, ultrapassado o qual teria de vende-los ao dono da propriedade,
nunca a outro, salvo com sua permissão. Poderia arrendar seu lugar e mudar-se.
(FONSECA, 1996:155).

A descrição de Fonseca, aproxima-se mais da primeira categoria de


agregado que conservou-se como prática no nordeste brasileiro até o século
XX; espelha-a uma visão moderna, e difere em alguns pontos do senso
histórico.
A segunda forma de agregação classificada pelo ouvidor Antônio
Durão era grupal e de natureza muito mais liberta, formada por indivíduos

276
que tinham trânsito livre, e podiam ir e vir de acordo com seus interesses; e
naturalmente, mantinham compromisso limitado com as células coloniais.
Neste caso a agregação aparece como escolha estratégica, prerrogativa dos
agregantes. Como estudamos antes, na segunda metade do século XVIII,
quando as alianças inaugurais estabelecidas entre nativos e pecuaristas para
viabilizar a instalação da pecuária não mais atendiam a seus objetivos, os
nativos passaram a ser um fardo pesado para os fazendeiros. Para os índios,
as escolhas eram poucas: ou se integravam de alguma forma ao processo
colonial se assentando em missões, vilas, arraiais de defesa, e fazendas,
prestando vassalagem ao rei de Portugal; ou, como segunda opção, seriam
declarados de corso, termo utilizado à época para designar nomadismo e
qualificar os fugitivos, arredios, levantados e de alguma forma resistentes ao
processo colonial.147 Na primeira opção teriam os nativos de negociar, em
alguma medida, parte de sua bagagem cultural como forma de serem aceitos
em outra ordem, distinta da sua natural. Na segunda opção seriam
perseguidos pelas bandeiras despachadas pelo governo, como as do
sargento-mor Jerônimo Pires no Moxotó e Pajeú, ou pelas guerras
particulares movidas por fazendeiros como Christovão da Rocha Pitta. A
agregação às fazendas parece ter sido a escolha que oferecia menor prejuízo
para os índios.
Outro ponto a se considerar é o da formação da elite rural. Não se
pode falar exatamente em uma casta de fazendeiros brancos, ou num
padrão comportamental ocidental dominando os costumes das fazendas do
sertão de Rodelas. Comparando o exemplo nordestino com aquele
desenvolvido pelos colonos norte-americanos ou sul-africanos, verifica-se
que a unidade familiar dos últimos era, via de regra, composta por casais
brancos que, naturalmente, reproduziam em suas colônias o padrão
comportamental ocidental. No caso do sertão nordestino a situação era
muito diferente: não existia uma família portuguesa constituída governando
as células e núcleos coloniais, mas filhos mestiços de segunda ou terceira
geração, encarregados da administração das fazendas. Os exemplos são
muitos; a própria Casa da Torre foi sentada sobre o matriarcado da índia
Francisca Rodrigues, tomada por Garcia d‘Ávilla o fundador da Casa da
Torre; de cujo casamento nasceu a mestiça Isabel d‘Ávilla, mãe de Francisco
Dias d‘Ávilla, o conquistador de Rodelas. Pedro Calmon, fiado em Frei

147Segundo o Padre Simão de Vasconcelos: “Todos os índios quantos há no Brasil, vemos que se
reduzem a índios mansos, e índios bravos. Mansos chamamos, aos que com algum modo de
república, (ainda que tosca) são mais tratáveis, e perseveráveis, entre os portugueses, deixando-se
instruir e cultivar. Chamamos bravos, pelo contrário, aos que vivem sem modo nenhum de república,
são intratáveis, e com dificuldade se deixam instruir.” (VASCONCELOS, [1663], 1977. vol.I:110);
(RIHGB, Tomo XXXIV, 1871).
277
Maria Jaboatam, registra a existência de três filhas caboclas deste mesmo
Francisco Dias d‘Ávila.148 Se conhece ainda uma tal Joana d’Ávilla de
Figueiredo, provavelmente filha ilegítima de Francisco Dias d’Ávila, casada
com Francisco Rodrigues de Carvalho, cujo casamento teria sido agenciado
pelo próprio coronel Dias d’Ávilla.149 Desta forma se construiu no sertão de
Rodelas um universo pardo e mestiço, como na imagem tão bem capturada
por João Justiniano da Fonseca. (FONSECA, 1996:16).
Pode-se supor que em estabelecimentos governados por mestiços,
os índios agregados teriam um tratamento mais ameno, ou pelo menos mais
tolerante no que se refere aos seu costumes, que nas missões e vilas do
Diretório, estes declaradamente dirigidos à miscigenação e ao apagamento
cultural. Como vimos anteriormente, nem as missões, nem tampouco as
vilas foram suficientes para dissolver as práticas de agregamento e implantar
uma ordem européia no sertão. Agregados às fazendas, os nativos
negociavam dia-a-dia sua sobrevivência étnica, não apenas perdendo sua
identidade como querem muitos, mas cambiando e construindo uma
sociedade mestiça, na qual o comportamento nativo sempre foi mais
presente que o ocidental.
No Piauí, a expansão colonial foi estancada no século XVIII por
alguns fatores: transferência do Foro para o Estado do Maranhão; rebelião
dos rendeiros; e retraimento da Casa da Torre. Neste contexto, as fazendas
prosperantes no século XVII passaram a decadentes e isoladas, no século
seguinte, tal foi o caso das da vila de Jeromenha, observada em detalhe pelo
ouvidor do Piauí. Nestes sítios, isolados dos centros ativos da economia
pecuária, grupos de nativos desaldeados e mestiçados encontravam abrigo
da perseguição que o estado lhes impingiria nos grandes centros e,
abrigados por fazendeiros, desenvolveram uma categoria sertaneja,
portadora de uma extrema simplicidade material, combinada à absoluta
liberdade de costumes, sem as amarras da fidelidade vassalar. Não
mantinham vínculos diretos com a atividade pecuária, mas dependiam dela
indiretamente para manter seu modo de vida. Por outro lado, os fazendeiros

148 Eram elas: Clara Dias, casada com Alexandre Gusmão de Barros, Clemência, casada com João

Vieira Lima e Albina de quem não se tem informações Jaboatam, Frei Apud (CALMON, 1939).
149 Joana davilla de Figueiredo, provavelmente filha ilegítima de Francisco Dias D’Ávila, citada pela

terceira testemunha do Embargo de Dona Brizida Abreu contra a Casa da Torre, Manoel Francisco
Maciel, morador do Riacho do Orocó, o qual informou que quando Francisco Rodrigues de
Carvalho, Pai de D. Brizida quis ir para o Reino vendera a Fazenda Riacho a Manoel Carvalho, com
todos os gados que possuia, então o Coronel Francisco Dias Davilla propôs a Francisco Rodrigues
“se casar com Joana davilla de Figueiredo e aceitando ele o casamento tornou a comprar ao dito
Manoel Carvalho os gados que tinha em o mesmo sitio do Riacho e ficou ele dito Capitão
usufrutuário do dito sitio como de então era pagando a renda ao senhorio” (IAHGP, Coleção
Orlando Cavalcanti, 1714, Caixa 13).

278
utilizavam os serviços deles para se fortalecerem perante seus vizinhos,
alimentando a consciência da força como advogada das disputas.

Sem direito à história.


Uma das faces mais sutis e complexas da violência contra os tapuia,
fora sem dúvida, a cassação do direito à memória. Este é um dos exercícios
registrados pelo ouvidor Antônio Durão, no qual confessa ter
deliberadamente excluído os nativos da relação da população: “Não os meti
nos mapas porque não só não prometem aumento, mas nem ainda subsistem, porque os
Jaicós estão quase extintos”, diz ele. Na verdade os 736 índios aldeados em
diversas vilas representavam 12,91% da população de Oeiras. Continua o
relato: “Há no distrito desta cidade duas povoações de índios: “os Jaicós
aldeados junto à Ribeira do Itaim e apenas chegarão hoje a 60 indivíduos, e
os Gueguês que se situaram em São João de Sande distante da mesma
cidade 8 léguas para a parte do norte e chegam, entre grandes e pequenos, a
252”. (MOTT, 1985:24-25).
Diante da amputação do mapa de população de Oeiras, em um
contexto colonial de crise, no qual certamente a estatística de povoamento
influenciaria os humores da coroa para a capitania, nos questionamos: qual
explicação caberia ao fato? Que circunstâncias levariam a tal subtração? Será
que os números de aldeados nativos não seriam também números
indicativos do sucesso da conquista? Porque não usara o ouvidor esta
estatística, tal qual faziam os missionários para destacar os frutos das
missões? A ausência dos tapuia dos registros demográficos, parece-nos
refletir um desejo inconsciente de extirpar-se da sociedade colonial, os
traços ‘impuros’ da ‘barbárie’ residual, que mantinham-se persistentes em
raros nichos, onde a cultura tapuia teimava resistir. Parece que é este desejo
que subjaz nas palavras usadas pelo ouvidor para encerrar o parágrafo
pertinente aos índios aldeados na vila de Oeiras:
São uns e outros inseparáveis do furto e bebedeira e geralmente de qualquer
nação que sejam, nimiamente estúpidos, preguiçosos, glutões e ligados aos seus
ritos e superstições em um maior extremo, pegando-as como contágio aos mais
moradores da Capitania, já nela houve mais aldeias de que apenas há memória.
(MOTT, 1985:24-25).
Assim, sem serem notados e anotados, os índios foram – explícita
ou veladamente – sendo situados como mestiços na periferia das fazendas, e
desaparecendo da documentação enquanto corpo étnico. O Diretório era
gerenciado por funcionários públicos que atuavam em vilas, criadas em
pontos estratégicos onde havia maior necessidade de controle do poder

279
colonial. O nordeste brasileiro, entretanto, era um continente, e grandes
porções geográficas ficaram sem representação do Diretório, e por tanto:
fora do alcance do braço da Lei. Nestes espaços se concentravam
livremente grupos que não se submetiam às novas regras. No distrito da vila
da Jeromenha, porção Sudeste da conquista do Piauí, formou-se um bolsão
de ‘deserdados da fortuna’, um tipo de quilombo onde nativos que estavam
a margem do processo colonial buscavam liberdade. Descrevendo a Vila de
Jeromenha,150 freguesia de Santo Antônio da Gorguea, o ouvidor volta sua
ira para aqueles a que ele reservou os mais duros adjetivos: os agregados. É
desta observação que extraímos a melhor descrição desta categoria
populacional, fundamental para a compreensão da dinâmica, metamorfoses
e dos comportamentos da massa nativa que se comprimia ao largo da
sociedade colonial sertaneja, a quem ela legou as principais e mais profundas
marcas culturais.
A base da observação é etnocêntrica, não se furta a comentários
semelhantes aos deixados pelos missionários e viajantes, a respeito dos
nativos; contudo retrata um momento crítico da integração, quando a
particular ética tapuia emerge na forma de uma resistência silenciosa, forte,
permanente e ativa, que agencia o comportamento da expansão. Os tapuia,
não são mais identificados como índios e sim como mestiços, vermelhos,
agregados, mais uma vez, aliados infernais, que imprimem uma convivência
violenta aos assentamentos na forma de uma resposta retardada à conquista.
(BOOGAART, 1979:519-38). A narrativa flagra o observador temeroso e
surpreso com a dinâmica social impingida pelos agregados que, a certo
modo, contingencia o desenvolvimento das vilas, quase ao extremo do
colapso, pondo em cheque o povoamento dos sertões e a continuidade do
projeto colonial. O ouvidor descreve o Piauí tomando por referencia a vila
de Oeiras no Brejo da Mocha, centro político das possessões de Domingos
Afonso Sertão e sede da freguesia fundada pelo padre Miguel do Couto em
1697. O ouvidor atribuía a estagnação da Vila de Jeromenha à presença dos
agregados. O termo – como notou João Justiniano da Fonseca - se referia a
um indivíduo ou grupo de origem externa aos núcleos coloniais que a eles
se congregam temporariamente. (FONSECA, 1996:155). Neste caso os
agregados são maioria e imprimem a dinâmica nestes assentamentos. Diz o
ouvidor:

150 Em 1740, o Bispo do Maranhão, D. Manuel da Cruz criou as freguesias de Nossa Senhora da

Conceição dos Aruazes, a partir de um aldeamento indígena, e a da Jeromenha, nomeada Santo


Antônio da Gurguéia, originada também de um arraial de índios mansos levados para o Piauí por
Francisco Dias d'Ávila 2°, para combater os selvagens “que tanto infestavam essas paragens com as
suas correrias, inquietando os novos estabelecimentos de criação e de cultura”. (ABRÊO, 1909:44-5).
Apud (BANDEIRA, 2000:276).

280
Está situada a Vila de Jeromenha quase ao poente desta cidade (Oeiras) e dela
dista pouco mais de 30 léguas. Quando se caminha para Parnagoá, fica à mão
direita. Têm unicamente 5 fogos; os 18 que se lhe vêem são na circunferência.
Não obstante ficar junto da Gorguea,151 e situada em lugar cômodo, nenhum
aumento tem tido, como mostra o número de seus vizinhos, havendo 11 anos
que é vila; o mesmo sucede às mais, e como a respeito desta, nada tenho que
notar, apontarei aqui a principal causa daquele defeito.
Além dos senhorios das fazendas ou seus feitores, vaqueiros, fábricas e mais
pessoas que nelas moram, como uma só família, há outras muitas a que chamam
agregados, e são de duas formas: uns que em algumas ocasiões servem como
criados inerentes às famílias, outros que nem servem, nem na família se incluem,
antes têm fogo separado, posto que dentro da mesma fazenda. Os primeiros,
dado que maus, são toleráveis, mas os segundos, são péssimos e danosos em
todo o sentido.

151 Este território ao poente da cidade de Oeiras tinha sido devassado pelo Paulista Domingos Jorge
velho entre 1671-1687, quando ele abandonou estas conquistas para ir combater nos Palmares, “o
Domicilio que a poder de uma perfídia e diuturna guerra contra o gentio brabo e comedor de carne
humana demais dezesseis anos nós tínhamos conquistado, povoado, lavrado e plantado, com nossas
criações” (ENNES, 1938:204). A saída dos paulistas deu lugar a tomada de posse por parte da Casa
da Torre e Domingos Afonso Sertão e outros sócios, que avançam depois de 1674, partindo do rio
Piauí e Itaim em direção ao Oeste para se apropriarem da conquista da Gorguéa, terreno já limpo
abandonado pelos Paulistas.
281
Figura 19 - Matuto a cavalo com um trabuco amarrado ao celim. Desenho e litografia de François
René Moraux, 1842. Col. Biblioteca Nacional.

Mesmo afastado de seus núcleos originários, os agregados traziam


costumes nativos, profundamente arraigados que, entre os fazendeiros não
encontrarão a resistência obstinada dos missionários. Assim, por serem em
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número tão superior, apesar de destituídos de poder econômico,
impingiram seu poder cultural, determinando muito do comportamento
social do sertão colonial, e muito do que ainda hoje se conhece da sua
expressão cultural de remanescentes sertanejos.
Disfarçam estes refinados vadios, preguiçosos, ladrões, matadores e pestes da
república a sua péssima conduta com duas raízes de mandioca ou de tabaco que
fabricam e que nunca chega para os sustentar e suas famílias mais que um ou dois
meses no ano, mantendo-se o resto do mesmo, do que furtam e caloteam na
mesma fazenda em que moram e nas circunvizinhanças porque nenhum deles
tem outro ofício nem qualquer que seus filhos aprendam.
Os donos das fazendas os toleram com semelhante vida e com prejuízo seu,
parte por medo, pois se os encontram ou querem delas expulsar, só se expõem a
um tiro, parte por dependência, porque se fazem mais respeitados com o seu
auxílio; e quando se querem vingar de alguém têm prontos os seus agregados
para toda a casta de despique. A justiça os não pode castigar, porque os não pode
prender. A sua vila ou vivenda no mato, os prontos avisos que recebem de
qualquer movimento e o pouco que têm que perder, lhes facilitam a fuga.
Desta relação violenta e cruel, entre mestiços braiados e colonos
nasce o primitivo compadrio sertanejo. Diferente do compadrio do litoral,
este é caracterizado pela iniciativa dos ‘conquistados’. O agregado que
surpreendeu o ouvidor do Piauí não é um ser submisso ao abrigo de um
senhor poderoso. A relação de poder que se estabelece é comensalística e,
neste caso, em aparente desequilíbrio, uma vez que alguns agregados
impõem ao agregador sua vontade, estabelecendo com ele uma relação de
dependência inversa. Os colonos isolados não tinham como reagir à
intimidação dos agregados e, apesar de todos os inconvenientes, eram
obrigados a tolerar sua presença. Foram convocados para fazer o serviço
sujo que alimentava a violência local, e que gerou o banditismo cordato,
perpetuado no nordeste do Brasil, pela impunidade e ausência do Estado.
Capistrano de Abreu, dissertando livremente sobre como se
manifestava a violência dos sertões conduzida pelos capitães mores, faz uma
leitura da violência e da força como argumento no sertão. Era desta Lei do
uso e do costume tapuia que o colono mestiço soube se valer:
Questões de terra, melindres de família, uma descortesia mesmo que involuntária,
couzas as vezes de insignificância inapreciável desfechavam em sangue. Por
desgraça não se dava o encontro em campo aberto: por trás de um pau, por uma
porta aberta ou janela aberta descuidosamente, na passagem de algum lugar ermo
ou sombrio lascava o tiro assassino, às vezes marcando o começo de uma longa
série de assassinatos e vendetas. Com a economia naturista dominante, custa
pouco ajuntar valentões e facinorosos, desafiando as autoridades e a lei (...) Por
desgraça não se dava o encontro em campo aberto: por trás de um pau, por uma
porta aberta ou janela aberta descuidosamente, na passagem de algum lugar ermo

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ou sombrio lascava o tiro assassino, às vezes marcando o começo de uma longa
série de assassinatos e vendetas. Com a economia naturista dominante, custa
pouco ajuntar valentões e facinorosos, desafiando as autoridades e a lei quando
não têm forças para a resistência. (ABREU, 1954:224-5).
Sua economia dirigida para a satisfação das necessidades imediatas
de cada dia, conflitava com os interesses cumulativos do capital pecuário.
Desapontaram duplamente missionários e o Diretório que tencionavam
formar uma massa proletária nascida das reservas nativas, dirigidas à
satisfação das demandas do sistema produtivo colonial:
Os seus bens são a casa de palha, que se fabrica num dia, um cavalo, uma espada,
uma faca e alguns cachorros que facilmente consigo mudam e com a mesma
facilidade sustentam enquanto lhes é preciso andar no mato. São estes demônios
encarnados os curibocas, mestiços, cabras, cafus e mais catres de que a terra só é
abundante, que acossados pelas justiças das outras capitanias em que delinqüem e
onde lhes não é fácil ocultar-se por povoadas e abertas, buscam esta como um
infalível asilo das suas maldades e lugar próprio para continuarem nelas com todo
o desafogo e sossego.
Esta massa humana de espírito livre se associava, sem fidelidades, a
quem lhe oferecesse proveito. Aliados às oligarquias nascentes,
contribuíram na resistência dos foreiros levantados e ao enfraquecimento
do poder dos grandes senhores de terras. Mantinham de suas tradições
ancestrais o espírito do corso, e se movimentavam livremente nos amplos
espaços não ocupados pelas fazendas, migrando estrategicamente ao sabor
de suas necessidades. Para os fazendeiros eram verdadeiros ‘aliados
infernais’ que tanto podiam oferecer segurança quanto instabilidade aos
assentamentos coloniais. Todavia, cumpriram papel fundamental na
formação da sociedade sertaneja, que guarda desta casta marginalizada a
insolência, altivez e o espírito soturno e desconfiado que serviu no passado
para nomear altericamente os povos Cariris. E conclui o ouvidor:
Enquanto porém se lhes permite esta depravada vida, com perda dos gados que
furtam, com irreparável dano das gentes que matam, das mulheres que violentam,
arrebatadas umas dos regaços de suas próprias mães e outras dos lados de seus
maridos, sem lhes aproveitarem as lágrimas e humildes rogativas e enquanto
finalmente vivem como brutos cometendo todo o fato horroroso em toda a
espécie de delitos, desempenhando o nome de monstros e dando o mais
escandaloso exemplo à sociedade. Estão as vilas ao desamparo, sem haver quem
as povoem, sem artífices para as obras necessárias, sem homens para o trabalho,
e sem aumento algum. Destas fogem eles com todo o desvelo, porque nelas se
havia examinar o seu modo de viver e se poderiam capturar quando delinqüissem
com toda a facilidade, porém está tão arraigado o mal, que sem providência
superior, nada tem remédio, muito mais por haver quem por depravação de
espírito, siga a péssima máxima de que se não devem apertar por não
desampararem a capitania, como se não fosse utilíssimo que a deixassem para
cessar o mau exemplo que dão, em que se buscasse outro meio de evitar os

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freqüentes delitos que cometem, para suspender de qualquer sorte a torrente dos
danos que causam.
Bom era de fabricar com eles, colônias que entrando nas terra dos gentios e
estabelecendo-os nelas, servissem de barreira, cobrindo esta capitania, pois ao
passo que se saneava fora esta pestífera raça, se evitavam os descontos, vexações
e despesas que o povo faz na conquista daqueles e os graves prejuízos que
causam, ainda depois de serem aqui metidos e aldeados.152
Ajuntar-se aos postos coloniais foi, antes de qualquer coisa, uma
forma astuta de resistência. Desnudo o agregado, vemos nele o tapuia
encoberto na forma dos ‘demônios vermelhos’, que as transformações
biotípicas não foram bastante para esconder. À vista do magistrado, a rigor,
não seriam tapuias estes agregados, e sim “demônios encarnados os
curibocas, mestiços, cabras, cafus e mais catres de que a terra só é
abundante”. Eram mestiços de diversos matizes; contudo a base cultural
aparece fortemente marcada pelo comportamento tapuia. Usavam dos
mesmos expedientes: assaltos, seqüestros e estupros que surgem nos
documentos para relatar as ‘atrocidades’ cometidas pelos tapuia contra os
colonos. O ouvidor conclui sua relação, atribuindo a decadência da
economia daqueles sertões a esta espécie de ‘pestilência’ que parasitava as
feitorias e fazendas de gado, sem dar-se conta do fenômeno sociológico que
testemunhava.

152 ressuscitava a idéia de degredo e anteparo do muro do demônio, para onde tinham sido dilatadas
as fronteiras do país dos bárbaros os Tapuias (MOOT, 1975:26-7).
285
286
Conclusão

Após a derrota definitiva do projeto colonial holandês, na segunda


metade do século XVII, os portugueses retomaram o processo exploratório,
baseado na expansão da economia agro-industrial açucareira e na
interiorização colonial da atividade pecuária.
A esta época, a ausência de infra-estrutura viária fazia do rio São
Francisco a única rota a penetração dos sertões nordestinos, viabilizando a
instalação de fazendas e missões, que se estabeleceram na região como
postos coloniais avançados, e como entrepostos de apoio aos comboios de
gado, que trafegavam entre os centros produtores pecuaristas do sertão de
Rodelas e o mercado do Recôncavo Baiano.
Até o princípio do século XVII não se tinha uma real idéia da
dimensão dos espaços interiores do Brasil, que os holandeses chamavam de
país dos tapuias. O termo sertões sugere uma imagem pouco precisa e foi
usado genericamente para designar, com relação às capitanias do nordeste,
as porções semi-áridas que se situavam à retaguarda da estreita faixa de terra
litorânea produtora de açúcar. Só a partir do primeiro quartel do século
XVII se iniciaram as expedições exploratórias, que revelariam um espaço
incógnito e misterioso, habitado pelos tapuia, grupos nativos hostis, temidos
pela ferocidade com que defendiam seus territórios tradicionais e pelo
poder de sua ação guerrilheira.
A concessão de largas datas de terras de sesmarias no interior a
nobres e particulares formara uma elite rural de forte representatividade
política no Brasil seiscentista. Os Dias d'Ávila eram senhores das sesmarias
do sertão de Rodelas que se estendia desde a cachoeira de Paulo Afonso até
as barras do rio Salitre, incluindo também os rios secundários que
alimentam o sistema São Francisco neste trecho. Este espaço coincidia
também com o circuito das missões dos cariris no curso do médio rio São
Francisco, teatro geográfico de nosso estudo.
Alguns pontos fundamentais para a compreensão da história do
período colonial nos sertões do rio São Francisco ainda carecem de
esclarecimento. Entre eles a composição étnica, a distribuição dos espaços
no semi-árido e os laços de sociedade que uniram nativos e colonos. A
história da primeira fase colonial foi construída com base no testemunho de
um limitadíssimo número de autores quinhentistas como Gabriel Soares de
Souza, senhor de engenho na Bahia, ou o padre jesuíta Fernão Cardim. Os
historiadores modernos difundiram os modelos construídos pelos primeiros
autores, muitas vezes sem o cuidado de considerar a precisão de algumas
informações coletadas.
O manejo de diferentes tipos de dados, por vezes, confirmam e, por
outras, negam as fontes coevas, como na versão mítica da ancestralidade
dos povos tapuia no litoral, registrada por Soares de Souza, quando tratava
dos primeiros povoadores da Bahia. Neste texto, baseado em relatos dos
nativos, o autor afirma que, antes da chegada dos europeus, os tapuia
habitavam a costa do mar, de onde teriam sido expulsos pelos tupinambá,
falantes do tupi. Os dados arqueológicos não registram tal ocupação, ao
contrário, revelam que os povos caçadores-coletores habitaram
permanentemente os sertões ribeirinhos do rio São Francisco, desde pelo
menos 10 mil anos antes do presente. É possível todavia que parte destes
grupos do interior mantivessem em suas estratégias de abastecimento a
passagem pelo litoral em curtos períodos do ano, quando a oferta de
produtos na costa justificava o deslocamento.
Outras narrativas do próprio Gabriel Soares de Souza, entretanto,
caem como uma luva no modelo arqueológico e histórico, tal é o caso da
descrição que aponta para a existência de uma faixa do sertão habitada por
falantes da língua tupinambá ocupando uma “corda de terra de mais de 200
léguas” no sertão. Estes dados até hoje vinham sendo subutilizados pelos
etno-historiadores. Como ficou demonstrado no capítulo Tempo e espaço
tapuia, outros dados confirmam a assertiva de Gabriel Soares de Souza e
identificam parte dos movimentos migratórios de grupos que se internaram
no sertão. Vários registros históricos dão conta de que no século XVI
grandes levas de nativos abandonaram o litoral, premidos pelas guerras de
consolidação das conquistas lusitanas. Grupos como os tamoio do Rio de
Janeiro associados dos franceses, ou como os caetés no nordeste,
perseguidos por terem devorado o primeiro bispo do Brasil d. Pero Fernão
Sardinha, escaparam em grandes levas pelo rio São Francisco em direção do
interior e foram se situar nos domínios dos seus inimigos tradicionais
tapuia. A arqueologia registra a ocorrência de restos de assentamentos de
povos portadores de tradição ceramista tupi-guarani em uma grande faixa
situada entre o rios Grande do Sul e preto, nascenças do rio da Gurguéia,
lagoa do Parnaguá e Piauí, passando pelas adjacências da chapada do
Araripe e contrafortes da serra da Ibiapaba; daí se estendendo até a ilha de

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São Luis no Maranhão que correspondem a tal “corda de terra” descrita por
Soares de Souza.
A evidência destes fluxos migratórios nos permite desenhar com
mais nitidez os contornos das grandes áreas de domínio de povos de língua
túpica distinguindo-as daquelas áreas dos povos tapuia e explicar a gênese
de sua penetração histórica. O conhecimento destas ocupações túpicas no
interior deve também nos afastar de vez da idéia monocromática que
descrevia genericamente todos os povos habitantes do sertão como tapuia,
de economia caçadora-coletora extrativista.
A ciência da diversidade contida nestas grandes áreas de domínio
étnico abre espaço para o entendimento dos variados arranjos associativos
permitidos pelas diferenças locais, habilmente utilizadas por brancos e
nativos. As inimizades tradicionais entre povos de origem túpica e os ditos
povos tapuia foram utilizadas nas escolhas de associações durante o
processo de expansão e instalação da economia pecuária no sertão de
Rodelas. Associando-se, ora com uns, ora com outros, os portugueses
conseguiam impor sua superioridade, lastreada pelo poder da massa
miliciana de povos do sertão, inicialmente com os Rodeleiros e os
Amoipiras, povos túpicos que se assentaram entre os rio Grande do Sul e o
sertão de Rodelas, e depois com os Talmachiô, Orizes e Cariri, aldeados em
missões ou reduzidos por paulistas. Os índios, a seu turno, por natureza
desarticulados, quando associados a paulistas e portugueses se mostraram
muito mais eficientes e combativos. A escolha dos agregamentos e das
associações, antes de exemplificarem submissão e passividade, como queria
a historiografia colonialista, emergem como elaboradas configurações
estratégicas que fortaleciam os nativos aliados dos portugueses contra seus
inimigos locais.
Se por um lado ficam mais claros os fluxos migratórios para o sertão
e as grandes áreas de domínio étnico, por outro cresce a certeza da
fragilidade de paradigmas que tentam fixar espacialmente a diversidade de
etnias registradas historicamente em Rodelas e nos sertões adjacentes. Isto
se deve ao fato de que a redução de vários grupos num mesmo espaço
produziu tal desordem no quadro de nomenclaturas que torna a informação
etnonímica recuperada destes ambientes inapropriada para o consumo
histórico. A imprecisão é com certeza a marca mais evidente dos quadros
disponíveis, não somente quando se tenta identificar etnias assentadas em
missões como também aquelas que estiveram dispersas em grandes espaços
geográficos, com base em dados coletados por autores coevos. Está
bastante evidente que grupos tapuia mantinham em suas estratégias de
abastecimento o deslocamento por extensas áreas de ambiência ecológica
289
distintas, chegando em alguns casos a percorrer mais de quinhentos
quilômetros numa mesma estação, como foi o caso dos Xucuru, notados no
mesmo ano no Açu, no Rio Grande do Norte e no rio São Francisco,
conforme registrou o frei Bernard de Nantes em sua relação. Outro fator
complicador diz respeito à nomenclatura que muitas vezes reporta-se a mais
de um grupo ou, segundo costume nativo, representa o empréstimo
nominativo do líder que passa a referenciar todo o grupo, como foi o caso
dos Rodela ou dos Uracapá. Estas nomeações cambiavam constantemente
com a morte ou a mudança dos chefes até serem congeladas pelos
missionários e passarem a ser designativo permanente de local.
A discussão das alianças indígenas ocupou um espaço periférico na
historiografia convencional, que tradicionalmente tratou a questão como um
apêndice da expansão colonial européia. A perspectiva adotada neste
trabalho pretendeu tratar a questão de um ponto de vista que destacasse as
escolhas dos povos tapuia com o poder colonial como opções conscientes
que permitiram negociar sua sobrevivência, enquanto identidade, no
processo de ruptura de sua ordem nativa. O reconhecimento histórico
destas estratégias significa um câmbio no status de sociedades apáticas,
sujeitas aos desígnios da vontade colonial, para um nível de povos
negociadores aparelhados a barganhar estrategicamente suas perdas e
destinos como forma de continuar no jogo colonial.
Nosso cuidado surgiu da evidência de que a expansão colonial e a
instalação da pecuária no centro de domínios territoriais de povos hostis aos
conquistadores portugueses não se sustentavam coerentemente fora de um
modelo explicativo que admitisse um conjunto de associações, as quais
serviram tanto aos interesses expansionistas dos conquistadores quanto aos
interesses de defesa e comércio de trocas de alguns grupos nativos.
Construir um modelo que desse conta destas estratégias não era “das
maiores Áfricas”, como disse Capistrano de Abreu, mas esbarrava na
ausência de registros históricos claros o suficiente para serem invocados a
testemunhar a favor da hipótese. Salvo as cartas dos Paraupaba para Felipe
Camarão, no contexto da Guerra do Açúcar, os nativos brasileiros não
deixaram registros de punho próprio. Os missionários, que foram os
principais redatores do tempo colonial do sertão, não admitiam nem
registraram espontaneamente qualquer expressão dos povos nativos que
pudesse exemplificar racionalidade e inteligência destes, uma vez que tais
demonstrações viriam de encontro ao seu próprio discurso, no qual
advogava não terem os tapuia “nem Fé, nem Leis, nem Governo”. Desta
forma, restava-nos apelar para as justificativas de pedidos de sesmarias e a
outros raros documentos produzidos pelos agentes do governo colonial os

290
quais pudessem revelar os traços destas estratégias aliançadoras que
resumem e justificam em si a ação política dos índios no período colonial.
A segregação destas alianças coloniais revelam-se também nas
formas de associação marital entre nativos e colonos, que resultaram na
mistura sertaneja atual. Os missionários reagiram tenazmente contra as
uniões naturais de brancos e nativos, mais por razões políticas que morais
ou dogmáticas. A igreja não tinha efetivo suficiente para atender aos cristãos
que se espalhavam no sertão se ligando aos tapuia pela concubinagem e pelo
pecado público. Brancos e nativos se ligavam a igreja pela prática dos
sacramentos do batismo, da comunhão e do casamento. No sertão,
diferentemente do litoral, a capacidade coibitiva e reguladora da igreja era
muito limitada, então os casamentos “ilegítimos” não somente atentavam
contra a norma cristã, mas também expunham sua incapacidade de
controlar seus afiliados pela fé.
Antes que a infra-estrutura dos curatos e das paróquias fosse
estabelecida no sertão de Rodelas, as missões atuaram como braços e olhos
da coroa. No momento que as missões passam a desempenhar papel
catalisador social na região, congregando em freguesia sua clientela, estavam
também angariando partidários colonos e criadores da região. A ausência do
Estado era atrevida e, fiados em sua histórica intangibilidade, os príncipes
locais reagiram com energia ao avanço político dos missionários, chegando
em alguns momentos ao extremo da expulsão dos religiosos de suas
missões. Não obstante este ato, de certa forma, configurar-se numa ação
contra o próprio Estado na figura de seus representantes, o Rei pouco
interferiu na disputa. O fato é que, no final do século XVII o processo de
conquista do sertão de Rodelas já estava estabilizado e a coroa não mais
necessitava dos missionários que cada vez mais se imiscuíam em assuntos
políticos. Os religiosos sufocavam o governo em quase todas as esferas do
poder e a coroa buscava uma forma de livrar-se do incômodo fardo. A
situação política destes sertões era de ameaçadora independência, e a reação
veio de forma decidida e sistemática, materializada numa série de medidas
com as quais a coroa passou progressivamente a cortar o poder político,
tanto dos missionários quanto dos senhores de terras. O processo foi
eficiente e até o final do século os religiosos mais problemáticos – jesuítas e
capuchos – haviam sido substituídos no sertão de Rodelas por outras
ordens religiosas.
Os senhores de terras incomodavam e inviabilizavam a instalação do
poder civil, combatiam os juizes ordinários, dificultavam o trabalho dos
ouvidores e minavam o processo de instalação das vilas e freguesias. A
descoberta de uma conexão terrestre entre os Estados do Maranhão e do
291
Brasil, via sertão de Rodelas, a anexação da conquista do Piauí ao Maranhão
e, fundamentalmente, a mudança na política fundiária desabilitavam os
canais de poder dos senhores dando lugar ao desmonte das grandes
possessões de terras, que se prolongou durante todo o século XVIII. Com
sua defesa política comprometida, a Casa da Torre passou a sofrer o ataque
de pequenos rendeiros que investiam contra o direito do Morgado, após a
promulgação da nova política fundiária de 1700. Durante a primeira metade
do século XVII a Torre consumiu boa parte de suas energias se defendendo
nos tribunais de São Luiz do Maranhão para onde migrara o foro das ações
referentes às terras situadas na conquista do Piauí, após sua anexação ao
Estado do Maranhão. A nova ordem foi, aos poucos, consumindo as forças
da grande companhia e dissolvendo seu patrimônio. O capital aplicado em
terras no sertão e na pecuária foi sendo transferido para o comércio e para o
tabaco do litoral, numa ação que lentamente retirava de cena o grande
senhor de terras, mas de certa forma, também selava o destino da pecuária
no sertão.
Passara o ciclo ganadeiro e o litoral agro-açucareiro já não tinha
capacidade para absorver a demanda do sertão. Outras frentes de expansão,
mais próximas dos centros litorâneos, emergiam como produtores de gado
concorrendo para a distribuição descentralizada da demanda pecuária.
Desde o começo do século XVIII, a economia da colônia voltava-se para as
minas ditas “Gerais”.
Na segunda metade do século XVIII o processo expansionista havia
se consolidado no interior. Uma teia de assentamentos produtivos e missões
garantiam a estabilidade nos sertões, e os povos nativos, abatidos pelas
guerras bárbaras ou integrados ao sistema colonial, não eram mais
considerados ameaça. Assim a política pombalina, com a promulgação do
Diretório dos Índios, resolveu secularizar as missões, subtrair o poder tutelar
dos missionários, transformar aldeias em vilas e estimular o casamento entre
brancos e índios. O Diretório aplicou, em larga escala, uma experiência que
vinha sendo laboratoriada em Rodelas por cinqüenta anos, desde que a
coroa iniciara a instalação do poder civil naqueles sertões, então dominados
por senhores e missionários.
Nos anos seguintes, muitos dos mais de 60 aldeamentos registrados
para a região Nordeste no século XVIII foram declarados extintos e
perderam a tutela do Estado, marcando o fechamento do ciclo de
integração colonial dos territórios tapuia ao Estado do Brasil. Nas vilas, os
diretores impingiam aos índios um rigor de trabalho e uma disciplina maior
que a dos religiosos, acabando por estimular a debandada deles para a vida
do corso ou para o agregamento nas fazendas da região.
292
Foi fazendo da mulher tapuia, agregada ou cativa, a mãe dos seus
vaqueiros, que os colonos conseguiram integrar o nativo na sociedade
nascente. Ou melhor, foi se deixando integrar na sociedade sertaneja que o
tapuia viu sua cultura, seu tempo e seu espaço se metamorfosear para
formar o povo sertanejo. Em 1798 foi abolido o Diretório encerrando-se
um ciclo de alianças entre os povos indígenas e as forças coloniais, os quais
foram doravante obrigados a um novo reordenamento e à busca de novas
estratégias, que só se materializariam no século seguinte, através dos
processos de emergências étnicas.

293
294
Fontes & Bibliografia
Abreviaturas

Periódicos
AAPB Annais do Arquivo Público da Bahia
ABN Annais da Biblioteca Nacional
RAM Revista do Arquivo Municipal - São Paulo
RIAHGP Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano
RIAGP Revista do Instituto Archeológico e Geográfico Pernambucano
RIAP Revista do Instituto Arqueológico Pernambucano
RIHGB Revista Trimestral de Historia e Geografia ou Jornal do Instituto Histórico
Geographico Brasileiro – Rio de Janeiro
RIHGEB Revista do Instituto Histórico Geographico e Ethnographico do Brasil
RIHB Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia
RIC Revista Trimensal do Instituto do Ceará.
RMP Revista do Museu Paulista

Arquivos
ADF Arquivo do Distrito Federal
AHU Arquivo Histórico Ultramarino
AN Arquivo Nacional – Rio de Janeiro
ARA Algemeen Rijksarchief ARA - Arquivo Nacional dos Países Baixos – Haia.
APEB Arquivo Público da Bahia - Salvador
ARSI Archivum Romanum Societá Iesu. - Vaticano (Gesu)
BA Biblioteca da Ajuda - Portugal
BJM Biblioteca José Mindlin – São Paulo.
BN Biblioteca Nacional – Rio de Janeiro.
IAHGP Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano – Recife
QD Quai D'Orsay (Ministério das Relações Exteriores - Paris)
Fontes primárias manuscritas

I. ADF Arquivo do Distrito Federal


CARTA RÉGIA de 26 de Agosto de 1680, Sobre mudança das aldeias Paiaiás que pede
João Peixoto Viegas, 1675. ADF, IV:253; apud (Leite, Serafim, 1945. vol. V:279-80).

II AHU Arquivo Histórico Ultramarino


MENDES da PAZ, Jeronymo. Ofício do [governador da capitania de Pernambuco], Luís
Diogo Lobo da Silva, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, remetendo diligências do sargento-mor Jerônimo Mendes da Paz a
respeito dos barbudinhos e das suas más ações entre os índios dos sertões. Recife, 31 de
agosto de 1761. Anexo: 2 docs. AHU_ACL_CU_015, Cx. 96, D. 7564.
VELHO do VALE, João. “Relatório de João Velho do Vale” transcrito e comentado por
João Renôr em O Estado do Maranhão edições de 19 e 26 de novembro de 1989; 03 e 24 de
dezembro de 1989; 04, 14 e 18 de fevereiro de 1990; 04 de março de 1990; 01 e 15 de abril
de 1990. ou CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. PedroII, sobre o governador
do Maranhão, Gomes Freire de Andrade, a dar conta do descobrimento, por João Velho
do Vale dos rios Munim e Itapecuru. Lisboa, 11 de Outubro. 1687. Anexo: carta e relação
da jornada. AHU_ACL_CU009, Cx. 7, D. 781. Noutra referencia: JORNADA de João
Velho do Vale. AHU, P.A. Maranhão. Caixa 8:10.
ALVARÁ sobre ter cada missão de indígenas uma légua de terra em quadra. AHU.
[Registro de Provisões] - Códice 95, fl. 91v/92 - Lisboa, 23 de novembro de 1700.
Publicado com alterações e incorreções (ABN, Vol.28, 1906).
ALVARÁ de 18 de Outubro de 1709. Para essa eleição a Câmara devia ser presidida pelo
corregedor ou provedor de comarca. (Laxe, 1885:XV).
CARTA para o Desembargador Christovão Soares Reymão, sobre a inteligência da Lei
para a forma que deve usar na repartição da légua de terra que se há de dar a cada aldeia
dos índios.’ Lisboa, 22 de maio de 1703. Registro de Cartas do Conselho Ultramarino.
AHU. Códice 257:127v-128.
CARTA para o Ouvidor Geral da Parahiba Christovão Soares Reymão, sobre a diligência
de tombar as terras que ficam para a parte do Açu, ... Lisboa, 03 de março de1701. AHU,
cód. 257:71v.
CARTA do padre Anastácio Audierne de 1681 AHU, Papéis Avulsos da Bahia, 20 de
junho de 1680, anexa ao parecer do Conselho Ultramarino sobre o assunto. (Faria,
1965:251-95).
CARTA para desembargador João Puga e Vasconcelos sobre ordenar-se que pelo mais
dilatado sertão comece a tombar as terras de sesmarias. Registro de Cartas do Conselho
Ultramarino. Lisboa, 19 de agosto de 1704. AHU.– cód. 257:157v- 158.
CARTA de Francisco Barreto a D. João IV, 12 de março de 1654. AHU, Pernambuco, IV.
(Mello, 1998:38).

296
CARTA para João da Cunha Souto Mayor Governador de Pernambuco, sobre o Capitão
da Capitania do Rio São Francisco Miguel Barbosa acerca de ser conveniente haver nela
sicoenta soldados. 30 de dezembro de 1646. AHU, códice 256:66.
CARTA do Padre João Leite de Aguiar ao Rei, 05 de maio de 1696. AHU, Ceará, caixa
1:46.
CARTA do padre João da Costa, ribeira do Açu, 26 de Agosto de 1699. AHU,
Pernambuco, caixa 14.
CARTA sobre informar com seu parecer ouvindo os moradores daquele distrito acerca do
que representaram os Padres Jerônimo de S. Francisco e Miguel de Carvalho. Lisboa, 04 de
fevereiro de 1701. Registro de Cartas do Conselho Ultramarino. AHU, Pernambuco, cód.
257:69/69v.
CARTA do Conde de Alvor a Dom João de Lencastro Governador Geral do Estado do
Brasil, sobre as violências de Domingos Affonso Sertão. Lisboa, 13 de Janeiro de 1699.
(Borges de Barros, 1920:364-5).
CARTA para o Governador da Capitania de Pernambuco. Sobre se mandar dar a légua de
terra aos índios daquela Capitania. Lisboa, 5 de Junho de 1705. AHU. Registro de Cartas
do Conselho Ultramarino – cód. 257:173.
CARTA para o Governador da Capitania de Pernambuco. Sobre se mandar dar a légua de
terra aos índios daquela Capitania. Lisboa, 5 de Junho de 1705. Registro de Cartas do
Conselho Ultramarino (AHU, cód. 257:173).
CARTA RÉGIA de 2 de Dezembro de 1698 para D. João de Lencastro, ordenando a
criação de um arraial de índios mansos para combater os Acoroazes, Mocoares Rodelleiros.
(Borges de Barros, 1920:329).
CARTA REGIA ao Governador Geral do estado do Brasil, D. João de Lencastro, sobre as
violências de Domingos Affonso Sertão. Lisboa, 13 de Janeiro de 1699. (Borges de Barros,
1920:364-5).
CARTA RÉGIA para, Dom Fernando Acis Mascarenhas Almeida, Governador de
Pernambuco, sobre a conta que deu o Bispo das diferenças com que se acham os
moradores do Piauí quando foi em visita acerca da medição das suas terras. 20 de janeiro
de 1700. AHU. cód. 257:35v-36.
CARTA RÉGIA sobre o que pede o Desembargador Leytão de Mello e o Coronel Garcia
de Ávila Pereira. Lisboa, 20 de Abril de 1731. AHU, códice 56:327v-8.
CONSULTA do Conselho Ultramarino, c. 1675, Voto de Salvador Correia de Sá sobre a
missionação e o povoamento do sertão. AHU: Bahia, caixa 2:105. (Puntoni, 1998:41).
CARTA RÉGIA ao Governador da Capitania de Pernambuco Caetano de Mello de
Castro, sobre as mortes e atrozes casos que sucedem no Sertão das Rodellas, e mandar que
haja de cinco em cinco léguas um Juiz ordinário. Lisboa a 16 de Fevereiro de 1698. AHU,
cód. 256:66.
CONSULTA ao Conselho Ultramarino. Carta do Bispo de Pernambuco, de 18 de Maio de
1697. Recife, 29 de Outubro de 1697. AHU, Caixa 9, P.A.-PE.

297
CONSULTA do Governador de Pernambuco ao Conselho Ultramarino sobre a Ordem da
criação de Juiz de Fora para aquela Capitania e de Ouvidor para as Vilas das Alagoas e Rio
de São Francisco. AHU, cód. 265:149-9v. 24 de junho de 1700.
CONSULTA ao Conselho Ultramarino Bahia de 17 de setembro de 1687. AHU, cód. I-,
8, 4, 17-18. Consultas da Bahia 1673-1695. (DH, 1950, vol. 89:81-3).
CARTA anexa sobre criação de Juiz de Fora para Pernambuco e Alagoas de 24 de junho
de 1700. AHU, P.A.-PE, Caixa 10.
CARTA RÉGIA ao Governador da Capitania de Pernambuco Caetano de Mello de
Castro, sobre as mortes e atrozes casos que sucedem no Sertão das Rodellas, e mandar que
haja de cinco em cinco léguas um Juiz ordinário. Lisboa a 16 de Fevereiro de 1698. AHU,
cód. 256:66.
CARTA a João Fernandes Vieira sobre os casais das Ilhas dos Açores. Lisboa a 21 de
março de 1676. AHU cód, 256:15v. (Varnhagen, 1948, Vol. III:283).
CONSULTA da junta das missões, sobre o que escreve o Bispo de Pe acerca do estado das
missões na Capitania. Recife, 12 de Dezembro de 1697. AHU, Caixa 9, P.A.-PE. ou
CONSULTA do Consoo Ultr.o de 12 de Dez.o de 697, com a consulta incluza da Junta das
Missões sobre o q- escreverão o Bispo, e gov.or de Pern.co acerca da falta de Igrejas, e
Parrochos nos Presídios dos Palmares e Certão dos Rodellas, delictos q.e vive o M.e de
Campo no Presídio das Alagoas. (Ennes, 1938: doc. 56).
CONSULTA do Conselho Ultramarino de 28 de setembro de 1700, ao governador e
Capitão General da Capitania de Pernambuco sobre à ordem que teve sobre informar no
requerimento dos oficiais da Câmara da vila das Alagoas do Sul. (Ennes, 1938:441-3).
CONSULTA ao Conselho Ultramarino de 14 de Mayo de 1706, sobre o que pede o
Antonio da Silva Pimentel e vay a informaçao que se acuza. AHU, códice 52:140-140v.
CONSULTA do Conselho Ultramarino - Sobre dona Joana de Araújo, viúva de Antonio
da Silva Pimentel, acerca das partilhas. 26 de novembro de 1691. AHU, Códice 256:125v.
CONSULTA do Conselho Ultramarino de 02 de Dezembro de 1679, AHU, códice.
252:56v-58; (DH, vol. 88:168-71). (Puntoni, 1998:54).
CONSULTA sobre o que pede João Duarte do Sacramento acerca de se prohibir que os
soldados do Certão levem as índias para seus quartéis e que pa aquellas Aldeas se não leve
a vender vinho ou aguardente pellos certoes e Aldeas, donde assistem os Índios pello
grande prejuízo que isso resulta. Registro de Provisões do Conselho Ultramarino, Lisboa,
26 de Março de 1683. AHU, cód. 49:19-20.
DOCUMENTO de DEVASSA. Instrumento em Pernambuco forma com o theor de hua
carta passado a requerimento do Illustrisimo e Excelentisimo Senhor Gobernador e
Capitão Geral destas Capitanias Luis Diogo Lobo da Silva. Recife de Pernambuco, 31 de
Janeiro de 1761. AHU, cód. 1919.
ORDEM que passou o Senhor Dom João (Dom João de Lencastro) sinalando districto a
três aldeas do Achará, Rodelas e Caruru no Zorobabé (Anexo n° 3 à consulta ao Conselho
Ultramarino de 18 de Junho de 1696 – AHU – P.A. BA, capilha 1697. (Regni, 1988, vol.
I:325-6); (Fonseca, 1996:96-7).

298
PARECER do Ultramarino sobre agradecer a Dom João de Lencastro diligência em
estabelecer caminho do Estado do Brasil para o do Maranhão. Lisboa, 27 de janeiro de
1698. Consultas do Conselho Ultramarino - Bahia 1695 – 1696 - 1724 - 1732. AHU, cód.
I-8,4,6. (DH, 1950, vol. 90:30-1).
PARECER de Salvador Correia de Sá Sobre os tapuias que os paulistas aprisionaram na
guerra ... (1691), Consulta do Conselho Ultramarino, c. 1675, AHU: Bahia, caixa 2:105.
(Puntoni, 1998:53).
PAPEIS de José Lopes Ulhoa vistos pelo Conselho Ultramarino, 23 de Março de 1688.
AHU, Rio Grande, caixa 1:26.
PROVISÃO de 1676 e certidões anexas. AHU, Ceará, caixa 1:30.
PROVISÃO REAL restituindo administração temporal dos índios aos missionários
Jesuítas. Lisboa, 13 de Março de 1721. AHU, códice 96 p370v-371.
PROVISÃO REAL a pedido do Coronel Garcia de Avilla Pereira para nomeção de juiz
privativo para das causas de terras no Piauhy. Lisboa, 8 de Março de 1718. AHU, códice
92:174.
SOBRE a conta que deu o Bispo das diferenças com que se acham os moradores do Piauí
quando foi em visita acerca da medição das suas terras. 20 de janeiro de 1700. AHU cód.
257:35v-36.

III Arquivo Nacional – Rio de Janeiro


CARTA de 15 de março de 1688 ao Governador do Rio de Janeiro. AN, cód. 952, 4:187-
8.

IV Arquivo Nacional dos Países Baixos – Haia.


(Algemeen Rijksarchief ARA-WIC)
CEULEN, M. van e Van der DUSSEN, Adriaen. Carta de M. van Ceulen e Adriaen van
der Dussen, para os Senhores XIX, 28 de Março de 1637. Coleção Brieven en Papieren uit
Brazilië (1630-1654) ARA-WIC:1.05.01.01/24.
CARTA do Gouverneur-generaal en Raden, do Recife, para os Senhores XIX, 06 de Maio
de 1637, Coleção Brieven en Papieren uit Brazilië (1630-1654) ARA-WIC:1.05.01.01/58.
CARTA de Christoffel Artichiau (Arciszewski) para os Senhores XIX, de São Gonçalo da
Paripuera, 04 de novembro de 1635. Coleção Brieven en Papieren uit Brazilië (1630-1654)
ARA-WIC: 1.05.01.01/143.

V. APEB Arquivo Público da Bahia - Salvador


CERTIDÃO passada a D. Ana Maria de S. José e Aragão, senhora da Casa da Torre, da
escritura da instituição do morgado da Torre, feita em 21 de dezembro de 1679, e o
registro do alvará de 23 de julho de 1681 da confirmação, às fls. 56, liv. 98 do Registo de

299
Patentes e Provisões Reais - Terras - Casa da Torre (Alvará e Escritura) - APEB - Seção
Colonial - Maço 602.
CARTA de sesmaria pela qual foi vossa Excelência servido dar em nome de Sua Majestade
as terras nela contidas ao Capitão Garcia d’Avila e ao Padre Antônio Pereira. São Salvador
da Bahia, 22 de abril de 1651. APEB. Seção Colonial, 1813, 602, caderno 3. (Fonseca,
1996:25-27).
CARTA RÉGIA ao Governador Geral do Brasil, ordenando que o Ouvidor da Comarca
de Sergipe d’El-Rey fosse tirar devassa contra Leonor Pereira Marinho e Caterina Fogaça
sobre a expulsão dos padres Jesuítas do São Francisco.” Lisboa a 20 de Janeiro de 1698.
APEB, Livro 6° das Ordens Régias (1698-1699) f. 31 (a lápis, n°, 3-1-5). (Barros, 1920:330-
1). (Leite, 1945. vol.V:305).
ORDEM Real expressa, enviada ao Sargento Maior Antonio Gomes de Sá para que com
todos os Capitães daqueles descritos, façam mudar o gentio manso com suas famílias para
o lugar daqueles campos mais convenientes à oposição dos bárbaros e defesa das
povoações”. APEB, Livro de Alvarás 1650-1681:149v-151. (Mello, 1962, vol V).
ORDEM RÉGIA a Dom João de Lencastro sobre denunciarem terras de sesmarias
devolutas. Lisboa a 20 de Janeiro de 1699. APEB. Seção Colonial/Provincial. Ordens
Régias / maço 5, 1698-1699:113.
ORDEM RÉGIA de 20 de Janeiro de 1699. APEB. Seção Colonial/Provincial. Ordens
Régias 1698-1699, maço 5:113.
PATENTE de capitão mor das nasçam dos Tamaquiz, provido em Francisco Dias d’Ávila.
APEB, Livro 5° de Patentes do Governo 1688-1696. (Barros, 1920:163-4).
PROVISÃO de D. João de Lencastre para mudança de aldeias no Parnaguá. APEB, Livro
de Alvarás 1650-1681:149v-151. (Mello, 1962, vol V).
REGISTRO do Alvará por que Sua Alteza faz mercê a Francisco Dias d'Ávila de lhe
confirmar o morgado que nele fizeram Leonor Pereira e Catarina Fogaça por lhe casar com
sua neta e filha Leonor Pereira Marinho. Livro de Provisões Gerais n° 260 (1678-1683), fls.
671, doc. 283. APEB. (DH, vol. 28:50-51).
RELAÇÃO de Moradores (fazendas) 1779. APEB, Seção Colonial e Provincial. Colônia.
Caderno 4. (Fonseca, 1996:142-156).
JUSTIFICATIVA do Governador Luiz Cezar de Menezes para criação da vila de
Maragogipe em 16 de fevereiro de 1724. Códice Manuscrito da Biblioteca Pública. (Freire,
1906, vol. I:155).

VI. ARSI Archivum Romanum Societá Iesu. - Vaticano (Gesu)


CARTA do padre Antônio de Forti para o padre Antônio Pereira da Casa da Torre de 7 de
setembro de 1669. ARSI, Bras 3 (2) 89.
CARTA ÂNUA de 1590 do Pe. Marçal Belliarte. Notationes annuae prov bras Anni 1590.
ARSI, Bras. 15:365. Apud Pompa, 2001:322-323.
CARTA ÂNUA de 1656. padre Antônio Pinto ARSI, Bras.3(1)300.

300
CARTA do padre João de Barros, ARSI, Bras, 3:51. Apud (Leite, 1945. Vol V:282-283).
CARTA ÂNUA de 1690-91, ARSI, Bras. Apud Leite, Serafim. vol. V, p295. 1945.
CARTA ANUA do P. Manuel Correia, da Baía, 1 de junho de 1693. ARSI, Bras. 9:382 e
ss. (Leite, 1945. vol. V:298-299).
CARTA ÂNUA ‘Litterae ex Brasilia’ ano 1693, ARSI, Bras 9:379. (Pompa, 2001:409-10).
CARTA do provincial Alexandre Gusmão de 4 de Junho de 1687. ARSI, Bras 3:234, (Leite,
1945. vol. V:294).
CARTA do provincial Alexandre Gusmão de 5 de maio de 1696. (ARSI Bras, 4:9v); (Leite,
1945, vol. V:299).
CATÁLOGO dos jesuítas para os anos de 1590-1598. (Primus catalogus sociorum qui in Brasiia
vivunt, missus per patrem Femandum Cardim, Procuratore. Anno 1598. ARSI, Bras, 5. f 38 e ss.
Apud (Pompa, 2001:322-323).
INFORMAÇÃO da entrada q- da Villa de São Paulo se pode fazer ao grãde Parâ, q- he o
verdadeiro Maranham .... Dada por Pero Domingues morador na mesma villa, e hú dos 30
Portugueses que no ano de 614 o descobrirão com o qual contestam os mais
companheiros que hoje vivem. e Relação dada pelo mesmo sobre a viage que fez da villa
de S. Paulo para o Rio de S. Francisco chamado também Parâ, conforme derrota que
seguio, ou Relação daiz entradas do verdadeiro Maranham, e Rio de São Francisco por via
de São Paulo. ARSI, Cód. Brasil-História 1620-1647:509-510.
INSTRUÇÃO do Visitador Jacinto Magistris de 1662, ARSI, Assistentiae , n° 627. Apud
(Leite, 1945. vol. V:280).
PARECER do padre Antônio Forti de 19 de agosto de 1669. ARSI, Bras 3 (2) 94-94v.
(Leite, 1945. vol. V:285).
RELAÇÃO da maneira com que se botarão os PPes da Cormp.a de JESVS fora das suas
missões no Rio de S. Francisco, Baia, aos 19 de Novembro de 1696, Alexandre de
Gusmão”. ARSI, Bras. 4:24v-25; (APP, pasta 188:17). (Leite, 1945, vol. V:300-4).
SEXENNIUM LITTERARUM do P. Antônio Pinto, 1651-1657. ARSI, Bras. 9, 16v-18.
apud Leite, Serafim. vol. V, p271-276. 1945.

VII. Biblioteca da Ajuda - Portugal


SOBRE os tapuias que os paulistas aprisionaram na guerra e mandaram vender aos
moradores do Porto do Mar, e sobre as razões que há para se fazer a guerra aos ditos
tapuias. BA, 1691, 54 XIII, 16:162.

VIII BJM Biblioteca José Mindlin – São Paulo.


NANTES, Bernard de. [1702]. Relation de la Mission des indiens Kariris du Brezil situés sur le
Grand fleuve de S. François du costé du Sud a 7 degrés de la ligne Equinotiale. Le 12 septembre 1702.
Pour F. Bernard de Nantes, capucin predicateur missionaire apliqué. (Relação da missão dos índios
Kariris do Brasil, situados no grande rio São Francisco do lado sul a 7 graus da linha do
Equinocial). Manuscrito da biblioteca do Sr. José Mindlin – São Paulo. Traduzido do

301
original em francês por Gustavo Vergetti a partir da leitura paleográfica de Pedro Puntoni
em 1997. Este texto é a parte introdutória do Katecismo índico da língua Kariri, de Bernardo de
Nantes publicado em 1709 Leipzig, por B. G. Teubner.

IX Biblioteca Nacional – Rio de Janeiro.


PARECER do Conselho Ultramarino sobre conceder a Gaspar de Matos, a administração
da aldeia de Santo Antônio de Igaripe na Bahia, Lisboa, 9 de junho de 1687. BN. I-,8,4,17-
18. (DH, 1950, vol. 89:79-80).
LIVRO de Registro composto, principalmente, de cartas, Portarias e Mapas versando
sobre vários assuntos, relacionados com a administração dos índios, estabelecimento de
vilas e aldeias, Recife etc. BN. I, 2, 3, 35.
ORDEM passada pelo Governador e Capitão General ao Padre Provincial da Companhia
de Jesus para se recolherem os índios que andam fora de suas aldeias. Bahia, 24 de Janeiro
de 1685. BN, II 33, 28, 11.

X IAHGP Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano –


Recife
AUTOS do sumário de Força em que é forçante o Mestre de Campo Francisco Dias de
Ávila. Forçado o Alferes Faustino Vieira de Sande. IAHGP, Coleção Orlando Cavalcanti,
Caixa 13. 1749.
CARTA do Governador de Pernambuco Fernando Martins Mascarenhas de Alencastre de
28 de junho de 1700, inclusa na Consulta ao Conselho Ultramarino de 24 de setembro de
1700. IAHGP, cód. Ordens Régias – Pernambuco. 1700-1704:174.
CÓDICE serra talhada ou Livro de Vínculo do Morgado da Casa da Torre contendo a
relação das fazendas vinculadas, valor pago pelos rendeiros, limites fundiários e
logradouros. 1778-79. IAHGP. Origem: Cartório de Serra Talhada).
CONSULTA e parecer do Conselho Ultramarino, de 14 de Dezembro de 1701, Sobre
poder temporal e espiritual dos missionários sobre os índios aldeados nas missões na
Paraíba. IAHGP, cód. Ordens Regias 1700-1704.
EMBARGO movido por Brizida Roiz de Abreu e seu marido o tenente Manoel da Silva
Lima contra ação de despejo do sítio Riacho, descoberto e povoado de gados pelo seu pai
Francisco Roiz de Carvalho (c.a. 1644), a pedido do Padre Pereira, senhor da Casa da
Torre. IAHGP, Coleção Orlando Cavalcanti, Caixa 13, 2° pacote 1714:11.
ORDEM REAL de 24 de setembro de 1700 com parecer do Conselho Ultramarino sobre
ação de devassa no sertão de Rodellas para apurar e condenar culpados pelas violências
cometidas contra o Juiz do Rio Grande do Sul e Ministros eclesiásticos por parte de
Portugueses afazendados. IAHGP, cód. de cópias do Livro de Ordens Régias, 1700 –
1704.
PARECER do Conselho Ultramarino sobre concessão de légua de terras para as missões e
paróquias a serem criadas no sertão de Rodelas. Lisboa 24 de setembro de 1700. IAHGP,
cód. Ordens Régias – Pernambuco – 1700-1704:174-174v.

302
PARECER do Conselho Ultramarino sobre Consulta feita pelo padre Frei Jerônimo de S.
Sacramento da Província de Santo Antonio do estado do Maranhão, e o Padre Miguel do
Couto sobre mudança jurisdição das fazendas e moradores do Piaui para o Maranhão”.
Lisboa 4 de março de 1702. IAHGP, cód.Ordens Regias 1700-1704:221.

XI QD Quai D'Orsay (Ministério das Relações Exteriores - Paris)


ABRAGÉ de la relation do père François de Lucè, Capucin de la Province de la Bretagne
touchant leurs missions du Brèsil. (QO, Ca. 1700, Portugal, 36:fl 162.) (Regni, 1988. vol.
I:176).
CARTA de 4 de março de 1692 do Embaixador francês em Portugal para o Rei de França
comunicando: “quoyque les capucins françois ayent offert de faire au roy de Portugal le
sarment de fidelité, ou leur neanmois refuse de pouvoir a l‘avenir passer aux missions du
Brésil” QO, Portugal, 28:340v-341. (Regni, 1988, vol. I:238).

Fontes impressas (I)

Biblioteca Nacional - Série Anais.


CARTA ao Governador de Pernambuco sobre se criarem juizes nas freguesias do Certão
para administrarem justiça, e os corregedores serem obrigados a visitá-los uma vez a cada
triênio’. ABN, 1908, vol. 28:341.
CARTA sobre a Jurisdição que se tem concedido aos Missionários sobre os Índios se
Omnimoda no Espiritual e Restricta no Temporal, de 27 de agosto de 1717. ABN, 1908, vol.
28:278.
CARTA sobre a repartição das aldeias, que se encarreguem tanto a Missionários religiosos,
como a clérigos seculares. 22 de Outubro de 1736. ABN, 1908, vol. 28:279.
CARTA de 8 de Março de 1693, sobre vários pontos a respeito dos Índios, e Jurisdição
que neles tem os Missionários no espiritual, e os Capitães Mores no temporal, e outras
circunstancias. ABN, 1908, vol. 28:265.
CARTA RÉGIA ao Governador do Maranhão sobre mandar continuar o descobrimento
do rio Paraguaçu em cujos Sertões ha muitas diversas nações de gentio. 1° de Dezembro
de 1677. Livro Grosso do Maranhão. ABN, 1ª Parte, vol. 66:41-2.
CARTA RÉGIA ao Governador do Maranhão Sobre a noticia que se teve de andarem os
Paulistas com as suas tropas vizinhas a Capitania do Pará eficaz remédio para a extinção
dos Tapuyas, se diz ao Governador continue na resolução de conservar os índios naquele
lugar onde estão situados. Lisboa a 3 de Dezembro de 1692. Livro Grosso do Maranhão,
1ª Parte. ABN, vol. 66:134-5.
CARTA RÉGIA a Antônio Albuquerque Coelho de Carvalho, Governador do Maranhão
sobre se lhe agradecer o cuidado no descobrimento da estrada daquele Estado para o

303
Brasil. Lisboa 9 de Janeiro de 1697. Livro Grosso do Maranhão, 1ª Parte. ABN, vol.
66:164-5.
CARTA RÉGIA ao Governador do Maranhão sobre as datas da terra de sesmaria se lhe
ordena as deve dar na forma que lhe está ordenado. Lisboa em 9 de Janeiro de 1697. Livro
Grosso do Maranhão, 1a Parte. ABN, vol. 66:166.
CONSULTA ao Conselho Ultramarino sobre a criação de 6 curatos – Bahia – 1695-1696 –
1724-1732. ABN, 1950, vol. 90:8.
DEPOSIÇÃO de Mendonça Furtado, Governador de Pernambuco – ano de 1666. ABN.
vol. 58:119-21.
MEMÓRIA de Miguel Nunes de Mesquita, o Conde dos Arcos e Francisco Pereira da
Silva, anexa à Consulta do Conselho Ultramarino sobre o estado das Missões no Certão da
Bahia e informando acerca dos remédios apresentados provenientes da falta de Parochos e
Missionários, Lisboa 18 de dezembro de 1698. ABN. Rio de Janeiro, Volume 31:23.
(Acioli, 1937, vol.V:314-334).
ORDEM RÉGIA para D. Fernando Martins Mascarenhas de Alencastre, proibindo o
trafego de pessoas, gado e mantimentos pelos sertões entre Pernambuco e as Minas de São
Paulo. Lisboa 7 de fevereiro de 1701. ABN, 1908, vol.28:85.
ORDEM RÉGIA de 1667 proibindo a permanência no Brasil de religiosos da Ordem de
São Francisco das Ilhas dos Açores “que haviam ausentado de sua obediência”. Lisboa 3
de Setembro de 1667. ABN. 1908, Vol. 28:34.
PARECER de João Peixoto Viegas de 1687 sobre a crise econômica na colônia. ABN,
1950, vol. 20. (DH. vol 89:II).
REGIMENTO de treze artigos promulgado pelo Vice-rei Conde de Obidos em 1° de
Outubro de 1663, onde se reúnem as atribuições dos Capitães-mores como delegados dos
governadores. ABN. Vol. 4:136-45, (DH, vol. 4, 118-25), e (D.H. vol.5, 374-84).
REGIMENTO do Governador de Pernambuco para regular a ação dos Capitães Mores
em sua jurisdição. Carta Régia de 5 de Outubro de 1706. ABN, 1908, vol. 28:188-9.
SOBRE NOTIFICAR aos prelados das religiões para que se occupem da propagação da fe
e conversão do gentio. Lisboa, 15 de Março de 1687. ABN, 1908, vol. 28:265.

Biblioteca Nacional - Série Documentos Históricos.


CARTA de Mathias da Cunha ao Bispo de Pernambuco de 14 de Outubro de 1688. DH,
vol. 10, 1929:322;
CARTA do Governador Luiz Gonçalves da Câmara para o Capitão mor do Rio Grande.
DH, vol 10, 1929:415;
CARTA ao Governador da Bahia de 15 de março de 1688. DH, vol 68:216-7.
CARTA Régia para João Tavares de Almeida, 02 de Outubro de 1673. DH, vol. 4:182.
CARTA de João de Lencastro para o Governador de Pernambuco, de 21 de maio de 1695.
DH, vol. 38:339.

304
CARTA de João de Lencastro para o governador do Maranhão, 16 de Julho de 1695. DH,
vol 38:342-4.
CONSULTA do padre jesuíta João Guedes ao Conselho Ultramarino. 12 de março de
1720. DH, 1953, vol. 99:122-125.
CONSULTA ao Conselho Ultramarino de 18 de março de 1681. DH, vol. 88:204-07;
(Nantes, [1706], 1979:108-9, nota n° 8).
ORDEM de Alexandre de Sousa Freire, 06 de Dezembro de 1668. DH, vol. 7:380-2.
PATENTE de Capitão-mor da jornada que se faz às Aldeias da Natuba, provido em
Domingos Rodrigues de Carvalho de 20 de Outubro de 1677. DH, 1929, vol.13:17-21.
PROPOSTA de Alexandre de Souza Freire tomada em assento no dia 4 de março de 1669,
DH, vol. 3:205-16.

Fontes Primárias impressas (II)


ANCHIETA, José de. Informação dos primeiros aldeamentos da Baía, in: Cartas, fragmentos
históricos e sermões (1554-1594) Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, Edição da
Academia Brasileira de Letras. 1933.
______. “Carta do Padre José de Anchieta ao Geral Diego Laynez”, São Vicente, 16 de
Abril de 1563, in RIHGB, tomo II, p246.
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referencia: Jerônimo Mendes da Paz etc., anexo à carta do chanceler José Carvalho de
Andrade para Francisco Xavier de Mendonça, Bahia, 1 de Agosto de 1761. Documento
5.352. Cf. Inventário dos Documentos Relativos ao Brasil existentes no Archivo de Marinha e Ultramar
de Lisboa, por Eduardo Castro e Almeida, p444 a 454. Texto publicado por Braz do Amaral
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provenientes da falta de Parochos e Missionários, Lisboa 18 de dezembro de 1698. Tem
anexo uma representação anônima e a informação do Secretário do Conselho Ultramarino,
Roque Monteiro Paim, sobre as quais versou o parecer do mesmo conselho. ABN. Rio de
Janeiro, vol. XXXI, p23. Publicado também por Braz do Amaral nos comentários às
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reino e da América que casarem com Índias não ficam com infâmia alguma. AHU. Cód.
103:28; (Almeida. 1967. (IHGB, 1963. vol. III:92); (Silva, 1830:367).
CARTA de LEI de 10 de setembro de 1611, “declara a liberdade dos gentios do Brasil, excetuando
os tomados em Guerra Justa”. (Andrade e Silva, Vol. I:309-12).
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Pernambuco, 14 de Agosto de 1670. AHU, cód. 169:37 v./43 (ABN, 1908. vol. XXVIII:4-
5).
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ALVARÁ sobre ter cada missão de indígenas uma légua de terra em quadra de 23 de
novembro de 1700. AHU. (Registro de Provisões) cód. 95:91v/92; (ABN, 1906, Vol.28).
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29:221-2. Apud (Regni, 1988, vol. I:125).
ALVARÁ com FORÇA de LEY que restitui aos Índios do Grão-Pará a liberdade de suas
pessoas, bens e comércio, e que sejam governados no temporal e no espiritual pelos
Governadores e ministros, e pelos seus principaes, e justiças seculares, com inhibição das
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321
322
Abstract
The government of the soul: colonial expansion into the Tapuia’s country
between 1651 and 1798
For a long time in Brazilian historiography the native peoples were
represented as passive subjects, mere spectators of the historical process,
socially unable to express themselves in the face of the power of the
expansionist movements. This stigmatic vision was utilised ideologically to
nourish the long-standing tutelary policy in Brazil. Ethno-history has
offered critical narratives about the colonial expansion from a broader and
more complex point of view, highlighting the perspective of the native
peoples and recuperating their status as historical partners in the colonial
process. The aim of this Tesis is to study the the colonial expansion into the
territories of the native peoples, inhabitants along the São Francisco River
in the Brazilian Northeast during the 17th century, denominated generically
as "Tapuia Peoples" or "Barbarous Peoples". The main focus is on an analysis of
the colonial action and on the strategies of alliances and negotiated losses
utilised by these peoples in order to deal with the territorialisation process
instituted by the colonial movement inland on the traditional Tapuia
dominions. The research is limited chronologically between 1651 and 1798,
a period that includes the beginning of the "Barbarous Wars" and the end of
the “Pombaline” policy that secularised the missions, transforming the
indigenous villages into villas and marking the incorporation of the "Tapuia
Country" to the Brazilian State.
Resumo
O Governo das Almas: expansão colonial no país dos Tapuia entre 1651 e
1798
Os povos nativos figuraram por longo tempo na historiografia brasileira
como sujeitos passivos, meros espectadores do seu processo histórico,
desabilitados socialmente a se articular em frente ao poder dos movimentos
expansionistas. Esta visão estigmática foi utilizada ideologicamente para
alimentar uma política tutelar de longa tradição no Brasil. A etno-história
tem oferecido narrativas críticas que abordam a expansão colonial de um
ponto de vista mais amplo e complexo, destacando a perspectiva dos povos
nativos e recuperando seu status de parceiro histórico no processo colonial.
A tese tem por objetivo estudar a expansão colonial nos domínios
territoriais dos povos nativos habitantes do Rio São Francisco no Nordeste
brasileiro, abrigados no genérico identitário de “Povos Tapuias” ou “Povos
Bárbaros”. A atenção principal volta-se para análise da ação colonial e das
estratégias de alianças e perdas negociadas, utilizadas por estes povos para
lidar com o processo de territorialização instituído pela interiorização do
processo colonial sobre os domínios tradicionais Tapuias. A pesquisa limita-
se cronologicamente entre 1651 e 1798, período que compreende o início
das “Guerras dos Bárbaros”, no recôncavo baiano, e o finalo da política
pombalina, que secularizou as missões transformando as aldeias em vilas e
marcando a incorporação do “País dos Tapuias” ao Estado brasileiro.

324
Samenvatting
Het bestuur der zielen: de koloniale expansie in het land van de
Tapuia tussen 1651 en 1798

Vanaf het begin van de kolonisatie van Brazilië werden de bewoners


van het binnenland, ondanks hun diverse etnische achtergrond, generiek en
zonder onderscheid als ‘Tapuia’ aangeduid, dit vanuit de tegenstelling met
de aan de kust wonende Tupi sprekende bevolking. Deze studie richt zich
op de Portuguese koloniale expansie in een gedeelte van het door ‘Tapuia’
bewoonde gebied: de oevers van de São Francisco rivier in het
noordoosten van Brazilië. De conventionele Braziliaanse geschiedschrijving,
die diende om de traditionele sterk bevoogdende politiek ten opzichte van
de inheemse volken ideologisch te onderbouwen, beschreef deze laatste
lange tijd als passief, als lijdzame voorwerpen van het Portugese
expansieproces, sociaal niet toegerust om zich zelfstandig te handhaven.
Om deze aannamen te bestrijden, begon een nieuwe geschiedschrijving van
de Indiaanse volkeren in Brazilië aan het einde van de 20e eeuw gebruik te
maken van instrumenten ontleend aan de ethno-historie. Op basis hiervan
werden nieuwe denkrichtingen ontwikkeld, die de koloniale expansie
benaderen op een manier die ruimte biedt voor het een actieve rol van die
volkeren in het historisch proces.
Het onderzoek beperkt zich tot de periode 1651-1798, vanaf het
begin van de ‘Guerras dos Bárbaros’, de ‘oorlogen tegen de barbaren’ in de
Recôncavo van Bahia tot aan het einde van de door Pombal in het midden
van de 18e Eeuw doorgevoerde secularisering van de missieposten, waarbij
de indiaanse dorpen, de ‘aldeias’, omgevormd werden tot onder de staat
vallende ‘vilas’, waarmee het gebied van de Tapuia ingelijfd werd in de
Braziliaanse staat. De studie richt zich met name op een analyse van de
koloniale aanpak en de strategieën die de inheemse volkeren gebruikten om
zich zoveel mogelijk staande te houden binnen het door de koloniale
expansie opgelegde proces van landtoeëigening.
De Portugezen vestigden zich eerst langs de kust van Noordoost
Brazilië, waar ze hun sterkste machtsbasis vestigden. Hier stichtten ze in de
16e eeuw de eerste koloniale vestigingen gebaseerd op de suiker economie.
Aan het einde van deze eeuw verspreidde de veeteelt, een ondersteunende
activiteit van de suiker economie, zich via Bahia naar de vallei van de São
Fransisco. Deze ontwikkeling werd echter bijna een halve eeuw vertraagd
door het constante verzet van de inheemse bevolking van de Bahiaanse

325
Recôncavo en door de verovering van de suikerproducerende gebieden
langs de kust door de Nederlandse West Indische Compagnie in 1630.
Het was de veeteelt die de impuls gaf aan de expansie naar de
sertões, de achterlanden, waardoor de grenzen van koloniaal Brazilië naar
het Westen verlegd werden. Deze economie schiep nieuwe bronnen van
inkomsten, die de armlastige kas van de Portugese kroon, mede veroorzaakt
door de teruggang van inkomsten uit de suikerproductie langs de kust, weer
konden aanvullen. De São Fransisco rivier was door de strengheid van het
woestijnachtige klimaat en de afwezigheid van enige infrastructuur de enige
manier om tot de binnenlanden van de kolonie door te dringen, hetgeen
deze rivier de titel opleverde van ‘rivier van nationale integratie’. Langs haar
loop werden de eerste boerderijen en missies in deze streek gevestigd als
voorposten en steunpunten voor de kuddes vee die zich bewogen tussen de
Recôncavo van Bahia en de Sertão de Rodelas, een streek die zich
oorspronkelijk uitstrekte van de waterval van Paulo Alfonso tot de
samenvloeing van de São Fransisco met de Rio Salitre. Het land langs de
rivier was van strategisch belang en vormde een bron van prestige en
politieke macht voor degenen die haar beheersten. De Portugese kroon
begreep dat grote investeringen nodig waren om deze uitgestrekte gebieden
op een doelmatige manier te veroveren en te bezetten. Om de koloniale
bezetting te verwezenlijken werden grote gebieden onder de titel van
sesmarias verleend aan hen, die het op zich namen om ze te veroveren en
productief te maken. Het bovengenoemde gebied kreeg de familie Dias
d’Avila, senhores da Casa da Torre (de heren van het Huis van de Toren)
toegewezen. Deze politiek maakte de ontsluiting van het binnenland
mogelijk en leidde tot de vorming van een elite van landheren met een
sterke politieke vertegenwoordiging in het 17e eeuwse Brazilië.
Deze expansie ondervond echter een constante tegenwerking vanuit
de inheemse bevolking en was alleen uitvoerbaar door het sluiten van
bondgenootschappen tussen de veroveraars en delen van de plaatselijke
bevolking. Alleen op die manier was het consolideren van van beschermde
voorposten mogelijk. Meer dan een halve eeuw voor de komst van de eerste
Portugese pioniers in deze sertões hadden groepen Tupi indianen die langs
de kust van Pernambuco, Bahia en Rio de Janeiro woonden en die gevlucht
waren voor slavenjagers, zich na het verlaten van hun woonplaatsten en het
afleggen van grote afstanden, gevestigd in de sertão de Rodelas, midden in
het gebied van hun traditionele vijanden de ‘Tapuia’. De eerste Portugese
veeboeren sloten hun eerste verbonden met deze volkeren, die van de kust
gevlucht waren en combineerden zo de kracht van de blanke militaire
superioriteit met die van het inheemse getalsmatige overwicht.

326
Deze eerste verbonden stonden aan de wieg van de Portugese
aanwezigheid in het binnenland en openden de deur voor diverse andere
allianties, die zich gedurende het koloniale expansieproces vormden. Deze
verbonden schiepen in de loop der tijd een wijze van samenleven die het
gebruik van de ruimte door blanken en inheemsen ordende. Een veel
voorkomend gebruik, dat deze relatie goed weergeeft is de leefgemeenschap
waarin indianen die geen dorp hadden zich mochten vestigen naast de
veebedrijven, waar zij werkten als wachtposten en veehoeders in ruil voor
de militaire bescherming die de veeboeren hun boden tegen hun plaatselijke
vijanden.
Het verbond dat echter het meest diepgaand verandering bracht,
was dat van de sexuele relaties tussen indianen en blanken: er ontstonden
familiebanden, waardoor een nieuwe gemengde mestiezen samenleving
onstond. De missionarissen, die met enige vertraging in het kielzog van de
eerste kolonisten kwamen, arriveerden pas toen reeds vele paren als
gehuwden samenwoonden.
De priesters verwierpen deze verbintenissen omdat de indiaanse,
meestal vrouwelijke partners nog niet gekerstend waren en bovendien werd
het heilig sacrament van het huwelijk overtreden. Hun vervolging van het
concubinaat, dat zij een publieke zonde noemden, wekte de afkeer van
blanken en indianen op. Toen de missionarissen politiek actief werden in de
nederzettingen, die onder de invloedssfeer van de landheren vielen, riepen
zij de vijandschap van deze over zich af wat. Uiteindelijk leidde dit tot hun
uitzetting en de verwoesting van de kerkelijke bezittingen in de sertões van
de São Francisco.
De landheren verwierven in de loop der tijd rijkdommen en hun
macht wedijverde in de achterlanden met die van de kroon. De kroon
reageerde aan het einde van de 17e eeuw met een aantal maatregelen, die
leidden tot wat wij de instelling van een civiel bestuur noemen: vestiging van
gerechtelijke instellingen, vorming van gemeentes, die de burgerlijke
bevolking rondom de seculiere kerk verenigden en bovenal de afkondiging
van een nieuwe wetgeving met betrekking tot het grondbezit. De privileges,
die de staat verleend had aan de sesmeiros werden vervallen verklaard en
daarmee werd deze vorm van grootgrondbezit in feite opgeheven. Het werd
in de eeuw erna ontmanteld en in het begin van de 19e eeuw resteerde van
de bezittingen van de Casa da Torre en andere koloniale ondernemingen
nog slechts een smalle strook land langs de bedding van de São Francisco.
De verarming van de landheren ging samen met de neergang van de veeteelt
in de sertões, waarmee een einde kwam aan een cyclus van voorspoed.

327
De allianties en verbintenissen tussen indianen en blanke veeboeren
schiepen de bevolking die nu sertanejo genoemd wordt: afstammelingen van
degenen, die in het begin en in de loop van de kolonisatie op en rond de
veebedrijven samenleefden. Deze samenlevingsverbanden maakten de
opkomst mogelijk van een nieuw soort van bevolking die mede voortkomt
uit de matrix van de inheemse tapuia, met voor de tegenwoordige bewoners
van de ‘sertões’ van de S.Fransisco als kenmerken een geest van strijdlust,
trots en doorzettingsvermogen. De hedendaagse sociale bewegingen in de
sertão voor erkenning van de indiaanse identiteit , die door de culturele
antropologie als ethnogenese worden gezien, zijn het meest opvallende
bewijs dat de Tapuia bevolking het Braziliaanse koloniseringsproces
overleefd heeft.

328
Lista de Figuras
Figura 1 Le Bresil. do Atlas de N. Sanson d’Abeville, 1657................................ 014
L’Amerique em plusieurs cartes, & em divers traittés de
geographie, et d’histoire. Par N. Sanson d’Abbeville, Geographe
ordinaire du Roy. A Paris, ches l’autheur, Dans le Cloistre de
Sainct Germain de l’Auxerrois joignant la grand ported u Cloistre.
MDCLVII (1657).
Figura 2 Sertão de Rodelas ..................................................................................... 017
Figura 3 Tapuia colhendo caju, xilogravura. ....................................................... 055
André Thevet, Les Singularitez de La France Antarctique ... 1558.
Figura 4 Localização aproximada dos povos dispersos no território do
Piauí, de acordo com as indicações do padre Miguel do Couto. ....... 061
Publicado em Sobrinho, Barbosa Lima. (1946). O devassamento do
Piauí. Brasiliana, Vol. 255. Rio de Janeiro, Cia. Ed. Nacional.
p104-105.
Figura 5 Búzio utilizado para chamar gado. ........................................................ 065
Coleção Luiz Antonio Daniel Viana.
Fazenda Salão – Canindé – Ceará
Figura 6 Mapa da dinâmica de fuga dos povos do litoral século XVI.............. 071
Figura 7 Ataque dos Tamoio na insula do Rio de Janeiro. ............................... 073
Imagem alegórica da passagem de Oliver van Noord
na Bahia da Guanabara em 1598.
Helmut Andra e Edgard Cerqueira Falcão. Americae
Praeterita Eventa. São Paulo, 1966. Ed. Univ São Paulo, p 229.
Figura 8 Mascara de fibra de caruá ....................................................................... 090
“Praiá Mestre de ouro”, índios Pankararu de Tacaratu, Pernambuco.
Figura 9 Antropomorfo moldado em cera de abelha. Petrolina ....................... 093
Col. Laboratório de arqueologia da UFPE
Figura 10 Figura 10 - Índias dançando em círculo: O “Thierbuch.” 16- - ............ 095
Figura 11 Danças de negros em Pernambuco.. .................................................... 096
Waegner, Zacharias. Escravos negros dançando e tocando
instrumentos. O “Thierbuch”.16 - -.
Figura 12 Sepultamento de um chefe Coroado. Jean-baptiste Debret. [1834-39]....... 100

329
Figura 13 Mapa da expansão dos núcleos coloniais via rio São Francisco e
caminhos e estradas abertos pelas frentes de expansão a partir de
1655............................................................................................................ 125
Figura 14 Gravura de um panfleto holandês anterior à 1624 mostrando
tropas se deslocando pelo interior, da Bahia para Pernambuco. ...... 128
Reysboeck van het Rycke Brasilien.(Diário de Viagem do Rico
Brasil), N. Geelkerken, (RIHGB. Vol. 303, 1974:181-224).
Figura 15 Principais assentamentos missioneiros do rio São Francisco e
adjacências................................................................................................. 168
Figura 16 Cachoeira de Paulo Afonso, Frans Post 1649.
Museu de Arte de São Paulo Assis Chateabriand................................ 171
Figura 17 Rio São Francisco. .................................................................................. 172
Teixeira Albernaz, João [1616] Rezão do Estado do Brasil, (C.1616).
Códice 126 da Biblioteca Pública Municipal do Porto.
Figura 18 Vaqueiro tangerino com indumentária de couro cru. ....................... 232
Pintura de Charles Landsser, 1885.
Col. Cândido de Paula Machado
Figura 19 Matuto a cavalo com um trabuco amarrado ao celim. ....................... 282
Desenho e litografia de François René Moraux editado por Heaton &
Companhia Rensburg, Rio de Janeiro, 1842. Col. Biblioteca Nacional.
Coleção Gilberto Ferrez e outros.

330
Glossário de termos históricos coloniais
A
Adjudicar
Do latim adjudicare. Conceder a posse de (qualquer coisa), por decisão ou sentença
de autoridade judicial ou administrativa; considerar como autor, causa ou origem;
atribuir; vincular, ligar; confiar, conferir, entregar; incumbir. Chamar, atribuir,
arrogar a si; atribuir-se, arrogar-se.

Adjutor
Do latim adjutore. Aquele que ajuda ou adjutora; ajudante.

Agregado:
Brasileirismos: Aquele que vive numa casa como, por exemplo pessoa da família;
Pessoa que vive maritalmente com outra; criado, serviçal; lavrador pobre
estabelecido em terra alheia mediante certas condições; no Nordeste, aquele que
vive em fazenda ou engenho alheio, cultivando certa porção de terra e prestando
serviço ao proprietário alguns dias por semana, mediante remuneração; morador;
em São Paulo, aquele que vive em fazenda ou sítio, prestando serviços avulsos,
sem ser propriamente um empregado.
O termo ‘agregado’ foi usado no Nordeste do Brasil colonial para qualificar índios
desaldeados que se encontravam associados às casas e fazendas de colonos.

Almesega:
Resina de aroeira ou de lentisco amarelado, que se usa em mistura de tintas e como
condimento: mástique. Popularmente identifica uma espécie de goma.

Angélico:
[Angélica] Qualquer espécie desse gênero como, por ex., a Angelica archangelica,
odorífera, originária da Europa, de propriedades medicinais e cujo caule é usado no
fabrico de licores e em confeitaria.

Atanado:
Denominação genérica para toda sorte de couro curtido com casca de angico ou de
outras plantas que concentram tanino.

B
Bufarinhas:
Objetos pouco valiosos, vendidos pelos negociantes ambulantes; bugigangas.

331
Braiado:
termo utilizado pelos Pankararu, em Pernambuco para identificar índios
mestiçados com brancos. Possivelmente a palavra é uma corruptela do termo
‘branquiado’, ou tornado branco.

C
Caatingas Gerais:
Nome que se dá ao mato continuado, inferior e sem águas (Descrição do Piauí,
1772)

Cabildas = cabido.
Do latim capitulu. Conjunto ou corporação dos cônegos de uma catedral ou
qualquer outra corporação ou assembléia.

Cafurna:
Antro, cova, caverna, esconderijo; Habitação miserável

Cafre:
Nome dado pelos islamitas aos gentios e idólatras, e por extensão, aos negros
pagãos da África oriental; aplica-se, sobretudo, às populações bantas de
Moçambique, da África do Sul e dos demais países do sudeste da África. O natural
ou habitante da Cafraria, denominação que, no passado, se dava à região entre o
rio Kei e os limites da província de Natal, na África do Sul; Pessoa rude, bárbara,
ignorante.

Clavina.
Derivado de clabina, crabina ou carabina. Do francês. carabine. Espingarda
estriada; fuzil. Observa-se também as variações clavina, cravina.

Concubinato
Do lat. concubinatu. Estado de quem tem ou é concubina ou concubino; amasio,
comborçaria. Forma de união conjugal socialmente reconhecida, que implica uma
série de direitos e deveres mais ou menos bem determinados, e considerada
distinta do casamento, segundo critérios que podem variar conforme a sociedade.

Comensalismo
Derivado da composição comensal + ismo. Relação entre dois tipos de
organismos, na qual um deles, o comensal, recebe benefício, sem que o outro seja
prejudicado.

Copaíba:
[Do tupi.] Árvore frondosa da família das leguminosas (Copaifera langsdorfii), de
madeira avermelhada us. em marcenaria, produz um óleo medicinal espesso,
viscoso.

332
Corso
Do latim cursu, 'ação de correr'. Vida errante de povos não subjugados à ordem
cristã colonial. Eram insubmissos e não respeitavam a propriedade alheia e
se mantinham com o fruto do que tomavam nas fazendas por onde passam.

Couto
Couto, do latim cautu. Lugar onde se podiam asilar os criminosos, onde não
entrava a justiça do rei; Asilo, refúgio, valhacouto.

Cutelo
Do latim cultellu. faquinha. Instrumento cortante, semicircular, de ferro. Utensílio
especial para cortadores e fabricante de correias e de outras obras de couro. No
Cabo-verde observa-se o termo aplicado a um Morro ou outeiro.

Cuscuz:
[Do árabe kuskus.] Iguaria feita de farinha de milho (em geral graúda), cozida ao
vapor

D
Doblas:
doblas, oitavas, cruzados, dinheiros antigos

Devassa
Peça jurídica resultante de sindicância para apurar um ato criminoso. Processo que
encerra as provas de um delito.

Derrota
descrição circunstanciada de uma jornada contendo notação do tempo gasto e as
distâncias percorridas, usada inicialmente para registrar viagens marítimas

Diretório Pombalino
Do latim directoriu. Livro que contém as indicações necessárias para o desempenho
de determinado cargo ou para a execução de certos negócios. Livro que indica os
ofícios de cada dia do ano litúrgico. O termo Diretório Pobalino aplica-se no Brasil
ao conjunto de atos reais promulgados na segunda metade do século XVIII que
resultou na legislação que regulou, entre outras coisas, a secularização das missões,
a transformação de aldeamentos em vilas e a integração forçada de grandes
contingentes de nativos a uma camada civil livre de tutela religiosa.

Dote
Do latim dote. Conjunto de bens que a mulher recebe de ascendentes ou de
terceiros ao casar-se. Também aplicado aos bens que a freira leva para o convento.
Na terminologia jurídica corresponde aos bens incomunicáveis que a mulher, ou
seus ascendentes ou terceiros, transfere ao marido, para com os frutos e

333
rendimentos deles o ajudar na satisfação dos encargos econômicos do matrimônio,
sob a cláusula de restituição de tais bens se houver dissolução da sociedade
conjugal.

E
Emolumento.
Do latim emolumentu. Lucro, proveito; retribuição, gratificação; rendimento dum
cargo, além do ordenado fixo.

Esteira:
[Do espanhol estera, do latim storea.] Tecido de junco, esparto, taquara, etc., feito
de hastes entrelaçadas, usado para tapete, revestimento de paredes, etc.

F
Fâmulo
Do latim famulu. Criado, servidor por extensão indivíduo servil, caudatário. Clérigo
ou leigo a serviço da residência episcopal; empregado de casas religiosas ou
canônicas, que nelas vive; fiel. Observa-se também as variação famular. Também
do latim famulare atribuído aquela pessoa que serve como fâmulo ou ainda aos que
se ajudam ou se auxiliam reciprocamente.
O termo variou da palavra latina familiare ou familiar. Quer referir-se ao sentido
doméstico atribuído àquelas pessoas que pertencem ao cotidiano íntimo de grupos
familiares. Aplica-se também a indivíduos não nascidos nestes grupos mas que a
ele se agregaram posteriormente. Ver verbete agregado. O termo também foi
utilizado para indicar o membro de confraria religiosa que no Santo Ofício agregou
o valor daqueles fiscais meirinhos da Inquisição.

Foro: Quantia ou pensão que o enfiteuta de uma propriedade paga anualmente ao


senhorio direto a título de despesa habitual obrigatória pelo uso ou privilégio
garantido pelo tempo ou pela lei.

G
Gado
Reses em geral, rebanho. Aplicado de modo restrito ao gado bovino.
Gado: de arribada: o que fica para trás numa boiada em trânsito;
de cabeceira: o melhor, o escolhido;
de curral: vacas de leite e os bezerros duma fazenda;
de solta: os novilhos, bois, touros e vacas que vivem soltos nos pastos de
uma fazenda;
grosso: eqüinos e bovinos;
miúdo: suínos, os caprinos e os ovinos ou ovelhuns. Ver verbete meunça.

Gabela:
Do francês gabelle: imposto, receita; imposto sobre o sal.

334
H
Homizio:
Do latim homicidiu. Ato ou efeito de homiziar-se. Esconderijo, valhacouto. Na
antiguidade homicídio, crime que pelas leis antigas era punido com a morte ou
desterro.

Homiziado
Do arcaico homizio, o homicida que fugia à ação da justiça, buscando guarida de
onde deriva homiziar ou seja dar guarida, abrigo, refúgio, ou homizio aquele que se
esconde da vigilância da justiça. Termo também utilizado para descrever o ato de
indispor, inimizar, malquistar, intrigar.

J
Juiz de fora:
Magistrado brasileiro do tempo colonial; Ouvidor Letrado, juiz formado opor
escola de direito.

L
Legítima
Parte da herança reservada por lei aos herdeiros necessários (descendentes e
ascendentes), e da qual, portanto, não se pode dispor livremente.

M
Malhada
Curral de gado; lugar sombreado por grandes árvores, onde o gado costuma
proteger-se da soalheira; malhador onde se reúne comumente o gado, para ser
trabalhado. . No Piauí refere-se ao lugar de várzea úmida, onde cresce vegetação
análoga à dos agrestes, com predomínio de palmeiras. Na Bahia o lugar onde o
gado costuma dormir, em lotes geralmente um área gramada em frente da casa nas
fazendas de criação da caatinga.

Matalotage
Do francês Matelotage. Provisão de mantimentos para a marinhagem ou para outras
pessoas que embarcam, provisão de víveres; matula. Foi utilizada no português
arcaico para designar suprimentos como carne e peixe desidratados, farinha,
pólvora e chumbo; munição de boca.

Mazombo:
Designativo de natural nascido no Brasil, filhos de pais estrangeiros, especialmente
portugueses. Também usado no depreciativo para identificar o indivíduo
macambúzio, sorumbático, mal-humorado.

335
Mercê
Do latim mercede. Originalmente Mercê referia-se a graça divina alcançada em virtude
de merecimento espiritual. Em Portugal o termo ganhou outro conteúdo
semântico, agregou valores de preço ou de recompensa por trabalho; remuneração
paga; favor, graça, benefício; bom acolhimento; benignidade, indulgência,
benevolência; remissão de culpa; perdão, indulto, graça. No Brasil colonial a prática
da concessão de mercês reporta-se a política clientelista de arrebanhar-se
associados mediante nomeação para emprego público; provimento em cargo
oficial; concessão de títulos honoríficos e possessões de terras. historicamente a
concessão de mercês foi entendida como sinal de status e poder, capricho e
arbítrio de senhores de terras, altos funcionários da burocracia colonial e nobres
afazendados.

Meunças
gado miúdo. Variação de miunça, do latim minutia, pequena porção ou fragmento;
miuçalha. No Nordeste do Brasil é a designação dada pelos sertanejos para os
gados caprino e ovelhum.

Monção:
De uma forma arcaica moução, do árabe mawsïm, ‘temporada’, ‘estação do ano’;
‘aquilo que se dá em certo período ou estação’; ‘festa’, ‘feira’, ‘safra’.]; Época ou
vento favorável à navegação; Vento periódico, típico do S. e do S.E. da Ásia, que
no verão sopra do mar para o continente (monção marítima) e no inverno sopra
do continente para o mar (monção continental); Brasileirismo. Qualquer das
expedições que desciam e subiam rios das capitanias de SP e MT, nos sécs. XVIII
e XIX, pondo-as em comunicação.

Morgado
Do latim vulgar maioricatu [maio-oricare maiore = mais velho]. Filho primogênito
ou herdeiro de possuidor de bens vinculados. Também aplicada genericamente
para designar propriedade ou conjunto de bens vinculados que não se podiam
alienar ou dividir, e que em geral, por morte do possuidor, passava para o filho
mais velho. O possuidor desses bens era também chamado de Morgado. O termo
era utilizado populramente para designar figurativamente coisa muito rendosa.
Morgadio
Derivado de morgado relativo ou pertencente a morgado. Bens de morgado.
Qualidade de morgado.

Morgada
Qualidade de morgado. Gíria brasileira que qualifica pessoa de pouca atividade,
adormecido; cansado, sonolento; indisposto.

336
N
Negros
Negros chamavam os portugueses não somente aos africanos, mas a qualquer de
raça diferente, baço de tez – etíopes, índios, malaios, chinos, americanos.

P
Passal
De passo + -al. Local público; terreno cultivado, anexo à residência de um pároco
ou de um prelado e pertencente a ela.

Patente
Do latim patente. Carta ou documento que atesta designação para posto militar por
privilégio legal concedido pelo rei

Pau violeta:
Em tupi: garabu. Madeira de cor violeta, usada para tinturaria. Árvore da família
das leguminosas, subfamília cesalpinácea (Peltogyne discolor).

Passo:
Antiga unidade de medida de comprimento, equivalente a cinco pés, ou seja,
1,65m.

Pé:
Antiga unidade de medida de comprimento anglo-saxônica, equivalente a 12
polegadas, cerca de 30,48cm do sistema métrico.

Pecado público
Transgressão de preceito religioso pela não observância do sacramento católico
celebrado na presença de uma autoridade religiosa. Diz-se em pecado público de
pessoas que vivem em união carnal como marido e mulher sem casamento, e
outras transgressões como a poligamia e concubinato.

Piaçava:
[Do tupi.] Piaçaba. Designação comum a várias palmeiras que fornecem fibras
úteis para o fabrico de vassouras, etc.

Q
Quartinha:
Ou moringa. [Do quimbundo (Língua banta da Angola) muringi.] Garrafão de barro
para conter e refrescar a água.

337
R
Redução:
Do latim reductione. Ato ou efeito de reduzir-se; diminuição; ato ou efeito de
subjugar. O termo reduzir (da derivada latina reducere) é encontrado na literatura
epistolar dos missionários designando o ato de reduzir à vassalagem do rei e ao
grêmio da Igreja. Liga-se à idéia do estabelecimento da soberania sobre os
territórios e povos conquistados, strictu senso, conversão do gentio à vassalagem do
rei e ao grêmio da Igreja.

Rendeiro
Aquele que arrenda propriedades rústicas; censuário que recebe de outrem imóvel
ou dinheiro, obrigando-se a pagar renda periódica.

Resgate
O termo resgate tem sido historicamente usado para identificar pagamento prestado
aos índios, geralmente sob forma de bens manufaturados, em troca de escravos,
amizade, ou em troca de sujeição a “vassalagem Real”. José Antonio Gonçalves de
Melo utiliza o termo ‘nuremberguerias’ que aparece correntemente na documentação
holandesa para identificar um gênero de manufaturados fabricados em Nuremberg
bem aceito no comercio com os nativos. (Mello, 1987:201). Hermann Wätjen
identifica como bens de trocas dos holandeses com os indígenas brasileiros
“fazendas de linho e de lã, tecidos finos e grossos das cores mais variadas, belas plumas,
machados, enchadas, facas, tezouras,coraes, aljofares e outras quinquilharias, cousas estas de que
são os Índios do Brasil tão avidos como os negros da Guiné e de angola”. (Wätjen, 1938:476).
Ver também (Wätjen, 1915:540 e ss).
Rezes
Gado. Termo genérico para designar gado bovino, caprino e cavalar e de modo
restrito ao gado bovino.

S
secular
Relativo a século. Diz-se do clero, ou do padre, que não pertence a ordem ou
congregação religiosa vivendo no século ou que não fez votos monásticos.
Também se entende como negócios relativo ou pertencentes ao Estado em
contraposição ao que se refere ou pertence à Igreja. Noutro entendimento:
temporal, civil, mundano.

secularizar
Ato ou efeito de secularizar-se. Passagem, de religioso, do clero regular para o clero
secular. Tornar secular ou leigo (o que era eclesiástico). Dispensar dos votos
monásticos (frades, freiras). Deixar as funções sacerdotais, ou deixar de pertencer a
uma ordem religiosa.

338
Sesmaria
De sesma ou sêsima (do latim sex, 'seis') antiga medida de comprimento,
equivalente à terça parte do côvado. Refere-se a parcela de terra inculta,
abandonada ou conquistada, que os reis de Portugal cediam a sesmeiros que se
dispusessem a cultivá-lo. Esta antiga medida agrária, ainda hoje é usada no RS,
para áreas de campo de criação. Havia a sesmaria do campo (que perdura) e a
sesmaria do mato. A légua de sesmaria tem 3.000 braças, ou 6.600 metros que
conserva a medida da sêsima.

Sola:
[Do lat. vulgar sola, (que substituiu o latim clássico solea)] Couro curtido de boi,
para calçados, bolsas, etc.

T
Taboado:
[Do lat. tabula, por via popular.] Denominação genérica para peças de madeira
plana.

Terço
Do latim tertiu. Antigo corpo de tropas. Na ausência do estado colonial, os
senhores de terras desenvolveram nos sertões uma complexa estrutura de defesa
privada; regimento de soldos pagos e postos regulares de infantaria, em teoria essas
estruturas eram reguladas pelos regimentos das Ordenanças e das Fronteiras,
seguindo o molde das ordenanças medievais portuguesas.

Tupinambá
Tupinambá é o tupi arcaico que era falado na costa do Brasil á época da chegada
dos portugueses.

Tremossos:
(tremoços) Sementes de planta leguminosa, papilonácea, cujas vagens dão grãos
que depois de curados são comestíveis.

V
Vermelho:
Qualificativo utilizado correntemente no século XVIII para designar,
genericamente mestiços e índios desaldeados. Segundo Antônio José de Morais
Durão, Ouvidor do Piauí em 1772. “Vermelho se chama na terra a todo índio de
qualquer nação que seja”, (Moot, 1975:22). “Eles são de cor amarelada puxando
para o vermelho, é por isso que os brancos chamam eles de vermelhos.” (Nantes,
1702.)

339
Pesos e medidas usados no Brasil colonial
Pesos
Quintal = 4 Arrobas [58,752 kg]
Arroba = 32 Arráteis [14,688 kg]
Arrátel = 459 gramas

Alqueire
Do árabe al-kayl, 'medida (de cereais)'. Antiga unidade de medida de capacidade
para secos, equivalente a quatro quartas [ v. quarta1 (2) ] , ou seja, 36,27 litros.
Alqueire no Pará. Brasil é a medida de capacidade destinada a medir a farinha-
d'água, e correspondente a dois paneiros, ou cerca de 30 quilos. No Brasil aplicado
a unidade de medida de superfície agrária equivalente em Minas Gerais, Rio de
Janeiro e Goiás a 10.000 braças quadradas (4,84 hectares), e em São Paulo a 5.000
braças quadradas (2,42 hectares). Alqueire do Norte do Brasil medida de
superfície, equivalente a 27.225m2.

Arroba = 27 ou 28 libras holandesas (Barleus:42)

Cruzado
Antiga moeda de prata de Portugal. Valia 400 reis. Reis é um plural particular de
Real, antiga unidade monetária portuguesa. O valor era diverso conforme o tempo.
(Rocha Pombo. II, 1966:173).

Côvado
Do latim cubitu. Antiga unidade de medida de comprimento equivalente a três
palmos, ou seja, 0,66m; cúbito.

Onça
Do latim uncia. Antiga unidade de medida de peso, equivalente a 28,691g; medida
de peso inglesa, equivalente a 28,349g; moeda espanhola do valor de 14.672 réis.
Entre os romanos, a 12ª parte da libra, no Brasil, antiga moeda de ouro que
equivalia aproximadamente a Cr$ 0,03.

Quarta
Uma das quatro partes iguais em que se pode dividir qualquer unidade;
Antiga unidade de medida de capacidade para secos, equivalente à quarta
parte de um alqueire (1), i. e., 9 litros, aproximadamente;. Medida inglesa
de capacidade, equivalente a 1,136 litro; Cântaro de barro ou moringa. No Brasil
Porção de qualquer coisa, equivalente a 40 litros. No Brasil Piauí, medida de 72
litros, para cereais e legumes.

340
Medidas
Are
Do francês are. Unidade de medida agrária, equivalente a 100m2 [símb.: a ].

Braça
Do latim brachia, plural de brachiu, 'braço'. Antiga unidade de medida de
comprimento equivalente a dez palmos, ou seja, 2,2m.

Hectare
Unidade de medida agrária, equivalente a cem acres ou um hectômetro quadrado.
No Minidicionário de Silveira Bueno. SP, FDT, 1996, acrescenta[= dez mil metros
quadrados]
Légua
Do latim tardio leuca ou leuga. Antiga unidade brasileira de medida itinerária,
equivalente a 3.000 braças, ou seja, 6.600m; légua brasileira. N.B. Medida linear;
Légua de sesmaria. Brasl antiga unidade de medida de superfície agrária,
equivalente a um quadrado de 3.000 braças de lado, ou seja, 4.356ha.

Segundo autor do “Roteiro do Maranhão a Goiaz pela capitania do Piahui”


(RIHGB, LXII;60-61, 1900) que os habitantes do sertão costumavam demarcar
uma légua antes de atingirem as três mil braças, que era a sua medida legal. Desta
maneira, no geral a distância em léguas era irregular e desigual, isto é, não implicava
em uma referência no seu sentido literal.

As terras de sesmaria, conforme a extensão eram medidas por léguas, milhas


e braças craveiras de duas varas cada uma, com o equivalente a cinco
palmos, ou seja, 1,10m. Estas eram as únicas medidas consideradas legais,
embora muitas vezes constasse de documentos expressões como braças
singelas, em contraposição às braças em quadra. Não havia, no entanto,
nenhuma vara com a dimensão explicada na carta de concessão de sesmaria
a Diogo Álvares, na qual está escrito que "as varas acima conteúdas é cada
uma de duas varas e meio de medir o costumado, por oficie foram medidas,
de que está feito assento por padrão". Segundo Teodoro Sampaio, o vício
dessa carta consistiu na adoção da unidade de medida uma vara que não era
legal, diferente da vara de sesmaria, por onde se faziam as medições nos
termos previstos na legislação e nos forais. Sampaio, 1949, p. 214. No
Recôncavo da Bahia a vara tem 2,20 m e a do interior 2 m. (Bandeira.
2000:66)

341
Légua em Quadra. Conceito:

“Todas as datas, em q- se derão com certas legoas em quadra, são imodicas


(exorbitante, excessivo), e impossíveis de cultivar no termo da ley, excepto as de
duas em quadra, q- contê. quatro léguas quadradas; porq. ja tres legoas em
quadra, q- contem em si nove legoas quadradas, he naturalm.te impossível,
as possa cultivar, e povoar o mais poderoso, e rico homem do Brasil no
termo da ley; e menos quatro em quadra, q- contem dezasseis; e m.to menos
sinco em quadra, que contem 25: q- será em dês em quadra, q. contem
cento; e em 20 q. contem 400; e em 30 q. contem 900, de q. os supp.tes se
queixão; . . .” (Eannes, 1938:313)

légua em quadra légua2 léguas quadradas (4.356 ha.) Hectares


02 04 17.424
03 09 82.764
04 16 69.696
05 25 108.900
10 100 435.600
20 400 1.742.400
30 900 3.920.400

O conceito de légua em quadra deve ser entendido como:


Uma légua linear contém 6.600 metros
Uma légua em quadrada contém 43.560.000 metros (4.356 ha.)

légua em quadra: uma légua vezes ela mesma ao quadrado (veja exemplo
quadro acima)
(légua2 = 3.000 x 3.000 braças [6.600 x 6.600m] = 4.356 ha.)

342
Quadro cronológico dos autores coloniais citados

CRONISTA/AUTOR Período de vida Local de Contato


com índios Século XVI Século XVII Século XVIII
DÉCADA œ = atuação sim não atividade 50 60 70 80 90 00 10 20 30 40 50 60 70 80 90 00 10 20 30 40 50 60 70 80 90
Padre Juan de Azpilcueta Navarro BA 9 Jesuíta 55

Padre Manuel da Nóbrega 1517 1570 BA, SP, RJ 9 Jesuíta 49 70

Pero de Magalhães Gandavo - - Bahia Jesuíta 65 70

Gabriel Soares de Souza 1540 1591 Bahia 9 Sr Engenho 69 91

Fernão Cardim 1549 1625 Espírito Santo 9 Jesuíta 88 98

Padre Fernão Guerreiro 1550 1617 Portugal 9 Jesuíta 00 06

Antônio Araújo SP, BA, PE, MA 9 Religioso? 14

Claude d´Abbeville 1573 1632 Maranhão 9 Capuchinho 12-17

Ambrósio Fernandes Brandão - - PE e PB 9 Sr. Engenho 85 18

Vicente do Salvador 1564 1636 BA, RJ Franciscano 87 27

Johan de Laet 1582 1649 P. Baixos 9 Estudioso 21 44

Cuthbert Pudsey - - PE 9 Comerciante 29 40

Luiz Figueira - - Grão Para e MA 9 Jesuíta 36 46

Elias Herckmans 1596 1644 Paraíba 9 oficial WIC 34-39

Adriaen Jacobsz van der Dussen Pernambuco 9 Oficial WIC 37 44

Gaspar Barléu P. Baixos 9 Literato 37 44

Roulox Baro (Roeloff Baro) 1610 PE, RN 9 Oficial WIC 47

George Marcgrave 1610 1644 Pe, CE, PA, AL 9 naturalista 38 44

Mathias Beck Ceará 9 Oficial WIC 49

Padre Antonio Vieira 1608 1697 BA, PE, MA 9 Jesuíta 33 97

Padre Antônio Pinto BA, PE 9 jesuíta 56

Padre Simão de Vasconcellos 1597 1671 BA, RJ 9 Jesuíta 46 63

Padre Martinho de Nantes BA, PE 9 Capuchinho 71 87

Antônio Luiz G.da Câmara Coutinho - - Pernambuco 9 Func.público 89 90

Padre Miguel do Couto Carvalho - - PE, BA 9 secular 97 15

Padre Ascenso Gago (Affonso Gago) - - Ceará 9 Jesuíta 93-97

Padre Lodovico Vincenzo Mamiani - - BA 9 Jesuíta 98-99

Padre Manuel Correia BA 9 Jesuíta 93

Padre Bernardo de Nantes - - BA, PE 9 Jesuíta 86 02

Frei Francisco de Lucé SE, PE, BA 9 Capuchinho 00

José F. Montarroyo Mascarenhas - - Portugal 9 jornalista 16

Bernardo Pereira de Berredo - - PA, MA 9 Governador 18

Pedro Barbosa Leal BA, PE 9 Militar 25

Frei Domingos Loreto Couto - - PE Franciscano 57

José Antônio Caldas BA 9 Engenheiro 59

Frei Antônio de Santa Ma Jaboatão PE 9 Franciscano 61

Antônio José de Moraes Durão PI 9 Ouvidor 72

Frei Vital Frescarolo PE 9 Capuchinho 90 13

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