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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO – UFMA

CURSO DE FILOSOFIA

A FILOSOFIA DA RAZÃO VITAL EM ORTEGA Y GASSET


A VIDA COMO PRINCÍPIO METAFÍSICO

MICHAEL MAX PIRES AMORIM

SÃO LUÍS– MA
2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
MICHAEL MAX PIRES AMORIM

A FILOSOFIA DA RAZÃO VITAL EM ORTEGA Y GASSET:


A VIDA COMO PRINCÍPIO METAFÍSICO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à banca examinadora da


Universidade Federal do Maranhão como requisito básico para a conclusão do Curso
de licenciatura em Filosofia.

Orientadora: Rita de Cássia

Sâo Luís – MA
25/03/2019
MICHAEL MAX PIRES AMORIM

A FILOSOFIA DA RAZÃO VITAL EM ORTEGA Y GASSET:


A VIDA COMO PRINCÍPIO METAFÍSICO

Monografia apresentada ao curso de Filosofia da Universidade Federal do Maranhão.

Data:
Nota:

Banca examinadora:

Orientador

Prof.

Prof.
DEDICATÓRIA

Este trabalho é dedicado à Santa Virgem Nossa Senhora de Guadalupe que


apareceu pela primeira vez ao índio asteca Juan Diego. Na língua asteca, o nome
Guadalupe significa, Perfeitíssima Virgem que esmaga a deusa de Pedra (deusa
Quetzalcolti, uma monstruosa divindade, a quem eram oferecidas vidas humanas em
holocausto). No ano de 1539, mais de 9 milhões de astecas tinham abraçado a fé católica
graças a aparição da Santa Virgem.
AGRADECIMENTOS

A Santíssima Virgem Maria e ao glorioso São José, por terem me dado força e saúde
para superar as dificuldades.
Aos meus pais Isaias Pereira Amorim e Maria José Pires, que ensinaram-me a sorrir
nas mais severas e desfavoráveis circunstâncias.
Ao meu amor, Indiara Marques (“Todas as mulheres são virtuosas, mas tu, supera a
todas”. Prov. 31,29).
A minha orientadora Rita de Cássia pelo suporte no pouco tempo que lhe coube.
Ao meu amigo e professor Ivan Pessoa por toda ajuda, incentivo e confiança.
Ao meu irmão de consagração Alexandre Ferreira, pela caridade e pacientes
correções.
Aos meus amigos do grupo Carcarás por todo apoio e orações.
E a todos que direta ou indiretamente fizeram parte da minha formação, o meu muito
obrigado.
Sumário

1 – As circunstãncias de Ortega y Gasset…...…………….………………….4

1.1 – Espanha em Crise…………………………..........................…………………………………5

1.2 – Estilo e Obra……………………………………………………………………………….6

2 – O tema de nosso tempo …………………………………………………………..6

3 – A vida como princípio metafísico: raciovitalismo……………………………...

3.1 – A noção de circunstância ……………………………………………………………..

3.2 – Viver é quehacer…………………………………………………………………………..

4 – Vocação e destino ……………………………………………………………………….

4.1 – A ideia do náufrago ………………………………………………………………………

5 – El Espectador – a verdade do ponto de vista …………………………………….

6 – Considerações finais ……………………………………………………………………..

7 – Conclusão…………………………………………………………………………………...

REFERẼNCIAS BIBLIOGRAFICAS..........................................................................................11
1- As circunstãncias de Ortega y Gasset

José Ortega y Gasset (1883-1955) foi um filósofo espanhol da primeira


metade do século XX, porém, sua influência não se limita à sua terra natal,
abrangendo todos os países hispánicos ou ibéricos de língua espanhola e
portuguesa. Ortega é, sem exagero, um filósofo universal que elevou o nível da
filosofia espanhola. Pensador original e visionário, antecipou muitas posições
filosóficas atuais. Suas obras foram traduzidas e estudadas em diversos países e
por intelectuais de diferentes filosofias e concepções de mundo. Através de suas
traduções e edições, Ortega incorporou a ciência européia, principalmente a
alemã, ao pensamento espanhol. Com a criação da Revista do Ocidente,
promoveu a tradução das mais importantes tendências filosóficas e científicas da
época: Spengler, Huizinga, Husserl, Simmel, Uexkül, Heimoseth, Bretano,
Driesch, Russel etc.
Com a intregação da alta filosofia na espanha, Ortega criou toda uma
geração de intelectuais rigorosos de onde floresceu a eruditíssima escola
filosófica, que ficou conhecida como escola de Madri. Entre seus membros estão
importantes nomes como: Manuel Garcia Morente, José Luis Aranguren, Luis
Díez del Corral, José Gaos, Fernando Vela, Xavier Zubiri, José Ferrater Mora e
Julían Marías. Ortega y Gasset fincou naquele país as bases da alta filosofia,
mas seus escritos também pertencem, digamos assim, a todos os povos de
língua portuguesa incluíndo o Brasil. Tanto pela proximidade do idioma como
pela autenticidade do autor, ler Ortega torna-se uma etapa indispensável para o
bom estudante brasileiro. A Justificativa para isso nos dá Kujawski:

Está claro que o estudante brasileiro tem todo o direito de aprender


alemão e iniciar-se na filosofia com Hegel, Nietzsche ou Heidegger, ou
de estudar francês e começar com Sartre, ou inglês e dedicar-se a
Popper. Tudo bem, mas assim nosso estudante terá queimado uma
etapa. Veja-se o caso da iniciação literária; ela começa, logicamente,
pelos autores que escreveram em nossa língua; lemos, primeiro,
Camôes, Gonçalves Dias, Alencar, Machado de Assis, Drummond,
Guimarães Rosa, antes de conhecermos Dante, Shakespeare, Goethe
etc. Não se trata de nacionalismo primário, trata-se do fato de que o
brasileiro não só “fala” portuguẽs, como vive e pensa em portuguẽs,
profundamente condicionado pelo estilo cultural que assimila junto com
a língua natal. […] Então, por que não nos iniciarmos em filosofia pela
obra de um pensador espanhol, inserido em nossa área cultural, que
lemos quase como se fosse portuguẽs? (Gilberto de Mello Kujawski
Ortega y Gasset, a aventura da razão. Pág. 09. São Paulo: Moderna,
1994. Coleção Logos)

Pensador contumaz, Ortega pensou sobre tudo, ou ao menos, como nos


diz Kujawski: sobre tudo que importa saber. Obviamente há saberes que não nos
importam, ou que nos importam pouco. À esses não cabe nossa atenção, o
interesse sincero, autêntico, que envolve minha vida e aponta a direção de meu
destino, deve ser foco de nossos atenção e esforços. Um saber que traz consigo
o próprio sentido de minha vida – assim mesmo no particular, pois a vida
acontece no íntimo de cada indivíduo. Vejamos alguns passos de sua vida.
Nasceu em Madrid em 1883 no seio de uma família burguesa ligada ao
jornalismo e a política. Seu pai, José Ortega Munilla, foi diretor do periódico El
Imparcial, que foi fundado por seu avô materno, Eduardo Gasset y Artime, e ao
qual Ortega deu importante e intensa contribuição com seus escritos. Sua vida
está profundamente marcada pela política, imprensa e atividades editoriais. De
formação Jesuíta, estudou no Colegio jesuita de San Estanislao na cidade de
Miraflores del palo e iniciou seus estudos superiores na Jesuita Universidad de
Deusto (Bilbao), dando continuidade na Facultad de Filosofía y Letras de la
Universidad Central de Madrid, concluindo em 1902. Obteve seu doutorado em
1904, com uma tese sobre Os terrores do ano mil (Crítica de uma lenda).
Entre 1905 e 1908, passa pelas universidades alemãs de Leipzig, Berlim
e Marburgo, onde entra em contato com o neokantismo – sobretudo de Hermman
Cohen, do qual foi discípulo –, sistema que lhe serviu de inspiração por longos
anos até ser abandonado com a publicação de El Espectador, coleção de 7
ensaios publicados num perído que se estende de 1916 a 1934. Por
fundamentar-se num modelo de razão pura a proposta kantiana se faz inviável,
pois para Ortega y Gasset, não se pode partir de uma teoria insenta de qualquer
influência seinsível.
De volta à Madri, em 1910, assume a cátedra de professor de metafísica,
cargo que ocupou até 1936. E em 1914, publica a primeira edição de sua
Meditaciones del Quijote, obra que inaugura importante passo para a tese do
raciovitalismo. Em 1917 funda o jornal El Sol. A Revista do Ocidente viria a ser
criada seis anos depois. Seu envolvimento com a política sempre foi muito forte,
o que lhe rendeu alguns problemas, como a saída da cátedra universitária.
Fundou com seu discípulo Julían Marías, o instituto de Humanidades, em 1948,
de onde saíram vários cursos abordando temas diversos. Seus importantes
encontros com Heidegger aconteceram entre 1951 e 1953. Em 1955, Ortega
perde a consciência de si mesmo, vítima de câncer.

1.1 – Espanha em crise.

A obra de Ortega y Gasset não pode ser bem compreendida sem se levar
em conta o contexto em que foi escrita e o povo a qual foi endereçada. Ortega
fala como espanhol e para espanhóis. A pretensão de falar para todos nunca
encontrou lugar em seus escritos. Em seu primeiro livro, Meditações do Quixote
(1914), escreve: “O indivíduo não pode orientar-se no universo senão através da
sua raça, porque vai incluído nela como a gota no seio da nuvem peregrina”. Não
raro, Ortega manifestava sua preocupação em ser mal entendido por povos de
outras línguas. Tanto que, visando orientar o leitor estrangeiro, acrescentou ao
livro A Rebelião das Massas um “Prólogo para franceses” e um “Epílogo para
ingleses”. Júlian Marias, aluno de Ortega e um de seus mais fiéis discípulos, na
introdução à obra citada lembra que “Se isolarmos os textos de seus contexto, a
intelecção não pode ser plena” (A Rebelião das Massas, ORTEGA, pág. 12. Vide;
Edição: 1ª. 22 de janeiro de 2016). Ortega buscava não só falar a espanhóis,
como também uma visão espanhola do mundo. Kujawski atenta para o fato de
que “em Ortega o fator espanhol e o fator universal estão fundidos um no outro.
Aos vinte e poucos anos ele anunciou qual seria o seu programa de trabalho: a
interpretação espanhola do mundo” (Ortega y Gasset, a aventura da razão. p. 11.
São Paulo: Moderna, 1994). Qualquer um que se aventure por seus textos deve
ter isso em mente.
Desde o final do século XVIII a nação espanhola estava cada vez mais
separada da Europa moderna. A espanha entrou no século XX marcada pelo atraso e
desorientação, o que resultou num povo deprimido, afogado em falta de perspectiva,
sem esperanças no futuro e sem o entusiasmo que motiva e cria. Com Afonso XII no
trono tendo como chefe de governo Cánovas del Castillo, a distastia borbônica volta a
reinar no século XIX, o que para muitos seria um período de restauração nacional.
Restauração que não passou de um engodo. A nação que em outros tempos dominara o
mundo com Carlos V e Felipe II, é derrotada na guerra contra os EUA em 1898. Com
isso a Espanha perdeu o que lhe restava de comércio colonial, deixando o povo
espanhol perplexo e impotente diante do próprio destino.
Em sua busca por compreender o contubardo século XX, Ortega y
Gasset deparou-se com a herança do século XIX: o modo de pensar. O homem
do século XX, avalia Ortega, enxerga o passado pelas lentes dos intelectuais,
interpretações, crenças e estilos do século XIX. O passado está distante, tão
distante quanto as interpretações do século XIX permitirem. Em 1916, afirma o
filósofo: “Falando com rigor, o século XIII e todos os demais pretéritos só existem
para nós dentro do século XIX, segundo ele os viu através de seu gênio.”(Nada
Moderno y Muy Siglo XX. P 22. 1916).
Essa situação histórica se faz problemática para o século XX pois a
cosmovisão que adotou, lhe veio por herença do século anterior. Sua forma de
pensar lhe foi imposta. Os homens do século XIX buscavam o progresso e
entusiasmados com essa ideia creram estar no limiar dos tempos. Viam-se como
superiores; um século onde tudo estava consumado e não um período que, como
todos os outros, deveria ser superado. O homem de hoje vê mais longe
justamente por “ começar a existir, desde logo, sobre certa quantia de passado
amontoado” (A Rebelião das Massas, ORTEGA, p. 71. Vide; Edição: 1ª. 22 de
janeiro de 2016). O passado não deve estar tão distante. Um povo que se vê na
plenitude dos tempos tende a enxergar no passado apenas tentativa, prólogo,
preparação. Diz o filósofo espanhol na obra supracitada:
Os tempos de plenitude sempre se sentem como resultado de muitas outras
idades preparatórias, de outros tempos sem plenitudes, inferiores a ele, sobre os quais
vai montada essa hora requintada. Vistos, da sua altura, aqueles períodos preparatórias
parecem como se neles tivesse vivido puro afã e ilusão não realizada; tempos só de
desejo insatisfeito, de precursores ardentes, de “ainda não”, de penoso contraste entre
uma clara aspiração e a realidade que não lhe corresponde. É assim que o século XIX
vê a Idade Média (A Rebelião das Massas, ORTEGA, p. 53. Vide; Edição: 1ª. 22 de
janeiro de 2016).
Ortega, com efeito, estava convencido de que a circunstância espanhola
estava enferma. Nos ensaios de El Espectador o filósofo espanhol traz a
esperança de que o homem de sua época poderia superar essa crise. Pois a
ideia de progresso definitivo os deixaram acomodados e por isso, vazios. Cheios
de si, não percebem que renegam a cultura e o legado dos séculos passados,
inclusive o maior deles: o legado dos erros:
Mas agora nos damos conta de que esses séculos tão satisfeitos, tão
perfeitos, estão mortos por dentro. A autêntica plenitude vital não consiste na
satisfação, na conquista, na chegada. Já dizia Cervantes que “o caminho é
sempre melhor que a pousada”. Um tempo que satisfaz seu desejo, seu ideal, já
não deseja mais nada, sua fonte de desejo secou. Isto é, que a famosa plenitude
é em realidade uma conclusão (A Rebelião das Massas, ORTEGA, p. 101. Vide;
Edição: 1ª. 22 de janeiro de 2016).
Ortega também procura saber se os conflitos existenciais de seu país
também aflingem outros povos do mundo, afinal, a vida de todo homem está
ligada a circunstância em torno e não pode ser diferente. O nível de filosofia do
século XX tratava especialmente da vida humana e seu cotidiano, mais do que
todos, Ortega levou isso muito a sério. Em seu famosíssimo Meditações do
Quixote, remete à detalhes da paisagem espanhola, ao modo de conversar dos
lavradores, ao que é modesto e íntimo ao homem, e sem ignorar a devida
hierarquia que evita que o caos se instaure no cosmos, dirige sua meditação ao
que é próximo da nossa pessoa. Tratando das particularidades de cada vida, dos
pontos de vista, das circunstâncias e dramas vividos.
A Espanha havia se afastado das coisas realmente importantes, não
sabendo mais a que se ater, afogava-se num mar de vulgaridades e ódio ao
mundo que lhe envolvia, ódio à sua circunstância. Eis o diagnóstico de Ortega:

Suspeito que, por causas desconhecidas, a morada íntima dos


espanóis tenha sido tomada faz tempo pelo ódio, que permanece ali
municiado, movendo guerra ao mundo. Ora, o ódio é um afeto que
conduz à aniquilação dos valores. Quando odiamos algo, colocamos
entre ele e o nosso espírito uma dura mola de aço que impede a fusão,
mesmo transitória, entre ambos. Só existe para nós aquele ponto da
coisa onde nossa mola de ódio se fixa; tudo o mais ou não é
conhecido, ou vamos esquecendo, fazendo-o alheio a nós. A cada
instante o objeto é menos, consome-se, perde valor. Desse modo,
converteu-se o universo para o espanhol em uma coisa rígida, seca,
sórdida e deserta (Meditações do Quixote, p. 15. José Ortega y Gasset.
1 edição – Março de 2019 – CEDET).

O domínimo do homem massa¹ que resusava sua própria identidade, era


esse o contexto Europeu. Se fazia necessário renegar o ódio e abraçar o amor,
diz Ortega. Se o ódio cega e separa, o amor ilumina e une. Através do amor há
união às coisas, mesmo que essa união seja passageira. O amor absorve as
coisas e as funde conosco. Percebe-se então que a coisa amada não funda nela
mesma, mas é parte de algo maior, algo que está ligado a ela e precisa dela,
afinal, “aquilo que dizemos amar se nos apresenta como algo imprescindível.
Imprescindível!” (Meditações do Quixote, p. 16. José Ortega y Gasset. 1 edição –
Março de 2019 – CEDET). O amor é capaz de cria conexão sem a qual só resta o
aniquilamento. O amor amplia a individualidade até penetrarmos e abarcarmos o outro,
criando um vínculo entre o amador e a coisa amada, seja esta uma mulher, a ciência ou
a pátria. O amor, amor real, pela pátria e suas circunstâncias, eis a salvação da
Espanha: “Nós, espanhóis, oferecemos à vida um coração blindado de rancor, e as
coisas, ricocheteando nele, são despedidas cruelmente. Há ao nosso redor, faz séculos,
uma incessante e progressiva demolição dos valores” (Meditações do Quixote, p. 17.
José Ortega y Gasset. 1 edição – Março de 2019 – CEDET).
Cada ciscunstância integra-se em outra mais vasta e assim por diante.
Uma vez que a Espanha está inserida na circusntância européia, se faz
necessário, para compreender a Espanha, compreender e amar primeiro, a
Europa. E quando Ortega fala Europa, não fala dos monumentos, da boa polícia,
comercio ou indústria. Fala antes, daquilo que possibilita tudo isso, que torna a
civilização européia, possível: a ciência. As demais coisas a europa tem em
comum com o resto do mundo, mas a ciência, não. Não se pode compreender a
verdade da Espanha sem adentrar na ciência européia. A circunstância da
Espanha está inserida em outra maior, a ciência da Europa. Eropeizar a Espanha
seria, então, fundí-la com a visão universal das coisas: a ciência européia.
Ortega atenta para o fato de que converter a Espanha à visao científica
da Europa não trata-se de renúncia ao que é espanhol, pelo contrário, somente
voltando seus esforços para a ciscunstância européia a Espanha poderá ter um
encontro consigo mesma e ver sua verdadeira identidade. A imersão na ciência
européia, ao mesmo tempo, europeizava a Espanha e universalizava o
espanhol., ou ainda, “espanholizar o universal”. A Espanha é, sob pena de perder
sua identidade, uma possibilidade européia. Saber a que se ater sempre foi
ponto chave da filosofia de Ortega, ater-se à circunstância européia é ater-se à
substâncias humanas de signifcado universal como economia, mecânica,
democracia e valores transcendentes. Isso é, para Ortega, ser espanhol. Só é
possível compreender minha circunstância particular, integrando-a em outras
circunstâncias e vice-versa. Os aparatos filosóficos de seu tempo não eram
suficientes para tal empreitada, afinal, o que estava em jogo era a salvação da
Espanha. Assim coloca José Mauricio de Carvalho:

Como a crise de civilização atingia costumes sociais e a organização


política dos povos, o novo princípio precisava, além de considerar os
problemas ontognoseológicos, solucionar as dificuldades éticas e
políticas da sociedade europeia. Eram esses os desafios que Ortega y
Gasset considerava devessem ser enfrentados pela filosofia do seu
tempo. Não eram poucos nem simples os problemas à espera de
solução (CARVALHO, José Maurício de. Ortega y Gasset, a vida como
realidade metafísica).

Adentrar na história da Europa é adentrar da verdade da espanha, cito


Ortega:

“O viver se faz sempre desde ou sobre certos pressupostos, que


são como o solo em que nos apoiamos para viver ou do qual
partimos. E isso em todas as ordens – em ciência como em moral
e política, como em arte” (O que é filosofia? GASSET, Ortega,
Vide; Edição: 1ª p. 49. 10 de agosto de 2016).

E mais uma vez:

“Cada geração parte de supostos mais ou menos distintos, quer


dizer que o sistema de verdades e o dos valores estéticos,
morais, políticos, religiosos, tem inexoravelmente uma dimensão
histórica” (O que é filosofia? GASSET, Ortega, Vide; Edição: 1ª
p. 49. 10 de agosto de 2016). A verdade é histórica, eis o ponto
fundamental aqui apresentado.

A crise espanhola provoca naquele país um retorno para dentro de si, a


espanha “ensimesma-se”, buscando o elo perdido com suas raízes. A elite
intelectual espanhola, amargurada com a falsa restauração, passa a pensar o
país como problema. Disto surgem indagações como o que é a Espanha?, qual o
seu lugar no mundo? Surge então, em meio a trevas e desilusão, um grupo de
escritores de enorme talento, que ficou conhecido como Geração de 98. Grupo
que encarna a questão da Espanha como problema e busca desinterrar suas
riquezas culturais. Alguns dos mais importantes nomes da Geração de 98 foram
Ganivet, Unamuno, Maeztu, Valle-Inclán, Pio Baroja, Azorín e os irmãos
Machado, Antônio e Manuel. Sobre eles, assim escreveu Kujawski: “A Geração
de 98 imerge na Espanha profunda, acusando todo o vigor e toda a riqueza da
sua personalidade. Seus escritores tomam posse da Espanha, física e
espiritualmente” (Gilberto de Mello Kujawski Ortega y Gasset, a aventura da
razão. P. 21. São Paulo: Moderna, 1994. Coleção Logos). Ortega y Gasset
pertence à geração seguinte, herdando da geração de intelectuais que o
antecederam – especialmente de Miguel de Unamuno, poeta e novelista que,
mais tarde, romperia com Ortega por insistir na ligação da espanha ao
africanismo – a preocupação dramática com a verdade e o destino da nação
espanhola.
Em suas primeiras obras Ortega y Gasset aborda essas questões e
propõe a vida como realidade radical, ou seja, fundamental. Em Meditaciones del
Quijote (1914) e El espectador (1916- 1934), é apresentado o princípio metafísico
que servirá de guia para a investigação filosófica de sua geração. Mas a
densidade teórica da relação do eu com as circunstâncias só veio com as obras
Qué es filosofía? (1929), Unas lecciones de metafísica (1933) e em La rebelión
de las masas (1930), assim como no ensaio Pidiendo un Goethe desde dentro
(1932).
É de suma importãncia ressaltar que Ortega não está proprondo uma
Espanha pautada no passado ou dependente do ponto de vista de outro tempo,
não. A noção de circunstância chama atenção para o sujeito concreto, sujeito
este que se encontra no aqui e no agora e ao estar mergulhado no presente,
compreendendo sua história, encontra-se aberto para o futuro e vive o próprio
tempo. O mundo social no qual nascemos, é elemento decisivo para o agir vital.
A meta é expandir a visão espanhola para que ela possa alcançar as formas de
cultura presentes na Europa.

1.2 – Estilo e Obra.

Não se pode, numa introdução à sua obra, não citar o fato de que Ortega
é, além de pensador de grande estirpe, grande prosador da língua espanhola,
chegando a criar uma terminologia e estilo filosófico espanhol próprios. A técnica
orteguiana difere da de Heidegger, pro exemplo, ao evitar o uso de neologismos,
preferindo devolver às expressões usais do idioma. Ortega transformou o uso da
metáfora em algo metafísico, esforçando-se para ser sempre inteligível por todos.
Seus livros são, além de tudo, verdadeiros diálogos. Escrever sempre foi para ele
um modo de conversar, de estabelecer um vínculo de amizade com quem o lê. O
uso e abuso de expressões metafóricas fazem sua obra ser lida de perto, o autor
fala – às vezes sussura – ao indivíduo, ao leitor, no singular. Cativando seu
espírito com metáforas e alusões ao cotidiano, pois é na circunstãncia particular
que o homem se completa. Ao fazer tais alusões, citar provérbios populares e usar
metáforas, Ortega torna sua filosofia acessível aos seus leitores: homens do povo, que são
capazes de compreendê-lo ainda que este faça as mais elevadas investigações. No filósofo
espanhol se vê a leveza de uma crônica banhada pela mais rigorosa filosofia. Clareza e
rigor aqui se unem para trazer a filosofia ao cotidiano, ao homem comum, pois “a clareza
é a cortesia do filósofo”. A esses procedimentos linguísticos absolutamente novos, Júlian
Marías dá o nome de “dizer da razão vital” (Vida y razon em la filosofia de Ortega. La
escuela de Madrid. Estudios de filosofia espanola. Buenos Aires, 1959. Obras, V).
Além de filósofo, era Ortega também um literato e sempre escreveu para o
homem, no singular. Seus textos apesar do alto rigor filosófico, foram escritos para o
homem comum, para qualquer um que se sinta perdido na agitação do mundo e tome a
decisão de agarrar-se à algo para dar sentido à sua vida. O filósofo espanhol sempre
entendeu que a filosofia precisa da poesia; que a filosofia é dada ao povo em pétalas
douradas pela poesia. Seus ecsritos seduzem e atraem, aproximamo-nos de sua obra como
que crianças à roda em volta da fogueira, maravilhados e curiosos com a história contada
pelo ancião. Imagem e conceito se unem perfeitamente para guiar o leitor através das mais
elevadas asceses filosóficas. A vida, para o filósofo aqui apresentado, é drama. Sua
argumentação se faz como o desenrolar de uma peça de teatro, atraindo a atenção por
meios líricos. Visando sempre aproximar o leitor, através da clareza do discurso, ao drama
da vida. Recursos próprios da literatura são enxertados nas explicações filosóficas e o
conceito ganha atributos dramáticos, para que assim possa apreender o conteúdo da vida,
por isso, o uso constante de metáforas e imagens.
Quanto ao estilo, pode-se dizer que Ortega é um filósofo sui generis,
atípico. Sua obra é fragmentária; em toda sua extensa produção filosófica não se
encontra um único livro completo, perfeitamente ordenado, digo, com começo,
meio e fim. Talvez por isso muitos de seus comentadores e discípulos insistam
não haver nela um sistema. Julían Márias, porém, não partilha dessa posição e
na introdução dA Rebelião das Massas, diz:

O pensamento de Ortega é sistemático, ainda que seus escritos não


costumem sê-lo; comparou-os a icebergs, dos quais emerge a décima
parte, de maneira que só se poder ver sua realidade integral
mergulhando (A Rebelião das Massas, ORTEGA, Vide; Edição: 1ª (22
de janeiro de 2016).

Fato é que em nenhuma de suas páginas pode-se encontrar exposta e


formulada a totalidade de sua filosófia. Ortega foi um autor circunstancial, de
ocasião, escrevia de acordo com suas circunstâncias e interesse. Por isso versa
sobre vários assuntos em textos que sozinhos, dificilmente poderão ser
compreendidos bem. Intregar sua obra é condição sine qua non para adentrar no
vasto pensar filosófico orteguiano.
Em suma, a obra de Ortega y Gasset busca levar o autor a uma
introspecção, o penetrar da alma dentro de si mesma. Ao penetrar em si surge
um contemplar-se, porém, a alma contempla-se em função de tudo o que a
preocupa. Algo que lhe é um problema anterior – pré-ocupa – , que lhe dá um
puxão na consciência e lhe aponta o sentido de sua vida. Santo Agostinho, a mim
parece, antecipou esta ideia, de falar sobre essa função do homem que o difere
de todas as demais espécies. O Santo de Hipona sabia disto: “Noli foras ire, in
teipsum redi; in interiore homine habitat veritas; et si tuam naturam mutabilem
inveneris, trasncende et teipsum” (“Não vás para fora, volta para ti mesmo. No
homem interior habita a verdade. E se descobrires que tua natureza é mutável,
transcente também a ti mesmo.” De Vera Religione., XXXIX, 72, tradução de
Novaes, 2007, p.202.) Ortega parece seguir na mesma linha do Santo,
preocupando-se e passando a vida ensimesmado, olhando para dentro de si.
Essa foi sua maneira peculiar de fazer filosofia.
É necessário pensar a realidade desde o centro de nossa vida e viver
observando as circunstãncias que nos cercam, não se trata de ver a realidade de
fora, mas buscá-la desde dentro. Não há salvação para o mim se não houver
para o mundo. Ler Ortega é retomar o senso de responsabilidade para com suas
ações, é trazer de volta para a vida, para o cotidiano, os altos ideias da filosofia
que tentou voar mais alto que o homem. Não limitando-se a questões de cunho
puramente filosóficos, o filósofo escreveu sobre as mais diversas áreas: literatura,
arte, política, sociologia, história e até mesmo a caça.
Ao buscar meios populares de falar ao povo, encontra nos jornais e
periódicos o veículo perfeito para sua filosofia. Muitas de suas obras foram
resultados diretos de suas publicações em diários da Espanha e da Argentina, foi
assim que nasceu, por exemplo, a coleção El Espectador, iniciada em 1916. O
filósofo espanhol era conhecido também por lotar salas de aula, auditórios e
teatros. Seus cursos e palestras atraíam pessoas das mais diversas áreas e
condições sociais; professores, estudantes, militares, homens do campo,
toureiros, damas da alta sociedade etc. Todos, apesar das diferenças, ouviam
atentamente as palavras do filósofo que mobilizava toda a Espanha,
independente de classe. Ortega foi, desde o início de sua produção intelectual,
um filósofo aos moldes de Sócrates: fazendo filosofia para todos e não para um
pequeno grupo de espíritos seletos.

2 – O tema de nosso tempo.

O ponto central da filosofia orteguiana baseia-se numa síntese da oposição


Realismo/Idealismo e suas variantes, debate que tem se prolongado ao longo de toda a
história da filosofia. O horizonte de uma filosofia é determinado pelo nível de seu
encontro com a realidade. A filosofia antiga teve esse encontro a nível ontológico (Platão,
Aristóteles). A escolástica medieval, a nivel teológico (Santo Agostinho, Santo Anselmo,
Santo Tomás). Ortega y Gasset inova, trazendo esse encontro para o nível vital. Em seu
decisivo ensaio “El tema de nuestro tiempo”, desenvolve a idéia de razão vital, o tema
central de sua filosofia, onde critica a frieza do realismo, que exclue o mundo da mente
humana, dando independência àquele; mas também a ingenuidade do idealismo, que supõe
ser a mente humana criadora da realidade. Como já foi dito aqui, em seus anos em
Marburg Ortega sofreu fortes influências neo-kantianas a maior delas sendo uma imersão
no idealismo. Influências que foram abandonadas não muito tempo depois, com a
superação de todo subjetivismo e idealismo em suas obras. Em suas Meditações do Quixote,
escreve:

Muito longe do que sentimos hoje do dogma hegeliano, que faz do pensamento
a substância última de toda a realidade. É demasiado amplo o mundo, e
demasiado rico, para que o pensamento assuma a responsabilidade de quanto
ele ocorre (Meditações do Quixote, p. 82. José Ortega y Gasset. 1 edição –
Março de 2019 – CEDET).

Porém, sem abraçar as teses realistas que, herdadas dos gregos, distanciam o
objeto do indivíduo ao superestimá-lo. Cito novamente Ortega:

Realistas foram os gregos – mas realistas das coisas recordadas. A


reminiscência, ao distanciar os objetos, purifica e idealiza, tirando-lhes
sobretudo essa nota de aspereza que possui mesmo o mais doce e brando deles
quando atua efetivamente sobre nossos sentidos (Meditações do Quixote, p. 75.
José Ortega y Gasset. 1 edição – Março de 2019 – CEDET).

Ambas as posições, realismo e idealismo, segundo Ortega, não condizem com a


verdade e devem ser superadas.
Temos de um lado, confiança cega na realidade, de outro, entrega incondicional
às faculdades da mente. E nisso está a missão de nosso tempo, buscar uma filosofia que
não caia no engodo do realismo e na atração do idealismo. Se faz necessário uma síntese
das duas posições, que em certa medida estão corretas, mas são insuficientes para o
pensador de hoje. O eixo vital, razão e vida, estão separados desde Sócrates. Essa
separação foi herdada pela Europa que não só deu continuidade ao erro, opondo razão e
espontaneidade, como chega ao ponto de classificá-los como polos totalmente opostos. O
realismo, de um lado, traz a confiança cega na realidade; a compreensão realista herdada
da tradição grega e medieval entende o real independente do sujeito pensante, mas em
Ortega, o eu está de tal modo envolvido com a realidade que esta não existe sem aquele e
vice e versa. O racionalismo, outra forma de realismo, erra ao crer que é suficiente a
convicção lógica, descartando a convicção vital e assim por diante. De outro lado, o
idealismo entrega o mundo ao domínio do eu, da subjetividade.
A missão do filósofo espanhol é mostrar que vida e razão não devem
seguir em polos antagônicos; razão, arte, ética e cultura acontecem dentro da
esfera vital do indivíduo, ou seja, tais temas devem existir em relação à vida e
servir a ela. As coisas e o mundo; as Circunstâncias e o eu, devem ser fundidas
numa única esfera: a esfera da vida. A missão de nosso tempo, diz Ortega, tem
seu centro na vida humana como realidade radical. Superando as amarras do
realismo e do idealismo. A qual deu ele o nome de raciovitalismo. O grande
problema a ser enfrentado pela filosofia do seu tempo era uma nova forma de
opor a subjetividade moderna à perspectiva objetivista dos gregos. El tema de
nuestro tiempo, a missão de nossa geração, diz Ortega, é reordernar o mundo
desde o ponto de vista de nossa vida (El Tema de Nuestro Tiempo. Obras
Completas, vol III, cap. X. Rev. de Occ. Madrid.1966, pp. 197-203). Não há,
portanto, oposição entre razão e vida, só não se pode conceber a razão como a
modernidade a concebeu, como razão físico-matemática. A razão pura, deve ser
substituída pela razão vital.
Ao percorrer pelos escritos orteguianos desde Meditaciones del Quijote
(1914) pode-se notar que o problema da vida como preocupação central de
nosso tempo perpassa por toda a extensa obra. No capítulo VII de El Tema de
Nuestro tempo, Ortega afirma que é este o desafio de sua geração: “[...]
consagrar a vida, que até agora era só um fato nulo e como que um erro do
cosmo, [...] um princípio e um direito” (1994a, v. 3, p. 179). Mais adiante o filósofo
discorre sobre como a vida havia sido sujeitada às mais diversas áreas, estando
a serviço da economia, da arte, da moral, da religião etc. Porém, tudo isso
precisa mudar de foco, a vida deve ser tomada como fundamento de todas as
áreas e não o contrário. Esse deve ser o princípio da realidade buscado pela
filosofia: a vida de volta ao centro da investigação filosófica.

3 - A vida como princípio metafísico: raciovitalismo.

Vida, eis aí o elemento central da filosofia orteguiana. O filósofo espanhol


nas palavras de Kujawski “redescobriu a vida humana”. A trouxe de volta para o
centro da investigação filosófica. Todas as gerações passadas trataram a vida
como serva das mais diversas áreas do saber, mas nunca como fundamento,
como princípio mesmo de toda e qualquer investigação. Ortega nas Meditaciones
del Quijote inaugura um novo tema para a filosofia: a relação entre a razão e a
vida. Tema que se encontra fundamentado nas obras Que és filosofía? e Unas
lecciones de metafísica, aparecendo como aquilo que os filósofos buscam desde
a antiguidade, o princípio, arkhé, ou a realidade fundamental.
José Ferrater Mora, considerado por muitos o mais importante filósofo catalão
desde Raimundo Lúlio e o pensador espanhol mais original da segunda metade do
século XX disse, em seu Cuardernos del Congresso por la Liberdad de la Cultura (Paris,
mayo-junio 1956) que o problema do homem foi considerado por Ortega tema central de
toda filosofia, no entanto, não se deve ver nisso uma inclinação ao antroprocentrismo,
pois para Ortega o homem de forma alguma deve se colocar como a única realidade do
universo. Não é sequer a realidade mais importante. O que seria então, o homem, numa
visão orteguiana? Ferrater Mora responde: “simplemente, la realidad básica” ou, como
diria Ortega, “la realidad radical”. Radical no sentido de que todas as demais realidades
– mundo físico, psíquico, mundo de valores – se dão dentro dela e podemos dizer que
somente dentro dela são realidade.
Cada vida humana em particular, prossegue Ferrater Mora, é uma
realidade sem a qual as outras perderiam o sentido ontológico. Sem a vida,
nossa vida, todo o resto perderia seu significado. O erro mais comum e muito
combatido por Ortega foi o de tomar a vida humana como se esta fosse uma
coisa como as outras coisas. Uma coisa onde se encontram outras coisas,
possuindo até mesmo determinada natureza ou tendo certa substãncia. A vida
humana não é uma coisa como a matéria nem uma coisa como o espírito, ao
contrário, tem de ser liberta de toda e qualquer “coisidade”. O que seria então?
Ferrater Mora continua: “la vida humana no es una cosa. En rigor, no es siquiera
un “ser”. Carece de status fijo; está inclusive desprovista de “naturaleza”. La vida
humana “ocurre”. Ou seja, a vida nos ocorre a cada dia vivido. É puro “suceder”,
um fazendo e nunca um feito. Em vez de um ser, algo já feito, a vida é algo que
precisamos fazer constantemente. Ortega estaria então mais próximo de uma
“metafísica do devir” do que de qualquer outra coisa. Buscando regar as
sementes plantadas por Heráclito.
Julían Márias, o mais brilhante e fiel aluno de Ortega confirma, em sua
magistral História da Filosofia (Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo. 2004),
que seu mestre diz várias vezes que a realidade radical é nossa vida, isto é, a
vida de cada um. A realidade das coisas ou a do eu se dá na vida, como um
momento dela. “A vida humana – escreve Ortega (História como sistema. O.C.,
VI, p. 13) – é uma realidade estranha da qual a primeira coisa que que convém
dizer é que é a realidade radical, no sentido de que a ela temos de referir todas
as demais, já que as demais realidades, efetivas ou supostas, têm de um modo
ou outro que aparecer nela.”
Dito de outro modo, a minha vida é o sentido da realidade, e esta se
torna compreensível somente a partir dela. Isso significa que somente em minha
vida posso ter uma noção do real em sua radicalidade. Isso não significa que a
realidade é imanente ao viver de cada um, mas que toda realidade se torna
acessível a partir desse viver e somente dele.
A Razão Vital, escreveu Marías, trata-se de uma razão rigorosa, capaz
de apreender a realidade da vida. Não há diferença entre razão e viver; a própria
vida é a razão vital, porque “viver é não ter outro remédio senão raciocinar ante a
inexorável circunstãncia” (En torno a Galileo – O.C., V, p. 67). Que quer dizer tal
afirmação? Que a ação de viver já traz em si o inteligir. O viver humano é a forma
radical de intelecção. A vida, ao pôr algo em sua persperctiva, a torna
compreensível, inteligível. É a vida o órgão de compreensão humana e, assim
sendo, a vida é a razão humana. Em síntese: a própria vida funciona como
razão. Em 1914, intervendo a fórmula, escrevera Ortega e nos lembra Gilberto de
Mello Kujawski em seu Ortega y Gasset, a aventura da razão (São Paulo:
Moderna, 1994. Coleção Logos): “como se a razão não fosse uma função vital e
espontânea da mesma linhagem que o ver e o apalpar!”
Em primeiro momento, escreve Kujawski, Ortega aproxima o sensível do
pensamento, depois, assimila o pensamento ao sensível. Pensamos com o
sentido da visão e tato e apalpamos com o pensar. Dessa forma, pensamento e
sensibilidade não são coisas excludentes, muito pelo contrário, mesclam-se e
caminham sempre unidos. Não existe conceito sem percepção e percepção sem
o conceito. A razão está em ortega submetida ao império da razão vital. Vida é
ação e recepção, viver é o que eu faço e o que me acontece. No entanto, não
trata-se de uma negração da razão enquanto tal, Ortega admite ser ela o único
modo de conhecimento teórico. Sua oposição é ao racionalismo e isto tem de
estar claro. Julían Márias explica:

O significado mais autêntico e primário da razão é o de dar razão de


algo; pois bem, o racionalismo não se dá conta da irracionalidade dos
materiais que a razão maneja, e crê que as coisas comportam-se como
ideias. Esse erro mutila essencialmente a razão a reduz a algo parcial e
secundário (Julían Márias. História da Filosofia. p. 504. Martins Fontes
Editora Ltda., São Paulo. 2004).

Nas palavras de José Caruso Filho: “basicamente a razão não é a


valência da vida, entendido isto pelo "penso, logo existo", mas ao contrário deste
racionalismo, Ortega dirá "penso porque existo", sendo a razão um componente
da vida.” Caruso Filho discorreu bem sobre a tese orteguiana, afirmando que no
raciovitalismo o homem tem um encontro consigo mesmo e também com o
mundo. Não existe eu sem mundo e vice-versa. A razão é, portanto, toda ação
intelectual que nos põe em contato com a realidade. O realismo ao propror a
primazia do objeto, errou. O idealismo, ao defender a primazia do sujeito,
também errou. Somente compreendendo a relação entre sujeito e objeto, eu e
mundo, podemos compreender bem o real e assim, partir da vida para uma
análise metafísica do homem e uma conmpreensão real do mundo. O projeto
moral da filosofia raciovitalista apresenta-se como uma chave de entendimento
do mundo. A vida deve ser o ponto de partida metafísico, projetando-nos sempre
ao futuro, pois antes de tudo, viver é ter consciência do que nos é possível. O
próprio mundo é o repertório de nossas possibilidades vitais, aquilo que podemos
ser. E isso não é externo à nossa vida, tudo que nos acontece, acontece dentro e
não fora, de nosso campo vital. É pois, a vida, princípio de toda investigação e
não poderia ser diferente.
Em outras palavras, o real para ser real, precisa estar dentro do campo
vital de cada um, uma vez que o que acontece, acontece dentro de minha vida e
não fora dela. A realidade consiste, precisamente, em acontecer na minha vida. A
vida é, então, pressuposto básico para a própria noção de real. Somente dentro
de minha vida a realidade se torna inteligível. Nesse sentido, é impossível ter
uma compreensão radical e última da realidade, fora do campo vital. O eu e o
mundo, a cultura e a religião, a ciência e a técnica, todos são componentes
abstratos da realidade radical que é minha vida.
Superando a dicotomia realismo/idealismo, a filosofia orteguiana afirma
que nem o sujeito é anterior e independente do objeto nem vice-versa. O radical,
o princípio metafísico e ponto de partida primário é a vida. A vida não encerra
toda a realidade, há realidades que podem transcender a vida no entando, é a
vida particular base e fundamento de todas elas. A vida é uma realidade cujo ser
consiste em pensar a si e fazer a si. Viver é pura consicência. É intimidade
conosco mesmo, é tomar as rédeas da situação e estender essa intimidade
particular ao mundo em torno: a coexistências entre o eu e as coisas é fator
primordial da tomada de consciência do sujeito. Ao dar-se conta de si mesmo, o
sujeito dá conta do mundo que o cerca. Em suma, a realidade primeira, fonte de
inteligibilidade e autonomia, campo onde sujeito e objeto de unem, é a vida. A
vida não pode ser uma coisa, pois uma coisa é algo já feito, terminado, e a vida é
sempre algo por fazer, ou para usar o termo orteguiano, viver é “quehacer”, algo
que consiste, precisamente, em fazer-se. Ortega recusa assim, a ontologia
tradicional, julgando insuficiente seus conceitos de substância, essência, ser,
corpo, alma, matéria, forma etc. A filosofia de nosso tempo é chamada a
inaugarar uma nova época, onde categorias fechadas e determinadas darão
lugar à um princípio dinâmico: a vida como acontecer, como aquilo que nos
acontece. Não como algo que é dado de uma vez para sempre, mas aquilo que
está passando e acontecendo. Um rio que está fluindo, que se renova e inova.
Que de acordo com o período e circunstâncias, toma para si certos problemas e
certo modo de ver o mundo. Viver é “quefazer”, agir no mundo e em si, pensar a
si e o mundo e buscar ser fiel à sua vida em particular.
A tese raciovitalista consiste, pode-se dizer, não no racionalismo que
para salvar a razão, ignora a vida, nem no relativismo, que salva a vida ignorando
a razão, mas, numa síntese perfeita deste dois pensamentos; não há
racionalidade sem vida, nem vida sem racionalidade. Não trata-se de negar a
razão, apenas de pôr a vida de volta ao seu devido lugar de primazia. Em
resumo: a, por assim dizer, doutrina da razão vital é a proposta de Ortega para a
superação da oposição realismo/idealismo, enxertando a razão ao contexto da
existência humana espontânea, fazendo da racionalidade uma resposta às
necessitades vitais prévias, às pre-ocupações.
É preciso voltar a filosofar radicalmetne, fora dos esquemas do realismo
e do idealismo. Para tanto, faz-se preciso pensar a realidade realmente radical,
primária, inexorável que é a vida., e que tanto a natureza quanto o intelecto são
relativos a ela. A vida reúne em si mesma ambos aspectos: intelecto e natureza.
Em outras palavras, sentir e pensar. No entanto, a razão capaz de pensar esta
realidade radical que é a vida não pode ser a razão pura; a razão mecânica ou a
razão fiísico-matemática. Somente a razão vital pode bem desempenhar esse
papel. O real não é real se não estiver dentro de meu campo vital; o
raciovitalismo é, portanto, uma teoria da realidade. Não há mundo real, não há
verdade, fora do campo vital. É a vida, o ponto de partida: “Tudo quanto hoje é
reconhecido como verdade, como beleza exemplar, como altamente valioso,
nasceu um dia na entranha espiritual de um indivíduo, confundido com seus
caprichos e humores” (Meditações do Quixote, José Ortega y Gasset. P. 30. 1
edição – Março de 2019 – CEDET. Estamos diante, destaca o filósofo, no livro
Que és Filosofia?, “[...] de uma nova ideia de ser, de uma nova ontologia, de uma
nova filosofia e, na medida em que esta influi na vida, de toda uma nova vida –
vida nova” (1997b, p. 408).
“Viver é não ter outro remédio senão raciocinar ante a inexorável
circunstância” (En torno Galileo – O.C., V, P.67), que isso significa? Ora, que
viver e entender são a mesma coisa. A razão vital não se distingue de viver. A
vida é em si, razão e compreensão: a forma radical e primária de toda intelecção
humana. “Só quando a própria vida funciona como razão conseguimos entender
algo humano. É isso, em suma, que quer dizer razão vital.

3.1 - A noção de circunstância

O primeiro ensaio relevante para o tema da circunstancialidade é La


pedagogia del paisaje, de 1906. Mas sem dúvida a frase que melhor sintetiza a
filosofia de Ortega está em suas,já citadas, Meditaciones del Quijote: Eu sou eu e
minha circunstância. O contexto no qual me encontro, em que minha vida está
inserida, é minha realidade radical, é minha vida mesma. Viver é agir, mas
também sofrer ação, é o que fazemos e o que nos acontece. A definição de
circunstância é o que está ao redor do eu, que o envolve e atinge. Aquilo que
envolve o eu não é totalidade das coisas, mas a totalidade do eu que é envolvido,
o horizonte de ação do sujeito; as circunstâncias não são o universo, mas são
meu universo. A realidade que está mais próxima de mim e da qual tenho de
estar consciente. Cito Ortega:
O homem rende ao máximo de sua capacidade quando adquire plena
consciência de suas circunstâncias. Através delas ele se comunica com o universo. A
circunstância! Circum-stantia! As coisas mudas que estão ao nosso redor imediato! Muito
perto, muito perto de nós erguem suas fisionomias silenciosas com um gesto de
humildade e de anelo, como que necessitadas de que aceitemos sua oferenda e ao
mesmo tempo envergonhadas pela simplicidade aparente de seu donativo (Meditações
do Quixote, José Ortega y Gasset. p. 26. 1 edição – Março de 2019 – CEDET).
A reflexão filosófica, segundo nosso autor, surge de um olhar para o
contexto em que se vive, num mergulho total em suas circunstâncias. Para
compreender o homem e sua vivência não se deve manter os olhos fixos no céu,
no ideal, se faz preciso focar em suas ações concretas e, sobretudo nas coisas
que o envolve. Não se pode compreender o homem sem olhá-lo na circunstância
em que está inserido. Somente assim pode-se notar entre outras coisas, sua
historicidade. Pois cada ação humana gera uma reação, um resultado, logo,
como diz Julián Marías, discípulo de Ortega, (2004): “a razão vital é histórica, e,
portanto, narrativa”. O homem não tem natureza, tem história, já dizia Ortega.
Antonio Rodríguez Huéscar em seu Perspectiva y Verdad (Alianza
Universidad), Primeira edição em Revista de Occidente, 1966) lembra que as
coisas em Ortega não são substâncias universais. Trata-se de uma substituição
da categoria de substância pela categoria de relação. As coias são encruzilhadas
onde se encontram os mil caminhos do universo. Cada coisa é uma relação entre
várias, entre todas. O importante de uma coisa não está em seu ser, sua
aparência. E sim, em sua relação com as demais. Sua conexão com o universo.
Podemos usar, diz Rodríguez Huéscar, termos da filosofia clássica e dizer que
em Ortega y Gasset essência e existência se fundem no homem. Absorvidos por
uma nova concepção metafísica: vida, viver.
Huéscar usa o texto Adan en el Paraíso para mostrar que Ortega recorre
ao mito bíblico de Adão para levar o patriarca ao terreno do pensamento, dizendo
que o homem tem capacidade de pensar, posto que foi feito a imagem e
semelhança de Deus. E pensar nada mais é que situar-se em uma perspectiva
problemática. O filosófo é amigo do pensar e do problema. E pensar, é viver.
Quando Adão foi criado no paraíso, teve-se o início daquilo que chamamos vida.
Adão é, pois, o primeiro ser que vive. Era ele simplesmente vida, mas também
problema, o problema da vida. O homem desde o início esteve imerso no viver e
forçado a agir diante do universo, do paraíso. Viver é, pois, agir. E para agir se
faz necessário, logicamente, viver. Eis aí o primeiro e elementar problema do
homem; agir na vida.
No entanto, não basta ligar as coisas ou criar estruturas lógicas para
pensá-las, não, o sujeito não está fora das circunstâncias; sujeito e objeto devem
estar ligados. Intimamente ligados. Não deve haver distanciamento entre o
sujeito que percebe e a coisa percebida, ao fazer tal distanciamento expulsa-se
Adão do paraíso, perde-se a compreensão humana, aliena-se o sujeito e
despreza-se as coisas. Kujawski esclarece que

Por isso não basta “ligar coisa com coisa”, como faz o logos; é preciso
ligar “coisa com coisa e tudo conosco”; coisa com coisa e tudo comigo,
aqui e agora, na minha circunstância, onde pulsa o meu coração. De
nada vale a razão ligar coisa a coisa numa estrutura grandiosa (como
os grandes sistemas ideológicos) se eu, que executo essa ligação,
permaneço excluído dela. Pensar é circunstancializar, chegar ao
universal a partir da circunstância (Gilberto de Mello Kujawski Ortega y
Gasset, a aventura da razão. p. 32. São Paulo: Moderna, 1994.
Coleção Logos).
Em resumo: sem mundo não há consciência e consequentemente não haveria
eu. O eu e as coisas não existem, coexistem. O mundo só é mundo em sua relação
essencial com a subjetividade do sujeito e a subjetividade do sujeito só existe em sua
relação essencial com o mundo: o dinamismo do mundo determina meu agir, meu amá-
lo ou odiá-lo; por sua vez, o dinamismo de minha subjetividade, minhas crenças, valores,
ideias, história, ponto de vista, determina o ser do mundo. E é esse o sentido filosófico e
inovador que Ortega dá para a vida. Viver é ter seus sentidos envolvidos com o que nos
cerca, é pensar o mundo, mas também, tocá-lo, vê-lo, degustá-lo, amá-lo ou não etc.
Tudo isso, é viver. Todo o fenômeno entre o eu e a circunstância que foi ignorado pelo
idealismo e pelo racionalismo, a relação entre ser e viver; eis o princípio radical da
filosofia Orteguiana.
A circunstância é o mundo em torno, porém mundo aqui não significa apenas
aquilo que afeta o sujeito sensorialmente, a realidade física; circunstância também
significa a realidade social e histórica, e inclusive, mente e corpo, pois também fazem
parte da realidade em que somos inseridos e, portanto, parte de nossa circunstância.
Ortega aproxima-se da fenomenologia e considera eu e mundo instâncias inseparáveis.
Viver é um que fazer que tem necessidade do mundo em volta. Ao se considerar um,
deve-se levar em conta o outro. Tudo aquilo que circunda o homem, sendo coisas
palpáveis ou não, relaciona-se com ele. No livro Que és filosofía? Pode-se ler que

[...] o importante não é que as coisas sejam ou não corpos, senão que
elas nos afetam, nos interessam, nos acariciam, nos ameaçam e nos
atormentam. Originariamente isto que chamamos corpo não é senão
algo que nos resiste e nos estorva, ou nos sustenta e leva [...]. Mundo,
em sensu stricto, é o que nos afeta (1997b, v. 2, p. 416)

Circunstância é tudo aquilo que não sou eu, mas com o qual tenho um
encontro, aquilo que me é dado, recebido e com o qual tenho de agir no mundo. A
realidade não emana do sujeito, apesar de se tornar inteligível apenas em contato com
ele. Sendo assim, a circunstância compreende toda a sociedade, outros homens, valores
e crenças que cada um encontra em seu tempo. Isso evita que Ortega caia num
solipsismo, pois O mundo não é uma realidade subjetiva. O mundo é algo real e objetivo
que está fora do sujeito, o sujeito está agindo e vivendo no mundo; o mundo não existe
em si e eu não existo em mim, afirmar isso seria cair nos erros do realismo e idealismo,
visões que devem ser superadas. Em síntese: o mundo não existe sem o sujeito por ser
soma de suas possibilidades vitais.
“Eu sou eu e minha circunstância”; fechando este tópico, cito pontos
fundamentais extraídos por Kujawski ( 1994 ) dessa firmação:

a) O homem só assume a plenitude de sua capacidade


quando adquiri toda a consciência de suas circunstâncias. Por elas se
comunica com o universo. Já sabemos como: dando conta da
circunstância maior na qual está inserida toda circunstância; o universo
é a circunstância máxima.
b) Circunstância é tudo que nos cerca, tudo o que está ao
nosso redor: circum-stantia, o que está circum me, como as coisas que
integram o meu contorno.
c) Temos que aceitar nossa circunstância tal como ela é, mas
sem encerrarmos em sua limitação e sim procurando seu devido lugar
na perspectiva maior do mundo.
d) A circunstância forma a outra metade da pessoa, isto é, eu
não tenho, eu sou minha circunstância. Por isso tenho que integrá-la a
mim, para ser eu mesmo.
d) Daí, segue-se a conclusão lógica e necessária: eu sou eu e
minha circunstância, e se não a salvo, não me salvo eu.

3.2 - Viver é quehacer .

Como foi exposto aqui, a vida humana é a realidade básica, radical, onde todas as
realidades acontecem. A vida está no centro das circunstâncias e é onde o fluxo dinâmico
dos acontecimentos convergem. É no campo vital de cada indivíduo que o universo torna-
se inteligível e perceptível. A vida é razão vital, ou seja, o órgão máximo de compreensão
humana, e o ponto de vista particular é a parte da realidade que nos cabe perceber. Sendo
dinâmica a realidade, como um rio que corre sem parar, a vida não pode ser estática. O
homem não é um ser feito, acabado, mas sempre um ser por fazer. Viver é um
acontecendo, jamais um acontecido. Ou seja, a vida é o que eu sou e o que me acontece,
em síntese: agir e sofrer. Nascemos num universo sob determinadas circunstâncias que
não escolhemos, mas aquilo que escolhemos fazer com o que é nos é dado, é o que
realmente importa.

Ao definir a vida como quefazer Ortega deixa claro que a realidade da vida não é
uma “coisa” e sim o que se faz com aquilo que nos cerca. Viver ativamente e não só
passivamente é a vocação do filósofo. A vida biológica não serve para explicar o agir
humano, pois ela não considera sua história e a execução de seus atos desde seu lugar no
mundo. Os demais seres da natureza têm certa programação natural que impede a
desordem e mudança, isso não vale para o homem. O homem, como Adão no paraíso, tem
que ponderar o que fazer com a vida que lhe foi concedida, tem de fazê-la ele mesmo. O
macaco é condicionado a ser macaco, já o homem é forçado a pensar sobre o que é ser
homem e como ser um. Adão no paraíso, encontra-se com a importante tarefa de nomear
os seres, ou seja, dizer sobre algo “quid est”, o que é. O problema de estar na vida; eis é a
máxima preocupação filosófica. O homem celebra a vitória e padece o sofrimento da
derrota, sente a alegria da vida e a dor do luto, ama e odeia, aconchega-se nos braços da
amada e sente a falta que lhe faz uma Eva. É oprimido pelo mundo em torno, mundo que
não escolheu mas que esta aí. É este o drama da vida humana: imaginar um projeto vital
diante das circunstâncias impostas. Gilberto de Melo Kujaswki lembra que

A vida, diz Ortega, é faina poética porque o homem tem que inventar o que vai
ser. Todos nós, acrescenta, somos novelistas de nós mesmos, originais ou
plagiários. A circunstância nos é imposta, eu vivo aqui e agora sem escolher
nem meu tempo, nem meu país (Gilberto de Mello Kujawski Ortega y Gasset,
a aventura da razão. p. 53. São Paulo: Moderna, 1994. Coleção Logos)

Uma vez que cada indivíduo nasceu num mundo e tempo que não escolheu, é
forçado a agir dentro das possibilidades que lhe são apresentadas. Para isso, carece de
projeto, saber o que lhe é possível e o que não é; o homem ludovicense do século XXI que
vive em 2019 não pode, por exemplo, escolher ser cavaleiro medieval e lutar pela
reconquista da Terra Santa, ou embarcar numa caravela rumo à mares nunca dantes
navegados dedicando a vida pela expansão do império de Portugal. Antes de tudo, viver é
ter essa consciência: saber o que nos é possível; o que se pode ser. Circunstância e
decisão, eis os dois elementos radicais que compõem a vida. Cada vida humana, para ser
uma vida ativa, autêntica, carece de propósito, de um projeto vital dentro de sua
circunstância particular. Agir sobre o mundo que o cerca e oprime, um agir que pode ser
glorioso ou modesto, valoroso ou medíocre que seja, é essa a condição inexorável do
homem. “Em suma, a reabsorção da circunstância é o destino concreto do homem”
(Meditações do Quixote, José Ortega y Gasset. p. 31. 1 edição – Março de 2019 –
CEDET).
É o homem roteirista da própria história e não pode estar na vida sem um projeto,
pois um personagem carece de falas e ações. Os atos precisam de roteiro e por vezes, de
improviso, porém sempre, de propósito; a atuação visa o espetáculo. O público observa,
julga, diverte-se, ao ator, cabe desempenhar bem ou mal seu papel. Viver é estar numa
peça sem roteiro onde se é, ao mesmo tempo, ator e diretor. O homem tem de inventar sua
história, aquilo que pretende ser, por isso, viva é também, pretensão. O personagem pode
mudar drasticamente, falhar miseravelmente ou arrancar aplausos da plateia, mas nisso
tudo, tem ele de decidir como agir e o que ser, ou escolher não agir e o que não ser.
Acumulando o passado e confrontando posições, sendo e deixando de ser; caminhando
para algo e por algo, seguindo propósitos ou ilusões, em tudo, sendo ele mesmo
responsável por suas ações. Pois se a vida é o que fazer, sou eu quem faço. É o eu que age
na vida escolhendo suas possibilidades. Viver é ato, mas também consequência. Cito
Julían Marías:

Pois bem, minha vida é um que fazer, isto é, sou eu que tenho de fazê-la, tenho
de decidir a cada instante o que vou fazer – e portanto ser – no instante
seguinte; tenho de escolher entre as possibilidades com que me encontro, e
ninguém pode me eximir dessa escolha e decisão (Julían Márias. História da
Filosofia. p. 510. Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo. 2004).

Todo viver é um viver-se, sentir-se, ter consciẽncia de sua existência. Os demais


seres não tem consciência de si próprios, a pedra não se sabe pedra, a árvore não se
sabe árvore e assim por diante. Os seres meramente físicos não fazem projetos, não
tem sonhos ou aspirações. A eles falta o que é comum ao homem: projetar-se ao
futuro. Por isso, somente o homem tem a responsabilidade por suas ações, pois
somente ele pode ponderá-las, pôr suas ações na balança e decidir o que fazer com a
vida que lhe é dada. E ao dar-se conta de si mesmo, o homem dá-se conta também
dos outros, das pessoas que o rodeiam, do mundo que o circunda. Agir no mundo é
dar-se conta de si e do mundo. Viver é, pois, quefazer. É problema, preocupação,
insegurança, e para concluir, drama.

4 - Vocação e destino.

Ortega repete por diversas vezes que circunstância é tudo aquilo que não sou eu, inclusive meu corpo e
minha alma. Tomo posse de meu corpo assim como tomo posse de uma herança. Faço minha vida com as
coisas que me são dadas, sejam elas físicas ou não, mas não sou nenhuma delas. O agir vital usa as
circunstâncias sem confundir-se com elas, usa-se o rio para chegar ao mar, mas não confunde-se com as
águas que correm. O que se faz com o que é recebido, é essa a definição do homem. Sendo assim, o homem
está sempre em definição, pois está sempre agindo, fazendo-se. Para agir no mundo, como já dito, faz-se
necessário um projeto de vida. É precisamente isso que Ortega chama de vocação. É sabido da maioria que
vocação vem do latim, vocare, que significa chamado. Ora, para que haja um chamado é necessário alguém
que chama. Um chamado sempre vem de fora, de uma força externa que aje sobre o sujeito, impelindo-o a
movimentar-se nesta ou naquela direção. Pode-se negar ou atender o chamado, mas em ambos os casos, se
faz necessário a ação. Escolher não fazer nada ainda é uma escolha. No entanto, seguir sua vocação é
essencial para se ter uma vida autêntica. Ao negar seu chamado, o homem falseia sua vida e a torna
mediocre.

É necessário ressaltar que vocação não se trata de profissão ou carreira, como popularmente se crê. A
verdadeira vocação é algo de âmbito puramente íntimo e pessoal onde cada indivíduo toma consciência de
que tem de fazer aquilo e não o contrário. Quando não agir de tal forma é negar seu projeto vital, trair quem
se é e fantasiar seu ponto de vista, tem-se então, uma genuína vocação. Um verdadeiro projeto vital busca o
sentido do que nos rodeia, um propósito sincero que nos dá um repuxão na consciência e meio que nos
empurra para uma diração e não para outra. É saber, dentro do leque limitado de possibilidades, aquela ação
que eu e somente eu posso desempenhar, é quando o eu olha atentamente desde seu ponto de vista e
descreve com o máximo de fidelidade possível aquilo que vê, pois ninguém além dele, pode ver com seus
olhos. É um ver ativo, que contempla e interpreta, uma certa atenção que ama e ordena as coisas ao redor. É
tomar posse do real, mesmo accorentados pelas limitações de nossas possibilidades, é saber a extensão
dessas correntes e então, agir de acordo com suas inclinações, sejam elas dar aulas de filosofia, pintar belos
quadros ou passear no campo. O plano de cada indivíduo é livre, ainda que limitado. Cabe ao homem que
escolhe e só a ele, caminhar de acordo com sua vocação escolhendo as circunstâncias que trazem harmonia
ao seu projeto.

4.1 - A ideia do Náufrago.

Ortega diz que uma vida autêntica é, pois, tarefa do homem que se encontra perdido.
Somente a alma que busca uma certeza fundamental, algo que a permita saber a quê ater-
se na vida pode filosofar. Esta é a razão do por quê e para quê filosofa o homem. Ao tomar
consciência da inexorável situação humana – que é vida e problema – busca-se algo a que
se agarrar, uma tábua de salvação em meio ao mar de falsidades e mentiras. O homem de
alma elevada, agarra-se ao que lhe é necessário, às ideias que dão sentido à sua vida. Não
o faz por ego ou mera convenção, o faz para viver. Lê-se na Rebelião das Massas que

O homem de cabeça clara é aquele que se liberta dessas “ideias”


fantasmagóricas e olha a vida de frente, e assume que tudo é problemático nela,
e se sente perdido. Como isso é a pura verdade – a saber, que viver é sentir-se
perdido –, aquele que o aceita já começou a se encontrar, já começou a
descobrir sua autêntica realidade, já está em terra firme. Instintivamente, como
o náufrago, buscará algo a que se agarrar, e essa busca trágica, peremptória,
absolutamente veraz, porque se trata de salvar-se, o fará ordenar o caos de sua
vida. Essas são as únicas ideias verdadeiras: as ideias dos náufragos. O resto é
retórica, postura, farsa íntima. Aquele que não se sente verdadeiramente
perdido, perde-se inexoravelmente; quer dizer, jamais se encontra, nunca
encara a própria realidade (A Rebelião das Massas, ORTEGA, p. 239. Vide;
Edição: 1ª (22 de janeiro de 2016))

A condição de náufrago é a autêntica condição humana. O mundo nos é estranho, instável


e assustador. É na angústia das circunstâncias que surge a filosofia. A busca pela verdade
se dá em meio a mentiras. Só busca a luz do sol, aquele que vive nas sombras. Ao deparar-
se perdido nas vicissitudes do universo, o homem buscará um ponto firme. Algo sólido
para por os pés. E surge então, do agir sincero, cultura, arte e a religião. A cultura nada
mais é que uma ilha para quele que se afoga. Ao sair da passividade e buscar ordem no
caos o homem salva suas circunstâncias e com isso, a si próprio. Ao viver apenas como
ser passivo diante da opressão do universo o homem rebaixa-se aos andares inferiores de
seu destino. Há momentos em que se tem que fazer algo, e são esses momentos que
diferenciam uma vida autêntica de um falso viver: um viver sempre abaixo das
circunstâncias. A alma passiva observa o mundo com certa sensação de controle e
segurança; seguro em seu navio de certezas nunca experimentará a vida real, viverá para
sempre na comodidade de um mundo artificial que parece bem imitar a vida, mas dela
distancia-se como o brilho de uma estrela morta distante. Tal alma jamais agarrará a
realidade tal como ela é, daí a única ideia sincera ser a ideia do náufrago. Ele a abraça com
todas as forças por saber que sua salvação depende disto. Não o faz por capricho, ego ou
retórica vazia, como diz Ortega, o faz para viver, pois a vida humana é, querendo ou não,
urgência.

É preciso urgentemente saber o que é o mundo de nosso tempo. Para Ortega, saber uma
nova forma de ser espanhol, saber a que se ater, ser uma geração que aceita a realidade e
assim toma posse dela. Isso não significa conformismo, pelo contrário, aquele que
reconhece estar perdido busca incansavelmente achar-se. Esclarece Marías (1960, p.67):

Quando digo aceitação da realidade, não quero dizer “conformidade” com ela,
muito menos “conformismo”, pelo contrário: aceitação da realidade tal com é,
e encontram que é, paradoxalmente, inaceitável. Quero dizer com isto que lhe
vão tomar precisamente como algo no qual se pode ficar, porém de onde se
pode partir. O naufrágio em que consiste a realidade espanhola vai ser o ponto
de partida.

E ainda: “Os homens de 98 fazem literatura, arte, história, ciência, porque não tinha mais
remédio, porque partem de um náufrago e necessitam saber a que ater-se” (MARIAS, 1960, p.
68). A única coisa que pode salvar a Europa é saber a que ater-se, ou seja, uma autêntica
filosofia. Em suma, o eu precisa “sair de si mesmo” e encarar o mundo ao seu redor. Na
síntese das sínteses, o eu precisa viver: “Mas isso – uma realidade que consiste em que um eu
veja um mundo, pense-o, toque-o, ame-o ou deteste-o, e aguente-o e sofra-o – é o que desde
sempre se chama “viver”, “minha vida”, “nossa vida”, a de cada um” (O que é filosofia?
GASSET, Ortega, p. 214. Vide; Edição: 1ª. 10 de agosto de 2016))

El Spectador – a verdade do ponto de vista.

Como já foi dito aqui, para Ortega o conhecimento não deve ser
analisado a partir do falso dilema entre vida e razão e sim visto desde uma
superação do dito dilema; nem nos vale o racionalismo, tese segundo a qual o
sujeito não tem primazia alguma, sendo um sujeito transcendental, sem vida nem
história. Tampouco é válido o relativismo, segundo o qual todo sujeito é particular
e a realidade deforma-se de modo distinto segundo o sujeito, não havendo um
conhecimento universal e verdadeiro. A solução, segundo propôe o filósofo, é o
perspectivismo: a estrutura psíquica de cada indivíduo é um receptor que
depende das circunstâncias em torno, ou seja, a realidade é percebida de dentro
do campo vital do sujeito. Em El tema de nuestro tiempo nos é apresentado a
verdade do ponto de vista, uma tentativa de resolver o problema das relações
entre vida e cultura, ou para ser mais exato, entre vida e razão. A síntese na qual
o vitalismo e o culturalismo se unem e assim desaparecem, eis o que Ortega
denomina perspectivismo. A realidade não está acima do ponto de vista
individual. A verdade do mundo não pode ser vista fora do ponto de vista de cada
indivíduo: “O ponto de vista individual me parece o único ponto de vista desde
qual se pude ver o mundo em sua verdade” (El Espectador I, p.19. 1916,
Biblioteca Nueva. Tradução nossa).
Antonio Rodríguez Huéscar em seu Perspectiva y Verdad (Alianza
Universidad), Primeira edição em Revista de Occidente, 1966 que o
perspectivismo é a teoria geral da filosofia orteguiana e não uma doutrina à parte,
dentro dela. A perspectiva do homem dentro de sua vida é de suma importãncia
para qualquer investigação. Deve-se ser fiel à seu ponto de vista para que se
possa viver uma vida autêntica, ainda que tal ponto de vida seja problemático.
Para Ortega a realidade é percebida desde as destintas perspectivas; ou seja,
não existe um ponto de vista absoluto, uma visão eterna que abarque todo o real.
Assim sendo, a realidade do universo por econtrar-se fora de nossas mentes
individuais, só pode ser contemplada a partir de várias perspectivas. Uma visão
sub especie aeternitatis à lá Espinosa não seria verdadeira, a visão de Ortega é
bem mais próxima de Leibniz, onde cada mônada é uma perspectiva do
universo, uma parte única da verdade. Os diferentes pontos de vista entre os
homens não implicam na falsidade de uma delas, pelo contrário: cada vida é um
ponto de vista sobre o universo. Assim como uma paisagem admite diferentes
descrições, a realidade admite destintos pontos de vista. Diferentes perséctivas
ampliam, mas não negam a perspectiva individual.
A verdade, através de cada ponto de vista, cada perspectiva, adquire
uma dimensão vital. Não se trata de um relativismo, mas de uma profunda
fidelidade ao que vitalmente somos; um olhar atencioso e honesto para nossas
circunstâncias a fim de conhecer o mundo e aceitar nosso destino. Tem-se então,
uma inversão na escala axiológica, elevando à categoria dos valores vitais. A
posição de cada indivíduo no mundo é o que lhe permite captar a parte da
realidade que corresponde ao seu ponto de vista. Cada indivíduo é por assim
dizer, um aparato de conhecimento insubstituível. Ele e somente ele, enxerga
desde seu ponto de vista. Ele é único e insubstituível. Ninguém pode ver pelo
outro, sentir suas dores e emoções, viver sua vida. No entanto, um ponto de vista
é uma verdade fragmentada que precisa das outras partes para completar-se.
Uma verdade total só é possível a partir de uma união de várias verdades
particulares ou seja, somente considerando o ponto de vista do próximo. Levando
em conta todas as verdades particulares teremos o ponto de vista de Deus que é,
nada mais, que a soma dos pontos de vista individuais. Desse modo, se
conhecemos alguma verdade não é por contemplá-la desde o ponto de vista de
de Deus, o inverso parece mais verossímel, diz Ortega, “Deus vê as coisas
através dos homens, os homens são órgãos visuais da divindade” (Obras
Completas Vol. 1).
Em sua coleção de ensaios El Espectador, apresenta o indivíduo de alma
filosófica que não é um dogmático, nem lógico ou grande sistematizador e sim,
aquele que é fiel à sua perspectiva. Em Verdad y Perspectiva (El Espectador I),
lê-se o poético trecho:

De todos os ensinamentos que a vida me deu, o mais amargo,


mais perturbador, mais irritante para mim, foi convencer-me de
que as espécies menos frequentes sobre a terra são as dos
homens verdadeiros. Eu tenho buscado ao redor, com um olhar
suplicante de náufrago, os homens a quem importasse a
verdade, a pura verdade, o que as coisas são por si mesmas, e
encontrei apenas alguns. Eu tenho buscado perto e longe, entre
os artistas e agricultores, entre os ingênuos e os “sábios”. Como
Ibn Batuta, tenho tomado o cajado do peregrino e caminhado
pelo mundo à procura, como ele, dos santos da terra, de homens
de alma espetacular e serena que recebem a pura reflexão do
ser das coisas. E tenho encontrado tão poucos, tão poucos, que
me afogo! (El Espectador I, p.15. 1916, Biblioteca Nueva.
Tradução nossa)

Em contraponto com as visões consagradas pela tradição Ortega afirma


que a realidade última não é nem matéria nem espírito, mas uma perspectiva. O
homem deve esforçar-se para arregalar os olhos e ver a realidade que lhe é
apresentada, buscar honestamente a verdade das coisas exposta a partir de seu
lugar no cosmo. Não há falsidade na perspectiva, desde que o indivíduo seja fiel
ao que vê e não troque sua visão real por outra imaginária. O ponto de vista
sincero sobre o mundo é em si um aspecto real desse mesmo mundo e todos os
homens partilham dessa missão: ver a parte da realidade que lhe cabe. “A
realidade não pode ser vista a não ser desde o ponto de vista que cada qual
ocupa, fatalmente, no universo. Aquela e este são correlativos, e como não se
pode inventar a realidade, tampouco se pode fugir do ponto de vista” (El
Espectador I, p.20. 1916, Biblioteca Nueva. Tradução nossa).
Ser fiel a sua perspectiva é a missão do espectador, aquele que vê o
mundo desde o centro de sua vida e juntamente com os demais indivíduos,
podem descrever a realidade cada qual desde sua posição no universo. Seria um
erro tentar impor um ponto de vista sobre os demais, ou privilegiar um em
detrimento dos outros. Uma mesma casa tem um aspecto vista de fora e outro
vista de dentro, ainda assim, os dois são verdadeiros. Um mesmo bosque visto
de diferentes localizações permite diferentes descrições que não estão erradas,
mas incompletas se vistas isoladamente. Do alto de um morro pode-se ter uma
visão mais ampla das ávores e talvez notar o rio que circunda o bosque, mas isso
não torna inverídica a descrição do indivíduo que, embrelhando-se por entre as
árvores, pode notar as que estão com frutos ou floridas, os ninhos em seus
galhos e a vegetação rasteira que cresce aos seus pés. Os dois pontos de vista,
embora destintos, tratam da mesma realidade: o bosque. Um não é mais
verdadeiro que o outro, ambos descrevem aspectos da realidade que completam-
se como um quebra-cabeças. Um indivíduo apenas não pode descrever o
mundo, “a floresta está sempre um pouco mais além de onde estamos”
(Meditações do Quixote, José Ortega y Gasset. p. 46. 1 edição – Março de 2019
– CEDET). O indivíduo dá conta apenas da parte dele, a parte que lhe é
apresentada desde suas circunstâncias; somente em toda a humanidade se pode
ver o mundo. Cito Ortega: “Em vez de disputar, integremos nossas visões numa
generosa colaboração espiritual, e como as correntes indepentes se únem na
veia grossa do rio, componhamos a torrente do real” (El Espectador I, p.20. 1916,
Biblioteca Nueva. Tradução nossa)

6 – Consideraçoes finais.

A obra de Ortega y Gasset, apesar de ter exercido grande influência


sobre a filosofia espanhola, também exerceu uma notável influência na filosofia
alemã (Heidegger), e em determinados pensadores existencialistas,
principalmente em sua concepção de autenticidade e falsidade: a vida autêntica
implica conhecer e assumir sua circunstância de forma que viver seja agir no
mundo e sobre o mundo. Ortega declara também o caráter determinadamente
livre do homem no mundo, “somos livres à força” ou “obrigados a ser livres” como
diria Sartre. Em suma, a filosofia de Ortega y Gasset antecipou muitas teses
filosóficas posteriores e criou, por assim dizer, toda uma escola filosófica que
resignificou conceitos antigos trazendo uma nova forma de pensar o homem
enquanto tal, através da tese central do pensamento orteguiano: a ideia da
Razão Vital.
O raciovitalismo corrige a visão racionalista de Sócrates e da filosofia grega em geral,
filosofia sobre a qual se erguirá todo o Ocidente e o continente europeu. Ortega de forma
bem pessoal, inverte a perspectiva racionalista de filósofos como Spinoza, Leibniz e
Descartes – verdadeiros criadores da modernidade – ao fazer da vida princípio absoluto
da razão. Fortemente aproximado ao pensamento de Dilthey, Ortega reafirma a primasia
da vida sobre a razão e exalta o explendoso milagre do viver. A razão como serva da
vida e não o contrário, é esse o centro da filosofia orteguiana, tema que perpassa por
toda sua obra e mais especificamente, em El Tema de Nuestro Tiempo (1923).=, onde o
problema está posto de forma mais sistemática.
A questão toda é saber se a Razão Vital é o tema de nosso tempo, tal como o foi do
tempo em que viveu Ortega. Essa questão, deixamos para os leitores deste trabalho.
Fato é, que o filósofo espanhol inaugurou toda uma nova forma de fazer filosofia que já
está aí. Qualquer um pode chegar-se à sombra da grande árvore plantada por Ortega e
deliciar-se com os frutos de uma filosofia que visa colocar a espontaneidade da vida de
volta ao centro das investigações.
Uma filosofia voltada para o viver baseia-se na colação entre o eu e suas circnstâncias,
tal relação se dá, segundo Ortega, através de uma doutrina do amor. O sujeito deve ligar
coisa com coisa numa relação de necessidade do sujeito para com as coias que o
circundam e vice-versa. O mundo não existe sem o eu e o eu não existe sem o mundo.
Para compreender sua realidade o indivíduo precisa amar. O amor é a chave que une
tudo e cria uma situação de necessidade entre os pares. O amador precisa da coisa
amada e precisa radicalmente. O amado lhe é insubstituível e totalmente necessário.
Ortega nos remete ao banquete de Platão, onde Sócrates define o amor como a busca
pela metade que nos falta. Ou seja, as coisas não são o eu, mas completam-no.
Tornam-o aquilo que ele é. Apontando seu destino concreto, sua vocação. De forma que
é impossível falar do amado sem levar em conta o amador, não existe amado sem o
objeto de seu amor. Marías (1967) acrescenta a seguinte “fórmula”: coisa a coisa e tudo
conosco. Em “O homem e sua circunstância: introdução à filosofia de Ortega y Gasset”,
Vilson Ribeiro Santos, www.funrei.br/revistas/filosofia, relata:

Há em Ortega uma rigorosa conceituação filosófica acerca da relação


entre o Eu e sua circunstância. Nessa fórmula, temos um ”Eu” que está
nativamente aberto à sua circunstância, isto é , à realidade que o
circunda. Esta realidade é, sem dúvida, distinta do Eu; mas, ao mesmo
tempo, é inseparável dele; de modo que, para Ortega, não há como
tornar o Eu sem sua circunstância.
A elevação da circunstância ao patamar de conceito filosófico dá-se seguida de uma
negação da metafísica clássica fundada seja matéria, seja na ideia do mundo. Surge
então a teoria da perspectiva, só desde o ponto de vista particular pode-se ver o mundo
tal como ele é. Tal método pode ser apontado por este trecho de Ortega y Gasset
(1966a, p. 322)

Havemos de buscar para nossa circunstância, tal como ela é,


precisamente o que tem de limitada e peculiar, o lugar acertado na
imensa perspectiva do mundo. Não nos deteremos perpetuamente em
êxtase perante os valores hieráticos, mas conquistemos para a nossa
vida individual o posto oportuno entre eles: a reabsorção da
circunstância é o destino concreto do homem.

A verdade do ponto de vista aparece em Ortega e é aqui apresentado como um


apelo à superação entre falsas dicotomias que só atrapalham a investigação filosófica.
Tomar partido A ou B em detrimento das demais visões é algo fora de questão, não há
mentira no ponto de vista quando se é fiel a ele, há sim, um erro de perspectiva. O
pecado de satâ, diz Ortega, foi um erro de perspectiva. Sua obra não é política, é anterior
à política. Critica o “politicismo”, uma forma de ver o mundo em que tudo é absorvido
pela política. Em um tempo onde a política domina as discussões e tudo, até mesmo
religião, literatura e filosofia, é visto do ponto de vista da política e a única questão
central é saber se a pessoa é de “direita” ou de “esquerda”, a filosofia orteguiana surge
como um oasis de prudência. Um apaziguador de ânimos. Este trabalho surgiu de uma
necessidade de pensar a vida do homem como princípio do pensar filosófico, e avida
nunca é estática e acabada, há vários modos de viver assim como há vários pontos de
vista e todos eles, se fiéis ao que veem, são verdadeiros Entendo com Ortega que sem a
consciência vital e histórica e sem a colaboração mútua das várias perspectivas. “Yo só
yo y mi circunstância”, o “yo”, segundo Ortega, jamais pode ser definido como uma
realidade ontológica independente, Não se pode conceber o eu sem o mundo
simultaneamente. Essa é a luta de Ortega contra o idealismo.

O agir humano só é sincero quando tem consciência clara se seu lugar no


mundo e de suas possibilidades vitais, nas palavras de Ortega:

Tanto vale dizer que vivemos como dizer que nos encontramos em um
ambiente de possibilidades determinadas. A este âmbito chama-se “as
circunstâncias”. […] Porque este é o sentido originário da ideia de
“mundo”. Mundo é o repertório de nossas possibilidades vitais. Não é,
pois, algo a parte ou alheio a nossa vida, senão que é sua autêntica
periferia. Representa o que podemos ser, portanto, nossa
potencialidade vital. Esta tem que concentrar-se para realizar-se, ou,
dito de outra maneira, chegamos a ser só uma parte mínima do que
podemos ser. Daqui que nos parece o mundo uma coisa tão enorme, e
nós, dentro dele, uma coisa tão pequena. O mundo ou nossa possível
vida é sempre mais que nosso efetivo destino. (O.C., v 4, 1951a,
p.163).

Ao negar a correlação da vida particular com a vida coletiva, o viver torna-se


carente de autenticidade, pois nega o real. A negação das circunstâncias reais faz da
própria filosofia algo pueril, as ações tornam-se inautênticas e o viver, mero acaso.
Aprender com Ortega é compreender que a vida carece de projeto apesar de ser
sempre, drama. Nosso intuito com este trabalho foi apresentar os pontos julgados
centrais na filosofia de Ortega, e esperamos que os comentários aqui feitos sirvam como
um convite à filosofia espanhola, tão pouco trabalhada em nossas universidades.
Acreditamos também que tratar sobre o perspectivismo: a verdade do ponto de vista,
tema tão caro ao Ortega, sirva para pensarmos o momento histórico que estamos
vivendo, onde tudo é visto por uma visão dualista e os debates, até os ditos filosóficos,
se resumem a tomar partido. O que é óbvio para o filósofo espanhol é que os grandes
sistemas filosóficos do passado apesar da pretensão, não conseguem dizer a verdade de
forma perfeita e cabal, o que nos obriga a revisar sempre a história da filosofia, sempre
nos voltar para o passado antes de ir para o futuro, somos obrigados a sempre revisar as
teorias do passado antes de criar novas. Assim sendo, não existe visão acabada sobre algo.
Sempre há algo para acrescentar e sempre há uma forma nova de ver algo do passado,
embora com seus erros, Diz Ortega que os grandes sistemas filosóficos não estão
esgotados, e devem ser revisados. Aprendemos e muito, com os erros do passado.
Ao tratar da vida como ponto fundamental da investigação filosófica, decidiu-se
por manter o foco em determinadas obras, embora não foi descartado o uso de inúmeros
escritos do autor estudado. Assim sendo, obras como Meditaciones del Quixote, El
Espectador e El Tiema del Nuestro Tiempo tiveram aqui total importância, embora não
importância única. O objetivo central deste trabalho é mostrar como a vida tornou-se o
problema de nosso tempo, numa superação do idealismo e do realismo, a partir de
Ortega. Através de sua filosofia, buscamos trazer luz à pergunta fundamental: o que é a
vida? É essa a pretensão da razão vital, propor uma resposta a essa pergunta que seja
livre das amarras da tradição, embora incorporando-se a ela. Para Ortega, o que
diferencia o homem do animal não é a racionalidade ou inteligência, e sim a memória. Ao
contrário da maioria dos animais, o homem lembra-se do que fez no dia anterior, recebe o
legado do homem de ontem, seus erros e acertos, os absorve e os repassa para o homem de
amanhã, um tigre é sempre o mesmo tigre, pois a cada dia tem de começar de novo.

7 - Conclusão.

Nosso intuito foi mostrar que o ser humano precisa filosofar. A filosofia é
uma função de sua vida e consiste em tentar conhecer o todo em seu conjunto.
Ou seja, a finalidade do pensar filosófico é averiguar o universo e tudo quanto há,
desde o ponto de vista da vida humana. O pensar sobre aquilo que lhe é dado,
sobre as perspectivas insuficientes e fragmentadas. Voltar-se às coisas com
sinceridade e necessidade radical de náufrago. Filosofar é, segundo aqui
exposto, abordar assuntos sobre a existência e a realidade e sobre a capacidade
humana de compreendê-la. Uma reflexão sincera sobre o eu e o mundo. Ao viver
o homem se encontra de modo inevitável, limitado por suas circunstâncias.
Encontra-se fatalmente no mundo, porém esse mundo não é algo abstrato e
universal, mas uma realidade concreta e particular em que se depara com seus
próprios problemas e é forçado a agir. Quando o ser humano nasce, obviamente as
suas possibilidades vitais são numerosas, à medida que a vida passa e a velhice chega, as
oportunidades de escolha se limitam cada vez mais, viver é poder e fazer tais escolhas e de
certa forma, seguir sua vocação. O mundo, portanto, não é algo sem relação com o Eu,
mas é seu quintal, digamos assim, aquilo que podemos vir a ser, nossa potencialidade vital
que tem de ser concretizada, atualizada, porém ao pegar um rumo na vida deixamos de
pegar outros, logo, chegamos a ser só uma parte ínfima do que podemos ser. Sendo assim,
nos assustamos diante do mundo e sua enorme potência de ações, por isso, o viver é
sempre problema.
Em suas obras – e aqui procuramos expôr – Ortega se ocupa em afirmar a vida
como realidade radical. Sua concepção busca uma superação da noção ontológica
tradicional, seja uma visão realista ou idealista/racionalista, que define o ser como algo
acabado. Em Ortega, esta visão cede espaço a uma “definição” atuante, ou seja, o
homem define-se sempre, seu ser consiste em uma interação com o mundo e essa
interação sempre é devir. Um devir atuante que toma consciência de sua condição no
universo, que sabe o que lhe ocorre e esforça-se para encontrar-se em sua vida, um eu
que a partir de seu lugar no mundo aspira elevar-se e transforma sua época ainda que
mude apenas seu viver, eis a vida autêntica. Para concluir, cito Ortega;
E há em mim uma substancial, cósmica aspiração a erguer-me da fera
como de um leito de sangue. Não me obrigueis a ser só espanhol se
espanhol só significa para vós homem da costa reverberante. Não
enfieis guerras civis em minhas entranhas; não aguceis o ibero que vai
em mim com suas ásperas, desgrenhadas paixões contra o loiro
germano, meditativo e sentimental, que ofega na zona crepuscular de
minha alma. Aspiro a pôr a paz entre meus homens interiores e os
empurro à colaboração (Meditações do Quixote, José Ortega y Gasset.
p. 89. 1 edição – Março de 2019 – CEDET).
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