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RESUMO
Projecto é o instrumento que acomuna as disciplinas de Arquitectura, Urbanismo
e Design; é por meio do acto de projectar que se introduzem, hoje em dia, formas
novas no mundo, “da escala da mão à escala da cidade” (como se costuma dizer). O
projecto nas áreas da Arquitectura, Urbanismo e Design compreende, além do mais,
uma preocupação do foro estético ou artístico, que não comparece na geração de
formas da esfera tecnológica. Atentar no Projecto enquanto instrumento, perceber
as suas especificidades, as suas componentes, os seus mistérios e, sobretudo, ques-
tioná-lo, racionalmente, acerca de como melhorar a qualidade dos seus resultados,
é fundamental para o sucesso daquelas três disciplinas.
O presente estudo repercorre brevemente a história dos Métodos de Projecto,
detendo-se no momento charneira de introdução do “desenho”, para chegar à con-
ceptualização da essência do Projecto. A essência do Projecto será analisada de
três pontos de vista: do ponto de vista dos estudos próprios dos Métodos de Pro-
jecto (Design Methods), do ponto de vista da Estética e da Semiótica, e do ponto de
vista da Psicologia Cognitiva e Neurociências. Embora esta análise parta de campos
muito diferentes ela releva uma surpreendente homogeneidade conceptual do acto
de projectar (o que assevera a veracidade da análise): projectar é estruturalmente
composto por dois momentos que se repetem ciclicamente: o momento genera-
tivo e o momento avaliativo ou crítico. O momento generativo funciona de maneira
inconsciente (ou involuntária); o momento avaliativo tem uma clara componente
consciente (ou racional).
Estas descobertas permitem-nos então interrogarmo-nos acerca do que fazer
para fomentar a qualidade dos resultados do Projecto. Para além da resposta óbvia
– de que a prática do Projecto favorece, tendencialmente, um incremento de qua-
lidade – tratar-se-á de pensar em como contribuir teoricamente para melhorar a
qualidade dos resultados, ou seja, quais os contributos teóricos efectivamente úteis
ao Projecto em Arquitectura, Urbanismo e Design. (Daqui decorrem, como é óbvio,
importantes consequências para a didáctica do Projecto.) Comprova-se que os adju-
vantes teóricos que se podem fornecer para um melhor funcionamento do momento
generativo passam pela aquisição de Cultura da área disciplinar específica, onde os
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Neste texto, seguindo a regra corrente de gramática, usaremos palavras com maiúscula inicial, enquanto
substantivos próprios, quando nos queremos referir ao nome próprio das disciplinas: assim Arquitectura, Urbanismo,
Design, Arte, Projecto. Usaremos as mesmas palavras com minúscula inicial, enquanto substantivos comuns, quando
nos referimos às obras produzidas por essas disciplinas: assim arquitectura(s), urbanismo, projecto, arte. A palavra
‘design’ é um caso particular, porquanto essa palavra em inglês designa também ‘projecto’: por exemplo, ‘Design
Methods’ corresponde em português a ‘Métodos de Projecto’. Neste caso não usaremos a regra geral, de modo a não
suscitar confusões, e as obras produzidas pela disciplina do Design serão sempre explicadas como “obras de Design”
ou “peças de Design”.
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Trecho “Pruitt Igoe” do filme “Koyaanisqatsi”, realizado por Godfrey Reggio (1983), sobre música de Philip Glass,
com imagens de Ron Fricke, produzido por Francis Ford Coppola; http://www.dailymotion.com/video/x2fjyj_
koyaanisqatsipruittigoe_shortfilms
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Veja-se também relativamente ao apreço inicial pela estética dos edifícios as entrevistas aos moradores no
documentário “The Pruitt-Igoe Myth (http://www.pruitt-igoe.com/)”
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http://www.youtube.com/watch?v=S1qpf9hogI0
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“Christiane descreve com extraordinária perspicácia os malefícios de um urbanismo que praticamente programa a
degradação da comunicação entre os seres humanos. Os desertos de betão de muitas das nossas modernas
«urbanizações» encerram as pessoas num ambiente totalmente artificial, frio e mecânico, que agrava
catastroficamente todos os problemas e conflitos que as famílias trazem na bagagem quando aí se instalam.
Gropiusstadt não é senão um exemplo: são numerosos esses vastos complexos urbanísticos, construídos numa
perspectiva meramente funcional, técnica, sem qualquer atenção às necessidades afectivas dos seres humanos. Assim,
transformam-se em ambientes propícios a todo o tipo de perturbações psíquicas, bem como — e não por acaso — em
«zonas de risco» para a proliferação do alcoolismo e da toxicodependência juvenis. (Horst-Eberhard Richter: Médico e
doutor em filosofia (n. 1923). Entre 1952 e 1962 desempenhou as funções de médico-chefe no Centro de Consulta e
Investigação para os Problemas Psicológicos da Infância, em Berlim. In Prefácio a Os Filhos da Droga. Christiane F.,
2011, pp. 13-15)
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O “Brainstorming” é uma técnica de facilitação do pensamento criativo desenvolvida e aplicada inicialmente para
as tarefas de Marketing e Publicidade. Foi criada por Alex Osborn em 1942. Desenvolve-se do seguinte modo. Numa
sala de reuniões encontram-se vários indivíduos envolvidos no processo criativo. É fornecido um problema e os
presentes vão sugerindo soluções, à vez. A regra principal é a de que nunca se pode criticar a sugestão apresentada,
nem a sua nem a de outro. O processo desenvolve-se assim de modo a que as sugestões novas se podem apoiar nas
mencionadas anteriormente, criando analogias sucessivas. O facto de não se poder fazer críticas significa que essa
função mental é inibida. De modo a facilitar ainda mais este processo, há na sala de reuniões uma pessoa que não
toma parte no processo criativo e que tem por responsabilidade única ir tomando nota das ideias sugeridas, libertando
assim os outros dessa preocupação. De acordo com Kowatolwski et al (2010): “Brainstorming is probably the
best-known method to stimulate creativity, where experts from various fields put their ideas forward without prior
judgment. There are basic rules to Brainstorming: Focus on quantity; No criticism; Unusual ideas are welcome since
they combine and improve ideas. In Osborn’s (1957) definition, Brainstorming is a conference technique by which a
group of people attempts to find a solution for a specific problem by amassing ideas spontaneously.”
O “brainstorming desenhado” é um processo semelhante, em que se usa o desenho. Há várias versões: o desenho pode
ser usado como meio de comunicação entre vários criativos envolvidos no processo (técnica também chamada
“brainsketching”), ou pode, ser usado só no diálogo de um criador consigo próprio. Nesta última versão, que de muito
nos serviu, quer como projectista quer como docente, fomos iniciados pelo professor Daciano Costa na Faculdade de
Arquitectura. Não tendo conhecimento de outro autor que assim denomine esta técnica e assim a aplique, queremos
prestar-lhe a nossa homenagem, dedicando-lhe este ensaio.
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Entende-se por “intencionalidade fenomenológica”, em termos gerais, a noção de que a percepção de qualquer coisa
ou ser presume sempre uma intenção: o sujeito-perceptivo está sempre de antemão engajado num tipo qualquer de
expectativa, que é imediatamente espoletada na relação com o objecto percebido. Essa intencionalidade é
normalmente inconsciente. Foi Husserl quem primeiro cunhou o termo. Merleau-Ponty (1945) detalhou-o. No presente
caso torna-se evidente que a intencionalidade fenomenológica espoletada por uma obra de Arquitectura, Urbanismo
ou Design, nada tem a ver com a intencionalidade fenomenológica espoletada por um desenho de Projecto. Não
obstante, isso permanece inconsciente durante o processo de criação pelo desenho.
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É das actas deste congresso o provocante texto de Broadbent (1967/1971) “Notas sobre la metodologia del diseño”,
em que os aspectos globalmente estéticos, tipicamente preponderantes no entendimento da Arquitectura até à II
Guerra, são completamente – e justificadamente – eclipsados.
A APORIA FINAL
Ao dobrar da segunda década do século XXI nada conseguiu ainda substituir o
Projecto, tal como ele é tradicionalmente entendido, nas disciplinas de Arquitec-
tura, Urbanismo e Design; nem se verificou qualquer substancial evolução nos seus
mecanismos fulcrais. Se por um lado se pode entender isso como sinal da maturi-
dade substancial a que a ferramenta chegou, que já não admite ou requer melho-
ramentos importantes, por outro isso é também sinal de que o seu entendimento
permanece obscuro, não abrindo a possibilidade para intervenções concretas que
possam tornar o Projecto mais fértil e mais seguro. Um diagnóstico a vol d’oiseau
permite encontrar facilmente deficiências recorrentes, que seria útil corrigir.
A maior parte dos métodos de projecto, estudados e parametrizados, tem um
enfoque técnico-científico de que resultam inadequações aquando da aplicação nas
disciplinas que aqui nos preocupam. Houve sem dúvida avanços nos métodos apli-
cados a diferentes ramos da Engenharia, mas que só são aplicáveis às disciplinas
de Arquitectura, Urbanismo e Design à custa de severos sacrifícios que desvirtuam
a natureza destas disciplinas. A tentativa de aplicação daqueles métodos a estas
disciplinas resulta normalmente em soluções que só respondem bem aos aspectos
claramente enunciados, de género racional e positivo, deixando sem acompanha-
mento toda uma outra esfera, de espécie antropológica ou subjectiva, esfera a que
estas disciplinas também estão obrigadas a corresponder. Assim os projectistas que
enveredam por este caminho tendem a gerar soluções que são vulgarmente eti-
quetadas como “pobres”, não obstante serem tecnicamente competentes (é o caso,
por exemplo, da maior parte dos projectos contemporâneos de hospitais, que, para
corresponderem a um programa muito condicionado, acabam por ficar carentes de
uma verdadeira qualidade arquitectónica, que os torne imorredouros, que lhes dê
uma qualidade não exclusivamente instrumental). Por outro lado, os projectistas
que usam as metodologias tradicionalmente instituídas poderão chegar a configu-
rar soluções esteticamente mais “ricas”, inovadoras ou interessantes, mas a custo
de sacrificarem pressupostos tecnicamente exigentes. (É o caso do Guggenheim de
Bilbao, que para adquirir o revérbero de ícone urbano, sacrificou a qualidade do
espaço interior de exposições, recebendo o arquitecto, Frank Gehry, críticas vio-
lentas do escultor cujas peças foram alojadas no museu, Richard Serra; é o caso
também dos novos laboratórios do MIT, do mesmo arquitecto (La Cecla, 2008:38);
ou do projecto de Fuksas para o pavilhão Porta Palazzo, em Turim, que permanece
sem uso porque o arquitecto não considerou certas exigências técnicas no projecto
inicial e não admite corresponder-lhes agora, uma vez que, no seu entender, des-
virtuariam o valor plástico da sua obra (La Cecla, 2008:24).) Finalmente, a tentativa,
algo funambulesca, de compatibilizar ambos os tipos de exigências – correntemente
denominadas técnico-funcionais, de um lado, e estético-artísticas, de outro –, reve-
la-se, na prática, irrealizável, porquanto o projectista escolherá sempre uma ou
outra das vertentes como preeminente, caindo sempre em um ou outro dos defeitos
A ESSÊNCIA DO PROJECTAR
A descrição da constituição, ao longo da História, do processo de Projecto, além de
corroborar a nossa hipótese inicial, de que o Projecto, enquanto instrumento para a
realização de objectos artificiais, tinha responsabilidades substanciais nos insuces-
sos de tantas obras de Arquitectura e Urbanismo dos séculos XX e XXI, serviu tam-
bém para nos irmos dando conta dos constituintes elementares, das partes ou fases,
desse mesmo Projecto. Mas dessa descrição emergiu também que certas tentativas
de sistematização do Projecto, nomeadamente aquelas relativas ao primeiro período
dos Métodos de Projecto, resultavam bastante inapropriadas. Deparamo-nos agora,
pois, com a necessidade de descrever o fenómeno do Projecto de maneira analítica,
de modo a que se cumpra a principal finalidade deste texto – que é, recordamo-lo,
explicar como pode haver um contributo efectivamente útil de outros campos de
conhecimento, (nomeadamente dos de cariz teórico ou humanístico) ao Projecto, no
acto de Projecto, porquanto só há garantia de se poder experimentar essa matéria
humanística na obra acabada se ela for vertida e homogeneizada com outras compo-
nentes do projecto – formativas, funcionais, construtivas – no momento do projecto.
Mas deparamo-nos também com a necessidade de descrever o Projecto de maneira
suficientemente genérica, de modo a que contemple os múltiplos matizes dos diver-
sos modos de projectar de diferentes indivíduos, e de modo a que as discrepâncias
individuais não invalidem as recomendações que aqui fizermos. Assim apenas é
indicado estabelecer contornos muito amplos e essenciais.
Mergulhemos na experiência.
A EXPERIÊNCIA DE PROJECTAR
O Projecto nasce de um problema apresentado por outrem: é tipicamente a figura
do cliente. O projectista entende o problema enquanto pedido de geração de um
objecto artificial, ou de alteração de um determinado contexto espacial. Em qual-
quer das circunstâncias a solução do problema proposto ao projectista nas áreas
da Arquitectura, Urbanismo ou Design pressupõe a geração de uma forma real, com
existência material no mundo físico.
ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA.
Do que se disse antes resulta que se pode descrever a estrutura do acto de projec-
tar como a sucessão de dois momentos, que se repetem ciclicamente, aplicando-
-se, à vez, a diferentes aspectos, graus de pormenor e/ou escalas do problema. O
primeiro momento é o de criação de uma forma (que pode ser, e é nos primeiros
tempos do projecto, muito indefinida); o segundo momento, o de crítica dessa forma.
(Esta sucessão cíclica requer ainda, no início, antes de se iniciarem as tentativas
de geração da ideia resolutiva – fora do centro do Projecto, portanto – o momento
de recolha e processamento dos dados. A necessidade de recolher mais dados e os
processar pode ainda acontecer após o início das tentativas. Essa “recolha de dados”
pode passar inclusivamente por aquilo que Kneller (1965) chama “imagens informa-
tivas” e que poderíamos explicar como a acção de procura de fontes de inspiração.
Não aprofundaremos este assunto aqui na medida em que ele foi já muito estudado e,
por outro lado, não parece colocar problemas de maior, aos quais, por agora, mereça
dar atenção.)
Apesar de haver muitas formulações, desde há muito tempo, sobre o caminho ou
método de projectar, é possível reconhecer na maior parte dos autores uma estru-
tura correlacionável com aquela que descrevemos.
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Veja-se ainda a respeito da fenomenologia do projecto, para uma visão mais alargada que consolida o sumário
apresentado acima, o que diz, Akin (1986), Spencer (1990), Cross & Roozenburg, (1992), Ralph & Wand, (2009), e
especialmente Dorst (2010) que descreve com fidelidade e eficácia os processos mentais correlatos ao acto de projectar.
Para uma perspectiva histórica do assunto são muito interessantes as descrições de Wittkower & Wittkower
(1963/2007).
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As zonas occipitais têm, no entanto, como tarefa principal o processamento dos estímulos visuais – com circuitos
distintos (via dorsal e via ventral) mas complementares para o processamento da forma, movimento e reconhecimento
do objecto ou lugar. (Esta informação foi gentilmente cedida por Beatriz Perry Câmara, doutoranda em Neurociências
pela Universidade do Minho.)
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Seguimos, quando não se deu outra referência, as zonificações apresentadas por Lazar (2018).
A FASE DE CRIAÇÃO
Pode-se favorecer a fase de criação incidindo directamente sobre as funções de ini-
bição: a inibição dos estímulos exteriores será favorecido por um ambiente em que
o sujeito se sinta isolado (pode ser o ambiente de café, de que por exemplo Siza se
serve para projectar...); a inibição das soluções imediatas e pouco criativas pode
efectivar-se por um esforço consciente da vontade em não aceitar as primeiras solu-
ções que acorrem à mente, dando tempo à procura de novas ideias, prolongando
voluntariamente as sucessivas associações. Os projectistas em Arquitectura, Urba-
nismo e Design estão familiarizados com estas técnicas: é o caso por exemplo do
“brainstorming”, atrás mencionado; ou do brainstorming-desenhado, usando papel
semi-transparente, que facilitando a tarefa da memória de trabalho, permite ampli-
ficar as cadeias de analogias (veja-se atrás, em 2.2.).
ABDUÇÃO
A abdução (ab: longe de; ducere: conduzir, (Gerson, 2005:98)) é uma forma de racio-
cínio ou inferência, a par com a dedução e a indução. Durante o processo criativo,
estes três modos de raciocínio estão presentes (Santaella, 2004:92,94). A abdução é
o momento de invenção de uma hipótese explicativa – que, no nosso caso, pode ser a
forma primeira. A dedução e a indução entram em acção na fase crítica do Projecto: a
primeira explorando as ilações da hipótese (aperfeiçoando e selecionando as formas
geradas), a segunda, confrontado essa hipótese, robustecida pela dedução, com a
realidade (com os critérios ditados pelo programa, pelo lugar, etc.).
(Peirce insiste que se trata de “abdução” e não de “intuição”: “A intuição, segundo
Descartes a entendia, é uma cognição não determinada por outra cognição. É um
conhecimento certo e evidente, de carácter matemático e mental” (Gerson, 2005:95).
Dando-se, por assim dizer, num momento original, a indução (no sentido platónico
e cartesiano) distingue-se da abdução enquanto a primeira não requer ulteriores
raciocínios para se implementar na realidade (é o caso, por exemplo, daquilo que
a filosofia denomina o “princípio da não-contradição”: uma coisa não pode ser ao
mesmo tempo ela e outra. Tal afirmação não requer ulteriores provas.). Como é evi-
dente uma intuição não tem o poder generativo que se requer para a primeira fase
do processo criativo.)
Não nos serve aqui aprofundar muito a noção de “abdução”, mas importa, para
percebermos a dificuldade de aumentar a eficácia da fase criativa (visto que usa um
tipo de raciocínio abdutivo), reparar na chamada de atenção que o próprio Peirce faz:
diz ele que a abdução é instintiva, é produzida pelo “instinto da razão” (Peirce, apud
Gonzalez & Haselager, 2002). Peirce alvitra que a possibilidade que o ser humano
tem de inventar uma hipótese, que depois se verifica ser capaz de se adequar à rea-
lidade – facto que o próprio afirma que é sempre surpreendente (daí o “Eureka”) –,
CULTURA
Se o material que gera a abdução decorre de hábitos e procura hábitos (a subtracção
da surpresa), então significa que o potencial criativo procede de experiências de
habitação feitas (sobre a relação entre hábito e habitar veja-se Heidegger (1951b,
1959)). Não é um qualquer material que pode suscitar ideias novas, mas tão somente
aquele que foi assimilado, personalizado – para usar agora uma expressão de Hei-
degger, habitado. Não é qualquer “percepto” – enquanto informação ou mesmo
enquanto conhecimento –, que tem a capacidade de permear e criar assento nos
campos da memória, de onde, por analogia, se formulam as hipóteses abdutivas.
A semelhantes conclusões chegaram os investigadores de Métodos de Projecto,
descobrindo empiricamente que o potencial criativo de um indivíduo, numa deter-
minada área disciplinar, era directamente proporcional à cultura desse indivíduo
nessa área disciplinar (Coyne et al, 1990:506; Lubart, 1994; Kowaltowski et al, 2009).
A FASE DE CRÍTICA
A fase subsequente à fase criativa é a fase de crítica. Entendemos ‘crítica’ num sen-
tido que tem a ver com o seu radical grego, ‘krinein’, de onde deriva a palavra con-
temporânea ‘crivo’. Trata-se, portanto aqui, principalmente, de passar a produção
resultante da primeira fase por um crivo, ou filtro. Explicando: deverá executar-se
uma avaliação, correcção, hierarquização e selecção das ideias produzidas pelo pro-
cesso abdutivo.
A segunda fase diferencia-se nitidamente da primeira por se processar de modo
consciente, havendo sobre ela controlo da vontade: perante a ideia, imaginada ou
representada, é possível pôr em acção as competências críticas pessoais, é possí-
vel integrar facilmente critérios fornecidos por outrem, e é possível sempre anali-
sar melhor – segundo outros factores e/ou outros modos – (não apenas gastar mais
tempo na tarefa, que era o único tipo de acção voluntária que se podia executar
na fase criativa). Os problemas relativos ao aprimoramento da fase crítica de um
CRITÉRIOS
Como se disse no início deste capítulo há vários factores explícitos num problema,
ou pedido, feito por um cliente, em Arquitectura, Urbanismo e Design, mas, tendo a
produção destas disciplinas uma natureza de algum modo semelhante à da Arte, há
também muitos factores implícitos (porventura a maior parte e os mais decisivos).
Se a produção destas disciplinas não tem um carácter meramente instrumental – ou
seja, se os objectos não valem apenas por aquilo que permitem fazer, mas se se dá
também grande valor à sua aparência e àquilo que permitem sentir – então o juízo
que recai sobre esses produtos é estético, por inerência (“aesthesis”, no grego: sen-
sação). Àqueles factores objectivamente determinados – pelo programa, pelo local,
pelo orçamento – há que acrescentar outros, cuja essência é subjectiva. Ora isso não
seria um problema se estivéssemos numa situação eminentemente artística – como
na pintura, na escultura, na música, na poesia – em que os produtos destas discipli-
nas são apenas experimentados se se o desejar – é preciso ir a uma exposição para
ver certo quadro ou certa escultura; é preciso ir-se a certo concerto ou comprar-se
certo disco para se ouvir determinada peça musical; é preciso ir a um recital ou
comprar o livro para se ter acesso a certa poesia. Não é assim com os produtos da
Arquitectura, Urbanismo e Design, que povoam o mundo da existência quotidiana
de cada um de nós. No caso da produção das disciplinas que estamos aqui a analisar,
a incapacidade de gerar uma “estética” intersubjectiva torna-se agressão social, com
consequências na vivência das pessoas e dos lugares (foi o que vimos na Introdução).
Considere-se ainda que, os valores soberanos na apreciação da produção das
três disciplinas em análise, contrariamente ao que imediatamente parece, não são
dados pela correspondência aos critérios explícitos e objectivos, mas aos implícitos
e subjectivos. De facto o mais claro reconhecimento do valor destes produtos acon-
tece quando eles perdem o seu uso (devido a uma evolução tecnológica ou outra)
e, mesmo assim, se lhes continua a reconhecer valor, ao ponto de não se querer
prescindir deles. É o caso daquilo a que chamamos antiguidades ou monumentos:
objectos aos quais, quando lhes sobreveio a perda do uso, se lhes reconheceu outro
e mais sublime valor (Abreu, 2008; Abreu, 2010b). (Um caso gritante, mas luminoso,
é o da Central Tejo, em Lisboa: feito para ser uma central termoeléctrica para a
produção de electricidade a partir da queima de carvão – portanto aparentemente
com um valor meramente instrumental – quando se achou por bem suspender a
sua utilização, a consciência social quis preservá-la, ainda que sem um novo uso
evidentemente apropriado.)
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Sobre uma ontologia da arquitectura que corresponde aos parâmetros desenhados poder-se-ão ver outros trabalhos
do autor, nomeadamente Abreu 2010a e 2020c, bem como para uma contextualização mais alargada e respeitante a
problemáticas candentes Abreu 2018, 2020a e 2020b. Nestes textos è referenciada uma ampla bibliografia relativa a
este assunto.
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Pensamos que mesmo no Design esta afirmação mantenha a sua validade, apesar da sua estreita ligação à Indústria,
ao Mercado e à Técnica, porque apesar de haver infinitas esferográficas BIC, por exemplo, a sua forma é só uma. Veja-se
a este respeito o que diz Walter Benjamim (1936) em A obra de Arte na Época da sua Reproductibilidade Técnica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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