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PROJETO CULTURAL: REFLEXÕES PARA ALÉM DE UM

INSTRUMENTO TÉCNICO
Heloisa Bueno Rodrigues1

Resumo: O que são projetos culturais? O que eles revelam, movem ou põem em jogo?
Que atitudes podemos ter para com estes? Sabemos que o tema é amplo, com muitas
entradas e vias, algumas excessivamente técnicas, voltadas para uma maior eficácia
produtiva, outras mais contextuais, relacionais, de ordem mais sociológica ou
antropológica, e de fato, o projeto cultural, caminha entre esses termos. Reconhecemos
também, que diante deste tema tão central e vasto, não poderíamos querer esgotar suas
possibilidades. A tarefa a que nos propomos é outra. Não trazemos aqui, “receitas de
bolo”, mas procuramos defrontar os agentes e produtores com a pergunta que a prática
nos leva a deixar de fazer: afinal, o que pode um projeto cultural? Pergunta sempre
aberta que nos retira da obviedade do projeto e que por isso mesmo, não aceita resposta
conclusiva.

Palavras-chave: projeto cultural, cultura, território, planejamento cultural.

1
Bacharel em Produção Cultural pela Universidade Federal Fluminense. Desenvolve
consultorias na área de projeto cultural, envolvendo as fases de pesquisa, adequação a realidade
social, gestão e administração de projetos. E-mail: prod_helobueno@yahoo.com.br
Força e sentido da palavra projeto

Para iniciarmos nossa abordagem em torno deste tema, pretendemos desenvolver


aqui, uma primeira reflexão quanto aos sentidos que se colocam ao desígnio projeto e
que de alguma forma preparam os usos que consagram essa palavra-instrumento.
Retomando a origem da palavra projeto2 vemos que esta se relaciona à condição
de um projetar-se, de um jogar para frente. De fato, de forma mais ampla, todas as vezes
que utilizamos a palavra projeto, a usamos para representar alguma coisa que se lança a
frente de um tempo presente.
Poderíamos, então, estabelecer uma relação entre o conceito de projeto e a idéia
de utopia, uma vez que esta é entendida como o lugar de uma projeção, às vezes tido
como mera idealização, o lugar do sonho, do desejo ou de uma aspiração a realizar.
Nesse sentido a idéia de projeto, a entrever outra condição, poderia se aproximar
mais da noção de “utopia concreta”, ou seja, como um topos (lugar) que se pretende
passível de realização, em contraponto à idéia (negativa) de utopia (u-topos, não lugar)
como o lugar do não realizável.
Tal entendimento que podemos reconhecer em Ernst Bloch3 nos leva a
considerar o projeto como uma categoria mais ampla, voltando-se para o âmbito político
e social, como um horizonte (utópico), um patamar de transformação da sociedade;
Uma concepção que aproxima essa visão de mundo da idéia de projeto coletivo, talvez
hoje menos em voga em tempos de fragmentação.
Além disso, a noção de projeto pode também ser trazida à dimensão existencial,
como um lugar em contínua projeção e aspiração, como se fossemos movidos por
“sonhos diurnos”4 a nos lançar adiante.
Toda essa carga de sentido, intrínseca à denominação projeto, nos ajuda a
reconhecê-lo como um instrumento que visa à transformação do real na efetivação de

2
Projeto tem sua origem em projectus e este em projicaere, um verbo latino que quer dizer lançar para a
frente.(Cf. GANDOUR, Fabio L. Artigo: Por que chamamos qualquer coisa de projeto. Disponível em:
<http://info.abril.com.br/corporate/aplicacoes-de-gestao/por-que-chamamos-qualquer-coisa-de-
projeto.shtml>. Acesso em: junho de 2010)
3
Filósofo alemão autor de O Princípio Esperança, traduzido para o português por Nelio Schneider e
publicado em 2005 por Contraponto Editora.
4
Como se verifica no trabalho de Maria de Fátima Tardin Costa, “A Utopia na Perspectiva de Ernst
Bloch”. Diz a pesquisadora: “Bloch destaca uma diferença fundamental entre sonhos diurnos e sonhos
noturnos: ‘o sonho noturno é a realização secreta de desejos antigos e circula no campo do reprimido e
esquecido, já os sonhos diurnos são antecipadores do realmente possível, proativos na satisfação de
desejos e alterações de necessidades futuras e circulam naquilo que “nunca havia sido experimentado
como presente’(in BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança; tradução Nelio Schneider. Rio de Janeiro.
Contraponto Editora. 2005. v1, p.116).”
uma idéia que se torne concreta. Se o mundo já nos fosse inteiramente dado, a idéia de
projeto seria impensável, pois é justamente este fato que anima sua transformação.
Disso decorrem as múltiplas acepções dessa palavra que nos leva a diferentes
situações, como as que já nos referimos anteriormente (experiência individual,
experiência político e social) como também à condição de uma instrumentalização da
vida.
Nesse ponto tocamos um aspecto que nos leva a outras conformações do termo
projeto, já não apenas visto num sentido amplo de projeção ou virtualidade, mas de
forma mais restrita como instrumento de regulação e racionalização de processos ou
finalidades, como recurso e protótipos do planejamento e controle da vida.
É nesse campo de apropriações da noção de projeto que o vemos aparecer,
voltando-se para outros fins, sob a forma de projeto administrativo, projeto
arquitetônico, projeto científico, projeto tecnológico, dentre outros, e finalmente, como
não poderia deixar de ser, deparamo-nos com a noção de projeto cultural.
Não nos cabe aqui pormenorizar nenhuma dessas acepções, mas apenas indicar o
fato de que estas reafirmam o caráter instrumental e científico que muitas vezes envolve
o conceito do projeto. Nesse sentido será oportuno considerar uma outra acepção que
abrange boa parte dessas modalidades, instrumentais e científicas, e que diz respeito a
noção de projeto acadêmico. Esta modalidade nos interessa mais de perto para que
possamos reconhecer distintivamente, as especificidades do projeto cultural.
Traçando algumas linhas comparativas podemos reconhecer que a estrutura geral
do projeto acadêmico – a sua concepção – nos fornece os principais elementos que
embasam a formulação descritiva do projeto cultural, a saber: a definição de um objeto,
a caracterização dos objetivos, a justificativa para aquilo que é proposto e a aferição e a
avaliação dos resultados. Por outro lado devemos reconhecer nessa filiação (herança)
apenas um traço indicativo a relacionar essas duas modalidades, pois, não há dúvidas de
que a natureza das duas proposições é muito diversa5. E mesmo quanto a esses
componentes de formulação (apresentação, objetivos, justificativas) abarca sentidos e
abrangências distintas.
De qualquer forma não poderíamos perder de vista esse campo de relações,
principalmente levando-se em conta a importância e a ênfase quanto ao caráter de

5
Caberia também mencionar que um projeto acadêmico se faz sempre a partir de uma pergunta ou na
consideração de uma hipótese a examinar. Diferentemente, um projeto cultural, na forma que o
concebemos não deve se pautar sobre nenhuma dúvida, ou hesitação, mas na certeza do que pretende
alcançar expressando-se pelo seu poder de convencimento em relação aos que podem viabilizá-lo.
pesquisa, como prática estruturante que deve também nortear as formulações do projeto
cultural. Retomaremos alguns desses pontos mais adiante. Por hora, continuaremos
nosso percurso.

Projetualidade e o espaço da cultura

Com o objetivo de aproximar a noção de projeto ao tema desta pesquisa,


continuaremos nossa análise, fazendo convergir o conceito deste com a noção de
cultura, entendimento base para a construção deste trabalho, no tratamento da figura do
projeto cultural.
É reconhecido que o termo cultura, desde seus primeiros usos até a
contemporaneidade, se apresenta como um termo de ampla significação, cheio de
ambigüidades, que se molda a vários sentidos, “palavra armadilha” como alude o
filósofo Edgar Morin, que vem se desdobrando e se unindo a outros conceitos, criando
uma rede de significados e usos diferenciados, a cada novo contexto em que é aplicada.
Nesse terreno movediço, Morin distingue duas abrangências que conformam
também “duas grandes correntes do pensamento contemporâneo”, onde em seu dizer
“uma reduz a cultura a estruturas organizadoras e a outra reconduz a um plasma
existencial.”6
Nessa distinção interessa-nos a concepção de cultura entendida como uma
totalidade expressiva (plasma existencial), como um complexo simbólico de múltiplas
expressões e matérias que se moldam a uma contínua plasticidade, entendimento
(plástico) que também pretendemos estender e reconhecer na categoria de projeto.
Desta forma, podemos chegar a um primeiro entendimento de Projeto Cultural
como um procedimento que relaciona a matéria dinâmica da criação (individual e trans
individual/ equipes) com a matéria dinâmica dos múltiplos extratos da cultura.
Trabalharemos, portanto, a relação projeto-cultura, unindo esses dois conceitos,
não em sua dimensão tecnicista e instrumental, mas em suas potencialidades que muitas
vezes são desconsideradas por diferentes estruturas organizadoras.
Nesse sentido, partimos de uma visão de projeto como instrumento que estimula
a criação, a inventividade, à transformação e a reapropriação de conteúdos culturais. por
aqueles que os realizam, num determinado contexto cultural. Como exemplo, tomemos
o entendimento de Jorge Luiz Barbosa em seu artigo “Considerações sobre a cultura,
6
MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo II: necrose; tradução Agenor
Soares Santos. Rio de Janeiro, Forense – Universitária. 1986. 206p. pg. 103.
território e identidade”, ao aproximar os pólos cultura e projeto, como pretendemos
trabalhar aqui.
“A cultura é comunicação e desvendamento de si mesmo e do outro, pois traz na festa,
no canto, na dança, na comida, no adereço, na alegoria e na fantasia as expressões da
complexidade do vivido de indivíduos, etnias e grupos sociais. Trata-se do
entendimento de que a circularidade de bens, práticas e imaginários culturais é
indispensável para o enriquecimento da vida social como herança e, sobretudo, como
projeto, uma vez que a cultura é uma construção que permite aos seres humanos
projetarem-se na direção do futuro.”7

Desse modo, o trabalho do produtor se aproxima ao de uma modelagem que


toma a matéria cultural conferindo-a novos sentidos e materialidades. Ao mesmo tempo,
a categoria projeto, ao convergir com essa visão, deve fazê-lo considerando essa forma
dinâmica e maleável, que se transforma e se molda a cada nova situação, e que não se
estabiliza como uma fôrma, rígida e impositiva.
A forma a ser alcançada na modelagem de um projeto se opõe a fôrma, que
viesse a restringir a sua dimensão, uma vez que busca moldar a idéia expressiva, que
desdobra continuamente sua matéria de acordo com os extratos que utiliza.
Retomando aqui, aquela dimensão apontada por Morin, entendemos que esse
plasma existencial da cultura, rico em expressividade e inventividade, é o material
criativo, a argila do produtor. Ele deve buscar conhecer esta matéria, lançando-se ao
exercício plástico de moldá-la e remodelá-la.
No entanto, antes de prosseguirmos no enfoque de outro entendimento de
projeto cultural, numa apropriação mais pragmática e contextual, examinemos a título
de breve debate, algumas dificuldades apresentadas por uma postura crítica no que
tange à categoria do projeto, o que pode também ser estendido à figura do projeto
cultural.
Consideremos então, algumas objeções que se mostram tanto no âmbito
institucional quanto no meio intelectual. O que aparece em questão é a “artificialidade”
ou transitoriedade do projeto no contexto das práticas elaborativas contemporâneas.
Tomemos como um primeiro exemplo um extrato do documento “A Imaginação
a serviço do Brasil” elaborado por técnicos e intelectuais que apresentavam as propostas
do governo Lula, em posição crítica à atitude conduzida, à época, pelo MinC.
“…evaporou-se a política entendida como ação pública. Instituiu-se como via unilateral
de relação com o Estado a figura do projeto, peça intelectual, capaz de ser desenvolvida
por poucos em um país semi-alfabetizado. Na planilha proposta, o MinC defende com

7
BARBOSA, Jorge Luiz. Considerações sobre a relação entre cultura, território e identidade. In.
Interculturalidades/ Leonardo Guelman e Vanessa Rocha (organizadores) – Niterói: EDUFF, 2004.p. 100.
clareza a quem pretende beneficiar com sua política: aqueles capazes de realizarem
estratégias de comunicação competentes para atraírem a atenção das empresas e
garantirem o retorno de marketing esperado. Nada parecido com o que se espera de uma
política voltada para o fortalecimento do Estado democrático de direito. O projeto é um
instrumento autoritário e reducionista, impensável como único mecanismo institucional
de diálogo do poder público com sua população, na medida em que restringe o acesso
dos mais pobres e fragilizados à esfera pública e que não realiza o movimento adequado
à ação pública, que é mapear, diagnosticar e incentivar, ampliando com isso o campo
das oportunidades aos tradicionalmente excluídos.”8

Tomemos um outro exemplo significativo que aparece na abordagem de Peter


Pál Pelbart, em seu artigo “Capitalismo Rizomático” onde expõe e explicita uma outra
condição de crítica a figura do projeto:
“Um projeto é um dispositivo transitório, e a vida é concebida como uma sucessão de
projetos, tanto mais válidos quanto mais diferentes uns dos outros, e o que importa é ter
uma idéia, um projeto, algo em vista ou em preparação, com outras pessoas, mesmo
sabendo que esse projeto é transitório, que a associação com essas pessoas é temporária
– isso em nada deve arrefecer o entusiasmo. O termo projeto, mascara a diferença entre
projetos capitalistas ou políticos, tudo é projeto, com isso, mesmo as forças hostis ao
capitalismo são facilmente recrutadas por projetos.”9

E, prossegue retomando dessa vez Chiapello e Boltanski:


“Justamente porque o projeto é uma forma transitória que ele é ajustado ao
mundo em rede: a sucessão dos projetos ao multiplicar as conexões e ao fazer
proliferar os laços, tem por efeito estender as redes.”10

As duas críticas contundentes que trazemos à figura do projeto, de alguma forma


nos lançam em impasses e nos desafiam a buscar respostas. Nesse sentido não perdemos
de vista as limitações que podem envolver esse instrumento ao restringir-se à sua
instrumentalidade.
Quanto ao primeiro extrato, que deve ter sido objeto de revisão de seu próprio
entendimento, cabe considerar que ao projeto não pode ser imputado uma
intencionalidade que lhe confira uma voluntariedade. Projetos são instrumentos de
modelagem que tanto podem atender a fins autoritários e reducionistas como também
podem moldar-se a plasmar sonhos, aspirações, utopias (concretas) que se mostram
possíveis. Essa visão parece, inclusive, ter orientado o projeto político e cultural que o
MinC pôs em curso, a partir de 2002 e se torna mais visível nos dias atuais.
Quanto a segunda crítica, trazida por Pelbart, podemos igualmente reconhecer o
quanto os projetos podem converter-se em mero sintoma de fragmentação no mundo

8
Caderno temático de Programa de Governo Lula 2002, documento “A Imaginação a Serviço do Brasil”.
9
PELBART, Peter Pál. Vida Capital - Ensaios de biopolítica. São Paulo, Ed.Iluminuras. 2003, p.99.
10
Idem p. 100. Citação de Pelbart a obra de BOLTANSKI, Luc e CHIAPELLO, Éve. Le nouvel esprit du
capitalisme. Paris, Gallimard. 1999, p. 167.
contemporâneo, o que nos leva a querer pensá-lo como um procedimento a ser re-
orientado para uma prática contextual, ou seja, a possibilidade de realização do projeto,
para além dos traços da efemeridade e da transitoriedade.
Uma visão programática de projeto, efetivamente mais contextual é o sentido
que orienta o percurso de nossa abordagem.

Contextualização

Félix Guattari e Suely Rolnik, em “Micropolítica - Cartografias do Desejo”


apresentam de forma ampla, o conceito de Cultura a partir de três núcleos semânticos
distintos que se estruturaram ao longo da História. Estes se denominam: cultura-valor,
sendo aquele que se relaciona diretamente a um juízo de valor, ou seja, algumas pessoas
têm cultura e outras não; cultura-alma coletiva, que ele classifica como sendo “sinônimo
de civilização”, eliminando o ter e não ter; e a cultura-mercadoria, afirmando se tratar
esta última da “cultura de massa”, entendida por ele como “tudo o que contribui para a
produção de objetos semióticos (livros, filmes, etc.) difundidos num mercado
determinado de circulação monetária ou estatal.”
Desta forma, os autores apresentam sua crítica, afirmando que esses três núcleos
não se encerraram ao longo do tempo, mas se unem e se conjugam nas formas culturais
atuais, anunciando a produção de uma “subjetividade capitalística” que “gera uma
cultura com vocação universal”.
Tal entendimento, entretanto, não impede os autores de se encaminharem para o
experimento de outros processos. Expõe a esse termo Guattari:
“A essa máquina de produção de subjetividade eu oporia a idéia de que é possível
desenvolver modos de subjetivação singulares, aquilo que poderíamos chamar de
“processos de singularização”: uma maneira de recusar todos esses modos de
encodificação preestabelecidos, todos esses modos de manipulação e de telecomando,
recusá-los para construir, de certa forma, modos de sensibilidade, modos de relação com
o outro, modos de produção, modos de criatividade que produzam uma subjetividade
singular. Uma singularização existencial que coincida com um desejo, com um gosto de
viver, com uma vontade de construir o mundo no qual nos encontramos, com a
instauração de dispositivos para mudar os tipos de sociedade, os tipos de valores que
não são os nossos.”11

Temos então que as práticas de novos processos na área cultural são como
instrumentos potenciais para a criação desses “processos de singularização”, que

11
GUATTARI, Felix e ROLNIK, Suely. Micropolítica – Cartografias do desejo. Petrópolis – RJ. Editora
Vozes. 3ª Edição. 1993.
buscam desviar e escapar às correntes de massificação, procedimentos que podem
fortalecer o convívio criativo, as formas de expressão artísticas e sociais, e a diversidade
cultural, mesmo na sociedade atravessada pelos influxos da globalização.
Os autores apresentam ainda, o conceito de “revolução molecular” como uma
conseqüência desses processos de singularização, como expõe Rolnik ao se reportar a
Guattari: “para designar os processos disruptores no campo da produção do desejo:
trata-se dos movimentos de protesto do inconsciente contra a subjetividade capitalística,
através da afirmação de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outra percepção,
etc.”
Vemos, portanto, que o desejo (e a produção deste) tem um papel estratégico na
produção cultural, o que se constata a cada momento em que percebemos que um
determinado projeto tem o objetivo de atender não apenas a um desejo, mas a sua
contínua produção como forma de assegurar seu espaço de mercado. A visão de
Guattari serve-nos então a finalidade de contínua atenção aos efeitos da subjetivação
capitalística, trazendo-nos, em contrapartida, a possibilidade de o produtor entender-se
como um estimulador de processos de singularização que aflorem a multiplicidade de
desejos existentes no âmbito da territorialidade.
Nesse momento, faz-se necessário desdobrar a noção do que chamamos
territórios, entendimento fundamental para a formulação da atividade de produção
cultural.
Para muitos, o território, é um pedaço de terra onde um determinado grupo vive,
para outros, o território é o território de atuação, ou seja, a descrição das atividades que
um indivíduo ou grupo desenvolvem. Neste sentido, poderíamos citar, como exemplos
desta visão, os territórios da cultura como a dança, o teatro, o cinema,…, mas
preferimos aqui aplicar o conceito de território na visão de Godelier:
“Este mundo de realização da vida, portanto da cultura, nomeamos de território.
Espaço-tempo demarcado pelas intenções e ações humanas, emergindo como recurso e
abrigo que exterioriza a existência individual e coletiva; o que reinvindica uma
sociedade ao se apropriar de um território é o acesso, o controle e o uso, tanto de
realidades visíveis quanto dos poderes invisíveis que as compõem, e que parecem
partilhar o domínio das condições de reprodução da vida dos homens, tanto a deles,
quanto a dos recursos dos quais dependem” 12

Os territórios caracterizam-se, portanto, como dimensões da existência humana e


conseqüentemente da cultura. Sendo base para a construção e afirmação de identidades

12
Citado por: BARBOSA, Jorge Luiz. Considerações sobre a relação entre cultura, território e
identidade. In. Interculturalidades/ Leonardo Guelman e Vanessa Rocha (organizadores) – Niterói:
EDUFF, 2004. p. 100.
ao mesmo tempo em que possibilitam o enriquecimento da produção cultural, quando
por meio de trocas e aproximações com outros territórios, fortalece e possibilita a
produção de novos processos de criação, estimulando a diversidade e a pluralidade na
cultura.
Reunindo esses componentes que envolvem e embasam a idéia de projeto
cultural, poderemos defini-lo como um instrumento que deve se voltar para esses
processos, tanto no que tange à expressão de singularidades quanto no fortalecimento de
sentidos da territorialidade, re-alimentando desejos e anseios, ao mesmo tempo em que
se utiliza deles como substrato para a construção de suas propostas, em um contínuo
exercício de circularidade.

Atitudes do produtor para com o projeto

Todo esse contexto nos leva a refletir sobre o papel do profissional, o produtor
cultural, bem como seu posicionamento e atitude perante a criação e proposição de
projetos culturais.
Em textos e artigos, vemos comumente a profissão de produtor cultural definida
como um profissional que faz a intermediação entre o artista, os meios de produção e o
público. Além disso, é comum vermos o entendimento de produtor cultural, confundido
com a idéia de artesão, como aquele que realiza a produção em um sentido vinculado
diretamente a um resultado – artefato/ produto.
No entanto, embora reconheçamos a aplicabilidade destes termos, não podemos
deixar de afirmar uma outra dimensão do produtor cultural, que é aquele profissional
que reconhece no universo da cultura, sua matéria prima, ou seja, aquele profissional
que não realiza somente a intermediação de processos, mas ele próprio elabora esses
processos, nas dimensões concretas e simbólicas da cultura.
Entendemos aqui, que esses objetos técnicos, não se encerram enquanto objetos,
mas atravessam e permeiam as dimensões econômicas, sociais e políticas da sociedade.
Desta forma, o produtor cultural, assim como o maestro, deve estar atento aos seus
recursos (músicos), coordenando-os em harmonia para que enfim, possa alcançar o seu
objetivo final.
A compreensão dessa metáfora ficaria mais clara, se apresentássemos aqui o
projeto cultural, como um “objeto técnico”, que não se encerra em si mesmo, do
produtor cultural.
Como observamos anteriormente, para realizar a formulação de um projeto
cultural, um produtor cultural deverá conhecer profundamente o território com o qual
estará trabalhando, a fim de que possa se aproximar ao máximo do âmbito das
subjetividades (e singularizações) e assim propor, uma ação que possa se desdobrar em
processos de identificação, revelador de novas percepções e fomentador da diversidade
e da pluralidade. Como nos indica Barbosa:
“Habita esse debate a qualidade da criação cultural, sua potência afirmativa de
sociabilidades generosas e sua virtualidade cognitiva da realidade em que vivemos.
Neste processo é possível romper com configurações discricionárias da manifestação
retórica e privada da produção da cultura e do uso do território, pois o diferente é
portador de significação social, uma vez que traduz tensões, acomodações e mudanças
no âmbito do vivido dos iguais.”13

Os projetos assim formulados são provocadores de diálogos estéticos,


semânticos e ideológicos nos diferentes territórios que se apresentam em nossa
sociedade.
Para isso, a prática da pesquisa e o aprofundamento de conhecimentos sobre os
modos sociais e culturais de um determinado grupo torna-se fundamental na proposição
de um projeto. O filósofo Edgar Morin, tratará essa busca de apreensão crítica da cultura
pelo termo de “culturanálise”:
“Não basta tentar elucidar a noção de cultura, a cultura ilustrada e a cultura de massas
para estar em condições de apresentar os princípios de uma política cultural. È
necessário, também, proceder a uma culturanalise, isto é, diagnosticar a situação
cultural da nossa sociedade, conceber a maneira como funciona sociologicamente
qualquer sistema cultural.” 14

No trecho citado, o autor aplica esse conceito tendo à vista uma compreensão
ampla de política cultural, o que, em nada impede sua aplicação no enunciado que
apresentamos, uma vez que todo projeto e toda ação, perpassa pelo anunciar de uma
postura política e uma visão de mundo.
Após toda a pesquisa, que decorre da aproximação com a realidade que trabalha
(ou se propõe a trabalhar) o produtor cultural terá em suas mãos um manancial de
informações, dados objetivos e traços subjetivos, que embasarão sua proposição, assim
como irá despertar “insights” de novos processos que podem ser desenvolvidos e que
pedem para serem desenvolvidos, quando buscamos identificar as necessidades e os

13
BARBOSA, Jorge Luiz. Considerações sobre a relação entre cultura, território e identidade. In.
Interculturalidades/ Leonardo Guelman e Vanessa Rocha (organizadores) – Niterói: EDUFF, 2004 p.100
14
MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo II: necrose; colaboração de Irene
Nahoum, tradução de Agenor Soares Santos. Rio de Janeiro, Forense – Universitária, 1986. 206p. pg. 103
anseios de determinados grupos, bem como os usos culturais que ali se realizam ou
deveriam produzir-se.
Quanto aos anseios e necessidades dos grupos sociais, poderíamos encontrar
explicações em diversos ramos do conhecimento, desde a psicologia, até as ciências
sociais, mas vamos nos deter aqui em destacar a importância do reconhecimento desses
processos, pois são estes que podem justificar o valor de nossa proposição.
O que é colocado aqui é a importância dessa aproximação e prospecção voltada
às subjetividades, para que ao invés de responder a esta apreensão com um “mais do
mesmo”, possamos realizar uma ação que busque renovar universos semióticos e rompa
com processos de mera reprodução de modelos já estabelecidos na sociedade pelas
formas de massificação.
“A subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é
essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências
particulares. O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois
extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à
subjetividade tal, como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o
indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade produzindo um processo que
eu chamaria de singularização.” 15

Acreditamos que um produtor cultural que desenvolva o seu projeto desta


maneira, tem nas mãos uma ferramenta que supera em muito o simples instrumento
técnico/ formal (condição na qual o projeto é comumente colocado), orientando-se para
a dinâmica dos novos processos de singularização, dos novos processos de percepção e
criação de mundo a serem estimulados, onde muitos dirão serem utopias, mas onde
reconheceremos virtualidades possíveis.
Vivemos em um mundo onde somos puxados e empurrados por forças distintas a
todo o tempo. No campo da produção cultural, essas forças, muitas vezes radicalmente
opostas, são colocadas cotidianamente em nossas práticas o que exige deste profissional
um entendimento e comprometimento quanto as suas ações, para que não projetamos
unicamente o modelo da “subjetividade capitalística”, que em nosso contexto
profissional, poderia ser entendido como a reprodução de modelos estabelecidos pelo
mercado, de práticas ditadas pelo mercado, como mera tradução dos anseios da indústria
cultural, que só responde ao binômio lucro-massificação.
Falar de cultura é falar de um campo imenso de possibilidades, é falar de um
plasma existencial, mas ao mesmo tempo, é falar de um poço de oportunidades recém
descobertas pelo mercado, com um potencial de crescimento imenso, o que atrai muitos
15
GUATTARI, Felix e ROLNIK, Suely. Micropolítica – Cartografias do desejo. Editora Vozes. 3ª Edição.
Petrópolis – RJ. 1993.
olhares com interesses exclusivamente econômicos, uma vez que sua matéria prima se
baseia em um recurso até então inesgotável: a criatividade.
Desta forma, um profissional que desenvolva suas atividades no meio cultural se
vê a todo tempo diante de impasses, onde de um lado teremos aquilo que é consumido
em massa e que gera recursos nesse circuito, e de outro aquilo que precisa ser
subvencionado, embora seja de grande valor para a sociedade pelos sentidos de que é
portador (herança, tradição, inventividade dos sujeitos e grupos sociais). É preciso que
se estabeleça um equilíbrio entre essas práticas para que a cultura, em toda a sua
diversidade e potência possa existir e continuar a produzir e não se manter em um
sistema de reprodução contínua que só restringe seu alcance.
Segundo Guattari, “O que caracteriza os novos movimentos sociais não é
somente uma resistência contra esse processo geral de serialização da subjetividade,
mas também a tentativa de produzir modos de subjetividade originais e singulares,
processos de singularização subjetiva.”16
Entendemos com isso, que é também papel do produtor cultural, contribuir para
a prática dos movimentos sociais, uma vez que somos instigadores de novas percepções
e fomentadores de novos “agenciamentos de enunciação”, que poderíamos entender
como a articulação no âmbito da coletividade, enquanto expressões das singularidades,
que não se limitam ou buscam escapar às modelagens hegemônicas.
“Então, a questão que se coloca agora não é mais ‘quem produz cultura’, ‘quais
vão ser os recipientes dessas produções culturais’, mas como agenciar outros
modos de produção semiótica, de maneira a possibilitar a construção de uma
sociedade que simplesmente consiga manter-se de pé. Modos de produção
semiótica que permitam assegurar uma divisão social da produção, sem por
isso fechar os indivíduos em sistemas de segregação opressora ou categorizar
suas produções semióticas em esferas distintas da cultura.”17

Com base nesse posicionamento, o produtor cultural assume uma função social,
que até então ainda não nos tinha sido colocada, pois muitos profissionais que atuam na
área não visualizam toda a potencialidade de um projeto e se reduzem a prática da
reprodução cultural restrita a produtos.
No entanto, não queremos aqui condenar as práticas de cultura que geram
mercado, mas apenas divergir quanto às práticas culturais de mercado, calcadas
unicamente na geração de lucro que não retorna como insumo para as praticas sociais e
não realimenta, internamente, seus processos.

16
Idem.
17
Ibidem.
Nesse sentido, como busca de maior autonomização das práticas culturais
coloca-se atualmente, novas perspectivas de sustentabilidade. A produção cultural,
efetivamente, não pode mais ser concebida como alguma coisa que escapa ao seu
território e se desvincula deste, e isso também no que tange a sua expressão econômica.
Uma perspectiva que relacione os fatores cultura e economia deve propor-se e
relacionar-se no âmbito de uma circularidade, onde a cultura produz economia e esta, de
algum modo, retorna aos processos que buscam fortalecer suas práticas expressivas. Um
processo que procure assegurar à dinâmica da cultura, uma condição de afirmação da
diferença e da diversidade para além de um recalque identitário, diante de uma
hegemonia global.18
Uma outra perspectiva aberta ao campo da produção cultural, diz respeito à
autonomização mínima das práticas culturais diante de forças políticas modeladoras,
sejam estas empresariais ou estatais, o desafio no âmbito da produção cultural, passa
também pela contínua afirmação de uma capacidade - e também transgressora – que não
pode ser contida pelas forças que as “provêm”. Trata-se de procurar retomar uma
condição de autonomia frente aos imperativos heteronômicos, fundamentalmente de
ordem política e econômica.
Nesse sentido, retornamos a Morin e a afirmação de uma condição mínima
transgressora e autônoma, como força propulsora do topos da cultura:
“Claro que a cultura não pode escapar totalmente às determinações tecno-burocráticas
da época, como não pode escapar senão parcialmente às determinações econômicas.
Mas, da mesma maneira como o aspecto antieconômico da cultura é, culturalmente
falando, mais importante do que o seu aspecto econômico, da mesma forma a cultura se
define antes como antídoto do que como produto natural da civilização tecno-
burocática. É, pois, uma simbiose parasitária-antagônica a que se constitui hoje em dia
entre a cultura e seu amigo-inimigo protetor-sufocador que dá e a asfixia: O Estado-
providencial, os grandes poderes constituídos.”19

Reafirmando nosso percurso

Tendo em vista as questões examinadas, e partindo, num primeiro momento, de


uma noção processual de projeto (“procedimento que relaciona a matéria dinâmica da
criação individual e trans-individual com a matéria dinâmica de múltiplos extratos da

18
Stuart Hall insiste nesse aspecto, ao examinar o que denomina “a proliferação subalterna da
diferença”. Cf. HALL, Stuart. Da Diáspora Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte. Ed. UFMG.
Pg. 60
19
MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo II: necrose; colaboração de Irene
Nahoum, tradução de Agenor Soares Santos. Rio de Janeiro, Forense – Universitária, 1986. 206p. pg. 103
cultura”) propomos nesse momento estabelecer um conceito programático ou contextual
do Projeto Cultural, que recupere a relação com cada um dos termos que descrevemos.
Desse modo, afirmamos o Projeto Cultural como um procedimento que
superando sua mera instrumentalidade, estabelece novos processos de subjetividade
(uma vez que conjuga novas percepções/ visões de mundo); busca apreender anseios e
desejos para com os grupos sociais para os quais se volta; possibilita e alimenta as
trocas e diálogos entre diferentes territórios expressivos, ao mesmo tempo em que se
constitui como um instrumento gerador de mercado, sem sucumbir as suas supostas
determinações.
Ao propormos aqui uma visão contextualizada de projeto, pretendemos
fortalecer uma visão de ação cultural, que não resulte da transitoriedade e efemeridade
do evento, mas que vise, sobre outra ótica, restabelecer vínculos com a territorialidade
(física, existencial e social) esta entendida como matriz de experiências de
sociabilidade.
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