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Arquitetura, Urbanismo, Ética e Projeto

Elyane Lins Corrêa1

A cidade há muito tempo que já não é o lugar protegido, fechado e seguro;


transformou-se, para muitos, no lugar da solidão, do medo, da violência, da angústia e dos
graves problemas habitacionais e ambientais. Parece que esquecemos de uma lição, proferida
por Marcilio Ficino, de que a cidade não é feita de pedras, mas de homens. Certamente ele não
se referia ao homem como um homem tipo, ideal, universal, cartesiano, como pensava a
arquitetura e o planejamento urbano clássico, mas o homem singular, particular. Entretanto, na
cidade moderna, foi eliminando cada vez mais o valor desse homem singular, até transformá-
lo em um a mais em meio à massa.
Como isso aconteceu? Já foi dito que aquilo que marca o rosto de nossa época é a
racionalização e a aplicação técnico-econômica das ciências em todos os âmbitos da vida
humana. O urbanismo nasce, no século XIX, justamente com o objetivo de intervir na cidade,
organizá-la e ordená-la. E nasce justamente com a pretensão de ser uma teoria cientifica.
Como qualquer teoria cientifica, pretende ser um conjunto sistemático de conceitos que
formem a teoria geral do fenômeno urbano e que controlem e guiem a intervenção na cidade,
permitindo que uma multiplicidade empírica de fatos urbanos, aparentemente muito diferentes,
sejam compreendidos como semelhantes e submetidos às mesmas leis.
Mas, ao converter, pela primeira vez, a configuração de nosso mundo em objeto de
planificação cientificamente elaborada e controlada, que parcela de responsabilidade cabe ao
arquiteto e urbanista e que papel eles têm desempenhado? E que tem a ver a ética com tudo
isso? É estudar essa relação que veremos aqui, de modo breve e introdutório.
O urbanismo, como sabemos, mesmo quando se autodefine como uma área disciplinar
própria, constitui-se como um campo de forças, para onde convergem outras disciplinas,
apresentando numerosos componentes:

1
FAUFBA. E-mail: elyane@ufba.br
“Que o urbanismo é, em substância, programação e projeto, não podemos contestar. Que o
projeto se baseia em um complexo de dados estéticos, sociológicos, econômicos, políticos,
científicos, tecnológicos, é evidente. Mas é claro que o urbanismo não se limita a combinar
esses dados nos limites em que cada um deles não contradiz os outros, porque assim fazendo,
não projetaria, comporia. Em vez disso, a atividade especifica é o “plano diretor”, o projeto
de desenvolvimento do urbanista.”2

Assim, a resultante é um programa, um plano, um projeto. No entanto, como pergunta


ainda Argan, trata-se de saber “o que e com que fim se programa, se planeja, se projeta”.3 Por
isso, aos componentes listados por Argan nós acrescentamos o ético, não porque
consideremos, necessariamente, o mais importante de todos, mas porque a ética faz parte de
qualquer obra humana; pois saber “para que” e “com que fim” se projeta são perguntas que
tratam da ação e da liberdade, ou seja, da ética, e, além do mais, este parece ser um
componente que tem merecido muito pouca atenção.
Essas questões acima colocadas serão apresentadas a seguir, de modo alusivo. Serão
apenas breves considerações, muito limitadas e modestas, dada a importância e profundidade
que requer esta discussão. Não se trata, aqui, de dar lições de moral, pois não entendemos a
ética como uma série de regras de comportamento, mais ou menos moralistas, que as pessoas
deveriam seguir. Não se trata tampouco de estabelecer critérios para a prática e o exercício do
arquiteto e urbanista, nosso propósito está longe disso, trata-se de pensar como cada um de nós
pode converter-se em dono de si mesmo, em seu próprio juiz, e guiar sua conduta e sua ação
de acordo com o bem e a responsabilidade com o outro.
Assim, podemos perguntar o que planeja e projeta o urbanismo e a arquitetura?
Podemos responder que planejam e projetam a cidade. E daí surge uma nova questão: que é
uma cidade? No discurso urbanístico, encontramos algumas definições que merecem ser
mencionadas, tais como: uma cidade é um entramado de construções que surge e cresce de
modo mais ou menos imprevisível, é recortada por ruas que desembocam em praças; uma
cidade é uma malha formada por ruas e avenidas ladeadas por edifícios; a cidade é um
conjunto de quadras e bairros dispostos de modo simétrico, constituído por ruas e praças
públicas que se abrem em linha reta em uma orientação bela e saudável; a cidade começa
unicamente quando os caminhos se transformam em ruas, e a diferença entre uma cidade
qualquer e uma capital é a pavimentação de suas ruas.

2
.Cf. Argan, G. C., História da arte como história da cidade, SP, Martins Fontes, 1992, p. 211.
3
.Cf. Argan, idem.

2
É isso que planeja o urbanismo? Seria esta, digamos, a “essência”, de uma cidade?
Será que ela pode ser alcançada apenas através de sua morfologia, de sua materialidade, de
suas formas visíveis, como se isso pudesse esgotar seus significados, esquecendo outras
dimensões da vida cidade, como, por exemplo, as relações que ela proporciona e estabelece
com, e entre, seus habitantes?
Assim, a complexidade que compõe a vida nas cidades resultou, como se sabe, em
muitas e variadas interpretações que se formularam como teorias urbanísticas, cuja pretensão é
solucionar os problemas fundamentais da cidade. Mas as questões apontadas nessas teorias
podem ser reagrupadas, sinteticamente, em, pelo menos, três: a relação entre a arquitetura e o
urbanismo e a Natureza; a relação entre a arquitetura e o urbanismo e o Homem; a tarefa (ou
dever) que se atribui à arquitetura e ao urbanismo.
Em cada uma dessas três grandes questões, cada arquiteto e urbanista deverá orientar
suas ações, no sentido de serem ou não éticas. Porque o que se planeja, programa e projeta é
sempre a existência do homem, não apenas como existência social, não apenas o homem como
uma realidade genérica ou como uma qualidade especifica (como sentimento, como razão,
etc.), mas o homem como realidade presente, como indivíduo singular, particular, uma
realidade irrepetível e única, não redutível a qualquer força coletiva ou impessoal; mas que,
nem por isso, se encontra fechado em si próprio, numa intimidade insuperável.
O homem se constitui, como se sabe, essencialmente por sua continua relação com os
outros homens, com o mundo e com as coisas, e é constituído por essas relações na
comunidade que cria com os outros homens e nas formas de comunicação que ai se
estabelecem. É este mundo extremamente complexo que se espacializa que o planejamento
urbano clássico chama, em muitos casos, de desordem urbana. Mas será que não temos que
entender, aprender que isso que o planejamento urbano chama desordem é, na verdade, uma
ordem mais sutil, frágil e complexa que as cidades totalmente planejadas abolem ainda no
papel?
Que o homem possa chegar a ser pensado como objeto, e que se pretenda planejar sua
vida: onde deve morar, trabalhar, divertir-se, etc., que possa haver, portanto, um especialista
capaz de planejar e “administrar” aos demais e que esse especialista seja, ao mesmo tempo,
planejado e administrado pelo seu próprio planejamento e administração, é uma questão que se
coloca ao pensamento.

3
Sabemos que as mais conhecidas definições sobre o Homem podem ser agrupadas em:
aquelas que se servem da confrontação entre o Homem e Deus; aquelas que expressam uma
característica ou uma capacidade própria do Homem, das quais a mais conhecida é: o homem
é um animal racional; aquela que diz que o homem é um ser de linguagem; aquelas que
expressam, como próprio ou inerente ao Homem, sua capacidade para autoprojetar-se.
O homem, quando é livre, é, constantemente, problema em si mesmo e solução desse
problema e, continuamente projeta seu modo de ser e de viver. Mas, ao sentido comum do
termo projeto acrescentamos uma significação ontológica, quer dizer, projeto como a essência
ou natureza do existente, como característica fundamental do ser humano. Característica que
todo ser humano tem e não pode deixar de ter.
No que diz respeito ao nosso tempo, podemos dizer que nós, os humanos, temos a
liberdade de autoprojetar-nos e de projetar uma sociedade civil fundada – ou não - no direito e
na justiça. Por outro lado, há as limitações dessa projetabilidade, limitações que se encontram,
em especial, no fato de que todo projeto encontra já, em alguma medida, como dado (ou seja,
como relativamente imodificáveis), os elementos de que lança mão, e que tudo o que se pode
projetar no futuro já existiu no passado de algum modo, e que, portanto, o passado condiciona
dentro de certos limites (considerados como mais ou menos amplos), o futuro.
Assim, o termo projeto é usado aqui num sentido muito amplo. É a resposta que cada
indivíduo dá à situação na qual se encontra no mundo. Projeto é o que dá sentido à sua
existência, às escolhas que faz e que constituem a sua liberdade e designa tudo aquilo pelo
qual o indivíduo tende a modificar-se e a modificar aquilo que o rodeia numa certa direção.
Nas situações que surgem em nossas vidas, temos que decidir o que fazer e,
dependendo de qual sentimento nos levou a agir, sentimo-nos felizes ou não e sentimos se há,
ou não, grandeza e dignidade em nós mesmos. As nossas decisões e nossos projetos estão
baseados em nosso senso e nossa consciência moral porque devemos justificar e assumir as
conseqüências de nossas decisões, de nossos projetos - incluindo nisso, evidentemente, os
arquitetônicos e urbanísticos -, para nós mesmos e também para os outros.
Podemos entender o significado do termo consciência como sendo a relação da alma
consigo mesma, de uma relação intrínseca que mantemos com o interior ou com nosso
espírito, em que cada um de nós pode se reconhecer de modo imediato e privilegiado e,
portanto, julgar a si mesmo e a seus projetos.

4
Mas como devemos agir, já que nossas ações e projetos exprimem nosso senso moral?
Qual o caminho a percorrer para agirmos e projetarmos de acordo também com a ética? (já
que, no caso da arquitetura e urbanismo, há, como vimos, inúmeros outros componentes tão
importantes quanto o ético). Creio que é necessário fazer aqui um esclarecimento
terminológico a respeito dos termos moral e ética, embora, ao longo do texto, não faremos
essa distinção.
Considera-se, de um ponto de vista técnico, que eles não têm idêntico significado. O
termo moral vem, como se sabe, do termo latino mores, que quer dizer, costumes. Moral é o
conjunto de regras, normas, ordens e comportamentos que são aceitos como válidos em uma
determinada comunidade ou sociedade. Nesse sentido, a maioria dos preceitos morais diz
como cada um deve se comportar e se expressar, como “deve fazer isso” ou “não deve fazer
aquilo”. No entanto, há ordens e costumes que podem ser maus, injustos, ou seja, imorais.
Pode-se dizer que, de modo geral, se entende por Ética (do grego ethos) que quer dizer modo
de ser, caráter. Essas definições variam de pensador para pensador, pois a ética também pode
ser entendida como a ciência, (considerados por alguns como uma arte), que tem por objeto os
juízos de apreciação sobre os atos qualificados como bons ou maus.
Assim, podemos dizer, para os nossos propósitos aqui, que a moral e a ética examinam
a ação, e por que certas regras, normas, ordens e comportamentos são considerados válidos ou
não, no sentido de aprová-las ou censurá-las. Refletem os sentimentos e as ações nascidas de
uma escolha entre o bem e o mal, nascidas do desejo humano de se distanciar da dor e do
sofrimento e ser feliz.
Foi comum à maior parte dos pensadores, desde a Antigüidade, considerar a ética
como ética dos bens, quer dizer, o de estabelecer uma hierarquia de bens concretos aos quais
aspira o homem e pelos quais mede a moralidade de seus atos. Trata-se de saber se uma ação,
uma qualidade, uma virtude ou um modo de ser são ou não éticos, pois são pertinentes à
conduta humana e, portanto, suscetíveis de valoração.
Uma das diferenças entre o homem e os animais (abelhas, formigas, etc.) é que estes
estão programados, necessariamente, pela natureza. Em certa medida, é certo que os seres
humanos, também são programados pela natureza, e há uma serie de necessidades biológicas,
mas a Cultura (a linguagem, hábitos, tradições, etc.) é para o homem outro “programa”
determinante. Quer dizer, já se nasce com uma série de determinantes, em uma espécie de

5
“programa” (ter nascido de determinados pais, num determinado lugar, época, etc.). Por isso, é
certo que há coisas que nos acontecem mas que não foram frutos de nossas escolhas, de nossa
liberdade, contudo o modo de responder a elas, sim, é fruto de nossa liberdade.
O homem pode dizer “sim” ou “não”, quero ou não quero, pois, por mais que ele seja
programado biológica e culturalmente, sempre poderá, ao final, decidir por algo que não esteja
(totalmente) no programa.4
Nunca temos apenas um caminho a seguir, por mais que nos vejamos acuados pelas
circunstâncias. Isso não quer dizer que podemos fazer qualquer coisa que queiramos, mas
também é certo que não somos obrigados a fazer uma única coisa, pois quando se fala em
ética, como vimos antes, fala-se em liberdade. A liberdade refere-se àquilo que nos diferencia
das abelhas, das formigas e das marés, de tudo o que se move de modo necessário e inevitável,
que fazem sempre o que devem fazer, necessariamente, fatalmente.5
Não podemos escolher fatos e coisas que nos acontecem ou que nos são impostos,
queiramos ou não. Por outro lado, podemos escolher o que fazer diante dessas circunstâncias.
Assim, algumas vezes, somos obrigados a escolher - embora preferíssemos não faze-lo - entre
duas possibilidades que não foram escolhidas por nós.
Mas, todas essas considerações não teriam o menor sentido, se a vida humana fosse
algo inteira e irremediavelmente programada, necessária, determinada e fatal, quer dizer, sem
liberdade. “Se você quiser...”, alguma coisa insiste em dizer em nosso intimo. Liberdade é
poder dizer “sim” ou “não”, é decidir, mas sabendo que se está decidindo; o oposto é ser
escravo, ou deixar-se levar, ou fazer sempre o que se costuma fazer, por ordens de alguém, por
capricho ou por costume.6
Ninguém pode me impedir de buscar, escolher e decidir por mim mesmo, pois
ninguém pode ser livre em meu lugar e planejar ou projetar o que quero ser. Aqui podemos
entender o termo planejar, em seu sentido mais geral, como uma antecipação de
possibilidades.
Dito isso, perguntamos então: como devemos nos conduzir e agir em determinadas
situações, e como podemos projetar obras de arquitetura e planejar a cidade, já que nossas

4
Cf. F. Savater, Ética para meu filho, SP, Martins Fontes, p.52.
5
. Cf. Savater, idem
6
. Cf. Savater, idem

6
ações e projetos exprimem nosso comportamento ético? Qual o caminho que nos falta
percorrer para chegar a conduzir-nos e agirmos e projetarmos de acordo com a ética?
As virtudes são históricas e, por isso, podemos adquiri-las, pois se trata do esforço para
conduzir-se bem, e o bem se define como esse esforço.
Proponho que entendamos o termo projetar em dois sentidos: projetar o que se vai
fazer em relação aos espaços necessários à vida humana; e projetar a si mesmo. Em outros
termos, mais que viver projetando, trata-se de viver - também - como projeto. O projeto é uma
antecipação e, neste segundo aspecto, é uma antecipação de si mesmo. Porque nós só
projetamos na medida que existimos.
Não se trata, como dissemos antes, de dar lições de moral, senão pensar como cada um
de nós pode projetar-se e converter-se em dono de si mesmo, em seu próprio juiz e guiar sua
conduta de acordo com o bem, mas sem esquecer que o bem só existe na pluralidade das
atitudes e ações boas, em nossa capacidade de atuar bem, de projetar e planejar bem, de atuar
corretamente, de modo virtuoso. A virtude é o que nos faz ser, viver e agir de modo mais
humano.
Da Antigüidade grega podemos resgatar algumas questões para a reflexão sobre a vida
nas metrópoles atuais. É claro que o mundo, a época e a sociedade não são as mesmas. As
cidades deles não são as nossas, as nossas não podem simplesmente reproduzir a deles. Mas
entre os antigos, encontramos a idéia de cidade que se identifica com seus próprios habitantes,
qualquer que seja o lugar onde desejem fixar-se.7
A cidade é definida como o lugar natural da sociedade dos homens. É na cidade, na
pólis, entendida como uma organização que não é fundada nem na força bruta, nem em
interesses passageiros, que o homem pode realizar a virtude. A cidade, entendida como pólis, é
o lugar do exercício da política, quer dizer, de como organizar uma cidade perfeita e justa,
pois, sem a justiça, os homens não podem coexistir nas cidades. A pólis é o lugar habitado por
uma comunidade humana e não pelos animais ou pelos deuses, e suas diferentes formas
indicam o modo de vida de seus habitantes. 8

7
. Nicias pronuncia ante os soldados atenienses nas praias de Siracusa: “Vosotros mismos sois la ciudad, allá
onde decidáis asentaros...son los hombres, no los muros y los navios sin ellos, los que formam la ciudad.”
(Tucidides).
8
. Aristóteles assim define a cidade na sua obra A Política, São Paulo, Nova Cultural, 1982.

7
É essa concepção de cidade que encontramos entre os antigos, que nos proporciona
alguns pontos para a reflexão e nos leva a perguntar qual a tarefa, hoje, da arquitetura e do
urbanismo diante do estado atual das grandes cidades, que são apontadas, seja por seus
habitantes ou pelos especialistas, como o lugar de graves problemas, que podemos resumir
em: segregação econômica, espacial, cultural, violência e desvalorização da vida.
Será que hoje não nos orientamos nas cidades, nos movemos, ou mesmo planejamos,
enquanto arquitetos, confiando-nos na leitura de um mapa, mas incapazes de advertir o real
valor dos aspectos culturais, artísticos, éticos e morais, religiosos, jurídicos, psicológicos, que
a constituem enquanto lugar de morada do homem?
Existir para o homem significa continuamente projetar-se e projetar-se no futuro,
mediante a escolha das possibilidades que herda do passado e do que espera para o porvenir. E
assim, quais são os princípios sobre os quais podemos planejar as cidades, para que nosso
mundo seja cada vez melhor, menos conflitivo e mais humano ?
Cada um, a partir de suas convicções éticas e morais, responderá a estas questões se se
considerar um sujeito que tem autonomia, liberdade, consciência de seus atos,
responsabilidade, e se orientará em cada situação concreta que tenha que agir e escolher, de
acordo com o que projeta, planeja - ou desenha - para si e para o mundo que o cerca.
Nessa interpretação sobre o projeto, deu-se, de certo modo, uma ênfase ao arquiteto e
urbanista como um sujeito projetante e logocêntrico, mesmo sabendo que algumas correntes
da filosofia contemporânea já decretaram sua “morte”. Assim, tudo o que foi dito talvez deva
ser colocado entre cautelosos parênteses. Mas, essa ênfase na razão não quer dizer que haja
sido desconsiderado o desejo, a educação, o costume, os sonhos, as paixões, a memória..., pois
a ética diz respeito às relações que mantemos com os outros e, portanto, nascem e existem
como parte de nossa vida intersubjetiva, das relações que mantemos com os outros.
Assim, nessas relações, o escravo é aquele que age segundo normas estabelecidas por
outros ou para receber prêmios e recompensas e fugir de castigos impostos também por outros.
Mas a Ética de um homem livre, ao contrario, nada tem a haver com recompensas, com
prêmios ou castigos distribuídos pela autoridade, qualquer que seja ela.9
Por maior que seja a pressão dos outros sobre a nossa vida, sempre poderemos não
fazer, ou projetar o que dizem que devemos. Aqui a palavra chave é liberdade, pois, ao

9
. Cf. Savater, idem.

8
contrário dos animais, dizemos que o homem é livre e, por isso, admiramos seu valor. Parece
que os animais não têm outra possibilidade senão ser como são e estão naturalmente
“programados” para fazer o que fazem. Mas a vida do homem é, pelos menos em parte,
resultado daquilo que ele quer, que antecipa, que projeta.
Ser livre para projetar algo não significa conseguir realizá-lo infalivelmente. Liberdade
não é sinônimo de onipotência. Quando se é livre se escolhe dentro dos caminhos e dos
projetos possíveis, pode-se escolher dizer ao que está sendo pedido: “faço ou não faço”,
“projeto ou não projeto”.
Responsabilidade não é apenas dizer, valentemente, “sim, fui eu”, mas é saber que
cada uma das escolhas e cada ato vão, pouco a pouco, nos definindo, projetando, construindo.
A partir desse projeto e dessa construção que cada um faz, vai projetando e construindo o
mundo que o cerca. Se essa construção e esse rosto foram frutos dessa liberdade de escolher,
não há que se assustar com a imagem que se refletirá no espelho.
O projeto aparece dentro de uma compreensão do mundo. O projeto, nesse sentido,
abre possibilidades.
No meu entender, não se trata apenas de eleger em cada projeto entre o que é dado,
senão de se eleger a si mesmo no projetar, ao mesmo tempo em que tudo que se programa,
projeta, planeja, planifica são sempre os espaços destinados à existência humana. E, por
suposto, que a obra resultante do projeto é uma obra intelectual, na qual, projetar, planificar ou
planejar, pode ser entendido como um escrito, um texto, ou como um desenho em que se
aponta algo, onde se realiza qualquer previsão, predição, pré-disposição ou pré-determinação.
Projeto é intenção de levar adiante, é intenção manifesta, antecipação de um ato futuro.
Se a vida humana consiste em viver com outros seres humanos, se a convivência com outros
humanos é o que nos humaniza, como se pode pretender tratar o outro como coisa, objeto,
número ou apenas como meio para determinados fins e lhe destinar espaços de segregação e
exclusão, de destruição do meio ambiente em que todos vivemos. Porque a ética de convicção
serve basicamente para o indivíduo privado pautar as suas escolhas, mas para o arquiteto e
urbanista isso é insuficiente, já que ele necessita considerar, em suas ações, os resultados que
seu projeto, programa, planejamento haverão de produzir.
Não é suficiente ao arquiteto e urbanista averiguar se cada um de seus atos segue ou
não determinados valores éticos, mas conferir também se os fins e os resultados de seu projeto

9
os segue. Quer dizer, não é suficiente que apenas as intenções sejam éticas, mas também os
resultados.
A questão que se coloca ao arquiteto e urbanista é: com nossos atos, que estamos
planejando, projetando e construindo? Qual tem sido o papel das escolas de arquitetura e
urbanismo na formação ética de seus profissionais? A Universidade – e, por conseguinte, os
cursos de Arquitetura e Urbanismo -, está habilitada para julgar, para criticar, e formar seus
alunos como profissionais e como cidadãos. Criticar no sentido de julgar e discernir entre o
verdadeiro e o falso, o justo e o injusto, o ético e o antiético.
Essas são, sem dúvida, questões fundamentais a serem pensadas, pois estas reflexões,
sobre a relação entre ética e projeto não têm como objetivo formular um discurso que pretenda
generalizar e universalizar critérios, tais como foram estabelecidos pelas vanguardas artísticas
do inicio do século passado, ou seja, o denominado “Movimento Moderno”, que tinha como
objetivo configurar-se como um corpus teórico doutrinal que acompanhasse o trabalho
projetual dos arquitetos e urbanistas.
O discurso de parte das vanguardas buscava legitimar o que a nova arquitetura e
urbanismo traziam, como se sabe, como valores, seja: racionalidade e lógica construtiva;
funcionalidade; soluções para os problemas habitacionais dos grandes centros urbanos;
solução para as diferenças de classe através de uma reordenação do espaço etc.
Enfim, os arquitetos, ao lado dos críticos, buscaram uma legitimação histórica, cultural,
técnica e estética; e todos esses valores tinham como objetivo solucionar os graves problemas
colocados pela sociedade capitalista. A partir dos anos sessenta, a arquitetura e o urbanismo
passaram a ser denunciados como sendo apenas um discurso ideológico e mitificador, quer
dizer, são acusados de atribuir, de maneira exaustiva, atributos atraentes e exagerados às
produções do Movimento Moderno, de modo a mascarar a realidade. E suas mensagens de
racionalidade e lógica construtiva, de funcionalidade, de honestidade e suas soluções para os
problemas habitacionais e para todos os problemas dos grandes centros urbanos etc., eram
apenas retórica e enganadora.
Prometeram utopias e modos de vida que são impossíveis e se converteram em
cúmplices das forças mitificadoras da sociedade capitalista, que necessita manipular e encobrir
a realidade das coisas através de um discurso enganador. O que o discurso encobriria era o

10
verdadeiro processo, perverso, de construção da cidade e dos espaços destinados à vida
pública e privada dos homens.
Finalmente, para concluirmos, é importante lembrar não apenas um dos princípios
fundamentais da ética, o conhecido “Não faças aos outros o que não queres que te façam”, mas
também o “Tudo o que fazes aos outros fazes também a ti”, que é igualmente verdadeiro. A
ética a ser promovida é a da emancipação da pessoa:
“...a relação respeitosa com o outro parece ser o fator decisivo numa ética de nossos dias.
Isso traz duas implicações. A primeira é a igualdade. Respeito o outro porque ele é igual a
mim....É igual, sim, em direitos, não de fato. Não tenho direitos que ele também não
tenha....E a segunda implicação é a diferença. Respeito o outro justamente porque ele não é
meu clone, porque tem suas opiniões, seu modo de ser – e é bom que assim seja....Portanto,
por paradoxal que pareça, o respeito ao outro exige que eu o reconheça como meu igual
(em direitos) e meu diferente (nas escolhas que faça em sua vida).”10

Emancipação quer dizer ser livre porque se é igual em direitos, mas para ser diferente,
para ser ela mesma.
O reconhecimento da existência e o respeito ao outro é um dos primeiros mandamentos
da ética, pois a escolha do projeto é uma escolha e decisão de estar no mundo e, com o outro,
com os outros.
Quando eu digo eu sou, quero dizer que eu sou no mundo, numa casa, numa cidade. Eu
sou num mundo junto com os outros, num mundo que eu também projeto, onde cuidá-lo
também é da minha responsabilidade. Na profissão de arquiteto e urbanista, o conceito do seu
projeto é o resultado do que ele colheu, - já que o termo conceito vem de colheita – e que ele
está lançando como semente no mundo e que será colhido por outros.11 O termo projeto, como
já dissemos, é desejo, intenção de fazer ou realizar (algo), no futuro. É um plano, é aquilo que
lançamos para frente, e aqui aparece o aspecto político do projeto quando se leva em conta a
vontade de moldar o mundo por vir.
Por tudo isso, esse projeto não se pode resumir a ser meramente técnico, funcional,
prático, nem ser uma relação comercial como outra qualquer.
A cidade é o lugar da justiça, e não apenas daquilo que nos diferencia uns dos outros,
mas também daquilo que temos em comum. Como nos ensinou a Antigüidade grega, o valor

10
. Ribeiro, R. Janine, Ética, política e cidadania: revistando a vida publica, In Fronteiras da Ética, SP, Editora
Senac, 2002, p.121. (Org. J.AA Coimbra)
11
. Cf. C.AL. Brandão, Interpretar a Arquitetura, In WWW. Interpretar a arquitetura.

11
de um homem e de sua conduta mede-se exclusivamente pelo bem ou pelo mal que acarretam
à cidade.
Ainda que sejamos mortais, ser livre e ser ético é ter consciência e estar decidido a não
viver e habitar de qualquer maneira. Apenas a mentalidade de quem nasceu para ser escravo
acha que tanto faz e tudo dá na mesma. Antiético pode ser considerado qualquer programa,
planejamento, projeto que reitere e contribua para a injustiça, a miséria, a violência e a
crueldade, o lucro desmesurado das construtoras e incorporadoras, a degradação ambiental, as
obras com fins puramente eleitorais, os interesses privados prevalecendo sobre os direitos da
coletividade, que tratam o outro, o habitante, como meio e não como fim.
Apenas os moralmente e eticamente estúpidos supõem que é melhor viver rodeado
desse estado de coisas do que de justiça e paz.
Assim, antiético é aquele projeto, ou programa, que reitere e contribua para esse estado
de coisas e que não promova seu final.
Pode-se argumentar que a sobrevivência é imperiosa e que os tempos estão difíceis,
que existem muitas forças - biológicas, políticas, econômicas, ou ainda o sistema, os
governantes, o mercado, o mercado, etc., etc., etc., que limitam nossa liberdade e nosso
comportamento ético, mas, como disse Jorge Luis Borges, falando das dificuldades pelas quais
passamos: ”Coube a ele, como a todos os homens, maus tempos para viver”.
Além das coisas que independem da vontade de cada um, há aquelas que dependem de
sua liberdade, e essa liberdade de escolher e decidir também é uma força, a força de cada um
no mundo.

Bibliografia Básica
Argan, G.C., Urbanismo, espaço e ambiente, In História da arte como história da cidade, SP, Martins
Fontes, 1992.
Aristóteles, Ética a Nicômaco, Brasília, Editora UnB, 4a ed., 2001.
Debord, G., A sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
Heidegger, M., Construir, habitar e pensar, In Conferencias y artículos, Barcelona, Ediciones del
Serbal, 1994.
Jacobs, J., Morte e vida de grandes cidades, SP, Martins Fontes, 2000.
Le Corbusier, Planejamento Urbano, São Paulo, Perspectiva, 1984.
------. A carta de Atenas, São Paulo, EDUSP, 1993.
Nietzsche, F., Genealogia da moral, São Paulo,Vozes, 1982.
Ribeiro, R. Janine, Ética, política e cidadania: revistando a vida publica, In Fronteiras da
Ética, SP, Editora Senac, 2002, p.121. (Org. J.A.A Coimbra)
Sartre, Jean Paul, O existencialismo é um humanismo, SP, Nova Cultural, Col. Os Pensadores, 1987.
Savater, F., Ética para meu filho, SP, Martins Fontes, 1996.

12

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