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O Problema com os Duques

Noivas Da Regência #1
The Trouble With Dukes
Grace Burrowes
Capítulo 1

– Eu não quero nenhum maldito ducado, Senhor Anderson – disse Hamish MacHugh
baixinho.
Colin MacHugh observou a porta do escritório de Neville Anderson, pois os seus irmãos
já sabiam que, quando Hamish falava com aquele tom de voz suave, era melhor localizarem
as saídas.
O estabelecimento do advogado ostentava carpetes turcas, mobília de carvalho e
cortinados de veludo vermelho. O tinteiro sobre a secretária de Anderson era de prata e o
mata-borrão de couro marroquino grosso. Retratos de ingleses anafados e aperaltados
adornavam as paredes.
Hamish sentia-se como se tivesse caído numa armadilha, como se estes velhos lordes e
cavaleiros estivessem a sorrir com malícia para o parvo que cometera a asneira de invadir
o seio deles. Para lá das paredes do escritório, freios tilintavam ao ritmo do quotidiano
londrino, enquanto o coração de Hamish batia com um terror silencioso.
– Estou ao serviço de Vossa Graça – murmurou Anderson do seu lado da secretária
enorme – e ansioso para ouvir as explicações que Vossa Graça desejar oferecer.
O advogado, que fora contratado pelo falecido avô de Hamish décadas antes do
nascimento de Hamish, era uma autêntica melga. Podia-se esmagá-lo, amaldiçoá-lo, enxotá-
lo, ameaçá-lo com tudo e mais alguma coisa, mas ele continuava a pairar à volta das
pessoas, incessantemente irritante.
A infantaria francesa tivera as mesmas qualidades.
– Eu não sou Vossa Graça, raios – disse Hamish, dando graças à clemência do Todo-
Poderoso.
– Vossa Graça… o senhor perdoe-me – respondeu Anderson, com as mãos brancas e
macias dobradas sobre o mata-borrão. – A sua tia-bisavô Minerva casou com o terceiro
filho do quinto duque de Murdoch e Tingley e, embora o ducado inglês tenha de,
infelizmente, reverter para a Coroa, a parte escocesa do título, devido às patentes e
peregrinações mais, ah, liberais comuns à nobreza escocesa, é-lhe devolvida.
A devolução era um daqueles empreendimentos ingleses que servia para embelezar um
monte de tretas.
Hamish ergueu-se e, por razões conhecidas apenas pelos ingleses, Anderson levantou-se
também.
– Devolva o título errante a outro triste qualquer – disse Hamish.
A competição de olhares de Colin com o lintel da porta de Anderson transformara-se na
tentativa de um homem a tentar conter um peido – ou uma gargalhada.
– Perdão, Vossa… senhor – disse Anderson, aparentemente tão penitente como as irmãs
de Hamish a caminho do chapeleiro –, mas os títulos recaem onde calham, e ali ficam. A
única forma de se livrar do título é a morte, e então o seu irmão aqui tornar-se-ia duque no
seu lugar.
O sorriso de Colin extinguiu-se como uma vela num vendaval.
– E se eu morrer?
– Creio que há vários irmãos mais novos – respondeu Anderson –, caso vós ambos
morrais.
– Mas este título pertence ao Hamish enquanto ele for vivo, certo? – Colin não era da
mesma estatura que Hamish. O que lhe faltava em altura, compensava em músculo e
velocidade.
– Correto – afirmou Anderson, a sorrir como um mestre-escola quando um aluno lerdo
finalmente aprendera a primeira conjugação em latim. – Normalmente, é motivo para uma
bebida celebrativa, meus senhores. O título acarreta responsabilidades, mas a vossa tia-
bisavó e a sua falecida filha eram excelentes mulheres de negócios. Tenho o prazer de vos
informar que as propriedades de Murdoch são prósperas.
As coisas só pioravam. O movimento alegre das sobrancelhas de Anderson significava
que prósperas traduzia-se por «faziam uma enorme quantia de dinheiro, muito do qual iria
parar às mãos gananciosas de um advogado inglês».
– Se as minhas malditas terras são prósperas, o meu celibato está condenado –
murmurou Hamish. Mesmo por trás da secretária de Anderson havia um quadro de um
duque pendurado, e a sua expressão amarga exprimia eloquentemente o humor que um
título concedia à sua vítima. – Preferiria enfrentar outra vez os exércitos do velho
Bonaparte do que ver-me com terras, um título, rico e solteiro no início da temporada de
Londres. Colin, voltamos para casa no final da semana.
– Gosto da ideia – disse Colin. – Só que a Edana vai matar-te e a Rhona vai enterrar o que
restar de ti. Depois o título é transferido para mim, e eu terei de te desenterrar e matar-te
de novo.
Os irmãos eram uma anedota para um homem pacifista. Anderson retirara-se para trás
da secretária, como se uma mera meia tonelada de madeira de carvalho pudesse proteger
um advogado inglês franzino de dois MacHugh lutadores.
Os advogados podiam ser espertos, mas prudentes não eram.
– Simplesmente não podemos contar a ninguém sobre este título – disse Hamish. –
Tratamos das compras de roupa da Eddie e da Ronnie e depois partimos para casa, e
ninguém saberá de nada.
Comprar roupa, dissera Edana, como se Londres fosse o único lugar no mundo onde
procurar roupa elegante. Ela chorara, enfurecera-se, ameaçara fugir – até Colin ter selado o
seu cavalo e enchido os alforges com provisões.
Em seguida, ameaçara tornar-se uma velha solteirona, que assombraria as casas dos
irmãos, e Hamish, sob pena de morte pelos irmãos mais novos, ordenara que preparassem
o coche de viagem.
– A Eddie ainda não encontrou um homem e a Ronnie também não – comentou Colin. –
Estão aqui nem há duas semanas. Não podemos ir para casa.
– Tu não podes – contrapôs Hamish. – Eu sou o duque. Tenho de supervisionar as minhas
propriedades. Estarei a meio caminho de Yorkshire amanhã. Duvido de que a Eddie e a
Ronnie se contentarão com ingleses, mas estão à vontade para atormentar um ou outro
durante a minha ausência. Uma mulher aborrecida é uma criatura perigosa.
Colin bateu com força no braço de Hamish.
– Serias capaz de ir embora amanhã?
Anderson encolheu-se de medo quando Hamish pegou na bengala e se dirigiu para a
porta.
– O teu pugilismo precisa de ser aperfeiçoado, irmãozinho. Tenho negligenciado a tua
educação.
– Não podes deixar-me sozinho aqui com a Eddie e a Ronnie. – Colin começara a falar
gaélico, uma língua perfeita para assuntos de família privados de advogados abelhudos. –
Sou apenas um homem, e elas são duas. Hão de fazer cordas com os lençóis das camas,
vender outra vez os teus charutos bons a outras jovens senhoras e investigar os encantos
dos malditos ingleses que rondam o parque. Quem sabe que outros títulos os seus maridos
aleatoriamente escolhidos poderiam infligir aos teus netos?
Hamish não se opusera aos esquemas de venda de charutos. Opusera-se ao facto de as
suas irmãs o roubarem em vez de partilharem os lucros com o seu querido irmão. Também
se opunha à ideia de netos quando ainda nem uma esposa tinha.
– A culpa será tua se acabarmos com parentes ingleses, pequeno Colin. – Hamish sorriu
com malícia.
Seguiu-se uma competição de olhares em que Colin tentava parecer destemido – possuía
o cabelo ruivo e os olhos azuis da família, afinal de contas – e se mostrava, porém,
maioritariamente preocupado. Colin era fraco no que dizia respeito às mulheres, e esse
facto era a única coisa que alegrava Hamish numa manhã contrariamente desanimadora.
A esperança aumentou, como o toque vibrante das gaitas-de-foles através do fumo e
ruído do campo de batalha: enquanto Eddie e Ronnie inspecionavam os pavões ingleses
que passeavam por Mayfair, Hamish poderia encontrar uma pavoa disposta a aproveitar a
natureza afetuosa de Colin.
Dado as tendências lúbricas de Colin, a união daria frutos no espaço de um ano e todo
este lamentável assunto da sucessão ducal estaria tratado.
O punho de Hamish colidiu com o ombro do irmão, empurrando Colin para trás, que
balbuciou em gaélico sobre cabras e testículos.
– Aguardarei aqui na fossa de trampa da civilização – disse Hamish em inglês – até a
Eddie e a Ronnie comprarem os seus trapos, mas, Anderson, estou a avisá-lo. Ninguém deve
saber desta coisa do ducado. Nem uma só alma, se não saberei que advogado inglês precisa
de travar conhecimento com o São Pedro imediatamente. Percebeu?
Anderson anuiu com um movimento da cabeça, fixando o olhar na mão direita de
Hamish.
– Receberá correspondência, meu senhor.
A mão de Hamish doía-lhe e a sua cabeça começava a latejar.
– Tente ser honesto, homem. Eu estive no exército. Sei bem o que é correspondência. Por
correspondência quer dizer uma enxurrada de papelada, documentos oficiais e escrituras
seladas.
Hamish sabia o que era a morte também, e a mágoa. A parte dele que esperava casar
Colin durante o próximo mês – e Eddie e Ronnie também – lutava com a vasta mágoa de
saudades de casa, e o desconforto de permanecer durante mais um dia sequer entre os
dândis perfumados e sorrisos falsos da alta sociedade.
– Muito bem, Vossa Graça. É claro que tem razão. Uma enxurrada, de que em parte virá
do Colégio de Armas, dos seus pares, em parte de condolências, tudo isto o meu gabinete
terá o prazer…
Hamish calou Anderson com um aceno de mão e, como se Hamish fosse um daqueles
encantadores de serpentes hindus, o olhar do advogado seguiu o movimento da mão.
– Não há como evitar os documentos oficiais – comentou Hamish –, mas as cartas de
condolências não interessam a ninguém. Não deve dizer nada – lembrou ele a Anderson. –
Nem um pio, nem um sim-Vossa-Graça, nem um pingo de insinuação deve passar pela sua
boca.
Anderson ainda estava a anuir vigorosamente com acenos de cabeça quando Hamish
empurrou Colin pela porta.
Todavia, é claro, as notícias já corriam a capital inteira quando o dia seguinte nasceu.

– Minha querida, não parece feliz por me ver – declarou Fletcher Pilkington, dengoso. Sir
Fletcher, aliás.
Megan Windham passou o dedo pela página que estivera a fitar, como se as divagações
do Sr. Coleridge exigissem toda a sua atenção.
Em seguida, desceu os óculos até meio do nariz para melhor pestanejar tolamente para o
seu atormentador.
– Ora, Sir Fletcher, não dei por si. – Mas Megan sentira-lhe o cheiro. Essência de rosas não
era uma fragrância suave quando aplicada nas quantidades que Sir Fletcher preferia. – Bom
dia, como está?
Ela sorriu com simpatia. Era melhor para Sir Fletcher que a subestimasse e melhor para
ela não provocar.
– Esqueço-me de como é cegueta, a menina – disse ele, arrancando os óculos de Megan
do seu nariz. – Talvez, se lesse menos, a sua visão melhorasse, hmm?
Um medo antigo atravessou Megan, um artefacto de instantes de infância em que lhe
tiravam os óculos, por vezes lhos mantinham afastados do seu alcance e os escondiam.
Numa ocasião, um rufia tinha-lhos dobrado de propósito no pátio da igreja.
O rufia era agora um vigário próspero, ao passo que a visão de Megan não melhorara
desde a infância.
– A minha visão é adequada, na maioria das circunstâncias. Hoje, procuro uma prenda. –
De facto, Megan estava a esconder-se do manicómio que a sua casa se tornara em
antecipação do baile anual dos Windham. A mãe e a tia Esther andavam quase loucas de
determinação para fazer do baile daquele ano o falatório da temporada, porém, Megan só
queria paz e sossego.
– Uma prenda para mim? – cismou Sir Fletcher. – Poesia não me agrada, minha querida, a
não ser que considere traduções de Sappho e Catullus.
Poemas viciosos, por outras palavras. Poemas muito viciosos.
Megan pestanejou como se nada clássico fosse da sua compreensão. Um estudante do
primeiro ano de latim seria capaz de entender o essencial, por assim dizer, das ofertas mais
vulgares de Catullus e a habilidade de Megan com o latim ia para lá do básico.
– Duvido de que o tio Percy gostasse de tais versos. – O tio Percy era um duque e levava
os assuntos de família a sério. A menção de Sua Graça poderia lembrar Sir Fletcher de que
Megan tinha aliados.
No entanto, nem o tio Percy poderia salvá-la do contratempo em que ela se metera com
Sir Fletcher.
– Pergunto-me com que brevidade o tio Percy está preparado para me receber na família
– disse Sir Fletcher a erguer os óculos de Megan até à janela mais próxima.
Não os deixe cair, não os deixe cair. Por favor, por favor, não deixe cair os meus óculos. Ela
tinha um par de qualidade inferior no seu retículo, mas as explicações, os olhares de pena e,
pior que tudo, o silêncio preocupado do pai seriam uma tortura.
Sir Fletcher espreitou pelos óculos, que possuíam uma tonalidade azul esfumada.
– Deus do céu, como é que você consegue ver? Os nossos filhos serão vesgos e terão de
semicerrar os olhos para sempre.
Megan sentia pavor da ideia de carregar os filhos de Sir Fletcher.
– Pode devolvermos, Sir Fletcher? Como reparou, os meus olhos são fracos e eu preciso
dos meus óculos para ver bem.
Sir Fletcher era um homem bonito – aparentemente. Quando reclamara a valsa de Megan
num baile de regimento há vários anos, ela sentira-se deslumbrada pelos galanteios, pelas
insinuações ousadas e pelos avanços arrojados dele. Por outras palavras, ela fora ofuscada.
Cabelo dourado, olhos azuis e um sorriso brilhante tinham escondido um coração avarento
e sem escrúpulos.
Ele segurou os óculos dela mais acima. Para um mero observador, ele estava apenas a
examinar um par de óculos interessante, talvez a ponderar limpá-los com o seu lenço.
– Irá precisar do meu anel no seu dedo – disse ele, a semicerrar os olhos por uma lente. –
Quando poderei reunir-me com o seu pai, ou devo falar diretamente com o Moreland,
porque ele é o patriarca da família?
Era enervante que Sir Fletcher abordasse sequer aquele assunto. Era aterrador que o
abordasse em Hatchards, onde duquesas se cruzavam com modistas. Outros clientes
transitavam entre as prateleiras e a campainha soava constantemente, como um prenúncio
de morte em miniatura para a liberdade de Megan.
– Não pode falar com o papá ainda – respondeu Megan. – A Charlotte ainda não recebeu
uma oferta e a temporada só agora começou. Não permitirei que a sua pressa interfira com
o respeito que devo às minhas irmãs. – Elizabeth estava a caminho de se tornar uma
solteirona – não havia nada a fazer – e Anwen, sendo a mais nova, seria normalmente a
última a casar-se.
Sir Fletcher trocou de lentes, espreitando pela outra, ao mesmo tempo que lançava um
olhar a Megan que revelava o rapaz malcriado que se escondia por trás de trajes de Bond
Street.
– Você tem três irmãs solteiras, sendo que a mais velha é um antídoto e um artefacto.
Não pense que vai empatar-me até a última subir ao altar em Saint George, minha senhora.
Tenho dívidas que os seus contratos resolverão comodamente.
Como Megan o detestava, e como se detestava a si mesma pela ignorância e ingenuidade
que colocaram Sir Fletcher numa posição para fazer estas ameaças.
– A minha parte destina-se a salvaguardar o meu futuro se algo acontecer ao meu marido
– informou Megan, com vontade de alcançar os seus óculos. Uma escaramuça no meio das
estantes chamaria a atenção de outros clientes, mas Megan sentia-se despida sem os
óculos, despida e desesperada.
Como a sua visão ficava diminuída sem os óculos, ela detetou um ligeiro movimento e
algo azul a tombar da mão de Sir Fletcher. Ele murmurou palavras fingidamente
arrependidas quando o melhor par de óculos de Megan caiu na direção do chão.
A mão grande projetou-se e apanhou com firmeza os óculos a meio da queda.
Megan estivera tão concentrada em Sir Fletcher que não reparara num homem deveras
substancial que surgira do meio das estantes para se colocar imediatamente atrás e à
esquerda de Sir Fletcher. Botas altas polidas até brilharem chamavam a atenção para coxas
grossas e musculadas, extraordinariamente bem vestidas. Seguiam-se flancos magros, uma
cintura estreita, um colete de xadrez azul, uma corrente de relógio prateada e uma jaqueta
preta que assentava encantadoramente em ombros largos. Ela não era capaz de distinguir
pormenores, o que só tornava o todo mais formidável.
Olhos solenes do tom azul de um céu de inverno e cabelo castanho-avermelhado-escuro
completavam uma imagem bonita e ameaçadora.
Megan nunca vira este homem antes, mas, quando ele lhe estendeu os óculos, ela aceitou-
os com gratidão.
– Agradeço-lhe com toda a sinceridade – disse ela. – Sem eles, sou quase cega em quase
todas as distâncias. Não se apresenta, senhor? – Ela estava a ser ousada, mas Sir Fletcher
ficara calado, sugerindo que aquele cavalheiro impressionara até Sir Fletcher.
Ou, melhor ainda, intimidara-o.
– Minha querida senhora – declarou Sir Fletcher –, não há necessidade de ignorarmos os
ditames do decoro, pois eu posso apresentar-lhe um colega do exército dos meus dias na
Península Ibérica. Menina Megan Windham, apresento-lhe o coronel Hamish MacHugh,
reformado do exército de Sua Majestade. Coronel MacHugh, apresento-lhe a Menina Megan.
MacHugh envolveu a mão de Megan com a sua e curvou-se com elegância. O seu toque
era quente e firme sem ser presunçoso, mas, meu Deus, as mãos dele eram calejadas.
– Senhor, muito prazer – disse Megan, a sorrir para o coronel. Ela não queria que aquele
estranho a deixasse sozinha com Sir Fletcher nem um instante mais que o necessário.
– O prazer é meu, Menina Windham.
Muito bem. Era sem dúvida escocês. Daí o colete axadrezado, os olhos azuis. A mamã
sempre dissera que os escoceses tinham olhos mais bonitos.
O avô de Megan fora um duque e as subtilezas sociais fluíam-lhe nas veias bem como
sangue aristocrático Windham.
– Veio do Norte em visita? – inquiriu ela.
– Sim, com as minhas irmãs.
Sir Fletcher observava a conversa como se fosse um espetador num jogo de ténis e
tivesse dinheiro apostado no resultado.
– As suas irmãs já circulam em sociedade? – perguntou Megan para que a conversa não
acabasse.
– Por todo o lado – respondeu o coronel MacHugh, a franzir o sobrolho. – Bailes,
receções, musicais. É preciso mais energia para sobreviver a uma temporada em Londres
do que marchar por Espanha.
Megan tinha primos que haviam servido em Espanha e um outro primo que morrera em
Portugal. Os veteranos aligeiravam as dificuldades testemunhadas, embora ela não tivesse
a certeza se o coronel MacHugh falara em termos irónicos.
– MacHugh – interrompeu Sir Fletcher –, a Menina Windham é neta e sobrinha de
duques.
O coronel MacHugh ficou aparentemente tão surpreendido como Megan com aquele
comentário. Retirou-lhe os óculos da mão, desdobrou as hastes e colocou-lhos sobre o
nariz.
Ela sentiu-se maravilhada com tal familiaridade vinda de um estranho quando o coronel
MacHugh ajustou as hastes à volta das orelhas dela para que os óculos ficassem novamente
no seu devido lugar. O seu toque não poderia ter sido mais gentil, certificando-se ainda de
que Sir Fletcher não poderia arrancar os óculos das mãos de Megan.
– Muito obrigada – agradeceu Megan.
– Diga-lhe – murmurou MacHugh, colocando as mãos atrás das costas. – Não quero que
digam que fui dissimulado diante de uma senhora, Pilkington.
A desgraça da vida de Megan era Sir Fletcher, mas este escocês não sabia ou não se
importava em usar trato adequado.
Sir Fletcher franziu o nariz.
– Menina Megan, cometi um erro há pouco quando apresentei este camarada como
coronel Hamish MacHugh, mas espero que me perdoe o equívoco. O cavalheiro à sua frente,
segundo os boatos da semana passada, é nada mais nada menos do que o Duque de
Murdoch.
O coronel MacHugh – Vossa Graça – manteve-se ereto, como se antecipasse o corte direto
ou talvez um esquadrão de tiro. Com os óculos postos, Megan conseguia ver que os olhos
azuis dele possuíam uma desolação, e a sua expressão não era apenas formidável, como
também ameaçadora.
Resgatara os óculos de Megan da ruína certa pelo salto da bota de Sir Fletcher, por isso
Megan executou uma vénia respeitosa.
Porque não lhe importava de todo que a alta sociedade tivesse apelidado aquele homem
amável e sério de Duque da Morte.
Capítulo 2

– Mudei de ideias – disse Hamish, a tocar na aba do chapéu, quando uma duquesa passou
por ele no passeio. – Partimos no início da semana.
– Não podes mudar de ideias – retorquiu Colin – e acabaste de cumprimentar uma das
cortesãs mais bem pagas de Londres.
Colin estava a ser diplomático, pois Hamish cometera a asneira em público – onde todas
as suas melhores asneiras ocorriam normalmente. Há três dias, Hamish encontrara Sir
Fletcher Pilkington, mas pelo menos esse momento infeliz acontecera dentro de uma
livraria.
– As roupas da senhora eram caras – comentou Hamish – e não o traje de uma debutante.
Ela sorriu-me e tinha uma criada a acompanhá-la. Como haveria eu de saber que não era
decente?
– Pela forma como ela te sorriu, como se fosses a resposta para os seus desejos de roupa
do próximo ano.
Hamish inclinou o chapéu na direção de outra senhora bem-vestida, que também tinha
uma criada consigo, mas sem sorriso.
– As malditas debutantes olham para mim da mesma forma. Como se eu fosse um pernil
de veado e elas uma matilha de cães esfomeados.
– Não deves cumprimentar uma senhora a não ser que ela te reconheça – aconselhou
Colin, quando chegaram a um cruzamento.
– A última fez-me uma carranca como se eu fosse algo fétido colado à sola da sua bota
delicada. Esse é o tipo de reconhecimento que o Duque da Morte pode esperar.
Uma carroça de cerveja passou ruidosamente por eles, com os barris empilhados e
presos à caixa. Hamish possuía duas cervejarias e, na sua atual disposição, poderia ter
absorvido o inventário de ambos os estabelecimentos e começado com a destilaria que
Colin herdara ao chegar à idade adulta.
– Tu precisas de uma professora de etiqueta – referiu Colin. – Ou de uma mulher.
Oh, pois.
– Presumo que no seio da alta sociedade sejam todas iguais, e é por isso que iremos todos
para casa daqui a uma semana.
Embora Colin tivesse razão, as jovens senhoras que cobiçavam o título de Hamish sabiam
expressar o seu interesse sem cometer gafes. Acenavam com os leques pintados, riam-se,
sorriam, mas não daquela maneira. Lançavam olhares sedutores do outro lado de salões de
baile e jardins formais, sem sequer darem um passo em falso.
O campo de batalha que era a temporada de Londres tinha regras. Hamish simplesmente
ainda não as compreendera.
Mais depressa meteria os pés pelas mãos.
– Se formos para casa agora – disse Colin –, nunca mais terás um momento de sossego. A
Ronnie e a Eddie foram convidadas para vários bailes e privá-las dessas oportunidades
para caçarem maridos só te valerá o ódio delas até ao dia da tua morte.
Uma mulher escocesa era um inimigo formidável, e duas mulheres escocesas eram o
equivalente de qualquer homem mortal.
– Quando é o próximo maldito baile? – Eram todos malditos bailes e malditos musicais e
malditos pequenos-almoços venezianos, pois por onde Ronnie e Eddie dançavam a valsa ou
Hamish ou Colin tinha de seguir.
– Na próxima semana. Tomamos a rua à esquerda.
Hamish não perguntou como sabia o irmão a morada de uma das modistas mais
dispendiosas numa cidade muito dispendiosa. Colin era um sujeito bem-parecido e tinha
meios independentes. Adotara a bonomia e o desafio da vida militar como uma ovelha
adota a erva da primavera, e as suas saídas ocasionais para Londres eram para ele como
mais uns bivaques.
– Como podem duas mulheres inteligentes gastar meio dia a escolher tecidos? – Hamish
evitou olhar nos olhos uma mulher loira mais velha que ia acompanhada por uma senhora
mais jovem com o cabelo da mesma cor. – Juro que a Ronnie e a Eddie abandonaram os
cérebros em Perthshire.
– E agora – murmurou Colin – acabaste de ignorar a duquesa de Moreland e a sua filha
mais nova, que por acaso é marquesa.
Hamish parou subitamente.
– Vamos para casa, haja baile ou não. Sinto-me perdido sem um mapa, um cantil ou um
bom cavalo, Colin. Ainda me hei de ver casado ou morto numa vala por causa das minhas
gafes.
Ou, pior, matar alguém. Quando Hamish se retirara da vida militar, fora provocado a
desafiar um homem para um duelo, mas o destino intercedera para evitar danos graves a
qualquer um dos lutadores. Hamish e o seu antigo adversário de duelo – barão St. Clair –
até eram agora cordiais um com o outro quando se cruzavam.
A baronesa St. Clair era uma pessoa diferente e menos clemente.
– É por isso que estou aqui – disse Colin, a inclinar o seu chapéu para uma menina das
flores. – Para me certificar de que continuas vivo. Devo-te isso e a última coisa que quero é
um ducado a complicar-me a vida. Desde que não contestes ninguém – mais ninguém –, um
pedido de desculpas deve abranger a maioria dos teus erros e em breve ficarás a par das
coisas.
Hamish continuou a caminhar, porque ficar parado no meio do passeio era o suficiente
para atrair a atenção de transeuntes.
Talvez usar aquele kilt não tivesse sido uma ideia inspirada. Esperara que, se houvesse
senhoras atraídas pelo seu título, seriam repelidas ao vislumbrar os seus joelhos despidos.
As mulheres londrinas eram aparentemente intrépidas, porque até agora a experiência de
Hamish fora um fracasso.
Toda a sua visita a Londres fora um fracasso, exceto aquele único momento em que
reflexos rápidos tinham salvo os óculos de uma dama da ruína. Hamish esperava que
alguém viesse resgatar a mesma jovem senhora da companhia de Fletcher Pilkington.
Esse alguém não seria Hamish, infelizmente. A Menina Windham não soubera ou não
quisera saber que Hamish era o homem menos adequado para deter um título imponente.
Pilkington sem dúvida remediara esse lapso rapidamente.
– Tens a sensação de que a Ronnie e a Eddie estão a gostar destas valsas e compras
todas? – perguntou Hamish.
Ele e Colin tinham alternado ir a casa durante a licença de inverno e, de dois em dois
anos, Hamish regressara à Escócia e encontrara jovens senhoras mais bonitas a usar os
sorrisos das suas irmãs. Quando vendera a sua comissão após Waterloo, já mal reconhecera
Rhona e Edana.
Elas preferiam sem dúvida não voltar a familiarizar-se demasiado com o irmão mais
velho agora, embora parecessem gostar muito do seu novo título.
– As nossas irmãs estão deslumbradas com Londres até agora – disse Colin. – A loja é ao
fundo desta rua. Amanhã tens outra prova do alfaiate.
– Raios partam o alfaiate – barafustou Hamish. – Ele só quer aumentar o seu lucro. Não
há alfaiates escoceses nesta cidade decadente?
– Os alfaiates ingleses são os melhores em todo o lado – respondeu Colin, a caminhar
mais depressa. – São a inveja de todos os homens civilizados em todo o mundo. Preferes
andar com o teu kilt e as tuas botas, a beber uísque e a envergonhar os teus irmãos e irmãs
em vez de aproveitar os privilégios do teu estatuto.
Um sentimento de culpa invadiu Hamish, a mesma culpa que sentira quando fora
prisioneiro dos franceses. Ao ser levado do local da emboscada, a sangrar de três sítios,
com a visão turva, a cabeça a latejar e a audição quase perdida, estivera nas mãos de um
inimigo mais mortal que os franceses.
A vergonha acorrentara-lhe o coração – por conduzir os seus homens a uma emboscada,
por sucumbir à captura em vez de morrer com honra, por deixar Colin desprotegido. Em
Londres, abundavam soldados reformados e pensionistas e quanto mais cedo Hamish se
afastasse deles, melhor.
– O meu estatuto só justifica mais que eu deixe esta fossa de privilégio – afirmou Hamish.
– Não me encaixo nem nunca me encaixarei aqui, Colin. Se não querias que eu usasse o kilt,
então podias ter dito antes de sairmos de casa.
A tez de Colin era mais clara que a de Hamish e então, ao corar, a sua mortificação era
visível para todos. As suas orelhas tinham um tom vermelho interessante quando Hamish
parou à porta de um estabelecimento chamado Madame Doucette.
– Tu agora és conhecido por usar o kilt – referiu Colin. – Assim que apareceste naquela
festa de jogo com o xadrez, o teu destino foi selado. Vou mandar que me façam o conjunto
todo do kilt também.
– As lojas de Londres têm nomes tão ridículos – disse Hamish, com a mão na maçaneta da
porta, enquanto o trânsito a pé passava apressadamente por eles. – Este lugar, por
exemplo. Para uma pessoa que não saiba, o nome dá a entender que é um bordel.
Colin emitiu um barulho estranho.
– Não ajas como se te tivesse dado uma joelhada nos tomates – continuou Hamish,
espreitando pelo vidro da porta. – Esta Madame Doucette não me engana nem ao meu lindo
rabo.
De imediato, alguém pigarreou atrás de Hamish.
Um soldado experiente acostumava-se à forma como o tempo se expandia, ou como as
perceções da mente se contraíam, por isso, quando encarava uma ameaça mortal, o soldado
poderia ponderar opções, calcular trajetórias e avaliar riscos num abrir e fechar de olhos.
Hamish adotou esse mesmo sentido no instante necessário para perceber que a duquesa
loira e a pequena marquesa estavam a observá-lo com curiosidade, como se não um
escocês, mas um grande gorila de kilt tivesse surgido nas ruas de Mayfair.
– O meu marido costuma fazer comentários semelhantes sobre os estabelecimentos de
modistas – disse a duquesa. Ela tinha um sorriso que nenhuma duquesa devia possuir –
sábio, amável, encantador e também um bocadinho matreiro. Se Hamish vivesse até aos
cem anos, o seu sorriso nunca chegaria aos calcanhares do desta mulher em termos de
complexidade, dignidade ou atratividade.
O sangue diria.
– Peço perdão a Vossa Graça e a sua senhoria – disse Hamish. – Peço-vos desculpa.
Infelizmente, no exército, desenvolvi uma linguagem pouco diligente.
A jovem marquesa parecia estar a conter uma crise de riso, ao passo que Hamish queria
bater com a cabeça na parede mais próxima.
– Pode não ter sido diligente com a linguagem, mas foi diligente com o seu país –
respondeu Sua Graça, dando uma palmadinha na face de Hamish como se ele fosse um
rapazinho a necessitar de uma soneca. – As suas prioridades são admiráveis, Vossa Graça,
apesar dos seus comentários pitorescos.
A duquesa entrou rapidamente na loja e Colin abriu-lhe a porta de repente no último
instante. A marquesa fez uma vénia bonita, piscou o olhar a Hamish e seguiu a mãe para
dentro da modista.
– Acho que estou apaixonado – murmurou Colin quando a porta se fechou novamente.
– Já é quase meio-dia. Já vais atrasado – respondeu Hamish solidariamente.
Colin sorriu, o sorriso ligeiramente absorto de um homem que apreciara o sexo oposto
em seis países diferentes, e Hamish, embora não apaixonado, sabia certamente que estava
em apuros.
Profundamente em apuros.

– Estamos em apuros agora – sussurrou Elizabeth Windham, espreitando pelas cortinas da


janela. – A tia Esther e a prima Evie estão junto à porta, e nós ainda não escolhemos o teu
tecido.
Madame Doucette ainda estava ocupada com as duas irmãs escocesas que Megan
conhecera algures entre as sedas e os veludos. A Menina Rhona e a Menina Edana eram
ambas ruivas, altas e alegres, embora carecessem de um sentido elegante de cor.
– Esse não – disse Megan, abandonando o lado de Beth para tirar um rolo de seda
amarela das mãos da Menina Edana. – O amarelo é uma cor difícil de usar bem, embora
possa ser um adorno encantador. Por exemplo, imagine que escolhe este verde-claro. Um
rebordo de renda amarela nos seus lenços combinaria, ou fitas amarelo-douradas nos
chapéus e um chapéu-de-sol do mesmo tom.
A Menina Rhona passou a mão sobre a seda amarela.
– Combinam-se fitas de chapéu e rebordos de lenços quando se planeia o que vestir?
Não era o que fazia toda a gente?
– As fitas de chapéu têm de ter alguma cor. Porque não escolher um tom que combine
consigo?
As irmãs trocaram um olhar, como se aquilo fosse uma pergunta que guardariam para
usar noutras circunstâncias apenas conhecidas por elas.
A tia Esther e a prima Evie entraram rapidamente no estabelecimento, embora fosse
sobretudo a tia Esther, que era tão alta como as senhoras escocesas, que entrara
rapidamente.
– Minhas queridas – disse a tia Esther –, pensei mandar a guarda procurar-vos. Porque
estão a mandriar aqui, com o baile apenas a uma semana de distância?
A guarda era um eufemismo familiar para os irmãos mais velhos de Eve: Lorde
Westhaven, Lorde Valentine e o primo Windham mais velho, Devlin St. Just, que em breve
viria do seu condado no Norte. Megan adorava os seus primos tanto quanto receava os seus
exageros e sermões.
A campainha da loja soou de novo e todo o movimento, todo o falatório, parou. Dois
cavalheiros altos surgiram de imediato à entrada. Bloqueavam luz suficiente que vinha das
janelas da frente para atenuar a sensação de um refúgio feliz feminino.
– Este verde – disse a Menina Edana, atirando um rolo inteiro de seda para a madame. –
Já me decidi, levo o verde.
– Sim, menina – respondeu a madame, correndo para as traseiras da loja sem sequer
cumprimentar os homens.
Era comum entrarem homens em lojas de modistas, por vezes com uma esposa, irmã ou
filha, mais frequentemente com uma amante. Um lojista esperto marcava essas visitas e
usava salões de provas nas traseiras para assegurar que não houvesse quaisquer
constrangimentos entre clientes de várias classes sociais.
Estes homens não pertenciam de todo a esta loja. O sujeito menos alto – não era de todo
baixo – vestia com requinte roupas matinais e parecia-se com as irmãs escocesas.
O outro homem…
Uma sensação estranha invadiu Megan, arrepiante e confusa, mas também feliz, como se
ela tivesse reconhecido um amigo de infância cujas feições se tinham alterado com o tempo,
mas cujo semblante evocava memórias preciosas…
Nesta loja de veludos, sedas e rendas delicadas, o homem mais largo usava lã axadrezada.
O seu kilt tinha um padrão de verdes e azuis, como pastos verdejantes e céu veranil tecidos
à sua volta, encimados com um colete de veludo azul-escuro, uma jaqueta de lã verde e um
lenço de pescoço branco rendado.
A sua aparência combinava com as texturas que usava. Diferentes, intrigantes e, para
Megan, atrativas pelos seus contrastes, como um arranjo de flores num vaso inesperado.
Mas ele não era bonito. Os seus olhos azuis mostravam demasiada tristeza escondida,
demasiada desconfiança. As suas feições careciam de requinte, mas adequavam-se àqueles
olhos. Aquele maxilar dava um ar de teimosia e o queixo reforçava a impressão de
intolerância. Este homem era tão imponente como penhascos de granito, resistindo a
ventos uivantes, mares violentos e séculos de estações após estações.
Porém, neste momento, o homem forte como o granito parecia dominado pela incerteza.
– Eu reconheço-o – disse Megan, a dirigir-se a ele, com a mão estendida. – O senhor
resgatou os meus óculos no outro dia em Hatchards.
A expressão do cavalheiro passou de cautelosa a desanimada, quando Megan o agarrou
pelo braço e o puxou em frente na direção da tia Esther.
– Tem de conhecer a minha família – continuou Megan, embora o cavalheiro não
parecesse estar habituado a ser guiado, pois permaneceu obstinado, apesar da tentativa de
liderança de Megan. – Elas certamente hão de querer conhecer um homem tão valente e
educado.

Hamish sabia sobreviver a esta emboscada. Tinha de puxar Colin pelo cotovelo, sair
novamente pela porta e esperar a uma distância segura ao fundo da rua até que Edana e
Rhona acabassem de o empobrecer.
Mas a jovem de óculos com a voz suave já fizera Hamish prisioneiro e, para se libertar,
ele teria de retirar a mão dela do seu braço. Tal manobra exigia que lhe tocasse e até
Hamish sabia que tomar liberdades com a pessoa de uma mulher decente era o equivalente
a suicídio social.
– Venha lá – pediu a senhora, a dar-lhe uma palmadinha na mão. – A tia é muito
simpática, como se espera que uma duquesa seja.
A duquesa muito simpática tinha aparentemente um sentido do absurdo, pois estendeu a
mão enluvada na direção de Hamish.
– Vossa Graça de Murdoch – disse ela –, se não me engano. É um prazer, e este deve ser o
seu irmão, capitão Colin MacHugh.
Colin fez uma vénia enquanto Hamish tomou a mão da duquesa e pensou
desesperadamente no que um homem devia dizer a uma duquesa com um sorriso gracioso.
– Vossa Graça – disse Hamish, curvando-se. – É um prazer conhecê-la, e a senhora está
correta, este malandro tem a honra de ser o meu irmão, Colin MacHugh.
Um turbilhão de vénias e reverências e malditas apresentações continuou durante
metade do dia. A Marquesa da Travessura era Lady Deene. As patentes militares na
Península Ibérica tinham incluído um Lorde Deene. O homem fora um tolo se preferira a
guerra a permanecer ao lado da sua marquesa.
Edana e Rhona abriram caminho com cotoveladas até à fila, bem como uma coisinha
bonita chamada Menina Elizabeth Windham, outra sobrinha da duquesa.
A impaciência de Hamish piorava porque não tinha lápis nem papel para rabiscar
aqueles parentescos e provavelmente esquecer-se-ia deles antes de sair da loja. A pessoa
responsável por esta saudação à bandeira estava longe num canto, meio escondida por um
rolo de tecido floreado e aparentemente caro.
Megan Windham seria difícil de esquecer.
– Vossa Graça perdoe-me – disse Hamish –, mas estamos a esquecer-nos de um membro
do vosso grupo na nossa troca de formalidades.
Hamish tinha irmãs, tinha experiência no campo de batalha e tinha uma visão perfeita,
mesmo com baixa luz. Do outro lado da loja, a Menina Megan ficou imóvel, como se tivesse
ouvido um galho estalar numa floresta que pensara desfrutar em solidão.
– Megan – chamou Sua Graça num tom agradável e autoritário. – Vem despedir-te de Sua
Graça, e depois temos de ir andando. Madame, dezoito metros da seda verde para a Menina
Edana e dezoito da azul para a Menina Rhona. Rebordo castanho para ambas, sapatos e
xailes de seda castanha, meias castanhas. As jovens senhoras far-lhe-ão outro pedido de
saiotes e outras coisas quando lhes for conveniente.
Hamish ficou demasiado satisfeito com o sentido de comando da duquesa para discutir o
golpe mortal que ela desferira ao seu orçamento.
A Menina Megan aproximou-se com ligeireza para oferecer uma vénia a Colin e Hamish.
Vindo dela, o gesto não foi um movimento desajeitado, mas antes um exercício de
deferência e graça. Tudo, desde a fluidez das saias da Menina Megan à inclinação da sua
cabeça, ao compasso em que a ergueu, foi… encantador.
Colin deu uma palmadinha nas costas de Hamish.
– Menina Megan – disse Hamish. – Foi um prazer. – Uma bênção, mais corretamente,
contemplar tamanha dignidade feminina, e igualmente uma pena. O loiro e bonito
Pilkington tinha uma relação íntima com Megan Windham. Por esse facto apenas, Hamish
desejou ter dado um tiro ao patife quando tivera a oportunidade.
– Vossa Graça – disse Megan quando Hamish lhe largou a mão. – A companhia das suas
irmãs alegrou consideravelmente a nossa manhã e, agora que fomos apresentadas, espero
que venham visitar-nos em breve e com frequência.
– Oh, mas claro – prometeu Edana.
– Adoraríamos – acrescentou Rhona.
– Ficaremos à espera – respondeu a duquesa, cruzando o braço com o da Menina Megan.
Por um instante, Megan pareceu resistir à tentativa delicada da tia de a arrastar para a
porta e, naquele instante, Hamish cruzou olhares com uma mulher que o desafiara a ter
desejos.
Uma ideia muito má, quando um soldado traumatizado desejava algo mais ambicioso do
que uma boa cerveja ou um pernil bem assado.
– Venham, sim – insistiu Megan, com um olhar misterioso por trás do azul dos óculos. –
As preparações para o baile tornaram a nossa casa num manicómio e companhia sã seria
muito bem-vinda.
Um ar ducal infiltrou a frase de despedida de Megan. Não porque não vêm, ou espero que
venham, mas sim o imperativo: Venham, sim. Hamish dera e recebera ordens suficientes
para reconhecer uma quando a ouvisse.
– Lamento, Menina Megan, mas eu e a minha família partiremos em breve para o Norte.
Se estas palavras magoaram a senhora tanto quanto magoaram Hamish, ela não deu
sinais disso. Aqueles óculos eram maravilhosos para disfarçar emoções. Talvez Hamish
pudesse arranjar uns para si também. Na Escócia, nenhuma mulher bonita, amável e
delicada olhava para Hamish com curiosidade sincera, mas também ninguém lhe chamava
Duque da Morte.
– Não seja ridículo – disse a duquesa. – O senhor é um duque, e as suas irmãs têm de ser
apresentadas na corte, caso ainda não tenham sido. Não quero que partam de Londres
enquanto não tratarem dessa cortesia. Quanto muito, visite-nos para discutirmos esse
assunto.
– Mas, Vossa Graça, eu tenho responsabilidades, e nós já nos tardámos em Londres –
respondeu Hamish, sabendo mesmo que discutir com um militar superior era loucura.
– Meu senhor, eu já criei cinco filhas – disse Sua Graça, com muita afabilidade. – As suas
irmãs têm o direito de desfrutar de Londres em todos os aspetos. Você virá, por obséquio,
ao baile na próxima terça-feira e trará os seus irmãos. Fiz-me entender? Antes do
entardecer receberá um convite por escrito.
Rhona e Edana pareciam recrutas ansiosos por serem escolhidos para missão especial,
mas incapazes de falar sem lhes ser pedido enquanto esperavam as ordens do seu capitão.
No seu silêncio ansioso, Hamish viu-as não como as suas irmãs perturbadoras, caras e
desconcertantes, mas antes como duas jovens e bonitas senhoras que sobreviveram a
tantos invernos escoceses e mantos simples de lã quanto lhes foi possível.
– É muita bondade sua convidar-nos – disse Hamish, a suprimir a vontade de saudar a
duquesa. – Será uma honra para nós estarmos presentes, Vossa Graça.
Honra sendo o termo bonito inglês para maldição, claro.
Capítulo 3

Gayle Windham, conde de Westhaven, era demasiado autodisciplinado para olhar para o
relógio mais de uma vez de cinco em cinco minutos, mas conseguia ver a sombra de um
tronco de carvalho a começar a sua viagem da tarde pela parede do seu escritório acima. Os
restos de uma sanduíche de carne estavam numa bandeja junto ao seu cotovelo, e em breve
o seu filho mais novo iria fazer a sesta.
Westhaven concentrou-se de novo na tarefa agradável de rever despesas domésticas,
embora a contabilidade de Anna fosse meticulosa. Acedia ao pedido da sua condessa de
examinar os livros por causa de pequenos conhecimentos que ele obtinha em relação à sua
família.
Estavam a usar menos velas, prova da chegada da primavera e de mais horas de luz
diária.
A adega requerera alguma atenção, outro sinal da iminente temporada social.
Anna gastara uma quantia significativa na prenda de aniversário da prima Megan, mas
uma caixa de música era a escolha perfeita para Megan.
– Ainda não te mexeste uma única vez durante todos os meses que estive ausente – disse
uma voz barítona com humor. – Pareces uma daquelas estátuas, de guarda ao longo das
estações, até que um irmão prestável chega e te pede para te juntares a ele no parque para
uma volta de coche nesta linda tarde.
Em casa a salvo. O cabelo escuro de Devlin St. Just estava despenteado, as suas roupas
amarrotadas, as botas empoeiradas, mas ele estava, mais uma vez, em casa a salvo.
As palavras eram um produto irracional da memória de Westhaven, pois o seu irmão
proferia-as sempre que via o seu meio-irmão mais velho após uma ausência prolongada.
Westhaven atravessou o escritório com mais agilidade do que dignidade, com a mão
estendida na direção do irmão.
– Deus do céu, tu fedes, St. Just, e a poeira da estrada vai arruinar-me as carpetes por
onde quer que passes.
St. Just pegou na mão estendida de Westhaven e puxou o conde para suficientemente
perto de si para um abraço rápido com palmadas nas costas.
– Eu fedo, tu ralhas. Dá-me um brande enquanto te arruino as carpetes e um bom dia
para ti.
Westhaven acedeu, sobretudo para ter algo que fazer em vez de olhar fixamente para o
irmão. Yorkshire ficava demasiado longe, os invernos eram demasiado longos e horríveis, e
St. Just fazia visitas demasiado infrequentes, mas, sempre que visitava, parecia… mais
relaxado. Mais calmo, mais em paz.
E se havia homem que se sentisse feliz por cheirar a cavalo, era Devlin St. Just, conde de
Rosecroft, primogénito, embora ilegítimo, do duque de Moreland.
– Tenho uísque – disse Westhaven. – Disseram-me que os bárbaros do Norte o preferem
ao brande.
– Se tiveres uísque decente, ainda penso duas vezes, mas se és um snobe do brande,
então seja brande. Como estão as crianças?
Graças a Deus pelo assunto das crianças, que permitia aos dois homens que tinham
sentido imenso a falta um do outro evitar admiti-lo.
– As crianças são barulhentas, caras e um tormento para os nervos de qualquer ser
senciente. Os nossos pais visitam-nos, distribuindo um excesso de doçarias, bem como
mentiras sobre a minha própria juventude. Depois Suas Graças vão-se embora, deixando o
meu reino em completa desordem.
Westhaven passou a St. Just uma generosa doce de álcool, embora, sendo St. Just, ele
tivesse esperado até Westhaven ter o seu próprio copo.
– A reinos desordenados – disse St. Just, tocando o seu copo no de Westhaven. –
Experimenta arrancar as tuas mulheres e arrastá-las por centenas de quilómetros pela
Grande Estrada do Norte. O teu reino reduz-se logo a uma sela implacável. Mais ou menos o
mesmo que estar em campanha.
St. Just era capaz de fazer isto agora – referências passageiras e meio humorísticas aos
seus dias no exército. Durante os primeiros dois anos, após ter-se reformado, fora incapaz
de permanecer sóbrio durante uma trovoada.
– Sua senhoria está bem? – perguntou Westhaven.
– A minha Emmie é uma santa – contrapôs St. Just, a ocupar o assento por trás da
secretária de Westhaven. – Se morreres, eu quero esta cadeira.
– Poupa-me o teu humor militar. Se eu morrer, tu e o Valentine são os guardiões dos
meus filhos.
Uma bota empoeirada pousou com força no canto da antiga secretária de Westhaven, o
mesmo canto em que as próprias botas menos empoeiradas de Westhaven costumavam
apoiar-se, desde que a porta estivesse fechada.
– Eu e o Val? Não escolheste o Moreland como guardião?
– Sua Graça há de intrometer-se, interferir, aconselhar, manobrar, atrapalhar ou então
orquestrar as coisas conforme lhe convier, com a ajuda da sua encantadora mulher em
todos os aspetos. Colocar a autoridade legal dos meus filhos nas tuas mãos foi o meu gesto
patético de contrariar os esquemas ducais. Tu vais, obviamente, obsequiar a minha culpa
por esta presunção ao dar-me um papel semelhante nas vidas dos teus filhos.
St. Just fechou os olhos. Era um homem bonito, mais bonito por ter recuperado algum do
músculo que tivera quando era mais jovem.
– Consigo ouvir a voz de Sua Graça quando começas a azucrinar-me sobre o que eu devo
obsequiar e a desbobinar verbos.
– Esta palavra existe? – perguntou St. Just.
– Desbobinar, sim, um verbo humilde. Provavelmente de origem saxónica em vez de
romana.
Westhaven fingiu saborear o brande, mas na verdade estava a saborear o facto de que o
seu irmão mais velho preferia – todo sujo – vir à casa de Westhaven antes de visitar a
residência ducal.
– Onde está a tua condessa, St. Just? Ela normalmente está colada a ti como um bonito
ouriço.
– Onde está a tua? – retorquiu St. Just. – Eu deixei a Emmie e as raparigas na casa da
Louise e do Joseph, mas tenho de ir buscá-las…
A porta abriu-se e entrou descontraidamente um homem bonito de cabelo escuro. O
mordomo de Westhaven seguia-o, colérico.
– Venho pedir asilo – disse Lorde Valentine.
St. Just levantou-se e atravessou a sala quase antes de Val ter acabado de falar. Os irmãos
Windham mais velho e mais novo pareciam-se muito, ambos de cabelo escuro e na posse de
um sentido de paixão físico. Valentine adorava música, St. Just os seus cavalos, e ainda
assim os irmãos eram semelhantes de uma forma que Westhaven apreciava mais do que
invejava – quase sempre.
– Vens à busca do meu bom brande – disse Westhaven depois de Val ter recebido um
valente abraço e palmadas nas costas de St. Just. – Toma.
Passou a Valentine a sua própria dose, servindo-se de outra.
– Estávamos prestes a brindar ao nosso feliz estado de pandemónio marital – comentou
St. Just. – Ou assim o Westhaven pensa. Eu estou na verdade a preparar-me para invadir a
cidadela ducal.
Valentine ocupou, por sua vez, a cadeira de Westhaven.
– Eu retirar-me-ia se fosse a ti.
Westhaven sentou-se numa das cadeiras do outro lado da secretária.
– O que é que Suas Graças fizeram agora?
Valentine preferia apoiar as botas – moderadamente empoeiradas – no canto oposto aos
dos seus irmãos. Deste modo, a luz do Sol incidia sobre o ombro esquerdo de Val.
Nenhum dos irmãos tinha ainda cabelos brancos, uma espécie de competição na mente
de Westhaven, embora não tivesse a certeza se o primeiro a tê-los seria um vencedor ou
perdedor. Ainda estavam apenas nos seus trinta, mas eram todos pais de crianças pequenas
– pequenas crianças Windham.
– O duque vai recambiar propositadamente o tio Tony e a tua Gladys para o País de Gales
logo depois do baile – disse Valentine – enquanto a duquesa irá raptar as nossas primas,
obviamente para fazer de casamenteira.
Eles tinham quatro primas: Beth, Charlotte, Megan e Anwen. Eram mulheres
encantadoras, ruivas, inteligentes e bem dotadas, mas eram Windham e, por isso, não
tinham pressa de casar.
Uma situação que a duquesa pretendia remediar.
– Então, é por isso que a Megan foi especialmente efusiva ao sugerir que eu viesse para
baixo – cismou St. Just, ao abrir uma caixa esmaltada sobre a lareira. – A Emmie disse que
algo desagradável estava em curso.
Um pedaço de maçapão desapareceu pela boca de St. Just.
– Cai bem com o brande – disse ele, a oferecer a caixa a Val, que tirou dois pedaços. –
Westhaven?
– Que generoso da tua parte, St. Just. – Tirou três, embora a sua secretária guardasse
outra caixa, que os seus irmãos poderiam não encontrar. Os seus filhos não tinham
encontrado.
Por enquanto.
– A Beth e a Megan já passaram por suficientes temporadas para saberem como evitar a
armadilha do matrimónio – declarou Westhaven.
– Perguntei-me o que Suas Graças fariam quando nos casaram a todos – cismou
Valentine, com o copo de brande na mão diante da sua boca elegante. – Pensei que se
dedicariam a obras de caridade, um descanso entre turnos até os netos crescerem.
Atirou um pedaço de maçapão ao ar e apanhou-o com a boca, como teria feito há vinte
anos, e essa visão agradou Westhaven de uma forma que poderia confessar quando todo o
seu cabelo estivesse branco.
– A Beth está a enfraquecer – disse Westhaven. – Já tem tendência a enxaquecas, joelhos
doridos e resfriados. Eu e a Anna fazemos o que podemos, mas as crianças mantêm-nos
ocupados, tal como a gestão do ducado.
– E todos nós agradecemos a Deus por teres assumido aquela dor de cabeça – disse St.
Just, a erguer o copo. – Como estão as coisas, se me desculpas as palavras diretas?
– Estamos firmes, financeiramente falando – informou Westhaven. – Por mais estranho
que pareça, o Moreland é em parte responsável por isso. Como ele não se importou com
especulações em tempo de guerra, quando Napoleão foi finalmente derrotado, de uma vez
por todas, as nossas finanças não passaram por nenhum dos ajustes difíceis a que muitos
outros ainda estão a tentar sobreviver.
– Se alguma vez te vires nessas condições – afirmou Valentine –, pedes-me ajuda, caso
contrário dou cabo de ti, Westhaven.
– E a mim também – secundou St. Just. – Se não acabo o trabalho que o Valentine
começar.
– Agradeço as vossas ameaças violentas – disse Westhaven, escondendo um sorriso por
trás do seu copo de brande. – Assumo que vocês prefeririam fixar-se debaixo do meu teto
do que na mansão ducal?
Valentine e St. Just trocaram um olhar que fez Westhaven lembrar-se dos seus pais.
– Se vamos coordenar a defesa das nossas primas solteiras – disse St. Just –, então faz
sentido que abusemos da tua hospitalidade, Westhaven.
– Estamos de acordo, então – disse Valentine, assaltando a caixa mais uma vez. – A Ellen
ficará aliviada. Barulho e excitação não fazem bem a uma mulher no estado em que ela está,
e esta casa só terá metade do alvoroço da Casa Moreland.
– Temos de pensar nas nossas primas – comentou St. Just. – O poder combinado do
duque e da duquesa de Moreland está mobilizado contra a liberdade das quatro jovens
queridas e determinadas que não desistirão do seu celibato de ânimo leve.
– Nem devem – murmurou Westhaven, tapando de novo a caixa, que St. Just apenas
voltou a abrir. – Nós tivemos o direito de escolher como bem entendemos, e as nossas
irmãs também. Seria de esperar que Suas Graças já tivessem aprendido a lição.
Alguém bateu à porta. Valentine sentou-se direito, St. Just ergueu-se para voltar a
guardar a caixa sobre a lareira e estava de pé, com as mãos atrás das costas, quando
Westhaven pediu à próxima visita para entrar.
– Sua Graça, o duque de Moreland, meus senhores – anunciou o mordomo.
Percival Windham circundou agilmente o mordomo e entrou no escritório.
– Muito bem, muito bem. Os meus rapazes convocaram uma reunião do subcomité
Windham sobre o excesso miserável de solteironas que será em breve colocado sob o
cuidado da Sua Graça, minha esposa. St. Just, estás com bom aspeto. Valentine, quando é
que começaste a usar compota na roupa?
Moreland retirou rapidamente a caixa de cima da lareira, abriu-a, ocupou a cadeira ao
lado de Westhaven e pousou a caixa no meio da secretária.
– Sou todo ouvidos, cavalheiros – disse o duque, a atirar uma guloseima para a boca. – A
não ser que queiram ver o vosso velho papá perder o pouco juízo que ainda tem depois de
vos ter criado, digam-me, se fazem o favor, como conseguimos convencer as vossas primas
a casar imediatamente. A duquesa fez o ultimato, e nós somos os seus escravos em todos os
aspetos, não é verdade?
Westhaven pegou num pedaço de maçapão, St. Just foi buscar a garrafa de brande e
Valentine pediu sanduíches ao mordomo, porque o que haveriam eles de dizer a uma
proclamação ducal como esta?

O duque de Wellington esperara que todos os seus subordinados militares diretos


soubessem dançar valsa e por isso Hamish nunca insistira em aprender. Sua Graça também
preferira oficiais com títulos e linhagens aristocráticas. Quando a conversa na messe dos
oficiais incluíra mulheres, guerra e apostas, Hamish falara de cervejarias, destilarias e
comércio.
Negócios em toda a sua glória plebeia.
Como resultado, Hamish não tinha ideia de que tipo de conversa de circunstância se
devia ter quando se visitava uma duquesa.
– Colin, vais acompanhar as tuas irmãs lá dentro – disse Hamish. Rhona e Edana estavam
empoleiradas na beirinha do banco do coche virado para a frente. O veículo era mais
exatamente uma carruagem de viagem do que um coche de cidade, porque quatro
MacHugh não cabiam confortavelmente nos coches de brincar que a alta sociedade
preferia.
– Hamish, a Menina Megan convidou-te a ti – disse Rhona.
– E a duquesa ordenou que viesses connosco – acrescentou Edana. – A duquesa de
Moreland, que pode arruinar uma pessoa com o levantar da sobrancelha.
Hamish sabia exatamente que duquesa era, embora a mulher provavelmente ficasse
aborrecida apenas a arruinar uma pessoa. Se ela desgostasse de um homem, não restaria
nada dele para arruinar. Ela era o pior tipo de inimigo – o tipo digno em controlo absoluto
da sua bota, do seu cavalo e do seu canhão.
Colin abriu a porta do coche e sentou-se para trás. Na calçada, o Velho Jock estava em
sentido, com o peito espetado para a frente, a fazer o seu melhor para preservar a
dignidade da casa de MacHugh.
Envergonhado por um cocheiro artrítico.
Hamish saiu do coche, o que abanou os ocupantes no interior. Edana saiu em seguida,
mas permaneceu meio dentro, meio fora, com a mão enluvada estendida.
– Eddie, por amor de Deus – disse Hamish, puxando-a o resto do caminho para fora. –
Tens entrado e saído de coches desde que eras uma pestinha. Podias conduzir este coche
melhor do que o Velho Jock – ouviu-se um resfolegar de indignação junto ao cotovelo de
Hamish –, quando ele andou metido no barril de uísque. Para de te pendurar em mim.
Ela semicerrou os olhos de uma maneira que teria feito o último lobo na Escócia fugir
para o mar.
Colin emergiu do coche e virou-se para ajudar Rhona.
– Vamos brigar a manhã toda à porta da duquesa – sugeriu ele –, bater à porta dela é tão
aborrecidamente previsível.
– Devíamos ter enviado um lacaio com o nosso cartão de visita – disse Rhona, passando a
mão pelas saias que tinham provavelmente custado mais do que o coche.
Agora ela lembrava-se de informar o seu próprio irmão das formalidades?
– Para que vestir-me com a roupa mais requintada, aturar-vos, incomodar os cavalos, e o
nosso cocheiro, apenas para enviar um cartão estúpido pelo qual o maldito tipógrafo quer
cobrar uma taxa que é um roubo, que eu não pretendo pagar?
A mão de Edana no braço de Hamish apertou o sítio vulnerável na dobra do cotovelo. Ela
conhecia todos os pontos fracos de um homem, porque Hamish ensinara-lhos.
– Saíste de casa sem os teus cartões de visita? Hamish, como foste capaz?
Ele soltou-se dela.
– É assim, Eddie. Se deixarmos que os comércios pensem que podem roubar-nos eles
roubam-nos. São simples regras de batalha. Se o inimigo se retirar, derrotamo-lo. Se o
inimigo se mantiver firme, atacamo-lo. Não entregamos o nosso dinheiro ganho a custo
com um sorriso superior como um duque infernal cheio de rodeios que não tem um
cérebro na sua cabeça inglesa idiota.
Alguém fechou a porta do coche com um estrondo.
– Eu faço questão de nunca ter rodeios, nem mesmo em privado com a minha duquesa.
As feições de Colin ficaram inexpressivas, Rhona admirou os seus sapatos – cor-de-rosa,
afinal de contas – e Edana para variar não sabia o que dizer.
Um cavalheiro mais velho, alto e magro, em traje de montaria, apareceu junto ao coche
de Hamish, bloqueando qualquer escapatória de volta ao coche, de facto. O sujeito tinha
olhos azuis perspicazes e o seu cabelo era loiro-claro como um guerreiro saxão
envelhecido.
Hamish provavelmente insultara o homem à porta da sua própria casa.
– As minhas desculpas por brigar com os meus irmãos no meio da rua. – Ele deveria
provavelmente ter-se curvado, pois este indivíduo era sem dúvida um maldito duque, mas
desviar o olhar do cavalheiro parecia má ideia.
– Percival, duque de Moreland, ao seu serviço. Tenho um pequeno, mas precioso bando
de netos, e oito filhos crescidos, meu senhor, todos eles casados. As brigas são a música de
uma família que não tem nada sério sobre que discutir.
Também a música de uma família que não progredira para a fase de partir mobília e
gritar palavrões quando têm opiniões diferentes.
Colin deu uma cotovelada nas costelas de Hamish.
– Hamish, duque de Murdoch, Vossa Graça.
Edana acotovelou-o do outro lado, o que não fez sentido. Um duque era uma «Vossa
Graça», disso Hamish tinha a certeza.
– Está a fazer uma visita à minha duquesa – disse Moreland, subindo até à entrada. –
Podemos continuar as apresentações lá dentro e persuadir Sua Graça, minha esposa, a
providenciar-nos sustento. A temporada social pode ser exaustiva, mas assumo que já
descobriu isso.
Apresentações.
Bem, é claro. A alta sociedade pelos vistos não tinha mais nada melhor do que trocar um
sem-fim de apresentações entediantes. Mesmo no exército, que fora poluído com lordes
titulados e filhos mais novos aristocráticos, os protocolos tinham desperdiçado tanto
tempo com o polimento do armamento.
Edana levou Hamish pelo cotovelo, Rhona agarrou-o pelo outro e assim ele foi forçado a
entrar na mansão ducal, seguido por Colin atrás.
– Alerte as senhoras – disse Moreland ao lacaio que abriu a porta. – Encontrei um duque
a vaguear à entrada, com as suas duas irmãs encantadoras e um irmão bonito.
– É claro, Vossa Graça. As senhoras estão na salinha verde e informarei a cozinha de que
chegaram mais convidados.
– Acompanhem-me – disse Moreland, adotando um passo rápido. – Sua Graça, minha
esposa, está sem dúvida à vossa espera, porém aviso-vos: ela está a braços com o
planeamento de um baile para as nossas sobrinhas. Nestas ocasiões eu tenho muito
cuidado, e sou veterano das campanhas canadianas de Sua Majestade.
O facto de um veterano militar e um duque, sobretudo, se sentir intimidado por um baile
iminente não confortava Hamish nem um pouco.
Nem sequer a residência Moreland. A mansão ducal era um monumento ao trabalho de
estuque extravagante, com vasos de porcelana enfiados em nichos, flores de estufa
arranjadas com graça natural e luz que refletia em vidraças douradas. As carpetes eram
suficientemente grossas para abafarem os passos de bota do duque. Hamish viu-se
obrigado a empurrar as irmãs em frente, para que não ficassem enfeitiçadas pela
ostentação de riqueza pura.
Riqueza e bom gosto. Hamish reconhecia o bom gosto sobretudo porque não tinha
nenhum. Possuía cervejarias e cicatrizes de guerra, e agora vários irmãos deslumbrados.
A mansão Moreland era um inferno com sotaque inglês, pelo menos para Hamish.
– Murdoch, é melhor apresentar-me a sua família antes que enfrentemos o desafio que
nos aguarda – declarou o duque. – Sua Graça, minha esposa, terá tudo encaminhado, mas
um homem gosta de impressionar a sua duquesa sempre que possível.
O tom de Moreland era genial e o sorriso que dirigiu a Edana e Rhona aludia ao oficial
jovem e bonito que se pavoneara em regimentos décadas antes. E, ainda assim, Hamish
honraria o pedido de Sua Graça, e não porque os bons modos lho exigiam.
Ele faria o favor a Moreland com um ensaio das apresentações porque Moreland fizera
campanha no Canadá há anos – um lugar tão bonito como perigoso – e porque o oficial em
Hamish respeitava o comando competente quando o reconhecia.
Já vira muito do outro tipo e fora culpado de o executar também.
Dois minutos depois, o duque abriu as portas da salinha com um floreado das mãos e
conduziu os convidados para outra sala cheia de visitas ligeiras, encantadoras e valiosas. A
duquesa de cabelo dourado destacava-se entre quatro jovens ruivas, duas das quais
Hamish não reconhecia.
A Menina Elizabeth Windham estava sentada do lado direito da duquesa, que se alegrou
visivelmente ao ver Moreland, como se um mensageiro com notícias tivesse atravessado as
linhas da guerra em segurança.
Em frente a elas estava a Menina Megan, e mesmo ao seu lado estava sentado Sir Fletcher
Pilkington, como uma aranha ociosa no meio de uma teia fina.

A tia Esther explicara a Megan há muito tempo que as apresentações seguiam um padrão
estabelecido para que uma mulher tivesse tempo de memorizar nomes e títulos. Quando
Megan conhecera Sir Fletcher pela primeira vez, ela repetira em silêncio uma pequena
legenda: Ele chama-se Sir Fletcher, libertino não deve ser.
Um homem de beleza tão dourada, gracioso e charmoso não teria de pressionar as suas
atenções numa mulher. Ela oferecer-lhe-ia de mão beijada a noite toda e metade da sua
dignidade.
Infelizmente, Megan oferecera-lhe muito mais do que isso.
– Ah, Moreland! – exclamou a tia Esther, sorrindo para o seu duque. – Trouxeste amigos
para animar o nosso dia.
O tio Percy ajudou a sua duquesa a levantar-se, retribuindo o sorriso.
Parte do efusivo respeito mútuo de Suas Graças era para consumo público – o tio Percy
adorava fazer uma entrada –, mas boa parte dela era genuína.
– Minha querida – disse o tio Percy, curvando-se sobre a mão de tia Esther –, o duque de
Murdoch veio visitar-nos e trouxe os seus irmãos. Vamos precisar de um salão maior se
continuares a colecionar visitantes nesta temporada.
Sir Fletcher estava de pé, cumprimentando educadamente sobre as mãos das irmãs
MacHugh, enquanto o irmão mais velho ficava para trás, com o olhar azul atento.
– Anwen – disse a tia Esther –, podes mandar a cozinheira trazer-nos mais um bule e
umas sanduíches para o terraço? A manhã está maravilhosa e os jardins estão a ficar
bonitos.
Anwen lançou a Megan o mais simples olhar de simpatia e saiu a correr, provavelmente
para não ser mais vista durante horas.
– Bom dia, Vossa Graça – disse Megan, agarrando o duque de Murdoch pelo braço antes
que Sir Fletcher pudesse agarrar-se ao seu lado. – Vamos para o jardim?
A expressão dele poderia ter congelado o Tamisa em julho.
– Sim.
Sir Fletcher ofereceu o braço a Lady Edana, o tio Percy acompanhou Lady Rhona e a Colin
MacHugh restou-lhe acompanhar a senhora, Sua Graça. Todos muito amistosos e informais,
e tão entediantemente graciosos que Megan tinha vontade de guinchar.
– O tio Percy tem orgulho nas suas rosas – disse ela, a aproximar-se mais do duque
escocês. – É demasiado cedo para elas, mas se o senhor elogiar os jardins, ele ficará
satisfeito.
Murdoch fez-lhe uma carranca.
– O seu tio não pega numa tesoura de podar desde que Zaqueu desceu do sicómoro.
Porque haveria eu de elogiar o Moreland por jardins que ele nunca trata?
A pergunta era horrivelmente genuína, talvez até um pouco perplexa.
– Você é um novo duque, ele é um duque de elevada consequência. O seu favorecimento
poderia beneficiá-lo – respondeu Megan, começando com premissas simples. – O tio é
responsável por estes jardins, por contratar os jardineiros e supervisionar o seu progresso.
Se os jardins prosperarem, o tio Percy geriu-os e quem trata deles bem.
– Sem ofensa, menina, mas não é assim que as coisas são.
Sir Fletcher riu-se de algo que Lady Edana disse. Provavelmente treinava as gargalhadas
diante do espelho de fazer a barba, pois parecia tão charmoso e elegante quando tomado de
regozijo. Atirava a cabeça para trás, injetava somente a quantidade certa de alegria no riso
e inclinava o sorriso com um grau calculado de simpatia…
– Peço que me perdoe – disse Megan, concentrando-se de novo no seu acompanhante.
Murdoch parecia ainda não conhecer a palavra risada. – Creio que entendo muito bem
como a casa do tio Percy funciona, Vossa Graça. Vamos encontrar um lugar para nos
sentarmos?
Um banco, para que Megan se pudesse sentar numa ponta e colocar o duque no seu único
lado disponível.
– Em primeiro lugar – disse Murdoch, mantendo a voz baixa –, o seu tio ama os jardins
porque eles fazem a duquesa dele feliz. Eu suspeito que esses jardins guardam memórias
também, principalmente do tipo alegre. O jardineiro provavelmente é um sujeito velho que
está no trabalho desde que Sua Graça ainda aprendia a andar, e o duque pouco tem a dizer
sobre isso. Não poderia despedir o velho, mesmo que ele matasse todas as flores no local. A
riqueza só parece dar poder ao homem. Na verdade, torna-o menos livre.
O jardineiro era um acessório chamado Murray. Megan não sabia se era o seu primeiro
nome, o apelido ou uma alcunha. Ele era simplesmente Murray e, em relação ao jardim, era
um ditador absoluto, embora gentil.
– E em segundo lugar? – Megan perguntou quando Murdoch a conduziu pelo terraço e
desceu os degraus até ao jardim propriamente dito.
– Em segundo lugar, Menina Meggie, se odeia um homem, não deve fazê-lo para que os
outros tomem conhecimento.
Menina Meggie. Oh, como Murdoch transgredia os limites do decoro e como ela gostava
da sua familiaridade.
– Eu não o odeio. Eu mal o conheço a si.
– Refiro-me a Sir Fletcher. Talvez a menina tenha ciúmes da atenção que ele mostra à
minha irmã, mas não precisa de ter. Eu mato já o malandro se ele pensa em tomar
liberdades com a minha Eddie.
Megan desejou que Sir Fletcher tomasse liberdades com Lady Edana, com qualquer
mulher jovem em posição de responsabilizá-lo pelos seus modos de crápula. Desejou que
todos os homens fossem tão sinceros como Murdoch, e desejou ter encontrado aquele
escocês rude há muito mais tempo.
– As suas noções de lealdade familiar são bastante violentas – comentou Megan. – É por
isso que foi apelidado de Duque da Morte?
Capítulo 4

O Duque da Morte?
O olhar da Menina Megan era meramente curioso. Ela não podia saber o quanto aquela
alcunha feria as entranhas de Hamish como uma baioneta enferrujada empunhada pelas
mãos inimigas.
– Isso é o que andam a chamar-me, não é? Suponho que se adequa.
Ela deu-lhe uma palmadinha no braço.
– Foi soldado. Os meus primos Devlin e Bart foram soldados. O Devlin voltou para casa
em pior estado por causa das suas experiências, o Bart perdeu a vida em Portugal. A guerra
resulta em muita morte feia. Até as senhoras compreendem essa triste realidade.
As senhoras – algumas senhoras – podiam compreender as generalidades, mas nenhuma
senhora deveria ter de ouvir os pormenores, pois Hamish vivera-os.
– Fale-me deste baile, Menina Meggie. Eu já estive em alguns do regimento, mas
consistem sobretudo em continuarmos sóbrios até as mulheres irem para casa e ficarmos
elegantes em uniforme de gala.
Ela olhou para Sir Fletcher, que estava a provocar a morte ao permanecer perto de mais
de Edana. Colin monitorizava a situação ao lado da duquesa e Rhona estava por perto com
Moreland.
Sir Fletcher estava cercado, mas sabia disso. Se pensava em pedir a mão de Edana, era
um tolo pior do que Hamish sabia que ele era.
A Menina Megan era uma mulher calma ou talvez aqueles óculos azuis lhe dessem um ar
calmo. Ela passeava ao lado de Hamish, protegendo-o de todas as conversas e tolices que
aconteciam no terraço.
– Um baile é um teste de resistência – disse a Menina Megan. – Pense nisso como uma
marcha forçada. Reúnem-se provisões da melhor maneira possível, mas viajar com pouco
peso também é importante. Vestimo-nos confortavelmente, não só para impressionar.
Comemos pouco antes, pois há sempre muita comida e bebida, e estudamos o jornal da
manhã para termos temas de conversa com o nosso companheiro de jantar.
Hamish arrastara-se pela neve no retiro da Corunha. Não apenas uma marcha forçada,
mas uma derrota completa, uma promessa de morte pelos franceses a quem quer que
vacilasse. Ele preferiria suportar mais outra marcha do que a temporada de Londres.
– É esse tipo de baile, com companheiros de jantar?
– Um companheiro de jantar, normalmente, embora as pessoas se reúnam em grupos
também. O seu parceiro para a valsa do jantar geralmente é o seu companheiro de jantar, e
a valsa do jantar costuma acontecer por volta da meia-noite.
Ela olhou para ele, um homem enfrentando a desgraça.
– Devo guardar a minha valsa do jantar para si, Vossa Graça?
Sir Fletcher detestaria isso. Hamish estudara o grupo reunido durante as apresentações e
o major Fletcher Pilkington era um amigo aceite na casa dos Windham. Ele estivera sentado
praticamente no colo da Menina Megan, e ela tolerara essa presunção.
E, no entanto, na livraria, Fletcher estivera a intimidar a senhora.
– Sir Fletcher não pediu a sua valsa? – perguntou Hamish.
A Menina Megan levara-os até uma fonte que continha um cupido gordinho com uma
urna sobre um ombro e uma asa direita ligeiramente lascada. Ela sentou-se num banco que
flanqueava a fonte, o que significava que Hamish também poderia sentar-se – tanto quanto
ele se podia lembrar.
– Sir Fletcher é muito procurado como parceiro de dança – respondeu a Menina Megan.
O cavaleiro arrojado fora um cão babado no que dizia respeito aos seguidores do
acampamento, até estes se terem familiarizado com o seu temperamento.
– Sir Fletcher é um idiota – retorquiu Hamish, empoleirando-se na borda da fonte. – Se
isso insulta o seu pretendente, peço desculpa, mas a menina merece melhor. – Qualquer
mulher merecia melhor que Fletcher Pilkington.
– Ele é filho de um conde, um herói de guerra condecorado e considerado bonito –
argumentou a Menina Megan. – O tio Percy garantiu-me que as expetativas do Sir Fletcher
são suficientemente boas.
Então o tio Percy não se dera ao trabalho de perguntar aos agiotas que controlavam as
entradas e saídas em Horse Guards. Demasiado ocupado a namoriscar com a sua duquesa,
talvez. Seria melhor que protegesse a retaguarda da sobrinha, por assim dizer.
– Então vai valsar com o seu Cavaleiro das Boas Expetativas – comentou Hamish, não
gostando da ideia. – Serão um casal atraente. Para algumas pessoas isso é importante. –
Embora a Menina Meggie não lhe parecesse uma senhora que fosse atraída por um rosto
bonito ou um monte de tagarelice – e essas eram as melhores qualidades de Fletcher.
– Por favor, sente-se ao meu lado – murmurou a Menina Megan.
– Perdã…?
Ela pegou na manga de Hamish e puxou-a com força.
Ele ocupou o lugar à direita dela.
– É uma mulher determinada. A Edana e a Rhona também são, mas tiveram de ser.
– Elas são Lady Edana e Lady Rhona agora – disse a Menina Megan. – Você tornou-se um
duque, por isso o estatuto dos seus irmãos também mudou.
O saldo bancário de Hamish certamente mudara.
– O minorca do meu advogado disse algo sobre isso, embora tenha alegado que custaria
muito e levaria algum tempo. Ainda não mencionei nada às minhas irmãs sobre a aquisição
do título de lady.
Megan enfiou os óculos pelo nariz para olhar para Hamish.
– O seu irmão também se torna um lorde por cortesia. Só é preciso um mandado de
precedência assinado pelo rei George. Acho que deve pedir a minha valsa do jantar, Vossa
Graça.
Como se o rei estivesse prestes a estender favores ao Duque da Morte?
– Menina Meggie, não faz sentido eu pedir a sua valsa do jantar.
Se Hamish dançasse com alguma mulher, seria Megan Windham. Ela não era pretensiosa,
era sossegada e, de uma maneira discreta e facilmente esquecida, era adorável.
– Peça-me de qualquer maneira. – Ela parecia-se muito com a sua tia, a Duquesa da
Desgraça.
– Menina Meggie, embora me custe admitir, sou quase famoso por não saber dançar. Eu
iria envergonhar-nos aos dois e provavelmente acabaria de rabo no chão diante de toda a
alta sociedade.
Desta vez, ela deu-lhe uma palmadinha na mão.
– Que absurdo. Se eu consigo aprender a valsa, você também consegue. Amanhã à tarde
deve bastar. Traga as suas irmãs, reunirei algumas primas minhas e faremos uma dança de
chá improvisada na casa da minha prima Westhaven.
Moreland estava a provocar Rhona, que era uma alma tímida quando não estava a
ameaçar instalar o caos por falta de alguns vestidos. Lady Rhona, segundo Megan
Windham. Hamish precisava de saber mais sobre o tal mandado de qualquer coisa e, para o
bem das suas irmãs, precisava de aprender a valsa.
– Diga uma hora e prometa-me que esta reunião será privada – disse ele. – Não vou cair
de rabo no chão para o entretenimento de metade de Mayfair.
Sir Fletcher vinha a subir pelo caminho, com Edana a seu lado. Raios se ela não parecia
meio apaixonada, infelizmente.
– Não vai cair – disse a Menina Megan –, mas deve permanecer ao meu lado enquanto Sir
Fletcher estiver por perto, entende, Vossa Graça?
Hamish não entendeu nada, embora esperasse que a ordem da Menina Megan – pois era
uma ordem – significasse que ela tinha algumas reservas em relação a Fletcher. O que
Hamish sabia com certeza era que, de alguma forma, ele fora convencido a permitir que
aquela pequena aristocrata de óculos o ensinasse a valsar e, pior, estava ansioso para essa
provação.

– Preciso de falar consigo, Vossa Graça.


Hamish olhou em redor, curioso em saber quando é que um maldito duque se metera na
conversa. Do outro lado da sala de música, Megan Windham estava a escolher pautas junto
ao piano, acompanhada por Edana e Rhona.
Os três sujeitos que rodeavam Hamish eram os primos da Menina Megan e, como que por
magia que apenas os duques ingleses conheciam, todos os três primos tinham títulos.
– Perdoe-me – disse Hamish. – Vou demorar a habituar-me à parte da «Vossa Graça».
Mais vale que saiba que também sou uma trampa a dançar a valsa.
– Tento na língua, Murdoch – murmurou o maior dos três.
O que tinha a renda toda à volta da garganta e dos pulsos começou a admirar o chão de
parquê como um sargento de artilharia que tenta não assassinar os seus próprios recrutas
no primeiro dia de treino de tiro ao alvo.
– Não sei mesmo valsar – declarou Hamish, à espera de que a Menina Meggie soubesse ao
menos tocar piano. Rhona e Edana tinham memorizado algumas melodias aceitáveis, mas
não substituíam uma orquestra.
– Se a Megan decretou que você deve aprender a valsa – disse o sujeito de cabelo ruivo –,
então você há de aprender a valsa. Ela tem um bom coração e não nós iremos permitir que
você a desaponte.
O Lorde Há de e Iremos devia ser o herdeiro ducal.
– Isso é bom – respondeu Hamish, certificando-se de que o seu sporran estava pendurado
à frente e ao centro. – Você deveria protegê-la, porque ela vai perder todos os dedos dos
pés se dançar comigo. – Dedos que provavelmente eram muito bonitos.
– Ela vai continuar com os dedos todos – disse o irmão amaricado. – As suas irmãs sabem
valsar?
– Espero que sim. Tiveram um professor de dança durante os últimos três anos. Carote
como a mer… o raio.
– Então vamos a isso – disse o Lorde Amaricado. Usava tanta renda quanto um coronel
francês determinado em impressionar as senhoras, mas possuía uns bons ombros também.
– Senhoras, queiram escolher os vossos parceiros, o entretenimento da tarde vai começar.
Edana escolheu o herdeiro, Rhona fez uma vénia ao outro primo corpulento e Hamish
ficou com…
– Não está a usar os seus óculos – disse ele, quando a Menina Megan se ergueu após uma
vénia graciosa.
– No ano em que tive a minha apresentação à sociedade, os óculos saltaram-me do nariz
ao dar uma volta enérgica e aterraram na terrina do ponche dos homens. Nunca mais os
usei no salão de dança. Não deveria fazer uma vénia, Vossa Graça?
Ela ofereceu a mão nua – afinal, era uma dança de treino – e Hamish executou a
necessária manobra cavalheiresca.
– E agora?
– Agora, o Lorde Valentine vai tocar a abertura…
Deus do céu, o bastardo amaricado sabia tocar piano. Não era o ruído martelador que
Hamish associava a danças campestres e salões de baile superaquecidos, aquilo era música.
– Mais devagar! – gritou a Menina Megan e o ritmo da música abrandou, embora a
melodia fosse adquirindo mais voltas e reviravoltas ao longo do caminho. – Também vamos
precisar de uma abertura longa.
– Abertura longa? – murmurou Hamish.
Os olhos dela eram verdadeiramente adoráveis sem os óculos, grandes, sinceros, do azul
do céu escocês sobre as altas pastagens da primavera.
– A valsa é de compasso ternário, como o minuete – explicou a Menina Megan. – Um-dois-
três, um-dois-três, e o que você só precisa de fazer é sentir o compasso acentuado.
Os escoceses nasceram para dançar. Não tinham defesas específicas contra serem
manipulados por mulheres determinadas. A Menina Megan pôs a mão no ombro de Hamish
e segurou-lhe a mão com a outra.
– A sua mão livre pousa acima da minha cintura, a meio das minhas costas, mas não
completamente. Tem de ser de maneira a que me possa guiar. Vossa Graça, é costume
assumir a posição da valsa ao contemplar a valsa.
Hamish ansiava tocá-la – assumir aquela posição de dança delicada, ligeiramente ousada
e elegante com ela – mas não ousava.
– Eu sou capaz de a deitar abaixo – disse ele, esperando que as voltas e as reviravoltas
ocultassem as suas palavras dos primos dela.
– Não é possível. Eu simplesmente solto-me e recuo se o seu equilíbrio se tornar
questionável. A maneira mais simples de aprender a valsa é padronizar os passos como na
forma de um quadrado…
O equilíbrio de Hamish tornara-se questionável na livraria Hatchards, quando ele ouvira
Pilkington a zombar e a discutir com uma senhora. Perdera o equilíbrio mais uma vez na
modista e também o perdera no roseiral de Moreland.
A Menina Megan continuava a tagarelar, enquanto os outros casais giravam e sorriam em
redor, a música animada e ritmada, e Hamish quis matar Sir Fletcher Pilkington. A
habilidade de namoriscar em compasso ternário levara o filho mais novo de um lorde
inglês a chegar ao ponto de causar a morte de homens bons, e fazer com que homens mais
ou menos maus fossem chicoteados quase até a morte.
– Você está com um olhar tão furioso – mencionou a Menina Megan quando estavam na
segunda volta pela sala. Felizmente, a senhora era mais substancial do que aparentava e
estava determinada na educação de Hamish.
– Estou a concentrar-me. Qualquer coisa mais complicada do que uma marcha e um
homem confunde-me. – O perfume dela era parcialmente responsável, meio exótico, meio
floral. Não a rosas, mas a prados frescos, relva ceifada, lavanda e…
Ele aproximou a senhora um pouco mais de si, para investigar melhor a sua fragrância e,
entre uma volta e outra, a instrutora de Hamish tornou-se o seu sonho insatisfeito numa
pista de dança. Ela tinha o dom de ir aonde um homem sugeria, como se lesse as suas
intenções pela maneira como ele a segurava.
Megan Windham fazia Hamish sentir-se como se rodopiar nos seus braços fosse a sua
maior delícia, a memória que ela relembraria na velhice para deslumbrar as suas
sobrinhas-netas e netas. Ela dançava com a alegria incandescente das luzes do Norte e todo
o calor feminino do sol de verão numa costa escocesa.
Para ela, ele aparentemente não era o Duque da Morte ou o Berserker de Badajoz. Ele era
apenas um sujeito cheio de sorte que precisava de ajuda para aprender a dançar. Essa
sensação de alívio, o prazer de despir a violência de uma guerra inteira, era extraordinária.
Durante mais uma volta pela sala, Hamish foi invadido por uma bela e miserável crise de
mágoa, pois esse prazer era ilusório – ele matara muitas vezes e bem – e a senhora nunca
poderia ser dele. Pior ainda, ela aparentemente pertencia àquela pocilga ambulante de
desonra e astúcia, Sir Fletcher Pilkington.
Quanto mais cedo Hamish valsasse o seu próprio couro titulado e saudoso rumo à
Escócia, melhor seria para todos.

O duque de Murdoch era todo graça e poder e os seus protestos sobre não saber dançar
valsa deviam ter sido para o bem das suas irmãs. Os soldados sabiam ser perspicazes a este
ponto. St. Just, Westhaven e Valentine com certeza pediriam às senhoras uma dança como
resultado daquele ensaio informal e Murdoch provavelmente sabia disso.
– Um casal geralmente conversa durante uma valsa – ensinou Megan quando começaram
a fazer outro circuito na sala de música. – Como achou Londres, esse tipo de coisa.
O sentido de ritmo de Murdoch era impecável, mas aparentemente ele perdera a
habilidade de sorrir de todo.
– Como achei Londres? Desce-se a Grande Estrada do Norte até não se poder mais,
depois segue-se o barulho e o fedor. Não há como enganar. Eu prefiro as rotas dos
tropeiros. As estalagens são humildes, mas honestas.
A mãe de Megan era galesa, por isso uma forte influência de entoação céltica era
facilmente decifrável para ela. Ela mudou para gaélico, como ocasionalmente fazia com a
família.
– Eu quis dizer: Londres agrada-lhe? – Nada quebrara a concentração de Sua Graça até
agora. Durante dezenas de voltas pela sala, apesar das manobras aventureiras de
Westhaven e St. Just com as irmãs de Murdoch, e do ritmo cada vez mais ousado de
Valentine, o duque tornara-se apenas mais confiante na sua dança. Uma simples pergunta
fê-lo tropeçar. E, quando um homem grande tropeçava e tentava endireitar-se agarrando-
se a uma mulher surpreendida e não muito grande, e aquela mulher tropeçava…
Lá foram eles ao chão, embora Megan tenha aterrado em cima de Sua Graça, um lugar
agradavelmente robusto e quente para se encontrar. O sporran dele contorcera-se junto à
anca e ele manteve os braços à volta dela.
– Menina Megan – gritou Lady Edana. – Está bem? Hamish, larga-a, por amor de Deus,
vais amarrotar-lhe as saias e partir-lhe os ossos, e pisar-lhe as bainhas. E levanta-te, não
podes continuar deitado aí, seu grande pateta.
– Levanta-te já – disse Lady Rhona em coro. – Oh, por favor, levanta-te e promete que
nunca mais tentarás dançar valsa em público. O Wellington poderá estar no baile de Sua
Graça, ou o rei. Oh, Ham, levanta-te.
Sua Graça não podia levantar-se enquanto Megan se deleitava no novo prazer que era
estar em cima dele.
– Eu estou bem – disse ela, ajoelhando-se depois de desfrutar de mais dois instantes do
abundante calor e músculos de Sua Graça. Westhaven levantou-a com a ajuda de uma mão
por baixo de cada cotovelo, encarando-a com uma carranca como se ela tivesse
propositadamente atirado noventa e cinco quilos de duque escocês ao chão.
St. Just estendeu a mão para Murdoch e puxou-o para cima, mas não rápido o suficiente
para esconder um vislumbre de coxa musculosa dos olhos de Megan, nem de perto.
O duque endireitou o seu sporran, curvou-se e aproximou-se… com um sorriso.
– Menina Meggie, as minhas desculpas por tê-la derrubado. Você fala gaélico.
Nem todos os arcos-íris no País de Gales, nem todo o ponche de Natal preparado na sede
da família Windham, conseguiam igualar o sorriso de Sua Graça em pura e encantadora
alegria. Aquele sorriso deslumbrava, intrigava, prometia… oh, aquele sorriso era arma
suficiente contra a dignidade de uma mulher.
Megan disparou uma tímida resposta da mesma artilharia.
– A minha mãe é galesa e eu gosto de línguas. O galês e o gaélico não são assim tão
diferentes ao ouvido.
De facto, cada ilha e região escocesa tinham o seu próprio dialeto, alguns soavam quase
irlandeses, outros aproximavam-se de um estilo escandinavo, e Megan não fingia entender
as grafias adequadas, dialeto por dialeto. Mas conseguia desenvencilhar-se suficientemente
bem em conversas casuais para surpreender um duque das Terras Altas.
– Ninguém fala gaélico num salão de baile inglês – disse Murdoch. – Não desde a revolta
de mil setecentos e quarenta e cinco, provavelmente nunca. – Ele dava a entender que
algumas palavras de gaélico pareciam um grande feito de coragem, não uma simples
cortesia para um recém-chegado.
St. Just e Westhaven assistiram àquela conversa como dois enormes caça-ratos a fazerem
apostas no destino de um canário fugitivo.
Raios partissem aqueles dois.
Ninguém sorria a Megan Windham como Murdoch estava a sorrir. Mesmo sem os óculos,
ela conseguia ver o carinho e a aprovação nos seus olhos, ver toda a aceitação e admiração
que uma mulher poderia suportar de um homem.
– Ninguém termina a valsa a cair em cima do parceiro – retrucou Westhaven. – Lorde
Valentine, se fizer o favor. O duque está com falta de prática, supondo que a prima Megan
não esteja pior por causa da queda.
Megan caíra irremediavelmente, mesmo em cima de dois olhos azuis sem fim, dois
braços fortes e… aquelas coxas. Ai, meus deuses viris da valsa.
– Eu estou bem – disse Megan, colocando a mão no ombro de Murdoch. Ela estava a
tornar-se uma mentirosa proficiente, porque, depois de ter a grande e radiante
benevolência do sorriso dele, poderia nunca mais ficar bem.
O primo Valentine iniciou outra abertura ao piano, com um ritmo moderado,
ornamentação mínima, e Megan desejou que um dia, dali a muitos anos, pudesse contar às
suas netas sobre a ocasião em que o deslumbrante duque escocês a fascinara com uma
valsa.

Hamish lutaria por toda a Espanha, escalaria as montanhas e atravessaria a França


novamente para uma valsa como a que estava a dançar com Megan Windham.
Ele dançava com o mesmo abandono passional anteriormente reservado para quando as
espadas eram cruzadas após o quarto trago de uísque, e os seguidores de acampamentos
tinham adquirido os ares e as graças dos sonhos de todos os soldados.
A Menina Megan sorriu-lhe, com a mão entrelaçada na dele, o seu ritmo impecável, a sua
forma de luz das estrelas nos seus braços.
Quando a música chegou a uma cadência final, o coração de Hamish suspirou.
– Agradeço-lhe esta valsa deliciosa – disse ele enquanto Megan mergulhou numa
profunda reverência. Continuou a segurar a mão de Hamish quando ele a ergueu e se
curvou.
– O prazer foi inteiramente meu, Vossa Graça.
Mas a tristeza era de Hamish. Para ela, aquela era apenas mais uma valsa, um ato de
caridade concedido a um recruta relutante para as fileiras da aristocracia.
Para Hamish, fora…
– Agora você leva-a para fora da pista de dança – vociferou o primo maior. – Um desfile
de marcha serve e a mão dela pousa na sua.
Em princípios gerais, Hamish manteve-se firme. Aquele sujeito começara a parecer e soar
familiar, e uma coisa era certa: Hamish tinha o título mais alto na sala.
– Você serviu na Península? – perguntou Hamish. O primo de Megan falava com um ar de
comando e tinha os olhos atentos de um soldado de carreira. Hamish calculava que a idade
dele fosse trinta e poucos anos e o peso cerca de oitenta e nove quilos descalço e despido. A
sua valsa fora digna de um subordinado direto do próprio Old Hooky e a sua carranca era
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digna de um capitão, possivelmente um major.


– Você está diante do coronel Lorde Rosecroft – disse a Menina Megan, acariciando a
bochecha do outro. – O primo Devlin é muito feroz, mas tem de ser. Ele já é pai de duas
filhas, e o mais velho de dez irmãos. Sua Graça, minha tia, afirma que ele se dedicou à busca
de uma existência mais pacífica.
Rosecroft lançou a Hamish um olhar conhecido para os veteranos de todo o mundo.
Deixe-a troçar de mim, dizia esse olhar. Deixe-a fazer piada dos horrores sem fim. Nós
lutámos para que as nossas mulheres pudessem dar uma palmadinha nas nossas bochechas e
brincar com os nossos pesadelos. Elas permaneceram em casa, orando por nós ano após ano,
para que alguns de nós pudessem sobreviver para amenizar também os pesadelos delas.
A Menina Megan puxou a mão de Hamish.
– Agora você devolve-me ao meu acompanhante ou ajuda-me a encontrar o meu próximo
parceiro de dança, o mesmo que qualquer outra dança. Fazemos conversa de circunstância,
cumprimentamos os outros convidados e mostramo-nos bastante conviviais.
– São três impossibilidades que definiu para mim, Menina Meggie.
Hamish divertira-a, simplesmente dizendo a verdade.
– Eu vi-o a sorrir, Vossa Graça – comentou ela, levando Hamish para junto do piano. – O
seu charme pode estar latente, mas é genuíno.
Ele aproximou-se mais.
– Eu não sei distinguir o seu próximo parceiro do ocasional varredor, não tenho
paciência com conversa de circunstância, e parecer convivial é uma impossibilidade
quando somos conhecidos como o Duque da Mor…
– Um cavalheiro nunca discute com uma senhora – comentou o coronel, com as mãos nas
costas, dois passos à direita da Menina Megan. Ele tinha uma semelhança com Moreland na
postura e no maxilar, e, no entanto, não era aparentemente o herdeiro ducal.
– Um cavalheiro mente a uma senhora, Rosebud? As minhas irmãs dir-lhe-ão que não me
lembro das subtilezas sociais, que não tenho familiaridade com os da sua laia e que não
tenho talento para conversa fiada.
– Absolutamente nenhum – confirmou Edana.
– Ele é horrível – acrescentou Rhona, abanando os cachos ruivos ao anuir com a cabeça
com tanta seriedade. – Nós desesperamos com ele, mas não se pode instruir um irmão
quando ele nem tenta aceitar a orientação de alguém. Dizemos a Hamish para perguntar
sobre o tempo, e a resposta dele é que uma mulher que não perceba o tempo por si mesma
não notará falta de conversa num homem.
Elas tinham boas intenções, e estavam a ser sinceras, mas uma parte de Hamish sentia-se
como se tivesse caído de rabo novamente, agitando o kilt para toda a gente ver.
– Eu referi exatamente isso à minha condessa – disse o ruivo Conde da Enunciação.
Hamish não se lembrava do nome dele. – Porque devemos discutir o tempo de forma
tediosa quando não há nada a ser feito e as suas características são abundantemente
óbvias? É melhor discutir…
Edana, Rhona e a Menina Megan olharam-no com curiosidade.
– A música – disse o Lorde Amaricado ao sair do piano. Era um sujeito de bom tamanho,
mesmo com todas as suas rendas, e também tinha aquele maxilar ducal. – Pergunte-lhe se
ela prefere o violino ou a flauta, o piano ou o cravo. Pergunte-lhe qual é a sua dança favorita
e depois pergunte porquê.
– Isso é brilhante – disse o conde. – Uma senhora pode falar sobre porquê isto ou porquê
aquilo durante horas, e depois porque não aquele outro.
– Tu não descobriste essa perceção sozinho – interveio o coronel. – A Ellen deu-te a
entender, e tu estás a ficar com o crédito todo.
O Amaricado sorriu, parecendo-se abruptamente com Colin – um irmão mais novo que
superara os mais velhos, novamente.
– Senhores, por favor – disse a Menina Megan. – O sorriso do Valentine é um presságio de
brigas e já pusemos a mobília de lado. O objetivo do encontro não é satisfazer a vossa
alegria juvenil na companhia uns dos outros, mas garantir que Sua Graça de Murdoch se
empenhe bem no evento da tia Esther.
Três lordes bonitos mostraram-se fugazmente envergonhados.
As mulheres eram capazes disto. Usavam sapatinhos que poderiam pontapear o traseiro
figurativo de um homem com a força de uma bota. As suas luvas de pelica verbais seriam
capazes de dar uma bofetada com a força de um chicote de equitação, e as suas carrancas
conseguiriam reduzir as entranhas de um homem a nada.
Ver três aristocratas ingleses tão efetivamente linchados, era um deleite para o coração
de um soldado escocês.
– É possível aprender-se a fazer conversa de circunstância – disse o herdeiro ducal, com
muita confiança. – Tu és boa com línguas, Megs. Ensina ao teu duque o dialeto de conversa
de circunstância dos salões de baile de Londres. Se os meus irmãos conseguiram aprender,
não é assim tão difícil.
– Se não tivesses o meu exemplo a seguir – rosnou o coronel.
– Por favor, poderia? – perguntou Edana. – Nós tentámos, mas o Hamish… ele é teimoso.
– E lento – acrescentou Rhona. – Não é aborrecido, mas tudo deve fazer sentido para ele,
e isso é uma tarefa desafiadora quando tanta coisa na alta sociedade é em nome da
aparência e não da substância.
Elas estavam a ser novamente prestáveis, malditas duas.
– Eu safo-me bem no sepulcrário.
– Cemitério – disseram os três primos imediatamente.
– De onde venho, onde sou duque, dizemos sepulcrário – ripostou Hamish. – E para lá eu
voltarei em breve, quanto mais cedo melhor.
A expressão no rosto de Edana prometia a Hamish um final violento antes que ele
pudesse pôr os pés na Grande Estrada do Norte. Rhona parecia que queria chorar, e isso…
isso envergonhava um homem mais do que cair de rabo no chão diante da nobreza inglesa.
– Um passeio no parque – sugeriu o Lorde Amaricado. – Amanhã, se o tempo estiver bom,
a Megan pode juntar-se a Vossa Graça para um passeio no parque. O Joseph e a Louisa estão
na cidade, a Evie e o Deene também. Leve Lady Rhona e Lady Edana a passear, Murdoch. A
Megan será acompanhada por dois primos, ambos titulados, e você pode ensaiar a sua
pequena conversa.
– Excelente tática – resmungou o coronel.
– Sua Graça, nossa mãe, aprovaria – disse o conde. – Eu gosto. E tu, Megan?
Ela preferia ser chamada Meggie por aqueles que gostavam dela. Hamish preferiria fugir
para a Escócia naquele exato momento. O Hyde Park era um lugar enorme, repleto de
chapéus, guarda-sóis, emboscadas que usavam musselina, e pavões pensionistas nos seus
regimentos.
Rhona olhou para os sapatos – naquele dia cor de pêssego, mais uma idiotice cara.
Observando a cabeça arqueada da sua irmã, Hamish localizou as reservas de coragem
necessárias para suportar outra batalha.
– Se a Menina Megan puder dispensar-me o tempo para um passeio no parque, ficaria
muito grato pela sua companhia.
– Oh, muito bem, Vossa Graça – respondeu ela, a sorrir-lhe. Não era a grande versão
sorridente que ele vira na pista de dança, mas uma expressão ainda mais cativante que
enternecia o seu olhar e transformava os joelhos de Hamish em papa.
– Às duas da tarde, então – disse o conde. – Reunimo-nos aqui. Eu farei as apresentações
e o baile de Sua Graça será a inveja da alta sociedade, como sempre.
No espaço de cinco minutos, Hamish estava a curvar-se sobre a mão da Menina Megan
em despedida, embora se tivesse comprometido com o confronto do dia seguinte em defesa
do orgulho da família MacHugh – ou algo do género. Os primos Windham pareciam
genuinamente, senão relutantemente, determinados a ajudar na causa da educação de
Hamish, provavelmente em nome do orgulho da sua própria família.
E a Menina Megan estava a sorrir.
Hamish encontrava-se tão distraído a reunir mentalmente metáforas para descrever o
sorriso dela que quase perdeu o ruído baixo da voz do pianista no meio das despedidas e
beijos de adeus das senhoras.
– Ele é uma catástrofe de xadrez – murmurou o Lorde Amaricado.
– Ele obrigou a Megan a falar gaélico – acrescentou o coronel. – Isso não se faz.
Bem, não, não se fazia. Cair de rabo no chão não era coisa que se fizesse, discutir com
uma senhora não era coisa que se fizesse. No entanto, um baile em nome do orgulho de
Ronnie e Eddie, um pequeno passeio pelo parque, e Hamish retirar-se-ia com honra, o que
às vezes era a coisa que se fazia.
Hamish tomou Rhona por um braço e Edana por outro e arrastou-as para a porta, que foi
aberta por um sujeito de libré azul.
– Obrigado pela lição de dança – agradeceu Hamish, porque exprimir gratidão sincera era
também uma coisa que se fazia na sua terra. – Até amanhã.
A Menina Megan acenou-lhe.
– Mar sin leibh. – Uma despedida amistosa que fortalecia um homem contra batalhas
futuras e fez com que o coronel e o músico mostrassem carrancas.
Quando o homem de libré fechou a porta, outra frase masculina e aristocrática inglesa
chegou aos ouvidos de Hamish.
– Tu desistes muito facilmente. Eu acho que o Murdoch tem potencial, Rosebud.
11 Alcunha dada a Arthur Wellesley, duque de Wellington. (N. da T.)
Capítulo 5

O clima de Londres era abominavelmente inconstante. A ansiedade de Megan de passear


com o duque de Murdoch era abominavelmente constante.
Estava praticamente noiva de Sir Fletcher, um problema para o qual ela não via
resolução, e, ainda assim, só pensava nos três quartos de hora a percorrer os limites
familiares do Hyde Park.
– Ouvi dizer que falaste gaélico com Sua Graça de Murdoch – disse a mãe. Em inglês. Ela
estava sentada ao piano e folheava pautas de música na sala designada como a biblioteca de
música.
– Suspeito que o gaélico seja a língua materna de Sua Graça – respondeu Megan, tirando
uma margarida murcha do buquê sobre o parapeito da janela. – Apenas lhe fiz uma
pergunta que era mais fácil de compreender em gaélico.
A mãe, sendo galesa, tinha música no sangue e nos ossos, nas suas próprias vogais e
consoantes. Quando pegava no violino e Valentine a acompanhava no piano, acontecia
magia e os olhos do pai brilhavam de uma forma especial.
– Não se ajuda a causa de um homem ao provocá-lo a falar gaélico – disse a mãe,
folheando obras de câmara. – A reputação dele é a de um selvagem, que se deliciava a matar
pelo rei e pelo país, segundo os rumores. Não admira que a filha do Lorde Tarryton tenha
chorado para se ver livre do noivado com Murdoch há tantos anos. Depois, tinha de usar o
seu traje bárbaro nas ruas de Mayfair, discutir com nada mais nada menos do que a tua
querida tia diante da modista mais coscuvilheira de sempre… Não me estás a ouvir.
Megan estava a ouvir, a ouvir a memória de um escocês a desculpar-se por a atirar ao
chão.
– Sir Fletcher também lutou em defesa do seu país – lembrou Megan, encontrando outro
espécime morto entre as flores. – Ninguém lhe chama assassino. – Mas ele estava disposto a
matar o futuro de uma jovem.
– Sir Fletcher é de excelentes famílias, veste-se de forma adequada ao seu estatuto, tem o
olhar de um homem que pretende pedir a tua mão em casamento. As tuas atenções para
com Murdoch, embora sejam exatamente o tipo de amabilidade que uma verdadeira
senhora demonstra em todas as circunstâncias, não ajudará à tua situação, minha querida,
nem à situação das tuas irmãs.
Uma terceira margarida murcha juntou-se ao pano que Megan estendera ao lado do
buquê.
– Eu percebo o seu ponto de vista, mamã, mas o Westhaven sugeriu este passeio no
parque, e o Westhaven prometeu acompanhantes titulados às irmãs do Murdoch.
Westhaven, como herdeiro ducal, era o primo que nunca cometeria um erro. Na opinião
de Megan, Gayle Windham, conde de Westhaven, Visconde do Senso Comum, Barão
Obediente, também estava a ser muito pressionado a divertir-se. O tio Percy concordava
com ela, o que sugeria que o Todo-Poderoso devia considerar gravar o mesmo sentimento
em tabuletas de pedra.
O aviso da mãe – mais do que todos os muitos avisos da mãe – era bem-intencionado,
mas a simples lógica afligia Megan.
A tia Esther estendera o gesto de boas-vindas ao novo duque e fora louvada pela sua
graciosidade. Megan apoiava a oferta da duquesa e estava agora a arriscar o futuro das suas
irmãs? Caso Sir Fletcher não tivesse estado estacionado à porta de Megan, figurativamente
falando, a mãe não hesitaria em relação àquele passeio no parque.
Anwen era incrivelmente tímida, Beth estava incrivelmente a ficar para tia e Charlotte
incrivelmente determinada a casar quando estivesse pronta, nem um segundo antes.
– O coche está a chegar – disse a mãe com a acuidade auditiva exclusiva apenas às mães.
– Vai buscar o teu guarda-sol, esquece o gaélico e tenta não dar esperanças ao duque. Os
impulsos de caridade são louváveis, mas nós sabemos quem é a família de Sir Fletcher, e
isso também é uma coisa boa.
A mãe beliscou gentilmente a face de Megan, como sempre beliscara aquela mesma face
desde a sua infância, e dirigiu-se para a porta da frente, esquecendo Herr Mozart.
Megan deitou as flores mortas, com pano e tudo, no caixote do lixo mais próximo. Em
breve federiam, um criado encontrá-las-ia e esta rebeldia minúscula e impulsiva no parque
contra as expetativas da mãe não faria mal nenhum.
E poderia até alcançar algo bom.

– Ambas estão excessivamente bem – disse Hamish rispidamente. – Parem de se preocupar


e vamos despachar isto.
A boca de Edana firmou-se e Hamish preparou-se para outra briga de irmãos à entrada
de uma casa Windham.
Ronnie colocou uma mão no braço de Eddie.
– Ele está a fazer-nos um elogio, Eddie. Ham, tens de bater à porta. Se a aldrava está para
cima, a casa está aberta para visitas. Bate, por favor.
– Quando estamos a explorar território desconhecido, Murdoch serve – disse ele, a bater
a aldrava contra a placa de bronze. O resultado foi mais sonoro do que tiros de pistola a
reverberarem pela rua de Mayfair.
– Bate com gentileza – sibilou Ronnie com um sorriso rígido. – Não como se fosses o
fiscal a inspecionar casa a casa à procura de contrabando de uísque.
Colin poderia ter sabido como bater à porta, mas não fora convidado naquela saída e
Hamish não soubera se era permitido trazer mais um irmão ou não. Pelos vistos, os
números tinham de corresponder em saídas sociais, como era o caso de uma luta justa.
– Vossa Graça, senhoras, bem-vindos. Estão à sua espera. – Outro sujeito de libré azul
cumprimentou-os com uma vénia e deixou-os entrar na casa. – Vou anunciar a vossa
chegada, se não se importarem de esperar aqui um instante?
Ronnie e Eddie estavam realmente muito atraentes. Ambas tinham o cabelo ruivo
brilhante e penteado no topo da cabeça, acentuando a altura e a boa estrutura óssea de que
as mulheres MacHugh se orgulhavam com toda a razão. Penas e flores adornavam os seus
penteados em confeções demasiado coloridas para serem chamadas chapéus. Os seus
vestidos poderiam ter empobrecido as finanças do ducado, mas em verde e castanho
faziam um par encantador.
– Eu estava a falar a sério quando disse que vocês as duas estão muito bonitas –
murmurou Hamish. – Um pouco de xadrez e estariam prontas para qualquer reunião de
clãs.
Elas trocaram Aquele Olhar, o que significava que ele Voltara a Fazê-las, embora ninguém
se desse ao trabalho de dizer a um homem o que era Isso exatamente.
– Murdoch, Lady Edana, Lady Rhona, bem-vindos – disse o anfitrião. – Juntem-se a mim
na saleta da família, farei as apresentações.
Oh, que êxtase! Mais apresentações.
O anfitrião era Gayle, conde de Westhaven. Durante uns copos na noite anterior, Hamish
sentara-se com Colin, pedira-lhe um diagrama e memorizara os parentescos como qualquer
comandante competente memorizava um mapa do terreno para uma batalha iminente.
Fazer sentido desse terreno era uma missão mais complicada.
Se Edana e Rhona estavam elegantemente apresentadas, a Menina Megan estava
perfeitamente trajada. Usava veludo castanho-tostado com rebordo vermelho-escuro e um
ou outro toque em tom creme.
Hamish curvou-se sobre a sua mão enluvada.
– A menina faz-me lembrar um scone perfeitamente cozido, barrado com compota de
framboesa e manteiga fresca. – Ele oferecera aquele elogio num instante em que a conversa
geral parara e essa pausa tornou-se um silêncio.
Um silêncio incómodo.
– Muito bem, Murdoch – resmungou um dos condes. – Agora estamos todos famintos.
Megan Windham era, pelos vistos, parente de metade dos titulados em Mayfair. Aquele
conde ali tinha cabelo escuro, não era exatamente bonito e não tinha pretensões de charme.
Hamish gostou dele à primeira vista. Possuía feições rudes e uma carranca súbita de um
oficial que não desperdiçava as suas tropas, cavalos ou munições, e movia-se sob o
comando de Wellington e mais ninguém.
Também parecia familiar, mas Hamish não era capaz de o identificar, não com o perfume
de Megan Windham a invadir-lhe os sentidos. Ela estava boa para se comer e a sua
fragrância… a sua fragrância era suficientemente encantadora para induzir sonhos.
– Vamos treinar a conversa de circunstância – disse a Menina Megan quando o grupo
saiu de casa para o sol da tarde. – Pensou em perguntas adequadas para a pista de dança,
Vossa Graça?
Ele fizera uma lista depois de ter estudado o mapa de batalha de Colin.
– Quem é o compositor preferido da senhora? A senhora tem um instrumento musical
preferido? Qual é a sua estação do ano favorita? Que odor lhe agrada mais num cavalheiro?
Graças ao pianista, Hamish sabia adicionar «Porquê?» a cada uma dessas questões.
Porque não só mantinha a senhora a falar, como também provavelmente revelava mais
informações táticas do que o total das perguntas antecedentes.
Ou seja, Hamish não subestimaria o primo pianista de Megan, apesar das suas rendas.
– A última pergunta pode ser arriscada – a do odor do cavalheiro – comentou a Menina
Megan. – Ao fim da noite, o salão de baile costuma ser… abafado.
– Fétido, quer dizer? Já cheirei pior.
– Não deve dizer isso, Vossa Graça. Quando fiz a minha apresentação à sociedade, criei
uma lista de solteiros a quem chamei os Príncipes da Salsa – cavalheiros que deviam passar
mais tempo a refrescar o hálito antes de pedirem para se levantar com uma senhora.
Recorra aos seus talentos dramáticos se tiver de ser, mas tente exsudar boa disposição,
prazer na companhia da senhora e gentileza em todas as alturas.
As mesmas qualidades que teriam matado os homens de Hamish na Península Ibérica.
– Eu sou conhecido por exsudar raiva, Menina Megan. Sou o Berserker de Badajoz, o
Terror de Toulouse. Não é preciso poupar as minhas sensibilidades.
– Porquê? – Ela disparara a pergunta em voz baixa, para que o resto do grupo não a
ouvisse acima do barulho dos coches que passavam e a batida de cascos.
A sinceridade era um alívio, mas um alívio triste.
– Porque não me incomodar com delicadezas? Porque não tenho sensibilidades para
esbanjar. – Pelo menos, do tipo requintado.
– Não, quis dizer, porquê é que você é o Terror de Toulouse e o Berserker de Badajoz.
Porque é que é o Duque da Morte? Houve outros soldados em todas aquelas batalhas, a
fazer o que os soldados fazem.
Do outro lado de Park Lane situava-se a beleza verdejante do Hyde Park, relativamente
sossegado àquela hora, embora pudesse encher-se de carruagens em breve. Os ocupantes
de coches e seus acompanhantes, a alta sociedade e tudo o resto reuniam-se em dias
bonitos ao fim da tarde para inspecionar os desfiles de pessoas.
Para Hamish, veterano de demasiadas batalhas, as sebes e as vedações de ferro forjado
do Hyde Park preveniam uma retirada ordeira. Os áceres imponentes podiam esconder
atiradores, o Serpentine podia afogar recrutas incapazes de nadar e disparar para a água
tornava a trajetória das balas imprevisível.
– Se eu discutir a guerra consigo, irei cometer uma grande violação de etiqueta – disse
Hamish, embora beijar a Menina Megan fosse ainda uma maior violação – e uma memória
ainda mais maravilhosa.
– Eu farei as minhas perguntas ao Keswick, ao Deene ou ao St. Just. Eles respondem-me.
Keswick era aparentemente o conde mal-humorado de cabelo escuro, enquanto o
marquês de Deene era o marido da pequena marquesa, e Devlin St. Just era o conde de
Rosecroft.
– Eles não lhe dirão grande coisa, Menina Meggie. As memórias de guerra não se
partilham com companhias delicadas.
Ela continuou a caminhar com um bom ritmo até terem atravessado a rua e entrado no
parque por uns portões imponentes.
– Não posso evitar os rumores se não souber a sua origem, Vossa Graça. Mulher
prevenida vale por duas, e os meus primos assim mo dirão. Um deles deixará escapar
qualquer coisa se eu for persistente, provavelmente o Keswick porque é tão bondoso. Com
essa informação irei a Lorde Deene e insinuarei que sei mais do que sei na verdade. O
Deene deixará escapar mais uma informação, que eu relacionarei à primeira para criar uma
dedução. O processo todo exige paciência e sentido de oportunidade, mas a minha família é
constituída por vários veteranos. Do lado da mamã, eles conseguem ser bastante tagarelas
no humor certo.
Quando entornados, isto é. A temporada de Londres envolvia uma grande quantidade de
embriaguez, pelos vistos.
O parque estava sossegado, o que significava que Hamish tinha de baixar a voz.
– Reparei que não pede a ajuda de Sir Fletcher.
Pilkington teria o gosto de lhe explicar os pormenores do registo militar de Hamish em
toda a sua infâmia mórbida, e a sua versão da história de Hamish seria de facto infame.
– Eu não começaria com Sir Fletcher.
Eles tinham-se distanciado um pouco do resto do grupo, o que era propício. A Menina
Megan deveria ter estado a instruir Hamish sobre a arte da conversa de circunstância, não a
cavar túneis sob as defesas deles.
– Falaria com Sir Fletcher se os seus primos recusassem falar? Muito bem, então, eu
matei pessoas.
As palavras… magoavam. Lembravam o barulho horrível e o fedor da batalha, mas
também a surpresa e o espanto de homens que se tinham levantado naquela manhã sem
nunca esperarem chegar ao fim do dia – ou das suas vidas – com a baioneta de Hamish
espetada na sua direção.
Nos olhos de Hamish, eles teriam visto penitência, remorso e uma determinação de
voltar a matar.
– Foi um soldado – disse a Menina Megan. – Suspeito que foi um soldado muito bom, se
calhar demasiado bom.
Ele quase voltou a cair de rabo no chão. Aquela mulher era capaz de manobrar palavras
com mais perícia mortal do que qualquer atirador seria capaz de disparar uma arma.
– Abandonemos este assunto, sim? Não quero discutir com uma senhora. Porque julga
que as senhoras não são proibidas de discutirem com cavalheiros?
A Menina Megan mostrou-lhe clemência e permitiu a mudança de assunto.
– Porque uma discussão precisa de dois intervenientes pelo menos. As senhoras
poderiam tentar provocar um homem a discordar, mas se ele lhes frustrar as tentativas
com o seu charme e cortesia, então não haverá nenhuma discussão. Quem é o seu
compositor preferido, Vossa Graça?
Rabbie Burns, seguido imediatamente por Robert Tannahill, dois homens brilhantes que
morreram demasiado cedo e trabalharam demasiado arduamente.
– Aquele Beethoven parece saber o que faz.
Hamish surpreendera-a, mas Eddie e Ronnie tinham-no arrastado até alguns musicais.
Os invernos nas Terras Altas eram tão longos que até Hamish já tinha dedilhado um pouco
o piano.
– Tem uma obra preferida do Beethoven, meu senhor?
As obras suaves, doces e ternas eram agradáveis, embora pudessem ser ilusoriamente
difíceis de aprender.
– A Terceira Sinfonia é uma melodia agradável. E a menina? Tem alguma favorita?
– Eu gosto da música que a minha mãe me cantava quando era criança, embora muita
dela seja em galês e pode não haver escrita em lado nenhum. Para música de câmara, o
Mozart serve. É muito elegante.
Era aborrecido. Nunca juntava instrumentos suficientes para realmente abanar as vigas.
Uma gaita-de-foles no campo de batalha produzia mais som alegre e fúria do que o total de
violinos e rabecas de Mozart.
– Elegante é bom. – A música elegante providenciava cobertura de fogo para boatos e
namoriscos, o que era, afinal de contas, o exato propósito dos eventos sociais. – Quais são
as óperas de Mozart que prefere?
A Menina Megan continuou a falar com o à-vontade de quem nasceu a ouvir Mozart e
Haydn, a passear no Hyde Park e a assistir a concertos sinfónicos. Quando o grupo
regressou aos portões virados para Park Lane, eles tinham estado a conversar
amistosamente, para quem os visse, durante mais de uma hora.
– Acho que se desenvencilhará, Vossa Graça – disse ela enquanto esperavam para
atravessar a rua. – Gostei de passear consigo.
Hamish queria certificar-se de que ela não iria perguntar a Pilkington sobre Espanha – ou
Portugal, ou França, ou Waterloo – e estava prestes a abordar esse assunto indelicado
quando o homem propriamente dito apareceu a descer Park Lane, montado num cavalo
elegantemente magro.
No momento em que a Menina Megan avistou Sir Fletcher, a sua postura alterou-se.
Ergueu o queixo, pôs os ombros para trás e o seu sorriso desmaiou para uma caricatura
forçada de boa disposição.
Sir Fletcher viu-os e aproximou-se a trote, e esse momento lembrou
desconfortavelmente Hamish de quando a cavalaria francesa apareceu por trás da sua
artilharia. A infantaria inglesa nas suas formações em quadrado tinha esperado enquanto
aqueles animais grandes e mortíferos se aproximaram, os seus cavaleiros prontos para
cortar a cabeça de um homem do resto do corpo…
Hamish quase escondeu Megan atrás de si, pois, à medida que Sir Fletcher se aproximava
cada vez mais, inspecionou-os com atenção. No último instante, Pilkington passou as rédeas
para a outra mão e tocou na aba do chapéu com um dedo enluvado.
Nem ele nem a Menina Megan estavam a sorrir. Se Hamish fosse outra pessoa, teria dito
que a mulher que era capaz de perguntar sem rodeios sobre cercos e assassínio parecia
estar… com medo.
Ela não faria perguntas difíceis a Sir Fletcher, se o pudesse evitar, e isso era um alívio.
Preocupante também, mas sobretudo um alívio.

***

– Achas que a mamã e o papá vão partir para Gales mesmo quando a temporada está a
começar? – perguntou Charlotte.
Charlotte, veterana de muitas temporadas, não estava tão assustada pelas próximas
semanas como Megan estava, mas também nunca nada assustava muito Charlotte. Nunca.
– Se calhar partem de Londres depois do baile porque outra primavera na capital é
entediante, cara e aborrecida – murmurou Beth por trás do aro de bordar. Beth era muito
talentosa no bordado enquanto Megan não era capaz de fazer nada sem ficar com
enxaquecas.
– Se calhar a mamã e o papá vão repetir a viagem de casamento porque estão
apaixonados – comentou Anwen. – Eles sabem que a tia Esther cuidará de nós com todo o
gosto, por isso podem ter uma das suas luas de mel quando Gales está bonito.
Gales era sempre bonito. Meio selvagem, incansavelmente verde, música nos próprios
nomes das aldeias, magia nos montes e ovelhas fofas e adoráveis mais abundantes do que
dândis de Mayfair.
As ovelhas costumavam também ter melhores modos do que os dândis.
Talvez fosse por isso que Anwen adorava lã, tricotar, fazer croché… Qualquer coisa que
pusesse lã macia nas suas mãos lembrava-a de verões passados perto de Cardiff. Estava a
enrolar um monte de lã merino verde-escuro num novelo, com movimentos graciosos e
rítmicos.
– Não quero saber porque é que a mamã e o papá vão partir para Gales – declarou Megan.
– Desejo-lhes boa viagem e muitos arcos-íris.
A mamã e o papá conseguiam ser desavergonhadamente demonstrativos, por assim
dizer. Pior até do que o tio Percy e a tia Esther, cujas valsas ainda atraíam atenções.
– Como correu a tua saída com o duque de Murdoch, Megs? – perguntou Charlotte. – Ele
fica muito elegante no seu traje das Terras Altas.
Anwen parou de enrolar lã.
– Os kilts são uma moda encantadora.
Os kilts eram feitos de lã, embora os gostos de Megan ultimamente tivessem consistido
em luares e travessuras.
– A nossa saída foi prosaica – respondeu ela. – Sua Graça, ao contrário de todos os
rumores, é um homem charmoso que se comporta bem na pista de dança e em conversa. Há
de sair-se muito bem no baile da tia, e as irmãs dele são maravilhosas.
Quando não estavam a repreender o irmão em público.
– Mas? – questionou Charlotte.
Beth espetou uma agulha prateada no aro de bordar.
– Deixa-a em paz, Charlotte. A Megan tem um coração bondoso, e não faz mal Sir Fletcher
saber que outros homens a acham atraente.
– Sir Fletcher achou a Hippolyta Jones atraente até a conta do banco do pai dela se ter
esgotado – respondeu Charlotte. – No ano anterior, não andava ele atrás da Sally Delaplane
ou das plantações de açúcar do pai dela? Azar de Sir Fletcher que a Sally tenha atraído um
conde francês.
– E quando Sir Fletcher se reformou no exército, andava atrás da herdeira Barington –
acrescentou Anwen. – Ou então foi impressão minha. Posso estar enganada.
– Não estás enganada – disse Beth –, mas é mais simpática do que eu. Sir Fletcher é um
filho mais novo que tenta muito não parecer um caça-dotes. Não é a minha primeira
escolha de marido para ninguém.
Toda a alegria de Megan pela saída no Hyde Park, toda a sua curiosidade em relação ao
Terror de Toulouse se reduziu aos caprichos infantis que começaram por ser. Sir Fletcher
não ficara satisfeito ao vê-la de braço dado com Murdoch.
– Mas penso na reputação dos tempos de guerra do Murdoch – disse Charlotte. – Lady
Melodia Tarryton esteve noiva dele a dada altura, mas rompeu o noivado quando Sua Graça
se reformou do exército. Nunca ninguém disse porque mudou ela de ideias.
– Talvez tenha encontrado outra pessoa durante a ausência de Murdoch – sugeriu Megan.
– Ou talvez tenha descoberto a verdadeira natureza dele. Diz-se que o Murdoch era
muito violento em batalha. E há histórias…
– Tu gostarias de ter um marido assim, Charl – disse Anwen, a enrolar lã mais depressa. –
Tu precisas disso, de facto, mas eu odiaria ver-te recambiada para a Escócia. Ver-te-íamos
apenas de cinco em cinco anos e nunca poderíamos mimar os teus filhos.
Anwen mencionava bebés com muita frequência e era apaixonadamente dedicada a
cuidar de muitos órfãos.
Megan empurrou os óculos para o alto da cana do nariz.
– Duvido que o Murdoch esteja à procura de uma noiva, embora as irmãs dele possam
estar a examinar os solteiros. Que mais ouviste dizer sobre ele, Charlotte?
– O duque de Murdoch não tem uma reputação de coragem por assim dizer – informou
Charlotte. – Eu diria que é mais uma reputação de selvajaria. Diz-se que, quando ele
desafiou o barão St. Clair, a arma de escolha foi os punhos, e Murdoch pretendia esmurrar o
barão até à morte. Apenas a intervenção oportuna de terceiros preveniu o pior a seguir ao
assassínio.
Charlotte tinha a capacidade de se sentar à mesa a jogar whist, aparentemente
concentrada no seu próximo descarte, quando na verdade estava a escutar um trio de
homens a falar de boatos junto à janela. Quando eram mais novas, ela tornara-se uma espia
formidável com os primos homens, e agora era simplesmente formidável.
– O barão St. Clair é um homem robusto – disse Megan – e foi também um soldado.
Porque é que se assume que seria derrotado, ou mesmo morto, numa luta justa?
– Não devíamos falar de tais coisas – retorquiu Anwen, a pousar o novelo no cesto de
tricô.
– Porque não? – perguntou Beth, rematando um fio dourado com um nó. – Se a Charlotte
não nos contasse o que ouve, nós nunca saberíamos os melhores boatos. Ouvi dizer que o
Murdoch tinha um feitio horrível na batalha, e estava sempre metido no centro da luta.
Os olhos do duque, tão glacialmente distantes quando falava de guerra, sugeriam o
mesmo. Lutara sem dúvida com tudo o que tinha, sempre, e as batalhas assombravam-no.
Megan, por outro lado, enfrentava a derrota às mãos de um fuinha tornado cavaleiro e
oferecera o mínimo protesto.
– Os anos de Murdoch como militar vão ajudá-lo a sobreviver ao baile da tia Esther –
comentou Charlotte. – As casamenteiras descuraram um pouco a selvajaria de um homem
com um ducado e duas cervejarias lucrativas. O irmão dele será também considerado um
grande partido. Mas não será tão entusiástico com as irmãs. São muito bonitas e os
cavalheiros parecem de facto fascinar-se com cabelo ruivo.
Partilharam um momento de sororal, pois as quatro irmãs Windham tinham cabelo
ruivo. O de Beth era brilhante e castanho-avermelhado, o de Charlotte mais vermelho.
Megan era loira-arruivada, ao passo que Anwen – quieta e tímida Anwen – tinha um cabelo
que só podia ser descrito como vermelho intenso.
– Megs, reservaste a tua valsa para Sir Fletcher? – perguntou Anwen. – Ele é um
dançarino muito bom.
Oh, era, não era?
– Ele não ma pediu. Pensei que poderia dançar a valsa do jantar com o duque de
Murdoch.
Embora ele também ainda não lha tivesse pedido exatamente.
– Aquelas rosas nunca deveriam ter sido cortadas – disse Charlotte, a franzir a testa para
o buquê que murchava no peitoril da janela. – As variedades de estufa simplesmente não se
dão bem depois de cortadas. Oferecer a Murdoch a tua valsa do jantar é muito generoso da
tua parte, Megs. Achas que Sir Fletcher se vai importar?
Ele importar-se-ia muito.
– Murdoch, como a mamã e o papá, vai partir logo após o baile da tia. Posso oferecer a
Sua Graça uma única dança antes que ele volte para a Escócia, e não há nada que Sir
Fletcher possa dizer.
Sir Fletcher diria muita coisa. O seu olhar frio em Park Lane garantiu a Megan que iria
receber um sermão. Moveu-se até ao aparador para dar às rosas água do jarro num gesto
fútil de compaixão pelos já condenados.
– Não te queres casar com Sir Fletcher, pois não? – perguntou Anwen, fechando a tampa
do cesto de tricô sem fazer barulho. Ela fazia tudo com calma, graça e elegância – quase
tudo.
– Sir Fletcher ainda não fez pedido nenhum. – Não no sentido habitual e correto. Graças a
Deus.
As irmãs de Megan concentraram-se em não olhar para ela ou uma para a outra.
– Enquanto o papá estiver a divertir-se com a mamã em Gales – disse Charlotte –, Sir
Fletcher não pode fazer pedido nenhum, pois não? Tudo o que ele pode fazer é cortejar-te e
acompanhar-te. A temporada é longa e os salões de baile estão cheios de solteiros. Sir
Fletcher não deveria ficar excessivamente confiante nos teus afetos.
Megan não nutria nenhum afeto por um homem que explorava os erros de uma jovem
mulher, por mais elegante que ele fosse a entrar numa sala. A ideia de cumprir os seus
deveres de esposa com Sir Fletcher deixava-a nauseada, embora em toda a Inglaterra as
mulheres aguentassem, sem dúvida, coisas piores em nome da honra da família ou da
simples sobrevivência.
Além disso, Sir Fletcher não precisava dos sentimentos de Megan. Ele tinha as cartas dela
– dezenas e dezenas, todas claramente assinadas por ela, e isso era horrível o suficiente.
Capítulo 6

Sentimentos antigos e amaldiçoados brotaram dentro de Hamish quando ele ouviu


anunciarem-no como «o duque de Murdoch!» acima do mar revolto de fofocas, modas e
música que enchia o salão de baile dos Windham. O arauto – que fosse afligido por uma
crise permanente de hemorróidas – batera até com o piquete três vezes para garantir que
todos ficassem boquiabertos a admirar o novo duque.
Edana e Rhona usaram o momento para se emproarem diante da assembleia inteira, e
bem deviam, porque as suas roupas eram requintadas. No entanto, no salão de baile em
baixo, as senhoras sussurravam aos seus acompanhantes, as mães aproximavam as suas
filhas de si e os ex-oficiais trocavam sorrisos expressivos.
Ouvi, ouvi, o Duque da Morte chegou.
– E agora? – murmurou Hamish.
– Agora – disse Colin – levamos as mulheres até à pista de dança, servimos-lhe ponche e
fazemos carrancas a quem ousar aproximar-se sem uma apresentação.
Na semana anterior, entre passear no parque, receber e fazer visitas, Edana e Rhona
deviam ter conhecido metade de Mayfair.
– É como defender a guarnição – comentou Hamish, escoltando Rhona pela grande
escadaria. Ele sabia que não devia apressar-se. Ronnie estava a divertir-se e o sorriso dela
era… bem, a guarnição precisaria de uma boa dose de defesa, tendo em conta a beleza
daquele sorriso.
– É um pouco como ser um irmão – corrigiu-o Rhona. – Oh, ali estão a Menina Windham e
a Menina Megan e estou a ver Lady Deene. Nós conhecemo-la na modista.
– Estou a ver Sir Fletcher ao lado da tigela do ponche – acrescentou Eddie à conversa do
lado de Colin. – Ele é um homem tão atraente.
Elas estavam nervosas. Hamish percebia isso da mesma maneira que sabia que os seus
recrutas estavam nervosos na véspera de uma batalha. Homens sãos tinham pavor de ir
combater, mas o orgulho masculino insistia em que a única reação sensata à morte
iminente era limpar armamentos imaculados, escrever cartas sentimentais ou reler notas
de namoradas.
– Vocês as duas estão deslumbrantes – elogiou Hamish, a tentar criar uma paráfrase do
seu discurso antes da batalha. – Eu dar-vos-ei todos os meus tostões se encontrarem um
homem de que gostem, desde que seja digno de vocês. São iguais a qualquer pessoa aqui,
senão superiores a todas elas. Vocês são tão bem educadas quanto eu ou o Colin, conhecem
todas as danças, são capazes de cantar ao ponto de emocionarem todos os presentes. São as
filhas do clã MacHugh e o sangue de cem gerações de guerreiros flui nas vossas veias. A
vitória está nas vossas mãos desde que saíram do coche. Parem de se preocupar e
preparem-se para mostrarem misericórdia aos vossos prisioneiros, mesmo que
envergonhem os vossos inimigos.
Eles tinham chegado ao final da escada mais longa do mundo e na hora certa, mas Rhona
tropeçou na sua bainha.
Hamish apanhou-a e captou o olhar de surpresa perplexa nos seus olhos verdes.
Ele piscou-lhe o olho. Ela começou a sorrir, relaxou a testa e ofereceu ao salão aquele
sorriso radiante e atraente que lançara no cimo das escadas.
Muito bem, então.
– Vamos atacar? – murmurou Colin. – Até às terrinas de ponche, sim?
Onde Sir Fletcher estava à espreita, esperando para emboscar os desavisados, sem
dúvida.
– Um copo de ponche seria bom – disse Rhona. – As primeiras danças começarão em
breve e eu estou prometida a Sir Fletcher.
Ela tentou puxar Hamish para o lado esquerdo do campo de batalha – do salão de baile,
aliás.
– Tem cuidado com o Pilkington, Ronnie – avisou Hamish. – Eu e o Colin conhecemo-lo
dos nossos tempos no exército, e não se distinguiu como um líder de homens. – Mais do que
isso, alguém que fora feito prisioneiro pelos franceses, deixando os seus próprios homens
sem líder, estava tudo dito.
– Sir Fletcher mostrou preferência pela Menina Megan Windham – murmurou Eddie. –
Mas, Deus do céu, os trajes de noite favorecem os atributos de um homem, não é?
Colin resfolegou e Hamish manteve o silêncio de um oficial comandante.
Sir Fletcher reluzia, ria-se e inclinava-se sobre as mãos das mulheres até Hamish desejar
empurrar a cabeça do cavaleiro valente debaixo da fonte mais próxima. Colin começou a
namoriscar com uma viscondessa e os ponteiros do relógio alto perto da orquestra
pararam de se mover.
Era como se o relógio fosse uma sentinela, quando a noite adquiria uma permanência
impiedosa. Durante quatro horas intermináveis, a Lua ficou imóvel no céu enquanto
criaturas invisíveis sussurravam na vegetação rasteira e um piquete francês a algumas
centenas de metros de distância escutava desesperadamente o arrastar e mastigar dos seus
próprios cavalos na relva.
Enquanto os animais permanecessem relaxados e calmos, nenhum invasor noturno se
aproximava.
– Seria melhor considerar mostrar-se entediado em vez de dispéptico, Vossa Graça –
disse uma voz junto ao cotovelo de Hamish. – Ou poderia dar-se ao luxo de ter uma
aventura e pedir a uma viúva para dançar.
Joseph, conde de Keswick, surgiu à esquerda de Hamish. Keswick estava entre as
relações de Windham recrutadas para o serviço de acompanhantes no parque e, fiel ao
palpite de Hamish, sua senhoria servira na Península Ibérica.
Com notável distinção.
– Meu senhor – retorquiu Hamish, oferecendo uma vénia. – Boa noite. Pareço dispéptico
porque sou dispéptico. – O pisar e o baque dos pés dos dançarinos combinavam muito bem
com o ritmo de um exército em marcha e o latejar da enxaqueca que irradiava da têmpora
esquerda de Hamish.
Keswick tinha cabelo negro e naquela noite, pelo menos, humor negro.
– Boa noite, de facto – disse ele. – Enquanto assisto à minha condessa a namoriscar,
bajular e encantar durante horas de intermináveis danças e a fingir que não preferiria estar
noutro lugar…
Ele calou-se e o olhar que ocupou as suas feições saturninas estava transfixo, quase
pateticamente, exceto que tal benevolência impregnava a sua expressão, tal alegria
silenciosa, que naquele momento, Hamish teria dito que Keswick era capaz de charme e
graça sem esforço e todas as virtudes a que um cavalheiro aspirava.
– Meu amor – disse Keswick, estendendo a mão enluvada a uma senhora de cabelo
escuro. – Está na hora das apresentações…
Deus misericordioso. Bastava de apresentações… Mas o que mais poderia ser a noite
senão um desfile interminável de inspeções ao Duque da Morte? A Menina Megan avisara
Hamish que seria assim e Keswick, casado com um dos batalhões de primos de Megan,
garantiu que ela estava certa.
Nas duas horas seguintes, Hamish foi impedido de voltar para o lado dos seus irmãos.
Barões e viscondessas, honrados e elegíveis, Hamish foi submetido a mais reverências e
vénias numa noite do que aturara em qualquer ano na Escócia. Dançou com metade das
filhas e noras da duquesa de Moreland, foi provocado e seduzido pela outra metade e, ainda
assim, os ponteiros do relógio avançavam apenas a passo de caracol…
Enquanto isso, Hamish considerava atirar-se por uma janela antes que a sua cabeça
explodisse e os seus dois copos de ponche tivessem um efeito não programado.
– Você vê agora porque é que os terraços e as salas de jogo são necessários – disse
Keswick perto da meia-noite. – Até os oficiais mais corajosos têm permissão para licença de
inverno.
O salão de festas estava positivamente abafado, Edana e Rhona não careciam de
parceiros de dança e Colin estava a praticar a sua bajulação com as solitárias.
Está na hora de recuar e reagrupar.
– Você está a passar pelo pior de tudo. – Keswick fez um gesto para que Hamish passasse
por umas portas duplas. – A duquesa tratou que o resto das anfitriãs terá de convidá-lo
para as suas funções sociais, e tudo se irá encaixar.
Estavam numa galeria que separava o salão de baile de um terraço iluminado por tochas
e o ar estava mais fresco e silencioso. A batida ainda reverberava pelo chão e martelava
contra o crânio de Hamish.
– Nada se irá «encaixar», Keswick – respondeu Hamish, abandonando qualquer
pretensão de boas maneiras. – Eu volto para a Escócia daqui a uns dias. – Ele tornaria esse
o lema do ducado, considerando a frequência com que repetia as palavras na sua cabeça.
– Você deve fazer como achar melhor – retorquiu Keswick, marchando pela noite –,
embora deixar tantos convites sem resposta fosse insuportavelmente rude e redundasse no
seu eterno descrédito. Eu sou quase sempre rude, mas a minha condessa mantém-me no
lado social do insuportável. Creio que vai dançar a valsa do jantar com a Menina Megan
Windham?
Um pressentimento invadiu Hamish, e o pressentimento era um companheiro familiar.
Ele vira-se perdido num deserto hostil uma vez no passado, um deserto infestado de
patrulhas francesas, simpatizantes franceses e nenhum marco confiável. Hamish ignorou a
memória, que invariavelmente o emboscava nos piores momentos possíveis.
– Keswick, não tenho tempo para mandriar em Londres por muito mais. Tenho terras
para supervisionar, arrendamentos para gerir e uma maldita mansão, sede ou ruína, que,
como duque, devo inspecionar e fingir que tenho prazer em adquirir.
Os advogados tinham explicado que a sede do ducado na verdade ficava na fronteira –
cuja localização fora um pouco fluida nos séculos passados –, colocando Hamish na posse
de terras inglesas.
Maldita sorte.
O olhar de Keswick sob a luz tremeluzente das tochas era divertido e piedoso. A diversão
era bem-vinda, pois após duas horas de conversa fiada, falsa civilidade e uma cabeça
latejante, essa diversão enfurecia Hamish, ao passo que a pena… a pena ameaçou a sua
razão.
– Pare de sentir pena de si mesmo – retrucou Keswick. – O maldito condado de Keswick e
o baronato escondido por trás caíram-me nas mãos com a perda do meu único parente
vivo. Um velho amigo que você nunca conheceu. O Sixtus era jovial, generoso, o melhor dos
homens, e a sua fé em mim quando decidi comprar a minha insígnia militar foi o maior bem
que poderia ter tido na batalha. Um soldado luta sempre, Murdoch.
Mesmo no terraço, Hamish ouvia violinos a guincharem acima do exército de debutantes
e dândis. Risos flutuavam na brisa noturna, junto com uma mistura nociva de óleo de
lâmpada, esforço físico, perfume e tabaco.
Então alguém – uma alma embriagada, tagarela e desavisada – murmurou fofocas em
francês.
O francês de Hamish, como o da maioria dos oficiais militares britânicos, era proficiente.
– O Murdoch tem um ar tão selvagem – disse uma mulher com sotaque parisiense. – É
impossível não imaginar, dada toda a conversa…
– Ele foi feito prisioneiro, sabe – respondeu uma voz masculina entediada na mesma
língua. – Os homens dele nunca disseram exatamente como isso aconteceu. Não foi
prisioneiro durante muito tempo, pelo que se diz. Talvez os franceses não apreciem a
selvajaria como você, minha querida.
Alguém estava a falar – em inglês – mas Hamish não conseguia entender as palavras. Ele
encontrava-se sob outro céu iluminado pelo luar, no sopé dos Pirenéus, exausto, furioso,
com o coração a bater ao ritmo dos golpes desferidos sobre ele de todas as direções.
Morram lutando. Têm o sangue de cem gerações de guerreiros… o sangue de cem gerações
de guerreiros… cem gerações de guerreiros…
A autodefesa implorava por expressão. Uma compulsão para destruir irrompeu pela
parte de Hamish que observava o cenário de um ponto de vista acima da sua cabeça.
Isto outra vez, esta insensata entrega ao desespero. Esta exigência que clama para salvar
um pingo de honra com uma vaga de violência.
Esta perda de todo o controlo, de toda a esperança, e ele estava a sair-se tão bem…
Enquanto isso, o Hamish que sufocava dentro de vestuário elegante de noite levantou a
mão para atacar o próximo idiota que tentasse subjugá-lo. Os seus ouvidos rugiam, a sua
visão estava vermelha, a sua respiração saía em grandes exalações.
Ele sabia o que estava a acontecer, e ainda assim não podia preservar-se da desgraça que
vinha de todos os lados. Morram lutando. Persistam… façam-nos sofrer.
– Aí está você. – As palavras suaves chegaram do lado direito de Hamish. – Estou tão feliz
por o ter encontrado. A nossa dança aproxima-se, e eu tenho esperado a noite toda pela
minha valsa consigo.
Entre a parte de Hamish que se preparava para causar estragos sem piedade e a parte de
Hamish que se desmoronava em derrota nas mãos de memórias violentas, um pensamento
racional emergiu, como o toque dos sinos das igrejas sobre um campo de batalha.
As mulheres inglesas de boas famílias não participavam em emboscadas ao luar. Ele podia
confiar nessa conclusão como um facto fundamentado na experiência de um soldado.
Hamish baixou o punho que fora erguido até ao nível do coração, ao mesmo tempo que o
casal risonho se afastava e os violinos continuavam a tocar, espalhando graciosa melodia
sobre o pisoteio dos pés dos dançarinos e o martelar do coração de Hamish.
A quietude vigilante de Keswick sugeria que Hamish poderia ter sido massacrado muitas
vezes, enclausurado contra as paredes que impediam a fuga para a segurança. O animal
poderia atacar a própria pessoa que procurava cuidar das suas feridas e levá-la à liberdade.
– Menina Megan – disse Keswick, sem desviar os olhos de Hamish. – Boa noite. Chegou a
hora da valsa do jantar?
O aroma de lilases chegou a Hamish quando um aperto gentil envolveu o seu cotovelo.
– A próxima dança deve ser a valsa do jantar – disse ela. – Pode confiar Sua Graça aos
meus cuidados, Keswick, e ir procurar a sua condessa.
Salvo. Salvo não pelo punho de Keswick no maxilar de Hamish, não por Colin atacando o
irmão mais velho e batendo com a cabeça dele contra as pedras do pavimento. Salvo, nem
sequer por uma certa baronesa invadindo os terrenos dos duelos e gritando em todas as
direções.
Salvo por uma pergunta tranquila e uma mão no braço de Hamish. Ele quase sucumbiu
aos pés da Menina Megan, como um homem faz quando a loucura de batalha diminui o seu
domínio sobre a razão.
– Murdoch – disse Keswick. – Devo deixá-lo e à Menina Megan para encontrarem o vosso
próprio caminho de volta ao salão de baile?
Hamish conseguiu acenar com a cabeça.
– Sim.
– Obrigada, Joseph – acrescentou a Menina Megan. – Tenho certeza de que a Louisa está à
sua procura.
Depois de outra vistosa inspeção visual, Keswick curvou-se para a senhora e partiu.
– O Joseph é feroz por hábito – comentou a Menina Megan, levando Hamish até um banco
sombrio. – Os filhos dele aproveitam-se sem vergonha nenhuma quando ele não se mostra
grosseiro, mas ele é um homem muito amado. A Louisa, de entre todas as pessoas,
apaixonou-se completamente e permanece nesse estado abençoado até hoje. Sente-se –
continuou ela. – Eu ouvi as especulações de Lady Viola, Vossa Graça. Ela é uma piranha, é
claro, e não deve dar-lhe um pingo de atenção. Doem-me os pés, a propósito. Estamos
sentados durante a valsa do jantar. Por favor, diga alguma coisa, porque eu estou a
balbuciar.
O som da voz de Megan, com a sua entoação galesa e bondade profunda, acalmou
Hamish. A sua proximidade, o seu convite para se sentar com ela sob as tochas, para
descansar por um momento nas sombras, acalmou o espírito dele, como uma bebida bem
envelhecida numa noite amarga.
Hamish disse as primeiras palavras que lhe vieram à mente.
– Também estou contente por me ter encontrado, Menina Meggie. Muito contente.

***

O coração de Megan ainda batia fortemente, a sua barriga estava em alvoroço, e ela só
conseguia pensar que com o duque de Murdoch encontraria santuário. Ele era um bom
homem, honesto, honrado, todas as coisas que Sir Fletcher não era. Durante um minuete
inteiro, Megan aguentara os sorrisos e as vénias, entre promessas de ruína, de Sir Fletcher,
caso ela não aceitasse o seu pedido de imediato.
– Podemos dançar a valsa, se insiste – disse Megan. – Não que eu sinta vergonha de ser
vista consigo. – Embora estivesse muito envergonhada consigo mesma.
– Mas devia sentir. – Sua Graça sentou-se de imediato ao lado dela, não os trinta
centímetros que o decoro ditava.
O salão de baile tornara-se muito quente, enquanto no terraço o ar da noite era fresco,
típico do início da primavera. Não se podia estar confortável em lado algum, por outras
palavras. E, ainda assim, o duque irradiava um calor agradável e o seu tamanho todo
abrigava uma senhora de brisas geladas.
– Vergonha de ser vista consigo? – perguntou Megan. – Porque diz isso?
– Ouviu a tal Lady Viola. Eu fui feito prisioneiro pelos franceses. Perdi uma noiva pelo
caminho. Sou um selvagem. Daqui a cinco anos, por melhor que valse ou por mais
inocentemente que fale sobre o tempo, os boatos irão sempre seguir-me. Qualquer mulher
vista na minha companhia será vítima de especulação cruel.
Ele parecia tão natural que por um momento os próprios problemas de Megan recuaram.
– Foi aprisionado pelo barão St. Clair. Ele, pelos vistos, foi perdoado por se juntar ao
exército francês quando era novo, embora ninguém diga porquê.
O duque afagou a mão de Megan.
– Ele era novo, foi por isso. Abandonado em França quando visitou a família da mãe
durante a Paz de Amiens. O St. Clair é bom homem, à sua maneira, embora eu não gostasse
de me cruzar com a baronesa num beco escuro. Doem-lhe mesmo os pés? A minha cabeça
está a dar cabo de mim e não me atrevo a beber mais ponche.
A mudança de assunto foi pouco habilidosa e o afago na mão de Megan parecera…
distante. Murdoch não lhe parecia o tipo de pessoa de dar afagos. Talvez a própria agitação
de Megan fosse o motivo, ou talvez os boatos de Lady Viola fossem os culpados.
– Vamos dar um passeio, Vossa Graça? Muitas pessoas o fazem no intervalo do jantar.
– Passeio. – Ele dava um significado suspeito à palavra. – Sim, embora esteja certo de que
há outras vantagens de dar passeios, e a menina irá instruir-me sobre elas. – Ele levantou-
se e ofereceu o braço, muito corretamente.
Megan ergueu-se, embora a diferença entre a altura de ambos fosse tal que ela poderia
ter subido para cima do próprio banco e ainda assim não seria muito mais alta do que o seu
acompanhante.
– Você não é um selvagem – disse ela em voz baixa. – É um soldado, ou foi.
– E agora sou um duque. Parece que estou a ser feito prisioneiro outra vez. Num instante
estou em patrulha, distraído em descobrir o paradeiro do meu irmão desaparecido,
alegrado por pensar que avistámos as pegadas do cavalo dele. No seguinte, é só caos e
barulho, destruição e chacina.
Sabia Lady Viola que Murdoch estivera à procura do seu irmão desaparecido quando os
franceses tinham caído sobre ele? Sabia alguém?
Megan cruzou o braço com o do duque.
– Teremos sossego ao pé da fonte. Eu gostaria de um momento de sossego.
– Deus sabe que eu também.
Megan descartou uma inanidade conversacional conveniente acerca de decorações de
salões de baile, pois mesmo com um acompanhante caminhar no escuro exigia-lhe
concentração.
– Lady Viola arreliou-o, não foi? – perguntou Megan quando o caminho foi alcançado com
sucesso. – O Keswick estava preocupado, e ele não se preocupa com facilidade.
– Lady Viola apenas disse a verdade, mas sim. Quis dar-lhe uma coça e ao dândi bajulador
que estava com ela. A minha reputação de violência não foi merecida por acaso, Menina
Meggie, embora eu não devesse falar de tais coisas com uma pessoa tão distinta como a
menina.
Megan e o seu acompanhante percorreram o caminho, passando por debutantes vestidas
de branco que tentavam sem dúvida parecer aborrecidas nos braços dos amigos dos
irmãos. Sob a luz fraca, Megan apenas conseguia ver formas espectrais e sombras, e o
acompanhamento do duque tornou-se uma questão de necessidade em vez de convenção
social.
– Eu quis dar uma coça a Lady Viola – disse ela –, e no que diz respeito à vida de soldado,
com quem pode você falar sobre isso? Carregar uma mágoa secreta só piora o sofrimento,
na minha experiência. Ocupa-nos o pensamento, como um leão num jardim zoológico.
Miserável, longe de casa, ansioso por escapar. Até que sabemos, simplesmente sabemos,
que por muito robusta que seja a vedação, por muito alto que seja o portão ou por muito
perigosa que seja a escolha, aquele animal infeliz e enlouquecido, encurralado tão longe de
casa, arriscará tudo…
A mão de Murdoch pousou sobre a de Megan, que se encontrava no braço dele.
– Falaremos – disse ele com gentileza. – Não pode ser assim tão mau assim.
A compreensão dele era uma fissura na parede de infelicidade que circundava o resto da
vida de Megan.
– Se eu falar, vou chorar. – E possivelmente nunca mais parar.
– Se você falar, eu escuto. Vim armado para conflitos. – Ele brandiu um lenço branco. –
Sabe quanto os sacanas de Bond Street querem cobrar para bordarem a minha cota de
armas neste pedacinho de tecido? Ora isso é que é um escândalo digno de rumores. Pior
ainda, não duvido de que as pobres senhoras que estragam os olhos a criar tais obras-
primas sejam remuneradas com uma ninharia em comparação com o lucro que o alfaiate
recebe com o trabalho delas.
– As suas irmãs poderiam assumir tal projeto. – Beth conseguiria facilmente.
– Aquelas duas. Já tentaram vender-lhe charutos meus? Muito empreendedoras, mas,
credo, Menina Meggie. Tenho pena do pobre coitado que lhes cair na rede. Elas sabem fazer
uma corda com lençóis, mas não pode dizer a ninguém que lhe disse isso.
Ele brincou, queixou-se, deambulou pelo jardim com Megan até quase todas as pessoas
terem entrado para a valsa do jantar e Megan conseguir ouvir o chape-chape suave da fonte
à medida que a água derramava por entre os dedos de uma pastorinha sorridente.
– Já fiz suficiente conversa de circunstância, Menina Meggie? Confesso que o meu stock
está quase gasto. Resta-me perguntar porquê, sabe, que é a minha pergunta de último
recurso. Porque está tão transtornada, e porque tem de me negar o prazer da única valsa
por que esperei com alegria?
Megan sentou-se não no banco que ladeava a fonte, mas na parede de pedra que
circundava o perímetro afundado da fonte. Porque ela estivera ali de dia, sabia que os
amores-perfeitos tinham sido plantados em todos os quatro lados, e havia candeeiros em
cada canto do perímetro. Três dos candeeiros precisavam de ser reacendidos, tal como as
esperanças de Megan.
– Estou em apuros – revelou ela com um nó na garganta. – Fui imprudente, parva e
estúpida, e tenho de pagar pela minha idiotice com o resto da minha v…vida.
As lágrimas vieram, mas, fiel à sua palavra, Murdoch estava preparado. Sentou-se mesmo
ao lado dela, emprestou-lhe o lenço, esfregou-lhe as costas e esperou. Quando já chorara,
mas ainda não perto do suficiente, Megan pousou a testa contra o braço dele, sentindo-se
tão exausta que poderia ter adormecido mesmo ali na pedra dura.
– Podia ser pior – disse Sua Graça. – Você podia acordar numa guarnição francesa,
acorrentada à parede, com a cabeça a latejar como se dez diabretes estivessem a tentar sair
do crânio. Conhece o meu passado vergonhoso, Menina Meggie. Porque não me conta a sua
grande parvoíce?
Sua Graça fazia com que a confissão parecesse tão racional, uma coisinha de nada entre
amigos, e ele colocou um braço amistoso à volta dos ombros de Megan. Ela encostou a face
no bíceps dele, desejando tê-lo conhecido anos antes, antes de ele ter ido em busca do
irmão desaparecido.
Antes de ela ter escrito aquelas malditas cartas.
– Caí de amores – disse ela – ou pensei que caí. Na verdade, caí… não sei, de estupidez.
Paixão, rebelião, tédio. Conheci Sir Fletcher num baile do regimento e namorisquei com ele.
Já tinha sido apresentada à sociedade e havia tido algumas temporadas. Sabia tudo e em
breve ficaria noiva de um cavalheiro elegante, rico, titulado, amável, bonito, inteligente,
interessante e magnífico que ainda não conhecera. Com propriedades em Kent, de
preferência, boas famílias e sem necessidade de uma esposa com visão perfeita.
– Esse modelo de perfeição desconhecido parece um dos seus primos – comentou
Murdoch, movendo a mão nas costas de Megan para a tranquilizar. – Um desses primos que
devia tê-la alertado: os bailes de regimento são causa de muitas travessuras. As criaturas
mais perigosas no exército são oficiais recentemente comissionados. Os homens alistados
veem um uniforme impecável num cavalheiro jovem com botas novas, pedem
transferência. Se o cavalo dele é muito nervoso, o cabelo dele está sempre penteado, ainda
pior.
Bem, sim. A guerra não era uma revista de moda tornada realidade, pois não? Mas era
inspirador reparar que o ideal masculino de Megan se baseava em Westhaven, Valentine e
St. Just.
– Descreveu Sir Fletcher na noite em que nos conhecemos – lembrou ela –, só que ele
estava a usar sapatos de dança e tinha um caracol rebelde sobre a testa. Era repleto de
modos, charme e beijos ousados.
– Malandro maldito.
Megan esboçou o seu primeiro sorriso genuíno em dias.
– Está a ser educado, não está?
– Estou a ser um santo comparado com o que gostaria de dizer, e eu que pensava que as
minhas reservas de autocontrolo se tinham esgotado. É uma boa influência, Menina Meggie.
Outro aperto nos ombros. Talvez ela tivesse interpretado mal Murdoch e ignorado uma
capacidade latente para ser afetuoso. Megan pôs o braço à volta da cintura dele, pois
parecia o lugar lógico para pôr o braço – embora talvez não o mais sensato. As costas dele
eram esguias, e mesmo com os trajes de noite sentia-se a força e o calor dele.
Ele também cheirava bem. A urze, curiosamente.
– Então o Pilkington tomou liberdades – disse Murdoch. – Você não é a primeira senhora
que ele beijou, e espero que ele não seja o único sujeito cujos encantos provou.
Megan sentou-se direita e olhou de soslaio para a sua companhia nas sombras, embora
não conseguisse distinguir bem as feições dele.
– Eu não sou… eu não sou apressada, Murdoch.
Mas ali estava ela, a aninhar-se nele. A aninhar-se e a fuçar nele.
– É claro que não é apressada – concordou ele. – Nós somos mais práticos na Escócia do
que vocês são no Sul. Nós esperamos que uma mulher faça uma escolha informada acerca
de um assunto tão sério como o casamento. Se ela não gostar dos beijos do homem, a noite
de núpcias é demasiado tarde para descobrir, e o homem ficará ainda mais infeliz por causa
disso. Já ouviu falar de handfasting?
Um casal realizava handfasting quando concordavam casar e depois antecipavam os
votos. A união era legal e vinculativa e, ao contrário da descrição feita por Sir Walter Scott,
era normalmente considerada permanente.
– A minha mãe fala eloquentemente sobre as travessuras engendradas pelo costume de
handfasting – retorquiu Megan.
– Oh, certo. Como se os duelos, os escândalos ou envergonhar um casal de jovens
ardentes de desejo por se entregarem às alegrias da natureza fossem um plano melhor?
Enquanto isso, os vossos alfaiates de Londres vestem um homem de forma tão
aconchegada que o salão de baile se torna um grande jogo de «mostre-me o seu» enquanto
as senhoras fingem ignorância. Mas, voltando aos seus beijos, por favor. Alguém há de
aparecer aqui em breve, insistindo que dance com ele, sacana cheio de sorte.
Mostre-me o seu? Megan crescera com cinco primos homens saudáveis. Ela espiara com
três irmãs e cinco primas, e depois houvera os relatórios de Charlotte de várias salas de
jogos, concursos de arco e flecha e encontros de corrida.
Megan sabia muito bem ao que «mostre-me o seu» aludia, e talvez devesse ter ficado
escandalizada com um discurso tão direto… só que Murdoch estava certo. A ideia que
algumas pessoas tinham de trajes de noite – algumas senhoras e alguns cavalheiros – era
quase indecente.
– Eu escrevi cartas a Sir Fletcher – contou ela – a descrever os beijos dele, a jurar eterna
devoção, a ansiar pelos abraços dele e… assim por diante. «Assim por diante», daquele tipo
terrivelmente escandaloso.
A parte seguinte era especialmente mortificante. «Mostre-me o seu», de facto.
O duque levantou-se e Megan sentiu-se desolada, gelada e – mais uma vez – estúpida,
idiota, estúpida. Sua Graça seria educado, pois, à sua maneira, ele era galante, mas
explicaria que tinha de voltar para a Escócia naquele instante, e ela não deveria passar
muito tempo com as irmãs dele durante as próximas semanas, por favor. Ele não iria julgá-
la pelos seus lapsos, é claro, mas…
Mas.
– Tem primos – disse ele, com uma voz perplexo. – Pelo menos um deles foi soldado,
outro será um duque e o amaricado tem os ombros de um estivador e não é parvo nenhum.
Porque não pediram eles simplesmente o retorno dessas cartas? Se eles visitassem Sir
Fletcher como um grupo, ele provavelmente urinar-se-ia todo com a pressa toda de
entregar o contrabando.
– Eu adoro o seu discurso sincero – disse Megan. – Pensa em termos de lógica e honra, e
isso é… esse é exatamente o problema, percebe.
Murdoch tirou a luva da noite e passou os dedos pela interminável cascata da pastorinha.
– Estou a ver que a sua adoração por um sujeito a colocou nesta alhada, Menina Meggie,
mas agradeço o elogio. Eu sou… considerado pouco sofisticado, e com razão. Lógica
simples, certo e errado. Essas noções eu sei distinguir mesmo num salão de baile
barulhento e fedorento. Porque é que os seus primos não enfrentam Sir Fletcher?
Murdoch assumiu que o problema residia nos primos de Megan. Como ela o estimava
pelo seu raciocínio.
– Não vou pedir aos meus primos que confrontem Sir Fletcher, porque ele vai desafiá-los,
é claro – explicou Megan, saltando do seu poleiro, embora fosse uma tarefa inútil encontrar
um assento confortável na pedra dura e fria. – Eu não suportaria isso, e um duelo arruinaria
a minha reputação de qualquer maneira, envolveria as minhas irmãs em escândalo e
desapontaria os meus pais. Depois de se ter reformado do exército, Rosecroft teve de
consumir bebida alcoólica para resistir às trovoadas durante dois anos. Não suporto a ideia
de sujeitá-lo a tiros ou à esgrima, por qualquer motivo.
– O que andou Sir Fletcher a fazer durante esses dois anos e tal, e porque é que só agora a
está a importunar?
Sua Graça fizera uma pergunta astuta.
– Eu concluí que sou a noiva de último recurso de Sir Fletcher. – Outra mágoa, ser o
último recurso de qualquer homem. – Primeiro, ele visitou a filha de um banqueiro, mas a
sorte da família dela diminuiu drasticamente e eles não vieram mais à capital. Depois,
dedicou-se a uma herdeira do açúcar, que se mudou para as Índias Ocidentais. Fiquei
aliviada ao vê-lo procurar outras mulheres, quando se tornou claro que não estava tão
interessado em mim como eu estivera nele. Julguei que tinha escapado por um triz, uma
lição amarga, mas importante.
– Maldita sorte que ele ainda tenha as suas cartas.
– Eu não acho que seja sorte, Sua Graça. Acho que Sir Fletcher é bom a planear.
Transformou a temporada inteira num campo de minas para mim. Nunca sei quando vai
abordar-me ao pé do ponche, exigir uma dança ou afligir-me num musical. Compreendo
melhor agora porque é que o Rosecroft estava tão perturbado quando voltou para casa de
Waterloo.
Sua Graça sentou-se na beira da fonte, com a luva de noite a espreitar do bolso da jaqueta
como uma bandeira branca. Passou os dedos pela lã do kilt, chamando a atenção para um
joelho masculino pálido.
Oh, abençoados óculos e tochas ardentes que permitiam apreciar a visão que ele era.
– Os soldados geralmente não discutem os seus problemas em tempos de paz – disse Sua
Graça –, mas o Rosecroft não é o único homem em Inglaterra com dificuldades, nem em
França, Alemanha, Espanha, Polónia, Portugal. Trovoadas, pesadelos e duelos estúpidos
também, é claro. Todos passamos por essas tangentes, Meggie Windham, e elas perseguem-
nos.
Ele incluiu claramente a sua própria história nessa categoria. Um passado como o dele
atormentaria um oficial comandante durante muito tempo depois do fim da guerra.
– Não posso contar aos meus primos sobre estas cartas – disse Megan. – Pensei falar com
o tio Percy, mas ele é o pior no que diz respeito a caráter protetor, exceto o meu próprio
pai. O tio Percy pode não desafiar Sir Fletcher, mas ele arruiná-lo-ia mesmo assim, e ainda
seria um escândalo. Um homem arruinado não tem motivos para ficar de boca calada.
Murdoch levantou-se e Megan sentiu as lágrimas ameaçarem cair novamente. Ele faria
uma vénia, diria que Sir Fletcher não era a pior opção, e ela tinha de se casar com alguém,
afinal.
Dissera a si mesma uma versão dessas mesmas mentiras muitas vezes.
Murdoch agachou-se diante dela e pegou-lhe na mão.
– Não pode casar-se com o Pilkington, Menina Meggie. Ele tem um lado cruel; pergunte a
qualquer homem que serviu sob o seu comando. Fletcher adorava levantar o chicote,
mesmo em rapazes cujo único crime era a estupidez. O escândalo de algumas cartas
apaixonadas proporcionar-lhe-ia a si o santuário de uma vida ligada a tal homem.
Megan colocou a sua mão livre sobre o ventre.
– Quero dizer que você está a exagerar, que não gosta dele porque ele é inglês e loiro e
não caiu nas garras dos franceses.
Se Sir Fletcher tivesse sido feito prisioneiro pelos franceses, tê-lo-ia feito de uniforme.
Charlotte relatou que Murdoch fora capturado sem uniforme, o que explicava que fora
entregue a um oficial francês célebre pelas suas habilidades em… interrogação.
– Fletcher é loiro e inglês – afirmou Murdoch, levantando-se e permanecendo diante dela.
– Eu não gosto dele, nunca gostei, e não vou mentir em relação a isso. Outras pessoas
diriam que ele é um bom partido.
Megan fechou os olhos.
– Essas pessoas estariam erradas. Se Sir Fletcher se aproveita de mim, ele não é um
cavalheiro. Não pode ser confiável para proteger os mais fracos que ele, se os explora
quando lhe é vantajoso.
Ela estava a revelar mais do que pretendia, perturbando memórias que jurara nunca
revisitar.
Um pé raspou na laje, o cheiro a lã e urze aproximou-se dela, depois calor, depois um
abraço tão gentil, tão envolvente e seguro, que adoração era uma palavra pobre para a
emoção que inspirou Megan a levantar-se, enfiar os braços ao redor da cintura de Murdoch
e pousar a testa contra o peito.
Santuário, de facto. Santuário abençoado e inexpugnável, com aroma a urze.
Capítulo 7

A guerra era tão sedutora, raios. Ninguém alertava um rapaz quando ele aceitava o xelim do
rei que ele estava não só a arriscar a sua vida, mas também parte da alma, a sua sanidade e
certamente o coração.
Enquanto Hamish segurava uma chorosa Megan Windham nos seus braços, as suas
emoções equilibravam-se no limiar do pesar, por tudo o que ele deixara nos campos de
batalha de Espanha e França.
Camaradagem sem limite.
Afeto pelos seus homens e até mesmo por alguns dos seus colegas oficiais.
Memórias partilhadas de bravura, miséria, violência, vitória e tudo mais.
Rações medíocres que tinham sabido a ambrósia.
Mulheres desfiguradas que deveriam ter sido canonizadas pelo seu papel no esforço de
guerra.
Um inimigo nobre, incluindo até St. Clair, que tivera a vida de Hamish nas suas mãos.
Saudade e horror que chegaram mais fundo do que a alma.
Regozijo que só um soldado poderia entender e só naquela época.
Ao abraçar Megan, Hamish podia reconhecer todas essas perdas e danos, e até mesmo
valorizá-los pela prova que ofereceram de que nem todas as suas memórias militares eram
de vergonha e indignidade.
Ele via também, todavia, que a guerra seduzia a razão de um homem ao prometer-lhe
que o que ele tinha para oferecer, o que ele tinha para dar, importava desesperadamente.
Ele não iria viver, morrer, marchar, gemer, vomitar, coçar-se, suar ou praguejar em vão. Ele
importava. Cada soldado, independentemente de quão estúpido, desajeitado, trapalhão ou
venal fosse, importava indispensavelmente, e assim o seu futuro estava perdido e ele ficava
contente por entregá-lo.
Ser um duque não importava. A valsa, as visitas sociais, os passeios no parque… tanto
tempo perdido e tanta tolice. Ser irmão mais velho de muitos irmãos indisciplinados não
importava tanto quanto Hamish esperara, pois ele estivera ausente durante dois anos
seguidos, e a vida da sua família continuara sem vacilações.
Mas abraçar Megan Windham, isso importava. Abraçar as confidências dela, isso
importava absolutamente. Enquanto toda a alta sociedade via Hamish como uma espécie de
urso titulado perfeito para fisgar num salão de baile, ela contava com ele para vir em seu
auxílio.
– Em relação a Sir Fletcher – disse Hamish, quando as lágrimas da senhora diminuíram. –
Eu não posso matá-lo por si, Meggie, embora pela primeira vez a noção de assassinato
tenha algum apelo.
Ela era deliciosa de ter nos braços. Suave, doce e quente… os cabelos sob a mão nua dele
eram o calor da luz das velas e o fogo aconchegante na lareira, e também sedosos. Hamish
queria achegá-la mais a si, mas não se atreveu.
Ela achegou-o mais a si.
– Você não é um assassino, Hamish MacHugh. Não tem de fingir por minha causa.
A sociedade provavelmente via-o como nada além de um assassino – ou um cobarde.
Hamish deu um passo para trás, retomando o seu lugar ao lado dela no banco e que se
danasse o decoro. Ele aconchegou-a e ela aninhou-se contra ele.
A retidão, a sublime absolvição, do momento fez as almas das cem gerações de
guerreiros MacHugh erguerem-se e dançarem pelos céus.
– Eu prometi a uma certa baronesa que nunca mais desafiaria um homem – disse
Hamish. – Sua senhoria foi muito insistente e as consequências com que ela me ameaçou
motivaram-me a manter a minha palavra. Os duelos são ridículos, em todo o caso.
Dentro da mansão Windham, a orquestra iniciava a abertura da valsa. Hamish queria
dançar com Meggie Windham, mas esta conversa sob as tochas tremeluzentes era muito
mais preciosa.
– Se você não pode desafiar Sir Fletcher, o que resta então? – lamentou Megan baixinho. –
Eu não posso desafiá-lo, e ele pressionou-me novamente para marcar uma data. Os meus
pais partem para Gales na próxima semana e Sir Fletcher disse que ou ele conversará com o
papá antes disso, ou tomará outras medidas para garantir que o nosso noivado seja
anunciado.
Hamish ponderou visitar a baronesa St. Clair e pedir uma pequena dispensa da promessa
que fizera, mas não. Isso significaria visitar também St. Clair. O barão ainda aparecia nos
pesadelos de Hamish e, com toda a sinceridade, a ideia de um duelo fazia o estômago de
Hamish dar voltas. Além disso, também não queria explicar a situação de Megan a ninguém,
pois a confissão dela fora contada em confidência a Hamish.
E apenas a Hamish.
– Eu não vou deixar que cometa assassínio – dissera ela, afagando o tecido plissada do
kilt com a mão. – A sua consciência proíbe que trave um duelo com Sir Fletcher e, no
entanto, ele tem as minhas cartas. Trinta e uma cartas. Gaba-se de que as tira e lê diante da
lareira na sua biblioteca à noite. Guarda-as na gaveta da sua escrivaninha, onde pode
apreciá-las a qualquer momento. E também as acha maravilhosamente divertidas.
Na privacidade da sua mente, Hamish criava epítetos obscenos para Pilkington tanto em
inglês como em gaélico. O momento, no entanto, exigia pragmatismo, apesar da mão de
Megan Windham na coxa de Hamish.
– Eu poderia suborná-lo – sugeriu Hamish. – Comprar-lhe as cartas.
– Está a sustentar duas irmãs que vão ser apresentadas à sociedade – lembrou Megan. –
A sua riqueza está na Escócia, suponho, e Sir Fletcher vai querer o dinheiro antes que a
mamã e o papá partam na semana que vem.
Sir Fletcher também descobriria, se fosse pago uma vez, que poderia exigir mais dinheiro
no futuro, até que todas as irmãs de Megan se casassem em segurança. Ela nunca mais teria
paz e teria de confessar os seus erros a qualquer homem que se interessasse por ela.
– O objetivo aqui não é ganhar uma escaramuça, então – disse Hamish, ao mesmo tempo
que a sua coxa suportava outra carícia suave e lenta através de um só tecido de lã. –
Precisamos de vencer a guerra.
– Você odiou a guerra.
Como ele adorava ouvir essas palavras vindas dela, pois eram a verdade que um soldado,
muito menos um soldado em desgraça, nunca admitia a outro.
– Eu não odeio que um homem que mergulhou um continente inteiro em vinte anos de
carnificina infinita e sem sentido tenha acabado sentado com o traseiro rosado no meio do
Atlântico Sul, Meggie. As tropas de Napoleão estavam cansadas dele no momento em que as
atacámos em Waterloo, mas tinham perdido o gosto de serem governadas por um rei.
Bonaparte não lhes deixou nada para fazer a não ser lutar até que não restasse um francês
com menos de oitenta anos para pegar numa arma.
E Deus ajude o exército que enfrentou as mulheres francesas sobreviventes, para não
falar das mães de todos aqueles homens que morreram ao serviço das ilusões sanguinárias
de glória de um imperador.
– Eu não quero casar com Sir Fletcher Pilkington – disse Megan. – Já pensei em fugir.
Também Hamish.
– Fugir não resolve nada, Meggie. Só a faz parecer culpada de qualquer acusação que
esteja a tentar evitar. A retirada torna-se uma derrota quando você foge e entrega o campo
ao inimigo. Os ingleses aprenderam essa lição no caminho para a Corunha. Lutamos para
vencer e lutamos com batota.
Falar de batalhas parecia estranhamente revigorante, pela primeira vez. A mão de Megan
que acariciava a coxa de Hamish, embora provavelmente nada mais do que um gesto
nervoso da sua parte, também era revigorante.
– O que é que isso significa, Vossa Graça? Eu sou uma solteirona meio cega e não sei lutar.
Megan não era nem meio cega naquilo que importava, nem era uma solteirona de
qualquer espécie. Toda a mulher tinha armas, desde que alguém lhe ensinasse a usá-las.
Mas Megan Windham era boa e as pessoas boas não reconheciam o rosto do mal quando
este lhes sorria nos seus próprios salões de baile. Um homem proscrito e desonrado entre
os seus colegas soldados tinha a oportunidade de saber quem era bom e quem estava
apenas a fingir.
Megan Windham não examinou o rosto de Hamish quando ele falou; em vez disso,
apontou o olhar para os sapatos, a fonte, a borda escurecida das flores. Ela confiava na sua
audição para lhe transmitir o significado de uma conversa em vez das provas visuais.
Na verdade, a sua visão era deficiente.
Para tal mulher escrever mais de trinta cartas, cada palavra meticulosamente escolhida,
repleta das suas esperanças e lembranças, cada epístola a arriscar tudo o que ela
valorizava… Para ela, redigir os seus sentimentos em papel, vezes sem conta, fora um
trabalho de enorme magnitude e confiança.
Para Sir Fletcher, trair essa confiança foi um erro igualmente enorme.
Hamish pegou na mão dela em vez de deixá-la vaguear pela sua coxa mais uma vez e
beijou-lhe os nós dos dedos.
– Lutar com batota significa, Meggie Windham, que simplesmente lhe roubamos as
cartas.

– Eu não vejo a Megan na pista de dança – resmungou Devlin St. Just, conde de Rosecroft. –
Sua Graça designou-te a ti, Keswick, para garantir que o Murdoch sobrevivesse à noite sem
contratempos, e ele nem participa da valsa do jantar. Como consegues perder de vista um
homem tão grande, especialmente um vestido com kilt azul e verde?
Joseph, conde de Keswick, juntara-se à família Windham através do casamento porque
nada no céu, na terra ou em qualquer outro reino o impediria de passar o resto da vida com
Louisa Windham ao seu lado. Os irmãos dela eram uns estorvos inevitáveis, o tipo de
compromissos colaterais que um homem suportava quando o amor da sua vida dormia ao
seu lado todas as noites.
Rosecroft, Westhaven e Lorde Valentine também eram as maiores mães-galinha em
Mayfair, exceto possivelmente o próprio pai deles.
Também muito queridos.
– A Megan e Sua Graça estão a apanhar um pouco de ar – disse Keswick. – Estou a ver que
não estás a dançar, Lorde Rosebud.
Valentine Windham partilhara o termo impróprio para o seu irmão mais velho, cujo
epíteto, Keswick suspeitava, fora intencional por parte de Murdoch. Observara regimentos
escoceses em ação e o humor de um soldado escocês era tão perverso quanto o seu
temperamento.
– Queres que te lance da varanda, Keswick? – respondeu Rosecroft. – Sua Graça gosta que
estas reuniões sejam memoráveis.
Eles estavam junto ao corrimão da galeria de menestréis do salão de baile, pois, como
qualquer general competente sabia, o controlo do terreno elevado de um campo de batalha
era necessário para melhor aproveitar a artilharia. Na pista de dança em baixo, todas as
pessoas importantes dançavam o compasso ternário, nos seus melhores trajes, com os
sorrisos mais deslumbrantes.
Mas não Megan Windham nem o duque de Murdoch.
– Este evento será memorável – respondeu Keswick.
– O que é que não me estás a contar? – murmurou Rosecroft. – Deixaste a Megan no
jardim com um homem que não conhecemos bem, e agora ela está desaparecida. Não te
saíste bem.
– O que ouviste dizer sobre o Hamish MacHugh?
Louisa rodopiava entre os dançarinos, acompanhada por um conde de kilt. Os escoceses
titulados pareciam ser os solteiros em destaque daquela temporada, Deus ajudasse os
pobres coitados de joelhos despidos.
– Quanto ao MacHugh – Murdoch, quero dizer –, ouvi pouca coisa – respondeu Rosecroft.
– Sir Fletcher insinua que o Murdoch era um problema mesmo antes de os franceses o
terem arrastado daquela montanha. Segundo ele, Murdoch desobedeceu a ordens diretas,
nunca foi honrosamente mencionado nos despachos, tinha um temperamento assassino em
batalha e desapareceu outra vez para as Terras Altas semanas após Waterloo.
Rosecroft andava claramente a recolher informações, um papel no qual ele se destacara
durante a guerra.
– Quase todos os homens com bom senso se reformaram depois de Waterloo – replicou
Keswick – e todos nós desobedecemos a ordens diretas. Entendíamo-las mal,
interpretávamo-las mal, fingíamos que não as tínhamos recebido em tempo útil. As minhas
habilidades teatrais foram às vezes a melhor parte dos meus sucessos militares. Acreditas
realmente na palavra de Sir Fletcher Pilkington?
Seguiu-se um silêncio revelador, durante o qual o olhar de Rosecroft seguiu o progresso
de uma adorável senhora loira que dançava com o duque de Moreland. Era a condessa de
Rosecroft e a salvação da alma de Devlin St. Just.
– A Megan está interessada em Sir Fletcher – disse Rosecroft. – Eles estiveram a
conversar acesamente durante todo o minuete, que é uma dança interminavelmente
punitiva.
Gayle Windham, conde de Westhaven, surgiu da direção das escadas.
– Ainda acordados a esta hora, meus queridos? Ou as «flores de parede» não quiseram
oferecer-vos danças de caridade?
No seu traje elegante de noite, Westhaven possuía absolutamente o ar de herdeiro ducal,
embora Keswick soubesse bem o que o conde pretendia. Ele estava preocupado com o
irmão mais velho, certificando-se de que Rosecroft, que viajara de Yorkshire com uma
esposa e duas filhas pequenas, estava a aguentar bem a tensão da socialização civilizada.
Keswick tinha filhas e filhos em abundância. Sabia o que era preocupar-se com a família.
– Estamos a discutir o abandono do dever do Keswick – disse Rosecroft. – Ele perdeu o
Murdoch de vista, que foi visto pela última vez a desaparecer pelas sebes com a Megan a
reboque. Lembras-te de que fomos cercados num chá de dança improvisado sem bolinhos,
cujo objetivo foi garantir que o Murdoch, conhecido entre os seus colegas oficiais como…
Westhaven estava a observar o irmão como se Rosecroft tivesse desatado a tocar uma
ária em louvor a unicórnios manchados.
– Tu pareces o nosso pai – disse Westhaven. – Embora o privilégio de imitar o Moreland
devesse pertencer adequada e exclusivamente a mim, tu soas tal e qual como Sua Graça a
discursar sobre a política Whig. Cá para mim, a Megan é que o rebocou a ele.
Ele acenou discretamente com a cabeça – Westhaven era sempre discreto – na direção do
fundo do salão de baile, mais perto do bufê do jantar. Megan Windham conduzia um sujeito
musculoso de kilt para as escadas que levavam à galeria do menestrel. Tanto Megan como o
seu acompanhante nominal seguravam pratos de comida. Murdoch apresentava a
expressão confusa de um lutador de boxe que ficara inconsciente no primeiro assalto, mas
não se lembrava do golpe que o derrubara.
– Estão todos presentes e contabilizados – anunciou Keswick. – Não há desaparecidos, a
não ser duas pessoas aparentemente espertas o suficiente para aproveitar o costume de
Sua Graça de abrir o bufê antes de a valsa do jantar terminar. Talvez devesses fazer o
mesmo, Lorde Rosebud. A minha condessa afirma que a fome pode deixar um homem
irritado.
Sobrancelhas escuras baixaram-se enquanto Westhaven tomava um gole do seu
champanhe – ou assim fingia.
– Se ninguém afinar aquele violoncelo, não responderei pelo meu comportamento. –
Lorde Valentine, parecendo lacrimosamente resplandecente, saíra de uma sala de jogo. –
Quem mais dará a desculpa de uma criança com os dentes a nascer, uma esposa grávida ou
uma dor de cabeça para sair imediatamente após o jantar?
– Só vais sair quando Sua Graça disser que podes sair – disse Westhaven quando Lorde
Valentine arrancou o champanhe da mão do irmão. – Tudo parece estar a correr bem, mas,
também, este é o baile da duquesa de Moreland.
A providência benevolente, o destino e uma Divindade sensata sabiam bem que se devia
frustrar os desejos de Sua Graça em relação ao seu baile sazonal. Meros filhos e genros
crescidos dançariam até ao amanhecer, se a duquesa lhes exigisse isso.
– É cedo para começares a lamentar-te – censurou Rosecroft, tirando o copo ao irmão
mais novo.
– A Ellen mandou-me sozinho esta noite – respondeu Lorde Valentine, com um ar estoico
diante de um destino tão miserável.
Seguiu-se um momento de simpatia fraterna, em que ninguém olhou para nenhum lugar
em particular, pois um Windham presente num baile sem a sua senhora era, de facto, um
espécime patético. Outros representantes de boas famílias poderiam fingir que mal
conheciam os seus cônjuges socialmente, mas não os Windham.
– A Megan e o Murdoch não só apanharam ar fresco da noite nos jardins juntos –
comentou Rosecroft – como também se esquivaram da valsa do jantar a favor de mais
conversa. Meus senhores, creio que começamos a ter aqui uma situação. Eles foram
absolutamente dedicados à valsa que partilharam no chá sem bolinhos em casa do
Westhaven.
Keswick considerou tentar roubar uma vez o champanhe, mas o copo estava quase vazio.
– É exatamente aí que quero chegar – retorquiu ele – e é por isso que perguntei o que
sabemos sobre o Hamish, o duque de Murdoch, antes de teres ficado de mau humor por
perderes as guloseimas.
Rosecroft virou-se furiosamente para Keswick.
– A minha condessa garante que me mantenha bem abastecido de guloseimas, para que
saibam, incluindo bolinhos. Bolinhos gelados às dúzias, com recheio e…
– Alguém leve o coitadinho até ao bufê – murmurou Lorde Valentine, antes de a sua
expressão se transformar num sorriso encantador. – Megan, boa noite. Estás linda, como de
costume. Murdoch.
A conversa caiu numa calmaria enquanto a música lá em baixo chegava ao fim, e até
mesmo Westhaven parecia precisar de um momento para ser capaz de mais um gracejo
educado e adequado. Murdoch olhou por cima da sacada para os dançarinos que agora se
reuniam numa fila muito longa que se estendia até ao salão de baile.
– Menina Megan, tinha razão. Faltar à valsa a favor de uma volta pelo bufê foi uma
estratégia brilhante. – Ele olhou para o herdeiro de Moreland. – Você é considerado um
sujeito sagaz. Se pretendia ficar de fora da valsa do jantar, pergunto-me porque não estava
lá em baixo, a escolher os mais saborosos petiscos para a sua condessa, Worsthaven.
Lorde Valentine viu-se atacado por uma crise de tosse e Rosecroft passou a Worsthaven o
copo vazio, e começou a dar palmadas fortes nas costas do irmãozinho. Palmadas muito
fortes.
A Menina Megan murmurou algo acerca de arranjar lugar antes de serem todos ocupados
e levou o seu duque de kilt pelo meio das palmeiras envasadas.
Lorde Valentine recuperou do ataque de tosse e curvou-se para os seus irmãos mais
velhos.
– Rosebud, Worsthaven, desejo-vos uma boa noite. Vou encontrar um piano com o qual
entreter os convidados de Sua Graça durante o jantar. Mal posso esperar para ouvir a
artilharia verbal que aquele escocês atirará na minha direção, ou na tua, Keswick. Confesso
que começo a gostar do homem.
Curvou-se para Keswick e afastou-se, com um sorriso bonito.
– O Valentine sempre carregou um fardo em relação ao seu nome – comentou
Westhaven, terminando o champanhe. – Talvez não devêssemos tê-lo provocado tanto.
– Somos os seus irmãos mais velhos – lembrou Rosecroft. – Tínhamos o dever de o
provocar, se não as nossas irmãs tê-lo-iam atormentado muito mais do que nós. Ele acabou
por ficar bastante bem, afinal de contas.
Rosecroft era uma estrategista genial e, depois de Keswick ter conversado com Louisa
acerca dos desenvolvimentos da noite, provavelmente consultaria Rosecroft também. Uma
coisa era clara, baseada no que Keswick ouvira enquanto se escondia entre as madressilvas.
Megan Windham não podia casar-se com Sir Fletcher.
O plano de Murdoch para resolver a situação de Megan era – como muitos bons planos –
expediente, discreto e não requeria demonstrações de violência. O facto de ser ilegal e
perigoso era um desafio que Murdoch iria enfrentar.

Megan não viera ao baile à espera de recrutar um aliado na forma da pessoa de Hamish,
duque de Murdoch e, ainda assim, as qualidades nobres dele eram tão óbvias como o
xadrez do seu kilt.
Ele escutava. Ele não fazia juízos de valor. Era prático, amável, honrado, tinha um sentido
de humor subtil – e um sentido do absurdo – e, sobretudo, a sua natureza era, de facto,
afetiva.
– Vamos procurar uma mesa na galeria dos retratos, no terraço ou aqui em cima, Vossa
Graça?
Megan trouxera Murdoch propositadamente para cumprimentar os seus primos
titulados, pois quanto mais membros da alta sociedade vissem o duque ser aceite pelos
seus pares, menos pessoas se atreveriam a falar mal dele.
– Eu gosto de estar perto de vegetação – disse Sua Graça. – Camuflagem, usando o termo
francês.
– Ou o prazer de um ambiente natural – respondeu Megan, liderando o caminho até uma
mesa situada entre fetos enormes.
A galeria do menestrel deveria ter sido o local mais quente das instalações, mas Sua
Graça, duquesa de Moreland, ordenava que as vidraças mais altas fossem abertas antes de
um baile sequer começar. O resultado era ar quente com um pouco de movimento no local
o mais privado possível. As salas de jogo também iam dar à galeria, por isso os transeuntes
normalmente iam e vinham na direção das escadas. A multidão em fila para o bufê
significava que por enquanto Megan podia desfrutar de relativa reclusão com o seu
acompanhante.
– Gosta desta porcaria toda? – perguntou Sua Graça. – Eu preferiria estar em casa na
biblioteca a ler Wordsworth ou Burns.
– A esta hora, a minha cabeça costuma doer demasiado para ler seja o que for – disse
Megan. – Os meus óculos ajudam-me a ver, embora usá-los o dia todo me canse.
Megan instalou-se lado a lado com Murdoch numa mesa pequena, ambos virados para o
lado de fora do outro lado da galeria. O efeito era como estar por trás de uma vedação, com
a vista dos campos e jardins ao longe.
– Consegue ver os retratos ao fundo do salão? – perguntou Murdoch.
O que se seguiu foi uma espécie de questionário, cujo resultado foi descobrir que Megan
conseguia ver bem sem os óculos a apenas uma distância mediana específica, algo de que
ela não se apercebera antes.
– Na maioria das vezes, tento adivinhar – disse ela, oferecendo um bocadinho de ananás
a Sua Graça.
A tia Esther tinha autorização para organizar um único evento verdadeiramente
extravagante no pico da temporada, provido de esculturas de gelo, ananás e flores de
estufa. Em poucas semanas, o seu segundo evento menos formal marcaria o início do fim da
temporada, depois do qual se seguiria o êxodo estival da capital.
Quantas cartas teria o orçamento para este baile resgatado se Murdoch não as
conseguisse roubar nos próximos dias?
– Você tenta adivinhar rostos? – inquiriu Murdoch, tirando o ananás dos dedos dela.
– Eu tento adivinhar tudo. Rostos, expressões, humores, insinuações. Se conheço uma
pessoa, então ver o rosto dela não é importante, obviamente. Quanto a estranhos, sinto-me
perdida a não ser que os olhe bem de perto, ou eles falem com uma ênfase especial.
O ananás alcançou o seu destino, embora Sua Graça tivesse modos delicados.
– Sir Fletcher provavelmente enganou-a em parte porque você não estava a usar os
óculos e não o conhecia bem. Também levei algum tempo a perceber que os modos ingleses
são diferentes dos modos escoceses, não apenas a linguagem inglesa, mas os maneirismos
ingleses também. Tive problemas quando comprei a minha insígnia.
Nada naquela conversa fora especialmente notável – a visão de Megan nunca fora boa, Sir
Fletcher enganara-a mesmo – e, ainda assim, Megan só poderia ter trocado aquelas palavras
com um amigo.
Um verdadeiro amigo, que a entendia claramente, que estava disposto a ser entendido
por ela com a mesma clareza.
– O que é que era diferente nos oficiais ingleses? – perguntou ela.
– Não só os oficiais, os ingleses todos, mald… abençoados sejam. O humor deles é
diferente, mais cruel, mais manhoso, não tão engraçado para o escocês, enquanto julgo que
eles acham as nossas piadas infantis. Os homens ingleses consideram mais decoroso
ignorar insultos menores, ao passo que para um escocês nenhum insulto é menor. Se sei
que fui insultado, então os meus irmãos esperam que eu faça algo a respeito disso, não
apenas responder com umas palavras igualmente maldosas e continuar com a minha vida.
– É por isso que os escoceses normalmente lutavam nos seus próprios regimentos e os
ingleses nos deles?
Murdoch encostou-se na cadeira.
– E os irlandeses nos deles? Suponho que sim. É melhor combater ao lado de homens que
entendemos, mas também é verdade que lutamos melhor pelos nossos. – Ele continuou,
agora com voz mais baixa. – Uma pessoa luta até à morte pelos seus. Os generais sabem
disso.
Megan apertou-lhe a mão e, como estavam a jantar, o seu gesto foi de dedos despidos
sobre dedos despidos. O toque de Murdoch era quente e firme, contrastando com outros
cujo nome ela podia dizer.
– Sir Fletcher lutaria melhor para se preservar a si mesmo – disse Megan, a obrigar-se a
comer um morango. – Embora eu suspeite que ele arranjou uma forma de evitar o pior de
qualquer batalha. Como roubaremos as minhas cartas?
Ela perguntou em parte porque o olhar de Murdoch tornara-se lúgubre ao mencionar
lutar pelos seus, sugerindo que perdera homens na guerra – todos os oficiais perdiam – ou
algo ainda pior.
– Eu extraio as cartas ganhando acesso à biblioteca de Sir Fletcher depois de escurecer e
retirando-as da gaveta da escrivaninha. Você ajuda ao oferecer as informações para esta
missão ao desenhar-me um mapa da casa dele, incluindo a posição específica dos móveis na
sua biblioteca e a localização de cada janela.
– Não lhe consigo desenhar nada neste momento – disse Megan. – Não tenho os óculos.
Murdoch serviu-se de um morango do prato dela.
– Então fale comigo, Meggie. Diga-me do que se lembra da casa de Sir Fletcher e desenhe-
me um mapa amanhã, quando tiver plena luz do dia, a cabeça descansada e os óculos. Vou
levá-la a dar uma volta de coche se o tempo estiver bom, e você pode dar-me o seu esboço,
então. Daqui a uma semana, pode queimar as letras, uma a uma, e dormir em segurança,
tendo vencido um inimigo astuto.
Uma ideia deliciosa, que Megan não poderia ter contemplado há um único minuto atrás.
Ela descreveu não só a planta da casa da família de Sir Fletcher, como também a
colocação dos móveis da melhor maneira possível.
– O que vai fazer se a escrivaninha estiver trancada? – perguntou ela.
– Arrombo a fechadura – respondeu Murdoch, colocando algumas violetas cristalizadas
no prato de Megan. – Não me diga que está escandalizada. Tem um batalhão de irmãs, e
cresceu com primos mais velhos, e eles têm também um batalhão de irmãs. Provavelmente
sabe arrombar fechaduras melhor do que eu.
Megan era bastante hábil com um gancho de cabelo.
– Porque diz isso?
– Porque você não vê tão bem quanto eu. Provavelmente ouve melhor e o seu sentido de
tato deve ser mais desenvolvido. Muitos dos melhores harpistas das Terras Altas foram
cegos. Temos violinistas cegos, flautistas cegos. Parece justo, se o Todo-Poderoso detém o
benefício da visão, que outros dons tenham uma expressão mais completa.
Megan sentiu uma pontada estranha com aquele pensamento filosófico. Colocou uma
violeta doce e crocante na boca.
– Eu gosto de cantar as músicas de Gales da mamã ou uma ou outra obra de sala de estar
com as minhas irmãs, mas não sou o prodígio musical que Lorde Valentine é.
Outra palmadinha, no ombro desta vez. Murdoch era realmente um homem afetuoso.
Megan ainda conseguia sentir o prazer do seu abraço, quente, protetor, perfumado e…
masculino. Tão masculino.
– O dom do harpista não é apenas a música, Meggie. Eu adoro música, as minhas irmãs
têm vozes bonitas, o Colin toca muito bem violino. O meu tio cego, Leith, superou-nos a
todos na sua habilidade porque era determinado. O seu forte não era apenas a música, mas
também a teimosia absoluta e implacável de aprender apesar da falta de visão.
A sensação estranha espalhou-se, um calafrio seguido de calor. Megan suspeitava que
acabara de ser elogiada, não da forma como um inglês faria um elogio – ao tom azul-claro
do seu vestido, às violetas entrelaçadas no seu penteado, a algo facilmente visto –, mas da
forma como um escocês elogia uma senhora.
– Sir Fletcher é teimoso – disse ela. – Cruel também. – Além disso, não beijava bem,
usando só mãos ásperas e desajeitadas, língua bruta e pressa.
– A comida não lhe agrada?
Ela afastou a memória e bebeu um gole de ponche.
– A comida e a companhia são muito agradáveis. Eu nem sei dizer quando apreciei tanto
um jantar. Fale-me da sua terra, Vossa Graça.
– Tem de lá ir um dia. A paisagem é mais selvagem, a luz mais nítida, o ar mais
revigorante. Iria gostar.
Megan iria adorar, pois Murdoch claramente adorava. Quanto mais ele falava da Escócia,
e Perthshire em particular, mais acentuado o seu sotaque se tornava, até que Megan passou
para o gaélico, e ele também, e a orquestra retomou as suas danças graciosas e medidas
sem que Megan notasse.
Os pratos deles já estavam vazios e os copos também quando Murdoch a ajudou a
levantar-se.
– Você é a minha ruína em eventos sociais, Meggie Windham. As minhas expetativas para
um baile da sociedade subiram ao ponto de incluir uma conversa excelente, uma pitada de
intriga e a companhia de uma senhora cujas opiniões bem fundamentadas não são comuns.
A minha gratidão por sentir pena de um escocês saudoso.
Ele pegou na mão dela e envolveu-a nas suas, embora nem ele nem Megan tivessem
voltado a calçar as luvas, pois ainda estavam no meio dos fetos.
Ela não queria deixar Murdoch ir. Não queria deixar a sua mão escapar da dele, não
queria perdê-lo entre a multidão lá em baixo, não queria encher os ouvidos com melodias
de violino e mexericos quando podia discutir economia e poesia com ele.
Infelizmente, Megan estava sem óculos e, então, quando foi beijar Murdoch, teve de lhe
acariciar a face com a palma da mão, para acertar o alvo. Uma hora atrás, ela poderia ter-se
contentado com a face dele – um beijo amigável.
Mas, algures entre uma palmadinha no braço e um elogio à sua teimosia, o amigável
tornara-se inapropriado. Murdoch estava a defender a causa dela ao derrotar um canalha e
ao colocar-se em risco por ela apenas porque era um cavalheiro.
Megan posicionou a boca na dele, demorando-se por um momento, para que ele
soubesse que ela atingira o alvo que não conseguia ver nitidamente, mas podia desfrutar
maravilhosamente mesmo com os olhos fechados. Ele era calor e admiração, um gostinho
de limão, uma lufada de urze.
E ela apaixonou-se.

Um desejo mais intenso e mais desesperado do que saudades de casa invadiu Hamish
quando ele segurava a mão de Megan contra a sua face.
– Não faça isso, Meggie.
Tal era a determinação dele que um homem poderia facilmente confundi-la por falta de
compreensão. Os gestos, o discurso, as reações de Megan Windham eram todos
caraterizados por hesitação, um momento em que ela parecia estar a escolher palavras, a
decidir como responder ou a procurar respostas.
Hamish sabia bem. Como um escocês entre oficiais ingleses, como chefe da sua família,
como um antigo soldado banido entre os colegas veteranos, ele sabia o que as pestanas
baixadas dela realmente indicavam.
Ela estava a assumir o controlo das suas emoções, a ser prudente. A ser implacavelmente
autocontrolada e a um custo que apenas outra alma apaixonada por trás de linhas inimigas
poderia suspeitar.
Um tremor de desejo da batalha perfurou o calor que o beijo de Megan criou, uma
convicção irracional de que só Hamish poderia libertá-la daquele momento de hesitação
que ela causou mesmo num beijo roubado. Ela tocara a face de Hamish primeiro, um gesto
ternurento que o dilacerou até à medula da sua alma solitária.
E então ela armou-se e atacou-o.
Megan pressionou a boca com mais firmeza, e ele rodopiou-a, para que o seu volume
absoluto bloqueasse a identidade da mulher que ousara beijar o Terror de Toulouse.
Megan Windham era um terror por si só, fazendo com que Hamish estivesse à beira de
esquecer o senso comum. Ela atacou-o com tudo – colocou os braços em redor dele,
inclinou-se para o beijo e infiltrou-se num homem que contemplava a rendição completa da
sua inteligência.
– Meggie, não. Você não tem de…
Os seios dela pressionaram contra o peito de Hamish. A mão de Megan deslizou ao redor
da cintura dele para fixá-lo mais a si. Um calor doce e húmido calou o próximo protesto que
Hamish teria feito. Morangos e limões ácidos, ousadia e desejo.
Uma excitação sexual juntou-se a esta batalha – aquela deliciosa e condenável reação
masculina – fortaleceu a honra de Hamish. Ele levantou a cabeça, mas amparou o maxilar
de Megan, de modo que a face dela ficou encostada à renda e ao linho da sua gravata.
– Sua mulher doida, não tem de me beijar para ter as suas cartas de volta. Não é assim.
– Seu homem doido, eu não estou a beijá-lo porque tenho de o fazer. Estou a beijá-lo
porque quero. Largue-me.
Ela falou com os dentes cerrados.
Hamish segurou Megan por mais um momento, porque ele queria, porque precisava,
porque uma breve demonstração de autocontrolo da sua parte era uma boa ideia em todos
os aspetos. Quando ele teve a certeza de que ela não voltaria a beijá-lo – e certeza de que
não voltaria a beijá-la a ela – soltou-a, mas não recuou, para que ninguém a visse.
– O seu cabelo – disse ele, entregando a Megan as luvas de noite compridas, dobradas
sobre a mesa. – É melhor tratar disso. – Ele queria tratar disso – tratar de destruir o que
restava do penteado dela.
Ela passou os dedos pelas mechas do cabelo dele, gestos céleres e presumidos que as
irmãs de Hamish poderiam ter feito, mas nunca fizeram.
– Você está suficientemente apresentável – disse ela, puxando a luva direita. O gesto foi…
oh, Deus o ajudasse, erótico. Megan foi cuidadosa, alisando os vincos ao acariciar o próprio
braço, até apenas alguns centímetros de pele entre o ombro e o cotovelo permanecerem
expostos.
Pele que Hamish quis de repente acariciar com a boca.
– Estou grato ao escocês das Terras Altas que criou a moda de usar o sporran à frente e
no centro com um cinto forte, Meggie Windham. Você dá cabo da sanidade de um homem.
Ela calçou a segunda luva ainda mais lentamente. Uma mulher que espiara os seus
primos e arrombara fechaduras sabia exatamente porque Hamish estava tão grato a esse
excêntrico escocês das Terras Altas.
– Por causa de um beijo? – perguntou ela, a mostrar-se completamente intrigada com a
sua luva.
– Por causa de pensar num beijo. Consigo. Eu parto para a Escócia depois de as suas
cartas serem resgatadas. Se você não tomar cuidado, sequestro-a e levo-a comigo.
Ela passou-lhe as luvas dele e, quando Hamish foi para lhas arrancar das mãos, ela
segurou-as com força.
– Eu gostaria disso, Vossa Graça. Você disse que as Terras Altas são lindas.
Os dois seguraram as luvas dele por um instante, não uma medição de forças, mas uma
variação das antigas danças de maio que uniam um casal à medida que um lenço colorido ia
diminuindo de comprimento.
– Você não gostaria de ser arruinada, alvo de mexericos e desonrada – comentou Hamish.
– Eu falei em tom de brincadeira – uma piada parva. Assim é o humor escocês.
Ele falara do coração.
Ela soltou as luvas dele.
– Leve-me a passear de coche amanhã cedo – pediu ela. – Não espere pela hora
apropriada. Amanhã à noite há a festa dos Henderson, e na noite seguinte estarei presente
no musical de Lady Leighton. Na segunda-feira é o baile dos Halstrops e Sir Fletcher já
reclamou a minha valsa do jantar.
Ela ajeitou o cabelo enquanto falava, os seus movimentos competentes apesar das luvas,
à medida que recolocava os ganchos sem o auxílio de um espelho. Ela não precisaria de um
espelho, pois sem os óculos provavelmente não poderia ter visto o seu próprio reflexo.
– Na segunda à noite resgato as suas cartas, então – prometeu Hamish. – Na terça-feira à
tarde, estarei a caminho da Escócia e os seus problemas acabarão.
Megan hesitou, com um gancho de cabelo dourado nas mãos.
– Tem de se mostrar tão ansioso para partir?
Hamish pegou no gancho, examinou as possibilidades e a sua sgian-dubh apareceu-lhe na
mão no momento seguinte.
– Fique quieta, Meggie Maluca. – Antes que ele pudesse pensar duas vezes, caíram-lhe
dez centímetros de cachos ruivos na palma da mão. Voltou a guardar a faca na meia e
prendeu o cabelo de Megan num laço folgado por trás da orelha. – Por agora serve. Mais do
que serve.
Ela olhou furiosa para Hamish – embora o seu olhar de raiva tivesse um pouco de alegria
– e, em seguida, apalpou o cabelo, ao mesmo tempo que ele guardou os cachos no sporran e
calçou as luvas.
– Até amanhã – despediu-se ela, pendurando a pega de um leque pintado no pulso. –
Agradeço-lhe, Murdoch, por um jantar muito agradável. Peço-lhe que não parta para as
Terras Altas sem me entregar pessoalmente as cartas. A última coisa de que preciso é que
um intermediário me faça perdê-las de novo.
– Eu entregar-lhe-ei as cartas a si e a mais ninguém. – Isso significava que Hamish
partiria para as Terras Altas por volta do meio-dia de terça-feira, o que daria tempo para as
estradas esvaziarem, afinal.
E tempo para que o seu coração se partisse, pelo menos mais uma vez, antes que ele se
retirasse pela Grande Estrada do Norte.
Capítulo 8

– Até para ti essa carranca é feia, Keswick – disse Devlin St. Just, conde de Rosecroft.
– Espera até teres filhos homens – respondeu Keswick quando a multidão em baixo
retomou a dança após o jantar. Filas compridas desta vez, uma dança escocesa ou
provinciana para digerir o jantar. – Nenhuma carranca no mundo é suficientemente feia
para eliminar a irreverência de rapazes adolescentes. Se não fosse a perseverança da minha
condessa ao meu lado, eu estaria uma autêntica desgraça só de pensar nos anos vindouros.
– Estaríamos todos umas autênticas desgraças, exceto as nossas condessas. Como está a
perna?
Louisa acenou do outro lado do salão de baile com a mão esquerda. Keswick fez uma
vénia elaborada. Esse era o sinal deles para «esta será a última dança».
Graças a Deus.
– Os meus ferimentos afligiam-me muito mais antes de a tua irmã tomar conta de mim –
disse Keswick. – Ela faz com que eu coma bem, me exercite quando poderia antes
permanecer à secretária durante horas. Ando a cavalo de manhã quando faz bom tempo –
vens connosco amanhã, não é?
Rosecroft esboçou também uma carranca.
– Já é amanhã. Partam sem mim se não estiver junto aos portões à hora marcada. A
Emmie tem ideias fixas sobre a estupidez de homens crescidos se ausentarem a noite toda
e ignorarem um descanso decente. Se houver tempestade amanhã à noite, terei
inevitavelmente de ler histórias de embalar às crianças e, caso te tenhas esquecido,
Keswick, é arriscado tentar dominar dragões e bruxas.
– Eu já matava dragões, bruxas e monstros marinhos antes de tu aprenderes a tua
primeira cura para o excesso de bebida. – E, ainda assim, a cavalgada de madrugada após o
grande baile de Sua Graça era uma tradição – uma tradição de família – e não devia ser
ignorada de leve ânimo.
Uma Megan Windham sorridente passou rapidamente por eles, a fingir examinar o
desenho do leque.
– Se ela não nos consegue ver – murmurou Rosecroft –, como espera que alguém acredite
que está a admirar as flores do leque?
– Ela viu-nos. Simplesmente ignorou-nos – respondeu Keswick. – Se permanecermos
nesta varanda, daqui a pouco veremos o duque de Murdoch a cambalear por aqui, com o
kilt mal dobrado e uma expressão estupefacta no rosto. A Megan subjugou o pobre coitado
com um beijo ainda nem há dez minutos.
Enquanto isso, Keswick permanecera ali, de costas viradas para os dois combatentes, a
tentar passar despercebido junto aos fetos e a rezar para que Louisa o levasse para casa em
breve.
Mas o que esperara Murdoch ao permitir que uma senhora Windham o levasse para trás
da vegetação?
– Recordei algo sobre o Murdoch – disse Rosecroft quando a orquestra começou a
abertura. – Algo que ouvira há anos, antes de todo o disparate de desobedecer a ordens,
separar-se dos seus homens e ser prisioneiro dos franceses.
Ser prisioneiro dos franceses, em especial depois de ser capturado sem uniforme, não era
disparate nenhum.
– O que ouviste?
– Na Corunha – começou Rosecroft, transmitindo na sua voz o pavor que todos os
soldados ingleses associavam àquele episódio infernal. – Os homens dele conseguiram
alcançar os navios. Ouvi dizer que todos eles e as suas famílias conseguiram alcançar os
navios.
O que queria dizer que, apesar da exaustão, privação, tempestades mortíferas e a
promessa dos franceses de matar quaisquer soldados errantes, Hamish MacHugh
conseguira de alguma forma levar em segurança centenas de soldados, as suas mulheres e
até algumas crianças até aos navios de evacuação.
– Tinha-me esquecido disso – retorquiu Keswick, quando MacHugh – ou melhor,
Murdoch – deambulou por eles, cumprimentando-os com um aceno de cabeça.
Ele estava calmo e arrumado, quando por direito deveria ter-se arrastado por trás
daqueles fetos, tendo em conta a paixão formidável de uma mulher Windham determinada
a beijar um homem até à insanidade.
– Pergunto-me do que mais nos esquecemos acerca dele – comentou Rosecroft. – Dizem
que planeia partir para o Norte, por isso talvez nunca mais tenhamos oportunidade para
descobrir.
Rosecroft foi-se embora, o que significava que Keswick estava livre para solicitar o seu
coche e levar a sua senhora para casa. Primeiro, passaria pela sala de jogo e faria algumas
perguntas casuais àqueles que tinham servido com ele na Península Ibérica, além de outras
perguntas muito casuais.
Murdoch poderia planear partir em breve para o Norte, mas tal como o Sr. Burns
escrevera, os melhores planos costumam malograr-se.

A guerra tornara-se mais divertida no dia em que Sir Fletcher Pilkington escutou um
sargento de artilharia a explicar a um recruta que o objetivo de um exército era avançar. A
luta, a marcha, o cerco serviam todos ao auxílio do avanço. Quando um homem se tornava
um objeto necessário para esse avanço contínuo, esperava-se que ele combatesse menos.
Assim, o sapateiro regimental nunca chegou a ver a ação da linha de frente, pois um
exército precisava de botas. Os artífices que consertaram arreios, cintos, pistolas e coldres
também nunca eram destacados. O escriba, apesar de ocupar uma posição informal,
também ficava de fora dos piores combates, para poder escrever mais testamentos, cartas
para namoradas ou uma ou outra requisição forjada.
As políticas regimentais tinham feito mais sentido a partir daquele dia e as situações que
Sir Fletcher podia compreender, podia manipular para o seu próprio benefício.
– Eu dificilmente esperava vê-lo a dar uma voltinha hoje – comentou um sujeito montado
num cavalo castanho magro. O cavalo estava em forma, embora não fosse elegante, um
pouco como o seu dono. A sela e o freio estavam impecáveis, ainda que desgastados, assim
como as botas e as luvas do cavaleiro.
– Puget – disse Sir Fletcher, oferecendo a versão montada de uma vénia. – Se eu marco
um compromisso, eu cumpro. Vamos então? Não me apetece ser apanhado no desfile de
carruagens hoje.
O ilustre Garner Puget, terceiro filho do conde de Plyne, deu um toque ao cavalo para
avançar.
– Como estão as suas irmãs?
As quatro irmãs de Sir Fletcher estavam fora do alcance de um mero terceiro filho, pelo
menos na opinião do seu pai rico e titulado. Em vez de trair as esperanças de Puget em
relação à mais velha dessas irmãs, Sir Fletcher virou o cavalo em direção a um dos trilhos
menos usados do Hyde Park.
– As minhas irmãs continuam a florescer, obrigado. Lady Pamela estava a perguntar por
si esta manhã. Queria saber porque faltou ao baile dos Windham na noite passada.
– Eu não faltei ao baile dos Windham. Estive presente até à valsa de boa noite.
Sem dúvida na esperança de que Sir Fletcher negociasse uma das danças de Pamela para
o pobre tolo. Mas, tirando um momento de distração com uma viúva rechonchuda numa
sala de visitas sem uso, Sir Fletcher estivera demasiado ocupado a observar vários
Windham e bêbados.
– A Pamela deve ter sentido a sua falta – disse Sir Fletcher. – Ela é muito procurada pelos
nababos e homens da cidade. Eles preferem uma senhora com um título.
Puget permaneceu em silêncio diante daquela provocação. Ele não era uma alma loquaz,
mas a sua habilidade com uma caneta era considerável.
– Preciso que você me redija umas notas de crédito – disse Sir Fletcher enquanto os
cavalos avançavam. – Nada extravagante. Umas libras aqui e ali.
– Você disse que estava praticamente noivo de uma Windham. Porque não faz como
outros filhos mais jovens fazem e explora as suas expetativas?
Se eles tivessem estado no exército, Sir Fletcher poderia ter enviado Puget para o meio
da batalha, e Puget não teria escolha senão ir, tal era a disciplina dos militares britânicos.
Infelizmente, a guerra terminara, mais ou menos, e ameaças vagas num trilho frondoso
eram as melhores que Sir Fletcher podia fazer.
– Você é um sujeito perspicaz, Puget – respondeu Sir Fletcher. – Pense nisso: um homem
de boas famílias, com uma reputação impecável e excessos de charme e sofisticação, pode
ter permissão para cortejar uma mulher de estatuto adequado. Isto normalmente não é
uma questão de proclamação pública, embora a senhora saiba que foi reclamada.
Sir Fletcher recebera esse permissão primeiro com Sally Delaplane e depois com
Hippolyta Jones. Em ambos os casos, ele explorara as suas expetativas de forma bastante
exuberante e precisou da ajuda do seu pai para evitar mendigar. O conde deixara claro que
não haveria mais ajuda e os comerciantes estavam a ficar impacientes. Sir Fletcher
encontrara as cartas antigas de Megan Windham na altura certa.
– Eu estou familiarizado com o protocolo do cortejo, Sir Fletcher. – Puget avançou com o
seu cavalo por um estreitamento no caminho e, em vez de segurar um galho fino de
carvalho que bloqueava o caminho, deixou que ele batesse no peito de Sir Fletcher.
Esta pequena indelicadeza satisfez Sir Fletcher como um surto de palavrões de Puget
nunca satisfaria.
– Tenho toda a confiança que você precisará em breve do protocolo do cortejo, Puget. Em
qualquer caso, entre obter permissão para cortejar a Menina Megan Windham e
comprometer-me com ela, haverá investigações.
– Você é filho de um conde. As investigações serão principalmente acerca da situação da
sua família e a contribuição dela para os acordos matrimoniais.
Sir Fletcher esperava de facto que esse fosse o caso, mas a esperança era para os tolos
quando, em vez disso, um homem podia planear. O objetivo de um exército era avançar.
– As finanças da família estão em ordem – respondeu Sir Fletcher. – As despesas de uma
temporada social, no entanto, excedem os meios de um celibatário e, portanto, eu tenho
necessidade imediata de as liquidar.
Mais dívidas, por outras palavras, na maioria delas aos comércios, outras na forma de
notas promissórias. O duque de Moreland, o seu irmão e o seu batalhão de filhos e genros
ficariam muito facilmente a saber disso tudo.
– Todos os cavalheiros têm dívidas e você tem uma para comigo – lembrou Puget. – Eu
não dancei nem uma vez com Lady Pamela desde o mês passado e você disse que ela
procurava parceiros de dança. Ela esteve quatro vezes sem parceiro ontem à noite, Sir
Fletcher.
Aquilo era muita vez, até para a Simples Pammy.
– Estratégia, meu bom camarada. Quando você dançar com ela na próxima vez, a minha
madrasta estará desesperada para manter Lady Pamela a dançar. Até mesmo o meu pai
ignoraria a presunção de um filho mais jovem pobretanas quando a minha madrasta lhe
explicar isso desta maneira.
Aquilo era puro disparate, mas Sir Fletcher conhecia as circunstâncias de Puget e, de
facto, causara algumas dessas circunstâncias. Disparate era o máximo de consideração que
Puget receberia do seu ex-oficial de comando.
– Quanto e de quem? – perguntou Puget.
– Quinze libras devem bastar – disse Sir Fletcher. – Talvez quinze ou vinte cada, do
Quimbey, do Barchester e, digamos, do Hancock. A abordagem habitual pode servir. Os
cavalheiros apostaram um pouco de mais quando já estavam com os copos e eu beneficiei
muito da má sorte deles no jogo. O meu homem de negócios passará discretamente uma
livrança assinada diante dos homens de negócios deles e as minhas finanças ficarão em dia.
– Você é estúpido – explodiu Puget, virando no entroncamento à esquerda no trilho. – O
Quimbey nunca foi visto bêbado em público antes mesmo de se casar. O Barchester é um
cachaçudo, confesso, mas ele não tem nem vinte libras para lhe pagar. O Hancock nunca
aposta muito e eu nunca vi uma amostra da sua caligrafia.
Ali estava o momento que Sir Fletcher mais gostava, quando a arrogância levava as
pessoas justamente desprevenidas na direção que Sir Fletcher pretendia que elas fossem.
– Você é o especialista em caligrafia. Diga-me de quem se pode duplicar notas
promissórias com mais credibilidade.
Não forjar. Puget ficou furioso com a menção da palavra, e com toda a razão, pois a
falsificação continuava a ser um crime punível por enforcamento.
– Porque não um Windham? Eles estão irritantemente bem de vida, você deve ter jogado
com alguns deles de vez em quando. Como filhos de um duque, eles escrevem tipicamente
em copperplate.
Puget tinha uma habilidade estranha de avaliar o caráter de uma pessoa baseado na
caligrafia e a caligrafia baseada no caráter.
– Eu evito-os porque são Windham – respondeu Sir Fletcher. – O Moreland administrará
as negociações dos acordos matrimoniais como chefe da família Windham. Isso é o mais
próximo de um duque superprotetor que eu gostaria de estar.
Sir Fletcher deixou Puget analisar as possibilidades em silêncio. Era muito melhor ser o
próprio falsificador a sugerir quem devia ser a próxima vítima.
– O tenente Lorde Hector Pierpont – disse Puget. – Bebe um pouco mais do que deveria, é
ex-soldado, teve uma educação típica e frequenta a mesma cafetaria em Grosvenor que eu.
Já vi as notas promissórias dele vezes suficientes para replicar a sua caligrafia.
– Arranjou uma solução brilhante, como de costume. Não duvido de que, na noite de
segunda-feira, a Pamela aproveitará a sua companhia inteligente por pelo menos a duração
de um minuete.
– Eu quero uma valsa, Pilkington, de preferência a valsa do jantar.
Sir Fletcher, embora os tolos apaixonados tenham direito aos seus dramas mesquinhos.
– Vai redigir a livrança para as cinquenta libras?
A expressão de Puget tornou-se gratificantemente desesperada, depois determinada. Ele
era o melhor tipo de criminoso, sendo relutante e altamente competente.
– O Pierpont pode suportar a despesa – disse Puget – e se você lhe sacar o valor total, ele
pode ficar menos disposto a embebedar-se quando voltar a jogar.
Um criminoso relutante e competente com uma consciência conturbada. O que poderia
ser melhor?
– Tenho a certeza de que você está certo. Está a fazer-lhe um favor, dito dessa maneira. O
pobre coitado deveria agradecer-lhe por alertá-lo acerca de excessos ainda maiores do
vício.
Tal era o talento de Puget, o pobre coitado nunca saberia que fora roubado. Sir Fletcher
enviaria o seu homem de negócios para falar com Pierpont. Seguir-se-iam cortesias, um
cheque bancário seria entregue em troca de uma livrança extraordinariamente forjada.
E assim resolvia-se um problema. O exército avançaria sem uma gota de sangue
derramado.
– Lady Pamela considerará favoravelmente o seu pedido para a valsa do jantar no baile
de segunda-feira – disse Sir Fletcher.
Uma única valsa era pouca consolação pelos anos que Pamela passaria a deambular por
vários salões formais e salões de baile para ajudar os interesses de um velho barão
qualquer, para não falar das noites que passaria na cama dele.
Geneva, sendo a mais jovem e mimada, poderia esperar um destino mais feliz. Se tivesse
sorte, o conde atual faleceria antes que ela atingisse a maioridade – um pensamento
animador.
– Não é aquela a sua pretendida? – perguntou Puget quando os cavalos saíram para uma
via mais ampla.
Para lá da sebe e do outro lado de um relvado, Megan Windham estava sentada no banco
de um faetonte ao lado de um homem grande de kilt. Ela criava uma imagem bonita,
embora um pouco nervosa, mas, também, Megan era tão tímida quanto um alferes imberbe
a zarpar para Catai.
– A coitada pelos vistos fez mais uma vez uma oferta de caridade – disse Sir Fletcher –,
pois aquele é o novo duque de Murdoch nas rédeas. Creio que Sua Graça está a puxar
aquele faetonte com cavalos de tração.
Os animais usados combinavam pelo menos, ambos castanhos com quatro patas brancas,
mas estavam longe de ser os cavalos elegantes holandeses que se esperava que um duque
conduzisse.
– O Hamish MacHugh é dono de duas cervejarias prósperas – replicou Puget, virando
novamente o seu cavalo para a esquerda. – Ele lutou como um louco pela Grã-Bretanha,
independentemente dos mexericos na messe sobre conduta imprópria de um oficial ou
deserção. Por mim, ele pode conduzir qualquer animal que ele quiser.
– A Megan não está a usar aqueles óculos medonhos, por isso não consegue vê-lo a si,
Puget – disse Sir Fletcher gentilmente. Puget vira muita da caligrafia de Megan e, para ele,
isso equivalia a espiar a alma de uma pessoa – uma maldição, quando um homem era
atormentado por uma consciência.
– Ela está sentada muito perto do duque para uma mulher que presta caridade –
comentou Puget. – Mas, também, o Murdoch ocupa muito espaço do banco. Eu vi-os sair na
semana passada com alguns dos primos dela. Isso deixa-o nervoso?
Puget apreciaria a ideia de que as perspetivas matrimoniais de Sir Fletcher eram frágeis.
– A Megan nunca me enganaria. – Sir Fletcher não precisou de dizer mais nada, não a
Puget.
O faetonte passou ruidosamente a dezoito metros de distância, um veículo
incongruentemente delicado, puxado por enormes cavalos com os pés peludos e as cabeças
grossas dos espécimes menos refinados alguma vez definidos como equinos. O cenário
deveria ter sido risível, mas com um duque nas rédeas, ninguém escarneceria em público.
– Não subestime o escocês – disse Puget. – O Hamish MacHugh desobedeceu a ordens
diretas e os generais deixaram-no em paz porque os franceses tinham pavor dele. Os meus
homens disseram que, quando os franceses o apanharam, deixaram-no ir porque ele era
muito perigoso para manter preso. Todos os escoceses do exército teriam vingado
pessoalmente a morte do MacHugh dez vezes se os franceses lhe tivessem feito mal.
Se um exército pudesse avançar com a força dos mexericos dos soldados, Wellington
teria sobrevoado toda a Espanha no espaço de uma semana.
– Os escoceses gostam de matar coisas, Puget, e se ninguém mais lhes fizer a vontade,
eles matam-se. Os franceses exageram e, se alguém precisar de recordar a natureza
violenta de Hamish MacHugh, eu, que presenciei a sua brutalidade em primeira mão, terei
todo o prazer em ajudar.
Sir Fletcher fizera exatamente isso nas salas de jogo na noite anterior. Nunca fez mal
relembrar os velhos tempos com os colegas veteranos, afinal de contas. O irmão mais novo
de MacHugh acompanhava-o nesta viagem a Londres e Sir Fletcher tinha a sensação
insistente de que esse indivíduo causaria problemas.
Sir Fletcher certa vez mandara Colin MacHugh partir do acampamento numa caça aos
gambuzinos – uma brincadeira típica entre oficiais entediados – e a coisa toda correra mal.
Todos na messe tinham concordado que os escoceses careciam singularmente de humor
cavalheiresco.
– A Menina Megan pode ser demasiado boa para o escocês – disse Puget –, mas ela
merece melhor do que você.
– Claro que merece – respondeu Sir Fletcher, pois chegara a hora de acabar com este
passeio. – Todas as mulheres merecem mais do que o destino que a vida lhes proporciona, e
é por isso que serei um excelente marido para ela. Estou consciente da boa sorte que me
espera.
Megan não estava exatamente a sorrir no seu lugar ao lado de Murdoch, mas tal era o seu
requinte que ela também não parecia triste. Sem os óculos horríveis, era bastante bonita,
apesar daquele cabelo ruivo.
– Você está muito certo do seu futuro – disse Puget, aproximando-se do barulho e da
agitação de Park Lane. – Tenho a certeza de que os Windham terão preferência no seu
interesse.
– Vou encontrar-me com o pai da senhora na segunda-feira à tarde, e espero convencer
sua senhoria de que ofereço à Megan uma união de amor, na grande tradição dos Windham.
Ela é uma solteirona míope de cabelo ruivo. Ela sabe que poderia arranjar muito pior.
Especialmente se tentasse recusar a proposta de Sir Fletcher.

A tarde de segunda-feira de Megan não correra bem e a noite estava a transformar-se num
desastre.
– Por favor, reserve uma dança para o Garner Puget – disse Sir Fletcher, curvando-se
sobre a mão dela. – Se ele é visto a dançar com uma Windham, então já não parecerá muito
presunçoso por se impor a Lady Pamela.
Megan fez uma reverência, embora o cansaço lhe pesasse nos membros. A temporada
social era exaustiva e, nas últimas noites, dormira muito mal. Garner Puget era um bom
dançarino, embora tivesse uma expressão infeliz e pouca conversa.
– As anfitriãs e as casamenteiras normalmente decidem dividir os solteiros pelas «flores
de parede» – comentou Megan quando a orquestra iniciou a abertura da valsa do jantar. –
Lady Halstrop e as irmãs dela são conscienciosas a esse respeito.
Tão conscientes como os abutres famintos que voam sobre um campo de feno
recentemente ceifado. Nenhum cavalheiro solitário ficaria de fora de uma dança se as
casamenteiras pudessem evitá-lo. Megan vira o duque de Murdoch a rodopiar na pista de
dança no início da noite, embora já não durante a última hora.
– Se a sua atenção estivesse mais fixa naquele relógio – comentou Sir Fletcher –, eu
pensaria que você tinha um encontro, Megan, minha querida.
Megan tinha um encontro. No dia seguinte de manhã, ela esperava desesperadamente
receber Murdoch no melhor salão da sua mãe e receber de Sua Graça todas as cartas que
ela escrevera a Sir Fletcher Pilkington.
– Estou cansada – murmurou ela. – Sem ofensa à companhia presente, mas doem-me os
pés. – Tal como a cabeça e o coração.
A valsa começou, Sir Fletcher aproximou Megan demasiado de si e lá foram os dois a
dançar. Para qualquer pessoa que observasse, Sir Fletcher era um sujeito vistoso e
apaixonado, discretamente arrebatado pela senhora nos seus braços. Ele sorria docemente,
o seu olhar era dedicado e a parceria na dança era apenas um pouco presumida.
Megan queria presumir a sua última chávena de ponche em cima da gravata dele branca
como a neve.
– Pobre queridinha – sussurrou Sir Fletcher, suficientemente alto para os casais
próximos ouvirem. – É claro que você está exausta. Se preferir sair da pista de dança,
podemos desfrutar dos jardins.
Credo, não. Megan sabia do que Sir Fletcher era capaz num jardim iluminado pelo luar ou
num recanto isolado.
– Se eu ficasse de fora numa dança, não seria a valsa. – Não a valsa prometida a Sir
Fletcher em qualquer caso. – Lady Pamela está a dançar com o Senhor Puget agora?
– Você realmente não consegue vê-los? – perguntou Sir Fletcher, com um tom bastante
desapaixonado.
– Lady Pamela esta noite traz um leque azul e um vestido cor de pêssego, por isso
presumi que fosse ela. Não consigo distinguir feições de rosto a essa distância. – Megan
percebeu que a sua admissão incomodou Sir Fletcher.
– Trate de não passar essa visão miserável aos meus filhos – comentou ele. – Contanto
que você me dê filhos, o meu pai será generoso comigo, mas eu não gosto da ideia de os
meus filhos usarem óculos azuis.
Então case-se com outra pessoa. Megan não podia dizer isso, não enquanto não tivesse as
cartas de volta.
– Eu sou a única Windham com uma deficiência significativa de visão ou qualquer outra
faculdade, Sir Fletcher. – Anwen era extremamente tímida, mas as mulheres tímidas tinham
bebés saudáveis a toda a hora. – Você não precisa de se preocupar com o facto de essa
peculiaridade aparecer na sua progenitura.
Na progenitura de Megan, talvez.
– Você parece mesmo cansada – admitiu Sir Fletcher, rodopiando Megan por baixo do
seu braço. – Não está a pensar fugir para Gales com os seus pais, pois não?
Bem, sim, ela pensara nisso. Quando Sir Fletcher se trancara numa sala com o pai dela
durante meia hora no início do dia, Megan estivera preparada para fugir para qualquer lado
em vez de arriscar a aparecer para o baile desta noite.
– Os meus pais preferem fazer essas viagens sem o benefício da companhia das filhas. –
Ela usou a roda seguinte para recolocar uma distância adequada do seu parceiro.
– É imaginação minha ou há mais Windham à vista nesta temporada do que em anos
anteriores? – Sir Fletcher brandia o seu sorriso de novo, enquanto o seu olhar permanecia
calculista. – Eu vi mais vezes o Keswick, o Rosecroft, o Deene e os seus primos nas últimas
duas semanas do que durante toda a temporada do ano passado.
Megan tinha as suas suspeitas sobre o que Murdoch chamara a uma reunião do clã
Windham. A sua teoria deveria deixar as suas irmãs nervosas, pois certamente não era um
alívio para ela.
– Eu não sou a única solteira da família Windham – ripostou ela. – Suas Graças levam os
assuntos casamenteiros a sério, e provavelmente reuniram a família com essa situação em
mente.
Sir Fletcher soltou a gargalhada pública e preciosa que fazia as entranhas de Megan
revolverem-se, principalmente porque ela não dissera nada de engraçado.
– Você não ficará solteira por muito mais tempo, minha querida. Eu reuni-me com o seu
pai hoje.
E o pai, aquele desgraçado, nem sequer avisara Megan de que a visita estava marcada.
– O papá ainda não me informou da natureza da vossa conversa. Se as minhas irmãs não
me tivessem falado da sua visita, eu não saberia que tinha vindo.
Sir Fletcher guiou Megan muito perto do limite da pista de dança, pois ela quase
esbarrou com Joseph, conde de Keswick.
– Então você vai arranjar tempo para conversar com o seu pai em privado – exigiu Sir
Fletcher – e antes que ele parta com a sua mãe para o interior galês. É uma vergonha, um
casal daquela idade a fazer uma viagem anual de casamento. Eu e você teremos mais
decoro, assim que me der alguns filhos.
Sim, Sir Fletcher. Imediatamente, Sir Fletcher. Três meninos saudáveis no Natal, Sir
Fletcher.
Ele veria, com todo o gosto, Megan morrer no parto, se isso significasse que superaria os
seus irmãos na competição para providenciar ao velho conde um potencial herdeiro.
Quando Megan tentara dormir na noite anterior, concluíra que a impetuosa sedução de Sir
Fletcher anos atrás tivera mais a ver com essa competição do que preparar-se para a
subsequente chantagem.
Westhaven passou por eles a rodopiar com a sua condessa nos braços. Megan
reconhecia-os pela forma como dançavam como um casal, pela sua absoluta unidade de
movimento.
– Eu desconheço o horário do meu pai, Sir Fletcher. Tenho estado à disposição dele, mas
você tem de admitir a ideia de que sua senhoria tem uma mente própria. Ele é filho de um
duque, afinal de contas.
A verdade relevante era ainda mais simples. O pai e a mãe eram parceiros em todos os
assuntos importantes, e o pai não teria dado permissão a Sir Fletcher para cortejar Megan
sem antes consultar a mãe.
E a mãe, a sua alma fosse abençoada por toda a eternidade, andava preocupada com os
preparativos para a viagem iminente.
– O Lorde Anthony irá discutir consigo a aceitabilidade da minha corte? – Sir Fletcher
parecia intrigado com essa ideia.
É claro que o pai discutiria.
– A minha mãe pode tê-lo em mente para uma das minhas irmãs, ou ter outro arranjo sob
consideração para mim. Se o papá não lhe deu uma resposta direta, ele teve as suas razões
para isso.
Sir Fletcher observou Megan durante duas frases de oito compassos. A valsa era em tom
menor, o que tornava a dança mais dramática e assombrosa. Ela nunca mais ouviria esta
melodia sem sentir uma sensação de pavor a roçar o pânico.
– Você vai falar com o seu pai durante o pequeno-almoço amanhã – declarou Sir Fletcher.
– Insista em saber porque me encontrei com ele, expresse o seu apoio arrebatador pela
minha corte. Tem de haver um anúncio em breve, e uma data marcada não muito depois
disso, para eu poder meter um bebé na sua barriga antes de a caça começar em agosto.
Encantador. Primeiro faz mira na esposa e depois na perdiz. Um bom conjunto de
prioridades. Sir Fletcher não largaria Megan nem por um segundo assim que se casasse
com ela, e nenhum poder terreno poderia salvá-la das exigências dele.
– Farei o meu melhor para abordar o papá na próxima oportunidade que tiver. – Megan
também faria os possíveis para garantir que tal oportunidade não surgisse.
A valsa ascendeu em direção ao seu crescendo final, o que deu a Sir Fletcher uma
desculpa para se aproximar. Ele cheirava a rosas, mas subjacente a isso Megan captou suor
seco e tabaco mofado. O hálito dele era horrível e, ao dançar tão perto, Megan conseguia ver
que as mechas douradas de Sir Fletcher já tinham começado a retroceder.
– Eu considerei comprometê-la – disse ele –, no interesse de dispensar toda este
fingimento e presunção. Ainda posso. Os meus credores não são muito pacientes.
O pânico tornou-se real por um instante, como se todo o ar desaparecesse dos pulmões
de Megan, toda a razão abandonasse a sua mente. A fuga cega da pista de dança e até de
Inglaterra pareceu-lhe a única solução para os problemas que a sua falta de juízo criara.
Ela estava prestes a arrancar-se dos braços de Sir Fletcher – que escândalo isso causaria!
– quando a sanidade se reafirmou. Naquele exato momento, Murdoch poderia já ter
recuperado as suas cartas. Ela poderia ter-se libertado graças aos bons e furtivos ofícios de
um aliado em que ela nunca poderia ter previsto confiar ainda há duas semanas.
– Você já me comprometeu, Sir Fletcher – ripostou Megan. – Anunciar esse facto agora
refletirá na sua família e também na minha. Você tem irmãs solteiras, assim como irmãos
mais velhos que precisam de esposas, e está a uma dança de distância de ser rotulado como
um caça-dotes. Mostre que é o irmão mais novo estouvado e o seu pai pode muito bem
deserdá-lo. Moreland poderia mandar-me para a província para me arrepender dos meus
supostos pecados em vez de nos conceder permissão para casar.
A dança chegou ao fim e Megan executou a reverência esperada. Sir Fletcher puxou-a
para cima e esperou enquanto outros casais saíam da pista de dança.
– Que coisinha tão sensata que você é – disse ele, acariciando-lhe a mão. – Eu, claro, já
ponderei esses fatores, e é por isso que aguardo a permissão do seu pai para lhe fazer a
corte. Trate de recompensar a minha paciência, minha querida, se não será pior para si. Eu
posso espalhar boatos suficientes para lhe arruinar a vida sem criar um escândalo
imediato.
O sorriso dele foi indulgente, as carícias dele na mão de Megan arrepiaram-lhe a pele. Ela
rezou pelas habilidades de Murdoch como ladrão e retribuiu o sorriso.
Capítulo 9

A memória de Megan Windham relativamente à residência dos Pilkington fora


abençoadamente precisa. Ela desenhara um mapa a Hamish, até ao pormenor de onde
havia um quadro de espadachins num duelo e de que lado estavam os acessórios da lareira
na biblioteca.
Era um barulhão quando as pinças de ferro forjado tombavam no chão de tijolo.
A terceira janela que Hamish tentou abrir – a da salinha de estar – estivera mal fechada,
por isso fora fácil rodar o ferrolho. O resto fora uma questão de se içar, torcer e praguejar
baixinho ao mesmo tempo que rezava para que o soalho não rangesse.
A secretária da biblioteca estava trancada, o que deu esperança a Hamish de que, de
facto, as cartas de Megan estavam lá guardadas. Inserira uma palheta no buraco da
fechadura e iniciou o processo delicado de soltar o mecanismo quando se ouviu uma
pergunta na escuridão.
– És um ladrão?
Hamish endireitou-se lentamente, perscrutando as sombras da biblioteca escurecida.
– Claro que não, menina.
A rapariga transferiu a sua boneca de uma anca para a outra. Hamish diria que ela tinha
sete anos. Demasiado velha para chuchar no dedo, demasiado nova para não ter medo
nenhum do escuro. A sua camisa de noite era como um lençol branco na escuridão e o seu
cablo loiro refletia o luar que passava pela janela da biblioteca.
Uma fada mágica, e todos os escoceses sabiam que as fadas eram a personificação das
travessuras.
– Se não és um ladrão, o que és?
Hamish estava em apuros. Grandes e horríveis apuros.
– Sou o novo lacaio. Chamo-me Thomas. Comecei a trabalhar hoje.
A rapariga entrou na biblioteca aos saltinhos, com um grande sorriso nos lábios.
– Porque não estás de libré?
Uma criança esperta – maldita sorte.
– Eu sou muito grande. Teve de se mandar fazer outro fato, e ainda não chegou do
alfaiate. Que linda boneca. Como se chama?
– Harold. Ela é obstinada, como eu. Eu sou Lady Geneva. Porque está escuro aqui,
Thomas?
– Poupa-se dinheiro se não acender as velas quando a família está ausente. A pequena
Harold já não devia estar na cama, milady?
Ela baixou as pestanas delicadas.
– Vais denunciar-nos?
Antes de Hamish se tornar soldado, antes de ser chefe de família, dono de uma cervejaria,
duque ou qualquer outra coisa, ele fora um irmão mais velho.
Graças aos deuses, sabia o que aquela criança queria.
– Eu poderia ser despedido se não fizer o meu dever e informar dos passeios da menina –
disse ele, agachando-se para falar com ela ao nível dos olhos. – Eu não gostaria de ser
despedido. A minha família ficaria desiludida se eu perdesse já o meu novo emprego, mas a
Harold não devia deambular pela casa sozinha.
Lady Geneva subiu para um sofá, colocando-se de pé, descalça, sobre as almofadas.
– Tens irmãs mais velhas?
– Irmãs mais novas, milady. As suas irmãs são mais velhas?
Ela soltou um suspiro tão profundo que não deveria sair de uma pessoa tão pequena.
– Elas podem sair para dançar, e os meus irmãos também vão, mas jogam às cartas e por
vezes dói-lhes a cabeça. Sabes jogar às cartas?
– Já joguei uma vez ou outra. Um dia a menina também irá dançar, Lady Geneva. Terá
vestidos bonitos e aventuras.
Vestidos apenas não bastariam para esta aqui, Deus ajudasse os pais dela.
Ela balançou Harold numa grande volta, como se a rodopiar numa pista de dança, e quase
derrubou um abajur.
– Eu quero valsar no Almack’s – disse ela. – E a Harold também. Eu sou muito bonita. O
papá está sempre a dizer-me isso. A mamã já foi bonita, e as minhas irmãs têm vestidos
bonitos. Elas querem casar-se.
– A Harold quer casar-se?
– Não! – Geneva pontuou a sua resposta com alguns saltos enfáticos nas almofadas do
sofá. – Ela quer um pónei só seu, para não ter de esperar que o Fletcher a leve no cavalo
dele, para andar de um lado para o outro pelos estábulos com ela. O Fletcher é o meu irmão
mimado. O Frank é preguiçoso e o Theodore é uma desilusão. O Martin é o herdeiro. Devo
chamá-lo Lorde Paltrow.
Hamish apanhou a criança a meio de um salto e fixou-a na sua anca.
– Irmãos mimados são um horror. Eu não tenho nenhum, e dou graças por isso. Espero
que a menina não seja mimada.
– Ainda não. A Harold também não é, mas às vezes fica brava. – Geneva dedilhou a lapela
do casaco de Hamish – uma veste escura para uma missão no escuro. – O Fletcher esquece-
se. Ele diz que me vai levar no cavalo dele, e depois vai-se embora e esquece-se. É muito
ocupado.
Ora aí está um eufemismo.
– Não deveria levar a Harold de volta para a cama antes que um dos seus irmãos ou irmãs
cheguem a casa e descubram que saiu do quarto de dormir?
– Tu cheiras bem. Sabes dizer as horas, Thomas?
– Um dos poucos talentos que posso admitir com confiança, vossa senhoria, e eu sei que a
menina já devia estar na cama.
Um gato grande de pelo comprido entrou na biblioteca, com a cauda levantada no ar. O
animal cheirava aqui e ali, como um gato faria.
– É o Lúcifer. É o gato da Pamela. O Fletcher diz que o Lúcifer é familiar dela.
– Familiar com ela, quer a menina dizer. Ele é muito grande. Parece que toda a gente
digna de se conhecer ainda está acordada nesta casa.
Geneva pousou a cabeça no ombro de Hamish.
– Eu gosto de ti, Thomas. A Harold também gosta de ti. Lês-me uma história?
Ora, raios.
– É por isso que veio até à biblioteca? Para encontrar uma história?
Na rua diante da casa passou um coche ruidosamente, o som nítido àquela hora
sossegada.
– Eu não consigo ler no escuro – disse Geneva –, mas gosto de ter um livro comigo, para
colocar debaixo da almofada. A Harold também gosta de saber que as nossas histórias estão
por perto.
O gato esfregou-se nas meias de Hamish e, se o maldito animal pudesse ter falado,
provavelmente teria pedido que lhe trouxessem comida da cozinha e lhe acendessem a
lareira.
O som de cascos calçados a baterem nas pedras da estrada abrandou e em seguida parou
quando o coche alcançou a esquina.
– Tenho de insistir que volte para o quarto, milady. A hora já é tardia e precisa de dar um
bom exemplo à Harold. Talvez amanhã ela possa montar as costas do Lúcifer se ele estiver
disposto a isso.
– O Lúcifer não gosta dessa brincadeira. Ele arranhou-me da última vez que tentámos
brincar e o Fletcher disse que foi bem feito. A minha ama é uma esponja. Acho que quer
dizer que ressona.
– Mais ou menos isso – disse Hamish, pousando a criança no chão. – Tenho de ficar aqui
no meu posto na biblioteca até a sua família chegar a casa e a menina tem de avisar a
Harold para não deambular pela casa a horas tardias. Ela pode entalar os dedos, esfolar as
canelas ou cair pelas escadas abaixo.
– Eu e a Harold deslizamos pelo corrimão.
– Claro que sim.
O bater de cascos que parara abruptamente soava cada vez mais alto, como se o coche
que passara mesmo agora pela casa estivesse a subir o beco.
– É o nosso coche – disse Geneva, a correr para a janela. – Eu conheço o som do nosso
coche.
– Então vá imediatamente para a cama com a Harold.
– As minhas irmãs vão contar-me tudo sobre quem dançou a valsa e quem esteve com os
copos – disse ela, a dar mais um rodopio. – Boa noite, Thomas! Espero que o teu libré
chegue depressa.
Ela foi-se embora rapidamente com mais uma pirueta, a segurar Harold pelo braço. Os
pés de Harold roçaram a lareira e bateram no topo do suporte de todos os utensílios de
ferro forjado da lareira, derrubando tudo na direção do chão de tijolo.
No mesmo instante, Lúcifer decidiu esfregar-se outra vez nas meias de lã de Hamish e
quando Lady Geneva e a sua boneca desapareceram pela porta da biblioteca, Hamish
moveu-se para o suporte dos utensílios, acabando por se desequilibrar quando o gato se
embrulhou nos pés dele.

***

– Murdoch! – Megan não podia gritar pelo jardim, caso contrário acordaria uma irmã ainda
a dormir na casa, mas o maldito homem não respondeu ao seu título. – Hamish MacHugh!
Isso chamou-lhe a atenção, mesmo quando ele estava prestes a subir para cima da sela.
– Menina Megan. Bom dia. Disseram-me que não estava em casa.
Megan olhou para a esquerda e para a direita para se certificar de que não havia
vizinhos, irmãs ou pais inconvenientes a passarem pelo beco e depois atravessou a estrada
para guiar Sua Graça pelo portão do jardim.
– Por favor, passeie o cavalo do duque – disse Megan para o lacaio. – Só nos demoramos
uns minutos.
O lacaio, que conhecera Megan desde que ela caíra do seu primeiro pónei, nem sequer
pestanejou, lançando em seguida as rédeas do cavalo sobre a cabeça do animal e levando-o
consigo.
– Não faça cara de quem acabou de perder o único meio de escapatória – disse Megan. –
Eu disse aos criados que estava indisposta porque ando a evitar o papá. Porque está a
coxear?
– Tive um pequeno contratempo. Caí sobre, ah, a anca e uns tijolos malvados
ampararam-me a queda.
Ele estava a ser estoico, ou escocês, ou simplesmente homem.
– Provavelmente ficará negro durante meio ano, e eu assumo que seja minha culpa. Estou
destinada a colocá-lo em situações incómodas. Este último ferimento aflige-o muito?
Apenas um sério desconforto teria desprovido Sua Graça do seu porte militar. Megan
fechou o portão do jardim depois de entrarem e levou-o até à fonte rebaixada no recando
mais longe. A fonte estava cercada por sebes – cada lado com madressilvas, arbustos, lilases
e rosas em treliças. Os arbustos erguiam-se entre a fonte e a casa, o que assegurava uma
boa dose de privacidade.
– Isto porá tudo em ordem – disse Murdoch. – Tenho as suas cartas, Menina Meggie, e
isso é o que importa. – Ele extraiu um embrulho de papéis dobrados de um bolso interior e
estendeu-o para ela. – Não as contei nem sequer olhei para elas, por isso é melhor
certificar-se de que estão todas aí.
Mesmo que o rei Jorge, toda a 82.ª infantaria e os maiores mexeriqueiros de Mayfair
estivessem a espiar por cima das vedações do jardim, Megan não se teria contido de
envolver o duque num abraço.
– Obrigada – disse ela junto à lã da jaqueta dele. – Obrigada, obrigada, obrigada. Obrigada
não basta, não expressa o que… Oh, raios, odeio chorar.
– Também eu – disse Murdoch, a abraçá-la também. – Por vezes, as lágrimas têm de cair.
Megan chorou de vergonha, que se arrastara durante demasiado tempo e afetara
demasiado o seu coração, e de alívio e de pura alegria, por ter encontrado um paladino que
derrotara Sir Fletcher tão convenientemente.
– Quero parar à porta de Sir Fletcher e gritar insultos grosseiros – disse Megan, a aceitar
um quadrado de tecido simples do duque. – Eu nunca grito.
– E nunca é grosseira – respondeu Murdoch, passando a mão levemente pelo cabelo de
Megan –, mas quando se derruba um cerco que pensamos que nunca acabará, só gritos
insultuosos servirão – ou pior.
Por um instante estranho, Megan teve a sensação de que o abraço se tornara mútuo,
como se tivesse trancado os braços à volta de Murdoch num excesso de emoção e
provocado uma reação emocional nele. Relaxou o abraço, mas não o largou.
– O Rosecroft diz que os cercos eram horríveis – disse ela – e que o que se seguia era
ainda pior. Consigo compreender um pouco porquê. Tenho as minhas cartas, e agora quero
roubar algo a Sir Fletcher para reaver o resto do que ele tentou tirar-me.
Murdoch afastou-se.
– A brutalidade na vitória apenas lhe daria motivo de remorsos, Menina Meggie. Eu
preferiria repetir a marcha até à Corunha do que viver dois minutos do rescaldo de
Badajoz.
Megan mal conseguia reconciliar esta advertência gentilmente falada com o cavalheiro
extraordinariamente trajado diante de si. Os olhos de Murdoch diziam que sabia tudo sobre
brutalidade na vitória, e no cativeiro, e todos os lugares entre ambos, e ela odiou mais isso
do que odiava Sir Fletcher Pilkington.
O abraço do duque dissera outras coisas – sentimentos doces e preciosos que Megan
queria saborear tanto quanto queria desfrutar da vitória sobre Sir Fletcher.
– Por favor, sente-se comigo – disse ela, a escolher o branco por trás da sebe mais alta. –
Tem de me contar as cartas, porque tenho as mãos a tremer.
Murdoch tirou o embrulho do banco onde Megan o largara e fez aparecer um frasco de
um bolso interior.
– Um golinho para acalmar os nervos.
O frasco estava quente do calor corporal dele e exibia uma gravação de um unicórnio
galopante envolto em cardos.
Megan desatarraxou a tampa e passou o recipiente aberto sob o nariz.
– Isto é uísque. – Os soldados bebiam uísque.
– O Colin é dono de uma excelente destilaria. Não pare para admirar o sabor ou habituar-
se à bebida. Engula diretamente.
– Slàinte! – murmurou Megan, inclinando o frasco para cima. Não tentara beber uísque
desde que ela e Charlotte tinham roubado o frasco de caça do pai há dez anos. Depois de
um gole, Charlotte declarara que todos os homens eram loucos. Megan tossira demasiado
para conseguir falar.
– Do dheagh shlàinte – brindou Murdoch. À sua boa saúde.
Megan bebeu um gole pequenino e preparou-se para o ardor e a violência, mas apenas
sentiu… calor. Calor encantador, delicioso e revigorante. Um beijo vindo de dentro, um
gostinho de luz brilhante do sol e brisas marítimas fortes com o aroma fraco de urze e
especiarias.
– Delicioso – disse ela, batendo no lugar ao seu lado. – Leia-me as datas das cartas que eu
vou contando.
Murdoch serviu-se de um gole, guardou o frasco e depois baixou-se cuidadosamente no
banco.
– Foi uma valente queda, Vossa Graça. Primeiro contamos as cartas e depois conta-me
exatamente o que aconteceu.
Ele leu uma série de datas, trinta e uma no total, e à medida que a contagem se
aproximava cada vez mais do número que atormentara Megan desde que Sir Fletcher a
ameaçara da primeira vez, o dia tornou-se bonito, prometedor e glorioso.
– Estão todas aí – disse ela. – Cada uma delas, presente e contabilizada. Você fez o
impossível e foi rápido. Qualquer coisa que me deseje pedir é sua, Murdoch.
No entanto, que tinha ela, uma solteirona ruiva, míope e envelhecida para oferecer a um
soldado experiente, rico e titulado?
Ele afagou-lhe o joelho e entregou-lhe as cartas, que Megan pôs de lado em vez de
segurar na mão durante mais tempo do que era necessário.
– Parto para a Escócia amanhã – disse ele. – Agradecer-lhe-ia muito se olhasse pela
Ronnie e pela Eddie na minha ausência. Elas são principiantes na alta sociedade e podem
não prever as armadilhas em que caem. Vão precisar de amigos, e você sabe o que fazer
numa temporada de Londres.
Mais palavras grosseiras surgiram na cabeça de Megan, pois ela não queria que o seu
amigo e defensor partisse para o Norte agora, quando ela estava finalmente livre para ser
amiga dele também.
– Não pede nada para si próprio – disse ela. – As suas irmãs não resgataram estas cartas
horríveis, foi você. Não tem desejos ou pedidos para si que eu possa ajudar a realizar antes
que parta na sua viagem?
Ele moveu-se, sugerindo que um banco duro era um poiso desconfortável – ou que
estava a preparar-se para mentir.
– Eu tenho desejos e pedidos – respondeu ele – e a felicidade da minha família inclui-se
proeminentemente neles. Você entende o que é querer que a família esteja segura e feliz,
caso contrário estas cartas não teriam sido um problema, Menina Meggie.
É verdade.
– Eu também quero que esteja seguro e feliz. – E ela não queria que ele estivesse a
centenas de quilómetros de distância na Escócia. – Foi difícil recuperar as cartas?
Ele moveu-se de novo.
– Travei conhecimento com a mais nova dos Pilkington, uma menina chamada Geneva.
Daqui a dez anos, ela tomará a capital de assalto, mas foi bastante hospitaleira com um
lacaio desastrado que ainda não tinha libré. Infelizmente, também conheci o gato de Lady
Pamela, que tentou deitar a lareira e a mim também abaixo.
– Foi uma aventura – disse Megan, embora parecesse que a aventura de Sua Graça fora
também complicada e perigosa.
Ele ergueu-se rigidamente.
– Correu tudo bem. Você tem as suas cartas e eu posso pôr-me a caminho.
Megan não teve escolha senão acompanhá-lo até ao seu cavalo.
– Vem buscar as suas irmãs no fim da temporada?
– O Colin pode acompanhá-las, se elas não encontrarem cavalheiros ingleses para
maridos. A novidade desta excursão em breve perderá o brilho aos olhos delas, julgo eu, e
elas ficarão contentes por regressar à Escócia.
– Você tem saudades de casa. – O que poderia Megan oferecer que competisse com a casa
dele? A mãe ainda sentia saudades de Gales décadas depois de casar com o pai, e apesar de
dizer que a sua casa seria sempre onde estivesse a sua família.
– Saudades de casa? Sim, é verdade. Tenho sentido saudades de casa durante metade da
minha vida – disse Murdoch. – Gostaria que me prometesse uma coisa, Menina Meggie.
– Claro. – Talvez ele lhe fosse pedir que lhe escrevesse, e Hamish MacHugh, duque de
Murdoch, era o único homem a quem Megan se sentiria segura para pôr os seus
sentimentos por escrito.
– Não escreva a nenhum cavalheiro daqui em diante – disse ele, à medida que se
aproximavam do muro alto no fim do jardim. – Tenha muito cuidado com a sua reputação,
porque, assim que Sir Fletcher descobrir que as cartas desapareceram, ele não aceitará a
derrota facilmente. Armar-lhe-á uma cilada, se possível, espalhará boatos sem qualquer
base de verdade, tentará comprometer uma das suas irmãs. Tenha mais cuidado do que
nunca, tente imaginar o pior que ele poderia fazer, e depois o que poderia ser pior do que
isso.
– Quer que eu seja um soldado e enfrente esta temporada como uma campanha militar.
Posso alertar as minhas irmãs e terei cuidado.
Megan também teria saudades, daquele homem, da sua companhia, dos seus beijos.
Do outro lado do muro, o bater constante de cascos ouvia-se no beco, cada vez mais
próximo.
– Então adeus, Menina Meggie, e Deus a abençoe. – Ele passou a mão delicadamente pelo
cabelo dela, uma carícia ternurenta que não era quase tão presumida como Megan teria
preferido que fosse.
– Não me permite dar-lhe sequer a menor bênção? – insistiu ela. – Sinto que devo atar
uma fita na sua manga, pelo menos. Foi um amigo, um aliado e um confidente. Ficarei para
sempre em dívida consigo, e você simplesmente vai partir, para nunca mais ser visto,
quando a não ser por si eu posso nunca mais…
Ele amparou-lhe a face com o calor da palma da sua mão.
– Ainda me faz chorar, Menina Meggie. Adeus.
Ele aproximou-a mais de si e encostou os seus lábios aos dela.

Hamish roubou um beijo, de despedida, de rejúbilo, de agradecimento. Megan estava salva


agora e ele enviaria uma mensagem a um dos primos dela – Rosecroft ou Keswick – a
alertá-los para a ameaça que Pilkington podia apresentar. Hamish acrescentaria Colin à
guarda de honra dela: Megan avisaria as suas irmãs e em breve ela estaria livre dos
esquemas de Sir Fletcher.
Sir Fletcher tinha a combinação de caraterísticas que constituíam oficiais de linha
competentes. Era esperto e preguiçoso. Quando não podia delegar, esquivava-se e, quando
se tornasse óbvio que atormentar Megan Windham era mais arriscado do que
recompensador, encontraria outra vítima para explorar.
Megan estava salva. O coração de Hamish, todavia, não estava completo. Deixaria uma
parte à guarda dela, pois que outra mulher – fosse por que razão fosse – se lançara nos
braços dele e chorara no seu ombro como se apenas ele merecesse a confiança dela?
Por isso, o seu beijo continha um elemento de pesar por não ter conhecido Megan antes
de a guerra lhe ter roubado a inocência e o ter deixado incapaz de socializar entre as
próprias pessoas a que Megan chamava família.
Esse pesar tornou-se inesperadamente mais paixão, um desejo pelo que não poderia ser.
Ele envolveu Megan nos braços, como se pudesse gravar os contornos dela na sua memória,
e que se danasse tudo o que era cavalheirismo. Por um momento, pela duração de um beijo,
Hamish poderia admitir que desejava aquela mulher de todas as formas que um homem
desejava a sua alma gémea.
Em vez de se ter afastado, Megan achegou-se mais a Hamish de uma forma que não tinha
nada a ver com despedida e tudo a ver com acolhimento. Agarrou-o pelo cabelo, enfiou uma
perna entre os joelhos dele e – Deus tivesse mercê de um pobre soldado – onde estava o
sporran de Hamish quando havia risco de desgraça?
– Meggie, não pode…
– Não vá – sussurrou ela junto à boca dele. – Por favor, não parta, como se…
Como se a língua dela não estivesse a sitiar os muros resistentes das melhores intenções
de Hamish. Como se os seios dela não estivessem suavemente a sugar o ar do senso comum
e autocontrolo de Hamish. Como se todas as partículas do seu ser não estivessem a clamar
para ele a lançar sobre a sela do seu cavalo e devorá-la por baixo dos narizes de…
Ela passou uma mão à volta da anca dele e apertou suavemente Hamish numa parte dele
que recentemente adquirira um grande hematoma roxo.
A dor foi uma advertência bem-vinda à sensatez. Hamish terminou o beijo, mas
permaneceu num abraço folgado com a mulher que o assombraria até às Terras Altas.
– Meggie, este nunca será o meu lugar. Eu sou perseguido por boatos e rumores por onde
quer que vá. Quase ataquei o Keswick em público por razão nenhuma, e isso nem sequer é o
pior. Não me conhece verdadeiramente, e é melhor assim. Queime as cartas e pense em
mim com carinho, mas eu tenho de partir.
Ela pressionou a testa no meio do peito dele.
– Eu conheço-o. Conheço as partes de si que importam, e nunca o esquecerei. Olharei pela
Edana e Rhona e olharei pelo Colin, mas há de passar muito, muito tempo até eu deixar de
esperar que você entre nos salões de baile com eles ou venha visitar-nos.
Uma assombração mútua, portanto. Hamish pressionou a boca na dela mais uma vez ao
invés de tornar a despedida realidade. Ele estava prestes a executar essa mesma
demonstração de heroísmo quando o portão do jardim se abriu de rompante e o duque de
Moreland surgiu diante deles, com uma mão apoiada no portão e o chapéu na outra.
Seguiu-se um momento de silêncio, mas nem Megan nem Hamish se afastaram um do
outro, pois estavam entalados por baixo do arco da entrada no muro do jardim.
– Ora, se não é o Murdoch e a minha querida Megan – disse Moreland. – Megan, fazes-me
o favor de informar os teus pais que os vim visitar? Murdoch, não pense que se safa. Não vai
a lado nenhum enquanto eu não falar consigo.
Capítulo 10

O Código dos Duelos era citado nas messes de oficiais, clubes de cavalheiros, bordéis e
todos os outros espaços masculinos. Wellington participara em duelos e Percival Windham,
duque, antigo oficial de cavalaria e pai de cinco filhos, já testemunhara a sua quota-parte no
campo de honra.
Também casara todos os seus filhos em uniões felizes e sabia que o que parecia
comportamento desonrado para um tio devoto poderia ser sinal de verdadeiro amor – ou
desgraça.
No entanto, Murdoch era um duque, e o problema com os duques era que requeriam um
tratamento respeitoso, delicado, mas firme – a própria duquesa de Percival assegurara-o
disto – e era consideravelmente perigoso contrariar um duque.
Principalmente um duque apaixonado.
– Começou-se o costume na Escócia – começou Percival a dizer – de abordar jovens
senhoras nos seus próprios jardins e humilhá-las com propostas apaixonadas? É uma
prática aceite de onde você vem, Murdoch, quando não houve qualquer acordo estabelecido
com a jovem ou a família dela?
Murdoch assumiu a postura de um oficial em sentido, com o olhar irritantemente
inexpressivo.
– Peço desculpa, Vossa Graça. O meu comportamento foi inapropriado e descortês. Não
pretendi desrespeitar a senhora, nem nunca pretenderei.
No que dizia respeito a declarações comovedoras, aquilo serviria muito bem, mas o que
andara Murdoch exatamente a fazer?
Além disso, o que diria a duquesa de Percival daquelas confissões grosseiras? Eram as
confissões certas – pedido de desculpas sincero, aceitação de toda a responsabilidade,
garantia de futuro bom comportamento – e oferecidas com sinceridade convincente, mas as
nuances, tal como o olhar do escocês, eram de índole impenetrável.
Percival testou a sua melhor carranca ducal.
– Eu deveria desafiá-lo, Murdoch. – Esther nunca toleraria esse disparate.
– Mais uma vez, peço desculpa, Vossa Graça, a si como chefe da família da Menina Megan,
e com prazer pedirei desculpa à Menina Megan e aos pais dela, também. Não tenho
justificação e comportei-me de forma errada.
Megs era sossegada, doce, modesta e exatamente o tipo de jovem senhora com que o
chefe da família mais se preocupava. Esther fora sossegada e modesta, tal como haviam
sido as filhas de Percival quando andavam a engendrar esquemas que tiravam um duque
do sério.
– Sabe, Murdoch, ainda esta manhã a minha duquesa me encarregou de levá-lo à próxima
receção da corte, onde devo submetê-lo a uma apresentação real. Quando tiver lidado com
essa atividade entediante, devo requisitar um mandado de precedência para si que irá
estabelecer oficialmente as suas irmãs como ladies e o seu irmão como lorde.
Hamish franziu o nariz, que muitos consideravam impressionante.
– Agora sou um duque debutante?
– Também poderia ser um duque morto pela brincadeira desta manhã. Eu sou bastante
hábil com pistolas e espadas.
– Mais uma vez, Vossa Graça, ofereço as minhas mais sinceras desculpas. Porei os meus
sentimentos por escrito, se for preciso. Além disso, posso assegurar-lhe que amanhã a esta
hora partirei para a Escócia e nunca mais lhe causarei problemas.
O Código dos Duelos exigia que, se um pedido de desculpas fosse oferecido em boa fé e
nenhum golpe tivesse sido desferido, então nenhum sangue seria derramado. Murdoch
conhecia as regras pelos vistos e estava a contar com elas para evitar um confronto
violento.
Era isto bravura ou cobardia? Esther teria uma opinião útil acerca desta questão.
– Eu não vou desafiá-lo – concedeu Percival. – Mas alguém devia, e os primos e o pai da
Megan não são aconselhados pela minha duquesa a ficar parados em momentos
precipitados.
Murdoch – sensatamente – não disse nada. Ele tinha irmãs, e as irmãs tinham uma
maneira de educar um homem na arte da discrição. Tal como as crianças e, ainda assim, a
audição de Percival era excelente.
Não vá… por favor, não parta, como se… Megan, a suplicar àquele escocês enorme,
taciturno e rude.
E a resposta do escocês: Meggie, este nunca será o meu lugar… E algo sobre queimar
cartas. Tudo muito dramático, e depois… duas pessoas jovens envolvidas num abraço
desesperado onde podiam ter sido apanhados em flagrante por qualquer duque que
passasse.
Ou mexeriqueiro.
– A Megan obteve o interesse do Sir Fletcher Pilkington – disse Percival. – Fui convocado
aqui para discutir essa situação com Lorde Anthony antes que o meu irmão parta para
Gales. Sir Fletcher é de boas famílias, serviu o rei com lealdade e tem respeitado a Megan
em todos os aspetos.
Mais silêncio e Murdoch corrigiu a sua postura, como se a preparar-se para o choque da
chibatada.
– A minha duquesa alertou para termos cuidado no que diz respeito a Sir Fletcher. –
Esther desgostara efetivamente do pobre coitado, acusando-o de se curvar demasiado, de
nunca passar por um espelho sem olhar para o seu próprio reflexo, perseguir herdeiras e
outras horríveis transgressões.
– Requer-se sempre cuidado no que diz respeito a pretendentes – disse – ou melhor,
grunhiu – Murdoch.
– Eu posso ainda desafiá-lo, Murdoch.
Aqueles olhos azuis ficaram novamente inexpressivos. Não apenas frios e hostis, mas
desprovidos de qualquer emoção humana. Percival vira olhos assim no rescaldo da batalha,
normalmente em rostos dos que tinham sido prisioneiros.
– Desafie-me se quiser, Moreland. Eu recusarei enfrentá-lo.
Recusaria?
– Está a contestar a minha habilidade agora, meu jovem? A afirmar que estou demasiado
debilitado para segurar uma arma?
– Claro que não, Vossa Graça. Mas a Meggie – quer dizer, a Menina Megan – seria o
assunto do nosso desentendimento, não é verdade? Quer escolhêssemos os nossos
segundos com cuidado ou não, a reputação dela correria o risco de ruína, e isso eu não
posso permitir.
Oh-ho! Quando um homem ia de beijar a não-permitir no que dizia respeito a uma jovem,
tudo no espaço de cinco minutos, um duque prudente reparava.
– A minha duquesa repreender-nos-ia aos dois até à exaustão pela mera menção do
campo de honra – disse Percival. – Não quer arriscar encontrar Sua Graça num humor
repreensivo, Murdoch.
E, ainda assim, um desafio era justificado porque Murdoch tinha razão: os pretendentes
de todos os tipos mereciam um escrutínio rigoroso e as ideias estranhas da duquesa nunca
deviam ser ignoradas de ânimo leve.
Percival atravessou o beco, ponderando estratégias, deixando o prisioneiro antecipar um
destino terrível.
Uma altura interessante para Gladys arrastar Tony para as florestas de Gales.
– Tenho a certeza de que a corte de Sir Fletcher acabará por obter o eventual favor de
Lorde Anthony, mas Sir Fletcher provavelmente desfruta dessa mesma confiança.
Murdoch recusou-se a morder o isco.
– Você, no entanto – prosseguiu Percival –, evoluiu para a fase dos beijos roubados. Sem
desculpar o seu comportamento minimamente, tenho de admitir que as suas atenções não
foram impostas à minha sobrinha.
Quanto muito, a expressão de Murdoch tornou-se ainda mais fria, de um homem sem
esperança, para um homem sem coração.
– Nem as minhas atenções alguma vez serão impostas a qualquer jovem senhora, antes
que Sua Graça entenda o contrário. – Tal erro relativamente à honra cavalheiresca de
Murdoch seria fatal, tendo em conta o tom de voz do jovem. Que se danasse o Código dos
Duelos.
De repente, Percival sabia a opinião que a sua duquesa pronunciaria sobre toda a
situação. Esther aprovava profundamente os homens protetores e também aprovava
mulheres jovens ferozes.
– Exatamente – disse Percival, atravessando novamente o beco. – Eu também defendo a
ideia pitoresca de que as jovens devem ter a palavra final em relação ao companheiro com
quem se casam, desde que o sujeito tenha sido considerado digno do interesse da senhora.
Estou a conceder-lhe essa honra, Murdoch. Dentro dos limites da discrição, e supondo que
o meu irmão esteja de acordo comigo, você está à vontade para fazer a corte apropriada à
Megan, embora, sem dúvida, você tenha a concorrência de Sir Fletcher.
As sobrancelhas de Murdoch descaíram. Ele abriu a boca, mas não saíram palavras.
Esther ficaria encantada.
– Eu não o aprovo a si – disse Percival, o que não era totalmente correto. – Eu apenas
acho que Sir Fletcher estimará mais um troféu que ele tenha de trabalhar para ganhar. Se a
Megan decidir que prefere um escocês bruto que rouba beijos – bem, esse escocês é um
duque, tem a reputação de ser mais do que solvente, e a Megan também cometeu roubo
amador. Ou seja, boa sorte, porque você vai precisar.
– Eu deveria partir para a Escócia amanhã, Sua Graça. Estou ciente da honra que me
concede, mas devo com toda a franqueza…
– Você está a recitar o discurso errado, Murdoch. Eu não estou a propor-lhe casamento.
Estou a usá-lo para incitar Sir Fletcher a cortejar a Megan como ela merece ser cortejada.
Você irá comigo à receção na próxima terça-feira, e iremos no meu coche citadino.
Mandarei os meus advogados conversarem consigo sobre o mandado de precedência, e os
meus alfaiates visitá-lo-ão esta tarde para garantir que você tem roupas adequadas para a
ocasião.
O pobre homem parecia aturdido, o que era uma grande melhoria às suas anteriores
expressões sombrias.
– Mas, senhor, viajar para o Norte tornou-se…
– Não se interrompe um duque, Murdoch, ou uma duquesa. Não se esqueça disso. – A
menos que alguém fosse da mesma família, e nesse caso as interrupções vinham de todas as
direções. – Eu tenho mais dois aspetos que precisam de elucidação.
– Sim, Vossa Graça.
– Eu ouvi-o mencionar cartas à Megan. Não vou permitir que haja correspondência
exaltada entre você e a minha sobrinha. Em primeiro lugar, a leitura é difícil para Megan
por causa da visão dela, por isso as suas efusões apaixonadas provavelmente são um
desperdício no papel. Em segundo lugar, qualquer homem que se entregue a fantasias
literárias relativamente à sua mulher arrisca-se a que os seus sentimentos se tornem
públicos, e se isso acontecer, não precisarei de o desafiar. Os meus filhos e genros farão fila
para ter esse privilégio.
Bem, não, não fariam – todos eles eram casados com mulheres muito ferozes – mas a
ameaça parecia impressionante.
– Entendido, senhor. Mais alguma coisa?
O escocês de Megan parecia tão sério, tão disposto a ser castigado. Quanto mais Percival
considerava a situação, mais ele aprovava a sua decisão. Deu uma palmadinha no ombro do
homem mais jovem.
– Não se preocupe muito com a receção da corte. Cinco minutos a conversar sobre as
paisagens das Terras Altas ou a discutir a pele de raposa pendurada na sua retícula, e…
– Sporran, Vossa Graça, e é pele de texugo.
– … e acabou-se. Outra coisa.
O escocês de Megan interrompera um duque. Moreland gostava do homem por esse
facto, porque o traje nacional tornara-se uma questão de orgulho para os escoceses. Evitar
que a reputação de uma senhora sofresse danos era prudência cavalheiresca, mas evitar
todo o confronto era uma autêntica cobardia, o que era inadmissível.
– Peço desculpa pela interrupção – disse Murdoch –, mas Vossa Graça estava a provocar-
me.
– Pois estava. Agora estou a repreendê-lo. Não por partilhar um beijo roubado com uma
jovem disposta e encantadora – uma vez, há muito tempo, eu também fiz o mesmo uma ou
duas vezes. – Ou duzentas. – É por ser apanhado a roubar aquele beijo e colocar a reputação
da Megan em risco.
Moreland golpeou Murdoch no maxilar, um soco bom e forte que apaziguaria a culpa de
um jovem e o orgulho de um duque maduro.
– Diga ao cavalariço para acomodar o seu cavalo, e vou apresentá-lo ao meu irmão –
disse Percival. – E mais uma vez, boa sorte. – O mais provável era que Sir Fletcher fosse
quem precisaria de alguma sorte.
Pois, quando Percival entrou pelo fundo do jardim, o escocês permaneceu para trás,
sorrindo tanto que faria uma certa duquesa ficar muito satisfeita com o seu duque.

– Megs, gostas deste escocês? – perguntou o pai, a atravessar a sala matinal.


O tio Percy fora completamente agradável e bem-disposto quando encontrara Megan a
beijar Murdoch no jardim, mas o tio Percy era absolutamente civilizado quando planeava a
destruição de um membro invasor do Parlamento ou visconde descortês.
– Eu gosto demasiado de Murdoch, papá.
Sua senhoria estava a fingir espreitar pela janela, embora o seu objetivo fosse sem
dúvida dar a Megan uma dose de privacidade.
– O Murdoch não tem… – O pai uniu as mãos atrás das costas. – Quero dizer, ele não é um
homem sofisticado, e eu teria uma visão muito obscura de qualquer presunção sobre a boa
natureza da pessoa… Megs, gostas verdadeiramente dele, ou estás a tentar poupar um
mancebo ingénuo de uma boa tareia dada pelos teus primos?
O que raio dissera o tio Percy ao papá?
– Ambas as coisas.
O pai continuou a fitar um jardim que vira em flor todas as manhãs durante semanas.
– O teu tio Percy convenceu-me de que eu devia autorizar Murdoch a fazer-te a corte,
ainda que Murdoch não seja o meu genro ideal.
Fazer-te a corte.
Megan entrara na sala matinal à espera de ser repreendida pelo comportamento ousado.
Como alternativa, estava preparada para uma ordem de fazer as malas, porque ia ser
enviada para a sede rural da família em desgraça ou, pior, ia acompanhar a mãe e o pai
numa das luas de mel anuais.
Enquanto Hamish partia para Norte em direção à sua terra muito amada nas Terras
Altas.
Em toda a língua inglesa, as três palavras que Megan teria esperado menos que o seu pai
proferisse na mesma frase eram «Murdoch» e «fazer-te a corte».
As suas entranhas remexeram-se de tal maneira que o coração ficou mais entalado
contra as costelas.
– A corte de Murdoch seria bem-vinda – declarou Megan, com a voz a tremer um pouco. –
Muito bem-vinda, de facto. – A corte mais bem-vinda em toda a história de cortes em todo o
mundo.
O pai não era apenas distinto, era bonito. As suas feições possuíam o cunho patrício da
nobreza saxónica – cabelo loiro agora dourado, nariz ousado, queixo firme – mas também
tinha uma rapidez, uma percetividade e uma subtileza que normalmente complementava
com charme. Era um filho ducal suplente que não ameaçava ninguém.
Megan sabia bem. O pai era astuto e amável e Megan amava-o muito. No entanto, não
confiava plenamente nele.
– A corte de Murdoch seria muito bem-vinda – disse o pai, a afastar-se da janela para
inspecionar um desenho que Charlotte fizera da mãe há vários anos. A mãe tinha um
sorriso matreiro, que Charlotte captara vividamente. – Megs, eu e a tua mãe amamos-te
muito. Há alguma razão para quereres que adiemos esta viagem a Gales?
Alguma razão…?
– Para planear um casamento, é isso?
O pai permaneceu junto ao retrato. Megan não conseguia distinguir bem as feições dele,
nem o sorriso da mãe, mas sabia pela postura do pai que o seu tom casual contradizia uma
certa tensão.
– Não é segredo nenhum que eu e a tua mãe fomos uma união de amor. Por acaso eu
aprovo que haja afeto entre esposo e esposa, dentro do razoável. O casamento já é
suficientemente difícil quando não tentamos arriscá-lo com um absoluto estranho.
Também sei que és filha da tua mãe e uma Windham. Um legado ou o outro instigar-te-ia
uma certa impetuosidade relativamente aos assuntos do coração, mas as duas coisas, bem,
um pai fica preocupado.
Um pai também – pela primeira vez na memória de Megan – corava.
– Murdoch é um cavalheiro, papá. – Ao contrário de Sir Fletcher.
Que não tinha mais posse das cartas de Megan.
– Eles conseguem ser os piores transgressores, e é por isso que Murdoch está nesta
situação, por assim dizer. Sir Fletcher visitou-me ontem, também determinado a pedir
permissão para te fazer a corte.
Megan ajeitou a saia.
– Sir Fletcher Pilkington? – O pior patife de Mayfair?
– Claro, o Pilkington. Megs, ele é de boas famílias e o Percy parece pensar que Sir Fletcher
poderia vir a tornar-se um homem digno, em termos de marido. Pensei que gostavas dele.
No passeio que se via da janela, Murdoch acompanhava a mãe pelo relógio solar. Por
sorte, estavam à distância exata para Megan poder ver as suas expressões. A mãe falava
com seriedade – a mãe era normalmente séria – e Murdoch comportava-se como um
cavalheiro atencioso ao seu lado.
Ele era um homem tão atraente. Não bonito no sentido perfeito e belo, mas robusto,
honesto, resistente. Dali a trinta anos, a sua aparência teria mudado pouco, e ele seria
igualmente bem-educado, igualmente…
– Megs?
– Sim, papá?
– E acerca de Sir Fletcher?
Sir Fletcher não tinha mais as cartas de Megan, isso era o que havia acerca de Sir
Fletcher.
– Eu não me casaria com a boa família dele, papá, casar-me-ia com ele, e ele não fez nada
para ganhar a minha estima em particular desde que o conheci. – Nem uma maldita coisa.
Atormentá-la, sim. Manipulá-la a conceder liberdades, certamente. Humilhá-la – sem
dúvida.
Mas a estima de Megan fora ganha pelo escocês que poderia ainda estar a planear partir
para a sua terra natal nas próximas vinte e quatro horas.
– Tu mal conheces este Murdoch – comentou o pai. – Ele só recebeu o seu título
recentemente e vem de muito longe. O Percival falou em nome do Murdoch, mas não
desencorajarei Sir Fletcher para já. Considera as tuas opções enquanto eu e a tua mãe
estivermos em Gales, mas Megs?
– Sim, papá?
– Tem cuidado. O Percival aprovou a corte de Murdoch, mas o meu irmão gosta de ser
casamenteiro, ao contrário de mim. Prefiro ter as minhas senhoras perto de mim, onde sei
que estão seguras e acarinhadas. Se fugires com o teu moço escocês, eu sentiria
terrivelmente a tua falta até ao fim da minha vida.
Megan não previra aquela emboscada, uma expressão genuína de emoção paternal
mesmo no meio de sermões e avisos constrangedores.
– Papá, eu não fui para lado nenhum, e o papá é que vai partir para Gales.
– Gales faz a tua mãe feliz, e isso faz-me feliz. Tu estás ansiosa para abordar outra vez o
teu escocês no jardim, mas, Megs, acabaram-se os beijos onde qualquer visitante, jardineiro
ou familiar que esteja a espreitar numa janela alta possa ver-vos. O Moreland também vos
apanhou – ele acha-se um especialista em espionagem, aquele – por isso eu tive de fingir
surpresa. Um pouco de discrição vale muito e poupa-me mais vaidade do meu irmão no
futuro.
Meu Deus, Megan amava terrivelmente o seu pai.
– Sim, papá. Eu compreendo. – Megan compreendia que Murdoch recebera autorização
para lhe fazer a corte, o que era ainda melhor do que ter recuperado as cartas dela –
partindo do princípio de que Murdoch desistira da ideia de regressar à Escócia.
O pai beijou-lhe a testa e Megan fez-lhe uma vénia. Assim que alcançou a privacidade do
corredor, agarrou nas saias e correu o mais rápido possível até ao jardim.

A única experiência que Hamish conseguia recordar que se assemelhasse aos


desenvolvimentos da manhã era o resultado de um golpe na cabeça. A audição da pessoa
era por vezes afetada, ou o seu equilíbrio, mas mais do que isso, a realidade adquiria um
caráter distante e fabulado. Tudo acontecia num estado mental, como se, em vez do próprio
Hamish a passear pelo jardim de braço dado com a mãe de Megan, outro homem aturdido
estivesse a desfrutar dessa honra e conversasse sobre…
Robert Tannahill, um contemporâneo do Sr. Burns que também morrera novo e deixara
um belíssimo legado.
– Mas as canções que não estão escritas são as minhas preferidas – dizia Lady Anthony. –
Deveria pedir à Megan para lhe cantar algumas. Ela tem muito talento, e aqui está a nossa
Megs agora.
A nossa Megs.
Megan saíra para o terraço das traseiras da casa. Estava no cimo das escadas, sem óculos,
sem luvas, apenas uma visão de linda musselina azul, um xaile branco e cabelo ruivo
glorioso, apanhado num simples nó. A esta distância, ela teria dificuldade em vê-lo
nitidamente, por isso Hamish acenou-lhe. O movimento chamou-lhe claramente a atenção,
pois ela acenou também. O seu sorriso brilhava através das rosas, sebes e erva orvalhada,
de modo que toda a atenção de Hamish estava concentrada nela, a flor mais perfeita no
jardim.
Nalguns momentos constrangedores com o pai e o tio dela, Hamish recebera autorização
para oferecer o seu coração à senhora. Ele queria correr pela relva, segurá-la nos braços e
rodopiá-la como um prémio garantido.
Também queria arrastá-la pela mão de volta à fonte escondida e ali inspecionar o
inventário completo de beijos dela, antes de inventar mais uns quantos com ela que
ninguém ainda imaginara em toda a história dos beijos.
E queria chorar, porque, embora a família de Megan possibilitasse que ele a cortejasse,
ele ainda tinha de partir para a Escócia.
– O seu sorriso quando olha para a minha filha é… – Lady Anthony curvou-se para
cheirar um rebento precoce de madressilva. – Recorda-me o meu marido quando
estávamos a namorar. Receávamos que a nossa união não fosse aprovada pelos nossos pais
e tínhamos planos para… Bem, isso é uma história para outra altura. Você tem exatamente
trinta minutos, Murdoch, antes que a Megan seja chamada para tomar chá comigo e o pai
dela. Aproveite bem esses trinta minutos.
– Sim, vossa senhoria, e boa viagem, madame.
Lady Anthony beijou a face de Hamish – os Windham eram uma família afetuosa, quando
não eram violentos – e afastou-se graciosamente. Disse algo a Megan, apertou a mão da
filha e entrou em casa num movimento elegante de veludo verde.
Megan levantou as saias, como se fosse descer as escadas numa imitação da dignidade da
sua mãe, mas depois correu pelo jardim e foi contra o abraço esperado de Hamish.
Eles eram visíveis da casa, por isso Hamish apenas a segurou e apreciou a sensação
encantadora e deliciosa dela nos seus braços. A coroa da cabeça dela encaixava por baixo
do seu queixo, os seios dela…
Ele deu um passo para trás.
– Megan Windham, devo-lhe um pedido de desculpas. Não devia tê-la beijado onde
qualquer pessoa nos poderia apanhar. Não devia ter…
Ela beijou-lhe a face.
– Eu também não devia ter corrido esse risco, mas adoraria beijá-lo outra vez. Faz-me a
corte, Hamish MacHugh, ou vai fugir para a Escócia?
Ele desejou que ela estivesse a usar os óculos azuis, ou talvez ele pudesse usá-los.
Qualquer coisa para ocultar a esperança nos olhos dela e a confiança.
– Meggie, nada mudou. Eu sou o homem para si. Eu levá-la-ia para longe de tudo o que
conheço e gosta, onde o inverno pode começar em setembro e prolongar-se até maio. Os
meus irmãos só sabem brigar. Você ficaria aborrecida…
Ela cruzou o braço com o dele.
– As minhas irmãs brigam e eu ando aborrecida há anos. O que é que não me está a dizer?
A verdade, Hamish, pois eu gostaria muito que me fizesse a corte.
A verdade – a arma mais perigosa alguma vez utilizada contra as boas intenções de um
homem.
– Falaremos, e você escutará e depois despedir-se-á de mim.
O silêncio era outra arma que uma mulher inteligente manuseava com grande habilidade,
e Megan era uma mulher muito inteligente. Moveu-se com ele até aos bancos à volta do
relógio solar e sentou-se, puxando-o para baixo com ela. A anca dele estava a latejar, mas o
banco estava quente – uma pequena consolação.
– Porque é que você haveria de querer um homem como eu como marido, Meggie? Eu
não sou… eu não sou sofisticado. Não sou inglês. Não pretendo ser muito bom nesta coisa
de ser duque, e eu gosto de um bom uísque das Terras Altas.
– A minha mãe não é inglesa, Sir Fletcher é muito sofisticado, e quanto à coisa de ser
duque, você tem sido um perfeito cavalheiro, por isso que importa a parte do duque? Eu
gostei muito de provar o seu uísque.
A lógica devia ser interdita a mulheres casadoiras.
– Meggie, você pensa, porque surripiei umas cartas de uma gaveta de escrivaninha, que
sou uma espécie de cavaleiro errante. Não sou nada parecido com um cavaleiro errante.
– Você aprendeu a valsar para não envergonhar as suas irmãs. Isso é o comportamento
de um homem cavalheiresco, Murdoch.
– Eu gosto de dançar – a maioria dos escoceses gosta – e a valsa não é complicada.
Ela ergueu o rosto na direção do sol, o que teria feito Ronnie e Eddie irem imediatamente
buscar chapéus e guarda-sóis – ou ordenarem a Hamish para lhos trazer.
– Sou assim tão horrível, Hamish? Pensei que gostava de mim.
– Você é linda. – De olhos fechados, o queixo inclinado para cima na direção do calor do
sol, as sardas visíveis a qualquer homem à distância de um beijo… O peito de Hamish doeu-
lhe, e algo semelhante a raiva agitou com a ideia de deixá-la sozinha naquele banco dali a…
cerca de vinte e três minutos, de acordo com o relógio solar.
– Do que está a tentar proteger-me? – perguntou Megan, a abrir os olhos e a olhar para
ele com a sagacidade misericordiosa de um gato. – É a única razão que vejo para você me
abandonar agora. Acredita que qualquer retaliação que Sir Fletcher possa tentar, quaisquer
riscos que eu enfrento agora, o casamento consigo é de alguma forma pior do que esses
destinos. Você deve-me uma explicação, Hamish. Os amigos são sinceros uns com os outros.
Amigos. Os amigos não se atacavam com exigências impossíveis de verdade.
Uma voz inconveniente na cabeça de Hamish insistiu que os amigos também não partiam
para a Escócia sem uma explicação.
– Estou a tentar protegê-la de mim, Meggie – referiu Hamish. – Pergunte aos seus primos
soldados que eles dir-lhe-ão que tenho uma reputação de violência e cobardia. Fujo de
combates que devia travar e, ainda assim, quando os travo, sou um selvagem. Mato por
prazer, segundo algumas pessoas, e em vez de ter morrido em combate, rendi-me às mãos
do inimigo. Não sou nenhum soldado, e eles têm razão. Eu odiava aquilo tudo, e você odiará
ser a minha duquesa também.
A minha duquesa. As palavras apenas lhe davam prazer quando ele as associava com ela.
Ela pegou na mão dele, o que era permitido numa situação de corte.
– Estou feliz que não tenha morrido em combate. Os seus irmãos estão felizes que você
não tenha morrido em combate, tal como todas aquelas pessoas em Perthshire que
dependem de si. Quem são esses idiotas cegos que pensam que a morte é uma façanha tão
maravilhosa? A morte está ao alcance de todos. O maior desafio é viver e amar apesar dos
nossos erros e fracassos. Fique feliz por não ter morrido, Hamish MacHugh. Talvez tenha
tido momentos maus ou sinta remorsos – eu certamente sinto. Mas fique muito feliz por
não ter morrido.
Entre um momento de silêncio e o seguinte, Hamish teve uma sensação estranha, como
se sem a mão de Megan para segurar ele pudesse ter-se erguido no ar e dissolvido na luz do
Sol. Como se as palavras de Megan tivessem acendido uma chama dentro dele que desejava
unir-se com o maior calor da luz do Sol.
Estou feliz que não tenha morrido em combate.
– Você é uma mulher de sentimentos originais e apaixonados.
Ela não disse nada, mas continuou a segurar a mão dele com força. As palavras errante e
erros tinham a mesma raiz, ambas com o significado de andar à deriva. O coração de
Hamish andara à deriva desde que comprara a sua comissão e, pela primeira vez, teve uma
sensação de regresso a casa. Não de regresso a território familiar, mas de regresso a casa.
Permaneceu sentado ao lado dela durante mais onze minutos, com o traseiro a latejar,
maravilhado de cada vez que respirava. A sensação de bênção não o abandonou, a sensação
de uma perspetiva obtida quando era mais precisa, a sensação de que Megan não lhe
falharia.
Estou feliz que não tenha morrido em combate.
– Os meus oficiais superiores diziam que eu era um animal – admitiu-lhe ele. – Diziam
que os franceses deviam ter-me abatido como a um cão raivoso.
Ela pousou a cabeça no ombro dele.
– Os seus colegas oficiais diziam isso?
– Eu matei com as minhas próprias mãos, Meggie. – Ele nunca dissera aquelas palavras a
outra pessoa, nem as deveria ter dito agora. Feriam de uma forma completamente nova,
deixando mágoa e estupefação onde houvera desgraça. – No meio da batalha, é verdade,
mas metade dos regimentos em ambos os lados viu-me a fazê-lo, e acho que os ingleses
ficaram mais horrorizados do que os franceses. – Hamish esforçou-se para dizer as
palavras, antes que Megan pensasse que a ideia que a sociedade tinha dele era errada.
– Devíamos ser cavalheirescos no combate, para você ver. O Wellington insistia. Nada de
saquear a província, nada de disparar sobre os piquetes franceses, para que eles não
disparassem sobre nós. As batalhas eram ordenadas à sua maneira – artilharia, cavalaria e
infantaria, nessa sequência. Podíamos disparar sobre um homem, até mesmo um homem
desarmado, derrubá-lo com uma arma, mas não… não púnhamos as mãos à volta do
pescoço dele e lhe acabávamos com a vida num instante depois de ele largar a sua arma.
Megan não disse nada, por isso Hamish continuou perseverantemente.
– Eu fiz exatamente isso. Ele não tinha arma, nem sequer a sua baioneta para se defender,
mas não me saía do caminho. Pus as mãos nele e depois matei-o.
Agora, Megan iria levantar-se, sacudir as saias e desejar a Hamish uma boa viagem para a
Escócia. Iria olhar para ele, horrorizada ou pior – insuportavelmente pior – pena. Hamish
iria passar a viagem toda a tentar galopar a toda a brida para vencer a tentação de beber
até à morte.
Megan depositou mais do seu peso sobre ele, como se a exaustão a afligisse, mesmo tão
cedo no dia.
– Vai-se para a guerra à espera de que um oficial seja competente no minuete? –
perguntou ela com o mesmo tom com que poderia perguntar sobre a afinação da gaita-de-
foles. – Teria a valsa derrotado Napoleão? As boas maneiras? Uma excelente ária de tenor?
Talento no whist, por amor de Deus? Os seus colegas oficiais provavelmente tinham medo
de si e das suas próprias mortes. A cobardia deles não é problema seu. A guerra acabou,
Hamish.
Aquela sensação estranha invadiu Hamish novamente. Parte arrepio, parte calor, parte
estupefação. Wellington preferira que os seus oficiais soubessem valsar. Com essa pequena
informação militar, a decisão de Hamish de deixar a senhora desfrutar o resto da
temporada de Londres sem ele abrandou, parou, tropeçou e… morreu.
A valsa não derrotara Napoleão. Muitos diziam que a vitória em Waterloo se devera
unicamente à determinação de um oficial escocês em mergulhar de cabeça no fogo inimigo
para salvar as forças britânicas que detinham um castelo de localização estratégica.
A guerra acabou, Hamish. Ninguém lhe dissera isso também.
– Eu odiava as batalhas – murmurou Hamish, a beijar os dedos de Meggie. – Odiava os
cercos, a bravura fingida, o fedor do medo, o cheiro a sangue. Odiava o barulho e a
violência. Odiava tudo.
Mas ele amava-a. Hamish adorava que Megan Windham, que era corajosa de formas que
os seus colegas oficiais não teriam conseguido ver, fosse capaz de ouvir a confissão dele.
– Qualquer pessoa sã odiaria a guerra – disse Megan.
Hamish odiara a guerra com fervor, embora soldado nenhum admitisse isso aos seus
colegas.
– Meggie, se lhe fizer a corte, será em toda a seriedade. Não para manter as aparências,
não como brincadeira. Oferecer-lhe-ei a minha riqueza, o meu título, a minha família. – E
porque ela lhe inspirava coragem – oferecer-lhe-ei o meu coração, a si e só a si, para todo o
sempre. Se é isso que você quer?
Ela soltou um suspiro suave e feliz e passou a mão na coxa dele.
– Eu dou-lhe autorização para me fazer a corte, Hamish, e aceito nada menos do que um
cortejo com toda a seriedade.
Ele nunca cortejaria outra mulher. Megan ouvira o pior que se poderia dizer sobre ele, e
ainda estava ali ao seu lado.
– A guerra acabou, Meggie Windham. Você tem toda a razão. Que comece o cortejo.
Capítulo 11

– És muito decorosa nesta coisa da corte – comentou Anwen. – Se eu tivesse um duque


daqueles para admirar, subornaria as minhas irmãs para me perderem de vista enquanto
fazia um piquenique em Richmond Park ou para de repente precisarem de um livro da
biblioteca quando o meu pretendente vem visitar-me.
Olhares anelantes tinham sido o total das atividades amorosas de Megan no que dizia
respeito a Hamish MacHugh. Desde que fora apanhado a beijá-la no jardim, ele fora
exasperantemente respeitável, nunca dançando com ela mais do que uma vez por noite,
nunca a segurando mais um centímetro do que o decoro permitia.
Em Richmond, o seu irmão Colin fora mais galanteador do que ele.
– Estou indecisa – disse Megan, levantando a tampa do teclado do piano. – Parte de mim
quer devorá-lo, Anwen. Outra parte de mim quer ficar absolutamente imóvel e admirar não
só o facto de que tenho um pretendente, mas também o de que tenho um pretendente que
admiro imenso. – Um que a tratava com toda a estima evidente.
Porém, Megan preferiria um pouco mais de paixão e menos estima.
Anwen sentou-se ao lado dela no banco do piano.
– Gostas verdadeiramente dele?
Verdadeira, apaixonada e eterna – e intimamente.
– Tu não aprovas o Murdoch?
– Ele é impressionante – respondeu Anwen. – Não é bonito, não é sofisticado, não é
esperto, não é… ornamental. Aprovo-o ainda mais por carência de charme, pois partilho
essa característica também. Ele servirá para ti, mas não gosto que ele viva tão longe daqui.
Que importava o charme?
Hamish era suficientemente esperto para roubar cartas sem ser apanhado, mas, mais do
que isso, era sincero. Já matei pessoas com as minhas próprias mãos, Meggie. Aquela
violência de campo de batalha horrorizava o homem que a cometera, enquanto o charmoso
Sir Fletcher tivera orgulho num esquema que reduzia Megan a uma escrava marital.
– Londres é difícil para Hamish – referiu Megan. – Reparaste que, quando fomos para
Richmond, o cocheiro dele evitou levar-nos a passar pela Guarda Montada? Hamish não
pertence aos clubes onde os antigos oficiais se reúnem, e nunca irá a um dos jantares de
Wellington. Não imagino exatamente como ou porquê, mas suspeito que parte de Hamish
MacHugh ainda está a lutar contra os franceses.
Ou os seus próprios oficiais, raios partissem aqueles hipócritas todos.
– St. Just demorou anos a chegar a casa – comentou Anwen. – Irei visitar-te à Escócia. É
um aviso. Vais casar-te com Murdoch, não vais? Não estás só a usá-lo para convenceres Sir
Fletcher a avançar com o pedido?
– Sir Fletcher não é o que aparenta, Anwen. Mantém-te afastada dele.
Anwen tocou uma escala em dó maior com a mão direita, a que apenas usava as teclas
brancas. Essa simplicidade aparente era na verdade uma das escalas mais complicadas na
opinião de Megan, em que os dedos não tinham teclas pretas para criar um padrão para
acompanhar.
– Este instrumento precisa de afinação – disse Anwen.
– Precisa sempre de afinação quando a Beth anda com disposição para Beethoven. A
temporada arrasta-se por uma eternidade quando uma mulher se aproxima dos trinta
anos.
Soou uma batida na porta da salinha de música.
– Entre – disse Anwen.
A temporada arrasta-se por uma eternidade quando uma mulher se aproxima dos vinte e
seis anos.
Hamish entrou na sala a seguir ao mordomo, com Lorde Colin a seu lado. Anwen ergueu-
se do banco e fez vénia a meio da escala, embora Megan tivesse preferido perder a sanidade
musical do que acabar em qualquer outra nota que não um dó.
– Ora, se não são exatamente os cavalheiros de que estávamos a falar – comentou Anwen,
a cruzar o braço com o de Colin. – Pretendia pedir a opinião de sua senhoria em relação a
um certo volume de poesia francesa. Pode acompanhar-me até à biblioteca? Tenho
dificuldade em chegar às prateleiras mais altas.
Anwen treparia alegremente qualquer escada ou empoleirar-se-ia até na maçaneta da
porta para alcançar o livro que quisesse. Saiu da sala com Colin, tagarelando sobre francês
e latim e outras coisas, pois Anwen – a irmã mais querida – deixara Megan sozinha com o
seu pretendente.
Pretendente esse que não parecia satisfeito por se ver sozinho com ela.
– Tranque a porta, Vossa Graça – ordenou Megan.
Hamish cruzou os braços.
– Meggie Windham, o que anda a tramar?
Megan circundou-o, como se estivesse a esconder-se por trás de um carvalho, e trancou a
porta.
– O que anda você a tramar, Hamish? Tratou-me como se fosse uma tia «flor de parede»
esta semana. Consigo compreender que um homem precise de aperfeiçoar a sua valsa, mas
você é loucamente talentoso com os beijos. Os seus abraços são fortes e ternurentos, o seu
próprio cheiro hipnotiza os meus joelhos a estremecerem. Se forçar-me a suplicar pelas
suas atenções é uma amostra dos seus estratagemas como marido, então estamos prestes a
ter uma discussão muito acesa.
Ele franziu as sobrancelhas.
– Hipnotizar, disse? O meu cheiro hipnotiza os seus joelhos?
Megan agarrou o cinto de couro que segurava o sporran na cintura dele e puxou-o.
– Poupe-me os seus vapores virginais, senhor. Você traz o odor a urze e céus abertos,
brisas marinhas e fumo de lenha quente. Nunca outro cavalheiro teve um cheiro tão
aliciante como o seu. Sonho com o seu cheiro e acordo com a almofada entre as pernas.
– Abençoado Saint Andrew, Maggie. Não tem de me dizer essas coisas.
Hamish não costumava sorrir, mas sorria agora. Uma grande maravilha de um sorriso
rasgado – direcionado para as suas botas.
Megan empurrou-o para o canapé e ele sentou-se. Que submisso da parte dele, quando
provavelmente fizera frente a regimentos franceses inteiros.
– Estamos praticamente noivos – disse ela, a montar o colo dele. – Porque não me rouba
beijos? Porque não se encontra comigo por trás de sebes ou nas cavalariças, a provar os
meus encantos?
Ela roubou mais uns beijos, caso ele esquecesse a alegria que tal furto causava.
Hamish tinha o sabor da hortelã e da paciência. A hortelã era maravilhosa, ao passo que a
paciência… Megan fartara-se da paciência.
– Meggie, minha querida, está a pôr mais achas na fogueira. – Ele tinha a mão num dos
bíceps dela, mas não era aí que Megan queria as mãos dele.
– O seu sporran tem de sair – exigiu Megan, levantando-se sobre os joelhos e tentando
tirar-lhe o cinto. – Os sporrans ficam lindos no sítio deles, e eu sei que guardam um frasco,
um pente, dinheiro, mas agora não é a… Tire isto, Hamish.
Ela não estava habituada a dar ordens, mas ocorreu-lhe que Hamish estava habituado a
receber ordens. Porque não percebera ela mais cedo que ele estava à espera que ela
mostrasse preferência no que dizia respeito aos beijos dele?
Ele desapertou o sporran com uma rapidez de movimentos gratificante.
– Já alguém lhe disse que possui uma veia latente de comando ducal?
O tio Percy obrigara Hamish a ir a uma receção na corte há dois dias, uma ordem ducal
que Megan aprovou.
– Eu sou neta de um duque, e estou prestes a tornar-me uma duquesa, espero eu. – Ela
pôs o sporran de lado e instalou-se no colo dele. – Assim está melhor. Eu estou prestes a
tornar-me uma duquesa, não estou?
Hamish beijou-a, doce, paciente e reverentemente.
Megan quis bater-lhe com o sporran.
– Isso não é resposta, Hamish. – Embora os beijos dele fossem maravilhosos. Carinhosos.
Décadas dos beijos dele não seriam suficientes, especialmente quando acompanhadas pelo
deslizar lento e suave das palmas das suas mãos nas costas dela ou da sua mão a segurar-
lhe gentilmente a nuca.
– Pare de reclamar, minha Meggie. Beije-me um pouco, por favor.
Ela poderia beijá-lo para sempre, poderia derreter no calor e na ternura dele, a mesma
sensação de que aquele homem era o seu parceiro em todos os aspetos, e, no entanto,
continha-se. Megan agarrou uma mão-cheia do cabelo dele, amparou-lhe o maxilar e
invadiu a boca dele sem misericórdia.
A invasão poderia ser uma aventura mútua. Hamish era sorrateiro, esse era o problema.
Megan saboreava, ele provocava. Ela gritava ordens com delicadeza, ele sussurrava
encorajamento. O desejo aumentou, bem como a frustração e a determinação, até Megan
ficar tão confusa que declarou um cessar-fogo temporário e aninhou-se junto ao peito de
Hamish.
– Pôs-me louca, Hamish MacHugh.
E Megan levara-o ao desejo, pelo menos. Através das suas saias e da simples espessura
do kilt de lã dele, ela sentiu a prova inconfundível da sua excitação.
– Louca – sussurrou ele, a beijá-la na têmpora. – Tola, maluca, encurralada entre desejo
e…
Ele beijou-a novamente e, apesar do bater do seu coração e do fogo no seu sangue, Megan
recorreu ao senso comum em que uma rapariga simples que não conseguia ver bem
aprendera a confiar antes de poder ler.
Porque arriscaria um homem desonra por ela ao roubar correspondência da casa de um
par da sociedade e beijá-la assim, mas negar-lhe as palavras e os atos de um noivo de facto?
Megan sentou-se direita, o que teve o efeito agradável de aproximar certas partes dela de
certas partes de Hamish.
– Você deseja-me – disse ela, a afastar-lhe o cabelo da testa. – Eu desejo-o. Você estima-
me, e eu estimo-o a si. Você correu riscos por mim, e eu protegê-lo-ia até morrer.
– Não diga essas coisas, Meggie.
Ela falava apenas a verdade, mas outra verdade invadiu o seu coração.
– Você está à espera que eu desista. À espera que eu mude de ideias, que escolha outra
pessoa. Está à espera que eu lhe envie uma daquelas cartas horríveis e declare que os meus
sentimentos mudaram.
À espera que ela o abandonasse, como fora abandonado por uma noiva anterior, pelos
seus próprios homens quando tinha sido capturado, e pelos seus colegas oficiais quando se
reformara do exército.
– Concederam-me autorização para lhe fazer a corte – afirmou Hamish. – Não presumo
coisas, Meggie Windham. A senhora é que escolhe, e você já foi vítima de vantagem injusta.
Não permitirei que se diga que a sua decisão de casar comigo não foi completamente…
Afeto, compreensão e alegria, tudo junto onde houvera incerteza.
A reticência de Hamish não era uma questão de indiferença ou indecisão, mas antes
respeito. Imenso, permanente e nobre respeito. O mal dos duques – do seu duque – era que
ele era simplesmente um pouquinho demasiado nobre.
– Você é maluco – disse Megan –, mas é meu em toda a sua maluquice gloriosa, e eu sou
sua. Eu escolho-o a si, Hamish MacHugh, duque de Murdoch. Estou a escolhê-lo a si. Você é
o homem que quero como marido, como defensor, como amigo, como amante. Não mudarei
a minha escolha, e não mudarei de ideias. Vamos discutir, discordar, ultrapassar problemas
e, possivelmente, até zangar-nos, mas você é meu agora, e aquela porta está trancada. Não
pode escapar, nunca.
Hamish prendeu uma madeixa do cabelo dela por trás da orelha. Um gesto simples, mas
carregou esse toque insignificante com reverência e carinho.
– Tem a certeza, Meggie? Eu sou teimoso e nem sempre consigo dizer o que preciso de
dizer. Pelo menos, as palavras certas. Irei pescar ou resmungar durante horas, e você
desesperará por minha causa. Eu fico rabugento no fim do inverno e impaciente. Levanto a
voz quando estou frustrado.
– Também eu. Beije-me. Ainda melhor, possua-me, pois eu certamente pretendo possui-
lo a si.
As feições de Hamish não eram evidentes para ela, mas ela podia vê-lo a pesar, a medir, a
considerar a situação, e então ela esperou. Bendito Hamish pelo cavalheiro que era, ele não
permitira que se dissesse que ela fora obrigada a um noivado. Por isso apenas, ela
apaixonou-se de novo por ele.
Mas Megan não permitiria que se dissesse que Hamish estava apenas a seguir ordens ou
uma consciência pesada ou as declarações do tio Percy.
O silêncio arrastou-se. Um pássaro foi contra o vidro da janela e esvoaçou para longe.
Para lá do corredor, ouviu-se o riso de uma mulher vindo da biblioteca. Ainda assim, Megan
esperou, porque esperar era também ouvir, e ouvir era também – em especial – gostar do
outro.
– Estou a tentar criar um bonito discurso – disse Hamish, a puxá-la mais para si. –
Ficaremos aqui até ao fim dos dias antes que isso aconteça. Se deseja que a possua
completamente, Meggie, eu sou o homem para si. Serei sempre o homem para si, e você
será sempre a duquesa para mim.

Os nossos filhos teriam cabelo ruivo.


Anwen pôs de parte esse pensamento e levou Lorde Colin para a biblioteca. Ele era a
versão mais animada do seu irmão mais velho – alto em vez de gigante, bonito em vez de
impressionante.
Tendo em conta que os rapazes no orfanato eram carteiristas e ladrãozecos em vários
estágios de reforma, isto não era inteiramente um elogio.
– Você pretendia falar comigo sobre um volume de poesia francesa? – perguntou Lorde
Colin.
Ele usava kilt, tal como o irmão. Nele o traje das Terras Altas era charmoso, enquanto no
duque… tudo o que Hamish MacHugh fazia era ousado, ao passo que Lorde Colin tinha
tendência para usar o charme.
Os diabretes de rua podiam ser charmosos quando queriam roubar-nos os relógios.
– Se está interessado em poesia, podemos certamente discuti-la – concordou Anwen, a
abrir as portas francesas. – Sobretudo, pretendia dar à minha irmã privacidade com um
homem que ela adora.
– De certa maneira, eu também adoro o Hamish – respondeu Lorde Colin –, quando não
me exaspero com ele. Coisas de irmãos, percebe?
O sotaque dele era suave, mas sempre agradável.
– Já me pus a pensar se os irmãos mais velhos são tão complicados como as irmãs mais
velhas. A minha família é bem-intencionada, mas, sendo a mais nova, gozo de um excesso
de ordens, sermões, exemplos e mimos.
Lorde Colin surgiu atrás dela.
– Um sufoco, portanto. Sendo você tão novinha, provavelmente é assim desde que
nasceu.
Bem, sim, embora recentemente Anwen tivesse estado a resistir. Em breve faria vinte e
cinco anos e a sua saúde estava bastante boa.
– Vamos lá para fora apanhar ar fresco, Menina Anwen?
Lorde Colin era muito maior visto de perto, mais ou menos do tamanho de um dos
primos de Anwen, que eram um bando de chatos excessivamente carinhosos, no que dizia
respeito às suas esposas.
Raios partissem todos eles.
– Está à vontade para visitar o jardim. Tenho de ir buscar o meu chapéu.
– Não saímos da sombra – disse ele, a agitar o braço e a piscar o olho.
Ninguém piscava o olhar à Menina Anwen Windham. Ela tomou o braço de sua senhoria
e deixou-o conduzi-la até um banco por baixo do ácer junto à parede das traseiras.
– Estamos visíveis da sala de música – referiu ela. – Caso estivesse preocupado com o
decoro.
– Não penso que os ocupantes da sala de música sejam uma fonte confiável de
supervisão, mas está segura comigo, Menina Anwen. Se a minha honra de cavalheiro
enfraquecesse perante os seus muitos encantos, os punhos do meu irmão tratariam de
restabelecer as minhas prioridades como deve ser.
Ele tinha a fragrância de prados recentemente ceifados e ar marinho suave. Bons odores,
que combinavam bem com o jardim.
– Murdoch espancá-lo-ia por roubar um beijo?
– Sim, mas, se fosse a senhora a roubar, seria um assunto completamente diferente.
Talvez isto fosse namoriscar?
– Você é uma vítima frequente de tais roubos, presumo?
– Nunca com suficiente frequência. Acha que eles serão felizes?
Anwen não sabia o que pensar destes galanteios, se eram galanteios, mas ela gostava de
um homem que se preocupava com o irmão.
– É fácil subestimar a Megan. Se ela está apaixonada pelo seu irmão, então fará o seu
melhor para ter uma união feliz. Se não está apaixonada, então não deveria haver uma
união.
Lorde Colin cruzou os braços, o tecido das roupas amontoando-se sobre os músculos.
– Você aprova a união de amor, então?
– Você não? – Os escoceses tinham fama de serem exageradamente práticos.
– Eu sei muito sobre paixão, Menina Anwen, mas muito pouco sobre romance. Um pouco
de diversão, uma brincadeira inofensiva, como não gostar disso? Mas a grande emoção
sobre a qual os poetas escrevem? Não é a minha especialidade, como se costuma dizer.
A manhã estava gloriosa e sentar-se na rua sem um chapéu pestilento a esconder meio
mundo dos olhos de Anwen era um regalo surpreendente. Ela devia desfrutar mais do ar
fresco.
– Se não é especialista em romance, meu senhor, o que lhe interessa? – Ela estava
sinceramente curiosa, e não porque Lorde Colin poderia tornar-se um familiar.
– Uísque – disse ele, baixando a voz e aproximando-se dela. – Eu sou dono de uma
destilaria e tenho uma percentagem num segundo negócio de produção de uísque. Sou um
dos poucos que estão dispostos a pagar ao maldito cobrador de impostos em vez de o ter
constantemente a destruir-me os alambiques. Se tivermos um bom produto, as pessoas
pagam por ele, e não é preciso evitar-se o homem do rei. Uma noção inovadora, mas tem
funcionado.
Se ele tivesse feito gim, Anwen teria tido um sermão preparado sobre os males do
veneno azul. Metade da população do seu orfanato era o resultado de vidas destruídas pela
embriaguez.
Ele não fazia gim, por isso Anwen optou por uma repreensão simples.
– Tenha tento na língua, Lorde Colin.
– As minhas desculpas, mas não existe nenhum abençoado cobrador de impostos. Você
quer poesia, há muita que o compara ao diabo. Quais são os seus interesses, Menina
Anwen?
Ele assumia que ela tinha interesses, além de chapéus e solteiros. Que original.
– Eu dedico-me muito ao trabalho de caridade, Lorde Colin. O sofrimento das nossas
pobres crianças, em especial, preocupa-me.
– Sofrimento?
– Não ter casa, amigos e comida, sem esperança de melhora, é um sofrimento. Elas são
crianças e não merecem de todo tal miséria. – Anwen discutiria até com o arcebispo de
Londres sobre esse aspeto.
– Serem livres – respondeu Lorde Colin –, viverem como querem, fazerem o que
quiserem e terem as relações que lhes interessarem, isso é um sofrimento que muitos
escoceses das Terras Altas gostariam de partilhar.
– Seriam livres para morrer à fome nas ruas de Londres – retorquiu Anwen. – Morrer de
frio, adoecer vezes sem conta e… Estou a discutir consigo.
Ou algo do género. Aquela discussão era como uma vista desobstruída do jardim, mais
larga, mais variada, não restringida ao que se via mesmo em frente.
– Não estamos a discutir, menina. Estamos a conversar. Discutir tem o risco de se partir
objetos na minha família. As minhas irmãs são especialistas nisso. Que mais a interessa
além de crianças desafortunadas?
Como seria correr o risco de partir objetos com Lorde Colin? Anwen mal conseguia
conceber a ideia.
– Muito pouca coisa, se tem de saber. Sou apaixonada pelo meu trabalho de caridade.
Acha que devíamos passar pelas janelas da sala de música? – Os cortinados estavam
corridos e as portas francesas fechadas, por isso a privacidade de Megan deveria estar
suficientemente segura.
– Arriscar-se-ia a ficar com sardas.
Anwen ergueu-se, porque aquele comentário passou de provocador a desafiador.
– Eu consigo sobreviver a algumas sardas, e você pode dizer-me que mais lhe interessa
além de uísque.
Ele conversou sobre usos medicinais de ervas das Terras Altas, melodias de violino de
Neil Gow – quem quer que ele fosse – e vários assuntos surpreendentes, a maioria dos
quais era relacionada com a sua nativa Escócia. E fez com que Anwen pensasse nos seus
rapazes – curiosos sobre muitas coisas, colecionando interesses como uma cotovia
colecionava botões e moedas nas águas rasas.
– Não me está a dizer que passa todas as horas dos seus dias com um bando de crianças
sujas – comentou ele.
– Não as horas todas, e os rapazes não se sujam quando eu trato deles.
– Sujam-se, sim. Logo que vira as costas, estão a esfolar os joelhos, a rasgar as calças e a
ser rapazes. Sujarem-se faz parte.
Ela adorava isso neles. Os rapazes normais sujavam-se, e ela só queria que aquelas
crianças tivessem um pouco de normalidade – refeições, orações, um lar, alguns anos de
estabilidade. Não era pedir de mais.
Um silêncio confortável arrastou-se enquanto Anwen pensava noutro assunto pelo qual
podia declarar interesse.
Os joelhos de Lorde Colin vieram-lhe à cabeça. Sentada no banco à sombra, Anwen
resistira a uma vontade de olhar fixamente para os joelhos masculinos dele, expostos pelo
traje das Terras Altas. Quem diria que os joelhos de um homem podiam ser interessantes?
Não que o interesse dela tivesse significado.

Talvez os pregadores tivessem as respostas afinal de contas. Talvez a alegria e a dor fossem
equilibradas e a justiça divina resolvesse o problema se o homem tiver paciência suficiente.
Hamish filosofaria mais tarde – talvez.
Por agora, aproveitaria a alegria com as duas mãos e segurá-la-ia com firmeza, pois
Megan Windham pretendia segurá-lo firmemente.
– A semana passada pareceu uma eternidade – murmurou ele, fuçando o nariz na
garganta dela. – Eu vi-a a rodopiar na pista de dança, sorrindo para este barão ou para
aquele idiota – você cheira a limão. Eu adoro limões. Sempre adorei.
Limões e canela. O aroma concentrava-se à medida que ele fuçava mais abaixo, sugerindo
que a senhora aplicara o perfume com a intenção de seduzir. Ela não precisava de o ter
feito. Megan Windham acabada de sair de uma pocilga teria dado cabo do juízo de Hamish
irremediavelmente.
– Maldito corpete – murmurou Megan, a abanar-se. – Deixe-me… Isso faz cócegas. Faça
isso outra vez.
Ela contorceu-se, ela agitou-se, ela deu-lhe ordens e sugestões. Quando Hamish desatou o
laço no meio do decote dela, ela suspirou, aquecendo a orelha dele com a sua respiração.
Em vez de um espartilho, ela usava um corpete rústico, que se amarrava à frente,
terminando num outro laço de cetim no topo.
– O que há de um homem mortal fazer quando confrontado com tal tentação? – cismou
Hamish, deslizando as mãos pelos lados dos seios de Megan. Ela era bem avantajada, um
facto que ele conseguira mais ou menos ignorar até ela se ter instalado no seu próprio colo.
– Você arromba fechaduras no escuro – disse Megan, desatando-lhe a gravata. –
Certamente dois laços não excedem as suas habilidades?
Os dedos dela passaram levemente pela sua garganta e peito, o que Hamish interpretou
como a versão de Megan de uma inspeção. Ela podia não ser capaz de vê-lo
pormenorizadamente, mas conhecê-lo-ia tão bem ou melhor do que uma mulher com visão
perfeita.
Hamish desfez o segundo laço com os dentes.
– Sabe; de acordo com a lei escocesa, um homem e uma mulher são considerados casados
se expressarem a intenção de se casarem, e depois consumarem essas intenções. É isso que
você quer, Megan?
Ela hesitou, pousando a palma da mão sobre o coração de Hamish.
– Eu quero-o a si agora e sempre. Eu não sou completamente inexperiente, como se deve
lembrar. Não precisa de se preocupar com as minhas sensibilidades virginais.
Megan certamente não estava preocupada, o que tranquilizou a parte de Hamish que
hesitava apesar da recompensa diante dele. Sir Fletcher tinha muito pelo que responder, o
que Hamish também ponderaria mais tarde.
– Desejo que as suas sensibilidades virginais tivessem recebido o respeito que mereciam,
Meggie. Adoro a sua paixão, mas… – Como é que um homem com o colo cheio de mulher
adulta, meio despida e disposta, expressava o lamento pela perda da virtude dela e a alegria
de ser o recetor da confiança e generosidade dela?
Esse homem não expressava a sua gratidão com palavras, não se ele fosse Hamish
MacHugh. Em vez disso, afastou camadas de linho e musselina, banqueteando os seus
sentidos com tons de marfim, creme e rosa. Encantadores, deliciosos, doces, sedosos –
alimonados também – e maravilhosamente cor-de-rosa.
– Eu não estava a ignorá-la, Meggie. Eu estava a tentar ser respeitoso – disse ele, a mudar
de um seio para o outro. – A tentar mostrar-lhe o controlo de um cavalheiro digno, fui um
tolo.
Megan puxou as saias.
– O meu tolo.
– Todo seu, Meggie. Você parece tão confiante e independente. Eu nunca pensei que
estava a causar-lhe dúvidas. Lamento. Mas nós vamos aprender. Vamos ganhar o jeito –
querubins alados misericordiosos, Meggie Windham.
Enquanto Hamish beijara e mordera e lambera e provocara, Megan reajustara as suas
roupas, para que nada houvesse entre eles. Nem um kilt, nem uma túnica, nem um sporran,
nem um controlo muito cavalheiresco.
– Chega de disparates – disse Megan, remexendo em todas as anáguas e tudo o que
estava em redor deles, e envolvendo uma mão na parte de Hamish menos disposta a
qualquer tipo de controlo. O seu toque era seguro, possivelmente roçando o desesperado.
Ele errara, por outras palavras. Tentara mostrar à rapariga e ao mundo que nunca
presumiria a boa vontade dela, e deixara-a duvidosa da sua estima. Se hesitasse agora, só
causaria que mais dúvidas a afligissem.
– Faça você – pediu Hamish. – Leve o seu tempo, e possua-me, da maneira que desejar.
Ela atormentou-o, aprendendo os seus contornos, acariciando suave e docemente em
locais que tinham estado carentes durante muito tempo. Algures entre suspiros, beijos,
explorações curiosas e juramentos silenciosos, Hamish concluiu que uma licença especial
era um excelente costume, embora não tão boa quanto o handfasting.
Porque, a partir daquele dia em diante, ele considerava-se comprometido com Megan de
todas as formas que importavam.
– Agora? – perguntou Megan, encaixando-os juntos.
Céus, sim. Agora.
– Estou nas suas mãos, Meggie. Faça o que quiser.
Ela desejava terminar um tormento para Hamish no interesse de começar outro. Um
abanar lento e cauteloso, um empurrão, um recuo, um deslizar e um avanço após outro,
Megan Windham desejava. Pela intensidade da sua concentração, Hamish percebeu que a
sua experiência anterior não fora fantástica, nem lhe proporcionara uma oportunidade de
fazer mais do que suportar os apalpões de Sir Fletcher.
– Isso é… – disse Megan, tomando mais dele. – Eu gosto de como… isto é íntimo.
Ela não tivera a certeza, melhor dizendo. Ela não tivera nenhuma confiança íntima em si
mesma.
– Se você apenas gosta, então eu tenho de a convencer – retorquiu Hamish,
acrescentando uma pequena investida às comemorações.
Megan ficou imóvel.
– Faça isso outra vez. Exatamente como fez.
Hamish obedeceu e em pouco tempo eles estabeleceram um ritmo glorioso e urgente.
Megan beijou-o e uniu as mãos junto à nuca dele.
– Isto não é como… Oh, isso é maravilhoso. Mais disso. Por favor, Hamish.
Mais atenção para os seios, contrapondo simultaneamente o movimento das ancas dela e
recusando a necessidade estridente de se apressar. A respiração de Megan acelerou e
tornou-se ofegante, ao passo que Hamish fechou os olhos, para evitar que a visão dela
dominada pela paixão acabasse com a sua autodisciplina.
Fechar os olhos não ajudou. Apenas tornou o peso e o calor dela mais atraentes, apenas
elevou e apressou mais o prazer.
E, no entanto, quando Megan gemeu suavemente junto ao ombro de Hamish e depois
ficou mole no rescaldo do seu prazer, ele conseguiu conter o seu próprio êxtase. Um
homem protegia aqueles que eram seus, e isso significava até à troca de votos. Hamish
poderia satisfazer a sua senhora oito vezes por dia, mas a sua própria gratificação teria de
esperar até que ela tomasse não apenas o seu coração, mas também o seu nome.
Capítulo 12

A manhã estava bonita, embora o humor de Sir Fletcher estivesse absolutamente péssimo.
Gritara com Geneva por ter enfiado o dedo no frasco de compota ao pequeno-almoço,
depois sua senhoria gritara com Sir Fletcher e os sorrisos das megeras à volta da mesa
tinham sido insuportáveis.
– Vamos dar uma volta, sim? – disse Sir Fletcher, a levantar-se do banco que seguia o
perímetro de Grosvenor Square. Puget caminhou ao seu lado, sugerindo que o antigo
capitão compreendia quando uma ordem lhe era dada.
– Eu disse que queria a dança do jantar – murmurou Puget. – Lady Pamela disse que só
podia ceder a allemande. Os seus pais estão em negociações em nome dela com um conde
nortenho que raramente vem à capital, mas precisa de uma ama para as suas tuteladas. Não
pode ser, Pilkington.
– Sir Fletcher, se faz o favor. Pode ser, sim, a não ser que a Pamela fuja consigo, e isso ela
não fará. – O ar matinal tornou-se perfumado com frustração típico do amor verdadeiro,
com o qual Sir Fletcher não se importava. – Preciso de mais dinheiro.
– Obteve recentemente cinquenta libras, raios. Como pode gastar cinquenta libras numa
semana?
Sir Fletcher inclinou o chapéu para a nova duquesa de Quimbey, que estava
acompanhada por um cão enorme. Um lacaio passeava um segundo cão, de igual tamanho,
a poucos metros de distância.
– Um cavalheiro solteiro de boas famílias tem necessidades, Puget, especialmente
durante a temporada. O seu pai é um conde. Tenho de lhe fazer um desenho?
– Cinquenta libras sustentariam algumas famílias durante um ano.
– Não me diga. Obrigado por essa revelação fascinante. Eu, por outro lado, preciso de
uma injeção de capital daqui a uma semana.
Puget continuou a seu lado em silêncio durante dez metros. Não era mau tipo, mas
também não era especialmente inteligente, apesar de reivindicar uma hoste de habilidades
artísticas. Um homem inteligente com os talentos de Puget já teria forjado uma maneira de
arranjar os fundos necessários para casar com a bela Pamela. No mínimo, Puget poderia ter
estado a imortalizar duquesas envelhecidas na tela – ou os seus cães flatulentos. Retratos
de desporto poderiam também ter rendido um bom salário, desde que ele não se
incomodasse com o fedor a suor.
– Não faz tenções de ajudar à minha causa no que diz respeito à sua irmã, pois não?
A única causa que Sir Fletcher estava interessado em ajudar era a sua própria. Enquanto
espalhava rumores sobre um certo duque escocês, Sir Fletcher vira-se atraído a participar
em alguns jogos de cartas, e a sorte tinha-lhe falhado. O resultado fora mais de uma semana
a evitar convites, pois as dívidas de honra tinham de ser pagas prontamente.
– Já apoiei os seus esforços no que diz respeito à Pamela, caso contrário você não teria
sequer autorização para dançar uma allemande. O amor verdadeiro tem de ser
determinado, Puget. Eu não posso fazer o trabalho todo, nem posso remediar a sua
inaptidão fundamental aos olhos do meu pai. Para isso precisará de dinheiro ou pelo menos
de um meio de sustento nobre, o que traz novamente ao assunto em mãos.
– Não o farei – disse Puget. – Já disse a mim mesmo que nenhum sacrifício é demasiado
se significar que eu e a Lady Pamela podemos ficar juntos, mas uma dança aqui e ali,
enquanto Lady Pamela é desfilada como uma égua premiada diante de um labrego de
Cumberland…
Pammy era mais uma bezerra, robusta e sadia.
– Eu falarei com o labrego, dir-lhe-ei que Pamela tem tendência para enxaquecas e
acessos de raiva, o que não é mentira nenhuma. Ela requer uma fortuna em chapéus e botas
também, e consome uma parte considerável do conteúdo das nossas despensas. Deixe o
labrego comigo e trate de me arranjar mais cinquenta libras no final da semana.
Puget parou na esquina da rua, transferindo o olhar de novo para o outro lado da praça.
– Ela disse que se encontraria comigo aqui antes do meio-dia.
Oh, por amor de Deus. O meio-dia fora há pelo menos meia hora.
– Puget, ouça-me. Arranje um antigo oficial qualquer para depenar até ao final da
semana, se não terá dançado a última allemande com a minha irmã.
– Não há mais oficiais, Pilkington. Já dei voltas à cabeça, passei a pente fino os meus
cadernos e antigos registos. Você já pôs a mão nos bolsos dos que têm dinheiro e tendência
para beber e jogar. A lista é mais curta do que pensa.
Provavelmente era verdade, porque muitos do que se tinham reformado estavam agora
presos ao casamento, e isso poderia estragar abominavelmente os hábitos sociais de um
homem.
– Quem está na capital este ano que normalmente passa a temporada na província?
Puget prestava atenção ao panorama social. Um filho mais novo sem meios tinha de o
fazer.
– Mais Windham do que o habitual, mas o Keswick e o Rosecroft não jogam nem bebem.
– E o MacHugh? – questionou Sir Fletcher. – Ele tem um título novo, diz-se que tem
dinheiro e anda acompanhado por duas irmãs e um irmão. Você viu a caligrafia dele em
várias requisições e despachos, e ele é sem dúvida bem-vindo em qualquer clube de
cavalheiros agora que é titulado.
Um selvagem escocês recebia um belo título antigo enquanto o filho de um conde inglês
era obrigado a engendrar esquemas para pagar o alfaiate. A justiça era uma pega cega,
surda e sarnenta, e sacar uns trocos a MacHugh retificaria um dos seus erros mais egrégios.
– A caligrafia do MacHugh – do Murdoch – é distinta – disse Puget, franzindo os lábios –,
mas ele nunca abusa da bebida. Também ainda não o vi nos clubes. No caso dele, uma
dívida de jogo aleatória não dá.
A impaciência aumentava, pois uma visita à residência de Lorde Anthony Windham
tornara-se uma prioridade premente.
– Então inventa um sapateiro, G. Puget e Filhos, ou algo do género. Envia uma conta
vencida ao novo duque de Murdoch, pagável por correio a enviar para os seus aposentos
atuais. Calçar uma família recém-chegada à capital para a duração de uma temporada deve
custar pelo menos cinquenta libras.
G. Puget e Filhos poderia também ser como vinicultor, carniceiro ou tabaqueiro. O
esquema era simples e elegante, um grande progresso dos jogos mais complicados de
Puget.
Ao fundo da praça, a figura rechonchuda de Pammy virou casualmente a esquina, seguida
pela sua dama de companhia. A uma rua da sua casa, ela teria autorização para apanhar ar
com uma acompanhante miserável, principalmente se a madrasta tivesse abusado na noite
anterior.
– Muito bem – concordou Puget. – Enviarei a Sua Graça de Murdoch uma conta de botas,
mas esta é a última vez, Pilkington. Você arrisca a minha vida com os seus pedidos e isso
não me ajudou a pôr uma aliança no dedo da Lady Pamela.
Apenas a intervenção divina alcançaria esse objetivo.
– Informe-me quando tiver o dinheiro e não desespere em relação à Pamela. Ela é uma
jovem muito determinada.
Principalmente quando havia um prato de bolinhos envolvido.
Puget já se afastava, com o olhar fixo na sua linda senhora. Sir Fletcher partiu na direção
contrária – não seria conveniente se Pamela o avistasse na companhia do seu mancebo
valente – e em breve chegou à residência de Lorde Anthony Windham.
– Queira fazer o favor de informar a Menina Megan Windham da minha presença – disse
Sir Fletcher, entregando a sua bengala e o chapéu ao mordomo. – E também gostaria de me
despedir dos pais dela antes que partam para Gales.
Lorde Anthony insinuara que o protocolo marital requeria que ele consultasse a mãe de
Megan em relação a pretendentes potenciais – uma cortesia entre pais. Sir Fletcher
murmurara palavras apropriadas de comiseração masculina, mas não recebera qualquer
mensagem de Lorde Anthony, nem uma palavra trocada em privado num trilho
ensombrado, e, portanto, não haveria nenhum cortejo público.
Sem um cortejo público, um celibatário não tinha expetativas concretas para explorar,
como todos os lojistas e comerciantes pareciam saber.
– Sir Fletcher, bom dia. – Anwen Windham sorriu-lhe, acompanhada por um sujeito de
cabelo escuro e kilt. Ambos tinham um ar travesso no hall de entrada, como se tivessem
acabado de beber uns copos na biblioteca.
O sujeito de kilt parecia familiar, sugerindo que Sir Fletcher se cruzara com ele numa sala
de estar qualquer.
– Menina Anwen, bom dia. Não creio que conheço o seu visitante. – Todos os bárbaros de
kilt pareciam iguais, e era sem dúvida por isso que se distinguiam uns dos outros com
xadrezes diferentes – um lema de família em tecido para os analfabetos.
– Na verdade, você conhece-me – respondeu o homem. – Servimos juntos em Espanha e
fomos apresentados na residência de Sua Graça de Moreland. Capitão Lorde Colin
MacHugh, ao seu serviço, Sir Fletcher.
Ah, sim. O MacHugh mais novo, o que quase fizera com que o irmão fosse morto pelos
franceses, julgado em conselho de guerra pelos ingleses e canonizado pelos escoceses.
O instinto agitou a memória de Sir Fletcher para mais do que uma recordação vaga de
dias no exército e uma partida que correra mal no que dizia respeito ao capitão MacHugh,
mas para quê remexer nesse lixo – na sua maioria preservado em mau vinho – quando uma
senhora precisava de uma visita do seu mais dedicado admirador?
– Tem razão, Lorde Colin – disse Sir Fletcher, com um sorriso charmoso. – Agradeço a
correção. É um prazer voltar a vê-lo. Menina Anwen, tinha esperado ver os seus pais
quando partissem na sua viagem e cumprimentar a Menina Megan.
Sir Fletcher sorriu para ela tão docemente como um mancebo enamorado sorriria.
Ela franziu ligeiramente o nariz no sentido negativo.
– A Megan não está em casa, infelizmente, e a minha mãe e o meu pai já partiram. Quase
os apanhava.
Maldição. Os bons modos proibiam perguntar se «não está em casa» era um eufemismo
para «não está em casa para si».
– Por acaso, os seus pais não deram informações acerca do percurso deles? Posso
desejar-lhes boa viagem por correio.
– Eu enviar-lhe-ei uma morada assim que nos mudarmos para a Casa Moreland. Tanto
alvoroço que se cria ao mudar de casa, sabe.
A Menina Anwen precisava de aperfeiçoar o seu sorriso gracioso, pois a expressão dela
mostrava demasiados dentes e pouca simpatia.
– Desejo-vos um bom dia – disse Sir Fletcher, lançando um olhar esperançoso para a
escadaria principal. Não poderia simplesmente perseguir Megan até ao próximo salão de
baile, não enquanto não tivesse reposto as suas finanças.
– Bom dia – disse Lorde Colin, aceitando a bengala e o chapéu de Sir Fletcher das mãos
do mordomo e entregando-os ao dono. – Aproveite o bom tempo.
O mordomo segurou a porta aberta e Sir Fletcher não teve alternativa senão voltar pelo
caminho que viera. O que é que queria dizer que Lorde Anthony partira para Gales – logo
Gales – sem dar permissão para um pretendente muitíssimo digno cortejar Megan?
Embora sua senhoria também não tivesse proibido Sir Fletcher de passar tempo na
companhia de Megan, uma descoberta encorajadora que o fez balançar a bengala,
decapitando o espécime mais alto de um canteiro de flores cor de laranja.
Permissão para cortejar uma senhora era uma formalidade, nada mais, e Megan trataria
de que essa permissão fosse oferecida diretamente. Puget juntaria o dinheiro necessário
para apaziguar os credores mais gananciosos de Sir Fletcher e em breve tudo se resolveria.
Sir Fletcher estava a meio do caminho de regresso a Grosvenor Square quando se
apercebeu de que poderia encontrar Puget e Pammy a fazerem olhinhos um ao outro em
público. Esse pensamento desagradável levou-o para sul, na direção de St. James Street.
Haveria pouca gente nos clubes tão cedo e um homem podia sempre pôr uma refeição na
sua conta.
Talvez o labrego de Cumberland estivesse disponível para uma conversa discreta a
respeito dos muitos vícios de Pammy… exceto que Puget se esquecera de mencionar o
nome ou o título do labrego.
Que lástima. Apenas mais um exemplo de como os mínimos pormenores podiam levar o
amor verdadeiro a descarrilar para a vala fétida mais próxima.

– Sua Graça está absolutamente satisfeita consigo própria – comentou Westhaven. – O


projeto-lei parlamentar de alguém está prestes a ser rejeitado, o canal de alguém drenado.
De quem é a vez de dar as cartas?
Os homens da família Windham reuniam-se para jogar cartas pelo menos uma vez por
semana, se não houvesse outros encontros familiares. Não se encontravam em clubes, mas
sim na biblioteca de Westhaven. As festas de jogo tinham-se tornado o destaque social da
semana de Keswick e ele suspeitava que os seus cunhados pensassem o mesmo.
– Sua Graça, nossa mãe, está exaltada por ter as nossas primas sob a sua alçada – disse
Rosecroft. – Se Sua Graça, nossa mãe, está feliz, Sua Graça, nosso pai, está feliz.
– E se Suas Graças estão felizes, o reino deve estar seguro – murmurou Lorde Valentine,
recebendo o baralho das mãos de Westhaven. – A não ser, claro, que uma das crianças
esteja com os dentes a nascer, ou com cólicas ou a fazer birra, ou o bebé não durma durante
a noite, ou…
– … ou as criadas andam em discórdia – acrescentou Westhaven.
– Ou a tua filha tem de escrever cartas todos os dias ao seu maldito cão e ao seu maldito
pónei – acrescentou Rosecroft. – Valentine, já baralhaste bem as cartas.
– Já passa da vossa hora de deitar, cambada de senis – lembrou Lorde Valentine, dando
cartas com a rapidez de um homem que alegava uma riqueza de destreza manual. – O que é
isto que se anda a dizer sobre a Megan estar interessada no escocês da valsa?
Trocaram-se olhares à volta da mesa, embora Westhaven – como o herdeiro ducal que
era – apenas observasse as cartas a serem empilhadas à sua frente.
– A Megan está interessada no duque de Murdoch – comentou Rosecroft. – Ele não seria a
minha escolha para a nossa Megs.
Keswick arregalou os olhos para as suas cartas, embora tivesse um bom jogo.
– Qual seria a tua escolha para ela?
Keswick não conhecia bem Megan Windham, mas gostava dela. Era sensata, leal como o
raio à família, e paciente com crianças e primos desmiolados. Acima de tudo, a condessa de
Keswick, Louisa, gostava muito de Megan.
– Eu preferiria um inglês – disse Westhaven. – A Escócia fica demasiado longe.
– Eu subscrevo essa moção – afirmou Lorde Valentine, acabando de dar as cartas. –
Também pensava que a Megs combinaria melhor com um tipo afável, que gosta de livros,
toca violino e fuma cachimbo. Não um guerreiro das Terras Altas que usa saia e mal
conhece as regras do bom trato.
– Nem todos nascemos em famílias ducais – comentou Keswick. – Estamos aqui para
jogar cartas ou fazer de casamenteiras?
– Fazer de casamenteiras, claro – respondeu Westhaven, ordenando as suas cartas. –
Todos se opõem ao Murdoch? Pensava que a Megan estava interessada em Sir Fletcher
Pilkington, mas a minha condessa diz-me que estou errado.
– As condessas costumam fazer isso – murmurou Rosecroft. – Valentine, porque não dás
cartas decentes?
– Porque quero tirar-vos os trocos – replicou Lorde Valentine. – As minhas irmãs
esperam que eu vos mantenha na linha, e essa tarefa ingrata requer que vos esvazie os
bolsos. No entanto, o Keswick tem pelos vistos um bom jogo.
A porta abriu-se, dando entrada a Lucas Denning, marquês de Deene, cujo privilégio era
estar casado com Eve, a filha mais nova da família ducal Windham.
– Traz os decantadores – disse Rosecroft quando os jogadores arranjaram espaço para
mais uma cadeira. – E prestem condolências ao caro Valentine pela iminente perda da sua
última moeda para os seus irmãos mais velhos.
– A tua chegada interrompeu uma discussão interessante, Deene – comentou Westhaven,
servindo bebida a cada homem à medida que Lorde Valentine dava novas cartas. – A prima
Megan gosta do novo duque de Murdoch. Será que os encantos do Sir Fletcher pioraram ou
será que ela está a tentar convencer Sir Fletcher a avançar com a corte ao mostrar interesse
por um rival.
– Murdoch? – Deene considerou as suas cartas. Ele parecia um pouco preocupado, como
seria normal num novo pai. – Não o conheço.
– Conheceste-o como coronel Hamish MacHugh – informou Rosecroft. – Tens compota na
gravata, Deene? O Valentine pelos vistos criou uma nova moda.
– É o sangue do último homem que sugeriu que eu desgraçaria a minha marquesa se não
aparecesse diante dos irmãos dela. Keswick, começas tu?
Keswick lançou uma carta.
– Alguém tem de o fazer.
– Hamish MacHugh foi o homem feito prisioneiro pelos franceses – comentou Deene. –
Não deve ter sido uma experiência agradável, mas ele também não foi provavelmente um
tipo agradável para ter como prisioneiro, se os rumores são verdade.
– Que rumores? – perguntou Westhaven.
– Joga uma carta, raios – murmurou Rosecroft.
Westhaven moveu o pulso e uma carta voou até ao centro exato da mesa.
– Que rumores?
Rosecroft pousou uma carta em cima da de Westhaven.
– Os rumores que diziam que MacHugh tinha um caráter tão violento que nem os
interrogadores franceses o queriam no seu caminho. Possuía reputação de ter boa conduta
em batalha, mas depois diz-se que levou os seus próprios homens para uma emboscada
numa ponte miserável.
Keswick reuniu as cartas.
– Ele era considerado um selvagem. Testemunhas viram-no partir o pescoço de um
homem desarmado sem pestanejar. Não é coisa que se faça, nem no campo de batalha, e há
quem diga que o próprio irmão do MacHugh foi uma das vítimas do desrespeito do coronel
pelas ordens. Outros sugerem que os rumores estão errados. Podemos mudar de assunto?
– De que sabor é a compota na tua gravata? – perguntou Rosecroft a Deene. – Descobri
que a framboesa faz piores manchas do que o morango.
Deene baixou o olhar para a sua gravata.
– Não sei. A Evie vai zangar-se comigo, mas que se pode fazer quando temos no colo um
anjo sorridente e ninguém avisa que o anjo mexeu na compota?
– Mudar de gravata? – sugeriu Westhaven. – Limpar as patinhas do anjo com um dos três
lenços de bolso que todo o pai respeitável traz sempre consigo? Entregar o anjo às amas
com uma carranca magnânima, resmungando sobre o decoro no berçário?
– Ah! – exclamou Lorde Valentine do outro lado da mesa. – O decoro no berçário é um
oxímoro assim que temos o primeiro filho, tal como uma boa noite de sono.
E, isto, cismou Keswick, era o que homens crescidos faziam quando saíam à noite, ora a
descansar dos rigores da felicidade doméstica, ora a imaginar como as suas senhoras e
filhos estavam em casa. A reunião foi interrompida abruptamente à meia-noite, quando
Rosecroft sugeriu que verter água a ferver continuamente em qualquer prova de compota
de framboesa poderia salvar uma gravata de ter uma mancha.
– Um passeio? – perguntou Deene baixinho quando chapéus e luvas e bengalas foram
distribuídas.
– Claro – respondeu Keswick. – Rosecroft, vens apanhar ar fresco connosco?
– Alguém tem de tratar de que o Deene chegue a casa em segurança, se não a Evie zanga-
se comigo.
Keswick precisara de paciência e subtileza, mas não poderia considerar a noite
desperdiçada se os três veteranos da família da campanha peninsular arranjassem a
privacidade necessária para discutir outro antigo soldado. Durante o passeio, carruagens
passaram ruidosamente por eles e mensageiros e lacaios seguravam lanternas para os
grupos elegantes.
– Dizia-se que o MacHugh era meio louco – disse Deene. – A guerra não realça o melhor
num homem, mas é esse o tipo de homem que a Megan deve desposar?
– Nós estávamos todos meio loucos quando atravessámos as montanhas para França e as
coisas não melhoraram em Waterloo – recordou Rosecroft. – O registo do MacHugh inclui
insubordinação, processos disciplinares, refratarismo, conduta imprópria e todo o tipo de
ignomínias. Moreland não deve saber do registo militar de Murdoch.
Caminharam lado a lado em silêncio até à esquina seguinte.
– Keswick, a tua eloquência habitual abandonou-te – disse Rosecroft. – Qual é a tua
opinião?
– Podíamos mandar MacHugh afastar-se dela – sugeriu Deene. – A Evie diz que Sir
Fletcher Pilkington tem andado atrás da Megan.
– Perguntei ao Keswick a opinião dele – disse Rosecroft. – Qualquer idiota sabe que Sir
Fletcher tem andado a seduzir a Megan, mas ele é praticamente um caça-dotes.
Se Rosecroft e Deene fossem dez anos mais novos, poderiam ter-se empurrado,
acotovelado nas costelas ou, então, escondido um afeto permanente com socos.
Keswick podia também ter batido com as cabeças deles uma na outra.
– Não vos parece estranho que o registo militar do MacHugh seja demasiado terrível?
Porque não foi expulso do regimento? Porque não foi a conselho de guerra? Porquê toda
aquela má conduta, mas sem despromoção de patente?
Rosecroft esperou que uma carruagem passasse e entrou na rua.
– Porque o MacHugh era corajoso. Os franceses falavam dele em sussurros e os homens
dele seguiam-no para qualquer lugar. Até os generais respeitam a coragem.
– Os nossos generais falavam sobre ele em sussurros – ironizou Deene. – MacHugh
Maluco, o Terror de Toulouse, ou algo parecido. Os franceses não conseguiram segurá-lo
durante muito tempo. Mas é curioso que falem dele, porque ouvi uma discussão na semana
passada em que foi mencionado.
Tal como Keswick. Várias discussões.
– Especulação sobre a aptidão dele para deter um título? Indicações de uma mente
desequilibrada? Insinuações vagas sobre temperamento incontrolável, desonra e impulsos
violentos?
Deene inclinou-se para retirar um lírio morto no canteiro de flores mais próximo.
Encontravam-se à saída da residência de Lorde Anthony, a casa às escuras exceto pelas
lâmpadas acesas nos degraus da frente.
– Exatamente isso – disse Deene, endireitando-se. – Ao que chegou a nobreza, quando um
bruto selvagem, um assassino de inocentes desarmados, tem um título ducal? Quando um
homem de patente significativa leva os seus soldados para uma emboscada desobedecendo
ordens e foge à justiça? Se é que foi isso o que aconteceu.
– Quando um título vai parar a um lugar improvável, há sempre falatório – replicou
Rosecroft. – Enfrentam-se os mexericos e volta-se para Yorkshire à primeira oportunidade.
– Ou Kent – sugeriu Keswick. – E não se condena um homem com base em falatórios. O
MacHugh serviu de forma honrosa, independentemente de o seu registo ter algumas falhas.
Estou disposto a confiar no juízo da Megan no que diz respeito a ele. – Principalmente,
porque Megan confiara em MacHugh em vez de partilhar os seus problemas com a própria
família.
Deene balançou a bengala para a colocar ao ombro, tal como os soldados carregavam
habitualmente as espingardas.
– Porquê confiar na nossa Megs? Ela não é uma pessoa muito extrovertida e o MacHugh –
Murdoch, quero dizer – apareceu de repente. Sir Fletcher tem mantido o seu interesse
desde o início da temporada e, embora eu não goste do Pilkington, ele não desaparecerá
para as florestas da Escócia assim que os votos forem proferidos.
– As arenas de lutas de galo, as arenas de tortura de ursos, os bordéis e os antros de jogo
são preferíveis à Escócia? – perguntou Keswick. – Porque esses são os lugares favoritos do
Pilkington quando não está a beber no clube ou a galar a mãe de uma debutante qualquer. –
Ou à caça de herdeiras, ou a usar a correspondência de uma senhora para a forçar ao
casamento.
Keswick não pretendia revelar os erros epistólicos de Megan ao próprio primo dela, não
quando MacHugh tratara aparentemente da situação.
Rosecroft murmurou qualquer coisa feia no seu irlandês nativo.
– Se desqualificarmos como pretendente todos os solteiros que se comportam como
solteiros, as minhas primas envelhecerão todas solteiras. Keswick, o que sabes tu que não
nos contaste?
– Muita coisa, claro, mas o que é importante é que, em todos os casos em que alguém
mencionou a inaptidão de Murdoch – a sua alegada inaptidão – à minha frente, essa pessoa
estivera recentemente a falar sobre o novo duque com um tal Sir Fletcher Pilkington.
– Ele outra vez – respondeu Deene. – Isto vai dar confusão e a Megan está no meio disto,
e Suas Graças com intenções de a casar, nem que o mundo acabe.
– Eis o que eu acho – começou Keswick. – Se Sir Fletcher está preocupado com a Megan,
então deve discutir as suas preocupações com a família dela, principalmente com nós os
três. Espalhar boatos nos clubes é cobardia, e mesmo que algum deles seja verdade, nunca
ouvi o Hamish MacHugh ser acusado de cobardia, nunca.
– Confusão – comentou Deene novamente. – Muita confusão, quando tudo o que temos
para nos guiar é uma carrada de falatório contraditório.
– Então, descobrimos o que pudermos – disse Rosecroft –, mantemos os olhos abertos e
alertamos o resto da família sobre um possível problema. Meus senhores, desejo-vos boa
noite e bons sonhos. Os meus cumprimentos às vossas senhoras.
Ele curvou-se e voltou-se na direção da residência de Westhaven. Deene partiu na outra
direção, enquanto Keswick permaneceu onde estava.
– Tu vens? – perguntou Deene. – Está a ficar tarde e a minha marquesa vai ficar
preocupada.
– A tua marquesa, tal como a minha condessa, não está preocupada – retorquiu Keswick,
retomando as suas perambulações. – Ela está à espera de ti com as suas vestes noturnas
mais diáfanas, provavelmente a desfrutar de uma chávena de chocolate quente e a planear
as tuas boas-vindas. É assim que se fazem famílias grandes.
– É inspirador, Keswick, saber que um homem da tua natureza imponente se rende
regularmente aos encantos das roupas de noite diáfanas.
Sempre que possível.
– Tal como tu.
Eles chegaram a outra esquina, na qual os seus caminhos divergiam.
– O que vamos fazer em relação ao Murdoch? – questionou Deene. – Eu posso falar com
alguns ex-oficiais, bisbilhotar na Guarda Montada, verificar quaisquer registos
relacionados. Estou disposto a enviar cartas para alguns dos homens com quem servi ou a
conversar com outros.
Keswick sentiu-se abruptamente desesperado pela companhia da sua condessa. Louisa
era a mulher mais sensata que ele conhecia e os seus conselhos sobre os pretendentes de
Megan tinham sido brilhantes.
– Fazes como achares melhor, Deene, mas todas essas conversas, cartas e bisbilhotices só
alimentarão os rumores que Sir Fletcher iniciou. Suspeito que seja exatamente esse o
objetivo dele e não pretendo ajudá-lo.
– Não podes ficar parado sem fazer nada enquanto a Megan cai nos braços de um partido
indigno – respondeu Deene. – Não me interessa se o Murdoch é um duque. Um homem com
um feitio instável ou escândalo no seu passado não será adequado, Keswick.
– Escândalo significa pouco para um Windham apaixonado – retorquiu Keswick – e eu
nunca disse que ficaria parado sem fazer nada.
– Então o que farás?
– Vou falar com Murdoch – disse Keswick – e se ele não me desafiar ou espancar por lhe
fazer umas perguntas constrangedoras, escutarei o que tem para dizer.
Capítulo 13

A primavera chegou a Mayfair e a Megan Windham. Ela suspeitava que a temporada fosse
contagiosa, pois quanto mais tempo Hamish MacHugh a cortejava, mais os seus olhos azuis
assumiam o brilho de um lago tranquilo e a alegria das campainhas.
– Percebi uma coisa – disse Megan, enquanto ela e o seu amado percorriam de coche um
caminho tranquilo no Hyde Park. Hamish conduzia com a mesma calma com que fazia tudo
o resto – quase tudo o resto. Num sofá da sala de música na semana anterior, ele mostrara
uma adorável propensão à paixão.
– Confio que me dará o benefício da sua mais recente descoberta.
Ele confiava, ele nunca exigia. Megan quis beijá-lo por isso.
– Primos não são como irmãos – disse ela. – Não é bem assim. Eu tenho primos, mas a
Edana e a Rhona são suas irmãs. Você é mais impetuoso com elas do que os meus primos
são comigo.
Hamish virou o veículo por um trilho lateral sombreado. Conduzia uma equipa
experiente graças ao trabalho pesado de carga na cervejaria, ainda bastante em forma e
saudável, mas, pelas palavras dele, «reformados do serviço de combate». Os seus nomes
eram Clyde e Angus e eles adoravam descaradamente o seu dono. Talvez isso também fosse
contagioso, pois, embora fossem uma escolha não convencional para um serviço de
carruagem, Megan sorria sempre que os via.
– Impetuoso nem sempre é bom – disse Hamish. – A Edana e a Rhona podem tornar-se
ferozmente gananciosas na modista ou no chapeleiro e depois, quando as contas chegam,
eu cinjo-me a gritar em vão.
– Dê-lhes fundos próprios – sugeriu Megan. – Seja generoso, mas firme. Quando gastarem
o que têm, não recebem mais até ao trimestre seguinte. Elas podem emprestar uma à outra,
ou mandar a aia delas vender o que está fora de moda ou usado, mas dê-lhes a
oportunidade de administrarem os seus próprios recursos.
Ele tocou-lhe no ombro suavemente.
– Já lhe disse que você é brilhante, Meggie minha? O Colin é realmente muito bom com
dinheiro e tem muito que é dele, apesar de o seu senso comum falhar noutros aspetos.
Colin era muito bom no que dizia respeito a charme.
– É melhor que ele adquira algum senso comum. Se é herdeiro de um ducado, próspero,
bonito e uma novidade de kilt, então as jovens senhoras mostrar-lhe-ão o seu interesse com
olhares derretidos por causa desses atributos, e não por causa das qualidades mais
refinadas dele.
Olhares derretidos podiam mentir. Megan suspeitava que a maioria das mulheres
aprendia isso mais cedo do que ela. Edana e Rhona, que tinham vários irmãos, sem dúvida
sabiam disso.
– O Colin raramente considera os porquês – respondeu Hamish –, que é o seu pecado
vergonhoso. É corajoso, é honrado, mas ele não é…
– Ele é um cabeça quente – concluiu Megan, ouvindo a preocupação na voz de Hamish. –
O meu primo Bartolomeu também era. Impetuoso, para aqueles que gostavam dele. Os que
não o amavam chamavam-lhe imprudente.
A memória de abraçar Bart com tanta força quando ele se preparara para partir para a
guerra em Espanha ainda a magoava. De desejar que ele fosse cuidadoso, que se
comportasse como se pudesse sofrer uma queda ou viver uma desgraça muito pior com
qualquer passo incauto que desse. Para olhar para onde ia e ver o perigo antes que o perigo
o encontrasse.
– O Colin é imprudente – disse Hamish, sinalizando os cavalos para abrandarem o trote. –
Embora lamente sempre as suas apostas estúpidas ou palavras precipitadas. Ele gosta de si,
a propósito.
– Eu gosto dele. Não gosto que os seus irmãos o arreliem tanto.
Megan adorou que o caminho estivesse deserto. Ela e Hamish haviam saído de casa no
início da tarde, muito antes de o desfile de carruagens lotar o parque com moda e mexerico.
Com Hamish nas rédeas, aquelas saídas tornaram-se um interlúdio de vegetação, ar fresco,
conversas e toques partilhados. As nuvens acumulavam-se no alto, tornando o dia um
pouco frio, mas isso proporcionava a Megan uma desculpa para se sentar mais perto do seu
pretendente.
– A família é uma alegria – afirmou Hamish – e uma preocupação. O meu avô era muito
jovem quando a revolta de mil setecentos e quarenta e cinco aconteceu, mas ele contou-me
histórias da sua vida quando era menino. A terra era propriedade comum, mesmo que fosse
detida pelo laird. As fortunas aumentavam e diminuíam para o clã como um todo, e
ninguém estava sozinho com os seus problemas ou alegrias. Ainda temos as misérias e
alegrias, mas muita coisa mudou.
Ele conduziu os cavalos para um trecho de relva por baixo de um venerável carvalho e
assinalhou-lhes que parassem.
– Você é um duque – disse Megan. – Isso é uma mudança enorme, e pode ser uma
mudança para melhor, Hamish.
– Eu vou casar com a mulher que amo – respondeu ele, pontuando o sentimento com um
beijo. – Essa é a melhor mudança possível. – Por alguns minutos, beijaram-se e enroscaram-
se e arriscaram o escândalo sob o carvalho silencioso, embora apenas um pequeno
escândalo. Quando a mãe e o pai voltassem em poucas semanas, seria anunciado um
noivado e os planos de casamento começariam a sério. Megan não se importava muito com
o lugar ou a forma como a cerimónia aconteceria, só lhe importava que Hamish
pronunciasse os seus votos.
Hamish já afirmara que a amava, umas vezes com os seus beijos e outras com palavras
proferidas para ela no meio de conversas privadas. Megan não adquirira o jeito de retribuir
as palavras, mas queria.
– Eu gosto quando você diz o meu nome – sussurrou ele, depois de terem satisfeito a
necessidade imediata de beijos. – Uma pessoa cumprimenta este sujeito chamado Murdoch
e eu olho para ver quem ele é. O Colin acha que eu deveria começar a usar o nome James
em vez de Hamish.
– Não se atreva.
Ela agradara-o. Hamish olhou para o caminho, mas, pela curva da sua face, ela sabia que
ele estava a tentar não sorrir.
– Cada vez fala mais gaélico comigo, Meggie. Sabia disso?
– Não comece a usar o nome James, por favor. Eu conheço-o como Hamish, e esse é o seu
nome. Agora diga-me porque se juntou ao exército.
A postura dele alterou-se. Muito provavelmente, o sorriso desaparecera.
– Porque pergunta?
Porque ela poderia perguntar-lhe qualquer coisa, e ele responderia com sinceridade, não
com discrição típica de primos.
– Você ama a sua casa, é o mais velho, o chefe da família. Eu sei que não gostava de ser
soldado e, no entanto, serviu durante anos. Não consigo conciliar o que sei sobre si com o
seu passado.
Ele desenrolou as rédeas do freio e sinalizou aos cavalos que caminhassem.
– Prefere casar-se com um homem que prosperou na guerra? Alguns diziam que eu tinha
aptidão para isso, quando não estava a desobedecer a ordens, a dar um mau exemplo ao
meu irmão ou a ser capturado pelos franceses.
Apesar do caminho suave sob os cascos dos cavalos, Megan guiara de alguma forma a
conversa para terreno pantanoso. A brisa também aumentara e ela sentia chuva a vir na
sua direção.
– Vou casar-me consigo e, aparentemente, o Wellington tinha uma aptidão para a guerra,
para grande alívio da Inglaterra. Se a guerra derrotou um tirano francês, então fico feliz por
alguém na Grã-Bretanha ter sido competente nisso. Os portugueses, os espanhóis, os
alemães, os russos, os austríacos, os polacos e os italianos não estavam a ter muita sorte
sem nós.
Hamish permaneceu em silêncio durante uns bons noventa metros, à medida que a
vegetação passava num borrão verdejante. Megan tinha pouco sentido de orientação, o que
a teria alarmado se tivesse estado na companhia de outra pessoa. Quer estivessem perto do
Serpentine ou de Park Lane, perambulando pelos Jardins de Kensington ou prestes a
saírem de Rotten Row, ela não sabia.
Hamish estava ao seu lado e ele levá-la-ia de volta aos estábulos de Moreland. Os céus
poderiam abrir as comportas, trovões e relâmpagos quebrar os céus, mas Hamish levá-la-ia
para casa em segurança.
– Depois da revolta de mil setecentos e quarenta e cinco – disse ele –, muitas famílias
escocesas foram afastadas das terras que trabalharam durante séculos, principalmente no
Oeste da Escócia. Não falavam inglês, não sabiam ler nem escrever nenhuma língua e toda a
noção de documentação que legalizava e vinculava a transferência de terras… eles não
entendiam isso. Depois de Culloden, eram prometidas muitas vezes a um rapaz escocês
terras em troca de receber o xelim do rei. Mas ele não se alistava para lutar pelo rei e pelo
país ou mesmo pelo dinheiro. Alistava-se na esperança de ser recompensado com alguns
hectares para que a sua família não morresse à fome.
Um arrepio desconfortável atravessou os braços de Megan.
– Mas os regimentos escoceses são dos mais corajosos.
– Os regimentos escoceses têm de ser os mais corajosos. Estão sempre implantados onde
o combate deve ser o pior. Os militares também são inteligentes nesse aspeto. No exército,
um escocês pode pavonear-se com o seu xadrez, ouvir a gaita-de-foles e marchar ao ritmo
dos tambores. Na nossa terra, tudo isso foi proibido durante muito tempo, apesar de estar
na moda agora. Então os escoceses alistaram-se e, para o horror dos franceses e assombro
de todos os fidalgotes que nada faziam com as suas comissões compradas, aqueles rapazes
das quintas e aldeias lutaram com ardor pelos seus.
Megan fechou a mão à volta do braço de Hamish, pois a sensação de arrepio
transformara-se num calafrio auxiliado pela brisa refrescante.
– Você lutou com ardor pelos seus.
Hamish incitou os cavalos a acelerar o passo, quase a atingir o trote.
– Lutei ao lado dos meus homens. Praticamente roubei requisições, discuti com generais,
extraviei ordens e travei uma guerra dentro de uma guerra para ver se muitos dos meus
subordinados chegavam a casa para reivindicar o seu terreno escocês se fosse possível. Eu
mantenho o Napoleão nas minhas orações, Meggie. Por causa dele, alguns hectares da
Escócia voltaram para as mãos das famílias que os merecem.
Aquela visão da guerra era complicada e desconfortável, também íntima – única para
Hamish MacHugh, que a tornava uma preciosa confidência.
– Eu não lutei pelo gordo e efeminado Jorge – continuou ele –, nem pelo pobre Jorge
maluco, ou qualquer um dos malditos Jorges que vieram antes deles. Julga-me um traidor,
Meggie?
– Claro que não.
Os cavalos continuaram a trote durante alguns minutos, o que sugeria que Hamish os
conduzira por um grande círculo verde. O Hyde Park tinha centenas de hectares, mas,
eventualmente, todos os caminhos revelavam que era exatamente o que era – um oásis
bucólico no meio de habitações humanas cada vez mais densas.
Megan esperou que Hamish continuasse, mas o silêncio prolongou-se. Teria ela dado a
resposta errada? Porque se tornara a conversa – para não falar do clima – tão sombria?
– A Charlotte acha-se uma Whig – comentou Megan. – Sobretudo, gosta de discutir. É
incrivelmente inteligente.
– Os irmãos tendem a pensar isso de si mesmos.
– É uma grande defensora de ideias radicais, liberdade, igualdade e fraternidade entre
elas. É capaz de discursar sobre o declínio da monarquia e a fraqueza filosófica inerente ao
direito divino dos reis até você desejar ir-se embora com as mãos a tapar os ouvidos.
Ribombaram trovões para norte.
– Eu amo-a – disse Hamish. – Não apenas porque você acha que ir embora é uma grande
grosseria.
Megan ignorou a tentativa dele de a distrair porque tinha a sensação de que as suas
próximas palavras eram importantes. Muito importantes.
– Eu sempre quis perguntar à minha brilhante irmã que tipo de liberdade é dada com
uma baioneta francesa? Que tipo de igualdade requer um imperador coroado para garantir
isso? Que tipo de fraternidade é conquistado ao forçar o recrutamento forçado e a morte
violenta de incontáveis centenas de milhar de pessoas? Você lutou por algo sincero e real,
Hamish, para que as famílias não passassem fome, para que os seus homens chegassem a
casa. Quem ousou criticá-lo por isso?
Alguém ousara, aparentemente. Talvez muitos alguéns.
Uma gota de chuva caiu no banco ao lado de Megan e Angus sacudiu o freio.
– Ah, raios. Agora eu pu-la à chuva – disse Hamish. – Pegue nas rédeas por um instante,
sim, Meggie?
Megan aceitou as rédeas, embora não estivesse a usar luvas de condução e tivesse apenas
uma ideia geral de onde era o caminho. Mas os cavalos eram perfeitos cavalheiros e
caminhavam suavemente, apesar da mudança de condutor.
Hamish despiu o sobretudo e colocou-o sobre os ombros de Megan. Quanto mais gotas de
chuva caíam, mais ela se envolvia em calor, na fragrância de urze e num adorável sentido
de retidão.
A conversa sobre a guerra deixara-a insegura – Hamish não lhe contara toda a sua
situação, disso ela tinha a certeza –, mas eles tinham tempo de conhecer as histórias um do
outro e os corações um do outro. A guerra acabara, afinal de contas. Hamish protegera-a o
máximo possível do tempo e levá-la-ia em segurança para casa.
Por enquanto, isso era o suficiente.

Do outro lado do salão, Megan Windham estava a conversar com o duque de Quimbey.
Hamish enfrentara acusações de cavalaria, baionetas francesas e a consciência de uma
tortura iminente, mas não era capaz de se defender da ternura. O seu coração enternecia-se
sempre que olhava para Meggie, todas as tensões aliviavam, uma leveza de espírito que o
aproximava mais do homem que fora antes de a vida militar o ter tornado uma arma
humana.
Quando Megan Windham o tocava, o seu interior suspirava, a mente derretia-se e ele
sentia-se invadido por uma sensação de paz. Ela escutava-o. Prestava atenção às suas
palavras, aos seus silêncios. Com as mãos, ela arrancava segredos de dentro dele que
tinham estado escondidos até dele próprio.
Gostava de quando ela lhe pegava na mão, gostava de quando cruzava o braço com o
dele. Tinha uma maneira de o abraçar parcialmente de lado, um pressionar rápido de
corpos e um aperto dos dedos que o desfazia numa poça de mancebo adorador.
– A minha condessa diz que você anda a compor poesia mentalmente sempre que
contempla a Megan Windham – comentou o conde de Keswick.
– Lorde Cowlick, boa noite – respondeu Hamish, embora não tivesse tirado os olhos da
sua senhora. – Ninguém lhe disse que abordar um homem sorrateiramente não é boa
educação?
A condessa de Keswick provavelmente adorava as sobrancelhas dele, pois eram escuras
e expressivas. Agora diziam que o conde estava dividido entre o riso e a indignação, um
bom lugar para um futuro membro de família estar.
– Quando tiver filhos, Murdoch, ou aprende a ser sorrateiro ou a familiarizar-se com os
encantos dúbios do celibato. Além disso, um regimento montado em elefantes poderia
abordá-lo sorrateiramente quando você está a observar a Megan Windham.
– Sim. – E porque não se calava Keswick, por favor, para que Hamish pudesse retomar o
seu passatempo agradável? Meggie estava a encantar o velho Quimbey, que recentemente
descartara o celibato viúvo pela companhia de uma antiga duquesa viúva. Dizia-se que um
amor por cães em comum os tinha juntado.
– Você e a bela Megan já marcaram uma data? – perguntou Keswick.
– Você é pior do que uma melga. A senhora marca a data, normalmente depois de os pais
dela terem anunciado o noivado. Ainda há o assunto dos acordos para discutir e, caso não
tenha reparado, ou caso a sua condessa omnisciente não o tenha informado, uma mulher
tem direito a algumas semanas de cortejo antes de jurar fidelidade.
Um quarteto de cordas estava a afinar os instrumentos no canto do salão, pois esta era
uma noite musical, cortesia da marquesa de Deene. Edana e Rhona encontravam-se junto à
terrina do ponche, agitando leques com graciosidade, e Colin estava provavelmente a
seduzir uma viúva ou outra mulher na varanda ensombrada mais próxima.
Os irmãos estavam contabilizados. A pretendida a menos de cinco metros. Londres não
era assim tão má logo que um homem se interessava pela senhora certa.
– Não marcaram uma data – continuou Keswick. – Isso sugere que você está a ganhar
coragem, pois sei de boa autoridade que teve permissão para fazer a corte. Antes que peça
a mão da Megan em casamento, eu gostaria de lhe fazer umas perguntas.
Keswick falava casualmente – demasiado casualmente.
Hamish sabia que não devia reagir de forma evidente, mas a sua nuca arrepiou-se de
desagrado.
– Faça as perguntas que quiser. Se se intrometer em assuntos que não lhe dizem respeito,
posso responder-lhe com os punhos.
Sua senhoria ajeitou o folho ornamental da camisa de Hamish.
– Há falatório, Murdoch. Não o tipo de falatório que se quer ouvir sobre um antigo colega
oficial. Não estou a sugerir que o falatório tem fundo de verdade, mas você devia saber o
que anda a ser dito.
Hamish interrompeu a adoração visual da sua amada durante tempo suficiente para
considerar o homem ao seu lado. Keswick não era parvo nenhum e as investigações
discretas de Colin tinham revelado uma reputação em Espanha de competência calma.
– Você ou está a preparar-me uma emboscada, ou a tentar avisar-me de uma.
– A Louisa diz que você é um tipo esperto. Estou a reservar… – Ora, raios. Pensava que
ele se estava a esconder dos credores.
Sir Fletcher Pilkington juntara-se à festa e curvava-se sobre a mão da marquesa, com
outro sujeito ao seu lado.
– A Megan não o reconheceu. – Megan não tinha nada a temer de Sir Fletcher e nunca
mais teria. No entanto, a sensação de picada na nuca de Hamish moveu-se para os seus
braços.
– Murdoch, boa noite – cumprimentou o conde de Rosecroft do lado direito de Hamish. –
Keswick, saudações. Por acaso, nenhum de vós pretende agraciar-nos com uma canção esta
noite?
– Quem é aquele que está com o Pilkington? – perguntou Hamish, porque o homem
parecia-lhe familiar. Magro, um pouco mais alto do que o normal, um porte algo nervoso.
– O ilustre antigo capitão Garner Puget – disse Keswick. – Um dos filhos mais novos de
Lorde Pyne sem perspetivas de futuro. Aspirava ser retratista, segundo os artistas na
família Windham. Murdoch, terá de exibir uma expressão suficientemente civilizada no seu
rosto, se não Lady Deene pensará que um salteador escocês se juntou à festa.
As irmãs de Hamish mostraram-lhe carrancas, como era hábito.
– Melhor ainda – disse Rosecroft –, vá para a varanda da salinha de família ao fundo do
corredor, onde o seu irmão mais novo está prestes a aproveitar as atenções de uma
senhora cujo marido é ciumento.
Sir Fletcher continuara a bajular a marquesa.
A sua atenção estava fixa em Megan, que se afastara de Quimbey e estava a dirigir-se
para a terrina do ponche.
Hamish praguejou em gaélico. Rosecroft ergueu as sobrancelhas. Demasiado tarde,
Hamish recordou que a língua-mãe de Rosecroft era irlandês, semelhante ao seu nativo
gaélico.
– O tempo urge – acrescentou Rosecroft. – O seu irmão parecia ser um homem
determinado a alcançar o seu objetivo.
– Ele nasceu determinado para esse objetivo – replicou Hamish. – Não posso tomar conta
do Colin agora com Sir Fletcher prestes a atormentar a Meggie. – Embora alguém tivesse de
tomar conta de Colin. O maldito idiota ainda seria desafiado para um duelo ou pior.
– Trate do seu irmão – aconselhou Keswick. – Nós olhamos pela Megan – de perto.
– Olhem de perto o cavaleiro acolá – avisou Hamish. – Sir Fletcher não tem boas
intenções. Se eu não voltar em dez minutos, por favor, levem as minhas irmãs a casa e
digam à Megan que sempre a amarei.
Hamish fez-lhe uma vénia tão cordialmente quanto possível quando a raiva da batalha
ameaçava aparecer. Colin tinha imenso jeito para se meter em alhadas nas piores alturas,
ainda que houvesse reforços à disposição, caso Meggie precisasse deles.
Com base no comportamento de Sir Fletcher – sorriso brilhante e um olhar que lembrava
a Hamish serpentes famintas –, ela precisava deles naquele preciso instante.

Um homem de kilt movia-se de forma diferente de um homem em traje de noite londrino


normal. Movia-me com mais liberdade, mais charme. Megan não conseguia distinguir a
expressão de Hamish, mas sabia que o seu pretendente a vigiava do outro lado do salão. O
duque de Quimbey tagarelava sobre cachorros e vida de casados, enquanto Megan anuía
com a cabeça, sorria e fingia prestar atenção.
– A minha duquesa escolheu os nossos lugares – disse Quimbey. – Queira dar-me licença,
Menina Megan, a não ser que gostasse de se sentar connosco?
O velho patife sabia muito bem que Megan tinha outros planos.
– Obrigada, Vossa Graça, mas estou a ver Lady Rhona e Lady Edana a fazerem-me sinal.
Esperam que me junte a elas para a segunda parte do programa.
Quimbey curvou-se sobre a mão de Megan e foi-se embora. Megan esperava que fossem
de facto Edana e Rhona que estivessem junto à terrina do ponche – elas preferiam tons
arrojados, e com toda a razão. Com o seu cabelo ruivo e tez colorida, os verdes, vermelhos-
escuros, azuis e castanhos ficavam-lhes muito bem.
Megan estava determinada a sentar-se com Hamish durante o resto do programa e assim
quase não viu o homem com quem colidiu a meio do caminho para a terrina do ponche.
– Menina Megan, peço-lhe imensa desculpa.
Sir Fletcher manteve as mãos nos braços de Megan, com um toque desconfortável. Usara
novamente demasiada essência de rosas e a ameaça subjacente à sua saudação serpenteava
pelas entranhas de Megan como uma corrente de ar frio.
– Sir Fletcher, boa noite. Como está?
– Tenho estado desolado com a falta da sua companhia – respondeu ele, com uma mão
sobre o coração. – Espero que tenha tido saudades minhas.
Megan sentira tantas saudades dele como sentiria de uma enxaqueca, tendo em conta
que seria acompanhada por uma dor de dentes, um tornozelo torcido e disenteria.
– Tenho a certeza de que Lady Edana e Lady Rhona gostariam de o cumprimentar – disse
ela – e elas esperam que me sente com elas. – Mesmo entre elas, se fosse preciso, pois
Megan não fazia tenções de passar um instante mais do que necessário ao lado de Sir
Fletcher.
– Venha – disse Sir Fletcher, levando Megan pelo braço. – Reconheço que lhe é difícil
navegar os limites movimentados aqui. Fique comigo, não deixarei que nenhum mal lhe
aconteça.
Ele não estava a tramar coisa boa, apegando-se demasiado ao lado de Megan, e num
evento em que grande parte da alta sociedade notaria. Pelos vistos, ainda não reparara que
as cartas de Megan lhe tinham sido devolvidas.
Sir Fletcher seduzia Rhona e Edana. Enquanto isso, Megan esperava que Hamish se
juntasse à discussão, embora não se atrevesse a tentar atrair a atenção dele. Em vez disso,
Keswick e Rosecroft apareceram, declarando-se sedentos de um copo de ponche e da
companhia de mulheres bonitas.
Megan foi então resguardada entre dois dos seus primos quando o quarteto de cordas
abriu a última parte do programa, enquanto Sir Fletcher ficou acompanhado por Edana e
Rhona.
E Hamish desaparecera.
Capítulo 14

Algo em Megan Windham estava diferente, embora Sir Fletcher não conseguisse decidir se
gostava da diferença. Ela estivera de pé no centro do salão, a namoriscar com um duque.
Um duque idoso e recentemente casado, mas ainda assim…
Megan normalmente permanecia no perímetro de uma sala – provavelmente tinha
menos probabilidades de cair – e não estava habituada a sorrir e a exsudar bom humor
para toda a gente. Talvez a sua pobre visão significasse que estivera a beber do ponche dos
homens em vez do das senhoras.
Sir Fletcher certamente aproveitara-se da situação, e que oferta decente era.
A música também era agradável e o programa terminou com o irmão de Lady Deene,
Lorde Valentine, a deslumbrar a audiência com o seu talento no piano. Sua senhoria era um
prodígio, facto com que impressionava toda a gente de forma demorada e entediante.
– Onde poderiam os nossos irmãos ter ido? – cismou Lady Rhona à medida que as
pessoas começavam a dispersar-se. – Ambos gostam de música, e eu tinha a certeza…
– Alguns convidados estão a ouvir da biblioteca do outro lado do corredor – disse
Rosecroft. – Tem cadeiras mais confortáveis, percebe? Os convites de Lady Deene
raramente são recusados e o resultado por vezes é uma multidão.
– Exatamente – concordou Keswick. – Cadeiras confortáveis, acesso ao bufê. Que homem
não ficaria tentado? O Murdoch não se importaria se nós acompanhássemos as senhoras
até casa, de certeza.
– Que ideia genial – disse Sir Fletcher, colando-se ao lado de Megan. – Estava prestes a
fazer a mesma sugestão.
Megan Windham – a solteirona mais agradável, entediante, afável e obediente em
cativeiro – balbuciou algo baixinho que soou distintivamente deselegante.
– Perdão? – murmurou Sir Fletcher a inclinar-se para ela. Podia-se tomar liberdades em
público, desde que a pessoa parecesse solícita ao fazê-lo.
– Uma enxaqueca – respondeu Megan. – Estou certa de que uma enxaqueca está a tentar
apoderar-se de mim. Se calhar o ar fresco vai ajudar.
O ar fresco ajudaria, tal como as ruas escuras e um pouco de privacidade.
Sir Fletcher fora negligente na sua idolatria e adoração durante a semana anterior.
Felizmente, um musical consistia em comida e bebida gratuitas e não era o tipo de lugar
onde seria assediado por causa das suas dívidas. A hora chegara para lembrar Megan
Windham de alguns factos salientes.
Na rua, Sir Fletcher recusou abandonar o lado de Megan, enquanto Rosecroft
acompanhou Lady Edana e Keswick ocupou o lugar ao lado de Lady Rhona.
– Porque não nos dão eles privacidade? – perguntou Sir Fletcher baixinho. – Você devia
tê-los treinado melhor do que isto, quando estamos praticamente a fazer a corte.
Não importava o quão lentamente ou rapidamente Sir Fletcher caminhava, um dos
familiares de Megan permanecia à frente deles e outro atrás.
– Eles têm consciência dos seus deveres – respondeu Megan. – Porque quereria eu ter
privacidade consigo, Sir Fletcher? Quando lhe ofereci alguns instantes de privacidade,
acabei por ficar com uma das memórias mais horríveis da minha vida.
Para Megan ser assim tão sincera, a cabeça devia estar mesmo a doer-lhe, coitadinha.
– Não tema, minha querida. Com tempo aprenderá a gostar das minhas atenções –
respondeu Sir Fletcher, embora mantivesse a voz baixa. – Quando regressam os seus pais
de Gales?
Anwen Windham esquecera-se de enviar a Sir Fletcher a morada que lhe prometera.
– Quando lhes apetecer – retorquiu Megan, a puxar o braço para se soltar dele.
Sir Fletcher agarrou-lhe a mão e enrolou-a no seu braço, pousando depois a sua sobre os
dedos dela num aperto firme.
– Sou a favor de uma outra demonstração de espírito num cavalo ou numa mulher – disse
Sir Fletcher –, mas amuos e birras não a favorecem. Precisamos de marcar uma data.
– Esta noite servirá – replicou Megan, a soar como se falasse entredentes. – Esta noite
você começa a deixar-me em paz, a agir como o verdadeiro cavalheiro que deve ser. Não
pense por um instante em seduzir Lady Edana ou Lady Rhona para um armário de lençóis
ou para a casa dos arreios. Os irmãos delas matam-no se se aproximar delas a partir de
agora. Também deixará as minhas irmãs em paz, caso contrário, irei atrás de si eu mesma.
No meio do ruído e chinfrim da passagem de carruagens, as conversas de outros
pedestres que abandonavam o musical e os chamamentos dos mensageiros, mais ninguém
teria ouvido a explosão de Megan.
Sir Fletcher também não tinha a certeza se a ouvira corretamente.
– Minha querida, está a ficar doente? Sou eu quem provou os seus encantos, caso não se
lembre. O oficial galante a quem escreveu uma quantidade impressionante de cartas
tórridas. Tenho provas de que me ofereceu a sua inocência, e com essa prova posso
arruiná-la a si e às suas irmãs.
E também apoderar-se de uma fortuna decente, graças a Deus. Que mais haveria um filho
mais novo de um conde de fazer, se não casar com o melhor partido possível?
Megan continuou a andar em silêncio, enquanto Sir Fletcher considerava que talvez a
família Windham tivesse tendência para nervos fracos. Quanto mais cedo se casasse com
Megan e a tirasse da alçada do papá, melhor.
Ou talvez Megan não fosse a menina de óculos dócil que ele escolhera para namoriscar
há tantos anos. Isso poderia tornar a vida de casados interessante – ou uma carga de
trabalhos.
– Ficou silenciosa – disse ele. Megan também ficara tensa. – Está a ter um mau momento,
provavelmente aquela enxaqueca maldita. Tenho ponderado uma licença especial – as
melhores cinco libras que um solteiro possa gastar, segundo alguns. O seu pai agradecer-
me-ia por salvá-lo do aborrecimento de um casamento, e diz-se que o casamento acalma os
nervos de uma jovem mulher.
– Preste atenção, Sir Fletcher – começou Megan, muito baixinho. – Tenho as minhas
cartas de volta. Foi-me devolvida cada uma delas. Você perdeu a vantagem que tinha sobre
mim e farei com que todas as mulheres que conheço saibam o que você tentou fazer
comigo, até não haver nem um salão de baile ou uma festa de jardim onde seja bem-vindo.
Se fosse a si, inventaria uma vontade súbita de viajar pelas florestas do Canadá ou pelas
selvas do Peru. Uma vontade súbita e prolongada.
Megan extraiu-se das mãos de Sir Fletcher e agarrou-se ao braço livre de Keswick.
– Deveríamos desejar boa noite a Sir Fletcher – disse ela. – Aproximamo-nos da
interseção onde o caminho dele diverge do nosso.
O raio é que se aproximavam.
Sir Fletcher curvou-se apesar de tudo, porque era claro que Megan Windham acreditava
no que dissera. Pensava que as suas cartas estavam novamente em segurança na sua posse
e que se considerava livre para oferecer a sua companhia a um bárbaro escocês presumido
qualquer.
– Desejo ao grupo boa noite – disse Sir Fletcher. – Minhas senhoras, meus senhores,
tenham uma noite agradável. Menina Megan, até ao nosso próximo encontro.
Pois o caminho de Sir Fletcher de modo nenhum divergia do dela, nem iria ela satisfazer
aquele súbito interesse na companhia do duque de Murdoch, a espécie mais grosseira,
inapropriada e risível de todos.
No entanto, Sir Fletcher iria requisitar uma licença especial.

– Devias espancar-me e despachar isto – disse Colin enquanto caminhava ao lado de


Hamish.
– Eu quase te atirei da varanda. – Não era verdade, mas Hamish sentira-se tentado a
saltar da varanda e abandonar o seu irmão bonito e lascivo ao destino que merecia. – A
senhora tem uma reputação.
As palavras ecoaram baixinho na rua pouco iluminada e também no coração de Hamish.
Quando aprenderia Colin a ter mais cuidado? Ao que chegara o mundo, quando Hamish
sabia mais sobre uma esposa com propensão para trair o marido do que Colin?
– Eu gosto das que têm reputações. São amistosas quando o homem está sozinho e longe
de casa. Como haveria eu de saber que o marido também tem uma reputação?
De desafiar o duelo à mera fita de corpete caída.
O pai tentara ensinar bom senso aos filhos ao estilo da porrada, mas até ele desistira do
castigo corporal no que dizia respeito a Colin. O exército que o eduque.
– Pensa nas tuas irmãs – disse Hamish. – Se te envolveres num escândalo, então elas
também ficam envolvidas, e o escândalo tem maneira de se tornar permanente na
reputação de uma família. Eu já fiz o suficiente para manchar o brasão MacHugh. Se não
fosse este maldito título, a Eddie e a Ronnie não seriam aceites em companhia tão
sofisticadas como agora.
– A Eddie e a Ronnie matar-me-iam se eu causasse um escândalo – disse Colin, a
abrandar os passos. – Não gostaria disso.
– Irias desiludi-las – replicou Hamish. – Destino pior que a morte, quando elas se
desiludem com um homem. Os invernos são suficientemente longos sem aquelas duas a
suspirar e a segredar.
– É por isso que devias espancar-me – concedeu Colin. – Se eu ficar com algumas nódoas
negras, então a Eddie e a Ronnie não me ameaçarão com sentimentos de culpa. Só é preciso
um olho negro.
– És louco, mas também já sabíamos disso. – Hamish nunca bateria no seu próprio irmão,
provavelmente nunca bateria noutra pessoa na vida.
Colin tirou o seu frasco, bebeu um gole e passou-o a Hamish.
– Se te pedisse para te encontrares comigo no Jackson’s Salon, farias isso?
Hamish cheirou o recipiente aberto, pois os gostos de Colin eram tão duvidosos como o
seu senso comum. Naquela noite, a bebida oferecida era ligeiramente fumada, com um odor
delicado a cedro e canela subjacente. Uísque suave, ao contrário da variedade desastrosa.
– Por amor de Deus, porque é que alguém haveria de querer porrada de propósito? –
murmurou Hamish.
– Porque é uma maneira de dares porrada a outro homem, e erguer os punhos dá
coragem a um homem.
Não, não dava. Pugilismo premeditado aproximava um homem mais de memórias que
seria melhor não recordar. A única tentativa de Hamish de combate corpo a corpo após a
guerra – um encontro com o seu antigo captor, o barão St. Clair – provara justamente isso.
– Não te vou bater – declarou Hamish. – A tua consciência pesada pode poupar-me o
braço.
Colin aceitou o frasco de volta, tomando outro gole antes de o guardar.
– Dás-me ao menos um soco se eu admitir que me preocupo contigo?
Ora, raios.
– Rio-me. Tu és o temperamental, o parvo imprudente com quem os nossos pais se
preocupavam mais. Todos nós nos preocupamos contigo, Colin. Não tens de te apoquentar
comigo nesta altura tão tardia.
– Tu odeias ser um duque, tal como odiaste o exército.
Colin estava de facto a sentir-se imprudente.
– Quanto é que já bebeste?
– Não o suficiente. Interfere com a minha capacidade de agradar as senhoras.
Hamish odiara o exército, mas até agora Colin poupara-lhes a ambos essa admissão.
– Com a duquesa certa ao meu lado, ser um duque não será assim tão mau. Os familiares
da Megan são duques há séculos. Aposto que um escocês com um novo título de duque seja
o mesmo que um mero soldado aristocrático. Estavas a tentar convencer-me a bater-te,
Colin?
O silêncio ressonante foi resposta suficiente.
– Colin, não me inspires a levantar a mão contra ti. Tu gostas de uma boa briga, mas eu
tive a minha quota-parte de lutas de todas as formas. Depois de uma crise de mau humor,
provavelmente darás um aperto de mão ao homem que te sangrou o nariz, enquanto eu
posso bem enterrar o meu adversário. Odiaria que fosses tu.
O frasco brilhou à luz do candeeiro da rua mais próximo, só que desta vez Colin parou de
andar e esvaziou o recipiente.
– Tu deixaste uma parte de ti em França – referiu Colin. – Não sei que parte foi, mas era
importante, e tu não tens sido verdadeiramente feliz desde que te reformaste, desde que te
alistaste, de facto. Não sei o que fazer por ti, e agora este maldito título caiu-te em cima. De
alguma maneira, isto parece ser também culpa minha.
Que confissão vinda de um homem que adorava galopar sem sela pelos campos vastos ou
pelos lençóis de uma viúva alegre.
Hamish pousou um braço sobre os ombros de Colin e esfregou os nós dos dedos na coroa
da cabeça do irmão.
– Eu sou um duque. Em breve serei um marido. Acredito que uma coisa compensará a
outra. Se calhar, em vez de perseguires viúvas e testares a minha paciência, devias
encontrar uma esposa para ti.
Hamish esperava que Colin se risse. Em vez disso, instalou-se outro silêncio entre eles,
tão pensativo quanto o último fora frustrado.

– Peço desculpa por abandoná-la na musical – disse Hamish. – O Colin meteu-se numa
situaçãozinha que envolvia uma senhora e uma varanda escurecida.
– Deixe-me adivinhar – respondeu Megan a passear pelos jardins de Moreland com o seu
amado no sol da manhã. – A viscondessa Rothergild. Ela anda de olho no Colin desde que
ele apareceu no baile da tia Esther de kilt. Eu devia tê-lo alertado.
Hamish parecia exausto, ou talvez sobrecarregado, mas também ele visitava
normalmente Megan de manhã, quando a maioria da alta sociedade descansava e
domesticava.
– Eu não estou a cortejá-la para que cuide dos meus irmãos, Meggie. A sua família já fez
tanto por mim e pelos meus. Salvar o Colin de complicações tem sido o meu papel desde
que nasceu.
Como, pelos vistos, era cuidar de Edana e Rhona, gerir a riqueza da família, vigiar os
outros irmãos e familiares na Escócia, bem como vários primos em Londres, e também ser
chefe de família. Megan pegou na mão de Hamish, porque adorava tocá-lo, e porque a forma
como os dedos dele agarravam nos seus e a atitude do seu andar diziam-lhe tanto quanto as
suas palavras.
– Sir Fletcher acompanhou-me até casa.
– Ele incomodou-a, Meggie? – O tom de Hamish prometia infortúnio a Sir Fletcher se ele
se tivesse comportado mal.
Que homem encantador era o pretendente de Megan.
– Eu informei Sir Fletcher de que ele já não possuía as minhas cartas e disse-lhe para se
afastar de mim, das minhas irmãs, das suas irmãs e da sociedade em geral. Ele pareceu
aceitar bem, mas o Rosecroft e o Keswick estavam por perto, e a Edana e a Rhona também
estavam connosco.
Hamish levou Megan para trás de uma sebe de rododendros que ainda não tinham
desabrochado e envolveu-a nos seus braços, protetores e acolhedores.
– Meggie minha, correu um risco.
– Você correu um risco ao recuperar as minhas cartas. Pôr Sir Fletcher no seu devido
lugar foi maravilhosamente gratificante. Não o podia desafiar, mas podia repreendê-lo. Por
muito agradecida que lhe esteja a si por me trazer as cartas de volta, estou igualmente
agradecida por ter tido a oportunidade de o confrontar. Ele é uma pestilência a precisar de
purga.
– Você fez-lhe frente – retorquiu Hamish, a beijar a testa de Megan. – O pobre coitado foi
sem dúvida emboscado. Bravo, Meggie, mas tem de me prometer que será cuidadosa agora.
Sir Fletcher não gosta de ser contrariado.
A sebe concedia-lhes privacidade que Megan teria gostado de usar para saquear os
encantos do seu amado. Mas Hamish não parecia estar com humor para saqueios.
– Conte-me o resto – pediu ela. – Você sabe algo que não está a dizer, e nós vamos casar,
Hamish. Tenho toda a confiança em si, e espero que me retribua essa honra.
Ele beijou-a e até os seus beijos conseguiam transmitir uma sensação de exaustão.
– Não gosto de falar do meu tempo no exército.
Megan encostou a face no peito dele para melhor sentir o bater do seu coração.
– O Rosecroft diz que prefere viver no Norte por muitas razões. Não tem paciência para
homens que não têm nada melhor do que reviver os anos de carnificina e glória enquanto
bebem copos no clube. A vida não é para ser uma reminiscência interminável, muito menos
uma que representa mal o passado.
A mão de Hamish assentou na nuca dela e tudo em Megan relaxou.
– O seu primo disse-lhe isso?
– Ele disse isto à Emmie, e a Louisa e a Eve dizem que o Keswick e o Deene pensam o
mesmo. Eu adoro o seu cheiro, Hamish MacHugh. – Ela não adorava o facto de o sporran
dele estar metido entre ambos. – Vamos sentar-nos, sim?
Ele não resistiu a ir para o banco mais próximo, um banco de madeira simples e aquecido
pelo sol, entre delfínios envasados. Durante longos momentos, ele ficou calado, com a mão
na de Megan.
– Enquanto você pensa – disse Megan –, posso explicar-lhe uma coisa? Só recentemente a
percebi.
Ele beijou-lhe os nós dos dedos.
– Eu gosto de quando me explica coisas. Nem muitas pessoas se incomodam a tentar, mas
você tem jeito.
Talvez porque Hamish escutava quando ela falava e não tinha pressa para estar noutro
lado, embora por direito ele devesse naquele momento estar a relaxar num clube de
cavalheiros.
– A minha visão é debilitada – disse Megan. – Mesmo assim, com os meus óculos, consigo
ver melhor que muitas pessoas e as minhas faculdades cognitivas funcionam muito bem.
Estou agradecida por isso. Vejo especialmente bem no início do dia, mas depois os meus
olhos cansam-se. De qualquer modo, há tanta coisa que não posso fazer por causa da minha
má visão.
– Completamente cega ainda seria quatro vezes a mulher que a maioria das senhoras é
no seu dia mais avistado, Meggie Windham, em breve MacHugh, e eu…
Ela beijou-lhe o queixo.
– Pouse a sua espada, Murdoch. A minha família ama-me. As pessoas que me arreliam
por causa da minha visão imperfeita não importam e eu uso a minha obscuridade relativa
para considerar o ambiente que me rodeia. Porque está a Charlotte tão inquieta este ano –
continuou ela – e o que impede a Beth de encontrar um pretendente adequado? Porque é a
Anwen tão dedicada àqueles órfãos e quando é que eu e você nos podemos casar?
– Você merece ser cortejada na sua totalidade – referiu Hamish. – Beijada também.
Coincidentemente, Megan concordava com esse último sentimento e subiu para o colo de
Hamish. Desceu a seguir e, em vez de ocupar o lugar ao seu lado, agachou-se na pedra do
pavimento aos pés dele, sentando-se de costas contra os joelhos dele.
– Você tem o talento de me distrair, Hamish. Ouça-me, por favor.
Os dedos dele passaram levemente pela nuca dela, com a suavidade da luz do Sol.
– Claro. Sempre.
Que privilégio, fuçar o joelho nu de um homem, familiarizar-se com o músculo e o osso e
a força dele. Megan estava ansiosa pelo dia – ou a noite – em que descobriria tudo sobre
Hamish MacHugh à vontade.
– Eu penso sobre as coisas – disse ela, antes de a tentação de lhe beijar o joelho dominar
o resto da sua sensatez – e isso significa que sou boa a descobrir o que pode não ser óbvio.
Suspeito que Sir Fletcher não seja filho do seu pai, por exemplo.
Aqueles dedos, que estavam a distrair Megan na melhor forma possível, pararam.
– Um cuco no ninho?
– Ele é um quarto filho, ou seja, a sua falecida mãe cumprira o dever do título, e ele
nasceu cinco anos depois do filho anterior. Não se parece em nada com os seus irmãos, o
pai dele mal lhe dá atenção.
– E adquiriu o ar de vítima injustiçada desde tenra idade. Você pode ter razão. Isso
explicaria o comportamento dele em Espanha, embora não o justifique.
Dois pensamentos uniram-se na consciência de Megan. O primeiro era patético e
delicioso: até o joelho de Hamish sabia a urze, sugerindo que era meticuloso em todos os
aspetos.
O segundo era delicioso e em nada patético: talvez Hamish falasse com ela e a escutasse
tão bem em parte porque a visão dela era péssima. Um homem reservado, um homem
tímido, desconfortável na sociedade londrina, sentir-se-ia mais à vontade quando se
livrasse de tal escrutínio visual interminável.
Que maravilhoso que a falta de visão perfeita pudesse ser uma vantagem tão valiosa.
– Fale-me de Espanha e de Sir Fletcher – pediu Megan, movendo o kilt de Hamish sobre o
joelho dele.
A lã era macia, a ternura que Megan sentia era quase insuportável. Nunca teria de fingir
com Hamish como costumava fazer com a sua família, nunca menosprezaria um momento
tornado constrangedor porque se esquecera dos óculos.
A palma da mão de Hamish alisou-lhe o cabelo numa carícia demorada.
– Sir Fletcher era apologista de mandar chicotear os seus homens. Qualquer pretexto
servia e os seus superiores faziam vista grossa. A disciplina militar é uma coisa curiosa.
Éramos absolutamente sociais com os franceses às vezes, e depois dizia-se que qualquer
homem visto a confraternizar seria levado a conselho de guerra. Durante um tempo,
manteve-se a distância. Foi muito confuso para os homens e por vezes envolviam-se nas
desavenças e estupidezes dos seus oficiais.
Aquilo era tudo preâmbulo, claro, embora fosse esclarecedor.
– Parece a temporada social com armas. Não consigo imaginar uma missão menos
atrativa.
O polegar de Hamish percorreu a curva do maxilar de Megan.
– Sir Fletcher era bastante competente, pelo que ouvia dizer, mas a sua tolerância para
com os rapazes irlandeses e escoceses quando mendigavam era diminuta. Acusou um
homem de roubar provisões regimentais, o que era muito malvisto. O rapaz ainda nem
tinha barba, não era muito esperto e provavelmente passava fome. Eu intervim.
– Com os punhos? – O que dizia de uma senhora delicada o facto de ela apreciar a ideia
de alguém esmurrar Sir Fletcher?
– Querida Meggie, você tem uma veia sanguinária. O meu pai, Deus o abençoe, teria
gostado de si.
– Sir Fletcher precisa de ser responsabilizado – afirmou Megan. – Tenho memórias dele
que desejo poder limpar na minha mente, Hamish. – Ela sabia como Sir Fletcher respirava
em circunstância íntimas, conhecia a sensação dele entre as suas pernas.
E, de súbito, as lágrimas ameaçaram cair. Ela não chorara quando Sir Fletcher a ignorara
depois da sua retirada do exército, nem quando decidira reparar nela semanas antes, nem
quando explicara, em termos bruscos e desrespeitosos, quais eram os seus planos para ela.
– Ach, Meggie, deixe-me abraçá-la.
Ela estava de novo nos braços de Hamish, ao seu lado no banco, a derramar lágrimas
profusamente pelas faces. No cerne do seu ser, um lamento crescia, um grito de
arrependimento e revolta.
– Eu rezei por ele – referiu ela, a pressionar a testa no ombro de Hamish. – Prometi
esperar por ele e rezei pelo seu regresso em segurança. Disse a mim mesma que todos os
casais precisam de tempo, e eventualmente teria filhos e o meu próprio lar. Convenci-me de
que ele não poderia responder às minhas cartas sem arriscar a minha reputação, não com
muita frequência. Depois ele reformou-se do exército e, na primeira vez que nos
encontrámos, tratou-me como…
– Não fale disso, se lhe custa tanto – disse Hamish. – Ele não pode magoá-la mais, Meggie.
Oh, mas podia. Sir Fletcher estava a magoar Megan naquele momento, a atormentá-la
com memórias de rejeição e humilhação.
– Ele agiu como se mal me reconhecesse. Eu não tinha os óculos. Por um instante, pensei
se teria confundido outro cavalheiro com o meu Sir Fletcher. Diante de metade da alta
sociedade, fez um alarido prodigioso ao recordar algumas danças comigo, ao cumprimentar
com graça uma jovem enamorada que fizera uma completa figura de parva. À vista de todos
os mexeriqueiros da cidade, apercebi-me de que tinha sido uma grande idiota. Passei as
minhas temporadas desde então a evitá-lo e depois, este ano, ele decidiu humilhar-me
ainda mais.
Hamish segurou-a, deixou-a chorar e fungar e lamentar, mas quanto mais tempo Megan
continuava nos seus braços, mais a mágoa e a raiva desapareciam.
– Quem me dera que ele desaparecesse para sempre – disse ela. – Fui uma idiota, odeio
que tenha sido uma idiota cega, mas ele não foi nenhum cavalheiro.
– Ele foi, e é, um autêntico patife.
Algo na voz de Hamish chamou a atenção do ouvido de Megan. Ela sentou-se direita,
aninhando-se ao lado dele. Dali a pouco, uma irmã prestável – ou duquesa – passaria por
ali, inspecionando os canteiros de rosas que ainda não estavam prontas para desabrochar.
Se Megan fosse encontrada a chorar, poderia acontecer todo o tipo de interferências.
– Você estragou-lhe os planos – disse Megan. – Graças a Deus, pôs Sir Fletcher no seu
devido lugar de uma vez por todas. Suspeito que não seja a primeira vez que arruinou um
esquema dele.
– Vou casar com uma mulher de discernimento. Sir Fletcher também viveu o pior do
nosso encontro em Espanha, embora suspeite que seja por isso que ele mandou mais tarde
o Colin numa caça aos gambuzinos.
– Desde que Sir Fletcher tenha sofrido mais – comentou Megan, a enroscar-me mais no
seu amado. – Que ele receba sempre o pior de tudo, e quero saber os pormenores. Mas
primeiro, Hamish, tem de saber que as minhas irmãs concordaram que eu devia ficar com o
último quarto de dormir no corredor da família. É o que tem vista para aquela orla de
amores-perfeitos. Vem ter comigo esta noite?
Ele começou a admirar as flores que Megan mencionara, pequeninos botões amarelos e
roxos que toleravam o frio e a humidade com facilidade. A fazer sombra para os amores-
perfeitos estava um ácer cujos ramos facilitavam a subida até à varanda para um
pretendente são e determinado.
– As suas faculdades cognitivas dedicaram-se a organizar a minha agenda noturna?
Bem, sim. Mais ou menos, e Hamish também não oferecera uma recusa imediata.
Capítulo 15

A vida militar ensinou a Sir Fletcher tudo sobre sofrimento – como evitá-lo, como infligi-lo
aos outros e até como aguentá-lo quando necessário. Ele não gostara de todo da parte de
aguentar.
– Boneca, podes treinar o teu canto noutro lugar? – A voz de Geneva era capaz de partir
cristal à distância de trinta passos, pois a criança tinha aspiração a cantora de ópera. As
suas irmãs mais velhas, malditas fossem aquelas solteironas, encorajavam o gosto musical
da rapariga.
– O papá diz que tenho de treinar na biblioteca pois tem as paredes mais grossas. Quando
me levas a andar de cavalo, Fletchie? Tu prometeste.
O sol do fim da manhã criava padrões no chão de parquê, embora até a luz do Sol
refletida equivalesse a infinitas lâminas afundadas no crânio latejante de Sir Fletcher.
– Eu levo-te quando o tempo estiver bom – disse Sir Fletcher, servindo-se de um pouco
de brande. A governanta sem dúvida ficava de olho nas visitas à biblioteca que coincidiam
com uma redução do inventário do aparador – uma das muitas indignidades que Sir
Fletcher não sentiria falta quando arranjasse a sua própria residência.
– O tempo está bom hoje – respondeu Geneva, a subir para o sofá. – O papá disse que o
dia está bonito, mas a minha beleza espanta até o Sol.
Quando a rapariga sorria daquela maneira, o Sol muito provavelmente ficava espantado.
– Espanta não, suplanta. Significa que ultrapassa. Saltar para o sofá suplanta os piores
modos que já te vi exibir até agora, Lady Geneva Louise Marie Hamilcar Pilkington. As
meninas que saltam a fazem barulho não podem partilhar a sela com o seu irmão mais
velho preferido.
Sir Fletcher era o irmão preferido dela, o que importava mais do que devia.
Ela continuou com a ginástica, balançando os caracóis loiros contra os ombros pequenos.
– O Thomas não me repreendeu por saltar no sofá. Eu gosto dele. Quando recebe ele o
seu libré para não ter de trabalhar com aquela saia? É por isso que não o tenho visto cá em
cima? Porque o libré dele ainda não chegou?
As perguntas dela martelavam na cabeça dorida de Sir Fletcher, um contraponto para os
seus saltinhos indelicados.
– Queres provar a minha bebida? – Geneva era sua irmã, pelo menos no nome, embora
ele duvidasse que partilhassem uma ligação de sangue. Tanto fazia, repreendê-lo nunca
funcionara quando ele estragara as almofadas dos sofás quando era criança, por isso não se
deu ao trabalho de a censurar.
– As tuas bebidas são horríveis e tu esqueces-te de usar o teu pó dental de manhã.
Quando vamos andar a cavalo?
– Onde está a Harriet? – perguntou Sir Fletcher, erguendo o candelabro no lado esquerdo
da cornija da lareira. – Uma senhora normalmente anda a cavalo com as amigas e a Harriet
ficará irada se não a levares para as cavalariças.
Harriet era a melhor distração de que Sir Fletcher poderia lembrar-se em pouco tempo.
– O nome dela é Harold – replicou Geneva, saltando do sofá com um pulo atlético. Aterrou
com força, o impacto reverberando entre as têmporas latejantes de Sir Fletcher. – A Harold
tem uma enxaqueca, tal como tu. Não respondeste à minha pergunta sobre o Thomas. Ele
fala de maneira esquisita.
A chave da gaveta da escrivaninha estava exatamente onde devia ter estado, por baixo do
candelabro, mas, por mais que remexesse e vasculhasse o conteúdo da gaveta, as cartas de
Megan Windham não apareceriam.
C’um maldito raio. Sir Fletcher parara em casa depois de acompanhar Megan na noite do
musical, e eis que ela estivera a dizer a verdade: as suas cartas já não estavam no seu lugar.
Ele tinha ido para o clube à procura de um lugar tranquilo para pensar e talvez relaxar com
um jogo de cartas.
Ou dois ou três. Depois disso, as coisas tinham ficado numa embrulhada. O dia anterior
fora passado sobretudo a recuperar de um excesso de bebida. Naquele dia, as irmãs mais
velhas de Geneva tinham ido à modista, o que significava que a biblioteca estava finalmente
– quase – deserta.
– Desenhas comigo? – perguntou Geneva, agarrando-se ao braço de Sir Fletcher. – Tu
desenhas tão bem unicórnios.
– As senhoras não devem lisonjear – repreendeu Sir Fletcher, despenteando-lhe os
caracóis. – A Pamela é o génio artístico da família, e tu és a soprano em ascensão.
– Eu sou a soprano suplantadora – corrigiu Geneva, a subir para o colo de Sir Fletcher. –
Não respires em cima de mim, se não digo ao papá que te dói a cabeça outra vez. A Pammy
disse que a tua cabeça deve ser mais dura do que as pedras da rua. Aposto que o Thomas
também tinha dor na cabeça. Ele caiu nas pedras da lareira e disse palavras feias, porque
ficou com um dói-dói no rabiosque. Eu não compreendi as palavras feias que ele disse,
porque ele falava de maneira esquisita, mas soavam esplendidamente perversas.
Geneva estava a abrir e a fechar as gavetas uma a uma, enquanto o cérebro de Sir
Fletcher tentava tirar sentido da tagarelice dela.
– Dizes que este Thomas usava uma saia?
– Sim, e falava de maneira esquisita, mas era simpático. Não me repreendeu e cheirava a
flores. Tu fedes a cigarros.
– Encontraste o Thomas aqui na biblioteca?
Bam! Ela quase entalara os dedos de Sir Fletcher desta vez.
– Sim. Ele não acendeu as velas porque assim poupa-se dinheiro. O papá gosta de poupar
dinheiro, a mamã diz que poupar dinheiro é aborrecido e in… inbidno do seu estatuto.
– Indigno, que significa que não se adequa a ela. Para de espiar as coisas dos adultos,
boneca.
Geneva rodeou o pescoço de Sir Fletcher com os braços e apertou.
– Eu gosto mais de ti porque tu explicas-me o significado das palavras. Estar presa dentro
de casa é indigno do meu estatuto. Podemos ir andar de cavalo agora?
Se ele levasse a criança a andar de cavalo naquele momento, ela seria muito mais
persistente com o seu pedido seguinte. Era uma menina inteligente e determinada que
tornaria a vida de um homem infeliz quando fosse mais velha.
– Fala-me mais sobre o Thomas. Eu não acho que o conheço.
Geneva remexeu-se no colo de Sir Fletcher, quase o castrando com uma joelhada.
– O Thomas é alto e fala baixinho. Fala de maneira… diferente da tua. Como a Senhora
Belkins se ela fosse um homem. Usava uma saia porque o seu libré não tinha vindo do
alfaiate ainda, e ele não acendeu as velas porque isso gasta dinheiro. Ele não me denunciou.
Sir Fletcher pô-la de pé.
– Quando foi isso? – Ada Belkins crescera em Aberdeenshire, um facto da sua vida que
era óbvio por causa do seu sotaque.
– Na noite em que a Pammy dançou com o Senhor Puget. Ela ama-o, pelo que a Alexa me
disse, e a Pammy bateu-lhe com uma almofada. Vamos andar de cavalo agora?
– Podemos ir. – Nas últimas semanas, Sir Fletcher vira Megan Windham na companhia de
dois escoceses altos, um sendo Murdoch e o outro sendo o irmão mais novo de Murdoch.
Murdoch preferia usar o kilt, falava com sotaque e o seu olhar quando admirava Megan era
atento.
O irmão mais novo era um sedutor, embora pudesse resgatar as cartas de uma senhora
num desafio galante. Sir Fletcher recordava-se vagamente de algumas partidas entre os
oficiais em Espanha, que tinham envolvido o atraente capitão MacHugh. Durante grande
parte da campanha, o tédio fora um inimigo mais formidável do que os franceses e os
oficiais escoceses tinham sido um alvo de chacota tão fácil.
Talvez o capitão estivesse a pregar algumas partidas de retaliação.
A situação exigia mais ponderação noutra altura quando dezassete diabretes de botas
não estivessem a fazer sapateado na mioleira de Sir Fletcher.
– Bem, podemos ir andar de cavalo agora? – perguntou Geneva, a transformar a pergunta
num berro musical. – O dia está bonito, tu estás acordado, e ninguém está em casa para
brincar comigo. Podemos, por favoooooor?
– Tu és persistente – retorquiu Sir Fletcher. – Deixa-me trocar de calças e depois vamos
pelo beco antes que a tua pobre ama faça soar o alarme. Mas tens de me prometer uma
coisa.
Geneva fez uma pirueta diante da lareira, mas estragou o efeito encantador ao parar sem
graça.
– Vais levar-me a andar de cavalo agora, a sério?
– Tu és a minha irmã preferida, é claro que vou levar-te a andar de cavalo. Acerca da
promessa, Geneva.
– Qualquer coisa – disse ela, a rodopiar mais uma vez. – O que quiseres, Fletchie.
– O Thomas cansou-se de esperar pelo novo libré e ocupou outro posto noutro lugar.
Seria melhor se não falasses dele a ninguém.
Ela agarrou a mão de Sir Fletcher e começou a puxá-lo na direção da porta.
– Eu não digo nada, desde que me leves a andar de cavalo até ao parque e depois de volta.
Como se ele quisesse ser apanhado a fazer a vontade a uma criança em público.
– Damos uma volta pelo beco, e é melhor que a tua ama não esteja a ver pelas janelas
quando devias estar a dormir a sesta ou a estudar francês.
– Tu devias estar a fazer alguma coisa da tua vida – contrapôs Geneva. – O papá diz que
nunca farás isso, e a mamã concordou com ele. Irei eu fazer alguma coisa da minha vida?
O latejar na cabeça de Sir Fletcher uniu-se a um pessimismo fervilhante na sua barriga.
Soltou a mão da de Geneva.
– Tu já és a minha irmã preferida. – Também uma espia muito boa, graças aos céus. – Por
favor, vai às cavalariças e diz ao Jacobs para selar o Jupiter. Eu já irei em seguida.
Ou talvez não. A situação com a Menina Megan Windham requeria atenção imediata,
enquanto Geneva poderia entreter-se durante horas a perseguir gatos vadios e a sujar o
bibe. Sir Fletcher, por outro lado, tinha de requisitar uma licença especial e fazer vergar
uma noiva desgovernada.

– Não vens connosco? – perguntou Colin.


Hamish esfregou os olhos cansados.
– Que horas são?
Colin consultou um relógio de ouro que combinava bem com a sua roupa de noite. Estava
a usar bem o kilt, com alguma elegância e algum decoro.
– Está na hora de a Eddie e a Ronnie descerem, prontas para aterrorizarem os solteiros
desprevenidos de Mayfair mais uma vez. Decidiram até ao extremo ser senhoras.
Hamish pôs de lado o livro da contabilidade em que estivera a trabalhar e moveu a pilha
de contas para a beira do mata-borrão. A sua biblioteca não era a sala pública grandiosa
que a mansão do duque de Moreland ostentava, mas os livros aqui eram bem-amados e a
cadeira por trás da secretária era confortável.
– As nossas irmãs decidiram falir-me – disse Hamish.
Colin instalou-se na cadeira em frente à secretária, com um tornozelo cruzado
casualmente sobre o joelho oposto.
– Estás a ser o escocês mesquinho, a lamentar a perda de todas as moedas enquanto
acumulas vinte delas ou estás a falar a sério?
– Sobretudo o escocês – respondeu Hamish. – Não vou negar às senhoras os seus
adornos, mas ainda temos semanas de pavoneios para suportar e espero negociar acordos
matrimoniais antes de partirmos daqui.
Colin fechou o relógio bruscamente.
– Dir-me-ias se precisasses de ajuda?
– Dir-te-ia antes de dizer a outra pessoa qualquer.
O relógio ficou guardado, com a corrente pendurada de um lado ao outro da barriga lisa
de Colin.
– Interpreto isso como um não, embora eu seja podre de rico e te ame mais do que amo o
meu cavalo.
– Colin Andrew, ainda me fazes chorar. – Ou beber. Hamish atirou uma conta pela
secretária. – Este é o teu novo sapateiro?
– Puget e Filhos? Nunca ouvi falar deles, e eu conheço os sapateiros de Londres porque a
Eddie e a Ronnie arrastaram-me para todos eles. Os comerciantes provavelmente não
esperam que estejas aqui em dezembro, por isso estão a faturar-te gradualmente.
Examinar a contabilidade deixara os olhos de Hamish a arder, o que o fez pensar em
Meggie, embora tudo o fizesse pensar em Meggie.
– Não culpes os comércios por tentarem aproveitar-se de um novo titulado – disse
Hamish. – Espero de facto que providenciem produtos pelo preço que pedem.
Colin inspecionou a fatura.
– Deixa-me falar com este sapateiro. Não conheço a morada, mas passarei no
estabelecimento deles e verei o que consigo descobrir. Ainda mal chegámos à capital para
ter tantas botas encomendadas.
Hamish estava prestes a exigir a devolução da fatura, mas Colin observava-a com um
olhar impercetível. Colin era temperamental, embora, ao contrário de Hamish, o fosse de
forma fria e calculada. Um homem que enfurecesse o afável e descontraído capitão Lorde
Colin MacHugh só veria o golpe da vingança quando estivesse a ser-lhe desferido.
– Não nos apressemos – comentou Hamish, a estender a mão para a fatura. – Estou
convencido de que Londres se alimenta de mexericos tal como o exército sempre se
alimentou. Se tiver um sapateiro descontente, descobrirei que o velho Moreland suspeita
de que estou falido.
Colin entregou-lhe a fatura ofensiva e ergueu-se quando se ouviram vozes femininas no
corredor.
– Agora estás a fazer a tua imitação do escocês austero. O Moreland tem cinco filhas e ele
sabe o que custa uma temporada em Londres. Direi às senhoras que tens uma enxaqueca,
porque pareces mesmo tê-la. Fazer a corte anda a desgastar-te.
Esperar andava a desgastar Hamish.
– Eu pedirei pessoalmente desculpas às senhoras – disse Hamish, levantando-se. – Se não
me repreendem por alguma coisa duas vezes por dia ficam amuadas.
Hamish apercebeu-se tarde de mais que cometera um erro. Novamente. Colin queria ser
útil, mas a versão de útil de Colin acabava muitas vezes em apostas, murros e pedidos de
desculpas constrangidos.
A porta abriu-se e Edana e Rhona irromperam pela sala.
– Hamish, podes fazer o favor de te pores apresentável durante os próximos doze
minutos, se não farás com que cheguemos atrasados – disse Rhona.
– Não elegantemente atrasados – ecoou Edana. – Grosseiramente atrasados. Perderemos
as danças de abertura e prometi o passeio ao – ela olhou de relance para um papelinho –
Senhor Cam Dorning.
– Ele é demasiado novo para ti – comentou Rhona. – Mas eu gosto muito dos olhos dele.
Hamish, do que estás à espera? Não podes ir assim vestido.
– Eu não… – começou Hamish a dizer quando Colin abriu a porta e moveu uma mão na
direção do corredor.
– A contabilidade deixou o Hamish com uma enxaqueca – declarou Colin. – Um resultado
previsível de tentar dar conta de todas as faturas que vocês as duas geram. Enquanto vocês
dormem até ao meio-dia, ele anda atarefado a seduzir a bonita jovem. Estou a ouvir o
coche, por isso vamos embora.
– Mas o Ham é o duque – lembrou Rhona, a atirar os caracóis pelo ombro.
– O que pensarão – interveio Rhona – se o chefe da família não se dá ao trabalho de
acompanhar as suas próprias irmãs, senhoras na sua primeira temporada, apesar do facto
de já termos quase idade suficiente para descrever a arca de Noé? Quando um homem
adquire um título…
– Fala por ti, Eddie MacHugh – retorquiu Rhona. – Eu não sou assim tão velha. Muitas
mulheres só fazem a sua entrada na sociedade quando…
– É Lady Edana, se faz favor.
– Basta! – vociferou Hamish. – Vocês comportam-se como crianças em vez de filhas do clã
MacHugh. Colin, faz-me o favor de acompanhar as senhoras esta noite.
Um olhar desconfortável passou entre as mulheres. Hamish odiava aquele olhar, pois ele
nem sequer levantara a voz.
Rhona empinou o nariz e saiu num movimento de folhos. Edana olhou para Hamish com
um fungar inquieto e em seguida fez o mesmo. Colin permaneceu à entrada, com um sorriso
estranho no rosto.
– O mundo não acaba porque passas uma ou outra noite em casa – disse ele. – Eu cuido
delas.
– Cuida de ti – respondeu Hamish. – Lady Rothergild pelos vistos gosta de fazer ciúmes
ao marido, e diz-se que ele tem boa pontaria.
O sorriso de Colin desapareceu.
– Eu tomo conta das nossas irmãs, Hamish, e tenho uma excelente pontaria. Descansa.
Precisas. – E saiu de casa sem se preocupar em fechar a porta.
– Vou diretamente para a cama quando acabar a contabilidade – prometeu Hamish ao
irmão, virado de costas, que se afastava.
Colin despediu-se com um aceno da mão e continuou a dirigir-se para a porta de casa.
– Isto correu bem – murmurou Hamish quando tapou o frasco de tinta e guardou a pena
no suporte. Conseguira ofender três irmãos no espaço de cinco minutos, e também dizer
uma mentira – duas mentiras, aliás.
Pois ele não iria acabar a contabilidade, nem iria diretamente para a cama.
Capítulo 16

– Tens a certeza de que preferes ficar em casa? – perguntou a tia Esther, avaliando o olhar.
– Sentiremos a tua falta, querida Megs.
O tio Percy levantou a capa da tia Esther.
– Meu amor, toda a jovem tem direito a passar uma ou outra noite em casa. Os mancebos
arrojados que anseiem por vocês para variar. É bem feito para eles por todas as vezes que
fogem para os clubes – ou pior.
A tia e o tio trocaram um olhar que incluía humor, uma pequena disputa de vontades e
possivelmente um pouco de namorico – e nas suas idades.
– Eu fico bem – disse Megan. – Vou ler um pouco de poesia e vou para a cama cedo.
Charlotte e Beth desceram as escadas, resplandecentes em tons de beringela e
framboesa.
– A Megan decidiu ficar em casa esta noite – disse a tia, erguendo o queixo enquanto o tio
Percy lhe atava o manto. – Ela precisa de descansar os pés, caso alguém pergunte.
Charlotte aceitou o manto seguinte do tio Percy.
– A Megs está a evitar a guarda. Aqueles três não dão paz às primas. Os meus pés
certamente também precisam de um descanso. Talvez também fique em casa.
Maldita Charlotte pela sua lealdade.
– E deixas-me sozinha para enfrentar os nossos primos e os solteirões? – replicou Beth. –
Acho que não. Pelo menos os nossos primos dançam maravilhosamente bem. – Ela olhou
para o espelho sobre o aparador e tocou com as pontas do quarto e quinto dedos num
penteado que misturava elegância recatada com cachos ruivos. Charlotte, por sua vez,
ostentava um coque digno de uma metodista viúva.
– Os meus rapazes ganharam a sua desenvoltura na pista de dança da minha duquesa –
disse o tio. – Senhoras, ouço o coche. Vamos andando?
Sim, por favor.
– Divirtam-se muito – disse Megan, segurando a porta para eles. – Tragam-me os
mexericos todos.
As senhoras saíram, enquanto o tio Percy ficou para trás, puxando as luvas.
– Tu nunca te interessaste por mexericos, Megs.
Bem não. Ela não se tinha interessado, e ainda não se interessava.
– Talvez esteja a tornar-me mais social.
O tio beijou-a na testa.
– Talvez estejas a apaixonar-te. Aproveita a tua noite em casa. – Ele piscou o olho e
desceu os degraus num ritmo acelerado.
Megan permaneceu na porta, acenando para as irmãs. Charlotte soprou-lhe um beijo e
entrou no coche. Beth agitou os dedos na direção de Megan.
– Ninguém tem privacidade nesta casa – murmurou Megan.
O mordomo, um velho criado chamado Hodges, clareou a garganta.
– A Menina Anwen sempre comentou a mesma coisa, senhora. Devo mandar a cozinha
preparar uma bandeja com chá?
– Não, obrigada, Hodges. Eu realmente estou bastante cansada. Uma noite adiantada será
a salvação da minha semana. – Ou da sua sanidade.
– Desejo-lhe boa noite, menina.
Megan obrigou-se a subir as escadas num ritmo digno, quando preferia saltar dois passos
de cada vez. O seu quarto chamava-a, embora na verdade todo este subterfúgio não tivesse
provavelmente sentido nenhum. Hamish não era do tipo de subir até à varanda de uma
senhora ou de se entregar a encontros clandestinos.
Megan adorava isso nele, adorava como era honrado – realmente adorava.
– Já se foram embora? – Anwen abriu ligeiramente a porta do quarto e falou mais alto do
que um sussurro.
– Já se foram – disse Megan. – Doem-me os pés. Não me apercebera de que tu também ias
ficar em casa esta noite. – Embora Anwen estivesse tão naturalmente a retirar-se para a
noite, ela provavelmente permaneceria nos aposentos durante o tempo todo. – Que
desculpa usaste?
– A minha menstruação – respondeu Anwen. – Basta fazer uma mera alusão, e o tio Percy
sai logo da sala, e a tia serve o cordial. E também que choveu a potes esta tarde e sou
propensa a resfriados.
Que primo dissera que as mais sossegadas tinham constante vigilância?
– Esta é a tua segunda menstruação nas últimas semanas, Wenny.
– A agitação de mudar de casa, o turbilhão social, a emoção de ver os nossos primos –
retorquiu Anwen, abrindo a porta o suficiente para se apoiar no batente. – É tudo muito
assustador.
Megan estava desesperada para voltar ao seu quarto e, no entanto, uma revelação não
deveria passar despercebida.
– Tu és melhor a dissimular do que eu. Como não percebi isso?
Anwen enrolou a ponta da sua trança, um hábito nervoso que tinha desde que o seu
cabelo fora cortado durante uma febre na infância.
– Isso não é um elogio, Megs. Estou mais desesperada para proteger a minha privacidade,
só isso. Estávamos a jogar piquet?
A jogar… ? Oh.
– Sim, acho que estávamos, até cerca das vinte e três e trinta na biblioteca. Tu ganhaste,
embora não por muito, depois eu levei Lorde Byron para a cama comigo, por assim dizer.
Anwen não costumava sorrir, exceto para bebés, cachorros, gatinhos e os rapazes do seu
orfanato favorito.
Ela sorria agora.
– Megs, os criados entram e saem da biblioteca durante a noite toda – a cuidar da lareira,
a acender candeeiros ou a apagá-los. Nós não estávamos na biblioteca e tu nunca lês à noite
porque te faz doer os olhos.
Deus do céu, mentir era uma tarefa complicada.
– Piquet no teu quarto, então – decidiu Megan. – E tu ganhaste-me.
– Certo. Até às vinte e três e trinta – disse Anwen, a recuar. – E, Megs?
– Sim?
– Eu gosto do teu escocês. Gosto da maneira como ele te observa. Gosto de que o irmão
dele o ame profundamente. O Murdoch é protetor e respeitoso em relação a ti, e olha para ti
como o pai olha para a mãe.
– Eu não tinha reparado. – Não fora capaz de ver, por outras palavras. – Obrigada.
Anwen fechou a porta sem dizer mais nada, embora, enquanto Megan atravessava o
corredor até ao seu próprio quarto, se perguntasse que mais Anwen notara e que mais ela
ignorara sobre a sua própria irmã.
Megan abriu a porta da sala de estar e demorou-se a mexer no fogo na lareira. Os criados
não se intrometeriam a menos que Megan tocasse a campainha, embora, apesar de toda a
urgência que sentia em voltar para o seu quarto, provavelmente passasse a noite sozinha.
As irmãs de Hamish esperavam que ele as escoltasse para todos os eventos, e ele
obedecia. Por isso, também, nenhum noivado fora anunciado. Um casal que estivesse noivo
tinha permissão para uma quantidade significativa de liberdade, mas um casal apenas na
fase da corte…
Uma coisa era recuperar letras furtivamente, outra bem diferente era invadir uma
mansão ducal subindo pela varanda de uma jovem senhora.
Megan acabou de mexer no fogo e estava pronta para se retirar mais cedo, para
aproveitar melhor a companhia de Hamish quando ele a viesse visitar de manhã. Dissera
que viria, e ele não era pessoa de quebrar uma promessa.
Ela fechara a porta do quarto e puxara alguns ganchos do cabelo quando um movimento
nas sombras chamou a sua atenção.
Que encantador, pois Megan estivera errada. Aparentemente, Hamish MacHugh era
pessoa de cair no sono na cama da sua amada.

Hamish adormecera com pensamentos ansiosos sobre os problemas que os seus irmãos
poderiam arranjar sem ele por perto para os supervisionar, mas em vez disso sonhava com
felicidade.
Um braço gentil agarrou-o pela cintura, carícias suaves percorreram-lhe as costas, um
beijo de ternura foi pressionado no seu ombro. Nenhum seguidor do acampamento alguma
vez cheirara tão deliciosamente bem, nunca nenhuma cama de tropa fora tão luxuriante.
Ele sentou-se direito.
– Raios partam. Adormeci.
Megan permaneceu ao lado dele, na cama.
– Não ressona.
– Não vai informar o mundo sobre isso, por favor. Apenas pretendo descansar os olhos. –
E a cama parecera tão acolhedora, cheia de cobertas quentes, almofadas fofas e tapeçarias
de veludo elegantes penduradas nas paredes.
– Eu sei qual é a sensação – disse Megan, a passar a mão pelo braço de Hamish abaixo. –
Se os meus olhos se cansarem demasiado, não há nada mais que possa fazer a não ser
fechá-los e descansar, pois eles ardem e lacrimejam tanto. Aninha-se, Hamish. Eu senti a
sua falta.
Aninha-se. Ele nunca ouvira aquela ordem especial antes e gostava demasiado da ideia de
obedecer.
– Não devia estar nesta cama consigo, Meggie.
Ela levantou-se sobre os cotovelos e fez deslizar as cobertas até uma profundidade
suficiente para revelar um decote cativante bordado com trepadeiras cor de esmeralda e
rosas cor-de-rosa.
– É melhor não partilhar uma cama com mais ninguém, Hamish MacHugh.
Ele sacudiu os lençóis para o lado, mas ficou onde estava, derrubada pela visão de Megan
com o seu cabelo numa só trança folgada.
Uma trança que suplicava para ser desfeita.
– É ciumenta, Meggie minha?
– No que diz respeito a si, sou. Se não pretende ser um marido fiel, é melhor separarmo-
nos agora.
Megan surpreendera-se a si mesma com aquela declaração. Hamish viu a hesitação nos
olhos dela, a vulnerabilidade e a resolução. Bem, o maldito Fletcher Pilkington outra vez.
Hamish baixou-se sobre a sua amada.
– Ouça-me, Meggie. Primeiro, quando faço um juramento, cumpro-o. Esquecer tudo o
resto significa esquecer tudo o resto. Segundo, suspeito que, assim que nos casarmos, o
esforço exigido para aparecer às refeições com pouca roupa vestida irá pôr à prova os
limites das minhas capacidades. Vou casar-me com uma mulher apaixonante.
Aquela resposta valheu-lhe um beijo na boca.
– Então faça amor comigo, Hamish. Estamos numa cama, com privacidade garantida, e
oportunidades como esta não surgem com muita frequência.
Oportunidades como esta nunca deviam surgir deste lado do céu.
– Pensei que íamos falar, Meggie. Aninhar-nos um pouco, passar tempo juntos e
conhecermo-nos melhor um ao outro.
Talvez Hamish já conhecesse suficientemente bem a sua pretendida, porque sabia, pela
forma como ela prendia as cobertas à sua volta, que lhe estava a fazer a vontade. Vindo
dela, isso não era muito mau, mas Hamish não era um absoluto idiota.
Ele saiu de cima dela e instalou-se ao seu lado. O seu pénis protestou fortemente a
mudança de localização, o que era simplesmente uma contrariedade. Ter Megan nos braços
seria privilégio suficiente para…
Megan passou um braço por baixo do pescoço de Hamish e incitou-o a aproximar-se
mais.
– Meggie, o meu autocontrolo é o de um mero mortal. Não espere que eu…
– Enrosque-se em mim, Hamish – ordenou ela, a disputar com ele a posição por si
escolhida. – Deixe-me segurá-lo para variar.
– Se insiste. – Graças a Deus que ele se barbeara antes de embarcar neste encontro. O
seio dela era uma almofada muito macia por baixo da sua face.
– Insisto, pois – disse ela, a afastar-lhe o cabelo da testa. – Sobre o que gostaria de falar?
Ele queria falar sobre os seios dela, os beijos dela e os nomes que deveriam dar aos
primeiros oito filhos que teriam.
– Sente falta dos seus pais, Meggie?
Ela acariciou-lhe a orelha, o que resultou numa sensação curiosa e arrepiante.
– Claro que não. Eles partiram há pouco tempo. Você sente falta dos seus?
Ele soubera que ela seria aquele tipo de esposa – impetuosa, perspicaz, corajosa –, mas a
realidade era ainda um desafio.
– Sinto. Principalmente da minha mãe, porque era rapazinho quando ela morreu. Parte
do meu papel como filho mais velho é manter a memória dela viva para os meus irmãos
mais novos, contar as histórias. O meu pai não morreu há muito tempo, embora imagine
que teria sido um bom duque, se tivesse tido a oportunidade.
– Era severo?
As carícias de Megan eram calmantes e tudo em Hamish relaxava enquanto os seus olhos
iam ficando pesados. O desejo sussurrava através da sua lassidão, mais doce do que o ardor
habitual que sentia quando estava perto de Megan, mas não menos exigente.
– O meu pai era mais severo do que a maioria dos generais sob o comando dos quais eu
servi, mas suspeito agora que era sobretudo fanfarronice. No entanto, não era sobre isto
que vim aqui falar, Meggie.
Ela bocejou, o que teve o efeito de levantar e baixar gentilmente a almofada de Hamish.
– Do que queria falar?
Hamish devia a Megan uma explicação sobre como as coisas estavam a correr entre ele e
Sir Fletcher Pilkington. Essa explicação não era exatamente urgente – ele fugira dela no
início do dia –, mas o adiamento também não tinha facilitado a missão.
– Hoje de manhã, perguntou-me sobre Espanha.
Megan moveu-se, ou melhor, iniciou uma emboscada. Hamish estivera a flutuar sobre o
limiar da felicidade e do tormento num momento, e no outro estava a rebolar de costas,
com a sua pretendida a posicionar-se sobre ele.
– Hoje de manhã mudei de assunto – disse Megan. – Você não foi mencionado nos
despachos, não socializa com os seus colegas oficiais e os meus primos soldados não têm
muito a dizer no que diz respeito a si. Tenho a impressão de que, para alguns homens, fazer
campanhas pela Espanha foi a ocasional batalha inconveniente entre passear os cães,
namoriscar com as senhoras e pregar partidas a colegas oficiais, mas não para si.
Quão fácil seria fazer amor com ela. Que delicioso e necessário juntarem os seus corpos e
adormecerem na cama dela, transportados por uma vaga de satisfação física e intimidade.
E quão rapidamente Megan veria por trás desse subterfúgio.
– Enrosque-se você – disse Hamish, tomando-a nos braços. – Isto não é conversa entre
amantes, Meggie, mas também não é assunto para falar em público. Espanha foi um inferno.
Fizemos o melhor que pudemos – todos nós, os escoceses, os ingleses, os hussardos, os
franceses, os espanhóis e os portugueses. Fizemos todos o melhor possível, e agora fazemos
o melhor que conseguimos para esquecer as partes más.
– Que é quase tudo, presumo. Prossiga.
Prosseguir. O que um soldado sabia fazer melhor, um bom soldado.
– Impedi Sir Fletcher de chicotear um homem, embora, nesta altura, não saiba se ele se
lembra sequer do incidente.
– Não compreendo a ideia de chicotear um soldado – comentou Megan. – Parece-me que,
se um homem está disposto a dar a vida pelo seu país, deviam-lhe agradecer e não ser
ameaçado ainda mais pelos seus próprios oficiais.
– Nesse caso, você estaria a tentar aplicar lógica ao exército, o que é sempre uma aposta
arriscada. A disciplina militar não é tão má como costumava ser. Os soldados já não são
chicoteados por se apresentarem despenteados, e o Wellington não aprovava castigos de
mais de cinquenta chicotadas.
Megan estava esparramada sobre o peito de Hamish e a simples proximidade dela
desencadeara a atenção dos órgãos reprodutores dele. Ela não parecia importar-se – pior,
ela parecia não ter qualquer consciência da excitação sexual de Hamish.
Ainda que, se houvesse assunto que afogava os pensamentos rebeldes de um homem,
fosse a disciplina militar.
– Então Sir Fletcher queria chicotear alguém por nenhuma razão? – perguntou ela.
– Oh, julgo que o sujeito estava prestes a servir-se das provisões regimentais. Era
frequente as rações esgotarem, e marchar de barriga vazia torna-se desgastante após os
primeiros trinta quilómetros. Fletcher fez uma alegação contra o homem e depois convocou
a polícia militar.
– Você não estava presente para intervir em nome do acusado?
– Os meus homens foram buscar-me quando o conselho de guerra estava em curso, caso
contrário teria corrido muito mal para o meu colega. Ofereci um álibi, disse que vira o rapaz
noutro lugar na altura em que o crime alegado teria ocorrido. A polícia militar decidiu que
tinha sido tudo um mal-entendido – sobretudo porque nada fora roubado e a acusação era
roubo, não tentativa de roubo.
– Sir Fletcher é assim – malvado, mas preguiçoso, ambos. Fico feliz por o ter defendido. –
O beijo dela sugeriu que estava de facto muito feliz.
– A questão, Meggie minha, é que Fletcher não tem honra. Mente, engana, manipula e
persuade outras pessoas a fazerem a sua vontade. Neste caso, descarregou o seu
ressentimento no Colin com mais parvoíces entre oficiais. Mandou-o para os montes,
sabendo que os franceses estavam a bater a área, embora Colin tenha regressado ao
acampamento sem um arranhão. Não confio no Fletcher e gostaria de marcar uma data em
breve e levá-la para as Terras Altas.
Megan parou de mordiscar a orelha de Hamish. O kilt dele torcera-se para o lado e a
camisa de noite dela estava arregaçada até à cintura, o que significava que o paraíso – ou a
perdição – estava à distância de um desejo pedido.
– Não me pode levar para lado nenhum enquanto os meus pais não voltarem de Gales. O
tio Percy irá negociar os acordos consigo, mas o papá tem de os aprovar. Enquanto o papá
não consentir os termos, não devíamos marcar uma data.
Hamish sabia disso. Também sabia que mais uma vez não tivera a discussão com Megan
que precisara de ter em relação a Espanha, o exército e o caos que Sir Fletcher poderia
causar.
– Eu devia ir andando, Meggie. Se ficar aqui mais tempo…
Megan calou-o com um beijo e em seguida começou a ondular as ancas de uma forma
calculada a separar um anjo dos seus últimos escrúpulos, e Hamish não era anjo nenhum.
Era, no entanto, um cavalheiro.
– Meggie, sua criatura linda e doida… Se continua a fazer isso, eu não me
responsabilizarei pelas consequências. Não devia desrespeitar a hospitalidade do Moreland
ao invadir o seu quarto desta maneira…
– O meu quarto, o meu coração – murmurou Megan contra a boca de Hamish.
– Mas eu tive saudades suas, e sabia que estaria à espera e não conseguia… Deus do céu,
Megan Windham.
Ela movera-se e, numa manobra brilhante e ousada, envolvera Hamish no seu calor.
Antes esforçara-se para ter coragem de se separar dela, agora esforçava-se para respirar.
– Estava a dizer? – murmurou ela, a mover-se sobre ele.
– Eu estava a dizer… – Algo, algo importante e honrado e… raios. – Não pare, Meggie.
Ainda não.
Os dentes dela brilharam num sorriso e ela não parou. Durante muito, muito tempo.

O amor oferecia a Megan perspetivas, nem todas elas felizes. Vinte e quatro horas depois de
partilhar intimidades com Hamish, ela ainda contemplava essas perspetivas em mais outra
pista de dança em mais outro salão de dança.
O amado de Megan, por exemplo, acordou com a agilidade com que um gato esfomeado
se move desde que vê a sua presa até saltar para o ataque. Imóvel num segundo, num salto
pelo ar no noutro. Hamish não estava contente por se levantar também. Tanto quanto
Megan fora capaz de decifrar a expressão dele na noite anterior, acordara preparado para
matar – ou morrer.
Felizmente, ela estava a aprender a atribuir cada vez menos importância às aparências.
Hamish parecia impetuoso, mas o seu toque… oh, o seu toque! As carícias de Hamish
MacHugh eram perspetivas sobre revelação embrulhada em espanto.
– Megs, tem pena de mim e vem dar uma volta até ao terraço – disse Devlin St. Just, conde
de Rosecroft, a estender-lhe uma mão. – O barulho neste salão de baile é o suficiente para
provocar a um homem corajoso um estômago bilioso.
Megan aceitou a mão do primo – aparentemente ele fora designado seu guarda naquela
noite – e levantou-se do banco onde estava.
– Um pouco de ar fresco cai bem – concordou Megan, pois não era capaz de passar a noite
toda a ver Hamish dançar com as irmãs e primas dela. – Estou comprometida para a valsa
do jantar.
– Se não estivesses, eu teria de ter uma conversa com o teu duque.
– Ele ainda não é o meu duque – lembrou Megan quando Rosecroft a levou pelo meio das
«flores de parede», os dândis e as viúvas que se reuniam entre os bancos. Rosecroft
comportava-se numa multidão da mesma forma que fazia tudo o resto, com uma eficiência
decisiva que não suportava obstáculos.
Em pouco tempo levou Megan até ao ar agradável da noite, onde, de facto, estava tudo
mais sossegado.
– Eu nunca discutiria com uma senhora – disse Rosecroft, colocando a mão de Megan à
volta do seu braço –, mas posso conversar com uma prima. O Murdoch é absolutamente o
teu duque. Ele faz-te cintilar.
– Quem me dera poder fazê-lo cintilar – desejou Megan. – O Hamish é um homem
reservado e carrega sombras.
– Todos carregamos sombras, Megan. E Sir Fletcher? Ele estava para ser o teu escolhido,
e agora está fora de vista.
Sir Fletcher era a sombra de Megan, mas já não tinha o poder de assustá-la.
– Sir Fletcher está presente na festa esta noite, bem como as duas irmãs. Eu e ele somos…
cordiais.
Por um momento, Megan e o primo passearam pelo trilho de gravilha em silêncio, o som
do salão de baile a desvanecer à medida que avançavam na direção do fundo do jardim. As
tochas estavam mais espaçadas aqui e o ar da noite possuía um aroma provocador a lilases.
Uma noite encantadora, mas a noite anterior fora mais encantadora.
– Eu não gosto da forma como Sir Fletcher olha para ti – afirmou Rosecroft. – O
Westhaven declarou-me excessivamente protetor e o Valentine diz que estou a antecipar o
dia em que as minhas meninas comecem a fazer vénias, mas estou aqui se precisares de
mim, Megs, tal como o Westhaven e o Valentine.
A garantia foi tão encantadora como inquietante.
– Porque precisaria de ti?
Ele afagou-lhe a mão.
– Se calhar não precisas, mas nós gostamos de ser precisos. Nunca digas ao Moreland que
admiti isso. Ele já é arrogante que chegue.
O tio Percy era astuto, ou a tia Esther e o tio Percy era uma combinação astuta.
– Agradeço a preocupação, mas não é necessária. O Hamish é um homem absolutamente
digno e ele tem o meu afeto.
Rosecroft resfolegou.
– O que quer essa réplica indelicada insinuar? – Pois fora um ronco de primo, não um
ronco respeitoso de um titulado ou um ronco honrado de pai ou marido.
– Tu estás no quarto da corte, pelo que ouvi, e o Murdoch parece ser atlético. Trepar o
ácer e saltar para a varanda não deve ser grande desafio para ele.
Valesse-lhe Deus e os santos.
– Vou fingir que não ouvi esse comentário e fingir que não estou a corar ao ponto de
iluminar o céu noturno, Devlin St. Just.
– Se Sua Graça abordar contigo o assunto de certas compras que se pode mandar a criada
fazer no boticário – continuou Rosecroft, ser pai de raparigas dera-lhe aparentemente
arsenais inteiros de impiedade –, tu vais corar e gaguejar e parecer mortificada, mas
intrigada. A parte da intriga é importante. Pergunta-me como sei isto.
– Não perguntarei tal coisa. Vamos voltar agora para o salão de baile. – Megan rodopiou e
Rosecroft seguiu-a.
– Eu sei isto, porque a dada altura todos os jovens têm de aprender alguns factos básicos.
– Devlin, vou deserdar-te. – Ou desatar a rir, pois ele estava muito concentrado naquela
exposição constrangida de proteção. – Podias não ter abordado estes assuntos durante o
dia, se não os teus rubores tornar-se-iam demasiado evidentes.
– Um soldado precisa de estratégia e eu fiquei com a palha mais curta, porque o
Valentine provavelmente faz batota e o Westhaven é confidente do Todo-Poderoso. Eu
estava a planear impor-te a Emmie, mas eu sou teu primo.
A mais curta…?
– E o oficial mais velho e antigo comandante – disse Megan. – Três vezes amaldiçoado,
coitadinho de ti. Alguma vez te ocorreu que também tenho primas mulheres, e que elas
também são demasiado protetoras?
Rosecroft parou por baixo de um candeeiro, confirmando a consternação com a
expressão no seu rosto.
Megan queria estar dentro do salão de baile a tempo da sua valsa do jantar com Hamish,
mas o momento era demasiado precioso para ignorar.
– Na tua pressa de matar todos os dragões, Devlin, tu e os teus queridos e ridículos
irmãos esqueceram-se da existência das vossas cinco irmãs. Isso deveria preocupar-te, pois
elas são mulheres inesquecíveis.
Ele curvou-se.
– Como tu. – Megan beijou-lhe a bochecha e gozou o prazer de se retirar com altivez após
ter tido a última palavra com um dos seus primos homens. A sua alegria roçava a vanglória
até que, na galeria à saída do salão de baile, avistou Sir Fletcher Pilkington.
E caminhava na direção dela.
Capítulo 17

As mulheres não eram muito brilhantes, mas algumas tinham instintos formidáveis.
Sir Fletcher soube, então, no momento em que Megan Windham o avistou, pois a postura
dela alterou-se de uma senhora a exibir a sua elegância no salão de baile, a presa. Ela fez o
que qualquer rato encurralado deveria fazer – procurava uma saída –, mas Sir Fletcher
escolhera bem o momento.
– Você é bem-vinda a passear comigo no jardim – disse Sir Fletcher – ou podemos
aproveitar as oferendas na galeria de retratos no andar de cima.
– Eu não passeio mais nos jardins consigo – ripostou Megan, dando um passo para a
esquerda.
Sir Fletcher bloqueou-a e, como as pessoas estavam a reunir-se para a valsa do jantar,
aquela passagem encontrava-se temporariamente deserta.
– Eu digo que nós temos muito mais passeios ao luar para aproveitarmos juntos –
respondeu Sir Fletcher. – Venha comigo, Megan. Eu e você temos assuntos para resolver.
Podemos fazer uma cena desagradável aqui mesmo – uma briga de namorados, chamemos-
lhe – ou podemos conversar de maneira civilizada no terraço.
A frustração dela era uma satisfação por todas as horas que Sir Fletcher passara a cuidar
de uma cabeça dolorida e um rancor assassino.
– Eu não vou a lugar algum consigo – declarou Megan.
Oh, ela estava a ser muito corajosa.
– Sim, vai, querida. – Ele beijou-lhe a face, deixando duas opções. Ela poderia gritar ou
poderia dar-lhe uma desculpa para piorar a discussão.
Outro olhar desesperado examinou as saídas. A qualquer momento, alguém poderia
aparecer e nesse caso Sir Fletcher dar-lhe-ia outro beijo.
– Não vamos mais longe do que o terraço – afirmou Megan, ignorando o braço oferecido
por Sir Fletcher.
– Minha querida, você magoa-me. Ofereço a minha escolta, conhecendo as limitações da
sua visão, e tendo muitas lembranças de si a tropeçar em franjas e soleiras de portas.
Porque tem você de desdenhar tanto das minhas tentativas para a proteger?
Chegaram ao terraço, embora todo o resto do tráfego se dirigisse para dentro. Devlin St.
Just, conde de Rosecroft, passou pelo segundo conjunto de portas em profunda discussão
com Joseph, conde de Keswick. Ou não viram Megan ou estavam de conluio com o namoro
de Sir Fletcher.
Nenhuma família queria demasiadas mulheres solteiras sob a sua alçada. Eram caras,
petulantes e causavam as mais estúpidas intrigas. Bastava ver Pammy e o seu capitão
empobrecido.
– O que quer você? – perguntou Megan, parando no topo dos degraus do terraço.
– O que quero é desfrutar de um passeio com a minha pretendida numa noite bonita –
disse Sir Fletcher. – Além disso, quero uma boa soma de dinheiro para que o meu futuro
esteja garantido e não me importaria com as atenções de uma esposa dedicada e de uma
amante talentosa, se é que quer saber. Importa-se que fume?
– Sim.
– Credo, você está fogosa. Quando nos casarmos, à maneira dos maridos devotados de
todo o mundo, assegurarei que os nervos da minha mulher sejam apaziguados.
– Sir Fletcher, vá direto ao assunto ou, então, prepare-se para gozar a noite em solidão,
pois prometi a Murdoch a valsa do jantar.
Ela pegara no leque com a mesma firmeza com que alguns homens pegavam nas suas
espadas. Que gratificante.
Sir Fletcher pegou num charuto e passou-o pelo nariz. Adorável perfume, embora
demasiado precioso nas suas atuais circunstâncias. O casamento com Megan mudaria tudo
isso, quanto mais cedo melhor.
– Esta será a sua última valsa com o estimável Murdoch – disse Sir Fletcher. – Você
realmente não está segura com ele, sabe. Ele virou-se contra os seus próprios homens,
levou-os diretamente para um ninho de soldados franceses. Os seus subordinados
mencionavam esse dia apenas em sussurros – aqueles que sobreviveram – provavelmente
porque ele ameaçou matar qualquer um que falasse contra ele. Murdoch é um assassino. Dá
para ver nos olhos dele.
Megan pegou no charuto e atirou-o para os arbustos.
– Eu poderia esbofeteá-lo por espalhar esse falatório. Se eu fosse homem, desafiá-lo-ia.
– Se eu não fosse um cavalheiro – respondeu Sir Fletcher –, pô-la-ia a si de costas nas
cavalariças. Eis o que você precisa de saber, Megan. Pensa que tem as suas cartas, porque
pediu a um dos seus escoceses de estimação para as roubar da minha casa. Estou
preparado para divulgar esse furto – o duque seria julgado nos Lordes, mas o irmão mais
novo continua a ser um plebeu comum, assim como o resto de nós. Independentemente de
qual irmão eu acusar – continuou –, todas as pessoas vão acreditar na minha versão. A
triste verdade é que, para explicar como estou aborrecido por os meus queridos tesouros
literários terem desaparecido, deixarei um rasto de inferências delicadas sobre o conteúdo
das cartas.
Ele sorriu, gostando muito da transição nos olhos de Megan do desgosto para o medo.
– Eu não sou muito delicado quando estou com os copos – cismou ele. – Tento, mas
muitas vezes fico aquém do objetivo.
Os violinos estavam a ser afinados e a mão de Megan estava cerrada em punho ao seu
lado. O casamento com ela não seria aborrecido.
– Tenho as minhas cartas – respondeu ela. – Diga o que quiser, eu simplesmente
produzirei as cartas sem revelar o conteúdo delas. Talvez você tenha um catálogo inteiro de
cartas de jovens comprometidas. Porque não anuncia esse facto e vê durante quanto tempo
é bem-vindo na alta sociedade?
O prazer de Sir Fletcher no encontro diminuiu. Um pouco de espírito era interessante,
mas quando um homem exercitava o seu intelecto superior e a sua autoridade natural, a
mulher deveria barafustar e depois tornar-se obediente e arrependida.
– Megan, não force a minha mão – ameaçou Sir Fletcher, inclinando-se mais perto. –
Tenho muito boa pontaria e se os seus primos, ou os seus lobos escoceses, quiserem
desafiar-me, irei no mínimo feri-los gravemente e causar um grande escândalo. Estive no
exército, minha querida. Quando não estava a aperfeiçoar o meu objetivo, estava a
aprender a fazer cópias de todos os documentos que importavam. Você tem as suas cartas,
e eu tenho cópias precisas de cada uma delas, até um belo fac-símile da sua assinatura
elegante.
Ah, finalmente. A bravura dela vacilou.
– Você copiou as minhas cartas?
– Um homem nunca quer que esses preciosos sentimentos fujam do seu controlo –
ironizou Sir Fletcher. – A orquestra começará a abertura em breve. Melhor correr, querida.
De agora em diante, porém, as suas valsas de jantar são todas minhas, assim como as suas
valsas de boa noite. Vamos esperar que os seus pais não permaneçam em Gales durante
muito tempo, hmm?
Ele curvou-se meticulosamente sobre a mão dela e saiu na direção da sala de jogos.
Megan que dançasse a sua valsa com o Murdoch sem charme. Até mesmo prisioneiros
condenados recebiam uma última refeição e uma última oração.

Megan estava demasiado zangada para ter medo, mas sabia que a raiva se extinguiria,
deixando apenas a tímida complacente que Sir Fletcher encantara e enganara há vários
anos.
– Menina Meggie, tenho procurado por si – disse Hamish quando Megan atravessou o
corredor que separava o terraço do salão de baile.
O duque estava espantosamente impressionante no seu traje das Terras Altas e, sempre
que o caminho de Megan se cruzava com o dele no meio da música e da moda da alta
sociedade, ele parecia estar mais à vontade, mais relaxado entre os seu pares, se não os
seus amigos. Àquela distância, Megan reconheceu o seu amado pelo balanço do seu kilt,
pela sua altura e pela sua postura mais do que pelas suas feições.
E ela conhecia a voz de Hamish. Conhecia a carícia por trás do sotaque e o afeto e a
lealdade ainda mais ocultos.
Maldito Fletcher Pilkington.
– Vossa Graça. – Megan fez uma reverência. – A nossa valsa deve estar a chegar. Tenho
estado ansiosa por isso a noite toda.
Hamish olhou para ela e Megan não conseguia sorrir nem por todos os kilts em
Perthshire.
– Meggie, o que há de errado? Doem-lhe os pés?
O coração dela doía.
– Estou um pouco cansada. Talvez você prefira sentar-se comigo?
Que poderia ela dizer? Sir Fletcher copiara as suas cartas e estava ansioso para criar um
escândalo se Megan recusasse a sua corte.
– Sim – concordou Hamish, pondo a mão de Megan sobre o seu braço. – Eu acho que
alguns minutos de paz e sossego com a minha querida seriam maravilhosos.
– Não me chame sua querida – vociferou Megan, soltando o braço de Hamish. – Peço
desculpa. Eu não quis dizer… Precisamos de falar, Hamish. – Eles precisavam de terminar o
noivado antes de ser anunciado.
– É certo que precisamos de conversar. Algo está errado e você é a minha querida.
Ele levou-a até um banco no terraço, por baixo de uma tocha que fora propositadamente
deixada sem luz, sem óleo ou sendo apagada por um casal oportunista.
Megan acomodou-se ao lado de Hamish, não tão perto quanto desejava estar.
– Fui estúpida novamente.
A postura de Hamish alterou-se como um gato a ouvir um farfalhar no mato.
– Não vou deixar que desista de mim, Meggie Windham. Seja qual for o rumor que ouviu,
quaisquer boatos que circulem agora, nada disso importa tanto quanto a minha
consideração por si. Diga-me quem importunou a minha duquesa e vou ter uma conversa
com essas pessoas que tão cedo não esquecerão.
Ele levantou-se como se fosse partir em busca de um inimigo e Megan teve de se mover
rapidamente para colocar a mão à volta do cinto que segurava o sporran.
– Não se atreva a fugir de mim, Hamish MacHugh. Sir Fletcher armar-lhe-á uma
emboscada, e essa é a última batalha que quero na minha consciência.
– Sir Fletcher? O Pilkington incomodou-a, Megan? – Havia uma ameaça tão gratificante
naquela pergunta.
– Mais do que me incomodou, Hamish. Ele copiou as minhas cartas e vai alegremente
desafiar qualquer pessoa que frustrar o seu plano de se casar comigo. Deduziu que você ou
possivelmente Colin roubou as minhas cartas, e causará todo o tipo de falatório se me
recusar a casar com ele.
Hamish afundou-se devagar no banco.
– Ele copiou as suas cartas?
– Sir Fletcher afirma que a vida no exército o ensinou a ter todos os documentos
importantes copiados, e que não apenas tem um registo do conteúdo das cartas, como
também se deu ao trabalho de replicar a minha assinatura exatamente. Até mencionou que
Colin poderia ser julgado por roubo como um plebeu, enquanto você seria julgado nos
Lordes.
Hamish ficou em silêncio durante um longo momento, enquanto a abertura da valsa
começava no salão de baile. A valsa era uma das peças mais dramáticas do primo Valentine
e a maldita dança estava em tom menor assombroso.
– Diga alguma coisa, Hamish, por favor.
Mais silêncio enquanto Sir Fletcher provavelmente se curvava e sorria para alguma
debutante corada ou aumentava as dívidas de jogo que os acordos matrimoniais de Megan
deveriam pagar. A raiva que ela esperara que desvanesse só aumentava.
– A falsificação é um crime – disse Hamish. – E você está certa. Isto é uma emboscada. Já
fui emboscado antes. Não gosto. O Colin está a salvo de uma condenação – ele encontrava-
se a dançar e a namoriscar enquanto eu recuperava as suas cartas –, mas a ameaça de
acusações criminais contra o meu irmão já é má o suficiente e exatamente o que eu deveria
ter esperado de Fletcher.
– Lamento muito, Hamish. Arrastei-o para as minhas batalhas e Sir Fletcher não tem
honra. Não luta de forma justa. Eu sabia disso e ainda assim envolvia-o a si.
Hamish não respondeu, limitou-se a olhar as lajes, sentado. Poderia ter sido uma estátua,
Highlander Sentado, enquanto a Megan apetecia-lhe gritar e pontapear alguma coisa – os
órgãos reprodutores de Sir Fletcher, por exemplo.
As luzes das tochas tremeluziram quando o conde de Keswick atravessou o terraço. Ele
fora ferido na Península e, quando estava cansado, o seu modo de andar tornava-se
desigual.
– Sua Graça perguntou por ti, Megan – disse Keswick. – Murdoch, boa noite. Quando se
emparelha uma senhora para a valsa do jantar, normalmente dança-se com a senhora
quando a valsa é tocada.
Hamish levantou-se numa erupção de músculo e dignidade masculina.
– A senhora não gostou da qualidade sombria da música e eu não estava disposto a
renunciar à sua companhia.
Ele devia renunciar. Permanentemente. Megan poderia eventualmente aprender a
suportar esse desgosto, mas não se fosse obrigada também a ter filhos de Sir Fletcher.
– Joseph, podes relatar a Sua Graça que estou apenas a apanhar ar fresco na companhia
do Murdoch.
– Sim, Cowlick – confirmou Hamish. – Informe à sede que os piquetes estão todos em
serviço de sentinela, conforme designado. Suspeito que a sua condessa está a perguntar-se
para onde você foi, por isso mais vale reportar a ela também.
O olhar de Keswick passou de Hamish para Megan.
– Talvez você se junte a mim para um jogo de cartas depois do jantar, Murdoch.
O convite do conde tinha a qualidade de uma luva a bater nas lajes.
– Talvez me junte – disse Hamish.
O silêncio que se seguiu foi considerado por parte de Keswick indecifrável e ilegível por
parte de Hamish.
– Vou à procura de um lacaio para reacender essa lâmpada – disse Keswick. – Megan, boa
noite. Murdoch, espero-o na sala de jogos depois do jantar.
Keswick desapareceu pelas portas abertas da galeria, deixando Megan com pouco mais
para dizer ao seu amado que um adeus.
– Eu não espero que partilhe o bufê comigo – disse ela. – Na verdade, provavelmente é
melhor se não o fizer. Sir Fletcher fará comentários e eu não quero…
De repente, ela não foi capaz de forçar mais palavras para lá do nó na garganta.
– O que é que você não quer, Meggie?
Durante as últimas semanas, Megan construíra uma visão do seu futuro na sua
imaginação. Lindas paisagens escocesas, gargalhadas de crianças ruivas, música e noites
aconchegantes junto ao fogo tinham aparecido destacadas. As noites mais quentes sob os
cobertores tinham figurado com mais destaque ainda, bem como também décadas de
afeição, confiança, sonhos e vida partilhada. Sentira o seu mundo a abrir-se numa bela
paisagem de novas experiências e visões.
Esse mundo desmoronara-se no espaço de cinco minutos e fora substituído por anos de
tristeza e miséria como mulher de Sir Fletcher. Ele queria uma esposa e uma amante, não
havia equívocos, e já considerava o dote de Megan como seu para esbanjar em tantas
amantes quantas quisesse.
– Não quero incomodá-lo ainda mais – disse Megan baixinho. – Já pedi muito de si.
Hamish tornou-se muito alto nas sombras.
– Eu poderia lutar com ele, Meggie. Por si, eu poderia travar um duelo com ele.
Aquela admissão custara-lhe, claramente.
– Você não é um assassino, Hamish MacHugh, e é demasiado precioso para mim para se
arriscar nas mãos de Sir Fletcher.
– Então vai sacrificar-se em vez disso? – A pergunta foi tranquila, estupefacta e sofrida.
– Se tiver de ser – respondeu Megan. – Sir Fletcher não é o pior marido que eu poderia
ter. Provavelmente ficará entediado comigo depois de alguns anos e viveremos separados
como a maioria dos casais elegantes. Uns quantos filhos e depois perderá todo o interesse
pela sua esposa.
Rezou para que assim fosse. Rezou para que não se encontrasse casada com um homem
que lhe partiria os óculos e o espírito para seu próprio entretenimento.
– Megan, está a pedir-me que a entregue a Sir Fletcher?
Devia responder a Hamish com um resoluto sim. Não conseguia sequer assentir com a
cabeça.
– Não me faça chorar, Hamish. Por favor, não agora, não esta noite. Eu não posso ter
rumores e não quero…
– Eu sou precioso para si, mas não me quer – disse ele. As palavras deveriam ter sido
amargas, mas Hamish envolveu Megan num abraço gentil. – Você é doida, Meggie
Windham, e corajosa e tola – também uma péssima mentirosa. Antes que bata em retirada,
conceda-me uma bênção.
Megan pressentiu que era uma armadilha, mas estava demasiado ocupada a saborear
aqueles que poderiam ser os seus últimos momentos nos braços de Hamish.
– Está a tentar seduzir-me – disse ela, com a face encostada à lã do casaco dele. – Eu não
tenho defesas agora, Hamish. Mal consigo pensar, e a qualquer momento um dos meus
primos vai entrar por aquela porta, e vou querer bater-lhe com o meu leque.
– Encorajá-la-ei a qualquer demonstração de afeto que tenha como objetivo a sua família,
só estou a pedir umas tréguas, Megan.
Hamish estava a tramar alguma coisa e a valsa em breve terminaria.
– Que tipo de tréguas?
– Nós não avançamos nem recuamos. Mantemo-nos firmes, sem exibir bandeira de
rendição ou agressão manifesta. Um cessar-fogo enquanto cuidamos dos nossos feridos e
consideramos as opções.
Megan estava ferida e estar nos braços de Hamish era o único alívio para a sua dor.
– Eu deveria procurar Sir Fletcher agora e dizer-lhe que me casarei com ele. Você está a
ponderar algo perigoso.
– Não irá permitir que o desafie, pelo que estou sinceramente grato, mas não consigo
tolerar a ideia de se casar com ele. Diria que um cessar-fogo faz sentido agora.
Megan tentou pensar, ponderar os benefícios e os encargos, mas nenhuma grande ideia
ou conclusão impressionante se materializou.
– Quanto tempo dura esse cessar-fogo, Hamish? Não confio em Sir Fletcher nem um
pouco.
– Estamos de acordo nesse aspeto. Dê-me quinze dias, e não se sacrifique aos esquemas
dele ainda. Dê-me uma oportunidade para emboscar o homem que está novamente a tentar
emboscá-la a si.
– Quinze dias, então – anuiu Megan. Era manifestamente pouco tempo para Hamish
pedir. – Duas semanas no máximo. Sir Fletcher não é um homem paciente.
Quinze dias de liberdade e desejo pelo que não poderia acontecer e depois ela concederia
a Sir Fletcher a sua mão em sagrado matrimónio.

Hamish viu Colin no canto da sala de jogos, aparentemente despreocupado e feliz num
quarteto de ex-oficiais a jogar whist. Era muito provável que estivessem mais interessados
nas suas reminiscências e no brande da anfitriã do que no jogo de cartas.
– Eu não consigo conceber o que vê a Megan Windham num homem que é incapaz de
sorrir – disse o conde de Keswick, de pé ao lado do cotovelo de Hamish.
– Pergunte à sua mulher o que consegue um homem incapaz de sorrir oferecer que valha
a pena a atenção de uma mulher – respondeu Hamish. – Ela certamente terá algumas ideias.
– A minha condessa é uma fonte de criatividade enquanto você não tem esposa alguma.
– Quem é o homem que faz de parceiro de Sir Fletcher? – perguntou Hamish em vez de
admitir a triste verdade do comentário de Keswick.
– O capitão Garner Puget. Um dos filhos suplentes de Plyne e não exatamente um caça-
dotes, segundo…
– A sua esposa – terminou Hamish. Keswick estava apaixonado e Hamish só podia invejá-
lo. – Porque parece o Puget familiar?
Hamish já vira os dois juntos anteriormente – no musical? –, mas porque o incomodava o
avistamento de Puget, essa era a questão mais urgente. Claro, tudo o incomodava, tendo em
conta as saraivadas que Megan disparara. Fora tão corajosa e bonita e perdida quando
anunciara a última perfídia de Sir Fletcher.
– O Puget – respondeu Keswick – era um daqueles filhos mais novos que foram bons
soldados durante a campanha peninsular. Assim que Napoleão foi derrotado, as escolhas
deles limitavam-se à Índia, Canadá ou reformar-se. Creio que ele serviu sob o comando de
Sir Fletcher durante parte do seu alistamento.
E Puget ainda se associava a um oficial que não fora nem apreciado nem respeitado pelos
seus subordinados.
– Apostaria o meu coche e a equipa em como Sir Fletcher chantageou o pobre coitado de
alguma forma – disse Hamish. – Existe algum lugar onde possamos conversar?
Keswick tomou um gole da sua bebida, que parecia ser limonada.
– Estamos a conversar agora.
– Muito bem, então não lhe vou dizer que o monte carrancudo de lordes a que a Megan
chama primos deve ficar ao lado dela em todos os instantes durante as próximas duas
semanas. Sir Fletcher tem sido uma praga, e acho que chegaria ao ponto de pedir a mão da
minha Meggie em casamento em público.
Keswick franziu um esplêndido nariz aquilino.
– No corredor, três portas à frente, há uma sala de estar sem lareira acesa. Não seremos
incomodados lá.
Hamish deixou Keswick liderar o caminho. No entanto, quanto a não ser incomodado,
Hamish sentia-se muito mais do que incomodado. Copiar as cartas de Megan mostrava
determinação, perspicácia, premeditação de malícia e todo o tipo de tendências alarmantes
e astutas de um homem que Hamish queria desconsiderar como um valentão preguiçoso.
Keswick trancou a porta da sala e, embora a lareira não estivesse acesa, um candelabro
de parede tremeluzia tenuemente. A sala era mais sombras do que luz e, em contraste com
a tagarelice e o zumbido do salão de baile, quieto como um túmulo.
– Porque deve a Megan Windham ser protegida de um pretendente elegível? – perguntou
Keswick.
– Porque Sir Fletcher Pilkington é um maldito canalha.
– Ele diria o mesmo de si e anda a fazer exatamente isso em metade dos clubes da St.
James Street. Alega que a sua violência não conhece limites, que traiu os seus homens e é
meio maluco no mínimo. O que eu gostaria de saber é porque é que Sir Fletcher gosta de
mexericos antigos agora?
Keswick estava a encorajar confidências, que Hamish não depositara em ninguém, nem
mesmo na sua amada. Hamish não poderia absolutamente fazer-lhe a vontade.
– Sir Fletcher está a desacreditar um rival, é claro, e se esteve em Espanha, sabe bem o
que era dito sobre mim.
– Eu estive lá – respondeu Keswick, encostando-se no parapeito da lareira. – Vi-o a si
agarrar o pescoço daquele pobre coitado. Vi os franceses começarem a recuar
imediatamente depois disso. Naquela altura, eu já estivera em vários campos de batalha, e
testemunhar aquela morte quase me fez vomitar nos arbustos.
Keswick afastou-se do parapeito da lareira e Hamish pensou que aquela brincadeira
entre os fantasmas da batalha terminara.
No entanto, Keswick deu dois passos para mais perto.
– Não consigo imaginar o que deve ter sido para si.
O cérebro idiota, estúpido e inútil de Hamish formou palavras e a sua boca desesperada e
debilitada transformou-as em som, embora de maneira abrupta as emboscadas
acontecessem de todas as formas.
– Pretendia empurrar o maldito homem para o lado, para o tirar do meu caminho, mas o
maldito francês não se mexeu. Eu conseguia ver meia dúzia de soldados da infantaria
francesa a aproximar-se do meu irmão por trás, e o Colin estava alheio ao perigo, focado
apenas em seguir em frente. Tinha de chegar ao meu irmão ou se não vê-lo-ia morrer nem a
dez metros de distância. E o francês – continuou Hamish, num tom de voz mais baixo –
estava a bloquear o meu caminho. Pus-lhe as mãos em cima e depois ele morreu. Acho que
escorregou. Nunca quis matá-lo. Desejo acreditar que escorregou e que a morte dele foi um
acidente.
O olhar de Keswick era indecifrável na escuridão.
– A guerra consiste numa série de acidentes, miraculosos ou trágicos. Aquele chão tinta
tanta lama que todos escorregávamos, os cavalos caíam, a artilharia não se conseguia
colocar em posição com rapidez suficiente. O seu acidente, se é que foi um acidente, virou a
maré de uma batalha que não estava a correr bem para o nosso lado. Aquela única morte
provavelmente impediu muitas outras em ambos os lados e, ainda assim, sinto que lhe é
devido um pedido de desculpas.
Hamish nunca perguntara a uma testemunha ocular o que aquele momento trágico e
violento parecera aos olhos do observador, mas a recitação de Keswick trouxe de volta
lembranças.
Os relinchos de cavalos a cair na lama, o praguejamento da infantaria quando a artilharia
não conseguia fazer a sua parte e a frustração escorregadia do chão pantanoso que
dificultava um avanço que os franceses estavam mortalmente determinados a impedir.
Keswick não ofereceu uma garantia de que o pior momento da vida de Hamish fora um
acidente, mas lembrou que existiam provas que sustentavam essa conclusão.
Tudo isso Hamish ponderaria quando Megan estivesse a salvo de Sir Fletcher.
– Ninguém me deve nada, Keswick – e você não vai falar disto com o Colin, nunca –, mas
devem a vossa proteção à Megan Windham. Sir Fletcher está mortinho para criar um
escândalo ao desafiar alguém para um duelo e, se esse alguém for eu, vou ter de escolher
entre quebrar a minha promessa para com uma senhora e levar com uma bala de um
canalha.
Keswick moveu-se até uma confortável cadeira de leitura. Fez aparecer um frasco e
ofereceu-o a Hamish.
Bem, sim. Um gole revigorante era justificado depois de uma emboscada.
– Você tem assim tão má pontaria? – perguntou Keswick.
O seu frasco continha um brande suave e sofisticado. Não era uísque, mas servia.
– Comparado com Sir Fletcher? Provavelmente. Também prometi à baronesa St. Clair
que não travaria mais nenhum duelo. O barão é um homem formidável, mas a baronesa
mete-o a um canto.
– Já tive o prazer – respondeu Keswick, aceitando o frasco de volta. – Deu-me
encorajamento considerável na época pensar que, se o St. Clair podia cair nos braços de
uma boa mulher, havia esperança para o resto de nós.
– Ele fez-me confessar os meus segredos com batota – referiu Hamish, algo que só o
próprio St. Clair sabia. – Drogou-me a bebida, disse que teria sido muito difícil arrancar-me
a informação com tortura. Eu deveria sentir-me consolado com isso.
– E a culpa atormentou-o desde então – disse Keswick. – Talvez essa seja a maior ferida
que a guerra inflige – culpa por quando lutamos bem, culpa por quando não lutamos. Culpa
quando deixamos os nossos entes queridos em casa, uma maior culpa quando deixamos
camaradas no campo de batalha. À paz.
Keswick inclinou o frasco e depois entregou-o a Hamish. O respeito cavalheiresco levou
Hamish a beber outro gole.
– À paz – brindou Hamish –, mas não para Sir Fletcher. Manterá a Megan guardada a toda
a hora?
– É o que sempre fazemos. Vou alertar os primos dela, enquanto você faz exatamente o
quê?
A estratégia era importante. O que quer que fosse verdade, Hamish não devia subestimar
Sir Fletcher novamente. Ele estava desesperado e era astuto e, como Megan dissera, não
respeitaria nenhuma regra honrosa. Outra razão para não o desafiar ou aceitar um desafio
dele.
– A Megan tentou convencer-me a afastar-me.
– E, todavia, aqui está você, a mover a sua infantaria para um lugar estratégico, a
desobedecer às ordens, pelo que você também é famoso.
Hamish ocupou a segunda poltrona, um lugar confortável para refletir sobre o resto da
sua vida.
– Não desobedeci a ordens mais do que qualquer outra pessoa desobedeceu. Os meus
homens eram importantes para mim e, durante algum tempo, o meu oficial de comando foi
um sobressalente de algum marquês que se importava mais em reunir informações
valiosas sob as saias da lavadeira do que invadir a França.
– Eu suspeitava disso.
Um silêncio estranhamente confortável nasceu, como o que soldados frequentemente
partilhavam em redor de uma fogueira. Alguém poderia recitar um poema, outra pessoa
cantar uma canção antiga, o frasco faria as rondas, até que cada homem se afastasse para
sonhar com a casa, a infância ou com um novo par de botas.
– Eu poderia lutar com Sir Fletcher – disse Hamish baixinho. – Percebo isso agora. Estou
pronto, disposto e capaz. Não tinha a certeza antes. – Que horrível saber que estava
novamente em condições de batalha, e que alívio também. Um alívio que ele devia a Megan.
– O Pilkington iria matá-lo, pestanejar com os seus belos olhos azuis e alegar que
pretendia falhar – afirmou Keswick. – Os seus segundos ingleses titulados fundamentariam
esta história, independentemente do que eu alegasse em contrário. Não baixe a guarda
relativamente ao Pilkington. Enquanto estiver a espalhar rumores sobre si, eu reúno
informações sobre ele. É mimado, cruel, tinha um temperamento vil para com os seus
próprios homens e exibe o seu charme como um lenço de seda diante das debutantes e das
mães delas.
Aquele aviso totalmente desnecessário enterneceu a parte de Hamish que a tentativa de
dispensa de Megan deixara fria e furiosa.
– Eu não baixarei a guarda outra vez. – Hamish também não deixaria o sacana desposar
Megan. Se o escândalo rebentasse, a família de Megan poderia negar-lhe a mão da sua
senhora – até que ele pudesse levá-la para a Escócia –, mas era preferível o escândalo do
que saber que Megan fora coagida a casar-se.
– Não baixe a guarda com ninguém – disse Keswick. – Não estou a elogiar os seus modos,
Murdoch. Este maldito frasco de alguma forma ficou vazio.
Apenas Megan elogiava os modos dele.
– Você precisa de um frasco maior e eu preciso de tempo.
Hamish entregou-lhe o seu próprio frasco. Keswick passara anos no serviço militar. Ele
certamente conhecia a água da vida.
– Tempo para quê? Eu posso enviar um pombo-correio para os pais da Megan, se isso
ajudar.
Um pombo trouxera a Inglaterra a primeira notícia da vitória de Wellington em
Waterloo.
– Nada de pombos, Keswick. A Megan pode convocar os pais dela se quiser, mas eu
preciso de tempo, e esperar que Lorde Anthony e a sua senhora regressem significará que
as opções da Pilkington são limitadas por enquanto.
Keswick tomou um gole valente do frasco e devolveu-o.
– Acho que vou voltar para a sala de jogos e jogar um ou dois jogos de whist. Se a sorte
estiver comigo, aliviarei os bolsos de Sir Fletcher, o que deveria impedi-lo de se juntar à
Megan na pista de dança durante algum tempo. Você ainda não formulou um plano, pois
não?
– Tenho muita coisa a considerar para formar a minha estratégia. Assim que você me
deixar em paz, tratarei disso.
Keswick roncou, levantou-se e apertou Hamish no ombro.
– Tranque a porta depois de eu sair para não ficar escandalizado com um desfile de
casais em busca de privacidade. Se Sir Fletcher está determinado a causar falatório, quanto
mais cedo você imaginar uma maneira de contrariar os planos dele, melhor. Os boatos
viajam como um perfume na brisa e, nesta época do ano, Mayfair é uma verdadeira
tempestade de vento.
Hamish permaneceu sentado, embora quisesse encontrar Megan e levá-la para a Escócia.
– Vá perder o seu dinheiro para que a sua condessa o console pelas suas perdas. Eu, pelos
vistos, não careço de aliados pelos quais nenhum soldado se esquece de agradecer.
A dupla negativa era uma folha de figo útil quando a dignidade de um homem estava em
perigo.
– Você não carece de aliados, família, recursos e uma boa dose de astúcia militar. A minha
condessa declarou que, se a Megan gostasse de si, você seria um bom partido. Com este
aviso, desejo-lhe boa noite.
Hamish levantou-se para trancar a porta depois de Keswick sair, pois tinha muito a
ponderar. Ele falhara com Megan – roubar as cartas não fora o suficiente – e, por causa
disso, poderia perder a oportunidade de se casar com ela.
Não falharia com ela novamente.
– Como se consegue que um homem armado cavaleiro por bravura, filho de um conde e
alguém com posse de provas incriminatórias – embora forjadas – se vergue sem se correr o
risco de escândalo para a minha Meggie?
A sala escura não ofereceu respostas, mas Hamish tinha mais uma pergunta, uma
pergunta que o atormentava desde que Megan lhe falara das cópias de Sir Fletcher.
Copiar trinta e uma cartas, meticulosamente, da própria caligrafia da autora, ao ponto de
aperfeiçoar uma versão da assinatura dela, requeria uma quantidade significativa de
tempo. Um homem com o caráter fundamentalmente indolente e arrogante de Sir Fletcher
normalmente não faria tal esforço. Era necessária uma certa habilidade artística para
replicar uma assinatura de forma convincente trinta e uma vezes vezes e Sir Fletcher não
era artista algum.
Então, como e por quem tinham as cartas sido copiadas?
Capítulo 18

Colin seduzira durante a última semana, enquanto Hamish deambulara pelos clubes de
cavalheiros, saíra para tratar de assuntos seus e partira em geral o coração de uma jovem
que Colin esperara que fosse a salvação do irmão. Quando, numa manhã cedo, essa jovem
senhora se cruzou com Colin no Hyde Park – nada como um bom galope para desanuviar a
cabeça – ele quis continuar a galopar até às Terras Altas.
– Lorde Colin, bom dia.
O cavalo de Colin resfolegou e comportou-se como um idiota, enquanto a Menina Megan
Windham controlou a sua égua castanha com facilidade.
– Menina Megan, bom dia. Desfrute do parque e dê os meus cumprimentos à sua…
A senhora estremeceu no seu traje de equitação por cima da bota. O gesto tinha um
caráter paciente, como se esperasse que Colin ultrapassasse as suas prevaricações.
– Como está ele, Lorde Colin?
Ele era Hamish, claro.
– Não sei. Não o vejo desde o último baile, e nem aí. – Hamish tomava o pequeno-almoço
antes do resto da família, fechava-se em salas com advogados e banqueiros e depois
desaparecia para os clubes, na maioria dos quais só se inscrevera recentemente.
Segundo rumores de familiares distantes, ele também consultara um primo MacHugh
que era editor, outro que fazia selas, um terceiro que geria uma banca de peixe no
Haymarket e um quarto que era dono de um bar em Knightsbridge.
– Preocupo-me com Sua Graça – disse a Menina Megan. A noventa metros ao fundo do
caminho, um cavalheiro montado num cavalo preto de tamanho considerável esperava por
ela. O lacaio dela acompanhava-a à distância respeitável de dez metros. Colin procurara
pela Menina Anwen, mas ela não viera passear com a irmã.
– Eu preocupo-me com o Hamish há anos – respondeu Colin. – Não vale de nada. O
Hamish fará o que quiser, e não há como impedi-lo. Se ele troçou dos seus afetos, apenas
posso pedir desculpa em nome dele e dizer-lhe que não tem o hábito de ser assim.
Por muito que Colin odiasse ver a Menina Megan a olhar para a porta em sequentes
eventos sociais, arreliava-o que tivesse perdido de vista o seu irmão mais velho. Na
primavera, Londres era provavelmente a ideia de um pesadelo para Hamish, mas Colin
tivera esperanças.
– Acompanha-me, Lorde Colin? Gostaria de lhe fazer algumas perguntas e temos neste
momento privacidade relativa.
Ela era uma senhora, Colin era um cavalheiro – ou aspirante a sê-lo – e não a poderia
recusar. Virou o seu cavalo colocando-se ao lado da égua e preparou-se para se esquivar a
um interrogatório constrangedor.
– Eu digo-lhe o que puder – disse Colin. – Não violarei quaisquer confidências. – Não que
Hamish fizesse confidências aos irmãos. Possivelmente fá-las-ia ao seu cavalo ou junto do
túmulo do pai deles, mas nunca a algo tão insignificante como um mero irmão mais novo.
– Fale-me de como é crescer na Escócia – pediu a Menina Megan quando a sua égua
caminhava em frente sob os primeiros raios de sol. – Fale-me da vossa casa e dos seus
irmãos mais novos.
Sobre esses assuntos, Colin podia ser efusivo e então falou durante uma boa meia hora,
enquanto os cavalos percorriam os trilhos, o Sol subia no céu e o acompanhante de Megan
os vigiava a toda a hora.
– O Hamish deve ser quem passeia consigo logo de manhã – comentou Colin, algum
tempo depois. – Eu não sei o que se passa com ele, Menina Megan, mas se lhe perguntasse,
berraria e grunhiria e dir-me-ia para ir comprar umas botas novas.
Talvez não umas botas, tendo em conta as despesas que Rhona e Edana tinham feito
ultimamente.
– Ele não tem estado bem desde Espanha, pois não?
De repente, Colin apercebeu-se de que todas as recordações sobre Perthshire e
descrições sobre a árvore genealógica tinham sido um subterfúgio da parte de Megan
Windham. Ela estivera a ganhar a sua confiança, deixando-o divagar como se todas as suas
palavras fossem o seu maior prazer. Como o idiota inútil que ele costumava ser, Colin
fizera-lhe a vontade.
– O Hamish nunca quis ir para a guerra – afirmou Colin. – Sei disso, e tentei dissuadi-lo.
Deixar a Escócia foi como arrancar-lhe um órgão vital, mas cada vez mais rapazes da zona
estavam a alistar-se e eu vira tanto de Perthshire como qualquer outro jovem precisa de
ver. Estava ansioso para comprar a minha comissão, e não havia ninguém que me
impedisse.
– Você era novo, Lorde Colin. Não somos sensatos quando somos novos.
Falou como se ela – uma senhora perfeita de uma família perfeita – tivesse cometido o
enorme pecado a dada altura da sua vida, o que não era possível.
– O Hamish não queria que eu fosse – continuou Colin, as palavras desferindo uma facada
de culpa na sua consciência. – Eu inventava discursos emocionantes sobre patriotismo e o
monstro do Napoleão a fazer o meu papel, mas a verdade é que me estou nas tintas para o
Jorge que temos no trono. Sempre estive, o que faz de mim um patife, julgo. Apenas queria
aventura, ver coisas novas, rostos novos e ganhar a minha própria glória.
Outros cavaleiros vinham na direção deles, dois sujeitos que Colin reconheceu como mais
Windham perfeitamente felizes – mas nenhuma Menina Anwen. Ambos os homens
montavam cavalos extraordinários e, embora os sorrisos que esboçavam na direção de
Megan fossem afetuosos, Colin recebeu apenas um inclinar do chapéu com uma carranca.
Como deveria ser, porque o MacHugh errado estava a fazer companhia à senhora.
– Encontrou coisas novas, novas aventuras e a sua própria glória? – perguntou a Menina
Megan quando ela e Colin prosseguiram pelo caminho.
Colin ponderou bem a pergunta, porque aquela mulher não devia ser ignorada com
galanteios casuais. Sem os seus óculos, não estava a escrutinar a expressão no rosto dele,
mas detetaria insinceridade na sua voz.
– Fiz amigos maravilhosos, vi partes do mundo que um rapaz escocês não teria visto de
outra maneira e lutei arduamente. Gostei da maior parte da minha vida militar, e posso
dizer isso com sinceridade.
– Então, o Hamish está sem dúvida contente por si e a sua felicidade significa tudo para
ele. Talvez devesse sentir-se contente por si mesmo também?
– Como posso sentir-me satisfeito por mim mesmo quando vejo o meu irmão… – Colin
não podia falar de forma tão crua diante de uma senhora como gostaria. Hamish estava a
arruinar aquele cortejo à Menina Megan, desiludindo anfitriãs, enfurecendo Eddie e Ronnie
e em geral metendo água.
E Colin não sabia como intervir, não sabia como ser o bom irmão que Hamish fora tantas
vezes para cada um dos seus irmãos.
Era assim que Hamish se sentia quando Colin se metia em alhada após alhada? Inútil,
inadequado, frustrado e quase a engasgar-se com a necessidade de ajudar e ser útil?
– Vamos deixar os cavalos descansarem? – A Menina Megan parara a sua égua e porque
travara o seu cavalo no meio do caminho Colin não sabia.
– Vai dar tu uma volta – murmurou Colin e o animal obedeceu. – Preciso de ter uma
conversinha com o meu irmão. Metê-lo na linha.
– Não por minha causa – respondeu a Menina Megan. – Estimo profundamente Hamish e
não quero que o incomode por minha causa. Tenho mais uma pergunta para lhe fazer,
Lorde Colin.
Colin queria desesperadamente partir na direção da casa do seu irmão, procurar Hamish
e agradecer-lhe. Não o agradecimento rancoroso de um jovem para com o sujeito que o
poupara do risco e da estupidez de alguns duelos, mas o agradecimento sincero de um
irmão por uma vida salva vezes sem conta.
– Acho que aquele sujeito naquele cavalo pode estar pronto para acompanhá-la até casa,
Menina Megan.
– O Keswick gosta de ter privacidade – referiu a Menina Megan. – É um acompanhante
consciencioso, mas não sou propensa a cair da sela. Não ultimamente. A pergunta que
tenho para si posso-a fazer sozinha, e espero que me responda com sinceridade.
Colin sentiu um desconforto nas entranhas.
– O Hamish matou um homem desarmado, Menina Megan. Foi no meio de uma batalha,
uma morte entre tantas outras, e é só isso que precisa de saber. Encontrava-se a uns bons
dez metros de distância de mim por isso não vi acontecer. Explicou-me que estava a ficar
desesperado porque a linha não avançava e a chuva começara a cair outra vez. Ele precisa
de deixar isso no campo de batalha, foi uma violência necessária no caminho para uma
vitória igualmente necessária.
A Menina Megan agitou uma mão enluvada e reajustou o chicote.
– Eu sei isso tudo, Lorde Colin. Estrangulou um homem com as próprias mãos, ou partiu-
lhe o pescoço, possivelmente as duas coisas. Uma coisa horrível para todos os envolvidos e
certamente lamentável. Não finjo entender o que se passa no meio da batalha. Quero saber
o que aconteceu quando o Hamish foi emboscado. Julgo que seja a pior memória, e, no
entanto, mal fala dela. Não me pode dizer o que aconteceu?
Ela sabia tudo sobre aquele dia horrível em Espanha? Apenas o próprio Hamish poderia
ter-lhe contado e, ainda assim, ali estava ela, a querer saber mais.
A cinquenta metros à frente, o conde de Keswick estava montado no seu cavalo como se
a posar para uma estátua. Esperaria ele pela Menina Megan até ao pico do verão.
– Você ama o Hamish, não ama? – perguntou Colin, embora apenas entendesse
vagamente o que poderia significar uma mulher tão feroz como ela amar o seu irmão.
Sarilhos para Hamish, mas sarilhos bons e muito esperados.
– Eu amo-o com todo o meu coração, e sempre amarei. Não se esqueça disso se me
recusar algumas verdades simples agora, Lorde Colin.
– Penso que é melhor dispensar o trato de lorde e chamar-me Colin quando estamos em
privado.
Sua senhoria afagou o ombro da égua.
– Colin, então. Diga-me o que aconteceu, por favor.
O Sol ergueu-se alto no céu e o riso de crianças juntou-se ao grasnar dos patos e ao
tilintar de freios de coches por baixo dos áceres imponentes de Hyde Park. À medida que a
madrugada se transformava numa linda manhã, Colin contou a Megan Windham sobre a
vez em que Hamish MacHugh escolhera a morte em vez da desonra e sobrevivera para se
arrepender.

– Os comerciantes têm de ser pagos. A contabilidade tem de se equilibrar.


Hamish murmurou aquelas palavras, que eram uma das advertências favoritas do seu
pai. A maior parte da tarde fora passada a cuidar das finanças e enquanto a mão de Hamish
estivera a escrever cheques bancários, e a sua mente a fazer contas, o seu coração doera-
lhe.
Como estaria Megan, e como poderia Hamish garantir-lhe que estava a esforçar-se para
encontrar um meio de contrariar os planos de Sir Fletcher? Uma sugestão de mexerico, uma
ameaça de desonra, um comerciante descontente, qualquer coisa…
– Ainda estás nisso? – perguntou Colin, apropriando-se da cadeira em frente à mesa de
Hamish. – Entendo que nos vais abandonar novamente esta noite? Deixar todas as
reverências e sorrisos para mim, todas as escoltas e brincadeiras?
– Brinca com cautela, irmãozinho – aconselhou Hamish, esfregando os olhos.
E isso fê-lo pensar em Megan também.
– Desististe de socializar para sempre? – perguntou Colin. – Metade das casamenteiras
em Londres vai entrar em declínio.
– Ao passo que todos os caça-dotes vão alegrar-se. Conheceste alguma rapariga que
chamasse a tua atenção, Colin? – Hamish pegou no último pedido de pagamento dos
comerciantes em vez de examinar a expressão de Colin.
A fatura era de uma quantidade exorbitante de confeção de botas, de Puget e Filhos.
Hamish adiara o pagamento, a princípio porque ninguém da família comprara botas
suficientes para justificar essa despesa. Além disso, nenhum dos familiares distantes
espalhados por vários ofícios de Londres – nem um primo em segundo grau, nem um sogro,
nem uma tia-avó – alguma vez ouvira falar do estabelecimento.
– Pensei que estavas à beira de pedir a mão de uma jovem senhora, Hamish. – O olhar de
Colin exprimia acusação e, possivelmente, pena.
– Estava, Colin, mas as circunstâncias mudaram. Tens a certeza de que isto não é teu?
Colin pegou na fatura e pô-la de lado.
– Eu não quero falar sobre pences e libras, Hamish. A Megan Windham gosta de ti e tu
viraste-lhe as costas. Nada bonito da tua parte e não é um bom exemplo para mim.
– Estás a repreender-me? – Que original, e que reconfortante.
Colin levantou-se, apoiou as mãos na mesa e inclinou-se para a frente, de modo que o seu
nariz estava a centímetros do de Hamish.
– Sim, estou a repreender-te. Só posso pensar que arranjaste outra maneira de ser um
nobre mártir, e estou farto disso.
Colin pareceu-lhe o pai deles naquele momento. Ninguém fora mais feroz e mortal do
que o pai deles.
– Eu não sou um mártir nobre – respondeu Hamish. – Não, a menos que te estejas a
referir às despesas que estou a pagar pelas minhas irmãs. Eu sou um novato escocês
amaldiçoado com um título, e fui um bocadinho ambicioso no que diz respeito à Menina
Megan. Estimo-a muito, e se abandonei o lugar de acompanhante foi para arranjar munição
para usar contra aqueles que incomodam a rapariga.
Hamish não quisera revelar isso, mas Colin pareceu aliviado. Ele sentou-se e pegou na
conta de botas.
– Alguém anda a causar problemas à Menina Megan?
– Não alguém, Sir Fletcher Pilkington. A senhora recusou a corte dele, e ele está a tentar
forçá-la a reconsiderar. – Verdade suficiente, quanto muito.
Colin passou a fatura dobrada pelos lábios.
– Então é por isso que Sir Fletcher tem espalhado todo o tipo de rumores contra ti nos
clubes. Pensei que tinha inveja do teu título.
– Não o desafiaste. Estou orgulhoso de ti, Colin. Deixa que ele diga o que quiser e, mais
tarde ou mais cedo, encontrarei algo para usar contra ele. Devolve-me a maldita fatura,
para que eu não seja levado para a prisão de devedores porque tu confundiste a fatura com
um marcador de livros.
Colin olhou para o documento na sua mão.
– Esta é a conta que não faz sentido. Eu pergunto-me se estas pessoas são parentes
pobres do conde de Plyne. A família é enorme, e é por isso que tantos Puget compraram
comissões.
A nuca de Hamish arrepiou-se, embora a tarde estivesse amena e ensolarada.
– Há um problema com essa conta, Colin.
– Eu não comprei botas nesse estabelecimento e tu também não.
– Dois problemas, então. Olha para a assinatura.
Colin tinha boa visão e, no entanto, levantou-se para levar a conta até à janela.
– Esta não é a tua assinatura. Parecida, mas não é a tua.
– Sir Fletcher forjou cartas que diz serem da Menina Megan, e agora vejo uma fatura falsa
entre as que tenho de pagar. Percebi logo após o almoço porque é que estava relutante em
pagar a maldita coisa, e agora a coincidência – falsificação a criar obstáculos para mim e
para a Menina Megan – incomoda-me muito.
– Algo está podre em Mayfair – comentou Colin, trazendo o documento ofensivo de novo
para a mesa. – Há uma morada nesta conta. Então, deixas-me fazer-lhes uma visita?
Tudo em Hamish se rebelou contra permitir que Colin corresse riscos em nome do seu
irmão.
– Vais seguir-me se eu for sozinho, não vais?
Colin apontou para a porta.
– Nunca te agradeci por teres sido capturado pelos franceses. Deixa-me agradecer agora.
Há um mês, Hamish teria brigado, discutido, ameaçado e ostentado a sua posição militar
para manter Colin a salvo em casa. Em toda a Espanha, na França e novamente em
Waterloo, Hamish mantivera Colin a salvo, mas este não era mais um rapaz das Terras
Altas, inexperiente e ansioso para ver o mundo. Ele tornar-se-ia um soldado e um irmão de
que se pudesse orgulhar.
Os dias solitários de angariação de informações não tinham oferecido a Hamish nenhuma
vantagem contra Sir Fletcher e agora aquela fatura falsificada viera parar às suas mãos.
Colin tinha derrotado os franceses quando eles estavam decididos a matar. Certamente
seria capaz de aguentar um passeio inócuo pela vizinhança?

Megan sentira falta dos seus amigos e parentes quando haviam ido para a guerra. Pior, ela
sentira falta de Sir Fletcher e rezara todas as noites pela segurança dele.
Deveria ter rezado pela sua própria segurança.
E, ainda assim, nada daquela espera ansiosa e preocupada de que os soldados voltassem
para casa se comparava ao quanto sentia a falta de Hamish, mesmo sabendo que ele
morava a apenas algumas ruas de distância. Ele poderia muito bem ter estado nas encostas
distantes dos Pirenéus, pois Megan mal o vira na semana anterior.
Em parte para evitar Sir Fletcher, em parte porque Megan estava cansada de fingir
alegria todas as noites, presenteara-se com uma noite para ficar em casa. Anwen abraçara-a
e piscara-lhe o olho e ninguém desdenhara da sua decisão.
Passara mais de uma semana sobre o cessar-fogo de Hamish e Megan não soubera nada
dele. Hamish nunca desapareceria, nunca vacilaria diante do fogo inimigo, era um homem
terrivelmente prático e todos os comandantes acabavam por bater em retirada mais cedo
ou mais tarde.
Ela subiu ao seu quarto, embora o sono ultimamente lhe tivesse escapado.
A diferença foi percetível antes mesmo de fechar a porta do quarto. O ar estava mais
fresco, mais perfumado com vegetação, possivelmente porque as portas da sacada tinham
sido abertas recentemente.
Mais provavelmente porque Hamish MacHugh adormecera mais uma vez na cama dela.
Megan despiu-se em silêncio, trancou a porta da sala de estar e a porta do quarto e por
fim subiu para a cama ao lado do seu amado.
– Daria um excelente oficial de espionagem – disse Hamish, pondo o braço sobre os
ombros dela. – Sorrateira, furtiva como um gato. Eu não pretendia fazer isto outra vez.
Megan não pretendia deixá-lo sair da cama.
– Estou feliz por estar aqui, e senti imenso a sua falta.
Para que ele não confundisse esse sentimento com uma vulgaridade, Megan levantou-se
sobre os cotovelos e beijou-o.
Os beijos deles já se tinham tornado uma forma de comunicação. Hamish tinha algo para
lhe dizer e, ainda assim, sentira a falta dela também. O seu beijo demonstrou tudo isso. O
seu suspiro disse que a notícia não era boa.
– Conte-me – pediu Megan, sentando-se ao lado dele, apoiando a cabeça no seu ombro. –
Desde que Sir Fletcher não tenha começado a gritar os proclamas, eu aguentarei.
Desde que Hamish continuasse a invadir-lhe o quarto e a tomá-la nos seus braços.
– Sir Fletcher afirma ter falsificado cópias das suas cartas, no entanto, copiar cada carta
palavra por palavra teria sido uma tarefa tediosa e exigente, se forem falsificações ao invés
de cópias.
Deitada ao lado de Hamish, Megan pôde ponderar a sua situação em vez de apenas se
preocupar e irritar.
– Sir Fletcher afirma que igualou exatamente a minha assinatura. A meu ver, isso quer
dizer que igualou a minha caligrafia também.
– Como? – perguntou Hamish, virando-se de lado para ficar de frente para Megan. – A
falsificação é uma arte, embora criminosa. Fiz-me a mim mesmo essa pergunta várias
vezes. O filho de um conde não é propenso a relacionar-se com criminosos, mas depois
recebi uma conta de um fabricante de botas, Puget e Filhos, e a minha assinatura foi
falsificada na documentação.
– O nome da família do conde de Plyne é Puget – disse Megan. – Vi o Garner Puget na
companhia de Sir Fletcher em muitas ocasiões. Nunca parecia muito feliz, mas, também,
que empobrecido…
Hamish estava absolutamente correto. A falsificação era uma arte.
– O Garner Puget é um artista talentoso – continuou Megan. – Ele fez retratos dos seus
pais que são dignos da Academia Real. Não é considerado um caça-dotes, mas também não
é altamente elegível. Sua Graça diz que a irmã mais velha do Pilkington suspira por ele.
Hamish beijou Megan, demorando-se nos cantos da boca dela.
– Eu sabia que precisávamos de comparar informações. Claro, você estaria familiarizada
com as circunstâncias de cada solteiro em todos os salões de baile em Mayfair. Confirmou o
que eu descobri sobre o não-tão-honrado Garner Puget.
Megan teve de beijar Hamish, embora também quisesse saber o que ele descobrira.
Vários minutos depois, Hamish – que mudara de posição e de alguma forma perdera a
camisa – afastou-se.
– Ainda me esqueço do meu nome se continuarmos com isto, Meggie, minha querida, e eu
não vim aqui para colocar ainda mais em risco a sua reputação.
Megan trancou os tornozelos no fundo das costas dele. Hamish estava excitado, embora
ainda estivesse de kilt.
– Conte-me o resto e depois eu faço-o meu prisioneiro, Hamish MacHugh. Senti a sua falta
mais do que me é suportável. Sempre que entro num salão de baile e você não está lá, fico
preocupada que Sir Fletcher me encurrale com um pedido de casamento público. Ele
adoraria isso, forçar-me a ceder perante os acenos de cabeça e sorrisos de boa sorte de
toda a alta sociedade.
– Puget pode muito bem ter falsificado as suas cartas – disse Hamish. – Recebi uma fatura
fraudulenta com o endereço da senhoria do Puget, mesmo na esquina dos aposentos que
ele tem em Knightsbridge. Enviei um cheque bancário como pagamento e, quando Puget o
levantar, terei provas para o denunciar. Pelo que vejo, isso dá-nos opções.
Nos e opções combinavam muito bem na mesma frase.
– Tire o kilt, Hamish, por favor.
Ele sentou-se e tratou de despir o kilt.
– Uma opção é arrancar uma confissão do Puget, mas Sir Fletcher alegará desânimo
inocente. Há outro problema em provocar uma confissão.
– Sou toda ouvidos. – Megan também estava a glorificar-se na beleza iluminada do peito
nu de Hamish, dos braços dele, da junção do pescoço com os ombros. Não conseguia ver os
pormenores, mas conseguia distinguir os contornos, sentir o calor e a forma dele, e
conseguia ver o kilt dele a voar até ao chão, numa onda de lã fina.
– Está a pôr-me louco – disse Hamish, apoiando-se em cima dela. – Céus, você cheira
bem, rapariga. Eu serei o primeiro homem em Perthshire a ter os seus próprios limoeiros.
Hamish cheirava melhor, completamente limpo e com odor a cabedal.
– O Puget está a planear fugir com a irmã de Sir Fletcher? – perguntou Megan. – Talvez
seja por isso que ele tentou roubar-lhe dinheiro. No lugar dele, eu faria quase qualquer
coisa para fugir de Sir Fletcher.
Hamish aproximou-se, descansando a face contra Megan.
– Você considera o Puget outra das vítimas de Sir Fletcher, em vez de um cúmplice
voluntário. Porquê?
Em breve, Megan não seria capaz de contar até três.
– Porque é isso que Sir Fletcher faz. Ele embosca pessoas boas em situações más, como
aquele soldado que estava quase a morrer de fome. Como eu. Eu era inexperiente, estava
apaixonada e era imprudente, mas não foi pior do que qualquer outra jovem ignorante em
relação ao mundo exterior.
Megan conseguia ver isso, agora que Hamish estava disposto a responsabilizar Sir
Fletcher. O seu crime fora inocência, nada mais. A não ser que Hamish pudesse encontrar
Puget e arrancar-lhe uma confissão – uma confissão que implicasse Sir Fletcher – ela
poderia pagar pela sua loucura com o resto da sua vida.
– Você era demasiado inocente para o seu próprio bem – disse Hamish. – Mais prova da
insensatez inglesa, educar uma jovem dama na ignorância. Se eu conseguir encontrar o
Puget, vou certificar-me de que ele implica Sir Fletcher completamente. Se Fletcher estava
disposto a usar um falsificador para a apanhar e obter dinheiro de mim, então
provavelmente está a usar o Puget noutras competências também.
Megan arqueou-se para o calor de Hamish, porque desejava a proximidade dele mais do
que podia implorar, usar ou pilhar.
– Qual é o problema de arrancar uma confissão do Puget? – perguntou Megan. – Ele
deveria estar aliviado por se livrar dos planos de Sir Fletcher, desde que você não alerte as
autoridades.
Hamish deu-lhe o primeiro sinal aprazível de penetração e ficou imóvel.
– O problema, Meggie, é que não consigo encontrar o Puget. Ninguém o vê em eventos
sociais desde a última vez em que eu e você falámos. Se ele está a caminho de Gretna com a
senhora da sua escolha, ninguém anda a falar disso.
A Escócia estava a dias e dias de viagem e a paciência de Sir Fletcher chegava ao fim. Mais
uma vez, o desespero inundou Megan.
Por um momento, ela não se mexeu. Permaneceu não completamente unida com o seu
amado e encarou a possibilidade de Sir Fletcher poder vencer, afinal. Ele tinha falsificações
das suas cartas, o seu cúmplice desaparecera e as escolhas de Megan reduziam-se
rapidamente, sendo ruína para ela e para as suas irmãs, ou casamento com um canalha.
E, no entanto, Hamish viera ter com ela. Hamish não desistira e não desistiria. Megan
envolveu-o nos seus braços e completou a união.
– Temos outro problema, Hamish.
– Meggie, meu coração, neste momento, eu não tenho nenhum problema no mundo. A
mulher que eu amo está nos meus braços, e isso é suficiente milagre para agora.
A mulher que eu amo. Que valente que ele era, que nobre.
Prazer irrompeu, bem-vindo e luxuriante.
– Eu também o amo, Hamish MacHugh, mas ainda temos um problema.
– Fale-me desse problema, Meggie. Mas, se me ama e eu a amo, não há nada que não
possamos superar juntos.
Colin contara a Megan mais sobre o historial de batalha de Hamish. Permanecer resoluto
era a natureza de Hamish, ao passo que engendrar esquemas era de Sir Fletcher. Que fora
enganada pelo charme e pela aparência bonita de Sir Fletcher, isso não fora culpa dela, mas,
oh, arrependia-se mais disso com a passagem do tempo, não menos.
– Meggie?
Megan mandou a cautela para o raio que a partisse e depositou o resto do seu coração
nas mãos de Hamish.
– A minha menstruação está atrasada.
Capítulo 19

Hamish esteve deitado na cama de Megan durante muito mais tempo do que devia ter
estado, dominado por emoções demasiado complicadas para nomear. Espanto corria-lhe
pelas veias como nunca pensara sentir, pois ele e Megan iriam possivelmente ter um filho.
Preocupação seguia no encalço desse sentimento poderoso, bem como determinação.
Sob nenhumas circunstâncias iria Hamish permitir que Megan, muito menos o filho deles,
sofresse o futuro que Sir Fletcher tinha planeado.
Medo tentou infiltrar os pensamentos de Hamish, mas ele fechou e trancou todos os
portais contra esse demónio. Megan dependia dele e, embora pudesse requerer todo o tipo
de fealdade nos campos de batalha da temporada social em Mayfair, Hamish não aceitaria a
derrota.
Levantou-se da cama, parando para beijar a face da sua amada e prender as cobertas à
volta dela. A preciosa mulher amara-o até ele perder o juízo, e ele respondera da melhor
forma que pudera. Nunca a ternura e a paixão tinham conspirado tão bem e com tanto
vigor.
O amor não confundira Hamish, mas, antes, permitira que ele visse mais claramente.
Ele passou por cima do gradeado da varanda, enquanto, nas ruas escuras para lá do muro
do jardim, a alta sociedade regressava das mais recentes festividades.
Hamish, por outro lado, ia para a guerra. Inspecionaria todos os antros de jogo, todas as
estalagens, todas as prisões de devedores e todos os bordéis em Londres para encontrar
Garner Puget, e fá-lo-ia durante os dias seguintes.
O jardim lá em baixo estava escuro, mas Hamish chegou ao chão com facilidade. Soprou
um último beijo na direção da varanda de Megan, disse uma oração silenciosa para que
Garner Puget não tivesse abandonado o país, e já ia a meio dos degraus do terraço quando
uma voz o fez parar.
– Fuja na calada da noite se tiver de ser, Murdoch, mas se roubou a virgindade da Megan
Windham é um homem morto.
O tom de voz era amistoso, o que fez toda a ameaça ainda mais credível. Hamish virou-se
lentamente, com as mãos nos lados do corpo, para encarar o duque de Moreland. O cabelo
de Sua Graça brilhava com a cor do ouro ao luar, ele usava vestuário de noite elegante que
teria custado a Hamish mais do que um dos massacres de Eddie e Ronnie na modista.
– Boa noite, Vossa Graça – disse Hamish com uma vénia.
– Murdoch. – Nem vénia, nem sequer um aceno de cabeça. – Sabe porque é que os meus
filhos chamaram àquele quarto o quarto da corte?
– Não, senhor.
– Porque quem quer que dorme ali está a cortejar a loucura. A varanda é visível do
apartamento que eu partilho com a minha duquesa. Os meus filhos, ainda que brilhantes,
não parecem ter-se apercebido disto.
Sua Graça não revelou nada – nem raiva, certamente não humor, e nem tolerância – por
isso Hamish não disse nada também.
– Por favor, assegure-me, Murdoch, que a sua visita à minha sobrinha foi a pedido dela.
E arranjar problemas a Megan com o seu tio? Hamish permaneceu calado, enquanto
Moreland arrancava uma rosa branca ainda em botão e rodopiava nos dedos enluvados.
– A minha duquesa afirma que você é um homem decente, embora ostente essa saia
ridícula. O facto de não incriminar a Megan poupar-me-á ao aborrecimento de o desafiar
para um duelo.
– Perdoe-me pelo abuso da hospitalidade, Vossa Graça. Agradeço a sua discrição.
A postura de Moreland tornou-se militarmente ereta.
– Você presume ao elogiar a minha discrição, meu jovem. Permita-me instruí-lo nesse
aspeto. Se nutre algum respeito pela Megan, não vagueará sorrateiramente por jardins
escuros, mas, ao invés disso, limitará a sua adoração a locais tais como salões de baile
lotados, varandas bem iluminadas e passeios de carruagens apropriados. Meia parte do
propósito de cortejar uma mulher é provar publicamente que a tem na sua melhor
consideração.
– Sim, Vossa Graça.
O semblante de Moreland era severo ao luar. À medida que o silêncio se instalava,
Hamish considerou confidenciar tudo ao duque, mas mais uma vez a divulgação completa
passaria uma má imagem de Megan.
– Não tem mais nada para dizer, Murdoch? Não «Sim, Vossa Graça» ou «Nunca mais
voltará a acontecer, Vossa Graça»?
– As minhas sinceras desculpas, Vossa Graça.
Moreland roncou.
– Andor daqui, e que eu não o apanhe a menos de três metros da Megan a não ser que
esteja em público e ela o tiver reconhecido diante de outras pessoas. Sir Fletcher pediu
para falar comigo em privado, e isso não augura nada de bom para a sua corte, Murdoch.
O duque desapareceu para as sombras, marcando o seu caminho de volta à casa com a
rosa branca.
Como iria Hamish comunicar com Megan agora, quando ela teria de arriscar as atenções
de Sir Fletcher em qualquer evento social?
Hamish serviu-se da outra única rosa branca que agraciava a treliça, atirou-a para a
varanda de Megan e depois partiu pela calada da noite.
– Esther, lembra-me de nunca duvidar dos teus instintos. – Percival pontuou os seus
sentimentos ao entregar à sua duquesa a pequenina flor branca que trouxera do jardim. – O
Murdoch estava a deambular pelos jardins, com o sorriso mais glorioso e tolo nos lábios.
Lamento informar-te de que a nossa Megan tem tido visitas a horas invulgares.
Sua Graça sentou-se em frente ao aparador, pousou a rosa e começou a tirar ganchos do
cabelo. Ela tinha feições teutónicas acentuadas e a idade dourara a sua beleza com
sabedoria. O seu cabelo permanecia loiro e a sua forma perfeita – aos olhos do marido.
Percival deteve as mãos dela e assumiu a tarefa que ela iniciara.
– Eu gosto do Murdoch – disse a duquesa. – Não gosto do Sir Fletcher. Se alguma vez te
cansares de ser duque, escrever-te-ei uma personagem radiante como dama de companhia,
desde que tenhas o teu primeiro posto de trabalho comigo.
– Eu também gosto do Murdoch. Ele absteve-se de impugnar o discernimento da Megan e
quando interpretei talentosamente o papel de Duque do Decoro Ofendido, o Murdoch teve
a sensatez de ficar calado. Ele é astuto, como dizem os escoceses. Insultei o seu traje
nacional, e mesmo assim ele não se deixou provocar.
Esther sorriu ao marido pelo espelho.
– Tu foste maroto, Percival. Adoro a tua capacidade de malandrice. Pelo menos não
ameaçaste desafiar o coitado para um duelo.
– Tenho todo o respeito pelos reflexos mais rápidos e pela maldita boa pontaria do
soldado experiente. Usas sempre tantos ganchos, minha querida?
– O meu cabelo está a precisar de ser cortado – respondeu Sua Graça. – Então, açoitaste a
consciência do Murdoch e mandaste-o embora, com o rabo entre as pernas?
Essa era a reação habitual quando um pretendente ansioso era apanhado no jardim,
desde que o pretendente fosse a escolha da jovem. Percival retirou o último gancho e
começou a desentrançar o cabelo. Esther estivera deveras elegante naquela noite, mas,
também, isso era habitual.
– Porque é que o Murdoch não faz o pedido, Esther? Sir Fletcher requisitou uma
audiência comigo e tenho de lhe fazer a vontade mais cedo ou mais tarde. Não consigo
pensar numa razão para recusá-lo, se ele pedir permissão para cortejar a Megan. O pai de
Sir Fletcher levaria a mal se eu desencorajasse Sir Fletcher, e o velho já é entediante que
chegue quando preciso do voto dele.
O cabelo de Esther fluía em madeixas compridas e sedosas pelas costas. Ela passou a
escova a Percival e pegou na rosa.
– Porque não consultamos os nossos filhos? – perguntou ela, a rodopiar a flor. – O
Westhaven e o Valentine movem-se nos mesmos círculos que Sir Fletcher, e eles conhecem
o Murdoch. Se não consegues fazer sentido de uma situação, Percival, então é porque não
sabes todos os factos. A Megan gosta apaixonadamente do Murdoch, ao que parece, e mal
tolera Sir Fletcher.
– Direita ou esquerda? – perguntou Percival.
– Esquerda, por favor.
Ele arranjou-lhe o cabelo de modo a acomodar uma única trança sobre o ombro
esquerdo.
– Tu identificaste o problema, como é hábito. Eu não devo estar na posse de todos os
factos. Avisei o Murdoch que no futuro as atenções dele à Megan serão limitadas a locais
públicos e aceitáveis. Não se gosta de pensar que o primeiro neto da Gladys e do Tony pode
ser um bebé de sete meses.
Sua Graça endireitou-se com altivez.
– O nosso primeiro filho nasceu sete meses depois do casamento. O da Gladys e do Tony
também. O herdeiro do Westhaven foi um bebé de sete meses, tal como o teu falecido irmão
mais velho. Não tens respeito pela tradição, Moreland?
Percival tinha um eterno respeito pela sua esposa, e pela estupidez da juventude
apaixonada.
– Se eu vir o Murdoch a trepar os muros dos nossos jardins outra vez, deixo-te atacá-lo –
disse ele, a beijar a coroa da cabeça da mulher. – Ainda estou a ponderar o teu comentário
de que não sei todos os factos.
– Avisaremos as crianças – respondeu Esther, passando a Percival uma fita azul. Azul, a
sua cor preferida porque era a mesma cor que os olhos dele, dizia ela. – Se esta situação
tem mais que se lhe diga do que aquilo que sabemos, em breve descobriremos tudo. Tenho
de pôr esta flor em água antes de nos deitarmos.
– Eu faço isso – ofereceu-se Percival, tirando a flor das mãos dela. – A arte casamenteira
dá trabalho, e nós ainda temos mais três sobrinhas.
Esther ergueu-se e pôs os braços à volta de Percival.
– Mas depois, meu amor, podemos começar a pensar nos netos. A Rose e a Bronwyn vão
dar que falar na capital e a Bridget é simplesmente lindíssima. Mal posso esperar.
Percival podia esperar. Os jovens metiam-se nas alhadas mais idiotas e, ainda assim, algo
acerca da situação de Megan não parecia idiota de todo.

– Nada – disse Colin. – Nem um sussurro, nem um pio. Nem um sinal ou uma suspeita.
Lamento, Hamish.
Hamish inclinou o chapéu para uma condessa ou outra – passar tempo nalguns salões de
baile ajudara-o a distinguir as cortesãs das condessas – e parou nos degraus da residência
de Lorde Westhaven.
– Tu tentaste – disse ele. – Os homens tentaram, mas eu devia ter sabido que muitos da
antiga infantaria não saberiam grande coisa sobre onde anda escondido o filho de um
conde.
O facto de que os antigos subordinados de Hamish ajudariam, tanto tempo depois de
serem dispensados do exército, tinha grande significado.
– O que estamos a fazer aqui? – perguntou Colin, a admirar os amores-perfeitos
envasados que adornavam as escadas.
– Enviei uma mensagem ao conde de Keswick a pedir um encontro. Ele sugeriu que nos
encontrássemos aqui.
– Vais pedir ajuda a uma ninhada de ingleses titulados para encontrar o Puget? –
perguntou Colin, com os punhos nas ancas.
Porque estavam os MacHugh condenados a brigar em público?
– Eu suplicaria aos limpadores de chaminés de Lúcifer que me ajudassem se isso
assegurasse a paz de espírito da Megan. Qualquer dia, Sir Fletcher visitará o Moreland e
pedirá permissão para a cortejar. Qualquer noite, Sir Fletcher pode anunciar a toda a
Mayfair que está tão perdidamente apaixonado que tem de se ajoelhar no meio de um
maldito salão de baile. Estou a ficar sem tempo, Colin.
Mas Hamish não perderia a esperança. Considerara-se imune à esperança, a salvo das
suas garras pegajosas. Uma vida de contentamento responsável pontuado apenas por um
ou outro pesadelo fora a soma das suas aspirações.
Depois fora presenteado com a confiança de Megan Windham e as suas ambições
multiplicaram-se como estrelas que enchem o céu noturno.
– Então vais recorrer aos oficiais ingleses que escarneceram de ti? – insistiu Colin. – Os
mesmos homens que fizeram pouco de nós os dois, espalharam boatos e gozaram com a tua
coragem?
– Colin, eu não consigo fazer isto sozinho. Não conseguimos fazer isto sozinhos. O Puget é
filho de um lorde inglês, e então pedirei ajuda a lordes ingleses. Podes deixar-me aqui, que
eu compreenderei.
Mas Hamish não queria que Colin fosse. De facto, se Hamish tivesse podido trazer Eddie e
Ronnie, tê-lo-ia feito.
Colin empurro Hamish com força suficiente para o fazer recuar um passo.
– Até parece que deixaria o meu próprio irmão enfrentar esta alcateia de chacais, sem um
cúmplice leal ao seu lado.
Hamish empurrou-o também, por formalidade, e porque abraçar o irmão mais novo na
rua embaraçaria Colin.
– Estou a ver que estamos a oferecer à alta sociedade uma bela demonstração dos modos
escoceses.
Hamish conhecia aquela voz, mas não era a de Moreland.
O herdeiro de Moreland estava a dois metros de distância, com vestuário matinal
sofisticado, a segurar a bengala na mão.
– Westhaven, bom dia. Conhece o meu irmão Lorde Colin MacHugh.
Westhaven fez uma vénia.
– Podemos ficar aqui a exibir as nossas roupas ou juntar-nos aos meus irmãos antes que
o maçapão seja todo devorado. – Fez um gesto para as escadas e Hamish liderou o caminho
para dentro da residência.
O mordomo cumprimentou sua senhoria, informando que os cavalheiros estavam na
biblioteca, e sua senhoria pedira que se levasse bandejas.
Como se os bolinhos e dois goles de chá demasiado açucarado resolvessem os problemas
que Hamish enfrentava?
Os cavalheiros eram os Lordes Keswick, Valentine e Rosecroft.
– Vejam só quem encontrei nas escadas da entrada – disse Westhaven. – Dois solteirões
ricos e titulados sem a sensatez de trazerem uma ou duas irmãs por segurança.
– Você é doido – disse Hamish. – As minhas irmãs adquiriram batalhões de amigos, com
todos os quais estão ansiosas para casar. Os debutantes escondem-se nas entradas e saem
de lojas de doces, se as minhas irmãs estão connosco. Se for só eu e o Colin, temos relativo
sossego.
– Ele contradisse o Westhaven – disse Lorde Valentine. – Sua Graça aprovaria.
– É Worsthaven para ti – respondeu Rosecroft.
– E tu cala-te, Rosebud – replicou Westhaven. – Sentamo-nos? Keswick, convocaste esta
reunião, e se a tua esposa formidável não podia resolver o problema que te atormenta,
então deve ser bastante complexo.
Eles sentaram-se nas cadeiras em redor de uma mesa circular que teria acomodado sete
pessoas confortavelmente. Westhaven tirou uma lata do parapeito da lareira e ofereceu-a a
Keswick, que se sentou à sua direita.
– Os doces nesta casa são sempre frescos – disse Keswick, servindo-se e passando depois
a lata a Lorde Valentine. – Nunca verão homens adultos a deliciarem-se tanto a estragarem
os seus jantares como na residência do Lorde Westhaven. É escandalosamente infantil.
– Toma outro – ofereceu Lorde Valentine, abanando a lata por baixo do nariz de Keswick.
– Não me importo. Deixa alguns para os nossos convidados. Não precisamos de ser
totalmente desprovidos de boas maneiras.
Aparentemente, consumir doces proibidos na biblioteca era um ritual conhecido apenas
por ingleses titulados. Colin pegou num doce e passou a Hamish uma lata quase vazia.
– Keswick – disse Westhaven. – Tens a palavra.
– Muito obrigado. Serei breve.
– Não é assim que a Louisa te descreve – murmurou Lorde Valentine. Rosecroft deu uma
palmadinha no braço de sua senhoria rendada e Colin tirou outro doce da lata que Hamish
ainda segurava.
– Serei sucinto – prometeu Keswick. – O Murdoch tem de localizar o Garner Puget, um
dos filhos mais novos do conde de Plyne. O assunto é urgente. O Puget comportou-se mal,
provavelmente a serviço de Sir Fletcher, que pode ter coagido o Puget a falsificar
documentos de natureza infeliz.
– Eu conheço o Puget – disse Rosecroft. – Ele era um escriba regimental, à falta de um
termo melhor. Tinha uma caligrafia encantadora e estava sempre disposto a escrever uma
mensagem para os homens incapazes de fazer isso sozinhos.
– O que significa – prosseguiu Keswick – que o Puget também poderia ter escrito um ou
outro despacho, requisição ou fac-símile meticuloso do mesmo. Alguém o viu na semana
passada?
Seguiu-se uma discussão geral sobre onde Puget poderia ser encontrado e quem poderia
procurá-lo melhor. Westhaven fez uma lista de clubes de cavalheiros a que Puget pertencia,
alguém ofereceu o nome do seu alfaiate, outra pessoa concordou em conversar com a sua
senhoria. Com Hamish, aquela mulher teria sido relutante a dispensar tempo valioso. Para
os aristocratas ingleses à mesa, ela faria a sua melhor vénia.
Hamish pôs um pedaço de maçapão na boca sem pensar e ficou surpreendido com a
riqueza e intensidade do sabor.
Tal como a surpresa de descobrir que os primos titulados de Megan eram, de facto,
cavalheiros. A ajuda estava a ser prestada sem muitas perguntas, e esse alívio foi tremendo.
Hamish não teria sabido quais os clubes que Puget frequentava, ou a quem ele dera a sua
loja de alfaiataria.
– Estás a reservar os últimos doces? – perguntou Colin.
Hamish passou-lhe a lata e a reunião terminou pouco depois. Um lacaio trouxe uma
mensagem para Westhaven, que sua senhoria mal teve tempo de examinar antes de
Rosecroft lha arrancar da mão.
– O Moreland convocou-nos – informou Rosecroft, passando a nota a Lorde Valentine. –
Ele quer discutir connosco um assunto algo delicado.
Westhaven pegou novamente na nota.
– Porque envolveria ele dois tolos como vocês numa discussão de um assunto delicado
não sei.
– Eu sou provavelmente o assunto que precisa de discussão – declarou Hamish. – Sua
Graça apanhou-me a deambular delicadamente pelo seu jardim a uma hora inconveniente.
A conversa parou e quatro lordes ingleses acharam necessário estudar as cornijas, os
lambris, os livros guardados em abundância em estantes ao longo de duas paredes. Sem
dúvida, os filhos deles nasceriam como resultado da intervenção divina, tão delicadas eram
as sensibilidades de suas senhorias.
– O Moreland apanhou-o a si por baixo da varanda da Megan e, no entanto, você está vivo
– murmurou Rosecroft, depois do que pode ter sido um silêncio respeitoso. – Sua Graça
está a tornar-se sentimental connosco.
– Talvez o assunto delicado seja o que dizer a Sir Fletcher a respeito das suas aspirações
matrimoniais? – sugeriu Keswick.
– Independentemente disso – disse Hamish, colocando-se de pé –, perguntem ao duque
se sabe para onde o Garner Puget fugiu. Tenho a sensação de que o Moreland sabe mais do
que Deus, e a sua duquesa mais do que o Moreland e Deus juntos, pelo menos a respeito
dos acontecimentos da alta sociedade – e da sua própria família.
Westhaven ficou a olhar para o nada por um momento e depois sacudiu a cabeça.
– Envolver Sua Graça é como envolver a artilharia pesada. Não é possível dizer
exatamente onde as munições cairão ou sobre quem os estilhaços explodirão. Nós vamos
casualmente perguntar se Sua Graça sabe do paradeiro do Puget. Qualquer interrogatório
mais mordaz arrisca a interferência do duque, que é tão útil quanto um surto de peste,
cólera e tifo de uma só vez.
No meio de murmúrios de concordância dos outros Windham, Colin levantou-se, tirando
um último pedaço de maçapão. Hamish arriscou um olhar furioso, mas Colin atirou o doce
para a boca e piscou o olho.
Keswick juntou-se a eles no passeio, aparentemente livre da convocação ducal.
– Eles vão encontrá-lo, Murdoch. Entre os cavalheiros da família Windham, os seus
familiares por casamento, os seus amigos e as pessoas que lhes devem favores, é como se o
Garner Puget já tivesse sido encontrado.
Não, não é.
– Há um baile esta noite – disse Hamish. – Quero que você e Lorde Valentine fiquem com
a Megan a toda a hora, mesmo que tenham de alternar dançar com ela.
– Eu não posso dançar metade das danças – explodiu Keswick. – Ficaria coxo durante
uma semana e todas as pessoas comentariam o espetáculo da Megan Windham a limitar as
parcerias de dança aos seus primos.
– Eu posso dançar com ela – disse Colin.
– Tu estarás comigo – respondeu Hamish. – Se Sir Fletcher não conseguir falar com o
Moreland em privado, pode tentar abordar o duque na sala de jogo ou na casa de banho dos
homens esta noite. O Westhaven e o Rosecroft podem ficar com o Moreland e afugentar Sir
Fletcher se isso acontecer.
– Eu pedirei ao Deene e ao resto da família para fazerem companhia à Megan – disse
Keswick. – Mas se Sir Fletcher lhe pedir para dançar, ela terá de aceitar.
– Porquê?
– Porque uma senhora ora dança a noite toda ou não dança – concluiu Hamish. – Ela não
deve escolher os cavalheiros, rejeitando este, aceitando aquele. – Megan explicara-lhe isso,
o que dera sentido a muitos olhares desanimados das jovens senhoras e pares estranhos na
pista de dança.
– Que parvoíce danada, deixem que vos diga – murmurou Colin.
– A minha condessa usa linguagem mais forte do que essa – referiu Keswick. – Ela
defende que, se um homem não suporta ser rejeitado para uma valsa, então não é grande
homem.
Hamish começava a gostar da condessa de Keswick, sem a ter visto ainda. Não gostava de
que nem os descendentes da sociedade sofisticada tinham ouvido um sussurro que fosse
acerca do paradeiro de Puget.
Ele não gostava nada disso.

Sir Fletcher não gostava de ser obrigado a esperar, mas pelo menos estava a esperar por
um duque. A salinha de visita dos Windham era encantadora, com buquês de lilases frescos
em ambas as janelas e muita luz que se refletia em espelhos, papel de parede com flocos
dourados e móveis pintados de dourado.
A sala era bonita, por outras palavras, o que tentou Sir Fletcher a apoiar as botas em cima
de uma almofada ou derrubar o frasco de tinta sobre a escrivaninha.
– Sir Fletcher, bom dia. – Elizabeth Windham ofereceu-lhe uma vénia e um sorriso que
exibia demasiada inteligência e pouco riso.
– Menina Windham – disse Sir Fletcher, curvando-se sobre a mão dela. – Estou à espera
de ter uma palavrinha com o seu tio, e talvez uma volta no jardim com a Menina Megan.
Posso oferecer-lhe elogios pela sua vestimenta? Esse tom de chocolate é exuberante.
– Obrigada. Vamos sentar-nos? O lacaio irá chegar em breve com uma bandeja com chá, e
tenho todo o gosto em servi-lo. Como estão as suas irmãs?
A mulher era excelente na conversa de circunstância. Sir Fletcher sentiu-se obrigado a
falar extensivamente sobre as suas irmãs, a sua madrasta, os seus irmãos mais velhos e os
seus planos para o outono.
O mordomo interrompeu-os e falou discretamente com a Menina Windham junto à porta,
deixando Sir Fletcher com o dúbio conforto de bolinhos de manteiga e chá. Como os clubes
controlavam meticulosamente todas as migalhas que se consumiam e todas as gotas que se
bebiam, Sir Fletcher aproveitou as ofertas na bandeja.
– Sir Fletcher, receio que Sua Graça esteja inevitavelmente retido com um assunto de
importância urgente. Está reunido com três primos meus – disse a Menina Windham. –
Terei todo o gosto em admirar as rosas consigo.
Deus do céu. As rosas ainda nem tinham desabrochado. Sir Fletcher sabia isso porque
Geneva exigira que ele lhe levasse uma rosa para se desculpar por não a levar a andar a
cavalo.
– Seria um prazer desfrutar do ar fresco na companhia de uma linda senhora –
respondeu Sir Fletcher, levantando-se e oferecendo a mão à Menina Windham.
– Para o jardim, então. – Ela ignorou a luva dele diante do seu nariz, tirou o último
pedaço de bolo da bandeja e atravessou as portas francesas. Se este era o exemplo que a
irmã mais velha de Megan dava, não admirava que a pobre coitada não fizesse ideia de
como continuar.
Ao fim de passarem por filas de arbustos espinhosos, admirarem os lilases e gastarem
meia hora do dia de Sir Fletcher, a Menina Windham sentou-se num banco à sombra ao
lado de uma pequena fonte. A escultura no centro era um cisne, encurralado num
progresso perpetuamente gracioso sobre a água.
– Acha que pode fazer a minha irmã feliz, Sir Fletcher? Por favor, sente-se.
Sir Fletcher obedeceu. Se se demorasse tempo suficiente, certamente avistaria Megan.
Tendo-se Puget escondido – e todas as fontes de rendimento igualmente desaparecidas –, o
anúncio de um noivado tornara-se uma necessidade urgente.
– Espero poder fazer a Menina Megan mais do que feliz. – Ele certificar-se-ia de que ela
era obediente, engravidava e se ocupava a fazer da sua casa um lugar agradável e
confortável. Que mais poderia uma mulher querer, afinal de contas, a não ser crianças, um
teto sobre a cabeça e a proteção e orientação de um homem que sabia o que fazia?
– Como realizará o desafio de fazê-la mais do que feliz? – A Menina Windham partiu um
canto do bolo que surripiara da bandeja do chá e esfarelou-o para as pedras do chão diante
da fonte. Dois pombos vieram logo bicar com ousadia um festim inesperado.
– Casada comigo, a Megan terá um lar só seu, crianças se Deus quiser, um lugar na
sociedade e a proteção de um nome respeitado. Eu estimarei a Megan ao máximo da minha
humilde capacidade.
Mais migalhas foram lançadas para os pássaros indelicados.
– Apenas o habitual, portanto – disse a Menina Windham. – Não fala de amor, Sir
Fletcher.
Mulheres e a sua sentimentalidade infernal.
– Nem discutiria uma emoção tão delicada no que é essencialmente uma conversa de
circunstância, madame. Estimo muito a sua irmã, acima de todas as outras mulheres.
Muitos casamentos saudáveis começaram com menos consideração entre noiva e noivo.
Sir Fletcher estimava os acordos de Megan e as suas relações ducais. Também sabia
compor uma boa carta de amor, mas o seu gosto em irmãs deixava infelizmente muito a
desejar.
– Tem razão, claro – disse a Menina Windham, a levantar-se. – A Megan compreende
profundamente a honra que você lhe dá, ou dará, tendo em conta que o tio Percy lhe dá
permissão. Tenho a certeza de que, se a visitar mais à frente na semana, ele terá todo o
gosto em recebê-lo.
Bem, maldita sorte. Felizmente, o baile da condessa de Hazelton estava agendado para
aquela noite e Megan não perderia um evento em que uma das suas primas era anfitriã. A
condessa era a prima mais velha de Megan, e toda a família Windham – incluindo Sua
Graça, duque de Moreland – estaria sem dúvida presente.
– Desejo-lhe um bom dia – disse Sir Fletcher, a curvar-se de novo sobre a mão da Menina
Windham. Ela fez uma vénia e murmurou algo sobre desejar-lhe sorte.
Ele não precisava de depender de mera sorte, não quando tinha as falsificações das
cartas de Megan. No dia seguinte, àquela hora, Sir Fletcher pretendia ser um homem noivo
e feliz.
– Estou tentado a reduzir Londres a cinzas – disse Hamish enquanto ele e Colin esperavam
que um cavalo de aluguel atravessasse a interseção.
– Alguém já tentou isso em mil seiscentos e sessenta e seis – respondeu Colin. – És capaz
de atrair o Puget do seu esconderijo, mas não o apanharíamos vivo.
Tinham passado o dia a verificar cada clube, loja, bordel e banco de parque em Mayfair e
arredores, e mesmo assim não haviam descoberto nada a respeito de Puget, nem sequer na
cafetaria em Grosvenor que afirmasse que ele era cliente regular.
– Vamos tentar outra vez amanhã – afirmou Colin. – Eu passarei a noite no Jackson’s, e
isso dar-me-á ânimo – e poderá valer-nos alguns mexericos sobre o nosso falsificador
desaparecido.
As ruas estavam movimentadas, a temporada chegava ao seu pico e o Sol estava a pôr-se.
O humor de Hamish era de desânimo.
– Amanhã poderá ser tarde de mais. O baile desta noite é organizado por uma das primas
da Megan, e ela não se atreve a ficar em casa outra vez. Sir Fletcher saberá disso e
aproveitará a sua oportunidade.
Deambularam pelos estabelecimentos em Bond Street, muitos dos quais tinham visitado
no início do dia.
– Então também tens de ir ao baile – disse Colin. – A Ronnie e a Eddie nunca te perdoarão
se apareceres vestido como estás.
Hamish estava adequadamente vestido para vasculhar por toda a Londres à procura de
um patife. Se aparecesse num evento elegante com botas e o kilt do dia a dia, arruinaria
várias semanas de bom comportamento, no mínimo.
– Continuamos à procura – disse Hamish. – Prometi à Megan…
Ele parou, porque a nuca arrepiou-se, tal como se arrepiara quando estivera à procura do
seu irmão nos montes dos Pirenéus anos antes.
– Tu tens aquele olhar «Cheiro uma patrulha de infantaria francesa» no rosto – disse
Colin, a olhar em seu redor. – Mas o Angelo era italiano.
Estavam do outro oposto da rua ao famoso estabelecimento de esgrima com o nome do
seu fundador. O neto, Henry Angelo, geria o sítio agora. Hamish estivera no interior uma ou
outra vez no caminho para Norte em licença militar. O salão de boxe de Jackson’s, que se
situava ao lado de Angelo’s, nunca lhe interessara.
– O Puget pode frequentar um estabelecimento como o Angelo’s – disse Hamish.
– Se estivesse a aperfeiçoar as suas habilidades em antecipação de um duelo?
Hamish já estava a atravessar a rua.
– Se ele estivesse à procura de encomendas artísticas para retratos de desporto ou
simplesmente a tentar permanecer escondido durante algum tempo. Os antigos oficiais não
tendem a frequentar o sítio, mas os dândis e os filhos mais novos sim.
Os que poderiam considerar a violência um entretenimento, por outras palavras, e os
que gostavam de ser imortalizados com um retrato idealizado.
– Hamish, não podes simplesmente invadir um salão de esgrima e…
Hamish invadiu o local.
– Capitão Garner Puget – disse ele ao rececionista. – Vá buscá-lo agora, se faz favor.
O rececionista era um sujeito magro e loiro com feições delicadas.
– E quem devo anunciar, senhor?
– Deus Todo-Poderoso – murmurou Colin.
O rececionista olhou de um irmão para o outro.
– O Duque da Morte – respondeu Hamish. – E companhia.
– Não chames isso a ti próprio – observou Colin quando o rececionista se afastou a
correr. – Duque do Caos, ainda acredito, mas não morte. Nunca isso. Possivelmente Duque
dos Bons Modos, agora que a Menina Megan te agarrou pelo sporran.
Hamish estava preparado para causar o caos, pelo menos.
– Devias deixar isto comigo, Colin. O que tenho planeado para o Puget não será nada
delicado.
Colin encostou-se à parede apainelada e cruzou os braços.
– Sê tão indelicado quanto quiseres, Hamish. Já estava na hora, se queres que te diga. Não
vou a lado nenhum.
– Obrigado.
Garner Puget, com aparência amassada e péssima por falta de sono, juntou-se a eles na
receção. Os seus punhos estavam arregaçados, e a sua mão direita estava manchada de
pigmento amarelo. O rececionista, sensatamente, não acompanhara Puget para
cumprimentar os visitantes.
– Vossa Graça, Lorde Colin, saudações.
Hamish afundou o punho na barriga de Puget.
– Saudações para si também, em nome de uma senhora que você prejudicou. Se não
deseja que os mesmos sentimentos sejam transmitidos à sua cara, vai acompanhar-me
agora.
O golpe fez Puget ir contra Colin, que manteve o homem mais baixo em pé até ele
conseguir segurar-se sem ajuda.
– Tenho todo o gosto em encontrar-me consigo no campo de honra, Murdoch – disse
Puget –, mas irei falhar o alvo. Falhei no meu dever como cavalheiro e a minha única defesa
é que ludibriado por um patife ainda maior do que eu. Carinho excessivo pela irmã do
patife cegou-me ao ponto de perder a honra.
– Estamos em Drury Lane? – perguntou Colin a ninguém em especial. – Pensei que fosse
Bond Street.
– Você não é o primeiro homem cujo pénis lhe roubou o senso comum, Puget – disse
Hamish –, mas a sua estupidez determinou a infelicidade de uma mulher que estimo
profundamente, e você irá redimir-se.
Puget esfregou a barriga com a mão manchada de amarelo.
– Não vai matar-me?
– Pareceste muito ducal agora, Hamish – disse Colin.
– Farei pior do que matá-lo – declarou Hamish. – Se sobreviver ao que tenho planeado
para si esta noite, então a sua sentença será confinar-se no Norte na sede de um certo
ducado e gerir a maldita propriedade para que eu não precise de me incomodar com as
terras inglesas. O pai de Lady Pamela deve aprovar o seu cortejo, caso você peça a mão da
sua filha mais velha em casamento, pois a família dele está prestes a envolver-se num
grande escândalo.
– Faria isso por mim? Oferecer-me um cargo?
– Eu faria isso a si, partindo do princípio de que a noite não acabe consigo arrastado e
esquartejado, mas primeiro precisamos de caneta e papel.
Vinte minutos depois, estavam de volta à rua, diretamente a caminho do baile da
condessa de Hazelton.
Capítulo 20

– Ele está aqui – disse Anwen. – Eu fico contigo e a Charlotte e a Elizabeth vigiarão Sir
Fletcher a toda a hora.
Todas as pessoas estavam presentes no baile de Hazelton, incluindo os primos e primas
de Megan, a sua tia e o seu tio, os parentes por afinidade e – maldita sorte – Sir Fletcher.
Mas nada de Hamish, nem sequer Colin e as irmãs MacHugh, embora tivessem sido
convidados.
– Não podem evitar que Sir Fletcher me aborde – disse Megan. – Devia ir-me embora.
Ainda que Megan tivesse esperado poder ver Hamish entre os dançarinos. A própria
duquesa de Moreland sublinhara que Megan tinha gasto a quota-parte de noites em casa
para a temporada inteira.
Megan encontrava-se com Hamish aqui ou tinha de arriscar outro passeio no parque, o
qual Sir Fletcher poderia descobrir facilmente.
– O que está Sir Fletcher a usar? – perguntou Megan.
– O vestuário formal que é habitual – respondeu Anwen. – O colete dele é cor de vinho
com bordado dourado.
– E já viste o Garnet Puget, por acaso?
Anwen pegou no copo de ponche que Megan estivera a segurar.
– Quantos homens estão a cortejar-te?
– Oficialmente, nenhum.
– Sir Fletcher dirige-se para aqui – disse Anwen, a pousar o copo na bandeja de um
criado. – O que devemos fazer, Megs? Ele abandonou a conversa com a Elizabeth e a
Charlotte e vem nesta direção. Onde está a guarda quando precisamos…?
– Megan, creio que a tua quadrilha é minha. – Não um dos primos de Megan, mas Lucas
Denning, o marquês de Deene, um primo por afinidade, fez uma vénia.
– Deene, boa noite. Já é a quadrilha?
– Sim, é. Anwen, já tens parceiro?
– Certamente que não. Quando terminarem a quadrilha, traz a Megan imediatamente até
mim.
– E depois – disse a sua senhoria, agitando sobrancelhas loiras –, danço contigo o
minuete. Tenta conter o teu entusiasmo até ao momento feliz.
Deene acompanhou Megan até à pista de dança, que lhe ofereceu uma oportunidade de
procurar um homem alto e ruivo de kilt.
– O Murdoch não está aqui – disse Deene. – O teu duque está à procura de um tal Garnet
Puget, que eu conheci de passagem na Península Ibérica.
Os outros dançarinos reuniram-se enquanto um quinteto de cordas e um piano se
afinavam.
– Lorde Colin MacHugh está presente?
– Ainda não o vi. Relaxa, Megan. Se Sir Fletcher abordar o Moreland, então o Westhaven
intervirá. Se Sir Fletcher te abordar com modos menos formais, eu mato-o.
A abertura começou, o que significava que toda a conversa acabaria em breve, pois a
dança exigia que os dançarinos formassem um quadrado e dançassem um com o outro e à
volta um do outro.
– Não vais matar Sir Fletcher – disse Megan quando fez uma vénia a Deene. – Esse
privilégio deve ser meu.
Deene ofereceu-lhe o sorriso que lhe valera a reputação de libertinagem anterior ao seu
casamento e depois a dança começou. A quadrilha era relativamente nova, mas Megan
dançara vezes suficientes para estar confiante dos passos.
Ela não confiava naquele plano de fugir da companhia de Sir Fletcher. Ele era manhoso e
ardiloso e persistente como a comichão. Não se atrevia a ir até à casa de banho das
senhoras ou sequer à sala de jogo para que ele não a abordasse.
– Sorri – murmurou Deene quando a virou num círculo. – Dança agora, mata depois.
Matar não, precisamente, mas à medida que Megan executava pliés, jetés e chassés, lutava
contra um impulso crescente de procurar Sir Fletcher e confrontá-lo, acontecesse o que
acontecesse. Colin MacHugh fizera-a ponderar a carreira militar de Hamish e a informação
aumentara a sua determinação de contrariar os esquemas de Sir Fletcher.
– Onde está Sir Fletcher? – sussurrou Megan na seguinte volta.
– Dois quadrados à frente.
Perto o suficiente para provavelmente estar a observar todos os passos de Megan. Ela
sempre considerara a sua visão medíocre uma contrariedade, não uma maldição, mas pela
primeira vez desejou ter a visão de um lince.
A interminável quadrilha terminou e Deene acompanhou Megan para fora da pista de
dança.
– Quem é o teu parceiro para o minuete? – perguntou Deene.
– Não sei. A Anwen é que tratou disso. Só vou dançar com familiares esta noite, embora
me esteja a apetecer abordar Sir Fletcher e deixá-lo fazer figura de parvo.
– Não é boa ideia, Megs. Quando há falatório, acaba sempre por desacreditar a senhora.
Se não gostas de Sir Fletcher, então deixa que o Moreland mande o cavaleiro corajoso dar
uma curva.
– Desacreditar a senhora – murmurou Megan. – O que é que isso significa? Que o
falatório a persegue, tal como Sir Fletcher se tornou um tormento para mim? Que os
mexericos a afetavam, tal como o comportamento impetuoso a afetava, muitos anos
depois?
Um movimento de cabelo loiro, vestuário de noite escuro e cor de vinho passou à sua
direita. Deene moveu-se para bloquear Megan da visão de Sir Fletcher e Megan quis
empurrar sua senhoria para o lado.
Se Sir Fletcher ia arruinar-lhe o futuro, então que o arruinasse nos termos dela. As irmãs
de Megan tinham concordado com ela nesse aspeto, e quanto ao que Suas Graças
pensavam… Megan amava a sua tia e o seu tio, mas amava mais Hamish.
E ela estava profundamente farta de ser prisioneira das ameaças de Sir Fletcher.
– Esquecemo-nos de como conseguem ser ferozes as mulheres Windham – disse Deene. –
Mas agora não é a altura ou o…
Uma comoção começou no fundo do salão de baile, quando os dançarinos deviam estar a
reunir-se para o minuete.
– O que se passa, Deene?
– Não sei. Se calhar um criado caiu nas escadas para a galeria do menestrel ou alguém
está a discutir.
Deene era alto, mas o evento dos Hazelton era muito requisitado, por isso a multidão era
considerável.
Megan soltou o braço do dele.
– Vai certificar-te de que a tua mulher está bem. Eu procuro a Anwen e tu podes
encontrar-nos ao pé da terrina do ponche. – Megan encontraria Sir Fletcher primeiro e dar-
lhe-ia a reprimenda da sua vida bonita, arrogante e calculista.
A agitação e o barulho vindos do canto do salão de baile não tinham diminuído. Se havia
uma discussão a decorrer, a multidão teria ficado silenciosa, para melhor entender todas as
palavras.
– A Anwen está exatamente onde a deixámos – disse Deene. – Sir Fletcher está de costas
voltadas. Vai que eu vou ver o que se passa.
Ele lá foi, muito provavelmente determinado em encontrar a sua mulher ou oferecer
ajuda ao anfitrião e à anfitriã caso algo desagradável estivesse a passar-se.
Megan inspecionou o salão de baile uma última vez na esperança de avistar Hamish e
depois apercebeu-se de que poderia ser melhor se ele estivesse ausente. Sir Fletcher
precisava de saber que Megan sabia defender-se a si mesma e tomara as suas próprias
decisões.
Megan precisara de saber isso também.
No momento seguinte, Megan deu por si a olhar para tecido cor de vinho bordado e
renda branca, e a combinação fê-la lembrar uma ferida a sangrar por entre as ligaduras.
Como se os seus pensamentos o tivessem conjurado, Sir Fletcher – envolto numa nuvem de
essência de rosas – surgiu diante dela.
– Minha querida Megan, boa noite. O seu acompanhante parece tê-la abandonado. Que
felicidade eu ter vindo em seu socorro.
Ele tomou-lhe a mão e levou-a aos seus lábios.
– Felicidade, sim – disse Megan, embora a ameaça no tom de voz dele lhe fizesse tremer
os joelhos. – Vamos desfrutar do terraço?
O terraço teria de servir – mais privado do que o meio do salão de baile, embora não
estivesse deserto certamente numa noite tão amena. Além disso, metade da família
Windham veria Sir Fletcher acompanhá-la para ali e impediria qualquer comportamento
escandaloso da parte dele.
Ele manteve a mão dela na sua, um aperto desconfortável que atravessava as luvas de
Megan.
– O terraço? Segundo me lembro, você detestava ir para o exterior comigo não há muito
tempo. Para o que eu tenho para lhe dizer, um salão de baile cheio de pessoas servirá muito
bem. Um momento, por favor, enquanto revejo o discurso que preparei. Tente parecer
satisfeita quando eu chegar à parte do «até que a morte nos separe», sim?

Hamish tentara ser discreto, mas nenhum dos lacaios estava disposto a pedir ao duque de
Moreland para sair do salão de baile. Colin localizara Moreland na galeria do menestrel, o
que era apenas ligeiramente menos público do que o meio da pista de dança.
– O falatório nunca acabará – disse Puget quando Hamish o levou até às escadas no canto
do salão de baile. – Isto é o equivalente social de invasão de propriedade, MacHugh. Você
insulta o anfitrião e a anfitriã…
Hamish parou abruptamente, o que o deixou consideravelmente mais alto do que Puget.
Atrás de Puget, toda a alta sociedade olhava e segredava, apenas porque três convidados
tinham chegado inapropriadamente vestidos ao baile. Meggie estava algures naquela
multidão, mas também estava Sir Fletcher, provavelmente com um maldito anel no bolso.
– Puget, você trata-me por Murdoch ou Vossa Graça, para não me insultar.
Colin, cuja presença evitava que ataques de cobardia à última hora inspirassem Puget a
fugir, lançou uma carranca espetacular às pessoas reunidas no fundo das escadas.
– Murdoch – disse Puget. – Peço perdão.
– Perdão recusado – disse Hamish, retomando a subida das escadas. – Não é a mim que
prejudicou, embora não por falta de tentativas.
Puget divulgara o esquema completo e, como o escriba obediente que era, registara todas
as pessoas que tinham sido depenadas por uma nota de crédito forjada. Felizmente para
Puget, Megan era a única senhora cujas cartas tinham sido copiadas e Hamish era a única
pessoa que recebera uma fatura de comerciante forjada.
Infelizmente para Megan, Puget confirmou que fizera falsificações meticulosas de cada
carta, com especial atenção para obter uma réplica perfeita da assinatura da senhora.
– Se sabia que era errado – perguntou Hamish quando chegaram à galeria do menestrel –
, porque o fez?
Puget estava desgrenhado, exausto e encarava o equivalente social de um esquadrão de
tiro. Hamish pretendera que a pergunta fosse uma oportunidade para o condenado se
confessar.
– Não foi errado, ao início – disse Puget. – Sir Fletcher pediu-me para fazer cópias exatas,
obras de arte para salvaguardar os sentimentos da sua pretendida. Durante as viagens por
Espanha, os originais tinham-se amachucado e rasgado. Ele disse-me que apenas queria
preservar a correspondência.
A galeria estava menos lotada do que o salão de baile, mas os olhos de todas as pessoas
viraram-se para Hamish quando ele chegou ao cimo das escadas. Moreland estava perto da
balaustrada, ladeado por três familiares seus.
Sua Graça lançou um olhar indiferente a Hamish e depois virou-se de novo para
Westhaven.
– Então fez cópias – insistiu Hamish –, sem saber que seriam usadas para chantagem?
– Eu nunca – é claro que não sabia o que Sir Fletcher planeava. Só quando já era tarde de
mais. Ele mencionou quando tomámos um copo certa noite que alguém poderia ter a ideia
errada, uma vez que eu copiara a caligrafia da senhora de forma tão exata. Ele nunca usou a
palavra falsificação, mas a ameaça foi fortemente insinuada. Eu fui um autêntico idiota que
se orgulhara da sua arte – porque é que estou a explicar isto?
Hamish pegou-lhe por um braço e Colin pelo outro.
– Está a ensaiar a história que está prestes a contar ao duque de Moreland – respondeu
Hamish – e espero que corresponda exatamente ao que nos contou no Angelo’s.
– Exatamente – confirmou Colin. – Palavra por palavra, sem mudar um único pormenor.
Orgulho na sua arte e isso.
Westhaven estava resplandecente no seu vestuário de noite, Rosecroft intimidante, ao
passo que a expressão de Keswick era indecifrável.
Paciência.
– Posso interromper, Vossa Graça? – pediu Hamish.
Moreland virou-se lentamente, como se estivesse relutante a reconhecer um conhecido
infeliz.
– Murdoch. Uma pessoa vem a um baile vestido na sua melhor roupa. Vá para casa e
mude-se. Melhor ainda, vá para casa e fique lá. Está a fazer um espetáculo no baile da
minha filha.
– Será um espetáculo ainda pior se não me conceder uns minutos do seu tempo. Pode
recusar-me a mão da Menina Megan, se tiver de ser, mas vai ouvir o que o Puget tem para
dizer. Em privado seria melhor.
Moreland arqueou uma sobrancelha que provavelmente fazia tremer metade da Casa dos
Lordes quando Sua Graça estava insatisfeita.
– Você abusou da minha paciência pela última vez, Murdoch. Vá-se embora.
Talvez fosse dele que Megan ganhara a sua determinação. Que filhos maravilhosamente
casmurros ela e Hamish teriam, partindo do princípio de que Moreland não mandasse
esquartejar o seu futuro sobrinho por afinidade.
– Irei embora – disse Hamish –, assim que ouvir o que Puget tem para dizer.
Westhaven inspecionou o salão de baile, com um perfil igual ao do seu pai.
– Eu gostaria de ouvir esta história. Uma pessoa aborrece-se com as danças, o ponche e
as conversas nos jogos de cartas.
– Ou seja – explodiu Moreland –, já atraímos a atenção de todos os mexeriqueiros de
Mayfair, por isso devo parecer graciosamente entretido em vez de revoltado por esta
loucura.
Rosecroft olhou para Puget.
– Você foi o escriba regimental da unidade de Sir Fletcher, se a memória não me falha. O
que o traz aqui?
Moreland deixou a perguntar pairar, sugerindo que Sua Graça estivera a testar a
determinação de Hamish, provavelmente não pela primeira vez.
Puget puxou o colete para baixo.
– Eu fui o escriba, mas tornei-me o falsificador regimental. E depois apenas me tornei um
falsificador e, pior que isso, um idiota.
– E isso ainda o aflige – disse Moreland. – Poupe-me o drama e continue com o resto da
história. Suspeito que não acabe bem.
– Esse foi o objetivo, Sua Graça – retorquiu Puget. – No que diz respeito a Sir Fletcher, a
única conclusão aceitável para a história era o casamento com a Menina Megan Windham.
A jovem senhora aparentemente adivinhou que perderia a sua felicidade nesse caso e Sir
Fletcher usou o meu talento para se certificar de que ela era coagida a ir ao altar.
Moreland parecia estar a admirar a multidão lá em baixo, mas ficara ominosamente
imóvel.
– A minha Megan, coagida?
O lábio superior de Puget mostrava gotas de suor e a sua tez estava tão pálida como a
gravata do duque.
– Chantageada – afirmou Hamish. – Por Sir Fletcher, usando cartas de que a Megan se
arrepente desesperadamente de lhe enviar quando ele serviu em Espanha. Não espero que
acredite na minha palavra, mas o Puget não tem motivos para fingimentos.
– Continue – disse o duque baixinho. – Não omite nenhum pormenor e certifique-se dos
seus factos.
A história de Puget era simples e sórdida e chegara à parte de forjar uma fatura de botas
quando Colin tocou no braço de Hamish.
– A Megan precisa de ti – disse Colin. – Eu trato das coisas aqui.
Puget calou-se quando o duque se juntou a Hamish na balaustrada.
– Aquele sacana – disse Moreland, fixando o olhar em Sir Fletcher, que se encontrava no
meio do salão de baile. – Vou fazê-lo arrepender-se do dia em que falhou com a minha
sobrinha.
No andar de baixo, com centenas de mexeriqueiros e tagarelas a olharem, Sir Fletcher
curvou-se sobre a mão de Megan. Manteve-se demasiado perto dela, continuou a agarrar-
lhe na mão e tudo na postura de Megan confirmou que ela odiava o toque dele.
– Peço desculpa, Vossa Graça – disse Hamish quando o barulho no salão de baile
diminuiu. – Tenho um cavaleiro do reino para desafiar.
Um círculo formara-se à volta de Megan e Sir Fletcher, como se uma luta de boxe fosse
começar.
Megan soltou-se de Sir Fletcher, através do simples ato de retirar a mão da luva. Sir
Fletcher ficou a segurar um pedaço de camurça branca, ao passo que Megan deu dois
passos para trás.
– Deixe-me em paz – gritou ela. – Deixe-me em paz, e deixe todas as mulheres decentes
em paz, ouviu? – Ela arrancou a luva da mão de Sir Fletcher, bateu-lhe no rosto com ela e
atirou-a para os pés dele.
– Ela é uma Windham – disse Sua Graça. – Meu Deus, é uma Windham em todos os
aspetos.
– Vossa Graça, a Megan é quase cega em curtas distâncias – retorquiu Hamish. – Ela não
vê que Sir Fletcher está a gostar do acesso de raiva dela. – Pior, Pilkington circundou Megan
lentamente, a calcular como usar o comportamento dela para seu benefício.
Hamish sabia como era não ter aliados, não ter recursos, não ter nada a perder. Não
suportava ver Megan na mesma posição. Virou-se para as escadas, mas Moreland deteve-o.
– Espere – disse o duque. – A Megan ainda não acabou com o Pilkington e eu não acabei
consigo ainda.
Megan não conseguia ver quem estava por perto, a observar ansiosamente aquela
altercação com Sir Fletcher. A sua família estava na multidão, provavelmente escandalizada
com as suas ações.
Se vou ser arruinada, será nos meus termos.
– Megan, querida – disse Sir Fletcher, dengoso. – Você está transtornada. Se calhar foi um
excesso do excelente ponche de sua senhoria, ou talvez os seus nervos estejam debilitados
pela espera pelo meu pedido de casamento.
Ele circundou Megan, como se ela fosse uma escultura inanimada, incapaz de se mexer
até.
– Não aceitarei nenhum pedido seu, Sir Fletcher, a não ser que seja um pedido para você
abandonar o país com efeito permanente. Você é uma vergonha para o sexo masculino.
Sir Fletcher aproximou-se o suficiente para sussurrar.
– Pelo menos não pus por escrito os meus sentimentos tórridos de forma
pormenorizadamente escandalosa, madame. Está na hora de desmaiar convincentemente.
– Afaste-se de mim. – Megan lançou o pé para trás, que deveria ter sido indetetável por
baixo das saias. Mas Sir Fletcher, tal como a maioria dos predadores, possuía instintos
suficientemente bons e por isso afastou-se.
– Vai recusar-me por causa daquele bárbaro de kilt? – perguntou ele em voz alta. – Eu
poderia contar-lhe histórias sobre o Duque da Morte, Menina Megan, que lhe provocariam
pesadelos.
Tanto desdém escorreu das palavras de Sir Fletcher que Megan perdeu a esperança de
que este encontro poderia ser justificado por nervos, fadiga, histeria feminina ou – a
explicação preferida da sociedade para cenas dramáticas – um mal-entendido.
– Se o Murdoch me quiser – disse ela, levantando a voz para todos ouvirem –, serei a
duquesa dele com todo o gosto.
Sir Fletcher riu-se.
– Você casaria com aquele, aquele monstro axadrezado? Ele desgraçou o seu comando ao
desobedecer ordens, foi capturado pelos franceses, mal sabe valsar…
Megan não conseguia ver a expressão na audiência de Sir Fletcher – pois esta era uma
atuação talentosa – mas não precisava de saber quem acreditava que Sir Fletcher sabia a
verdade.
– Nem a valsa teria salvado a vida do Lorde Colin MacHugh, quando você lhe disse que
havia cavalos descansados à venda a oito quilómetros do acampamento nos montes
espanhóis. Não havia cavalos nenhuns, mas havia patrulhas francesas.
– Você não sabe nada disso – retorquiu Sir Fletcher. – As patrulhas francesas eram um
facto da vida. Estávamos em guerra com os franceses, por isso havia patrulhas francesas.
Trocávamos pão por brande com eles entre as batalhas. Estaria à espera de encontrar
patrulhas egípcias, por amor de Deus?
Alguém se riu sorrateiramente e depois calou-se.
– Quando Lorde Colin não regressou ao acampamento – continuou Megan –, o Hamish
MacHugh foi atrás dele, e porque o Hamish abandonara o acampamento sem autorização,
foi sem uniforme. Os homens dele eram excessivamente leais, por isso uma dúzia dele foi
procurar Lorde Colin com ele.
A história transtornara Megan quando Colin a contara no parque e transtornava-a agora.
– As direções que você lhe deu foram apenas uma brincadeira – continuou ela –, o tipo de
partida com que você se divertia quando não evitava o verdadeiro combate. Por isso,
deixou que doze bons soldados fossem parar às mãos dos franceses, e os franceses
encontraram-nos.
O silêncio no salão de baile era absoluto e Megan certificou-se de que a sua voz chegava a
todos os cantos.
– Assim é a guerra – disse ela –, que soldados capturados sem uniforme sejam sujeitos a
tortura. Infelizmente para os homens do Hamish MacHugh, eles encontraram Colin.
Infelizmente para Hamish MacHugh, também os franceses. Houve uma batalha, e havia uma
ponte.
Ela teve de se esforçar para manter a compostura, mas nisto ela não falharia com
Hamish.
– De um lado da ponte, temos os soldados que você mandou numa caça aos gambuzinos –
referiu Megan –, no outro, os franceses, que se aperceberam exatamente do tesouro que
encontraram, cortesia do seu sentido de honra dúbio. Doze soldados britânicos sem
uniforme, exaustos, numa missão não autorizada e prontos para a captura. O homem que
você difama tão facilmente, o homem a que chama bárbaro, ordenou que todos se
retirassem e regressassem ao acampamento.
«O Hamish MacHugh segurou aquela ponte – continuou Megan, atirando as palavras a Sir
Fletcher. – Ele lutou contra probabilidades impossíveis, sabendo que o seu destino seria
morte ou pior. Proibiu os seus homens de admitirem que tinham desobedecido ordens com
ele, para que não fossem a conselho de guerra. Lorde Colin e os outros soldados chegaram
sãos e salvos ao acampamento, ao passo que o Murdoch foi feito prisioneiro pelo mais
famoso interrogador do exército francês.
Megan virou-se para a multidão indistinta que a rodeava e a Sir Fletcher.
– Quem é o bárbaro? O oficial que quase deu a sua vida pelo irmão e pelos seus homens,
ou o patife cuja negligência provocou o perigo? Ou talvez – ela engoliu o nó gigante que
tinha na garganta –, a pior barbárie é cometida por senhoras e cavalheiros que espalham
rumores e maldade para o seu próprio entretenimento. Que pensam que, porque um
homem é bonito e charmoso e se parece com eles, deve ser bom, mas se é diferente, então
não deve ter honra.
Sir Fletcher afastou-se dela e o único som que se ouviu foram os passos dele no chão
riscado. Ele tropeçou na luva de Megan, virou-se e fugiu. A multidão dispersou-se como se o
mero toque na manga dele pudesse causar uma horrível contaminação.
Megan limpou a face com a única luva que ainda usava. O silêncio aumentou até a sua
atenção ser atraída por um movimento nas escadas da galeria do menestrel. A multidão
virou-se quando três homens desceram os degraus. Um deles – um homem alto e ruivo –
usava um kilt.
Hamish. Megan conhecia o porte dele, conhecia o passo dele, conhecia-o a ele – e ele
ouvira todas as palavras que ela dissera. Parou àquela distância em que Megan conseguia
distinguir as feições dele claramente. Keswick e Rosecroft estavam de cada lado dele, e a
expressão dele era poderosa.
Hamish era um homem tão reservado e Megan transformara o seu pior pesadelo em
munição para a fábrica de boatos.
– Não se zangue – disse Megan. – Por favor, Hamish, não se zangue.
Ele apoiou os punhos nas ancas.
– Esta foi a emboscada mais habilidosa que já vi, Meggie Windham. E vocês, cambada –
olhou para a alta sociedade com uma carranca –, não sabem que é de mau tom ficar a olhar?
Esqueceram os bons modos?
Ele estendeu os braços e Megan atirou-se para ele como se tivesse sido alvejada pela seta
do Cupido. Rebentou uma salva de aplausos na galeria do menestrel e tornou-se um
estrondo ensurdecedor quando Hamish a rodopiou e a apanhou nos braços.
– Derrotou o inimigo, Meggie minha – grunhiu ele. – Mandou-o embora com o rabo entre
as pernas. É magnífica.
– Está aqui. Eu estava tão preocupada, e você esteve aqui o tempo todo.
– Estou aqui – disse Hamish, pousando-a no chão –, consigo, exatamente como sempre
espero estar, mas a não ser que eu queira que um certo duque – ou uma certa duquesa – me
mate aqui mesmo, tenho de executar a minha própria emboscada também.
– Não mate Sir Fletcher, Hamish. Eu sei que ele é uma vergonha, mas ele não vale…
– Chiu, vá. Pedi ao Puget para escrever uma carta apaixonada na letra de Sir Fletcher
para uma certa viscondessa encantadora. Infelizmente, a carta será entregue ao marido
ciumento dela por engano. Amanhã ao pôr do Sol, Sir Fletcher estará num navio para Calais.
– Isso foi brilhante – disse Megan, a pôr-se em bicos de pés para beijar o seu amado. –
Mas ao meio-dia seria melhor ou de madrugada. A que horas parte o primeiro navio?
Em vez de responder à pergunta dela, Hamish baixou sobre um joelho, mesmo no meio
do salão de baile. Curvou a cabeça como se fosse um cavaleiro numa cerimónia medieval e
num instante o salão ficou de novo em silêncio.
– Hamish, o que está a fazer? – Toda a alegria que Megan sentira nos braços dele foi
substituída por estupefação.
Ele tomou a mão nua dela na sua.
– Estou a emboscá-la, mais ou menos, o que é muito justo, porque você emboscou-me
primeiro. Menina Megan Windham, não me conhece há muito tempo, mas conhece o meu
coração e completou o meu coração. Eu amo-a. Sempre a amarei. Quer… Quer casar-se
comigo, por favor?
– Por amor de Deus, diga sim! – berrou alguém que pareceu suspeitosamente o tio Percy.
O resto da audiência continuou o cântico, e começou novamente a bater palmas e bater os
pés, mas nada disso importava.
O que importava era que Hamish era dela e Megan era dele.
– Eu caso consigo – disse Megan, puxando-o para cima e aproximando-se dele. – Com
gosto, alegria, é claro que caso consigo. Amo-o, e você também completou o meu coração.
Teremos bebés ruivos e cantaremos as lindas canções antigas e nas noites frias beberemos
para nos aquecermos. Seremos o duque e a duquesa da felicidade marital.
– Ter-nos-emos um ao outro para nos aquecermos, Meggie. Não te esqueças disso.
Como seria de esperar, ambos estavam certos – tirando que muitas vezes bebiam mais
do que o necessário e algumas canções que cantavam eram obscenas – mas Megan e
Hamish MacHugh foram, de facto, conhecidos como o duque e a duquesa da felicidade
marital.

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