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Apesar do impulso permanente que os

Artigo Especial Special Article epidemiologistas, habitualmente tem, de


fazer previsões e predições a partir de suas
observações, tais procedimentos mostram-
Epidemiologia no século XXI: se sempre arriscados na medida que a es-
trutura de determinantes e a configuração
perspectivas para o Brasil* dos processos de gênese das integrais saú-
de-doença-cuidado são extremamente va-
riáveis e rapidamente modificáveis. Assim

Epidemiology in the XXIst century: sendo, a tarefa de abordar as perspectivas


para a epidemiologia brasileira no próximo
prospects for Brazil século parece comportar riscos.
Ao invés de realizar exercícios de pro-
jeção e futurologia podemos tratar dos de-
safios que se colocam para a epidemiologia
em três diferentes planos de análise: o pla-
no teórico, o plano ético e o plano “práxico”.
No plano teórico, abordaremos os as-
pectos mais relevantes da crise da ciência
moderna e suas repercussões no campo da
epidemiologia, destacando as propostas de
superação. No plano ético, trataremos dos
desafios colocados pelas desigualdades so-
ciais e a iniquidade em saúde enquanto
objeto privilegiado para uma ciência epide-
miológica instituída a partir da práxis e
comprometida visceralmente com os pro-
blemas da sociedades nas quais esse saber
se exerce. Finalmente, no plano “práxico”,
destacaremos as relações entre a epi-
demiologia e o campo da saúde coletiva,
privilegiando a aplicação dos conheci-
mentos e do raciocínio epidemiológicos na
solução dos problemas de saúde dos gru-
pos humanos.

A crise da ciência moderna

A ciência desencanta o mundo; tudo o


que ela descreve se encontra irremedia-
velmente reduzido a um caso de aplicação
Rita Barradas Barata
de leis gerais desprovido de interesse par-
Departamento de Medicina Social
ticular. Esta é, no dizer de Prigogine e
Faculdade de Ciências Médicas
Stengers1 a principal característica da ciên-
Santa Casa de São Paulo
cia moderna. Tal processo de desencanta-
Rua Dr. Cesário Motta Jr., 61 - 5º andar
mento visa tornar o mundo o domínio dos
01221-020 São Paulo, SP - Brasil
homens. Entretanto, nesse processo de de-
E-mail: ch.medsoc@santacasasp.org.br
sencantamento “nosso mundo de per-
cepções sensíveis e qualidades, mundo no
* Conferência apresentada ao 4º Congresso Brasileiro de Epidemiologia; 1998 ago 1-5; Rio de Janeiro,
Brasil.
qual vivemos, amamos e morremos” é subs-

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tituído pelo “mundo da quantidade, da ge- de inferência, a dialógica indução/dedução,
ometria deificada, no qual há lugar para freqüentemente operando a separação ir-
tudo menos para o homem” (Prigogine e reconciliável de cada um desses pólos
Stengers1 1997). (Morin4 1991).
A ciência moderna nasceu da ruptura da A emergência da ciência é marcada pela
aliança animista com a natureza presente ruptura com a cultura humanista que, até
no pensamento mítico e religioso. A apli- então, havia orientado a reflexão filosófica
cação do modelo newtoniano, das leis da sobre as relações do homem com a nature-
dinâmica, a todos os fenômenos da natu- za. Ao caráter antropocentrado, contextua-
reza pressupõe a existência de um Univer- lizado e valorativo da cultura humanística,
so estático e a-histórico, uma natureza in- a cultura científica irá contrapor a especia-
diferente na qual todos os fenômenos se lização, a neutralidade do observador, a
equivalem; uma realidade plana, homogê- formalização, a redução e a disjunção
nea, sem relevo. A obsessão pela descrição (Morin4 1991).
em um nível elementar, simples, porém O exercício da ciência normal no interi-
fundamental, capaz de unificar todos os or de um paradigma científico tende a tor-
campos científicos só foi realmente rompi- nar-se uma prática doutrinária mais do que
da com a termodinâmica, já no final do sé- crítica porque: a coerência interna não per-
culo XIX (Prigoginee Stengers1 1997). mite a falsificação das proposições e leis; o
A ciência clássica constitui-se como o sistema de axiomas é soberano; o princípio
conhecimento acerca de objetos materiais de exclusão impede que fenômenos que
discretos, isoláveis, subsistentes por si mes- não se ajustam às características definidas
mos sem a interferência do sujeito que os para os objetos sejam considerados; o que
observa. A análise, processo de fragmenta- é excluído torna-se um ponto cego; as re-
ção do real, visa decompor os fenômenos, gras de funcionamento são relativamente
evidenciando os elementos mais simples de ocultas e invisíveis, além de serem consti-
sua configuração. A explicação científica tuintes orgânicas da visão de mundo com-
constitui-se de regras simples de operação, partilhada pela comunidade científica. Por
isto é, leis universais construídas a partir de último, um paradigma sempre mantém re-
relações entre algumas variáveis cujas con- lações antinômicas com outros paradigmas,
dições iniciais são conhecidas e permitem, isto é, eles são ambos verdadeiros, não sen-
portanto, a previsão de todos os estados do possível decidir racionalmente por uma
subseqüentes (Morin2 1977). das alternativas existentes (Morin4 1991;
Essas características do objeto científi- Kuhn5 1975).
co construído pela física clássica e estendi- A crise de paradigma surge quando se
das para os demais campos do saber, dão acumulam as fissuras, erosões e corrosões
origem à lógica conjuntista-identitária, isto no seu edifício teórico. Kuhn5 (1975) deno-
é, aquele sistema de lógica regido pelos mina de anomalias o surgimento de fenô-
princípios da identidade, da não –contra- menos que não podem ser adequadamen-
dição e do terceiro excluído, aplicáveis a te explicados no interior do paradigma do-
objetos-eventos discretos, identificáveis e minante. Almeida Filho6 (1994) acrescenta
isoláveis, capazes de serem incluídos/ex- os paradoxos, os limites e os pontos cegos
cluídos em agregados ou conjuntos classifi- entre as ocorrências que acabam por deter-
catórios (Castoriadis3 1987; Morin4 1991). minar a substituição do paradigma domi-
As teorias racionais são sistemas de idéi- nante.
as coerentes, cujos elementos estão articu- No caso da física clássica, a primeira
lados segundo preceitos lógicos formais, ruptura do paradigma da dinâmica ocorreu
cujos enunciados não admitem contradição com os estudos sobre o calor e a formula-
e são passíveis de verificação. O pensamen- ção das leis da termodinâmica que rompem
to racional só admite, como formas válidas com as idéias da reversibilidade, deter-

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minismo e equilíbrio, introduzindo na ex- Entretanto, nem mesmo a matemática
plicação científica a ordem por flutuação e e a lógica estarão a salvo da crise da ciência
a irreversibilidade. A teoria da relatividade moderna. A insuficiência da lógica formal
aprofunda ainda mais a crise instalada pela seja na vertente indutiva, seja na hipotéti-
termodinâmica, provocando a substituição co-dedutiva, dá lugar ao surgimento de vá-
do paradigma newtoniano. A partir da re- rias lógicas que buscam admitir a contradi-
latividade o comportamento dos fenôme- ção e a indecibilidade (Costa9 1980) Na ma-
nos da natureza serão diferenciados segun- temática, os teoremas de Gödel abrem um
do a escala física; o observador passa a per- ciclo de revisão dos fundamentos conjun-
tencer obrigatoriamente ao sistema obser- tistas, apontando a impossibilidade de ve-
vado e as condições iniciais não podem ser rificação de um sistema lógico em seu pró-
consideradas irrelevantes. A mecânica prio interior. (Morin2 1977).
quântica, por sua vez, representa novo Os objetos científicos doravante se apre-
aprofundamento das mudanças, introdu- sentam como seres complexos, totalidades
zindo na ciência a relação de incerteza e o que contêm partes diferenciáveis em qua-
princípio da complementaridade lidade e quantidade. Apresentam-se como
(Prigogine e Stengers1 1997). objetos fragmentáveis de inúmeras manei-
As noções de turbulência, instabilidade ras e cada plano de clivagem admite ser es-
e desequilíbrio, relacionadas com a segun- tudado mediante o uso de um número infi-
da lei da termodinâmica e a produção de nito de variáveis (Samaja10 1993)
entropia, na biologia estarão relacionadas O novo método terá que conceber a
com a criação de ordem e organização. Na dialética entre ordem/ desordem/ organi-
ciência do século XX progressivamente os zação para dar conta da natureza comple-
objetos simples serão substituídos pelos sis- xa das emergências fenomênicas e do cará-
temas ou organizações que são unidades ter de autonomia/dependência que os se-
complexas, totalidades, unidade da diver- res vivos apresentam em relação ao contex-
sidade. Bachelard7 (1986) afirma, de manei- to no qual se desenvolvem. Tratar da com-
ra emblemática, que o simples é sempre o plexidade exige o máximo de informações
simplificado, recusando assim o reducio- e o reconhecimento do variado, do variá-
nismo das explicações mecânicas. vel, do ambíguo, do aleatório, do incerto
Após a ruptura com o reducionismo (Morin11 1977). A lógica da investigação tem
mecanicista e a derrota das concepções que incorporar os procedimentos analó-
vitalistas a vida passa a ser estudada como gicos para a modelização e formalização
fenômeno hipercomplexo, isto é, como um dos sistemas complexos, suprindo as defi-
sistema aberto em permanente desordem ciências dos procedimentos indutivos e
constituído pelo jogo de ações aleatórias dedutivos. O uso de metáforas que sinteti-
(acaso) e com diminuição das restrições zam a dialética expressão /compreensão
impostas pelas necessidades. Por seu com- passa a ser um procedimento do saber ci-
ponente físico-químico, pertence à physis entífico tanto quanto do conhecimento es-
e, por seu componente cibernético, carac- tético, cotidiano, moral e ético (Morin12
teriza-se como organização (Morin8 1973). 1986).
As tentativas de superação da crise e do O produto das investigações científicas
esgotamento da ciência moderna fazem-se passa a incluir obrigatoriamente a compre-
em duas direções bastante diversas. De um ensão dos fenômenos, através de procedi-
lado, busca-se a ultrapassagem dos limites mentos de projeção e identificação e a ex-
através da unificação dos métodos ou pela plicação , isto é, o processo abstrato de de-
redução de todos eles a um só, ou seja, a monstração lógica pelo qual o objeto é si-
matematização. De outro, busca-se cons- tuado em relação à sua origem ou modo de
truir um novo paradigma que dê conta da produção, suas partes constituintes, sua
complexidade. (Castoriadis3 1987). utilidade ou finalidade (Morin12 1986).

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A nova abordagem científica torna rela- organização e complexidade, como sistema
tivos os princípios básicos da lógica auto-organizado (Schramm e Castiel 13
conjuntista-identitária e passa a aceitar a 1992). A causalidade ou o determinismo
impossibilidade da existência de seres per- causal deve dar lugar a outras formas de
feitamente discretos e identificáveis no determinismo, além de abrir a possibilida-
mundo real, além de admitir as diversas fi- de para diferentes interpretações acerca do
guras da contradição: os paradoxos, as nexo causal (CORISCO16 1993).
antinomias, as aporias e os oxímoros, o que Há uma série de propostas de constru-
invalida o princípio do terceiro excluído ção do objeto - processo saúde-doença em
(Morin4 1991). coletividades humanas - em pleno uso nas
investigações epidemiológicas latino-ame-
A crise na epidemiologia ricanas. Podem ser citadas as proposições
de Breilh e col.18 (1990) e do grupo de pes-
A lógica epidemiológica é a aplicação quisadores do CEAS do Equador, consubs-
setorial da lógica conjuntista-identitária tanciadas no conceito de perfil epide-
que preside o conhecimento científico mo- miológico das classes sociais articulando os
derno. Os sinais de crise nesse campo de- momentos socioeconômicos da produção
moraram mais a surgir e a serem reconhe- -distribuição - consumo e os impactos de
cidos, tendo em vista que a epidemiologia tais processos na saúde. Laurell e Noriega19
apenas se constituiu como ciência no sécu- (1989) e os pesquisadores da UAM-
lo XIX. As transformações ocorridas no âm- Xochimilco adotam o conceito de nexo
bito da física, da química e da biologia, des- biopsíquico e processo de desgaste como
de o início do século, apenas agora se fa- expressão corporal da ação dos determi-
zem sentir no campo da saúde e da epide- nantes presentes na estrutura social.
miologia em particular. Samaja20 (1993) e Castellanos21 (1990) pro-
A emergência de novos problemas no põem o conceito de reprodução social
interior da disciplina e a construção de como o conceito central para construir o
modelos locais para explicá-los apontam objeto da investigação epidemiológica, bus-
para uma crise de complexificação do cam- cando a articulação entre condições de vida
po (Schramm e Castiel13 1992). e situação de saúde. Finalmente, Almeida
Dentre os problemas teóricos aponta- Filho6 (1994) sugere integrais saúde-doen-
dos pelos críticos destaca-se o empobreci- ça-cuidado como objetos privilegiados a
mento teórico da epidemiologia. A tendên- serem construídos na e pela pesquisa
cia presente desde meados deste século, de epidemiológica.
considerar-se o saber da epidemiologia A substituição da noção de causalidade,
como método aplicável a um conjunto in- nas diferentes vertentes da multicausa-
distinto de objetos, e a aplicação indiscri- lidade, pelo par determinação/mediação,
minada de procedimentos de formalização comportando uma grande variedade de for-
matemática têm contribuído para o esvazi- mas que vão desde a determinação causal
amento teórico da disciplina, culminando mecânica até a determinação histórica, pas-
com a definição de Miettinem14 (1985) da sando pelas determinações probabilísticas,
epidemiologia enquanto estudo das fun- também vem sendo paulatinamente obser-
ções de ocorrência (Vandenbrucke15 1990; vada nas pesquisas da área.
CORISCO16 1993; Barata e Barreto17 1996). No plano dos conceitos merece maior
Nesse processo de empobrecimento te- atenção a reconceituação de risco e popu-
órico duas questões adquirem relevância: lação. Na perspectiva cartesiana e
a questão da elaboração do objeto científi- reducionista da ciência clássica o conceito
co e a da causalidade. A elaboração do ob- população se refere a um conjunto de ele-
jeto tem que partir da concepção da reali- mentos individualizados que, por determi-
dade estruturada em diferentes níveis de nadas características comuns, podem ser

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agrupados. Nessa perspectiva não há refe- comportando múltiplas faces e fisionomias
rência aos vínculos e relações orgânicas que diversas.
por ventura existam entre esses indivídu- Pluralidade na adoção de estratégias
os, caracterizando-os como um coletivo his- metodológicas e táticas de investigação que
toricamente constituído (Loomis e Wing22 incorporem novos sistemas de lógica nos
1990). O desafio que se coloca para a quais a indeterminação entre os limites do
epidemiologia é repensar o conceito chave objeto e do contexto seja admitida; nas
de população, levando em conta a ultrapas- quais as figuras da contradição possam ser
sagem do antagonismo entre individualida- tratadas e, principalmente, que possibili-
de e sociedade, isto é, superando a concep- tem a superação das disjuntivas anterior-
ção de coletivo quer seja como algo que mente apontadas. A estratégia de estudos
paira acima e além dos indivíduos, quer seja de agregados, particularmente, deverá ser
como a somatório de elementos distintos, reabilitada na medida que possibilite o es-
unidos apenas por certos traços ou carac- tudo de fenômenos em dimensão coletiva,
terísticas julgados pertinentes naquele mo- trabalhando com unidades de informação
mento (CORISCO16 1993). Essas mesmas e análise que se apresentam ao pesquisa-
questões remetem ao conceito de risco dor como totalidades, colocando-se na di-
como probabilidade de ocorrências de mensão particular dos fenômenos da reali-
eventos de interesse para a saúde em de- dade, nível de ancoragem, por excelência,
terminados grupos populacionais. dos estudos epidemiológicos.
Do ponto de vista metodológico impõe- Transdiciplinariedade entendida como
se a formulação de novas estratégias de in- possibilidade de comunicação entre agen-
vestigação que permitam suplantar as tes, trânsito dos sujeitos de discursos e prá-
disjuntivas perpetuadas pela ciência mo- ticas científicas, processo “práxico” exerci-
derna entre teoria e prática, sujeito e obje- do por pesquisadores em trânsito entre di-
to, objeto e contexto, descritivo e analítico, versos campos disciplinares correlatos, ar-
observação e experimento, quantitativo e ticulados pelo objeto de investigação
qualitativo, lógica formal e lógica dialética, construído. Processo de criação de saberes
empirismo e racionalismo. A persistência científicos marcados pelo caráter social e
dessas disjuntivas tem contribuído apenas coletivo, político-institucional, produzidos
para estabelecer divisões rígidas e artifici- de maneira matricial e amplificada
ais entre diferentes domínios do conheci- (Almeida Filho23 1997). Não mais o trabalho
mento, entre diferentes campos disciplina- em equipe em que se justapõem ou articu-
res e entre diversas abordagens nos mes- lam externamente conhecimentos opera-
mos campos. dos por diversos especialistas construindo
A chave para a construção do “novo es- desenhos caleidoscópicos sobre a realida-
pírito científico” no campo da epidemio- de, mas elaboração e criação do novo trans-
logia, segundo Almeida Filho6,23, está em gredindo as fronteiras disciplinares e as es-
adotar uma abordagem que reúna a pecializações, construindo um conheci-
transdiciplinariedade, a complexidade, a mento rico e complexo que permita com-
pluralidade e a práxis. preender e explicar os processos em sua
Complexidade na construção do objeto gênese e desenvolvimento.
integrais saúde-doença-cuidado, respeitan- Práxis como solo no qual se encontram
do os vínculos orgânicos entre objeto e or- os elementos simbólicos, éticos, políticos e
ganização social histórica, entre individua- pragmáticos que participam na instituição
lidade e coletivo, abandonando os objetos dos campos disciplinares; local de compar-
simples e substituindo-os por objetos mo- tilhamento de linguagens e discursos cien-
delos sistêmicos ou estruturais referidos a tíficos; produto dos mais diversos saber-fa-
modelos abstratos não-lineares, abarcando zer da espécie humana.
múltiplos níveis de existência na realidade, Encerrando a apresentação dos desafi-

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os que se colocam para a epidemiologia no dades. Apenas as sociedades capitalistas
plano teórico recorro novamente a apresentam uma contradição flagrante en-
Prigogine e Stengers1 (1997): tre a afirmação da liberdade e da igualdade
“A ciência se afirma hoje como ciência no plano político- ideológico e as condições
humana, ciência feita por homens para ho- concretas de existência dos sujeitos, situa-
mens. ... A antiga aliança animista está mor- ção esta, frequentemente marcada pela ex-
ta. Está bem morto o mundo finalizado, es- clusão e desigualdade (Barata e col.25 1997).
tático e harmonioso que a revolução Segundo Merleau-Ponty26 (1984) a igual-
copernicana destruiu quando lançou a Ter- dade formal dos direitos e a liberdade polí-
ra nos espaços infinitos. Chegou o tempo tica dos cidadãos nas sociedades capitalis-
de assumir os riscos da aventura dos ho- tas mascaram as relações de força e domi-
mens: o saber científico pode descobrir-se nação predominantes na esfera da repro-
hoje simultaneamente como uma “escuta dução social. De acordo Cohn27 (1997), as
poética” da natureza e processo aberto de sociedades modernas são permanente-
produção e invenção, num mundo aberto, mente atravessadas pela contradição entre
produtivo e inventivo. Chegou o tempo de o princípio da emancipação, isto é, a busca
novas alianças formadas entre a história dos da igualdade e da integração social capa-
homens, de suas sociedades, de seus sabe- zes de permitir o afloramento de todas as
res e a aventura exploradora da natureza”. potencialidades humanas, e o princípio da
regulação que passa a gerir os processos de
Desigualdades sociais e desigualdade e exclusão através de formas
iniquidades em saúde compensatórias ou até mesmo de mecanis-
mos de marginalização crescentes.
O maior desafio que se coloca para a O indivíduo é uma criação social decor-
epidemiologia, enquanto ciência humana rente de uma produção social específica.
feita por homens e para homens, é a obri- Castoriadis3 (1987) afirma que esta criação
gação de tratar das questões relativas às de- implica sempre a forma abstrata e parcial
sigualdades sociais e às iniqüidades em saú- da igualdade capaz de conviver perfeita-
de que elas promovem. mente com as desigualdades concretas e
Em termos éticos a igualdade e a equidade substantivas, pois a idéia de igualdade so-
remetem à “relação entre os indivíduos, em cial é uma significação imaginária que en-
virtude da qual todos eles são portadores dos volve a instituição da sociedade enquanto
mesmos direitos fundamentais que provêm comunidade política. Comunidade na qual
da humanidade e definem a dignidade da a igualdade política frequentemente é en-
pessoa humana” (Ferreira24 1986). A eqüida- tendida como “cada cidadão um voto” nas
de e a igualdade pressupõem, portanto, mui- democracias representativas do ocidente.
to mais do que a simples anulação das dife- Este mascaramento ideológico obriga a
renças, implicando a possibilidade concreta precisar claramente o que se entende por
de que todos os indivíduos possam desenvol- desigualdade e em que medida ela remete
ver suas potencialidades humanas sem cons- a situações de iniqüidade em saúde. Evi-
trangimentos de ordem social. dentemente, nem toda diferença ou desi-
Na história da humanidade, todas as gualdade entre indivíduos corresponde a
formas de organização social foram mar- uma situação de iniqüidade ou injustiça. É
cadas, com maior ou menor intensidade, mais ou menos intuitivo que a igualdade
pelas posições desiguais que os sujeitos absoluta é inalcançável e até mesmo inde-
ocuparam na estrutura social. Sejam castas, sejável, na medida que significaria a anula-
classes ou estratos demográficos, todas as ção da própria individualidade. No limite,
formações sociais apresentaram grupos dis- não pode haver indivíduos sem que existam
tintos em sua estrutura e justificativas no diferenças que os constituam como tais
plano jurídico e político para tais desigual- (Goldbaum28 1997).

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Boaventura Santos diz que “temos o di- sociais eram considerados relevantes. Des-
reito de ser iguais sempre que a diferença te modo se ocultava a determinação/ me-
nos inferioriza, e temos o direito de ser di- diação exercida pelas condições concretas
ferentes sempre que a igualdade nos desca- de existência sobre o processo saúde-doen-
racteriza” (Conh27 1997) Desta forma, o au- ça dos grupos humanos e dos indivíduos
tor procura marcar claramente a sua posi- que os constituíam.
ção com respeito a diferenças que são de- A partir das três últimas décadas do sé-
sejáveis e aquelas que constituem base culo XX as explicações baseadas no círculo
para injustiças sociais. vicioso da pobreza passam a ser substituí-
Para Aristóteles toda partilha deve ser das pela discussão da desigualdade e da
igual e toda transação entre homens livres exclusão social como processos mais im-
deve ser regida pela igualdade. Entretanto, portantes para a compreensão dos diferen-
para que haja justiça, a igualdade não pode cias de saúde-doença dos grupos sociais.
ser aritmética. A igualdade aritmética é de- (Cohn27 1997) A questão deixa de ser trata-
sigualdade na medida em que é abstrata. da apenas como um problema de quanti-
Para que todos os indivíduos sejam toma- dades, para ser entendida em sua gênese e
dos como idênticos será necessários em sua diversidade de manifestações.
descaracterizá-los em suas individualida- Castellanos29 (1997) define as iniqüida-
des. Portanto, a igualdade só pode ser igual- des em saúde como diferenças ou desigual-
dade de proporção ou relativa. O critério dades redutíveis, vinculadas a condições
marxista de “a cada um segundo suas ne- heterogêneas de vida. Desta forma, é pos-
cessidades e de cada um segundo suas ca- sível precisar a abrangência das desigual-
pacidades” torna o indivíduo sua própria dades que devem constituir o interesse pri-
medida. Como a regra pode ser aplicada a mordial da epidemiologia, isto é, aquelas
todos, ela é ao mesmo tempo social e indi- diferenças nos perfis de saúde-doença dos
vidual, universal e concreta. Ela vai além da grupos sociais, cuja determinação maior se
simples igualdade, ela é eqüidade encontra no processo de reprodução social
(Castoriadis3 1987). desses grupos, e que poderiam ser reduzi-
Durante boa parte do século XIX e iní- das à medida que o projeto emancipatório
cio do século XX as desigualdades sociais e se tornasse proeminente face aos mecanis-
seus impactos na saúde foram tratados pre- mos de dominação/exclusão.
dominantemente da ótica da dicotomia Parte dessas iniqüidades em saúde são
entre pobreza e riqueza, implicando assim passíveis de redução através de políticas
uma abordagem quantitativa do problema. sociais compensatórias, entretanto, mesmo
Desde a constituição da Epidemiologia os países mais desenvolvidos e com gastos
como disciplina científica, os estudos da relativamente importantes em políticas so-
distribuição e dos determinantes das doen- ciais, dentre as quais, as de saúde, têm sido
ças nas populações dão importância às con- incapazes de reduzir as diferenças entre os
dições de vida dos grupos sociais, ressaltan- diferentes grupos, demonstrando que as
do os efeitos deletérios da pobreza para desigualdades produzidas a partir da inser-
uma série de situações de saúde e, da rique- ção social não são completamente compen-
za, para outros. Durante muito tempo man- sadas na esfera da distribuição e do consu-
teve-se entre alguns autores a idéia da mo (Wilkinson30 1997). Em outros termos, a
dualidade complementar entre pobreza e partilha desigual de condições de vida, de-
riqueza, sem que houvesse uma teoria que corrente da inserção dos grupos na estru-
articulasse de maneira satisfatória os dois tura social, não consegue ser reparada to-
lados da moeda (Barata e col. 25 1997, talmente através de políticas paliativas, se-
Goldbaum28 1997). Havia, assim, as doen- jam elas tributárias dos enfoques de massa
ças da pobreza e as doenças da riqueza, ou da saúde pública ou do enfoque focal do li-
ainda, as doenças para as quais os fatores beralismo (Cohn27 1997).

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O processo de reprodução social dos humanas antes do advento do século das
grupos humanos implica a reprodução de luzes. Entretanto, da mesma maneira que a
diferentes domínios da vida. No nível mais organização social capitalista tornou
elementar está a reprodução biológica do inviável a igualdade concreta entre os ho-
indivíduo que garante suas características mens na esfera da reprodução social, o pre-
como espécie biológica marcada principal- domínio da Razão, inicialmente, processo
mente pela interação entre genotipo e aberto de crítica e elucidação, transformou-
fenotipo, isto é, entre a herança genética e se com o passar do tempo em “computa-
a modulação das potencialidades herdadas ção mecânica e uniformizante”. A ativida-
pelas condições concretas de existência que de científica, por exemplo, tornou-se ativi-
irão resultar nas manifestações fenotípicas. dade tecnopragmática, manipuladora de
Como os homens vivem em comunidade, objetos, instrumentos, algoritmos e concei-
compartilhando um espaço e um tempo tos, contentando-se com que tudo funcio-
particulares, a reprodução social implica ne. A razão instrumental substituiu, em to-
também na reprodução de um segundo dos os domínios culturais e técnicos, a ra-
domínio: o das relações ecológicas dos gru- zão crítica, acabando por eclipsar o projeto
pos, ou seja, de suas relações com os ambi- de autonomia presente em sua origem.
entes, senso lato, em que tais comunidades O desencanto face ao fracasso dos mo-
se constituem. Estas comunidades parti- vimentos de transformação social que mar-
lham formas de consciência e de conduta caram os anos 60 e a subsequente retração
resultantes das interações intersubjetivas da ação política no conformismo caracte-
que também participam dos processos de rístico das últimas três décadas parecem ter
reprodução, configurando o terceiro domí- acentuado a aparente incapacidade de se
nio: o da cultura. Finalmente, os grupos so- constituir como indivíduo sem excluir o
ciais se reproduzem reproduzindo as for- outro, e ainda, a incapacidade de excluir o
mas econômicas que lhes garantem o do- outro sem desvalorizá-lo (Castoriadis 3
mínio sobre a natureza (Samaja31 1994). 1987).
Todos esses processos implicam impac- As relações humanas são esvaziadas de
tos sobre a saúde e a doença dos indivídu- sentido e o outro, principalmente se for di-
os, representando, cada um deles, um con- ferente quanto à classe social, ao gênero, à
junto de determinações e mediações cujo raça, às preferências políticas e às práticas
resultado final será a preservação da saúde religiosas, passa a ser visto e tratado como
ou a ocorrência da doença ou agravos à saú- alvo de menosprezo, discriminação e ódio.
de. As desigualdades nas condições de vida, Na melhor das hipóteses as desigualdades
decorrentes de diferenças substantivas nes- levam a um sentimento de irrelevância,
se processo de reprodução social, terão re- como se parte da humanidade pudesse sim-
flexos nas situações de saúde que serão en- plesmente ser “descartada”. A obsoles-
tão identificadas como iniqüidades. cência frenética de objetos materiais, con-
Por que considerar a questão da desi- ceitos, tecnologias, valores estéticos, atin-
gualdade social e das iniqüidades em saú- ge a própria humanidade, tornando parte
de como o desafio ético fundamental para significante dos seres humanos, incapaz de
a epidemiologia no princípio do novo mi- encontrar lugar na nova ordem mundial.
lênio? O agravamento das desigualdades, ao
A autonomia e a liberdade tornaram-se invés de fomentar a indignação e a busca
valores universais a partir da emergência de superação através de movimentos
das sociedades capitalistas ocidentais, emancipatórios baseados no aprofunda-
marcadas em seu nascimento pelo predo- mento dos laços solidários e de integração
mínio da Razão sobre todos os preconcei- social, dá lugar a comportamentos de dis-
tos, mitos e crenças que impediram o de- criminação e exclusão.
senvolvimento pleno das potencialidades A explosão da violência urbana na mai-

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oria das grandes metrópoles é apenas a face efetivação do sonho de liberdade e autono-
mais evidente e notória do processo de de- mia que o iluminismo anunciou para todos
terioração dos vínculos mais elementares aqueles que aderissem às luzes da razão.
de sociabilidade. Os conflitos étnicos e ra- Breilh32 (1995) afirma que
ciais, a violência cotidiana nas relações de “nem sequer o sofrimento e a coerção
gênero e nas relações intergeracionais, com das épocas mais obscuras da história foram
sua parcela de sofrimento e dor, acabam capazes de arrebatar das coletividades seus
por afetar muito mais do que a saúde men- sonhos e conter essa vocação genérica para
tal daqueles diretamente atingidos. A a superação das dominações e iniqüidades
dialética senhor-escravo, proposta por e para a realização de um projeto de avan-
HEGEL e re-elaborada por MARX para ana- ço que, na essência, está sempre vinculado
lisar os fenômenos da alienação na dimen- a promessas originais ainda não realizadas”
são filosófica, fornece o instrumental teóri-
co para a compreensão da sensação de Epidemiologia e saúde coletiva:
estranhamento e do sentimento de infeli- o plano “práxico”
cidade que perpassam as sociedades mo-
dernas. Enfrentar o desafio ético, anteriormen-
A epidemiologia que tem por objeto de te apontado, construindo paulatinamente
estudo a distribuição e os determinantes o caminho para esta utopia, esbarra em
dos processos saúde- doença em coletivos outras tantas dificuldades.
humanos não pode, ao construir suas me- Dentre os inúmeros desafios que se co-
didas de ocorrência e de risco, ignorar o fato locam para a epidemiologia no campo
fundamental de que os coletivos humanos práxico destaca-se a sua vinculação ao cam-
são mais do que a simples soma de elemen- po da saúde coletiva, relativamente
tos agrupados por pertencerem a esta ou ameaçada por uma tendência em sentido
aquela categoria artificialmente criada pe- oposto de aumentar seus vínculos com o
los investigadores. Os coletivos humanos campo biomédico, transpondo progressiva-
são grupos sociais nos quais os elementos mente seu objeto de estudo para os proble-
mantêm relações entre si e justamente es- mas de saúde de indivíduos em populações.
sas relações determinam o afloramento de Muito embora, eminentes epidemiolo-
qualidades novas no âmbito coletivo, dife- gistas comprometidos com a manutenção
rentes daquelas que cada indivíduo pode- do caráter populacional da prática epide-
ria apresentar se fosse possível a sua exis- miológica, como Susser33 (1989), apontem
tência enquanto ser isolado. Dito de outro a íntima relação da epidemiologia com a
modo, cada coletivo constitui uma totalida- medicina e a saúde pública como inevitá-
de por referência aos indivíduos que o for- veis, visto que seus conhecimentos e práti-
mam, embora possa constituir uma singu- cas de intervenção são claramente comple-
laridade para a totalidade maior que o en- mentares, os movimentos em uma ou ou-
globa. tra direção têm-se mostrado francamente
As metodologias de investigação epide- antagônicos.
miológica e os instrumentos técnicos para Castellanos29 (1997) lança luz sobre a
obtenção e análise dos dados não podem discussão, mostrando que progressivamen-
ser construídos sem levar em conta a ne- te a epidemiologia foi tendo seu interesse
cessidade de lidar com a desigualdade sob deslocado dos estudos da situação de saú-
pena de tornar ineficiente e inoperante o de de grupos populacionais, que ele deno-
conhecimento produzido. mina de “epidemiologia de quem”, para
Tratar da desigualdade social e iniqüi- estudos de problemas de saúde específicos,
dades em saúde é um desafio ético para a que ele denomina de “epidemiologia de
epidemiologia que se inscreve na luta por quê”. Em outros termos, isto significa o
eqüidade em sua mais ampla dimensão, na abandono de abordagens mais compreen-

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sivas acerca dos perfis epidemiológicos for- campo da saúde pública para o campo
temente vinculados às constituições locais biomédico, não mais em uma relação de
ou condições de vida temporalmente data- complementaridade, mas antes, em uma
das e espacialmente localizadas, por abor- relação de franca subordinação.
dagens mais abstratas, relativas aos riscos A perda de hegemonia do discurso sa-
de ocorrência de doenças específicas em nitário nas últimas décadas e o afloramento
determinados grupos de indivíduos. da crise da saúde pública podem ser vistas
Certamente, mesmo nos primórdios dos como a resultante de um processo comple-
estudos epidemiológicos, existiam investi- xo no qual se entrelaçam as limitações
gações voltadas para o conhecimento e o conceituais, metodológicas e técnicas, face
controle de doenças específicas; entretan- aos novos problemas de saúde postos pela
to, tais estudos eram minoritários por com- realidade, o empobrecimento teórico da
paração com aqueles que se voltavam para epidemiologia, na medida que abandonou
as relações entre as condições de vida e a o caráter coletivo e populacional de seu
situação de saúde das populações. Com o objeto e a ineficiência prática que daí se
decorrer do tempo essa relação foi se inver- deriva, as transformações políticas com a
tendo, resultando em abandono progressi- derrota dos movimentos emancipatórios e
vo dos estudos de situação de saúde. o predomínio de um individualismo estéril
Ayres34 (1997) aponta a existência de três e consumista (Castellanos291997).
vertentes na epidemiologia norteamericana O predomínio da lógica de mercado em
surgidas no século passado e que se manti- todas as esferas da vida faz da acumulação
veram relativamente presentes até a déca- e do consumo os bens supremos a que os
da de trinta: uma vertente ambientalista, indivíduos devem aspirar. Esta lógica,
uma vertente socio-política e uma vertente quando aplicada à política de saúde e à or-
biomédica. Progressivamente, todas vão ganização de serviços, se traduz no predo-
cedendo espaço ao que constituiria o mo- mínio da ótica administrativa de adequa-
vimento preventivista do pós-guerra que ção dos fins aos meios, ignorando as neces-
implicaria na substituição das preocupa- sidades sociais de saúde, pautando-se mais
ções populacionais por abordagens indivi- pelos ditames econômicos do que pela bus-
duais. ca de superação dos problemas e pela di-
A inflexão observada na produção de minuição do sofrimento humano (Barata e
conhecimentos e nas ações práticas, após Barreto17 1996).
a Segunda Guerra, foi acompanhada de ra- Entretanto, o discurso do risco também
refação teórica, circunscrição aos proble- não demonstra sua eficácia no plano
mas do método, formalização discursiva, “práxico”, dadas as dificuldades que apre-
adoção da doença como elemento nuclear senta. As limitações que a própria teoria das
e do conceito de risco como ferramenta pri- probabilidades tem no sentido de permitir
vilegiada (Ayres34 1997). A epidemiologia o trânsito entre a construção da probabili-
será cada vez mais tratada como um méto- dade no âmbito do coletivo, ainda que to-
do aplicável a determinada classe de fenô- mado como conjunto ou classe de elemen-
menos suscetíveis de tratamento matemá- tos, e sua aplicação a cada um dos indiví-
tico probabilístico. duos que o compõem; o caráter fragmen-
A adoção da doença como elemento tário dos resultados de inúmeras associa-
nuclear necessário para a construção quan- ções testadas fora de um marco explicativo
titativa do conceito de risco torna a que permita articulá-las com coerência, a
epidemiologia, num certo sentido, depen- estrita validade externa dos ensaios clínicos,
dente do campo biomédico, na medida em são algumas dessas insuficiências.
que será nesse campo que a noção de do- No plano prático da vida cotidiana o dis-
ença será construída. Desta forma, fica fa- curso do risco tem se mostrado incapaz de
vorecido o deslocamento da disciplina do elaborar propostas coerentes de promoção

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de saúde e prevenção de problemas que muitas vezes sem levar em consideração a
possam ser adotadas com segurança pelas complexidade dos fenômenos de saúde-
pessoas, gerando com frequência, perple- doença e os compromissos pragmáticos da
xidade ante os resultados contraditórios dos epidemiologia.
diferentes estudos, descrédito face à dificul- O movimento de estreitamento dos vín-
dade que as pessoas tem de entender as culos com a saúde coletiva representa a ten-
mediações necessárias entre verdades tativa de fazer frente ao predomínio da ra-
construídas a partir de coletivos e sua apli- zão instrumental instalado em todos os
cação aos indivíduos singulares, dificulda- campos do saber, retomando as perspecti-
de que os indivíduos têm em se identificar vas da ação comunicativa voltada para o
como fazendo parte desses coletivos com- projeto de emancipação. Esse movimento
partilhando o risco. pressupõe a atualização do próprio campo
Esta ineficiência aparente, associada ao da saúde pública, superando seu viés
enfraquecimento da saúde pública, acaba racionalizador e estatal.
por produzir três movimentos antagônicos A Saúde Coletiva, do ponto de vista da
entre os praticantes da epidemiologia: o sua constituição enquanto campo de práti-
afastamento em relação à saúde pública, cas científicas, pode ser pensada como um
representado pela corrente da epidemio- campo de saberes e práticas que tem por
logia clínica, a formalização crescente do objeto o processo saúde – doença e as res-
discurso e a redução aos aspectos postas sociais aos problemas de saúde re-
metodológicos e, o estreitamento dos vín- feridos à dimensão coletiva, entendida
culos com a saúde coletiva buscando a su- como relações sociais estruturadas, na qual
peração das limitações e dos entraves. a saúde e a doença adquirem significação
O movimento da epidemiologia clínica (Paim35 1992).
representa a inserção da epidemiologia no Por outro lado, enquanto campo de prá-
campo biomédico sob a forma de um con- ticas cotidianas ela pode ser pensada como
junto de técnicas de análise que podem ser um conjunto de práticas de cidadania,
aplicadas aos problemas clínicos, conferin- construídas através de processos simbóli-
do-lhes maior rigor científico. A epidemio- cos, lutas políticas e processos técnicos de
logia, no papel secundário que lhe é reser- trabalho, voltados para a promoção da saú-
vado nesse movimento, se limita a apoiar de e a prevenção de problemas de saúde
instrumentalmente as investigações bio- (CORISCO16 1993).
médicas, abrindo mão de seu objeto pró- O surgimento da saúde coletiva signifi-
prio, limitando suas estratégias de investi- cou a invenção de um novo campo resul-
gação ao receituário dos ensaios clínicos tante da implosão de campos disciplinares
controlados, violando as bases teóricas e os rigidamente estruturados, motivado por
pressupostos estatísticos mais elementares problemáticas complexas e abrangentes,
para ajustar seus recursos à análise de fe- confluência de diversos saberes, inter-
nômenos individuais mas, principalmen- secções e expansões entre fronteiras disci-
te, abandonando as tecnologias de inter- plinares prévias, mas principalmente pela
venção em massa, substituindo-as pelas emergência de novos atores políticos no
medidas preventivas e curativas de âmbito espaço público, rompendo a hegemonia do
individual. Estado na definição dos problemas de saú-
O movimento de formalização crescen- de, bem como no encaminhamento das
te do discurso representa a esterilização do suas soluções (Birman36 1996).
potencial de intervenção prática e o esva- A epidemiologia, enquanto prática de
ziamento teórico da disciplina, resumindo- produção de conhecimentos e enquanto
se no aprofundamento de questões meto- prática de intervenção social cuja finalida-
dológicas e menos do que isso, no aprimo- de é modificar favoravelmente a situação de
ramento de técnicas de análises de dados, saúde de grupos humanos, através de alte-

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rações em suas condições de vida, encon- Finalmente, os epidemiologistas devem
tra-se inevitavelmente ligada à saúde cole- ser capazes de avaliar o impacto que tais
tiva. intervenções tenham sobre a situação de
A racionalidade epidemiológica pode saúde das populações, tendo em vista a re-
ser associada à racionalidade administrati- dução das desigualdades e a promoção da
va, reorientando a organização de serviços saúde, articulando-se com portadores de
no sentido de buscar a satisfação das ne- outros saberes e enfoques na construção de
cessidades de saúde dos grupos popula- uma abordagem transdiciplinar e
cionais. Os epidemiologistas têm contribui- intersetorial.
ções a dar a cada uma das etapas do pro- De acordo com Castellanos29 (1997):
cesso de elaboração das políticas de saúde “Não resta dúvida de que todos os de-
e de planejamento dos serviços. senvolvimentos conceituais e metodo-
Assim concebida, a prática epidemio- lógicos hoje disponíveis têm contribuído
lógica pode fornecer elementos fundamen- para converter o campo da análise da situ-
tais para a definição de políticas de saúde ação de saúde e das condições de vida em
que vão desde as técnicas de apreensão das um campo intelectualmente desafiador,
necessidades que compõem o diagnóstico assim como a epidemiologia em uma ciên-
de saúde, até as técnicas de estabelecimen- cia que se incorpore progressivamente ao
tos de prioridades. Nesse processo ela deve campo das ciências contemporâneas mais
ser capaz de possibilitar a articulação das produtivas, retomando suas raízes como
necessidades dos indivíduos às necessida- disciplina básica da saúde pública e seus
des sociais dos grupos, sem que a compromissos permanentes com os esfor-
subsunção do individual ao coletivo repre- ços de redução das iniqüidades sociais em
sente a anulação das subjetividades nem saúde, superando gradualmente o maras-
tão pouco o predomínio dos individualis- mo predominante nas ciências denomina-
mos. das modernas”.
Além da formulação de políticas os Desta maneira será possível realizar, no
epidemiologistas podem contribuir para a campo da epidemiologia, a nova aliança
elaboração de modelos tecnológicos de in- proposta por Prigogine e Stengers1 reinscre-
tervenção que configurem estratégias de vendo a prática científica na tradição da
atuação voltadas para a alteração das estru- cultura humanista que ela abandonou ao se
turas de determinantes que se encontram despreender do pensamento filosófico du-
na base da produção dos perfis epide- rante o renascimento, refazendo os com-
miológicos dos distintos grupos sociais, ar- promissos da velha Medicina Social surgida
ticulando os conhecimentos teóricos aos no seio do romantismo e concretizando os
instrumentos técnicos, de maneira que haja ideais da Saúde Coletiva, derradeira tenta-
equilíbrio entre a intervenção massiva e tiva de superar a alienação e a apatia dos
indiscriminada das práticas de saúde públi- homens, devolvendo-lhes um projeto
ca e a autonomia e conscientização dos su- emancipatório utópico pelo qual vale a
jeitos acerca de seus problemas e de suas pena lutar.
soluções.

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