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tituído pelo “mundo da quantidade, da ge- de inferência, a dialógica indução/dedução,
ometria deificada, no qual há lugar para freqüentemente operando a separação ir-
tudo menos para o homem” (Prigogine e reconciliável de cada um desses pólos
Stengers1 1997). (Morin4 1991).
A ciência moderna nasceu da ruptura da A emergência da ciência é marcada pela
aliança animista com a natureza presente ruptura com a cultura humanista que, até
no pensamento mítico e religioso. A apli- então, havia orientado a reflexão filosófica
cação do modelo newtoniano, das leis da sobre as relações do homem com a nature-
dinâmica, a todos os fenômenos da natu- za. Ao caráter antropocentrado, contextua-
reza pressupõe a existência de um Univer- lizado e valorativo da cultura humanística,
so estático e a-histórico, uma natureza in- a cultura científica irá contrapor a especia-
diferente na qual todos os fenômenos se lização, a neutralidade do observador, a
equivalem; uma realidade plana, homogê- formalização, a redução e a disjunção
nea, sem relevo. A obsessão pela descrição (Morin4 1991).
em um nível elementar, simples, porém O exercício da ciência normal no interi-
fundamental, capaz de unificar todos os or de um paradigma científico tende a tor-
campos científicos só foi realmente rompi- nar-se uma prática doutrinária mais do que
da com a termodinâmica, já no final do sé- crítica porque: a coerência interna não per-
culo XIX (Prigoginee Stengers1 1997). mite a falsificação das proposições e leis; o
A ciência clássica constitui-se como o sistema de axiomas é soberano; o princípio
conhecimento acerca de objetos materiais de exclusão impede que fenômenos que
discretos, isoláveis, subsistentes por si mes- não se ajustam às características definidas
mos sem a interferência do sujeito que os para os objetos sejam considerados; o que
observa. A análise, processo de fragmenta- é excluído torna-se um ponto cego; as re-
ção do real, visa decompor os fenômenos, gras de funcionamento são relativamente
evidenciando os elementos mais simples de ocultas e invisíveis, além de serem consti-
sua configuração. A explicação científica tuintes orgânicas da visão de mundo com-
constitui-se de regras simples de operação, partilhada pela comunidade científica. Por
isto é, leis universais construídas a partir de último, um paradigma sempre mantém re-
relações entre algumas variáveis cujas con- lações antinômicas com outros paradigmas,
dições iniciais são conhecidas e permitem, isto é, eles são ambos verdadeiros, não sen-
portanto, a previsão de todos os estados do possível decidir racionalmente por uma
subseqüentes (Morin2 1977). das alternativas existentes (Morin4 1991;
Essas características do objeto científi- Kuhn5 1975).
co construído pela física clássica e estendi- A crise de paradigma surge quando se
das para os demais campos do saber, dão acumulam as fissuras, erosões e corrosões
origem à lógica conjuntista-identitária, isto no seu edifício teórico. Kuhn5 (1975) deno-
é, aquele sistema de lógica regido pelos mina de anomalias o surgimento de fenô-
princípios da identidade, da não –contra- menos que não podem ser adequadamen-
dição e do terceiro excluído, aplicáveis a te explicados no interior do paradigma do-
objetos-eventos discretos, identificáveis e minante. Almeida Filho6 (1994) acrescenta
isoláveis, capazes de serem incluídos/ex- os paradoxos, os limites e os pontos cegos
cluídos em agregados ou conjuntos classifi- entre as ocorrências que acabam por deter-
catórios (Castoriadis3 1987; Morin4 1991). minar a substituição do paradigma domi-
As teorias racionais são sistemas de idéi- nante.
as coerentes, cujos elementos estão articu- No caso da física clássica, a primeira
lados segundo preceitos lógicos formais, ruptura do paradigma da dinâmica ocorreu
cujos enunciados não admitem contradição com os estudos sobre o calor e a formula-
e são passíveis de verificação. O pensamen- ção das leis da termodinâmica que rompem
to racional só admite, como formas válidas com as idéias da reversibilidade, deter-
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A nova abordagem científica torna rela- organização e complexidade, como sistema
tivos os princípios básicos da lógica auto-organizado (Schramm e Castiel 13
conjuntista-identitária e passa a aceitar a 1992). A causalidade ou o determinismo
impossibilidade da existência de seres per- causal deve dar lugar a outras formas de
feitamente discretos e identificáveis no determinismo, além de abrir a possibilida-
mundo real, além de admitir as diversas fi- de para diferentes interpretações acerca do
guras da contradição: os paradoxos, as nexo causal (CORISCO16 1993).
antinomias, as aporias e os oxímoros, o que Há uma série de propostas de constru-
invalida o princípio do terceiro excluído ção do objeto - processo saúde-doença em
(Morin4 1991). coletividades humanas - em pleno uso nas
investigações epidemiológicas latino-ame-
A crise na epidemiologia ricanas. Podem ser citadas as proposições
de Breilh e col.18 (1990) e do grupo de pes-
A lógica epidemiológica é a aplicação quisadores do CEAS do Equador, consubs-
setorial da lógica conjuntista-identitária tanciadas no conceito de perfil epide-
que preside o conhecimento científico mo- miológico das classes sociais articulando os
derno. Os sinais de crise nesse campo de- momentos socioeconômicos da produção
moraram mais a surgir e a serem reconhe- -distribuição - consumo e os impactos de
cidos, tendo em vista que a epidemiologia tais processos na saúde. Laurell e Noriega19
apenas se constituiu como ciência no sécu- (1989) e os pesquisadores da UAM-
lo XIX. As transformações ocorridas no âm- Xochimilco adotam o conceito de nexo
bito da física, da química e da biologia, des- biopsíquico e processo de desgaste como
de o início do século, apenas agora se fa- expressão corporal da ação dos determi-
zem sentir no campo da saúde e da epide- nantes presentes na estrutura social.
miologia em particular. Samaja20 (1993) e Castellanos21 (1990) pro-
A emergência de novos problemas no põem o conceito de reprodução social
interior da disciplina e a construção de como o conceito central para construir o
modelos locais para explicá-los apontam objeto da investigação epidemiológica, bus-
para uma crise de complexificação do cam- cando a articulação entre condições de vida
po (Schramm e Castiel13 1992). e situação de saúde. Finalmente, Almeida
Dentre os problemas teóricos aponta- Filho6 (1994) sugere integrais saúde-doen-
dos pelos críticos destaca-se o empobreci- ça-cuidado como objetos privilegiados a
mento teórico da epidemiologia. A tendên- serem construídos na e pela pesquisa
cia presente desde meados deste século, de epidemiológica.
considerar-se o saber da epidemiologia A substituição da noção de causalidade,
como método aplicável a um conjunto in- nas diferentes vertentes da multicausa-
distinto de objetos, e a aplicação indiscri- lidade, pelo par determinação/mediação,
minada de procedimentos de formalização comportando uma grande variedade de for-
matemática têm contribuído para o esvazi- mas que vão desde a determinação causal
amento teórico da disciplina, culminando mecânica até a determinação histórica, pas-
com a definição de Miettinem14 (1985) da sando pelas determinações probabilísticas,
epidemiologia enquanto estudo das fun- também vem sendo paulatinamente obser-
ções de ocorrência (Vandenbrucke15 1990; vada nas pesquisas da área.
CORISCO16 1993; Barata e Barreto17 1996). No plano dos conceitos merece maior
Nesse processo de empobrecimento te- atenção a reconceituação de risco e popu-
órico duas questões adquirem relevância: lação. Na perspectiva cartesiana e
a questão da elaboração do objeto científi- reducionista da ciência clássica o conceito
co e a da causalidade. A elaboração do ob- população se refere a um conjunto de ele-
jeto tem que partir da concepção da reali- mentos individualizados que, por determi-
dade estruturada em diferentes níveis de nadas características comuns, podem ser
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os que se colocam para a epidemiologia no dades. Apenas as sociedades capitalistas
plano teórico recorro novamente a apresentam uma contradição flagrante en-
Prigogine e Stengers1 (1997): tre a afirmação da liberdade e da igualdade
“A ciência se afirma hoje como ciência no plano político- ideológico e as condições
humana, ciência feita por homens para ho- concretas de existência dos sujeitos, situa-
mens. ... A antiga aliança animista está mor- ção esta, frequentemente marcada pela ex-
ta. Está bem morto o mundo finalizado, es- clusão e desigualdade (Barata e col.25 1997).
tático e harmonioso que a revolução Segundo Merleau-Ponty26 (1984) a igual-
copernicana destruiu quando lançou a Ter- dade formal dos direitos e a liberdade polí-
ra nos espaços infinitos. Chegou o tempo tica dos cidadãos nas sociedades capitalis-
de assumir os riscos da aventura dos ho- tas mascaram as relações de força e domi-
mens: o saber científico pode descobrir-se nação predominantes na esfera da repro-
hoje simultaneamente como uma “escuta dução social. De acordo Cohn27 (1997), as
poética” da natureza e processo aberto de sociedades modernas são permanente-
produção e invenção, num mundo aberto, mente atravessadas pela contradição entre
produtivo e inventivo. Chegou o tempo de o princípio da emancipação, isto é, a busca
novas alianças formadas entre a história dos da igualdade e da integração social capa-
homens, de suas sociedades, de seus sabe- zes de permitir o afloramento de todas as
res e a aventura exploradora da natureza”. potencialidades humanas, e o princípio da
regulação que passa a gerir os processos de
Desigualdades sociais e desigualdade e exclusão através de formas
iniquidades em saúde compensatórias ou até mesmo de mecanis-
mos de marginalização crescentes.
O maior desafio que se coloca para a O indivíduo é uma criação social decor-
epidemiologia, enquanto ciência humana rente de uma produção social específica.
feita por homens e para homens, é a obri- Castoriadis3 (1987) afirma que esta criação
gação de tratar das questões relativas às de- implica sempre a forma abstrata e parcial
sigualdades sociais e às iniqüidades em saú- da igualdade capaz de conviver perfeita-
de que elas promovem. mente com as desigualdades concretas e
Em termos éticos a igualdade e a equidade substantivas, pois a idéia de igualdade so-
remetem à “relação entre os indivíduos, em cial é uma significação imaginária que en-
virtude da qual todos eles são portadores dos volve a instituição da sociedade enquanto
mesmos direitos fundamentais que provêm comunidade política. Comunidade na qual
da humanidade e definem a dignidade da a igualdade política frequentemente é en-
pessoa humana” (Ferreira24 1986). A eqüida- tendida como “cada cidadão um voto” nas
de e a igualdade pressupõem, portanto, mui- democracias representativas do ocidente.
to mais do que a simples anulação das dife- Este mascaramento ideológico obriga a
renças, implicando a possibilidade concreta precisar claramente o que se entende por
de que todos os indivíduos possam desenvol- desigualdade e em que medida ela remete
ver suas potencialidades humanas sem cons- a situações de iniqüidade em saúde. Evi-
trangimentos de ordem social. dentemente, nem toda diferença ou desi-
Na história da humanidade, todas as gualdade entre indivíduos corresponde a
formas de organização social foram mar- uma situação de iniqüidade ou injustiça. É
cadas, com maior ou menor intensidade, mais ou menos intuitivo que a igualdade
pelas posições desiguais que os sujeitos absoluta é inalcançável e até mesmo inde-
ocuparam na estrutura social. Sejam castas, sejável, na medida que significaria a anula-
classes ou estratos demográficos, todas as ção da própria individualidade. No limite,
formações sociais apresentaram grupos dis- não pode haver indivíduos sem que existam
tintos em sua estrutura e justificativas no diferenças que os constituam como tais
plano jurídico e político para tais desigual- (Goldbaum28 1997).
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O processo de reprodução social dos humanas antes do advento do século das
grupos humanos implica a reprodução de luzes. Entretanto, da mesma maneira que a
diferentes domínios da vida. No nível mais organização social capitalista tornou
elementar está a reprodução biológica do inviável a igualdade concreta entre os ho-
indivíduo que garante suas características mens na esfera da reprodução social, o pre-
como espécie biológica marcada principal- domínio da Razão, inicialmente, processo
mente pela interação entre genotipo e aberto de crítica e elucidação, transformou-
fenotipo, isto é, entre a herança genética e se com o passar do tempo em “computa-
a modulação das potencialidades herdadas ção mecânica e uniformizante”. A ativida-
pelas condições concretas de existência que de científica, por exemplo, tornou-se ativi-
irão resultar nas manifestações fenotípicas. dade tecnopragmática, manipuladora de
Como os homens vivem em comunidade, objetos, instrumentos, algoritmos e concei-
compartilhando um espaço e um tempo tos, contentando-se com que tudo funcio-
particulares, a reprodução social implica ne. A razão instrumental substituiu, em to-
também na reprodução de um segundo dos os domínios culturais e técnicos, a ra-
domínio: o das relações ecológicas dos gru- zão crítica, acabando por eclipsar o projeto
pos, ou seja, de suas relações com os ambi- de autonomia presente em sua origem.
entes, senso lato, em que tais comunidades O desencanto face ao fracasso dos mo-
se constituem. Estas comunidades parti- vimentos de transformação social que mar-
lham formas de consciência e de conduta caram os anos 60 e a subsequente retração
resultantes das interações intersubjetivas da ação política no conformismo caracte-
que também participam dos processos de rístico das últimas três décadas parecem ter
reprodução, configurando o terceiro domí- acentuado a aparente incapacidade de se
nio: o da cultura. Finalmente, os grupos so- constituir como indivíduo sem excluir o
ciais se reproduzem reproduzindo as for- outro, e ainda, a incapacidade de excluir o
mas econômicas que lhes garantem o do- outro sem desvalorizá-lo (Castoriadis 3
mínio sobre a natureza (Samaja31 1994). 1987).
Todos esses processos implicam impac- As relações humanas são esvaziadas de
tos sobre a saúde e a doença dos indivídu- sentido e o outro, principalmente se for di-
os, representando, cada um deles, um con- ferente quanto à classe social, ao gênero, à
junto de determinações e mediações cujo raça, às preferências políticas e às práticas
resultado final será a preservação da saúde religiosas, passa a ser visto e tratado como
ou a ocorrência da doença ou agravos à saú- alvo de menosprezo, discriminação e ódio.
de. As desigualdades nas condições de vida, Na melhor das hipóteses as desigualdades
decorrentes de diferenças substantivas nes- levam a um sentimento de irrelevância,
se processo de reprodução social, terão re- como se parte da humanidade pudesse sim-
flexos nas situações de saúde que serão en- plesmente ser “descartada”. A obsoles-
tão identificadas como iniqüidades. cência frenética de objetos materiais, con-
Por que considerar a questão da desi- ceitos, tecnologias, valores estéticos, atin-
gualdade social e das iniqüidades em saú- ge a própria humanidade, tornando parte
de como o desafio ético fundamental para significante dos seres humanos, incapaz de
a epidemiologia no princípio do novo mi- encontrar lugar na nova ordem mundial.
lênio? O agravamento das desigualdades, ao
A autonomia e a liberdade tornaram-se invés de fomentar a indignação e a busca
valores universais a partir da emergência de superação através de movimentos
das sociedades capitalistas ocidentais, emancipatórios baseados no aprofunda-
marcadas em seu nascimento pelo predo- mento dos laços solidários e de integração
mínio da Razão sobre todos os preconcei- social, dá lugar a comportamentos de dis-
tos, mitos e crenças que impediram o de- criminação e exclusão.
senvolvimento pleno das potencialidades A explosão da violência urbana na mai-
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sivas acerca dos perfis epidemiológicos for- campo da saúde pública para o campo
temente vinculados às constituições locais biomédico, não mais em uma relação de
ou condições de vida temporalmente data- complementaridade, mas antes, em uma
das e espacialmente localizadas, por abor- relação de franca subordinação.
dagens mais abstratas, relativas aos riscos A perda de hegemonia do discurso sa-
de ocorrência de doenças específicas em nitário nas últimas décadas e o afloramento
determinados grupos de indivíduos. da crise da saúde pública podem ser vistas
Certamente, mesmo nos primórdios dos como a resultante de um processo comple-
estudos epidemiológicos, existiam investi- xo no qual se entrelaçam as limitações
gações voltadas para o conhecimento e o conceituais, metodológicas e técnicas, face
controle de doenças específicas; entretan- aos novos problemas de saúde postos pela
to, tais estudos eram minoritários por com- realidade, o empobrecimento teórico da
paração com aqueles que se voltavam para epidemiologia, na medida que abandonou
as relações entre as condições de vida e a o caráter coletivo e populacional de seu
situação de saúde das populações. Com o objeto e a ineficiência prática que daí se
decorrer do tempo essa relação foi se inver- deriva, as transformações políticas com a
tendo, resultando em abandono progressi- derrota dos movimentos emancipatórios e
vo dos estudos de situação de saúde. o predomínio de um individualismo estéril
Ayres34 (1997) aponta a existência de três e consumista (Castellanos291997).
vertentes na epidemiologia norteamericana O predomínio da lógica de mercado em
surgidas no século passado e que se manti- todas as esferas da vida faz da acumulação
veram relativamente presentes até a déca- e do consumo os bens supremos a que os
da de trinta: uma vertente ambientalista, indivíduos devem aspirar. Esta lógica,
uma vertente socio-política e uma vertente quando aplicada à política de saúde e à or-
biomédica. Progressivamente, todas vão ganização de serviços, se traduz no predo-
cedendo espaço ao que constituiria o mo- mínio da ótica administrativa de adequa-
vimento preventivista do pós-guerra que ção dos fins aos meios, ignorando as neces-
implicaria na substituição das preocupa- sidades sociais de saúde, pautando-se mais
ções populacionais por abordagens indivi- pelos ditames econômicos do que pela bus-
duais. ca de superação dos problemas e pela di-
A inflexão observada na produção de minuição do sofrimento humano (Barata e
conhecimentos e nas ações práticas, após Barreto17 1996).
a Segunda Guerra, foi acompanhada de ra- Entretanto, o discurso do risco também
refação teórica, circunscrição aos proble- não demonstra sua eficácia no plano
mas do método, formalização discursiva, “práxico”, dadas as dificuldades que apre-
adoção da doença como elemento nuclear senta. As limitações que a própria teoria das
e do conceito de risco como ferramenta pri- probabilidades tem no sentido de permitir
vilegiada (Ayres34 1997). A epidemiologia o trânsito entre a construção da probabili-
será cada vez mais tratada como um méto- dade no âmbito do coletivo, ainda que to-
do aplicável a determinada classe de fenô- mado como conjunto ou classe de elemen-
menos suscetíveis de tratamento matemá- tos, e sua aplicação a cada um dos indiví-
tico probabilístico. duos que o compõem; o caráter fragmen-
A adoção da doença como elemento tário dos resultados de inúmeras associa-
nuclear necessário para a construção quan- ções testadas fora de um marco explicativo
titativa do conceito de risco torna a que permita articulá-las com coerência, a
epidemiologia, num certo sentido, depen- estrita validade externa dos ensaios clínicos,
dente do campo biomédico, na medida em são algumas dessas insuficiências.
que será nesse campo que a noção de do- No plano prático da vida cotidiana o dis-
ença será construída. Desta forma, fica fa- curso do risco tem se mostrado incapaz de
vorecido o deslocamento da disciplina do elaborar propostas coerentes de promoção
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rações em suas condições de vida, encon- Finalmente, os epidemiologistas devem
tra-se inevitavelmente ligada à saúde cole- ser capazes de avaliar o impacto que tais
tiva. intervenções tenham sobre a situação de
A racionalidade epidemiológica pode saúde das populações, tendo em vista a re-
ser associada à racionalidade administrati- dução das desigualdades e a promoção da
va, reorientando a organização de serviços saúde, articulando-se com portadores de
no sentido de buscar a satisfação das ne- outros saberes e enfoques na construção de
cessidades de saúde dos grupos popula- uma abordagem transdiciplinar e
cionais. Os epidemiologistas têm contribui- intersetorial.
ções a dar a cada uma das etapas do pro- De acordo com Castellanos29 (1997):
cesso de elaboração das políticas de saúde “Não resta dúvida de que todos os de-
e de planejamento dos serviços. senvolvimentos conceituais e metodo-
Assim concebida, a prática epidemio- lógicos hoje disponíveis têm contribuído
lógica pode fornecer elementos fundamen- para converter o campo da análise da situ-
tais para a definição de políticas de saúde ação de saúde e das condições de vida em
que vão desde as técnicas de apreensão das um campo intelectualmente desafiador,
necessidades que compõem o diagnóstico assim como a epidemiologia em uma ciên-
de saúde, até as técnicas de estabelecimen- cia que se incorpore progressivamente ao
tos de prioridades. Nesse processo ela deve campo das ciências contemporâneas mais
ser capaz de possibilitar a articulação das produtivas, retomando suas raízes como
necessidades dos indivíduos às necessida- disciplina básica da saúde pública e seus
des sociais dos grupos, sem que a compromissos permanentes com os esfor-
subsunção do individual ao coletivo repre- ços de redução das iniqüidades sociais em
sente a anulação das subjetividades nem saúde, superando gradualmente o maras-
tão pouco o predomínio dos individualis- mo predominante nas ciências denomina-
mos. das modernas”.
Além da formulação de políticas os Desta maneira será possível realizar, no
epidemiologistas podem contribuir para a campo da epidemiologia, a nova aliança
elaboração de modelos tecnológicos de in- proposta por Prigogine e Stengers1 reinscre-
tervenção que configurem estratégias de vendo a prática científica na tradição da
atuação voltadas para a alteração das estru- cultura humanista que ela abandonou ao se
turas de determinantes que se encontram despreender do pensamento filosófico du-
na base da produção dos perfis epide- rante o renascimento, refazendo os com-
miológicos dos distintos grupos sociais, ar- promissos da velha Medicina Social surgida
ticulando os conhecimentos teóricos aos no seio do romantismo e concretizando os
instrumentos técnicos, de maneira que haja ideais da Saúde Coletiva, derradeira tenta-
equilíbrio entre a intervenção massiva e tiva de superar a alienação e a apatia dos
indiscriminada das práticas de saúde públi- homens, devolvendo-lhes um projeto
ca e a autonomia e conscientização dos su- emancipatório utópico pelo qual vale a
jeitos acerca de seus problemas e de suas pena lutar.
soluções.
Referências
2. Morin E. O método I. A natureza da natureza. Lisboa: 4. Morin E. O método IV. As idéias. Lisboa: Editora
Editora Publicações Europa – América; 1977. Publicações Europa – América; 1991.
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