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Resumo

Papel da epidemiologia no
desenvolvimento do Sistema O autor apresenta a sua interpretação sobre
a história recente da epidemiologia no Brasil
Único de Saúde no Brasil: e sobre o papel desta disciplina e dos seus
praticantes no desenvolvimento do Sistema
histórico, fundamentos e Único de Saúde (SUS). Os avanços da
perspectivas* epidemiologia no país, tanto na sua vertente
acadêmica como na sua vertente aplicada
aos serviços de saúde, são notórios e são
várias as evidências deste intenso desenvol-
The Role of Epidemiology in the vimento. Um marco neste processo foi a I
Reunião Nacional de Ensino e Pesquisa em
Development of the National Health Epidemiologia, realizada em 1984, quando
foi criada a Comissão de Epidemiologia da
System in Brazil: Background, ABRASCO e foram estabelecidos os funda-
Foundation and Prospects mentos não somente dos compromissos
acadêmicos dos epidemiologistas, mas tam-
bém dos compromissos com as transforma-
ções tão necessárias no nosso sistema de saú-
de. Após quase três décadas, podemos dizer
que vem se forjando no Brasil uma epide-
miologia, por um lado profundamente arti-
culada com a evolução da disciplina no pla-
no internacional, como deve acontecer com
qualquer disciplina que persegue a sua ma-
turidade científica e, por outro, com os pés
fincados na realidade, dela procurando ex-
trair elementos que contribuam para ame-
nizar os problemas de saúde da sociedade.

Palavras-chave: Epidemiologia. História.


Sistema Único de Saúde. Brasil.

Mauricio L. Barreto
Professor Titular em Epidemiologia
Instituto de Saúde Coletiva
Universidade Federal da Bahia
Rua Padre Feijó, 29 - 4º andar do Hospital Pediátrico
40110-170 - Canela, Salvador - BA, Brasil
mauricio@ufba.br

* Apresentado como Conferência de Abertura no V Congresso Brasileiro de Epidemiologia.


Curitiba, PR, Brasil. 23-27 de março de 2002.

Rev. Bras. Epidemiol.


Vol. 5, supl. 1, 2002
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Abstract Introdução

The author presents his interpretation of the Falar em saúde no Brasil é falar no Siste-
recent history of epidemiology in Brazil as ma Único de Saúde (SUS), seja como reali-
well as the role of epidemiology and epide- dade, seja como utopia, com seus princípios
miologists in the development of the National de eqüidade, descentralização e integrali-
Health System (SUS). The advances of both dade. Antes de tudo, o SUS é a impressão, no
academic epidemiology and epidemiology nosso sistema constitucional e legal, de uma
applied to health services in our country are compreensão da saúde forjada em concei-
notorious, and several signs of these improve- tos que, em longo processo, fomos consoli-
ments are presented. A landmark in this his- dando na saúde coletiva e na epidemiologia.
torical process was the 1st. National Meeting Somente para relembrar, citarei o artigo 196
on Teaching and Research in Epidemiology da nossa Constituição Federal: “A saúde é
held in 1984. At this meeting the foundations direito de todos e dever do Estado, garanti-
of the academic development of Brazilian do mediante políticas sociais e econômicas
epidemiology were settled, as was the en- que visam a redução do risco de doença e de
gagement of Brazilian epidemiologists in the outros agravos e ao acesso universal e igua-
struggle for changes in the national health litário às ações e serviços para sua promo-
system. After approximately three decades, ção, proteção e recuperação”. É importante
it is possible to say that, at the international também relembrar que uma das leis básicas
level, there is in Brazil an epidemiology que regula este princípio constitucional, a
deeply engaged with its development as a Lei 8.080 de 1990, em seu Artigo 3o., define
subject—as any subject pursuing scientific que: “A saúde tem como fatores determi-
maturity should be. At the same time, it is nantes e condicionantes, entre outros, a ali-
engaged with reality, from where it seeks to mentação, a moradia, o saneamento básico,
extract the elements that contribute to lessen o meio ambiente, o trabalho, a renda, a edu-
the health problems that affect brazilian so- cação, o transporte, o lazer e o acesso aos
ciety. bens e serviços essenciais; os níveis de saúde
expressam a organização social e econômi-
Keywords: Epidemiology. History. National ca do país”. Podemos, sem sombra de dúvi-
Health System. Brazil. da, dizer que os princípios legais com que
contamos no tocante à saúde são extrema-
mente progressistas. O eixo destes princípi-
os se encontra na indissociabilidade entre a
saúde dos indivíduos e das populações e na
inserção da saúde na organização da socie-
dade. Acreditamos todos que a imple-
mentação plena de tais princípios constitu-
cionais e legais propiciará um sistema de saú-
de fundado nos conceitos mais avançados
da promoção da saúde. Gostaria, pois, de
trazer para discussão algumas reflexões so-
bre o papel da epidemiologia e dos epidemio-
logistas para continuarmos no caminho desta
utopia compartilhada com a sociedade bra-
sileira.
A epidemiologia no Brasil tem uma his-
tória rica e recente, ainda em consolidação,
porém nestas últimas duas ou três décadas a
velocidade dos acontecimentos com relação

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à consolidação da disciplina em nosso país é em tese apoiado por todos, está a exigir mai-
monumental. Nem de longe é meu objetivo ores discussões de certos aspectos envolvi-
tentar aqui apresentar uma historiografia da dos nesta mudança, o que certamente será
epidemiologia brasileira, mas como ativo feito.
participante deste período efervescente não É neste rico momento do desenvolvi-
me furtarei a fazer minhas próprias inter- mento recente da epidemiologia no país que
pretações e comentários. tentarei me concentrar, enfatizando a sua
O impressionante desenvolvimento da dupla face: por um lado, como disciplina ci-
epidemiologia no país em período recente entífica, afeita a produzir conhecimento, em
pode ser observado tanto no vertiginoso cres- constante ebulição na reafirmação das suas
cimento da sua produção acadêmica, como bases conceituais e no refinamento dos seus
na sua crescente utilização nos serviços de métodos; por outro lado, como praxis, e
saúde. Este V Congresso e os que o antece- portanto com compromissos firmes no sen-
deram são as provas mais evidentes da ri- tido de contribuir para a transformação das
queza deste processo. condições de saúde da população.
No campo da pesquisa, existem vários Esta dupla inserção está bem explicitada
sinais. Análises e interpretações das bases de em algumas definições clássicas da discipli-
dados do Diretório de Pesquisa do CNPq, na, como aquela referida por Last2: “o estu-
trazem importantes informações1. Em 2000, do da distribuição e determinantes de esta-
havia 176 grupos de pesquisa no país com dos e eventos relacionados à saúde em po-
pelo menos uma das suas linhas de pesquisa pulações definidas, e a aplicação deste co-
situada no campo da epidemiologia. Isto nhecimento para a resolução dos problemas
totalizava 320 linhas, envolvendo 813 pes- de saúde”.
quisadores, dos quais 422 eram doutores. Deste modo, ficam definidos dois espa-
Portanto, não há dúvida de que já constituí- ços interdependentes e nem sempre clara-
mos uma comunidade científica de porte mente delimitados: o do conhecimento e o
respeitável e com grau razoável de maturi- da ação. Temos uma epidemiologia simulta-
dade, que se expressa em uma produção ci- neamente como disciplina científica (que
entífica crescente em quantidade e em qua- estuda a saúde, a doença e os seus determi-
lidade. nantes) e como campo profissional da saú-
No âmbito dos serviços, este crescimen- de coletiva (que produz e analisa informa-
to se repete. A criação do Centro Nacional ções, desenvolve tecnologias e estratégias de
de Epidemiologia-CENEPI, em 1990, foi uma prevenção). No primeiro espaço, elaboram-
aspiração dos epidemiologistas brasileiros. se teorias, desenham-se estudos, dados são
Com a criação do CENEPI, à exceção de al- coletados e analisados, produzem-se conhe-
guns momentos, a interlocução entre cimentos. No segundo espaço, a partir do
epidemiologistas da academia e epidemiolo- anterior, produzem-se informações e
gistas dos serviços foi intensificada, o que redefinem-se os conhecimentos, delineiam-
tornou ainda mais tênues as diferenças exis- se estratégias, concretizam-se ações. No pri-
tentes entre estes dois mundos. O CENEPI meiro, os erros são de ordem teórica e
teve um papel relevante no incentivo ao uso metodológica e a sua correção faz parte do
dos recursos epidemiológicos nos diversos processo normal da ciência. No segundo, os
níveis do SUS. Contamos hoje, no Brasil, com erros significam vidas, doenças, sofrimen-
milhares de profissionais com treinamento tos, ou ainda custos sociais, econômicos ou
em epidemiologia atuando no nosso siste- políticos. Como já havia dito em outra opor-
ma de saúde. Inclui-se aí grande grupo de tunidade3: “Na sua tensão entre disciplina
mestres e mesmo diversos doutores. Atual- científica e campo profissional, a epidemio-
mente, o CENEPI encontra-se em processo logia traz à tona, para os seus praticantes,
de mudança da sua roupagem institucional, independentemente de onde estejam situa-
processo este que, apesar de necessário e dos, os desafios da dialética entre o sonhar e

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o fazer, entre a utopia e a realidade, entre a torno principalmente de alguns núcleos de
técnica e a política”. pós-graduação que se formaram no início
Harmonizar interesses, tensões, motiva- da década de 1970.
ções e estratégias destes dois pólos, em nos- Vivia-se sob a forte influência dos traba-
so país, tem sido uma tarefa que, com extre- lhos de epidemiologia social iniciados pelo
ma paciência, sabedoria, habilidade, lideran- grupo de Xochimilco, liderado por Asa
ça, autoridade e discrição vem sendo Cristina Laurell, e das idéias de Juan César
conduzida há duas décadas pela Comissão Garcia. Marcam aquela época o grande in-
de Epidemiologia da ABRASCO, sem nenhu- teresse pelos estudos sobre classe social e
ma dúvida a grande tecelã deste tecido com- saúde6; e uma forte influência da geografia
plexo que é a epidemiologia no Brasil. crítica, trazida por Milton Santos e aplicada
principalmente aos estudos das endemias,
Um breve histórico sob a inspiração destacada de José da Rocha
Carvalheiro7. Chamo a atenção ainda para
Como dissemos anteriormente, em ter- as preocupações com a compreensão da
mos históricos, a epidemiologia brasileira é causalidade, onde destaco as preciosas e ori-
um fenômeno relativamente recente. Isto ginais reflexões de Sergio Arouca8 e Guilher-
significa que, entre nós, temos uma discipli- me Rodrigues da Silva9.
na jovem, porém que caminha a passos rá- A I Reunião Nacional sobre Ensino e Pes-
pidos para a sua maturidade. quisa na Epidemiologia, realizada em setem-
Entendendo as deficiências que qualquer bro de 1984, em Friburgo, foi sem dúvida o
esforço de periodização sempre impõe, no marco de um novo ciclo. Naquele momen-
entanto, como esforço para compreender o to, etapa final da ditadura militar, as rela-
desenvolvimento da epidemiologia no Bra- ções entre a comunidade acadêmica e de
sil, concebo a existência de três etapas na serviços eram limitadas. A comunidade ci-
sua história: uma primeira, que se estende entífica ainda era exígua e concentrava-se
até 1984; a segunda, que abrange o período no eixo Rio-São Paulo, com alguns poucos
de 1984 a 1994; e a terceira, de 1994 até os núcleos em outras regiões. O relatório final
dias atuais. Dois marcos fundamentais ser- daquela reunião4 destacava o interesse dos
vem de limites para tais etapas: a I Reunião participantes pelas questões relacionadas ao
Nacional sobre Ensino e Pesquisa na Epide- sistema de saúde, registrando por exemplo
miologia, realizada em Setembro de 1984, que “A introdução de uma nova visão do
em Nova Friburgo4; e o encontro realizado social nas concepções e métodos da epide-
em Olinda em abril de 1994, denominado miologia e sua aplicação no planejamento
“Rumos da Epidemiologia Brasileira: reunião de serviços de saúde foram dois tópicos que
nacional de avaliação e perspectivas”5, tam- mereceram especial atenção dos participan-
bém apelidado de “Dez anos de Friburgo”. tes”. Naquela histórica reunião, foram dis-
cutidos e aprovados a constituição e os ob-
1a Etapa. Há muitas décadas, pioneiros jetivos da Comissão de Epidemiologia da
nos serviços de saúde usavam raciocínios e ABRASCO. Sob a liderança desta Comissão,
técnicas epidemiológicas para o controle de estava preparado o cenário para a próxima
doenças, e nossos tropicalistas utilizavam- etapa, já no novo contexto da redemocra-
se de técnicas de estudos populacionais nas tização que aconteceria no ano seguinte.
suas pesquisas sobre as endemias prevalentes
no país. Nesta época de dengue, podemos 2ª Etapa. Na periodização que proponho,
relembrar Oswaldo Cruz atuando já na pri- a segunda etapa da história da epidemiologia
meiras décadas do século passado. Contu- no Brasil vai de 1984 a 1994. Entendendo que
do, tomarei aqui, como ponto de partida, o a redemocratização abria largas perspecti-
início da consolidação dos grupos da saúde vas de redefinição do sistema de saúde, os
coletiva, incluindo os epidemiologistas, em epidemiologistas participam ativamente des-

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ta fase. Em maio de 1986, ocorre em Fora desse eixo, apenas o programa da Bahia.
Itaparica, na Bahia, o Seminário sobre Pers- Entre 1984 e 1994 foram criados nove novos
pectivas da Epidemiologia Frente à Reorga- Programas de Pós-graduação em Saúde Co-
nização do Serviços de Saúde, em cujo rela- letiva, sendo seis deles em Estados fora do
tório final10 encontra-se: “Na conjuntura eixo Rio/São Paulo, em um claro processo
político-social que o Brasil atravessa, depois de dispersão geográfica, característica im-
de décadas de governos autoritários e quan- portante da área da saúde coletiva com rela-
do se coloca em discussão toda a estrutura ção a outros campos do conhecimento, que
do sistema de saúde, na procura de um sis- mantiveram o padrão de concentração. Ape-
tema unificado e mais efetivo, é indispensá- nas dois destes Programas são específicos
vel rediscutir a capacitação dos epidemio- em epidemiologia (Pelotas e UNIFESP), mas
logistas e sua contribuição para a melhoria todos, sem exceção, incluem núcleos impor-
das condições de saúde da população”. Mos- tantes de epidemiologistas.
tra-se ali a grande preocupação dos epide- Ocorre a formação intensiva de epide-
miologistas com as reformas que se projeta- miologistas no exterior e nos programas na-
vam na reorganização de saúde no país e cionais. Formam-se pelo menos 84 douto-
que, na VIII Conferência Nacional de Saúde, res no exterior e cerca de 250 no Brasil, que
realizada neste mesmo ano, gerariam o SUS. hoje se dedicam à pesquisa epidemiológica.
Já sob a égide da nova constituição, rea- Em 1990 tem lugar o 1º Congresso de
liza-se também em Itaparica, em maio de Epidemiologia em Campinas, seguido do 2o
1989, o Seminário “Estratégias para o De- Congresso em Belo Horizonte, dois anos
senvolvimento da Epidemiologia no Brasil”11, depois. E não é sem surpresa que se observa
onde é formulado o I Plano Diretor para o um imenso crescimento, não somente no
Desenvolvimento da Epidemiologia no Bra- número de participantes, mas também de
sil. Na sua apresentação, o então coordena- trabalhos submetidos para apresentação.
dor da Comissão de Epidemiologia, Profes- Uma significativa proporção dos trabalhos
sor Sebastião Loureiro, um dos nossos pio- tem sido proveniente dos serviços de saúde.
neiros, com a clarividência que o caracteri- Também em 1990 é organizado o Centro
za, já nos dizia que: “A maior concentração Nacional de Epidemiologia (CENEPI). Den-
de renda de uma política econômica neoli- tro do CENEPI, é criado o Informe Epide-
beral em um país capitalista periférico pro- miológico do SUS, experiência pioneira de
vavelmente agravará as condições de uma revista destinada a comunicar resulta-
saúde de importantes segmentos da nossa dos de pesquisas e outros conhecimentos
população. Este momento, onde se entre- para aqueles que estão efetivamente envol-
cruzam no campo político projetos diversos vidos no Sistema de Saúde.
e diferenciados para a sociedade brasileira e A 3a. etapa tem início em Olinda em 1994.
para o papel do Estado na garantia do direi- O II Plano Diretor para o Desenvolvimento
to à saúde, poderá ser o momento estratégi- da Epidemiologia, lançado em 19955, mas
co que possibilitará a incorporação da consolidado naquela reunião, assinalava: “O
epidemiologia como eixo fundamental para processo de consolidação do Sistema Único
a prática da saúde coletiva”. Naquele docu- de Saúde (SUS) está levando a uma transfor-
mento esboçava-se o primeiro pacto políti- mação do papel da epidemiologia nos servi-
co formal para o desenvolvimento da ços com possibilidade de alterações signifi-
epidemiologia no país, envolvendo institui- cativas nas práticas epidemiológicas. A atu-
ções acadêmicas e de fomento científico e ação setorizada e particularizada da Epide-
os serviços de saúde em propósitos comum. miologia, manifestada na abordagem da Vi-
Até 1984 existiam sete programas de Pós- gilância Epidemiológica de algumas enfer-
graduação em Saúde Coletiva, criados em midades transmissíveis, contrapõe-se hoje a
sua maioria na 1a metade da década de 1970, um enfoque mais globalizante, sendo a lógi-
seis deles no Rio de Janeiro ou São Paulo. ca epidemiológica de definição de perfis de

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saúde-doença na população utilizada como demias, quer nos serviços de saúde? Quais
parâmetro em documentos oficiais para o as especificidades da epidemiologia no Bra-
processo de gestão do SUS. Paralelamente a sil e em que bases está cimentado o seu pro-
isto, a consolidação do CENEPI como órgão cesso de crescimento e desenvolvimento?.
de nível central, coordenador das ações de A dupla face de ciência e prática, já ante-
epidemiologia no Sistema Nacional de Saú- riormente comentada, cria também dois ti-
de do País, entre outras repercussões, tem pos de perspectivas: uma perspectiva cientí-
provocado maior presença da epidemiologia fica, que por natureza é universal, difusa e
nos níveis estadual e municipal, explicitando abstrata, e uma perspectiva de praxis, por-
um compromisso efetivo com a descen- tanto local, focal e concreta. O estabelecimen-
tralização das ações”. to de relações dialéticas consistentes entre a
Em 1995, em Salvador, são realizados os atividade científica e a praxis se dá em con-
Congressos conjuntos (III Brasileiro, II Ibero- textos concretos. Acredito que deste encon-
Americano e I Latino-Americano) de Epide- tro, e às vezes deste confronto, seja possível
miologia. O evento é caracterizado como o extrair especificidades da epidemiologia em
primeiro grande encontro de epidemio- qualquer local do mundo em que esteja sen-
logistas de caráter internacional realizado no do praticada, inclusive no Brasil.
Brasil. Contando com quase 3000 participan- Fiz um esforço para identificar alguns
tes, 500 dos quais colegas de 23 diferentes aspectos que a caracterizam entre nós. Sem
países. Seguindo a tradição dos congressos querer ser exaustivo, identifico pelo menos
anteriores, temas acadêmicos e questões de oito peculiaridades do desenvolvimento da
serviços foram indistintamente debatidos. epidemiologia em nosso país:
Estamos, pois, vivendo um período de • No Brasil, a epidemiologia se desenvol-
consolidação de núcleos acadêmicos da veu, e sempre se auto-afirmou, como
epidemiologia e seu intenso e sustentado parte de um movimento maior, que é o
crescimento nos serviços de saúde. Em 1997 da saúde coletiva3. Ao adotar a saúde
é criada a Revista Brasileira de Epidemio- coletiva como referência, amplia o seu
logia, veículo para nossa comunicação cien- sentido social e político e o faz compar-
tífica que, apesar das dificuldades, vem com tilhar das utopias e dos princípios de
esforços se consolidando. Em 1998 aconte- humanismo, justiça social e ética que têm
ce o IV Congresso Brasileiro no Rio de Janei- guiado a saúde pública através dos tem-
ro, e hoje estamos aqui neste V Congresso, pos. Articula a sua racionalidade e obje-
que, como os anteriores, servirá de palco tividade científica com toda a complexa
para discussões consistentes sobre os mais realidade sanitária do nosso país, e assim
diversos temas da disciplina, e ao mesmo é pressionada a concentrar seus esfor-
tempo é intenso, participativo, recheado de ços em temáticas prioritárias no que diz
esperanças, vibrante e festivo – tal é a respeito à saúde da população e a ampli-
epidemiologia no Brasil. ar seus compromissos pela busca de so-
luções. Não é por acaso que sempre fo-
As bases da epidemiologia no ram minoritários em nosso meio todos
Brasil os movimentos que tentaram reduzir a
epidemiologia a mero conjunto de mé-
Minhas reflexões neste ponto situam-se todos e técnicas. Do mesmo modo, até o
em torno dos fundamentos para o desen- momento, propostas de organização de
volvimento da epidemiologia em nosso país. epidemiologistas fora da ABRASCO não
Para isto, eu perguntaria: Que motivações obtiveram maior ressonância.
têm guiado o trabalho desta massa imensa • No Brasil, a epidemiologia tem sido
de pesquisadores e profissionais, que ao construída com uma clara consciência
mesmo tempo a praticam e a reconstroem de que seu papel histórico inclui o com-
no dia-a-dia de suas atividades, quer nas aca- promisso com a transformação das con-

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dições de saúde da população. Isto im- • No Brasil, a epidemiologia tem utilizado
plica a construção de um sistema de saú- e reconstruído com senso crítico algu-
de que compreende o processo saúde- mas idéias contidas na teoria original da
doença-cuidado como parte da organi- transição epidemiológica. Esta suposta
zação social. Já em 1986, ao renascer da teoria foi derivada da idéia conservado-
democracia, no Seminário sobre Pers- ra de etapas inexoráveis do desenvolvi-
pectivas da Epidemiologia Frente à Re- mento social e econômico dos países
organização dos Serviços de Saúde10, es- periféricos, os quais reproduziriam as
tas preocupações estavam presentes. O etapas de transformação vividas pelos
relatório final daquele evento refere que: países desenvolvidos. No campo da saú-
“Na nova conjuntura político-social que de, acreditava-se que a modernização
o Brasil atravessa, depois de décadas de implicava etapas lineares e precisas que
governos autoritários e quando se colo- nos levariam a um mundo, num primei-
ca em discussão toda a estrutura do Sis- ro momento, livre das doenças infeccio-
tema de Saúde, na procura de um siste- sas e, mais tarde, talvez até livre das do-
ma unificado e mais efetivo, é indispen- enças em geral. Os países periféricos ape-
sável rediscutir a capacitação dos seus nas seguiriam os países centrais nestas
epidemiologistas e sua contribuição para etapas supostamente pétreas e inexo-
a melhoria das condições de saúde”. Esta ráveis. Conectar suas críticas com os de-
tomada de consciência faz com que os bates ocorridos no campo das ciências
epidemiologistas, junto com todas as de- sociais e da economia, que desnudavam
mais categorias de sanitaristas brasilei- as relações de dependência e exploração
ros, estejam no front das lutas que leva- estabelecidas entre países centrais e pe-
ram à implantação do Sistema Único de riféricos, permitiu a alguns epidemio-
Saúde, com todos os compromissos daí logistas denunciar os efeitos negativos
decorrentes. desta crença em princípios lineares e
• No Brasil, a epidemiologia tem se desen- etnocêntricos contidos na teoria da tran-
volvido sob forte influência das concep- sição e prever os efeitos danosos da
ções de determinação social das doen- globalização e das políticas neoliberais
ças, originárias das profícuas tradições na América Latina. Permitiu antever que
da pesquisa médico-social européia do o quadro das condições de saúde, que já
século XIX e que, na América Latina, ti- apresentava progresso em algumas áre-
veram intenso desenvolvimento a partir as, em muitas outras se agravaria, como
da década de 1970, evidentemente atua- no caso da ressurgência das doenças in-
lizado à época e ao contexto12. Em conti- fecciosas13 e no aumento da violência14.
nente então assolado por ditaduras cru- • No Brasil, a epidemiologia tem recebido
éis, por imensas desigualdades sociais, e forte influência das melhores tradições
pela miséria em que vivia – e vive – gran- metodológicas da epidemiologia pratica-
de parte da sua população, a epidemio- da em centros acadêmicos dos países
logia foi – e tem sido – um importante centrais. Vários de nós temos tido a
meio para desnudar a iníqua situação de oportunidade de fazer nossas formações
saúde ainda prevalente. Mas, antes de ou de interagir com centros acadêmicos
tudo, a epidemiologia tem assumido, em e científicos da melhor tradição da Eu-
nosso contexto, o papel de reconstrutora ropa e dos EUA. Apenas um dado basta
dos elos perdidos no que diz respeito ao para mostrar a importância deste fluxo:
papel da forma de organização da socie- nas décadas de 1980 e 1990, como já vi-
dade na determinação das doenças. Isto mos formaram-se na Europa ou nos EUA
que a epidemiologia internacional, na sua pelo menos 84 doutores, que hoje atuam
vertente dita “moderna”, não nos ajuda no país em grupos de pesquisa epidemio-
a encontrar. lógica, muitos deles em posição de lide-

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rança1. Atualmente, estudos de desenhos epidemiologia praticada no Brasil. Após
e análises complexas, envolvendo o que compreender o quão complexo e multi-
de mais atual existe em termos de recur- facetado é o seu objeto, a epidemiologia
sos metodológicos da investigação lentamente parte para reconstruir seus
epidemiológica, estão em curso no país. paradigmas e métodos, esforço que cer-
Se mais não acontece, deve-se antes aos tamente ultrapassará os limites de suas
limites dos financiamentos do que à ca- atuais fronteiras disciplinares e se alimen-
pacidade para executá-los. tará deste exercício transdiciplinar;
• No Brasil, a epidemiologia tem tido a • Por fim, queria chamar a atenção para
possibilidade de gerar no seio da comu- um aspecto que, apesar do seu caráter
nidade um conjunto muito especial de subjetivo, a meu ver não pode ser subes-
indivíduos, híbridos de epidemiólogos- timado. Algo que vai além dos aparentes
epistemólogos, que têm contribuído com racionalismo e objetividade de uma dis-
importantes reflexões sobre a epide- ciplina científica. No Brasil, seja nos ser-
miologia enquanto disciplina científica e viços ou nas academias, há entre os
sobre as relações que esta estabeleceu epidemiologistas um sentido de missão
com outras ciências e campos de prática e de compromisso que gera um claro
em nosso contexto15-17. Isto vem ampli- sentimento de premência para superar
ficando a nossa capacidade de entender ciclos históricos e etapas ainda não
não somente o sentido histórico da nos- vencidas do nosso processo de desen-
sa disciplina, mas também dos nossos volvimento social e sanitário. Entretan-
papéis como atores sociais na sua cons- to, isto também vai além de um engaja-
trução. mento político. Eu diria que se trata da
• No Brasil, a epidemiologia vem constru- expressão de um sentimento mais pro-
indo concepções e uma prática radical fundo – uma paixão que nos tem pro-
de transdiciplinaridade que, levada às úl- porcionado reservas de energia para
timas conseqüências, tem permitido a manter e expandir os nossos compro-
confluência e o diálogo entre a epide- missos, apesar das adversidades enfren-
miologia e diversos outros campos dis- tadas nas instituições acadêmicas e de
ciplinares18. Esta prática, executada de saúde do nosso país. Em épocas atuais,
forma competente e partilhada, contri- pelo menos para alguns, talvez isto pos-
bui com diversas outras disciplinas para sa parecer estranho, mas não entra em
a articulação de objetivos e métodos, na conflito com as tradições históricas da
busca do entendimento de fenômenos epidemiologia. Basta lembrar que ela
da saúde e da doença em toda a sua com- nasceu do enfrentamento de problemas
plexidade, e em consonância com as per- concretos de saúde, e nós, epidemio-
plexidades que atingem todos aqueles logistas, aceitamos, antes de tudo, o de-
que fazem ciência nos dias atuais. Assim, safio de superá-los.
os epidemiologistas brasileiros têm aber-
to amplas áreas de contato, efetivamen- Em resumo, podemos dizer que se forja
te transdisciplinares, que vão além dos no Brasil uma epidemiologia por um lado
parceiros tradicionais – como os estatís- profundamente antenada com a evolução
ticos e clínicos – para incluir novos par- da disciplina no plano internacional, como
ceiros não menos importantes: sociólo- deve acontecer com qualquer disciplina ci-
gos, antropólogos, economistas, geógra- entífica que persegue a sua maturidade e,
fos, filósofos, bio-engenheiros, toxicolo- por outro, com os pés fincados na realidade,
gistas, biólogos moleculares, matemáti- dela procurando extrair elementos que con-
cos, entre outros. Este processo, que está tribuam para amenizar os problemas de saú-
apenas se iniciando, com certeza terá de da sociedade. Ao se voltar para o proces-
fortes conseqüências no futuro da so de produção do conhecimento e de refi-

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namentos dos seus conceitos, modelos e as perspectivas da epidemiologia no Brasil.
métodos, tem que dialogar com outros cam- O Plano apresenta nítidos desenvolvimen-
pos disciplinares capazes de contribuir para tos em relação aos anteriores. No compo-
que isto aconteça. Ao se deter no conheci- nente da pesquisa, três eixos são destaca-
mento e na transformação de uma realida- dos: a desigualdade em saúde, as questões
de concreta de saúde, tem que desenvolver do ambiente e da qualidade de vida e a ava-
uma praxis que a envolva em uma dada rea- liação do impacto das tecnologias nos níveis
lidade social e sanitária, um processo que é de saúde. No componente de serviços são
antes de tudo político. O refinamento dos destacados: sistemas de informação de in-
paradigmas deste modelo de conhecimen- teresse epidemiológico, desenvolvimento e
to-ação constitui um dos desafios para as utilização de metodologias para análise das
novas etapas do desenvolvimento da epide- situações e das intervenções em saúde, prá-
miologia. ticas epidemiológicas nos programas de vi-
gilância e de avaliação em saúde e, destaco,
A epidemiologia e a consolidação inserção em políticas inter e intra-setoriais.
do SUS – perspectivas Para pensarmos as perspectivas da
epidemiologia em nosso meio e em nosso
Voltemos ao nosso sistema único de saú- tempo temos que buscar entender, em pri-
de, patrimônio do povo brasileiro. A partir meiro lugar, que o quadro epidemiológico
do que foi dito até agora, não resta dúvida no Brasil, ao fazer coexistir as ditas “doen-
que a organização do SUS é conseqüência ças do atraso” com as “doenças da moder-
da luta e do compromisso de setores pro- nidade”, cria padrões epidemiológicos com-
gressistas deste país. Não temos dúvida tam- plexos em que novos problemas aparecem
bém que este compromisso é compartilha- se superpondo, sem substituir os problemas
do por grande parte dos epidemiologistas. já existentes, o que amplia a carga de doen-
Assim, desde 1989, os epidemiologistas bra- ças e, como conseqüência, faz crescer as
sileiros, tendo à frente a Comissão de necessidades de mais recursos para reparar
Epidemiologia da ABRASCO, vêm estabele- os danos20.
cendo planos diretores qüinqüenais para o Em segundo lugar, precisamos entender
desenvolvimento da epidemiologia no Bra- que, antecedendo a superposição das doen-
sil5,11,19. Estes planos têm identificado pro- ças, temos uma superposição dos riscos, em
blemas, propostas e ações em três grandes que novos somam-se aos existentes. Au-
capítulos: ensino, pesquisa e serviços. O ca- mentam as chandes de ocorrência de doen-
pítulo dos serviços é todo dedicado a ques- ças e agravos à saúde, em decorrência da
tões relevantes ao desenvolvimento do nos- falta de solução para vários problemas es-
so sistema de saúde; nos capítulos de ensino truturais e básicos, da manutenção de con-
e pesquisa reafirmam-se tais compromissos dições de vida inadequados, da insuficiência
através de proposições do mais alto interes- nos mecanismos que regulam os danos ao
se para a sociedade e que possam resultar meio ambiente, do crescente aumento de
em benefícios para a saúde da população, tensão nas relações sociais.
portanto em consonância com as concep- Isto ocorre em um contexto que se ca-
ções do SUS. racteriza pela imensas desigualdades, crian-
No momento, estamos sob a égide do III do fossos de difícil superação entre as regi-
Plano Diretor19 e é em torno dele que desen- ões, campo e cidade, bairros das grandes ci-
volverei estes comentários finais. Como todo dades, classes e etnias, gêneros e gerações.
Plano, trata-se de um pacto em torno do Para avançarmos na compreensão da si-
possível. Como membro da comunidade de tuação, temos ainda que entender a relativi-
epidemiologistas brasileiros, partilho deste dade do tempo cronológico, a fim de elabo-
pacto, porém como indivíduo tentarei ex- rar uma crítica contundente e efetiva à pro-
por algumas idéias complementares sobre posta de associar a modernidade em saúde

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com novas tecnologias, as quais, em geral, academias como nos serviços. Prioridades,
são concebidas e produzidas nos comple- existem muitas outras, porem dentre estas
xos industriais dos países centrais. Assim, eu destacaria a avaliação do impacto
basta olharmos muitas das nossas cidades populacional das tecnologias em saúde, a
para ver que, no tocante às condições intensificação dos processos regulatórios em
ambientais e de vida da maioria das suas saúde e as desigualdades em saúde. Falare-
populações, elas ainda se encontram no sé- mos brevemente de cada uma delas 3.
culo XIX. Porém, nestas mesmas cidades, as
populações são induzidas a aspirar pelo que Avaliação do impacto de
de mais moderno existe na tecnologia tecnologias
biomédica, embora nem sempre elas tenham
acesso a tais modernidades. Antes de tudo, A capacidade do complexo industrial de
isto serve para demonstrar a mais completa produzir e colocar em uso novas tecnologias
ausência de sincronia entre o tempo da mo- voltadas para o cuidado à saúde (drogas,
derna bio-medicina e o tempo das medidas aparelhos, procedimentos e sistemas organi-
coletivas com respeito aos determinantes da zacionais para a atenção à saúde) tem cres-
saúde da população. cido exponencialmente. Ao lado do poten-
Enfim, temos de entender ainda que a cial de cura ou de prevenção (nem sempre
busca pela saúde não constitui processo iso- confirmado) e dos efeitos indesejáveis des-
lado, mas um importante componente da tas tecnologias, estão seus altos e crescentes
complexa trama de dependência econômi- custos, razão de preocupação de todos aque-
ca, científica, informacional e cultural, les com alguma responsabilidade sobre a
estabelecida entre os países centrais e peri- saúde dos indivíduos ou das populações. A
féricos. visão dominante de progresso social traz
O caso da epidemia do dengue, que nos consigo a idéia equivocada de que este pro-
assola neste momento, é paradigmático 21. gresso ocorre em conseqüência da assimila-
O Aedes aegypti, mosquito vetor do vírus da ção de novas tecnologias
dengue, adaptou-se de forma extremamen- Várias estratégias têm sido buscadas para
te eficiente ao degradado ambiente urbano demonstrar o quanto as tecnologias, as ações
e aos hábitos e costumes que se desenvolve- e os serviços de saúde podem ser eficazes
ram em nossas cidades. Neste caso, a bio- ou efetivos, mas há evidências de que uma
medicina até o momento não nos oferece parte importante dos mesmos, apesar de já
nada de concreto para o seu controle, se encontrarem em uso, não foi adequada-
inexistindo vacinas ou drogas eficazes, e as mente avaliada.
medidas de prevenção disponíveis, direcio- Porém, se todo um esforço sistemático
nadas para a eliminação do seu transmissor, de avaliação não tem superado os proble-
o Aedes aegypti, através de controle quími- mas inerentes à definição da eficácia das
co, mostram-se de alto custo e baixa tecnologias, maiores ainda são as limitações
efetividade. Resta-nos implementar uma es- com relação à avaliação da sua efetividade.
tratégia de enfrentamento do problema, que Mesmo obtendo níveis aceitáveis de eficácia
não seja apenas fundamentada em ações quando analisadas isoladamente, muitas des-
sobre sua base biológica, mas sim sobre sua sas tecnologias são pouco efetivas quando
base socioambiental e cultural. Ou seja, pre- utilizadas como parte rotineira de ações,
cisamos em última instância reorganizar e programas e serviços de saúde.
aplicar propostas que o conhecimento
epidemiológico e da saúde pública vem cons- Contribuições para os processos
truindo há décadas. regulatórios
Como evitar novas epidemias é apenas
um exemplo dos desafios e prioridades que É função do Estado moderno regular
estão colocados à epidemiologia, tanto nas uma série numerosa e complexa de parâme-

Papel da epidemiologia no desenvolvimento do SUS Rev. Bras. Epidemiol.


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tros vitais que têm implicações nos níveis de fenômeno das desigualdades são geradas,
saúde. Nosso modelo de modernidade nos tanto a partir de percepções acadêmicas
coloca em contato com uma série de expo- como a partir de reflexões dos próprios ato-
sições das mais diversas ordens, muitas das res sociais. Assim, além das classes sociais,
quais com potenciais efeitos diretos ou indi- definidas de diferentes maneiras segundo as
retos na saúde, tais como: os poluentes, os diferentes teorias sociais, são identificadas
aditivos alimentares, os inseticidas diversos, desigualdades em saúde com relação a gê-
as radiações etc. Além da resistência e, mui- nero, raça, grupos religiosos ou culturais, e
tas vezes, da violência das grandes corpora- outras diferenciações históricas de cada so-
ções, existem grandes dificuldades metodo- ciedade. Há razoáveis evidências empíricas
lógicas nas investigações que buscam de- de que as condições de saúde observáveis
monstrar o papel de muitas destas exposi- nas populações acompanham a forma com
ções como sendo de risco à saúde, a que estas desigualdades se apresentam.
epidemiologia dá uma contribuição mar- As desigualdades em saúde têm sido
cante e necessária neste campo. Os desafios apresentadas sob duas diferentes formas. A
metodológicos são grandes quando se dese- primeira relaciona-se ao acesso aos cuida-
ja estudar na população riscos de pequena dos de saúde para aqueles que ficaram do-
intensidade, efeitos sinérgicos etc. Estas difi- entes, o que, em uma sociedade de merca-
culdades metodológicas têm mostrado a do, reflete a capacidade de consumo dos seus
necessidade de em muitas situações utilizar- diferentes grupos. A segunda forma de desi-
mos o princípio da precaução. Entre nós, a gualdade em saúde está relacionada à chance
estruturação de órgãos reguladores como a de ficar doente ou sofrer um agravo, o que
Agência Nacional de Vigilância Sanitária - reflete a distribuição desigual dos determi-
ANVISA deve ser destacado, conquanto pos- nantes sociais, culturais e ambientais das
samos também dizer que os avanços estão doenças. Contemporaneamente, muitas so-
muito aquém dos desafios colocados. ciedades adotam entre os seus direitos soci-
ais (nem sempre respeitados) o acesso igua-
As desigualdades em saúde litário do indivíduo doente aos serviços de
saúde. No tocante à proteção, existe um
Tem sido fartamente documentada a si- menor grau de consenso sobre sua consti-
tuação paradoxal de o Brasil apresentar in- tuição como direito social, a despeito do que
dicadores econômicos em níveis incompa- a Constituição Brasileira, bastante avançada
tíveis com seus indicadores sociais, incluin- neste aspecto, assegura no seu artigo 196: a
do-se aí os de saúde (p. ex., taxa de mortali- saúde como direito de todos, prevendo “aces-
dade infantil e expectativa de vida ao nas- so universal e igualitário às ações e serviços
cer). Assim, ao mesmo tempo em que se para sua promoção, proteção e recupera-
observa uma tendência de melhoria para al- ção”.
guns indicadores de saúde no Brasil, a velo- Isto significa que o Estado, por princípio
cidade desta tendência proporciona a per- constitucional, não apenas deve assumir de
sistência e mesmo a ampliação das diferen- maneira equânime a responsabilidade pela
ças com muitos países similares do ponto de cura e recuperação de qualquer indivíduo
vista do desenvolvimento econômico. doente, independentemente da sua posição
Outra ordem, não menos importante, de no sistema social, mas também a responsa-
desigualdades diz respeito às diferenças ob- bilidade equânime com relação aos meios e
servadas nos indicadores de saúde entre as recursos para prevenção das doenças e para
regiões do Brasil. Estas diferenças geográfi- a proteção e promoção da saúde no seu sen-
cas reproduzem-se nas grandes cidades, tido mais amplo. A epidemiologia pode e
onde em suas periferias são constatadas con- deve dar importantes contribuições nos es-
dições inaceitáveis de vida e saúde. forços de conferir sentido a este princípio
Na atualidade, novas compreensões do constitucional. Esta é uma da tarefa das mais

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urgentes e para a qual com certeza cada um ções e aos riscos, ou seja às chances de ficar
de nós pode dar contribuições. doente.
É próprio das utopias propor a extinção Experiências vêm sendo desenvolvidas
pura e simples de desigualdades sociais. Po- na busca da integração inter-setorial de
rém, no mundo real, fazem-se necessárias ações, às quais apenas faremos referência.
transformações e intervenções complexas Podemos citar a experiência das denomina-
em esferas que, em geral, encontram-se fora das Cidades Saudáveis. Tal modelo vem sen-
da capacidade de intervenção dos epidemio- do utilizado em diferentes continentes e con-
logistas ou de outros profissionais da saúde siste em um complexo integrado de ações
coletiva. Neste contexto, cabe à epidemio- visando melhorar as condições de vida e saú-
logia, através do seu patrimônio conceitual de das populações urbanas23. As concepções
e metodológico, desnudar as desigualdades contidas no movimento de Promoção da
em saúde, transformando o conhecimento Saúde incluem a perspectiva integradora de
produzido em fundamentos para estratégi- enfrentamento dos problemas de saúde.
as que possam contribuir para a sua redu- Entre nós, o desenvolvimento do conceito
ção. Em decorrência do seu compromisso de Vigilância da Saúde propõe ações amplas
com mudanças efetivas nos níveis de saúde de monitoramento dos problemas de saúde
da população, cabe à epidemiologia a tarefa e dos riscos ambientais em busca de uma
não menos importante de, sob forma con- perspectiva articulada das ações de saúde24.
vincente, informar os diversos agentes soci- O Programa de Saúde da Família, ainda que
ais sobre as implicações morais e éticas con- com concepções mais limitadas que as an-
seqüentes à manutenção de tais desigualda- teriores, pelo simples fato de estar sendo efe-
des. tivamente implementado em todo o país
Recente proposta do CENEPI de desen- pode se constituir em importante elo de uma
volver um projeto de monitoramento das cadeia reorganizadora do sistema de saú-
desigualdades em saúde no país constitui de25. A recente elaboração de uma agenda
passo importante e que nos ajudará a co- nacional de saúde, ao definir prioridades e
nhecer suas tendências a longo prazo, e as- definir conjuntos organizados de ações, é
sim ir ampliando a compreensão dos meca- alvissareira, a despeito de uma certa timi-
nismos que, em nosso contexto, conectam dez, limitando-se a ações setoriais para pro-
as desigualdades sociais com as desigualda- blemas que exigem intervenções mais
des em saúde22. abrangentes e inter-setoriais, previstas inclu-
sive no aparato legal do SUS.
Conclusões Medidas na atual gestão do CENEPI, como
transferências fundo-a-fundo para ações de
Da mesma forma que as causas das do- epidemiologia no SUS mediante critérios
enças e agravos à saúde têm suas raízes na epidemiológicos, e o desenvolvimento de in-
sociedade, as ações que buscam efetivamente dicadores claros de acompanhamento e ava-
melhorar os padrões de saúde da população liação destas atividades são também avanços
e, assim, reduzir a ocorrência das doenças, importantes que devem ser destacados.
devem ultrapassar os limites tipicamente Podemos verificar que, no esforço de
definidos pelo setor e passam a exigir ações viabilização de novas alternativas de mode-
coordenadas, articulando as diferentes es- los assistenciais compatíveis com os princípi-
feras e níveis do governo e da sociedade. O os estabelecidos pelo SUS e com as necessi-
desenvolvimento de novos modelos de aten- dades da sociedade brasileira, faz-se neces-
ção à saúde tem, para o SUS, em todos os sário, de imediato e em todos os níveis, am-
seus níveis, entre outras implicações, buscar pliar a capacidade de monitoramento, análi-
maneiras de pôr em prática o direito consti- se, avaliação e investigação no tocante às con-
tucional à eqüidade, não só em relação ao dições de saúde e seus determinantes. Com
acesso ao cuidado, mas também às exposi- recursos do VIGISUS, temos visto a abertura

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de uma série de editais para pesquisa científi- Por fim, não poderia concluir sem dizer
ca e a organização de Centros Colaboradores que, apesar do racionalismo que me carac-
do CENEPI em áreas estratégicas e inovado- teriza, ao escrever estas linhas esteve sem-
ras. A ABRASCO tem estado à frente da luta pre se movendo em meus pensamentos a
em prol da criação de uma Agência Nacional idéia persistente de que este rico processo
de Pesquisa em Saúde. de que falei tem como construtores, não se-
Todos estes são passos importantes para res abstratos, mas seres concretos, homens
que ampliemos a capacidade de visualizar e e mulheres de fibra e coragem, companhei-
entender os problemas que nos afligem no ros fraternos que vêm dedicando suas ener-
presente, e devemos avaliar os fatores respon- gias e suas inteligências para a construção,
sáveis pelos nossos fracassos e pelos nossos no Brasil, de uma epidemiologia digna e com-
sucessos para assim podermos projetar com prometida. Além dos dados frios que estão
mais solidez o nosso futuro. No entanto, é fun- em seus questionários, computadores, ta-
damental a difusão destas concepções e prin- belas e gráficos, em seus corações e mentes
cípios por todo o tecido social, de tal forma há sentimentos nobres e sinceros de huma-
que os novos modelos de atenção à saúde não nismo, compaixão, paixão e clarividência que
sejam definidos ou aceitos como soluções pro- nos fazem, neste agir epidemiológico, rea-
fissionais ou tecnocráticas, mas sim como par- firmar o projeto histórico de contribuir para
tes articuladas do conjunto de políticas sociais a construção de um sistema de saúde mais
e econômicas, com o objetivo maior de de- justo, efetivo e equânime e, portanto, em prol
senvolver uma sociedade economicamente de um mundo mais saudável.
sólida, porém social e ambientalmente justa,
democrática e regionalmente equilibrada. Agradecimentos
Dada estas condições, reduções significativas
na ocorrência de uma série de patologias in- O autor agradece os comentários críti-
fecciosas e crônicas certamente serão obser- cos e as revisões sugeridas por Naomar
vadas, e esta é etapa inicial para a construção Almeida, Denise Coutinho e Estela Aquino
da utopia de uma sociedade com saúde. nas primeiras versões do texto.

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