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Ana Paula Tavares e O sangue da buganvília

Tania Macêdo (USP)

Para esse breve texto sobre Ana Paula Tavares, escolhi me referir
ao seu mais recente lançamento, o livro de crônicas O sangue da
buganvília, que foi publicado simultaneamente em Angola, pela Editora
Kacimbo e em Portugal pela Leya em 2003. E chamo de lançamento,
pois a escrita e primeira edição do livro é bem mais antiga. Mas não nos
precipitemos. Voltemos atrás, ao surgimento, da importante poeta e
prosadora e depois ao livro a que me reporto.
Inicio, pois, fazendo referência ao primeiro livro de poemas de Ana
Paula Tavares, Ritos de passagem, que, publicado em 1985, surgiu no
cenário angolano, com a força de uma boa semente que irrompia em
uma terra fértil e iniciava uma dicção poética nova na literatura do país.
Tratava-se de uma poesia em que uma outra subjetividade feminina
brotava, sem que, no entanto, as raízes angolanas fossem esquecidas.
Uma estreia que prometia grandes frutos e continua arrebatando os
leitores.
E se faço referência ao Ritos de passagem, tenho em vista que ele
provocou grandes expectativas, pois aquela moça de olhos curiosos,
nascida na Huíla, mas que conhecia as culturas e o território angolanos
como poucas pessoas, graças a seu trabalho e “viagens, quase todas de
jeep em busca do país cultural” (p. 32) em várias províncias, trazia para
as páginas de seu volume de estreia todo esse conhecimento da terra,
dos ritos e das gentes de Angola. Irrompia uma poesia com,uma doce
rebeldia e uma qualidade inquestionável do seu texto. Daí as
expectativas.
E aquelas sementes do primeiro livro tornaram-se árvore, em
Sangue de buganvília, publicado em Cabo Verde em 1998 e que
somente vinte e dois anos depois, é republicado em uma bela edição,
com capa de Rui Garrido a partir de representação de um desenho
sona, que remete aos desenhos narrativos feitos na areia que pertencem
à cultura do povo Tchokwe e vinculam-se às estórias tradicionais, aos
rituais e também a técnicas de resolução de problemas em Angola.
Trata-se de um livro em prosa com 74 crônicas inicialmente
apresentadas, como nos lembra João Nuno Alçada em seu ótimo
Prefácio,” para serem lidas aos microfones da RDP África, (...) as quais,
“se não fossem publicadas, possivelmente estariam, um dia no fim do
mundo do esquecimento”.
Mas antes de falarmos especificamente do livro, lembremos que a
planta que está no seu título chega à Europa no século XVIII vinda do
Rio de Janeiro, com a expedição de Commerçon e que graças à
naturalista Jeanne Baret, que adotou o nome Jean Baret e características
masculinas com o intuito de poder integrar a expedição de circun-
navegação, já que, nessa época, o ambiente era unicamente masculino,
chegou à Europa. Foi ela quem descobriu e recolheu a nova planta, uma
espécie de trepadeira com "flores" cor-de-rosa e roxas. Mais tarde,
Commerçon baptizou-a de Bougainvillea, em homenagem ao líder da
expedição, Louis Antoine de Boungaiville.
Ou seja, uma “árvore” (assim a chamemos) com uma história de
viagens e uma mulher atenta à beleza, mas cujo olhar não foi
reconhecido, diferentemente da poeta que hoje lemos.
E se me refiro a esse episódio da nomeação da buganvília, tenho
em mente que o livro de Ana Paula faz também uma viagem de assuntos
e temas africanos, sobretudo de Angola, e realizou um grande périplo, já
que foi lançado em Cabo Verde e depois, felizmente, aterrou em Angola
e Portugal.
Vamos, no entanto, ao livro, sobre o qual vou tecer breves
comentários.
Segundo entendo, cada uma das crônicas traz a força da metáfora
da planta a que se refere o título “forte na sua estrutura retorcida de
metal, podendo mesmo transformar-se em tecido fino aéreo se a isso o
tempo a obrigar” (p. 55). É dessa forma que o fino tecido aéreo da
poesia, a sabedoria resistente dos provérbios tradicionais angolanos e
uma escrita artística das melhores recobrem, sem ocultar ou edulcorar,
acontecimentos dolorosos do cotidiano, realçando a resiliência, como a
mesma crônica a que aqui me refiro indica: “De uma coisa estou certa,
venha quem vier, mudem as estações, parem as chuvas, esterilizem o
solo, nós cada vez mais como as buganvílias: a florir em sangue no meio
da tempestade.” (p. 57).
Os textos que compõem o livro, transmitidos entre março de 1996
e janeiro de 1998, pela RDP, debruçam-se sobre alguns dos momentos
mais difíceis do que pareceriam ser as intermináveis Guerras Angolanas,
sobre as questões da identidade, sobre as práticas e saberes femininos,
sobre a memória, mas especialmente sobre a poesia, apenas para citar
alguns temas ali tratados.
Assim, visita-se a história contemporânea, em episódios, como por
exemplo, o da visita de Diana, a Princesa de Gales, em 1997 a Angola,
que dá oportunidade um texto magnífico intitulado “A princesa e os
meninos à volta da fogueira” (p. 138-140) em que o cativante cativeiro
das narrativas mediáticas é desmontado; cito ainda o fervor
revolucionário dos jovens no primeiro 25 de abril na crônica “Conversas
na catedral” (p. 176-178), ou ainda em um tempo mais distante, “A
senhora do oráculo” (p.58-60) que re-apresenta Dona Beatriz, a Kimpa-
Vita, “operadora e sujeito das transformações da história e ao mesmo
tempo elemento permanente e garantia da sua homogeneidade.” (p. 60).
Encontramos ainda o “tempo da destruição e da guerra, em que as
pessoas parecem “zombies, fantasmas de um presente, sem escoras” (p.
62). Como se pode depreender das citações feitas aqui, O sangue da
buganvília é atravessado pelos tempos, mas também por múltiplas
cartografias, pois várias províncias angolanas, a capital do Congo,
Kinshasa, ou o Senegal tornam o livro uma espécie de mapa da África,
com Angola ao centro. E a idéia do mapa remete, segundo o geógrafo e
professor Jörn Seemann da Ball State University de Indiana, no texto
“Entre mapas e narrativas: reflexões sobre as cartografias da literatura, a
literatura da cartografia e a ordem das coisas, à simultaneidade e à
relatividade, já que o mapa é uma construção em que é possível ver e ler
várias ideias pensamentos e conceitos sem uma ordem pré-determinada.
Parece-me que é esse movimento de atravessar a África, com suas
dores e grandezas, que tem realizado desde o seu primeiro livro, Ana
Paula Tavares.
Haveria, no entanto, para além da noção do mapa, uma outra
perspectiva para pensar o movimento de espaços e tempos que não
seguem exatamente uma ordem – já que, por exemplo, o leitor pode fruir
dos textos em qualquer ordem e os mesmos são de tempos e espaços
variados e, para tal, vale lembrar as palavras de Ana Paula Tavares no
livro a que vimos nos referindo, na crônica “Memórias de pedra”: “Há
lugares que parecem marcados pela história de uma forma particular,
como se para lá da geografia cada sítio fosse portador de uma fala
especial do tempo que nele se inscreveu para mais tarde contar e resistir
para lá do interesse dos homens (p. 197). Ou seja, para além do espaço,
o tempo também é dimensão fundamental para a “fala” dos lugares e do
livro.
E como será possível articular de forma tão própria espaço e
tempo em crônicas tão curtas e ao mesmo tempo tão densas? Segundo
entendo, é sem dúvida graças à poeticidade dos relatos que essa
metamorfose opera. É a partir de uma escrita ao mesmo tempo densa,
simples e sutil, que as metáforas, as aliterações e outras figuras de
linguagem dão corpo às ideias e à sensibilidade, mesclando tempos e
espaços, transformando o muitas vezes amargo barro do cotidiano em
objetos poéticos, que transcendem a nossa miserável condição. Assim
nos ensina Ana Paula Tavares na crônica “Coração de barro” em que fala
da transformação do barro em cerâmica, mas que também pode ser vista
como uma poiesis, ou seja, uma explicação de seu fazer poético: “Todas
essas operações se fazem com umas mãos que parecem asas e que
escondem, pela rapidez dos movimentos, a força necessária à
transformação da matéria em vaso, repetindo gestos de criação que de
certeza nos sobraram do tempo dos dedos de deus”. (p. 97). Talvez
esteja nesse parágrafo uma das melhores definições desse livro: o
trabalho poético da autora, que nos propicia em cada crônica, uma
fagulha divina.
Esse é o trabalho que poucos e grandes poetas conseguem
realizar e que, sem dúvida, Ana Paula Tavares tão bem executa e a faz
uma figura de destaque na literatura contemporânea não apenas de
Angola.

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