Você está na página 1de 13

Anéis de Polinómios

Tópicos de Matemática Elementar (2023–2024)

António Machiavelo

1 Grupos, Anéis e Corpos


Desde o inı́cio do século XX que diversas estruturas matemáticas, como grupos, anéis, corpos,
espaços vectoriais, espaços topológicos, entre outras, desempenham um papel crucial na Ma-
temática por aglutinarem vários contextos matemáticos num só. Nesta secção pretende-se dar
uma muito breve introdução aos conceitos de grupo, anel e corpo.

Definição 1.1 Um grupo é um conjunto G munido de uma operação binária · : G × G → G


com as propriedades seguintes:

1. ∀a, b, c ∈ G : (a · b) · c = a · (b · c) [ i.e. · é associativa ]

2. ∃ ϵ ∈ G ∀a ∈ G : ϵ·a=a·ϵ=a [ existência de um elemento neutro ]

3. ∀a ∈ G ∃ a′ ∈ G : a · a′ = a′ · a = ϵ [ todos os elementos têm um inverso ]

Observações:

• Poder-se-á perguntar quem é o elemento ϵ mencionado na terceira propriedade, uma vez


que na segunda não se garante a unicidade do elemento neutro. Mas é fácil ver que se
houver um elementro neutro, então ele tem de ser único, pois se ϵ1 e ϵ2 têm a propriedade
2, então ϵ1 = ϵ1 ·ϵ2 = ϵ2 (a primeira igualdade resulta de ϵ2 ser neutro, enquanto a segunda
resulta de ϵ1 ser neutro). Pode pois falar-se no elemento neutro do grupo.

• A associatividade assegura que o inverso de cada elemento é único: dado a ∈ G, se a′1 e a′2
satisfazem ambos as igualdades em 3, então a′1 = a′1 · (a · a′2 ) = (a′1 · a) · a′2 = a′2 (porquê?).
Pode pois falar-se no inverso de um elemento num grupo.

Exemplos:

• São grupos:
(Z, soma usual); (Q, soma usual); (R, soma usual); (C, soma usual);
(R \ {0}, produto usual); (C \ {0}, produto usual);
(Rn , soma de vectores); (Mn (R), soma de matrizes), onde Mn (R) designa o conjunto
das matrizes n × n com entradas reais;
(GLn (R), produto de matrizes), onde GLn (R) designa o conjunto das matrizes invertı́veis
n × n com entradas reais.
• Não são grupos:
(N, soma usual); (Z, produto usual); (Z \ {0}, produto usual);
(R, produto usual); (C, produto usual); (Mn (R), produto de matrizes).

• Outros exemplos de grupos:

∗ O conjunto das permutações de um conjunto qualquer, X, munido da operação de


composição de funções, i.e. (S(X), ◦), onde S(X) = {f : X → X | f é uma bijecção},
é um grupo. A estes grupos dá-se o nome de grupos simétricos.
∗ O conjunto das simetrias de uma figura munido da operação de composição, onde
por “simetria de uma figura” se entende as aplicações da figura nela própria que per-
servam distâncias (por exemplo, rotações ou reflexões que deixem a figura invariante,
como um todo) é um grupo.

Definição 1.2 Um grupo (G, ·) diz-se abeliano quando a operação · é comutativa, ou seja
quando satisfaz: ∀a, b ∈ G a · b = b · a.

Exercı́cio: Para os grupos acima referidos, averigue quais são abelianos e quais são não-abelianos.

∗∗∗∗∗∗∗

Definição 1.3 Um conjunto não-vazio A munido de duas operações binárias, + : A × A → A


e · : A × A → A, diz-se um anel se se tiver:

1. (A, +) é um grupo abeliano;

2. a operação · é associativa e tem elemento neutro;

3. ∀a, b, c ∈ A : (a + b) · c = a · c + b · c ∧ a · (b + c) = a · b + a · c
[ distributividade de · relativamente a + ]

Observação: As condições incluı́das na definição anterior dizem-se os axiomas de anel. Note-se


que a condição 1 é um modo resumido de expressar 4 axiomas.

Notações: As operações + e · são usualmente designadas a adição e a multiplicação do anel


(podendo obviamente nada ter a ver com as operações de R e C com esse nome); o elemento neutro de
+ é designado por 0 e o de · por 1 (mesmo quando nada têm a ver com o 0 e 1 usuais), e dizem-se o
zero e o um do anel (respectivamente). O inverso de a para a operação + é denotado por −a;
inverso para · , quando existe, é denotado por a−1 .

Observação: Um anel é um tripleto (A, +, ·), constituı́do por um conjunto munido com duas
operações que satisfazem as condições acima referidas, mas quando é claro quais as operações
envolvidas, ou quando se está a referir um anel em abstracto, diz-se simplesmente “A é um
anel”.
Definição 1.4 Um anel diz-se comutativo se a operação · for comutativa.

Proposição 1.5 Seja A um anel. Tem-se que:

i) ∀a ∈ A 0 · a = 0;

ii) ∀a ∈ A (−1) · a = −a.

Demonstração:

i) 0 · a = (0 + 0) · a = 0 · a + 0 · a =⇒ 0 · a = 0 (porquê?).

ii) 0 = 0 · a = (1 + (−1)) · a = 1 · a + (−1) · a = a + (−1) · a =⇒ (−1) · a = −a (porquê?).

Um conjunto com um único elemento, {♠}, é obviamente um anel tomando para ‘adição’ e
para ‘multiplicação’ a mesma operação, que tem de ser a única operação que pode ser definida
num tal conjunto: (♠, ♠) 7→ ♠. “Este” anel diz-se “o” anel trivial ou anel zero, escrevendo-se
A = 0 quando se quer indicar que o anel A é trivial. Observe que num anel trivial 1 = 0.

Proposição 1.6 A ̸= 0 =⇒ 1 ̸= 0.

Demonstração: 1 = 0 =⇒ a = 1 · a = 0 · a = 0, para todo a ∈ A. □

Definição 1.7 Um anel comutativo K diz-se um corpo se K \ {0} for não-vazio e (K \ {0}, ·)
for um grupo abeliano. Isto é, um corpo é um conjunto K com pelo menos dois elementos,
munido de duas operações, usualmente designadas por + e · , tais que (K, +) e (K \ {0}, ·) são
grupos abelianos (onde 0 designa o elemento neutro para +) e · é distributiva relativamente a +.

Exemplos:

1. Z munido da adição e multiplicação usuais é um anel e não é um corpo.

2. Q, R, C munidos da adição e multiplicação usuais são corpos, e portanto anéis.

3. Mn×n (R) (n ∈ N), o conjunto das matrizes n × n com entradas reais, munido da soma e
multiplicação usuais de matrizes, é um anel unitário, que é não-comutativo para n ≥ 2.

4. Z[i] := {a + bi : a, b ∈ Z} com as operações usuais em C é um anel, a que é usual chamar


o anel dos inteiros de Gauss.
5. C(I, R), o conjunto das funções contı́nuas definidas num intervalo I de R e com valores
reais, munido das operações dadas por:

(f + g)(x) := f (x) + g(x) e (f · g)(x) := f (x)g(x), para todo x ∈ I (f, g ∈ C(I, R))

é um anel.

6. Para cada n ∈ N, o conjunto Zn = {[0]n , [1]n , . . . , [n − 1]n } das classes de congruência


módulo n (relembre que [a]n := {a + nk : k ∈ Z}), munido das operações dadas por
[a]n + [b]n := [a + b]n e [a]n · [b]n := [ab]n é um anel, que se chama o anel dos inteiros
módulo n.

7. Se p ∈ N é um número primo, então Zp é um corpo. Que todo o elemento de Zp \ {0} tem


inverso multiplicativo resulta de:

0 < k < p =⇒ (k, p) = 1 =⇒ ∃ x, y ∈ Z : kx + py = 1 =⇒ [k]p · [x]p = 1.

8. Q(i) := {a + bi : a, b ∈ Q} munido das operações usuais de C é um corpo.

Notação: O inverso multiplicativo de um elemento a ̸= 0 de um corpo é denotado por a−1 ,


sendo designado simplesmente por o inverso de a.

2 Polinómios com Coeficientes num Anel


Dado um anel A e um sı́mbolo abstracto, distinto dos elementos de A, que é usual denotar
por x e chamar uma “indeterminada” (porque, neste contexto, não se pretende determinar x, sendo este
apenas um “marcador de posição”; não é uma variável, como nas funções, e muito menos uma “incógnita”,

como nas equações), denota-se por A[x] o conjunto das expressões formais a0 + a1 x + · · · + an xn ,
com n ∈ N0 , ai ∈ A (0≤i≤n), a que se dá o nome de polinómios, sendo estes completamente
determinados pelos seus coeficientes, ou seja a0 + · · · + an xn = b0 + · · · + bm xm se e só se m = n
e ai = bi , para todo i. A escolha do sı́mbolo de adição e da justaposição dos coeficientes com as
potências formais xn para “marcar a posição” dos vários coeficientes (em vez de, por exemplo,
dar os polinómios como sequências de elementos de A separados por vı́rgulas) é porque há a
intenção de definir operações algébricas de adição e multiplicação entre polinómios de maneira
coerente com estes sı́mbolos por forma a que estas operações correspondam às operações do anel
A quando x é substituı́do por um qualquer elemento de A. Assim, o conjunto A[x] é munido
da adição dada por:

(a0 + a1 x + a2 x2 + · · · ) + (b0 + b1 x + b2 x2 + · · · ) :=

= (a0 + b0 ) + (a1 + b1 )x + (a2 + b2 )x2 + · · · ) (ai ,bj ∈A, para todos i,j)
e da única multiplicação tal que xm · xn = xm+n (∀m,n∈N0 ) e que é distributiva relativamente à
adição acabada de definir, i.e. a operação dada por:

(a0 + a1 x + a2 x2 + · · · ) · (b0 + b1 x + b2 x2 + · · · ) :=

= (a0 b0 ) + (a0 b1 + a1 b0 )x + (a0 b2 + a1 b1 + a2 b0 )x2 +

+(a0 b3 + a1 b2 + a2 b1 + a3 b0 )x3 + · · · (ai ,bj ∈A, para todos i,j).

O conjunto A[x] munido das operações acima definidas é um anel (verifique-o!), a que se
chama o anel dos polinómios com coeficientes em A, ou simplesmente o anel dos po-
linómios sobre A.
Trabalhar com polinómios definidos como acima tem, por vezes, inconvenientes técnicos.
Por exemplo, ao somar ou multiplicar dois polinómios genéricos a0 + a1 x + · · · + an xn e b0 +
b1 x + · · · + bm xm é necessário saber se n > m, n = m ou n < m, o que conduz à sempre
desagradável subdivisão em casos. Na análise de problemas um pouco mais complexos esses
inconvenientes podem-se revelar insuportavelmente aborrecidos. Assim, e por razões de ordem
técnica, repita-se, é por vezes útil definir os polinómios com coeficientes num anel A como
sendo as aplicações de N0 em A com suporte finito, o que quer dizer que são não-nulas apenas
para um número finito de elementos de N0 . Mais precisamente: dado f : N0 → A, o conjunto
{n ∈ N0 : f (n) ̸= 0} diz-se o suporte de f . Assim, A[x] pode ser também definido como o
conjunto {f : N0 → A : f tem suporte finito }, munido das operações dadas por:

X
(f + g)(n) := f (n) + g(n), (f · g)(n) := f (i)g(j), para todo n ∈ N0 .
i+j=n

Exercı́cio: Mostre que: f e g têm suporte finito =⇒ f + g e f · g têm suporte finito.

A ideia subjacente a esta construção é a de que um polinómio é determinado pelos seus


coeficientes; e dar os coeficientes de um polinómio a0 + a1 x + a2 x2 + · · · + an xn é equivalente
a dar uma função a : N0 → A com suporte finito, nomeadamente a(0) = a0 , a(1) = a1 , a(2) =
a2 , . . . , a(n) = an e a(k) = 0 para todo k > n. Isto corresponde a “ver” os polinómios como
expressões infinitas da forma a0 + a1 x + a2 x2 + · · · + an xn + 0xn+1 + 0xn+2 + · · · , com coeficientes
nulos a partir de certa ordem. Deste modo podemos operar com polinómios sem haver a
preocupação de saber onde é que eles “acabam”.

Exercı́cio: Qual é a função que corresponde ao polinómio x?

Esta definição tem também a vantagem dos elementos de A[x] serem definidos como entida-
des matemáticas genuı́nas e não meramente como “expressões da forma [...], usando um sı́mbolo
abstracto”. Mais ainda, é imediatamente generalizável a polinómios em várias indeterminadas,
tornando o seu tratamento muito mais simpático:
Definição 2.1 Um polinómio em n indeterminadas com coeficientes num anel A é uma aplicação
f : Nn0 → A com suporte finito, i.e. tal que o conjunto {v ∈ Nn0 : f (v) ̸= 0} é finito.

Notação: Um polinómio f em n indeterminadas com coeficientes num anel A é usualmente


escrito na forma:
X
ai1 i2 ···in xi11 xi22 · · · xinn ,
(i1 ,i2 ,...,in )∈Nn
0

onde ai1 i2 ···in = f (i1 , i2 , . . . , in ).

Denota-se por A[x1 , x2 , . . . , xn ] o conjunto dos polinómios em n indeterminadas com coefi-


cientes no anel A, munido da adição e multiplicação dadas por:

(f + g)(u) = f (u) + g(u), para todo u ∈ Nn0 ,


X
(f · g)(u) = f (v)g(w), para todo u ∈ Nn0 ,
v+w=u

onde f, g ∈ A[x1 , . . . , xn ] e a soma debaixo do somatório é a adição usual de vectores.


A tı́tulo de exemplo, vejamos a prova da associatividade da multiplicação em A[x1 , x2 , . . . xn ]
(n ∈ N). Dados f, g, h ∈ A[x1 , x2 , . . . xn ], tem-se, para todo n ∈ Nn0 :

!
X X X
((f · g) · h)(n) = (f · g)(i)h(j) = f (k)g(l) h(j) =
i+j=n i+j=n k+l=i

X X X
= f (k)g(l)h(j) = (porquê?) = f (k)g(l)h(j),
i+j=n k+l=i k+l+j=n

enquanto que:

 
X X X
(f · (g · h))(n) = f (k)(g · h)(i) = f (k)  g(l)h(j) =
k+i=n k+i=n l+j=i

X X X
= f (k)g(l)h(j) = (porquê?) = f (k)g(l)h(j),
k+i=n l+j=i k+l+j=n

o que conclui a prova.

Exercı́cio: Verifique que as operações definidas em A[x1 , x2 , . . . , xn ] satisfazem todos os outros


axiomas de anel.

Definição 2.2 Seja A um anel qualquer. Se f = a0 + a1 x + · · · + an xn ∈ A[x] for um polinómio


não-nulo com an ̸= 0, diz-se que n é o grau de f , que denotaremos por gr(f ); an diz-se o
coeficiente guia de f e a0 diz-se o termo constante ou independente de f . O polinómio
f diz-se mónico se o seu coeficiente guia for 1. Um polinómio não-nulo diz-se constante,
linear, quadrático, cúbico, consoante o seu grau for 0, 1, 2, 3, respectivamente.

Exemplo: O polinómio 21 x3 − x + 1
3 ∈ Q[x] é um polinómio cúbico com coeficiente guia igual a
1
2, não sendo pois mónico, e com termo independente igual a 13 .

n
ci xi ∈ A[x], um elemento α ∈ A diz-se um zero, ou
P
Definição 2.3 Dado um anel A e f =
i=0
n
ci αi = 0.
P
uma raiz, do polinómio f quando f (α) :=
i=0

Exercı́cios:

1. Seja K um corpo. Mostre que α ∈ K é uma raiz de f ∈ K[x] se e só se x − α | f .

2. Mostre que, num corpo, um polinómio de grau n tem no máximo n raı́zes.

3 Unidades, Primos e Irredutı́veis


Num anel comutativo (A, +, ·) definem-se os seguintes conceitos, cuja análise constitui o estudo
da aritmética desse anel.

Definição 3.1 Dados a, b ∈ A, diz-se que a divide b, escrevendo-se a | b se existir q ∈ A tal


que b = a · q. Um elemento u ∈ A diz-se uma unidade se dividir 1, o elemento neutro da
operação · . Isto significa que u tem inverso multiplicativo. O conjunto de todas as unidades de
A designa-se por A∗ , ou seja A∗ = {u ∈ A : u | 1}. Um elemento π ∈ A \ (A∗ ∪ {0}) diz-se
irredutı́vel se não puder ser escrito como um produto de duas não-unidades, ou seja se tem a
seguinte propriedade:
∀a, b ∈ A π = ab =⇒ a ∈ A∗ ∨ b ∈ A∗ .

Finalmente, um elemento p ∈ A \ (A∗ ∪ {0}) diz-se primo se sempre que dividir um produto,
dividir pelo menos um dos factores, ou seja se satisfizer:

∀a, b ∈ A p | ab =⇒ p | a ∨ p | b.

Exemplos:

• Z∗ = {±1}.

• Um anel comutativo A é um corpo se e só se A∗ = A \ {0} (porquê?).

• K[x]∗ = K∗ , qualquer que seja o corpo K (porquê?).


• Pode mostrar-se (faça-o como exercı́cio!) que, num qualquer anel comutativo, um primo
é sempre irredutı́vel.

• Em Z e em K[x] pode mostrar-se (usando o algoritmo estendido de Euclides) que todos


os irredutı́veis são necessariamente primos.

• Z[i]∗ = {±1, ±i}.

• Mostra-se que no anel Z[i] há também uma versão do algoritmo de Euclides, o que assegura
que os primos são exactamente os irredutı́veis e que há factorização única em primos, como
no anel Z.

• Em Z[i], 3 é primo, mas 5 é composto, tendo-se 5 = (2 + i)(2 − i), sendo cada um destes
factores um primo de Z[i].
√ √
• No anel Z[ −5] := {a + b i 5 : a, b ∈ Z} existem irredutı́veis que não são primos. Por
√ √ √ √
exemplo, 2 é irredutı́vel e 2 | (1 + i 5)(1 − i 5), mas 2 ∤ (1 + i 5) e 2 ∤ (1 − i 5).

• Z[ −5]∗ = {±1}.
√ √
• Mostra-se que o anel Z[ 5] := {a + b 5 : a, b ∈ Z} tem uma infinidade de unidades.

4 O Critério de Eisenstein
Nesta secção vamos expor um critério de irredutibilidade para polinómios com coeficientes
racionais, que permite dar exemplo de polinómios irredutı́veis em Q[x] com grau arbitrariamente
grande.

Definição 4.1 Um polinómio f ∈ Z[x] diz-se primitivo se o máximo divisor comum dos seus
coeficientes for igual a 1.

Lema 4.2 (Lema de Gauss) Se f, g ∈ Z[x] forem ambos primitivos, então f g é também
primitivo.

ai xi , g = bj xj ∈ Z[x] primitivos, e ponha-se f g = ck xk .


P P P
Demonstração: Sejam f =
i≥0 j≥0 k≥0
P
Relembre que ck = ai bj . Para um qualquer primo p, sejam
i+j=k

r := min{i ∈ N0 : p ∤ ai },
s := min{j ∈ N0 : p ∤ bj },

cuja existência é garantida pela primitividade de f e de g. Agora,

cr+s = (a0 br+s + a1 br+s−1 + · · · + ar−1 bs+1 ) + ar bs + (ar+1 bs−1 + · · · + ar+s b0 ).


Como p | ai para todo i < r e p | bj para todo j < s, tem-se que p divide ambos os termos entre
parêntesis. Mas p ∤ ar bs (porquê?), e portanto p ∤ cr+s , mostrando-se assim o que se pretendia.□

Lema 4.3 Todo o polinómio f ∈ Q[x] \ {0} tem uma única decomposição na forma f = cf f ∗
com cf ∈ Q+ e f ∗ ∈ Z[x] primitivo.

Exemplo: 52 x3 + 47 x − 2 = 2
35 (7x
3 + 10x − 35) é uma tal decomposição.

n
ai
xi , com ai ∈ Z, bi ∈ N e an ̸= 0. Então g = b0 b1 · · · bn f ∈ Z[x].
P
Demonstração: Seja f = bi
i=0

d 1

Seja d o máximo divisor comum dos coeficientes de g. Tem-se então que f = b0 b1 ···bn d g é
uma decomposição na forma pretendida.
Para provar a unicidade, sejam a, b ∈ Q+ ; g, h ∈ Z[x] primitivos e tais que f = ag = bh.
a
Sejam u, v ∈ Z tais que (u, v) = 1 e b = uv . Então ug = vh e basta agora observar que o máximo
divisor comum dos coeficientes de ug é u, enquanto o máximo divisor comum dos coeficientes
de vh é v, para concluir que u = v. Resulta que a = b e, por conseguinte, g = h. □

Definição 4.4 cf diz-se o conteúdo de f .

Lema 4.5 ∀f, g ∈ Q[x] : cf g = cf cg ∧ (f g)∗ = f ∗ g ∗ .

Demonstração: De f g = cf f ∗ cg g ∗ = cf cg f ∗ g ∗ , o resultado advém imediatamente da unicidade


garantida no lema anterior. □

Proposição 4.6 Se f ∈ Z[x] é não-constante e irredutı́vel em Z[x], então também o é em Q[x].

Demonstração: Suponhamos que o resultado não era verdadeiro e sejam g, h ∈ Q[x] tais que
f = gh com 0 < gr(g), gr(h) < gr(f ). Então, como cg ch = cgh = cf ∈ Z, ter-se-ia que
f = (cg ch g ∗ )h∗ era uma decomposição de f em Z[x], contradizendo a irredutibilidade de f . □

n
ai xi ∈ Z[x] for tal que existe um número
P
Teorema 4.7 (Critério de Eisenstein) Se f =
i=0

primo p com p ∤ an , p | ai , para todo i < n, e p2 ∤ a0 , então f é irredutı́vel em Q[x].

Demonstração: Suponhamos que temos um polinómio f nas condições da hipótese do enunciado.


Suponhamos que f era redutı́vel em Q[x]. Então ter-se-ia que f = gh para alguns

r
X s
X
g= bi xi ∈ Z[x] e h= cj xj ∈ Z[x],
i=0 j=0
P
com r = gr(g) < n e s = gr(h) < n. Relembre que ak = bi cj .
i+j=k

Por hipótese, p | a0 = b0 c0 , e portanto p | b0 ou p | c0 . Podemos supor, sem perda de


generalidade, que p | b0 (porquê?). Então, como p2 ∤ a0 , tem-se que p ∤ c0 . Também, como p ∤ an ,
resulta que p ∤ br e p ∤ cs (observe que r + s = n). Seja ℓ = min{i ∈ {0, 1, . . . , n} : p ∤ bi },
o ı́ndice do primeiro coeficiente de g que não é divisı́vel por p, que existe pois p | b0 e p ∤ br .
Tem-se que 0 < ℓ ≤ r < n (porquê?). Mas aℓ = bℓ c0 + bℓ−1 c1 + · · · + b0 cℓ , e resulta do que se viu
que p divide todas as parcelas do segundo membro excepto a primeira (porquê?), o que contradiz
o facto de p dividir aℓ . A contradição mostra o que se pretendia (porquê?). □

Observação: É fácil ver que resulta do que se viu acima que se f ∈ Z[x] satisfizer as hipóteses
do critério de Eisenstein e for primitivo, então é irredutı́vel em Z[x].

Exemplo: Para qualquer primo p e para todo n ≥ 3, o polinómio xn + px2 − p3 x + p é irredutı́vel


em Q[x].

5 Irredutı́veis em R[x] e C[x]


Contrariamente ao que acontece em Q[x] e em Z[x], onde existem polinómios irredutı́veis de
grau arbitrário, como se viu na secção anterior, em C[x] não há polinómios irredutı́veis de grau
superior a 1, e em R[x] não há irredutı́veis de grau maior que 2. Isto é consequência do seguinte

resultado, conhecido como o Teorema Fundamental da Álgebra.

Teorema 5.1 (d’Alembert, Euler, de Foncenex, Lagrange, Gauss) Todo o polinómio de


C[x] que não é constante tem pelo menos uma raiz, em C.

Observação: Uma forma embrionária deste resultado aparece num texto de 1629 de Albert
Girard (1592–1632), sem qualquer justificação. O facto de G. W. Leibniz (1646–1716), em
1702, dar o exemplo (relacionado com o problema de integrar funções racionais):

√ √
x4 + a4 = (x2 + a2 −1)(x2 − a2 −1)

√ √ √ √
 q  q  q  q 
= x + a − −1 x − a − −1 x+a −1 x−a −1 ,

afirmando que quando se multiplica quaisquer dois destes quatro factores não se obtém nenhum
polinómio quadrático com coeficientes reais, o que não é verdade (porquê?), mostra que o resultado
ainda estava longe de ser completamente intuı́do no inı́cio do século XVIII.
Segue-se uma breve cronologia das tentativas de demonstração do Teorema Fundamental da
Álgebra:
1746: primeira tentativa de demonstração, usando técnicas analı́ticas, publicada por Jean le
Rond d’Alembert (1771–83), mas a demonstração é incompleta, pois assume coisas que
não são justificadas;

1749: esboço de uma demonstração mais algébrica por L. Euler (1707–83);

1759: simplificações da “demonstração” de Euler sugeridas por D. F. de Foncenex (1734–99);

1772: J. L. Lagrange (1736–1813) pretende completar a demonstração de Euler–Foncenex, mas


assume outros resultados sem justificação;

1795: Laplace (1749–1827) publica demonstração que sofre do mesmo problema de assumir
implicitamente coisas que não são justificadas;

1799: K. F. Gauss (1777–1855) fornece uma demonstração na sua dissertação de doutoramento,


usando as ideias de d’Alembert, mas que contém também um “buraco”;

1806: Jean-Robert Argand (1768–1822) publica a primeira demostração rigorosa.

Observação: A investigação inicial que levou à descoberta do Teorema Fundamental da Álgebra


foi motivada pelo problema de integrar funções racionais (i.e. quocientes de funções polinomiais),
tendo-se começado a suspeitar, nesse contexto, que todo o polinómio com coeficientes reais se
podia sempre escrever como produto de polinómios de grau 1 e 2.

Não é difı́cil ver que do Teorema 5.1 resulta que todo o polinómio não-constante de C[x] se
pode escrever como um produto de polinómios do primeiro grau e, daqui, que todo o polinómio
não-constante de R[x] pode ser escrito como um produto de polinómios do primeiro grau e
polinómios do segundo grau com discriminante negativo, o que justifica a afirmação feita na
primeira frase desta secção.
Exercı́cios sobre Polinómios
Tópicos de Matemática Elementar
2023–2024

1. Calcule o quociente e o resto da divisão dos polinómios f e g de K[x], sendo

(a) K = Q, f = 2x7 − x5 + x2 + 1, g = 3x3 − x + 1;


√ √
(b) K = R, f = 2 x3 + 1, g = 3 x − 1;
(c) K = C, f = (2 + i) x3 + 1, g = i x − 1;
(d) K = Q, f = xn−1 + xn−2 + · · · + x + 1 (n ∈ N), g = x − 1.

2. Calcule o máximo divisor comum dos polinómios f = x6 + x5 + x4 − x3 + 1 e g = x5 + x + 1


de Q[x], e exprima-o como combinação linear de f e g, com coeficientes em Q[x].

3. Decomponha os seguintes polinómios como produtos de irredutı́veis:

(a) x4 + 3x2 + 2, em Q[x];


(b) x4 + 3x2 + 2, em R[x];
(c) x4 + 3x2 + 2, em C[x].

4. Diga quais das afirmações seguintes são verdadeiras e quais são falsas, justificando a sua
resposta:

(a) O polinómio 2x7 − 6x2 + 6 é irredutı́vel em Z[x].


(b) O polinómio 2x7 − 6x2 + 6 é irredutı́vel em Q[x].
(c) O polinómio 2x7 − 6x2 + 6 é irredutı́vel em R[x].
(d) Não há nenhum polinómio irredutı́vel em Q[x] com grau igual a 60.
(e) O polinómio 3x11 − 27x + 9 é irredutı́vel em Q[x].

ai xi ∈ K[x], define-se a derivada formal de f


P
5. Dado um corpo K e um polinómio f =
i≥0

como sendo o polinómio f ′ = i ai xi−1 . Mostre que se tem, para f, g ∈ K[x] e λ ∈ K,


P
i≥1

(a) (f + g)′ = f ′ + g ′ ;
(b) (f g)′ = f ′ g + f g ′ ;
(c) (λf )′ = λf ′ .
6. Dado um corpo K e α ∈ K, diz-se que α é uma raiz múltipla de f ∈ K[x] se (x − α)2 | f .

(a) Mostre que f ∈ K[x] não tem raı́zes múltiplas se e só se (f, f ′ ) = 1, onde f ′ é a
derivada formal de f definida no exercı́cio anterior.
(b) Mostre que um polinómio irredutı́vel de Q[x] não tem raı́zes múltiplas em C.

2 5
7. Mostre que os polinómios 27x4 + 6x2 − 3 e 16x5 − 5x − 2 são irredutı́veis em Q[x].

n
ai xi ∈ K[x], com an ̸= 0, é
P
8. Seja K um corpo qualquer. Mostre que se o polinómio
i=0
n
an−i xi é também irredutı́vel.
P
irredutı́vel, então o polinómio
i=0

9. Mostre que o polinómio Φp (x) = 1 + x + x2 + · · · + xp−2 + xp−1 é irredutı́vel em Q[x], para


todo o primo p.

10. Leibniz, num artigo de 1702, afirma que nem todo o polinómio de coeficientes reais pode
ser decomposto num produto de polinómios do primeiro e do segundo grau, oferecendo
como exemplo o polinómio x4 + a4 (a ∈ R), observando que

√  √ 
x4 + a4 = x2 + a2 −1 x2 − a2 −1

√ √ √ √
 q  q  q  q 
= x + a − −1 x − a − −1 x+a −1 x−a −1

e afirmando que nenhum par destes quatro factores, quando multiplicado, dá um polinómio
quadrático com coeficientes reais. Explique porque é que esta afirmação de Leibniz é falsa,
exibindo explicitamente dois factores cujo produto é um polinómio de coeficientes reais.

11. Mostre que não há uma infinidade de números primos da forma n4 + 4.
[Sugestão: Use a sua resolução do exercı́cio anterior!]

Você também pode gostar