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41079-Texto Do Artigo-172992-1-10-20210609
41079-Texto Do Artigo-172992-1-10-20210609
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Resumo: O presente artigo revisita a temática do trabalho de campo em geografia discutindo aspectos pedagógicos envolvidos na
possibilidade de sua implementação, em diferentes níveis. Partindo-se da análise do papel formativo do campo no pensamento geográfico,
discute os limites da tradição calcada na pressuposição da neutralidade e da objetividade da observação direta. Contrapõe essa tradição
de base positivista às chamadas “epistemologias críticas” que consideram o campo como um “conhecimento situado” sobre pro cessos,
pessoas e lugares. Ao reconhecer a importância do trabalho de campo nas práticas da geografia, o artigo objetiva ser uma contribuição ao
entendimento do seu papel pedagógico, ressaltando sua capacidade de despertar o interesse pelo aprendizado e, em particular, pelo
conhecimento geográfico.
Palavras-Chave: trabalho de campo, ensino de geografia, papel pedagógico.
Résumé: Cet article revisite le sujet du travail de terrain en géographie en discutant des aspects pédagogiques impliqués dans la possibilité
de sa mise en œuvre, à des différents niveaux. En partant de l'analyse du rôle formatif du terrain dans la pensée géographique, il discute les
limites de la tradition fondée sur l'hypothèse de la neutralité et de l'objectivité de l'observation directe. Il oppose cette tradition fondée sur le
positivisme à ce qu'on appelle les “épistémologies critiques" qui considèrent le terrain comme une forme de connaissance situ ée sur les
processus, les personnes et les lieux. Toute en reconnaissant l'importance du travail de terrain dans les pratiques de la géographie, l'article
se veut une contribution au rôle pédagogique propre du terrain, en mettant en évidence sa capacité à éveiller l'intérêt pour l'apprentissage
et, en particulier, pour la connaissance géographique.
Mots-Clé: travail de terrain, enseignement de la géographie, rôle pédagogique.
1. Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor da Licenciatura em Geografia do Instituto
Federal Fluminense (IFF) – Campus Centro. E-mail: linovaldomlemos@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
5420-7221.
Este artigo está licenciado com uma licença Creative Commons – Atribuição 4.0 Internacional.
GEOgraphia, vol: 23, n. 50, 2021
Introdução
Tomemos, como denominador comum para o raciocínio do que vem a ser o trabalho de campo
em geografia, a definição fornecida pelo The Dictionary of Human Geography (Derek Gregory et al.,
2009, p. 251) de que este é uma maneira de coletar dados por meio do envolvimento e do
engajamento direto do pesquisador no mundo material. Trata-se de uma definição muito abrangente
que serve ao propósito do seu entendimento como uma espécie de “tipo-ideal” weberiano2, tendo em
vista que, sob diversos contextos acadêmicos e escolares, dentro da geografia, o trabalho de campo
pode relacionar-se, a) ao trabalho realizado por professores fora dos limites institucionais dedicados
à observação de paisagens, fenômenos, arranjos espaciais que podem ser materializados em
parques, ambientes, museus, unidades de conservação, bairros, cidades, etc. ; b) poderia também
confundir-se, em contextos muito específicos, com o que chamaríamos de “estágio remunerado”, ou
seja, a situação de estudantes colocados juntos às organizações sociais ou governamentais,
2O tipo ideal é “um instrumento que orienta o cientista social em sua busca de conexões causais”, ou seja, um “instrumento
do qual o cientista se vale para guiar-se na infinitude do real” de forma a permitir a “escolha de certas características do
objeto que são relacionados de forma racional, mas que sempre acentuam unilateralmente os traços considerados mais
relevantes para sua explicação.” (QUINTANEIRO et al. 2000, p.134)
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companhias, etc, por um período de tempo, trabalhando como empregado para estes, conforme o
caso britânico estudado por Martin Kent (KENT et. al., 1997); c) como a pesquisa - individual ou num
grupo - coordenada ou orientada por um professor, que coleta informações diretamente no campo,
seguindo parâmetros definidos pelos objetivos, questões e hipóteses da pesquisa; d) como o
conjunto de observações, levadas a cabo de forma sistemática e servindo a um propósito
investigativo, por um estudante, na sua vivência cotidiana, por exemplo, na vida urbana.
No próprio dicionário encontramos elementos para o entendimento de um pano de fundo do
que representa o campo em geografia: de um lado, uma tradição, calcada na corrente filosófica do
positivismo, que assume como possível a apreensão das realidades geográficas por meio da
observação direta e da neutralização da figura do pesquisador. De outro lado, estudos que, refutando
a possibilidade de neutralidade e de objetividade do pesquisador, interpretam o trabalho de campo
como um “conhecimento situado” sobre pessoas, processos e lugares (Gregory et al., 2009, p.251).
Retornarei a esses pontos mais adiante.
A prática do trabalho de campo está associada à formalização da geografia como ciência entre
o final do século XVIII e o início do XIX, especialmente com os trabalhos de Alexandre Von Humboldt
e seu esforço por compreender a fisionomia das paisagens por meio da experiência prática da
observação (CLAVAL, 2013). Ao longo do Século XIX, para além dessa compreensão da fisionomia
das paisagens, o trabalho de campo passa a ter um valor cívico, do conhecimento do terreno, do povo,
e do aprendizado da capacidade de leitura de mapas e do fortalecimento do próprio corpo
Para além das questões acadêmicas (...) a prática de campo não serve somente para a
formação do espírito, mas também é indispensável para a criança e o adolescente que
pretende tornar-se um adulto completo, uma vez que ela assegura o desenvolvimento
harmonioso de seu corpo, como enfatiza Elisée Reclus (1866). Ela o leva a conhecer o mundo
assim como ele é e ensina-o a se movimentar dentro dele, a tirar partido da organização
particular de cada espaço. (CLAVAL, 2013, p.4)
Ainda segundo Paul Claval é o trabalho de campo que possibilita a descoberta da geografia
regional francesa a partir da série de viagens realizadas por La Blache e por seus discípulos, por
exemplo, Lucien Gallois e Emmanuel de Martonne. Graças à forte influência da Escola Francesa no
Brasil (SILVA, 2012), tal centralidade do campo também se fez sentir por aqui. Na década de 1940
encontramos no artigo do Prof. Francis Ruellan “Trabalho de Campo nas Pesquisas Originais de
Geografia Regional” (RUELLAN, 1944) uma mostra da metodologia de trabalho e de ensino dessa
escola baseada na Universidade do Distrito Federal (atual UFRJ) e no Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE). Trata-se de um texto com claro viés didático, versando sobre questões práticas
de organização, estrutura, materiais de trabalho e procedimentos a serem implementados nas
chamadas “excursões geográficas” (ou “excursões de pesquisa”). Para o mestre francês o trabalho
de campo é um componente da própria formação do pesquisador, momento no qual entra em contato
com o treinamento na observação dos “traços essenciais da região” (p. 36), tanto aqueles referentes
aos elementos físicos, quanto aos humanos. Neste artigo fica clara sua visão a respeito do papel
fundamental da observação e do treinamento, no trabalho de campo, para o geógrafo já que
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Underlying what I am trying to say is the conviction that geography is first of all knowledge
gained by observation [...]. In other words, the principal training of the geographer should come,
wherever possible, by doing field work. (SAUER, 1956, p. 295-296)
A “revolução quantitativa” dos anos 1950 continuou tendo na observação um elemento central,
só que agora eram “observações feitas por outros”, mudando-se a pesquisa geográfica “do campo
para o gabinete” com o levantamento e o tratamento de dados empíricos dispostos em compêndios
censitários ou sinopses quantitativas em geral (Derek Gregory et al., 2009, p. 559). Movimento similar
a esse ocorreu no Brasil, com o campo sendo secundarizado pelo uso das tecnologias da informação
e os modelos matemáticos na voga da geografia “teorética-quantitativa” (ALENTEJANO, ROCHA-
LEÃO, 2006, p. 55).
No que se refere à geografia crítica, há que se ressaltar a importância do artigo de Yves Lacoste
“A pesquisa e o trabalho de campo: um problema político para os pesquisadores, estudantes e
cidadãos” originalmente publicado na Revista Hérodote em 1977. Neste artigo o geógrafo francês se
propõe a discutir problemas éticos e políticos envolvidos na realização do trabalho de campo. Chama
a atenção para a postura do pesquisador diante dos “homens e mulheres que ele estuda e cujo
território analisa” (LACOSTE, 2006 [1977], p. 77), no que se refere ao seu compromisso ético de
comunicar, de apresentar os resultados da pesquisa ao grupo pesquisado. Isso não só para
confrontar esses resultados com aqueles que foram objeto de estudo, mas também, para possibilitar
transformar esse conhecimento em poder. Há, nesse sentido, uma dimensão política da pesquisa de
campo que se refere ao conhecimento partilhado e discutido que se transforma em ferramenta de
modificação de realidades. Neste artigo citado, Lacoste faz uma distinção entre o conhecimento que
é compilado de fontes oficiais daquele que são produzidos
em um país como a França, a proporção de pessoas que fez estudos superiores não é
negligenciável, mas a maior parte delas jamais fez um trabalho de pesquisa de campo, uma
verdadeira pesquisa, mesmo se tornaram se professores de História e de Geografia:
rigorosamente, sabem apenas compilar os elementos de uma documentação já existente.
(LACOSTE, 2006[1977], p. 85, grifos meus)
Parece-me que tal relação entre a produção de conhecimento no campo e a utilização de dados
oficiais encontra nuances na abordagem defendida por Jean Tricart. em artigo publicado no mesmo
número da revista Hérodote. O ponto pacífico, mais uma vez, é a defesa da importância do campo,
tanto para a pesquisa quanto para a formação do pesquisador. Da mesma forma que no texto de
Lacoste há, também em Tricart, uma preocupação pedagógica relativa às orientações metodológicas
e de procedimentos sobre o papel do campo na formação do pesquisador em geografia. No entanto,
Tricart incorpora o princípio da dialética não só entre o campo e a experimentação, mas também
entre o uso de dados oficiais, estatísticos em geral, e as observações pessoais. É a partir dessa
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dialética do/no trabalho de campo que se torna possível, por parte do geógrafo, a formulação de
conceitos, formas de representação e de explicações
É a partir das “epistemologias críticas” dos anos 1990 (CLAVAL, 2013), especialmente com as
geografias feministas, que as críticas mais contundentes aos pressupostos tradicionais do trabalho
de campo são empreendidas. Por englobar uma diversidade de vertentes (JOHNSTON,
SIDAWAY,2016), é mais prudente referir-se a ‘geografias feministas’, no plural, como defende Joseli
Maria Silva (2010; 2016). Estas demonstraram o caráter relacional, dialógico, pessoal e intersubjetivo
da pesquisa de campo, colocando em xeque os pressupostos do seu caráter neutro. Nesse sentido,
tais abordagens criaram/criam uma tensão entre o próprio papel dos agentes desse processo, tanto
do pesquisador quanto do pesquisado, na estruturação, nas metodologias, nas motivações e nos
próprios resultados do trabalho de campo (ENGLAND, 1994; KATZ, 1994; NAST, 1994; SILVA, 2010;
DRIVER, 2000). O local geográfico do pesquisador, seu status social, de gênero, de raça e de classe
moldam as questões, a coleta e os resultados da própria pesquisa (SUNDBERG, 2003), o que vai ao
encontro da percepção do campo como produtor de um conhecimento situado, como me referi
anteriormente citando Gregory et al. (2009).
Nesse mesmo sentido, vale destacar a série de artigos dispostos nos dois números especiais
da Geographical Review de 2001 (DELYSER, STARRS, 2001) e os relatos de experiências escritos de
forma personalíssima e que colocaram em evidência não só a impossibilidade da imparcialidade na
pesquisa como também as “relações de poder, subjetividades e dilemas morais envolvidos no
trabalho de campo” (MCSWEENEY, WINKLERPRINS, 2020, p. 1). Importante mencionar o recente
número especial da Geographical Review intitulado “Fieldwork in the 2st Century” que, numa tentativa
de ‘revisitar’ a antiga Edição de 2001 dedicada ao tema, traz na Edição de 2020, 18 artigos de
geógrafos de diferentes fundamentações teórico-metodológicas, mas que, no conjunto, revelam o
interesse renovado pelo tema. Trata-se de artigos que, para além das questões metodológicas,
versam sobre aspectos mais práticos do trabalho do pesquisador como as pressões por cortes nos
orçamentos, redução do tempo de realização dos trabalhos de campo nas universidades, bem como
o avanço atual do uso das tecnologias digitais e mídias sociais no campo. No entanto, muito dos
artigos se coadunam àquelas “epistemologias críticas” às quais me referi anteriormente, seguindo
Paul Claval, demonstrando o espaço para a ‘falha’ e o aprendizado com os ‘erros’ no campo na vida
profissional-acadêmica do geógrafo, o espaço para a surpresa e para a humildade por parte do
pesquisador (MCSWEENEY, WINKLERPRINS, 2020).
Há, então, limites na objetividade e na neutralidade do trabalho de campo em geografia, o que
significa incorporar, nessa equação, dimensões como as subjetividades recíprocas (do pesquisador
e do pesquisado), bem como as relações de poder (implícitas ou explícitas), que permeiam o campo.
Ao assim procederem, as epistemologias críticas nos fazem repensar a própria relação que nós
nutrimos - como geógrafos e como professores de geografia - com essa importante ferramenta de
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O que está organizado na Figura 01 faz parte, em grande parte, da rotina de formadores de
professores e bacharéis em geografia. A fase do pré-campo envolve o planejamento do campo em si,
a escolha do local, a estadia, os custos, o transporte etc. Envolve também, para além dessas questões
burocráticas e de logística, um preparo dos próprios alunos para a atividade a ser realizada em
relação, não só ao estudo prévio, em fontes diversas, como também ao entendimento e respeito ético
em relação ao “outro”. É nessa fase que se estabelecem os objetivos do campo e a forma como este
se coaduna com conteúdo e com temáticas discutidas no curso, com a necessidade de
levantamentos de dados, com a verificação de hipóteses e de questões, com o treinamento e a
aprendizagem. Enfim, são esses objetivos que justificam o gasto de tempo e de recursos visando
atingir certos fins que são pedagógica e cientificamente planejados. No momento do campo
propriamente dito, nos deparamos com o equilíbrio entre a participação e o envolvimento dos
graduandos e o direcionamento à consecução dos objetivos. Por isso, a proposta de se trabalhar com
situações-problema ou de questões desafiadoras a serem “resolvidas” no/por meio do campo.
Paralelamente ao campo – e não de forma exclusivamente conseguinte – há a verificação da
aprendizagem. Esta não se confunde, de forma estrita, com a escrita de um relatório ou uma prova: é
o momento da troca, do diálogo, da consolidação das ideias. O contrário disso é a palestra, a preleção,
a exposição que é dada pelo professor responsável, só que fora da sala de aula convencional.
Até que ponto excursões realizadas de ônibus nas quais “os professores, nas diferentes
paradas que previram no percurso, fazem um discurso na frente dos estudantes passivos” (LACOSTE:
2006 [1977], p.85), contribui, de forma efetiva, para a construção do conhecimento? Até que ponto, a
“pesquisa de campo” realizada com alunos se diferencia de um “passeio turístico”? Ou até que ponto
aqueles que saem à pesquisa não se assemelhariam aos que vão a um zoológico ou safári, como
repreendeu certa vez Bernar Kaiser (2006, p. 100). Yi-Fu Tuan (2001), na sua vasta experiência com
alunos de graduação, nos fornece um relato pessoal a esse respeito. Quantos de nós, professores,
não faríamos coro às suas palavras?
My memory of a typical unstructured trip goes something like this. The bus stops on a knoll.
Students file out, I among them. Immediately we are bombarded by sensations, from buzzing
bees and the smell of hay to the heat of the sun, and images, from garbage dump and church
towers to the meandering river. To minimize disorientation and bewilderment we take out our
cameras and dramatically reduce the flood of sensations and impressions by looking at a
framed landscape through a tiny hole. Our leader, after a brave pause to soak up unstructured
experience, proceeds to simplify reality for himself and us by drawing attention to a selection
of landmarks. (TUAN, 2000, p. 42)
Nesta seção não pretendi, de forma alguma, proceder a uma análise exaustiva do papel
dedicado ao trabalho de campo na perspectiva da geografia enquanto ciência. Pretendi corroborar a
ideia da centralidade que este tem nas diferentes abordagens metodológicas e correntes. A partir
desses elementos, pretendo, na parte seguinte, discutir mais diretamente a organização, o
planejamento e o papel pedagógico do campo na Educação Básica.
O campo como uma ferramenta pedagógica dedicada ao ensino de geografia na Educação Básica
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realidade quotidiana (CAVALCANTI,1998; STRAFORINI, 2004; PÉREZ, 2018) que, por meio de práticas
pedagógicas e da estimulação feita de forma consciente e organizada pelo professor, são
encorajados e têm a possibilidade de fazer a transformação de conceitos espontâneos (frutos da
experiência cotidiana) em conceitos científicos (VYGOTSKY, 1989; 1998).
Dentro e fora do Brasil podemos encontrar exemplos de como o trabalho de campo é reputado
como ferramenta importante no processo ensino-aprendizagem. Nos Estados Unidos, o National
Council for Geografic Education (NCGE), ao definir no seu site3 o que vem a ser a “educação
geográfica” considera a geografia como uma matéria ativa, que não pode ser absorvida ou
memorizada, mas que, antes de tudo, deve ser estimulada no estudante por meio de atividades para
além da sala de aula, ou seja, no campo. O documento “International Charter on Geographical
Education” (2016, p.5) 4 publicado sob os auspícios da “Commission on Geographical Education da
International Geographical Union (IGU-CGE)”, defende a importância da geografia na compreensão do
mundo contemporâneo e na sua capacidade de fornecer habilidades intelectuais e ferramentas de
investigação como o uso de sistemas de informação geográfica (GIS), a análise de mapas e o trabalho
de campo.
Por aqui a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), no seu documento final, destaca para a
área de ciências humanas e, particularmente para o componente curricular “geografia”, o pressuposto
da valorização das “vivências e experiências” dos educandos adquiridas em diferentes contextos, o
que faz privilegiar “o trabalho de campo, as entrevistas, a observação, o desenvolvimento de análises
e de argumentações, de modo a potencializar descobertas e estimular o pensamento criativo e crítico”
(BNCC, 2018, p. 355). Em outras partes, o documento prevê o compromisso da geografia, como
componente curricular, no desenvolvimento nos alunos do “espírito de investigação” ou de “práticas
e procedimentos de investigação” (p. 366) e arremata afirmando que
A elaboração/organização de um trabalho de campo pode não ser uma tarefa simples para o
professor. Do ponto de vista da Educação Básica brasileira, com suas peculiaridades e realidades
díspares, há uma série de dificuldades para a realização de atividades como estas em turmas
regulares. Além dos problemas relativos à obtenção de recursos financeiros e materiais para a sua
realização, o professor tem, ainda, que enfrentar questões burocráticas como a necessária
compreensão – e a autorização – de pais, diretores e de sistemas de ensino públicos e privados para
a saída da escola. Há, ainda, desestímulos de toda ordem, problemas de (in) disciplina e a
preocupação com a segurança dos alunos etc.
De forma geral, pesquisas têm demonstrado que embora haja o reconhecimento da
potencialidade do trabalho de campo para o ensino de geografia, este ainda é baseado num modelo
centrado na figura do professor e na confiança no sentido da visão/observação. Tal abordagem se
dá em detrimento da maior participação do aluno que mobiliza todos seus sentidos, sua emoção e
subjetividade no entendimento do mundo (PRESTON, 2016). Para outros autores, no caso específico
do Brasil, haveria uma subutilização do trabalho de campo no ensino de geografia na Educação
Básica (COCATO, 2019), muito embora haja múltiplas possibilidades e estratégias de aprendizagens
em geografia (SOUZA, CHIAPETTI, 2012) e na sua utilização na pesquisa científica. São exemplos do
que estou falando aqui a abertura para antropologia com a utilização do método etnográfico no
trabalho de campo nos estudos sobre territorialidades de comunidades tradicionais e de áreas de
fronteira (CARNEIRO, et ali., 2013; MAIA, 1997; LOZANO, 2016).
Compiani e Carneiro (1993)5 forneceram um valioso instrumental a professores de diferentes
níveis na atividade pedagógica envolvendo o trabalho de campo. Os autores propõem parâmetros
para o estabelecimento de uma classificação dos “papéis didáticos” das “excursões geológicas”.
Nesse sentido, o trabalho de campo pode ter caráter, a) ilustrativo, objetivando “mostrar ou reforçar
conceitos já vistos em sala” ou “aplicar habilidades adquiridas” (p.94); b) indutivo, feito de forma a
“guiar sequencialmente os processos de observação e interpretação” com o estímulo à resolução de
problemas (p.94); c) motivador, que estimulam o interesse do aluno para “um dado problema ou
aspecto” (p.95) valorizando-se a possibilidade de experiência pessoal no campo e, por fim, e)
treinador, com o aprofundamento de habilidades já adquiridas a partir de seu exercício em atividades
do/no campo.
Há que se reconhecer, de antemão, o fascínio que o trabalho de campo exerce sobre nós como
pesquisadores e professores e, principalmente, sobre alunos em idade escolar. Se a saída dos limites
das quatro paredes das Universidades e dos laboratórios representa para estudantes de graduação
não só um momento de excitação e alegria como também uma oportunidade de vivência e de
crescimento pessoal (VADJUNEC, 2020; HERTAS, 2007), o que dizer de crianças e adolescentes de
escolas regulares? Em certos contextos comunitários e escolares, o campo representa o primeiro
contato com bens culturais como museus, cinemas, praças, monumentos, bem como com paisagens
e lugares. Muitas vezes são situações que, ou não faziam parte das vivências dos alunos ou, talvez,
até fizessem parte, mas ainda não haviam sido estimuladas ao exercício
distanciamento/aproximação que leva pode levar ao aprendizado. Com o trabalho pedagógico em
tais ambientes, os alunos podem ser estimulados a portarem-se diante das suas realidades
cotidianas com uma atitude de estranhamento inquisitivo. Nesse sentido, o que chamamos de
“trabalho de campo” pode ser traduzido como “passeio” e não há nisto problema algum ou crítica
negativa alguma, tendo em vista o que pode significar para a vida do aluno, especialmente para
aqueles das escolas públicas que não possuem renda e nem mobilidade na cidade e que encontram
na geografia escolar uma oportunidade.
Permito-me reforçar o papel do desejo, da alegria e do envolvimento como um elemento
pertinente ao aprendizado. Para Bernard Charlot a relação com o saber se dá por meio de um sujeito
em suas confrontações pessoais, ou seja, um sujeito que lida com relações internas. É a partir disso
que ocorre o saber (CHARLOT, 2000, p.61). Quem se mobiliza a aprender é um sujeito, isto é, “um ser
humano portador de desejos (e levado pelo desejo) e envolvido em relações sociais” (CHARLOT, 2001,
p.19). Desejo de saber, levado a cabo por uma pessoa (o aluno) que é mobilizado – ou, talvez, antes,
se mobilize – a aprender. Por que evoco tal aparente digressão? Primeiro porque considero que o
trabalho de campo realizado com crianças deve ter um caráter pedagógico, mas que, como
professores de adolescentes e de jovens, talvez devêssemos ter em mente que nem sempre tudo
ocorre de forma reverente como planejamos. Segundo, que o desafio do uso pedagógico do trabalho
de campo está, talvez, em mobilizar esses seres-alunos, em toda sua complexidade, uma mobilização
em direção à aprendizagem.
5 O artigo é baseado na experiência dos autores e na bibliografia sobre o trabalho de campo em geologia, o que não invalida
o raciocínio que desenvolvo aqui.
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Para isso não há regras, nem receitas pré-estabelecidas e nem cabe a nenhum pesquisador
dizer o que o professor “deve” fazer (muito embora vejamos, a todo instante, artigos com expressões
impositivas do tipo “o professor tem que ser criativo” ou “o professor tem que incorporar as novas
tecnologias”!). Mais uma vez faço eco ao que pensa Bernard Charlot, em outra obra, sobre o papel da
pesquisa em educação:
sofisticação maior, de que a disciplina escolar é fruto de uma transformação dos conhecimentos
prévios, adquiridos na universidade, num conhecimento pedagógico, escolar, dos conteúdos; c) a
terceira via interpretativa, baseada nos trabalhos de Jhon Dewey, propõe que disciplinas são
diferentes, mas relacionadas de uma forma dialética, ou seja, são inter-relacionadas. Isso não significa
negar o suporte do conhecimento disciplinar no trabalho do professor, mas sim reconhecer que a
base do seu trabalho se encontra nas diversas vivências dos alunos como seres humanos que se
preocupam com eventos do mundo real6.
Preliminarmente talvez devêssemos pensar a dinâmica do trabalho de campo mais próxima
destes últimos termos, ou seja, conciliando o reconhecimento da importância dos sólidos
conhecimentos acadêmicos do campo disciplinar da geografia, enquanto ciência, com as questões,
situações e problemas do mundo das vivências cotidianas dos alunos e do próprio ambiente escolar.
E isso não no sentido de reforçar o conhecimento empírico, mas sim de transformá-lo por meio do
saber pedagógico, aquele que “o professor constrói no cotidiano de sua prática e que fundamenta sua
ação docente, ou seja, é o saber que possibilita o professor interagir com seus alunos, na sala de aula,
no contexto da escola onde atua (...)” (AZZI, 2002, p.43).
Essa é uma posição que assinalo para pensarmos a respeito da aceitação da reprodução de
práticas, às vezes mais e às vezes menos eficazes, oriundos de espaços acadêmicos transplantados
para espaços escolares regulares sem a devida preocupação com a mediação desse saber
pedagógico. Como nos advertiu Clare Brooks (2019, p. 145) “é muito simplista supor que uma
disciplina escolar seja uma versão resumida da disciplina acadêmica”.
Quero com isso chamar a atenção para o fato de que, dentro do foco do presente artigo, além
da discussão sobre a própria natureza do conhecimento produzido no/pelo trabalho de campo, das
questões de método, da natureza da pesquisa e do conhecimento produzido a partir dele, ainda há
que se ter em mente e se dar a devida atenção ao fato de que as práticas da Universidade não
deveriam ser transplantadas, ipsis litteris, para a Geografia Escolar. Como resultado, ao
incorporarmos o campo como uma estratégia pedagógica no trabalho de sala de aula na Educação
Básica essas especificidades podem ser levadas em conta.
Ao assim procedermos, ou seja, ao reconhecermos as especificidades dos diferentes níveis e
modalidades de ensino, estamos flexibilizando aquela concepção da transposição didática
preconizada por Yves Chevallard (2000[1991]). Baseando-se em sua experiência e atuação no campo
da didática da matemática este autor defendia o pressuposto de que saberes de referência (ou seja,
o conhecimento científico) passavam a serem designados como saberes a serem ensinados (os
conteúdos escolares) por meio de um conjunto de adaptações a fim de torná-los passíveis de serem
compreendidos na escola. Por mais que houvesse, de forma implícita ou explícita, um esforço de
“tradução” didática de conteúdos científicos, há que se reconhecer a pouca margem para a
compreensão do papel ativo da escola e a ausência de uma abordagem dialética no que se refere às
relações recíprocas entre esta e a academia na questão da produção do conhecimento e das práticas
pedagógicas.
Embora esta concepção seja um avanço em relação ao modelo tradicional mnemônico de
educação geográfica, ela ainda carrega consigo um risco imbricado na ideia implícita de “transpor”
algo de um “lugar para outro, da academia para a escola, “sem alterações” (LOPES, 1999, p. 208).
Como dissemos, são dimensões e espaços congruentes, mas, ao mesmo tempo, diferenciados. Entre
6 Em suma, citando textualmente Stengel (1997, p. 599): “There is something objectively important in the substance of the
disciplines; however, the disciplines themselves arise out of efforts to understand and unpack the mysteries and challenges
of humans living in the world. The moral may be hidden or even mystified, but it is always present just beneath the surface
of academic knowledge”.
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uma e outra (ou seja, entre o “saber sábio” e o “saber ensinado”), há uma “cadeia de transposição” que
é heterogênea e cheia de interposições, traduções, mudanças e transformações, como nos faz pensar
Philippe Perrenoud (1998)7.
Caminhamos, assim, para uma compreensão da questão, que reconhece a possibilidade de
contestação, reorganização, reestruturação pela escola, assumindo um papel ativo diante do próprio
currículo e das políticas públicas educacionais (LOPES, 1997; FORQUIN, 1996; MAINARDES,2006).
Tendo em vista esse papel ativo da escola e de seus professores, situamos o problema em termos
de uma “mediação didática” no seu sentido dialético como defende Lopes (1999)
Tendo em mente o trabalho de campo em geografia, questionamos até que ponto o problema
residiria numa prática pedagógica de transposição da tradição da geografia científica para a realidade
da escola, desconsiderando, muitas vezes, importantes variáveis envolvidas na sua realização pelo
professor da Educação Básica e que interferem não só nos resultados como também nos próprios
procedimentos a serem adotados. Mais do que colocar em xeque as lacunas a respeito da falta de
uma reflexão e de um exame do próprio “campo” no seio da geografia, como advertiu Pires do Rio
(2009), parece haver a necessária discussão a respeito das práticas educativas de geografia escolar,
de forma a compreender essas lacunas em face do deslocamento, inter-relação, modificação e
seleção presentes no movimento de tornar o trabalho de campo uma experiência educativa em
geografia para alunos da Educação Básica.
Considerações finais
Gostaria de poder apontar, de forma sumária, alguns aspectos que considero relevantes nesse
exercício a fim de provocar a abertura de diálogos sobre a questão:
7 Basil Bernstein, por sua vez, introduz nessa equação aquilo que chamava de “dispositivos pedagógicos”, ou seja, as
práticas pedagógicas que permitem que o conhecimento de uma disciplina ou campo específico possa ser “pedagogização”
e vir a se constituir num conhecimento escolar, expresso no currículo e nos conteúdos. Na sua visão, dispositivo pedagógico
fornece a “gramática intrínseca do discurso pedagógico” (SANTOS, 2003; MAINARDES, STREMEL, 2010).
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O TRABALHO DE CAMPO COMO EXPERIÊNCIA
EDUCATIVA EM GEOGRAFIA
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