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"O conceito de Natureza e a construção do conhecimento na geografia escolar"

Noberto Francisco de Barros Júnior


noberto jr@yahoo.com.br
INTRODUÇÃO

A Geografia, como uma ciência social, tem por objetivo o estudo das relações
estabelecidas entre a sociedade e a natureza no processo de produção e reprodução do
espaço geográfico. Embora não seja tratado exclusivamente pela ciência geográfica, o
conceito de natureza sempre teve um papel de elevada importância como elemento
estruturador para a construção de saberes numa dimensão da Geografia acadêmica e
escolar.
Essa reflexão sobre o conceito de natureza no âmbito escolar suscita o debate da
dicotomia entre a geografia física e humana, bem como entre a natureza e sociedade.
Essa realidade comum nas práticas pedagógicas cotidianas, torna-se mais preocupante
na ausência de uma sólida formação do professor para a educação geográfica,
condicionando a uma prática embasada na reprodução dos conteúdos contemplados nos
livros didáticos. A mesma fragilidade com a qual muitos saberes geográficos vem
sendo construídos nas salas de aula, tem se replicado na forma como se compreende e se
trabalha o conceito de natureza nas aulas de geografia. São referências muitas vezes
abordadas e discutidas de forma linear, descontextualizada e sem articulação com outros
conceitos inerentes a própria Geografia e a outras áreas de conhecimento.
A fim de elucidar o debate sobre a construção de conhecimento a partir do
conceito de natureza no ensino fundamental, é preciso explicitar as formas como os
grupos humanos historicamente foram dela se apropriando, atribuindo valores e
ressignificando a sua percepção. Com efeito, a compreensão do conceito de natureza
passa necessariamente pelas concepções construídas pelos grupos sociais a partir do
entendimento da realidade, das formas de organização social e nível de
desenvolvimento da sociedade em diferentes temporalidades. Na opinião de Carvalho
(2003), a definição ou conceituação do que seja natureza, depende da percepção que
temos dela, de nós próprios, e, portanto, da finalidade que daremos a ela, isto é, depende
das formas e objetivos de nossa convivência social. Implica dizer que a forma utilizada
pelas sociedades primitivas para entenderem e explicarem a natureza dependia
essencialmente dos valores e significados atribuídos por cada agrupamento humano no
passado, diferenciando-se dos princípios utilizados para conceituarmos e
compreendermos a natureza nos dias de hoje. É nesta perspectiva que se delineia o
presente artigo, buscando compreender a partir dos múltiplos olhares o conceito de
natureza e sua importância nas aulas de geografia.

OBJETIVOS

Objetiva-se com este trabalho uma reflexão acerca conceito de natureza como
elemento estruturador do conhecimento geográfico na prática da geografia escolar.
Como objetivos específicos, destacam-se: 1 - Identificar os objetivos da Geografia para
a formação dos educandos nos diferentes níveis da educação básica; 2 – Compreender
as concepções em que se fundamenta o conceito de natureza nos Referenciais
Curriculares Nacionais; 3 - Instrumentalizar a prática educativa a partir de alguns
referenciais didático-pedagógicas para o trabalho com a natureza no ensino
fundamental.

METODOLOGIA

A idéia de escrever o presente artigo está associada às experiências construídas


ao longo de mais de vinte anos de regência como professor de Geografia na educação
básica, em escolas da rede pública e particular de ensino. São vivências acumuladas em
diferentes níveis e modalidades, tendo como ponto de partida os múltiplos eixos
temáticos dos programas curriculares nos quais a natureza se apresenta como conceito
significativo para a educação geográfica. Segundo Castellar (2010, p. 102), os conceitos
são construções de significados dos fenômenos e objetos que criamos para interpretar
ou explicar o mundo ao nosso redor, e a escola auxilia na transformação deles. Por isso,
como espaço que não é único, mas, privilegiado para a construção do saber, a sala de
aula é o lugar do encontro de conceitos, teorias e reflexões elaboradas a partir dos
contextos históricos e culturais vivenciados pelos alunos e cientificamente reelaborados
pela mediação dos que se aventuram a construir uma prática pedagógica propulsora dos
saberes escolares.
A propósito, Cavalcanti (2006, p.35), dialogando com Vygotsky sobre a
formação de conceitos, destacam a importância sobre os conceitos científicos e
cotidianos. Para a autora, o encontro/confronto desse conhecimento, da dimensão do
espaço vivido, com a dimensão da geografia científica, do espaço concebido por essa
ciência, possibilita a reelaboração e uma maior compreensão da experiência por parte de
nossos alunos.
Nesse contexto, o artigo se estrutura em uma linha de pesquisa bibliográfica e
se apóia em diferentes concepções de natureza utilizadas no ensino de Geografia
construídas a partir de distintos olhares. Pela relevância que a natureza ocupa na
construção do saber geográfico escolar, aponta-se com base nos pressupostos teóricos
sobre a temática em tela, alguns referenciais para abordagem da natureza no cotidiano
da sala de aula, sem negligenciar os desafios socioambientais do mundo globalizado nas
diversas escalas geográficas.

RESULTADOS PRELIMINARES

Como conceito essencial aos processos de ensino e aprendizagem em


Geografia, a natureza sempre esteve presente nas propostas curriculares construídas em
diferentes perspectivas de ensino no nosso país. Para facilitar a compreensão do papel
da geografia e da natureza na estruturação do saber escolar, é prudente observar o que
preconiza a legislação educacional vigente nos Referenciais Curriculares Nacionais.
Na educação Infantil, a construção de saberes geográficos se efetiva por meio
do eixo Natureza e Sociedade, reunindo temas pertinentes ao mundo social e natural a
serem trabalhados de forma integrada respeitando as especificidades das áreas das
Ciências Humanas e Naturais. No que diz respeito ao I Ciclo do Ensino Fundamental
os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), considera: “Abordar
principalmente questões relativas à presença e ao papel da natureza e sua relação com a
ação dos indivíduos, dos grupos sociais e, de forma em geral, da sociedade na
construção do espaço geográfico”. Entretanto, para o II Ciclo, é ressaltado pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais:
principalmente as diferentes relações entre as cidades e o campo
em suas dimensões sociais, culturais e ambientais e considerando o
papel do trabalho , das tecnologias, da informação, da
comunicação, do transporte. (...) o objetivo central é que os alunos
construam conhecimentos a respeito das categorias da paisagem
urbana e paisagem rural: como foram constituídas ao longo do
tempo e ainda são, e como sintetizam múltiplos espaços
geográficos (op. Cit, p.139).

Os objetivos a serem alcançados no tratamento da natureza e dos demais


conceitos elencados para o Ensino Fundamental são desmembrados em blocos
temáticos, conteúdos situações didáticas e critérios de avaliação, cujo tratamento
introdutório é apontado na caracterização geral da área no inicio do documento. Na
abordagem para os anos finais do mesmo nível de ensino, a natureza é explicitada
aparece no eixo temático “o estudo da natureza e sua importância para o homem”. É
proposto o trabalho com os elementos da natureza em suas especificidades sem perder
de vista a interação entre esses elementos, seus processos e como eles interferem na
vida das pessoas e são por elas alterados a partir da apropriação humana pelos grupos
sociais. Enfatiza, portanto, uma perspectiva acadêmica da década de 90 que se refletiu
na produção da geografia escolar. Esta, pressupõe uma compreensão mais subjetiva da
relação do homem com a natureza, fruto das experiências individuais marcadas pelas
relações socialmente elaboradas pela cultura local na qual se encontram inseridas,
resultando em diferentes percepções do espaço geográfico e de sua construção.
A luz da Base Nacional Comum Curricular, o conceito de natureza deve ser
estudado pelos alunos do ensino fundamental, em articulação com o de meio ambiente e
qualidade de vida, a partir das múltiplas ideias que possibilitem a compreensão fisico-
natural, sua apropriação e produção, em relação as inúmeras possibilidades de uso e de
ocorrência dos impactos ambientais nos espaços urbano e rural.
Acredita-se que, desse modo, “o ensino de Geografia pode levar os alunos a
compreenderem de forma mais ampla a realidade, possibilitando que nela interfiram de
maneira consciente e propositiva” (op. Cit, p.108).
Porém, na última etapa de escolaridade da educação básica, os documentos
oficiais que norteiam as diretrizes curriculares também realçam a importância de uma
compreensão articulada da natureza no currículo escolar. No conjunto de competências
e habilidades específicas para os educandos do Ensino Médio, destaca-se na área das
Ciências Humanas e suas Tecnologias: “compreender o desenvolvimento da sociedade
como processo de ocupação de espaços físicos e as relações da vida humana com a
paisagem, em seus desdobramentos político, sociais, culturais, econômicos e humanos”.
Paradoxalmente a essas orientações curriculares, ainda é comum no espaço
escolar o trabalho com a natureza numa ótica eminentemente natural, ou seja,
impregnada de elementos físicos como a fauna e a flora, integrantes do mundo
selvagem. De acordo com Carvalho (2012, p.35),
essa visão “naturalizada” tende a ver a natureza como um mundo
de ordem biológica, essencialmente boa, pacificada, equilibrada,
estável em suas interações ecossistêmicas, o qual segue vivendo
como autônomo e independente da interação com o mundo
cultural humano. Quando essa interação é focada, a presença
humana amiúde aparece como problemática e nefasta para a
natureza.

Nessa visão, “a natureza do naturalismo” afirmada pela autora deveria está


fora do alcance humano, concepção de natureza presente entre vários grupos no
transcurso da história da humanidade. Ao compreender a natureza apenas numa
dimensão natural, é prudente fazer as seguintes indagações: Qual será então o papel da
natureza para a humanidade? Como explicar o espaço geográfico, a paisagem, os
territórios, o lugar como resultados de uma construção social? Teria sentido falar de
uma Geografia que estuda a materialização no espaço dos processos da natureza e da
sociedade?
Sendo o homem uma parte integrante da natureza, é ilusório demais pensá-
los de modo em separado. Assim, para Carvalho (op.Cit,p.36), a natureza pode ser
estudada a partir de outro ângulo: socioambiental. Nesse outro ponto de vista, a
natureza e os humanos, bem como a sociedade e o ambiente, estabelecem um relação de
mútua cooperação e copertença, formando um único mundo.
Analisando-se os escritos freireanos de perceber a aprendizagem como fruto
de um ato dialógico entre educadores e educandos no fazer e refazer pedagógico,
acrescenta a autora: nesse mundo de ordem natural autônoma e de realidade puramente
objetiva não há lugar para educadores e aprendizagens processuais, significativas,
reflexivas, criticas. Não há lugar para processos de construção do conhecimento no
encontro do sujeito com o mundo. Certamente que diferentes concepções, ideologias,
visões de mundo e contextos históricos e socioeconômicos, estruturam e fundamentam
essas concepções de natureza ainda presente nas práticas do ensino de Geografia.
Portanto, o ser humano como parte da natureza e sujeito do processo de construção e
modificação do espaço geográfico, deve interagir com a natureza de modo racional e
dela assegurar a sua sobrevivência.
Nas diretrizes enunciadas por Rua (1993), algumas recomendações são
fundamentais, e devem ser consideradas pelos professores do ensino fundamental na
discussão com os alunos sobre o papel da natureza no processo de produção do espaço
geográfico:
- A natureza é uma totalidade e não apenas a soma das partes (elementos) que a
compõem. Estudar a natureza é compreender a sua própria dinâmica. Todos os
elementos devem ser analisados como partes de um todo integrado e interagente.
- O espaço geográfico, fruto das relações que se estabelecem na sociedade ao longo de
um processo histórico, contem a natureza na medida em que o homem a utiliza e dela se
apropria.
- O estudo do espaço geográfico supõe duas preocupações iniciais:compreender a
dinâmica da sociedade humana, que produz e vive neste espaço, e compreender a
dinâmica da natureza permanentemente transformada pelo homem ao longo de um
processo histórico, na medida em que adquire técnicas que aceleram tal transformação.
- Ao trabalhar a natureza em sua dinâmica própria que expressa as inter-relações de
todos os seus elementos, devemos nos preocupar em levar os alunos a estabelecerem
uma crítica da ação do homem sobre ela e, a partir daí, construir os conceitos de
equilíbrio e desequilíbrio ecológico, bem como levá-los a perceber que as relações
homem-natureza, mediadas pelo trabalho, dependem da forma como a sociedade se
organiza e produz, e para produzir, se apropria da natureza, resultando num
entendimento mais amplo das relações sociais, politicas, ideológicas, jurídicas e
culturais.
Observa-se que, de acordo com essas proposições, é preciso compreender o
espaço geográfico numa visão de conjunto da sociedade-natureza, superando-se a
compreensão fragmentada da natureza tanto nas dimensões natural quanto social. Para
isso, deve-se partir de uma reflexão mais profunda e articulada sobre as concepções e
conceitos disseminados pela ciência geográfica nos dias atuais e dos encaminhamentos
metodológicos utilizados para o trabalho com essa temática na geografia escolar.
Ao produzir o espaço geográfico para atender as suas necessidades, os grupos
humanos se apropriam da “primeira natureza” ou “natureza primitiva” e produzem a
“segunda natureza” resultante da apropriação cultural. No entanto, as formas de
apropriação associada aos processos produtivos tornam-se mais intensas quanto maiores
forem as disponibilidades técnicas de cada sociedade, que transformarão os espaços
produzindo intensivamente profundas intervenções no meio ambiente. A esse respeito,
Santos (1997), assegura que o processo de culturalização da natureza torna-se cada vez
mais, o processo de sua tecnificação. As técnicas mais e mais, vão incorporando-se à
natureza e esta fica cada vez mais socializada, pois é, a cada dia mais, o resultado do
trabalho de um maior número de pessoas. Deste modo, o espaço como produção emerge
da história da relação do homem com a natureza, processo no qual o homem se produz
como ser genérico numa natureza apropriada e que é condição de sua produção, afirma
Carlos (2014, p.63).
Compreendendo a cultura como ato de produção humana para viabilizar os
processos de aprendizagem de jovens e adultos, é possível ainda perceber no olhar de
FREIRE (1981, p.70) a distinção entre estes esses dois mundos: o da natureza e da
cultura; o papel ativo do homem na sua realidade e com a sua realidade; o sentido de
mediação que tem a natureza para as relações e a comunicação do homem: a cultura
como acréscimo que o homem faz ao mundo que não criou: a cultura como resultado de
seu trabalho, de seu esforço criador e recriador. Consequentemente, entender essa
mediação entre natureza e sociedade numa dimensão cultural, exige um esforço cada
vez maior para entendê-la em toda a sua complexidade.
O estudo da natureza e da organização do espaço geográfico numa perspectiva
inovadora do ensino da Geografia deve possibilitar a reflexão crítica do espaço em que
vive o aluno, além da construção de conhecimentos numa dimensão interdisciplinar e
transversal, utilizando os diversos meios e recursos didáticos pedagógicos. Para isso,
assegura Cavalcanti (1998), ser preciso construir no ensino um conceito de natureza
que seja instrumentalizador das práticas cotidianas dos alunos, em seus vários níveis, o
que requer inserir esse conceito num quadro da problemática ambiental da atualidade.
Mediante a contextualização e análise espacial dessas questões nas múltiplas escalas
geográficas, é possível pensar num posicionamento crítico e reativo frente aos desafios
socioambientais do terceiro milênio, na construção de novas concepções, formas de uso
e transformação da natureza.

BIBLIOGRAFIA

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