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14 Territórios do Poema

Tamanha Poesia • v. 7, n. 14 • jul.-dez./2022 • ISSN 2525-7900


Territórios
2 do Poema

ISSN 2525-7900
volume 7 | número 14 | jul.-dez./2022
Belo Horizonte - MG - Brasil

Tamanha Poesia • v. 7, n. 14 • jul.-dez./2022 • ISSN 2525-7900


EXPEDIENTE

Organização deste número


Mariana Pereira Guida
Roberto Bezerra de Menezes
Silvana Maria Pessôa de Oliveira

Conselho Editorial
Erick Gontijo Costa (CEFET-MG)
Patrícia Chanely Silva Ricarte (UFMG)
Raquel dos Santos Madanêlo Souza (UFMG)
Roberto Bezerra de Menezes (UFMG)
Silvana Maria Pessôa de Oliveira (UFMG)
Valéria Soares Coelho (UFMG)

Revisão
Mariana Pereira Guida
Roberto Bezerra de Menezes
3
Silvana Maria Pessôa de Oliveira

Projeto Gráfico e Diagramação


Roberto Bezerra de Menezes

Capa: a partir da obra La Bruja, de Cildo Meireles.

Edição
Centro de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais

Avenida Antônio Carlos, 6627 – Sala 3049, CEP: 31270-910 – Belo Horizonte, MG
(31) 3409-5134
jmitraudpessoa@gmail.com

Polo de Pesquisa em Poesia Portuguesa Moderna e Contemporânea


polopesquisapoesia@gmail.com

ISSN 2525-7900

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SUMÁRIO
8 Mariana Pereira Guida, Roberto Bezerra de Menezes, Silvana Pessôa de Oliveira
Apresentação
POESIA & FILOSOFIA
17 Erick Gontijo Costa
Um estremecimento, ainda: a palavra començante entre poemas portugueses
35 Anna Silva
Vitorino Nemésio e Jacques Derrida: diálogos zoopoéticos entre O bicho harmonioso
e O animal que logo sou
51 Cristhiane R. Malaquias, Gustavo H. Rückert
Desejo e comunicação: o afeto da alegria na poesia de Florbela Espanca
PESSOA, PROBLEMA INFINITO
67 Marcelo Alves da Silva
Álvaro de Campos negativo: uma poética belicosa
81 Sabrina de Farias Sales
“O guardador de rebanhos” e “O regresso dos deuses”: Alberto Caeiro segundo
António Mora
ENTRELAÇAMENTOS 5

95 Fadul Moura
Anjos que caem: a profanação em Paula Rego e Maria Teresa Horta
109 Ingred Georgia de Sousa Silva
Regressar à casa: leituras de Manuel António Pina e Sophia de Mello Breyner
Andresen
123 Cíntia Paula Maciel
Figurações da morte na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen e Hilda Hilst
143 Wendel Francis G. Silva
O mar é maior nos Açores: a presença das ilhas em textos de Cecília Meireles e
Sophia de Mello Breyner Andresen
VOZES DO CONTEMPORÂNEO
167 Rodolpho Amaral
“Os corpos pavoneavam”: a subjetividade como um conjunto de próteses na
obra de Al Berto
183 Suelen Cristina Gomes da Silva
Percursos do poema em Onde vais, Drama-Poesia?, de Maria Gabriela Llansol
197 Isabelle Ferreira Scalambrini Costa
“Vale a pena escrever poemas”: notas sobre o livro Pardais, de Adília Lopes
207 Maria Cristina Oliveira Fonte Boa
Visitas ao lugar-comum: Adília Lopes e Ana Martins Marques
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Sobre esta mesa


regresso à palavra
e ao renovado gesto
de sombra e vigília.

Toda a poesia é espaço táctil


onde se diz
a cegueira da linguagem.

Luís Quintais
in Ângulo Morto

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Apresentação

Completando 7 anos de Tamanha Poesia, este


número coloca em circulação textos com reflexões
apresentadas ao longo do III Colóquio Internacional
de Poesia Portuguesa Moderna e Contemporânea,
ocorrido nos dias 12, 13 e 14 de dezembro de 2022,
em modo presencial, na Faculdade de Letras da
8
Universidade Federal de Minas Gerais, e em modo
remoto, via plataforma Zoom. Esta terceira edição
do evento é fruto da colaboração entre o Centro
de Estudos Portugueses da FALE/UFMG, o Polo
de Pesquisa em Poesia Portuguesa Moderna e
Contemporânea e o Centro de Estudos Luso-Afro-
Brasileiros da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais.
Abre este número e a primeira seção,
“Poesia & Filosofia”, o ensaio de Erick Gontijo
Costa, que persegue a ideia da palavra começante
como um dilema da poesia (portuguesa), passando
por poéticas do século XX, como Sophia de Mello

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Breyner Andresen e Herberto Helder, para desaguar em
Vasco Gato, representante de uma poesia que podemos
dizer nossa contemporânea. Partindo dos pensamentos de
Heidegger e Blanchot, o ensaísta dá a ver o poema como
uma forma de instaurar e inquirir começos.
Na sequência, a investigadora Anna Silva promove
o diálogo entre Vitorino Nemésio e Jacques Derrida
por meio do pensamento sobre o animal, aprofundando
os ainda recentes estudos zooliterários. Interessa a ela
depreender uma reflexão denominada “zoontológica”
ancorada na poética do poeta açoriano.
Também partindo das contribuições da Filosofia,
nomeadamente a de Spinoza, Cristhiane Malaquias e
Gustavo Rückert defendem que as noções de desejo e de 9

alegria são forças vitais que animam a poética de Florbela


Espanca, oferecendo uma leitura singular da autora do
Livro de Mágoas.
Em “Pessoa, problema infinito”, segunda seção
deste dossiê, encontra o leitor o texto de Marcelo Silva,
que comenta a relevância da cultura clássica, tanto na sua
vertente grega quanto latina, na poética do heterônimo
pessoano Álvaro de Campos.
Já Sabrina Farias de Sales põe em evidência o
diálogo entre Alberto Caeiro e António Mora, heterônimos
de Fernando Pessoa, mostrando como o último pode ajudar
a compreender a poética e o pensamento do primeiro e

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evidenciando o complexo “drama em gente” pessoano nas
suas facetas poética e crítica.
“Entrelaçamentos” é título da terceira seção. Nela,
como o título bem revela, os diálogos são a tônica. Fadul
Moura abre a seção com texto que, a partir da ideia de
“profanação” tal como a concebe Giorgio Agamben,
apresenta um estudo comparativo entre a poética de
Maria Teresa Horta e a pintura de Paula Rego. A figura do
anjo é aí explorada como importante conceito operatório a
conectar ambas as formas de arte.
Por sua vez, Ingred Sousa busca aproximar, tendo
como horizonte crítico a imagem da casa, o modo como
esta figura se apresenta na poesia de Sophia de Mello
10 Breyner Andresen e na de Manuel António Pina.
Cíntia Maciel entrelaça as poéticas de Sophia de
Mello Breyner Andresen e Hilda Hilst a partir de reflexões
que tomam como ponto central as questões atinentes à
morte e à finitude. Seu argumento aponta para a dimensão
trágica de tal busca movida por um desejo de completude
sempre atravessado pelo impedimento da morte, que
se impõe sobre a vida enquanto experiência impossível
evidenciada na escrita das duas poetas.
Completa a seção o texto de Wendel Francis,
estruturado sob o viés comparatista, no qual traça
aproximações entre as poéticas de Sophia de Mello
Breyner Andresen e Cecília Meireles, utilizando como

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recorte crítico a presença do mar em determinadas obras
de ambas as poetas.
Na última seção, “Vozes do contemporâneo”,
o leitor encontra reflexões acerca de Al Berto, Maria
Gabriela Llansol e Adília Lopes.
Em sua proposição crítica, Rodolpho Amaral,
a partir da intersecção corpo textual/corpo empírico,
mobiliza os conceitos de performatividade de gênero
( Judith Butler) e de prótese (Paul Preciado). Estabelecendo
conexões entre exemplos de sujeitos que põem em causa a
unidade ontológica clássica, o artigo estabelece um diálogo
entre o texto “Equinócios de Tangerina” e o romance
Lunário, demonstrando como o projeto desse poeta dá a
ver a artificialidade da suposta coerência das categorias 11

sexo, gênero e sexualidade, o que, em última instância,


revela estratégias de escrita que questionam as convenções
de gênero impostas aos corpos e, ao mesmo tempo, a
linguagem enquanto manifestação da subjetividade e da
experiência de tais corpos.
Suelen Gomes da Silva, por sua vez, investiga Onde
vais, drama-poesia? (2000), de Maria Gabriela Llansol,
tendo em vista aspectos relativos à sua composição poética,
uma escrita em estado de devir e de deslocamento que
remete para diferentes aspectos, desde a participação do
leitor na produção dos sentidos até a presença do corpo
como formulação da linguagem e do pensamento que foge

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à linearidade em direção à ação e à emergência de novas
possibilidades de existência textual.
Debruçando-se sobre um dos mais recentes títulos
de Adília Lopes, Isabelle Scalambrini Costa apresenta
Pardais (2022) traçando linhas temáticas que dialogam
com outros títulos da obra adiliana, como a metapoesia,
a inscrição de elementos autobiográficos e a presença da
casa e da infância. Além disso, destaca a presença da morte
enquanto desdobramento da percepção da passagem do
tempo, um componente que se acrescenta aos demais
a partir da obra em questão. Encerra este número o
texto de Maria Cristina Fonte Boa, que, num exercício
comparativo, justapõe as poéticas de Adília Lopes e Ana
12 Martins Marques, fazendo ressaltar suas afinidades e
diferenças no tratamento poético de figuras femininas do
Ocidente.
Este número de Tamanha Poesia dá a ler as mais
variadas vertentes das pesquisas acadêmicas em matéria
de poesia, nomeadamente a portuguesa, e atesta o vigor
com que ela se mostra ao mundo, provocando diálogos e
ruminações que mantêm, aceso, o seu fogo.

Mariana Pereira Guida


Roberto Bezerra de Menezes
Silvana M. Pessôa de Oliveira

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Poesia & Filosofia 15

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Um estremecimento, ainda:
a palavra começante entre
poemas portugueses

Erick Gontijo O tempo presente e o tempo passado


Costa Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Centro Federal
T. S. Eliot
de Educação
Tecnológica de
Minas Gerais
Poesia, estudo das transformações verbais que
conservam os impulsos iniciais.
Paul Valéry
17

Um traço recorrente entre algumas obras de


poetas portugueses do século XX e do começo deste
século é o pensamento da possibilidade de haver
poema que instaure um começo. Cada uma dessas
obras tende a formular um idioma próprio em face
do que há por se dizer, já que para elas as relações de
nomeação preexistentes ao poema não servem.
Em seu livro Heráclito, Heidegger explicita
essa incessante renovação das palavras também como
fundamento de um certo pensamento originário,
cujo cerne seria a palavra poética. Para aceder à
potência dos nomes em face das coisas, o pensador
alemão afirma a necessidade de, a cada vez, “compor”

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a “imagem diante da coisa em questão” (HEIDEGGER,
2002, p. 126). Para isso, seria preciso pensar “como se
dá uma relação com a coisa”, porque “a relação deve ser
sempre novamente conquistada” (HEIDEGGER, 2002,
p. 126). De forma um tanto próxima ao modo de proceder
do dizer poético, um pensador seria aquele para quem
“a relação só se deixa conquistar na pronúncia da coisa
a partir da coisa ela mesma”. (HEIDEGGER, 2002, p.
126). Nessa perspectiva, as obras de poetas e de pensadores
se fazem gesto de recomeço incessante, ao reverberarem
entre os nomes um dizer do mundo.

1 Coisas sumérias: distensão e contração


18 Esboçarei a seguir um pensamento simplificado –
talvez não de todo simplificador – do que percebo como
dois traços constitutivos de alguma poesia portuguesa
moderna e contemporânea. Há nessas obras pelo menos
dois eixos, de que o poema seria um entrecruzamento.
Digo pelo menos dois, e cada leitor seria já a introdução de
novos eixos nessa arquitetura imprecisa. O primeiro seria
horizontal: o lugar de distensão do excesso de palavras. O
segundo, vertical: o lugar da contração da palavra.
O primeiro eixo se prolonga no tempo, entre
palavras que se reenviam e se dizem uma vez mais, até
o limite em que a repetição se dissemina no vazio. Esse
movimento metonímico, entretanto, esbarra em limites,

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em algo como um caroço que não cede à insistência
das palavras, como se demandando a reinvenção da
linguagem. Algumas vezes, as palavras se dizem como se
pela primeira vez; outras, não fazem questão de velar o
que nelas se repete. Onde há poesia, entretanto, algo do já
dito se desarranja e se rearranja:

Mas não, desiste. Desiste até de desistir.


Não será este o último poema, por mais
que o julgues ou sintas (e os versos,
para ti, foram sempre sentimentos vãos). (FREITAS,
2017, p. 57).

Entre desistência e sua destituição, a vanidade dos


sentimento ante o que se repete se faz também oco, espaço
vazio de palavras, por onde se lê o não dito que sopra entre 19

o redito. No seio da repetição, a singularidade do poema


se afirma, a despeito de sua recusa, entre os vãos das
palavras. O caminho da recusa, assim, velaria a afirmação
da possibilidade de haver, ainda, poemas.
O segundo eixo, vertical, é o lugar do que se
precipita no instante. Tem aparência sincrônica. É
como um relâmpago precipitado no olhar que, sendo já
o princípio do alvo, se arremessa. Um raio que rasga na
temporalidade presente o espaço da presença para a qual
não há, para a qual nunca haverá palavra que baste. É o
lugar onde a palavra falta, onde só se diz em falta porque
em face da presença que excede todo nome. Há um olhar
presente, não exatamente um olhar para o presente, mas

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para a presença. Um olhar rente às coisas do corpo, do
mundo e das palavras. E também rente ao tempo, que se
desmobiliza. Um olhar que atesta o que se faz presença do
vivo como irrupção da palavra no instante que resvalou para
fora da cadeia do tempo. A palavra como “voz vinda de outra
lugar” (BLANCHOT, 2011), voz que não habita o cofre
dos sentidos acostumados. Tendendo à natureza metafórica,
este eixo, entretanto, culmina justamente no silenciamento
ou na destituição da metáfora. Diria que esse hipotético eixo
converge para a solidão do acontecimento sem nome:

Não procure verdade no que sabes


Nem destino procures nos teus gestos
Tudo quanto acontece é solitário
Fora de saber fora das leis
20 Dentro de um ritmo cego inumerável
Onde nunca foi dito nenhum nome (ANDRESEN,
2015, p. 317).

Fora de saber, fora das leis, onde o que se diria


verdade declina na ausência de nomes, o poema é
acontecimento lançado no aberto, relâmpago na paisagem,
revelação do lugar “Onde nunca foi dito nenhum nome”.
O poema se manifesta como impulso de uma estranha
palavra sem medida, articulada por um “ritmo cego
inumerável”. Uma palavra de um começo se esboça por
estranheza aos nomes já ditos e aclimatados, diz-se não
a partir da replicação de uma realidade prévia, mas como
reverberação do impulso rítmico-imagético, “pronúncia da

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coisa a partir da coisa ela mesma”. (HEIDEGGER, 2002,
p. 126). Onde o poema prolonga seu impulso primeiro, o
acontecimento poético seria já “O nome deste mundo dito
por ele próprio” (ANDRESEN, 2015, p. 898).
A palavra poética, como desvelamento de uma
presença, se diz no espaço vazio onde as coisas, não sendo
mais as coisas de um mundo saturado de nomes, são ainda
menos que nome: um impulso que inaugura a possibilidade
de dizer uma vez mais, de singularizar o que seria repetição,
se não houvesse atenção à presença, à relação inaugural
entre palavras e presença aberta ao porvir.
Dois eixos, portanto: um de excesso de palavras
e esvaziamento do dizer, outro de falta de palavras ante
o excessivo por se dizer. O poema se manifesta entre 21

esses dois eixos. Ora tende a um, ora a outro. Mas sem
a espacialidade aberta do olhar como presença ou sem
a leitura do tempo que se dita e se reedita, talvez já não
estejamos em face de poesia.
Não se trata de um olhar para o passado e outro
para o presente. Não se trata de repetição do já dito pela
tradição nem de um dizer atual, ao gosto do presente.
Trata-se de, em um só gesto, olhar para o que, no espaço
presente, aberto ao porvir, se diz como presença arcaica
que ainda vigora e sempre resta por se nomear mais uma
vez. Nessa perspectiva, o presente é uma ilusão, efeito do
nó entre a atenção à presença e o feixe da história que nos
atinge e nos ultrapassa. Esse nó é o poema.

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Um poema exemplar quanto ao entrecruzamento da
leitura como captura do impulso no limite da sobreposição
de temporalidades e de manifestação de uma presença que
resta intacta, à despeito da passagem do tempo, pode ser
lido em A morte sem mestre, de Herberto Helder:
tão fortes eram que sobreviveram à língua morta,
esses poucos poemas acerca do que hoje me atormenta,
décadas, séculos, milénios,
e eles vibram,
e entre os objectos técnicos no apartamento,
rádio, tv, telemóvel,
relógios de pulso,
esmagam-me por assim dizer com a sua verdade última
sobre a morte do corpo,
dizem apenas: igual ao pó da terra que não respira,
o que é falso, pois eu é que deixarei de respirar
sobre o pó da terra que respira,
22
entre o poema sumério e este poema de curto fôlego,
mas que talvez respire um dia,
ou dois, ou três dias mais:
quanto às coisas sumérias: as mãos da rapariga,
o cabelo da estreita rapariga,
a luz que estremecia nela,
tudo isso perdura em mim pelos milénios fora,
disso, oh sim, é que eu estou vivo e estremeço ainda
(HELDER, 2014, p. 11-12).

No poema, não se cita o passado por erudição, nem


há esvaziamento da poesia no presente. No horizonte do
dizer, há a constatação de “décadas, séculos, milénios” e
de uma “língua morta”, a que se enlaça, como presença, a
vibração dos poemas que “sobreviveram à língua morta”.
Entre os sinais do tempo presente – “os objectos técnicos
do apartamento” que reduziriam a cena à repetição do

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banal –, irrompem os sinais do vivo, a “verdade última/
sobre a morte do corpo”. Entre o “poema sumério e este
poema de curto fôlego”, em meio à distensão do tempo,
uma presença persiste como irrupção do impulso primeiro
da palavra, digamos, em estado de “coisas sumérias”.
Perdurando a despeito da distensão temporal, à diferença
de qualquer repetição vazia ou citação erudita, há a “luz
que estremecia nela”, cujo estremecimento reverbera no
poema presente como presença: “disso, oh sim, é que
eu estou vivo e estremeço ainda”. Há temporalidade e
tradição, há leitura, é evidente. Mas o que relampeja, o que
se precipita, o que se faz presença para além do passado
e do presente é a presença das coisas ditas sumérias, para
além dos nomes, mas não sem eles e sua reinvenção. 23

2 A palavra começante
O pensamento e a poesia, em Heidegger, são
caminhos de abertura da linguagem ao impulso começante
que não se dissolve no tempo: “Para os caminhos do
pensamento, o passado continua passado, mas o vigente
do passado está sempre por vir.” (HEIDEGGER, 2008, p.
9). O que do passado seguiu reverberando à espera de ser
nomeado não é um ponto original perdido na cronologia.
Para além de uma procura essencialista, há que ler aí a
possibilidade de dizer à altura de um começo que não se
confunde com origem.

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Em Heidegger, ainda que haja certa perspectiva
essencialista da origem em jogo na poesia e no pensamento,
encontra-se também a indicação de diferenças entre
começo, princípio e origem:

O começo é aquilo com que algo se inicia, o princípio


é aquilo de onde isso vem. [...] O começo é cedo
deixado para trás, desaparecendo na continuação
dos acontecimentos. O princípio, a origem, pelo
contrário, evidencia-se primeiramente por entre os
acontecimentos e só no fim destes está plenamente
presente. Quem começa muita coisa, muitas vezes
nunca chega ao princípio. Acontece que nós humanos
nunca podemos principiar com o princípio – disso só
um deus é capaz –, pelo contrário temos de começar,
isto é, partir de um início que só conduz à origem ou a
indica. (HEIDEGGER, 2004, p. 11-12).

24
Um começo, à diferença do suposto princípio,
parte de um início contingente que só ao fim conduziria
ou indicaria uma hipotética origem. Haveria, portanto, um
impulso inicial, insituável cronologicamente, que seguiria
sendo força de início para um começo contingente. Ao
poeta e ao pensador, caberia a tarefa de traduzir esse
impulso iniciante em palavras de um começo. Estão aí,
de certa forma, os dois eixos que imaginei e exemplifiquei
anteriormente.
Foi também a partir de Heidegger, mas não apenas,
que Blanchot formulou seu entendimento sobre a “palavra
começante”1 da poesia.
1
Apesar de se citar a tradução já publicada em livro no Brasil,
optou-se, ao longo deste texto, por referir-se ao conceito de parole

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Toda palavra iniciante, ainda que seja o movimento
mais suave e mais secreto, é, porque nos empurra
infinitamente para adiante, aquela que abala e que
mais exige: tal como o brando raiar do dia no qual se
declara toda a violência de uma primeira claridade, e
tal como a palavra oracular que nada dita, que a nada
obriga, que nem sequer fala, mas faz desse silêncio o
dedo imperiosamente fixo na direção do desconhecido.
(BLANCHOT, 2011, p. 64).

A palavra começante – reverberando “o vigente do


passado” “sempre por vir” (HEIDEGGER, 2008, p. 9) – é
um impulso, empurra para adiante, afirma-se sem que dite
qualquer verdade sobre o porvir ou sobre o movimento
de que se anima. É uma palavra arcaica, muda, na raiz
do poema, à qual o poema responde “nada dizendo, nada
25
escondendo”: apenas “abre o espaço, abre-o a quem se abre
a essa chegada” (BLANCHOT, 2011, p. 58).
A essa presença verbal, poética e pensante, colhida
em Heidegger, Heráclito e René Char, Blanchot nomeará,
ainda, “Canto do pressentimento”:

commençante (BLANCHOT, 2002, p. 61) como “palavra começante”,


tal como propõe Márcio V. Barbosa em sua tradução ainda inédita:
“Toda palavra começante, ainda que seja o movimento mais doce e
mais secreto, é, porque ela nos ultrapassa infinitamente, aquela que
agita e que exige mais: tal como o mais doce nascer do sol, em que
se declara toda a violência de uma primeira claridade, e tal como a
palavra oracular que não diz nada, que não obriga a nada, que até
mesmo nem fala, mas faz desse silêncio o dedo imperiosamente fixado
na direção do desconhecido” (BLANCHOT, manuscrito de tradução
inédita).

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É, por excelência, o canto do pressentimento, da
promessa e do despertar – não que ele cante o que será
amanhã, nem que nele um futuro, feliz ou infeliz, nos
seja revelado com precisão –, mas une com firmeza,
no espaço que o pressentimento retém, a palavra ao
impulso e, pelo impulso da palavra, retém firmemente
o advento de um horizonte mais amplo, a afirmação de
um dia primeiro. (BLANCHOT, 2011, p. 60-61).

Palavra pressentida, o poema se faz abertura, dizer


que começa sem que se ignore que tudo já tenha começado
e acabado sucessivas vezes. Mas do que foi fim ou começo,
algo resta em recomeço, intacto, vigente. Por isso, que
haja a ilusão de tudo já se ter escrito pouco importa ao
poeta. Cada começo é uma singular reafirmação de seu
impulso, de sua palavra começante. E, porque o que resta
26
“vigente do passado” não é uma essência, mas uma palavra
começante, esse algo, esse resto, esse impulso será aquilo
que cada poeta disso fizer em sua obra.
“Para que poetas...”, bem, a conhecida pergunta de
Hölderlin se tornou um salão vazio onde quase tudo que se
diga ecoa. Dê-se a ela a resposta que se queira: será sempre
pouco, uma forma de seguir ecoando a pergunta. Todo
tempo tem seu tanto de indigência. Mas é no limiar do
tempo, no que dele resta como espaço e impulso à espera
da palavra pressentida, que o poema começa: “Haverá uma
visão terrível quando olharmos a nossa própria nudez/ Virá
então o fogo para acender um outro dia fundamental”,
escreve Vasco Gato, em Imo (2003, p. 58).

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3 O traço antigo de uma região intocada
O entendimento da poesia em Heidegger e
Blanchot está longe de ser suficiente para explicar a
multiplicidade de poéticas portuguesas contemporâneas.
Mas há uma linhagem de poetas que parecem em parte
situáveis nesse caminho de pensamento do poema. Poetas
um tanto distintos entre si, é fato: Pessoa, Sophia, Helder,
Daniel Faria, para dizer apenas alguns. Parecem ser esses
alguns dos escritores no horizonte da obra de Vasco Gato,
poeta para quem “as cinzas de um fogo podem acender/
outro fogo” (2016, p. 99).
Seu primeiro livro, publicado em 2000, intitula-se
Um mover de mão. O título sugere atenção ao começo da
escrita, ao assinalar a presença do gesto na raiz do primeiro 27

traço. Gesto que se prolonga no poema de abertura do livro:

imagino que sobre nós virá um céu


de espuma e que, de sol em sol,
uma nova língua nos fará dizer
o que a poeira da nossa boca adiada
soterrou já para lá da mão possível
onde cinzentos abandonamos a flor.
[...]
diz-me que há ainda versos por escrever,
que sobra no mundo um dizer ainda puro. (GATO,
2016, p. 9).
É um poema que se coloca como hipótese de um
poema por vir. Um poema à espera do que resta por dizer,
em uma obra que não desconhece a dificuldade de se dizer
uma vez mais, como se pela primeira vez. Um poema

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que apenas imagina um “nova língua”, entre a poeira que
soterra o que sobra por se dizer. Se há “versos por escrever”,
serão como o “dedo imperiosamente fixo na direção do
desconhecido” (BLANCHOT, 2011, p. 64).
Seguindo na direção do desconhecido, “esse lugar
onde/ o mundo não para de nascer” (GATO, 2016, p. 27),
essa obra não desconhece que “O trabalho não cessa./
Como se uma mão se seguisse a outra/ nessa dinâmica
entre os elementos essenciais” (GATO, 2003, p. 26). Entre
a leitura do tempo, dos poetas que o precedem, e a procura
do que seria uma “palavra natural” (2003, p. 26), vai-se
constatando o que há por dizer como presença velada,
como “ferida por baixo da cicatriz” (2003, p. 29). Entre a
28 releitura de poetas, o olhar atento para a presença velada
no presente e a procura de uma palavra começante, “a vida
assoma de uma raiz inacessível” (2003, p. 31).
É uma poética da lentidão, como se vai descobrindo
em seu segundo livro – Imo. Uma poética do ínfimo,
do encoberto que se vai abrindo em linguagem intensa:
“O que tenho para dizer é uma pedra cerradíssima/ que
lentamente se descose, empurrada pelo fogo,/ encostada à
garganta viva prometida ao silêncio” (GATO, 2003, p. 32).
Os poemas de Imo se marcam por uma tensão entre
o que se guarda esquecido no presente como o fechado da
pedra e o que se vai abrindo, se revelando como presença
arcaica, como um segredo ardente entre os ofícios da mão e
o movimento de investigação do que se encerra no espaço:

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Levas a mão à cara, procuras uma linha,
um traço antigo gravado pelo fogo.
Páras diante do total esquecimento.

É hora de bordar um outro movimento no espaço.


Levas a agulha à pele virgem e escreves
– inicias o segredo. (GATO, 2003, p. 33).

Descoser a pedra, bordar a pele como quem


procura movimentos imprevistos: à mão, cabe a procura
de um traço ardente, situado talvez nas próprias linhas da
mão com que se inicia o segredo. Segredo que confina com
o impulso de uma palavra começante:

Tal como o fogo se alimenta das suas


explosões, como os dedos se alimentam
da paisagem, como a água rebenta
nos lugares: assim temos 29
a nossa força. (GATO, 2003, p. 35).

Entre o fogo e sua natureza explosiva, entre os


dedos e a paisagem que se vai abrindo, entre a água e
os lugares que se abrem por sua insistência, desenha-se
“um gesto fundamental/ no repouso do mundo.// Um
nome vivo gravado sobre/ a matéria do universo” (GATO,
2003, p. 37). Na “palavra natural” (2003, p. 26) que se vai
formando nessa obra, vida, nome e matéria se querem
unificadas, compondo-se como uma só força imanente,
fundada no que do passado ainda vige e, feito palavra
começante, indica em parte o porvir da própria obra, tal
como se lê em “Lúcifer”:

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Sei que regresso, neste inferno solar, a um terreno de
força original.
O meu único plano é destruir o silêncio podre e vão.
O meu
único plano é acender um ponto
irrevogável no espaço. (GATO, 2016, p. 101).

Se, por um lado, há a constatação do tempo, do peso


das tradições poéticas e de suas obras, ante as quais há a
ilusão de pouco haver a dizer, há também um olhar dirigido
ao imo, um ponto irrevogável que se diria naturalmente,
porque “O espaço é vasto e há escritas invisíveis/ e canções
marcadas no cruzamento/ dos caminhos.” (GATO,
2003, p. 38). Nessa encruzilhada entre as obras lidas e o
“centro indecifrável do silêncio” (2003, p. 48) que todas
30 elas transportam, restaria “descobrir uma palavra/ por trás
desse contínuo balbuciar” (2003, p. 52).
Como é do poema começante que se trata nos
primeiros livros do autor, há necessidade de se fabricar
um idioma à altura desconhecido, há que bater contra
os muros da linguagem, contra os recursos já gastos das
palavras sempre repetidas. Para isso,
É preciso devolver as pedras
ao movimento, deitar o mundo
como um sangramento
para o espaço que lhe escapa,
invadir a vaga existência
das coisas para dentro das coisas
erguer uma fina metáfora. (GATO, 2003, p. 56).

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A essa fina metáfora, tão fina que parece se infiltrar
nas coisas quase sem que se perceba haver aí as palavras
de sempre, cabe o impulso de fazer deslizar o fechado do
mundo para o que lhe escapa. A fina metáfora – que se quer
potente a ponto de anunciar e arder – é também como uma
superfície lisa que servirá ao deslizamento entre o mundo
e o que lhe escapa, ao movimento metonímico entre imo
e aberto, entre as palavras do fogo e seus desdobramentos
vegetais: “Haja o relâmpago que incendeia o caminho/ de
quem já arde interiormente.// No fogo encontrarei a minha
flor.” (GATO, 2003, p. 60). O movimento de “erguer uma
fina metáfora” confinaria, assim, com o trabalho de “erguer
cada coisa dentro de si mesma” (2003, p. 63).
Entre as figurações do já visto e seus deslizamentos, 31

onde as coisas ganham singular consistência metafórica, o


poema, na encruzilhada entre tempo e espaço, entre o já
escrito e os “versos por escrever”, fundaria um dizer para
além da melancolia, na promessa de um devir possível para
o poema: “Libertaremos o tempo da lei que o aprisiona/
e sairemos para o espaço estelar sem queda/ ou regresso”
(GATO, 2003, p. 59).
A recorrência da abertura, a libertação do tempo
de suas leis, o deslizamento do mundo em direção ao
desconhecido e uma noção muito própria de espaço
esclarecem-se como propósito da linguagem poética em
face dos nomes acostumados e como tendência começante
da poesia:

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As coisas na paisagem
parecem recusar os seus nomes,
não estão contentes, protestam.
Então é necessário recomeçar o mundo.
[...]
Haverá uma região intocada.

Estudo a forma como uma palavra germina. (GATO,


2003, p. 91).

As coisas, nessa obra, são o próprio desconhecido


do mundo, uma suposta “região intocada” que ao poema
cabe sempre (re)nomear. Uma vez (mais) nomeadas as
coisas em sua recusa, um mundo, potencialmente, se abriria
ao estudo da germinação de palavras em meio ao vivo:

sigo pelas estrias da sua pele


32 até um lugar tenebrosamente
vivo, até uma língua sem falantes,
até ao ponto oracular em que entregarei
o sangue à revelação do sangue
pelo sangue (GATO, 2003, p. 102).

O sangue, no imo do corpo, revela-se por seus


meios, por sua improvável “língua sem falantes”, língua de
pura pulsação rítmica, constitutiva da palavra em “ponto
oracular”. Como obra de palavra começante, os primeiros
livros de Vasco Gato visam ao “segredo/ de uma primeira
palavra” (GATO, 2003, p. 106): não da palavra primeira,
original, mas de uma palavra que, em face do segredo, possa
testemunhar um começo. Começar à margem do tempo, à
beira do espaço desconhecido, aberto ao porvir, é da poesia

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uma exigência. Começar pelo espaço “à saída do verso,/ no
ponto em que o branco/ volta ao branco” (GATO, 2003,
p. 107).

Referências Bibliográficas

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Alvim, 2015.

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tradução inédita. Trad. Márcio V. Barbosa a partir da La
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Nova Fronteira, 2015.

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Editora Universitária São Francisco, 2008.

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HELDER, H. A morte sem mestre. Porto: Porto Editora,


2014.

34

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Vitorino Nemésio e Jacques
Derrida: diálogos zoopoéticos
entre O bicho harmonioso e O
animal que logo sou
Anna Silva 1 Introdução: questões de zooliteratura e ontologia
Universidade O Homem é a medida de todas as coisas, assim
dos Açores
escreveu Protágoras de Abdera, filósofo grego pré-
socrático, no século V a. C. (Fragmento: DK 80 B1).
Com esta célebre frase, a filosofia demarcou todo
o seu discurso antropocêntrico. De Protágoras a
Heidegger, da história da filosofia grega à história
35
da filosofia contemporânea, a discussão remete-nos
a um lugar da cultura: o tópos do antropocentrismo
epistémico que afirma que os seres humanos estão
condenados a ver o mundo como somente os
humanos podem ver, visto que o mundo dos animais,
ou da animalidade, é totalmente inacessível, fechado
para nós. Esta delimitação epistemológica reduz as
possibilidades do que pode ser pensado sobre o ser
dos outros animais e também restringe o que pode
ser pensado sobre a animalidade do ser humano e de
seu processo de hominização.
Para problematizar o antropocentrismo
epistémico, encontramos, nas últimas décadas do

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século XX e no início do século XXI, o desenvolvimento
de um novo campo de investigação denominado Estudos
Animais ou Zooliterários. Os estudos zooliterários têm como
foco principal repensar a relação entre homem e animal na
literatura, considerando a mudança dos paradigmas que
direcionam a distinção entre mundo civilizado e mundo
selvagem1. Nesse novo campo, o enfoque das investigações
entrecruza várias linhas de pesquisa em ciências humanas e
biológicas, abarcando tanto a bioética e a biopolítica como
as reflexões históricas, antropológicas, filosóficas e literárias.
Entre os autores pioneiros que buscaram desconstruir e
reconfigurar fora da esfera do antropocentrismo o próprio
conceito de humano, constituem referências importantes
36 para o desenvolvimento do presente estudo as teses
defendidas pelo filósofo Jacques Derrida.
No que tange à literatura, meu interesse recai
sobre a poesia de Vitorino Nemésio que, de forma
instigante, propõe novas maneiras de pensar as complexas
1
Como indicam em suas recém-publicadas investigações Maria Esther
Maciel, referência nos estudos zooliterários no Brasil e professora da
Universidade Federal de Minas Gerais, e Márcia Neves, investigadora
pós-doc do Instituto de Estudos de Literatura da Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Ambas
dedicam suas minuciosas análises aos bestiários lusófonos escritos por
Miguel Torga, Herberto Helder, Clarice Lispector, Guimarães Rosa,
Aquilino Ribeiro, entre outros. Elas observam que os Estudos Animais
ou Zooliterários possuem duas grandes vertentes de investigação: a que
diz respeito ao animal propriamente dito e à chamada animalidade e a
que se dedica a pensar e escrever as complexas e controversas relações
entre homens e animais não humanos. Cf. MACIEL, 2011; NEVES,
2016.

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e controversas relações entre homens e animais não
humanos. Em O bicho harmonioso, O cavalo encantado
e Cão atómico, etc. e biopoemas, tentarei mostrar que é
notável a incursão “zoontológica” delineada por Nemésio,
que constrói interfaces entre a filosofia e a literatura ao
ultrapassar as circunscrições metafóricas e o paradigma
da fábula, inaugurando uma “zooliteratura” capaz de
descrever a humanidade e a animalidade não mais em
termos de oposição hierarquizada, mas em termos de
complementaridade. Para articular poesia e prosa, ou
seja, para aproximar o sentido da reflexão filosófica e o
alcance da criação poética no interior da vasta produção
literária nemesiana, utilizarei como textos de apoio a
coletânea de artigos, ensaios e conferências intitulada Sob 37

os signos de agora e o célebre prefácio “Da poesia”, escrito


especialmente para a edição da coletânea de seus escritos
poéticos.

2 Nemésio, Derrida e o fogo de Prometeu


Nemésio aprofunda a “ontologia do ser-se
açoriano”, escreveu o professor Machado Pires, “brincando
com os mitos como quem brinca com o fogo de Prometeu”
(2009, p. 70). Os mitos em questão tratam da sua ilha, por
ele chamada de Esfinge do mar, com sua história cultural
mergulhada na “singularidade telúrica” de uma natureza
sui generis. Qualquer que seja seu quinhão de enigmas e

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de mitos, muitas das reflexões empreendidas pelo poeta
também adquirem os contornos de uma Esfinge quando
ele propõe pensar o que aparenta ser incognoscível. O
próprio poeta acolhe os desígnios esfíngicos ao figurar-
se como vivente enigmático que nos coloca diante de
um duplo mistério: o da animalidade questionadora do
humano. No ensaio filosófico intitulado Da Universal
Inquietude, Nemésio anuncia o seu claro enigma ao
explicitar as formas híbridas e míticas que separam e
opõem o humano e o não humano:

A Esfinge do mar é a ilha. Levanta-se no deserto


de águas como a pétrea cabeça que afrontava
Édipo na estrada de Tebas, mas não traga os
transeuntes como o monstro sob o pretexto
38 de que não sabem decifrar-lhe os mistérios
terríveis. Agasalha-os, amamenta-os com a sua
lava. É, neste ponto, mais parecida com a loba
de Rómulo (…).
(…) Não é a Esfinge precisamente um tema,
mas o complexo de todos os temas na sua
carne viva de possibilidade e inquietação.
Simbolicamente é pedra – meio leonina, meio
humana (NEMÉSIO, 1994, p. 162-163).

Entre o fogo de Prometeu, instaurador da


racionalidade técnica e dos seus múltiplos engenhos,
o drama da Esfinge, com seu corpo de leoa e rosto de
mulher “doloridamente humano”, e a mítica loba que
amamentou o mítico fundador de Roma, Nemésio aponta
o cerne onde reside a tragicidade da condição humana:

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“o descobrimento de uma ordem existencial e essencial
independente de nós”, a qual damos o nome de natureza.
É diante de uma “natureza inerte, surda e indiferente” que
se exacerba a ausência dilaceradora da “plenitude unitiva”
que tanto inquieta o ser humano, em si mesmo, dilacerado
e apartado da sua animalidade recalcada. E, assim, vive o
ser humano encarcerado na sua humana solidão, própria
de quem é incapaz de ter acesso pleno ao universo sensitivo
e cognitivo das demais espécies. Nesse contexto, Nemésio
conclui: “No deserto, disparando pelos olhos de mulher
uma fúria visual de leoa, a Esfinge, mau grado o percalço
com Édipo, pede interlocutor” (NEMÉSIO, 1994, p. 163).
As consequências deste conhecimento existencial
inconformado e inquietante manifestam-se na relação 39

ótica estabelecida diante do outro, meio humano, meio


animal, absolutamente estranho, que olha e que, olhando,
permanece em silêncio embora carregue no olhar um
modo primordial e eloquente de interrogação. Através
da fenomenologia do olhar esfíngico, as fronteiras entre
humanidade/animalidade passam a ser reconfiguradas por
intermédio de um paradoxo: por um lado, tais fronteiras
devem ser mantidas devido às inegáveis diferenças que
distinguem os animais humanos dos animais não humanos;
por outro, elas devem ser abolidas porque os seres humanos
precisam reconhecerem-se como animais para tornarem-
se humanos. É este o quinhão que Nemésio compartilha

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com Derrida. Neste ponto, podemos avizinhar o poeta
e o filósofo ao nos aproximarmos das ponderações que
ambos desenvolvem no que tange à apreciação crítica e
fenomenológica do dogmatismo antropocêntrico.2
Em suas reflexões, nossos autores destacam que
foi precisamente por meio da negação da animalidade
que se construiu uma definição do humano. Tanto o
poeta como o filósofo desconstroem o humanismo
antropocêntrico e logocêntrico, que atravessa de forma
hegemónica toda a história da cultura ocidental, quando
contestam a limitação da definição clássica do homem
como animal racional.
Vejamos, primeiramente, em Derrida como aparece
40 elaborada essa contestação no seu livro intitulado O
animal que logo sou. Nesse texto, Derrida analisa a tese de
Heidegger que define o animal como “pobre de mundo”
(weltarm) em oposição ao ser humano definido como o
2
Sabemos que um dos primeiros escritos de Derrida sobre
fenomenologia foi publicado com o título Le problème de la genèse
dans la philosophie de Husserl (1953). Por seu turno, Nemésio lê
Husserl através do seu discípulo Max Scheler. No ensaio filosófico
anterioremnte citado, Nemésio observa: “Max Scheler escreve que ‘as
ideias não existem antes, nem em, nem depois das coisas, senão com as
coisas’” (1994, p. 163). A meu ver, o vínculo dos nossos autores com
a fenomenologia também pode ser identificado na célebre máxima
husserliana inscrita no texto das Meditações cartesianas: “o regresso
às próprias coisas ou estados de coisas dá-se por via da experiência e
da visão intelectiva originária”. Sob esse prisma, poeta e filósofo(s)
sublinham a passagem contínua da percepção à representação como
presença fundadora de todo e qualquer ato psíquico e que contém em
si um horizonte amplo de remissões e significados.

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formador do mundo (weltebilden). A privação de mundo,
para Heidegger, define o animal porque corresponde a
sua incapacidade linguística de dizer, nomear, responder.
Por oposição e por cisão, o ser humano aparece dotado
da capacidade de nomear, formular questões e endereçar
respostas. Eis o ponto de partida da crítica derridiana:
de Platão a Heidegger, a civilização ocidental instituiu
por intermédio da sua obsessão pelo lógos uma forma de
legitimação do assujeitamento dos animais.
Para pensar a questão animal de forma mais
consequente e coerente, Derrida sugere, como Nemésio,
que o olhar é um modo primordial de interrogação que
o pensamento acolhe como desafio, como convite ao
filosofar. A partir dessa abertura reflexiva, será também 41

uma inquietação, um incómodo, o encontro de Derrida


com o olhar de sua gata. E Derrida está nu, “nu como um
animal”, porque ser olhado nu é ser inscrito na concretude
da corporalidade, é retornar à animalidade – a animalidade
da qual o ser humano sempre buscou se distinguir:

Freqüentemente me pergunto, para ver, quem


sou eu – e quem sou eu no momento em que,
surpreendido nu, em silêncio, pelo olhar de
um animal, por exemplo os olhos de um gato,
tenho dificuldade, sim, dificuldade de vencer um
incômodo. (DERRIDA, 2002, p. 15).

E a partir desse estar-aí-diante-de-mim, ele


pode se deixar olhar, sem dúvida, mas também,
a filosofia talvez o esqueça, ela seria mesmo esse

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esquecimento calculado, ele pode, ele, olhar-me.
Ele tem seu ponto de vista sobre mim. O ponto
de vista do outro absoluto, e nada me terá feito
pensar tanto sobre essa alteridade absoluta do
vizinho ou do próximo quanto os momentos em
que eu me vejo visto nu sob o olhar de um gato.
(DERRIDA, 2002, p. 28).

A experiência de se sentir olhado, de “ver-se


visto” pelo olhar de um animal faz com que o gato se
torne sujeito ao revestir-se de uma subjetividade que
revela a condição animal do ser humano e a sua recíproca
– a condição humana do animal, possibilitando ao nosso
autor sentir “o limite abissal do humano”. Ao ser olhado
por sua gata, Derrida desconstrói a mais canónica das
distinções utilizadas para estabelecer a linha divisória
42
entre humanos e animais: a linguagem. Para o filósofo, o
animal que é observado, não é mais um mero objeto da
visão, mas um sujeito da visão, a origem do olhar para o
qual os humanos são projetados desde o fundo de uma
animalidade compartilhada.
O encontro de Derrida com o olhar esfíngico de
sua gata também nos remete aos paradigmas instituídos
pela ontologia judaico-cristã. Na narrativa do livro do
Gênesis, observa o filósofo, é Elohim, o deus único, quem
ordena ao homem, criado depois dos animais, que exerça
o comando sobre os animais e os nomeie (Cf. DERRIDA,
2002, p. 35-36). Nessas articulações cosmogónicas do
mito, o que está em causa é a legitimação da autobiografia

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da espécie humana batizada como “história”. Uma
autobiografia inscrita e escrita na demarcação de interesses
e enganos, privilegiada pelo acesso exclusivo dos seres
humanos à linguagem de palavras. Essa autobiografia, nos
diz Derrida, deve converter-se em “linguagem redentora”
capaz de resgatar a “afasia” enlutada dos animais ao “tornar-
se confissão”. Fundamentalmente, o quadro acerca da
autobiografia confessional repensada e refinada ao longo da
história da filosofia, transitando pelas obras de pensadores
como Santo Agostinho e Rousseau, tão somente mostra
que “o discurso sobre si não dissocia a verdade da revelação,
da falta, do mal e dos males” (DERRIDA, 2002, p. 44-45).
Mais do que uma autobiografia antropocêntrica,
trata-se de avançar rumo a um despojamento da história 43

para expor o alicerce do narrável, desnudando o humano


de suas convenções e atributos, alcançando o que nele é o
puro ser vivente.

Há muito tempo, é como se o gato se lembrasse, como


se ele me lembrasse, sem dizer uma só palavra, o relato
terrível da Gênese. Quem nasceu primeiro, antes dos
nomes? Quem viu chegar o outro em seu território, há
muito tempo? Quem terá sido o primeiro ocupante, e
portanto o senhor? O sujeito? Quem continua, há muito
tempo, sendo o déspota? (DERRIDA, 2002, p. 39).

O filósofo questiona, insistentemente, os liames


que são obliquamente invertidos e mantidos com o
intuito de apagar os traços de uma literatura do discurso

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capaz de escrever a história dos animais sem colocá-los
a serviço da soberania humana. Em forma de denúncia,
Derrida constata que o antropocentrismo logocêntrico
foi historicamente construído para assegurar uma rede de
exclusões onde os animais são condenados a serem meros
instrumentos a serviço do bem-estar do ser humano.
Animais enjaulados nos zoológicos, animais confinados e
abatidos em fazendas industriais, cobaias de laboratórios,
espécies em vias de extinção, todos eles desafiam o
nosso posicionamento ético-político. São seres vivos que
sofrem e que estão vulneráveis às mais sórdidas formas
de explorações, por isso, adverte o filósofo, faz-se urgente
a necessidade de repensar a forma como os animais são
44 tratados.

A questão prévia e decisiva seria a de saber se


os animais podem sofrer. [...] A partir de seu
protocolo, a forma dessa questão muda tudo.
A questão não diz respeito apenas ao logos,
à disposição ou não do logos, e de toda sua
configuração, nem mesmo, mais radicalmente,
a uma dynamis ou uma exis, este ter ou esta
maneira de ser, esta modalidade que se chama
uma faculdade ou um “poder”, este poder-ter
ou este poder que se tem (como no poder de
raciocinar, de falar, com tudo o que se segue). A
questão se preocupa com uma certa passividade.
Ela testemunha, ela já manifesta, como questão,
a resposta testemunhal a uma passibilidade,
a uma paixão, a um não-poder. (DERRIDA,
2002, p. 54-55).

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Derrida sublinha que para aqueles que têm o
mais elementar senso de observação, fica evidente que
os animais sofrem, sentem, experimentam o medo e são
capazes de guardar uma memória do passado. Isto posto,
devemos agir de forma consequente, estabelecendo com
os animais uma relação que não seja de sujeição, mas de
cumplicidade.
Sob essa perspectiva, as considerações bioéticas
do filósofo unem-se em uníssono aos versos do poeta.
Cabe lembrar, na íntegra, os versos do poema “Micro-
moral”, publicado por Nemésio no livro Cão atómico, etc. e
biopoemas:

No Julho, sossegado dos charcos


Um anúrio respinga, 45

Mas outro é o visco elástico:


Uma ideia, um remorso.
O que o poeta pensa ou sente é que arfa em alvo:
E, de Esopo a Galvani,
Como uma ancila a rã se serve à mesa do homem.

Oh, doce sujeição dos bichos,


Nossos irmãos moleculares,
Imolando nas aras centrifugadas vida,
Dando o pobre corpinho ao manifesto da Certeza
Que, se não consola a alma,
Ao menos explica e previne:
À santa mesa da Preparação
O pombo traz seu músculo,
O cachalote a fibra,
O ratinho o seu fígado,
O cavalo sua heme,
Cada qual como mãe que ao filhinho amamenta.

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Quanto a Escherichia, casta musa, a entranha aos vírus coxos
Cede por nosso amor, maternal e rebenta. (1989, p. 616).

Nemésio comunica por meio do seu


comprometimento poético os rigores dos crimes cometidos
contra os animais. Ele nos mostra como a linguagem poética
é capaz de afetar o nosso acesso à complexidade moral das
ações humanas diante da alteridade animal. Interessante
observar como esse tema é onipresente em Cão atómico,
etc. e biopoemas. Desde o título do livro até nos títulos dos
poemas nele inscritos, Nemésio explicita o seu desejo de
apreender o outro pelos sentidos e pela solidariedade ética.
Existe em “Micro-moral” um espaço privilegiado para
pensar, a partir do solo naturalista, os limites da tradição
46
humanista, levando assim a linguagem verbal e seu aparato
demasiado humano a debater-se na tensão corrosiva das
contradições éticas. O ato despótico repetido como voz
textual nas fábulas de Esopo, mimetizado nas batráquias
cobaias de Galvani, porta a insígnia de representante
da nossa presunçosa humanidade. Para nós leitores, a
perturbadora experiência do poema dura enquanto dura
o sadismo expresso pelo antropocêntrico “manifesto da
certeza” que promove, ao longo de todo o poema, o abate
dos animais em múltiplos e sombrios cenários e contextos.
Temos de aguardar, com desconsolada aflição, os três
últimos versos para nos vermos livres do martírio e da
mortificação que afligem os animais.

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Contudo, ainda estamos longe dos versos finais.
Temos de trocar olhares com os animais martirizados
que despontam, numa espécie de cortejo, diante da nossa
desditosa admiração. Primeiro, mostra-se a rã. Nosso
encontro com ela dá-se na mesa de refeição, de dissecação
e de eletrochoque. Nós a espiamos. Vemo-la como uma
silenciosa serva, entregando-se resignada à legitimação do
escândalo do sofrimento. Prossegue o medonho cortejo.
Lá vem o pombo, o cachalote, o ratinho e o cavalo. Todos
eles seguem em procissão como num ofertório lacônico,
adornado de generosidade maternal. Todos eles são
definidos pelo poeta como nossos “irmãos moleculares” e
cumprem, em silêncio, sua missão sacrificial junto ao altar
onde serão profanamente imolados, prescindindo, até 47

mesmo, dos seus berros uivantes, única eloquência audível


e único critério comunicativo determinante na postulação
de suas dores. Da inutilidade do dogma: “não matarás”,
prescrito pelo decálogo, deduz-se que basta aos animais
resignarem-se como bestas entregues à soberania humana,
permanecendo como pálida lembrança da nossa origem
comum ou como metáforas do que não devemos ser.
Chegamos nos versos finais. Para eles, Nemésio reserva
a invocação a sua “casta musa”, a bactéria Escherichia
Coli. Essa estranha musa marca a ruptura do poeta com
a tradição literária, visto que ele desconstrói a familiar
estratégia, inscrita na épica grega, segundo a qual as

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musas são sempre invocadas no exórdio do poema, ao
invocar sua bacilar musa no epílogo do poema. Além do
mais, Nemésio desalinha a imagem antropomórfica das
musas, epicamente descritas como as belas filhas de Zeus,
o poder, e de Mnémosyne, a memória, quando destaca,
de forma iconoclasta, que a sua musa inspiradora, longe
de ser uma divindade, não é nem humana nem anti-
humana porque ela está para além do humano por ser uma
bactéria que vive no íntimo dos nossos intestinos. Numa
perspectiva bastante heterodoxa, Nemésio questiona os
valores humanistas ao converter uma bactéria em musa,
mostrando que a lógica da consciência hegemônica
impossibilita a compreensão dos animais não humanos
48 e, consequentemente, inviabiliza o imperativo do respeito
que a eles é devido.
A discussão remete-nos, inevitavelmente, a
um tópos antropocêntrico da cultura, instigando-nos a
questionar e examinar a região compartilhada onde animais
humanos e não humanos figuram como comunidade. Por
isso, eu gostaria de concluir sugerindo que, para Nemésio,
pensar a configuração do animal em comunidade com o
humano é ir além da narração das formas de convivência
com o animal, pois o que está em jogo é propiciar na esfera
poética a aproximação como um modo de associação entre
múltiplas formas de vida que partilham tempo e espaço
num mútuo reconhecimento de intercambialidades que

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envolvem palavras, nomes e ações. Nemésio, ao direcionar
o nosso olhar de leitor para a inscrição poética do mundo
incógnito da animalidade, mostra que especificar uma
identidade significa postular, definir o humano não apenas
diferenciando-o de um outro, mas de si mesmo.

Referências Bibliográficas

DERRIDA, J. O animal que logo sou. Trad. Fábio Landa.


São Paulo: Editora UNESP, 2002.

MACHADO PIRES, A. M. B. Rouxinol e mocho. Lisboa:


Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2009.
49
MACIEL, M. E. (org). Pensar/escrever o animal: ensaios
de zoopoética e biopolítica. Florianópolis: Editora da
UFSC, 2011.

MACIEL, M. E. Exercícios de zooliteratura. ComCiência,


Campinas, n. 134, 2011. Disponível em: http://comciencia.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-
76542011001000010&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 18
set. 2022.

NEMÉSIO, V. Era do átomo, crise do homem. Obras


completas: volume XXII. Lisboa: Imprensa Nacional-
Casa da Moeda, 2003.

NEMÉSIO, V. O bicho harmonioso. Porto: Imprensa

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Portuguesa, 1938.

NEMÉSIO, V. Obras completas: Poesia (volume II). Lisboa:


Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989.

NEMÉSIO, V. Obras completas: Poesia 1916-1940 (volume


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NEMÉSIO, V. Sob os signos de agora. Obras completas:


volume XIII. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1994.

NEVES, M. Zooficções. Lisboa: Editora IELT, 2016.

VILHENA, M. da C. Bestiário Nemesiano. Arquipélago,


vol. X, p. 233-247, 1988.
50

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Desejo e comunicação:
o afeto da alegria na
poesia de Florbela
Espanca

Cristhiane R. Vamos primeiro examinar como o termo


Malaquias,
Gustavo H. desejo é usado na sociedade em geral, por exemplo, na
Rückert
psicanálise e na publicidade. A observação histórica
Universidade mostra a tendência de associar o afeto1 do desejo à
Federal dos Vales
do Jequitinhonha imagem da falta do objeto na época em que emerge
e Mucuri
pela primeira vez na moral cristã; no entanto, anos
depois, essas mesmas associações são frequentemente51

atribuídas à comunicação social. Por exemplo, o


reconhecimento do vazio2, originalmente atribuído
ao desejo, há muito foi considerado natural e muitas
vezes é articulado em práticas clínicas e campanhas
publicitárias sem alarde. Um sujeito triste3, sempre
1
“Conceito eminentemente spinoziano, os afetos são a
expressão da dinâmica dos corpos que constituem o vivo. O
afeto é, simultaneamente, afecção e ideia de afecção, dos quais
resulta um grau de potência.” (MALAQUIAS, 2022, p. 41).
2
Em Spinoza, o vazio está articulado com o conceito de extensão
(atributo do vivo), onde não há fragmentação ou divisão do
movimento. O que há é movimento e repouso juntos.
3
“A tristeza diminui ou refreia a potência de agir do [humano],
isto é, o esforço pelo qual o [humano] se esforça por perseverar
no seu ser. Portanto, ela é contrária à esse esforço; e tudo pelo
qual se esforça o [humano] afetado de tristeza é por afastá-la.”
(SPINOZA, 2016, p. 207, intervenções minhas).

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em déficit ao ideal, carente do objeto, em que o motor do
desejo são significantes, são palavras, organizados pela
transmissão simbólica do desejo, sem dúvida apresenta
impasses de ligações com o plano sensível, ocasião em que
as obrigações sociais4 se infiltram nessa condição passional,
ligando o sujeito ao modo de se comportar de acordo com
uma determinada imagem de mundo, oferecendo uma
troca que se não salva, não cura, ao menos empodera.
É assim que obrigações sociais arcaicas preenchem
vazios contemporâneos, conforme um modo de desejar
constituído pela falta, sempre buscando o objeto simbólico
de compensação, tornando a percepção de seu âmbito e o
pensamento do vivo5 particularmente opacos.
52 Vamos agora deixar o vocabulário da clínica e do
marketing para investigar a literatura. Desde a Revolução
Cognitiva, há cerca de 70 mil anos, as faculdades
centradas na consciência, tais como inteligência, memória,
imaginação e linguagem, se ocupam com a modelagem
de imaginários e com a simulação de mundos, graças ao
4
Compreendo por obrigações sociais o mesmo que causa inadequada do
desejo. “Digo que agimos quando, em nós ou fora de nós, sucede algo
de que somos a causa adequada, isto é, quando de nossa natureza se
segue, em nós ou fora de nós, algo que pode ser compreendido clara e
distintamente por ela só. Digo, ao contrário, que padecemos quando,
em nós, sucede algo, ou quando de nossa natureza se segue algo de
que não somos causa senão parcial. [...] Assim, quando podemos ser
a causa adequada de alguma dessas afecções, por afeto compreendo,
então, uma ação; caso contrário, uma paixão.” (SPINOZA, 2016, p.
163).
5
Vivo, ou seja, a Natureza em Spinoza.

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aumento da capacidade humana de transmitir grandes
quantidades de informação sobre coisas que não existem
de fato.
A modelagem autoconsciente de imaginários é um
objetivo literário digno, que teve, e continuará a ter,
consideráveis benefícios teóricos e práticos. No entanto,
a maioria dos escritores, leitores e críticos, não acreditam
que protagonistas autônomos serão criados em breve
pelas tecnologias digitais, promovendo uma cooperação
exponencial entre estranhos, acompanhada de uma
acelerada inovação do comportamento social, a despeito
do espírito humano, isto é, das afecções (corpo) e ideias das
afecções (modificações do corpo percebidas pela mente)6.
53
Vemos, assim, que a mente pode padecer grandes
mudanças, passando ora a uma perfeição maior, ora a
uma menor, paixões essas que nos explicam os afetos da
alegria e da tristeza. Assim, por alegria compreenderei,
daqui por diante, uma paixão pela qual a mente
passa a uma perfeição maior. Por tristeza, em troca,
compreenderei uma paixão pela qual a mente passa a
uma perfeição menor. (SPINOZA, 2016, p. 177).

Uma protagonista triste, como a poeta Florbela


Espanca, cujo desejo é produzido pela causa externa,
carente da condição ou do objeto, capaz de trocar a
alegria na vida (tempo presente) pela alegria na morte
6
A razão é que uma máquina não possui vida afetiva e, portanto,
uma ética, no sentido spinoziano do termo. Logo, uma máquina,
operando por imagens, não pode produzir conhecimento verdadeiro
(adequatio).

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(tempo futuro), foi celebrada como heroína em todas as
narrativas de todos os tempos7, mas hoje é possível criar
avatares tristes que mimetizam o comportamento humano,
sem os mecanismos que impedem, a todo momento, que este
se estabilize, se enrijeça, congele assimetrias, a depender da
centralidade do humano estar na moda (como hoje), ou
do protagonismo humano8 (como sempre), as estratégias
criativas enfatizarão o termo desejo ou o camuflarão por
outros, dado que, cada vez mais, escreve-se mais para a
leitura de algoritmos do que para a leitura de pessoas.
Grande parte da inovação nesse campo — e a maioria de
suas aplicações práticas — visa aumentar a infiltração das
obrigações sociais, ao mesmo tempo que rebaixa o desejo
54 na escrita e na leitura de obras literárias.

Ora, o desejo é a própria natureza ou essência de cada


um. Portanto, o desejo de um indivíduo difere do desejo
de um outro, tanto quanto a natureza ou a essência de
um difere da essência do outro. [...] Portanto, a alegria e
a tristeza são o próprio desejo ou o apetite, enquanto ele
7
Para o caso do protagonismo florbeliano ver C. R. Malaquias, Encontro
com o vivo: cartografia para a (inter)ação do leitor com a obra de
Florbela Espanca, 2022.
8
“Chamei ‘protagonismo humano’ esse modo de existir transcendente,
separado ou desconectado do vivo, invariavelmente ligado à figura
de um Poder eminente, onde o humano real, entendido aqui como
uma potência em ato, é reduzido a uma individualidade abstrata, com
inúmeros preenchimentos identitários, em que prevalece uma moral
da obediência, um conhecimento moral, uma vez que, ao afetar os
corpos, aciona neles a potência recognitiva da imaginação, afastando
a mente daquilo que ela pode, a saber, agir de modo imediato,
diferenciando a potência e produzindo existência.” (MALAQUIAS,
2022, p. 24).

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é aumentado ou diminuído, estimulado ou refreado por
causas exteriores, isto é, é a própria natureza de cada
um. (SPINOZA, 2016, p. 233).

1 Desejo, ou seja, o vivo (conatus sive potentia)


A noção de desejo como força vital de expansão
foi defendida, no âmbito da literatura, como prática
micropolítica, na dissertação de mestrado em 2020, e
apresentada no livro Encontro com o vivo: cartografia para
a (inter)ação do leitor com a obra de Florbela Espanca
(MALAQUIAS, 2022). Vamos continuar essa linha de
pensamento neste ensaio.
Do ponto de vista literário, o desejo florbeliano
pode ser abordado em dois aspectos principais: simbólico
(com imagem) e vivo (sem imagem). O aspecto simbólico 55

demanda uma subjetividade9 em relação com o objeto, por


isso informa à mente os dados fornecidos pela linguagem.
Modela, através de uma “gramática das marcas”, a
dimensão cognitiva do pensamento, a autoconsciência,
aplicando ideias externas às ideias da mente. Em
contraste, o aspecto vivo prescinde de subjetividades, é
a própria constelação de afetos, uma singularidade10, por
9
“Compreendo por subjetividade uma estrutura que se atualiza no
mundo físico, o que corresponde diretamente ao sistema sensório-
-motor, já que todo processo empírico é sustentado por esse sistema.
O humano, por exemplo, tem um corpo e uma mente, e esse corpo e
essa mente têm uma estrutura psicológica. A subjetividade é o exercí-
cio dessa estrutura.” (MALAQUIAS, 2022, p. 66).
10
“A singularidade se exprime, ao passo que a subjetividade se ma-
nifesta. A expressão é do pensamento, e a manifestação é das outras

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isso nos encontros com o mundo, na relação entre corpos,
informa à mente os dados fornecidos pelo corpo, mas
depende de uma (inter)ação11 lógica de um domínio do
pensamento que ultrapassa a consciência humana. Em
princípio, comparado com o aspecto simbólico do desejo,
exige, portanto, um maior esforço intelectual humano. O
aspecto vivo do desejo aplica os afetos do corpo às ideias
da mente. Assim, comunica a dimensão não cognitiva do
pensamento, a Natureza inteira. Daí a relevância, em
Spinoza, da oposição entre consciência e pensamento ou,
em outros termos, entre signo e expressão.

2 Comunicação: a união da mente humana com o vivo


56 Toda produção se faz no conatus, mas o conatus
é o próprio vivo e a produção do vivo. Logo, também a
produção literária se faz a depender do modo de vida de
cada coisa singular. Sendo assim, não pode a tristeza se
constituir gênese da obra de Florbela Espanca, pois, na
definição genética, real, o afeto da tristeza é contrário
a esse esforço, o que significa que a mente estristecida
de Florbela, por sua própria natureza, se esforçava por
imaginar ou recordar coisas que aumentavam a potência de

faculdades.” (MALAQUIAS, 2022, p. 76).


11
“Por (inter)ação compreendo uma atividade pensante, ou seja, a re-
lação entre as ideias das afecções na mente, o que exclui qualquer
relação com o objeto. Digo (inter)ação e não interação, porque o termo
interação parece indicar que a mente é passiva relativamente ao obje-
to.” (MALAQUIAS, 2022, p. 49).

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agir do seu corpo, e enquanto a mente imaginava aquelas
coisas que aumentavam a sua potência de agir, ela não
pensava a morte, mas em como estimular cada vez mais a
potência de agir do seu corpo, o que é o mesmo que pensar
o vivo. Com efeito, enquanto a mente da poeta pensava
o vivo, ela aumentava a potência de agir do seu corpo, e
esse aumento, pela definição genética ou real, é o próprio
afeto da alegria. A alegria aumenta a nossa capacidade de
conhecer e agir, ao passo que a tristeza a diminui. Daí a
afirmação de que o texto florbeliano é efeito de uma força
(alegria), e não de uma fraqueza (tristeza).
Com efeito, a partir da ideia adequada do vivo12
como conatus, esforço produtivo ou potência expressiva,
pode-se pensar o texto florbeliano como um processo 57

comunicacional em ato, sem imagem, visto que o ato é


aquilo que atualiza a potência pela necessidade de suas
relações. Neste sentido, o conatus, como causa eficiente
imanente da comunicação, é apreendido no seu campo
de imanência, em sua dupla face, essencial e existencial,
o que na prática se traduz por uma potência em ato em
um plano comum de encontros, onde corpos e mentes
coexistem em relações de composição e decomposição,
provocando as modificações nas potências, o que sugere
que o signo transcendente (a imagem) é ultrapassado pela
12
“Em Spinoza (2016), na ideia adequada, a mente conhece o real pela
sua causa eficiente e pela necessidade de suas relações. Em contrapar-
tida, na ideia inadequada, a mente imagina o real a partir de media-
ções sensíveis ou inteligíveis.” (MALAQUIAS, 2022, p. 17).

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expressão imanente (o afeto), e que a forma da consciência
psicológica é ultrapassada pelo pensamento (atributo do
vivo).

3 Posição problemática: qual é o principal obstáculo


para uma leitura da alegria florbeliana?
A base de conhecimento humano é organizada por
abstrações13; portanto, é preferencialmente apoiada por
uma espécie de banco de imagens. Em termos de interface,
essa base de conhecimento é apresentada como linguagem.
Observamos, no entanto, que não podemos confundir os
usos da linguagem com a comunicação, sobretudo com a
ideia adequada da comunicação14, adotada neste ensaio,
58 visto que a prática linguística é, rigorosamente, uma
prática de separação.
Assim, uma dificuldade sempre aparece quando
Florbela é pensada apenas como mulher, já que aquilo
que conhecemos como “mulher” não corresponde à ideia
adequada de Florbela, mas a uma individualidade abstrata
com preenchimentos identitários, uma subjetividade
significada e passível de ser ressignificada pela organização
social, de acordo com seus interesses.
13
“[...] abstração, isto é, o processo que consiste em tomar como rea-
lidade qualquer aspecto parcial da realidade, isolando-o do Todo.”
(TEIXEIRA, 1954, p. 23).
14
“Assim, ao pensar a comunicação a partir da potência, vemos que
o processo comunicacional pode ser entendido como um processo que
consiste em unir qualquer aspecto da realidade ao “todo”. Isto é, o oposto
da abstração.” (MALAQUIAS, 2022, p. 27).

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Florbela Espanca surge de uma relação entre corpos e
torna-se, em sua existência como corpo e mente, mulher,
e em seu percurso como mulher, poeta. Nesse conhecido
caminho, a abstração é privilegiada, na interlocução
com o “outro”, imagem codificada, masculina, solar,
idealizada, refletindo o feminino como tristeza, dor
e melancolia, imprimindo à poesia os marcos de um
território obscuro, lúgubre e sombrio, o território dos
espaços vazios. (MALAQUIAS, 2022, p. 101).

O vazio é o correlato da tristeza. O preenchimento


é o correlato da obrigação social. Muitas coisas que
consideramos naturais são, em verdade, construções
sociais. Com efeito, se Florbela surge de uma relação entre
corpos, ela é, pela definição genética, conatus (ente real),
e não mulher (ente de razão). Ora, como potência, nada
59
falta ao desejo da poeta, nem imagens, nem palavras, nem
ferramentas, nem armas, pois o conatus não está separado
de sua causa real e verdadeira, e por isso não parte de
causas imaginárias para produzir ou comunicar nada. O
conatus, como causa eficiente imanente, está em conexão
direta com a Natureza inteira, e por isso alegra a si mesmo,
fazendo do vazio que se constitui no plano comum dos
encontros, na relação entre corpos, um espaço de produção,
de extração do vivo, matéria-prima real, genética, de sua
poesia.
Como imagem, ao contrário, a “mulher” está
necessariamente separada do “homem” (abstrações
típicas), e por isso leva o “feminino” a imaginar distâncias

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na relação com o “masculino” (abstrações arquetípicas),
internalizando a tristeza que circula no campo social, a
tristeza estrutural da protagonista, reconhecendo seus
marcos pelos espaços de ausência, comumente associados
ao feminino, induzida, muitas vezes sem pensar, pelo
código linguístico; obedecendo, muitas vezes sem saber,
uma ordem social. Por isso, seguindo Spinoza, não é por
má vontade ou por má fé, mas por ignorância ou por
tolice, muitas vezes pelos dois ao mesmo tempo, que os
leitores de Florbela Espanca em geral, e os críticos em
especial, reconhecem (e alguns até celebram!) a tristeza,
a dor e a melancolia, como gênese do texto florbeliano.
Algo que uma Inteligência Artificial (IA), mimetizando
60 a inteligência humana sem a correção do intelecto (Cf.
Spinoza, Tratado da reforma da inteligência, 2004), pode
fazer de modo exponencial, estabilizando, enrijecendo e
congelando esse tipo de assimetria no campo social.

4 Conclusão: a alegria prática de Florbela Espanca


Para concluir, sublinhamos que ao afirmar a
tristeza como realidade empírica, podemos compreender
o esforço de Florbela Espanca para perseverar no seu
ser, cujo efeito é a sua obra como comunicação do vivo
florbeliano no campo social. Assim, quando consideramos
sua última frase, escrita no dia de sua morte (02/12/1930),
não há dúvida de que a tristeza severa, a depressão, pode

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explicar o suicídio de Florbela, mas jamais poderá explicar
a produção da poeta: “E não haver gestos novos nem
palavras novas!” (ESPANCA, 1982, p. 61).
Com efeito, é somente com esse esforço de
compreensão que podemos, (extra)ordinariamente,
perceber o rastro da alegria cintilar em seus textos. Uma
alegria necessária, produzida de dentro, que não pode ser
explicada nem pela mulher histórica, nem pelo sujeito
lírico, e sim pelo conatus florbeliano, pelo desejo natural de
mais vida. Uma alegria prática, sem dúvida. Uma alegria
ética! Algo que jamais estará ao alcance de uma IA, pelas
razões já mencionadas, mas que fogem ao escopo deste
ensaio.
Mesmo que essa comunicação não contorne 61

todos os obstáculos no caminho da crítica literária geral,


ela favorece uma ética na leitura dos textos florbelianos
capaz de ultrapassar o significado das palavras e das
situações históricas. Ela também nos permite (inter)agir
com o que transborda o texto, estimulando a união da
mente humana com o que está fora da consciência, o vivo.
Também apoiaria uma atividade política coletiva, uma
micropolítica, que seria particularmente útil nas áreas de
pesquisa científica, educação e ecologia.

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Referências Bibliográficas

ESPANCA, F. Diário do último ano: seguido de um poema


sem título. 2 ed. Amadora: Livraria Bertrand, 1982.

MALAQUIAS, C. R. Encontro com o vivo: cartografia para


a (inter)ação do leitor com a obra de Florbela Espanca.
São Paulo: Dialética, 2022.

SPINOZA, B. de. Ética: demonstrada segundo a ordem


geométrica. Trad. Tomaz Tadeu. 3 ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2016.

SPINOZA, B. de. Tratado da reforma da inteligência. Trad.


Lívio Teixeira. 2 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes,
62 2004.

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Pessoa, problema infinito 65

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Álvaro de Campos
negativo: uma
poética belicosa

Marcelo Alves da Em 1950, Maria Helena da Rocha Pereira


Silva
(1925-2017), professora portuguesa especialista
Universidade do
Estado do Rio de
em estudos clássicos, publica, em uma separata da
Janeiro revista Portvcale: revista ilustrada de cultura literária,
científica e artística, do Porto, o primeiro estudo que
correlaciona a poética dos heterônimos pessoanos
com a poética da Antiguidade Clássica. Referimo- 67

nos ao artigo intitulado “Reflexos horacianos nas


Odes de Correia Garção e de Fernando Pessoa
(Ricardo Reis)”, republicado em Temas Clássicos na
Poesia Portuguesa, em 1972.
A investigadora buscava,no texto mencionado,
demonstrar que, em primeiro lugar, o fundador, no
século XVIII, da Arcádia Lusitânia, recepcionou o
legado poético horaciano sem tecer significativas
alterações, sem o enriquecer na língua portuguesa.
Em segundo lugar, Pereira, motivada pela ideia de
que Ricardo Reis revive o horacianismo no século
XX, entende que este heterônimo, diferentemente
de Corydon Erymantheo (pseudônimo de Correia

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Garção), consolidou Horácio (séc. I a.C.) em composições
estritamente originais.
A aproximação dialética entre Fernando Pessoa
(Ricardo Reis) e Horácio, inaugurada pelo estudo de
Maria Helena da Rocha Pereira, é levada a efeito por
diversos trabalhos dedicados à poesia pessoana. Do ponto
de vista textual, colabora para os variados exercícios desse
teor o gênero praticado por Reis: a ode. Já do ponto de vista
empírico, observemos, em princípio, que tanto João Gaspar
Simões (1903-1987), em Vida e obra de Fernando Pessoa
(1987 [1950]) quanto Alexandre E. Severino em Fernando
Pessoa na África do Sul (1983 [1969]) comprovam através
de documentos e de demais testemunhos que durante os
68 anos iniciais de formação do poeta português, Fernando
Pessoa era devotado à aprendizagem da língua latina,
obtendo, através de sua dedicação, altas porcentagens, por
exemplo, no School Higher Certificate Examination (1901).
Durante a preparação para o ingresso à Universidade do
Cabo da Boa Esperança, em 1904, Pessoa teve de ler A
Guerra de Jugurta, de Salústio (séc. IV a.C.); e as Geórgicas,
de Virgílio (séc. III a.C.).
Ao vasculharmos a biblioteca particular do poeta,
hoje digitalizada e hospedada no site da Casa Fernando
Pessoa, notamos que a presença de obras literárias latinas,
bem como de obras didáticas para a aprendizagem de
latim, ao longo da vida de Fernando Pessoa, constituíram-

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se, decerto, como uma matriz para a formulação da poética
de determinados heterônimos, cujos exemplares são
Ricardo Reis e António Mora.
Por um lado, está bem claro para nós – e para a
comunidade de pesquisadores pessoanistas – que as obras
literárias em língua latina tiveram papel importante
na formação educacional e poética de Fernando Pessoa
e de seus heterônimos, o que nos permite dizer, por
exemplo, que a poesia latina configura-se, afinal, como
seu lastro. Por outro lado – e é este aspecto que está no
centro das motivações para esta investigação –, ainda não
é cognoscível a correlação entre a poética de Fernando
Pessoa e a poética grega arcaica, esta última representada
por um conjunto de obras literárias gregas antigas que 69

Pessoa, em suma, conheceu, leu, teve contato.


Em artigo publicado no Jornal i, em 19 de
novembro de 2009, e intitulado “Pessoa e a língua grega: o
‘murmurio humido das ondas’”, Patricio Ferrari, professor
da Universidade de Rutgers, em Nova Iorque, informa que
Fernando Pessoa havia se matriculado na cadeira de Grego
no Curso Superior de Letras de Lisboa, em 1906. Richard
Zenith, na sua mais recente biografia dedicada ao poeta,
Pessoa: uma biografia (2022, p. 255), indica que embora
esta inscrição tenha sido provisória, uma vez que Pessoa
já havia considerado que a cadeira de Grego era demais
para si, em verdade o poeta se interessou pela língua grega,

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a julgar pelas significativas marcações no seu exemplar
de Prometeu Acorrentado (1884), de Ésquilo. Há também
sublinhados e marginálias no exemplar de Grammaire
Abregée de la Langue Grecque (1901), de Adolfe Kaegi.
Além do já mencionado Ésquilo, uma conferência
aprofundada na biblioteca particular também testemunha
a presença de outros autores da Grécia arcaica, a saber,
Apolônio de Rodes (séc. III a.C.), Eurípides (séc. V a.C.),
Sófocles (séc. V a.C.), Píndaro (séc. V a.C.) e, sobretudo,
Homero (séc. VIII a.C.). Quanto a este último, há, na
biblioteca, cinco exemplares: Homer’s Odyssey (1911); The
Odyssey of Homer (1915); L’Odyssée [s/d]; L’Iliade [s/d] e
The Iliad of Homer (1912). Há, ainda, um estudo a respeito
70 de Homero: La question d’Homère (1909), de A. Van
Gennep e A. J. Reinach.
Em Apreciações literárias de Fernando Pessoa (2013),
Pauly Ellen Bothe, professora da Universidade Autônoma
Benito Juárez de Oaxaca, no México, faz um levantamento
dos manuscritos e dos datiloscritos pessoanos (muitos deles
inéditos) com o propósito inicial de coligir as apreciações
a respeito das literaturas em língua inglesa elaboradas
por Fernando Pessoa. Ao longo da empreitada, contudo,
a investigadora havia notado a necessidade de organizar
o material de outra forma. Bothe, pois, estabeleceu 369
documentos de autoria de Fernando Pessoa, em que o
poeta português trata de autores não somente de língua

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inglesa, mas também de língua portuguesa, francesa,
alemã, italiana, espanhola, russa, latina e grega, sem nos
esquecermos, ainda, do persa Omar Khayyam.
No que tange, por exemplo, a Homero, Fernando
Pessoa menciona-o em dez textos: três deles são dedicados
a analisar a obra de António Botto (1897-1959), outros
dois são dedicados a Luís de Camões (c. 1524-1580);
os quatro restantes contemplam, respectivamente, John
Milton (1608-1674), Luís Pedro, Camilo Pessanha (1867-
1926) e William Shakespeare (1564-1616). Embora sejam
textos que mencionem Homero, isto é, não são totalmente
dedicados a analisar a obra homérica, tais testemunhos são
suficientes para que consideremos, em alguma medida, que
o autor da Ilíada e da Odisseia era um ponto de reflexão 71

estético-poético luminoso para que Fernando Pessoa


pudesse tecer certos comentários críticos tanto a respeito
dos seus contemporâneos quanto dos seus predecessores
espirituais. Citemos um deles1: “Our intellect is Greek,
our sensuality modern. Our intellect is as old as Homer,
in whose Unity we learn; our sensuality is of the same ages
as our verses, which may be but a moment old” (PESSOA,
2013, p. 445).
O excerto acima demonstra que Homero é, para
Fernando Pessoa, uma instância crítica. Metonímia

1
Todas as lições das citações dos textos de Fernando Pessoa e dos
seus heterônimos seguem o que está estabelecido nas edições críticas,
inclusive a preservação da ortografia do início do século XX.

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do fazer poético em contingências históricas arcaicas,
o autor das epopeias Ilíada e Odisseia, bem como de
Hinos dedicados aos deuses do Olimpo elucida, junto
com outros nomes do cânone ocidental – por exemplo,
Shakespeare, Dante, Milton, Virgílio, bastante citados por
Pessoa –, as categorias concernentes ao artista moderno, à
poesia épica, às formas poéticas, em suma ao substrato que
orienta a confecção artística por excelência, especialmente
em ambientes sob a égide da modernidade.
A despeito dos itens bibliográficos, pertencentes ao
poeta português, e das menções a Homero, localizadas, como
pudemos notar, em alguns testemunhos textuais coligidos
por Pauly Ellen Bothe, a bibliografia passiva do poeta nunca
72 deu a devida atenção às possíveis associações entre a poesia
de Homero e a poesia do autor de “Cancioneiro”2.
Como forma de superar tal lapso, convém, pois,
olhar com atenção um texto classificado como “Maybe
Reis”, em que a referência a Homero é bastante sugestiva:
R[icardo] R[eis]?

Deve haver, no mais pequeno poema de um poeta,


qualquer coisa por onde se note que existiu Homero.

2
A exceção é, neste caso, um item bibliográfico registrado por José
Blanco na Pessoana – Bibliografia passiva, selectiva e temática (2008):
o artigo do romancista francês Michel Host (1937-2021) publicado
no Le Quotidien Parisien em 1988. Em “L’ocean Pessoa”, o articulista
defende que a poesia pessoana desenvolve melhor as mitologias deste
século; e que no coração do pensamento poético de Fernando Pessoa
instauram-se novas ilíadas e odisseias.

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A novidade, em si mesma, nada significa, se não
houver nella uma relação com o que a precedeu. Nem,
propriamente, ha novidade sem que haja essa relação.
Saibamos distinguir o novo do extranho – o que,
conhecendo o conhecido, o transforma e varia, e o que
apparece de fóra, sem conhecimento de coisa nenhuma.
Entre os escriptores que descendem com novidade da
velha stirpe e os que apparecem por novos por pertencer
a uma stirpe incognita há a mesma differença que ha
entre o homem que nos dá uma sensação de novidade
por phrases novas que diz o que nos dá uma sensação
de novidade, por, fallando mal nossa lingua, nos dizer
estropiadamente qualquer phrase d’ella (PESSOA,
2016, p. 349).

Se pudéssemos sintetizar as palavras de Reis (?),


duas são as proposições negociadas por este heterônimo: (1)
fundamentalmente, Homero está em todo e em qualquer
poema; (2) a novidade, no campo da arte, não prescinde 73

da “velha stirpe”. As duas proposições são desdobramentos


recíprocos. Afinal, Homero é a “velha stirpe” que, na defesa
de Ricardo Reis, serpenteia a novidade (materializada, por
fim, em um poema, um paradigma poético, uma obra de
arte). Nesse sentido, Homero, no texto acima, é entendido
como o teor poético que supera as especificidades arcaicas,
pois habita, ocupa o novo, ao passo que o novo, sem esta
reminisciência de caráter transformador (homérica, por
excelência), está fadado a caducar, a estropiar-se.
Fernando Pessoa é herdeiro da Antiguidade
Clássica. Essa herança, longe de ser passiva, não se restringe
ao evidente registro latino, de que Ricardo Reis é a mais

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popular espécie; nem ao imaginário grego arcaico, de que os
escritos de António Mora serão capazes de articular3. Nas
nossas investigações, buscamos demonstrar que Homero
(Ilíada) é fundador da poética de Álvaro de Campos ao
mesmo tempo em que é fundado por essa mesma poética.
Quais são, porém, as pistas que motivam as análises
deste trabalho investigativo? A estética camposiana,
no campo da produção poemática, sob o influxo do
Sensacionismo, acolhe, com atenção, toda a miserabilidade
humana, resultante de um fracasso da Filosofia da História
que se quer progressista. Esta perspectiva prometeu, no seio
da razão, a superação das contradições modernas. Campos,
afinal, será o irônico estandarte a apontar, coetaneamente,
74 o esforço para a aniquilação do outro nos ambientes da
virada do século. Não devemos, porém, confundir esta
proclamação como uma simples forma de exaltar a dinâmica
daqueles tempos. Destaquemos o “irônico” nesse lugar: a
poesia camposiana apropria-se da dor, da dor do outro em
si mesmo, como maneira de lembrar o sofrimento de todos
os homens, que, por fim, a poesia não será capaz de sanar. A
poesia camposiana não cumprirá a redenção da alteridade.
3
Já tivemos a oportunidade de estudar melhor os escritos ensaísticos
de António Mora, representante do neopaganismo em modalidade
prosaica. A leitura de Obras de António Mora (IN-CM, 2002), de O
Regresso dos Deuses e outros escritos de António Mora (2013), bem como
de nossos trabalhos – “Exercícios de Estética em Fernando Pessoa,
2022”; “Rivalidade ensaística: Álvaro de Campos e António Mora,
2022” – poderá fornecer recursos para compreender a posição e a
matéria deste heterônimo.

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No nosso entendimento, a miserabilidade humana
é fruto das contingências socio-históricas, num feixe
temporal, embora não se restrinja a elas. Será oportuno
lembrar que na virada do século XIX para o século XX
se forjou, em Portugal, o Republicanismo revolucionário,
que derrubara, com uso de armas, a Monarquia, tanto em
Lisboa quanto nos arredores norte e sul do Tejo. Esta nova
configuração se deveu, em parte, a um arruinamento: os
sistemas liberais oligárquicos começaram a ser minados
por uma dinâmica de transformação capitalista, de teor
econômico e de feição tecnológica.
Como assinala o historiador Fernando Rosas
em História da Primeira República Portuguesa (2009),
naquele período, o capitalismo concorrencial dava lugar 75

ao capitalismo financeiro, à Segunda Revolução Industrial


e à época de um imperialismo das guerras mundiais, que
redividiam o mundo sob o fundo de novas revoluções
sociais. O investigador comenta que a crise dos sistemas
liberais derivava de uma irrupção inédita das massas na
política e de uma inquietação dos setores mais tradicionais
da oligarquia, bem como de outros mais modernizantes.
Na esteira dessas causas, há ainda a redescoberta do
nacionalismo passadista aliada à busca por soluções
autoritárias.
Rosas ilustra a derrocada do sistema liberal a partir
do que ele chama de pressão de “cima” e pressão de “baixo”,

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identificadas, respectivamente, pela intelectualidade
republicana e pelo operário fabril. A pressão de “baixo” nos
interessa porque representa as alterações que se sucedem
no território português nos primeiros anos do século XX
e que são, em alguma medida, dimensionadas pela poesia
camposiana. Como nos lembra Rosas, a industrialização
fazia crescer as cidades, especialmente Lisboa e Porto,
e gerava as modernas indústrias de ponta, tais como a
construção civil, os transportes urbanos, os telefones, o
telégrafo, a iluminação pública, o gás da cidade. Nesse
processo, a industrialização e a urbanização arrastavam
um novo e diversificado setor de serviços complementares:
bancos, seguradoras, empresas de importação/exportação,
76 casas de comércio, escolas, alargamento e complexificação
da burocracial estatal. A vertigem dessas transformações,
sabemos, é capturada tanto pelas “cousas navais”, a partir da
reiterada velocidade do volante expressa na “Ode Marítima”:

E vós, ó cousas, meus velhos brinquedos de sonho!


Componde fora de mim a minha vida interior!
Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens,
Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas,
Galdropes, escotilhas, caldeiras, colectores, válvulas,
Caí por mim dentro em montão, em monte,
Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no
[chão!
Sêde vós o tesouro da minha avareza febril,
Sêde vós os frutos da árvore da minha imaginação,
Têma de cantos meus, sangue nas veias da minha
[inteligência,
Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética,

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Fornecei-me metáforas, imagens, literatura,
Porque em real verdade, a sério, literalmente,
Minhas sensações são um barco de quilha pró ar,
Minha imaginação uma âncora meio submersa,
Minha ânsia um remo partido,
E a tessitura dos meus nervos uma rêde a secar na praia!

Sôa no caso do rio um apito, só um.


Treme já todo o chão do meu psiquismo.
Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim
(PESSOA, 2015, p. 78-79).

A poética de Álvaro de Campos, afinal, é um traço


na superfície dos primeiros anos do século XX português,
compartilhando, com a Ilíada, de Homero, pontos de
contato no que se refere ao esforço em revitalizar a condição
humana quando domina o cenário do horror. Theodor
Adorno (2008), ao tratar do conteúdo temático das obras 77

artísticas, assinala que é este mesmo fundo que arrasta a arte


para a sua queda. O crítico, porém, ao observar que as obras
de arte se voltam para o seu declínio, não negligencia o
latente caráter autônomo delas, posição social que as coloca
antiteticamente ao status quo do contexto em que foram
produzidas.
Registrada por escrito por volta do século VIII a.C.,
a Ilíada é uma das primordiais manifestações da literatura
ocidental. Seu escândalo nota-se quando verificamos
que se trata de um canto de guerra. Afinal, quanto a esta
natureza, isto é, a deliberada destruição entre os homens,
devemos nos interrogar: por que a Ilíada é tão valorizada

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na república ocidental das letras? Por que os heróis da
Ilíada são modelares, ainda que sejam provocadores e,
simultaneamente, vítimas das próprias misérias bélicas? Por
que não horroriza àqueles que leem a Ilíada que a obra é
uma coletânea de violências perpetrada pelos deuses e pelos
homens? Por que, nos trabalhos de crítica artística, ainda
tomam a Ilíada como artefato histórico, para cumprir o
desejo pela personalidade de Homero e pela Troia histórica?
E por que não se lê a Ilíada como uma provocação perene,
como uma espécie de denúncia da miserabilidade humana
chancelada pelos deuses, isto é, pelas palavras mitográficas?
Uma aparente resposta pode estar no contraste
entre o tempo de fixação da Ilíada e a Grécia dos tempos
78 homéricos. Marcel Detienne (1935-2019), tratando do
estatuto da verdade, em Os mestres da verdade na Grécia
Arcaica (1988) convida-nos a pensar, a partir dos poemas
homéricos, a dualidade da poesia, uma vez que sua palavra
parece celebrar, ao mesmo tempo, o feito humano e a história
dos deuses. Este lógos a que se refere Marcel Detienne,
porém, é a palavra que cumpre o destino dos homens,
representados na Ilíada pelos guerreiros gregos e troianos.
E, nesse sentido, tanto a obra poética de Campos quanto a
Ilíada deslindarão, nos ambientes em que foram produzidas,
a mesma questão: em face da força que mobiliza os homens
na sua deliberada destruição, o lógos da obra poética cumpre
as etapas da sua sina.

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Referências Bibliográficas

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Trad. Andréa Daher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
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António Mora. Porto: Assírio & Alvim, 2013.

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Pessoa. Palimpsesto, Rio de Janeiro, v. 21, n. 38, p. 419-434,
mai. 2022.

SILVA, M. A. da. Rivalidade ensaística: Álvaro de Campos


80
e António Mora. In: XIII Seminário dos Alunos de Pós-
Graduação em Letras da Uerj, 2022, Rio de Janeiro: UERJ.
Disponível em: https://sapuerj.wixsite.com/sapuerj2022.
Acesso em: 29 nov. 2022.

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duma geração. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987.

ZENITH, Richard. Pessoa: uma biografia. Trad. Pedro


Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

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“O guardador de rebanhos”
e “O regresso dos deuses”:
Alberto Caeiro segundo
António Mora

Sabrina de Farias Apesar de que a criação heteronímica de


Sales
Fernando Pessoa como um processo instantâneo
Universidade
Federal de Minas
“numa espécie de êxtase” (PESSOA, 1986, s/p) tenha
Gerais sido desmistificada por muitos críticos literários,
essa epifania é o marco principal de sua obra. Em
“Notas para a recordação do meu mestre Caeiro”,
tal acontecimento é narrado por Álvaro de Campos, 81

segundo o qual o ortônimo “Foi para casa com febre


(a d’lle), e escreveu, num só lance ou traço, a Chuva
Oblíqua – os seis poemas” (PESSOA, 2002, p. 120).
À semelhança do ortônimo, os heterônimos sofrem
de um fenômeno parecido nesse mesmo texto em
que Campos traz à memória como conheceu Alberto
Caeiro. Além de apontar as características físicas do
pastor e alguns encontros entre eles, a importância
de Caeiro e, portanto, sua atribuição como mestre,
é revelada na medida em que as lembranças do
engenheiro naval vêm à tona. Nesse sentido, é dito
que todos os heterônimos foram impactados de
algum modo ao conhecê-lo, que se tornaram versões

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diferentes de si mesmos e passaram a adquirir, cada um
deles, um papel importante no projeto pessoano. Campos,
ao narrar a sua experiência epifanímica e de alguns outros,
também acrescenta a de um heterônimo pouco conhecido,
António Mora:

Passava a vida a mastigar Kant e tentar ver com o


pensamento se a vida tinha sentido. Indeciso, como
todos os fortes, não tinha encontrado a verdade, ou o
que para elle fosse verdade, o que para mim é o mesmo.
Encontrou Caeiro e encontrou a verdade. O meu
mestre Caeiro deu-lhe a alma que elle não tinha; poz
dentro do Mora periférico, que ele sempre tinha apenas
sido, um Mora central. (PESSOA, 2002, p. 119).

Desse modo, a verdade encontrada em Caeiro


82
é a responsável pela mudança nos heterônimos que se
encontraram com ele e no ortônimo, sendo um ponto
chave que sugere mais uma possível leitura acerca da poesia
deles. Entretanto, é importante nos lembrarmos de que o
pastor apenas escreveu poemas, não a sua concepção, uma
brevidade comum nesse heterônimo, já que viveu pouco, em
idade e acontecimentos. Todavia, essa pequena produção
artística de Caeiro demonstra o cerne da sua verdade, a
qual é explicada por António Mora, Bacharel em Direito
que tem sua primeira aparição como personagem no texto
“Na Casa de Saude de Cascaes”, em um manicômio, mas
que adquire o dever de teorizá-la após a ter encontrado
no seu mestre, o que se inicia em sua obra “O regresso dos
deuses”.

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Assim sendo, posta a relação intrínseca entre os
heterônimos, meu objetivo com este estudo é fazer uma
comparação entre o mestre e Mora para verificar como
as suas obras se conectam tendo como base a verdade de
Caeiro. Então, a partir de uma das produções do discípulo,
“O regresso dos deuses”, pretendo demonstrar como
alguns aspectos da poética de Caeiro, em dois poemas de
“O guardador de rebanhos”, assumem uma intepretação
em Mora na medida em que seu papel na heteronímia
proporciona um novo olhar sobre ela e, por consequência,
sobre a dos outros heterônimos e ortônimo.

1 António Mora e Alberto Caeiro: a reconstrução do


paganismo 83

A partir de sua epifania em 1913 e do contato com


o verso “A Natureza é partes sem um todo” (PESSOA,
1974, p. 68) de “O guardador de rebanhos”, António Mora
desenvolve o seu sistema filosófico (PESSOA, 2002,
p. 126), contudo não livre de contradições e paradoxos,
acentuados pela condição fragmentária de toda a sua obra,
aspectos que fogem da escrita argumentativa filosófica e
de um profissional formado em um curso superior, mas
que se enquadram no estilo já conhecido de Fernando
Pessoa. A marca temporal do encontro dos heterônimos é
relevante, uma vez que não há registros acerca das datas de
nascimento e de morte de Mora. Diante dela, apreendemos

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uma especificação a respeito dele na heteronímia: ele se
constitui um filósofo do fim do século XIX e início do XX.
“A ideologia do progresso, fundada sobre as
conquistas científicas e técnicas desse período, tinha
como contraponto o sentimento da decadência, expresso
por numerosos filósofos, historiadores e escritores”
(PERRONE-MOISÉS, 2000, p. 96), um época marcada,
entre outros fatores, pela segunda fase da Revolução
Industrial, que, apesar de seus benefícios, propiciou às
cidades centros de pobreza, aglomerados urbanos, além da
sensação de transitoriedade e efemeridade da população
pelo consumismo, que a leva a adquirir uma postura
individualista e a buscar uma nova forma de compreender
84 o mundo (GOMES, 1994). Assim, novas teorias sociais
foram criadas e António Mora, como um filósofo, também
explica o motivo da decadência europeia em seu opúsculo
“O regresso dos deuses”, escrito a pedido dos familiares
de Caeiro para acompanhar “O guardador de rebanhos”,
embora não tenha sido publicado. Para ele, todos esses
acontecimentos possuem como causa o Cristianismo,
especificamente, a sua moral (PESSOA, 2002, p. 181-182).
Apresentando o seu pensamento, Mora faz um percurso
desde a Grécia Antiga até o seu tempo, evidenciando a
resolução para os problemas de sua época: a reconstrução
do paganismo, que tem como figura fundamental Alberto
Caeiro.

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Dessa maneira, o filósofo explica que as religiões
nas civilizações são o resultado da preponderância do
tipo de mentalidade da população nas circunstâncias
geográficas e históricas em que ela vive (PESSOA, 2002,
p. 185). Esse modo de pensar pode ser subjetivista (em que
as faculdades humanas mais utilizadas estão direcionadas
para o interior, como a meditação, inibição e a imaginação)
ou objetivista (em que as faculdades estão voltadas para o
exterior, como a observação, atenção e a vontade de agir
sobre o mundo), assim, a população de mentalidade mais
subjetivista tende a ser monoteísta, enquanto o objetivismo
leva ao politeísmo. Nesse sentido, segundo Mora, uma
civilização de índole introvertida não compreende as leis
naturais que regem o mundo como o objetivismo permite, 85

sendo assim decadente e levando a civilização à decadência


(PESSOA, 2002, p. 178). Tal fato pode ser evidenciado,
no estado atual do heterônimo, pelo Cristianismo iniciado
em Roma e que se expandiu, especificamente pelos seus
valores, que causaram a decadência da Europa, em suma,
por serem excessivos, não condizentes com a natureza,
desarmonizando toda a sociedade.
Entretanto, neste momento conturbado da
humanidade, Mora afirma que há o renascimento do
elemento objetivo do paganismo, uma religião advinda
da Grécia helênica, que representa “o mais alto nível da
evolução humana” (PESSOA, 2002, p. 181). Por meio

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da ciência positiva, essa faculdade começa a se reacender,
uma vez que essa ciência é voltada para as leis naturais.
Isto posto, Mora afirma que, para que esse elemento se
estabeleça, “É preciso portanto crear o paganismo, para dar
um sentido profundo, isto é, religioso, a este movimento”
(PESSOA, 2002, p. 221). Essa religião deveria surgir de
forma espontânea, a partir da mentalidade, para que depois
fosse fundamentada de forma intelectual: “Devia, a dar-se
o phenomeno verdadeiro do regresso ao paganismo, surgir
uma sensibilidade pagã” (PESSOA, 2002, p. 220), o que
ocorre com Alberto Caeiro.
Em vista disso, é possível apreender, de uma forma
mais completa, qual é a verdade de Caeiro responsável
86 por causar uma epifania nos heterônimos e no ortônimo,
assim como a necessidade dele e de Mora na heteronímia,
como mestre e “continuador philosófico” (PESSOA, 2002,
p. 108). Juntos, eles formam o alicerce para o retorno do
paganismo. Além disso, é possível compreender a poesia
de Caeiro, dado que Mora afirma a obra do pastor como,
“na sua substância, a reconstituição imediata e integral do
paganismo” (PESSOA, 2002, p. 222). Logo, proponho a
análise de dois poemas de seu mestre tendo como base a
perspectiva desenvolvida até aqui.
A sensibilidade pagã apontada por Mora pode ser
notada por nós em toda a poesia de Caeiro. No poema “II”
de “O guardador de rebanhos”, como o tipo de mentalidade

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de um indivíduo advém de fatores históricos e geográficos
e o mestre se encontra em uma época e local com moldes
cristãos, para que o objetivismo de Caeiro se firme, ele se
volta exclusivamente para a natureza, observando-a e se
afastando dos centros urbanos:

O meu olhar é nítido como um girassol.


Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo… (PESSOA, 1974, 87
p. 22).

A sua observação da natureza, sendo o olhar ao


externo uma das faculdades objetivistas dos seres humanos,
é a mais marcante em Caeiro, retomada até mesmo diante
dos objetos já vistos, direcionando-o ao politeísmo. Mora
afirma que, para os pagãos, “cada cousa é uma nynpha
captiva ou dryade apanhada pelo olhar; porisso cada
objecto tem para elle uma espantosa realidade immediata”
(PESSOA, 2002, p. 211), desse modo, as faculdades
objetivistas são renovadas a cada momento pelo pastor,
que enxerga o mesmo item como novo ao capturá-lo com
os seus sentidos. Ainda neste poema, podemos notar o

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descarte e a repulsa pelo olhar direcionado ao interior.
Nesse sentido, o mestre de Mora repudia até mesmo suas
faculdades subjetivas, culminando em um dos versos mais
representativos de sua poesia:

Creio no mundo como num malmequer,


Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
(PESSOA, 1974, p. 22).

Concluindo e retomando a natureza, o mestre trata


do amor a ela, conceito já baseado em sua objetividade.
Além de ser uma crítica ao Cristianismo, em que o amor
88 a algo tem sua motivação por ter sido criado por Deus,
valorizando-o pela lembrança do Criador, Caeiro afirma
o que Mora concebe como “A primeira regra do amor,
e a ultima, é que a coisa amada seja amada por ser essa
e não outra, e amada por ser objecto de amor e não por
haver ‘razão’ para amal-a” (PESSOA, 2002, p. 211). Dessa
maneira, o pagão, ao se esvair de todo rastro introspecto,
ama o objeto sem pensar nele. Vejamos os seguintes versos:

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...


Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...

Amar é a eterna inocência,

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E a única inocência é não pensar… (PESSOA, 1974,
p. 22-23).

O uso da palavra natureza também aparece no


poema “XLVII”, constituído do verso que iniciou o
sistema filosófico de Mora. Nele, encontramos o ápice
da objetividade de Caeiro, posto que há a valorização da
observação em detrimento do trabalho por parte do pastor
e ele relata como ascendeu ao paganismo, a resposta, o
segredo procurado pelos simbolistas:

Num dia excessivamente nítido,


Dia em que dava a vontade de ter trabalhado muito
Para nele não trabalhar nada,
Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,
O que talvez seja o Grande Segredo,
Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam. 89
(PESSOA, 1974, p. 68).

Nas próximas estrofes, é evidenciado o retorno à


religião com a observação da multiplicidade de objetos
existentes. Nesse sentido, ao invés de o indivíduo
se orientar no mundo como uma unidade diante da
pluralidade por meio da introspecção, o que ocorre com
Caeiro é o oposto, já que, segundo Mora, “a natureza é
plural. A natureza, naturalmente, não nos surge como um
conjuncto, mas como muitas cousas, como pluralidade
de cousas” (PESSOA, 2002, p. 181). Logo, o substantivo
coletivo “natureza” é criticado por Caeiro pela tentativa de
unificação que o termo levanta, o que não condiz com a sua

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mentalidade, que nesta poesia já se encontra espontânea e
altamente sensível:

Vi que não há Natureza,


Que Natureza não existe,
Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
Que há rios e pedras,
Mas que não há um todo a que isso pertença,
Que um conjunto real e verdadeiro
É uma doença das nossas ideias

A Natureza é partes de um todo.


Isto é talvez o tal mistério de que falam.

Foi isto o que sem pensar nem parar,


Acertei que devia ser a verdade
Que todos andam a achar e não acham,
E que só eu, porque a não fui achar, achei. (PESSOA,
90 1974, p. 68).

Neste poema, o mestre encontra a sua verdade, a sua


resposta para a decadência europeia, que é compreendida
desta maneira pela filosofia de António Mora. Portanto,
concluo que “O regresso dos deuses” e “O guardador de
rebanhos” se conectam, de modo que a natureza, o amor,
o olhar e o pensar da poesia de Alberto Caeiro adquirem
um significado em Mora, além da verdade do pastor, que
causa a epifania nos outros heterônimos.

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Referências Bibliográficas

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PERRONE-MOISÉS, L. Pessoa e a doença do ocidente.


Via Atlântica, [s. l.], v. 1, n. 4, p. 94-105, 2000. Disponível
em: https://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/
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PESSOA, F. Aspectos. In: TEIXEIRA, L. F. B. (org.).


Obras de António Mora. Edição crítica de Fernando Pessoa.
Série Maior, vol. VI. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 2002. p. 107-112.

PESSOA, F. Carta a Adolfo Casais Monteiro – 13 Jan.


1935. In: QUADROS, A. (org.). Escritos íntimos, cartas
e páginas autobiográficas. Lisboa: Publicações Europa- 91

América, 1986. Disponível em: http://arquivopessoa.net/


textos/3007. Acesso em: 20 nov. 2022.

PESSOA, F. Notas para a recordação do meu mestre


Caeiro. In: TEIXEIRA, L. F. B. (org.). Obras de António
Mora. Edição crítica de Fernando Pessoa. Série Maior, vol.
VI. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002. p.
113-133.

PESSOA, F. O guardador de rebanhos. In: Poemas de


Alberto Caeiro. 5 ed. Lisboa: Ática, 1974.

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Fernando Pessoa. Série Maior, vol. VI. Lisboa: Imprensa
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Entrelaçamentos 93

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Anjos que caem: a
profanação em Paula Rego
e Maria Teresa Horta

Fadul Moura Têm todos os anjos


o vício
Universidade
Federal de Minas
da queda?
Gerais

(Maria Teresa Horta)

O presente texto1 corresponde a


95
desdobramentos de estudo anterior, em que a
insubmissão foi o elemento central na análise dos anjos
de Maria Teresa Horta e Paula Rego (MOURA;
PÁSCOA, 2018). A hipótese agora levantada aposta
na dissolução da composição de referências literárias
e visuais, que reprocessam o campo simbólico
religioso para conferir-lhe outra visada. O cerne,
portanto, desta análise é a conduta profanatória de
Rego e Horta sobre formas angelicais, tomado um
sentido específico da palavra.
1
Este texto corresponde a pesquisas desenvolvidas no âmbito
das atividades do grupo Relações de Gênero, Poder e Violência em
Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do
Amazonas.

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Giorgio Agamben (2007) aponta que uma
característica do sagrado entre os romanos é estar
subtraído do livre manuseio e do comércio dos homens. O
sagrado não poderia jamais ser vendido, dado como fiança
ou gravado de servidão; seu ponto fundamental era estar
indisponível, por ser reservado aos deuses. Enquanto a
palavra “consagrar” (latim: sacrare) designaria “a saída das
coisas da esfera do direito humano” (2007, p. 58), “profanar”
designaria a restituição delas ao uso dos homens. Por esse
caminho interpretativo, Agamben esclarece a composição
do significado do verbo profanar:

[...] por um lado, tornar profano, por outro [...]


sacrificar. Trata-se de uma ambiguidade que aparece
96
inerente ao vocabulário sagrado como tal: o adjetivo
sacer [...] significaria tanto “augusto, consagrado aos
deuses”, como “maldito, excluído da comunidade”. A
ambiguidade, que aqui está em jogo, não se deve apenas
a um equívoco, mas é, por assim dizer, constitutiva
da operação profanatória (ou daquela, inversa, da
consagração). Enquanto se referem a um mesmo objeto
que deve passar do profano ao sagrado e do sagrado
ao profano, tais operações devem prestar contas, cada
vez, a algo parecido com um resíduo de profanidade
em toda coisa consagrada e a uma sobra de sacralidade
presente em todo objeto profanado. (2007, p. 61)

Da ambiguidade do ato profanador advém a


possibilidade do delineamento de um raciocínio em que
os contrastes se toquem e ultrapassem suas fronteiras. As
marcas de suas diferenças não serão consideradas critérios
para anulação mútua, pois a profanação opera em favor do

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que aponta para o resíduo como algo ligado à lembrança,
seja da ordem maculada, seja da pureza que resta e inclina
a um sentimento de nostalgia. Escolhendo o caminho
pelo qual o alvo é arremessado para fora do domínio da
deidade, o que lhe resta é uma propriedade que demarca o
seu não pertencimento àquele mundo. Nos dois âmbitos,
há um significado que está sempre fora do ponto de vista
do domínio que o observa. Desse modo, o significante
flutua e transita de um âmbito para outro e não se exime
de se referir ao objeto.
À luz do que Giorgio Agamben compreende como
“um sistema de dois polos”2, recupero a epígrafe deste
texto, selecionada como acesso ao livro Os anjos (1983), de
Horta. A recuperação parcial de uma narrativa mítica é 97

2
Sobre o adjetivo sacer, Agamben destaca que, assim como ele
pode ser utilizado no ato solene da sacratio ou da devotio, também
poderá, em outro contexto, na expressão homo sacer, “[...] designar um
indivíduo que, tendo sido excluído da comunidade, pode ser morto
impunemente, mas não pode ser sacrificado aos deuses. [...]. No mundo
profano, é inerente ao seu corpo um resíduo irredutível de sacralidade,
que o subtrai ao comércio normal com seus semelhantes e o expõe à
possibilidade da morte violenta, que o devolve aos deuses aos quais
realmente pertence; considerado, porém, na esfera divina, ele não pode
ser sacrificado e é excluído do culto, pois sua vida já é propriedade
dos deuses e, mesmo assim, enquanto sobrevive, por assim dizer, a si
mesma, ela introduz um resto incongruente de profanidade no âmbito
do sagrado.” (2007, p. 61). Com esses exemplos, a argumentação de
Agamben explicita a potência da ambivalência cunhada no adjetivo.
Ela denota dois modos de utilização que convergem os homens para
sua relação com cada domínio, de sorte que seus comportamentos
deverão ser outros, em decorrência do descolamento, não só na esfera
linguística, mas também na social.

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colocada em evidência pelo antagonismo entre as palavras
“vício”, escrita no poema, e “virtude”, em um plano pré-
concebido pela narrativa subjacente. Dessa primeira
oposição, de caráter subjetivo – mas que fundamenta a
ética dos homens e, agora, a dos anjos –, nasce um segundo
antagonismo: sagrado vs profano, com o par de palavras
“anjos” vs “queda”. Com base nele, o poema sugere outros
contrastes: “terra” vs “céu”, simétricos; “pecado” vs “graça”,
oblíquos, relacionados a uma composição semântica
circundante à verticalidade na qual se baseia a relação
direta entre os primeiros termos. Estrutura-se, assim, a
coerência interna, também subjetiva, da primeira oposição
elencada. Em todos esses casos, é marcada a presença de
98 um limite entre domínios que não se cruzam. Separados,
eles não permitiriam qualquer ato de aproximação, posto
que a manutenção de suas realidades seria pautada na
conservação da distinção entre si.
Embora haja por trás de suas palavras todo o
contexto de uma narrativa judaico-cristã, observa-se nele
a instalação de uma diferença. Essa é pautada na inflexão
interrogativa que Horta deposita na voz do sujeito poético
que perpassa todo o livro. Não se trata de uma assertiva
categórica, a qual reforçaria um ethos nomológico. Pelo
contrário, a intenção da voz poética imprime um ato
que desloca a interpretação do leitor para a dúvida, em
decorrência do ponto de observação escolhido. Destacando

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a indagação, a voz no poema reorienta e transforma o que
era considerado limite em porosidade; o que era rígido
no mito agora é permeável, gerando o trânsito entre os
domínios. É dessa forma que o poema expressa sua
originalidade: as palavras elaboram um laço possível, em
que ocorre um depósito de um domínio no interior de
outro (o vício dentro dos anjos).
Tomada como estrutura fundamental, a dúvida
também sugere – no contexto do livro – uma conduta de
não apenas um anjo, mas “todos”, logo, a recuperação da
narrativa sobre Lúcifer fornece algo em comum com os
demais: além de serem irmanados pelo domínio sagrado e
pela essência divina que carregaram, eles igualmente o são
pelo que os expulsa do âmbito de Deus. Nesse sentido, a 99

concepção estruturante dos anjos em Horta está fincada


em uma prática que os leva à manifestação dos próprios
desejos, os quais denotam contrassensos diante da ordem.
Transformados em sujeitos desejantes, os anjos adquirem
características do terreno dos homens, não sustentando
mais a separação de instâncias binárias, mas, sim, fazendo-
se pilares da contradição.
Por esse caminho de leitura, recobro as palavras de
Ruy Belo, para quem

[o] poeta serve-se das palavras [...] como o pintor


mistura as suas tintas. Escolhe-as pelo que elas têm
de som, de ritmo, pela sua condição social, pela sua
árvore genealógica. Dá-lhes novas ligações e é como se

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as fizesse esquecer a casa dos pais. [...] Não há bem
mais humano do que a palavra, de tal maneira que ela
até compromete na inteligência do homem toda ou
quase toda a sua existência. Ela ajuda a criar, e participa
da história do homem. Daí que pô-la em jogo seja
movimentar um universo. (2002, p. 83)

Poema e pintura serão consideradas formas de arte


que carregam consigo valores de certas tradições artístico-
culturais. Caberá ao poeta e ao pintor do presente propor
novas combinações, capazes de ressignificar os valores
em seus discursos, explorando potências oferecidas por
suas linguagens. Desse modo, a ideia de “movimentar um
universo” também alcança as telas de Paula Rego.
Assim como o trabalho operado por Horta,
100 tal deslocamento é o ponto de partida encontrado no
conjunto As virgens, da pintora portuguesa. Por meio
deles, é verificado que um imaginário fortemente religioso
expressa também um impacto político relacionado ao
domínio do corpo, o que ganha mais intensidade no
momento em que se trata de um corpo feminino. É com
essa atitude que ambas se tornam participantes da história
das artes portuguesas, imprimindo sobre elas um caminho
possível: isso se dá quando Horta e Rego apresentam
imagens de anjos em que são notáveis características
profanas. Sabendo que as noções mais tradicionais de
“homem” são compostas por um delineamento que vai do
objetivo, corpóreo, ao subjetivo (ou, ainda, transcendental),

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que o ultrapassa, percebe-se que os anjos dessas artistas
podem ser vistos como corporificações do metafísico.
Eis o momento em que, afastadas “da casa dos pais”, tais
produções artísticas tornam-se inovadoras.
Paula Rego apresenta uma configuração angelical
que encontra correspondência com a semântica da
profanação descrita por Agamben. Destinado a “cenas da
vida da Virgem Maria” (GOMES, 2003), o trabalho da
pintora possui um traço político, que cruza as noções de
autoridade e de poder. A presença do sagrado não o expõe
como algo distante dos homens; Rego confere-lhe um
olhar mais subjetivo, aproximado, em que a corporeidade do
feminino desmistifica o uso dos papéis rígidos, consolidados
pelas tradições patriarcais (OLIVEIRA, 2005). 101

Considerando o fato de a tela de Paula Rego dividir


o mesmo espaço no qual se encontra a de André Reinoso,
pintor português do protobarroco, é possível compreender
um diálogo com essa composição estética. Em Reinoso, os
anjos estão nus na parte superior do quadro, reflexo de uma
noção de pureza própria a esse domínio; deles, advém a
iluminação que encontrará correspondência com o Deus-
criança na parte inferior. Desse modo, o quadro pode ser
dividido em duas triangulações, formadas pelo jogo entre
claro-escuro, o qual é somado à noção de profundidade
em diagonal que adentra a tela e corrobora a distância
entre o céu, ao fundo, e a terra, mais próxima, para criar

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o efeito de participação do observador. Com base nisso,
outra dualidade, vertical, é revelada: espiritualidade vs
materialidade. Na tela de Reinoso, esses elementos têm
suas posições bem demarcadas, o que recobra a narrativa
de Lucas 2, 8-16 (sobre os pastores e o canto dos anjos
com o nascimento de Jesus) e o limite de cada espaço. Isso
desdobra o esquema semântico da dualidade mencionada,
em termos de um esquema visivo (CALABRESE, 1997),
em invisível e visível.3 Explico: na parte superior do quadro,
há o que é inacessível à visão humana, o sagrado por
excelência; na inferior, há o mundo profano povoado por
homens ao redor da criança, prenúncio da salvação. Assim,
imaterialidade e materialidade jamais se esbarrariam.
102 A artista contemporânea dissolve o esquema
que se visualiza em André Reinoso. A profundidade
é recuperada parcialmente pela pintora, mas em nova
3
No texto “Aspectos da Anunciação”, Omar Calabrese (1997)
analisa a tela de Piero dela Francesca e detecta nela, à luz da
teoria narratológica de Greimas, o que opta por chamar “quadrado
semiótico”. Em sua análise, procura demonstrar a presença de quatro
personagens na obra. Para tanto, ele concebe um esquema visivo em
que uma oposição é desenvolvida em um quadrado lógico com quatro
posições, a saber: da esquerda para direita, na parte superior, espiritual
e material; na parte inferior, seguindo a mesma orientação, não-
material e não-espiritual, correspondentes às personagens do artista.
Tal organização de pensamento será importante para que ele chegue
ao que compreende como tradução da oposição entre espiritual e
material em termos de pintura, isto é, a representação de um referente
em termos de visualidade (invisível e visível, acima, e não-visível e não-
invisível, abaixo, respectivamente). A partir do esquema proposto,
comparará a peça de Piero com outras Anunciações de épocas e artistas
diferentes, buscando delinear uma estrutura e uma narrativa comuns.

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orientação percebida pela incidência da luz: ela inicia no
canto superior esquerdo e estende-se ao chão, simulando
uma iluminação de palco, o que confere dramaticidade
à cena. A redução do número de personagens desloca
a atenção do observador das narrativas que envolvem o
nascimento (a busca de José por abrigo e o caminho traçado
pelos reis magos, por exemplo) para tal performance
dramática: trata-se exclusivamente do episódio da
concepção, agora retratado como momento de solidão
profunda, potencializando a dor individual da mulher e
explicitando-a como alteridade impossível ao masculino.
Os anjos de Reinoso são numerosos e estão nus, distantes
e puros. Rego não só apresenta seu único anjo vestido de
forma simples, em túnica monocromática, mas macula 103

a ideia sagrada ao passo que manipula o sentido do tato


(diferentemente de Reinoso, seu anjo toca o mundo dos
homens quando se senta ao chão e tem sobre si o sangue,
no joelho direito, e o corpo de Maria em seu colo). Com
esses traços, a figura angelical participa do episódio do
parto; suas expressões indiciam a empatia pela mulher e o
grau de intensidade dessa participação.
Feita a reorientação para a performance dramática,
como em Horta, Rego rasura o imaginário angelical,
alterando seu princípio formador. A personagem é
concebida agora com interioridade subjetiva, associada à
dor humana. Mãos, pés e faces – todos constructos do

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corpo – compõem um tríptico simbólico indissociável, o
qual assenta o anjo de Natividade (2003) no campo dos
homens. Em outras palavras, profaná-lo equivale a retirá-
lo do campo da distância divina e a produzir a verticalidade
de suas emoções.
É sabido que o topos literário da queda de Lúcifer
povoou o imaginário ocidental, instilando uma ampliação
semântica que sustenta seu próprio campo simbólico.
Nesse imaginário, cair é mais que o mero gesto físico
da passagem do anjo para fora do céu; equivale a perder
determinada condição, na medida em que a referida
personagem é apartada intencionalmente da esfera celeste;
expulsa, portanto, degredada a outro domínio. Em graus
104 diferentes, parece ser esse o código acessado pelas artistas
portuguesas. Ao profanar seus anjos, desligam-nos do
sagrado e inoculam neles o humano. Trata-se, portanto, de
um caminho que conduz à profanação como atualização
do imaginário da queda. Embora Rego e Horta levem a
perspectivas diferentes, dadas pelos recortes e momentos
da tradição mítica recuperada, apontam para uma direção
comum, que pode ser ilustrada pelas palavras de Agamben
mais uma vez:

[...] [p]rofanar não significa simplesmente abolir e


cancelar as separações, mas aprender a fazer delas um
uso novo, a brincar com elas. A sociedade sem classes
não é uma sociedade que aboliu e perdeu toda memória
das diferenças de classe, mas uma sociedade que soube
desativar seus dispositivos, a fim de tornar possível um

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novo uso, para transformá-las em meios puros. (2007,
p. 67)

Dentro desse âmbito teórico, profanar também


atualiza possibilidades de desativação de matérias
cristalizadas. Ao transpor tal vocabulário para o
âmbito artístico neste trabalho, busco iluminar o modo
contundente com que Rego e Horta souberam desativar
certos códigos culturais a seu modo, lançando mão de seus
próprios fundamentos, agora oxigenados pela lente da
arte. As artistas tomam a separação dos domínios como
um problema a ser explorado. Em seu cerne, há a dinâmica
que demonstra um dispositivo operador da mobilidade.
Não mais a divisão estanque de matérias rígidas, mas
contaminação mútua, dissolução. 105

Ora, é possível extrair da operação profanatória das


artistas em causa uma reflexão acerca dos modos de atuação
da poesia e das artes perante a própria história ou, ainda,
perante os símbolos que buscam reativar, na intenção de
reapropriá-los. Imbricada ao dispositivo da profanação que
venho discutindo, impõe-se, também como produto, “a
criação de linguagens como consequência do processo de
repetição e diferença que, de modos diferentes, faz parte
das diversas práticas discursivas” (LOPES, 2019, p. 11).
Nos presentes casos, a diferença está instalada no coração
da própria repetição, de modo que todo o sistema simbólico
e artístico que manuseia determinados códigos deságua na

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circunstância de sua atualização. Em movimento contrário
à conservação do sistema, a circunstância da profanação
renova-o e move a engrenagem da história das imagens
religiosas no seio das artes. A aposta na dissolução como
hipótese inicial de trabalho não equivale à desintegração
do sistema simbólico. A outra visada a que me referia no
início desta discussão permite entrever a relação entre tais
artes, representadas pelos trabalhos de artistas do século
XX, e o espectro histórico que desejam reconfigurar.
Assim, Horta e Rego inoculam seus projetos na história
dessas imagens e renovam a historicidade delas.

106 Referências Bibliográficas

AGAMBEN, G. Profanações. Trad. Selvino J. Assmann.


São Paulo: Boitempo, 2007.

BELO, R. Na senda da poesia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002.

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Público, Lisboa, Ípsilon, 5 jan. 2003. Disponível em:
https://www.publico.pt/2003/01/05/jornal/as-virgens-
de-paula-rego-chegam-a-belem-196909. Acesso em: 20
out. 18.

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insubordinação, a forma dos anjos em Paula Rego e Maria
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em: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/paula-rego-em-
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Regressar à casa:
leituras de Manuel
António Pina e Sophia de
Mello Breyner Andresen

Ingred Georgia de Para iniciarmos a reflexão sobre a tópica da


Sousa Silva
casa como um dos eixos de relevância na pesquisa
Universidade
Federal de Minas
das poéticas de Manuel António Pina e Sophia de
Gerais Mello Breyner Andresen, resgatamos uma entrevista
da escritora a Eduardo Prado Coelho, em 1986.

Tenho muita memória visual e lembro-me sempre 109

das casas, quarto por quarto, móvel por móvel, e


lembro-me de muitas casas que desapareceram da
minha vida, como por exemplo, a casa dos meus
avós que foi leiloada, vendida, as coisas dispersas...
Eu penso que há em todo o homem, em todo o
poeta, uma tentativa de conservar uma eternidade
que está latente nas coisas, porque no fundo, todos
nós amamos as coisas sob um olhar de eternidade
mesmo que depois vejamos as coisas desfazerem-
se... Eu tento “representar”, quer dizer, “voltar a
tornar presentes”, as coisas de que gostei e é isso
que se passa com as casas: quero que a memória
delas não vá à deriva, não se perca. (ANDRESEN
apud COUTO, 2007, p. 204).

O depoimento de Sophia, partindo da


sua relação afetiva com as casas, dá-nos também

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a oportunidade de acessar a maneira como percebia no
homem, no poeta, essa “tentativa de conservar uma
eternidade que está latente nas coisas”. A postura de
conservação, ou “regresso”, que pode ser acessada também
pelo gesto de tentar “voltar a tornar presentes” através
do fazer poético, reflete nos versos da escritora por uma
reunião de marcas linguísticas como “‘agregar’, ‘encontro’,
‘regresso’ e ‘inteireza’”, conforme aponta Clarissa Xavier
Pereira (2020, p.26), por uma proposta que remonta “a
um tempo mítico, em que as divisões entre o natural e o
cultural, entre os homens e os espaços por ele habitados,
bem como entre os seres humanos como um todo estariam
subtraídas”. Em complemento, ainda segundo Pereira
110 (2020, p.25), a casa, como o mar, nessa poesia, figuraria
“como um elemento de oposição ao caos dissociativo dos
ambientes urbanos”, marcando assim uma postura de
Sophia que privilegiaria essa tópica junto a propostas de
reunião, de retorno a um lugar inicial.
Da mesma maneira, e elevando sua reflexão para
um campo que atinge também “a inabitada casa” (PINA,
2018, p. 122) do poema, Manuel António Pina nos fornece
um considerável material que torna a casa, ou a morada,
como também vai nomear, um eixo articulador em sua
poesia. Parte-se da ideia de casa como princípio, segundo
Thiago Bittencourt de Queiroz (2022, p. 204),
A casa, esse momento inicial, é agora uma lembrança e
– como toda lembrança – está eivada de ficção. Em uma

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entrevista a Luis Miguéis Queirós, Manuel António
Pina declara: “todos os regressos [são] o de Ulisses”’
(PINA, 2016, p. 184). O que se recorda é a nostalgia
de um lugar, um amálgama de memórias propostas e
alheias, de realidade e ficção.

Essa nostalgia, pensada como o desejo de


materializar o que fora perdido, “tentativa de recuperar
o irrecuperável” (QUEIROZ, 2022, p. 205), é o que leva
Pina a trabalhar também com a ideia de ruína – “uma
casa é as ruínas de uma casa” (PINA, 2018, p. 127).
Possível pela existência do poema, toda (re)visitação parte
dessa também (re)composta memória, sujeita, claro, às
armadilhas da ficção.
O poema “Casa branca”, de Sophia Andresen,
é aqui o nosso primeiro exemplo da ideia de regressar à 111

casa como possibilidade de reavivamento, ou melhor, de


reencontro com um mundo particular anterior ao tempo
presente do sujeito, marcando, assim, a proximidade destes
versos com a fala da poeta na entrevista anteriormente
apresentada.
CASA BRANCA

Casa branca em frente ao mar enorme,


Com o teu jardim de areia e flores marinhas
E o teu silêncio intacto em que dorme
O milagre das coisas que eram minhas.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
A ti eu voltarei após o incerto
Calor de tantos gestos recebidos
Passados os tumultos e o deserto

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Beijados os fantasmas, percorridos
Os murmúrios da terra indefinida.
Em ti renascerei num mundo meu
E a redenção virá das tuas linhas
Onde nenhuma coisa se perdeu
Do milagre das coisas que eram minhas. (ANDRESEN,
2018, p. 82).

A primeira imagem do poema é justamente a


descrição dessa casa branca que intitula o poema, passando
da apresentação puramente física, atada à concretude do
objeto, para uma caracterização mais abstrata que abrange
o caráter de conservação que esse local faz existir – “o
teu silêncio intacto em que dorme/ o milagre das coisas
que eram minhas”. A escolha de Sophia pelo “milagre”
adormecido, além de muito expressivo, parece conferir uma
112
aura sagrada a esse espaço, o poder de permanência em um
“silêncio intacto”, adjetivação que nos ecoa a reflexão sobre
a inteireza buscada nos muitos versos da poeta portuguesa.
Chama-nos atenção o ritmo cadenciado nas
primeira e última estrofes do poema, enquanto a
segunda, apesar de não perder suas rimas e a consequente
musicalidade, possui um ritmo mais progressivo, crescente.
Tal percepção encontra o que o próprio poema expressa ali:
uma travessia turbulenta em meio a um lugar de divisões.
Destacamos o “incerto calor”, os “tumultos e o deserto”,
os “fantasmas” e os “murmúrios de uma terra indefinida”
como os percalços desse sujeito até que ele volte a essa casa
branca. A escolha pelo branco, um dos “signos carregados”

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de Sophia, se quisermos tomar emprestada a expressão de
Luís Miguel Nava (1987, p.23), parece sinalizar para essa
retidão ou para esse lugar primeiro, anterior ou quem sabe
aglutinador das coisas que eram suas.
A conclusão, na última estrofe, aponta para o
renascimento em um mundo particular e para uma
redenção vinda das linhas da casa, construção curiosa mas
que parece novamente enfatizar a concretude desse objeto,
suas paredes e linhas que a protegem “de um mundo
destroçado pelas fúrias” (ANDRESEN, 2018, p.795),
como utilizaria em outra oportunidade, e como vimos no
poema, “onde nenhuma coisa se perdeu do milagre das
coisas que eram minhas” (ANDRESEN, 2018, p.82). A
reiteração do milagre nos faz lembrar de outro curto poema 113

de Sophia que poderia complementar essa percepção de


um maravilhoso ancorado nas casas. E assim diz em:

AS CASAS

Há sempre um deus fantástico nas casas


Em que eu vivo, e em volta dos meus passos
Eu sinto os grandes anjos cujas asas
Contêm todo o vento dos espaços. (ANDRESEN,
2018, p. 191).

Manuel Pina, no poema “Junto à água”, traz-


nos um sujeito que, como no poema de Sophia, também
constrói uma atmosfera de regresso à casa, com esse
espaço sendo lugar afetivo, vinculado à infância, sinônimo

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de segurança e repouso frente aos perigos e solidões do
mundo.

JUNTO À ÁGUA

Os homens temem as longas viagens,


os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.
Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa, às veredas da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.
Quantas vezes em
desolados quartos de hotel
esperei em vão que me batesses à porta,
voz da infância, que o teu silêncio me chamasse!
E perdi-vos para sempre entre prédios altos,
sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,
114
e no meio das multidões dos aeroportos.
Agora só quero dormir um sono sem olhos
e sem escuridão, sob um telhado por fim.
À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.
Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde meu coração, falando, vagueia. (PINA, 2015, p.
162-163).

A primeira estrofe, abordando os medos, com


destaque para os “frios leitos” e “sepultura em terra
estranha”, parece de imediato sinalizar para essa identidade
e segurança que a casa, em alguns casos, confere ao
seu habitante. Por tanto temerem o não familiar é que

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regressam “a casa, às veredas da infância,/ ao velho portão
em ruínas, à poeira/ das primeiras, das únicas lágrimas”.
Em Sophia, acessamos um milagre conservado em paredes
e em Pina encontramos a memória da inocência, na poeira
das lágrimas, primeiras e únicas. Existe aqui a configuração
implícita de um mundo exterior à casa, que atormenta e
causa sofrimento a esse sujeito. Por fim, o desejo de “um
sítio onde pousar a cabeça”, um lugar onde se desobrigar
do mundo, encontrar essa pureza inicial, o sossego, onde
não é preciso sentir medo. “Como espaço de origem e
pertencimento, o espaço impossível da casa, impossível
porque se tornou ideia apenas, palavra e lembrança – para
usar os termos de um dos livros de Pina –, é substituído
pela nostalgia.” (QUEIROZ, 2022, p. 205) 115

Um dos mais conhecidos poemas de Manuel Pina,


“Como se desenha uma casa”, explora uma atmosfera que
une mais uma vez linguagem e morada, evocando no passo
a passo desse desenho as tantas imagens que costuram
passado e presente.

COMO SE DESENHA UMA CASA

Primeiro abre-se a porta


por dentro sobre a tela imatura onde previamente
se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim
[impresente,
a mãe para sempre morta.
Anoiteceu, apagamos a luz e, depois,
como uma foto que se guarda na carteira,
iluminam-se no quintal as flores da macieira

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e, no papel de parede, agitam-se as recordações.
Protege-te delas, das recordações,
dos seus ócios, das suas conspirações;
usa cores morosas, tons mais-que-perfeitos:
o rosa para as lágrimas, o azul para os sonhos desfeitos.
Uma casa é as ruínas de uma casa,
uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;
desenha-a como quem embala um remorso,
com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.
(PINA, 2015, p. 347).

Desenha-se uma casa no hoje com o que


pertence a um momento anterior. As “palavras antigas”,
previamente ditas, “o cão, o jardim impresente, a mãe para
sempre morta”, bem como “as flores da macieira” parecem
ser imagens iluminadas à medida que a rememoração
116
acontece e cada pedaço desse espaço vai sendo construído
no papel “imaturo”, também de um momento prévio. A
casa guarda em suas paredes as recordações agitadas.
A recomendação pela proteção em tons suaves, mas de
significações duras – “o rosa para as lágrimas, o azul para
os sonhos desfeitos” – corrobora um desenho que não se
detém apenas no que parece bom e luminoso de uma casa,
mas aponta para um esvaziamento que é sinalizado desde
o início e quem sabe ainda mais destacado pela imagem
da “mãe para sempre morta”. Todo o poema parece se
preparar para a última estrofe de versos marcantes: “uma
casa é as ruínas de uma casa,/ uma coisa ameaçadora à
espera de uma palavra;/ desenha-a como quem embala
um remorso,/ com algum grau de abstracção e sem

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um plano rigoroso.” A imagem da ruína, que é e não é,
esse coabitar ontem e o hoje, aponta, ao mesmo tempo,
para a morte e para o regresso. Da mesma maneira, o
ato de “embalar um remorso” é forte na medida em que
consola algo impossível de ser desfeito. Em todos os
nossos exemplos conseguimos perceber essa dubiedade:
do renascimento esperado no poema de Sophia até a
atmosfera de ruína, de esvaziamento presente no poema
de Pina. A casa, como elemento que assenta uma dobra
no tempo, parece cada vez mais atrelada à ordenação do
sujeito no mundo.

Não somente a habitamos como elas nos habitam. Somos


também igualmente observados por elas: “a casa tinha
olhos/ que nos olhavam/ de debaixo da casa” (PINA, 117
2012, p.218). As casas – essas “mudas testemunhas
da vida” – “de fora olham-nos pelas janelas”, como no
famoso poema de Ruy Belo. Anteriores a nós mesmos,
elas já guardavam uma perspectiva e gramática próprias.
Porém, foi quando o homem passou a se abrigar (e
abrigar os seus mortos) em cavernas para se esconder
do mau tempo, a construir espaços para onde regressar,
que ele se conjugou a um tipo de linguagem inicial.”
(QUEIROZ, 2022, p. 202).

Sophia Andresen também nos orientou o


olhar para as definições e composições de uma casa,
possibilitando um diálogo com o poema de Pina
anteriormente comentado. A autora de Geografia parece
conseguir condensar nossas reflexões de uma maneira
muito interessante.

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PORTAS DA VILA

I
A casa está na tarde
Actual mas nos espelhos
Há o brilho febril de um tempo antigo
Que se debate emerge balbucia

II
Com um brilho de papel o vento range na palmeira
O brilho das estrelas suspende nosso rosto
Com seu jardim nocturno de paixão e perfume
A casa nos invade e nos rodeia

III
A casa vê-se de longe porque é branca
Mas sombrio
É o quarto atravessado pelo rio

118
IV
A casa jaz com mil portas abertas
O interior dos armários é obscuro e vazio
A ausência começa poisando seus primeiros passos
No quarto onde poisei o rosto sobre a lua (ANDRESEN,
2018, p. 543).

Nas quatro partes de “Portas da vila”, conseguimos


visualizar um recorte do que seria essa casa. Na primeira,
de imediato, o destaque para esse espaço que, como já
ressaltamos, parece conservar em si um atravessamento
de temporalidades. Ainda que atual, os espelhos – que
aqui podemos pensar como os representantes desse tempo
antigo aprisionado – carregam um “brilho febril”, a ânsia
de “um tempo antigo/ que se debate emerge balbucia”. A
não pontuação desse último verso poderia, também, além

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de marca da poética de Sophia, sinalizar para um tempo
inteiro, ainda que antigo.
A segunda parte diz dessa capacidade da casa de
invadir e rodear. Pelas sensações e memórias que evoca, a
materialidade do local mobiliza e envolve o sujeito. Aqui
não há remissão a qualquer caráter obscuro. O desenho
esboçado nos versos de Andresen ainda manifesta apenas
o elo, seja entre passado e presente, seja entre homem e
espaço. A atmosfera se modifica na terceira parte, quando
a casa branca, vista de longe, guarda em si um quarto
sombrio “atravessado pelo rio”. O retorno da imagem da
água, como anteriormente vimos no poema de Pina, pode
remeter a uma tradição que vê as águas como lugares de
memória, ou também elementos capazes de carregar uma 119

sacralidade através dos tempos. Um rio que atravessa o


quarto sombrio poderia ser lido como a vida antiga que
ainda passa, o tempo que não se detém.
O encerramento do poema de Andresen parece
ecoar ainda mais a ideia de ruína, de esvaziamento, que
Pina elaborou em “como desenhar uma casa” (PINA, 2015,
p. 347). Com armários vazios, portas abertas, tais imagens
podem ser pensadas justamente como essa possibilidade
de ir e vir da lembrança, “a ausência começa poisando seus
primeiros passos” (ANDRESEN, 2018, p. 543) naquele
quarto que tanto significou ao sujeito desse poema, onde
outrora pousou “o rosto sobre a lua”. A composição desses

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versos sinaliza muito bem para a casa como lugar de
convivência entre a mudança e a permanência, mantendo
seu sentido de unidade, ainda que atravessada pelo tempo
e seus efeitos. Nesse sentido, diz Bachelard que

é necessário mostrar que a casa é um dos maiores poderes


de integração para os pensamentos, as lembranças e os
sonhos do homem. Nessa integração, o princípio que faz
a ligação é o devaneio. O passado, o presente e o futuro
dão à casa dinamismos diferentes, dinamismos que
frequentemente intervém, às vezes se opondo, às vezes
estimulando-se um ao outro. A casa, na vida do homem,
afasta contingências, multiplica seus conselhos de
continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso.
(BACHELARD apud PEREIRA, 2020, p. 28).

A partir da leitura aqui proposta, percebemos um


120 pouco mais desse caráter múltiplo atribuído à tópica da
casa e que nos permite lançar um olhar amplo sobre as
suas possibilidades de articulação com outros elementos.
Pensadas como um ponto de inteireza, ecoando Sophia,
e de unidade do homem, as casas recuperadas pela
poesia, no limite das paredes da palavra, encontram essa
possibilidade de preservar uma eternidade, como bem
nos disse Andresen na entrevista de abertura deste texto.
Quando Manuel Pina coloca em seus versos: “digo ‘casa’,
mas refiro-me a luas e umbrais,/ a lembranças extenuadas,/
às trevas do corpo, lúcidas, latejando na obscuridade de
quartos interiores” (PINA, 2015, p. 361), entendemos
mais de suas possibilidades representativas no texto, ainda

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que pela via da ausência, da ruína. É o poeta retornado, é o
desejo de encontro com uma esfera do irrecuperável. Como
bem nos disse Ruy Belo: “uma casa é a coisa mais séria da
vida” (BELO, 2009, p. 139). Regressemos, pois, a ela.

Referências Bibliográficas

ANDRESEN, S. M. B. Obra poética. Rio de Janeiro:


Tinta-da-china Brasil, 2018.

BELO, R. Todas os poemas. 3 ed. Lisboa: Assírio & Alvim,


2009.

COUTO, R. M. S. M. Uma leitura de A casa do mar de


121
Sophia de Mello Breyner. Máthesis, n. 16, p. 203-214,
Universidade Católica Portuguesa, Departamento de
Letras, 2007. Disponível em: https://digitalis-dsp.uc.pt/
bitstream/10316.2/23558/3/Mathesis16_artigo10.pdf.
Acesso em: 01 dez. 2022.

PEREIRA, C. X. Da mesa ao mundo: o espaço na poesia


de Ana Martins Marques e Sophia de Mello Breyner
Andresen. 2020. 137f. Dissertação (Mestrado em Letras:
Estudos Literários no Programa de Pós-Graduação
em Letras: Estudos Literários), Faculdade de Letras,
Universidade Federal de Minas Gerais, 2020. Disponível
em: https://encurtador.com.br/apH56. Acesso em: 01
dez. 2022.

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PINA, M. A. O coração pronto para o roubo: poemas
escolhidos. Seleção e posfácio de Leonardo Gandolfi. São
Paulo: Editora 34, 2018.

PINA, M. A. Todas as palavras – poesia reunida (1974-


2011). 3 ed. Porto: Assírio & Alvim, 2015.

QUEIROZ, T. B. A vida e a morte das casas em Manuel


António Pina. Anais do XXVIII Congresso Internacional da
Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa
– ABRAPLIP. UERJ, Rio de Janeiro, p. 200-210, 2022.
Disponível em: https://www.editorarealize.com.br/index.
php/artigo/visualizar/82577. Acesso em: 01 dez. 2022.

122

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Figurações da morte
na poesia de Sophia de
Mello Breyner Andresen e
Hilda Hilst
Cíntia Paula É curioso notar que Sophia de Mello Breyner
Maciel
inicia o seu primeiro livro – intitulado Poesia (1944)
Universidade
Federal de Minas
– com um poema que nos remete diretamente a uma
Gerais questão referente à dualidade:

Apesar das ruínas e da morte


Onde sempre acabou cada ilusão,
123
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias
(ANDRESEN, 2018, p. 65).

Já nos primeiros versos deparamo-nos com


a imagem da “morte” e da “ruína”, elementos de
carga semântica negativa que impulsionam para um
fim iminente. O sujeito poético vê as suas ilusões se
esvaecerem e atingirem o fim último das coisas. No
entanto, o sonho, o estado dionisíaco por excelência,
é o caminho que proporciona uma força capaz de
ultrapassar o estado limite ao ponto de resultar numa
espécie de renascimento. O corpo do poema abriga o
duplo domínio do vivo e do morto, em que a pulsão

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vital é designada pelo renascimento do que pode ser
construído pelas “mãos” que “nunca ficam vazias”, apesar
da figura da morte assombrar o sujeito. São as mãos o
instrumento pelo qual o artista cria a sua obra, aquela que
pode vir a vencer a morte, ultrapassar as ilusões perdidas e
fincar na história a eternidade.
Como se vê, o primeiro volume da poesia de
Sophia se inicia com o tema da morte, algo um tanto
inquietante para uma poética que, aparentemente, celebra
o seu oposto, seja a vida, a justiça e, por assim dizer, a
perfeição das “cosias”. A oposição entre negatividade e
positividade, entre ilusão e sonho, conduz para a busca de
uma força que seja maior do que a morte, força tal que se
124 apresenta, no desenvolver da obra andreseniana, como a
apreensão do real feita no e pelo poema.
Se há uma força capaz de “vencer” a morte, essa
força está simbolizada nas mãos preenchidas pelo sonhar,
que são capazes de criar e nomear mundos por meio da
palavra poética. Se há uma força a vencer e a anunciar a
morte, ela só pode habitar o espaço da linguagem:

Preservar de decadência morte e ruína


O instante real de aparição e de surpresa
Guardar num mundo claro
O gesto claro da mão tocando a mesa (ANDRESEN,
2018, p. 457).

Os versos acima, trechos de “No poema”, presente


no Livro Sexto, quando relacionados com o poema que

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inicia a obra de Sophia, indicam outra vez a presença
da “morte” e da “ruína”, que põem em cena a finitude do
homem. Novamente há uma tensão entre a decadência e
a permanência, de modo que o sujeito poético se coloca
diante de uma realidade que não abre margens para a
ilusão, reconhecendo a verdadeira face do mundo em
desconcerto. No entanto, o poema aparece como espaço
de preservação do real e é apresentado como “o mundo
claro” onde será possível a permanência de algo após
a morte. Além da apreensão da surpresa captada pelo
olhar, a poética andreseniana busca também a fixação da
experiência na memória, de modo a restar algo após a
finitude, o que evidencia um certo movimento de “negação”
de uma vida que se esgota em si. As ruínas, elemento que 125

introduz o primeiro poema de sua obra, indubitavelmente


aludem à Grécia, mas também refletem o olhar da poeta
sobre a finitude humana e o desejo de permanência.
É no desejo de permanência e na possibilidade
de o poema encontrar “uma praia onde quebrar as suas
ondas” (ANDRESEN, 2018, p. 461), mesmo após a morte
do sujeito poético, que se pode perceber uma essencial
consciência acerca do limite humano:

Pudesse eu não ter laços nem limite


Ó vida de mil faces transbordantes
Pra poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes (ANDRESEN,
2018, p. 85).

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A condição humana é ancorada em laços e em
limites e, em oposição a essa condição limítrofe, há toda a
fluidez da vida ilimitada, cuja grandiosidade/especificidade
é a existência de todas as potências e possibilidades a serem
atualizadas. Entre a busca pelo real e a reflexão sobre a
palavra poética, parece haver então, na obra de Sophia,
uma certa figuração do limite e da finitude, de modo que a
perseguição do real se metamorfoseia, em alguns poemas,
na perseguição da morte:

Que triângulo ou círculo poderá cercar-te


Para que te detenhas demorada e minha
Para que não desças toda pela escada (ANDRESEN,
2018, p. 587).

126 O poema intitulado “Morte” evidencia o desejo do


sujeito poético de apreender e, por consequência, entender
e experienciar a morte, atestando, por sua vez, que ela é
também objeto de espanto. Qual contorno poderá cercar
a morte? É a pergunta do sujeito poético. Não parece
haver situação capaz de apaziguar a angústia diante da
morte, ideia reiterada pela pergunta contida em “quem
me consolará de meu corpo sepultado? ” (ANDRESEN,
2018, p. 236) verso de Sophia, mas que poderia facilmente
ter saído das mãos de Hilda Hilst.
A inquietação com a morte que venho traçando na
obra de Sophia se apresenta em toda a produção literária
de Hilda Hilst: nos poemas, na prosa, no teatro e nas

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entrevistas concedidas pela autora e é importante pontuar que
a temática da finitude é ponto fundamental para a construção
da obra de Hilst, como o é a Grécia para a obra de Sophia.
“A ideia da morte e o medo que ela inspira
perseguem o animal humano como nenhuma outra coisa”
(BEKCER, 2019, p. 11): é esta a tese defendida por Ernest
Becker, em A negação da morte. Caso a aceitemos, uma
ideia consequente se apresenta: todas as ações humanas
e, portanto, a construção das culturas e sociedades partem
de um aspecto essencial – o terror da morte. Se, conforme
argumenta Becker, de todas as coisas que movem o homem,
uma das principais é o seu terror da morte, a humanidade
não pode jamais ser compreendida sem considerar-se
a certeza da finitude. É significativo, nesse contexto, a 127

percepção de que a tendência básica da metafísica, desde


Platão, é nos lembrar a nossa participação no eterno e
nos convidar a superar a contingência e a finitude da vida
individual. Nos termos de Dastur:

vencer a morte,tal é a proposta não somente da metafísica,


que almeja o conhecimento do suprassensível e do não-
corruptível, mas também da religião, enquanto esta é
promessa de sobrevida pessoal; da ciência, que eleva
a validade de uma verdade independente dos mortais
que sobre ela refletem; e, de forma mais geral, do
conjunto da cultura humana, já que esta se fundamenta,
essencialmente, na transmissibilidade de técnicas que
constituem o tesouro durável de uma comunidade,
estendendo-se por várias gerações (DASTUR, 2002,
p. 6).

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Será possível afirmar, portanto, que toda cultura
é, num amplo sentido, cultura da morte? Não há cultura
a não ser quando um certo domínio do escoamento
irreversível do tempo é assegurado, o que implica o
emprego de técnicas destinadas a, progressivamente,
amenizar a ausência. E “a ausência por excelência, é a do
morto” (2002, p. 17) – lembra-nos Dastur. Uma cultura só
se forma a partir dos vestígios do passado ou, nas palavras
de Sophia: “A terra fatalmente é um fantasma / Ela que
toda a morte em si embala.” (ANDRESEN, 2018, p. 115).
Nesse sentido, se o homem é um animal político, segundo
a clássica definição de Aristóteles, o é não apenas por
viver em comunidade com os seus “contemporâneos”, mas
128 também e talvez ainda mais por viver com aqueles que o
precederam, de maneira que “a vida do homem é também
uma vida “com” os mortos, eis aí, talvez, o que distingue
verdadeiramente a existência humana da vida puramente
animal” (DASTUR, 2002, p. 16).
Não deixa de ser, pois, inquietante a tendência da
cultura ocidental em negar ou se afastar do problema da
finitude. No século XVI, Montaigne já notava a criação
de uma cultura de “negação da morte”, em que o “remédio
do homem vulgar consiste em não pensar na morte”
(MONTAIGNE, 2010, p. 54), embora desde sempre
esteja dado que “a meta de nossa existência é a morte; é
este o nosso objetivo fatal” (MONTAIGNE, 2010, p. 53).

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A verdade é que, embora fundamental para a
constituição do sujeito e formação das culturas, a morte
não é experiência que possa ser vivida, mas somente
anunciada e prenunciada. Sabemos que vamos morrer, mas
não há a experiência da morte como tal – o que Epicuro
(2002, p. 29) expressa perfeitamente ao dizer que, durante
nossa experiência, a morte não está presente e que, quando
está, já não somos mais, não sendo ela, consequentemente,
nada para nós.
Na obra de Sophia Andresen, a morte surge
problematizada a partir da contemplação dos efeitos no
Outro. Isso ocorre, sobretudo, a partir de No tempo dividido
(1954), momento no qual o sujeito poético, anteriormente
fascinado com o esplendor do mundo, descentra-se e o 129

olhar devolve-lhe uma imagem lúcida de si próprio,


dos outros e da realidade. Há, neste momento da obra
andreseniana, uma ruptura e instala-se uma profunda
crise ontológica, motivada pela consciência aguda do
tempo enquanto irreversibilidade e finitude inelutáveis.
Nesse contexto, a morte surge frequentemente associada
à realidade do amor: na relação com o ser amado, este
acontecimento surge na sua mais profunda forma trágica
e torna-se experiência escandalosa porque contraditória: o
Outro converte-se em imobilidade, rigidez, ausência.
Em Sophia, conforme evidenciado por Soares
(2010, p. 198), o caráter ameaçador e trágico da experiência

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da morte, na relação do sujeito com o Outro, está associado
essencialmente a uma concepção platônica do amor. Nesse
contexto, amante e amado se constituem como partes
divididas de um ser único, reunidos através do Eros. Essa
concepção platônica do amor pode ser observada nos
seguintes versos de Sophia:

Na minha vida há sempre um silêncio morto


Uma parte de mim que não se pode
Nem desligar nem partir nem regressar
Aonde as coisas era uma intimamente
Como no seio morno de uma noite (ANDRESEN,
2018, p. 318).

A realidade do desejo e a obsessão da procura


confirmam a inegável divisão de algo que era absoluto.
130
Assim, em Platão, o Eros assume uma dimensão dupla:
“por um lado, é a evidente prova da incompletude humana,
da brutal mutilação da excelência primitiva, mas, por outro,
é desejo e impulso para um regresso a si, um retorno à
fusão primordial” (SOARES, 2010, p. 199). O Eros define,
então, o presente como carência e procura do Outro, a fim
de reencontrar nele a plenitude perdida. Pelo encontro,
transcende-se o que foi rompido e afastado, e regressa-se à
esfericidade. Esta concepção é visível no “Poema de Amor
de António e de Cleópatra”, em que sujeito e ser amado se
fundem e confundem num só:

Pelas tuas mãos medi o mundo


E na balança pura dos teus ombros

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Pesei o ouro do Sol e a palidez da Lua (ANDRESEN,
2018, p. 341).

Sol e Lua são astros complementares, destinados


a perseguirem-se contínua e ciclicamente. Como tal,
simbolizam a cisão primordial, a instituição da antítese,
da incompatibilidade. No entanto, apesar desta dualidade
essencial que separa o Mesmo do Outro, pelo Eros, a fusão
verifica-se. Amante e ser amado religam-se num só corpo,
num só pensamento, num todo indiviso. O amor constitui-se,
assim, em Sophia, como princípio de manifestação do Ser.
Todavia, com a morte, a unidade reinstalada pelo
Eros fratura-se novamente. O desaparecimento definitivo
do Outro assume-se como uma segunda mutilação. A
131
morte instala a desintegração, mas, desta vez, a perda é
irreparável, dado que a reunião do Mesmo e do Outro,
no fluxo linear do tempo é irrecuperável. Em Sophia, os
exemplos de Orfeu e de Eurídice e do duque de Gandia e
de Isabel de Portugal realçam a dimensão trágica do amor,
mutilado pela morte.
No mito de Orfeu e de Eurídice, o amor
problematiza-se de uma forma muito específica. Apesar
dos esforços do amante, a queda de Eurídice no Hades
permanecerá sem restituição. A escolha de Orfeu é a vida
e o seu empreendimento não é a demanda unicamente
do Eros mas a demanda do Mistério Absoluto. De fato,
Orfeu procura entrar vivo no reino dos mortos, a fim de

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resgatar Eurídice, porém a sua intenção não era unir-se
à amada e permanecer no Hades, recuperando assim a
unidade perdida. Pelo contrário, Orfeu desejava, acima de
tudo, “a abolição da morte”:

Este é o traço que traço em redor do teu corpo amado


e perdido
Para que cercada sejas minha

Este é o canto do amor em que te falo


Para que escutando sejas minha

Este é o poema – engano do teu rosto


No qual eu busco a abolição da morte (ANDRESEN,
2018, p. 316).

Orfeu desejava a recuperação de um tempo feliz


132 que a irreversibilidade implacável do destino precipitou
no vazio. Mais do que o Eros, Orfeu amava a vida e a
descida ao mundo das sombras tinha essencialmente
como objetivo o confronto com a irreversibilidade e com
a finitude. Caso tivesse conseguido a anulação da morte
de Eurídice, Orfeu poderia usufruir a continuidade do
amor no seio da temporalidade e fazer retroceder o tempo,
no entanto a morte manteve inabalável a cisão entre o
Mesmo e o Outro. Orfeu e Eurídice representam, desse
modo, o fracasso do amor perante a implacabilidade da
morte. Neste mito, a morte é muro intransponível que
transforma a vida do poeta em procura vã, em definitiva
ausência e silêncio do ser amado. Sophia vê ainda o

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espectro de Eurídice, devassado pela solidão e buscando
incessantemente o amado:

Eurídice perdida que no cheiro


E nas vozes do mar procura Orfeu:
Ausência que povoa terra e céu
E cobre de silêncio o mundo inteiro (ANDRESEN,
2018, p. 342).

A incomunicabilidade, o rompimento irreversível


do que fora efemeramente uno, acentua a tragicidade e
o fracasso do amor perante a finitude. Esta concepção
atravessa igualmente a “Meditação do Duque de Gandia
sobre a Morte de Isabel de Portugal”, em que há um
sujeito dilacerado pela perda, sofrendo uma nítida
desestruturação: 133

Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.


A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem não possa viver


Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,

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És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.


(ANDRESEN, 2018, p. 378).

Nos versos, assiste-se à profunda decepção


ontológica de um sujeito confrontado com a irremediável
perda do ser amado e com o consequente estilhaçamento
do Eros. O amor constituía-se como serviço e entrega,
submissão e contemplação da “glória”, da “luz” e do
“brilho” irradiantes do Outro. A ruptura do Eros, deve-
se, em seguida, à súbita revelação, pela morte, do engano
em que o sujeito tinha vivido. A felicidade irradiante
da amada levou-o a acreditar na sua invulnerabilidade
134
ao tempo: “Porque eu amei como se fossem eternos / A
glória, a luz e o brilho do teu ser”. A morte assumia-se,
portanto, como uma possibilidade absurda em relação à
plenitude do amor. Porém, ela surge bruscamente como
rapto e destruição, rasgando a esfericidade estabelecida.
Na poética de Hilda Hilst, a morte também aparece como
experiência que só pode ser acessada pelos efeitos gerados
no outro. Muitas vezes, a finitude denuncia o caráter
trágico do amor cujo impedimento ocorre em função da
inexorabilidade da morte.

Morte, minha irmã:


Que se faça mais tarde a tua visita.
Agora nunca. Porque o amor de Túlio
O vermelho da vida, pela primeira vez

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Se anuncia fecundo. Diante da luz do sol
O meu rosto noturno de poeta te suplica
Que te demores muito contemplando o mundo
Que te detenhas ali, entre a roseira
E o junco,
Ou talvez, para o teu conforto, assim, te estendas
À sombra das paineiras, sonolenta.
Morte, contempla. Poupa quem por amor,
Em tantos versos, também te fez rainha.
Esquece o poeta. Porque o amor de Túlio
O vermelho da vida, pela primeira vez
Secreto, se avizinha. (HILST, 2017, p. 249).

Nesta composição poética, assiste-se a um sujeito


que toma a morte como sua interlocutora e lhe faz
incessantemente um pedido: que ela se demore a fim de
que o amor possa finalmente acontecer, para que o Mesmo
e o Outro tenham tempo para se unirem por meio do Eros. 135

Ora, vê-se aqui o desejo de não morrer para que a fruição


amorosa possa acontecer. Em comparação com os poemas
de Sophia, pode-se afirmar que também há a indicação da
dimensão trágica do amor, mutilado pela possibilidade da
morte que um dia virá.
Fazer da morte a interlocutora do sujeito poético
é recurso comum nos versos hilstianos. Em Da morte, odes
mínimas (1980), o sujeito poético estabelece diálogos com
a morte em todos os poemas do livro. Na obra, a morte
continua sendo experienciada e percebida por meio da
relação com os efeitos gerados no Outro, no entanto, há
um interessante movimento em que a morte, aos poucos,

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torna-se o objeto de desejo do sujeito poético, ao mesmo
tempo, em que é figurada como o obstáculo intransponível
que impede o sujeito de se aproximar daquilo que
verdadeiramente deseja. Nesse sentido, parece haver uma
relação do erotismo com a morte, de desejo e espanto por
ela, no sentido que Bataille postulou do erotismo “como
afirmação da vida até na morte” (BATAILLE, 2017, p. 35).
A morte se torna o elemento com o qual o sujeito poético
deseja se reunir a fim de alcançar uma esfericidade outrora
perdida, mas que permanece sempre em afastamento, em
mistério absoluto, que se apresenta, mas nunca se deixa
plenamente conhecer.

Pertencente te carrego:
136 Dorso mutante, morte.
Há milênios te sei
E nunca te conheço.
Nós, consortes do tempo
Amada morte
Beijo-te o flanco
Os dentes
Caminho candente a tua sorte
A minha. Te cavalgo. Tento. (HILST, 2017, p. 317).

Nos versos acompanha-se um sujeito poético


que deseja unir-se à morte e se depara sempre com um
impedimento: a própria finitude. Conhecer a morte,
e não apenas ter consciência sobre ela: é o desejo do
sujeito poético. O sujeito poético sabe da morte, mas não
a conhece verdadeiramente e, por isso mesmo, pelo não

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conhecer deseja se aproximar dela, deseja eroticamente se
reunir à morte e com ela tornar-se um só ser: retornar
a uma esfericidade que foi perdida, deseja um dia ser
“amor e morte ao mesmo tempo” (HILST, 2017, p. 17)).
Nos versos de Hilst, a morte vai se tornando o objeto do
amor, o outro que não pode ser alcançado justamente pela
existência da finitude. A tragicidade do amor se apresenta
por completo: não há qualquer possibilidade de se unir
eroticamente à morte e viver essa experiência, pois quando
a morte tomar o corpo do sujeito tudo terá fim.
A relação do erotismo com a morte indica, além do
desejo e espanto perante a certeza da finitude, a busca por
um conhecimento que parece estar além da compreensão
humana: viver a morte como experiência e, no entanto, não 137

morrer. O sujeito poético não compreende a morte e a sua


tentativa é a de unir corpos: “Não compreendo. Apenas/
Tento/ Somar meu corpo/ A teu corpo negro/ (...) Não
compreendo. Apenas/ Tento/ Somar teu corpo/ A meu
pensamento” (HILST, 2017, p. 339). Relação semelhante
a esta é apresentada nos seguintes versos:

Demora-te sobre minha hora.


Antes de me tomar, demora.
Que tu me percorras cuidadosa, etérea
Que eu te conheça lícita, terrena

Duas fortes mulheres


Na sua dura hora

Que me tomes sem pena

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Mas voluptuosa, eterna
Como as fêmeas da Terra.

E a ti, te conhecendo
Que eu me faça carne
E posse
Como fazem os homens (HILST, 2017, p. 316).

Há no poema uma evidente oposição entre


feminino e masculino. A morte é outra, como o eu-lírico,
uma mulher forte e elas devem encontrar-se na “dura
hora”. O eu pede à morte que se demore, que permita que
ela a conheça em vida, “Que eu te conheça lícita, terrena”.
Mas, quando chegar a hora, não deverá haver piedade,
mas volúpia “Que me tomes sem pena/Mas voluptuosa,
138
eterna.”. A volúpia é associada ao feminino. O encontro
com a morte é solene e respeitável. Porém, na última
estrofe, o eu-lírico afirma que ao conhecer a morte se
fará carne e posse, associada ao masculino “Que eu me
faça carne/E posse/Como fazem os homens”. Conhecer
é possuir, dominar. Ser tomada pela morte indica uma
passividade. O eu-lírico, no entanto, não parece assumir
um dos polos dessa oposição (passivo/dominado/feminino
x ativo/dominador/masculino), mas ambos. Desse modo,
o encontro com a morte traz dois sentidos: a morte vence
ao tomá-la, mas o eu vence ao finalmente conhecê-la:

Se eu soubesse
Teu nome verdadeiro
Te tomaria

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Úmida, tênue.

E então descansarias. (HILST, 2017, p. 328).

A dimensão trágica da vida, indicada nesses


versos, talvez seja a consciência do vivente humano sobre
a morte que um dia virá e o impedimento de conhecer e
compreender verdadeiramente a finitude: nunca saber o
verdadeiro nome da morte. O vivente humano sabe que
deve morrer e, habitualmente, entende-se esse “saber”
como uma das características essenciais da humanidade, ao
lado da linguagem, do pensamento e do riso (DASTUR,
2002, p. 13). No entanto, não há a experiência da morte
como tal, mas somente a experiência da morte do outro e a
instituição, nesta experiência do luto, da própria referência 139

a si como mortal. Essa dimensão trágica, assim como nos


versos de Sophia, evidencia-se na onipresença da morte
sobre o amor e os amantes, na presença inegável do fim.

No coração, no olhar

Quando se tocarem
Pela primeira vez
Aqueles que se amam

Eu estarei

Nas grandes luas


Nas tardes
Nas pequenas canções
Nos livros
Eu e minha viva morte

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Estaremos ali
Pela primeira vez (HILST, 2017, p. 340-1).

A morte está, pois, presente em toda a vida,


ainda que vivê-la enquanto experiência individual pareça
impossível. A morte enquanto experiência não pode ser
plenamente vivida e, nesse sentido, uma possível forma
de o sujeito integrá-la à intimidade de sua compreensão é
por meio da linguagem e do pensamento. Talvez por isso
mesmo a temática da morte se tornou a “musa a filosofia”
(DASTUR, 2002) e, muitas vezes, da literatura também.
Talvez a arte e o pensamento sejam os espaços possíveis de
(encontro e) enfrentamento da morte. É esta a definição
da vida filosófica dada por Montaigne de que “Filosofar
140
é aprender a morrer”. Nesse sentido, mais ainda do que
apenas a relação com o outro, talvez o que possamos
deduzir a partir da figuração da morte na obra das poetas
discutidas é que a própria linguagem, tendo em vista que
ela é elemento comum entre filosofia e literatura, pode
ser aquilo que mais nos aproxima da morte enquanto
experiência.
Que outra coisa faz a linguagem se não nos
anunciar a morte? É a provocação feita por Agamben
em “Ideia da morte”1. A morte não é experiência que
1
“O anjo da morte, que em certas lendas se chama Samael e do qual
se conta que o próprio Moisés teve de o afrontar, é a linguagem. O
anjo anuncia-nos a morte – e que outra coisa faz a linguagem? –, mas
é precisamente esse anúncio que torna a morte tão difícil para nós. (...)
a humanidade luta com o anjo para lhe arrancar o segredo que ele se

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possa ser vivida, mas somente anunciada e prenunciada.
Se a cultura humana se fundamenta essencialmente na
transmissibilidade capazes de instituir a durabilidade
de uma comunidade (DASTUR, 2002, p. 17) e se a
Linguagem é a mais poderosa técnica humana contra a
morte (DASTUR, 2002, p.116), é apenas existindo que
testemunhamos a morte e a linguagem é aquilo que
manifesta mais radicalmente a nossa finitude. Dar nome às
coisas é anulá-las em sua existência real – como Blanchot
deixa evidente ao afirmar que “quando eu falo, a morte
fala em mim” (BLANCHOT, 1997, p. 311) e, portanto, a
linguagem é aquilo que ao mesmo tempo me separa do ser
e me liga a ele.
A palavra é então o que arranca do esquecimento abissal 141

e da ocultação sem limite o próprio existir das coisas, o


que não é nem sua simples singularidade sensível nem seu
puro conceito abstrato, mas a alteridade de sua ausência
que se apresenta “suavemente”, isto é, sensivelmente, a nós,
na sonoridade das palavras que as designam (DASTUR,
2010, p. 117).
Provavelmente, Montaigne estava certo ao afirmar que
“quem ensinasse os homens a morrer os ensinaria a viver”
(MONTAIGNE, 2010, p. 58). E talvez este seja também
um dos papéis primordiais da linguagem: ensinar a morrer,
ensinar a viver.
limita a anunciar. Mas das suas mãos pueris apenas se pode arrancar
aquele anúncio que, de resto, ele nos viera fazer.” (AGAMBEN, 2013,
p. 126).

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Referências Bibliográficas

AGAMBEN, G. Ideia da morte. In: Ideia da prosa. Belo


Horizonte: Autêntica, 2013. p. 126.

ANDRESEN, S. de M. B. Obra poética. Rio de Janeiro:


Tinta-da-china Brasil, 2018.

BATAILLE, G. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

BECKER, E. A negação da morte: uma abordagem


psicológica sobre a finitude humana. Rio de Janeiro:
Record, 2019.

BLANCHOT, M. A literatura e o direito à morte. In:


BLANCHOT, M. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco,
1997. p. 291-330.
142

DASTUR, F. A morte: ensaio sobre a finitude. Rio de


Janeiro: DIFEL, 2002.

EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu). São


Paulo: Editora UNESP, 2002.

HILST, H. Da poesia. São Paulo: Companhia das Letras,


2017.

MONTAIGNE, Michel. Que filosofar é aprender a


morrer. In: Os ensaios: uma seleção. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010.

SOARES, A. M. Eros e Thanatos na poesia de Sophia


de Mello Breyner Andresen. Babilónia, Lisboa, n. 8/9, p.
197-204, 2010.

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O mar é maior nos Açores: a
presença das ilhas em textos
de Cecília Meireles e Sophia
de Mello Breyner Andresen

Wendel Francis E o Brasil açoriano


Gomes Silva De Cecília a tão secreta
Atlântida encoberta
Universidade
Sob o véu dos olhos verdes
Federal de Minas
Gerais
Sophia de Mello Breyner Andresen

Os versos que escolhemos como epígrafe


143
deste trabalho foram recolhidos do poema “Brasil
77”, poema que, segundo Luana Flávia Cotta
Drummond,

foi escrito, como o próprio título refere, em 1977,


tempo em que, no Brasil, vigorava a ditadura
militar, sob o governo do General Ernesto
Geisel. Publicado em 1982, o poema de Sophia
Andresen faz menção direta a “No vosso e em
meu coração”, composição de Manuel Bandeira
contida no livro Belo Belo, de 1948, cujo tema é
o franquismo espanhol. (DRUMMOND, 2018,
p. 22).

Em ambos os poemas, no de Sophia e no de


Bandeira, observa-se um posicionamento contra a

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ditadura, uma forma de manifesto contra as atrocidades
daquele momento sombrio. No caso de Sophia, os versos
de “Brasil 77” apresentam um aspecto de sua poética
que se alia à busca e defesa da justiça, como a própria
autora afirmou em sua “Arte Poética III”: “[...] a poesia
é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar
a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca
da justiça é sempre uma coordenada fundamental de toda
obra poética” (ANDRESEN, 2018, p. 897). O poeta,
como afirma Sophia, não é um ser isolado do mundo em
sua torre de marfim, ainda que se coloque à margem da
convivência. Ainda que fale de “pedras ou de brisas a obra
do artista vem sempre dizer-nos isto: [...] que somos, por
144 direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do
ser” (ANDRESEN, 2018, p. 898). Além do manifesto
desejo de intertextualidade com a poesia brasileira,
evidenciado, por exemplo, na menção a Bandeira, Jorge
de Lima, João Cabral de Melo Neto e Murilo Mendes,
desejamos comentar o trecho no qual Sophia menciona
Cecília Meireles.
Sophia refere-se a um “Brasil açoriano/ de Cecília a
tão secreta”, ressaltando uma genealogia que ligaria o Brasil
a Portugal, por meio de Cecília e suas raízes portuguesas.
A autora parece referir-se, igualmente, à migração de
habitantes açorianos para as terras brasileiras, em especial
para a região Sul do Brasil, em Santa Catarina. Inserindo-

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se no capítulo da ligação com as terras portuguesas, Cecília
manteve, ao longo de sua vida, uma relação afetiva com as
terras lusitanas, em especial por uma memória de infância
no qual sua avó açoriana, Jacinta Garcia Benevides, contava-
lhe histórias sobre a terra natal. Essa ligação teria também
fomentado a relação de Cecília com Armando Côrtes-
Rodrigues que lhe enviava cantigas, histórias, lendas e
informações sobre os Açores. Cecília chegou a organizar e
publicar os dados que reuniu sobre as terras açorianas na
publicação Panorama Folclórico dos Açores Especialmente da
Ilha de S. Miguel (1958), focada, como evidencia o título,
nos aspectos culturais e folclóricos dessa região.
Não obstante, nos versos seguintes, Sophia
menciona que Cecília seria “Atlântida encoberta/ sob o véu 145

dos olhos verdes”. A referência à ilha perdida de Atlântida


parece-nos menção a certa parcela da crítica brasileira
que teria comparado a autora a uma ilha: “Há em Cecília
Meireles uma sensação de isolamento dentro do infinito,
que é característico das ilhas” (MILLIET, 1972, p. 75).
Segundo Karla Renata Mendes, “a crítica contemporânea
a Cecília Meireles foi muitas vezes dura em suas
assertivas, ressentindo-se, talvez, de uma poesia que fugia
aos conflitos e conquistas de sua época. Estabeleceu-se,
então, um discurso em que Cecília aparecia como ‘figura
solitária’, ‘aérea e fluida’” (MENDES, 2016, p. 4). Todavia,
ao contrário desses comentários realizados sobre a poeta,

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Sophia relaciona a autora brasileira a um universo no qual
impera a pura criação.
Cecília é apresentada com uma certa aura de
mistério, visto que sua imagem estaria duplamente
encoberta, primeiramente, sob o peso das águas e do
tempo, “Atlântida encoberta”, e em segundo lugar, “sob
o véu dos olhos verdes”, remetendo igualmente à cor do
mar e à aparência da autora. Não é por acaso que Sophia
afirmaria, no ensaio intitulado “A poesia de Cecília
Meireles”, publicado inicialmente na Revista Cidade
Nova, que “Falar dum poeta é como querer apanhar água
com as mãos. Prendemos só as nossas próprias palavras,
enquanto o poeta nos foge” (ANDRESEN, 2000, p. 61-
146 71). Nesse ponto, Sophia apresenta-se como uma leitora
de poetas e reconhece a angústia de se tentar definir, em
termos circunscritos, à poética de um autor, o que também
reconhecemos ser uma tarefa profundamente agônica.
Propomos, portanto, uma leitura do poema
“Açores”, presente no livro O nome das coisas (1977), no qual
é possível perceber que a autora apresenta-nos aspectos que
valoriza em relação ao arquipélago dos Açores e também
da poética pessoana, e o poema “Pastoral V”, escrito por
Cecília Meireles e publicado no livro Poemas de viagens,
texto em que a autora brasileira apresenta alguns aspectos
da Ilha do Nanja, a sua ilha dos Açores transfigurada em
sonho e desejo de retorno.

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No poema de Sophia, o sujeito apresenta-nos
aquele espaço optando por afirmar o “orgulho” na palavra
“Açor”.

Há um intenso orgulho
Na palavra Açor
E em redor das ilhas
O mar é maior

Como num convés


Respiro amplidão
No ar brilha a luz
Da navegação

Mas este convés


É de terra escura
É de lés a lés
Prado agricultura
147
É terra lavrada
Por navegadores
E os que no mar pescam
São agricultores

Por isso há nos homens


Aprumo de proa
E não sei que sonho
Em cada pessoa (ANDRESEN, 2018, p. 710).

Nessas estrofes, observamos que a autora opta


pela redondilha menor, escrevendo os versos com uma
musicalidade que se aproxima das cantigas populares.
Na primeira estrofe, o sujeito poético afirma que há “um
intenso orgulho/ na palavra Açor”. Segundo a página do
Museu Virtual Biodiversidade da Universidade de Évora,

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o açor é uma “ave de rapina forte”, de longa envergadura
de asa, cabeça pequena, olhos amarelos que evoluem para
tons vermelhos na idade adulta, espécie residente em
Portugal continental, especialmente no norte e centro do
território, privilegiando o litoral. As características da ave
fazem-na perfeita para a caça e para os habitats abertos.
Dessa forma, apresenta-se como uma ave afeita a grandes
voos e trajetos, sempre próxima ao mar.
No texto “Escutar, nomear, fazer paisagens”,
Silvina Rodrigues Lopes destaca que o gesto de “nomear”
é uma das operações fundamentais da poesia de Sophia,
isto porque “nomear é responder ao deslumbramento do
visível, chamando pelo nome - o nome que se escutou,
148 que se pronunciou; o nome que foi dado, mesmo quando
inaugural, pois a sua chama pertence à linguagem e
àquele que chama. Como se as coisas existissem latentes”
(LOPES, 2003, p. 62). De acordo com Rodrigo Corrêa
Martins Machado, o “arquipélago dos Açores foi, na
expansão marítima portuguesa, uma das primeiras terras
descobertas pelos nautas lusos, servindo mais tarde de
apoio para as outras empresas: África, Índia, Brasil, China
e Japão” (MACHADO, 2012, p. 71). Possivelmente, por
esse mesmo motivo, a palavra “açor” evoque o orgulho
mencionado pelo sujeito lírico.
O sujeito lírico segue a apresentar aquele espaço:
“em redor das ilhas/ O mar é maior”. O conjunto de ilhas

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que nasceu da atividade vulcânica da região é cercado pelo
oceano, o que o diferencia do território português ainda
ligado ao continente. Ali, “brilha a luz/ Da navegação” e
as ilhas são comparadas a uma embarcação. Porém, nesse
convés de “terra escura”, a terra é lavrada “por navegadores”,
e, de forma inversa, os que pescam são agricultores. Nesse
ponto, a autora faz menção direta à atividade agrária da
região e o texto segue a destacar a profunda comunhão
entre uma certa paisagem humana e uma paisagem natural.

As casas são brancas


Em luz de pintor
Quem pintou as barras
Afinou a cor

Aqui o antigo 149


Tem o limpo do novo -
É o mar que traz
Do largo o renovo

E como num convés


De intensa limpeza
Há no ar um brilho
De bruma e clareza

É convés lavrado
Em plena amplidão
É o mar que traz
As ilhas na mão (ANDRESEN, 2018, p. 710-711).

Nesse ponto, o sujeito enunciador segue a apresentar


elementos dessa paisagem, destacando a alvura das casas,
que lembram remotamente as casas das ilhas gregas de

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Mykonos e Santorini, igualmente pintadas de branco. Em
tal espaço, a paisagem renova-se incessantemente como
se o mar pudesse, com seu movimento repetitivo, permitir
que esse espaço renascesse a cada nova onda que quebra
na costa. É nesse “convés lavrado”, aproximação semântica
entre as atividades da terra e do mar, que o sujeito encontra
uma “intensa limpeza”, em que o “antigo/ tem o limpo do
novo” e um “brilho/ de bruma e clareza” permeia o ar.

Buscámos no mundo
Mar e maravilhas
Deslumbradamente
Surgiram nove ilhas

E foi na Terceira
Com o mar à proa
150 Que nasceu a mãe
Do poeta Pessoa

Em cujo poema
Respiro amplidão
E me cerca a luz
Da navegação

Em cujo poema
Como num convés
A limpeza extrema
Luz de lés a lés

Poema onde está


A palavra pura
De um povo cindido
Por tanta aventura

Poema onde está


A palavra extrema

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Que une e reconhece -
Pois só no poema

Um povo amanhece

1976 (ANDRESEN, 2018, p. 711-712).

Na estrofe que segue, o sujeito enunciador


apresenta-se de forma coletiva, “buscamos no mundo”,
e graças a essa busca as nove ilhas dos Açores surgem
da paisagem, como se nascessem perante os olhos dos
navegadores que primeiro a encontraram. A utilização do
verbo conjugado na primeira pessoa do plural também
aparece recorrentemente em poemas de Navegações
(1983), o que parece ser utilizado pela poeta para indicar as
navegações imbuídas de um sentido coletivo e associadas 151

a uma expansão civilizacional, referindo-se a essas viagens


que compõem a história e a formação de Portugal.
Nesse trecho, a autora ressalta a Ilha Terceira, por
ser ela a terra natal da mãe de Pessoa. Sophia identifica no
poema de Pessoa as mesmas características que atribuíra
às Ilhas dos Açores: “amplidão”, a “luz da navegação”, a
“limpeza extrema”, a “palavra pura”, a “palavra extrema”.
Podemos concluir que, apesar da relação agônica
evidenciada com a poética pessoana, Sophia reconhece a
importância dessa poesia para o povo português e defende
o poder da palavra, visto que “só no poema/ um povo
amanhece”. Retomando a entrevista que Sophia concedeu

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a Miguel Serras Pereira para o Jornal das Letras em 1985,
lembramos que, apesar de não abraçar os ideais pessoanos
da despersonalização e aquela “palavra extrema” que
provoca a cisão máxima do sujeito, a poeta ainda escolhe
acreditar na possibilidade da poesia, na possibilidade
que essa mesma “palavra extrema” possa unir um “povo
cindido/ por tanta aventura”. 1
No caso da poeta brasileira, encontramos uma rede
de sociabilidade que a levaram, eventualmente, a almejar
e a sonhar com o destino dos Açores. Dentre os autores
que compõem essa rede, mencionamos, como exemplo,
que a autora teria se aproximado de Vitorino Nemésio a
partir de 1939. Já entre 1946 e 1964 Cecília cultivou uma
152 intensa troca de correspondência com o poeta açoriano
Armando Côrtes-Rodrigues. Essa correspondência seria
1
“Fernando Pessoa é um poeta que morreu para que a poesia vivesse:
«não sou eu que vivo é o poema que vive em mim». É o que diz São
Paulo: «Não sou eu que vivo é o Cristo que vive em mim». Fernando
Pessoa pode dizer isso da poesia... Ele salvou-se pelos caminhos que
escolheu, percorreu o seu caminho como quis e escreveu aquilo que
tinha para escrever. Eu acho que a poesia não é uma renúncia. O Fer-
nando Pessoa vive a poesia como uma transcendência. Eu creio numa
positividade... Há no Coral um poema chamado «Sibilas» que é escri-
to como acusação contra os poetas como o Fernando Pessoa. E há um
verso do Rilke que diz aquilo que procuro: «encontrar um puro domí-
nio humano entre o rio e a rocha». Eu acredito na unidade, acredito
na possibilidade, mesmo que seja... Toda a minha poesia oscila entre
a confiança nessa unidade e uma espécie de pânico do seu fracasso.”
PEREIRA, Miguel Serras. 1985. “Sophia: ‘Sou uma mistura de Norte
e Sul’” – Entrevista a Sophia de Mello Breyner Andresen. Jornal de
Letras, Artes e Ideias 135 (05/02/1985): 2-3. Disponível em: https://
purl.pt/19841/1/galeria/entrevistas/03.html. Acesso em: 20 jul. 2022.

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publicada posteriormente no livro “A lição do poema: cartas
de Cecília Meireles a Armando Côrtes-Rodrigues, em 1998.
Segundo Karla Renata Mendes, Cecília

concedia especial relevância a essa matriz insular, o


que gerava uma espécie de identificação e aproximação
quase espiritual. A perspectiva de uma herança comum
a aproximou, por exemplo, de açorianos como o poeta
Armando Côrtes-Rodrigues, com quem manteve
uma relação amistosa ao longo de quase 30 anos.
Embora a amizade com Vitorino Nemésio tenha sido
mais distanciada, aspectos comuns em suas poéticas
localizam-se justamente na convergência da “inspiração
insular de uma herança familiar”, como atesta
Margarida Maia Gouveia na obra Vitorino Nemésio e
Cecília Meireles: a ilha ancestral. Para ela, enquanto a
“insularidade de Nemésio é ‘real’, ‘concreta’, a de Cecília
é um estado de espírito” (GOUVEIA, 2001, p. 107),
mas que ajuda a explicar o interesse da poeta por essa 153
questão. (MENDES, 2016, p. 69).

Parte da relação de Cecília com esse espaço pode


ser compreendida a partir da leitura das crônicas “A ilha
do Nanja”, “Natal na Ilha do Nanja” e “Saudade da Ilha
do Nanja”, escritas originalmente entre 1961 e 1963,
concebidas para serem lidas no programa Quadrante, na
Rádio MEC, a convite de Murilo Miranda e publicadas
pela primeira vez no livro Ilusões do Mundo, em 1976. Tal
como a ilha de Atlântida, roteiro presente no imaginário
popular, Cecília apresenta-nos a “Ilha do Nanja”, a “sua”
Ilha de São Miguel transfigurada em sonho, afeto e desejo
de pertencimento.

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Estudei canto e violino. Abandonei. Era preciso ganhar
a vida e poesia se pode criar até numa viagem de bonde.
Mesmo nas reuniões em que muita gente discutia eu era
capaz de me ausentar em meu mundo e construir. Aos
poucos pude criar a minha Ilha de Nanja, a São Miguel
transfigurada pelo sonho (BLOCH, 1964, p. 34-37).

Nesse trecho da entrevista, Cecília demonstra


que aquela ilha imaginada poderia ser considerada como
um roteiro de fuga da realidade, transmutando memória
e sonho em um mundo só seu. Sobre a Ilha do Nanja,
localizamos alguns trabalhos que muito agregaram na
escrita dessa análise, tais como o artigo “A memória dos
Açores na escrita de Cecília Meireles”, de Ana Maria
Lisboa de Mello, no qual apresentam-se evidências dessa
154 memória ao longo da vida da escritora e ao realizar alguns
comentários sobre as crônicas mencionadas, afirma que
“Cecília habita em sonhos a Ilha do Nanja, recria a
cultura de seus antepassados, oriundos de São Miguel,
transfigura os elementos marítimos, tão presentes no
imaginário açoriano, em símbolos mediadores de diálogos
com uma dimensão transcendente.” (MELLO, 2012, p.
386). Mencionamos também o artigo “A ilha de Cecília
Meireles”, de Mariana Oliveira, no qual a estudiosa expõe
alguns dos aspectos que circundam a criação dessa ilha
imaginária, uma fantasia pessoal, um lugar idílico, nem
geográfico, nem histórico, mas isolada do mundo.
O roteiro sonhado pela autora teria se concretizado
em uma viagem aos Açores em 1951, quando pôde visitar

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a Ilha de São Miguel, segundo V. B. Gouvêa, “viagem
poeticamente planejada em muitas das 180 cartas que
até então já enviara ao ‘irmão-poeta’ Armando Cortes-
Rodrigues - muitas das quais ela assinava com o ‘heterônimo’
de ‘calafate João Manuel’” (GOUVÊA, 2001, p. 100),
procurando reunir-se ao poeta açoriano em suas aventuras
marítimas. Apesar do desejo não realizado de que a visita à
ilha de São Miguel tivesse se realizado de forma anônima,
sem os holofotes das visitas formais, Gouvêa menciona que
Cecília “viria a incluir [a visita] entre as maiores emoções de
sua vida - e que também evocaria em crônicas, conferências
e poemas, como ‘Romance açoriano’” (GOUVÊA, 2001, p.
106-107). Além disso, um ano após a visita, Cecília participa
da inauguração da Casa dos Açores no Rio de Janeiro, ao 155

lado de Vitorino Nemésio.


Considerando certa fortuna crítica que analisa a
presença das ilhas açorianas em textos cecilianos, optamos
por realizar alguns breves comentários sobre o poema
“Pastoral V”, presente no volume póstumo Poemas de
Viagens. Essa escolha se faz pelo fôlego necessário para
realizar uma análise mais detida de todas as crônicas, as
quais nos reservamos a mencionar alguns trechos que
dialogam diretamente com esse poema.

Na Ilha que eu amo,


na Ilha do Nanja, que eu tenho no meio do Atlântico,
há veredas de hortênsias,
lagos de duas cores,

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nascente de água fria, morna e quente.
Doce Ilha que foi de laranjas
e hoje é de ananases!
Ilha do Nanja.

Robustos homens, que devem ser meus parentes,


levam seus carros de vime
pela tarde de chuva e sol,
de vento e névoa,
porque a Ilha tem todos os tempos em cada instante.

Por uns caminhos chamados canadas,


os homens de carapuça olham a tarde,
como quem não sabe se amanhã está vivo.

Porque a Ilha está pousada em fogo,


cercada de oceano,
e seu limite mais firme é o inconstante céu.

156
E os homens detêm-se a ouvir vozes de vulcões,
vozes de sereias,
vozes da lua,
na Ilha do Nanja.

Na Ilha que eu amo,


na Ilha que eu tenho no meio do Atlântico,
todos são muito pobres,
mas já nem pensam nisso.

As mulheres tecem panos,


enrolam novelos,
enquanto os maridos estão lutando com as chamas
dos fornos onde cozinham sua louça,
ou tangendo ao longo dos muros
carros e carros de solidão,
com cestos e cestos de silêncio.
(MEIRELES, 2017, v. 2, p. 416-417).

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Observamos que nos versos cecilianos três aspectos
distintos são apresentados e se articulam na composição
do poema: uma paisagem natural, uma paisagem humana
e uma paisagem mítica. A poeta inicia os versos de
“Pastoral V” situando o itinerário literário desse poema, a
Ilha do Nanja, a “ilha que eu amo”, a ilha que “eu tenho”,
afirmando um senso de pertencimento que também é
expresso nas crônicas. Na crônica “A Ilha do Nanja”, por
exemplo, afirma que “É um grande consolo possuir-se
a Ilha do Nanja, uma ilha que não se vê no mapa, mas
que descansa tranquilamente no meio do oceano, do
vasto oceano das solidões.” (MEIRELES, 2013, p. 148).
Apesar de afirmar, na crônica, que a ilha não poderia ser
localizada no mapa, no poema “Pastoral V”, situa sua 157

ilha imaginada no meio do Atlântico, em uma região de


vulcões e termas de água fria, morna e quente.
Na crônica mencionada, acrescenta mais uma
evidência que relaciona a Ilha do Nanja à Ilha de São
Miguel: “Apenas uma vez visitei a minha ilha - herança
obscura, propriedade remota, inalienável, usufruto de
outros, que a julgam sua, que não sabem da minha pessoa
nem dos meus títulos. A ilha, porém, é totalmente minha
[...]” (MEIRELES, 2013, p. 148).
Ressaltam-se nos versos elementos da paisagem
natural daquele espaço, com destaque à experiência de
múltiplos sentidos. Notam-se as “hortênsias”, “lagos de

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duas cores”, “nascentes”, “ananases”, “tardes de chuva e sol”,
“vento e névoa”, uma ilha “pousada em fogo”, “cercada de
oceano”. Nesse ponto, Cecília aproxima-se dos versos de
Sophia, que também destaca a presença e a importância
do mar, o trabalho com a terra e a iluminação que inunda
aquele espaço. Na crônica, Cecília acrescenta ainda outros
elementos, tais como as “fontes”, “flores surpreendentes”,
“nédias vacas”, “encaracoladas ovelhas”, “montes”, “lagos”
(MEIRELES, 2013, p. 148).
Compondo ainda essa paisagem natural que, em
certos momentos, parece quase intocada, movimenta-
se uma paisagem humana: “robustos homens”, “meus
parentes”, “carros de vime”, “homens de carapuça”, “todos
158 [...] muito pobres”, “mulheres tecem panos”, “enrolam
novelos”, “os maridos estão lutando com as chamas/ dos
fornos”. A presença humana destacada por Cecília compõe
um cenário idílico, bucólico, no qual aqueles personagens
dedicam-se às atividades do campo. Na crônica, Cecília
menciona ainda a pesca e a agricultura. Nesse ponto,
os versos também se aproximam da atividade humana
ressaltada nos versos de Sophia.
Compondo esse cenário feito de sonho, o sujeito
lírico acrescenta ainda elementos de uma paisagem mítica:
“vozes de sereias”, “vozes da lua”, “carros de solidão”, “cestos
de silêncio”. Com essas imagens, o sujeito enunciador
transforma o destino desejado em sonho e fantasia. A ilha

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parece flutuar no espaço - “pousada”, como uma ave, e
“seu limite mais firme é o inconstante céu”. Essa descrição
acrescenta um aspecto móvel, inefável, como se aquele
destino não pudesse ser completamente apreendido,
senão por um vislumbre. A Ilha apresentada poderia ser
perfeitamente um dos roteiros de Ulisses, tal como a ilha
das sereias, como menciona a própria autora na crônica.

Falaram-me de descobrimentos, de donatários, de


povoadores; contaram-me velhos assombros: houve
um tempo em que pelas suas praias apareciam
sereias cantoras, enquanto, em volta dela, passeavam
misteriosas embarcações, às quais talvez não fosse
estranho o próprio Ulisses.
E houve monstros, também, que se levantavam,
corcoveantes, e esperavam o sacrifício de resignadas
donzelas, para não saírem de seus antros marinhos e 159
devastar o pequeno território próspero. (MEIRELES,
2013, p. 148-149).

É nesse destino de monstros e sereias, pescadores


e agricultores, mares e campos, que Cecília e Sophia
encontram-se, cada uma a seu modo, com o arquipélago
dos Açores, nas palavras de Leila V. B. Gouvêa, “uma
das regiões de mais alta taxa de exportação indireta de
poesia e de literatura de língua portuguesa no mundo.”
(GOUVÊA, 2001, p. 99). Possivelmente, por esse mesmo
motivo, Cecília teria confiado a Cortes-Rodrigues
“missões líricas como a de fundar [nos Açores] o ‘reino
flutuante da poesia’ (onde todos os poetas amar-se-iam)”
(MEIRELES, 2013, p. 101). O mar é maior nos Açores,

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como afirma Sophia, não apenas porque ele liga Portugal ao
Brasil, à Grécia e ao mundo, mas porque seria igualmente
um reino comum para todos aqueles poetas mencionados
por Gouvêa, e, por ser o reino da poesia, não circunscrito
a mapas cartográficos. A ilha-embarcação de Sophia ou a
ilha-sonho de Cecília parece deslocar-se, nos textos, entre
o mundo real e o imaginário, entre um tempo remoto e o
tempo presente, entre sua presença factual e sua fundação
poética, capazes de fornecer aos novos marinheiros, em
especial aos que navegam pelas páginas da poesia, um
roteiro seguro em que possam encontrar-se, descansar,
viver e sonhar nesse destino luminoso.

160

Referências Bibliográficas

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Tinta-da-china Brasil, 2018.

DE MELLO, A. M. L. A memória dos Açores na escrita


de Cecília Meireles. Letras de Hoje, [S. l.], v. 47, n. 4, p.
381–386, 2012. Disponível em: https://revistaseletronicas.
pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/12771. Acesso
em: 22 nov. 2022.

DRUMMOND, L. F. C. De poeta a poeta: Sophia de


Mello Breyner Andresen lê Manuel Bandeira, Cecília
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Belo Horizonte, 2018.

GOUVÊA, L. V. B. Cecília em Portugal. São Paulo: Editora


Iluminuras, 2001.

LESSA, M. S. P. “Atenta como uma antena”: a invocação à


Musa e a poética da escuta de Sophia. Revista Desassossego,
[S. l.], v. 11, n. 21, p. 10-22, 2019. Disponível em: https://
www.revistas.usp.br/desassossego/article/view/issn.2175-
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LOPES, S. R. Escutar, nomear, fazer paisagens. In:


Exercícios de aproximação. Lisboa: Vendaval, 2003. p. 49-75.

MACHADO, R. C. M. A emergência de abril em O 161

nome das coisas (1977), de Sophia de Mello Breyner


Andresen. 2012. 171f. Dissertação (Mestrado em Letras)
– Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, 2012.

MEIRELES, C. Ilusões do mundo. 2ª ed. São Paulo:


Global, 2013.

MEIRELES, C. Poesia completa. Coord.André Seffrin.


São Paulo: Global, 2017.

MENDES, K. R. Navegando em mares lusitanos: diálogos


transatlânticos entre Cecília Meireles e Portugal. 2016,
250f. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal
do Paraná. Curitiba, 2016.

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OLIVEIRA, M. A ilha de Cecília Meireles. Opiniães, [S.
l.], n. 20, p. 175-190, 2022. Disponível em: https://www.
revistas.usp.br/opiniaes/article/view/194188. Acesso em:
22 nov. 2022.

162

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163

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164

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Vozes do Contemporâneo 165

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166

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“Os corpos pavoneavam”1:
a subjetividade como um
conjunto de próteses na
obra de Al Berto

Rodolpho Amaral 1 Introdução


Universidade Em Al Berto, a flutuação dos gêneros
Federal
Fluminense
está presente tanto na sua literatura, a qual insere
personagens travestis, drags, gays, para citar alguns,
quanto nas performances que o próprio escritor/
poeta fez, encenando nas fotografias elementos do
167
que se convencionou a chamar de feminilidade.
Desenvolveremos, aqui, uma análise tecendo
conversações e apontamentos entre os “Equinócios
de Tangerina” (2009) e o romance Lunário (2012),
considerando aspectos de ordem da construção
subjetiva de que Al Berto lança mão. Para tanto, o
conceito de prótese articulado por Paul B. Preciado
(2017) será fundamental, pois, a partir dele, a
construção das personagens dissidentes (seja a nível
do sexo e do gênero, seja da sexualidade) no universo
diegético será vista como um processo de subjetivação,
isto é, a hipótese de que a subjetividade não passa de
1
FOUCAULT, 2020, p. 7.

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um conjunto de próteses acoplado aos corpos (textual e/ou
empírico), permitindo a integração dos sujeitos dentro dos
espaços regidos por tecnologias de representação.
A escrita de Al Berto valida a experiência do
erotismo tanto no corpo que é texto, ficcionalizado, como
no corpo físico/empírico tomado de base para a fabulação
literária. Notemos, contudo, que o eros que fala em Al
Berto é inquestionavelmente homoerótico. Partindo,
então, da materialidade do corpo passível de acoplamentos
subjetivos – que consideraremos um mecanismo de
acréscimo de próteses, como já aventado –, tornar-se-á
possível reconstruir/ressignificar os discursos sobre o
corpo que porta ora a masculinidade, ora a feminilidade.
168 Será concebível, sobretudo, demonstrar que os termos
binários não precisam se alternar; eles podem, quando não
ser extintos porque reducionistas, coexistir numa mesma
materialidade, implodindo uma estrutura androcêntrica e
heterossexista.
Levando em conta a asserção de Guimarães (2005),
que determina a onipresença do sujeito enunciador como
essencial para a existência concomitante das subjetividades
no tecido textual, desdobraremos esse corpo presente
como possibilidade de agregar diversos processos de
subjetivação. Interessa-nos articular alguns processos
subjetivos que se dão no interior da composição textual
de Al Berto, bem como trazer à luz a instabilidade das

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identidades cuja tensão coloca em voga, mais uma vez, a
literatura como um lugar de subjetivação, em que é possível
se ver, se ouvir, se ler, permitindo o reconhecimento de si
mesmo e a tomada de consciência de um Outro. Para isso,
recorreremos fundamentalmente a dois conceitos que, aqui,
se complementam: o primeiro deles é a performatividade
de gênero pesquisado por Judith Butler (2013; 2015), o
que nos coloca diante de outra acepção de performance; o
segundo, já supracitado, desenvolvido pelo filósofo Paul B.
Preciado (2017), também visto em e apropriado de Donna
Haraway, que se refere ao conceito de prótese.

2 “embora só possuíssem um corpo revezavam-se na


vigília do mundo”2: vivências coincidentes no sujeito 169

enunciador
Entendendo, pois, o fazer literário como a
possibilidade de esgarçamento do status quo e da violação do
sujeito ontológico clássico (BUTLER, 2013), retomemos
o personagem Nému (ou “personagem”, como defende
Guimarães (2005). Nému ou Nemo, em latim, significa
ninguém/nenhum e foi batizado pelo personagem Beno,
de Lunário (2012). Muito além de ser uma figura levada
do texto “Equinócios de Tangerina”, onde primeiramente
aparece seu nome, para o romance Lunário – a diferença
temporal entre a publicação deste e daquele texto é de
pouco mais de 10 anos –, o personagem permite elevar
2
AL BERTO, 2009, p. 27.

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potencialmente o caráter de performer de Al Berto, já que
o escritor/poeta é “aquele que se transmuda em milhares
de máscaras e não é ninguém” (AL BERTO, 2009, p.
15). Ser ninguém, neste caso, abre precedentes para ser
o que quiser. É possível, ainda, aventar outra hipótese a
respeito da transmutação em várias facetas: esta seria,
segundo Velloso (2019), um processo de mascaramento
da subjetividade que permite, inclusive, o travestimento
na/da linguagem.
Ademais, até mesmo Nervokid, presente nos
“Equinócios...”, pode representar o embrião do personagem
Kid de Lunário. Ambos possuem uma predisposição
para a androginia, para o submundo das drogas e para a
170 consumação da vida em instantes perigosos. A roleta do
gênero que pende nos “Equinócios...”, ora oferecendo
a faceta de Tangerina, ora de Nervokid – “enquanto
Nervokid dormia Tangerina levantou-se, vagarosamente.
a noite súbita sempre adormecia um quando o outro se
levantava, embora só possuíssem um corpo revezavam-se
na vigília do mundo” (AL BERTO, 2009, p. 27) – tem
ligação com a personagem que morre de overdose no
romance de 1988, Kid, o que nos faz perceber a ocorrência
temática no projeto literário do escritor/poeta. Notemos:

Zohía fora a primeira pessoa a ser contactada. Atendera,


confusa, respondendo que não conhecia ninguém com
aquela descrição. Mas da esquadra insistiram, e o polícia
começara a dar detalhes. Dissera que o morto não era

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bem um rapaz, mas que também não parecia ser uma
rapariga. Estava assim vestido de forma esquisita, com
umas peças de vestuário masculinas e outras femininas.
Estava maquilhado com exagero, tinha os olhos e os
lábios pintados de negro. Depois, pedira a Zohía que
não desligasse, que voltava já. E quando voltou a falar
dissera que, afinal, era um rapaz, e nada mal fornecido,
acrescentara com um risinho. Tinham-lhe desabotoado
a braguilha, e era, de facto, um rapaz, mas parecia-se
bastante com uma rapariga, assim pintado, insistira
(AL BERTO, 2012, p. 100).

Uma primeira mirada para o trecho permite


discorrer sobre o atrelamento equivocado, e visto como
natural, do sexo com o gênero, e desses com a sexualidade.
Butler (2015) tece considerações importantes acerca
dessa unificação dada no âmbito social, bem como
da fragmentação erógena do corpo, que, no sistema 171

heteronormativo e patriarcal, reside apenas nas genitálias


– “uma redução da erotogenia” (BUTLER, 2015, p. 199).
Essas numerosas características [físicas] ganham sentido
e unificação sociais mediante sua articulação na categoria
sexo. Em outras palavras, o ‘sexo’ impõe uma unidade
artificial a um conjunto de atributos de outro modo
descontínuo. Como discursivo e perceptivo, o ‘sexo’ denota
um regime epistemológico historicamente contingente,
modelando à força as inter-relações pelas quais os corpos
físicos são percebidos (BUTLER, 2015, p. 199).

A coerência inventada entre essas três categorias,


portanto, busca a integração do sujeito a uma “tecnologia
de representação” (PRECIADO, 2017, p. 203) cuja

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fragilidade se verifica na confusão em encaixar as
subjetividades nos binarismos. Essa afirmação fica evidente
na dúvida do policial ao fazer um relato sobre o corpo
encontrado. As oposições são reducionistas (vestuário
masculino/feminino) e revelam, então, que qualquer um
pode performar os gêneros, já que o que determina o
sujeito feminino e masculino – quando não se tem acesso
à genitália, essa irrevogável – é a forma como se apresenta
socialmente. As roupas e a maquiagem nos convidam a dar
uma segunda mirada para o trecho de Lunário e costurar
nessa passagem o conceito de prótese, de Preciado (2017),
justamente porque nos indica que o acréscimo de itens ao
corpo é uma forma de subjetivação.
172 O trabalho contrassexual de Preciado busca,
entre muitos objetivos, romper com os binarismos que
condicionam os regimes de produção de identidade
(homem/mulher, feminino/masculino, heterossexual/
homossexual etc.) e que transformam atos performativos
em aspectos da natureza, fabricando o corpo-homem e o
corpo-mulher. Segundo o filósofo, os

performativos do gênero são fragmentos de linguagem


carregados historicamente do poder de investir um
corpo como masculino ou como feminino, bem como
sancionar os corpos que ameaçam a coerência do
sistema sexo/gênero até o ponto de submetê-los a
processos cirúrgicos de ‘cosmética sexual’ (diminuição
do clitóris, aumento do tamanho do pênis, fabricação
de seios de silicone, refeminilização hormonal do rosto
etc.) (PRECIADO, 2017, p. 28-29).

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O que está em cena são os mecanismos
performativos que se firmam por meio de acessórios que
fabricam os gêneros, que ajudam a estabilizá-los dentro
da matriz heteronormativa. Nesse sentido, Kid possui um
corpo plástico porque dotado de elementos generizados,
próteses adicionadas à materialidade do corpo: vestuário
masculino e feminino, maquiagem pesada nos olhos e nos
lábios. E mais: retornando ligeiramente à proposição de
Guimarães (2005), a vivência concomitante de Tangerina
e Nervokid no sujeito enunciador, sob a perspectiva do
conceito de prótese, pode indicar um travestimento
ou mesmo a transexualidade dos personagens: “putos
aproximam-se de Tangerina desmaiada. ela finge não
estar ali, não se mexe, não quer enterrar o sexo duro nos 173

lábios das crianças. ela espera que sejam os putos a tocar-


lhe, como tocam as anémonas atiradas à praia pelo mar”
(AL BERTO, 2009, p. 17). Note-se, no entanto, que
incorremos no erro que conscientemente apontamos: o
que classifica, então, a transexualidade é a incongruência
da linguagem, dizer “ela” e “desmaiada”, por exemplo, mas
ter o sexo duro? Uma outra prática de nomeação precisa
vigorar a fim de que, nos trabalhos científicos e não só,
consigamos driblar os esquemas limitadores.
Ademais, a dificuldade de dizer fazendo uso dos
termos do poder que visamos criticar e combater nos
coloca diante de um processo complexo de formação do

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sujeito cuja efetivação vai depender também de níveis
de sujeição, isto é, “o sujeito é iniciado através de uma
submissão primária ao poder” (BUTLER, 2019, p. 10).
Parafraseando Butler (2019), colocamos uma pergunta
capciosa: de que forma explicar a extensão de um poder
discursivo ou burocrático que circula sem voz ou sem
assinatura, sem rastro? Tangerina, Nervokid, Nému
ou Kid: a evidência é que esses corpos são construídos,
mesmo que no plano ficcional, contra discursos de poder
que inauguram a construção de suas subjetividades:
“a sujeição consiste precisamente nessa dependência
fundamental de um discurso que nunca escolhemos,
mas que, paradoxalmente, inicia e sustenta nossa ação”
174 (BUTLER, 2019, p. 10). A condição de sujeição torna-se
mais interessante e complexa no caso de Al Berto porque
estamos diante de subjetividades espelhadas, interditadas
duplamente, já que, tanto o corpo empírico que escreve
quanto o corpo-texto que é escrito, colocam-nos diante de
um outra economia de regime da identidade, porquanto
a sexualidade é dissidente ou desviante (nos termos de
Butler) ou resultado de um processo de contrassexualidade
(nos termos de Preciado): o projeto estético de Al Berto,
atesta Inácio (2004, p. 11), é “uma certa fusão entre autoria,
subjetividade, vivência e experiência”.
Recorremos a uma passagem dos “Equinócios...”
que tematiza a marginalidade espacial, aliás, muito

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dialógica com a dissidência sexual e de gênero, para tratar
de outro processo de subjetivação, que seriam os “nomes
de guerra”. Vejamos:

Rosa da China tinha os olhos amendoados. Pata de


Cavalo, feminina como a égua, calçava o quarenta e
cinco. pálidas insónias das estações dos caminhos-de-
ferro, cabelos puxados para trás, rentes à nuca, lisos,
esperam. Cravo Rabicho, mais rápida que um bólide,
pirava-se à bófia. os chuis andavam nas redondezas do
parque e alguns deles também alinhavam quando não
estavam de serviço. Rosa da China, Lisete a Maneta,
Pata de Cavalo, Mary do Broche, Carmela das Tílias,
Cravo Rabicho, Maria Malcuquer, raras flores de cama
(AL BERTO, 2009, p. 25).

A vasta gama de metáforas que o jardim nos


permite recuperar aponta também para o universo da 175

feminilidade e da sensibilidade, fazendo com que, dentro


de um sistema que produz tecnologias e discursos de
normalização sexual, seja também associada aos gays, à
sua “fragilidade”. No excerto exposto, contudo, estamos
diante de um uso performativo da transformação de um
insulto (PRECIADO, 2017), porquanto ocorre um revés
no uso semântico das palavras. Além da desmitificação da
feminilidade/sensibilidade associada à fragilidade – “Pata
de Cavalo, feminina como a égua, calçava o quarenta e
cinco” –, temos também a apropriação do mundo vegetal
que funciona como “nomes de guerra”, construções
subjetivas por meio de autointitulações: próteses
discursivas funcionando junto a outros elementos como

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edificação identitária. Outrossim, Manuel de Freitas
(1999) dá relevo a outra influência de William Burroughs
além do método cut-up, muito utilizado por Al Berto – a
obsessão por alcunhas/epítetos:

Por último, parece-me que é também na obra


perturbante e violenta de Burroughs que devemos
localizar o fascínio de Al Berto por alcunhas e epítetos
grosseiros [...]. Assim, epítetos burroughsianos como
‘Soberba de la Flor’, ‘Pepe El Culito’ ou ‘The Great
Slashtubitch’ teriam como paralelo n’O medo ‘Lisete
a Maneta’, ‘Mary do Broche’ ou ‘Cravo Rabicho’
(FREITAS, 1999, p. 27-28).

De volta a Preciado (2017), sua radicalidade,


entre muitos outros pontos, consiste também na visão
176
da subjetividade, sobretudo da sexualidade, como um
produto de design. Para o filósofo, tudo o que somos é
incorporado, seja de forma sintética e/ou biológica. A
elaboração discursiva da subjetividade como uma prática
de design nos permite pensar no design dos corpos, das
sensibilidades, das sexualidades; no design que está por
trás da gestão da imagem de si mesmo no particular
e no público. O tratamento das subjetividades sexuais
como design não é aleatório, visto que Paul B. Preciado
tem formação em Arquitetura e doutorado em Teoria
e História da Arquitetura, que resultou na tese sobre
pornotopia. Dessa forma, o filósofo elabora o corpo como
um sistema de escrita e montagem:

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O sistema sexo/gênero é um sistema de escritura.
O corpo é um texto socialmente construído, um
arquivo orgânico da história da humanidade como
história da produção-reprodução sexual, na qual
certos códigos se naturalizam, outros ficam elípticos
e outros são sistematicamente eliminados ou riscados
(PRECIADO, 2017, p. 26).

Semelhante a essa passagem, temos a consideração


de Butler (2015) acerca do gênero ser algo que fazemos e
não algo que somos. Além disso, a filósofa ressalta o caráter
artificial dos gêneros: a nomeação do corpo, com base na
genitália, é que “faz” esse mesmo corpo, cria para ele um
espaço simbólico de permanência, traça os caminhos por
onde percorrer e enumera os apetrechos (e, aqui, pensamos
também em “acessórios” abstratos) de uso autorizado.
177
É, sobretudo, a materialidade que vai permitir a
Al Berto um contrabando de acessórios que fabricam o
gênero de modo a imiscuir essa descoberta no seu projeto
literário, num processo de desdobramento do próprio
corpo nos personagens da ficção. O escritor/poeta espraia
sobre a folha o pavoneamento do corpo: num primeiro
momento o batom, o rímel; depois os epítetos, as andanças,
as “roupas flutuantes”. Os corpos são elaborados com os
apetrechos generizados para então performar no espaço
público o construto do gênero, a liberdade sexual e a falácia
do atrelamento que se quer coerente dessas categorias.

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Alberto Pidwell Tavares em Dans la Maison, filme integrado na
exposição sobre Sophie Podolski. Foto: Joëlle de La Casinière.

178

Fonte: https://www.publico.pt/2018/06/04/culturaipsilon/noticia/
ha-um-al-berto-anterior-a-mitologia-da-solidao-1832126. Acesso
em: 23 fev. 2023.

3 Conclusão
O caráter dissidente carregado no corpo de Al
Berto foi rapidamente visto nos textos “Equinócios de
Tangerina” e Lunário, ligado mais precisamente ao gênero
e à sexualidade, temáticas também dialógicas com a
performatividade de gênero. Ao tratar de personagens que
incorporam dissidências (nos termos de Judith Butler)
ou manifestam a contrassexualidade (conceito de Paul B.
Preciado), fica um indicativo da ficcionalização de si, já que

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a escrita de Al Berto está assente na própria subjetividade
e experiência.
Para empreender a tarefa de apontar mecanismos
de construção da subjetividade, recorremos aos conceitos
de performatividade de gênero, visto nas obras de Judith
Butler, e de prótese, desenvolvido por Paul B. Preciado. À
luz desses conceitos, reunimos personagens que enfatizam
as próteses postas sobre os corpos empírico e textual.
Todo o processo revelou a direção autoficcional que a
literatura de Al Berto toma, permitindo, também, atrelar
essa ficcionalização de si à construção da sua imagem
(vista em apenas uma fotografia), que denota um projeto
estético coerente no que tange à linguagem interartes. A
subjetivação por meio de próteses é denotada, então, tanto 179

no universo literário, ficcional, quanto na construção da


imagem do próprio autor/poeta.
Por fim, a construção da subjetividade em Al Berto
se dá em confronto com o status quo, já que os corpos
em causa, empírico e textual, dispõem de próteses que
embaralham o sistema heteronormativo e as classificações
binárias que limitam em vários aspectos a sensibilidade
pululante das dissidências sexuais e de gênero. O corpo,
em Al Berto, é o mote da escrita.

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Referências Bibliográficas

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da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro:
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Trad. Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
180

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181

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182

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Percursos do poema em
Onde vais, Drama-Poesia?,
de Maria Gabriela Llansol1

Suelen Cristina Maria Gabriela Llansol (1931-2008) é


1

Gomes da Silva
uma autora portuguesa cuja existência parece ser
Universidade conhecida de forma mais abrangente nos círculos
Federal
Fluminense acadêmicos de pesquisa em literatura. Entretanto,
estudar sua obra nos desloca dos círculos e promove
uma reconexão intensa e inesperada com a vida, com
a experiência cotidiana, com uma não linearidade, 183

nos fazendo refletir a respeito de como estabelecemos


relações com o que nos cerca e com o texto literário.
Conhecida por uma escrita híbrida, com traços
constantes da prosa, mas com a pulsante evidência
de uma abertura ao poético, à não linearidade textual
e significativa, Llansol é uma autora que começa sua
vida literária escrevendo contos - ainda assim, seus
dois primeiros livros (Os pregos na erva e Depois de
os pregos na erva) já demonstram uma escrita que
1
Este trabalho propõe novas elaborações a partir das reflexões
iniciadas na dissertação de Mestrado Cem um tempo que nos cai-
ba: por uma poética do suspenso em Onde vais, drama-poesia?,
defendida em 2021, no Programa de Estudos de Literatura da
UFF.

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parece embaralhar as regras da construção literária.
Ao abrirmos um livro aparentemente tão
inclassificável como Onde vais, drama-poesia? (2000)2, por
exemplo, nos deparamos com uma paisagem textual que
nos olha, mira a face daquele que se entrega ao ato de
leitura. Embora toda a obra da autora contenha inúmeras
reflexões e aberturas que se revelam ao leitor, ao longo da
jornada de leitura, como quase filosofias textuais, em OVDP
esse potencial criador da linguagem parece se evidenciar e
aumentar a cada página. É um livro com diferentes partes/
seções que, em conjunto ou isoladas, são verdadeiras
fontes de possibilidades para a leitura como experiência
em devir. Diante de um texto de intensidades, a escolha,
184 nesta reflexão que se segue, é por uma leitura aproximada
ao texto, atenta ao seu movimento e aos vestígios mínimos
que essa movência deixa como composição da cena de
escrita. O recorte para este trabalho se relaciona com a
presença e os percursos do poema enquanto figura do
texto llansoliano - um ser da escrita, mas que, em seus
deslocamentos, também parece produzi-la.
Aproximar o universo da escrita de Maria Gabriela
Llansol do âmbito de uma produção poética é um
movimento que já tem sido feito por diferentes teóricos e
críticos da obra da autora. Além disso, é uma aproximação
que pode ser sentida pelo leitor (redimensionado
2
Doravante referenciado no texto pela abreviação “OVDP”, recorren-
temente usada nos estudos da autora.

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em legente pela autora) na experiência da obra. Em
Llansol, a questão do que é ou deixa de ser poesia ou sua
concretização em poema se mostra não necessariamente
dissolvida e reduzida, mas, pelo contrário, sua escrita é
palco para a cena do poema e de sua passagem que parece
sempre abrir caminhos. O poema (ou mesmo a poesia)
está presente na estrutura do livro seja através de uma
expressão fragmentada onde seus elementos constituintes
- ritmo, sonoridade, quebra, verso - compõem a paisagem
textual como um todo, seja através da união de seus
elementos característicos, na concretude de verdadeiros
poemas escritos nas partes intituladas “Oferendas”. Ou
seja, não apenas as técnicas do poema se fazem presentes
destacando o caráter híbrido da obra, mas há partes 185

específicas cuja visualidade do texto disposto na página


é mais diretamente a do poema. Perguntamos então: por
que a presença tão evidenciada do poema em OVDP?
Para Octavio Paz (2012, p. 22), “[o] poema não
é uma forma literária, mas o ponto de encontro entre a
poesia e o homem. Poema é um organismo verbal que
contém, suscita ou emite poesia”. A ideia ou imagem de um
“organismo verbal”, devido a seu apelo a uma concretude
(ainda que verbal) e a uma tendência à interligação ou
conexão é positiva para pensar o texto de Llansol. O
termo “organismo” se relaciona semanticamente com as
funções e processos fisiológicos, que, por sua vez, estão

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diretamente conectados à ideia de vida. Ao lermos um
livro como OVDP, podemos perceber um percurso no
qual o texto evoca a vida das palavras, como se quisesse
registrar a materialização de sua potência pois “as palavras
são vivos/ e não instrumentos,/ movimentos de poder e de
vibração [...]” (OVDP, p. 82). Sendo um ponto de encontro,
a ideia de poema para Paz parece se aproximar de uma
espécie de desejo latente do texto por conexão, dado que
recorrentemente “o texto volta-se para o legente” (OVDP, p.
257). Enquanto leitores, quando partimos a buscar também
dentro de nós, no âmago das nossas experiências e leituras,
significações possíveis para os versos ou mesmo palavras
de um poema, estamos a nos abrir para o encontro que é
186 propiciado pela obra poética. Em uma de suas Entrevistas,
Llansol afirma que “quem escreve assim faz uma oferta, e
uma oferta que é para ser recebida; e ao mesmo tempo os
leitores que a recebem transformam-se também naqueles
que escrevem” (LLANSOL, 2011, p. 61).
Muitas citações poderiam exemplificar momentos
onde o poema figuraria como ponto de partida, de chegada
ou ápice da cena de escrita. Mas há uma imagem, da
mulher que escreve, que não apenas demonstra a natureza
imparável do poema no livro como é a expressão de um
corpo em atividade de escrita, com suas inquietações: “[a]
imagem que me deixa a mulher que está a escrever é a de
um traço amplo e veloz a captar o poema que passa rápido.

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Impossível dizer-lhe que espere, que não consigo escrever
à sua velocidade, que se repita ou volte a dizer (quando, de
facto, nada diz) o que estava a dizer” (OVDP, p. 17). Em
uma das perspectivas possíveis para se ver e ler esta cena,
existe uma sobreposição de figuras: a mulher a escrever
é percebida ou lida pela narradora da cena que também
desenvolve um percurso de escrita. Além de ser percebida
como alguém que é visto a uma certa distância, essa mulher
pode ser entendida como sendo fruto do processo de escrita
no qual a figura narradora está empenhada. Uma escrita
dentro da escrita, onde o texto atravessa as imagens dessas
mulheres - cada uma parecendo pertencer a uma dimensão
da visualidade da textualidade. Essa figura narradora,
que também se enuncia e transfigura textualmente, não 187

necessariamente coincide com a autora Maria Gabriela


Llansol, mas a especificidade de seu ato de escrita em
certa medida performa e se aproxima das percepções e
considerações pessoais da autora. Tal reflexão se ancora
no registro da escritora em um contexto de entrevista, no
qual explicita questões por trás dos constantes traços que
podemos encontrar atravessando seu texto:

Da mesma maneira que eu escrevo um texto único,


mais do que um livro, é que eu faço aquele traço para
querer mostrar, de uma maneira muito concreta, que
eu sinto mesmo que o traço irrompe. [...] A meu ver,
aquele traço desloca-me em uma direção em que vou
ser tocada fisicamente... Porque o traço é um traço
físico...” (LLANSOL, 2011, p. 51).

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Em OVDP podemos ver a tentativa constante da
autora de construir uma obra de abertura, em movimento
incessante - uma possível forma de acompanhar a
velocidade dos acontecimentos textuais, como a própria
passagem do poema que se observa no trecho supracitado
do livro. Além de ver pela estrutura do texto uma busca
por algo novo, é possível sentir a presença da velocidade
no texto de Llansol pelos ritmos e cadências das cenas, por
suas continuidades e principalmente suas interrupções.
Como se precisassem vir a ser em todo seu fulgor, cenas
atravessam outras cenas, criando novos fios para o que se
lê e também criando movimentos de ir e vir para a leitura,
a ação de percorrer páginas para frente ou para trás, a
188 decisão de jogar como as figuras legentes do texto.
Como uma imagem espelhada, a autora, a figura
narradora e a terceira figura vista pela figura narradora - “a
mulher que está a escrever” (OVDP, p. 17), cujo tempo da
escrita é um eterno presente que se revisita a cada leitura -
estão com os corpos empenhados e totalmente entregues
ao ato da escrita de um texto que, de certo modo, é criado ao
mesmo tempo que cria essas mulheres. Conforme Octavio
Paz, “[q]uando - passivo ou ativo, acordado ou sonâmbulo
- o poeta é o fio condutor e transformador da corrente
poética, estamos na presença de uma coisa radicalmente
diferente: uma obra. Um poema é uma obra” (PAZ, 2012,
p. 22). Por isso, consideramos que as três mulheres - nesse

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caso, também a Llansol não figura - são criadas pelo texto.
A troca entre o corpo humano e o corpo da escrita cria
essa autora que desenvolve uma experiência textual radical
a ponto de recriar seu movimento próprio de conduzir
essa “corrente poética” (e talvez elétrica): porque tudo é
intrinsecamente físico na criação llansoliana. Importante
ressaltar que a corporeidade, em uma de suas significações,
tem a ver com a relação de um corpo com outro corpo ou
com o meio. Relaciona-se, enquanto materialidade, com
a concretude do mundo. O(s) corpo(s) não é (são) apenas
um tema, mas uma imagem em um constante construir-se
ao longo do texto de Llansol.
Já nas primeiras páginas de OVDP podemos ver
o poema como um elemento que se faz presente antes 189

mesmo do nascimento textual da figura narradora: “eu


nasci em 1931, no decurso da leitura silenciosa de um
poema” (OVDP, p. 11). E esse corpo infantil, ainda que
inerte segundo o texto, já mantém um relacionamento com
o poema a partir dos olhos: “[o] meu corpo permanecia
deitado/ no chão do quarto/ enquanto o meu olhar aprendia
a fazer poemas” (OVDP, p. 12). Curiosamente, a relação do
olhar da figura textual com o poema também comparece
em muitos momentos, se aproxima do que parecem ser
reflexões autorais sobre o processo de escrita em si: “[n]
ão sei refletir sobre a Poesia, sei ir à Poesia ________ e
esperar, na ponta das pupilas, suas imagens. Quando o dia

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image[ce], sei que está criado o verbo imagecer, relacionado
com a deslocação de um cisne nas águas do porto” (Llansol,
Cad. 1.54, p. 10-12, 1999 in FENATI, 2014, p. 342). A
presença do poema está, de certo modo, tangenciada à
materialidade do corpo - escrevente, legente. O corpo e o
poema parecem figurar, na escrita, como pontos de fulgor
que não apenas reelaboram a experiência da escrita e da
legência, como também a própria experiência das coisas
no mundo. No livro,

o corpo e o poema são chamados a formar um ambo.


Eles têm
matéria, são cores em movimento,
e trazem-me perguntas directas e ferozes, na ponta das
missivas,
190
implantadas nas mãos (OVDP, p. 25).

Quando fala a respeito da compreensão da música


e de seu discurso, Wittgenstein (2017, p. 46) afirma: “[n]
ão esqueças que um poema, ainda que seja composto na
linguagem de informação, não se usa no jogo de linguagem
de dar informação”. Seguindo a reflexão do autor, talvez
justamente pelo fato de o poema subverter a sua inscrição
na linguagem da informação para criar outras formas
de experienciação da língua, aberturas, a sua leitura nos
solicite outros movimentos de conexão com o texto - para
além de uma interpretação objetiva, direta e estanque. O
que dialoga com uma preocupação aparentemente urgente
para Llansol a respeito dos caminhos da literatura, que

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podemos perceber perpassando suas figuras, como Aossê:
“ele sente// que a literatura está a morrer, incapaz de explorar
o estranho da vida, o estranho da linguagem, o estranho
do humano” (OVDP, p. 264). A partir dessa preocupação,
a autora parece desenvolver sua escrita em busca de um
texto que “é o lugar onde esse mundo novo e fulgurante
é percepcionado e registado”; para a autora, “este texto é
muito importante, porque é como o lugar onde eu consigo
[...] uma existência diferente” (LLANSOL, 2011, p. 65).
O movimento ocorrido a partir do século XIX,
quando é sublinhada uma necessidade de pensamento
para e da própria na literatura e sua relação com a
representação, em certa medida, de acordo com Luciana
di Leone (2016, p. 66) “dá por resultado não uma narração 191

mas um retorno, por assim dizer, à poesia como espaço vão


e fundamental da linguagem”. E, com base nas elaborações
de Deleuze e Guattari a respeito do conteúdo e da forma
do pensamento, a autora desenvolve uma reflexão que
dialoga com as preocupações de Llansol em seu projeto
de escrita:

Abre-se a possibilidade de ver que existe outra


genealogia, outra linha, outro verso. Uma genealogia
para o pensamento que se recusa a ser “representativa
e racional”, e que se torna iminente em expressões
estéticas que não parecem separáveis de uma experiência
corporal, nas quais não é mensurável a distância sujeito-
objeto” (DI LEONE, 2016, p. 66-67).

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No livro em questão, observamos um poema
em constante passagem e mutação, nunca dentro de
uma linearidade normativa. E, em sua passagem, são
reveladas paisagens llansolianas que fogem à impostura
na interioridade da linguagem. Desde o título do livro
a poesia aparece como elemento que forma o sintagma
“drama-poesia”, com função de vocativo. Já nesse contexto,
é anunciado um deslocamento para ela. Ao se concretizar
no título, a poesia, que também percorre o âmago prosaico
do livro, se torna um elemento de abertura para o texto
que “foi tocado pela poesia”, uma vez que “há poesia
sem poemas; paisagens, pessoas e fatos muitas vezes são
poéticos: são poesia sem ser poemas” (PAZ, 2012, p. 22).
192 A poesia como elemento do texto de Llansol, em toda
sua potência, lança luz às considerações de Octavio Paz
a respeito de sua natureza: “[a] poesia é conhecimento,
salvação, poder, abandono. Operação capaz de mudar o
mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza;
exercício espiritual, é um método de libertação interior. A
poesia revela este mundo; cria outro” (PAZ, 2012, p. 21).
Seguindo os rastros do poema no livro, enquanto
figura, podemos percebê-lo como um ser textual de/em
ação. O desenvolvimento da escrita parece registrar suas
paradas e movimentos. No primeiro caso, a evidência
de uma certa “parada” do poema são as já mencionadas
“Oferendas”, seções do livro nas quais aparecem poemas

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geralmente com dedicatórias, endereçados ou em diálogo
com alguma figura do texto de Llansol. No segundo caso,
podemos observar as diferentes mobilizações e, de certa
maneira, atividades do poema dentro do texto. O poema
“parte a imaginar,// dispara, na esperança de que, na
manhã anunciada, seja reposta a continuidade” (OVDP,
p. 15), “o poema passa/ a cada instante passa e enriquece a
voz,/ alteia a minha percepção do mundo” (OVDP, p. 16):
“Passa é o seu facto fundamental” (OVDP, p. 17). O partir a
imaginar e o passar, denotando a constante movimentação
do poema no texto, parecem ser uma tentativa de agregar
algo a mais, sempre, ao passo que enriquece a voz e cultiva
uma “esperança” para a possibilidade de seu passar. Além
disso, o poema “escreve” (OVDP, p. 178). 193

Embora “drama” e “poesia” estejam ligados no título


por um hífen, um pequeno traço horizontal, o vocábulo
poesia parece ser agitado pelo texto para criar espaços de
possibilidades de existência textual. Considerando um
trecho publicado do espólio de Llansol, podemos ensaiar
algum entendimento a respeito do movimento do poema
e da poesia no livro em questão. Segundo ele, a Poesia
diferenciada e particularizada pela letra maiúscula “não
tem apresentação nem representação possível na narrativa
viva, excepto se for interrogada pelo próprio percurso que
faz:/ - ‘Onde vais, Drama-Poesia?’” (Llansol, Dossier 17, p.
3, 1999 in FENATI, 2014, p. 343). O trecho parece conter

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pistas que iluminam caminhos de leitura para OVDP. Se
a poesia é interrogada pelo próprio percurso que faz, é
possível depreender que não é necessariamente uma voz
estática que lança a pergunta que dá título ao livro, mas
o próprio percurso. Talvez o próprio livro seja a grande e
polifônica voz que questiona. E seu movimento deve ser
incessante, uma vez que “[d]e um lado a outro do percurso,
não sei o que existe, o caminho caminha” (OVDP, p. 11).
Além disso, o livro pode ser o espaço no qual vai sendo
construída uma pavimentação possível para ser percurso
da poesia em todo seu drama.
Em certa medida, o poema, quase que
pedagogicamente, nos apresenta e insere em modos de
194 passagem - de (per)passar pelo texto e, além de passar,
atravessar os espaços de silêncio abertos para a construção
de novos textos, novas escritas de leitura. Porque a figura do
texto llansoliano espera pelo silêncio, como anuncia a voz
que narra e convida o leitor ou legente à experiência: “[s]
entei-me nos lugares dispersos do teu silêncio, e esperei por
ele” (OVDP, p. 9). Em tais deslocamentos textuais, Llansol
parece exercer a fuga da impostura da língua a partir da
passagem do poema na paisagem do texto. O poema, em
sua passagem, subverte a paisagem de escrita e a própria
prática de significação, revelando seu movimento de
curva ou saída de uma paisagem canonizada da literatura.
Este poema pede outras passagens, paisagens que podem

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erguer-se no atrito da fuga das formas consolidadas, em
desobediência.

Referências Bibliográficas

DI LEONE, L. Ela tem seus pensamentozinhos, repensando


o pensamento da poesia. In.: SCRAMIM, S. (org.).
Alteridades na poesia: riscos, aberturas, sobrevivências. São
Paulo: Iluminuras, 2016.

FENATI, M. C. (org.). Partilha do incomum: leituras de


Maria Gabriela Llansol. Florianópolis: Ed. UFSC, 2014.

LLANSOL, M. G. Entrevistas. Belo Horizonte: Autêntica


195
Editora, 2011.

LLANSOL, M. G. Onde vais, drama-poesia? Lisboa:


Relógio D’Água, 2000.

PAZ, O. O arco e a lira. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

WITTGENSTEIN, L. Fichas (Zettel). Lisboa: Edições


70, 2017.

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196

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“Vale a pena escrever
poemas”: notas sobre
o livro Pardais, de
Adília Lopes
Isabelle Ferreira Aprendo a escrever com os pardais
Scalambrini Costa Adília Lopes

Universidade
Federal de Minas
Escrever poemas é algo que a poeta
Gerais portuguesa, Adília Lopes, parece insistir em afirmar
valer a pena. Sua obra ou Dobra é extensa e, podemos
afirmar, constantemente atualizada. O livro Pardais,
publicado em julho de 2022, acompanha uma 197

sequência de publicações inauguradas por Manhã


(2015), seguindo até Dias e Dias (2020), e agora,
este livro que traz, já na capa, uma relação com as
artes que vem sendo intensificada nessas últimas
publicações. No livro de 22, a partir da presença do
quadro pintado por seu avô materno, Raul da Silva
Vianna, vê-se, a partir de uma écfrase da autora, uma
“jarra com três jarros” (LOPES, 2022, p. 29). Outros
quadros pintados pelo avô também aparecem na
capa das edições de Dobra, por exemplo.
Essa publicação também esboça a constante
relação com a paisagem lisboeta que, agora, é

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evocada pela figura dos pardais, pássaros pequenos
como os poemas contidos no livro, e cujo som a voz da
enunciadora afirma desejar imitar. Parece curioso ouvir o
som do piar dos pardais na paisagem lisboeta em 2022,
pois, de acordo com a Sociedade Portuguesa para o
Estudo das Aves (SPEA), há uma significativa redução
da espécie dessa ave no espaço lisboeta1, fenômeno que
estaria atingindo também o Brasil e outros locais onde tais
pássaros habitam. Podemos supor, porém, que esta é uma
forma da poeta posicionar-se diante do desaparecimento
destas aves:

Gostava que os meus poemas fossem pardos, modestos,


pequenos, lisboetas como os pardais e que tivessem o
198
som do piar dos pardais.
Lx., 16-V-2022 (LOPES, 2022, p. 36).

Algo que Adília mantém na sua produção é a


apresentação de artes poéticas, poemas metapoéticos
que tematizam o ato de escrita e a maneira de realizá-
la. Nesse livro, tais tratados estão ligados diretamente
aos pardais. Outro aspecto importante dessa poesia diz
respeito ao que denomino de dispositivo local-data, termo
utilizado para referir-se às marcações de locais e datas ao
final dos textos adilianos. Neste caso, Lisboa, 16 de maio
de 2022. Tal estratégia faz parte do jogo poético que é
proposto a partir do uso de um tom testemunhal em
1
Notícia disponível em: https://encurtador.com.br/GKR24. Acesso
em: 12 dez. 2022.

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suas últimas produções, sendo elemento importante na
“contratualização autobiográfica” da poesia adiliana, como
aponta Rosa Maria Martelo em A forma informe (2010).
A paisagem lisboeta em relação com a passagem
do tempo já parecem ser temas consolidados na poética
adiliana, como se nota em Dias e Dias, em que são
percebidos registros de outra mudança na cidade, pela
retirada dos azulejos azul-turquesa das fachadas das casas e
tais mudanças são registradas nos versos da “poetisa pop”.
A passagem do tempo também pode ser percebida
pelo aparecimento da temática da morte na poesia de
Adília, algo que parece muito recorrente em publicações
anteriores. É possível relembrarmos menções à morte
das gatas da poeta; como a gata Lu, bastante mencionada 199

no livro Estar em casa; mas creio poder afirmar que não


havia maiores referências em torno da experiência da
morte na poesia adiliana. Essa temática é introduzida
significativamente em Pardais pela epígrafe de autoria
de Marceline Desbordes-Valmore, única mulher da lista
dos poetas malditos de Paul Verlaine. A morte é evocada
pelos seguintes versos: “Nous n’avons plus d’argent pour
enterrer nos morts./ Le prêtre est là, marquant le prix des
funérailles; / Et les corps étendus, troués par les mitrailles,/
Attendent un linceul, une croix, un remords” (LOPES,
2022, p. 9), que na tradução para o português seria algo
como: “Já não temos dinheiro para enterrar os nossos

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mortos./ O padre está lá, a fixar os preços dos funerais;/
E os corpos estendidos, perfurados pelos estilhaços,/
Esperam uma mortalha, uma cruz, um remorso”. Esses
versos parecem introduzir essa temática, retomada em
outros textos do livro.
O poema intitulado “Muitos anos dourados”
também traz essa temática nas primeiras páginas do livro:
“Não quero morrer, quero brincar. Estou contente, deixo-me
estar acordada. Lx, 20-II-2022” (LOPES, 2022, p. 13) Esse
texto é facilmente aproximável a outros poemas de Adília
que remetem à brincadeira, atividade infantil. Como se
nota no livro Estar em casa (2018), a voz enunciadora afirma
o desejo de: “Ser sempre criança” (LOPES, 2018, p. 36) ou
200 “Ler, escrever, ouvir música, andar a pé, brincar”. (LOPES,
2018, p. 55) Além disso, o primeiro período “Não quero
morrer, quero brincar”, parece impactante para os leitores
que não estão acostumados com afirmações sobre a morte
ou qualquer ideia de consciência de sua própria finitude. A
ideia da morte parece incomodar, causar angústia, apesar
da afirmação “quero brincar” e “estou contente”. Os anos
dourados mencionados no título, parecem dizer respeito
à infância, tempo de brincar; e remetem ao desejo de
continuar a exercer esta atividade, a brincadeira, de modo
a afastar-se temporalmente da morte.
A morte “dos queridos” também é mencionada
neste poema datado de 20-II-2022: “Este mundo está

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muito mal feito. Tem as melhores coisas. Mas as más
são tão más que pesam mais do que as boas. Não devia
haver o sofrimento. O pior de tudo é o sofrimento e a
morte dos queridos.” (LOPES, 2022, p. 14) A poesia dessa
poeta não costuma apresentar muitos sentimentos, mas
acompanhando o tema da morte, o sofrimento aparece.
Além disso, há também o sentimento de revolta revelado
nesse mesmo texto, “(...) para as coisas muito tristes não
há consolação, há revolta.” (LOPES, 2022, p. 14).
Na mesma chave, destaca-se o diálogo com “O
sentimento dum ocidental”, de Cesário Verde, que se
evidencia por meio da epígrafe e da reescrita de dois de
seus versos. O diálogo com outros autores da tradição
literária portuguesa permanece na obra adiliana, neste 201

livro destaco a presença de Pessoa, evocado no poema


que dá título a esta reflexão, Maria Aliete Galhoz, Gil
Vicente e Cesário, que tem a seguinte epígrafe: “Se eu não
morresse, nunca! E eternamente Buscasse e conseguisse
a perfeição das cousas! Cesário Verde, O sentimento dum
ocidental”, e os versos iniciais: “Se nós não morrêssemos
nunca e eternamente buscássemos e conseguíssemos a
alegria aqui” (LOPES, 2022, p. 23).
Retirando a pontuação e alterando da primeira
pessoa do singular para a primeira do plural, o desejo de
não morrer nunca e de trocar a perfeição pela “alegria aqui”,
apontam para a apropriação e transformação operada pela

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poética adiliana. Tais procedimentos inserem uma ideia
de imanência – por meio do uso do advérbio “aqui” –,
indicativos de uma felicidade conquistada no mundo. Há
outros poemas como “Achacada mas feliz” (LOPES, 2022,
p. 15) e “É preciso pensar no dia de amanhã alegremente”.
(LOPES, 2022, p. 25) que indicam um posicionamento
otimista, afinal, com a passagem do tempo e, apesar da
iminência da morte, é preciso estar feliz.
A outra face dos poemas de Pardais é colorida pelo
quadro do avô Raul apresentado na capa e pelo otimismo
e o bom humor da poeta que diz concordar com “a montra
de um café de Lisboa” onde está escrito “A vida é Super”.
(LOPES, 2022, p.27) e que afirma que “Vale a pena
202 escrever poemas”. (LOPES, 2022, p. 24).
Interessante pensarmos ainda nos elementos
artísticos do livro além do quadro da capa, que ao
contrário de coloridos, continuam a aparecer em preto e
branco. Desde Manhã, as fotografias inseridas nos livros
são apresentadas sem cor e, apesar de seguir a tendência, a
fotografia presente em Pardais apresenta a casa da autora,
diferentemente das outras, nas quais estão registrados ela
própria e membros de sua família no período da infância
ou juventude. Essa casa, além de muito mencionada em
seus poemas, aparece no recorte da capa de Estar em casa
(2018) e nas conhecidas fotografias feitas pela fotógrafa
Joana Dilão. A presença dessas fotos, também datadas,

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contextualiza a infância de Maria José, pessoa civil,
apropriada por Adília Lopes, como aponta Rosa Martelo
no texto “A luva e a mão (uma história de salvação)” (2019)
e, agora, apresenta a casa da autora tão mencionada nos
poemas.
No livro de 2022, vê-se na foto apresentada no
início do livro, um canto da casa composto por duas
estantes, artes penduradas na parede, caixas que parecem
armazenar materiais sobre a produção literária da autora,
inclusive alguns de seus livros, e podemos denominar os
elementos da foto como “as coisas de Adília”, que estão na
casa onde a poeta afirma estar desde que nasceu:

Gosto muito de cinema mas agora não quero ver filmes.


Gosto mais de estar em casa a ver as minhas coisas e 203

lembrar-me da minha vida. Também gosto muito de


andar pelo meu bairro que é afável. Vou pelo meio das
casas e das árvores a cruzar-me com rostos familiares,
amigos. Estou aqui há 62 anos, desde que nasci.
(LOPES, 2022, p. 22).

O verbo gostar é algo comum na poética adiliana,


assim como as expressões “estar em casa”, “minhas coisas”
e “minha vida”. O texto acima destaca o bairro, as árvores
e traz uma menção a um dado biográfico da escritora: a
sua idade, 62 anos. O tempo, além da idade e das datas
ao final dos poemas, é algo marcante nesse livro, que
apresenta, a partir da metade, mais um elemento artístico,
uma série de desenhos apresentados pelo fac-símile de

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um caderno, introduzida pela frase “desenhos feitos com
a mão esquerda”; e pela menção ao Cogito ergo sum, de
Descartes, ou seja, o conhecido: “penso, logo existo”.
Esses desenhos, que são acompanhados de local, data,
horário e dia da semana, também são grafados pela mão
esquerda, marcando o gesto de escrita da poeta e variam
ao longo das páginas. Os desenhos permanecem com o
mesmo traço, mas a contextualização temporal é atualizada
e demarca a busca pela afirmação da legitimação da
existência de um sujeito que, com o esforço de traçar os
desenhos e os escritos com a mão esquerda, deseja nesse
ato repetido por doze vezes, prolongar sua existência e
afirmar que está vivo em diferentes momentos.
204 Tais desenhos e a estrutura do livro são
semelhantes ao que Adília fez em 2010 com a publicação
de Apanhar ar. Metade do livro é composto por poemas
curtos, algo que se mantém em Pardais, e a outra metade
por desenhos semelhantes ao desse livro; com a diferença
de serem coloridos e estarem relacionados à experiência
sensorial da autora que, aos 11 anos, ouvia música clássica
enquanto desenhava. Além disso, a publicação do livro
de 2010 limitou-se a 300 exemplares autografados e
numerados pela autora. Já na publicação de 2022, o
número de exemplares é expandido e já não mais limitado,
demonstrando a saída da sua poesia do circuito marginal.
A partir de Manhã, podemos apontar para a semelhança

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entre a obra de Adília e a de Roland Barthes. O escritor
francês, muito citado pela poeta por meio de diálogos em
poemas, textos, entrevistas e epígrafes, parece ser também
inspiração para ela em gestos como o de inserir fotografias
nos seus livros mais recentes; nota-se ainda a inserção
de outros elementos artísticos como desenhos, pinturas
e escritas apresentadas com a caligrafia da autora na
elaboração dos livros.
Cremos poder concluir que Pardais apresenta
um novo aspecto da poesia adiliana ao trazer a morte
como tema importante, mas também percebemos a
manutenção da dicção que costuma ser alegre, cotidiana
e metapoética. Além disso, o tempo, elemento marcante
da última produção adiliana, é manipulado pela poeta 205

neste livro, tanto nos poemas, quanto nos desenhos. Como


não é possível escapar do tempo, resta-nos, concordando
com a escritora, “pensar no dia de amanhã alegremente”
(LOPES, 2022, p. 25).

Referências Bibliográficas

LOPES, A. Pardais. Porto: Assírio & Alvim, 2022.

MARTELO, R. M. A forma informe. Lisboa: Assírio &


Alvim, 2010.

MARTELO, R. M. A luva e a mão (uma história

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de salvação). ELyra: Revista da Rede Internacional
Lyracompoetics, n. 14, p. 49-65, 2019. Disponível em:
https://elyra.org/index.php/elyra/article/view/305/343.
Acesso em: 12 dez. 2022.

206

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Visitas ao lugar-
comum: Adília Lopes e
Ana Martins Marques

Maria Cristina 1 Introdução


Oliveira Fonte Boa
Se a língua é “casa louca que obriga ao abrigar”
Universidade (MARQUES, 2022, p. 62), Adília Lopes e Ana Martins
Federal de Minas
Gerais Marques enquanto poetas da contemporaneidade
entram no jogo do texto para tentar fugir das
imposições da linguagem (MARTELO, 2010). Ambas
compartilham assim uma poética que se apropria de 207

textos de natureza diversa: do cânone literário ao slogan


publicitário, aproveitando então do material cultural
que compõe não somente o repertório da língua que
compartilham, o português, como também aquele que,
canonizado, passa a constituir um acervo universal. As
duas poetas então se propõem a constantemente visitar
o lugar-comum e buscar nele material para arquitetar
novos textos com sentidos únicos, muitos dos quais
dedicados a elaborar a questão amorosa, extensamente
abordada na tradição linguística e literária que
herdaram, sob prismas variados.
É este o caminho que observamos na série
de poemas que compõe a seção “Visitas ao lugar-

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comum”, de O livro das semelhanças, de Ana Martins
Marques, e também em alguns poemas de Adília em que
ela brinca com ditos populares: “Tempo/ é dinheiro/ diz-
se/ e não se diz/ tempo/ é amor.” (LOPES, 2014, p. 547).

2 A intertextualidade como ponto de encontro


Mas o intertexto de Adília e Ana vai além dos
limites definidos pela língua, percorrendo também
referências literárias mundiais. Parece ter sido justamente
esse o eixo de encontro que Ana Martins Marques
estabelece com Adília Lopes, quando faz menção a ela
no poema “Banheiro (banho de xampu)” no qual insere a
descrição: “d’après Elizabeth Bishop/ com alguma coisa de
208 Adília Lopes”:

[...]
sem pretexto
para o pranto
– no more tears
rosnam os rótulos
da Johnson & Johnson –
[...] (MARQUES, 2011, p. 19).

É curioso que esse “alguma coisa de” ressoe nesse


poema pois com essas mesmas palavras Adília iniciou
alguns de seus poemas em diálogo com outros escritores,
como em “Adormecer (com alguma coisa de Maria Teresa
Horta)” ou “Absolver (com alguma coisa de Herberto
Helder)”, ambos de O peixe na água. Nesse caso, a menção

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ao slogan publicitário do xampu da marca de Johnson &
Johnson remete precisamente ao poema “No more tears”,
de Adília Lopes:

[...]
lavava os olhos com shampoo
depois acabaram os shampoos
que fazia arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
[...]
para chorar não podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
sem uma lágrima
[...] (LOPES, 2014, p. 125).

Nesse contexto, o reconhecimento dessa “coisa” de


209
Adília propicia leituras singulares do texto de Marques,
pois além da habitual incorporação de textos diversos, a
temática também é retomada. Os eu líricos de Ana e Adília
falam de uma busca pelo pretexto ao choro; pois ambos os
poemas parecem de alguma forma falar de uma tristeza –
por mais que o eu lírico de Adília aparente negá-la –, mas
de uma tristeza que não suscita pranto ou que é privada
dessa possibilidade. As lágrimas nesses textos representam
então uma procura por alguma forma de alívio, um desejo
que o shampoo não pode mais realizar.
Esse diálogo contribui para a construção do sentido
do texto que, ao retomar a relação amorosa descrita em o
“Banho de xampu” de Bishop, propõe uma sequência: se

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o eu lírico de Bishop falava de amor, o eu lírico de Ana
fala do rompimento e da solidão: “lavo eu mesma/ meus
cabelos/ curtos/ que um dia/ você lavou/ numa bacia”
(MARQUES, 2019, p. 19). Solitário e melancólico este
“eu” ressente a impossibilidade do choro.

3 Mariana Alcoforado e Penélope


Se nos poemas anteriores a ausência das lágrimas
reúne as duas poetas, é por outro lado a exuberância delas
que reúne duas personagens conhecidas da literatura
mundial apropriadas por Adília e Ana, mais uma vez em
um trabalho de intertextualidade e criação em torno da
temática amorosa: Mariana Alcoforado e Penélope, cujas
210 histórias originais são marcadas pela ausência e pela espera.
As Cartas portuguesas, publicadas em 1669,
são um conjunto de epístolas amorosas supostamente
escrito pela freira Mariana Alcoforado, aguardando o
retorno do amado Marquês de Chamilly. Devido a essas
circunstâncias, o amor de Mariana é um amor sofrido de
quem não tem suas mensagens correspondidas e de quem
passa seus dias na espera e no sofrimento: “Aí!, os meus
[olhos] encontram-se privados da única luz que os animava
e só lhes restam lágrimas; não os tenho usado senão para
chorar incessantemente [...]” (ALCOFORADO, 2000, p.
13-14, carta primeira). Adília Lopes dedica dois de seus
livros à freira Mariana das Cartas portuguesas: O Marquês
de Chamilly e O regresso de Chamilly.

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[...]
assim se passou mais um Inverno
depois vem o Verão
Marianna beija a lagartixa e chora
depois vai-se deitar a ouvir Bach
l’été l’a apaisée
depois vem a noite
a lagartixa adormece aos pés de Marianna
Marianna não consegue dormir
e canta
as outras mandam-na calar (LOPES, 2014, p. 80).

Se na recepção das Cartas portuguesas o amor


dolorido de Mariana é visto como símbolo de nobreza –
já que por tanto tempo a literatura ocidental repetiu os
ecos da lírica provençal que deu ao amor apaixonado e
inalcançável um valor de nobreza moral (ROUGEMONT,
1988) –, em Adília a recepção é, pelo contrário, cômica. 211

O sentimentalismo religioso de Marianna – o duplo “n”


particulariza a personagem adiliana – é rebaixado e o
leitor é convidado a rir-se das situações ridículas a que ela
se submete. Alimentada pelos contos de fada, Marianna
beija a lagartixa como a princesa que beija o sapo na espera
por um príncipe encantado.
Nesse contexto, a menção às canções de Bach –
feitas também em outro poema do livro – é um elemento
que contribui para o efeito irônico: tendo em mente a
melancolia de algumas dessas canções, como, por exemplo,
“Arioso”, de Bach, a cena como um todo ganha um tom
melodramático e cômico. Nesse sentido, a ação de “deitar

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a ouvir Bach” se aproxima do ato de lavar os olhos com o
xampu: um instigador de lágrimas.
Assim, Adília atualiza o conteúdo dessa obra
clássica da literatura portuguesa enriquecendo-a com
reflexões modernas que ressignificam esse tipo de coita
amorosa. Essa questão é sobretudo forte no livro O regresso
de Chamilly, em que Lopes ultrapassa o âmbito das Cartas
portuguesas ao propor o retorno do Marquês à freira que,
ao não mais ter sua paixão incitada pela distância, entedia-
se com a rotina da vida conjugal.
A Penélope de Homero também verte muitas
lágrimas ao longo da narrativa: “Na verdade ela [Penélope]
permanece de coração sofredor/ em teu palácio; e
212 desesperadas se desgastam/ as noites, mas também os dias,
enquanto chora.” (HOMERO, 2011, p. 303). Mas o tom
com que Ana Martins Marques trata essa personagem na
série de sete poemas que dedica a ela nos livros A vida
submarina e Da arte das armadilhas é bem diferente daquele
utilizado por Adília em relação à Mariana Alcoforado. A
poeta dá uma vida íntima complexa a essa personagem,
criando para ela uma história:

Penélope (IV):
[...]
E ela também não disse
a solidão pode ter muitas formas,
tantas quantas são as terras estrangeiras,
e ela é sempre hospitaleira. (MARQUES, 2021, p.
134).

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Nesse trecho do poema, é insinuado que à viagem
turbulenta de Ulisses pelas terras estrangeiras corresponde
uma jornada igualmente difícil de Penélope pelo campo
da solidão: um sentimento que não possui forma única e
nem simples a ponto de que possa ser sempre encoberto
pelo choro. É proposto mesmo que nessa solidão Penélope
tenha encontrado algum conforto, como o herói homérico
encontrou nas terras visitadas cujos homens seguiam a
tradição da hospitalidade grega. Chama atenção nesse
trecho o verso “E ela também não disse”, pois de fato a
Penélope de Homero se aprofunda pouco na expressão de
seus próprios sentimentos – embora não destoe muito assim
do padrão dos outros personagens. Dessa forma, a poeta
parece querer introduzir na narrativa uma interioridade 213

que não foi possível ao poema épico, aproximando a obra


das exigências da subjetividade moderna.
Em outros trechos da mesma série, Penélope é
transformada em um eu lírico que fala em primeira pessoa
e, por meio dessa manobra linguística, a perspectiva íntima
da esposa de Ulisses é apresentada:

Penélope (V):
A viagem pela espera
é sem retorno.
Quantas vezes a noite teceu
a mortalha do dia,
quantas vezes o dia
desteceu sua mortalha?
Quantas vezes ensaiei o retorno –
o rito dos risos,

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espelho tenro, cabelos trançados,
casa salgada, coração veloz?
A espera é a flor que eu consigo.
Água do mar, vinho tinto – o mesmo copo.
(MARQUES, 2021, p. 140).

Nesse e em outros cinco poemas, dos sete da série


de poemas de Ana Martins Marques, é feita a referência
ao ardil da personagem homérica para frear as investidas
dos pretendentes que a cortejavam. Dizendo que finalizava
uma mortalha para o herói Laertes, Penélope pediu aos
homens que esperassem até que terminasse o trabalho,
“Daí por diante trabalhava de dia ao grande tear,/ mas
desfazia a trama de noite à luz de tochas./ Deste modo
durante três anos enganou os Aqueus.” (HOMERO,
214
2011, p. 137-138). Nesse poema em destaque, Marques
insere uma inversão no enredo original: a mortalha é
tecida pela noite – não por Penélope – para o dia – não
mais para Laertes –, que ao seu turno desfaz o trabalho.
Dessa forma, Ana Martins Marques estabelece diálogo
com outra poeta: Sophia de Mello Breyner Andresen, que
escreveu:
Desfaço durante a noite o meu caminho.
Tudo quanto teci não é verdade,
Mas tempo, para ocupar o tempo morto,
E cada dia me afasto e cada noite me aproximo.
(ANDRESEN, 2018, p. 92).

O dia, quando Penélope tece a trama, é o momento


de afastamento de Ulisses, pois é o momento em que avança

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rumo a uma nova vida e a um novo casamento. Enquanto à
noite, quando desfaz o trabalho, ela recua, aproximando-se
mais uma vez de Ulisses e adiando os pretendentes. Mas
este recuo, enquanto significa para Penélope a esperança do
retorno do marido, também acarreta um interrompimento
de sua própria vida, visto que a espera pode ser infinita.
A noite é, assim, momento de esperança, mas também é
a morte do dia a dia de Penélope: “Prouvera que neste
momento a sacra Ártemis me desse/ uma morte suave,
para que não mais eu gastasse a vida/ com tristeza no
coração, cheia de saudade da excelência/ do esposo amado
[...]” (HOMERO, 2011, p. 433).
A astúcia de Penélope é celebrada por Ana e por
Sophia e também por Adília que escreveu: “Penélope/ 215

é uma aranha/ que faz/ uma teia/ a teia é a/ Odisseia/


de Penélope.” (LOPES, 2014, p. 332-333). Esses versos
ilustram bem a ideia sobre a qual as três poetas se
debruçaram: a de que Penélope, assim como Ulisses, viveu
uma história própria, uma outra epopeia da qual é heroína.
Ao fim da série contida em A vida submarina, encontramos
este poema:

Penélope (VI):
E então se sentam
lado a lado
para que ela lhe narre
a odisseia da espera (MARQUES, 2021, p. 142).

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4 Considerações finais
Ana Martins Marques e Adília Lopes têm
poéticas que se aproximam no ponto em que aproveitam
do repertório cultural da língua que compartilham, seja
utilizando as “palavras de cerca de 800 anos”, como no
poema “História”, de Risque esta palavra, ou o acervo
incorporado de outras culturas, para construírem textos
com significado único. Por meio da releitura de obras
pretéritas, as duas poetas reavivam as reflexões sobre antiga
temática amorosa, inserindo questionamentos pertinentes
à atualidade, como a solidão e as dificuldades da vida
conjugal.

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Referências Bibliográficas

ALCOFORADO, M. Cartas de amor ao cavaleiro de


Chamilly. Porto: Lello & Irmão, 1971.

ANDRESEN, S. de M. B. Coral e outros poemas. São Paulo:


Companhia das Letras, 2018.

HOMERO. Odisseia. Trad. Frederico Lourenço. São


Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2011.

LOPES, A. Dobra – Poesia Reunida. 2ª ed. Porto: Assírio


& Alvim, 2014.

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MARQUES, A. M. A vida submarina. São Paulo:
Companhia das Letras, 2021.

MARQUES, A. M. Da arte das armadilhas. São Paulo:


Companhia das Letras, 2011.

MARQUES, A. M. O livro das semelhanças. São Paulo:


Companhia das Letras, 2015.

MARQUES, A. M. Risque esta palavra. São Paulo:


Companhia das Letras, 2021.

MARTELO, R. M. As armas desarmantes de Adília


Lopes. Didaskalia, Porto, v. 40, n. 2, p. 207-222, 2010.

ROUGEMONT, D. O amor e o Ocidente. Rio de Janeiro:


Editora Guanabara, 1988. 217

SANTOS, V.; BRANDÃO, G. Da Penélope Grega à


Penélope Moderna: a memória em “Penélope”, de Ana
Martins Marques”. Anais do XV Congresso Internacional
ABRALIC, Rio de Janeiro, vol. 4, p. 6013-6024. Disponível
em: http://www.abralic.org.br/anais-artigos/?id=1903.
Acesso em: 16 fev. 2023.

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