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A não ser quando indicado ao lado, todas as citações das escrituras são da Almeida Revista e Atualizada (ARA).
EDITORIAL

Editorial
Sobre a série “Pequenos Clássicos Reformados”
Quando começamos a ler nossos pais puritanos e antigos presbiterianos é comum nos
depararmos com verdadeiras pérolas em tamanho reduzido, geralmente em formato de sermões
ou cartas. Encontramos muito desses estilos literários principalmente porque a geração passada
foi “sermônica” e pastoral por natureza. As grandiosas e complexas maravilhas doutrinárias se
tornavam pregações úteis e cheias de aplicações nas mãos dos nossos pais para o coração da
Igreja.
O tamanho reduzido dessas obras preenche de forma plena o tempo de nos dedicarmos ao
alimento espiritual que, muitas vezes, é tão curto em nossas rotinas. Como uma refeição
pequena, ela se encaixa nas mais diversas situações: seja como um aperitivo para começar bem o
dia, uma sobremesa depois de uma devocional, ou até mesmo um prato de entrada antes do culto
ao Senhor. Também é adequada para ser digerida tanto nos dias apressados, quanto nos longos
dias de férias, na praia ou no interior, no conforto do lar ou num parque.
Mas não se engane: o tamanho reduzido não é proporcional ao grandioso valor contido nos
textos dessa série. Como sabemos, nossos pais na fé eram especialistas em colocar grande
quantidade de ouro em pequenos reservatórios. Nesses livretos o leitor não encontrará uma sopa
aguada, mas alimento sólido, nutritivo e delicioso. Recentemente, ouvi de um pastor querido que
ler uma página de uma obra dos nossos pais puritanos e presbiterianos era o suficiente para fazê-
lo meditar por horas. O pouco tempo necessário para ler esses livros podem se transformar em
dias de oração, autoexame, meditação e alegrias.
Falei tanto de comida que espero ter deixado o leitor com fome de ler essas obras! Nossa
oração é para que elas sejam uma bênção nas mãos do nosso querido povo de língua portuguesa.

Do seu irmão em Cristo e editor da Aliança Publicações,


Vitor Cortial
INTRODUÇÃO: DEUS SABE DE TODAS AS COISAS

Introdução
Deus sabe de todas as coisas

“Não há criatura que não seja manifesta na sua presença; pelo contrário, todas
as coisas estão descobertas e patentes aos olhos daquele a quem temos de
prestar contas”

Hebreus 4:13
Reunimo-nos hoje para humilhar nossas almas, trazer nosso incensário, como outrora
fez Arão, e interceder — para que a ira do grande Deus possa ser aplacada. Já houve
necessidade maior de nos vestirmos em saco do que quando o reino quase jaz em
cinzas? Ou de derramar lágrimas, do que quando esta nação já derramou tanto sangue?
Esses dias são chamados nas escrituras de dias de afligir a alma: “Porque toda alma que,
nesse dia, se não afligir será eliminada do seu povo” (Levíticos 23:9). Certamente essa
pode ser uma razão para haver tanta aflição nacional, porque afligimos tão pouco as
nossas almas. Nossa condição é baixa, mas nossos corações estão elevados em orgulho.
Deus vê a condição dos nossos corações quando nos chegamos a Ele e sabe qual é a
nossa fonte, qual é o nosso centro; seu olho está sobre nós. Assim diz o apóstolo:
“Todas as coisas estão descobertas e patentes”.
Temos aqui um mapa do conhecimento de Deus quando nos sonda. Mas antes de
extrair mais do texto, preciso trazer alguns termos importantes. Na lei, primeiro as
lâmpadas eram acesas antes de o incenso ser queimado. Assim, tratarei primeiro sobre o
julgamento, esclarecendo-o pela doutrina; depois, as afeições serão inflamadas.
Ministros devem ser primeiro luzes resplandecentes — e, então, lâmpadas ardentes.
“Todas as coisas estão descobertas” é uma metáfora cuja raiz remete ao ato de retirar
a pele de qualquer animal, que, depois do processo, aparece nu. Assim, o autor diz que o
nosso coração está nu; eles estão descobertos aos olhos de Deus, não tem nenhuma veste
protegendo-os; não há véu sobre o coração do pecador, exceto o véu da incredulidade;
essa vestimenta o torna ainda mais nu.
O apóstolo continua a descrição, indo além: “todas as coisas estão descobertas e
patentes”. Isso alude ao ato de sacrificar sob a lei levítica, onde o sacerdote cortava o
animal em pedaços, e assim as partes internas se tornavam visíveis. Esse termo também
pode se referir a uma anatomia, onde há uma dissecação e corte de cada parte: o
coração, o fígado, as artérias. Esse é o tipo de anatomia que Deus faz: uma anatomia do
coração. Ele corta e disseca os pensamentos e motivos do coração. Ele faz uma
dissecação, como a faca que divide entre a carne e os ossos, os ossos e a medula, os
tendões e as veias. “Todas as coisas estão patentes”, ou seja, elas estão abertas para sua
inspeção.
A próxima palavra é “todas as coisas”. Não há nada que escape ao seu olhar: e aqui o
conhecimento de Deus difere infinitamente do nosso. Nós não podemos ver no escuro,
nem podemos ver muitas coisas de uma vez. Mas a visão de Deus não funciona da
mesma forma. “Portanto, nada julgueis antes do tempo, até que venha o Senhor, o qual
não somente trará à plena luz as coisas ocultas das trevas, mas também manifestará os
desígnios dos corações” (1 Coríntios 4:5). Ele vê muitas coisas de uma vez—como se
tudo fosse apenas uma coisa só.
O texto continua: “aos olhos daquele”. Olhos são atribuídos a Deus, não literalmente,
mas metaforicamente. Ídolos têm olho, mas não veem (Salmo 115). Deus não tem olhos,
mas vê todas as coisas. O olho de Deus é posto nas escrituras para que ele veja e
conheça todas as coisas e todas elas estão nuas ao seu olho (ou seja, estão evidentes ao
seu conhecimento). Sempre que pecamos não estamos sozinhos, até os mais secretos.
Sempre que pecamos o fazemos diante da face de nosso Juiz!
A última sentença do texto é: “a quem temos de prestar contas”. Ou seja: “para quem
devemos ser responsáveis”. As palavras, assim esclarecidas, dividem-se nas seguintes
partes:
1. O Juiz — que é Deus.
2. O fato em questão — todas as coisas.
3. As evidências apresentadas — todas as coisas estão descobertas.
4. A clareza das evidências — elas estão descobertas e patentes.
5. As testemunhas — os olhos de Deus.
6. As pessoas a serem sentenciadas, seja para a vida ou para a morte — somos nós, ou
seja, cada indivíduo. Não há exceções a esse julgamento geral. “A quem (todos nós)
temos de prestar contas”.
A proposição que desenvolverei aqui é a seguinte:
Doutrina. Que os desígnios mais secretos do coração do homem estão todos
descobertos diante do Senhor e Ele, em seu poder, faz uma anatomia perfeitamente clara
do nosso coração.
Posso trazer uma nuvem inteira de testemunhas dos textos das Escrituras, concedendo
seu pleno acordo a esta verdade. Vou me concentrar em duas ou três, para que na boca
de três fiéis e claras testemunhas essa grande verdade possa ser estabelecida.
“Porventura, não o teria atinado Deus, Ele, que conhece os segredos dos corações?”
(Salmo 44.21). No original, o termo pode ser literalmente traduzido por “coisas ocultas
do coração”—aquelas que estão mais veladas e mascaradas à percepção humana.
Veja também o Salmo 139.2, que diz: “Sabes quando me assento e quando me levanto;
de longe penetras os meus pensamentos”. Aqui estão duas palavras que destacam a
infinitude do conhecimento de Deus.
1° “Penetras os meus pensamentos”. Não há nada que possa ser tão secreto
quanto um pensamento.
Primeiro, quanto ao seu caráter secreto, é chamado de “a imaginação do pensamento”
em Gênesis 6:5. Ou, como a palavra também pode ser interpretada, o primeiro esboço de
formação do pensamento, algo muito sutil e quase indiscernível. Ainda assim o Senhor
pode os discernir.
Segundo, quanto à sua celeridade, nossos pensamentos têm asas, como os querubins, e
em um instante podem viajar pelo mundo. São “mais ligeiros do que as águias” como
descrito em 2 Samuel 1:23. Mas aquele que cavalga sobre a nuvem veloz pode alcançá-
los — Ele pode ultrapassá-los.
Terceiro, Quanto à sua complexidade: nossos pensamentos estão emaranhados e
entrelaçados uns com os outros; no entanto, até mesmo esses pensamentos são
conhecidos por Deus e ordenados em sua sábia soberania. O que Davi diz sobre seus
anos pode ser dito sobre nossos pensamentos: “não estão todos eles escritos no teu
livro?”
2° “De longe penetras”. Dois pontos são importantes aqui.
Primeiro, Deus conhece nossos pensamentos antes mesmo de nós os conhecermos!
Ele sabe quais desígnios estão no coração e os planos que os homens certamente
seguiriam — se Ele não mudasse o curso dos acontecimentos. Deus sabia o que estava
na mente de Herodes antes mesmo de Herodes saber; ou seja, que Ele sabia que o rei
desejava assassinar o menino Jesus. Deus conhecia seus pensamentos de longe: Ele vê
que sangue e veneno estão no coração de um pecador, mesmo que nunca se manifestem
visivelmente. Ele olha para a intenção, mesmo que nunca seja posta em execução.
Segundo, Deus conhece nossos pensamentos quando já os esquecemos! Eles estão
distantes para nós, mas estão presentes para Ele. “Assim procedeste, e eu me calei;
pensavas que eu era teu igual; mas eu te arguirei e tudo te porei à vista” (Sl 50:21).
Milhões de anos são apenas um curto período de tempo para Deus. Para que não
pensemos que Deus esquece, a bíblia nos informa que Ele mantém um livro de registros:
“Vi os mortos, grandes e pequenos, de pé diante do trono; e abriram-se livros. Ainda
outro livro, o Livro da Vida, foi aberto” (Ap 20:12). Deus anota: “Item 1 — tal pecado”.
E se os pecados no livro não forem perdoados, haverá uma terrível prestação de contas!
Para todo crente, o livro de dívidas de pecados está riscado; as linhas negras do pecado
são canceladas pelas linhas vermelhas do sangue de Cristo!
Para citar mais uma passagem das Escrituras: “Até as trevas não te serão escuras: as
trevas e a luz são para ti a mesma coisa” (Sl 139:12). As nuvens não são densas demais;
a noite não é uma cortina para esconder qualquer coisa do Seu olhar que tudo vê. Ainda
que escrevamos os nossos pecados em caracteres extremamente pequenos, ainda que a
nossa caligrafia seja estranha, Deus pode lê-los! Ele tem uma chave para saber o íntimo
da nossa alma. Ele entende nossos corações sem nossa permissão; Ele está a par de toda
a nossa traição! Não podemos subir tão alto que Ele não nos veja; não podemos cavar
tão fundo que Ele não tome conhecimento. Os homens de Babel estavam construindo
muito alto, queriam empreender uma cidade e uma torre cujo topo alcançasse os céus.
Em nenhum momento eles conseguiram se esconder de Deus, pois Deus os viu o tempo
todo. E qual foi o resultado? “Confundamos ali a sua língua” (Gn 11:7,8). Acã cavou
fundo para esconder seus planos, dizendo: “Nenhum olho me verá!” Ele pegou o manto
babilônico e o escondeu na terra, junto com o ouro; mas Deus desmascarou seu furto (Js
7:12).
Se há alguém aqui que, em vez de estar fazendo o trabalho de Deus, esteve às
escondidas guardando o manto babilônico, enriquecendo-se, fazendo o próprio ninho;
que, em vez de fixar pregos no templo de Deus para reforçá-lo, têm roubado ouro em
seus cofres — Deus está vendo! Deixe-me dizer-lhes, Deus tem uma janela que olha
para os seus corações! Deus é o grande diretor; nós entramos no mundo como num
teatro, cada um atua sua parte ou cena; Deus é tanto o Espectador quanto o Juiz.
O CONHECIMENTO DE DEUS: UMA EXPOSIÇÃO DA DOUTRINA

O Conhecimento de Deus
Uma exposição da Doutrina
Para amar mais essa verdade em nossos corações, consideremos o que é o
conhecimento de Deus. Eis uma definição resumida: o conhecimento de Deus é um ato
puríssimo pelo qual Ele, em um único instante, conhece todas as coisas passadas,
presentes e futuras, de uma forma perfeita e infalível.
A partir dessa descrição, podemos concluir duas coisas. (1) Que não há evolução no
conhecimento de Deus. Enquanto o nosso conhecimento vai do efeito para a causa, Deus
conhece tudo de forma plena. (2) Coisas que não existem têm um objetivo no
conhecimento dele; conforme disse o apóstolo Paulo: “O Deus que vivifica os mortos e
chama à existência as coisas que não existem”. Em outras palavras, Deus conhece até
mesmo aquilo que, por um momento, não existia.
Pergunta. Aqui pode surgir uma questão: se há tanta perfeição no conhecimento de
Deus, então Ele conhece o pecado?
Resposta. Alguns teólogos fazem uma distinção de dois tipos de conhecimento em
Deus. (1) Há um conhecimento de pura inteligência; e assim Ele conhece o mal através
de um bem contrário, como a luz revela a escuridão. Da mesma forma nós dizemos em
nossos dias que a régua reta mostra o que é torto. (2) Há um conhecimento de
aprovação. Não é esse o conhecimento que Deus possui sobre o pecado, pois Ele o odeia
e o pune. Cristo foi feito pecado, mas não conhecia o pecado. Podemos entender essa
afirmação da seguinte forma: Ele conhecia o pecado de modo a odiá-lo, não de modo a
cometê-lo ou aprová-lo.
Quero, agora, dar algumas razões pelas quais Deus conhece todas as coisas.
Razão 1: Desde a criação. Deus é o Pai das luzes, portanto, é plenamente capaz de
ver. O próprio Senhor usou esse mesmo argumento: “Aquele que fez o ouvido, não
ouvirá? Aquele que formou o olho, não verá?” (Sl 94:9). Aquele que faz um relógio
conhece todos os pinos e engrenagens nele; e, embora essas engrenagens se movam em
direções contrárias, ele conhece o movimento verdadeiro e perfeito do relógio; ele
conhece a fonte que faz as rodas girarem. “Aquele que formou o olho, não verá?” O
homem pode ser comparado a um relógio espiritual. As afeições são as engrenagens; o
coração é a fonte. O movimento desse relógio é falso, pois o coração é enganoso. Mas
Deus, que fez esse relógio, conhece o verdadeiro movimento do coração (por mais falso
que seja) e as fontes que fazem as engrenagens girarem. Deus nos conhece melhor do
que nós mesmos nos conhecemos! Agostinho disse: “Deus é todo olhos!”
Razão 2: Por causa da sua onipresença. “Ocultar-se-ia alguém em esconderijos, de
modo que eu não o veja? — diz o Senhor; porventura, não encho eu os céus e a terra? —
diz o Senhor” (Jeremias 23:24). Ele não está limitado a nenhum lugar, e ao mesmo
tempo também não está excluído de nenhum canto; seu ser está em toda parte. Deus tem
um olho sobre os concílios e os exércitos. Esse é o Deus que faz a anatomia do coração:
Ele vê quais são os desígnios das pessoas e para onde estão indo. Se o ódio se disfarça
de amizade, se a ambição vem mascarada de humildade, se a religião é usada como um
meio para se alcançar o poder, Deus vê tudo isso. “Ainda que cavem até o inferno, dali
os tirará a minha mão” (Amós 9:2). Deus pode abrir as fechaduras do inferno! Platão
relata a história de que o rei da Lídia tinha um anel que lhe permitia ver todos, enquanto
ele mesmo permanecia invisível. Da mesma forma, Deus observa todas as nossas ações,
mas Ele mesmo não é visto (conforme o apóstolo argumenta em 1 Timóteo 6:16).
Portanto, os escolásticos afirmam acertadamente: Deus est in loco repletive. O homem
encontra os seus limites na curva dos seus corpos, mas Deus está em todos os lugares de
forma repleta. Seu âmago está em todos os lugares, e os seus olhos se encontram em seu
âmago.
Objeção 1: Mas não é dito em Gênesis: “Descerei e verei se, de fato, o que têm
praticado corresponde a esse clamor que é vindo até mim; e, se assim não é, sabê-lo-ei”
(Gênesis 18:21)?
Resposta: Certamente o nosso texto não diz que Deus era ignorante da situação. Mas
o autor está retratando Deus como um justo juiz, que primeiro examina a causa antes de
emitir uma sentença. Portanto, dois aspectos são muito importantes nesse texto.
Primeiro, perceba a moderação que Deus emprega quando está executando uma obra
de justiça. Deus não faz da espada o juiz; primeiro, Ele pesa as coisas na balança. Ele
sempre coloca o julgamento na linha, antes de traçar a linha do juízo. Deus, quando está
em uma obra de justiça, não age de forma desenfreada, como se não se importasse para
onde acerta, mas segue um caminho reto contra os infratores. “Descerei e verei”, diz
Deus. Ele não pune precipitadamente. Isso pode ser uma boa lição para aqueles que têm
o poder em suas mãos: devem trabalhar de forma reta e justa, julgando a causa em vez
da pessoa; devem proceder, acima de tudo, com justiça. Devemos ter em mente que
demonstrar zelo numa causa mentirosa não é em nada melhor do que um fogo
descontrolado: isso não é justiça, mas cruel violência.
Segundo, esse verso denota a paciência de Deus em esperar pelos pecadores. Ele
esperou até que o clamor chegasse aos céus. Deus tolera muita injustiça de nossa parte
antes de desembainhar a espada da justiça. Ele estende a misericórdia em paciência e
prolonga a paciência em longanimidade. Ah! Se a paciência de Deus não fosse infinita,
já teríamos esgotado todo o seu estoque há muito tempo. Mas que nenhum pecador seja
presunçoso: embora Deus seja longânimo, Ele não nos diz por quanto tempo. Quando o
clamor chega aos céus, Deus desce para ver. Se orgulho, luxúria, opressão abundam
Deus ouvirá o clamor e apagará o fogo do pecado com uma chuva de sangue.
Objeção 2: Veja o que disse Deus por meio do profeta: “Buscarei Jerusalém com
lâmpadas” (Sofonias 2:1). Será que isso implica que há algo no escuro fora do alcance
do nosso Senhor?
Resposta: Não, Deus não precisa de lâmpadas para enxergar. O provérbio diz: “O
espírito do homem é a lâmpada do Senhor” (Provérbios 10:27). O texto deixa claro que
essa lâmpada não é para Ele ver, mas sim para nós. Portanto, essa busca do Senhor
implica duas coisas:
Primeiro, a precisão do conhecimento de Deus: Ele tem uma percepção tão aguçada
quanto os homens quando estão procurando suas coisas com luminárias. Segundo, Deus
usa essa linguagem na qual Ele ameaça nos buscar porque quer que nós busquemos o
nosso coração antes que ele o faça. Como disse o profeta: “Busquemos e provemos os
nossos caminhos” (Lamentações 3:40). Os julgamentos de Deus são feitos por meio de
muitas luzes, Ele pode enxergar tudo! Portanto, que nós encontremos nossos pecados,
ou então nossos pecados nos encontrarão.
USO DA DOUTRINA (1): FUGINDO DA HIPOCRISIA

Uso da Doutrina (1)


Fugindo da Hipocrisia
Uso 1: Considerando que Deus tem informação (Ele sabe) de todas as coisas, pense
nesses dois aspectos a seguir.
Aspecto 1: Quando você considera que Deus tem uma janela direta e que Ele
examina bem de perto todas as suas ações, medite sobre esta pergunta: “que tipo de
homem nós devemos ser?” Ó, que santidade, que sinceridade, que piedade exemplar
devemos ter estando em tal presença! Se fôssemos comparecer perante algum grande
monarca, que preparações solenes faríamos para isso? O olhar de um rei poderia causar
tanta reverência, mas olhar de Deus não causa nada em si? O rei só pode ver o exterior;
pode haver traição por dentro, até onde ele sabe. Mas Deus tem uma chave para o
coração: “Eu, o Senhor, esquadrinho o coração, eu provo os pensamentos; e isto para
dar a cada um segundo o seu proceder, segundo o fruto das suas ações” (Jeremias
17:10). Será que essa verdade não exige uma vida reverente?
Em tempos de profunda humilhação e reflexão, Deus direciona Seu olhar
prioritariamente para o coração. Ele observa aquelas partes das quais frequentemente
não damos atenção. Existem aqueles cujos corações foram roubados pelo pecado,
enquanto outros possuem corações divididos, conforme o Salmo 12.2. Há ainda aqueles
cujos corações são inúteis, tão mundanos quanto Saul, que se escondeu entre os seus
pertences (1 Samuel 10.22). Muitos podem ter palavras doces como os anjos, mas, assim
como Nabucodonosor, possuem um coração selvagem. Irmãos, imaginem se nossos
corações estivessem expostos como nossos rostos — seria um momento de profundo
constrangimento, e nos faltaria coragem para encarar uns aos outros. Nunca esqueçam:
Deus possui a chave de todos os corações.
Quando nos aproximamos dos deveres solenes, Deus faz a mesma pergunta que Jeú
fez a Jonadabe. Ele o cumprimentou e disse: “Tendo partido dali, encontrou a Jonadabe,
filho de Recabe, que lhe vinha ao encontro; Jeú saudou-o e lhe perguntou: Tens tu
sincero o coração para comigo, como o meu o é para contigo? Respondeu Jonadabe:
Tenho. Então, se tens, dá-me a mão. Jonadabe deu-lhe a mão; e Jeú fê-lo subir consigo
ao carro” (2 Reis 10:15).
Esta é a pergunta de Deus. Você vem hoje para se humilhar e fazer expiação, mas “seu
coração é um com o de Deus?” Se pudermos responder de forma honesta: “Senhor, você
sabe que é; apesar de minhas muitas fraquezas, meu coração é verdadeiro, não tenho
nenhum viés falso nele. Embora eu não seja perfeito, espero ser sincero”! Então, Deus
dirá: “Dá-me suas orações, dá-me suas lágrimas, suba comigo no carro”. Uma lágrima
de um coração sangrando é um perfume precioso no céu. Ah, se considerássemos este
olhar que tudo vê, não ousaríamos trazer tanto fogo estranho à presença Divina! Lemos
das rodas de Ezequiel, que elas tinham uma roda dentro de uma roda. Assim, Deus tem
um pensamento dentro de um pensamento: ele se interpõe entre nós e nossos
pensamentos.
A deusa Minerva, como os poetas inventam, foi desenhada em cores tão vivas que,
para qualquer lado que alguém virasse, o olhar de Minerva estava sobre ele. Assim, vá
para qualquer um dos lados — apaixone-se por qualquer pecado — Deus ainda olha para
você! Ele tem um olho em seu coração. Que tipo de pessoas devemos ser?
Aspecto 2: Quão perigoso é agir contra Deus? Ele vê, e Seu conhecimento é armado
de poder! Aquele que tem olhos para ver é o mesmo que tem uma mão para punir! Se há
algum plano contra Deus, mesmo que conduzido com a maior sutileza, lembre-se de que
há um conselho de guerra que se reúne no céu.
“Contra Deus? De modo algum”, alguns dirão.
Existem quatro coisas; e se agirmos, direta ou indiretamente, contra qualquer uma
delas, estamos agindo contra Deus, e Ele vê; Ele registra.
1. Primeiro, se agimos contra Sua Verdade, agimos contra Deus. A Verdade é um
reflexo de Deus, é a sua essência; é a joia mais brilhante de sua coroa. Ao retirar Sua
Verdade, estaríamos renegando o próprio Deus. A Verdade é a preciosa semente pela
qual somos gerados para a vida; é o pilar de nossa salvação. A Verdade não é apenas a
regra da fé, mas é a raiz da qual a fé brota. Tire a Verdade, e o que é a fé, senão ilusão?
Estaríamos apenas nos iludindo em direção ao inferno. A Verdade é a grande aquisição
do sangue de Cristo e foi transmitida a nós no sangue de muitos santos e mártires. Se
atacamos a Verdade, atacamos a Deus; e você acha que Deus não vê isso?
Gostaria aqui de fazer o papel de promotor da causa de Deus. Quantas vezes nós não
vemos o puro vinho da verdade misturado com água, ou melhor, com veneno? Quantas
verdades de Deus estão quase perdidas na multidão de erros? A maioria das verdades da
Palavra de Deus não é tão questionada em nossa época? Quem nega as escrituras, nega
ao Senhor que as comprou; não apenas os alicerces da terra estão fora de ordem, mas até
mesmo os alicerces da escritura estão abalados. Lemos que, quando o poços fundos são
abertos, surge uma fumaça como a fumaça de uma grande fornalha, e o sol e o ar ficam
escurecidos. Os recentes erros que brotaram da fornalha do inferno fizeram uma tal
névoa e fumaça na igreja de Deus que o brilhante sol da verdade está muito ofuscado em
nosso horizonte. Quantas religiões existem agora entre nós, e a cada dia surgem com
uma nova aparência? São apenas velhas heresias renovadas. Nosso Salvador diz:
“Quando o Filho do Homem voltar, encontrará fé na terra?” Sim, com certeza, ele agora
pode encontrar muitas fés; quase tantas fés quanto homens no mundo! Os homens fazem
tais coisas, seriam elas toleradas? Deus vê! Pecado terrível é silenciar quando a verdade
é ferida!
2. Segundo, agimos contra Deus quando agimos contra Sua Aliança. Aliança é algo
sério. Observemos nossa Liga e Aliança Solene;[1] estremeço ao lê-la: nos
comprometemos não apenas contra o prelado, mas também contra o papismo; não
apenas contra a hierarquia, mas contra a heresia; não apenas contra o pecado, mas
contra o cisma. E, ainda assim, não contrariamos o texto dela? Como a aliança é
menosprezada por alguns como se fosse um almanaque obsoleto? Aqueles que uma vez
levantaram a mão em favor dela, agora a renegam. Começamos a ser inconstantes com
Deus e, por uma ninharia, arriscamos a maldição da aliança, “Mas eles, como homens,
transgrediram a aliança” (Oséias 6:7). Ou, como no hebraico, “Eles, como Adão”; e
como foi isso? Por uma simples fruta. Da mesma forma, por uma ninharia, por um
centavo na loja, os homens colocam sua aliança e consciência à venda. Deus vê isso;
ouça o que Ele diz: “Trarei uma espada que vingará a contenda da minha aliança!”
(Levítico 26.25). Violar a aliança é um pecado de grande afronta, e uma afronta fará
Deus desembainhar sua espada! Assinamos e selamos a aliança, e depois rompemos esse
selo! Se a aliança não nos retiver, Deus tem correntes que o farão!
O que agrava o pecado é que, indubitavelmente, ele é cometido contra a luz da
consciência; presume-se que ninguém aceitaria uma aliança às cegas: ou estava
informado ou poderia ter sido. É isso que marca profundamente o pecado! Pegue
qualquer pecado, coloque-o na balança e adicione o peso de que, antes e quando foi
cometido, era contra o claro conhecimento da promessa. Mesmo sendo apenas um
pecado, pesa tanto quanto dois.
A aliança é um nó matrimonial; para uma mulher se afastar de seu marido após um
contrato solene, é um pecado de alta magnitude. A aliança é um cinto ou fecho dourado
que nos liga a Deus e Deus a nós. O cinto, em tempos antigos, era um emblema de
castidade. Quando a aliança é quebrada, a igreja perde sua castidade. Israel era um povo
comprometido com Deus em aliança; mas, tendo manchado essa relação federal por
idolatria (um pecado que corta diretamente o nó matrimonial), Deus lhe dá uma carta de
divórcio. Ele diz: “ela não é minha esposa!” Oséias 2.2.
Os citas tinham uma lei que, se alguém juntasse dois pecados, uma mentira e um
juramento, ele perderia a cabeça, porque essa era a maneira de eliminar toda fé e
verdade entre os homens. Se todos os mentirosos e perjuros desta era fossem julgados,
acredito que dificilmente encontraríamos homens suficientes para levá-los ao tribunal!
3. Terceiro, Agimos contra Deus quando nos voltamos contra seus embaixadores. Não
me refiro àqueles que se apropriaram indevidamente do ofício sacerdotal, aos que foram
ordenados por conta própria (conforme 1 João 4.1); não foram enviados – eles partiram
sem a comissão de Deus. Mas refiro-me àqueles que, segundo as Escrituras, foram
devidamente instituídos neste santo ministério; o homem que age contra eles, age contra
Deus! Lembre-se, Deus vê, Ele anota tudo! Qualquer dano causado ao embaixador é
sentido pelo Rei como se fosse contra ele próprio! Assim disse Cristo: “Quem vos
despreza, despreza a mim.” Os ministros trabalham em seus ofícios como cobertos por
um véu denso. Permita-me argumentar: Deus poderia ter vindo pessoalmente e pregado
inflamadamente a você, como quando uma vez entregou a lei no monte Sinai; creio que,
então, você teria dito: “Ó, que Deus não fale, para que não morramos; que fale Moisés!”
Deus poderia ter pregado por meio de anjos, mas isso teria sido insuportável para você.
Perceba como Deus fala com você: “Disse-lhe Deus: Sai e põe-te neste monte perante
o Senhor. Eis que passava o Senhor; e um grande e forte vento fendia os montes e
despedaçava as penhas diante do Senhor, porém o Senhor não estava no vento; depois
do vento, um terremoto, mas o Senhor não estava no terremoto; depois do terremoto, um
fogo, mas o Senhor não estava no fogo; e, depois do fogo, um cicio tranquilo e suave (1
Reis 19:11,12). Ele escolhe, com uma doce mansidão, enviar seus embaixadores, e lhes
colocar um ramo de oliveira em suas bocas; eles suplicam e imploram, com todo o amor
de Cristo; o amor não conquistará?
Esta nação tem rejeitado constantemente o pão da vida. Quando Deus vê suas
misericórdias desprezadas, é justo que Ele permita que o inimigo as leve embora.
Sinceramente, oro para que a abundância de ministérios não cause tanto mal nesta
cidade quanto a fome causou em outras regiões do país; e se chegarmos a questionar, “o
que é este maná?”, não seria surpresa se começássemos a perguntar, “quem é este
Moisés?” Ó, que triste mudança vemos em nossos dias! Aqueles que outrora
valorizavam nossos esforços e que estariam dispostos a sacrificar tudo por seu ministro,
agora parecem prontos para ferir esse mesmo ministro! E qual é a razão deste conflito?
Simplesmente está: “¹⁶ Tornei-me, porventura, vosso inimigo, por vos dizer a verdade?”
(Gálatas 4:16).
Se os ministros pregassem palavras suaves, tornando o caminho para o céu mais fácil
do que Cristo o fez, certamente seriam admirados (há mais pessoas que se maravilham
com um cometa ou estrela cadente do que com o sol). Mas se eles se propõem a colocar
o machado da lei na raiz da consciência; se começam a cortar e eliminar os pecados dos
homens, então: “a terra não pode sofrer todas as suas palavras” (Amós 7:10). Se o
profeta ousa repreender o rei Asa por seu grave erro ao se aliar a um exército ímpio,
dizendo-lhe: “nisto agiste insensatamente”, e tenta aprisionar seu pecado, ele mesmo
será encarcerado. “Porém Asa se indignou contra o vidente e o lançou no cárcere, no
tronco, porque se enfurecera contra ele por causa disso; na mesma ocasião, oprimiu Asa
alguns do povo” (2 Crônicas 16:10). Esse foi o pecado de Jerusalém que arrancou
lágrimas de Cristo: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te
foram enviados!” (Mateus 23:37). Jerusalém apedrejou os profetas do Senhor por tanto
tempo — até que, por fim, não restou pedra sobre pedra dessa cidade.
Aqueles que desejam aniquilar o ministério — tentando arrancar as estrelas das mãos
de Cristo — descobrirão que essa é uma tarefa impossível; e acontecerá com eles como
com a águia, que ao pegar um pedaço de carne do altar, teve uma brasa grudada em suas
penas, e acabou queimando a si mesma e seus filhotes no ninho. 2 Crônicas 36.16 diz:
“¹⁶ Eles, porém, zombavam dos mensageiros, desprezavam as palavras de Deus e
mofavam dos seus profetas, até que subiu a ira do Senhor contra o seu povo, e não
houve remédio algum”.
4. Quarto, agimos contra Deus quando nos opomos à ordem e ao governo que Ele
estabeleceu em sua igreja. Deus é um Deus de ordem, Ele colocou tudo em seu devido
lugar. A ordem e a harmonia do mundo consistem em níveis, um acima do outro, pois
não pode haver música se todos os sons forem iguais. Na natureza, o sol é o
comandante-chefe entre os planetas. Assim também, na estrutura política, Deus
designou reis, nobres, juízes, em uma hierarquia; e isso gera a harmonia. E esses
poderes são de Deus, conforme diz as escrituras: “¹ Todo homem esteja sujeito às
autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as
autoridades que existem foram por ele instituídas” (Romanos 13:1). O poder do
magistrado é a proteção de uma nação, “quem rompe um muro, mordê-lo-á uma cobra”
(Eclesiastes 10:8).
Uso 2: Essa verdade deve ser usada para a exortação, pois ela acusa dois tipos de
pessoa.
O primeiro tipo de pessoa acusada por essa verdade são aquelas que são libertinas em
seus comportamentos.
Dentro dessa categoria existe o libertino profano, que imagina um Deus feito somente
de misericórdia; e por isso se afunda no pecado, corre em direção ao inferno, como se
temesse que o inferno estivesse cheio antes de ele chegar lá. Ele diz: “Deus não verá!”
E também existe o libertino religioso, que peca porque a graça é abundante. Ele
afirma: “Deus não vê pecado em seu povo. Uma vez que estamos em Cristo, não somos
pecadores; portanto, o arrependimento é desnecessário”. A quem eu refutarei de duas
maneiras:
1) Deve haver arrependimento depois de estarmos em Cristo: pois, embora o pecado em
um crente esteja perdoado, ele não está perfeitamente curado. Ainda há vestígios
de corrupção; e certamente, enquanto houver uma manifestação de pecado, deve
haver alguma manifestação de tristeza.
2) Todo pecado, depois de estarmos em Cristo, é um pecado de ingratidão. Não é um
pecado de um “desconhecido”, mas é o pecado de um cônjuge; e, se algo pode
amolecer e partir o coração, é exatamente essa verdade. Os pecados dos
regenerados ferem o coração de Cristo mais profundamente que os dos outros.
Cristo já não sofreu o suficiente? Você irá ferir aquele a quem Deus já feriu? Vai
oferecer-lhe mais vinagre para beber? Ó, antes “dê vinho àquele que tem um
coração pesado”; console-o com suas lágrimas! Olhe para um Cristo sangrando
com um coração também em sangue.
O segundo tipo de pessoa que o nosso texto denuncia é o HIPÓCRITA, que é um ateu
prático — aquele que diz: “O Senhor não o vê; nem disso faz caso o Deus de Jacó”
(Salmos 94:7). A palavra em hebraico para o hipócrita significa dissimulador. A palavra
em siríaco aponta para uma pessoa que tem diversos rostos (ou, aquele que usa
máscaras). O hipócrita usa uma máscara de santidade. Aquino chama a hipocrisia de
falsificação da virtude. O hipócrita é um farsante, ele finge ser o que não é. Ele
aparenta, mas não é verdadeiramente piedoso. O hipócrita é uma imagem ambulante, um
recipiente podre pintado por fora. Ele é como as uvas pintadas que enganaram os
pássaros vivos; ou as belas maçãs de Sodoma — toque-as, e elas se desfazem em pó.
Em resumo, os hipócritas são como imagens giratórias, que têm de um lado a imagem
de um cordeiro e, do outro, de um leão. Da mesma forma, externamente são santos, mas
internamente são demônios. Os hipócritas podem ser comparados a trombetas que fazem
um grande som, mas por dentro são vazias. Eles realmente acreditam no olhar
onipresente? O hipócrita transforma toda religião em meros rituais externos; ele
caminha com uma lanterna escura, dizendo: “Nenhum olho verá!” Ele tenta enganar a
Deus, assim como a esposa de Jeroboão pensou fazer com o profeta (1 Reis 14.6). Mas
ele tirou sua máscara, “Entre, mulher de Jeroboão”. O hipócrita sabe que Deus tem
olhos onipresentes para contemplar o pecado; ainda assim, ele faz de conta que é
devoto; ele se arrisca a abusar de Deus, só para enganar os homens. O hipócrita se
preocupa mais em fazer um pacto do que em cumpri-lo; e é mais cuidadoso para adotar
a religião do que para permitir que a religião entre nele. Este texto julga o hipócrita e
diz: tudo está exposto, Deus vê nossos truques!
Agora, darei duas características distintivas pelas quais você pode reconhecer um
hipócrita.
Característica 1. Eles são parciais na prática do bem. Eles são zelosos em coisas
menores, mas omissos em obrigações maiores. Como nosso Salvador reclamou em seu
tempo, eles são “²⁴ Guias cegos, que coais o mosquito e engolis o camelo!” (Mateus
23:24). Eles transpiram apenas em algumas partes, mas permanece frio no resto, o que é
um sinal de que seu zelo é desequilibrado. São zelosos contra uma cerimônia, uma
relíquia ou vidro pintado (não que eu defenda que devemos ser), mas ao mesmo tempo
vivem em pecado conhecido, mentindo, imoralidade e extorsão. Assim como os Sumos
Sacerdotes, eles dizem de maneira hipócrita: “Não é lícito deitá-las no cofre das
ofertas, porque é preço de sangue” (Mateus 27:6). A fala deles parece ser consciente e
correta. “Ah, não profanem o tesouro!” Eles dizem. Mas deixe-me fazer a pergunta:
“Por que derramaram aquele sangue? Era sangue inocente”? Eles não aceitarão o preço
do sangue no tesouro, mas nunca hesitam em levar a culpa do sangue para suas almas!
Eles eram zelosos pela pureza do templo, mas eram assassinos do Filho de Deus.
E temos uma escritura paralela a esta em Romanos, que diz “tu, pois, que ensinas a
outrem, não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas que não se deve furtar, furtas? Dizes
que não se deve cometer adultério e o cometes? Abominas os ídolos e lhes roubas os
templos? Tu, que te glorias na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei?” (Romanos
2:21-23) Quem, à primeira vista, não teria considerado esses homens como muito santos
e devotos — homens zelosos contra a idolatria? Mas veja uma raiz de hipocrisia! Eles
eram parcialmente bons, odiavam um pecado, mas não outro! Odiavam a idolatria, mas
não o sacrilégio. Embora fosse um pecado abominável, havia uma lei expressa de Deus
contra isso; no entanto, esses zelotes aparentes não fazem questão de roubar a Deus de
seus dízimos.
E aqui, como em um espelho das Escrituras, podemos ver nossos próprios rostos! Não
temos muitos hoje em dia aparentemente zelosos contra o papismo? Se veem uma cruz
(mesmo que esteja em um brasão de armas), ficam muito ofendidos e entram em uma
espécie de convulsão; mas ao mesmo tempo não tem medo de cometer sacrilégio,
deixando o ministério na pobreza, apagam o fogo no altar de Deus, fecham as portas de
seu templo; isso não é hipocrisia visível? Existem alguns que, talvez, não serão ouvidos
a usar palavreado frívolo, pois não combina com sua santidade (isso seria chamar o
diabo de “pai” em voz alta); mas eles fraudam, difamam e destroem o bom nome do seu
próximo — que é uma forma de assassinato. E se esses homens são santos, há santos tão
bons no inferno!
Característica 2. A segunda característica de um hipócrita é que ele usa a religião
como uma máscara para encobrir seu pecado.
Herodes fingiu adorar Cristo, mas seu zelo não era nada além de malícia, pois na
verdade queria o matar. Assim, frequentemente, maus propósitos se escondem sob boas
pretensões. Jezabel, para disfarçar suas intenções assassinas, proclama um jejum.
Absalão, para encobrir sua traição, finge fazer um voto religioso. Quão astuto é o
coração para ir ao inferno! Judas esconde sua cobiça sob um pretexto de caridade, “Por
que não se vendeu este perfume por trezentos denários e não se deu aos pobres?” (João
12.5). Quão caridoso era Judas, que carregaga e roubava a bolsa de dinheiro do nosso
Senhor! Muitos usam a religião como capa para sua ambição: “Vem comigo e verás o
meu zelo para com o Senhor. E, assim, Jeú o levou no seu carro” (2 Reis 10.16). Não!
Jeú — seu zelo era pelo seu reino! Jeú fez a religião segurar o estribo até que ele
tomasse posse da coroa; aqui havia hipocrisia em dobro.
Por fim, o hipócrita se coloca contra Deus.
Primeiro, ele se opõe a Deus em Sua essência; Deus é substância, o hipócrita é apenas
uma sombra.
Segundo, ele se opõe a Deus em Sua unidade; Deus é um e fez o homem uno no
princípio; mas o hipócrita tornou-se um homem de coração duplo; ele dá a Deus o
dízimo e deixa o resto para aquilo que ama mais.
Terceiro, ele se opõe a Deus em Sua bondade — Deus é bom e nEle não há mistura. O
hipócrita é, portanto, bom em aparência para que possa ser mau em atos. Ele é um diabo
com vestes gloriosas de Samuel. Pilatos quis fazer o mundo acreditar que tinha uma
consciência sensível: ele lava as mãos. Mas ele não poderia dizer como Davi: “Lavarei
minhas mãos em inocência”; caso contrário, ele nunca teria dado seu voto para o
derramamento de sangue inocente.
Deus vê nossas prevaricações. Quão odioso é o hipócrita? Perceba que nós mesmos
não podemos suportar traições em nossa pátria. Portanto, na república, aquele que
envenena outro recebe uma punição maior do que aquele que mata com a espada, porque
o evenenador oferece a morte hipocritamente sob um pretexto de amizade. “Jesus,
porém, lhe disse: Judas, com um beijo trais o Filho do Homem?” (Lucas 22:48).
Podemos tão bem trair Cristo com uma lágrima, assim como Judas o fez com um beijo.
Você pode ver o grande desagrado de Deus por este pecado nas Escrituras quando ele
proíbe seu povo, na antiga lei, que revela-nos o seu caráter: “¹⁶ Mas ao ímpio diz Deus:
“De que te serve repetires os meus preceitos e teres nos lábios a minha aliança, uma vez
que aborreces a disciplina e rejeitas as minhas palavras?” (Salmos 50:16,17). Hipócrita!
Qual a sua intenção em se envolver com religião, em fingir santidade? Você torna a
religião odiosa e a oferta a Deus abominável. Ouça essa sentença terrível: “este povo se
aproxima de mim e com a sua boca e com os seus lábios me honra, mas o seu coração
está longe de mim” (Isaías 29:13). Qual a consequência dessa hipocrisia? “A sabedoria
dos seus sábios perecerá, e a prudência dos seus prudentes se esconderá” (Isaías 29:14).
Eles são hipócritas!
Em apenas um capítulo, Cristo pronuncia sete ais contra este pecado da hipocrisia!
“Ai de vós!” (Mateus 23:13-29). Ser uma nação hipócrita e ser a geração da ira de Deus
são considerados sinônimos nas escrituras (Isaías 10.6). E quando o Espírito Santo quer
aumentar e agravar os tormentos do inferno, ele os apresentacomo o lugar dos
hipócritas, como se o inferno fosse preparado propositadamente para o hipócrita se
alojar.

[1]
Em 1643, o Parlamento procurou o apoio do exército escocês contra os realistas. Os escoceses concordaram sob a
condição de reforma da Igreja, levando à Assembleia de Westminster e ao Pacto Solene de 1643. O autor se refere à este evento,
ao descumprimento de muitos parlamentares e pastores aos termos do pacto.
USO DA DOUTRINA (2): A VIDA DO CRENTE DIANTE DE DEUS

Uso da Doutrina (2)


A vida do crente diante de Deus
Uso 3. Trago uma palavra de Exortação. Se os segredos de nossos corações são
revelados e patentes, caminhem sob o olhar de Deus. Aquela expressão de Hagar deveria
ser o lema de um cristão: “Então, ela invocou o nome do Senhor, que lhe falava: Tu és
Deus que vê; pois disse ela: Não olhei eu neste lugar para aquele que me vê?” (Gênesis
16:13). E a visão de Davi deveria estar sempre em nossos olhos: “O Senhor, tenho-o
sempre à minha presença” (Salmos 16:8). Alguns colocam sempre suas bolsas de
dinheiro diante deles, outros colocam o medo dos homens sempre diante deles; mas um
cristão sábio colocará Deus, o julgamento e a eternidade sempre diante dele. Se de fato
o olhar de Deus estivesse por algum momento longe de nós, poderíamos até tomar mais
liberdades pecaminosas; mas se todas as coisas estão patentes e expostas ao Seu olhar,
não podemos pecar senão na presença de nosso Juiz. Ó, então, reverencie os olhos de
Deus.
Note primeiro, o olho de Deus deve ser um freio para nos impedir de pecar: “Como
poderei fazer isso e pecar contra Deus?” Sêneca dá a seu amigo Lucílio este conselho:
“Quando você estiver fazendo algo, imagine que alguns dos nobres romanos estão
observando você. Tenho certeza de que você não fará nada desonroso”. O olho de Deus
deve estar sempre em nossos olhos; isso seria como um antídoto contra o pecado. E não
é suficiente podar o pecado, ou seja, cortar os atos externos; devemos matar a raiz.
Crucificar os pecados prediletos! Não deixe seu coração ponderar sobre o pecado. Além
disso, que a onisciência de Deus o desanime de esconder o pecado. Quem esconderia um
traidor? Hoje ele se afaga em seu peito, em breve ele sugará seu sangue. Os homens
pensam que pecar no escuro, escondendo seus pecados sob um teto, fará com que
nenhum olho os veja (como aqueles que têm problemas de visão acham que o céu está
sempre nublado; a falha não está no céu, mas em seus olhos). Assim, quando o príncipe
deste mundo cega os olhos dos homens, por causa da sua visão escura, eles pensam que
também está escuro fora, e que Deus não pode ver. Mas lembre-se, todas as coisas estão
patentes e abertas a Deus! Não tente esconder o pecado - confesse, confesse! A
confissão faz pela alma o que o cirurgião faz pelo corpo; ela abre uma veia espiritual e
deixa sair o sangue ruim. A única maneira de fazer Deus não “ver” o pecado é vê-lo nós
mesmos; não com olhos secos, mas marcando cada pecado com uma lágrima!
Note, segundo, que o olho de Deus é um estímulo à virtude: você é zeloso por Deus?
Você se sacrificaria pela causa da religião? Deus vê! Certamente não perderá nada. Aqui
na terra você terá a promessa, penhorada pelo Espírito Santo, e quando Ele vier acertar
suas contas, você será pago com juros. Quanto mais alguém sacrificou por Deus, mais
alegrias e glórias ainda estão por vir.
Note, terceiro, que o olho de Deus é um estímulo ao dever. Ó, irmão cristão, que vive
a religião em particular, que separa horas para Deus (um sinal de que Ele o separou em
santidade), que derrama muitas lágrimas em seu quarto: o mundo não percebe. Mas
lembre-se, o olho de Deus está sobre você, suas orações estão registradas, suas lágrimas
estão guardadas, “e aquele que vê em segredo recompensará você abertamente”. Como
isso deveria adicionar asas à oração e óleo à chama de nossa devoção? Tomemos
cuidado para não diminuir nosso ritmo na prática da religião, para que nossas lágrimas
não comecem a congelar. Se a negligência não nos tirar a coroa, certamente ela pode
diminuir a nossa coroa.
Uso 4. Aqui também há um consolo para os santos de Deus (nestes tempos tristes), em
meio a todas as tribulações que enfrentam. Deixe o mundo franzir a testa, deixe os
homens perseguirem e caluniarem (e talvez, pensem que nisso estão fazendo um serviço
a Deus), nisto está a seiva da videira, um consolo poderosíssimo: “todas as coisas estão
descobertas e patentes aos olhos daquele a quem temos de prestar contas”. Nenhum
ímpio pode fazer coisa alguma sem que o nosso Pai não veja! Eles ferem e depois
derramam vinagre na ferida; Deus registra sua crueldade, ele vê quais armas eles usam e
quão forte eles batem. Aquele que tem olhos para ver, também tem mãos para punir!
“Disse ainda o Senhor: Certamente, vi a aflição do meu povo . . . e ouvi o seu clamor
por causa dos seus exatores. Conheço-lhe o sofrimento” (Êxodo 3:7). Ele não apenas
olha com um olhar de providência, mas com um olhar de piedade.
Essa verdade foi um grande conforto para Davi em sua aflição e um escudo dourado
nas mãos de sua fé: “Na tua presença, Senhor, estão os meus desejos todos e a minha
ansiedade não te é oculta” (Salmos 38:6). Quando eu choro, Cristo chora nas minhas
lágrimas; quando estou ferido, ele sangra nas minhas feridas. Há dois sangues que
clamarão: o sangue das almas, quando são negligenciadas ou envenenadas, e o sangue
dos santos. Não me refiro a santos sem santidade (ou, santos nominais) mas àqueles que
têm Cristo gravado em seus corações e a palavra reproduzida em suas vidas! É perigoso
mexer com o sangue deles; se alguém derrama o sangue de um santo, derrama também o
sangue de Cristo, pois os santos são membros do Corpo de Jesus: “Em toda a angústia
deles (do povo), foi ele angustiado” (Isaías 63:9).
O povo de Deus é precioso para ele. Há sangue real correndo em suas almas, eles são
a sua jóia (Malaquías 3:1) e o coração de Cristo está sempre movido para os proteger;
Ele é ferido de amor por seus santos. “Assim diz o Senhor dos Exércitos: ‘Tenho grande
amor por Sião. É um amor tão grande que me leva à indignação contra os seus
inimigos’” (Zacarias 8:2, NAA). Sabemos que o ciúmes vem do amor, e o zelo que Ele
tem pelo seu povo também nasce do seu grande amor. Ó, então, santos de Deus,
confortem-se! Independentemente de como são tratados, Deus vê! Êxodo 14.24. “Na
vigília da manhã, o Senhor, na coluna de fogo e de nuvem, viu o acampamento dos
egípcios e alvorotou o acampamento dos egípcios” (Êxodo 14:24). Lembre-se, Deus tem
um olho na nuvem!
Uso 5. Tenha cuidado. Considerando Deus como sendo tão infinito em sabedoria, se
as coisas vão mal na igreja ou no estado, cuidado para não acusar Deus de tolice. Não o
censure, mas O admire em seu plano. Tudo está patente e descoberto diante dele! Não há
nada que se mova no mundo sem que Deus tenha um propósito nisso, para o bem de sua
igreja! Ele realiza seus desígnios através dos desígnios dos homens: tudo é desvendado
aos olhos da providência. Deus nunca está perplexo: ele sabe quando e como livrar o
seu povo.
Deus sabe quando entregar.
Primeiro, vemos que Deus sabe quando entregar. Davi diz: “Nas tuas mãos, estão os
meus dias; livra-me das mãos dos meus inimigos e dos meus perseguidores” (Salmo
31.15). Se nossos dias estivessem em nossas próprias mãos, teríamos nos livrado dos
perseguidores cedo demais; se os nossos dias estivessem nas mãos de nossos inimigos,
talvez nem seríamos libertos. Mas meus dias estão nas mãos de Deus; e a mão de Deus é
sempre a melhor. Tudo é belo em sua estação devida: quando a misericórdia estiver
madura, a teremos. É verdade que, atualmente, estamos entre o martelo e a bigorna:
podemos temer que vejamos a morte da religião antes do nascimento da reforma. Mas
não abandonem sua âncora; Deus enxerga o tempo certo em que a misericórdia será
oportuna. Quando seu povo está suficientemente humilde, e o inimigo suficientemente
elevado, geralmente aparece a estrela da manhã da igreja! Deixe Deus à sua vontade,
fazer tudo no seu tempo.
Deus sabe como entregar.
“Todas as coisas estão descobertas e patentes diante de Deus”. Deus liberta, às vezes,
da maneira que pensamos que ele nos destruiria. Pode parecer estranho, mas quando ele
queria libertar Israel, ele agitou os corações dos egípcios para odiá-los ainda mais. Esse
poderia ser um caminho provável? No entanto, por esse meio, a libertação foi
inaugurada. Assim, agora, muitos corações são incitados a odiar o povo de Deus, a odiar
o pacto; mas Deus pode fazer uso de seu poder e ira, assim como fez uma vez com a
malícia do sumo sacerdote e a traição de Judas, para nossa maior vantagem! Não havia
maneira de Jonas ser salvo, a não ser que antes ele fosse engolido por um peixe; ainda,
ele navega com segurança até a terra dentro da barriga do peixe. Deus traz seu povo
m u i t a s vezes à costa sobre os destroços do navio. Deus pode fazer os inimigos
realizarem seu trabalho; ele às vezes joga seu próprio jogo com as mãos dos inimigos.
Bem, então, podemos exclamar com o apóstolo: “Ó profundidade das riquezas, tanto
da sabedoria quanto do conhecimento de Deus!” Ele não se aconselha conosco, nem nos
permite saber de todas as coisas. Os seus caminhos são profundos demais. Se não
podemos ver uma razão para a sua provisão; a culpa é da nossa própria superficialidade,
e não da profundidade dos seus conselhos.
Eis uma palavra de conselho, nos mostrando a quem recorrer em todos os nossos
apertos e dúvidas. Vá até Deus! Todas as coisas estão patentes ao seu olhar onisciente,
ele é o oráculo da sabedoria: “Se alguém necessita de sabedoria, peça a Deus” (Tiago
1.5). Estamos aqui no escuro; ore com Davi: Senhor, ascende a luz para que eu possa
ver! Derrame alguns raios de conhecimento divino em minha alma!
Peça a Deus que, assim como as coisas estão desveladas e patentes diante de Seus
olhos, elas também possam estar assim aos nossos olhos, a fim de que possamos ver a
pecaminosidade do pecado e a beleza da santidade.
Os tempos são maus: oremos a Deus para que ele seja nosso piloto para nos guiar; que
ele nos ensine a caminhar com zelo em relação a nossa vida, com piedade em relação a
ele, com prudência em relação aos outros; que ele nos dê as graças de uma verdadeira
comunhão com Ele, que adornam e enfeitam nossa profissão de fé; para que, guiando-
nos por seus conselhos, possamos, no final, ser recebidos na glória!

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