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DISCURSOS DA EDUCAÇÃO ESTATÍSTICA: PRÁTICAS DE

LETRAMENTO E O DIRECIONAMENTO DE CURRÍCULOS DE


MATEMÁTICA

CRISTIANO DA SILVA DOS ANJOS


Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)
cristiano.anjos@univasf.edu.br

MARCIO ANTONIO DA SILVA


Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)
marcio.silva@ufms.br

RESUMO

Este estudo apresenta um recorte de uma investigação de doutorado que tem


por objetivo pesquisar como discursos da Educação Estatística direcionam
currículos de matemática no contexto escolar brasileiro. Utilizamos o
conceito de discurso e governamentalidade de Foucault, seguindo uma
perspectiva política de investigação de pesquisas, para mostrar como práticas
científicas em educação matemática atuam discursivamente, endereçando
valores, moralidades e comportamentos desejáveis aos estudantes para torná-
los sujeitos educados estatisticamente. O material empírico agregou um
conjunto de 34 artigos vinculados à movimentos da educação estatística:
artigos do VII Seminário Internacional de Pesquisa em Educação Matemática
(2018) e de revistas como Ensino de Ciências e Matemática (2018), Vidya
(2016) e Educação Matemática Pesquisa (2016). Argumentamos que a
significação de letramento estatístico não só direciona tipos de raciocínios e
conhecimentos estatísticos na produção de currículos, mas também possibilita
que racionalidades políticas do neoliberalismo atuem na regulação das ações
dos estudantes para torná-los cidadãos críticos, letrados estatisticamente:
consumidores prudentes e empreendedores de si que tomam “boas” decisões
ao enfrentar os desafios da vida.

Palavras-chave: Pesquisa em Educação Estatística; Educação Matemática;


Currículo de Matemática; Governamentalidade; Neoliberalismo.

1. INTRODUÇÃO

Probabilidade e estatística se amontoam sobre nós. As estatísticas de nossos


prazeres e nossos vícios são tabulados implacavelmente. Esportes, sexo,
bebida, drogas, viagens, sono, amigos, nada escapa. [...] Nossos medos
públicos são infinitamente debatidos em termos de probabilidades: chances de
colapsos, cânceres, assaltos, terremotos, invernos nucleares, AIDS, efeito
estuda, o que vem depois? (Hacking, 1990, p.4 apud Beer, 2016, p. 52).
As ideias de Ian Hacking são retratadas e atualizadas na obra Metric Power de
autoria do sociólogo David Beer (2016), quando apresenta as medidas estatísticas
e a probabilidade como umas das matrizes centrais na organização da sociedade
moderna. Essa tendência em medir nossas ações, controlar o acaso e o risco de
tudo e de todos parece reconfigura-se com maior intensidade com as mídias
sociais associadas às tecnologias da informação e comunicação da nossa cultura
contemporânea. Nessa direção, Beer (2016) faz um apelo para a necessidade de
nos posicionarmos politicamente frente ao grande boom da produção de dados
(estatísticos e probabilísticos) em torno das questões sociais e como seus efeitos
de poder operam sobre nós, modelando e governando nossas vidas.
No artigo “How should we do the history of statistics?”, Hacking (1991)
apresenta as estatísticas ainda em seu estágio embrionário no século XIX como
uma ciência moral não apenas produzindo dados estatísticos, mas como uma
tecnologia de poder do estado moderno que trouxe a existência as leis e fatos
sociais como desvios, crimes, epidemias, doenças, condenações jurídicas,
crescimento populacional, mortalidades, prostituição, fatos biológicos, cálculos de
riscos, etc. Atualmente, o ditado do físico Lord Kelvin citado por Hacking (1991,
p. 186) parece ecoar ainda com mais intensidade: "quando você pode medir o que
está falando, você sabe algo sobre isso; quando você não pode mensurá-lo. . . seu
conhecimento é de um tipo frágil e insatisfatório”. Essas significações históricas
certamente sofreram muitas transformações até os dias atuais, no entanto, deixam
evidências do caráter de poder vinculado as estatísticas na produção de uma moral
sobre a maneira das pessoas pensar e se comportar. Ao deslocar nossa atenção
para a educação e mais pontualmente para o currículo escolar brasileiro, torna-se
importante questionar os efeitos de poder das dispersões de ideias estatísticas na
atualidade.
Podemos dizer que práticas de educação estatística se amontaram sobre nós!
Desde a virada do século XX para o XXI que movimentos de educação estatística
em nível nacional (Lopes, Coutinho, Almouldoud, 2010; Santos, 2015) e
internacional (Zieffler, Garfield & Fry, 2018) tem direcionado estilos de
raciocínios e conhecimentos no currículo de matemática, de modo que reformas
curriculares privilegiem efetivas práticas de ensino e aprendizagem em estatística
para a formação dos professores que ensinam matemática e dos estudantes.
Na atualidade é possível enunciar um vasto campo de possibilidades que
agregam significados para os movimentos da educação estatística (Porciúncula,
Samá, Rocha & Carvalho, 2018), tais como: organização e implementação de
conhecimentos estatísticos e probabilísticos em currículos; aquisição de ideias
estatísticas por estudantes; institucionalização de grupos de pesquisa; análises
sobre o uso de materiais curriculares, narrativas evidenciando experiências
docentes; reflexões teóricas e metodológicas para o ensino e aprendizagem; e uso
de tecnologias (Lopes, 2014; Samá & Porciúncula, 2015; Lopes & Mendonça,
2017).
Pensamos ser importante indagar não só as transformações e mudanças obtidas
por esses movimentos e suas implicações no contexto social, mas principalmente
os efeitos de poder que esse discurso opera no campo hegemônico da educação
matemática e, consequentemente, nas determinações do currículo escolar. Assim,
ao problematizar discursos da pesquisa em educação estatística e como isso tem
produzido formas de objetivação/subjetivação nos indivíduos da educação, o
presente estudo apresenta um recorte do material empírico de uma pesquisa de
doutorado que vem sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em
Educação Matemática, da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS) - Brasil. As teorizações construídas nessa investigação, bem como os
afetos e sensibilidades que nos impulsionam à escrita deste texto, são resultantes
de encontros e composições desenvolvidos no Grupo de Pesquisa Currículo e
Educação Matemática (GPCEM), do qual somos integrantes.
Ao operar o conceito de governamentalidade do filósofo Michel Foucault,
produzimos a escrita em um movimento que desloca a própria investigação
científica para um campo político de problematização (Valero, 2015). Essa
composição leva em conta enunciações de pesquisas publicadas nos anais do VII
Seminário Internacional de Pesquisa em Educação Matemática (Sipem/2018) e
em três revistas brasileiras - Vidya (2016), Educação Matemática Pesquisa (2016)
e Ensino de Ciências e Matemática (2018) que apresentam edições especiais com
o tema “Educação Estatística” ou “Ensino de Probabilidade e Estatística”.
Seguimos, então, abrindo nossos desdobramentos investigativos a partir do
seguinte questionamento: como discursos da pesquisa em educação estatística
direcionam valores, moralidades e comportamentos aos estudantes?
Assim, ao trazer a compreensão de que o discurso da pesquisa em educação
matemática contribui para a criação de formas de vida e de subjetividades (nos
estudantes), nos inspiramos principalmente nas ferramentas teóricas de Michel
Foucault sobre análise do discurso e governamentalidade, bem como estudos
sociopolíticos em educação matemática que nos subsidiam com implicações
políticas sob a prática investigativa de pesquisar as pesquisas (Valero, 2008; Pais
& Valero, 2012). Essa última abordagem tem sido amplamente desenvolvida em
estudos da educação matemática da pesquisadora Paola Valero. Por exemplo, ao
movimentar o conceito foucaultiano de governamentalidade, Valero e Knjnik
(2015) analisaram estudos em Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs)
no campo da educação matemática de modo a examinar como a pesquisa
científica contribui para construção de subjetividades (nos estudantes) seguindo
racionalidades neoliberais e racionalidades científico-tecnológicas da
Modernidade. Já no artigo intitulado “Pesquisar as pesquisas: educação
matemática como política ”, Pais e Valero (2012) adotaram as noções
foucaultianas de análise do discurso e biopolítica ao analisar “sistematicamente
importantes publicações [em educação matemática] que tratavam o que é teoria e
qual o seu papel” (p. 11). Eles concluíram que os discursos da pesquisa “inibem
uma conceituação da educação matemática no campo político” (p. 20), ao centrar
o objeto de estudo em discussões sobre aprendizagem e pela especificidade da
matemática dominante na teoria.
Assim sendo, ao movimentar essa abordagem política de investigação de
pesquisas (investigar as pesquisas), examinamos primeiramente afirmações das
publicações científicas que reportavam modos de ação/formação dos estudantes a
partir de instruções para o desenvolvimento de um tipo de letramento estatístico.
Nossas análises lançam uma crítica sobre os esforços das pesquisas em educação
matemática para avançar as práticas educativas - visando melhorias dos processos
de ensino e aprendizagem de estatística e da formação de professores – na
produção de cidadãos letrados estatisticamente em conformidade com
racionalidades políticas do neoliberalismo.

2. UMA COMPOSIÇÃO COM PESQUISAS EM EDUCAÇÃO


ESTATÍSTICA

Para produzir o material empírico das composições desta pesquisa,


selecionamos prioritariamente artigos científicos publicados pelo Grupo de
Trabalho GT-12 (Educação Estatística) da Sociedade Brasileira de Educação
Matemática (SBEM), uma vez que esta comunidade de pesquisadores confere
uma institucionalização política para as práticas de estatística que devem (ou não)
ser integradas aos currículos de matemática da educação básica. As práticas
discursivas do GT-12 se materializam em diversos movimentos científicos
nacionais e internacionais (eventos científicos, publicações de anais, livros e
edições temáticas em revistas, organização de mesa redonda em eventos, fóruns,
etc) associados ao campo hegemônico da educação matemática e, assim,
“engendram as possibilidades de legitimação de pesquisas e reconhecimento do
que pode ou não ser feito” (Silva & Miarka, 2017, p. 757) na formação estatística
de professores que ensinam matemática e dos estudantes dos diversos níveis de
ensino.
Dentro desse contexto, consideramos os relatórios do GT-12 publicados pela
SBEM nas edições do evento Seminário Internacional de Pesquisa em Educação
Matemática (SIPEM) o que possibilitou a seleção de artigos científicos publicados
por educadores matemáticos com maior representatividade política na área da
educação estatística, ou seja, aqueles que percorreram historicamente a circulação
científica do discurso da educação estatística no contexto do currículo escolar
brasileiro. A partir disso, foi possível selecionar um conjunto de 34 publicações
que expressavam enunciações da educação estatística, direcionadas à formação
dos estudantes da educação básica. Isso incluiu anais da 7ª edição do Seminário
Internacional de Pesquisa em Educação Matemática (Sipem/2018) e publicações
de três revistas brasileiras que apresentaram edições especiais com o tema
“Educação Estatística” ou “Ensino de Probabilidade e Estatística”, são elas: Vidya
- Editores: Leivas, Porciúncula & Samá (2016); Revista Educação Matemática
Pesquisa (Emp) - Editores: Coutinho & Samá (2016) e Revista Ensino de Ciências
e Matemática (Rencima) - Editores: Lopes, Souza, Souza & Mendonça (2018).
Ao adotar uma compreensão foucaultiana de que os autores dos textos não são
a origem individual e autônoma de uma prática discursiva (Veiga-Neto, 2014, p.
91), realizamos a leitura monumental dos artigos, destacando afirmações
(enunciações) e termos direcionados aos sujeitos (estudantes) desejáveis da
educação estatística. Nesse sentido, não tocamos no conteúdo interno das
pesquisas, nem avaliamos as pessoas concretas que os escreveram (Valero &
Knijnik, 2015). Assim nosso interesse foi tomar o texto “mais pelos contatos de
superfície que ele mantém com aquilo que o cerca, de modo a conseguirmos
mapear o regime de verdade que o acolhe e que, ao mesmo tempo, ele sustenta,
reforça, justifica e dá vida.” (Veiga-Neto, 2011, p. 105). Portanto, ao considerar as
afirmações dos artigos em sua exterioridade, citamos as enunciações fazendo
referência ao nome da revista (ou evento), a ordem de publicação (do site de
origem) e o número da página, evitando, assim, tratá-las como textos daquilo que
os autores escreveram. Para tal, ao longo das análises, apresentamos os excertos
de análise codificados conforme descrições da tabela a seguir:

Tabela 1. Material empírico de análise

Anais/Revistas Autores – códigos Número


de
artigos
(Sipem/2018) Oliveria Junior, Souza e Barbosa (2018) - I; 10
Schreiber e Porciúncula (2018) - III; Xamã (2018) -
V; Estevam e Bósnia (2018) - VII; Giordano e
Araújo (2018) - VIII; Novaes e Bangalô (2018) - X;
Scarlassari e Lopes (2018) - XI; Buehirng e Grando
(2018) - XVI; Valasque, Barbosa e Silva (2018) -
XVII; Pietropaolo, Garcia Silva e Amorim (2018) -
XVIII;
(Rencima/ Estevam, Cyrino e Oliveira (2018) – III; Oliveira 6
2018) Junior e Ciabotti (2018) – IV; Campos e Wodewotzki
(2018) – VI; Samá (2018) - VIII; Conti (2018);
Cazorla, Silva e Santana (2018) – XXI
(Emp/2016) Conti (2016) – II; Barberino e Magalhães (2016) – 10
VI; Muller e Nunes (2016) – VIII; Oliveira e Cordani
(2016) – IX; Estevam e Cyrino (2016) - X; Pereira e
Souza (2016) - XI; Silva e Samá (2016) -XVI;
Oliveira Junior (2016)- XVII; Lopes e Souza (2016) -
XVIII; Souza e Porciúncula (2016) – XIX
(Vidya/2016) Santos e Fiorentini (2016) - I; Batista, Rute e Borba 8
(2016) - III; Coutinho (2016) - IV; Lopes e
Mendonça (2016) - VI; Barberino e Magalhães
(2016) - X; Souza (2016) - XI; Barbosa, Valasque e
Silva (2016) - XII; Moura e Sama (2016) – XX;
Total de artigos analisados: 34

Em um primeiro momento da leitura dos textos destacamos sentenças (e


termos) que nos apresentavam relevantes conforme a questão de pesquisa. Depois
disso, recorremos às ferramentas de análise qualitativa de dados do software
“atlas.ti 8” (<https://atlasti.com/product/v8-windows/>) como a
“autocodificação” de modo a identificar todas as sentenças que expressavam a
repetição e o aparecimento de termos já destacados inicialmente, tais como:
letramento estatístico, raciocínio estatístico, tomada de decisões, críticos,
cidadãos, projetos, realidade, currículo, teoria, competências, habilidades,
raciocínios, pensamentos, alunos, etc. Em cada termo consideramos suas possíveis
variações. Já com a ferramenta “definir operadores (união/interseção)” foi
possível identificar interseções entre todos os códigos criados no software, dentre
os quais destacamos as relações entre os seguintes termos: letramento estatístico,
cidadãos, críticos, tomada de decisão, realidade e projetos.
Antes de avançar é importante ressaltar como interpretamos o(s) campo(s) da
educação estatística ao direcionar nosso olhar para os artigos analisados (tabela 1).
Na verdade, não nos preocupamos com questões essencialistas como “o que é
educação estatística?”. Ao operar o conceito de governamentalidade,
questionamos a metapragmática do que significa fazer educação estatística. Sem
ser exaustivo, podemos citar uma pesquisa publicada na revista Emp (2016) que
desenvolveu uma proposta de ensino e aprendizagem na perspectiva de projetos
visando o desenvolvimento do letramento estatístico de alunos do ensino médio
(Emp/2018, VI), ou, ainda, um estudo da revista Vidya (2016) que abordou
aspectos filosóficos e psicológicos relacionados a conceitos probabilístiscos e
estatísticos de modo a fornecer subsídios para a construção de currículos de
matemática da educação básica (Vidya/2016, VI). Ao fazer isso, essas pesquisas
produzem visibilidades para um discurso sobre como é a educação estatística ou
sobre como suas práticas deveriam ser. Nosso interesse, assim, repousa nos efeitos
de poder desse discurso, ou seja, o exercício de poder não só de narrar, descrever
e explicar como funcionam, por exemplo, os conhecimentos estatísticos ensinados
pelos professores e aprendidos pelos estudantes da educação básica, mas
principalmente o poder de endereçar e homogenizar tipos específicos de formação
estatística no currículo de matemática. Isso nos leva compor a pesquisa na direção
de uma teorização de currículo (Lopes & Macedo, 2011), ao questionar sobretudo
que tipo de sujeito (estudante) é produzido pela narrativa dessas pesquisas
(selecionadas) em educação estatística. Assim sendo, de modo geral, nosso
interesse foca os modos como tais narrativas/discursos endereçam/direcionam
currículos de matemática da educação básica.
Para a construção da análise, adotamos uma compreensão política e
metodológica de pesquisar as pesquisas (researching research) seguindo uma
perspectiva sociopolítica em educação matemática centrada em estudos da
pesquisadora Paola Valero que analisam os efeitos de poder da pesquisa científica
no campo da educação matemática (Valero, 2008; Pais & Valero, 2012; Valero &
Knjnik, 2015). Investigar as pesquisas é um posicionamento que nos fornece um
olhar político e, ao mesmo tempo, metodológico, uma vez que potencializa o
estudo dos discursos da pesquisa nos ajudando a compreender que a investigação
científica “é uma das práticas de conhecimento que gera tanto as linguagens para
nomear objetos de estudo, quanto as formas de pensar que são consideradas
verdadeiras sobre tais objetos” (Valero & García, 2008, p. 493, tradução nossa).
Segundo Pais e Valero (2012)
A pesquisa em educação matemática não é uma atividade inocente que produz
um diagnóstico do estado das práticas da educação matemática, ou que propõe
soluções para os problemas dos praticantes, em vez disso, é um campo
participante ativo em moldar, discursivamente, as possibilidades de ver e
inventar a prática. A pesquisa produz linguagens e ferramentas, que moldam o
que vemos e dizemos sobre o mesmo mundo da educação matemática (p. 11).
Essa abordagem vai ao encontro dos nossos procedimentos teórico-
metodológicos construídos sob a perspectiva análise do discurso e
governamentalidade, segundo Michel Foucault. Nessa direção consideramos que
os discursos científicos da educação matemática “inventam as coisas sobre as
quais falam” (Costa, 2010, p. 142), ou seja, “ele define e produz os objetos do
nosso conhecimento, governa a forma com que o assunto pode ser
significativamente fala e debatido, e também influencia como ideias são postas em
práticas e usadas para regular a conduta dos outros” (Hall, 2016, p.80).
Ao analisar como as relações de poder funcionam dentro das práticas de
pesquisa, mobilizamos em nossas análises o conceito foucaultiano de
governamentalidade, para compreender as relações entre as técnicas de governo
(da pesquisa) e a constituição de sujeitos (estudantes) da educação estatística.
Direcionados pelas ideias de Valero e Knjnik (2015), entendemos que ao
pesquisar as pesquisas dentro de uma perspectiva de governamentalidade,
podemos supor que a produção científica em educação matemática é parte de
um dispositivo que conduz a conduta não apenas dos pesquisadores, mas
também de todos os outros que fazem parte das práticas de educação
matemática. As tecnologias inventadas pela pesquisa em educação matemática
são mais facilmente aceitas e, portanto, mais eficazes na condução de
condutas, por causa de sua legitimação social como perito, conhecimento
científico. As tecnologias da pesquisa em educação matemática submetem os
sujeitos envolvidos a racionalidades políticas que, em diferentes locais da vida
social, governam sua conduta de maneiras particulares (Valero & Knjnik,
2015, p.35, tradução nossa).
Seguindo as noções de Foucault (2008), o conceito de governamentalidade em
nossa investigação, é usado para além das questões que perpassam a gestão pelo
Estado ou administrações educacionais, aqui o governo refere-se a problemas de
autocontrole, condução da própria conduta, orientação dos indivíduos (Lemke,
2017), ou, ainda, poderíamos dizer que estamos interessados em como as práticas
da pesquisa atuam na regulação da conduta dos estudantes “pela aplicação mais
ou menos racional dos meios técnicos apropriados” (Hindess, 1996, p. 106 apud
Valero & Knjnik, 2015, p. 35).
Ao tomar esse conceito, em concordância com Valero e Knjnik (2015)
consideramos as práticas científicas em educação matemática que analisamos
como discurso histórico e socialmente produzido, que se dá em diferentes esferas
da vida social – “através de políticas públicas educacionais, currículos escolares,
livros didáticos, publicações de pesquisa, prática de sala de aula, avaliações e
assim por diante” - “interagindo umas com as outras na produção das declarações
e verdades relacionadas que moldam esse discurso” (Valero & Knjnik, p. 35).
A partir das enunciações das pesquisas, buscamos descrever algumas
regularidades desses discursos ao extrair um enunciado que em suas condições de
possibilidades permitem as práticas de pesquisa construírem uma narrativa sobre
como deve ser a formação dos estudantes a partir de uma rede conceitual da
educação estatística.
Desse modo, abrimos o caminho de nossas análises entendendo o discurso da
pesquisa científica como uma “prática regulamentada dando conta de um certo
número de enunciados” (Fischer, 2001, p. 201) que mantêm relações entre si, bem
como com uma diversidade de campos do saber. Construímos, então, um
enunciado, inspirados nas discussões do GPCEM, onde consideramos tal prática
semelhante “ao trabalho de um jornalista ao elaborar a manchete de alguma
notícia. O enunciado, assim como a manchete, deve ser claro, expressar de
maneira sintética as regularidades e os aspectos mais importantes que foram
encontrados nas análises” (Silva, 2019). Entendemos que um enunciado funciona
como uma parte consubstancial do discurso, mas não como uma unidade ou
categoria fixa, nem mesmo reduzido a um conjunto de signos e significados, uma
vez que ele se encontra na transversalidade de frases, proposições e atos de
linguagem (Fischer, 2001).
Nessa direção, nos tópicos a seguir, buscamos reportar brevemente como as
pesquisas produzem uma racionalidade sobre letramento estatístico em um
currículo de matemática, e depois, tentamos mostrar como as tecnologias
inventadas pela pesquisa atuam produzindo valores e moralidades aos estudantes a
partir de uma heterogeneidade de raciocínios. Para tal, examinamos como as
práticas da educação estatística recorrem a uma racionalidade política neoliberal
na produção de subjetividades dos estudantes.
3. LETRAMENTO ESTATÍSTICO E O DIRECIONAMENTO DE
CURRÍCULOS DE MATEMÁTICA

3.1 CIDADÃOS LETRADOS ESTATISTICAMENTE: INSTRUÇÃO DE


UM CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO ESTATÍSTICA

Entendemos as diferentes manifestações da pesquisa científica da educação


matemática como práticas discursivas, ou seja, como práticas de produção de
significados e de atribuição de sentidos para o “real” das coisas que estamos
denominando de currículo de educação estatística: um campo discursivo de
possibilidades e restrições que “constrói a realidade, nos governa, constrange
nosso comportamento, projeta nossa identidade, tudo isso produzindo” (Lopes &
Macedo, 2011, p. 41) significados contingentes para aquilo que chamamos de
conceitos estatísticos, ensino, aprendizagem, estudante, professor, conhecimentos,
raciocínios estatísticos, etc. De modo similar, é assim que interpretamos um
currículo de matemática no contexto escolar, no entanto, nosso interesse foca as
linhas de forças das pesquisas acadêmicas, uma vez que elas fazem parte das lutas
pelos diferentes significados que conferimos ao mundo (Lopes & Macedo, 2011,
p.93). Assim, entende-se aqui o discurso da pesquisa não como uma parte do
currículo, mas como o próprio discurso curricular, como uma produção cultural,
uma produção de significados.
Ao nos aproximarmos das significações produzidas nas enunciações dos
pesquisadores, notamos que as relações entre as conceituações de letramento
estatístico e a formação de um estudante-cidadão-crítico torna-se uma discussão
consensual, e aparecem, principalmente, no emaranhado de invenções e de
conceitos científicos que organizam, validam e orientam como os estudantes
devem estabelecer relações com saberes estatísticos escolares e como isso
empoderam/capacitam/habilitam no contexto pessoal, profissional e da vida social
de modo amplo.
Assim, uma das instruções desse currículo é o direcionamento de uma
premissa sobre letramento estatístico, a partir do qual torna possível o
funcionamento de uma variedade de quadros teóricos e de experimentações
empíricas (envolvendo contextos de ensino e aprendizagem, aplicação de
metodologias como abordagem de projetos, uso de materiais didáticos,
recomendações curriculares, etc) que indiretamente estruturam e moldam um
campo de ações possíveis dos sujeitos desejados em um currículo da educação
estatística. Sem a intenção de esgotar os temas enunciados, podemos citar os
seguintes: representações e significados para os saberes estatísticos que devem ser
apreendidos na escola (gráficos, tabelas, medidas, índices, modelos e técnicas
estatísticas, etc), aspectos teóricos sobre a cognição (aprendizagens articuladas à
estilos de raciocínios estatísticos e matemáticos), recomendações curriculares
nacionais, entrelaçamentos entre enunciados de diferentes campos do saber (como
da Educação, Pedagogia, Psicologia, Sociologia, Matemática, Estatística e
Neurociência) e assim por diante.
Com exceção das divergências que podem haver entre pressupostos teórico-
metodológicos das pesquisas, parece não haver discordância entre eles quando
fazem uma chamada para que estudantes (isso envolve não somente a criança,
mas todos os indivíduos) se tornem cidadãos letrados estatisticamente. A chamada
é para todos e, ao mesmo tempo, para que cada um aprenda (ou tenha o desejo de
aprender) a conduzir a si próprio e a outros! Vejamos como isso aparece nas
enunciações das pesquisas:

Tabela 2. Letramento estatístico na formação de cidadãos-críticos

[…] Gal (2002, p. 1) considera o letramento estatístico como “uma habilidade-


chave esperada de cidadãos em sociedades sobrecarregadas de informação,
frequentemente vista como um resultado esperado da escolaridade e como
componente necessário do letramento e da numeracia de adultos”. O autor
pondera, também, que o letramento estatístico apresenta dois componentes
inter-relacionados: “(a) Habilidade de interpretar criticamente e avaliar a
informação estatística; os argumentos relativos aos dados; ou os fenômenos
estocásticos que se encontrarem em contextos diversos; e, quando for de
relevância, (b) a capacidade de discutir ou comunicar suas reações frente a tais
informações estatísticas, assim como o entendimento do significado da
informação; suas opiniões sobre as implicações dessa informação; ou seus
vínculos com respeito à aceitabilidade das conclusões dadas” (Gal, 2002, p. 2-3,
grifos do autor). (Rencima/2018, XVI, p. 268, grifo nosso)
Para Batanero (2013), o termo “letramento estatístico” tem surgido
espontaneamente entre os estatísticos e educadores estatísticos para destacar o
que é feito na Estatística, que é agora considerada como parte da herança
cultural necessária para uma educação cidadã, pensando em formar os
estudantes para uma vida plena. (Rencima/2018, XVI, p. 268, aspas do autor,
grifo nosso):
Batanero e Godino (2005) também consideram que o letramento estatístico é de
suma importância e destacam que os próprios estatísticos defendem a Educação
Estatística a todos os indivíduos, o que também vem ganhando apoio mais
intenso dos educadores matemáticos. Esses pesquisadores defendem uma
inserção cada vez maior da Estatística nos currículos de Matemática das
escolas, já a partir dos anos iniciais. (Sipem/2018, XIII, p. 3, grifo nosso)
[...] Gal (2005) assume que o letramento estatístico está intimamente
relacionado à competência que o cidadão deve desenvolver de modo a avaliar e
interpretar criticamente informações estatísticas. Segundo esse autor, para que
um cidadão possa ser considerado estatisticamente letrado ele deve ter uma
base de conhecimentos que o possibilite a organizar e a comunicar de forma
eficiente as informações coletadas em diferentes contextos e argumentar sobre a
aceitação das conclusões fornecidas. Para ele, o “letramento estatístico [...] é
necessário para os adultos estarem plenamente conscientes das tendências e
fenômenos de importância social e pessoal” (GAL, 2005, p.49). (Sipem/2018,
XIII, p. 3, grifo nosso):
Para o exercício pleno da cidadania os autores sublinham a necessidade de que:
‘o cidadão de hoje seja estatisticamente letrado, para que possa não apenas
compreender o noticiário divulgado nas mais diversas mídias, mas, também, se
expressar empregando corretamente termos e noções estatísticas, relacionando-
as sempre que necessário para constituir uma análise eficiente e eficaz.’
(Coutinho & Souza, 2015, p. 121). (Emp/2016, XI , p. 1321).
[...] a presença da Estatística na Educação Básica é fundamental. Ela deve ter
como principal objetivo o letramento estatístico, a fim de que os alunos se
formem melhores leitores e críticos de informações, o que é algo essencial para
a formação de um cidadão crítico e atuante, e consequentemente para a
formação de uma sociedade mais justa. Note que entendemos por cidadão
crítico aquele que, ao se deparar com uma informação, a questiona, refletindo
sobre sua validade e verdade, e sabe utilizar-se dela para atuar socialmente.
(Vidya/2016, X, p. 364).

A produção de significados de um currículo-letramento-estatístico embora


atue com prescrições contingentes, há uma regra enunciativa centrada na forma do
discurso científico que tem o “estatuto de dizer o que funciona como verdadeiro”
(Foucault, 2018, p. 52). Uma política de verdade é instituída nas proposições de
letramento estatística na medida que pesquisadores buscam interlocução com os
sistemas de poder conferido às teorias internacionais como de Gal (2002, 2005),
Watson e Callingham (2003), Watson (2006) e Batanero (2013), de modo que as
marcas de um cidadão letrado estatisticamente passam a ser validadas por critérios
científicos e, ao mesmo tempo, isso produz significação sobre as formas
adequadas de raciocínios e pensamentos estatísticos. Nessa direção, as relações de
poder que movimentam os indivíduos (em formação) e as suas percepções do
mundo (das informações, do jeito de olhar e enxergar as coisas) passam a ser
arranjadas por via de técnicas racionais de governo. As enunciações da educação
estatística apresentam uma variedade de determinações sobre os tipos de
raciocínios que devem ser mobilizados nas interações que envolvem indivíduo-e-
mundo, indivíduo-e-comunidade, indivíduo-e-“cotidiano”, indivíduo-e-mercado,
indivíduo-e-comunicação, indivíduo-e-noticiários, indivíduo-e-leitura, entre tantas
outras possíveis relações que são atravessadas pela autoridade científica dos
conhecimentos matemáticos e estatísticos.
Mas não se trata de uma prática abstrata. Um currículo-letramento-estatístico
atua diretamente nas ações micro, nas experiências singulares, ou seja, em
contextos específicos das práticas onde os estudantes em formação atuam. Assim,
os sentidos da própria estatística são pensados dentro da relação número-contexto,
número-vida, número-sociedade, em cenários onde os dados numéricos tocam a
vida real dos atores em formação: as necessidades, os problemas da vida diária
dos estudantes e as questões sociais que os afetam.
É, portanto, por meio da pedagogia de projetos que o discurso da educação
estatística põe em movimento as dispersões de um enunciado que atravessa
séculos, que trata da “importância de trabalhar a ‘realidade’ do aluno na escola”
(Duarte, 2009). Vários enunciados direcionam as relações entre o letramento
estatístico, o uso de metodologias de projetos e a realidade dos alunos
(Sipem/2018, VIII; Vidya/2016, VI; Vidya/2016, X; Emp/2016, VII), dentre os
quais destacamos os seguintes:

Tabela 3. Letramento estatístico a partir de projetos

Excertos das pesquisas


A publicação dos PCN (Brasil, 1997) abriu espaço para Educação Estatística e
Probabilidade em nosso país (Lopes, 1998). A BNCC (Brasil, 2017, p.265)
ampliou o espaço da Estocástica na Educação Básica, dando ênfase para a
abordagem por meio de projetos desde as séries iniciais. (Sipem/2018, VIII,
p.8)
O ensino de Estatística por meio de projetos, segundo essa autora, propicia ao
estudante desenvolver os elementos cognitivos indispensáveis ao letramento
estatístico, bem como desenvolver autonomia, objetivo fundamental perseguido
pelos professores na Educação Básica. “[...] Os resultados revelaram que essa
abordagem favorece o desenvolvimento do letramento estatístico, bem como
gera condições para uma quebra de contrato didático, importante para o
desenvolvimento da autonomia dos alunos, preparando-os para os desafios
futuros de suas vidas, na universidade, mercado de trabalho ou em qualquer
outra situação” (Giordano & Araújo, 2018, p.6, 7) (Sipem/2018, VIII, p.5).
O uso de projetos no ensino de Estatística contribuiu, efetivamente, para o
aumento do letramento estatístico dos estudantes, considerando o
desenvolvimento alcançado nos elementos do Componente de conhecimento e
do Componente de disposição, conforme indicados por Gal (2002) (Emp/2016,
VII , p. 1241, negrito do autor).
Analisamos os avanços dos estudantes, no que refere ao letramento estatístico,
ao longo do desenvolvimento de projetos estatísticos. “No ensino de Estatística
o uso de projetos é muito apropriado, pois permite a aproximação do estudante
com a realidade, reforçando que a Estatística trata com números em contexto.
Conforme indicado em Batanero e Díaz (2011, p.21), os projetos propiciam
reflexões: ‘Geralmente, os problemas e exercícios dos livros didáticos só
concentram-se em conhecimentos técnicos. Ao trabalhar com projetos,
colocam-se os alunos em uma posição que exige que reflitam sobre perguntas
como (Graham, 1987): Qual é meu problema? Preciso de dados? Quais? Como
posso obtê-los? O que significa, na prática, este resultado?’ [...] (Emp/2016,
VII , p.1223).

As publicações oficiais corroboram para que as técnicas de governo da


pesquisa atuem direcionando modos de produzir currículos de matemática
apoiados em projetos de ensino e aprendizagem de estatística. Nesse caso, as
linhas de força desse currículo parecem atribuir pouca visibilidade para
abordagens fictícias em livros didáticos, uma vez que a pedagogia de projeto
permite tratar questões sociais amplas vinculadas às realidades dos estudantes.
Seus interesses, questionamentos, anseios e sensibilidades tornam-se alvo de um
movimento científico, ou seja, os estudantes aprendem a ser e operar com
categorias de conhecimentos transcendentais e universais baseadas na razão e na
ciência (Valero & Knjnik, 2015). As pesquisas endereçam, assim, sistemas
particulares de ideias e regras de raciocínios estatísticos de modo a articulá-las
não somente nas práticas da escola, mas em um entorno social amplo visando
melhorar as condições humanas.
Os esforços criados nessa relação aluno-letramento estatístico, visa acima de
tudo melhorar as relações do aluno com o mundo que o cerca, instrumentalizando
a questionar, comunicar informações, pensar adequadamente evitando erros,
resolver problemas da vida e modelar as situações de incertezas de modo a
minimizar os erros, etc. Tudo isso passa a ser carimbado com modelos científicos
de letramento, estilos de raciocínios estatísticos e matemáticos. Os estudantes
devem ser treinados (letrados estatisticamente) de uma forma específica para
poder pensar e entender de forma eficaz as informações (das mídias, jornais, TV,
etc) para si próprios e os modos de comunicá-las a outros. Nessa direção, o sujeito
desejado da educação estatística aprende não só como fazer e o que conhecer de
estatística, mas também aprende “disposições, consciências e sensibilidades em
relação ao mundo que está sendo descrito” (Popkewitz, 2011, p. 184), construído
e direcionado nas contingências de um currículo escolar.
Ao significar uma prática de letramento estatístico há um efeito de poder
“sobre como as pessoas devem entender e aprender a se conduzir para se tornar
parte dessa prática” (Valero & Knjnik, 2015, p. 35) de educação estatística, ou
seja, uma prática discursiva que opera várias vertentes pedagógicas, dentre as
quais é possível dizer que muitas delas são alimentadas pelo desejo de
emancipação, igualdade e justiça social na produção de um sujeito-cidadão-
crítico. Várias enunciações tratam o cidadão crítico como aquele leitor
emancipado, capaz de ler, interpretar, questionar e “desarmar” as informações
estatísticas das mídias de modo que não venha a ser enganados pelos “donos das
informações” nas tomadas de decisões. Para nós, tal prática de letramento
estatístico põe em movimento o seguinte enunciado: “Formação estatística: uma
tática para não cair em armadilhas das mídias!”. A seguir destacamos
enunciações que possibilitam visibilidades para tal enunciado:

Tabela 4. Letramento estatístico: cidadão-comum x cidadão-crítico

Excertos das pesquisas


Os princípios da Educação Estatística, têm como base formar cidadãos capazes
de compreender o mundo social e natural em que vivem. Dessa forma, esta
educação, deve capacitar as pessoas para atuarem eficientemente nos contextos
pessoais e profissionais da vida. Segundo Gal (2002), pessoas estatisticamente
letradas são capazes de utilizar informações adequadamente, pensar
criticamente sobre estas e tomar boas decisões com base nelas. Isso pressupõe
uma atitude de questionamento diante de mensagens que podem ser enganosas,
desproporcionais, parciais ou incompletas (Sipem/2018, X, p. 4, grifo nosso).
Magalhães (2015) enfatiza que, na contemporaneidade, torna-se necessário que
o cidadão saiba conceitos básicos da Estatística, a fim de que possa “[...]
entender tabelas e gráficos simples, perceber limitações nas informações
numéricas disponíveis sobre os assuntos, compreender a existência da
aleatoriedade em eventos” (p.41). A aprendizagem de tais conhecimentos pode
desenvolver no cidadão uma atitude crítica, reflexiva e proativa no confronto e
no questionamento da veracidade das informações estatísticas midiáticas.
Nesse sentido, compreender as aplicações de análises estatísticas torna-se um
conhecimento útil e necessário, na medida em que “[...] são inúmeras as
ocasiões em que esta habilidade pode salvar o consumidor de informações, de
armadilhas, ou evitar que o produtor engane o consumidor por pura ignorância
ou falta de atenção” (Mattos, 2010, p.132). (Rencima/2018, VIII, p.130, grifo
nosso).
[…] a forma como os dados estatísticos são diagramados, transformados em
informação visual e apresentados à população, pode dificultar a compreensão
do leitor e levar a distorções sistêmicas. Na mídia impressa e digital podemos
visualizar informações cheias de armadilhas, como a utilização de linguagens
supostamente assumidas como conhecidas pelo cidadão comum. O uso de
‘termos antes restritos à academia, tais como margem de erro, nível de
confiança, amostragem entram nos lares brasileiros no horário nobre da
televisão. Outdoors, revistas, jornais estampam gráficos, cada vez mais
coloridos, mais sofisticados, mais envolventes, mais eficientes, porém, nem
sempre fidedignos’ (Cazorla; Castro, 2008, p.47). (Emp/2016, XI , p. 1433)
Para Cazorla e Castro (2008): Quando discursos, propagandas, manchetes e
notícias veiculadas pela mídia, utilizam informações estatísticas (números,
tabelas ou gráficos), essas ganham credibilidade e são difíceis de serem
contestadas pelo cidadão comum, que chega até a questionar a veracidade
dessas informações, mas ele não está instrumentalizado para arguir e contra
argumentar (Cazorla; Castro, 2008, p.46). (Emp/2016, XI , p. 1443).
‘A nosso ver, uma experiência de leitura não será completa sem o
entendimento da lógica das informações matemáticas e estatísticas que
permeiam os discursos, as ciladas e as armações dos “donos das informações”.
Nesse sentido, é preciso romper esse hiato palavra/número, é preciso letrar e
numerar todo cidadão, para que esse possa entremear-se nas armadilhas
discursivas perigosas e traiçoeiras, produzir sentidos outros das coisas, dos
fatos, dos fenômenos, desarmá-las, enfim.’ (CAZORLA, 2008, p. 47).
(Vidya/2016, X, p. 365, grifo nosso):
A Estatística é uma ciência de natureza multidisciplinar e fundamental na
formação de cidadãos críticos em uma sociedade democrática. Diariamente
temos contato com a Estatística ao lermos um jornal ou assistirmos na TV uma
notícia sobre uma pesquisa de opinião ou de intenção de voto, quando os
jornalistas explicam a margem de erro ou quando tentamos entender o que as
bulas de medicamentos nos informam, a partir de resultados dos ensaios
clínicos realizados. Estes são exemplos de situações cotidianas em que a
Estatística aparece e que os cidadãos, ao não receberem o Letramento
Estatístico, desde os anos iniciais da Educação Básica e não entenderem os
princípios básicos de variabilidade e incerteza, tornam-se incapazes de fazerem
uma leitura consciente do mundo com toda a plenitude necessária (Crossen,
1996; Carzola, 2008). (Vidya/2016, XII, p. 398).

A partir dessas enunciações é possível dizer que um currículo da educação


estatística também ensina como ser um bom consumidor consciente e responsável
pelas próprias escolhas. Ao se alinhar aos modelos de vida neoliberal (conforme
apronfudaremos mais adiante), as tecnologias da pesquisa também constrói uma
ideia de cidadania articulada às relações do “mercado, ou seja, ser cidadão é,
acima de tudo, ser consumidor” (Coradetti Manoel & Silva, 2019, p. 230). Um
currículo de educação estatística, nesse sentido, atua na direção de um sistema de
significação e de classificação – por via das práticas de letramento estatístico –
que permite não só criar conhecimentos, mas um tipo de moral que pontua a
necessidade de os indivíduos saírem de um lugar de risco, ou seja, o lugar do
“cidadão-comum” para a posição social de cidadão-crítico (letrado e numerado),
uma vez que essa última condição lhe garante atuar conscientemente rumo à
justiça social dentro de uma cultura midiática atravessada por uma avalanche de
informações estatísticas ora enganosas, ora distorcidas, ora perigosas, ora
inconclusivas e assim por diante.
Assim sendo, esse currículo não só dá visibilidade à cultura do medo (Lemke,
2017) - pontuando uma linha de demarcação entre quem são os indivíduos
perigosos (“os donos das informações”) e quem são os indivíduos em perigo (“os
cidadãos comuns”), - ele também estimula uma consciência sobre tipos de
comportamentos arriscados ou perigosos “para a constituição do eu responsável,
confiável e racional” (Lemke, 2017, p. 72). Em outras palavras, o governo da
pesquisa em educação estatística realiza uma importante função moral ao
apresentar uma sociedade exposta as mais diversas situações de risco e perigo.
As estatísticas produzidas e inseridas no currículo (desde a educação infantil
ao final da escolarização), portanto, entra nesse jogo de poder garantindo uma
medicalização para “as doenças” e “ameaças”, ou seja, a aquisição de raciocínios
estatísticos pelos estudantes atuam como minimizadoras dos possíveis riscos e das
situações de incerteza próprias da nossa cultura. É nesse sentido que o discurso da
pesquisa coloca as práticas de letramento estatístico vinculadas ao circulo
dinâmico do discurso neoliberal, tomando a “tecnologia do medo” (Lemke, 2017)
na produção não só de um cidadão-crítico, mas também de um sujeito prudente e
empreendedor de si:
o sujeito prudente do neoliberalismo deve praticar e sustentar sua autonomia
reunindo informações, materiais e práticas em uma estratégia personalizada
que identifica e minimiza sua exposição ao dano. Tal administração do risco é
frequentemente, e talvez cada vez mais, associada ao acesso às tecnologias
estatísticas e atuariais e ao conselho de especialistas que tornam mensurável o
cálculo (probabilístico) de perigos futuros [….]. Sujeitos empresariais são
imaginados como inovadores, que “reinventam” a si mesmos e a seu meio.
Eles aparecem aqui como empreendedores, não como consumidores prudentes
do risco […]. Para o sujeito como empreendedor, o futuro que deve ser
governado também deve permanecer incerto, como uma condição de uma
forma específica, porém vital, da liberdade liberal. (O’ Malley, 2000, p. 465
apud Lemke, 2017, p.73)
Assim, a medida que os indivíduos são abordados como sujeitos prudentes e
ciosos que acolhem o letramento estatístico como um estilo de vida responsável e
racional, […] eles “são simultaneamente incitados à ação empreendedora”
(Lemke, 2017, p. 72). Nesse sentido, um tipo de identidade desejável passa a ser
regulado por meio de competências e habilidades (“ler”, “comunicar”,
“expressar”, “analisar”, “compreender”, “avaliar”, “organizar”, “atuar”,
“aprender”, “criticar”, ...) que expressam nitidamente as linhas divisórias entre o
“cidadão-comum” (Emp/2016, XI, p. 1443) e o “cidadão-crítico” (Sipem/2018,
XI, p. 11; Vidya/2016, X, p. 364; Vidya/2016, XII, p. 398; Emp/2016, IX, p.
1272). Essa mesma classificação e posição de cidadão-crítico, produz um
feedback sobre outras categorias de sujeitos indesejados na contemporaneidade:
por exemplo, um tipo de cidadão comum, ignorante, não letrado, que embora
questione, ainda não está instrumentalizado com as verdades científicas que a
educação estatística viabiliza.
Assim, as linhas de forças desse arsenal teórico de letramento estatístico
ajudam a movimentar a construção de uma cidadania e do cidadão da educação
estatística. Embora pareça ecoar um “tom” de fala democrático essas linhas de
força, na verdade operam “sutis formas de regulação e padrões de controle”
(Moreira & Tadeu da Silva, 2013, p. 43) daquilo que os estudantes devem ser e
conhecer em um currículo de matemática. Esses indivíduos passam a ser
classificados, repartidos em função de seus “níveis de letramento estatístico”
(Emp/2016, XI , p.1324), o que possibilita também que suas competências sejam
medidas, avaliadas e comparadas com os mais elevados níveis de letramento
esperados ao término da formação escolar. Isso sem dúvida é um alinhamento
com o discurso neoliberal da atualidade que atravessas os discursos educacionais
fabricando um “corpo” cidadão em constante desenvolvimento cognitivo (na
busca de níveis mais elevados de formação) e empreendedor de si, um corpo-
cidadão autoresponsável que administrada o seu capital humano (Gadelha, 2009).
Questionamos, portanto, se um currículo de educação estatística que opera
emancipação e justiça social (articulando as ideias de democracia) não estaria
também reforçando identidades sociais que prolongam as desigualdades sociais já
existentes? Isso nos leva também a questionarmos nosso papel político enquanto
educadores matemáticos. Ao operar nas tramas discursivas da educação estatística
também compomos uma moral que determina formas de vida para os indivíduos
da educação e de modo ainda mais amplo e, tavez, abstrato, concebemos um tipo
de formação desejável e coletiva, ou seja, um tipo de formação desejável para a
sociedade. No entanto, devemos estar cientes de como as relações de poder atuam
nas entranhas da pesquisa, quando movimentamos nossos pressupostos teóricos e
metodológicos direcionando práticas divisoras que marcam indiretamente quem é
o tipo de cidadão capaz de atuar no contexto da sociedade. Não se trata de
combater o poder, pois Foucault (1995) nos alerta que uma sociedade isenta de
relação de poder só pode ser uma abstração. O que defendemos neste texto é um
deslocamento das práticas de um currículo hegemônico de educação estatística ao
concebê-lo em um campo de luta e de transformação das relações de poder já
existentes.
A prática de letramento estatístico, portanto, pode ser entendida como um
movimento da cientificidade tanto de conhecimentos matemáticos como de
conhecimentos estatísticos que legitimam e impõem modos de vida aos indivíduos
coletivos que indiretamente passam a se reconhecer a si próprio e a outros como
cidadãos-letrados-estatisticamente, cidadãos empoderados cientificamente. Na
continuidade, buscamos expor uma linha de força dessa prática de letramento
articulada as ideias sobre “tomada de decisões”.
3.2 TOMADA DE DECISÕES: UMA INSTRUÇÃO DE UM CURRÍCULO-
LETRAMENTO-ESTATÍSTICO

A partir das enunciações das pesquisas, notamos que seria preciso


explicitar/descrever/construir um enunciado que possibilitasse um direcionamento
específico para nossas composições, partindo das validações que os estudos
produziam sobre letramento estatístico. Dentre as linhas de força que produzem
sentidos para um currículo da educação estatística, destacamos algumas
articulações entre letramento estatístico e tomada de decisão. Pareceu-nos muito
marcante a construção de uma narrativa que invoca a ideia de que um sujeito
letrado estatisticamente é capaz fazer boas escolhas, de tomar as melhores
decisões e mais que isso, ele é capacitado a vencer os desafios da vida, fazer uma
“boa” leitura do mundo. Há uma moral sobre o tipo de sujeito que esse currículo
almeja formar, e nesse caso, tal currículo racional produz um jogo de sedução de
modo que os indivíduos se reconheçam empoderados de saberes que os diferem
na sociedade. Nessa direção, o letramento estatístico parece funcionar como uma
tecnologia de governo que orienta e normatiza o conjunto de ações e
possibilidades para que efetivamente os estudantes se tornem sujeitos educados
para o exercício da cidadania.
Assim, a instrução dada pelo discurso da pesquisa é conduzida sob vários
enunciados que impõem suas próprias regularidades na significação do que seria
uma prática de letramento estatístico. Nesse contexto, estamos interessados em
descrever não somente suas regras, mas a partir delas, examinar a “que tipo de
racionalidades políticas elas recorrem” (Foucault, 2006e, p. 356 apud Lemke,
2017, p.117).
Seguindo as ideias de Foucault (2008), ao dizer racionalidade política, estamos
entendendo isso como um elemento das tecnologias de governo que contribui para
criar um currículo da educação estatística no qual o exercício do poder opera
dentro de uma lógica racional. Nesse sentido, tais racionalidades atuam na
pesquisa em educação estatística como uma “política da verdade”, por exemplo,
ao inventar conceitos, produzir formas de saberes curriculares, ao especificar
objetos de investigação, ou, ainda, ao descrever argumentos que justifiquem a
inserção e implementação de conteúdos estatísticos no currículo de matemática.
Embora já tratamos deste assunto no tópico anterior, queremos avançar a
discussão sobre como enunciados da educação estatística recorrem a uma
racionalidade política do neoliberalismo. Antes disso, vamos expor algumas
afirmações que selecionamos nos artigos que tratavam especificamente a tomada
de decisão como uma instrução necessária para fazer um currículo de matemática
funcionar na ordem do discurso da educação estatística, vejamos:

Tabela 5. Letramento estatístico e “tomada de decisão”

Excertos das pesquisas


Mais recentemente, a promulgação da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) ratifica a inserção da Estatística e Probabilidade na Educação Básica e
sugere a abordagem de conceitos estatísticos por meio de situações da vida
cotidiana, das ciências e da tecnologia [...]. Segundo as autoras essa abordagem
busca desenvolver habilidades para coletar, organizar, representar, interpretar e
analisar dados em uma variedade de contextos, de maneira que os cidadãos
possam fazer julgamentos e tomar as decisões [...] (Sipem/2018, V, p. 2, grifo
nosso).
O que emerge desta análise, para nós, pesquisadores da área da Educação
Estatística, é a importância de procurar questões articuladas e dialogar com
professores que ensinam estatística, principalmente na Educação Básica, onde é
preciso formar cidadãos críticos, que tenham autonomia para lidar com as
adversidades da vida auxiliando-os a tomarem melhores decisões (Sipem/2018,
XI, p. 11, grifo nosso).
O reconhecimento da necessidade dos dados permite compreender que apenas
as experiências vivenciadas não são suficientes para a tomada de decisão e
revela, deste modo, a importância da coleta e da análise adequada dos dados
(Sipem/2018, VII, p. 5, grifo nosso).
[…] todos os cidadãos precisam desenvolver habilidades para coletar,
organizar, representar, interpretar e organizar dados de uma variedade de
contextos, de maneira a fazer julgamentos bem fundamentados e tomar as
decisões adequadas. Isso inclui raciocinar e utilizar conceitos, representações e
índices estatísticos para descrever, explicar e predizer fenômenos (BRASIL,
2017, p. 272) (Sipem/2018, VIII, p.8, grifo nosso).
Na Educação Estatística e nesse processo de ensino e aprendizagem, de acordo
com Lopes (2010), é que a Estatística se intersecciona com a Probabilidade,
pois o pensamento estatístico também combina ideias acerca dos dados e da
noção de incerteza, para a realização de inferência, ou seja, é necessário que as
pessoas utilizem o pensamento probabilístico para tomar decisões, conforme a
autora apresenta: ‘A Estatística, com seus conceitos e métodos, configura-se
com um duplo papel: permite compreender muitas das características da
complexa sociedade atual, ao mesmo tempo que facilita a tomada de decisões
em um cotidiano onde a variabilidade e a incerteza estão sempre presentes’
(Lopes, 2010, p. 51). Essas ideias reforçam que o papel da Estatística e da
Probabilidade na tomada de decisões pode ser considerado como um dos
objetivos da interconexão dessas duas áreas no currículo.” (Emp/2016, II, p.
1119)
O Letramento Estatístico é importante não só para a nossa sociedade como um
todo; é também relevante para os membros individuais da sociedade, como eles
tomam decisões em suas vidas pessoais com base em informações e análise de
risco fornecido por outras pessoas da comunidade. Decisões como onde viver,
que tipo de emprego que procurar, comprar um carro podem ser influenciadas
por dados fornecidos de fora de sua experiência individual. (Watson;
Callingham, 2003, p. 4). (Emp/2016, XI , p.1324)
A perspectiva de Wild e Pfannkuch (1999) sobre o raciocínio estatístico pode
contribuir para a efetivação da Educação Estatística na forma como a
concebemos. Para esses autores, o desenvolvimento do raciocínio estatístico é
composto por alguns elementos. O primeiro se refere ao reconhecimento da
necessidade dos dados. Como apontam os autores, é importante perceber que a
base da investigação estatística é a hipótese de que muitas situações da vida real
só podem ser compreendidas a partir da análise de dados coletados de forma
adequada, considerando que as experiências, a intuição ou as crenças pessoais
são insuficientes para a tomada de decisão. (Vidya/2016, VI, p. 301, grifo
nosso):

Assim como é encontrado nas divulgações publicitárias ou em outdoors, ao


fazer a leitura dos textos encontramos frases muito similares aquelas que nos
fazem lembrar propagandas de impacto que induz os consumidores a se convencer
que estão perdendo uma grande oportunidade: Tome as melhores decisões! Faça
as melhores escolhas! Vença os desafios da vida com a educação estatística!
Diferentes técnicas de governo entram em ação na fabricação de sujeitos pelo
discurso da pesquisa em educação estatística, dentre as quais, notamos que tais
técnicas de governo neoliberais parecem atuar significativamente na construção
de subjetividades dos estudantes. Seguindo as pesquisas sociopolíticas em
educação matemática (Valero & Knjnik, 2015), entendemos
o neoliberalismo, como uma abordagem da política social e econômica
apoiada em ideias como do crescimento econômico, da concorrência e dos
direitos individuais[...], transforma as pessoas em empreendedores
autorregulados e competitivos [...]. [...] Para governar em tal direção, o
neoliberalismo põe em operação novas tecnologias do eu: cada sujeito deve
aprender a assumir a responsabilidade e ser responsável por sua própria vida,
aprendizado, trabalho e sucesso. Cada um de nós deve se tornar um
empreendedor responsável e responsabilizado pelo seu próprio destino. (p. 35-
37)
Nessa direção, embora as pedagogias criadas pelas pesquisas apresentem uma
pluralidade de estilos de pensamentos diferentes e heterogêneos, muitos deles
parecem operar tecnologias de governo neoliberal, fazendo surgir distintos
princípios morais para os indivíduos da educação, dentre os quais privilegia-se um
sujeito empreendedor de si mesmo: ativo, autônomo, prudente, responsável e
calculador (Lemke, 2017, p.124). Dentro dessa linha de força, reivindicá-se que a
ação dos sujeitos-estudantes sejam orientadas por uma lógica racional, desde as
séries iniciais do ensino fundamental até atingir o processo final de escolarização,
para que aprendam a administrar a si próprios como cidadãos-críticos.
Como em uma performance teatral, o discurso da pesquisa produz várias
encenações “que moldam as maneiras de constituir o mundo, de compreendê-lo e
de falar sobre ele” (Veiga-Neto, 2014, p. 93). Mundos são inventados e em uma
narrativa que vai criando situações onde os indivíduos devem sempre se colocar
em posição de sucesso e da felicidade. Então, as tecnologias criadas pela pesquisa
em educação matemática parecem fornecer subsídios científicos para que os
mesmos vençam seus medos, lutas, aflições, e as diversas adversidades que são
permanentes na vida. Os indivíduos da educação são convidados a participar dessa
prática de educar-se estatisticamente, onde aprendem a conectar seus pensamentos
(subjetivo) a tipos de raciocínios estatísticos (envolvendo modelos e medições
estatísticas e/ou matemáticas) de modo a garantir uma posição de sucesso tanto na
vida cotidiana como na profissional. Assim sendo, os sujeitos educados
estatisticamente passam a ser autodisciplinados e objetivados/subjetivados em
termos do que seus conhecimentos estatísticos possibilitam para ler e interpretar
adequadamente o mundo.
Essas promessas parecem ser herdadas do século passado, onde os discursos
da Modernidade produziram novos significados para o que seria o sujeito educado
e como deveriam ser suas relações com a sociedade e com o conhecimento
(Fendler, 1998). Segundo esse autor, foi nesse movimento da Modernidade que a
constituição do sujeito educado passou a ser “submetida ou objetivada dentro de
uma abstração regida em termos de categorias sócio-científicas”, uma vez que “os
diferentes fenômenos sociais tornaram-se testáveis e verificáveis com base em
medição estatística, correlação e previsão” (Fendler, 1998, p. 52). Nessa direção,
o discurso da educação estatística tem fortalecido essa narrativa “na qual a ciência
e a tecnologia são os pilares das verdades absolutas e seguras, do progresso, do
planejamento racional da ordem social e da padronização do conhecimento e da
produção [...]” (Valero & Knjnik, 2015, p. 35). Nesse âmbito, as escolhas e
possibilidades de existência dos estudantes passam a ser geridas, pensadas e
calculadas, previamente, em termos científicos, em especial pela supervalorização
das medidas estatísticas.
Ao mesmo tempo que as técnicas de governo colocam em funcionamento uma
encenação tematizada pelos “desafios da vida”, também são criados múltiplas
opções e oportunidades de fuga para que os estudantes obtenham sucesso, se
tornando cidadãos empreendedores de si, autônomos, críticos e conscientes de que
tais desafios e adversidades existem e é parte desse mundo, mas podem ser
colocadas em suspensão. É por meio disso, que os estudantes também são
inseridos em uma narrativa (girando em torno de propostas de ensino e
aprendizagem) de que os conhecimentos e saberes estatísticos devem capacitá-los
para resolver problemas reais que os coloquem em risco frente às demandas
sociais e econômicas. Entendemos, portanto, que tais técnicas de governo (da
pesquisa científica) projetam um currículo da educação estatística no qual os
estudantes são encorajados a se tornarem empreendedores de si, ou seja, sujeitos
neoliberais. Nas palavras de Lemke (2017),
o governo neoliberal encoraja os indivíduos a dar as suas vidas uma forma
específica: a empreendedora. Ele responde a uma demanda mais forte do
âmbito individual por autodeterminação e autonomia, ofertando aos indivíduos
e coletividades a possibilidade de participar ativamente na solução de temas e
problemas específicos que até então pertenciam ao domínio de diversas
agências estatais especialmente habilitadas para desempenhar tais tarefas. Essa
participação tem um preço: os próprios indivíduos devem assumir a
responsabilidade por essas atividades e seu eventual fracasso (p. 124).
Um jogo de sedução parece ser travado no contexto de um currículo de
matemática da educação estatística. Ao assumir o posicionamento de sujeito
educado estatisticamente, os estudantes aprendem a enfrentar as adversidades para
que não se tornem sujeitos de risco. Nessa direção, estudar e aprender estatística
em diversos contextos da sociedade permitiria maiores possibilidades para que
estudantes se tornem administradores individuais de suas próprias vidas. Algumas
temáticas como vida saudável e sustentável, hábitos alimentares, saúde física,
saúde emocional, saúde financeira, bem-estar social, saúde ambiental, saúde
planetária, violência urbana e mortes, porte de armas, consumismo e desemprego,
foram tratadas em pesquisas que analisamos e pareceram ressoar essa questão do
risco em situações de aprendizagem envolvendo a produção, interpretação e
análise de dados estatísticos. Em alguns casos, a instrução desse currículo fazia
apelo ao professor tratar as particularidades do grupo de alunos, como é o caso,
por exemplo, o contexto envolvendo o consumo de álcool na adolescência
(Sipem/2018, XVII, p. 1). Assim, as medidas estatísticas exploradas em um
currículo escolar, passam a ser vista como uma tecnologia de governo, visto que
elas atuam diretamente na “realização e na reconstrução de julgamentos sobre nós,
nos julgamentos que fazemos de nós mesmos e nas consequências desses
julgamentos à medida que são sentidas e experimentadas (Beer, 2016, p. 3)” nas
práticas cotidianas.
Dentro do contexto de uma governamentalidade neoliberal, o discurso da
pesquisa em educação estatística fabrica o sujeito prudente que sabe tomar boas
decisões ao gerenciar individualmente suas possibilidades de risco. Segundo O´
Malley (1996, p. 197) apud Bello e Traversini (2011, p. 866), o prudencialismo
pode ser considerado como “uma tecnologia de governamento que remove a
concepção chave de regulação individual por meio da administração coletiva do
risco para lançar de volta sobre o indivíduo a responsabilidade de administrar o
risco”. Dentro desse jogo de relações de poder/saber, a participação em uma
prática de letramento estatístico fornece também orientações para que projetos de
vida (no agora e no futuro) sejam constituídos dentro de uma lógica neoliberal,
uma vez que as possibilidades de existência dos estudantes passam a ser
meticulosamente associadas ao desenvolvimento econômico, científico e
tecnológico do país.
Nesse caso, constrói-se a narrativa de que o ato de ensinar e aprender
estatística deve estar diretamente relacionado com as situações do cotidiano dos
aprendizes, de modo a capacitá-los para explicar e resolver problemas no mundo
que o cerca. Assim sendo, como tecnologia de governamento, o saber estatístico,
enquanto conteúdo escolar, é tratado não apenas para o disciplinamento do olhar
dos indivíduos ao conduzir suas ações no âmbito individual, mas de modo amplo,
ele deve atuar sobre as ações de uma população, fabricando modelos e
regularidades sobre os diversos fenômenos sociais e naturais, como condição
necessária para sua interpretação, análise e gestão (Bello & Traversini, 2011).
Essa composição com discursos da pesquisa em educação matemática, nos
possibilitou várias pistas sobre as regras e condições de existências de enunciados
para a constituição de sujeitos da educação estatística, dentre os quais é possível
descrever o seguinte enunciado “cidadão letrado estatisticamente: tomando
‘boas’ decisões para enfrentar os desafios da vida”. Isso nos forneceu uma
compreensão sobre como esses discursos da educação estatística atuam em uma
lógica racional e neoliberal, fazendo surgir distintos valores, princípios morais e
comportamentos que estruturam e moldam um campo de ações possíveis dos
estudantes da educação básica.

4. ALGUMAS CONCLUSÕES E NOVAS COMPOSIÇÕES

As enunciações trazidas nesse texto, nos possibilitaram compreender algumas


regras do discurso da educação estatística. Assim como foi identificado nos
trabalhos de Valero e Knjnik (2015), quando problematizam a pesquisa em TICs,
também concluímos que o campo da educação estatística é uma importante parte
das estratégias de poder que operam na produção dos sujeitos da educação: ao
selecionar tipos de conhecimentos, estilos de pensamentos (estatísticos), práticas
pedagógicas, “etc.”, várias tecnologias de governo entram em funcionamento para
que os indivíduos da educação se “tornem sujeitos neoliberais, racionais,
modernos, autorregulados, que devem administrar adequadamente os problemas
sociais da contemporaneidade” (p. 38). No entanto, ao mesmo tempo que essas
formulações da pesquisa em educação estatística produzem um tipo de sujeito
desejado, elas também trazem, implicitamente, “mecanismos para selecionar e
classificar aqueles cujas formas de vida e ser não se assimilam aos critérios
desejados” (p. 38).
É, portanto, urgente a necessidade de politizarmos nossas escolhas e condutas
investigativas, tomando nossos objetos de estudo e pressupostos teórico-
metodológicos em um cenário de constantes críticas. Para tal, nossas análises não
buscaram somente questionar como sujeitos (estudantes) neoliberais estão sendo
fabricadas no interior de práticas discursivas da educação matemática, mas se é
possível desenvolvermos experiências outras que contribuam para a constituição
de “novas subjetividades e novas alternativas que ofereçam mais espaço para a
autonomia e a autoformação ética” (Lemke, 2017, p. 102). Nessa direção, nosso
olhar político para o campo da educação matemática, invoca a criação de
potenciais de formação (no espaço escolar e/ou fora dele) que possibilitem cada
vez mais a emergência de “projetos individuais de subjetivação” (Valero &
Knjnik, 2015, p. 38) para bem mais do que nos recomendam as lógicas
dominantes, sejam as das políticas curriculares, das políticas financeiras
internacionais, do mercado de trabalho e das pedagogias (fictícias) inventadas
pela escola e pela academia que atingem nossos próprios modos de pensar e de
existir.
Acreditamos, portanto, ser preciso produzirmos novos encontros e
composições no mundo da pesquisa em educação matemática: traçar linhas de
fuga que tornem possíveis ao menos pequenas fissuras nesses modelos
hegemônicos de currículos de matemática, de modo a experimentarmos novos
caminhos e espaços múltiplos de formação, a partir de nossas próprias aberturas
para outros “começos” sem “estradas” tão seguras e planejadas.

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