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E ntrevista/Peter Rosset

"A Agroecologia é o único meio que pode


permitir que o pobre seja produtivo."

Boucinha, Helena* (www.foodfirst.org), um instituto de pesqui-


Brixius, Leandro* sa e análise de políticas que se dedica a
estudar as causas primárias da fome e da
pobreza, buscando soluções alternativas.
Para o ativista norte-americano Peter Uma dessas soluções é a Agroecologia, con-
Rosset, a redução do número de agriculto- forme revela Peter Rosset nesta entrevista
res familiares, as políticas de liberação co- concedida à Revista Agroecologia e Desen-
mercial, os subsídios para os fazendeiros dos volvimento Rural Sustentável. Palestrante
países do Norte e a privatização do crédito e do III Seminário Internacional sobre Agro-
da assistência técnica são algumas das ra- ecologia, realizado no final de setembro, em
zões que fazem com que mais de 800 mi- Porto Alegre, Rosset concedeu esta entre-
lhões de pessoas passem fome no mundo. vista por e-mail, alguns dias antes de via-
Rosset é co-diretor da Food First - Institute jar ao Brasil.
for Food and Development Policy Revista - O Sr. tem afirmado que a en-
genharia genética não vai resolver o pro-
*Jornalistas da Emater/RS blema da fome no mundo. Por quê?
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Agroecol. e Desenv. Rur. Sustent., Porto Alegre, v.3, n.3, Jul/Set 2002
E ntrevista/Peter Rosset
Rosset - Inicialmente, porque, em ter- cebe-se na mídia uma predisposição a
mos globais, há comida demais, não há es- aceitar os OGMs como alternativa à pro-
cassez. O problema é a pobreza. Muitas pes- dução de alimentos e como solução para
soas são pobres demais para comprar os ali- a falta de alimentos no mundo. Por que
mentos que existem ou não têm terra para isso ocorre?
produção própria. O principal problema en- Rosset - Por causa do grande aparato pu-
frentado por agricultores no mundo todo é blicitário da indústria de biotecnologia para
o dos preços baixos, resultado da superpro- influenciar a mídia e a opinião pública.
dução global. Por isso, nenhuma nova Pode ser que nunca descubramos até que
tecnologia que visa aumentar a produção ponto empresas de biotecnologia ou seus
pode enfrentar a fome em um nível global. consórcios estão devotando recursos para
Além disso, em certas partes do mundo, moldar a forma como o público enxerga os
como em áreas na África subsaariana, a alimentos geneticamente modificados,
produtividade é muito baixa, e as causas mas podemos ter certeza de que o gasto é
não têm nada a ver com enorme. Nos Estados
tecnologia. Na verdade, Unidos, a indústria de
a privatização de agên- biotecnologia recente-
cias governamentais de "Nenhuma nova tecnologia mente anunciou a cri-
apoio a pequenos agri- ação e liderança de
cultores, como as enti- que visa aumentar a produção um programa de infor-
dades de comercializa- mações para o público
pode enfrentar a fome em um
ção, os deixou sem aces- com duração de vários
so aos mercados. A nível global." anos. Patrocinado pelo
privatização dos bancos Conselho para Infor-
de fomento os deixou mações sobre
sem crédito, e políticas Biotecnologia, ele in-
de livre comércio encheram o mercado com clui um site na Internet, um serviço de in-
produtos sobressalentes provenientes do formações por telefone com chamada gra-
Norte, com preços contra os quais os pe- tuita (toll-free), materiais de publicidade e
quenos agricultores não podem competir. anúncios impressos e na TV. De acordo com
Em vista disso, a maioria deles produz o jornal St. Louis Post Dispatch, o Conse-
muito menos do que poderia com a lho tem US$ 250 milhões em recursos para
tecnologia atual. Sem trocar estas restri- usar durante cinco anos, e este é somente
ções de políticas, tecnologia de tipo algum, um entre muitos esforços do tipo. Membros
muito menos OGMs (organismos genetica- de várias alianças de relações públicas em
mente modificados), faria a menor diferen- favor da biotecnologia estão financiando
ça. Finalmente, se houver um lugar no pesquisas "científicas", organizando
mundo onde a tecnologia inadequada seja fóruns, fazendo lobby com parlamentares,
realmente o fator limitante, devemos es- agências reguladoras e organizações de
tar atentos ao fato de que a tecnologia de agricultores, e contratando grandes empre-
OGMs está muito longe de ser a melhor sas de relações públicas. A estratégia atu-
opção ou a mais produtiva disponível aos al dá ênfase ao uso de cientistas, acadê-
agricultores. micos e fazendeiros com "credibilidade" de-
6 Revista - De uma maneira geral, per- fendendo posições a favor da indústria, em

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vez de porta-vozes de empresas, em quem, foi notícia no encontro de 1996 - dando eco
de fato, o público não acredita. aos sentimentos de muitos, ao classificar
Revista - O consumidor norte-america- essa meta como "vergonhosa", pelo fato de
no quer consumir alimentos geneticamen- abandonar qualquer noção de eliminação
te modificados? da pobreza, tendências posteriores têm sido
Rosset - A maioria das pesquisas nos Es- ainda mais vergonhosas. O encontro atual
tados Unidos mostra que o público deseja que foi convocado pelas Nações Unidas para exa-
OGMs sejam rotulados, e a maioria não com- minar por que a fome persiste apesar do
praria um produto em cujo rótulo estivesse Plano de Ação de 1996. Nos primeiros cin-
especificada a existência de OGMs. co anos, houve um progresso 60% inferior
Revista - Como os movimentos sociais, ao previsto, e as condições atuais estão pi-
como o Movimento dos Trabalhadores orando em muitos locais no mundo. Sem
Sem Terra (MST), se posicionam (ou po- uma reorientação drástica de políticas no
dem se posicionar) no debate sobre a ques- mundo todo, será impossível alcançar o ob-
tão dos transgênicos e o empobrecimento jetivo de 2015, e a fome pode, na verdade,
do meio rural? aumentar. Enquanto documentos oficiais
Rosset - Os OGMs são o passo mais re- preparados para a conferência condenam
cente em um lento processo através do qual abertamente uma "falta de vontade" e pe-
corporações estão dominando cada etapa da dem "mais recursos" para serem utiliza-
produção de alimentos, desde a semente, a dos para a redução da fome, o fato é que há
terra, os insumos químicos e a maquina- necessidade de outras mudanças funda-
ria, até a compra da colheita, sua armaze- mentais. O que deu errado? As pesquisas
nagem, processamento, empacotamento, conduzidas pela Food First revelam que,
propaganda e distribuição. É este processo
geral que exclui os pobres - tanto produto-
res, quanto consumidores - e, portanto, deve
ser enfrentado por organizações de pessoas
pobres, como o MST.
Revista - Avalie o que deu errado no
compromisso assumido por 185 nações, em
1996, de cortar pela metade o número de
povos com fome até 2015.
Rosset - Por que mais de 800 milhões de
pessoas ainda passam fome em um mundo
marcado por fortunas inacreditáveis? Os
governos do mundo inteiro se encontraram
em Roma, em junho último, para discutir
somente esta questão, em uma conferên-
cia chamada "Conferência Mundial sobre
a Alimentação: Cinco Anos Depois". No
evento de 1996, também realizado em
Roma, 185 nações assinaram um termo de
compromisso para reduzir o número de pes-
soas com fome pela metade até 2015. En-
quanto o presidente cubano, Fidel Castro, 7
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desde 1996, os governos têm seguido uma para cobrir os custos com crédito e produ-
série de políticas que contribuíram para re- ção. O resultado tem sido uma deteriora-
duzir o número de camponeses, pequenos ção significativa e contínua do acesso dos
agricultores, agricultores familiares e co- pobres à terra, à medida que eles são for-
operativas agrícolas, tanto em países do çados a vender suas terras por preços re-
Norte quanto do Sul. Estas políticas incluí- duzidos, não têm dinheiro para aluguel de
ram liberalização comercial a toque de cai- terras ou negócios do tipo, ou perdem suas
xa, jogando os agricultores familiares do propriedades ao não conseguirem pagar
Terceiro Mundo contra as fazendas seus empréstimos. Os casos de fome mais
corporativas mais bem subsidiadas do Nor- grave estão em áreas rurais onde os sem-
te; obrigação aos países de Terceiro Mun- terra são as pessoas mais pobres, e mes-
do de eliminar sustentação de preços e mo assim os governos têm feito corpo mole
subsídios para produtores de alimentos, en- para implementar políticas já existentes de
quanto a Europa e os Estados Unidos man- reforma agrária e redistribuição de terras,
têm enormes subsídios e na sua maioria resis-
a corporações agríco- tiram a esforços - às ve-
las, da mesma forma zes usando força - de or-
que virtualmente ex-
"A estratégia (de marketing) ganizações populares,
cluem seus próprios atual dá ênfase ao uso de cien- como movimentos de
agricultores familiares sem-terra, para apres-
(vejam a recente lei tistas, acadêmicos e fazendeiros sar a implementação
sobre agricultura - com "credibilidade" defenden- destas políticas. Estes
Farm Bill - nos Estados mesmos governos não
Unidos); a privatização do posições a favor da indús- fizeram nada para im-
do crédito e do auxílio pedir que a terra se
tria, em vez de porta-vozes de
técnico e de marketing transformasse em um
para agricultores fami- empresas, em quem, de fato, o bem comercial fora do
liares; a promoção ex- alcance dos pobres, e
cessiva de exportações
público não acredita." assistiram passiva-
em detrimento da agri- mente a interesses co-
cultura de subsistên- merciais - tanto agríco-
cia; a patenteação de recursos genéticos las (como plantations) e não-agrícolas
vegetais por corporações que cobram aos (como exploração de petróleo) - invadir ter-
agricultores pelo seu uso; e uma tendên- ras públicas e comunitárias e territórios
cia na pesquisa agrícola na direção de de povos indígenas. Além disso, os gover-
tecnologias caras e questionáveis como a nos não fizeram nada à medida que cadei-
engenharia genética, enquanto alternati- as de commodities agrícolas - tanto de en-
vas em favor dos pobres, como agricultura trada (como sementes) quanto de saída
orgânica e Agroecologia, são virtualmente (como vendas de grãos) - tornaram-se mui-
ignoradas. to concentradas nas mãos de poucas com-
Revista - O que essas políticas provocam? panhias transnacionais, que, por terem
Rosset - Cada vez mais, agricultores pe- quase um monopólio nas mãos, estão cada
quenos e sem recursos descobrem que o vez mais praticando preços e custos desfa-
crédito nunca foi tão inadequado ou tão voráveis aos agricultores, pondo todos, es-
8 caro e que os preços estão baixos demais pecialmente os mais pobres, em um aper-

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to insustentável em relação a preço e cus- crise em que se encontram? Que condições
to, desta forma incentivando o abandono em são necessárias para que isso ocorra?
massa da agricultura e a migração para fa- Rosset - Não a agricultura sustentável,
velas. Enquanto os governos parecem ce- mas a agricultura agroecológica, que pode
gos aos meios pelos quais suas políticas au- ser tão ou mais produtiva que a agricul-
mentam a fome e o empobrecimento para tura químico-intensiva, mas não neces-
centenas de milhões de pessoas, outros sita de grandes investimentos financei-
vêem a dura realidade claramente. Cen- ros por agricultores com pouco dinheiro.
tenas de movimentos de agricultores e or- Desta forma, os pobres podem ser produti-
ganizações não-governamentais vieram vos, e, haja vista que eles não terão que
para Roma de diversos lugares do mundo gastar seu dinheiro em insumos quími-
para ter seu próprio Fórum em paralelo ao cos que são perigosos, caros e desneces-
encontro oficial. sários, seu lucro líquido pode ser muito
Revista - Quais são os caminhos para re- maior. Para que isso aconteça, os gover-
verter esse processo? nos precisam parar de conceder subsídios
Rosset - As conclusões de nosso estudo às vendas de produtos agroquímicos, e pa-
não são surpresa para aqueles que já co- rar de colaborar com a propaganda da in-
nhecem o mundo rural. Elas exigem que dústria para convencer agricultores a
os governos removam a agricultura da Or- usarem-nos. A pesquisa e a extensão de-
ganização Mundial do Comércio (OMC), que vem ser reprojetadas em um modelo pelo
força países a abrir suas fronteiras a im- agricultor e para o agricultor. E deve-se
portações de comida barata e sobressalen- acabar com o livre comércio na agricultu-
te e, desta forma, tirar seus próprios agri- ra, de forma que os agricultores possam
cultores do negócio, da terra, e os atirar à receber preços mais justos por suas co-
fome. Elas pedem uma reforma agrária de lheitas. Este último aspecto é parte do que
verdade, para pôr terras de boa qualidade chamamos "soberania alimentar".
nas mãos daqueles que iriam semeá-la, Revista - Pequenas propriedades pro-
em vez daqueles que podem pagar por ela. duzindo de maneira ecológica podem re-
Elas exigem que o direito fundamental à solver o problema da fome de um país
comida, reconhecido pela Declaração Uni- como o Brasil? Por que a produção ecoló-
versal dos Direitos Humanos, seja posto em gica não se expande naturalmente, se é
prática pela aplicação do que eles chamam melhor e mais barata para o produtor e
"soberania alimentar", que se refere aos para o consumidor?
direitos de camponeses e agricultores fa- Rosset - Eu acredito que um modelo de
miliares a cultivar alimentos nos seus pró- pequena agricultura ou cooperativas, ba-
prios países, e direitos de consumidores po- seado em uma verdadeira reforma agrária,
bres ao suficiente para comer. Estas exi- tecnologia agroecológica e preços justos (so-
gências, diferente dos fracos pedidos ofici- berania alimentar), é a única forma de re-
ais por "vontade" e "dinheiro" - que serão duzir a fome em um país como o Brasil. A
sempre insuficientes - realmente alcan- simples existência do latifúndio garante
çam a causa primária da fome persisten- fome e pobreza. O modelo de agricultura
te, e devem ser apoiadas por todas as pes- química exclui o pobre. Livre comércio e
soas interessadas. preços baixos ferem todos os agricultores.
Revista - A agricultura sustentável será Somente revertendo estas tendências pode
capaz de tirar os agricultores do estado de haver algum progresso. 9
Agroecol. e Desenv. Rur. Sustent., Porto Alegre, v.3, n.3, Jul/Set 2002
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tificar essas afirmativas?
Rosset - Sem Agroecologia, não há refor-
ma agrária. Sem reforma agrária, não há
Agroecologia. Por quê? Porque reforma agrá-
ria sem Agroecologia condena os
beneficiários à difícil batalha de tomar em-
préstimos muito altos para insumos
agroquímicos, que não funcionam muito
bem e danificam o solo para produções fu-
turas. Quando eles não podem pagar o em-
préstimo pelos insumos que não funcionam,
para produzir alimentos com preços muito
baixos, eles podem perder sua terra de novo.
Métodos agroindustriais lhes dão uma me-
lhor chance de ter sucesso. E, sem uma ver-
dadeira reforma agrária, a Agroecologia é
inútil. Se os pobres não tiverem terras, que
utilidade terá tecnologia mais avançada
para eles?

Revista - Qual sua opinião sobre a con-


cessão de subsídios públicos para o desen-
volvimento da agricultura? Há necessida-
de de crédito subsidiado e/ou políticas pú-
blicas para expandir o modelo ecológico?
Rosset - Eu acho que os governos deve-
riam conceder subsídios aos agricultores
mais pobres, e ao desenvolvimento e
implementação de mais métodos
agroecológicos, desde que estes subsídios
não apoiem a produção para exportação
com preços baixos, o que prejudica fazen-
deiros em outros países.
Revista - O Sr. tem relacionado a revo-
lução da Agroecologia com a revolução
agrária, apresentando ambas como essen-
ciais para o desenvolvimento da humani-
dade. Além disso, afirma que sem refor-
ma agrária, a Agroecologia perde em con-
teúdo e que, sem a Agroecologia, a refor-
ma agrária perde em qualidade e

10 potencialidade. O Sr. pode detalhar e jus-

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