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A CONQUISTA

DA CIDADE
ALDO PAVIANI
| ORGANIZADOR
Há mais de vinte anos, pesquisadores
da Universidade de Brasília têm pers-
crutado as pulsações da cidade de Brasí-
lia: inumeráveis aspectos de sua dinâmi-
ca urbana mereceram as atenções de
candidatos à pós-graduação e de pes-
quisadores/docentes. Assim, obras já
editadas contemplam aspectos da evolu-
ção urbana e expansão geográfica da ci-
dade, problemáticas diversas como as da
arquitetura/urbanismo,
da crise habita-
cional, da falta de transportes coletivos,
do uso da terra urbana, da ampliação das
periferias pobres, da favelização, das
relações com o entorno próximo, das
migrações pendulares e interurbanas,
entre outros. A presente coletânea,
tanto quanto as três já organizadas na
Universidade de Brasília, faz avançar o
conhecimento do processo de urbaniza-
ção no Distrito Federal, sobretudo em
termos de estudo de caso. Claro está que
os estudos de caso não encobrem as ne-
cessárias teorizações e remissões à pró-
pria urbanização brasileira, matriz do
processo que aqui se materializa. Com
isto, a presente obra completa as ante-
riores e joga luz em problemáticas não
aprofundadas anteriormente. Esta é uma
abordagem inter e multidisciplinar de
certos aspectos da organização intra-ur-
bana, onde são encontradas duas preo-
cupações: uma, presa à urbanização;
outra, aos movimentos sociais urbanos.
Na primeira, cinco contribuições resga-
tam a visão histórica e geográfica, per-
correndo os acampamentos e a lógica de
Brasília como “grande projeto” e/ou
canteiro de obras, onde a habitação ser-
viu para segregar, controlar e cooptar as
classes menos favorecidas, ao mesmo
tempo que privilegiou setores empresa-
Tiais específicos, sobretudo os dos ramos
imobiliários. A segregação “planejada”
foi se reproduzindo com a espacializa-
ção da cidade, sob o formato de núcleos
múltiplos. A cada “nova” cidade-satélite
a Capital Federal se tornava social e es-
pacialmente menos igualitária: os ricos
morando no centro ou próximo a ele,
sendo beneficiados pelas melhores con-
A CONQUISTA DA CIDADE: MOVIMENTOS POPULARES EM BRASÍLIA
ea
Es 4 FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Reitor: Antonio Ibafiez Ruiz
Vice-Reitor: Eduardo Flávio Oliveira Queiroz

EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Conselho Editorial

Antonio Agenor Briquet de Lemos (Presidente)


Cristovam Buarque
Elliot Watanabe Kitajima
Emanuel Araújo
Everardo de Almeida Maciel
José de Lima Acioli
Luiz Humberto Miranda Martins Pereira
Odilon Pereira da Silva
Roberto Boccacio Piscitelli
Ronaldes de Melo e Souza
Vanize de Oliveira Macêdo

A Editora Universidade de Brasília, instituída pela Lei nº 3.998,


de 15 de dezembro de 1961, tem como objetivo “editar obras
científicas, técnicas e culturais, de nível universitário”. Suas edi-
ções são financiadas com recursos próprios, resultantes da venda
das obras publicadas, os quais formam um fundo rotativo, nos
termos da referida lei.
A CONQUISTA
DA CIDADE
MOVIMENTOS POPULARES EM BRASÍLIA

ALDO PAVIANI
ORGANIZADOR
O 1991 by Aldo Paviani
Direitos desta edição adquiridos pela Editora Universidade de Brasília

Editora Universidade de Brasília


Caixa Postal 04551
70919 Brasília, DF

Revisão do texto: Wilma Gonçalves Rosas Saltarelli e


Mauro Caixeta de Deus

Composição: Anesio Bento de Oliveira


Capa: Charles Mayer
Supervisão gráfica: Antonio Batista Filho e Elmano Rodrigues Pinheiro
Arte-final: Valperino Andrade
ISBN: 85-230-0315-0

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

A Conquista da Cidade: Movimentos Populares em Brasília / Aldo Paviani (org.). — Brasí-


lia : Editora Universidade de Brasília, 1991.

vários autores.
ISBN 85-230-0315-0

1. Geografia humana — Brasil — Brasília 2. Movimentos sociais — Brasil — Brasília 3.


Planejamento urbano — Brasil — Brasília — Participação do cidadão I. Paviani, Aldo.

CDD-711.13098174
91-1534 —304.2098174

Índices para catálogo sistemático:


1. Brasília : Espaço urbano : Geografia humana 304.2098174
2. Brasília: Movimentos populares e planejamento urbano 711.13098174
3. Brasília : Planejamento urbano e movimentos populares 711.13098174
SUMÁRIO

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Prefácio vs siga IME UN o eloa pesEO inn aanttuções E sdnl a 9
Apresentação Mis, Rca ras RO Letão hm Dee ira nho E mA 13
1. ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO
Acampamento de grande projeto: uma forma de imobili-
zação da força de trabalho pela moradia. ........... 25
Gustavo Lins Ribeiro
O canteiro de obras da cidade planejada e o fator de
ASIOmeEraçãom. MINE EE us apare. A nstaDo ata VAL, SE)
Luiz de Pinedo Quinto Junior e Luiza Naomi Iwakami
A capital do controle e da segregação social. ........ 75
Luiz Alberto Gouvêa
Aaseptesacao planejadas. vedada aaae Ras 97
Neio Campos
À construção injusta do espaço urbano. ............ 115
Aldo Paviani

- MOVIMENTOS POPULARES
Lutas sociais: populismo e democracia: 1960/1964. .... 145
Luciana Jaccoud
O movimento pró-fixação e urbanização do Núcleo Ban-
deirante: a outra face do populismo janista. ......... 169
Nair Heloísa Bicalho de Sousa
Movimentos de moradores: a experiência dos inquilinos
cCIeRCelrandia macaco co oba dRe Dretenotes ssgato ATOR evito E 209
Mara Resende
Vila Paranoá: a luta desigual pela posse da terra urbana. 231
Luiza Naomi Iwakami

Releténicias: DIDILOSTAlCAMA, ma seno e)a wa) 2 terás olepoa miacois Dia)


Digitized by the Internet Archive
in 2022 with funding from
Kahle/Austin Foundation

https://archive.org/details/conquistadacidad0000unse
NOTAS SOBRE OS AUTORES

ALDO PAVIANI, gaúcho, livre-docente (Universidade Federal de Minas


Gerais, 1977), geógrafo, professor da Universidade de Brasília (UnB)
desde 1969. Organizador dos livros Brasília, ideologia e realidade
(1985), Urbanização e metropolização (1987) e Brasília, metrópole em
crise (1989). Coordenador do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais
(NEUR) e da pós-graduação em geografia, ambos da UnB. Consultor
do CNPq e da CAPES/MEC. Dedica-se às pesquisas sobre urbanização
em áreas metropolitanas e sobre as lacunas de trabalho nas grandes ci-
dades, em especial na área metropolitana de Brasília.
GUSTAVO LINS RIBEIRO, pernambucano, antropólogo, Ph.D. em an-
tropologia pela City University of New York. Desde sua tese de mes-
trado, O capital da esperança (1980), sobre a construção de Brasília,
vem estudando grandes projetos. Nos EUA, fez pesquisas sobre a exe-
cução dos canais de Suez e Panamá, concebendo os grandes projetos
como uma forma de produção vinculada à expansão de sistemas econô-
micos. Pesquisou e lecionou na Argentina. Seu trabalho sobre a hidre-
létrica de Yacyretá foi premiado pela Associação de Pós-Graduação em
Ciências Sociais (ANPOCS) como a melhor tese de doutorado de 1988.
Professor do Departamento de Antropologia da UnB, especialista em
antropologia do desenvolvimento, no momento pesquisa o conflito de
concepções inerente ao drama desenvolvimentista.
LUCIANA DE BARROS JACCOUD, carioca, socióloga (UnB, 1981),
mestre em sociologia política (Universidade Federal de Pernambuco,
1986), autora de Na lei ou na marra: movimentos sociais e crise política
em Pernambuco — 1955/1968 (no prelo, Recife, Editora Massangana).
Atualmente é técnica em planejamento e pesquisa do Instituto de Pes-
quisa Econômica Aplicada (IPEA). Áreas de interesse: movimentos so-
ciais, democratização do Estado e políticas públicas.
LUIZA NAOMI IWAKAMI, paulista, arquiteta e urbanista (Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP,
1979) concluiu mestrado em Planejamento Urbano (UnB, 1988); pro-
fessora do Curso de Arquitetura e Urbanismo de Tupã (1983-1984);
pesquisadora do NEUR/UnB na área de reforma urbana e movimentos
8 Notas sobre os autores

sociais. Atualmente é assessora do Secretário de Transportes da Pre-


feitura de Santo André, SP.
LUIZ ALBERTO DE CAMPOS GOUVÊA, mineiro, morador em Brasí-
lia há 20 anos; arquiteto com especialização em planejamento habitacio-
nal e mestrado em planejamento urbano pela UnB (1988); servidor pú-
blico do Governo do Distrito Federal e assessor de várias associações
de moradores, sendo membro das diretorias dos Sindicatos dos Arqui-
tetos e Servidores Públicos do Distrito Federal. Desenvolve, atualmen-
te, pesquisa sobre a forma urbana e o meio ambiente, como requisito
parcial do doutorado em estruturas ambientais urbanas da Universidade
de São Paulo.
LUIZ DE PINEDO QUINTO JUNIOR, paulistano, arquiteto, formado
na FAUUSP (1980); mestre em planejamento urbano pela UnB (1988);
foi professor do curso de arquitetura da Universidade Estadual de Lon-
drina, PR (1982-1985); professor da pós-graduação do Centro de En-
sino Unificado de Brasília (CEUB, 1987); professor do curso de enge-
nharia civil da UnB (1988-1989); fundador e pesquisador do
NEUR/UnB, desenvolvendo várias pesquisas sobre a questão urbana e
a reforma urbana na Constituinte (1987-1988). Atualmente é coorde-
nador de planejamento urbano na Prefeitura de São Bernardo do Cam-
po, SP.
MARA RESENDE, goiana, mestre em sociologia pela UnB. Atualmente,
está ligada à Coordenadoria para o Programa de Assuntos Sindicais da
Secretaria do Trabalho do Governo do Distrito Federal, onde desen-
volve trabalhos relativos à área sindical.
NAIR HELOISA BICALHO DE SOUSA, paulista, socióloga graduada
pela Universidade de São Paulo (1972) e mestre em sociologia pela
UnB (1978); foi professora da Faculdade Católica de Brasília e, atual-
mente, está vinculada ao Instituto de Planejamento Econômico e Social
e ao programa de doutorado em sociologia da Universidade de São
Paulo, onde desenvolve tese sobre os trabalhadores da construção civil;
autora de Construtores de Brasília (Vozes, 1983) e co-autora de Auto-
mação e movimento sindical no Brasil (Hucitec, 1988) e Automação e
trabalho na indústria automobilística (Editora Universidade de Brasília,
1988), além de diversos artigos publicados em revistas científicas.
NEIO CAMPOS, baiano, geógrafo, mestre em planejamento urbano
(UnB, 1988). Coordenador de graduação do curso de geografia e pes-
quisador do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais/CEAM da UnB.
Dedica-se ao estudo da formação do espaço urbano da cidade capita-
lista e desenvolve trabalhos de extensão relacionados ao assessoramento
de movimentos sociais da Ceilândia.
PREFÁCIO

Uma das mais sérias críticas feitas à universidade é no senti-


do de que ela está alienada do seu ao redor. Criticam, e com ra-
zão, que, prisioneira do saber isolado de cada área do conheci-
mento, ela não estuda os problemas da realidade, especialmente
aquela mais próxima. Ela se isola metodológica e tematicamente.
Mas, os críticos merecem uma crítica, por generalizarem o que é
apenas um sintoma localizado, ainda que comum.
O presente livro é um exemplo das exceções. Através de um
trabalho multidisciplinar, em um núcleo temático da Universidade
de Brasília (UnB), um grupo de profissionais estuda a realidade.
É uma realidade muito próxima: a de sua cidade.
Além disso, não a estudam dentro dos compromissos e da vi-
são da minoria privilegiada que habita a universidade. Realizam
um trabalho de desnudamento da situação em que vive a maioria
da população. Vão mais longe, desnudam a lógica que permitiu
que a cidade do século XX fosse uma cidade segregadora, feita
para manter os privilegiados separados, distantes da ameaça das
massas.
Através desses nove trabalhos, percebe-se a unidade da preo-
cupação, sem busca de unidade ideológica que só é possível com
a indesejada censura. Percebe-se também a unidade de um senti-
mento e de uma lógica. O sentimento e a lógica da busca de en-
tender, para transformar, uma sociedade injusta, dirigida por nor-
mas feitas para manter a injustiça.
Da leitura destes trabalhos, fica-se com o sentimento de tris-
teza pela forma como nosso país se organiza, mas um sentimento
de satisfação pela forma como nossos intelectuais estão traba-
Jhando. Uma satisfação em perceber como o Brasil dispõe de pen-
sadores; cada um deles capaz de escolher corretamente os pro-
blemas, de entender estes problemas escolhidos e de transmitir o
que pensam em uma linguagem inteligível e agradável, mesmo
10 Prefácio

quando o leitor sofre com a realidade que vai se desvendando


diante de seus olhos.
Uma análise do conjunto destes artigos permite entender co-
mo o processo de construção de uma cidade se dá em sintonia
com um projeto maior da economia e da sociedade, permite per-
ceber como sua estrutura tem a ver com o conjunto do país.
A primeira parte do livro, com cinco artigos que se comple-
mentam, mostra como a segregação que hoje existe estava pre-
sente no método como a cidade foi construída. Este aspecto é
tratado por Luiz de Pinedo Quinto Junior e Luiza Naomi Iwaka-
mi, no artigo “Brasília: o canteiro de obras da cidade planejada e
o fator aglomeração”. A “construção injusta do espaço urbano”,
como no título de Aldo Paviani, não diz respeito apenas à cons-
trução física do espaço urbano. Diz também respeito ao “processo
de imobilizar a força de trabalho”, como analisa Gustavo Lins Ri-
beiro.
Toda cidade brasileira se caracteriza por uma segregação,
ainda que não seja “a capital da segregação” como no título de
Luiz Alberto Gouvêa. Nossas cidades estão partidas, como nossas
sociedades, entre casas-grandes urbanizadas e as favelas organi-
zadas como senzalas. Não apenas as cidades, cada casa de brasi-
leiro de classe alta ou média está dividida entre a casa-grande da
sala e dos quartos dos donos e as senzalas dos apertados quartos
de empregados domésticos.
O mais sério é que tudo isto é planejado, e tão bem planeja-
do que a maior parte de nós não percebe. Por isso, é tão impor-
tante desvendar esta realidade, como faz Neio Campos ao expli-
car a “segregação planejada”. Mas não é fácil fazer os intelectuais
brasileiros aceitarem esta idéia, porque eles fazem parte do lado
da casa-grande e, mesmo quando criticam, denunciam e desejam
solução, buscam defender a ilusão de que todos devem morar na
casa-grande, sem perceberem, por não desejarem, que há uma cla-
ra lógica fazendo com que estes dois lados se unam na construção
da cidade que é o Brasil. Enquanto houver casa-grande, a senzala
não será abolida, porque uma existe graças à outra. Não se faz um
sistema de transporte urbano com todos usando automóveis priva-
dos. Não se consegue acabar com favelas construindo casas com
piscina para toda a população.
Prefácio 11

Se não consideramos as cidades da África do Sul, Brasília é a


cidade do mundo que mais explicita a segregação social, pela se-
paração nítida entre o Plano-Piloto e as cidades-satélites.
Só esta primeira parte do livro já justificaria uma grande
contribuição. Mas, os autores perceberam que o trabalho deles
não poderia se limitar a ver o mundo físico e estático da segrega-
ção. Era preciso ver a dinâmica social que há por trás. Às vezes
invisível aos desprevenidos. E compuseram a segunda parte que
analisa os movimentos que ocorrem nas veias do processo urbano,
através dos movimentos populares. Seja de uma forma global dos
'movimentos sociais em Brasília”, como faz Luciana Jaccoud, ou
específico, como faz Nair Bicalho de Souza, com o estudo do
“movimento de pré-fixação e urbanização do Núcleo Bandeiran-
te”, ou da “luta desigual pela posse da terra no caso da vila Para-
noá”, de Luiza Naomi Iwakami, ou ainda no caso mais detalhado
da análise histórica de um grupo específico de mobilização, como
a realizada por Mara Resende, com “a experiência dos inquilinos
de Ceilândia”.
Estes quatro artigos conseguem, no conjunto, mostrar como a
sociedade segregada encontra um canal de escape através dos
movimentos sociais. Como o sistema tenta impedi-los, enfrenta-os
e coopta-os em um processo constante de luta pela sobrevivência
de uns e pela garantia dos privilégios de outros.
O livro, no seu conjunto, traz uma mensagem de otimismo, na
medida em que mostra que esta segregação não fez uma cidade
acabada. Que, no processo de fazer a segregação, constrói a
consciência que a destruirá. E neste processo este livro tem uma
grande importância ao desnudar para nós a realidade que vivemos
em Brasília. Ao terminar sua leitura, ele fica incompleto se não
nos provoca uma pergunta: o que fazer? Como continuar a cons-
trução desta cidade, destruindo a segregação existente entre os
privilegiados e os despossuídos.

Cristovam Buarque
Universidade de Brasília
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APRESENTAÇÃO

A produção do conhecimento a respeito da urbanização no


Distrito Federal ressente-se de avanços sobre a problemática so-
cial. A partir desta constatação, não foi difícil formar um grupo
de especialistas que vinham se dedicando à superação desta lacu-
na temática no estudo da capital federal. A lacuna na literatura
científica poderia ter sido preenchida com anterioridade, não fos-
se a primazia dada ao conhecimento da própria formação da cida-
de, ou melhor, de sua estruturação e relações socioespaciais no
Interior do Distrito Federal.
A importância destes temas para o descortinamento de ques-
tões teóricas e históricas sobre a cidade, juntamente com a neces-
sidade de divulgação de trabalhos em andamento, inéditos, ou
elaborados especialmente para esta obra, levou um grupo formado
por antropólogos, arquitetos/urbanistas, siciólogos e geógrafos a
debaterem as respectivas colaborações em sucessivos seminários.
Os debates sobre as pesquisas e estudos dos autores tiveram o
mérito de permitir a elaboração de uma obra complementar às
coletâneas anteriormente produzidas na UnB, nas quais a questão
do espaço urbano foi proeminente sem aprofundar o papel que os
movimentos populares e lutas sociais exerceram na formação e na
estrutura urbana de Brasília.
A presente coletânea torna evidente a necessidade de se am-
pliarem os estudos sobre o urbano, seja de uma única cidade, co-
mo é o caso de Brasília, seja da urbanização brasileira como um
todo. A tendência é a superação dos enfoques especializados ou
disciplinares, partindo-se para a desafiadora tarefa a ser cumprida
interdisciplinarmente. O ponto de partida para esta etapa é a idéia
de que a dinâmica urbana apresenta uma realidade tão cheia de
variações que um saber especializado já não a abarca em sua to-
talidade. Por outro lado, o crescente volume de pesquisas e tra-
balhos esparsos, com produções importantes.mas dispersas e iné-
ditas na forma de teses, dissertações de mestrado, ensaios ou re-
14 Aldo Paviani

latórios, enseja a reunião de grupos interdisciplinares para o de-


bate e para a reflexão.
Ademais, se atentarmos para a urbanização em áreas metro-
politanas, percebe-se que a interdisciplinaridade é o caminho para
superar a magnitude dos processos socioespaciais, que um pes-
quisador (especializado e específico) terá dificuldade em analisar
em sua totalidade. Com a abordagem da urbanização em áreas
metropolitanas, amplia-se o foco de interpretação que somente se
atinge com equipes inter e multidisciplinares, ganhando-se, em
consequência, qualidade e abrangência, incluindo-se conquistas
no âmbito da própria epistemologia do urbano.
Daí a importância que, ao conhecimento gerado nas obras
anteriores sobre Brasília, seja agregado conhecimento novo,
abrindo-se ao questionamento dos problemas sociais subjacentes
na estruturação da cidade, como é o caso das lutas e movimentos
populares. Como um marco de referência, lembramos que, em
Brasília, ideologia e realidade; espaço urbano em questão
(1985), a cidade é interpretada à luz de sua concepção (história
política), desenvolvimento (arquitetura/urbanismo) e estruturação
interna (geografia/antropologia). Nela foram tratadas as macro-
questões da organização urbana. Na obra Urbanização e metro-
polização; a gestão dos conflitos em Brasília (1987), recuperam-
se estudos de caso, igualmente com a idéia de agregar trabalhos
esparsos, sob o tratamento interdisciplinar. Em ambas, todavia, a
questão da construção do espaço sob a pressão de demandas po-
pulares não comparece intensamente. É neste sentido que o pre-
sente texto reúne contribuições em duas unidades. A primeira
agrupa cinco trabalhos para o entendimento da questão da organi-
zação do espaço, sob a óptica das problemáticas que lhe são ine-
rentes. A segunda, composta por quatro textos, trata de modo es-
pecífico os movimentos populares, constitutivos da história da
organização social e espacial da cidade, seja em um dado con-
texto histórico (os primórdios de Brasília), seja em algum ponto
específico da cidade (Ceilândia, Vila Paranoá e Núcleo Bandei-
rante). A ordem de entrada dos textos em cada unidade se deu por
precedência histórica das temáticas abordadas.
O primeiro conjunto de textos se abre com o trabalho de
Gustavo Lins Ribeiro intitulado “Acampamentos de grande pro-
jeto, uma forma de imobilização da força de trabalho pela mora-
Apresentação 15

dia”. Ribeiro ressalta que as atividades econômicas de grande


porte, destinadas a atender às necessidades de economias de mer-
cado, procuram estabelecer relações estáveis, em maior ou menor
grau, entre capital e trabalho. Para isso, a imobilização da força
de trabalho é noção central para a compreensão dos processos de
exploração da mão-de-obra, e da expansão dos sistemas econômi-
cos. À partir da analogia entre o sistema fábrica/vila operária e o
sistema acampamento/grande projeto, Ribeiro analisa o acampa-
mento de uma empreiteira participante da construção de Brasília,
no período anterior a sua inauguração. Interpreta a configuração
do acampamento da “redonda” tendo como pano de fundo a hie-
rarquia interna à construção civil e as características da força de
trabalho típicas de um grande projeto como a construção da capi-
tal federal. O autor vê também a organização da vida nos acam-
pamentos como ajustada às necessidades produtivas de um grande
projeto como uma forma de instituição total. Ao final, Ribeiro
sugere ser necessário um maior número de pesquisas indepen-
dentes sobre as diversas formas que o sistema acampamen-
to/grande projeto assume no Brasil e fora dele, visando a um
avanço do conhecimento a respeito.
“O canteiro de obras de uma cidade planejada e o fator de
aglomeração” é a contribuição subseqiente, de autoria de Luiz de
Pinedo Quinto Junior e Luiza Naomi Iwakami. Este texto traz a
leitura das relações socioespaciais e de trabalho sob a óptica dos
desenvolvimentos teóricos do Centro de Sociologia Urbana de
Paris, particularmente no que diz respeito ao processo de constru-
ção de Brasília. Os autores tomam como referencial os trabalhos
mais recentes sobre a capital federal, que utilizam uma visão crí-
tica das relações socioespaciais, bem como das condições especí-
ficas da reprodução da força de trabalho, tais como o artigo de
Gustavo Lins Ribeiro, de 1982, a obra de Nair Bicalho de Souza,
de 1983, e as coletâneas organizadas por Paviani, de 1985 e
1987. Os autores indicam que a estrutura e a configuração urbana
de Brasília são resultantes dos processos concretos das relações
de reprodução da força de trabalho e suas relações com o fator de
aglomeração.
Uma avaliação da ação governamental na área da habitação
no interior do Distrito Federal está contida em “A capital do
controle e da segregação social”, de Luiz Alberto Gouvêa. Em
16 Aldo Paviani

sua análise ressalta como a ideologia e o modo de produção ca-


pitalista têm, com fequência, instrumentalizado o espaço urbano
em Brasília, a serviço de um processo de dominação de classes,
por meio das ações do Estado. Observa, também, que a atuação
governamental nunca visou resolver o problema habitacional na
cidade mas sim utilizá-lo como objeto. de manipulação política,
ideológica e econômica. Ressalta que a estrutura urbana do Dis-
trito Federal foi implantada como um reflexo da ação sistemática
de erradicação de favelas e da construção de grandes conjuntos
habitacionais, localizados em pontos distanciados do principal
centro de empregos e da sede dos poderes da República, o Plano-
Piloto. Salienta, ainda, que o poder público utilizou o planeja-
mento urbano, em particular a habitação, de forma ideológica com
o intuito de segregar e controlar a população. Agrega, igualmen-
te, que o Estado, ao mesmo tempo, lançou mão de sua prerrogati-
va de detentor dos estoques de terras para expulsar a população
pobre para as periferias, estocando e valorizando o patrimônio
fundiário para entregá-lo aos setores empresariais. Com isto, se-
gundo Gouvêa, o Estado agiu de forma semelhante às empresas
imobiliárias, numa política que incrementa a injustiça social. O
autor avalia a ação governamental, ao longo dos últimos trinta
anos, e denuncia as políticas opressoras e de exploração das clas-
ses populares por parte do governo do Distrito Federal.
Igualmente, com o propósito de suscitar debates sobre o ca-
ráter segregador assumido pela organização espacial de Brasília,
Neio Campos contribui para coletânea com o trabalho “A segre-
gação planejada”. Inicialmente, considera que a produção e a re-
produção do fenômeno da segregação estão determinadas pelas
intermediações estabelecidas entre as lógicas estruturais das rela-
ções sociais no modo de produção capitalista e a atuação de
agentes sociais (usuários de moradia, empresas imobiliárias, pro-
prietários, etc.) e institucionais. A partir de uma análise histórico-
estrutural, procura destacar a atuação dos diversos capitais imo-
biliários envolvidos na formação do espaço construído, compre-
endendo o processo de como se apropriam da renda fundiária ur-
bana e criam os diversos submercados imobiliários, os quais, ao
possuírem certas regras estáveis de funcionamento, produzem e
reproduzem a segregação residencial. O fato de Brasília manter-se
sob um rígido controle governamental ao longo de todos os mo-
Apresentação TZ

mentos de formação do seu quadro físico-territorial, apresentando


a situação angular de possuir terras para desenvolvimento urbano
sob o monopólio do poder público, tem-se constituído, contradito-
riamete, num dos fatores acentuadores da segregação residencial.
Campos conclui que o Estado, ao controlar o momento de trans-
formação da terra urbana, o realiza como mercadoria e, devido a
esta forma de atuação, o faz com o preço de monopólio, não con-
cretizando, desta maneira, a utilização social da terra no Distrito
Federal, que justificaria a criação deste monopólio.
Em nossa contribuição “A construção injusta do espaço ur-
bano**, analisamos o problema da espacialização da cidade, que
tem como vetores mais evidentes a moradia e as infra-estruturas,
basicamente, implantadas pelo governo do Distrito Federal.
Questionamos o fato de que, resolvendo, em parte, o problema da
moradia, a administração pública não se dê conta de que faltam
oportunidades de trabalho fora do Plano-Piloto, o centro de Bra-
sília. Com isto, esperamos mais do que trazer apenas ao debate a
problemática do trabalho na constituição da Capital, demonstrar
que a urbanização seletiva e injusta tem, na falta de oportunidade
de trabalho, uma das fontes da segregação socioespacial. Por esta
via, desejamos contribuir para o entendimento de como as “lacu-
nas de trabalho”, ao lado da questão da moradia, afetam a cons-
trução inegualitária do espaço urbano. Por este motivo, sugerimos
que se altere o perfil das atividades correntes, basicamente calça-
do no terciário, ensejando a abertura de oportunidades de trabalho
na periferia, sobretudo em empreendimentos não poupadores de
mão-de-obra. Pensa-se que, descentralizando-se a criação de
postos de trabalho, as “cidades-satélites reduzirão o grau de de-
pendência em relação ao centro da cidade e, com isto, absorverão
um enorme contingente de “ativos em disponibilidade”, atualmente
excluídos da produção e do consumo. As evidências recomendam
que os movimentos populares explicitem em suas pautas de luta a
problemática do trabalho e da ampliação das oportunidades de
emprego na própria periferia. Ademais, pleiteia-se que, na opor-
tunidade das eleições distritais (para governador e deputados), em
outubro de 1990, a periferia faça uso dos poderes do voto para
obter ganhos palpáveis, pleiteando a redução da segregação a que
está submetida e elevando as possibilidades que a cidadania plena
permite conquistar.
18 Aldo Paviani

Enquanto o primeiro conjunto de contribuições analisa as-


pectos espaciais pontualizados, o segundo tem como denominador
comum e se articula em torno da pressão das demadas populares.
Na abertura do segundo conjunto, Luciana Jaccoud contribui com
“Lutas sociais: populismo e democracia — 1960/1964”. Tendo
como objetivo a análise do processo de emergência e desenvolvi-
mento das lutas sociais e movimentos populares que surgiram em
Brasília nos quadros da democracia populista, a autora procura
resgatar a trajetória da participação social e política das classes
trabalhadoras no processo de constituição da cidade. Partindo da
análise de registros na imprensa local, o trabalho realiza, em pri-
meiro lugar, um levantamento dos principais eventos mobilizado-
res das classes populares em Brasília, relacionados em quatro
grandes temas: a moradia, as reivindicações trabalhistas, a ques-
tão rural e as lutas sociopolíticas de caráter mais geral. A análise
da evolução destes temas ano a ano e dos principais eventos a ca-
da um deles vinculados permite visualizar as características e o
processo de transformações por que passam as lutas sociais do pe-
ríodo, considerando tanto as reivindicações como as organizações
que lhes davam suporte. Na segunda parte do trabalho, desenvol-
ve uma análise deste processo relacionando-o tanto às especifici-
dades da estrutura social e política da cidade então, como à sua
articulação com o cenário político nacional no contexto da crise
do modelo populista no país, seus dilemas e perspectivas.
Em seguência, Nair Heloisa Bicalho de Sousa analisa o Mo-
vimento Pró-Fixação e Urbanização do Núcleo Bandeirante (MP-
FUNB), enquanto parte da história social de Brasília, marcando a
tradição de lutas populares iniciadas desde sua construção. Tendo
como cenário político o populismo, a autora reconstitui as rela-
ções entre o líder carismático Jânio Quadros e os moradores do
Núcleo Bandeirante, tendo como eixo a proposta de fixação e ur-
banização do núcleo. Por meio da bibliografia selecionada para a
discussão do populismo janista, abre o campo para as questões
explicativas da origem, dinâmica e resultado do referido movi-
mento. A seguir, utilizando material da imprensa local e entre-
vistas realizadas com membros da direção do movimento, levanta
aspectos relacionados à vida cotidiana dos moradores da então
chamada “*Cidade Livre”, a formação de “invasões” e as diferen-
tes instâncias de análise do movimento: surgimento, objetivos,
Apresentação 19

formas de participação, estratégia, níveis de organização, ativida-


des desenvolvidas pelos membros, relacionamento com represen-
tantes das instituições públicas, ação repressiva, organizações so-
ciais e políticas envolvidas, desfecho e memória da luta. Com a
análise destes diferentes aspectos, o MPFUNB caracterizou-se
pela capacidade de auto-organização e autodeterminação, de-
monstrando um nível de resistência organizada diante das investi-
das repressivas no sentido da demolição do Núcleo, apoiando-se
nos partidos políticos sensíveis às reivindicações populares, po-
rém mantendo a autonomia do movimento e questionando o mo-
delo de cooptação/clientelismo vigente. A democracia interna, a
luta coletiva solidária e o apoio parlamentar acabaram por garan-
tir a conquista do direito à cidade, tratando-se da única “satélite”
criada por projeto de lei aprovado no Congresso Nacional. Para
Nair Bicalho, o MPFUNB revelou “a outra face do populismo ja-
nista” colocando a nu o perfil autoritário do carismático líder, en-
coberto em outras áreas do país por uma ideologia presa a um dis-
curso moralista, apelando à violência verbal e ao ideal de justiça
como meios de constituição de uma base eleitoral fiel e servil aos
seus propósitos.
Os “Movimentos de moradores: a experiência dos inquilinos
de Ceilândia” são tratados por Mara Resende dentro do contexto
da redemocratização do país, a partir de 1978/1979, quando res-
surgem no cenário nacional inúmeros movimentos lutando por
melhores condições de vida. Tais movimentos ganham dimensão
política ao colocar em xeque um sistema que impedia a prática e o
exercício da cidadania. Na esteira destes acontecimentos o traba-
lho de Mara Resende focaliza a experiência dos inquilinos de
Ceilândia, num movimento que surge em 1983 reivindicando mo-
radia. Demonstra a precocidade da segregação socioespacial, rea-
lizada em Brasília, e evidencia Ceilândia como uma “cidade-saté-
lite” criada como solução de moradia para a população favelada
da Cidade Livre e arredores. Só que, como demonstra a autora,
isto não aconteceu, pois Ceilândia, na época, é reconhecida como
uma grande favela, fruto da ação do próprio governo. Nesse con-
texto, emergiu um numeroso contingente de famílias morando de
aluguel, em habitações de baixíssimo padrão de qualidade, fato
agravado pelas ameaças constantes de despejo feitas pelos pro-
prietários dos imóveis. Isso levou os inquilinos a pleitear moradia
20 Aldo Paviani

junto ao governo local, o que é mostrado no texto pelos embates


travados no desenrolar do movimento. A ação empreendida pelos
inquilinos resulta em saldos positivos para o movimento, pois são
concedidos 6 300 lotes na área que hoje é conhecida por '*Expan-
são do Setor O” da Ceilândia. Em face disso, o significado do
movimento dos inquilinos de Ceilândia é avaliado não em termos
da sua potencialidade de transformar os alicerces da estrutura so-
cial, mas pela afirmação do direito que têm os segmentos oprimi-
dos e espoliados da sociedade de viver com dignidade, conclui
Mara Resende.
A última contribuição, de autoria de Luiza Naomi Iwakami,
trata da “Vila Paranoá: a luta desigual pela posse da terra urba-
na”. um exemplo a mais no conjunto de contribuições em que a
posse de um lote (e da habitação) mantém a população coesa por
décadas, no caso mais de três. O trabalho analisa a estruturação
espacial de Brasília, em função da condição de habitação e das
lutas travadas por um segmento de sua população na conquista
deste direito mínimo dentro da cidade. Inicialmente, enfoca a
questão do significado de Brasília como capital da Nação e as
implicações trazidas pelo fato de ter sido projetada e construída
em menos de sete anos, sendo obra monumental com consequên-
cias no âmbito regional e local. A autora ressalta que a condição
estabelecida para os trabalhadores que permaneceram em Brasília
após sua construção (o que não estava previsto, inicialmente) de-
terminou a estruturação das “cidades-satélites” e o posterior refor-
ço da segregação socioespacial. Este fato vem sendo motivo de
determinados movimentos de resistência por parte dos moradores
que, no entanto, sofrem repressão de toda ordem e propostas para
que migrem para outros estados ou para projetos específicos, co-
mo os de reflorestamento. No exame do caso concreto da Vila Pa-
ranoá, Luiza Iwakami conclui que o movimento de seus morado-
res reflete uma parte do processo mais amplo, ainda em curso e
que vai construindo uma prática coletiva dentro da grande favela
— ou melhor, no interior de uma vila com constituição de verda-
deira cidade.
Ao finalizar, gostaríamos de informar que a presente coletã-
nea pretende suprir, como referido, uma lacuna existente nas
obras anteriores, mas que, de forma alguma, esgota as possibili-
dades de análise do fato urbano que Brasília suscita. Ao contrá-
Apresentação 21

ro, o desenvolvimento de pesquisas e estudos referentes à ques-


tão cultural ensejaria outras contribuições e, quem sabe, outra
coletânea de textos. Assim sendo, com apenas trinta anos de
inaugurada e quase dois milhões de habitantes, Brasília se cons-
tituiria em verdadeiro “laboratório” de experiência da construção
de espaço urbano, que necessita de ações concretas no sentido de
ampliar as conquistas de direitos básicos da cidadania, de acesso
aos bens e serviços públicos urbanos e ao espaço político da de-
mocracia.
O leitor encontrará, no final desta obra, uma síntese biblio-
gráfica consolidada, com o que se pretende facilitar e estimular a
continuidade das pesquisas e estudos sobre o urbano em nosso
contexto.

Aldo Paviani
Maio de 1990
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ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO
ACAMPAMENTO DE GRANDE PROJETO,
UMA FORMA DE IMOBILIZAÇÃO DA FORÇA DE
TRABALHO PELA MORADIA

Gustavo Lins Ribeiro

O que leva um engenheiro a considerar como uma “gaiola de


ouro” a luxuosa área em que vive em um acampamento da cons-
trução de uma grande hidrelétrica? Ou que os alojamentos coleti-
vos para trabalhadores sem família em grandes projetos sejam
chamados por muitos de Alcatraz? Neste artigo, a partir de um
caso paradigmático — um acampamento da época da construção de
Brasília anterior à sua inauguração (1957-1960) — analisarei as
características internas desta forma de imobilização da força de
trabalho!. Também considerarei a importância dos estudos sobre
imobilização da força de trabalho, sua relação com a expansão de
sistemas econômicos e com a formação de sistemas regionais.
Terminarei com algumas notas visando apontar a necessidade de
se estabelecer uma tipologia morfológica da situação acampa-
mento/grande projeto.

1. Imobilizando a força de trabalho

O estudo da “imobilização da força de trabalho” é de interesse


não apenas para aqueles cientistas sociais que se preocupam com
o surgimento das formas de exploração típicas do capitalismo.
Num plano mais genérico, a imobilização da força de trabalho
pode ser relacionada com a necessária sedentarização de popula-
ções humanas para o desempenho de atividades estáveis e sus-
tentadas no decorrer do tempo em lugares determinados. Aqui a

1. Boa parte deste texto é um capítulo de minha dissertação de mestrado (Ribeiro


1980) que foi enriquecido com o resultado de pesquisas e trabalhos subsequentes
(Ribeiro 1987, 1988, por exemplo).
26 Gustavo Lins Ribeiro

“imobilização” claramente se contrapõe à existência de populações


nômades com suas lógicas internas, pertinentes seja à apropriação
de recursos naturais em diferentes ecossistemas, seja à mediatiza-
ção, via comércio, de diferentes sistemas econômicos. Isto não
quer dizer que economias como a capitalista, por exemplo, não
tenham espaço para populações nômades subordinadas claramente
aos seus interesses, como aquelas chamadas por Marx ““proleta-
riado nômade”, “infantaria ligeira do capital”, ou ainda “coluna
móvel da pestilência””, ao referir-se a trabalhadores vinculados a
grandes projetos realizados no século XIX (sobretudo ferrovias)?.
A “imobilização” também se contrapõe à existência de populações
sedentárias (ou seminômades) porém não vinculadas totalmente a
sistemas integrados de mercado. Isto é, muitas vezes um sistema
político-econômico que se expande . absorve compulsoriamente
uma determinada população já sedentária, pela intervenção direta
nas suas formas de apropriação do espaço, através da criação de
novas configurações espaciais, residenciais e produtivas. Aqui um
exemplo clássico é a missão religiosa que através da “redução” de
índios seminômades em vilas padronizadas impede a reprodução
do modo de vida anterior. Em suma, imobilização da força de
trabalho é uma noção que remete aos interesses de um sistema
político-econômico que se expande e que, para tanto, necessita
recrutar, administrar e controlar, temporária ou permanentemente,
populações humanas que lhe produzam consistentemente exce-
dentes e riquezas. Entretanto, uma especificidade da sedentariza-
ção e concentração populacional promovida pelo capitalismo é a
criação de um proletariado vinculado à indústria.
A discussão sobre “imobilização da força de trabalho” pode
ser entendida como um subcampo da vasta literatura sobre pro-
cessos migratórios (entendidos no sentido amplo de movimento
populacional e suas consequências) — em especial no que diz res-
peito à proletarização e criação de sistemas de trabalho migrante
(veja-se Burawoy 1976, Balán 1980). Por outro lado, ela é parte

2. A este respeito veja-se Leite Lopes (1988, anexo 1). Em meu trabalho sobre a hi-
drelétrica binacional de Yacyretá (Ribeiro 1988), obra em execução sobre o rio
Paraná, na fronteira da Argentina com o Paraguai, elaborei, para interpretar um
caso do que pode ser designado genericamente *nomadismo industrial”, a concepção
de “circuito migratório dos grandes projetos” para dar conta da existência de traba-
lhadores migrantes, os bichos-de-obra, associados à execução destes empreendi-
mentos. ;
Acampamento de grande projeto 2%

da literatura sobre subordinação e disciplinarização da força de


trabalho vinculada a sistemas industriais (veja-se, por exemplo,
Foucault 1975, Leite Lopes 1988).
A exploração mais sistemática sobre imobilização da força de
trabalho é aquela do antropólogo José Sérgio Leite Lopes que, há
anos, e num inconfundível estilo que combina filigranas historio-
gráficas e etnográficas com uma sólida visão teórica, vem estu-
dando a classe operária, suas condições de trabalho e, em espe-
cial, a chamada questão da habitação (Leite Lopes 1976, 1979,
1988). No percurso que realizou, José Sérgio nos brindou com
uma sofisticada contribuição para o entendimento das formas de
imobilização da força de trabalho elaborando a noção de sistema
fábrica com vila operária (Leite Lopes 1979).
A construção de uma vila operária anexa a uma grande uni-
dade produtiva industrial localizada em área “isolada” ou rural é
uma solução clássica para a criação de uma força de trabalho dis-
ciplinada e permanentemente vinculada às necessidades produti-
vas de uma fábrica. No entanto, a vila operária promove não ape-
nas o estabelecimento da relação capitalista/proletário, mas tam-
bém uma forma de subordinação específica onde os interesses da
esfera produtiva invadem claramente todas as outras esferas da
vida cotidiana do trabalhador, submetendo-o e a seu grupo do-
méstico, através da moradia, às necessidades da fábrica (Leite Lo-
pes 1979). Com a persistência do sistema, a vila operária tende ao
“transbordamento”, pelo surgimento de uma população prestadora
de serviços e de um amplo mercado de trabalho, transformando-se
progressivamente em núcleo urbano.
A imobilização da força de trabalho através da moradia está
associada ou permanentemente — não apenas nos casos da usina
de açúcar e da fábrica têxtil, tipicamente analisados por Leite Lo-
pes, mas também na mineração e nas indústrias da construção ci-
vil e petrolífera”. A presença de um sistema fábrica/vila operária,
ou dos seus análogos mina/vila operária, grande projeto/acampa-
mento, tem impactos evidentes na criação de núcleos urbanos e
sistemas regionais, como o que acontece, por exemplo, com a
configuração espacial do estado do Texas, nos EUA, da Patagô-

3. Neiburg (1988), utilizando a noção de sistema fábrica/vila operária, estudou a evo-


lução de uma indústria de cimento na Argentina.
28 Gustavo Lins Ribeiro

nia, na Argentina (quando se trata da indústria petrolífera) e do


sistema regional da Amazônia, no Brasil (quando se trata de
grandes projetos). As célebres company towns, outra forma clás-
sica de imobilização da força de trabalho, foram em grande medi-
da responsáveis pela criação de vários sistemas regionais nos Es-
tados Unidos?. As diversas formas de imobilização da força de
trabalho são, portanto, centrais não apenas para o surgimento de
grandes unidades produtivas capitalistas mas também, e com um
efeito muito maior em termos da expansão e permanência de sis-
temas econômicos, para a constituição da malha regional por onde
circularão mercadorias, riquezas e força de trabalho”.
Com a crescente disponibilidade de energia e informação que
caracterizam algumas economias capitalistas do hemisfério norte,
disponibilidade esta possibilitada pela grande extensão da rede
elétrica e pelo desenvolvimento das telecomunicações e da infor-
mática, a concentração espacial tipicamente promovida pelo ca-
pitalismo industrial, visando otimizar o uso dos fatores produti-
vos, deixa de ser estritamente necessária, salvo nos casos em que
se esteja explorando algum recurso natural ou humano localizado
em área isolada. Contemporaneamente, assistimos ao parcela-
mento dos processos produtivos dentro do sistema mundial”.
Neste processo, o fator principal ainda parece ser disponibilidade
de força de trabalho barata em regiões relativamente isoladas (daí
a existência de 'novos” mecanismos como as zonas de processa-
mento para exportação, ZPES). Se esta tendência ao parcelamento
em escala global persistir, certamente assistiremos ao surgimento
de novas formas de imobilização da força de trabalho, como
aquelas embrionariamente existentes em países asiáticos envol-
vendo mulheres e a indústria eletrônica”.

4. Sobre esta questão, ver, por exemplo, Olien& Olien (1982), Rofmantlo7S), Becker
(1986) e Allen (1966).
5. Para uma análise sobre grandes projetos e a formação de sistemas regionais veja
Laurelli (1987).
6. O exemplo mais claro do novo parcelamento e da globalização do processo produ-
tivo está na indústria eletrônica.
7. Para análises sobre formas contemporâneas de expansão econômica e subordinação
de populações locais, egês se a coletânea organizada por Nash & Fernández-Kelly
(1983).
Acampamento de grande projeto: 29

A seguir, me deterei na compreensão de uma forma específia


de imobilização da força de trabalho: o acampamento de grande
projeto.

2. O sistema grande projeto/acampamento: uma descrição


a partir de um caso brasiliense

A necessidade de contar com milhares de pessoas para a rea-


lização de uma obra gigantesca traz a questão da habitação para o
primeiro plano, no planejamento e execução de um grande proje-
to. Aqui tratarei especificamente de uma característica central de
qualquer grande obra: a presença obrigatória de grandes acampa-
mentos para dar conta da moradia das milhares de pessoas que
acorrem ao território do projeto. Minha intenção também é mos-
trar o acampamento como uma forma de moradia que contribui
para uma maior exploração da força de trabalho na medida em
que, sendo uma forma diretamente ajustada à lógica da atividade
produtiva, implica, à semelhança do que ocorre na relação fábri-
ca/vila operária, uma efetiva subordinação da quase totalidade do
cotidiano do operariado nele residente aos interesses da esfera da
produção, adquirindo claros contornos de instituição total.
Grandes projetos, como a construção de Brasília, frequente-
mente ocorrem em áreas parcamente povoadas, atraindo trabalha-
dores migrantes e tornando a construção de acampamentos obri-
gatória. Se assim não fosse, haveria que deixar aos que chegam a
decisão de construir suas habitações onde pretendessem, o que
acarretaria um sem-número de problemas, dado que a relativa dis-
persão populacional que provavelmente ocorreria poderia implicar
inclusive ocupação de áreas destinadas à edificação da obra. Mais
importante ainda, a dispersão dos trabalhadores implicaria não
poder efetivamente subordiná-los a um controle cotidiano ajusta-
do aos interesses da atividade produtiva, o que é garantido pela
imobilização da força de trabalho através do acampamento. Pode-
se supor também que a não concentração de trabalhadores em
pontos estratégicos para a realização de uma grande obra impli-
caria um aumento da necessidade de infra-estrutura para a manu-

8. Vide a discussão introdutória sobre imobilização da força de trabalho e a última se-


ção desta parte do artigo para uma definição de “instituição total”.
30 Gustavo Lins Ribeiro

tenção da população na área: um maior número de estradas ligan-


do os principais pontos do território da construção, mais reserva-
tórios de água, geradores de energia, delegacias de polícia, postos
de saúde, etc. A dispersão implicaria, ainda, que a solução co-
mum de ter um único núcleo destinado à prestação de serviços se-
ria insuficiente. Deste modo, seriam necessários diversos núcleos
menores, mais difíceis de serem controlados e com maior custo de
construção. Sem dúvida a concentração de população em pontos
estratégicos para a atividade produtiva é altamente funcional para
a realização de um grande projeto.
A presença obrigatória do acampamento — em que pese num
primeiro momento poder aparentemente ser considerada como um
investimento de capital fixo do tipo não-produtivo (Leite Lopes
1976:110) — no desenrolar dos trabalhos demonstra sua grande
organicidade para a manutenção das características mais amplas
necessárias ou típicas da exploração da força de trabalho vincula-
da a um grande projeto. Há que frisar que é comum, como no ca-
so da construção de Brasília e da represa hidrelétrica binacional
de Yacyretá, na fronteira paraguaio-argentina, que os capitalistas
individuais, representados pelas diversas empresas de construção,
não tenham que computar em seus gastos as despesas com cons-
truções de acampamentos uma vez que estas são assumidas pelo
Estado. Em Brasília, o presidente da Companhia Urbanizadora da
Nova Capital (Novacap), órgão governamental responsável pela
construção da cidade, ao explicar o relacionamento por ela manti-
do com as empreiteiras afirmou:
Acresce ainda a vantagem, pelas condições peculiares das constru-
ções em Brasília, que os acampamentos, que representam percenta-
gem apreciável no custo das obras, são de propriedade da Novacap,
que os utiliza para outros serviços sem necessidade de novo investi-
mento para esse fim (Diário de Brasília 1959:274)º.
José Sérgio Leite Lopes e L. A. Machado da Silva, ao anali-
sarem a situação de fábrica com vila operária, apontam para uma
completa dependência do capital que se refere “não somente
aquela que se estabelece entre o produtor direto e o seu patrão ao
nível do trabalho, mas também à que se estabelece, entre esses

9. Diário de Brasília é o nome de uma coleção de diversos volumes, organizada e edi-


tada pelo Serviço de Documentação da Presidência da República.
Acampamento de grande projeto EM

mesmos atores, ao nível da moradia; não somente portanto com


relação à produção, mas o capital controlando tambéma própria
materialização da reprodução do trabalhador” (1979: 13-14). Co-
mo sabemos, a construção civil é uma atividade produtiva que
implica uma imobilização da força de trabalho passível de ser
classificada como “situação de completa dependência do capital”
que, contudo, não se realiza através da forma da vila operária
(dado o próprio caráter “itinerante” da construção civil), mas da
forma de alojamento provisório, ou sua forma mais agigantada e
complexa, o acampamento10,
Assim, se os alojamentos são comumente encontrados nos
canteiros de obras de construções individuais, num grande proje-
to, isto é, num complexo combinado de várias construções parce-
lares, deparamo-nos com a presença de diversos grandes acam-
pamentos, ou melhor, de diversas áreas articuladas num gigantes-
co acampamento. Estas áreas, além de terem basicamente o obje-
tivo de prover residência para a população engajada no projeto,
incluem também equipamentos ligados à reprodução da vida no
território da construção (por exemplo, cantinas, postos de saúde,
armazéns, clubes, etc.) já que são consideráveis aglomerados lo-
calizados em territórios sem maiores prestações de serviço pré-
existentes. Não é por outro motivo que, na construção de Brasília,
criou-se um território “livre”, o atual Núcleo Bandeirante, uma
área de comércio e serviços destinada a atender à população tra-
balhadora residente, na sua maioria, em acampamentos (veja-se
Ribeiro 1982, e Bicalho neste volume).

2.1: Organização e características internas do acampamento


Em Brasília os grandes acampamentos vão sendo montados à
medida que a intensidade dos trabalhos vai aumentando e novas

10. É conhecida a presença dos alojamentos como forma de moradia operária relativa
ao ramo da construção civil. Leite Lopes (1979: 44-45), ao mencionar a presença
de grupos domésticos em vilas operárias, afirma: “No entanto, podemos vir a
pensar no caso da manutenção, por parte do patrão, de alojamentos para trabalha-
dores individuais sem família, materializados nos galpões e barracas em empreen-
dimentos como obras públicas, construção de estradas, barragens, construção ci-
vil, etc., e mesmo de certas fábricas [...].” De fato, mais adiante veremos a clara
predominância de trabalhadores sem família nos acampamentos. Sobre alguns as-
pectos da imobilização da força de trabalho na construção civil ver, por exemplo,
Pimentel (s.d.: sobretudo p. 23 e seguintes). Veja-se também a tese de livre-do-
cência de Ronaldo do Livramento Coutinho (1975).
32: Gustavo Lins Ribeiro

empreiteiras vão se engajando na construção!!. Em virtude das


características da população que se dirige para o território do
L
projeto e é selecionada para trabalhar na obra (homens jovens,
com saúde e desacompanhados de suas famílias), o objetivo cen-
tral é prover habitações coletivas para um grande número de tra-
balhadores sem família. Assim, nos acampamentos é onde se en-
contra a menor proporção mulheres/homens no território da cons-
trução da nova capital. Neles o déficit feminino chegou a expres-
sar-se numa cifra de 179 mulheres por mil homens (IBGE
195059pi2s
A importância dos acampamentos como solução habitacional
pode ser percebida no Censo realizado em 1959 (IBGE 1959:40)
que dividiu o território da construção em acampamentos (28 020
habitantes), núcleos provisórios (17 761 habitantes), núcleos está-
veis (6 277 habitantes) e zona rural (12 256 habitantes). Os habi-
tantes dos acampamentos formavam 43,5% da população total do
território (64 314), ou ainda, retirando-se desta cifra a população
da zona rural, 53,8%. Frisemos que o Núcleo Bandeirante, um
aglomerado de casas de madeira totalmente marcado pela presen-
ça de comerciantes e classificado como núcleo provisório, contri-
buía com uma população de 11 565 pessoas!3,

11. A solução para a moradia da população engajada na construção foi planejada em


termos de três conjuntos básicos considerados como provisórios: a) aquele dos
acampamentos destinados aos empregados da companhia pública, a Novacap, na
área conhecida como Candangolândia; b) os acampamentos das empreiteiras vin-
culadas sobretudo à construção do Eixo Monumental (praça dos Três Poderes, Es-
Planada dos Ministérios, Rodoviária, etc.), que conformaram a chamada Vila Pla-
nalto; e c) a Cidade Livre, centro de prestação de serviços que mais tarde se torna a
cidade-satélite do Núcleo Bandeirante. Este esquema, clássico em grandes proje-
tos, rapidamente foi superado pela chegada de sucessivas levas de migrantes que
passaram a ocupar áreas não destinadas a residências e das quais surgiram as pri-
meiras cidades-satélites de Brasília (Ribeiro 1982).
12. A baixa presença de mulheres nos acampamentos é indicadora da ausência relativa
de famílias. Ver, mais adiante, as cifras relativas ao que o Censo de 1959 classifi-
cou como grupos familiares e grupos conviventes.
13. Na classificação do Censo de 1959 os “acampamentos” compreendiam o Central da
Novacap e Candangolândia, o da praça dos Três Poderes (Vila Planalto), o Plano-
Piloto — Asa Sul (das diversas quadras em construção) e outros. Os “núcleos pro-
visórios” incluíam o Núcleo Bandeirante e o Bananal ou Vila Amauri, “invasão”
próxima à Vila Planalto e construída na área do futuro lago Paranoá. Os “núcleos
estáveis” eram Taguatinga (inicada em 58), Planaltina e Brazlândia, cidades goia-
Acampamento de grande projeto SE)

Outra maneira de ver mais de perto a importância dos acam-


pamentos é procurar entender sua organização interna e seu signi-
ficado para seus moradores. Desta forma, nos deteremos mais
detalhadamente sobre um acampamento, parte da Vila Planalto,
da firma construtora Redonda!4. A escolha deste acampamento de-
ve-se ao fato de ele fazer parte do conjunto maior que estrategi-
camente se localizava próximo à Praça dos Três Poderes e da Es-
planada dos Ministérios onde grande parte das principais obras
públicas se desenvolvia (palácios, ministérios, rodoviária, Teatro
Nacional, por exemplo). Além disto, este é um dos únicos acam-
pamentos ainda existentes que, com relativa facilidade, permitiu-
nos tanto encontrar informantes que nele vivem desde a época da
construção quanto reconstruir da melhor maneira possível sua
configuração espacial original!ó.
O resultado obtido nesta precoce arqueologia permitiu a per-
cepção de como as características estruturais de um grande pro-
Jeto migram, no sentido geertziano (Geertz 1978), para a organi-
zação espacial interna do acampamento, condicionando-a. Neste
sentido, a lógica que orienta sua construção reflete basicamente
duas linhas, advindas tanto da lógica da atividade produtiva,
quanto das particularidades da população presente no território,
elas mesmas determinadas pelas características da força de traba-
lho própria ao desempenho de um grande projeto (veja Ribeiro
1987).
Destaquemos, em primeiro lugar, a relação especular entre a
organização espacial do acampamento e a hierarquia própria ao

nas preexistentes à obra (IBGE 1959: x).


14. No texto, Redonda e Oval são denominações fictícias.
15. Agradeço ao arquiteto Luís Augusto Jungman Andrade que gentilmente acompa-
nhou-me várias vezes à área para confeccionar os croquis apresentados nas pági-
nas seguintes. Para a elaboração do croqui do acampamento da Redonda foi im-
prescindível a colaboração de um informante com quem várias vezes percorremos
a área, quando identificava para nós, além das construções hoje existentes, as mar-
cas de cimento que indicam as bases de prédios já derrubados. E claro que não
pretendo que este croqui seja reprodução fiel do acampamento original, visto que
modificações no seu contorno e no seu interior foram introduzidas no decorrer do
tempo. Além disso, há que se considerar que, apesar do acampamento da Redonda
ser um exemplo típico, parece ter sido um dos mais equipados em termos de dis-
ponibilidade de serviços internos, talvez justamente por ter sido um dos maiores
(acreditamos que podia abrigar uma população entre duas mil a três mil pessoas).
Seguramente outros acampamentos dispunham de organização interna com sepa-
rações e diferenciações espaciais e sociais mais rígidas.
34 Gustavo Lins Ribeiro

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Planta

CROQUI DE ALOJAMENTOS DE ati


PROFISSIONAIS SEM FAMÍLIA
sistema produtivo do setor da construção civil, sobretudo no que
diz respeito, num primeiro momento, à distinção serventes/profis-
sionais, e, num segundo momento, deste conjunto de trabalhado-
res e os controladores da produção (encarregados, mestres-de-
obra, engenheiros, administradores, etc.). Em segundo lugar, salta
aos olhos a ausência relativa de mulheres e famílias implicando
uma concentração e separação espacial segundo a destinação das
casas: unidades coletivas para trabalhadores sem família, unida-
des individuais para trabalhadores com família. Um informante
Acampamento de grande projeto 85

chegou mesmo a dizer que no acampamento “só tinha a separação


de sorteiro e com família. Daqui pra riba, família. Daqui pra bai-
Xo, sorteiro”. Um servente, residente no mesmo acampamento,
relembra que “toda a vida a firma trazia separado. Sorteiro de um
lado, família de outro. Nunca morou junto. Não morava peão
sorteiro morando com família, essa mistureira. Naquela época ti-
nha muito respeito, por isso que separava”.
Ao se pensar a configuração espacial do acampamento como
um continuum permeado pela lógica da hierarquia da construção
civil e pela ausência relativa de mulheres e famílias, vê-se que há
uma ruptura neste continuum que define a existência de dois la-
dos. A manifestação concreta desta ruptura é o grande espaço va-
zio, definido pelo estacionamento de caminhões e pelo campo de
futebol que separa um lado basicamente masculino/sem família e
formado por serventes e profissionais de um outro lado basica-
mente reservado aos controladores da produção com suas famí-
lias, com uma presença feminina marcadamente superior, portanto.
É certo que a presença de algumas casas de profissionais com
família no lado “masculino” do acampamento polui um pouco a
divisão do espaço obedecendo ao sexo. No entanto, a presença
destes profissionais com família confirma a divisão básica entre
trabalhadores e controladores da produção, e deve ser entendida
tendo em mente o número reduzido destas casas, tanto comparati-
vamente ao número de profissionais residindo em alojamentos
coletivos masculinos (calculamos um número máximo possível em
torno de 550 deles), quanto ao fato de a totalidade de controlado-
res da produção ter acesso a habitações individuais com suas fa-
mílias. É como se a condição de profissional não remetesse ainda
a uma posição na hierarquia da construção civil que permitisse o
acesso de todos os trabalhadores nesta categoria a habitações in-
dividuais (sobretudo localizadas no lado “privilegiado” do acam-
pamento), livres da incômoda e frequentemente perigosa (pa-
ra suas famílias) vizinhança dos alojamentos coletivos com suas
grandes populações masculinaslê. O fato de a grande maioria das

16. É fato que os acampamentos não primavam pela segurança individual dos seus ha-
bitantes:
“Mas num tinha muita ordem naquela época aqui não?
— Tinha ordem o quê! Tinha ordem o quê... dentro desse cinema mesmo aí Ô, no
tempo da Redonda af, um sujeito deu um tiro num af, esgotou sangue pra danar.
36 Gustavo Lins Ribeiro

residências individuais se destinar aos controladores da produção


e, residualmente, aos profissionais (em detrimento de todos os
serventes) reflete tanto o maior poder de barganha dos trabalha-
dores qualificados (por força da própria lógica hierárquica da
construção civil), quanto o fato de que, grosso modo, Os traba-
lhadores ao chegarem a nível mais qualificado de seu treinamento
também se encontram num momento de suas vidas quando já
constituíram famílias. Assim, contratar trabalhadores mais qualifi-
cados ou trazê-los para a construção de Brasília implicaria prover
também alojamento para seus familiares, sob pena de não possuir
argumentos (extra-salário) convincentes para o recrutamento, da-
das as difíceis condições de vida vigentes no território de um
grande projeto.

2.1.1. A segmentação dual do acampamento da Redonda

Detenhamo-nos, agora, sobre as características internas de


cada um dos lados definidos anteriormente. O lado classificável
como de trabalhadores sem família (serventes e profissionais),
embora tivesse uma população relativamente maior, ocupava um
espaço físico muito menor. Os alojamentos de serventes eram
compostos de grandes blocos sem maiores divisões internas, abri-
gando muitas dezenas de operários. De fato, à medida que o tra-
balhador situava-se em posição hierárquica mais alta, mais se res-
peitava sua condição individual, sua privacidade. Se os serventes
tinham que utilizar espaços comuns para dormir (com grandes im-
plicações para a higiene interna dos alojamentos), os profissionais

Isso aí toda vida foi bagunçado. Que o povo do Norte num tinha dó de ninguém
mesmo. O pessoal do Norte, cê sabe, bebe pinga e quer pôr faca nos outro mesmo.
Eles num tem dó de ninguém. Pega um dinheirinho aí, já dana nos boteco beber
Pinga, jogo e rastar mala” (manutenção de máquinas).
“Na própria Oval [outro acampamento], um encarregado lá matou um soldado,
fuzileiro naval aqui em Brasília, trabalhando de eletricista em obra!... Um fuzi-
leiro naval! Trabalhava de eletricista numa obra. Chefe de uma seção, né. Foi
consertar lá uma lâmpada e foi obrigado a desligar a luz do alojamento de um en-
carregado lá, pra poder fazer a ligação que ele num ia fazer com a luz ligada. Ele
foi, desligou, chegou o cara e perguntou: “Quem foi que desligou a luz lá?” — Foi
eu pra fazer essa instalação aqui. “Então desce da escada”. O cara desceu, pensou
que era pra conversar. Chegou, ele deu seis facada nele. Sem saber, sem conver-
sar”” (servente). '
Acampamento de grande projeto 87

Lago Paranoá
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DA FIRMA x

CROQUI DE UM ACAMPAMENTO
Pça. 3 Poderes DA EPOCA
38 Gustavo Lins Ribeiro

já contavam com pequenos quartos- ocupados no máximo por dois


operários (ver croqui da p. 37)17.
Os alojamentos de serventes e profissionais tinham o mesmo
tipo de equipamento no que diz respeito à higiene pessoal e lava-
gem de roupas: um boxe de serviço ao ar livre, sem teto, apenas
murado, com três sanitários, três chuveiros e três tanques, numa
proporção de um conjunto destes para cada dois blocos de aloja-
mentos (no caso dos profissionais, cada boxe atendia a uma po-
pulação de oitenta homens; não é difícil de imaginar um déficit
destes serviços)!8.
A presença dos escritórios da administração da companhia
imediatamente ao lado do conjunto de alojamentos de trabalhado-
res sem família merece ser analisada. De fato, são estes operários
que, devido às suas posições na base 'da hierarquia da atividade
produtiva, estão mais subordinados ao controle e disciplina im-
postos na esfera da produção e estendidos ao acampamento onde
residem. A administração da empresa, como se verá, controla es-
tes trabalhadores não apenas dentro do cotidiano da atividade

17. Até o presente, os alojamentos coletivos da construção civil apresentam, de modo


geral, condições precárias. Vejamos o que nos diz um servente sobre o alojamento
coletivo da construtora Oval na época da construção:
“Porque aqui dormia uma camada em baixo, outra mais em cima, outra mais em
cima... Então eles fizeram tipo belicho assim que dá pra um homem sentar, mais
ou menos uns 80 centímetros [entre uma cama e outra]. Rapaz, ali dava tudo
quanto era tipo de peste: rato, percevejo, pulga, tudo quanto era tipo de imundiça
você podia encontrar naquela época aqui em Brasília. Doença, eu vou falar uma
Coisa, você nem imagina o quanto que a pessoa sofria sem saber o que é que tava
sofrendo. E tudo, tudo.
— O senhor tinha cama sua?
— Minha cama era numerada. A minha cama era 46. Eu chegava lá, botava aqueles
lençolzinho que eu trouxe lá do Norte, todo branquinho. Eu dormia uma noite
nessa, na outra noite eu olhava eu tinha nojo. Sabe por quê? O percevejo já tinha
me chupado tanto que o lençol tava todo vermelho de sangue. [...] Eu não dormia
não — ficava a noite todinha com a luz acesa, olhando eles em cima dos outros
chupando os outros. [...] O cara morto de trabalhar, lavava só os pés, os braço, as
mãos, o rosto. Coragem de tomar banho ele não tinha, porque era a água fria. [...]
Mas o cansaço era tão grande que ele trabalhava, dava tudo dele, o dia e a noite, o
pedaço da noite. E o resto da noite o percevejo chupava o sangue dele.”
18. Não nos foi possível estabelecer um número aproximado de moradores por blocos
de alojamentos de serventes por estarem bastante destruídos tendo várias habita-
ções individuais sido construídas sobre suas bases. Dada a usual utilização de ca-
mas-beliche e mesmo redes, assim como a ausência de quartos mais individualiza-
dos, acreditamos que o número de serventes por alojamento seguramente era de
algumas vezes o número dê profissionais por alojamento.
Acampamento de grande projeto 39

produtiva, mas também sua vida extracanteiro, intra-acampamen-


to. Enfim, a proximidade física dos escritórios administrativos
com os grandes alojamentos coletivos masculinos é um indicador
do maior controle e vigilância a que estavam submetidos os ope-
rários que aí habitavam.
Como não poderia deixar de ser, a cantina situa-se também
imediatamente ao lado do conjunto destes alojamentos. Este é o
local ideal para sua localização visto que, no outro lado do acam-
pamento, a grande maioria alimentava-se em suas próprias casas,
com comida elaborada internamente pelo grupo doméstico. Além
do mais, esta localização reflete também as necessidades de con-
trole interno do acampamento. Num grande projeto, a cantina tal-
vez seja o único local onde, no cotidiano, o operariado se encon-
tra, se visualiza como coletivo, sentindo latentemente seu poder
de ação conjunta. Por isso, as cantinas de grandes projetos são
consideradas como “o fuzível da obra”. De fato, elas são tradicio-
nais locais de conflitos, às vezes bastante vtolentos como os cha-
mados “quebra-quebras” !º. É possível que o açougue, localizado
nos fundos do acampamento e próximo a uma pequena rua de
serviço, se destinasse basicamente ao abastecimento da cantina.
Atravessemos agora o grande pátio formado pelo estaciona-
mento e pelo campo de futebol e dirijimo-nos ao “outro lado” do
acampamento, aquele onde residem basicamente os controladores
da produção acompanhados de suas famílias. A primeira coisa
que chama a atenção é a concentração dos equipamentos de servi-
ço numa espécie de praça localizada ao lado de casas de encarre-
gados e em frente às casas de engenheiros. Aí estão: cinema, ar-
mazém, farmácia, gabinete de saúde, gerador, clube dos enge-
nheiros, igreja e clube dos operários. Este último, segundo um in-
formante que nele trabalhou, foi fundado apenas nos finais de
1959, para responder e contrabalançar a pressão que faziam os
trabalhadores sobre o clube de engenheiros, de existência mais
antiga, que queriam freguentá-lo.
A diferenciação interna neste lado também reflete a hierar-
quia do ramo da construção civil, já que se passa de um setor de
casas individuais menores, destinadas em geral aos encarregados

to du-
19. Mais adiante descrevo um conflito ocorrido na cantina de um acampamen
rante a construção de Brasília.
40 Gustavo Lins Ribeiro

de turma, para um setor de casas que são cada vez maiores à me-
dida que se destinam a postos hierárquicos mais altos. Dos mes-
tres-de-obras aos “chefes” e engenheiros passamos ao ponto culmi-
nante do continuum da configuração espacial do acampamento: a
casa do proprietário da firma??, Esta se destinava às permanências
esporádicas do proprietário da companhia no território da cons-
trução e, verdadeiro “castelo”? de madeira separado do conjunto
maior por cerca de arame farpado, possuía sua saída privada para
fora do acampamento como que a não obrigar seu morador à pas-
sagem pelas vias comuns, aos caminhões de serviço e aos peões,
possibilitando-lhe ainda uma saída estratégica.
Neste lado encontravam-se também alojamentos coletivos pa-
ra funcionários dos escritórios da administração da companhia
que por suas qualidades de treinamento (dominar relativamente
a linguagem escrita, ter noções de contabilidade e de administra-
ção, por exemplo) e por estarem efetivamente vinculados ao con-
trole da força de trabalho, tinham suas residências coletivas loca-
lizadas aí e não próximas aos alojamentos masculinos coletivos de
serventes e profissionais. Eram dois blocos que se repartiam in-
ternamente em pequenos quartos. Finalmente, ainda deste lado,
situa-se o reservatório de água que servia o acampamento. Sua
localização parece dever-se às características físicas da área do
acampamento, já que se trata de um ligeiro declive em direção ao
Lago Paranoá. Contudo, não se deve descartar que esta localiza-
ção do reservatório se dê por motivos de acesso e controle dife-
renciado a um importante recurso para a manutenção do acampa-
mento. Leite Lopes (1988) mostra a importância do fornecimento
e distribuição de água para a “administração autárquica” dos re-
cursos naturais e humanos da Companhia de Tecidos Paulista, em
Pernambuco, dentro do sistema fábrica com vila operária.
Estas são as linhas mais definidoras da configuração espacial
do acampamento da Redonda. Em realidade, o acampamento, sua
construção, configuração e utilização, é universo privilegiado pa-

20. A categoria “chefes”, de acordo com um informante, pode incluir desde o chefe do
acampamento (seu administrador principal) até funcionários graduados da admi-
nistração da companhia. No setor de casas de encarregados (que obviamente são
profissionais) eventualmente se poderia encontrar algum profissional que entrou
para esta área por meio de manipulações de relações pessoais com indivíduos que
lhe pudessem liberar o acesso a este espaço.
Acampamento de grande projeto 41

ra perceber a estruturação do espaço de acordo com as diferenças


de classe e, concomitantemente, as diferenças internas a um de-
terminado ramo da produção. Dos miseráveis, sujos e apertados
alojamentos coletivos dos serventes até a luxuosa e espaçosa casa
do proprietário da companhia, a divisão deste espaço é claramente
orientada pela lógica da esfera da produção, tal qual expressa
concretamente no ramo da construção civil. A existência de um
lado destinado basicamente a residências masculinas e outro para
residências mistas (portanto, um lado também feminino) reflete a
ausência relativa de famílias, típicas do território da construção
de Brasília e de grandes projetos em geral (Ribeiro 1987). Desta
forma, as características específicas deste acampamento da Re-
donda que, para efeito de análise dividimos em dois lados, advêm
da esfera da produção. Porém, é evidente que estes lados mantêm
relação entre si, pois são partes de um mesmo todo. Passemos,
então, a entender esta totalidade.

2.1.2. O acampamento visto como uma totalidade.


Uma aproximação a uma sociabilidade específica
O acampamento visto como uma unidade define-se basica-
mente por se diferenciar de outras pela cerca que lhe marca os li-
mites espaciais e sociais. Acampamentos vizinhos, por estarem
subordinados a companhias diferentes, podem possuir regras dis-
tintas, relativamente à organização da vida. Estas regras, que em
grande medida determinam o cotidiano de centenas ou milhares
de pessoas, têm por matriz o poder exercido pela administração
de cada empresa. O acampamento, então, tem sua administração
interna, geralmente uma estrutura hierárquica onde existe um car-
go de chefe com diferentes subordinados que vão até serventes
encarregados da limpeza. A administração do acampamento, co-
mo parte do quadro hierárquico mais amplo da estrutura de uma
companhia, obviamente subordina-se ao corpo administrativo
maior, diretamente vinculado ao controle do processo produtivo.
Assim, é claro que a administração do acampamento pode ser
classificada como uma extensão da administração da atividade
produtiva?l.

21. Leite Lopes, ao estudar a imobilização da força de trabalho pela moradia em usi-
nas de açúcar, afirma que “a homologia que se dá entre a estrutura de moradia no
42 Gustavo Lins Ribeiro

Pela mediação da administração interna, as necessidades da


esfera da produção passam a determinar vários aspectos da vida
dentro do acampamento. Ressaltemos, por exemplo, a possibili-
dade de despertar vários operários de uma só vez garantindo a
pontualidade e assiduidade dos trabalhadores, bem como impondo
uma permanente disponibilidade para tarefas do interesse da com-
panhia. Uma das indicações mais visíveis desta determinação é o
ajuste da atividade da cantina às demandas do processo produtivo
que necessita ter organizadas a entrada e saída dos trabalhadores
na obra para assegurar a continuidade do trabalho. As várias tur-
mas que saem para o canteiro em horários distintos necessitam fa-
zer suas refeições antes de começarem seus trabalhos específicos.
Assim, o horário de oferta de alimentos na cantina é organizado
de acordo com a saída das diferentes turmas. Estas em geral vol-
tam para realizar refeições intermediárias (normalmente o almoço)
ou suas últimas refeições do dia, isto é, aquelas após as quais os
trabalhadores se recolhem para repousar. Deste modo, a cantina
da Redonda oferecia vários horários de refeições, começando com
o café da manhã às cinco horas, o almoço às dez horas da manhã
e o jantar às quatro horas da tarde. O ajustamento do forneci-
mento de alimentos às necessidades da organização do trabalho
fica ainda mais evidente quando, para as turmas que estão reali-
zando jornadas do tipo “virada”, que implicam suas presenças a
noite inteira na obra, refeições intermediárias são levadas ao local
de trabalho e lá consumidas, para não se perder tempo no deslo-
camento dos operários até a cantina.
Dentro do domínio da influência da administração da compa-
nhia no cotidiano do trabalhador, ressalta o fato de que as formas
de lazer passíveis de serem desempenhadas também situam-se
num quadro cujo controle e deliberação escapam aos trabalhado-
res. A companhia virtualmente administrava o escasso tempo livre
dos operários. Podemos supor que a programação do “cinema” lo-
cal era orientada pela administração obedecendo tanto aos seus
interesses quanto à concepção que teriam de que filmes seriam da
predileção dos trabalhadores. O “clube dos operários” era passível

território da usina e a estrutura hierárquica no processo de trabalho dentro da fá-


brica não se reflete apenas de maneira espacial na disposição de ruas e casas: ela se
manifesta também na submissão à mesma autoridade tanto no domínio do trabalho
quanto no da moradia” (1976: 176).
Acampamento de grande projeto 43

de um controle mais explícito, pois seu funcionamento não deve-


ria quebrar regras disciplinares da rotina do acampamento, como
promover festas que se estendessem noite a dentro ou nas quais
os trabalhadores se embriagassem. Uma das formas de lazer mais
presentes nos diversos acampamentos era o time de futebol in-
centivado pela administração. A torcida pelo time de futebol da
companhia pode representar um artifício pelo qual pessoas em po-
sições diferentes dentro de uma hierarquia dirigem suas energias
para um mesmo objetivo. Note-se que, frequentemente, o rótulo
do time era o mesmo da companhia, o que certamente levava a
torcida, um coletivo socialmente indiferenciado, a gritar e desejar
que a companhia vencesse. Ou seja, através da torcida pelo time
as fronteiras e diferenciações sociais são momentaneamente des-
feitas e todos passam naquele período a se identificar com um
ideal comum. Frisemos apenas que o que domina este ideal é que
vença o time da companhia. Neste instante a companhia deixa de
ser uma unidade diferenciada para adquirir a aparência de um to-
do homogêneo com interesses iguais e que são igualmente assu-
midos por seus membros??2.
Porém, há um campo privilegiado para entender o poder da
administração do acampamento e sua subordinação aos interesses
da atividade produtiva: trata-se do controle e vigilância perma-
nentes realizados por agentes da administração aos quais estão
submetidos os operários no seu cotidiano interno ao acampamen-
to. Este controle e disciplina pode ser encontrado desde a entrada
no acampamento, onde uma guarita vigia o movimento, bem como
revista os operários à procura de armas (geralmente peixeiras) ou
da proibida e controlada cachaça. Vejamos como isto se dava no

22. É Goffman que, no âmbito da distinção entre dirigentes e internados em institui-


ções totais (veja-se nossa discussão mais adiante), ao qualificar as ''cerimônias
institucionais””, ou seja, as práticas “que exprimem a solidariedade, unidade e
compromisso conjunto com relação à instituição, e não diferenças” e “através das
quais os internados e a equipe dirigente chegam a ficar suficientemente perto para
ter uma imagem um pouco mais favorável do outro, e a identificar-se com a situa-
ção do outro” (1974: 85), chama a atenção para o fato de que nos chamados “es-
portes internos” ao “torcer pela equipe da casa, a equipe dirigente e os internados
mostram uma participação semelhante na entidade institucional” (1974: 95). Ain-
da no que diz respeito ao lazer, Leite Lopes afirma: “para completar o quadro da
submissão do tempo livre dos operários à dominação da administração podemos
assinalar que a própria organização do lazer nas usinas é diretamente controlada
pela administração” (1976: 179).
44 Gustavo Lins Ribeiro

acampamento da construtora Oval. segundo o relato de um pedrei-


To:
As família ficava lá no fundo e bem cá em cima ficava o pessoal sem
família. Separado. Era expressamente proibido entrar bebida alcoólica,
era proibido o sujeito ter arma de qualquer espécie, ou faca ou cani-
vete. Tinha uma guarda da companhia formada lá mesmo de serventes
mesmo que eles formava a guarda pra dar plantão lá no portão pro
sujeito entrar. Os guarda era pra justamente isso: o sujeito abrir por-
tão pra entrada de carro no alojamento e revistar mala do sujeito
quando o sujeito chega. O sujeito vai na rua, pra ver se ele entra com
cachaça ou com arma, e também ver algum tumulto, algum possível
tumulto que surge dentro do alojamento. O sujeito entrava com a mala
eles revistavam a mala na entrada e tudo, né. Assim mesmo nego que-
brava a vigilância e entrava com cachaça, tinha ... né?
Outras expressões de disciplina são as filas para utilização de
banheiros, bem como aquelas de entrada na cantina. Nesta o tra-
balhador segue também uma ordem estabelecida para conseguir
sua alimentação. Estas formas de controle e disciplina interna,
como está claro, não se dão por si mesmas. São realizadas por
quadros de funcionários e vigias diretamente vinculados à admi-
nistração. Estes últimos têm uma dupla função: além de manter
num primeiro momento a ordem de centenas de homens numa si-
tuação social incomum (grande estafa do trabalho conjugada com
a subordinação a várias regras do seu cotidiano e à relativa au-
sência de mulheres), denunciar eventuais lideranças que se for-
massem em conflitos específicos.
De fato, os conflitos internos ao acampamento eram altamente
controlados e, eventualmente, fortemente reprimidos. Em trabalho
sobre a formação da configuração espacial por classes do Distrito
Federal (Ribeiro 1982), registrei um dos episódios mais violentos
da história da construção de-Brasília:

Definitivamente marcado na memória popular está um massacre de


operários promovido pela GEB23 em fevereiro de 1959, na cantina do
acampamento da construtora Pacheco Fernandes Dantas, na Vila Pla-
nalto, devido a um conflito causado pela má qualidade da comida. São
as mais variadas as versões sobre o fato, mas não se duvida do assas-
sinato a sangue-frio de vários operários (inclusive foram metralhados

23. Guarda Especial de Brasília, nome da violenta polícia da Novacap, responsável


pela segurança no território da construção de Brasília.
Acampamento de grande projeto 45
os acampamentos onde vários homens estavam dormindo), cujos ca-
dáveres teriam sido transportados em caminhões basculantes, para
serem enterrados em vala de localização desconhecida. A responsabi-
lidade por este crime não foi atribuída nem cobrada a ninguém em es-
pecial. Tudo por conta da grande repressão policialesca de então e do
espírito de pioneirismo que não permitia paralisação de obras para
averiguações tão “burocráticas”. De qualquer modo, este massacre é a
expressão agudizada de componentes como a má qualidade da ali-
mentação nos acampamentos, disciplina e controle do operariado ao
arbítrio das empresas, repressão policial violenta, dilapidação da força
de trabalho, obediência ao prazo da construção sob qualquer argu-
mento (Ribeiro 1982).

2.2. Acampamento de grande obra: instituição total?


A situação inusitada que cria a forma de moradia acampa-
mento refletiu-se no Censo Experimental de 1959 quando ele
classifica, “de conformidade com a natureza do vínculo de convi-
vência””, as famílias censitárias, “conjunto de pessoas moradoras
em domicílio (unidade de habitação), seja particular ou coletivo”,
em grupo familiar (basicamente definido por parentesco) e grupo
convivente que se definia “quando o vínculo de convivência fosse
mais relacionado com o interesse comum, disciplina ou finalidade
da própria instituição a que pertencessem os seus componentes —
como é o caso de religiosos em conventos, hóspedes em hotéis e
similares, militares em quartéis, estudantes em internatos, asila-
dos em instituições de assistência ou amparo, etc.” (IBGE
1959:67, grifos meus.) É tão marcante a presença destes “grupos
conviventes” que mais adiante encontramos no texto a seguinte
passagem: “em Brasília, a importância dos grupos familiares na
constituição da população decresce consideravelmente, dada a
elevada participação de grupos conviventes formadores dos
acampamentos de obras” (idem).
Os acampamentos possuem altos índices de “grupos convi-
ventes” em detrimento dos “grupos familiares”. Aqueles que for-
mavam a área da Vila Planalto, na qual se situa o acampamento
da Redonda, tinham uma proporção de 70% de “grupos convi-
ventes” para 30% de “grupos familiares” (ibidem: 68). A influên-
cia deste tipo de conjunto de moradias para a caracterização do
território da construção era tal que o censo chega a considerar
Brasília como um vasto acampamento (ibidem: 70).
46 Gustavo Lins Ribeiro

Não obstante, além de informações de ordem quantitativa, o


censo, ao classificar os acampamentos com seus alojamentos co-
mo grupos conviventes, chama também a atenção para aspectos
qualitativos, já que nesta categoria estão consideradas situações
claramente classificáveis como instituições totais. Assim, a cons-
trução desta classificação censitária remete imediatamente para a
constatação de uma situação residencial com particularidades
próprias encontráveis nas instituições totais.
A caracterização destas instituições está feita por Erving
Goffman:
Toda instituição conquista parte do tempo e do interesse de seus par-
ticipantes e lhes dá algo de um mundo; em resumo, toda instituição
tem tendências de “fechamento”. Quando resenhamos as diferentes
instituições de nossa sociedade ocidental, verificamos que algumas são
muito mais “fechadas” do que outras. Seu “fechamento” ou seu caráter
total é simbolizado pela barreira à relação com o mundo externo e por
proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico
— por exemplo, portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos,
água, florestas ou pântanos. A tais estabelecimentos dou o nome de
instituições totais [...] (Goffman 1974: 16).

Ao classificá-las, grosso modo, em cinco agrupamentos,


Goffman menciona “as instituições estabelecidas com a intenção
de realizar de modo mais adequado alguma tarefa de trabalho, e
que se justificam apenas através de tais fundamentos instrumen-
tais: quartéis, navios, escolas internas, campos de trabalho, coló-
nias e grandes mansões (do ponto de vista dos que vivem nas mo-
radias de empregados)” (Goffman 1974: 17). Campos de trabalho
é, na edição brasileira, uma tradução literal de work camps ou
seja, acampamentos temporários para a realização de um traba-
lho, geralmente com casas coletivas e de população basicamente
masculina. Assim, os acampamentos de uma grande obra podem
ser considerados como um exemplo deste tipo de instituição, so-
bretudo na perspectiva da experiência dos trabalhadores menos
qualificados. Segundo Goffman (1974:18), as características
centrais das instituições totais são:
— todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob uma
única autoridade;
— cada fase da atividade diária do participante é realizada na compa-
nhia imediata de um grupo relativamente grande de outras pessoas,
Acampamento de grande projeto 47

todas elas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer a mesma coisa


em conjunto;
— todas as atividades diárias são rigorosamente estabelecidas em ho-
rários, pois uma atividade leva, em tempo predeterminado, à seguinte,
e toda a segiiência de atividades é imposa de cima, por um sistema de
regras formais explícitas e um grupo de funcionários;
zas várias atividades obrigatórias são reunidas num plano racional
único, supostamente planejadas para atender aos objetivos oficiais da
Instituição.

Além disso, para ele o “fato básico das instituições totais” é


o “controle de muitas necessidades humanas pela organização bu-
rocrática de grupos completos de pessoas” (idem), o que necessa-
riamente implica uma vigilância, portanto, na presença de indiví-
duos com funções de vigias, de guardas. Certamente devido ao
caráter das instituições que Goffman estudou, algumas generali-
zações que estão implícitas em sua definição podem ser questio-
náveis em análises de casos concretos. No tocante ao acampa-
mento de uma grande obra da construção civil há que relativizar
certos pontos.
Primeiramente, nem todos os aspectos da vida são realizados
no mesmo local e sob uma única autoridade, visto que a atividade
produtiva dos trabalhadores é obviamente efetuada fora do acam-
pamento e, eventualmente, algumas atividades de lazer também.
No entanto, devido ao vínculo orgânico mantido entre acampa-
mento e canteiro de obras e à grande ausência de tempo livre, o
acampamento pode ser considerado como uma extensão do cantei-
ro (por se ajustar às determinações deste), ou pode ainda ser con-
siderado como uma forma agigantada dos alojamentos existentes
em obras individualizadas e que, aqui sim, compartilham a mesma
unidade espacial da atividade produtiva. Devemos notar também
que a entrada e saída dos indivíduos, se bem controladas, não são
tão estritamente impedidas quanto no caso do “internado”.
Por outro lado, há presença de famílias, apesar de que em
número bastante reduzido comparativamente ao total da popula-
ção de um acampamento e isoladas de suas redes de parentesco
mais extensas. Sabemos que Goffman (op. cit., p. 22) as conside-
ra incompatíveis com as instituições totais. No entanto, a presen-
ça de famílias não incompatibiliza a aproximação da forma de
moradia/acampamento com as instituições totais, uma vez que
48 Gustavo Lins Ribeiro

elas estão presentes em número reduzido, o que acaba por deter-


minar várias especificidades para seu cotidiano nestes locais.
Uma delas, e básica, refere-se a restrições ao comportamento dos
seus componentes femininos dada a grande desproporção entre
homens e mulheres vigente nos acampamentos. O depoimento a
seguir é um exemplo onde se combina o poder do “chefe” do
acampamento em dirimir conflitos pessoais dos moradores, com a
questão da relação entre os sexos que era bastante controlada pelo
temor de que o grande número de trabalhadores sem família efeti-
vamente se traduzisse em ataques sexuais às filhas ou esposas dos
controladores da produção. É claro que o discurso do informante
deve ser entendido num contexto onde a representação sobre o
sexo feminino está permeada por noções de “honra”, “castidade” e
“virgindade”, por exemplo:
Tinha confusão aqui diariamente. Carlão [chefe do acampamento]
porque era quente. Andava com uma camionete aí [...] quarquer coisa
eles corria na casa dele ali... Tinha um sujeito que comeu uma moça
perto daquele armazém ali. Ele morava aqui. Aí o guarda com vergo-
nha de falar aquilo e programar... Um dia o guarda explicou um véio
lá. O guarda chorando: ô fia da puta [imita o guarda chorando], aqui
perto de mim e tal e coisa. A moça saiu aqui pra baixo chorando e o
rapaz. Aí logo eles corre lá e chama o Carlão. Carlão desceu com a
camionete aqui pra baixo fedendo azeite. Aí falou com o rapaz: como
é seu sévergonha, você comeu, num comeu? Então, cê casa, viu, cê vai
Casar, aqui num é assim não, comeu cê tem que casar, uái. Largar a
moça à toa, num fica não. Cê vai casar ou num vai? — Não, eu caso.
Então tá certo. E ocê num foge não, hem? Cê fugir nós te busca.
Carlão era o quente [manutenção de máquinas).
Há que recordar que a similaridade entre formas de habita-
ções proletárias construídas por capitalistas e as instituições totais
Já foi alvo de considerações-anteriores por parte de Leite Lopes e
Machado da Silva (1979: 15-16). No entanto, os acampamentos —
devido à temporariedade de suas existências, expressa inclusive
no material de construção neles utilizado — mantêm várias especi-
ficidades que os diferenciam qualitativamente das vilas operárias.
Uma comparação entre estas formas de habitação proletária surge
também em texto de Leite Lopes (1979: 45):

Esses casos de alojamentos pela própria empresa de mão-de-obra


solteira, sem família, lembram as características das chamadas institui-
Acampamento de grande projeto 49

ções totais (Goffman 1971) [...] uma aproximação dessas característi-


cas com as barracas e galpões da construção civil, das obras públicas,
da construção de estradas, etc., seria mais remota em virtude da breve
permanência desse “proletariado nômade” nesses trabalhos, sua mobi-
lidade e mudança constante de patrões atenuando a submissão tem-
porária ao controle da empresa sobre a totalidade de sua vida cotidia-
na. Comparado com esse “proletariado nômade”, a situação do prole-
tariado estável das fábricas e minas que habita com suas famílias nas
casas de propriedade do patrão se aproxima mais das características
das “instituições totais” pela submissão à empresa nas várias esferas do
trabalho, da moradia, do tempo livre e do lazer e pelo maior fecha-
mento ao longo do tempo. No entanto, a própria presença da família
no caso desse proletariado estável é incompatível com as característi-
cas das “instituições totais”.

Cabe, aqui, fazer alguns comentários sobre esta última cita-


ção. Primeiramente, logo em seguida, Leite Lopes reconhece que
durante o período em que o “proletariado nômade” (noção que to-
ma de empréstimo a Marx) está imobilizado realizando um traba-
lho, o controle exercido pelo patrão seria maior ainda do que
aquele existente na vila operária com um operariado estável “o
qual contaria com a existência da família a colocar limites ao
controle da empresa sobre a esfera doméstica do operário” (Leite
Lopes 1979: 46). Numa situação de grande obra, que certamente é
temporária (Ribeiro 1987) para muitos, os acampamentos estão
muito mais próximos à caracterização das instituições totais do
que as vilas operárias, dado inclusive o fato de a presença de fa-
mília se dar em número proporcionalmente menor e de elas esta-
rem praticamente impedidas de realizar uma série de atividades
próprias à esfera doméstica, tanto no nível do lazer como das es-
tratégias econômicas que possam desempenhar enquanto unidades
de reprodução de força de trabalho. A sustentação da afirmação
de que os acampamentos das obras de construção civil têm ca-
racterísticas mais remotas do que as vilas operárias Vis-d-vis as
instituições totais, pode, como notou Leite Lopes, apenas ser feita
considerando-se a duração no tempo de cada forma destas em dis-
cussão. No entanto, parece claro que o período de trabalho no
qual um “proletariado nômade” executa uma obra (que pode ser
mais longo do que se imagina, a construção de uma grande hi-
drelétrica dura em média dez anos, por exemplo), possui caracte-
50 Gustavo Lins Ribeiro

rísticas visíveis de “instituições totais”. Além disso, a experiência


transitória dentro das instituições totais pode ser diferenciada se-
gundo o caso e segundo os indivíduos, mas é característica de vá-
rias delas, como os manicômios, hospitais, prisões, etc. Mais ain-
da, existe um importante segmento de trabalhadores especializa-
dos que passa toda sua vida laboral de projeto em projeto, trans-
formando o temporário em permanente, e desnudando por com-
pleto um tipo de nomadismo industrial E
Ressalte-se também que ao nível do senso comum são recor-
rentes as analogias que comparam os acampamentos com prisões
ou campos de concentração (Cf. Tribuna da Imprensa, Rio de Ja-
neiro, 13.6.58) ou que indicam um tratamento desumano dispen-
sado aos seus “internados”:
Todos os acampamentos que tinha aqui era cercado. Tinha guarda e
portão. O sujeito não entrava assim e liberdade, não. Pra entrar tinha
guarda e portão. O senhor era dono de um acampamento, a sua turma,
os seus peão tava tudo dentro do seu cercado. De vez em quando
passava um peão pra olhar se a cerca tava boa [servente].
— Quer dizer que o pessoal que morava no alojamento tinha uma vida
diferente?
— Diferente dos outro. Era uma vida isolada, uma vida lá... do preso,
né. E um preso, com condições só de trabalhar e receber o dinheiro, e
sem condições de sair [carpinteiro].

Finalmente, e resumindo, os acampamentos são objeto de re-


flexão central para o estudo de grandes projetos pelas razões que
agora sintetizamos: 1) têm existência obrigatória e em quantidade
numerosa num grande projeto; 2) ao permitirem concentrar os tra-
balhadores em unidades separadas entre si por cercas de arame
farpado ou grandes espaços facilitam o controle da população do
território da obra; 3) são um local básico de realização das pe-
quenas parcelas extra-atividade produtiva do cotidiano dos tra-
balhadores; 4) implicam uma subordinação tal dos trabalhadores à
mesma administração que controla o uso de sua força de trabalho
que “as pequenas parcelas do cotidiano extra-atividade produti-
va” se vêem penetradas e dominadas pelos interesses da esfera da

24. Na construção da hidrelétrica de Yacyretá, no rio Paraná, na fronteira argentino-


paraguaia, encontrei até terceira geração de participantes daquilo que denominei o
“circuito migratório dos grandes projetos” (Ribeiro 1988).
Acampamento de grande projeto 51

produção; 5) é visível em suas configurações espaciais a influên-


cia da ausência relativa de famílias e mulheres; 6) implicam re-
gras de comportamento e divisões sociais do espaço nitidamente
vinculadas às especificidades da produção de uma grande obra da
construção civil, aproximando-os da caracterização de “instituição
total”.

2. Para uma tipologia dos acampamentos de grandes projetos

A partir pelo menos da Revolução Industrial, grandes proje-


tos, como a construção de canais, ferrovias, cidades e hidrelétri-
cas, possuem uma história intimamente relacionada com a expan-
são do capitalismo. Isto se dá seja por causa das poderosas arti-
culações de interesses públicos e privados por eles realizadas,
seja pela gigantesca mobilização de capital fixo e variável que
implicam, ou ainda pelo estabelecimento de novos sistemas regio-
nais explicitamente vinculados à economia capitalista como um
todo. Na “história dos grandes projetos”, se fosse traçada uma ge-
nealogia, se encontraria uma migração de modelos de organização
do processo produtivo e de administração da força de trabalho. O
principal ator social portador deste modelo no tempo é o enge-
nheiro (e, por extensão, suas expressões coletivas: a escola de
engenharia e a 'empreiteira”), que através da acumulação de co-
nhecimentos herdados por meio da educação e experiência prática
reproduz uma solução modelar ao início de cada obra. É por esta
razão que se pode pensar os grandes projetos como uma forma de
produção que mantém características estruturais semelhantes em
diferentes contextos geográficos e históricos (Ribeiro 1985,
1987).
Dentro desse quadro, um aspecto fundamental diz respeito
à imobilização da força de trabalho por meio do acampamento.
No Brasil, se fôssemos fazer uma genealogia de grandes projetos
— pesquisa que ainda necessita ser feita consistentemente, inclusi-
ve para pensar o crescimento notável da indústria da construção
no país nas últimas três décadas — certamente começaríamos com
as ferrovias construídas no século passado, com especial desta-
que, já neste século, para a Madeira-Mamoré (Foot Hardman
1988 e Ferreira 1981). Haveria também que incluir a construção
de cidades como Belo Horizonte e Goiânia, e estradas como, por
52 Gustavo Lins Ribeiro

exemplo, a via Dutra. No entanto, sem dúvida é no período do


desenvolvimentismo juscelinista que começa o boom de grandes
projetos que iria encontrar seu auge nos anos 70, sob o regime
autoritário. Grandes obras como a hidrelétrica de Três Marias, a
cidade de Brasília e a rodovia Belém-Brasília são paradigmáticas.
Porém, a construção de Brasília, a “meta-síntese” do programa
juscelinista, foi não apenas a obra mais visível do período, por
sua indubitável importância política, mas também aquela que re-
presentou o maior e mais complexo esforço em termos de imobili-
zação da força de trabalho. Relembremos que, após o início das
obras em 1957, em pouco mais de dois anos um território prati-
camente desabitado passa a ter mais de 60 mil pessoas.
Na construção de Brasília participaram várias empreiteiras,
algumas delas mineiras como JK, que futuramente seriam algumas
das empresas mais poderosas do país. Como foi visto, a solução
típica para o alojamento das pessoas que trabalhavam para as em-
preiteiras era o acampamento. Evidentemente, as empreiteiras
que, no correr do tempo, se especializaram em grandes projetos, a
porção privilegiada do mercado da construção civil, foram aper-
feiçoando sua forma de imobilização da força de trabalho através
da moradia e a organização espacial do território do projeto como
um todo (isto é, o conjunto de acampamentos, canteiros de obras,
estradas de serviço, etc.). Um acampamento como o da Redonda,
descrito na segunda parte deste trabalho, pode ser visto como um
embrião a partir do qual se gesta uma prática e um conhecimento
apropriados pelas empreiteiras sobre formas específicas para solu-
cionar a imobilização da força de' trabalho em grandes projetos.
De fato, hoje a solução não passa mais por distribuir os trabalha-
dores em diversos acampamentos das várias empreiteiras partici-
pantes na obra, mas de construir todo um território onde as divi-
sões existentes internamente a um acampamento clássico, 'como o
da Redonda, são ampliadas, se expressando em escala bem maior.
Assim, na construção de uma grande hidrelétrica contemporânea
se encontra um território estruturado em diversas áreas autônomas
mas relacionadas entre si. Exemplificando: o que na forma acam-
pamento-Redonda era o lado de trabalhadores não-qualificados
sem suas famílias, mas ainda parte de uma mesma unidade espa-
cial, de um único e estratificado acampamento, na forma ampliada
atual transformou-se numa área de um território, um acampamento
Acampamento de grande projeto S56)

em si, com seus equipamentos e serviços, uma unidade espacial


diferenciada de outras por cercas e, frequentemente, por grandes
áreas vazias que têm por função não apenas separar fisicamente
as diferentes categorias sociais participantes da obra, mas também
facilitar o controle dos conflitos inerentes à forma acampamen-
to-Redonda. Ao aumento de escala e de conhecimento acumulado
na administração de conflitos reais na situação acampamento/gran-
de projeto, corresponde um aumento da eficácia do controle e su-
bordinação da população participante de um grande projeto.
Contemporaneamente, de forma mais sutil mas não por isso me-
nos eficiente, o sistema grande projeto/acampamento continua
demonstrando, sem muito alarde, sua eficácia como forma de
imobilização da força de trabalho.
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PR ADS 2d Pa, ui Cara pri
— ah, dego Copo npiticids acqriqanaa
tema presos? ca qtas Re drus Ni
. Es
O CANTEIRO DE OBRAS DA CIDADE PLANEJADA
E O FATOR DE AGLOMERAÇÃO

Luiz de Pinedo Quinto Jr.


Luiza Naomi Iwakami

Reduzir uma sociedade de 100 milhões de pessoas a um mercado de


25 milhões exige um processo cultural muito intenso e sofisticado. É
Preciso embrutecer esta sociedade de uma forma que só se consegue
com o refinamento dos meios de comunicação, dos meios de publici-
dade, com um certo paisagismo urbano que disfarça a favela, que es-
conde as coisas.
Oduvaldo Viana Filho (1974)

Os anos 60 produzem mudanças: o urbano se instaura como questão


de planejamento e a arquitetura moderna, a crise do seu projeto uni-
versalizante. Brasília teria sido, assim, o último gesto de um moder-
nismo às avessas: a internacionalização do capital pensada a partir do
Brasil.
Sophia S. Telles (1983)

Passados trinta anos da fundação oficial de Brasília, já en-


contramos uma vasta bibliografia sobre a capital. Desde trabalhos
de teor ufanista/historicista que procuram manter a visão mitoló-
gica da cidade enquanto símbolo da utopia da nova sociedade
brasileira, até trabalhos mais recentes produzidos a partir da dé-
cada de 70, que procuram desmistificar esta visão messiânica de
'nação-potênia”.
Analisando mais detalhadamente a bibliografia que trata de
reconstituir a história da cidade a partir de uma visão crítica e
desmistificada, observamos que mesmo esses estudos não chegam
a captar o significado do grande laboratório urbano (elementos de
transição) que é Brasília. Para citarmos um exemplo, Brasília é a
única metrópole no Brasil que possui um banco de terras
56 Luiz de Pinedo Quinto Jr. e Luiza Naomi Iwakami

(Terracap) que tem o controle de quase 70% das terras do Distrito


Federal, mas pouco ou nada é mencionado quanto a esta questão
nos trabalhos mais conhecidos. Neste sentido, a compreensão da
experiência de Brasília seria fundamental para entendermos os
futuros desdobramentos de qualquer política que vise à implanta-
ção de uma reforma urbana no Brasil. Por outro lado, as análises
que criticam o modernismo e sua ideologia referente à implanta-
ção da nova capital procuraram trabalhar com a discussão em uma
visão formalista/ideológica, muito em voga, do modernismo até o
pós-modernismo, tentando mostrar que a arquitetura moderna no
Brasil possuía um projeto visando à antecipação da sociedade
futura, “utópica'l.
Para nós, a importância da análise de Brasília entendida den-
tro de sua história é um passo fundamental para a compreensão de
seu significado hoje. Portanto, não se trata de recuperar a história
no sentido de nos dirigirmos aos chamados “valores históricos” da
cidade-monumento, mas procurar traduzir, dentro de seu processo
de construção e consolidação, a constituição daquilo que é o es-
paço urbano, que se apresenta também segregado, mas com parti-
cularidades marcantes.

Plano-Piloto: um grande condomínio fechado?

Brasília apresenta-se hoje como uma cidade praticamente sem


contradições se observarmos apenas o Plano-Piloto. É hoje justa-
mente a “cidade ideal” para uma grande parcela da chamada classe
média, o setor de altos e médios servidores públicos e burocratas,
que usufruem do esquema de vida propiciado pela constituição do
espaço urbano. Aqui não se vê a falta de verde, inexiste a polui-
ção ambiental, não há problemas de congestionamento de tráfego
em geral, grande parte das atividades (como comércio e bancos) é
facilitada pela setorização do uso do espaço (o que diminui o
tempo despendido na locomoção); enfim, são alguns dos aspectos

1. Esta visão foi marcada por um intenso debate entre arquitetos, urbanistas, políticos,
durante a década de 60/70. Nesse período, aparecem trabalhos muito importantes,
como Casa popular e Arquitetura nova, de Sérgio Ferro, que iniciam a análise do
espaço físico/arquitetônico como produto das relações de produção capitalista, que
mais tarde vão dar origem a outros trabalhos como o Canteiro e o desenho, onde
procura analisar a produção do espaço como mercadoria e suas especificidades
dentro do modo de produção no canteiro (manufatura seriada).
O canteiro de obras 57

tão reclamados nas grandes cidades que, no caso do Plano-Piloto,


são supridos e organizadas. Porém, a segregação ocorre na exata
medida em que se pôde preservar este aspecto límpido do plano
original conjuntamente com a formação e expansão das cidades-
satélites, estas, sim, uma certa reprodução do que ocorre em todas
as cidades, relegadas até hoje a um certo abandono no que tange
ao fornecimento de equipamentos coletivos urbanos e demais “be-
nefícios” do “centro”.
Mas esta segregação, que se manifesta espacialmente e que se
constituiu através de toda a história da construção e ocupação de
Brasília, não se deu pela saturação da área central (o Plano-Pilo-
to) como em geral ocorre. O processo de segregação socioespa-
cial foi determinado não pelo capital imobiliário, mas pelo “pla-
nejamento” devido à forma como se deu a construção e o papel
que o Estado assumiu em relação ao espaço.

Retrospectiva da recente história urbana de Brasília

Como já foi colocado anteriormente, existem algumas cor-


rentes que tentam rever a história de Brasília sob uma visão críti-
ca. De um lado, uma corrente que trabalha com a história baseada
na ideologia das formas urbanas (tendo como referência autores
como Françoise Choay ou Leonardo Benevolo), que traduzem o
espaço urbano desvinculado das relações concretas de produção e
apropriação. No caso, esta corrente reflete a discussão sobre o
modernismo e as contradições do projeto dentro das críticas que
foram desenvolvidas em torno da Carta de Atenas. Por outro lado,
foi desenvolvida mais recentemente, por alguns autores, uma vi-
são que procura compreender Brasília sob a óptica de seu con-
junto, incluindo as cidades-satélites como elementos fundamentais
para o “funcionamento” da estrutura geral do Distrito Federal (Pa-
viani 1985a, particularmente os textos de Ricardo L. Farret, Suely
F. N. Gonzalez, Aldo Paviani e Ignez C. B. Ferreira). Neste sen-
tido, foram localizados vários dados que comprovam a relevância
deste aspecto contextualizado historicamente e dentro da forma-
ção social específica.
Gustavo L. Ribeiro aponta que “a construção de uma obra
das proporções de uma capital federal, no interior afastado dos
grandes centros, era um trabalho que demandava um elenco de
58 Luiz de Pinedo Quinto Jr. e Luiza Naomi Iwakami

decisões e iniciativas. Eram necessárias transformações que com-


portassem as levas de milhares de operários que ocorriam para a
maior frente de trabalho da época. No puro cerrado goiano, pas-
saria a existir uma obra gigantesca com prazo marcado para inau-
guração: 3 anos e 10 meses”” (Ribeiro 1982: 113).
Outros trabalhos procuram contextualizar a urbanização de
Brasília não como um momento isolado, mas dentro do processo
de urbanização brasileiro. Assim, Ignez C. B. Ferreira assinala:
“Em sua fase inicial, Brasília cresce comportando-se como uma
cidade de frente pioneira. Por sua especificidade de já ter surgido
como uma grande cidade, teve desde seu começo um poder de di-
recionamento muito além da atração de excedentes populacionais
locais ou regionais, canalizando as correntes migratórias nacio-
nais para o mercado de trabalho que se abria para a construção de
uma obra de tal porte: a capital do país. [...] Para o canteiro de
obras afluíram massas migratórias de procedência rural que se
proletarizaram na cidade em construção” (Ferreira 1985).
Desde 1957, com o início das obras, o Plano-Piloto de Brasí-
lia já é na realidade uma cidade-canteiro de obras. O fato de ser
uma obra que deveria ser realizada como um grande valor de uso
complexo e executada de uma vez criou uma relação única, parti-
cular.
Uma revisão crítica da história urbana de Brasília, partindo
de uma visão do processo das relações concretas de produção da
obra e não apenas da forma/produto final, deve possibilitar a
compreensão e maior clareza dos momentos e decisões da estrutu-
ração atual da cidade e seus conflitos.
O plano aprovado pelo concurso público para Brasília previa
uma ocupação de 600 mil habitantes até o ano 2000, sendo que só
seriam criadas as cidades-satélites quando a ocupação do Plano-
Piloto estivesse completa, de-acordo com as intenções do autor do
plano urbanístico de Brasília2.
Tentando analisar Brasília não como um discurso ideológi-
co/desenvolvimentista/modernista mas como um momento neces-
sário dentro das relações de produção e acumulação da época,
temos que relacioná-la como um momento importante para a rea-

2. Desde o período anterior à aprovação do plano, já existiam fortes divergências com


relação ao edital do concurso que obrigava um projeto que comportasse até 600 mil
habitantes no Plano-Piloto.
O canteiro de obras 59

lização do Plano de Metas?. Dentro do contexto de grandes obras


públicas, no qual Brasília se constitui como a mais importante, é
necessário analisar as relações de produção no interior da obra
(canteiro).
No trabalho desenvolvido por Sérgio Souza Lima, Brasília é
um dos objetos de análise em que se procura conceituar a cidade
como um grande capital fixo, e não como um discurso ideológico.
Em 1973, quando esta tese foi defendida, a análise marxista da
questão urbana estava dando seus primeiros passos. Prova disso é
que esse trabalho vai permanecer à margem da discussão teórica
sobre a construção de Brasília. Só a partir do momento em que a
análise marxista introduz discussões sobre as relações de produ-
ção do espaço urbano no final do anos 70 e início dos anos 80
(Lojkine 1981, Topalov 1979) é que a análise iniciada por Souza
Lima e Sérgio Ferro pode ser melhor compreendida, à medida que
resgata metodologicamente a relação do objeto Brasília com o
contexto das relações sociais e materiais.
Podemos fazer uma relação partindo do fato de que o Plano-
Piloto foi um único e macrocanteiro (a construção de Brasília
parte da mesma concepção de como se estruturam os canteiros de
obras na construção civil). Até aquele momento, as obras de en-
genharia de grande porte nunca haviam trabalhado com uma
construção nesse nível. A única maneira de enfrentar o problema
foi a divisão do canteiro (macro) em segmentos por construtoras.
A diferença de um canteiro de um edifício para um canteiro de
obras de uma cidade inteira em construção é que, no primeiro, se
usa a manufatura seriada como limite, dadas as características da
construção civil (Ferro 1976), e, no segundo caso, é possível que
as várias construções que compõem a cidade se façam simulta-
neamente.

3. Octavio Ianni refere: “Talvez se possa dizer que a criação da indústria automobi-
lística e a construção de Brasília transformaram-se nos símbolos do governo
Kubitscheck e, ao mesmo tempo, do “novo Brasil". Transformaram-se na prova
concreta de que o governo estava, realmente, realizando as tarefas de “cinquenta
anos em cinco”, como dizia um dos lemas da administração federal. De fato, o go-
verno Kubitschek teve condições e capacidade para capitalizar politicamente o de-
bate e as realizações do Programa de Metas. Ao tratar os brasileiros, em seus dis-
cursos, como “soldados do desenvolvimento” e focalizar a industrialização acelera-
da como “imperiosa necessidade” e verdadeira *condição de vida” Kubitscheck esta-
va exprimindo e conduzindo a reformulação da autoconcepção de extensos seg-
mentos das classes sociais urbanas” (Ianni 1979: 155).
60 Luiz de Pinedo Quinto Jr. e Luiza Naomi Iwakami

Assim, dada a pequena concentração da indústria da constru-


ção civil, esta foi obrigada a usar um sistema de consórcio, o que
levou à constituição de numerosos acampamentos das construto-
ras num primeiro momento, tais como Vila Planalto ou Vila Pa-
ranoá. O primeiro destinado à construção do conjunto da Praça dos
Três Poderes e o segundo, para a construção da barragem do lago
Paranoá. Com o decorrer das obras, o afluxo de migrantes à pro-
cura de trabalho fez com que surgissem acampamentos espontã-
neos como a Vila Amauri, próxima à Vila Planalto, Vila Sara
Kubitscheck, próxima á Cidade Livre, assim como Sacolândia,
Lonalândia e outros.

Na construção de Brasília, vamos notar a existência de dois


tipos de acampamentos. Alguns são controlados diretamente pelas
construtoras e/ou pela Companhia Urbanizadora da Nova Capital
(Novacap) e acampamentos/favelas espontâneos como os citados
acima. Mas, o grande canteiro de obras que se formava para a
construção do Plano-Piloto bem como os acampamentos das
construtoras necessitavam, na realidade, de uma rede urbana que
pudesse dar cobertura às demandas de consumo, diversão e servi-
ços que não eram satisfeitas pela estrutura existente. A ausência
dessa rede urbana nas proximidades dos canteiros e que fosse ca-
paz de suprir essas demandas acabou criando um fenômeno muito
importante que é a Cidade Livre, o que possibilita a compreensão
daquilo que posteriormente irá constituir as cidades-satélites.

Surge a Cidade Livre, hoje Núcleo Bandeirante, o maior aglomerado


até então, tendo como função básica prover de serviços o restante da
população: lojas, feiras, bares, restaurantes, material de construção,
enfim, o comércio em geral. Como forma de “incentivar” os que che-
gavam, além da isenção de impostos, recebiam lotes mediante o com-
promisso de serem devolvidos na data da inauguração do Plano-Pilo-
to. Todas as construções, devido à provisoriedade do núcleo, eram
obrigatoriamente em madeira. [...] A Cidade Livre, crescendo desor-
denadamente, transformou-se num “formigueiro humano” composto
por milhares de barracos amontoados sem a menor infra-estrutura ur-
bana. Destaquemos — para dar uma idéia da dramaticidade do quadro
— os incêndios frequentes que exigiam fossem derrubadas alas inteiras
de barracos para se impedir que o alastramento do fogo consumisse
grande parte da cidade” (Ribeiro 1982: 116).
O canteiro de obras 61

O que podemos observar desde o início da construção do


Plano-Piloto é que, mesmo com o controle da Novacap e cons-
trutoras no sentido de que os acampamentos dos operários fossem
organizados como uma extensão do canteiro de obras, não vai ser
possível controlar as necessidades inerentes, colocadas para a re-
produção da força de trabalho.
No caso dos canteiros de obras que se localizam dentro das
cidades ou próximos a redes urbanas estruturadas onde já existe
um fator de aglomeração, o canteiro se relaciona com este fator
dentro do conceito de utilização do valor de uso complexo. No
caso da construção de Brasília, a própria hierarquização existente
no interior dos acampamentos das construtoras, que não satisfa-
ziam às necessidades dos operários, fez com que surgisse um es-
paço onde as relações de mercado pudessem dar vazão a essas
necessidades. A Cidade Livre surge, assim, em função da inexis-
tência de um fator de aglomeração próximo ao canteiro de obras e
dos acampamentos oficiais.
Outro dado importante para compreendermos o surgimento da
Cidade Livre se relaciona ao número de operários que se deslo-
cam para o canteiro de obras da futura capital; em 1956, o núme-
ro de operários é de cerca de quinhentos. Em 1957, passa para
12 700. Em 1959, o total é de 64 314 e finalmente, na época da
inauguração, há uma população de 127 mil operários-habitantes
(Paviani 1989: 60). Nair H. Bicalho de Sousa nos coloca ainda o
seguinte:
O primeiro recenseamento de Brasília, realizado em julho de 1957
pela Inspetoria Regional de Estatística Municipal de Goiás, avaliou a
população goiana fixada na área do novo Distrito Federal em 6 000
pessoas, acrescido de um total de 6 283 ligadas à construção civil, co-
mércio e indústria. Nesta ocasião, Brasília era composta pelo Núcleo
Bandeirante (2 212 pessoas) e 14 acampamentos, além das pedreiras e
olarias que totalizavam 4 071 pessoas. Predominavam pessoas de sexo
masculino (4 600), solteiras (3 998). [...] A procedência era predomi-
nantemente goiana (3 152) e mineira (1 154), prevalecendo os traba-
lhadores não especializados (1 766). As habitações existentes eram de
madeira, cobertas de zinco, telha ou alumínio. Ainda as barracas de
lona (mais 100) completavam os abrigos existentes.
O acampamento central da Novacap, próximo ao Núcleo Bandei-
rante, era o mais populoso (2 099) e com instalações diversas. Ali es-
tava localizado o restaurante do SAPS, Hospital do IAPI, escritório
62 Luiz de Pinedo Quinto Jr. e Luiza Naomi Iwakami

do INIC, posto da COFAP (Comissão Federal de Abastecimento e


Preços), posto de serviço de endemias rurais, além de uma escola pri-
mária e os alojamentos e residências dos funcionários.
O Núcleo Bandeirante, por sua vez, concentrava as atividades co-
merciais e industriais (93 estabelecimentos comerciais, 10 unidades
industriais e 4 agências bancárias, juntamente com alguns serviços (1
mercado, 2 escolas primárias e 1 igreja, 1 semanário (Hora de Brast-
lia), 1 cinema, 1 médico e 3 dentistas (Bicalho de Sousa 1989: 34).

A necessidade de construir a capital em menos de quatro anos


obrigou a utilização de uma massa de mão-de-obra de forma ex-
tensiva tal que se criou um fluxo migratório sem precedentes.
Este fato consolidou a criação de cidades como extensão dos con-
flitos, do mercado e da reprodução da força de trabalho, como a
própria Cidade Livre (Núcleo Bandeirante), Taguatinga e Gama,
antes da fundação da cidade que os migrantes vieram construir.
A inexistência de experiências anteriores para construções
deste porte criou uma relação conflituosa entre os acampamentos
e a Cidade Livre de um lado e a administração da Novacap de
outro, que pretendia, após o término das obras, desativar os
acampamentos e a própria Cidade Livre. Como escreve Ribeiro:

No decorrer do ano de 59, a inquietação com os destinos da Cidade


Livre engendra as primeiras tentativas, por parte de sua população, de
propor soluções. É, contudo, no ano de 1960 que as pressões se avo-
lumam. Logo após a inauguração, o governo começa a pressionar para
retirar a Cidade Livre, o Núcleo Bandeirante, daquele local. Manter
uma enorme favela numa área que não se destinava a habitações, e
extremamente próxima ao Plano-Piloto, além do desconforto estético
para os visitantes, poderia causar problemas sociais graves! [...] Nos
inícios da década de 60, como era de se esperar, a maior parte do co-
mércio de Brasília se localizava no Núcleo Bandeirante. O Plano-Pi-
loto dele dependia para se abastecer desde material de construção,
passando por eletrodomésticos, roupas, peças e oficinas para automó-
veis, até gêneros de primeira necessidade, obtidos numa grande fei-
ra-livre que lá existia (Ribeiro 1982: 121).

Portanto, a Cidade Livre passa a assumir um papel funda-


mental já antes da fundação do Plano-Piloto, pois representava as
relações de mercado já implantadas em todo o Distrito Federal.
Nos primeiros anos após a inauguração de Brasília, praticamente
todo o comércio se concentrava na Cidade Livre, o que fazia o
O canteiro de obras 63

Plano-Piloto dependente desta atividade. A proposta inicial de Is-


rael Pinheiro (Novacap) era a de erradicar todos os acampamentos
e a Cidade Livre. Na realidade, a necessidade de se construir a
capital em curtíssimo prazo não possibilitou um planejamento de
controle dos canteiros e dos organogramas das obras, de tal forma
que fosse possível reaproveitar a mão-de-obra de uma construtora
para outra. O que existia em Brasília era uma população em torno
de 65 mil habitantes em 1959, sendo que mais da metade eram
operários da construção civil. No trabalho de Nair Bicalho de
Sousa, encontramos a explicação do processo de politização, a
nível sindical, dessa massa de trabalhadores que vieram para a
construção da nova capital. Da mesma forma, esse contingente de
operários, de prestadores de serviços e comerciantes, atraído para
apoiar a construção da capital, ofereceu forte resistência à erradi-
cação, aproveitando a conjuntura política da época (mudança do
governo JK para Jânio Quadros), e conseguiu alterar a estrutura-
ção física do Distrito Federal, impondo a permanência da Cidade
Livre, futuro Núcleo Bandeirante.
O que levou à criação das cidades-satélites foi a necessidade
de dar respostas à maneira como se processou a atração da mão-
de-obra para a construção de Brasília, que se transformou numa
antítese das propostas originais de se criar uma capital isolada das
massas urbanas e dos migrantes que iniciavam um processo de
transformação radical das cidades brasileiras.
A história de Brasília desde a sua fundação está marcada por
um longo processo para erradicar as chamadas “invasões”, como
ocorreu na Vila do IAPI em 1971 (formando Ceilândia), assim
como todas as tentativas de conter os fluxos de migrantes (gover-
no Lamaison, governo José Aparecido).

Qual a conceituação do “urbano” para a compreensão


da formação de Brasília?
Para que possamos entender qual é o papel do urbano e, den-
tro disso, a particularidade de Brasília, é fundamental localizar a
existência de várias conceituações acerca da questão. Mais que
isso, existem visões diferentes (empresários, Estado, movimentos
reivindicativos urbanos) atuando sobre o mesmo espaço urbano.
São, portanto, os diversos antagonismos de classe que se mani-
festam também no urbano.
64 Luiz de Pinedo Quinto Jr. e Luiza Naomi Iwakami

Partindo-se de algumas definições gerais assumidas como


consensuais sobre a cidade, tem-se, por exemplo, que a cidade se
constitui como “um organismo vivo” (ecologia urbana) ou ainda a
definição de que a cidade é o “locus do poder” (weberiana) e tam-
bém a cidade como “locus da produção” (estruturalismo). Em to-
das as definições e visões de mundo que se colocam, estas tendem
sempre para uma tentativa de generalização de um objeto comple-
xo. Assim, não resta dúvida de que as múltiplas determinações
que foram o urbano (dimensões físicas e não-físicas do espaço)
vão possibilitar que se desvende onde se dão a ação, a interação e
a dominação dos diversos elementos que o compõem.
As teorias, modelos e práticas do planejamento urbano foram
incorporados na administração pública brasileira durante os anos
50, período que se denominou desenvolvimentista. Após o golpe
militar de 64, essa experiência anterior abandona a visão huma-
nista do Padre Lebret para assumir um papel legitimador das prá-
ticas do estado ditatorial, institucionalizando-se a partir do anos
70, quando assume a forma atualmente conhecida.
Existem poucos trabalhos que apresentam uma revisão crítica
sobre o planejamento urbano e que procuram resgatar, através de
uma análise sistemática destas experiências, o que adotar e o que
não, dentro das particularidades de nossa formação social, políti-
ca e econômica, visando estabelecer uma combinação entre as
políticas públicas e as questões socioespaciais.
As críticas que se generalizaram e proliferaram, a partir dos
anos 80, assumiram uma versão negativa, sem fazer um resgate
das possíveis contribuições da área de conhecimento no processo
de formulação das políticas públicas.
O planejamento urbano passou a ser o bode expiatório de
uma conjuntura política, pela inexistência de políticas sociais
voltadas para a democratização da apropriação do espaço urbano.
Em contrapartida, as críticas em boa parte passaram a adotar con-
cepções baseadas nas filosofias pós-modernas e minimalistas,
tentando apontar que as saídas estavam na negação de qualquer
macrovisão do problema, abandonando-se esta pelos paradigmas
microespaciais.
A contraposição entre essas duas concepções citadas assume
um caráter de debate ideológico que foge das questões concretas
da estruturação da cidade como um valor de uso complexo. A
O canteiro de obras 65

polêmica entre as duas visões sobre o urbano não pode ficar nas
soluções imediatistas. A questão está no aprimoramento dos ins-
trumentos técnicos e das avaliações sistemáticas, que devem pro-
curar na epistemologia e na teoria do conhecimento critérios ca-
pazes de contribuir nesta avaliação.
As críticas simplistas e redutoras que muitos urbanistas, geó-
grafos, sociólogos, etc. lançaram sobre os planos diretores, de
zoneamento, etc. não possibilitaram uma avaliação do tipo de
apropriação que o Estado e os setores ligados ao capital imobiliá-
rio deram a estas técnicas. Assim, o planejamento urbano acabou
se associando a conceitos e práticas tecnocráticas relacionados
com as concepções autoritárias do planejamento.
A crise política e econômica dos anos 80 acabou levando esta
discussão para um beco sem saída, sem antes passar por processos
de balanço e avaliação crítica na perspectiva de um controle des-
tes mecanismos pela sociedade como um todo. Por isso, o plane-
jamento urbano entrou como um elemento legitimador do Estado
autoritário, dando elementos para a reprodução do capital em ní-
vel urbano. Já no período desenvolvimentista, apesar de o plane-
jamento usar um discurso democratizante, sua prática não foi no
sentido de ir ao encontro das necessidades de reprodução da força
de trabalho dentro do espaço urbano.
Assim, a questão central, ou seja, a discussão do objeto cida-
de e os mecanismos capazes de responder aos velhos e novos
problemas deste objeto, passa, necessariamente, pela discussão
das técnicas do planejamento e os mecanismos que o mercado ca-
pitalista encontra para responder às ações concretas destes ins-
trumentos.
O desenvolvimento (capitalista) das forças produtivas e a
gradual implantação do modo de produção capitalista carregam
consigo uma particular e mais avançada divisão do trabalho. A
divisão do trabalho pode-se dividir em divisão técnica e divisão
social do trabalho. Estas duas divisões do trabalho diferem pro-
fundamente. Na divisão técnica do trabalho, que se dá no seio das
unidades produtivas (empresas, fábricas, oficinas, etc.), são os
instrumentos de trabalho que comandam e que instituem a ordem
de interdependência. Os trabalhos são complementares, encadea-
dos uns aos outros por uma conexão racional, exigem unidade,
solidariedade, complexidade, complementariedade e cooperação.
66 Luiz de Pinedo Quinto Jr. e Luiza Naomi Iwakami

A esta cooperação justapõe-se a separação das funções em


funções de comando e funções produtivas, sendo esta separação
um fato social e não técnico. No modo de produção capitalista a
divisão social do trabalho se faz no mercado e do aleatório que se
comporta; não há nela a racionalidade que é possível exercer na
empresa (unidade de produção). No mercado há a concorrência e,
logo, as possibilidades de conflito, seguidas de conflitos reais
entre indivíduos, grupos e classes.
Assim, a análise epistemológica da cidade capitalista e do
planejamento urbano remete-se à divisão social do trabalho e à
divisão social no espaço urbano.

A chamada “nova escola francesa de sociologia urbana” tende a ver


nele [no urbano] não só os problemas espaciais, como também aqueles
ligados à produção e reprodução da força de trabalho e as práticas
político-ideológicas que se dão no âmbito da cidade. Se analisássemos
o conceito de urbano usado pelos poderes públicos no Brasil, teríamos
ainda outra definição. Neste contexto, precisamos, antes de mais nada,
examinar o que para nós vai conter o conceito de urbano. [...] Assim,
propomos como processo determinante do urbano a dinâmica do de-
senvolvimento das forças produtivas, articulada com a produção e re-
produção da população e com as questões políticas dentro de uma
formação social. É evidente que a cada etapa desse desenvolvimento e
seu correspondente modo de produção deverá estar associado um de-
terminado urbano (Lamparelli et al. 1989).

Trabalharemos partindo daquilo que é produzido e apropriado


socialmente no espaço construído, tendo como referência a teoria
do valor e o processo de valorização que ocorre devido à articu-
lação de vários fatores que interagem. Assim, dentro da concei-
tuação da mercadoria, a interação do urbano através dos valores
de uso específico de cada espaço edificado cria um novo valor de
Uso, ou seja, o fator de aglomeração, e, então, o valor de uso
complexo. Topalov nos coloca que há uma socialização das for-
ças produtivas no capitalismo, o que, em nível espacial, gera os
efeitos úteis de aglomeração devidos à incorporação dos objetos
materiais agregados ao solo, o que gera um valor de uso comple-
xo, já que esta é a condição necessária para o capitalismo:
A cidade constitui uma forma de socialização capitalista das forças
produtivas [...]. Em outros termos, para o capital, o valor de uso da
K
O canteiro de obras 67

cidade reside no fato de que é uma força produtiva, porque concentra


as condições gerais de produção capitalista (Topalov 1979: 18).
A cidade pode ser entendida como uma grande mercadoria,
fruto da inter-relação de cada mercadoria particular. Marx desen-
volve, inicialmente, o conceito para compreender as relações de-
correntes da divisão socioespacial do trabalho, denominada por
ele condições gerais da produção.
O fato de Marx ter se preocupado em discutir e aprofundar a
questão da renda fundiária agrícola, e não ter dirigido para a dis-
cussão da renda fundiária urbana o mesmo nível de aprofunda-
mento, criou uma série de leituras com deformação no trato desta
questão e dificultou bastante o désenvolvimento teórico e crítico
na compreensão do urbano. Nó caso brasileiro, o conceito de ur-
bano, com utilização de visões por demais ideológicas, e a forte
tradição da análise institucional fazem ressaltar um efetivo distan-
ciamento de realística localização da questão urbana. Neste senti-
do, Cláudio Vieira salienta:

a circunstância de que os terrenos incorporados por uma certa moda-


lidade de construção civil não são uniformes quanto às características
morfológicas ou topográficas resulta em desigualdades na produtivi-
dade natural do trabalho entre as unidades produtivas e que permite a
geração de lucros suplementares, que serão apropriados pelos pro-
prietários dos terrenos mais adequados à construção de imóveis na
forma de renda diferencial urbana. No entanto, tudo indica que a ren-
da diferencial urbana que se origina da maior ou menor adequação dos
terrenos para a construção de imóveis não seja tão importante como
na agricultura. Isto porque, por um lado, num certo mercado habita-
cional de uma dada aglomeração urbana, é possível admitir que os

4. A partir da divisão do trabalho na manufatura, Marx estabelece as relações entre


a revolução industrial, o maquinismo e a acumulação capitalista. É dentro deste
contexto que Marx faz referência à origem da cidade como fenômeno físico e so-
cial, relacionando-o com o conceito, importante para nós, de divisão social do tra-
balho. Inicialmente Marx estabelece uma distinção entre a divisão do trabalho na
sociedade e a divisão do trabalho na unidade produtiva. Essa distinção se impõe
basicamente por dois motivos. O primeiro é de natureza histórica. Aqui o argu-
mento é que a divisão social do trabalho é inerente às mais diversas formações eco-
nômicas da sociedade. Em contraposição, a divisão técnica do trabalho na unidade
de produção é uma criação específica do capitalismo. A divisão social do trabalho
existe desde as sociedades primitivas do tipo tribal onde obedece às diferenças de
sexo, de idade (natureza fisiológica). (Ver O capital, livro I, v. 1, seção IV, capítu-
los XII, XII e XIV.)
68 Luiz de Pinedo Quinto Jr. e Luiza Naomi Iwakami

terrenos sejam relativamente uniformes quanto às suas condições na-


turais, e, por outro lado, com os inegáveis avanços tecnológicos já
conquistados pela construção civil, é razoável supor que as diferenças
de custos de construção para imóveis equiparados, devido às diferen-
ças topográficas e morfológicas dos terrenos, tenham se reduzido sis-
tematicamente (Vieira 1984).

A grande contribuição do Centro de Sociologia Urbana de


Paris (CSU) foi avançar na discussão do espaço como um mo-
mento necessário dentro das condições gerais de produção, assim
como na conceituação do terceiro valor de uso do solo: fator de
aglomeração. No Brasil, Cláudio Vieira, assim como o trabalho
desenvolvido pela Fundação de Administração Pública
(FUNDAP), sobre questão urbana e serviços públicos, e os estu-
dos sobre a renda fundiária desenvolvidos pelo Instituto de Pes-
quisas de Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) possibilitaram o avanço
na compreensão das categorias e teorias desenvolvidas pelo CSU,
assim como a difusão destas no Brasil. O que temos observado é
que a apropriação de toda a bagagem teórica e o instrumental de
análise acima citado podem perder sua potencialidade se não for
compreendida dentro da particularidade da formação social na
aplicação deste instrumental. Assim, a preocupação que permeia o
trabalho é perceber, no caso de Brasília, que tem a marca funda-
mental de ser uma cidade planejada, como se deu o processo de
formação do fator de aglomeração e suas implicações, dada a
atuação do governo do Distrito Federal que detém praticamente o
monopólio do poder político e econômico no processo de cons-
trução e administração da cidade.

Fator de aglomeração em Brasília


A remoção da Vila do IAPI, em 1971, que deu origem à ci-
dade-satélite de Ceilândia, para onde foram deslocados cerca de
80 mil moradores, não ocorreu por acaso ou, simplesmente, foi a
criação de mais uma cidade-satélite. A lógica das transferências
de população dentro do Distrito Federal está intimamente ligada
ao processo de construção do Plano-Piloto.
Assim, entendendo historicamente e avaliando a constituição
de Brasília dentro do sentido dado à preservação daquilo que foi
planejado, a consegiência imediata foi, e continua sendo até hoje,
O canteiro de obras 69

a de afastar e controlar o fator de aglomeração que se formaria


inevitavelmente em torno do Plano-Piloto. Assim, poderemos en-
tender o “cordão sanitário” formado na Região Administrativa I,
ou seja, a área em volta do Plano-Piloto.
Desde a fundação de Brasília, mesmo no curto período que
vai até o golpe militar de 1964, a política urbana e territorial do
Distrito Federal tinha nítido caráter de remover todas as favelas e
“invasões” que haviam surgido durante o período da construção da
cidade.
O desconhecimento por parte de Israel Pinheiro, da Novacap,
que coordenou a construção e inauguração de Brasília, de que se-
ria praticamente impossível isolar a nova capital de uma série de
fatores importantes, tais como a não existência de uma rede urba-
na hierarquizada e bem estruturada capaz de dar suporte à cons-
trução da cidade, levou a população trabalhadora que veio para a
construção a ter que recriar dentro do canteiro os meios de con-
sumo coletivo, pois estes inexistiam na frágil rede urbana próxima
(Planaltina, Brazlândia, Luziânia). Rapidamente, a população dos
canteiros e dos acampamentos era superior à população de apoio
(terciários e serviços) e mesmo dos funcionários burocráticos da
administração federal, que chegaram subsequentemente.
Assim, as remoções como a da Vila Sara Kubitschek (que se
formou próximo à Cidade Livre em 1958, devido à chegada dos
flagelados da seca do Nordeste), que deu origem a Taguatinga, ou
à Vila Amauri, que deu origem ao Gama, não foram suficientes
para alocar as levas migratórias que surgiram depois.
Em 1988, verificou-se ter o Distrito Federal cerca de 140
“invasões”, com uma população em torno de 150 mil habitantes.
Se formos computar os fundos de lote, que na realidade são corti-
ços que abrigam até mesmo vinte famílias, a população subabri-
gada chega perto de 700 mil habitantes, ou seja, cerca de metade
da população do Distrito Federal. Esse quadro mostra que Brasí-
lia não difere muito da maioria das grandes cidades brasileiras. A
diferença está no fato de o poder público (governo do Distrito
Federal) deter em suas mãos o controle dos meios necessários às
soluções desse problema.
Durante o regime militar (1964-1985) a política urbana e ter-
ritorial do Distrito Federal não modificou suas premissas básicas
de controlar e expulsar a população sem habitação ou informal.
70 Luiz de Pinedo Quinto Jr. e Luiza Naomi Iwakami

(Veja-se o caso da Vila do IAPI). .Só no período do governo Or-


nellas (1980-1985) houve uma pretensa tentativa de desenvolver
uma política de fixação dessa população, contrariando as políticas
anteriores, através do Grupo Executivo para Assentamento de Fa-
velas e Invasões (GEPAFI), da Secretaria de Serviços Sociais.
Isto se explica pelo fato de haver perspectivas eleitorais próxi-
mas, naquele período (até 1986 a população de Brasília não tinha
direito ao voto).
O governo Ornellas assentou populações, como as da Can-
dangolândia, Itamaracá e QE-38 (no Guará), mediante projetos
realizados pelo GEPAFI, que foi praticamente dissolvido no iní-
cio do governo da Nova República. O governador José Apareci-
do, empossado então, foi se caracterizando por ações repressivas
para a erradicação de “invasões” bem como pelo controle rígido e
direto através da Terracap que fiscaliza os barracos existentes em
Brasília. Com essas ações, cerca de quatrocentos barracos foram
derrubados na Vila Paranoá, em 1986, e quinhentos foram remo-
vidos da SQN 110, em 1987, numa operação rápida e violenta,
por parte do governo do Distrito Federal.
A existência do fator de aglomeração se expressa em Brasília
através da pressão da população “invasora” que, devido ao rígido
controle do governo do Distrito Federal sobre a terra urbana, não
mora em loteamentos clandestinos ou periféricos, mas assume a
forma da ocupação de áreas (espaços vazios). Estes espaços, em
boa parte, pertencem ao Estado, administrados pelo governo local,
que por sua vez não libera áreas para esta população. A partir do
governo de José Aparecido retoma-se uma política de expulsão da
população do Distrito Federal, mediante a ausência de oferta de
lotes, assim como pela inexistência de qualquer ampliação de ci-
dades-satélites.
Assim, podemos afirmar que o processo que se inicia durante
a construção de Brasília e a criação de cidades-satélites dentro do
Distrito Federal tem a intenção de conter e controlar o fator de
aglomeração e começa a se aproximar de um momento de satura-
ção (quando Taguatinga e Ceilândia somam cerca de um milhão
de habitantes). Hoje, a pressão das cidades-satélites, distantes de
vinte a trinta quilômetros do Plano-Piloto, com 74% da população
total do Distrito Federal somando 80% de sua população econo-
micamente ativa, cria uma polaridade que começa a transformar e
O canteiro de obras 81

alterar áreas significativas do Plano-Piloto. Ao longo da Estrada-


Parque Taguatinga-Guará (EPTG), que liga o Plano-Piloto, Áreas
Octogonais, Cruzeiro Velho e Cruzeiro Novo, Setor de Indústria
e Abastecimento (SIA), Guará I e Guará II, já se forma um novo
fator de aglomeração que futuramente deverá pressionar o projeto
Águas Claras (hoje chácaras e residências — setor de mansões)
conurbando o Plano-Piloto e Taguatinga. A criação do Setor
Oeste Sul (SOS) do plano “Brasília revisitada”, de Lúcio Costa
(1987), como as “habitações econômicas” ao longo da EPTG re-
forçam essa idéia.
Com a aprovação do tombamento do Plano-Piloto Pela Unes-
co, o governo do Distrito Federal procurou impedir que o fator de
aglomeração desfigurasse o projeto original; tentou, igualmente,
controlar as relações de cooperação e as condições gerais que se
criaram no espaço com a construção de Brasília E

Conclusão

Podemos dividir a história de Brasília em dois períodos de


acordo com as políticas urbanas e territoriais do Distrito Federal,
no sentido de possibilitar maior compreensão da atual configura-
ção urbana de Brasília. O primeiro período, que compreende ba-
sicamente o processo de construção de Brasília, situa-se entre
1957, quando se deu o início das obras, e 1971, passando por
1964, quando ocorreu o golpe militar, trazendo consegiiências
profundas tanto nacionais como locais. Houve uma desativação
quase total das obras em Brasília, só vindo a ocorrer novos in-
vestimentos, por parte dos militares, a partir de 1971.
Este período pode ser subdividido ainda em dois, de acordo
com algumas especificidades: primeiro, da construção da cidade
propriamente dita, que compreende de 1957 a 1960, prevalecendo
a divisão técnica do trabalho no canteiro de obras, com o encur-
tamento dos prazos e intensificação das atividades, levando a um
aumento significativo do contingente de mão-de-obra e com alte-

5. No dia 7 de dezembro de 1987, a Unesco elevou Brasília (Plano-Piloto) à condição


de Monumento da Humanidade (título de Patrimônio da Humanidade) ou seja, a ci-
dade está tombada a partir de então. Novamente os adminstradores de Brasília ten-
tam encontrar saídas burocráticas visando congelar o crescimento de Brasília atra-
vés do entendimento do espaço urbano como se fosse um elemento físico e estático.
72 Luiz de Pinedo Quinto Jr. e Luiza Naomi Iwakami

ração profunda da divisão social na cidade. Outro subperíodo, ca-


racterizado pela postura de indecisão dos militares quanto às
obras necessárias à conclusão da capital, abrange de 1960 a 1971.
Este subperíodo foi marcado por grandes incertezas quanto à
transferência definitiva da capital.
O segundo período, que começou em 1971, caracteriza-se
pela consolidação das tendências iniciadas com a penetração das
relações de mercado, por meio da divisão social do trabalho. Nele
se propicia a difusão de “invasões” e cidades-satélites, configu-
rando-se como elementos estruturadores da nova capital, resul-
tante, por sua vez, da consolidação do fator de aglomeração no
espaço urbano.
A intenção original da capital federal, a de ser uma cidade
unicamente administrativa, isolada do resto do complexo processo
de urbanização por que passava o país nas décadas de 50 e 60,
vai esbarrar com essa realidade que, através da divisão territorial
do trabalho e do processo migratório intenso, vai jogar abaixo es-
sas pretensões. Assim, a divisão social do trabalho é introduzida
em Brasília através da mão-de-obra rural, que rapidamente se
proletarizou, formando uma massa de 126 mil habitantes em pou-
co mais de três anos. Este fato obrigou a Novacap a admitir a
existência de cidades-satélites, mesmo antes do término das obras.
Esse período irá até o início da década de 70 com a criação da
Ceilândia, nome formado a partir da sigla CEI, correspondente a
Companhia de Erradicação de Invasões. A partir daí, encerra-se o
ciclo iniciado com a construção de Brasília (Plano-Piloto e cida-
des-satélites), quando a sobrevivência física e intacta do Plano-
Piloto só seria possível com a construção de cidades-satélites que
funcionassem como amortecedores das relações de mercado sobre
o Plano-Piloto.
A pressão das cidades-satélites sobre o Plano-Piloto cresce
a tal ponto que mais de 70% da população do Distrito Federal se
aloja nelas, o que é um dado significativo. Essa pressão começa
a se tornar assustadora, ao se verificar que os dados do Censo de
1980 confirmam que Brasília cresceu a taxas de 8,5% ao ano,
obrigando o governo a tomar medidas de contenção do cresci-
mento.
A partir de então, inicia-se o ciclo da expulsão da população
através de mecanismos de contenção e bloqueio de oferta de novos
O canteiro de obras 73

espaços (sustando a expansão das cidades-satélites existentes, li-


mitando a produção de habitações populares e de alta renda e
controlando a migração) o que levará no período mais recente (de
1985 a 1988) à expulsão de população pobre para fora do Distrito
Federal, alterando a política vigente até o momento da criação de
Ceilândia.
A administração José Aparecido retoma, então, a discussão
ideológica e mitológica da necessidade de preservar o Plano-Pi-
loto como “cidade-monumento”, reforçando a visão de que o con-
gelamento do espaço físico consegue conter o desenvolvimento e
a ação do fator de aglomeração bem como das outras dimensões
do espaço urbano.
A construção da cidade planejada levanta alguns mitos sobre
a questão urbana; os administradores, planejadores e técnicos
acreditam que, ao gerenciar a pólis plenejada, estão administran-
do uma empresa e não o conflito.
Os construtores de Brasília e seus adeptos pensaram que, ao
planejar uma cidade, estariam eliminando os conflitos tradicionais
de nossas cidades. À lógica do capital imobiliário e a segregação
socioespacial são elementos estruturadores deste conflito, seja na
cidade planejada ou não; devido a isto, as técnicas do planeja-
mento devem partir do conflito e não de sua negação.
A cidade é o palco desses conflitos, os quais devem ser ge-
renciados dentro de uma compreensão de que a divisão social do
espaço se sobrepõe à divisão técnica numa cidade.
O fator de aglomeração é um instrumento importante para
que possamos repensar o papel do plano dentro da gestão urbana.
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A CAPITAL DO CONTROLE E DA SEGREGAÇÃO SOCIAL

Luiz Alberto Gouvêa

Introdução

Brasília, sem dúvida, significou a maior realização do urba-


nismo no século XX. Além das inovações de traçado e da arqui-
tetura dos edifícios, destaca-se pelo fato de que o poder público
detém a propriedade de maior parte das terras e tem a exclusivi-
dade das ações de planejamento e ainda, por sediar o governo fe-
deral, obtém, com relativa facilidade, recursos financeiros, condi-
ções estas 'sonhadas” por todo administrador de cidade no país.
Apesar disso, apresenta problemas muito semelhantes a outras
cidades de seu porte. Cresce, a cada dia, o número de favelas e
sublocações de lotes unifamiliares. Alia-se a este problema o fato
de que há um expressivo contingente de pessoas que, morando
nos núcleos urbanos criados pelas sucessivas políticas de erradi-
cação de favelas ou nas periferias do Distrito Federal, é obrigado
diriamente a se deslocar de grandes distâncias, pagando as tarifas
mais elevadas de transporte público do país, enquanto as áreas
internúcleos permanecem desocupadas, praticamente inviabilizan-
do a cidade para a maioria da população.
Diante deste quadro, como explicar que, sendo o governo
proprietário da terra, esta fique sem uso, inviabilizando o acesso à
cidade para a maioria da população? Como justificar a ação go-
vernamental de remoção de favelas e construção de conjuntos ha-
bitacionais distantes, quando áreas próximas ficam desocupadas?
No presente ensaio pretende-se responder a estas questões
por meio de uma avaliação da ação governamental na área da ha-
bitação, onde se evidenciará o papel do Estado, abordando tam-
bém a atuação do movimento social urbano, assim como se procu-
rará mostrar a função da ideologia e da renda da terra urbana na
instrumentalização do espaço, colocando-o a serviço das classes
dominantes.
76 Luiz Alberto Gouvêa

Busca-se, ainda, transformar este texto num instrumento de


denúncia das práticas opressoras e de exploração, adotadas pelo
governo do Distrito Federal contra as classes populares.

A questão teórica

Para melhor se entender as formas de ação do governo do


Distrito Federal na área da habitação e do movimento popular, se
abordarão inicialmente duas questões: a da renda da terra urbana
e a questão ideológica, as quais parecem ter influência destacada
na forma de estruturação e apropriação do espaço urbano em Bra-
sília.
A primeira questão diz respeito ao lucro suplementar apro-
priado pelos proprietários de terras urbanas, fruto das injunções
características das cidades capitalistas!. Estes núcleos, que são
ocupados em 80% de sua área com habitações, se caracterizam
como a sede do poder, que controla o modo de produção, se
constituindo, por isso, como abrigo por excelência das classes
dominantes e no local onde as relações Estado-capital-força de
trabalho se dão de forma intensa, enfatizando, assim como no
campo, as relações de dominação e desigualdade, expressas pela
riqueza de uma minoria e a miséria da maioria da população.
Historicamente, o urbano tem se constituído como local ““privile-
giado pela industrialização, sendo, concomitantemente, o espaço
de reprodução do capital e também das classes sociais” (Silva e
Silva 1987: 30).
Assim, “'a aglomeração urbana é determinada pela tendência
constante do capitalismo em diminuir o tempo ao capital”, sendo
a “cidade o efeito da necessidade de economizar as despesas de
produção, circulação e consumo a fim de acelerar a velocidade da
rotação do capital” (Lojkine 1981: 152, 153).
A cidade capitalista parece assim não funcionar simplesmente
como um cenário, onde ocorrem as lutas de classes, mas, sim,
como um arranjo espacial, estruturado para atender às necessida-
des do capital. Neste sentido, cada vez mais, vêem-se os núcleos
urbanos sendo desenhados pela especulação imobiliária, que, ao
estocar terras infra-estruturadas nas cidades, eleva os preços dos

1. Sobre o assunto ver Campos, Neio, “A Segregação Planejada”, neste volume,


A capital do controle e da segregação social Ea

imóveis, obrigando a população de menor renda a morar nas peri-


ferias empobrecidas. De fato, a existência de vazios urbanos tem
provocado a inchação da maioria das cidades brasileiras, aumen-
tando os custos de implantação e manutenção de serviços urbanos
(água, luz, esgoto) e das tarifas do transporte coletivo, pratica-
mente inviabilizando a cidade para a maioria da população.
Por sua vez, o Estado, ao não cobrar as taxas devidas pelos
serviços urbanos implantados com recursos públicos, contribui
para valorizar os terrenos de particulares, se aliando indireta-
mente aos proprietários de terras em detrimento da maioria da po-
pulação, que acaba tendo que, além de morar mais distante, des-
pender parte significativa de sua renda com transporte, aluguel e
os serviços urbanos cada vez mais caros. Desta forma, pode-se
dizer que o urbano é instrumentalizado pela burguesia, que segre-
ga as classes populares pelo preço da terra, colocando o espaço a
serviço do modo de produção capitalista.
Juntamente com as questões referentes à renda da terra, têm-
se também as questões ideológicas que agem como elementos de
instrumentalização do espaço urbano, colocando-o a serviço das
classes dominantes. Como explica Marilena Chauí: “A ideologia
é um dos meios usados pelos dominantes para exercerem a domi-
nação, fazendo com que esta não seja percebida como tal pelos
dominados” (Chauí 1980: 88). Na realidade, as classes que detêm
o poder lançam mão de fatos gerados na própria cultura, oriundos
das lutas de classes, para esconder e escamotear estas lutas.
O Estado tem funcionado neste processo, predominantemente,
como agente da ideologia dominante, pois, ao exercer o controle
social sobre o espaço, favorece economicamente, por meio da
valorização do mesmo, a apropriação das classes dominantes.
Tal fato fica evidente quando se faz uma retrospectiva da
história da ação governamental. No início do século, por exem-
plo, inspiradas no plano Haussmann, de Paris, o governo brasilei-
ro desenvolveu grandes transformações no centro de várias capi-
tais. Tais transformações, denominadas cirurgias urbanas, consis-
tiam em arrasar as partes centrais das cidades, visando à constru-
ção de modelos urbanos que, ao mesmo tempo que facilitavam a
ação da tropa na dominação dos movimentos populares, provoca-
vam uma rápida valorização do espaço urbano e a consequente
expulsão da população mais pobre para as periferias. É deste pe-
78 Luiz Alberto Gouvêa

ríodo, inclusive, que se tem notícia das primeiras favelas no Rio


de Janeiro, pois a população expulsa da área onde foi construída
a avenida Rio Branco se alojou nas periferias mais próximas, na
época, os morros cariocas.
Da mesma forma, a ação governamental na área específica da
habitação sempre se deu no sentido de segregar e principalmente
controlar as classes populares, tanto pela forma como eram con-
cebidos e localizados os conjuntos habitacionais, como, também,
pelas maneiras como eram os mesmos repassados à população.
Com efeito, na década de 40, para conter as reivindicações da
massa trabalhadora e devido à expressiva votação do Partido Co-
munista nas eleições presidenciais de 1945, foi criado o primeiro
organismo nacional para tratar da questão habitacional: a Funda-
ção da Casa Popular. Assim como os recursos da Aliança para o
Progresso, destinados à remoção de favelas na década de 60, fo-
ram emprestados pelos Estados Unidos da América, exatamente
no momento em que o regime socialista que se instalava em Cuba
pregava a reforma urbana; também o Banco Nacional da Habita-
ção foi criado em 1964 para incrementar a ação da indústria da
construção civil e, ao mesmo tempo, legitimar, junto às classes
operárias, o regime que assumia o governo, por intermédio de um
golpe militar, e que fazia rolar por terra as esperanças de muitos
trabalhadores em uma sociedade menos injusta.
Tais ações evidenciam a relação do modo de produção capi-
talista sobre o espaço e as políticas habitacionais, mostrando co-
mo as formas de segregação social, desenvolvidas por meio da
valorização do solo, se relacionam com as formas de controle po-
lítico e ideológico empregadas pelo Estado, utilizando o espaço
de uso residencial como objeto de ação.
Observa-se assim nas economias capitalistas uma identifica-
ção e mesmo uma influência mais constante nas ações governa-
mentais dos setores de maior renda, fazendo com que o Estado
desenvolva uma estratégia de controle geopolítico, objetivando,
por intermédio da produção do espaço, exercer um maior controle
sobre a maioria da população.
Observa-se, todavia, que o Estado é aparentemente contradi-
tório em sua ação, não agindo independentemente da conjuntura
sociopolítica. Assim, vê-se que, dependendo do jogo de forças
políticas e econômicas em momentos pré-eleitorais, quando exis-
À capital do controle e da segregação social o

te, a curto prazo, a perspectiva de mobilização popular, a ação


governamental se dá no sentido de fazer concessões, mesmo que
elas ocorram em direção oposta à linha política seguida até aquele
momento. São comuns, por exemplo, às vésperas de eleições, a
fixação de favelas em áreas de extrema valorização ou, ainda,
a implantação de equipamentos urbanos comunitários e a constru-
ção de moradias, com a finalidade precípua de fazer “concessões”
para se manter no poder.
Em Brasília, como se buscará mostrar no próximo item, isto
ocorreu em vários momentos, em particular nos governos que an-
tecederam eleições, como no caso do governo Roriz (1988-1989)
que, visando criar bases eleitorais para sua candidatura, atendeu a
reivindicações, como o assentamento de favelas no Plano-Piloto,
ações até aquele momento colocadas como impossíveis pelo pró-
prio governo.
Desta forma, não se pode conceber o Estado com uma linha
de conduta inflexível, ligada a uma única classe social. Tem-se
que entender o relacionamento do Estado com a sociedade civil e
os mecanismos que estabelecem os limites da ação estatal. Tais li-
mites, por sua vez, estão relacionados com a conjuntura socioe-
conômico-política, oscilante, dependendo do grau de organização
e mobilização das classes envolvidas.
O momento político que antecedeu a criação de Brasília e as
próprias justificativas para a interiorização da capital tiveram uma
forte influência das idéias geopolíticas de controle social do espa-
ço pelo Estado, já então testadas em várias oportunidades.
Destaca-se que, entre as justificativas para a mudança da ca-
pital para o Planalto Central, figurava a da “questão demográfica”
ou, mais especificamente, a necessidade de se ter uma capital,
que, ao mesmo tempo que dificultasse uma ação militar externa,
permitisse ao Estado um efetivo *controle social” sobre a massa
trabalhadora que, naquela ocasião (década de 50), pressionava a
administração do país com constantes greves e manifestações nas
portas do Palácio do Catete.
Todavia, somente a mudança da localização da capital não
garantiria as condições de isolamento requeridas pelas classes
dominantes, principalmente em função do crescimento dos fluxos
migratórios. De fato, a capital necessitava ter uma proposta físi-
co-espacial que também refletisse, em escala menor, Os princípios
80 Luiz Alberto Gouvêa

que nortearam sua mudança do Rio de Janeiro para o Planalto


Central. i
A concepção urbanística de Brasília se deu em consonância
com os princípios modernistas da Carta de Atenas. Segundo esta
concepção, a cidade — e cada residência — deve ser uma “máquina
de morar”. Para o modernismo urbanístico (Le Corbusier vê ar-
quitetura e urbanismo como elementos indispensáveis) “a cidade
deve ser animada pelo espírito de geometria, com linhas e ângulos
retos, ordem e eficácia, a rua deve ceder seu lugar às vias expres-
sas, adequadas ao automóvel e aos pátios de circulação; o zonea-
mento contido no plano deve assegurar uma distribuição funcio-
nal, que classifigque é ordene os espaços — setor de comércio, de
diversões, áreas verdes, indústrias, residências padrão A, B, C,
etc.” (Vesentini 1986: 157.)
Dentro dessa visão, se combatia a “desordem” da cidade tradi-
cional, a dificuldade do controle social que existia, por exemplo,
no Rio de Janeiro que, com tais padrões urbanísticos, seria per-
feitamente sanada. Aparentemente, usava-se o urbanismo como
remédio para uma sociedade doente, como dizia o próprio Le
Corbusier:

No dia em que a sociedade contemporânea, atualmente tão enferma,


estiver bem consciente de que somente a arquitetura e o planejamento
urbano podem fornecer a receita exata para sua doença, então chegará
o dia em que a grande máquina será posta em movimento (Holston
1982: 162).
Ao que parece, por trás de um racionalismo “messiânico”, o
modernismo escamoteava suas verdadeiras intenções de instru-
mentalizar o espaço, para colocá-lo a serviço do capital?.
Em Brasília, como se pretende mostrar a seguir, houve um
“casamento” perfeito entre os princípios geopolíticos que nortea-
ram a mudança da capital e os preceitos da Carta de Atenas que
inspiraram a concepção do projeto que deu origem à cidade. Bra-
sília, ao mesmo tempo que se tornou um símbolo do urbanismo
moderno, se configurou como um modelo quase perfeito de se-
gregação e controle espacial e social.

2. Sobre a questão do modernismo como objeto ideológico de controle social ver


BICCA, P. 1985: 100.
A capital do controle e da segregação social 81

A segregação e controle social em Brasília


A construção da cidade — 1956 a 1960

Esta fase foi marcada pela chamada aos brasileiros para


construir a nova capital do Brasil. Houve um processo de intensa
migração, com uma taxa média de 103,88% ao ano (Ferrei-
ra :1985), passando a população de 12 700 habitantes (em 1957)
para 127 mil (em 1960) (Paviani 1985: 60). As pessoas migravam
devido à intensa propaganda existente na época, que estimulava a
vinda dos brasileiros para construir a nova capital. Os candangos
vinham para o Planalto Central não somente para construir uma
cidade, mas para construir a “capital da esperança”, pois tinham a
esperança de melhores dias para trazer suas famílias e viver com
dignidade. Sonho realimentado pela atuação dos políticos da épo-
ca, incluindo-se o próprio presidente da República, Juscelino
Kubitscheck, dando a ilusão de que as coisas iriam mudar real-
mente com a construção de Brasília.
A implantação dos núcleos urbanos se deu por meio do pro-
cesso de terra arrasada, em que toda a vegetação e cobertura natu-
ral do terreno eram removidas, a topografia mudada, criando-se,
como é o caso da Estação Rodoviária, verdadeiros vales artifi-
ciais, como se os criadores da cidade se revoltassem contra a na-
tureza. Tais processos construtivos causaram enormes impactos
no meio ambiente, sendo, posteriormente, a cidade castigada por
erosões, falta de sombra e gigantescos redemoinhos de poeira, os
“lacerdinhas”, que por anos a fio baixaram a qualidade de vida do
candango.
O processo utilizado na implantação de Brasília gerou des-
confortos aos. habitantes da cidade que não trabalhavam direta-
mente na construção; reconhece-se que para os trabalhadores da
construção civil a situação foi bastante mais penosa. Observam-se
nos relatos da época as diferenças de tratamento dado às várias
classes sociais. Os trabalhadores moravam em precários barracos,
improvisados como alojamento coletivo, comiam mal, ganhavam
pouco e ainda eram comuns casos de trabalhadores mortos nas
“viradas” ou pela famigerada GEB (Guarda Especial de Brasília)
que se encarregava da repressão social (Bicalho de Sousa 1983:
34).
82 Luiz Alberto Gouvêa

Além da discrepância entre a condição de moradia dos traba-


lhadores e dos técnicos graduados e políticos, observa-se a clara
intenção de se construir o Plano-Piloto para abrigar os funcioná-
rios mais graduados do governo, e as cidades-satélites, de padrão
inferior, para servir de moradia para o restante da população, fi-
cando patente desde o início a política discriminatória, apesar dos
discursos em contrário. Já em 1958, foi criada a cidade-satélite de
Taguatinga, distante cerca de vinte e cinco quilômetros dos locais
de trabalho, para abrigar a população trabalhadora removida de
favelas próximas ao Plano-Piloto. Quando Brasília foi inaugura-
da, o processo de remoção se intensificou, tornando-se sistemáti-
ca esta prática, pelos vários governos que se seguiram.

Erradicação de acampamentos e favelas e construção de grandes


conjuntos habitacionais — 1960 a 1979

Na construção da nova capital, o trabalhador foi utilizado


pelo poder público como mão-de-obra barata, fazendo papel se-
melhante ao de um trator, pois simplesmente limpava a terra para
a ocupação de classes mais abastadas. Desta forma, a partir do
momento em que as obras foram ficando prontas, o candango era
compelido a deixar a capital, nos sucessivos programas de retorno
de migrantes implementados a partir de 1963, ou eram removidos
para localidades distantes do Plano-Piloto, entre doze e cingiúenta
quilômetros, em assentamentos desenvolvidos a partir de 1958
e intensificados na década de 60, que originaram e/ou expandiram
as várias cidades-satélites. O Núcleo Bandeirante, em 1961, foi o
primeiro núcleo não previsto no plano-original, que, por força da
mobilização da população, particularmente dos comerciantes do
local, conseguiu ser fixado, constituindo um exemplo isolado,
onde as forças populares prevaleceram sobre a poderosa máquina
estatal.
Nos demais casos, a remoção se deu de forma semelhante à
erradicação da Vila do IAPI, onde uma população de aproxima-
damente 82 mil pessoas foi removida contra a vontade para um
local sem infra-estrutura urbana ou comunitária, localizado a cer-
ca de trinta quilômetros do Plano-Piloto, denominado Ceilândia.
Ressalte-se que o próprio governo, no plano de erradicação da
vila, reconhecia que ela apresentava “ruas bem traçadas, lotes
N
A capital do controle e da segregação social 83

cercados e em alguns setores um processo espontâneo de fixação,


uma verdadeira comunidade de vivência e serviço” (Governo do
Distrito Federal 1970).
Apesar de o governo reconhecer as qualidades urbanísticas e
comunitárias da Vila, justificou sua remoção baseado em laudos
“técnicos” que atribuíram à “invasão” a contaminação de córregos
próximos e a consegiiente poluição do lago Paranoá. Na realida-
de, toda a política de remoção de favelas se revelou extremamente
negativa do ponto de vista social, particularmente a remoção da
Vila do IAPI para a Ceilândia. De fato, no que se refere à questão
social, a mudança das famílias causou uma significativa redução
de suas rendas, devido à distância do novo núcleo em relação ao
centro de empregos (na época, o Plano-Piloto) e principalmente
em face do custo do transporte, que praticamente impediu a parti-
cipação dos filhos menores e da mulher na composição da renda
familiar, ficando esta basicamente apoiada nos parcos ganhos do
chefe da família, percebidos, geralmente, como operário da cons-
trução civil. As mulheres, em sua grande maioria, ficaram impe-
didas de desenvolver suas atividades, como, por exemplo, as la-
vadeiras (uma das profissões mais praticadas pelas pessoas da an-
tiga Vila), que se viram impossibilitadas de trabalhar, pois a Cei-
lândia, nos primeiros tempos, não dispunha de água.
Além da redução da renda familiar, a inexistência de equipa-
mentos urbanos e comunitários, nos primeiros anos, trouxe toda
sorte de problemas, acentuando a dependência da população em
relação ao Plano-Piloto ou ao Núcleo Bandeirante, mais dotados
de serviços, comércio e atividades capazes de oferecer empregos.
No mesmo momento que se removia a Vila do IAPI, bem co-
mo as favelas contíguas (Morro do Querosene, Vila Bernardo
Saião, Vila Tenório e Vila Esperança), se construía, nas suas ad-
jacências, a cidade-satélite do Guará II, pensada para abrigar um
contingente de pessoas equivalente àquele que estava sendo erra-
dicado, evidenciando a opção governamental pela localização dos
favelados numa área que permitisse um maior controle social (fi-
gura 1).
Com efeito, em um primeiro momento, o governo segregou
física e socialmente as classes populares nas distantes e mal-equi-
padas cidades-satélites, desenvolvendo ao mesmo tempo uma po-
lítica de controle social desta população, por meio da distância
84 Luiz Alberto Gouvêa

que separa os núcleos satélites do Plano-Piloto (centro de deci-


sões) e pelo traçado destes núcleos. Tal desenho, com ruas retilí-
neas e longas, com edifícios sem abertura para os espaços públi-
cos, em várias de suas partes formando becos, que funcionam
como depósito de lixo, e espaços públicos exageradamente am-
plos e áridos, criou um traçado urbano bem diverso do arranjo es-
pacial dos assentamentos erradicados.
Pode-se imaginar a dificuldade que teriam, por exemplo, os
moradores de Ceilândia para organizar uma manifestação de pro-
testo em frente ao Palácio do Buriti, se o governo bloqueasse o
transporte coletivo, ou mesmo a facilidade que a polícia teria para
A capital do controle e da segregação social 85

reprimir uma manifestação nos amplos espaços das cidades-saté-


lites oudo Plano-Piloto. Assim, tanto a distância como o próprio
traçado urbano foram usados como instrumentos que, se não im-
pediam a mobilização da população segregada, pelo menos não a
estimulavam, facilitando, por outro lado, a ação do aparelho re-
pressivo do Estado.
Ceilândia, embora concebida durante o regime militar, possui,
como foi dito, elementos urbanísticos modernistas semelhantes
aos do Plano-Piloto, que dificultavam a apropriação do espaço
pelos moradores e facilitavam o controle, evidenciando que não
só o modelo urbano representado pelo Plano-Piloto foi aceito pe-
los militares, como foi reproduzido, em padrão econômico, nos
diversos assentamentos implantados a partir de 1964. O controle,
entretanto, não se deu somente devido ao desenho urbano e à lo-
calização das cidades, funcionando as formas de alienação das
moradias e lotes também como elemento de controle social.
A ideologia da casa própria sempre foi utilizada visando
principalmente transformar os favelados e inquilinos em mutuá-
rios. Escamoteando suas verdadeiras intenções, faria os mutuários
pagarem por quase trinta anos prestações da compra de um pro-
duto que não necessitavam, pelo menos da forma como era ofer-
tado, mantendo-os na ilusão de que eram proprietários e que ti-
nham algo a “perder”. Assim, ao mesmo tempo em que os contro-
lava, evitava quaisquer atitudes que viessem mudar de forma es-
trutural o sistema.
Nesse período, Brasília praticamente se consolidou como a
capital administrativa do país. Foram criadas as cidades-satélites
do Gama, Sobradinho, Guará (década de 1960), Guará II e Cei-
lândia (década de 1970), e ampliado os setores O, P Norte da
Guariroba e QNL de Taguatinga, além de ter sido promovido um
significativo incremento na ocupação dos setores centrais do Ga-
ma, Guará, Cruzeiro Novo e QNA, B, €C, D, E, G e nas QNJ de
Taguatinga (Gonzalez, 1985: 83).
Observa-se, assim, que o poder público primeiramente se en-
carregou de determinar “estrategicamente” a localização das diver-
sas cidades-satélites, deixando, num segundo momento, que o
próprio mercado imobiliário desse continuidade ao processo de
segregação social. Dessa forma, os preços dos imóveis no Plano-
Piloto e cidades-satélites mais próximas (Cruzeiro, Núcleo Ban-
86 Luiz Alberto Gouvêa

deirante e Guará) foram majorados e, consequentemente, sua po-


pulação passou a enfrentar um processo contínuo de mobilidade
espacial, que provocou a expulsão das famílias para as cidades-
satélites ainda mais distantes e mal-equipadas, ou mesmo para fo-
ra do Distrito Federal, nas áreas próximas à cidade de Luziânia,
que apresentava uma taxa de crescimento de 600% na década de
70 (Oliveira 1983).

Não-oferta de moradia e controle de migração (1979-1983)

Se, num primeiro momento, o governo utilizou sua prerroga-


tiva de dententor do monopólio das terras para segregar e contro-
lar a população de menor renda, num segundo momento, como foi
dito, se aliou ao mercado imobiliário, aumentando o gabarito das
cidades e implantando equipamentos urbanos e comunitários em
setores de baixa densidade, ocupados pelas classes de maior ren-
da, em detrimento dos setores populares. “Implantou a infra-es-
trutura do centro para a periferia dando prioridade à mais cara e
de menor alcance social, ao invés de privilegiar as mais baratas e
de maior impacto sobre a qualidade de vida” (Torelly, L. F. P.,
comunicação verbal, 1988).
Mesmo quando implantou infra-estrutura nos bairros popula-
res, objeto da política de erradicação de favelas, o fez com inte-
resses eleitoreiros, visando cooptar a população, servindo inclusi-
ve este processo para desmobilizar os trabalhadores, pois tais ini-
ciativas, mesmo não atendendo às reais necessidades das pessoas,
serviam como contemporização, que aos poucos passava a ser
vista pelos moradores como ganhos e não como o pagamento
atrasado de uma dívida social, contraída no momento da remoção.
Esta estratégia funcionou extremamente bem para o governo.
Como se viu, a cidade-satélite de Ceilândia, que foi objeto de um
processo violento de erradicação, elegeu posteriormente como
deputado federal, com cerca de 40 mil votos, o representante do
governo, enquanto o representante dos Incansáveis Moradores de
Ceilândia, instituição que desenvolveu um processo de resistên-
cia, obteve menos de 10 mil votos?.

3. O representante do governo, responsável pela erradicação da Vila do IAPI e que


posteriormente se tornou administrador de Ceilândia, foi a assistente social Maria
N
A capital do controle e da segregação social 87

Ao mesmo tempo que utilizava a implantação de infra-estru-


tura como forma de desmobilização popular, o poder público, a
partir de 1963, passou a desenvolver uma política de controle de
migração. De 1979 a 1983, incrementou a política de não-oferta
de moradias, acreditando que desta forma diminuiria o fluxo mi-
gratório para Brasília, o que na realidade não ocorreu. No mo-
mento seguinte a esta ação, o Distrito Federal contava com 85 mil
pessoas morando em favelas, cerca de 3,5 vezes mais que no pe-
ríodo imediatamente anterior (1979)4. Isto sem contar as pessoas
que sublocavam lotes nas cidades-satélites, ou moravam nos lo-
teamentos periféricos, que no período se transformaram em alter-
nativas reais para a população, pois não existia oferta habitacio-
nal no perímetro do Distrito Federal. Desta maneira, a própria
realidade dos fatos acabou jogando por terra a hipótese governa-
mental de que era a construção de casas que provocava as altas
taxas de crescimento migratório.
Na verdade, o que se pode apreender é que a migração estava
muito mais ligada às próprias condições de penúria no campo e
carência dos serviços urbanos e comunitários nas regiões de ori-
gem dos migrantes do que à oferta de moradia em Brasília. A tí-
tulo de exemplo, em pesquisa de campo desenvolvida em dois
loteamentos populares, existentes nas cidades-satélites do Gama e
do Guará, constatou-se que a habitação figurou em quarto lugar,
quando se indagou os motivos da vinda para o Distrito Federal,
por causa da moradia, sendo que 67,2% dos pesquisados disseram
ter vindo para conseguirem emprego, e 9,2% para ter melhor as-
sistência médica (saúde) (Gouvêa 1988).
Observa-se assim que, apesar das deficiências dos serviços de
saúde e educação prestados em Brasília, estes eram muito supe-
riores aos prestados na maioria das regiões brasileiras. Além dis-
so, uma cidade de mais de um milhão de habitantes oferece ao
migrante uma gama de alternativas em termos de emprego/lazer

de Abadia Bastos, enquanto Eurides Pedro Camargo era representante dos Incansá-
veis Moradores de Ceilândia. .
4. Segundo a Secretaria de Serviços Sociais, em 1977, era da ordem de 7 355 o nú-
mero de barracos existentes no Distrito Federal, com uma população estimada em
aproximadamente 27 045 habitantes. É importante destacar que, no período ime-
diatamente anterior, 1970-1976, foram erradicadas cerca de 113 457 pessoas das
invasões, favelas e acampamentos do Distrito Federal (Gonzalez 1985: 83).
88 Luiz Alberto Gouvêa

que não são encontradas no campo e nas pequenas cidades, e por


isso ele migra. :
Uma das consegiiências desta política de controle de migra-
ções e de não-oferta de habitações foi o aparecimento de centenas
de favelas e a sublocação de lotes unifamiliares em todos os nú-
cleos urbanos do Distrito Federal.
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Croqui: Paulo Caruso, Revista Projeto nº 20, maio de 1980.

A urbanização de favelas como perspectiva eleitoral —


1982-1985

O governo, no decorrer dos anos, modificou sua estratégia de


ação na área da habitação, de acordo com o jogo de forças políti-
cas e a ação dos movimentos populares. A partir de meados da
década de 60 e na década de 70 detinha uma força política quase
hegemônica. Nessa ocasião, erradicava favelas e reprimia a po-
pulação. Já no final da década de 70, passou a um processo de
repressão intercalado com o de implantação de infra-estrutura nas
cidades-satélites para cooptar a população. Na década de 80 mo-
dificou novamente sua forma de agir, tendo em vista as eleições
que se aproximavam e o processo de “abertura política” que con-
tagiava a população e transformou a política de erradicação de
A capital do controle e da segregação social 89

invasões numa política aparentemente oposta, ou seja, a de urba-


nização de favelas.
Naquele momento, em todo o Brasil, a habitação, por inter-
médio do programa PROMORAR, era utilizada como instrumento
para legitimar, junto à população, a candidatura à presidência da
República do então ministro do Interior, Mário Andreazza. Embo-
ra o pleito fosse indireto, o respaldo da população era fundamen-
tal. Da mesma forma, em Brasília, a ação governamental prepara-
va terreno para a candidatura do governador José Ornellas ao Se-
nado Federal, o que de fato ocorreu em 1986.
Segundo dados da Secretaria de Serviços Sociais, de 1988,
foram assentadas 41 640 pessoas num período de três amos. To-
davia, foi dada prioridade somente a uma faixa de renda, no caso,
a de menor poder aquisitivo, fato que gerou um intenso processo
de mobilidade nos loteamentos. Com efeito, numa economia de
mercado, a prioridade dada a uma determinada faixa de renda cria
desequilíbrios, principalmente se esta for de menor poder aquisi-
tivo, pois a população de renda imediatamente superior pressiona
e o preço especulativo dos imóveis acaba prevalecendo, causando
um processo de intensa mobilidade social.
A idéia de dar prioridade ao atendimento de uma determinada
demanda está vinculada ao conceito de déficit habitacional que
perpassou todas as ações governamentais na área da habitação no
Brasil, ou seja, cria-se um número, que teoricamente expressa
uma demanda por habitação, e toda a produção se dá em função
desse quantitativo, que objetiva, na realidade, atender aos interes-
ses eleitoreiros do governo, ou gerar trabalho para as empresas
construtoras, não tendo, portanto, relação com as necessidades da
população. Até mesmo porque torna-se impossível sanar o déficit
habitacional, pois as necessidades de habitação são dinâmicas e
evolutivas. Na realidade, não existe um déficit, o que existe são
necessidades diferenciadas de habitação. Desta forma, deve a po-
lítica habitacional, particularmente nas economias capitalistas,
trabalhar esta questão de forma global, enfatizando a necessidade
diferenciada de habitação, para todas as faixas de renda. O go-
verno deve, neste contexto, se encarregar do atendimento dos se-
tores mais necessitados socialmente, em função das limitações de
caráter estrutural, expressas pela desigualdade e concentração de
renda, implantadas pelo capitalismo, enquanto modo de produção.
90 Luiz Alberto Gouvêa
Assim, tendo sido dada prioridade à camada populacional de
menor renda, os índices de mobilidade social observados nos as-
sentamentos implantados com o PROMORAR (1983-1985) foram
elevados, particularmente nos locais mais próximos dos centros
de emprego, como se verificou na cidade-satélite do Guará (QE
38). Estas cifras, entretanto, não atingiram percentuais superiores
aos 90% anotados em épocas anteriores naquela cidade-satélite.
Na QE 38, a alienação dos lotes, pelo sistema de concessão
de uso por cinco anos, pode ter servido para retardar o processo
de mudança. Há possibilidade também de que elementos de zo-
neamento urbano, tais como a sobreposição de uso (comércio/re-
sidência), a forma “progressiva” (lenta) como foram construídas as
casas e as próprias formas de uso e apropriação do espaço urbano
(semelhante a uma favela) podem ter atenuado essas taxas de mo-
bilidade, propiciando mesmo, no caso, da Vila Itamaracá (Gama),
taxas reduzidas (cerca de 10%) (Gouvêa 1988).
A ação governamental, no entanto, não criou um estímulo pa-
ra uma participação comunitária que poderia, juntamente com os
fatores examinados, servir como instrumento de resistência à ex-
pulsão dos moradores. Pelo contrário, o governo sempre atuou de
forma a antecipar as reivindicações, cooptando as lideranças e
exercendo controle social sobre a população. Em suma, ao longo
destes vinte e nove anos (1956-1985), a ação governamental no
Distrito Federal se pautou pela produção de moradias de baixa
qualidade para viabilizar interesses eleitorais, segregando a massa
operária nas periferias distantes e desenvolvendo um controle do
solo urbano, que funcionou como instrumento de elevação dos
preços dos imóveis da cidade, instrumentalizando, assim, o espa-
ço de forma econômica e política.
Por outro lado, o movimento popular sempre se posicionou
contrário à ação governamental, pois ficava patente a defasagem
entre o que era ofertado pelo poder público e as necessidades ha-
bitacionais da população. Tal defasagem não se colocava somente
em termos quantitativos, mas, principalmente, em termos qualita-
tivos. Foram as lavadeiras de Taguatinga, protestando contra a
retirada da bomba d'água, em 1960, os comerciantes do Núcleo
Bandeirante lutando pela sua fixação em 1961, foram os Incansá-
veis Moradores de Ceilândia na década de 70 e os moradores da
Vila do Paranoá em 80 lutando pela urbanização da vila. Todos
obtiveram do governo alguns ganhos nas suas lutas.
A capital do controle e da segregação social 91

Todavia, ao longo destes anos, apesar de as lideranças popula-


res estarem lutando pelas mesmas coisas (moradias, água, trans-
porte, fixação de favelas, equipamentos urbanos e comunitários),
não houve uma integração das diferentes lutas. O próprio governo
usou a setorização das atividades no tratamento das questões ur-
banas para dificultar a apreensão por parte do trabalhador do en-
tendimento das relações das várias partes do urbano. Por exem-
plo, não é possível habitar uma casa se não existir acesso entre
ela e o emprego, a escola, os hospitais, etc. O papel da ideologia
capitalista de escamotear a verdade dos fatos facilita ao Estado a
venda, para uma população desavisada, da proposta de remoção
de favelas para locais distantes, onde as pessoas terão dificulda-
des de acesso ao trabalho e aos bens de serviço, facilitando, po-
rém, o controle pelo aparelho repressivo do Estado e a segregação
do trabalhador de menor poder aquisitivo.
Por isso mesmo, é que os movimentos ocorreram de forma
esparsa e pontual, atingindo vitórias significativas, mas muitas
vezes morrendo no instante seguinte, sem maior repercussão e
sem oferecer apoio às pessoas de outras localidades que vivencia-
vam os mesmos problemas. É bem verdade que, à medida que
certas reivindicações são atendidas, existe uma tendência natural
de esvaziamento do movimento, até mesmo pela pouca “cultura
política” e a forte intervenção do Estado, não existindo a perspec-
tiva de uma luta por mudanças maiores, inclusive em relação à
própria estruturação do espaço urbano.
O poder público em Brasília pode ser apontado como o res-
ponsável direto por essa situação, pois, além do processo de co-
optação e desorganização do movimento popular, atuou também
como incorporador, provocando especulação imobiliária ao utili-
zar sua prerrogativa de deter o monopólio da terra e a exclusivi-
dade das ações de planejamento, para estocar terrenos próximos
ao centro de decisões e valorizá-los, obrigando com isto grande
parte da população de menor renda a morar fora do Distrito Fede-
ral, expandindo a malha urbana desnecessariamente, diminuindo a
eficiência da cidade e inviabilizando seu uso para a maioria da
população (pelo alto preço do transporte), funcionando também o
preço da terra como forma concreta de segregação social. Durante
todas as décadas de 60, 70 e início de 80, o governo agiu desta
forma, sendo pequenos os avanços das classes populares neste pe-
92 Luiz Alberto Gouvêa

ríodo, em função da grande repressão e cooptação impostas pelo


regime militar. Acreditava-se, desta maneira, que com a Nova
República a situação seria diferente.

A Nova República e a privatização das terras públicas

A Nova República, apesar dos discursos progressistas profe-


ridos nos palanques da campanha das diretas, conseguiu em pou-
co mais de quatro anos de ação na área da habitação cometer os
mesmos “equívocos” que os militares cometeram nos vinte e um
anos de governo em Brasília.
Inicialmente, destaca-se a utilização da habitação como ob-
jeto de propaganda eleitoral. Em 1986, por exemplo, foram cons-
truídas quinhentas casas de placas de concreto no setor M de Ta-
guatinga/Ceilândia. A idéia de se usar este material construtivo
somente ocorreu devido à necessidade de o governo passar a falsa
idéia de que poderia construir quinhentas casas num só dia, suge-
rindo, assim, O voto em seus candidatos, pois nos 364 dias do ano
muitas outras casas poderiam ser construídas.
Essa casa de placa custou aos cofres públicos cerca de quatro
vezes mais caro do que a similar, em alvenaria de tijolo, sendo
ainda de qualidade inferior. Em face da pequena espessura da
placa (3 cm) e à sua característica de ser pouco isolante térmico,
nos dias quentes do ano a temperatura interna da casa atinge ní-
veis superiores à externa, criando uma situação de desconforto
que praticamente faz a moradia perder seu principal objetivo, ou
seja, servir como abrigo.
Com relação à questão da qualidade da habitação, pode-se
citar o exemplo da expansão do Setor O de Ceilândia, onde foram
ofertados lotes urbanizados para a população autoconstruir suas
casas, não sendo, todavia, fornecida pelo governo a devida assis-
tência técnica. Assim, o primeiro vento forte ocorrido com a che-
gada das chuvas na cidade (outurbro de 1987) causou a derrubada
de cerca de cem casas, com a perda do material pelos moradores e
provocando, ainda, um saldo negativo de dezenas de pessoas fe-
ridas, mostrando que nem todas as pessoas dominam as técnicas
construtivas, por mais simples que sejam, e que uma proposta de
lote urbanizado para a população de menor renda não pode ser
implementada sem a devida assistência técnica.
À capital do controle e da segregação social BB

Da mesma forma que os militares, a Nova República também


empreendeu uma política de controle migratório e de oferta dimi-
nuta de lotes. Assim, fez os preços dos imóveis subirem, funcio-
nando o governo como aliado da especulação imobiliária, utili-
zando os recursos públicos para mandar os migrantes de volta pa-
ra seus estados de origem, numa política inócua, pois não existia
nenhuma condição objetiva para estas famílias se fixarem nos lo-
cais de origem.
Finalmente, a Nova República empreendeu o programa 'En-
torno com dignidade”, uma reedição da política de erradicação de
favelas e construção de grandes conjuntos habitacionais em locais
distantes, desenvolvida nos anos negros da ditadura militar. Desta
vez, entretanto, os novos governantes extrapolaram na sua sanha
de segregar e controlar a massa trabalhadora, pois não mais ofer-
tavam lotes no Distrito Federal, mas sim, no Estado de Goiás,
setenta quilômetros do centro de emprego, ou simplesmente não
ofertavam lotes, deixando a população ao desabrigo. Seus perten-
ces eram temporariamente confiscados pelo governo e a habitação
era tratada como caso de polícia, a exemplo do que ocorreu na
remoção dos moradores da 110 Norte, onde restos de barracos fo-
ram incendiados à vista de seus antigos ocupantes, numa atitude
sem precedentes na história da habitação no Brasil.
O governo, ao mesmo tempo que removia de forma violenta a
população das terras próximas à sede do poder, alienava a parti-
culares, sem licitação pública (contrariando o decreto nº 2 300,
de novembro de 1986), áreas de sua propriedade, como, por
exemplo, a localizada às margens do lago Paranoá, de 600 mil
metros quadrados, cedida ao Clube de Golfe (120 sócios) (Gou-
vêa 1988).
Além desse procedimento irregular, que está permitindo a
entrega ao setor privado das terras mais valorizadas do Plano-Pi-
loto, o poder público empreende um processo de cessão de áreas
públicas a particulares, utilizando como artifício o arrendamento
para uso agrícola. Todavia, a maioria das áreas distribuídas se lo-
caliza em regiões servidas de infra-estrutura urbana e próximas
aos centros de empregos e serviços. Como exemplo, têm-se áreas
recém-arrendadas onde, de um momento para outro, surgiram
centenas de mansões, que o governo jamais terá recursos para in-
denizar em caso de desapropriação.
94 Luiz Alberto Gouvêa

A proposta de expansão urbana, desenvolvida pela Nova Re-


pública, intitulada “Brasília revisitada” é outro exemplo que vem
reforçar as idéias expostas no presente trabalho, pois a oferta de
áreas residenciais no entorno do Plano-Piloto, vinte e nove anos
depois de sua criação, quando a terra atingiu uma valorização
proibitiva, impedindo o assentamento da maioria da população
trabalhadora, torna as sugestões de assentamento de favelas no
Plano-Piloto, contidas no projeto “Brasília revisitada”, contraditó-
rias, demográficas e inspiradas no populismo eleitoreiro que sem-
pre norteou as ações, na área da habitação, dos governos autoritá-
rios. Desta forma, a ação governamental se caracterizou como a
maior prova de que o Estado, utilizando o monopólio das terras,
deixou valorizar durante mais de vinte e nove anos seu patrimôó-
nio passando-o agora às mãos da classe dominante.

No governo Roriz (1988-1989), devido ao desgaste político


do seu antecessor, à proximidade das eleições e aos planos políti-
cos do governador, a habitação novamente é utilizada como ins-
trumento para angariar simpatias populares e conter o avanço dos
partidos de esquerda (PT, PDT, PCBs).

Neste momento, o governo, premido pelas circunstâncias po-


líticas, lança mão de bandeiras opostas às que vinha até então
sendo utilizadas e, como em outros momentos, passa a “ofertar”
moradias. No entanto, utiliza o programa habitacional e a massa
de recursos disponíveis para desorganizar o movimento popular.
Com efeito, o governador, sabendo que não dispunha de tempo
hábil e recursos para atender às reais necessidades da população,
executa programas que possam render-lhe maiores dividendos
eleitorais e que desestimulem as críticas a seu governo. Assim,
distribuiu, por exemplo, para associações de inquilinos, com cer-
ca de mil associados, vinte lotes de cada vez, criando um sistema
propício à corrupção interna, que causava o descrédito das lide-
ranças, permitindo um total atrelamento dos moradores ao gover-
no, destruindo de forma deliberada a força do movimento popu-
lar. Assentou ainda a população em áreas suscetíveis ao processo
de erosão do solo, sem a infra-estrutura mínima necessária, colo-
cando a população praticamente acampada no período chuvoso de
Brasília, sofrendo todos os rigores do clima e correndo risco de
vida devido aos possíveis deslizamentos de terra.
A capital do controle e da segregação social 95

Fundamentalmente, o governo Roriz repetiu o equívoco dos


governos anteriores ao ofertar moradias em locais distantes dos
centros de empregos, invertendo a lógica urbana e obrigando a
população a despender parte significativa de seu salário com o
transporte diário.
Ao mesmo tempo que ofertou moradias para a população de
menor renda e criou uma cortina de fumaça que rendeu apoio à
sua política, incentivou os parlamentares de seu partido (PMDB)
a desenvolverem projetos que visassem privatizar as terras públi-
cas do Distrito Federal utilizando o último período que antecede a
instalação da Câmara Legislativa local para dilapidar o patrimô-
nio público.

Conclusão

Os planejadores urbanos frequentemente apontam como um


dos principais problemas do planejamento a descontinuidade das
políticas públicas. Em Brasília, no entanto, houve em todos os
governos, tanto militares quanto civis, uma estratégia comum,
qual seja a de “preservar Brasília”, segregando espacial e social-
mente a população de menor renda.
De fato, como se tentou mostrar, o planejamento urbano e
particularmente a habitação em Brasília foram utilizados de forma
ideológica para segregar e controlar a população. Ao mesmo tem-
po o Estado usou sua prerrogativa de deter o monopólio das ter-
ras, erradicando sistematicamente as favelas, deixando seu patri-
mônio fundiário valorizar-se por três décadas, para, agora, entre-
gá-lo nas mãos dos setores de maior poder aquisitivo, agindo de
forma semelhante à especulação imobiliária.
O projeto governamental em outubro de 1989, pelo Senado
Federal, que regulariza os loteamentos clandestinos do Distrito
Federal, ilustra bem a questão. É bem verdade que o governador,
pressionado pelos setores sindicais e políticos comprometidos
com as classes populares, acabou por vetar este projeto e elabo-
rou outro menos vinculado aos interesses dos “donos de lotea-
mentos”. Todavia, ao não relacionar a questão dos loteamentos

5. A deputada Márcia Kubitscheck e o senador Meira Filho apresentaram projetos de


lei que, de formas diferenciadas, visavam à privatização das terras públicas.
96 Luiz Alberto Gouvêa

clandestinos no contexto dos debates populares sobre o plano di-


retor, deixou evidente a intenção, tanto do Poder Executivo como
do Legislativo atual, de cristalizar em Brasília os interesses da
classe dominante.
Esclarece-se que a Constituição Federal, no artigo 182, obri-
ga a elaboração de um plano diretor para as cidades de mais de 20
mil habitantes. Embora este instrumento, por si só, não garanta
nenhum avanço social, poderia funcionar como uma alavanca que
motivaria os debates sobre as questões urbanas, propiciando a
participação organizada da população, por meio de conselhos po-
pulares, que explicitariam suas reivindicações e fiscalizariam
tanto as ações do Poder Executivo como do próprio Legislativo.
Por outro lado, a regularização dos loteamentos clandestinos
e a cessão de terrenos para uso rural em áreas de vocação urbana,
como vêm ocorrendo no Distrito Federal, são ações que visam à
privatização irresponsável da terra pública, inviabilizando, na
prática, uma proposta de plano diretor que atenda aos interesses
da maioria da população, comprometendo assim a eficácia da im-
plementação de um planejamento urbano realmente democrático.
Enfim, a estruturação do espaço urbano em Brasília, produto
basicamente da ação governamental, tem suscitado muitas críti-
cas, tanto pela distância dos núcleos satélites dos centros de em-
prego e poder, como pela dificuldade de apropriação social de
seus espaços urbanos, dando assim a impressão de que se criou
propositadamente uma trama espacial, que contribui para resguar-
dar os interesses das classes dominantes, num processo de abso-
luta injustiça social.
A SEGREGAÇÃO PLANEJADA!

Neio Campos

Introdução

Apesar da curta história da cidade de Brasília, muito tem se


escrito a respeito de sua organização espacial. Sejam os estudos
sociológicos e antropológicos, de como se constituíam as relações
sociais na época de sua construção; as análises dos aspectos
ideológicos que envolviam não só a decisão de mudança da capi-
tal, mas também os princípios urbanísticos que delineariam a es-
trutura urbana da cidade; as abordagens de cunho regional sobre
os impactos sociais da inserção desta estrutura urbana na divisão
territorial existente; ou mesmo, as discussões dos aspectos mor-
fológicos e sintáticos, os quais permitiriam leitura específica da
relação espaço-sociedade, a partir do seu plano urbanístico (Far-
ret 1985, Paviani 1985, 1987, Ribeiro 1980, Vesentini 1986).
Este ensaio tenta suscitar uma discussão sobre o caráter se-
gregador assumido pela organização espacial da cidade, que está
sempre permeando as abordagens acima referenciadas, mas que,
devido à forma fragmentada ou tangencial como geralmente se
processa esta discussão, possibilita que o fenômeno seja facil-
mente detectado e assumido como presente na referida estrutura
espacial, porém ainda muito pouco explicado no seu processo
constitutivo, assim como na identificação dos agentes que colabo-
ram para o seu aparecimento e permanência.
Explicar um fenômeno social representa, antes de mais nada,
enfrentar o desafio de enquadrá-lo conceitualmente numa aborda-
gem que não perca de vista a sua precariedade enquanto totalida-
de abstraída da realidade. Desta maneira, entende-se a segregação

1. Este texto em grande parte está baseado na segunda parte de minha dissertação de
mestrado A produção da segregação residencial em cidade planejada, UnB, 1988.
98 Neio Campos

residencial como fenômeno resultante das intermediações com-


plexas entre os agentes e suas atividades na formação do espaço
urbano, estruturada sob as determinações das relações sociais ca-
pitalistas (Smolka 1983, Campos 1988).
Com este entendimento, deixa-se demarcada desde já a im-
possibilidade de dotar um caráter autônomo e auto-explicativo ao
fenômeno. Parte-se, assim, das duas dimensões ou níveis de me-
diação cognitiva que envolvem o processo de estruturação do es-
paço urbano, isto é, o movimento dialético entre a razão estrutural
e a conjuntural.
Na primeira, ancorada na teoria do valor de corte marxista,
busca-se aprender o processo de produção numa estrutura social
capitalista, que, antes de mais nada, é produção de valor. A se-
gunda, representada pela prática dos agentes sociais diretamente
envolvidos com a formação do espaço urbano, que, ao atuarem
sobre diferentes segmentos sociais, criam uma estrutura de sub-
mercados imobiliários, os quais, ao possuírem certas regras está-
veis de funcionamento, estabelecem fronteiras que num processo
de vir-a-ser, característico da realidade social, produz e reproduz
a segregação residencial.
Em outras palavras, significa dizer que ao mesmo tempo que
se reconhece a necessidade de descer ao nível de atuação especí-
fica dos agentes sociais (proprietários, empresas imobiliárias,
usuários de moradia, incorporadores) e institucionais (órgãos go-
vernamentais e financeiros) reconhece-se que estes não possuem
a capacidade de atuar autonomamente as suas condições de classe
social, fundamento da estrutura social capitalista.
Assim, levando-se em consideração esta demarcação teórica,
procede-se à análise da evolução espacial da cidade, dividindo-a
em quatro momentos distintos, procurando distinguir, em termos
de estrutura residencial, como as diferentes formas de promoção
da habitação e de ocupação do solo contribuem na produção e re-
produção da segregação residencial.

Cidade ou “canteiro de obras”

A formação do espaço urbano de Brasília contém, em sua es-


truturação interna, especificidades oriundas do contexto de sua
construção, embora isto não signifique que a mesma não possua
À segregação planejada 99

os mesmos traços característicos dos processos sociais que fun-


damentam a estruturação interna das demais cidades brasileiras.
Estrutura-se, inicialmente, semelhante a um canteiro de obras,
isto é, a partir da ordenação proposta no plano urbanístico global,
tem-se construído o espaço da cidade. Tal fato, implicará desde
logo um conjunto de regras de funcionamento da atividade imo-
biliária na qual as relações de produção e apropriação travadas
entre os diversos agentes e instituições caracterizam a predomi-
nância, neste momento, da lógica de realização do submercado da
“alta produção” (Campos 1988).
O processo de produção da mercadoria habitação realiza-se
em série, implicando a construção de um grande número de uni-
dades habitacionais com mesmo repertório construtivo e arquite-
tônico, e sua apropriação, pelo fato de as unidades habitacionais
estarem destinadas a segmentos específicos da sociedade, se pro-
cessa com grande homogeneidade interna. Tais aspectos têm
grande significado no que se refere à segregação residencial,
pois, desde a formação deste espaço, registra-se uma maior dife-
renciação dos padrões habitacionais para os diferentes segmentos
sociais, assim como sua seletivização.
Esta é a principal característica do submercado da “alta pro-
dução”, pois a habitação aí produzida atende a uma demanda cati-
va, geralmente representada por segmentos corporativos ou pro-
fissionais situados num mesmo estrato social, que seriam desloca-
dos com a mudança da capital federal?.
Em função desta característica, a realização da mercadoria
habitação se dá num mercado imobiliário muito específico, visto
que o empreendedor, geralmente, é ao mesmo tempo o emprega-
dor, possibilitando, neste caso, ao governo federal, realizar ga-
nhos imobiliários e apropriar-se de um certo tipo de renda fundiá-
ria, a de monopólio, que irá constituir, ao longo do processo de

2. Segundo Leonor Bertone, baseada em alguns números da revista Brasília (1961),


um sistema de pontos determinava o merecimento e a locação dos funcionários da
Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap) a se estabelecerem no Plano-
Piloto: a) cada período de quatro meses de exercício efetivo valia um ponto; b) sa-
lário até Cr$ 15.000,00 valia um ponto; de Cr$ 15.000,00 a Cr$ 25.000,00 valia
dois pontos; e acima de Cr$ 25.000,00 valia três pontos; c) cada dependente valia
meio ponto; d) chefe de departamento e chefe de gabinete valia três pontos; chefe
de divisão e de gabinete de diretor valia dois pontos; e chefe de serviço e de seção
valia um ponto (Bertone 1987: 55).
100 Neio Campos

formação do espaço urbano de Brasília, sua característica funda-


mental. ,
No momento da construção de Brasília, já se presencia uma
seletivização espacial, pois o Plano-Piloto, desde o início, carac-
terizava-se como o espaço urbano destinado ao funcionalismo pú-
blico federal e à pequena burguesia, enquanto as cidades-satélites
eram formadas a partir da pressão exercida pela população mi-
grante dos trabalhadores menos qualificados (ligados sobretudo à
construção civil), que possuíam como perspectiva de moradia ape-
nas as proximidades dos canteiros das obras, seja nos seus aloja-
mentos ou nas denominadas tinvasões"2.
A intervenção do Estado, através da Companhia Urbanizado-
ra da Nova Capital (Novacap)*, no sentido de evitar a consolida-
ção das alternativas de moradia (invasões e sublocações), adota-
das pelos trabalhadores menos qualificados, expressa na verdade
a lógica do capitalismo monopolista na produção e reprodução do
espaço, sob a égide do Estado. Em nome da ordem, respaldado
por um plano urbanístico que entende a cidade como uma unidade
funcional, espécie de empresa estudada previamente e submetida
às regras de um ordenamento geral, luta-se contra o espontaneís-
mo e a desordem simbolizados nos acampamentos e invasões en-
tão existentes.
A política territorial proposta pela comissão especial criada
pelo governo federal revelava-se o aspecto mais avançado no pla-
no urbanístico original da cidade. Estabelecia a enfiteuse com fo-
ro móvel, a qual, entre muitos princípios consagrados, declara
que, “a terra é pública, isto é, de todos, e sua renda reverte em
benefícios de todos; as benfeitorias e a produção, isto é, os frutos
do trabalho e do capital, são de propriedade exclusiva e absoluta
de seus produtores e ficam resguardadas contra o fisco; o domínio
útil permanente é assegurado pela perpetuidade do aforamento; é
elevada a taxa de aforamento com o fim principal de manter per-
manentemente baixos os valores territoriais” (Silva 1970: 102).
3. Segundo Gustavo Ribeiro, “no decorrer da construção, as invasões seguiram cres-
cendo, principalmente, quando, ao se terminar alguma obra específica no Plano-
Piloto, destruíram-se os alojamentos existentes para os trabalhadores, que ficavam
com a única alternativa de engrossar a fileira dos invasores” (Ribeiro 1980: 178).
4. Constituída em 1956, pela Lei nº 2 874, seria a empresa pública federal responsá-
vel pela administração das obras de construção da nova capital federal, tornando-
se, portanto, o principal agente estruturador do espaço urbano, no seu momento
inicial.
À segregação planejada 101

Esta proposta não chegou a ser implementada, pois foi consi-


derada avançada demais para a realidade fundiária predominante
no país. Optou-se por uma política territorial que, apesar de ter
assegurado a propriedade de certa quantidade de terra em mãos
do poder público (figura 1), não diferia fundamentalmente das re-
gras prevalecentes num mercado imobiliário comum, onde existe
uma renda da terra auferida por quem detém a propriedade priva-
da da terra, diferindo apenas neste caso, por ser o Estado, repre-
sentado pelo governo do Distrito Federal, o referido proprietário.

Z EE
NÃO-DESAPROPRIADA DESAPROPRIADA EM COMUM AÇÕES EM ANDAMENTO

DESAPROPRIADA — 37%
NÃO-DES APROPRIADA — 43%
FONTE: Terracap (1982)
Figura 1. Situação geral das terras no Distrito Heaerai

Desta maneira, tem-se no primeiro momento o Estado como


o principal agente articulador da organização espacial de Brasília.
A cidade estrutura-se como um projeto do Estado”, apresentado a
nível de sua estruturação residencial um núcleo central (Plano-

5. Sobre o assunto, ver texto de Ribeiro, Gustavo, “Acampamento de grande projeto


— uma forma de imobilização da força de trabalho pela moradia”, neste volume.
102 Neio Campos

Piloto), que, desde sua origem, estava destinado aos vários seg-
mentos da tecnoburocracia e às elites dominantes, de acordo não
só com o papel desempenhado por estes na divisão econômica e
social do espaço, mas também pelo papel desempenhado na divi-
são técnica do trabalho.
Ao fazer parte dos quadros superiores da tecnoburocracia, os
funcionários públicos com alta qualificação, os servidores paraes-
tatais, os servidores civis e militares, por exemplo, poderiam ad-
quirir casas ou apartamentos, facilitado o processo de aquisição
pela Novacap, desde que construídos dentro do prazo de quinze
meses, contados a partir de maio de 1959, de acordo com a Re-
solução nº 5, do Conselho da Novacap (Oliveira 1987: 131).
Em suma, os princípios de racionalidade e unifuncionalidade,
obedecidos com rigor em Brasília, na constituição dos seus espa-
ços, assim como o volume de realizações que caracterizaram a
prevalência de um submercado imobiliário característico da alta
produção geraram um alto grau de segregação socioespacial na
constituição dos mesmos, pois os estratos sociais, além de ocupa-
rem o espaço de acordo com sua condição de classe, tinham esta
diferença mais acentuada, em função da estandardização caracte-
rizadora dos seus diversos espaços e da relativa homogeneização
interna dos seus usuários, determinada pela divisão técnica do
trabalho.

A “crise da capital”

Após a euforia do período de construção da cidade, tem-se


um segundo momento na formação do espaço urbano de Brasília,
caracterizado pela diminuição do ritmo de realizações devido à
própria inauguração da cidade, como também à ascensão de um
governo de oposição, o qual, dentre outras críticas, atacava Oo
açodamento do governo Juscelino Kubitscheck no propósito de
construir a capital federal, não levando em consideração os enor-
mes custos sociais e econômicos que acarretou para as finanças
do país.
Como fora visto na caracterização do momento anterior, ti-
nha-se até então, na constituição do espaço urbano da cidade, a
predominância do submercado da “alta produção”. Em face desta
nova conjuntura política, os investimentos públicos, responsáveis
A segregação planejada 103

pela constituição e dinamização deste submercado imobiliário,


decresceram, acarretando a quase paralisação da indústria da
construção civil.
Começa-se a desenhar o agravamento da crise social, que
acompanhará todo o processo de formação do espaço urbano da
cidade. Paralelamente à estagnação deste submercado imobiliário,
com a consequente diminuição da oferta de emprego no setor da
construção civil, observa-se o contínuo crescimento do número de
habitantes de Brasília, provocado não só pelo peso da forte imi-
gração ocorrida no momento anterior, mas, também, pelo seu in-
cremento vegetativo (33,7%) (Pavani 1985).
Este crescimento vai implicar uma pressão constante por mo-
radias por parte dos migrantes que chegavam à cidade e, também,
do grande número dos “sem-teto”, que não preenchiam os critérios
estabelecidos pela Novacap para a compra dos lotes nas cidades-
satélites.
Entre os conflitos gerados pela falta de moradia nessa época,
merece destaque a pressão exercida pelos moradores da então Ci-
dade Livre, para que aceitassem a fixação deste assentamento
pioneiro”. Este assentamento exercia um papel fundamental para
os trabalhadores e demais moradores que vieram desde a constru-
ção da cidade, pois constituía o único local com capacidade de
oferecer os meios de consumo coletivo necessários ao atendi-
mento das necessidades desta população, em face da debilidade,
em termos de serviços urbanos, dos assentamentos mais próximos,
preexistentes à nova capital (Luziânia, Formosa, Planaltina e
Brazlândia).
Assim, no segundo momento, tem-se na formação do espaço
urbano de Brasília a predominância do que se pode denominar
“constituição do espaço dos excluídos”, o qual, de certa forma, é
produto das contradições oriundas do canteiro de uma “grande
obra”, como também do quadro de crise social crescente no país
(Ammann 1987).
Neste espaço, o agente Estado, ao contrário de sua atuação
precedente (clientelista e beneficiadora de interesses dos seg-

6. A respeito destes critérios, consultar a revista Brasília, editada pela Novacap nessa
época.
e urbaniza-
7. Ver o texto de Nair Heloísa Bicalho de Sousa “O movimento pró-fixação
volume, p. 169.
ção do Núcleo Bandeirante: a outra face do populismo janista””, neste
104 Neio Campos

mentos de posição social mais privilegiada), exerce um forte pa-


pel de controle social e de exacerbação das desigualdades sociais.
Além de limitar e restringir as alternativas de sobrevivência
dos moradores, por exemplo, assentando-os na maioria das vezes
em locais distantes do trabalho, transfere-se para localidades to-
talmente desprovidas de urbanização, utilizando, de certa manei-
ra, a força de trabalho destes excluídos na dotação das condições
mínimas de habitabilidade, instituindo um sistema de prestações
que amortizariam o preço do terreno na époa da compra. Este fato
implicaria, de certo, pagar por um terreno mais valorizado pelo
próprio trabalho não-pago no momento de criação destes assen-
tamentos (Ribeiro 1980, Resende 1985, Ammann 1987).
Assim, não tendo condições de assumir a posse definitiva do
lote, tanto devido à sua valorização, como, também, pelas restri-
ções ou qualificações impostas pelo Estado por meio das normas
urbanísticas para autorização da construção definitiva da habita-
ção, os grupos de baixa renda que demandam e constituem estes
espaços se vêem permanentemente impelidos a sair destes espaços
por eles constituídos ou alterar a sua forma de apropriação, como,
por exemplo, pela sublocação.
É neste contexto que começa a delinear-se o submercado
imobiliário formado por aqueles que, em face da valorização da
terra oriunda do rígido controle da expansão urbana ou de novos
assentamentos por parte do Estado, e das elevações nos preços
das prestações dos terrenos em consequência dos investimentos
públicos realizados, vêem-se pressionados a extrair algum ren-
dimento na forma de renda fundiária, que possibilite sua perma-
nência naquela localidade e complemente, pela lógica rentista da
sublocação dos lotes, o seu orçamento.
Este submercado imobiliário é denominado “submercado das
áreas deterioradas centrais”, onde a produção da habitação carac-
teriza-se pela mínima inversão de capital e máximo aproveita-
mento do terreno, além de que, na maioria das vezes, a produção
e/ou adequação da habitação para atender a este submercado se

8. Como exemplo, tem-se a citação de Marília Oliveira, com base na ata de reunião de
diretoria da Novacap, de 26/1/60, quando afirma que “em Sobradinho, quando foi
decidida a instalação da rede de esgotos, elevou-se em Cr$ 10.000,00 o preço do
lote para pagamento da infra-estrutura” (Oliveira 1987: 133).
À segregação planejada 105

processa através de investimentos diretos provenientes do pro-


prietário deste capital mercantil, estando, por isso mesmo, fora do
alcance das exigências regulamentares de ordem jurídica e urba-
nística que sempre acompanham o financiamento institucional pa-
ra a produção imobiliária.
O proprietário do imóvel se apropria, à primeira vista, apenas
da renda fundiária diferencial, dada a existência da desigualdade
da produtividade do trabalho entre as diversas unidades de produ-
ção da habitação, desigualdade esta que tem por origem o fato de
que estas condições não são reprodutíveis pelo capital.
Mas, em função da escassez de áreas urbanas para a realiza-
ção de tal empreendimento, causada tanto pela concorrência esta-
belecida por outras frações do capital mercantil, que competem
e/ou monopolizam estas áreas, como pela própria legislação urba-
nística que impõe restrições cada vez maiores à produção de ha-
bitação para este submercado, o proprietário do imóvel colocado
neste submercado se apropria, também, de renda fundiária mono-
pólica (Campos 1988).
O agravamento da segregação residencial nos assentamentos,
onde impera esta lógica, tem duas raízes intrinsecamente associa-
das. A primeira está relacionada à busca de maior ganho por parte
daqueles que possuem a posse (ilegal ou legal) dos lotes e imó-
veis sublocados, buscando auferir uma maior renda fundiária ou
imobiliária gerada por este investimento. Para tanto, intensifica-se
o seu uso através de uma maior subdivisão das habitações.
A segunda configura-se pelo fato já mencionado de as rela-
ções travadas entre o “locador” e seu “inquilino” neste submercado
não estarem geralmente sujeitas a nenhum tipo de regulação for-
mal pelos aparatos institucionais, dando margem a expedientes de
exploração diversos, que servem para aguçar as condições precá-
rias de sobrevivência dos segmentos sociais submetidos a esta ló-
gica.
Brasília (finalmente é) cidade

Considera-se o início do terceiro momento a partir de 1971,


no qual se observa a consolidação da cidade como decorrência de
uma nova conjuntura política, marcada pela obtenção de uma
maior hegemonia política por parte do regime militar instaurado a
partir do golpe de 64.
106 Neio Campos

Os militares decidem confirmar Brasília como capital federal,


preocupados principalmente em ressaltar as melhores condições
de segurança e controle social que a estrutura espacial desta cida-
de oferecia em relação à antiga capital federal, passando a inves-
tir na sua construção, estimulando, principalmente, a transferência
dos demais órgãos públicos da administração federal e também
das representações diplomáticas que ainda estavam localizadas no
Rio de Janeiro”.
Nesta fase, importantes implicações seriam acarretadas para a
estrutura residencial da cidade. O ritmo das construções fora re-
tomado e as obras iniciadas no período da construção foram com-
plementadas. Tem-se como exemplo a urbanização do Lago Sul
(área destinada à construção de residências para populações de
alta renda); a construção das duas pontes que ligam esta área à
zona central da cidade; a construção de grandes blocos residen-
ciais, principalmente na Asa Sul do Plano-Piloto; e a implementa-
ção de equipamentos urbanos variados, com sua alocação, quase
na sua totalidade, no Plano-Piloto. Registra-se, também, neste pe-
ríodo, o incremento na produção de residências populares, im-
plementadas pela Sociedade de Habitações de Interesse Social
(SHIS), através do Sistema Financeiro de Habitação (SFH)1º.
A partir desse terceiro momento, registra-se a constituição de
um mercado imobiliário propriamente dito, pois, nos precedentes
aqui analisados, o Estado, por intermédio da Novacap, passava os
“direitos de ocupação” de determinado lote ao morador, ou vendia
as projeções a institutos de previdência dos órgãos públicos ou
similares, determinando autonomamente seus preços e com cau-
ção em letras imobiliárias, denominadas Obrigações de Brasília,
evidenciando um circuito de comercialização das edificações,
exterior às transações efetuadas no mercado imobiliário!1.,
O mercado de terras de Brasília começa a se constituir efeti-
vamente a partir da década de 70, principalmente com o surgi-

9. Ver o artigo de Luiz Alberto Gouvêa “A capital do controle e da segregação so-


cial”, neste volume.
10. Segundo Suely Gonzalez, somente no período 1970-1976, a SHIS “produziu
23 004 habitações populares, para conjuntos residenciais nos núcleos satélites,
principalmente em Taguatinga e no Guará” (Gonzalez 1985: 83).
11. Conforme a Resolução nº 5, do Conselho da Novacap, citado em Oliveira
(1987: 131). N
À segregação planejada 107

mento de loteamentos na orla oriental do Lago Paranoá, fruto de


alterações no plano original da cidade, período em que se verifica
a separação entre a propriedade fundiária e o capital imobiliário.
Em 1973, registra-se a criação da Companhia Imobiliária de
Brasília (Terracap)!2, originária das transformações sofridas pelo
Departamento Imobiliário da Novacap, passando para a primeira
as funções de execução das atividades imobiliárias em Brasília.
A partir de sua criação, a Terracap realiza quatro formas de
alienação de imóveis: a venda por licitação pública, por leilão e
pelo lance maior de imóveis com todas as destinações; a venda di-
reta para casos especiais; a regularização, com cessão de direitos,
para o comércio; e a doação para uso da União ou do governo do
Distrito Federal (Gouvêa 1988).
Nessa época, passa a atuar no mercado um conjunto de imo-
biliárias de porte médio e pequeno, tais como, Nova York, Encol,
Meliman Osório e outras, configurando a formação do submerca-
do imobiliário concorrencial.
Nesse submercado, observa-se uma inversão de capital na pro-
dução da edificação, representada na compra do material de
construção e do próprio terreno, diferenciando-se do submercado
anterior, onde o rendimento obtido por meio de aluguel não signi-
fica apenas o retorno sob a forma de renda fundiária pela realiza-
ção do empreendimento, mas também o lucro criado pela realiza-
ção de parcela do capital investido.
Dessa maneira, o capital investido nessa forma de produção
caracteriza-se como um capital de circulação que organiza a pro-
dução. Depreende-se, então, que o lucro deste capital imobiliário
é regulado pelos mercados ativos financeiros e pelas próprias
condições do mercado imobiliário. Ou seja, as fases de aqueci-
mento do mercado imobiliário têm quase sempre correspondência
direta com as crises cíclicas do mercado financeiro.
A comprovar esta correspondência, verifica-se que a dinami-
zação do mercado imobiliário de Brasília coincide com a crise da
bolsa de valores ocorrida na metade da década de 70, provocando
a transferência de parte dos investimentos financeiros para a aqui-
sição de imóveis (Sayad 1977).

12. Empresa pública e autônoma, criada pela Lei nº 5 861, de 1973, vinculada à Se-
cretaria de Viação e Obras do Distrito Federal.
108 Neio Campos

Como a produção das unidades habitacionais é realizada em


um mercado atomizado, onde se verificam condições diversifica-
das de produção, por um lado determinadas pelas características
específicas do próprio terreno (constituição geológica, declivida-
de, etc.), e por outro lado, pelas condições pré-constituídas de
construtibilidade oriundas da articulação que este terreno estabe-
lece com outros valores de uso urbano na cidade, tem-se, a nível
deste submercado concorrencial, a predominância da apropriação
de rendas fundiárias do tipo diferencial. Essa categoria de renda é
decorrente do sobrelucro gerado pelas condições heterogêneas de
produção, acima mencionadas.
A produção de habitações num submercado concorrencial traz
implicações importantes para a produção da segregação residen-
cial, haja vista o caráter irracional que identifica a concorrência
capitalista na busca da realização de maior lucro.
Visando maximizar os lucros, tem-se, por exemplo, inversão
de menores recursos para a compra de material de construção de
melhor qualidade e baixos investimentos em itens que melhor
qualificam o ambiente construído.
É importante ressaltar também que o consumo da mercadoria
habitação sempre implica o consumo de outros valores de uso
complexo, tais como os meios de circulação e comunicação e os
equipamentos de consumo coletivo, e que estes requerem investi-
mentos vultosos, superiores à capacidade de inversão de cada ca-
pitalista que atua no submercado concorrencial, resultando, assim,
a formação de espaços residenciais carentes de tais qualificativos.
Em relação ao incremento da produção de residências popula-
res registrada neste período, tem-se a predominância da lógica do
submercado “dos conjuntos habitacionais”, caracterizada por uma
produção que se realiza através de programas oficiais, neste caso,
através da SHIS e com o financiamento do Sistema Financeiro de
Habitação.
O preço da terra, a priori, não exerce um forte obstáculo para
a realização da produção neste submercado. Em Brasília, em fun-
ção de o Estado dispor do monopólio da oferta de terra para a ex-
pansão urbana, é o próprio governo do Distrito Federal quem au-
fere os lucros provenientes das rendas fundiárias, constituindo-se
num agente que acumula diretamente o capital imobiliário no pro-
cesso de expansão urbana, como referido anteriormente.
À segregação planejada 109

Esta acumulação é especialmente do tipo especulativo, pois


não é a área de realização dos conjuntos habitacionais, com todas
as características de produção de baixo custo, o objeto de maior
valorização do espaço, mas os vazios urbanos estocados entre
estas áreas e o núcleo central, geralmente dotados de melhor pa-
drão de serviços urbanos, que posteriormente serão transaciona-
dos pela Terracap mediante leilão da terra, alcançando um preço
mais alto proveniente da valorização obtida por sua localização.
Tem-se, assim, a formação de um sobrelucro no âmbito desse
submercado, proveniente dessa valorização futura do espaço, do
qual é o próprio governo do Distrito Federal, através da Terracap,
quem se apropria sob a forma de renda fundiária diferencial.
Esse submercado provoca algumas agravantes no processo de
produção da segregação residencial desde o momento de produ-
ção da habitação. A necessidade de solvência do mercado habita-
cional situado numa realidade social em escalada inflacionária
provoca a tentativa permanente de barateamento do custo de
construção, por parte das empreiteiras, seja por meio de utilização
de repertório construtivo de baixa qualidade, pela redução da área
construída do imóvel ou pela implantação de conjuntos habitacio-
nais nas periferias das cidades, despossuídas de infra-estrutura e
equipamentos urbanos para o consumo coletivo.
A comprovar esta afirmação, toma-se como exemplo a SHIS,
que produziu nesse período 54 247 unidades habitacionais, situa-
das, em sua quase totalidade, nas cidades-satélites, distantes em
média trinta quilômetros do núcleo central, cristalizando os enor-
mes espaços vazios entre estas localidades e o Plano-Piloto, até
então o pólo de maior oferta de empregos (Paviani 1985).
Em suma, O terceiro momento da formação do espaço urbano
da cidade em foco caracteriza-se, do ponto de vista dos submer-
cados imobiliários que direcionam sua estruturação residencial,
por duas lógicas predominantes. Uma, pela lógica do submercado
dos conjuntos habitacionais, construídos nas cidades-satélites pela
SHIS, constituídas por habitações de tamanho reduzido e de bai-
xo padrão construtivo; outra, pela lógica do submercado concor-
rencial presente nos primórdios do mercado imobiliário, onde um
conjunto de pequenas e médias empresas imobiliárias passa a
organizar a produção de apartamentos nos setores residenciais das
110 Neio Campos

asas Norte e Sul do Plano-Piloto e áreas de expansão das penín-


sulas dos lagos Sul e Norte.

A *capital” do capital incorporador

A limitada oferta de terra urbana tem constituído um fator de


aguçamento dos problemas socioespaciais presentes em todo o
processo de formação do espaço urbano de Brasília.
No entanto, é a partir do quarto momento de sua evolução,
caracterizado pelo crescimento acentuado de áreas urbanizadas no
entorno do Distrito Federal, devido ao aumento considerável do
preço da terra urbana em todas as localidades do Distrito Fede-
ral!3, decorrência do monopólio da oferta de terras para expansão
urbana exercido pela Terracap, que se tem as condições necessá-
rias para a efetiva atuação do submercado imobiliário, dominado
pela lógica do capital incorporador.
Esta oferta limitada de terra no Plano-Piloto restringe, tam-
bém, a capacidade de atuação da maioria das pequenas e médias
empresas imobiliárias que atuavam no início do mercado imobiliá-
rio de Brasília. O processo pelo qual a maior parte das terras são
oferecidas no mercado pela Terracap é a licitação pública, me-
diante a realização de leilões. Isto dá à terra um caráter especula-
tivo, porque as empresas maiores, com maior disponibilidade de
capital — as incorporadoras — compram-na como uma parcela do
valor associada à esfera da circulação, onde se busca, principal-
mente, a intensidade dos fluxos na realização da mercadoria.
Como o governo do Distrito Federal possui a capacidade de
dispor sobre onde e quando criará novas áreas residenciais, colo-
ca essas terras no mercado por um preço de monopólio, oriundo
da diferença entre o preço de mercado e o preço regulador do
mercado de terras. Este preço regulador é estabelecido arbitraria-
mente pelo próprio Estado, devido ao monopólio afirmado ante-
riormente.
Enquanto a lógica do capital incorporador não se faz presen-
te, predomina uma apropriação extracapitalista das rendas fundiá-
rias, pois a mesma é revertida para o proprietário do terreno, que

13. Como exemplo, o aumento do preço da terra na Ceilândia, entre 1971-1976, che-
gou a ser da ordem de 1.000% (Farret, 1987).
A segregação planejada 11

se encontra dissociado do proprietário do capital empregado na


realização da mercadoria habitação. O terreno ainda constitui, des-
sa maneira, uma espécie de obstáculo para a acumulação do ca-
pital.
No entanto, quando passa a predominar essa lógica de atua-
ção com sua forma oligopolista de produção, modificam-se as re-
lações de produção da mercadoria habitação conjuntamente ao ci-
clo global de valorização do capital (Topalov 1979a) passando a
se tornar determinante, nestas novas relações de produção, não
mais o preço da terra, que entra como um custo a mais do empre-
endimento, mas, sim, a relação entre capital investido e benefícios
esperados.
A função primeira do capital incorporador é a liberação do
solo, requisito inicial para qualquer operação imobiliária. Ao
comprar o terreno e condicioná-lo a certo padrão de ocupação,
este capital se apropria, sob a forma de lucro de promoção, da-
quela parcela da mais-valia, que, de outra forma, se reverteria em
rendas fundiárias, auferidas pelo proprietário da terra.
Como o edifício é inseparável do solo em que está assentado
e é vendido por um preço superior ao seu preço unitário de pro-
dução, devido à internalização de um conjunto de externalidade,
como, por exemplo, as obras de infra-estrutura e de implantação
de equipamentos urbanos realizadas pelo Estado, pressionadas
pelo próprio empreendimento, e dado o próprio poder que o ca-
pital incorporador possui de controlar o momento de transforma-
ção global do espaço urbano, este é quem se beneficia, essen-
cialmente, dos lucros provenientes das rendas fundiárias (Topa-
lov, 1979b).
Acrescente-se, ainda, que além desta apropriação das rendas
fundiárias, sob a forma de lucros que, sem a sua presença, seriam
apropriadas pelo proprietário da terra isolado do capital, o capital
incorporador tem a capacidade, também, de criar rendas fundiá-
rias diferenciais onde anteriormente não existiam, ao promover
uma maior diferenciação espacial no local por ele empreendido.
A atuação do capital incorporador suscita importantes impli-
cações para produção da segregação residencial. Uma primeira
implicação está relacionada ao caráter excludente dos empreen-
dimentos realizados por este setor de ponta do mercado imobiliá-
rio. Sua atuação materializa-se de forma abrangente e sistemática
112 Neio Campos

na transformação e/ou criação integral de determinada área. Isto


requer uma inversão de capital fixo, e, geralmente, o capital in-
corporador, neste intento, age articulado ao Estado, possibilitan-
do-lhe internalizar benfeitorias públicas implantadas no local,
exigindo, por isso mesmo, um nível de renda alto dos indivíduos
que aspirem a adquirir imóveis produzidos por este submercado.
Tomem-se como exemplo os padrões urbanísticos adotados
nas Áreas Octogonais, no Plano-Piloto, com a venda de cinquenta
e cinco projeções a grandes incorporadoras imobiliárias e o signi-
ficativo aumento dos lotes urbanizados nas penínsulas dos lagos
Norte e Sul.
A capacidade que possui o capital incorporador de criar ren-
das diferenciais implica uma necessidade permanente de inovação
de seu produto, a habitação, tanto em termos de linha de produ-
ção como na própria agregação de novos atributos, provocando
uma diferenciação do espaço.
Isto, por sua vez, faz com que a demanda por habitação no
setor de alta renda permaneça sempre elevada, pois, à medida que
o padrão de moradia é constantemente alterado, impulsionado
pelo marketing, fator estratégico neste submercado imobiliário,
este setor pagará preços cada vez mais altos para ter acesso ao
consumo da habitação, provocando como consequência espacial
um padrão truncado e verticalista de extensão dos equipamentos,
infra-estrutura e serviços públicos na malha urbana.
Outra implicação prende-se ao fato de como o capital incor-
porador organiza as operações destinadas à produção imobiliária.
O caráter racional e sistemático de atuação e sua associação ao
capital financeiro de ponta faz com que segmentos sociais de
pouca renda sejam excluídos a priori da participação neste sub-
mecado.
Em suma, de acordo com Smolka, “o processo de valorização
deste capital [o incorporador] está intimamente associado à exa-
cerbação da segregação social, isto é, ele não só se alimenta dela
como a produz” (Smolka, 1983: 305).

Considerações finais

A manifesta segregação residencial a que está submetida a


maioria da população de Brasíla evidencia, antes de mais nada, o
A segregação planejada 113

caráter desigual e excludente da formação do espaço urbano es-


truturado pelas relações capitalistas de produção.
Mas, não basta que nos limitemos a essa constatação, pois a
complexidade que caracteriza este objeto de estudo, o espaço ur-
bano, impele ao desafio de empreender esforços no sentido de
descobrir as especificidades de certos grupos sociais em sua di-
mensão urbana, ou seja, considerar a diversidade de interesses e a
relativa autonomia de atuação dos agentes sociais na cena urbana.
Estes, ao realizarem a produção e o consumo da mercadoria ha-
bitação na cidade, dada sua especificidade de ser consumida no
próprio local de sua produção e envolver neste processo outros
fatores de uso complexo, estabelecem relações de conflito e com-
plementariedade, dando margem a se processar um conhecimento
mais contextualizado do lugar, nos diversos momentos de sua
constituição.
Obviamente, ao se optar por proceder a este conhecimento na
sua dimensão temporal e espacial, não se desconhece que o fenô-
meno ocorre diacronicamente devido às diversas intermediações
que contribuem para a sua gênese. Assim, nos quatro momentos
tomados como importantes na formação do espaço urbano de Bra-
sília, a predominância de um ou dois submercados imobiliários
não significa que os mesmos sejam excludentes nem possam ser
considerados numa sequência linear de atuação, haja vista que,
em todos os momentos, a formação deste espaço tem servido pre-
cipuamente à acumulação de capital.
Por outro lado, esta atuação dos diversos submercados imo-
biliários gerou e gera conflitos sociais ao longo da formação da
cidade, podendo-se, com isto, afirmar, parafraseando Marx, que a
cidade não é produto de uma história desumanizada, mas, sim, é
história mesma, feita de carne e movimentos, de trabalho conver-
tido em pedra e de memória em cultura.
Enfim, compreende-se que ao longo do aguçamento deste
processo de segregação social, neste estudo relacionado mais de
perto à moradia e todos os elementos a ela articulados, construiu-
se (e constrói-se) uma história de resistência e de não-aceitação
dessa lógica perversa imposta às camadas empobrecidas da socie-
dade, fato que irá constituir, ao longo do processo de formação
do espaço urbano da cidade, a história de suas lutas sociais.
A CONSTRUÇÃO INJUSTA DO ESPAÇO URBANO*

Aldo Paviani

Introdução

A maioria das contribuições acadêmicas a respeito das lutas


populares centra-se na análise da conquista de moradias, do peda-
ço de terra para morar, de transporte público, de creches, etc. Isto
talvez se deva à visibilidade que estes movimentos populares têm,
pela cobertura de alguns partidos políticos e/ou assessorias de
intelectuais, pela ressonância que lhe dão os veículos da grande
imprensa ou, principalmente, por propugnarem por necessidades
básicas do urbanita moderno.
Exemplificação empírica deste aspecto é o movimento popu-
lar para a invasão de terra urbana. A ocupação de terras públicas
ou privadas, ou a sua contraparte, a assim denominada “erradica-
ção de invasões”, tem recebido muita atenção, sobretudo se o apa-
rato repressor do Estado é flagrado em ações violentas contra os
“invasores” (Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais, 1987).
Ora, todos reconhecem que os “invasores” são os sem-terra, os
sem-teto e parte da massa de empobrecidos que se encontra em
todas as grandes cidades brasileiras, ou mesmo do mundo subde-
senvolvido. São, igualmente, vítimas da opressão gerada pela so-
ciedade e de ilícitos (violências) que contra eles se praticam. Em
variada gama, estes ilícitos e opressão aparecem de forma camu-
flada ou estão bem explícitos em nosso meio: compressão salarial,
analfabetismo, doenças endêmicas, desemprego, subemprego, la-
cunas de trabalho e, de resto, sob as marcas de todo tipo de se-
gregação.

* Com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico


(CNPq).
116 Aldo Paviani

Claro está que a segregação urbana é mais demarcada pela


segregação habitacional e/ou uso da terra urbana (Gonzalez 1985,
Campos 1988, Iwakami 1988, Gouvêa 1988) ou, ainda, pelos
baixos salários (Andrade e Silva 1985), sendo negligenciada
aquela segregação que brota das diversas formas assumidas pelo
desemprego ou pela supressão de postos de trabalho, que são ca-
da vez mais responsáveis pela geração de injustiça social nas ci-
dades dos países subdesenvolvidos. Ora, a criação de postos de
trabalho em quantidades insuficientes para ocupar a população
ativa dos países não-industriais ocasiona lacunas de trabalho!, o
que é considerado por Pierre George '“uma das características
mais evidentes do subdesenvolvimento”” (George 1979: 13).
A lacuna de trabalho tem associação estreita com os meca-
nismos de subemprego e/ou desemprego, deles divergindo no as-
pecto de que, enquanto os subempregados ou desempregados têm
(ou tiveram) alguma atividade de onde retiram (ou retiraram) seu
sustento, naquela não se pode falar em atividade de qualquer tipo
para o “ativo em disponibilidade”. Ou, dito de outra forma, a la-
cuna de trabalho é um componente irmão gêmeo do desemprego
(ou subemprego), mas de natureza diversa. O desemprego poderá
ser manifestação de “ajustes” conjunturais no interior do aparelho
produtivo, que mantém “reservas de mão-de-obra” ou “exército de
reserva”; as lacunas de trabalho se constituiriam na atividade-não-
gerada ou nos postos de trabalho que não aconteceram ou, mes-
mo, que foram subtraídos do mercado de trabalho. Este proces-
so, já evidente em nossas metrópoles, alija sucessivas camadas
dos que se apresentam para o trabalho, formando o que Marx de-
nominou “população trabalhadora supérflua relativamente, isto é,
que ultrapassa as necessidades médias da expansão do capital,
tornando-se, desse modo, excedente”” (Marx 1971:731). Este 'ex-
cedente”, isto é, os que são inativos precoces ou não-ativos com-
pulsórios (porque não há lugares de trabalho para eles), é o re-
sultado das lacunas de trabalho, como se verá.
Assim, em uma pesquisa sobre desemprego procura-se detec-
tar quantos trabalhadores foram dispensados, temporária ou cicli-

1. Neste artigo, “Lacunas de emprego em Brasília: uma avaliação preliminar”, UnB,


p. 1 (mimeo.), denominamos lacuna de trabalho a não-geração de postos de traba-
lho ou a supressão de vagas, com o que nem todos os que procuram exercer uma
dada atividade são absorvidos pelo mercado de trabalho.
A construção injusta do espaço urbano 117

camente, de certas atividades produtivas ou de serviços. Em uma


pesquisa a respeito das lacunas de trabalho a preocupação se
desloca para aqueles que, tendo atingido a idade de trabalhar e/ou
se adestrado em qualificações técnicas ou profissionais, não en-
contram postos de trabalho disponíveis. As lacunas de trabalho,
sobretudo nas grandes cidades, constituiriam, assim, verdadeiros
“buracos negros” embutidos na galáxia de interesses econômicos.
Como fenômeno relativamente recente, exige refinamento de ins-
trumentais para sua detecção, pois o atual período técnico-cientí-
fico e financeiro disfarça ou encobre os indicadores e o essencial
das lacunas de trabalho.
Para enfocar esta categoria de análise (a lacuna de trabalho),
consideraremos ser o exercício de atividade remunerada um dos
direitos de todo cidadão, ou um dos direitos universais, em igual-
dade de condições ao direito à liberdade. Segue-se daí que, para
ser livre, usufruindo de cidadania plena, o homem deve ter acesso
ao trabalho continuado, remunerado justamente e compatível com
a dignidade do ser humano. Daí resulta que a luta popular deveria
se centrar em adquirir cidadania plena, ou seja, combater todas as
formas de supressão de postos de trabalho e, logicamente, de tra-
balho mal remunerado, esporádico, subemprego, etc., pois para
ser cidadão é necessário ter acesso ao trabalho.
Desta forma, para resolver a questão das “invasões” de terra,
deveremos equacionar outros problemas como os dos desempre-
gados, dos ambulantes, dos que têm emprego disfarçado e, é cla-
ro, dos que, estando qualificados para trabalhar, não encontram
postos de trabalho. A estes últimos, a rigor, não poderíamos de-
nominar desempregados, porquanto nunca estiveram ocupados,
trabalhando remuneradamente.
Assim, aquele que procura trabalho e não o encontra não po-
derá ser considerado um homem livre; está preso a uma situação
de constrangimento, de falta de liberdade; está também sem con-
dições de produzir e, logicamente, de consumir.
As lacunas de trabalho, portanto, constituem um dos obstá-
culos ao acesso à alimentação e à moradia, à escola, à saúde, ao
voto consciente e livre, ao transporte e a todas as formas de exer-
cício da cidadania, condenando o homem, por este motivo, a ser
“meio cidadão”, a ser um 'agente-paciente” da urbanização.
118 Aldo Paviani

Daí ser imperioso que as lutas populares se voltem contra a


“meia cidadania”, uma vez que se suprimem mais e mais postos de
trabalho, como forma de adaptação das economias regionais e na-
cionais dependentes à economia mundializada. A economia gerida
externamente introduz componentes de dependência tecnológica
e impõe formas de produção que, paulatinamente, dispensam
mão-de-obra e/ou submetem o trabalho humano a todo tipo de
compressão e arrocho, o salarial, principalmente. Com o fito de se
tornar competitiva internacionalmente, a economia dependente fi-
ca submissa aos esquemas ditados de fora, com o que se geram
períodos de recessão e, com ela, incrementa-se a supressão de
postos de trabalho e de benefícios trabalhistas, previamente esta-
belecidos, como a estabilidade no emprego. Deste mecanismo,
surge o “cidadão mutilado? a que se refere Milton Santos
(1987: 19).
Dessa forma, a lacuna de trabalho tem similaridade com
aquilo que Pierre George denomina '“*desperdício de força de tra-
balho” (George 1979: 32), que constitui grave problema nas me-
trópoles, principalmente nos países subdesenvolvidos, porque re-
cebem um afluxo de migrantes (bem como do próprio incremento
vegetativo) sem que se abram oportunidades de trabalho no volu-
me necessário, sendo, por isso, fonte de pobreza.
Como as lacunas de trabalho acabam gerando, de forma con-
catenada, problemas mais amplos, que se evidenciam na estrutura
do espaço urbano, julgamos oportuno pesquisá-las teoricamente e
tendo como base a cidade de Brasília. Antes, porém, são necessá-
rios alguns posicionamentos metodológicos e teóricos.

A questão ampla e restrita da lacuna de trabalho

Nos últimos vinte anos, os estudos geográficos têm introduzi-


do variáveis sociais e econômicas na explicação do processo de
urbanização. Daí terem os trabalhos de geógrafos aproveitado
teorias e estudos em que as variáveis espaciais não são exclusivas
na explicação do processo. Incrementa-se, com isto, a interdisci-
plinaridade das pesquisas geográficas, sem que a disciplina seja
descaracterizada. |
Desta forma, não se poderia imaginar um estudo sobre o pro-
cesso de periferização.ou de construção injusta do espaço urbano
A construção injusta do espaço urbano 119

que não avaliasse o desemprego, o subemprego, o emprego sazo-


nal, etc., como mananciais que aumentam o caudal de pobreza ur-
bana (e, portanto, alargadores do processo de periferização). A
estes estudos agrega-se, agora, o das lacunas de trabalho, em es-
cala local, como antes explicitado. Será importante associar lacu-
nas de trabalho não apenas ao desemprego, mas também às ações
de agentes públicos (como elaboradores de políticas públicas e
tomadores de decisões) e de atores privados (que, movidos pelo
desejo de maior lucratividade de suas empresas, suprimem novos
postos de trabalho ou empregam tecnologias de capital intensivo,
poupadoras de mão-de-obra).
Importante, também, é penetrar na dialética dos decisores
econômicos e políticos que, de um lado, investem no sentido de
maximizar a produção de bens, e, de outro, obliteram os meca-
nismos de distribuição de renda e levam à exclusão da produção e
do consumo vastos contingentes de ativos em idade de trabalhar
(ou que se capacitaram profissional e tecnicamente para novas
formas de trabalho humano).
Assim, desejamos interligar espaço e trabalho para melhor
compreensão do processo de metropolização. Daí, em sentido
mais amplo, levantamos a questão das lacunas de trabalho em ci-
dade grande, sendo Brasília entendida como metrópole2 que me-
canismos e/ou ações impedem, bloqueiam ou restringem o acesso
de novos contingentes ao mercado de trabalho urbano. É interes-
sante analisar, de forma resumida, as raízes deste tipo de seletivi-
dade, tais como a modernização do terciário que poupa mão-de-
obra; analisaremos também as ações conflitantes do Estado, asso-
ciado ou não a setores privados, e a atuação da sociedade quanto
às mudanças socioeconômicas necessárias à redução das desi-
gualdades e da injustiça social. Sob o ponto de vista global, o in-
cremento da seletividade socioespacial, analisada nesta contribui-
ção, com a interligação dos trabalhos já realizados sobre urbani-
zação nos levarão ao entendimento de como se processa a metro-
polização no Distrito Federal (Paviani 1985, 1987, 1989).
Na escala local, caso específico de Brasília, estaremos expli-
citando como se materializam as lacunas de trabalho, indicando

2. Em outro trabalho, denominamos Brasília 'metrópole terciária” (Paviani 1985: 57).


Ver também Ferreira 1985: 43.
120 Aldo Paviani

os pontos de contato entre o desemprego, subemprego ou empre-


go disfarçado e o leque de oportunidades suprimidas ou que não
se materializam na cidade. A este respeito é interessante, também,
observar as formas utilizada pelos ambulantes, biscateiros, 'faz-
tudo” e outros, e suas ações para conquistar determinado espaço
em pontos estratégicos da cidade e as relações destes ativos com
o Estado e com o setor formal da economia, dentro da premissa
de que esta foi a “saída para a sobrevivência” por parte deste seg-
mento de trabalhadores”.
No conjunto, este é um esforço de fazer avançar o entendi-
mento do processo de metropolização, em teoria e na realidade,
sobretudo daquelas condições geradoras e mantenedoras de se-
gregação socioespacial. Evidentemente, é forçoso reconhecer que,
dadas a carência de estatísticas oficiais e a dificuldade de levantá-
las, serão oferecidas pistas para reconhecer a importância das la-
cunas de trabalho na organização seletiva do espaço urbano. A
carência de dados talvez possa ser suprida com item especial a
respeito no Censo Demográfico de 1991, pelo IBGE.

Pistas para interligar lacunas de trabalho e metropolização

É imperioso avaliar os trabalhos produzidos a respeito de pe-


riferização com pobreza urbana, frente à literatura surgida recen-
temente sobre problemas da urbanização. Com isto, teremos um
esboço teórico que norteará as demais etapas de análise. No le-
vantamento da literatura (sobretudo produzida por geógrafos), es-
pecial atenção merecem aqueles trabalhos específicos sobre a te-
mática do emprego e seus associados, taxas de desemprego, ní-
veis de sobrevivência com subempregos, incremento da pobreza,
níveis de consumo, conflitos salariais, incremento de novas tec-
nologias (sobretudo na indústria), etc.
Importa, contudo, estabelecer uma ponte entre as flutuações
de emprego, desemprego, emprego de tecnologias e não-entrada
no mercado de trabalho (formal ou informal) de aptos ao trabalho
cada vez mais numerosos, mas de alguma forma excluídos por
certos tipos de barreiras.

3. À questão dos “ambulantes”, dos 'faz-tudo” e “biscateiros” foi tratada empiricamente


para a cidade de Brasília pelo SINE (1978); para Taguatinga, por V. Alves (1987) e
para o Plano-Piloto, por H, Cortez (1987).
A construção injusta do espaço urbano 121

O material empírico para um trabalho nesta linha inclui in-


formações coletadas em fontes oficiais sobre taxas de empre-
go/desemprego e notícias veiculadas pela imprensa com denún-
cias Sis o desperdício de força de trabalho em áreas metropoli-
tanas'. Interessam também trabalhos vinculados ao planejamento
urbano de Brasília para avaliar o grau de preocupação com as
possibilidades para a geração de empregos e/ou alocação de ati-
vidades de mão-de-obra intensiva, no futuro.

Portanto, o material utilizado poderá ser tanto aquele oriundo


de fontes oficiais quanto aquele proveniente de assuntos correla-
tos ao propósito desta contribuição, como, por exemplo, relatórios
de sindicatos de trabalhadores ou de institutos de pesquisa que
produzem “trabalhos de consultoria” para órgãos públicos ou enti-
dades privadas.
Na continuidade das pesquisas, teremos outro passo metodo-
lógico com a possibilidade de coleta de dados primários e pesqui-
sa direta em pontos de periferia de Brasília no sentido de se obte-
rem respostas a questões como quantas pessoas, no domicílio,
estão trabalhando? Quantas nunca encontraram emprego? Sua
idade? Por que, tendo idade de trabalhar, ainda não estão empre-
gadas? Qual a escolaridade dos que ainda não conseguiram em-
prego? Quantos, no domicílio, têm emprego temporário, em bis-
cates, etc.? Onde trabalham os que têm emprego?
Em face da exigiúidade de tempo e dos propósitos menos am-
biciosos desta contribuição, julgamos ser conveniente aproveitar
em outro momento a idéia de ampliar a exploração das respostas
às perguntas acima. Há, no entanto, necessidade de empiricizar as
questões teóricas explicitadas, colocando-as sob o cenário urbano
local e tentando demonstrar que as cidades-satélites, enquanto as-
sentamentos importantes, não oferecem oportunidades de trabalho
correspondentes ao volume das respectivas populações ativas.

4. O Jornal de Brasília, de 6 de setembro de 1989, reporta dados do IBGE pelos quais


a taxa de desemprego das seis maiores regiões metropolitanas, em julho de 1989,
foi de 3,17%. Nestas regiões metropolitanas, trabalham seis milhões de pessoas sem
carteira assinada, ou apenas 62% dos trabalhadores tinham carteira assinada, de
acordo com estimativa do IBGE, divulgada pelo Correio Braziliense, de 22 de outu-
bro de 1989.
122) Aldo Paviani

Do teórico ao empírico: a urbanização em Brasília

Na perspectiva dos elementos que nos oferece o ideário dos


que materializaram a capital federal, ao longo do governo Jusce-
lino Kubitscheck, e dos elementos que embasaram o Plano-Piloto
de Brasília (Costa 1965), não se poderia inferir ter sido intencio-
nal a construção injusta do espaço urbano no Distrito Federal.
Todavia, está demarcada na consciência de alguns adminis-
tradores, bem como de alguns apologistas da cidade, a idéia de
que Brasília, por méritos do assim denominado “planejamento ur-
bano”, seria igualitária. Este mito, insistentemente presente em al-
guns discursos, tem sido questionado por autores como Bicca
(1985), Vesentini (1986) e Paviani (1989).
É justamente no âmago do processo de urbanização, onde
ocorrem lacunas de trabalho, que devem ser procuradas algumas
pistas reveladoras da construção injusta do espaço urbano e/ou da
injustiça social, mais proeminentes nas cidades de países capita-
listas subdesenvolvidos.
A história de Brasília, mesmo antecedentemente à inaugura-
ção do Plano-Piloto como centro político e administrativo do país,
em 1960, registra alguns testemunhos da contradição “planeja-
mento urbano” versus construção injunsta do espaço. As contradi-
ções básicas se configuraram em movimentos sociais e de algu-
mas lutas bem pontualizadas, cujos teores, momentos e atores es-
tão sendo analisados em outras contribuições deste volume”.
Para que não pareça contraditório, convém referir que a
abertura de novos espaços urbanos, tanto nos primórdios da cida-
de quanto presentemente, se dá com alguma simultaneidade entre
as ações e movimentos populares e as iniciativas do governo do
Distrito Federal*. Na realidade, as forças que agem no sentido de
periferizar, com sucessivas “limpezas” de acampamentos de obras
e de favelas do Plano-Piloto, são as mesmas que atuam no sentido
de concentrar, elitizando o centro. Concentram, no Plano-Piloto,
o poder político e a administração, os melhores postos de trabalho

5. Ver, também, os trabalhos de Souza (1983), de Resende (1985) e de Ammann


(1987).
6. Além da pesquisa de Iwakami (1988), acima referida, ver a de Gilberto Augusto
Leon Chauvet “A segregação urbana no Distrito Federal: o caso da Candangolân-
dia”. Relatório apresentado ao CNPq em março de 1989.
A construção injusta do espaço urbano 123

(e, logicamente, os mais altos salários e rendas), as áreas de man-


sões e de apartamentos duplex e triplex”; desconcentram, em di-
reção às cidades-satélites, as “habitações de baixo custo” (sempre
estimuladas com mutirões), e, com elas, os empobrecidos morado-
res, geralmente favelados, referidos como “população de baixa
renda”.
Como resultado da continuada atuação desta força, surge uma
configuração socioespacial segmentada e segragada: de um lado,
o espaço “dado” — que se materializa no espaço do controle, do pa-
ternalismo e do assistencialismo por parte da classe dominante e,
de outro, o espaço “conquistado”ê, resultante do sucesso do opera-
riado em sua luta por melhores condições de moradia, de trans-
porte público e de infra-estrutura, na fixação de vilas como Para-
noá, Planalto e Candangolândia, após trinta anos de pertinaz
campanha neste sentido. Está claro que, apesar de o espaço urba-
no se constituir em uma dúzia de localidades, ou nove cidades-
satélites (aí não incluída a recém-criada Samambaia), torna-se
complicado demarcar com exatidão os territórios “dados” em rela-
ção àqueles ocupados por lutas populares. A imbricação dos ter-
ritórios dados e conquistados é tão forte que uma classificação
dependeria de exaustivo mapeamento e trabalho de campo. Toda-
via, é importante analisar ao menos três momentos do esforço de
construção e constituição (injusta) do espaço urbano, em que a
questão do trabalho também comparece lado a lado com a da mo-
radia.
Em 1958, é aberto espaço para a construção de Taguatinga,
um bem demarcado episódio de limpeza de favelas; em
1971-1972, com a “erradicação de invasões”, é construída a Cei-
lândia; um terceiro momento, num continuum de tempo
(1985-1989), em que a política local da Nova República age em
três direções: “erradicação de favelas do Plano-Piloto e Tagua-

7. Ao longo de 1989, especialmente no meado do ano, os jornais e as emissoras de TV


foram ocupados por anúncios de grandes imobiliárias oferecendo coberturas e
apartamentos de alto luxo, duplex, triplex e quadriplex. No dia 1º de outubro,
o Jornal de Brasília, em matéria de primeira página, denuncia que “Só elite vai po-
der ter casa no Plano”, pois “a sofisticação dos imóveis em construção é fator que
leva à elitização do Plano-Piloto””. Salienta que uma “mansão suspensa” (aparta-
mento quadriplex), com 940m?, encontra-se à venda na Asa Norte por NCz$
10.000.000,00 (ao tempo em que o salário-mínimo era de NCz$ 381,73).
8. A respeito de espaço dado e espaço conquistado, ver Paviani (1989), p. 33.
124 Aldo Paviani

tinga, fixação da Vila Paranoá e ocupação cooptada de nova lo-


calidade, a Samambaia.
Uma vez que, por limitações impostas pelo espírito desta
obra, é imperioso salientar que a captura de três momentos da
constituição de Brasília (entre as muitas periodizações possíveis)
deve ser antecedida de duas considerações. Em primeiro lugar, a
urbanização que se efetiva em Brasília é assumida em termos de
mudanças e transformações socioestruturais em um período com
características marcadamente técnico-científicas e financeiras.
Portanto, verificam-se movimentos particulares, no interior do
processo sociopolítico e econômico, que se evidenciam local-
mente. Ao longo de três décadas de história, mas já se projetando
para a próxima, a tecnologia e os capitais que se eximem de ris-
cos na extração e na acumulação, tendo por base o território do
Distrito Federal a serviço do capital e do tecnicismo, têm produ-
zido alguns resultados no interior do processo de urbanização,
sobretudo quando se trata da oferta de trabalho. Já há alguns
anos, em diversos setores de atividade, em função de emprego de
tecnologias e de capitais, busca-se obter maior eficiência em cer-
tos setores produtivos, de distribuição de bens e de serviços e do
aparato de informação e de consumo, suprimindo postos de tra-
balho. Esta consideração tem a ver com a setorização e “tayloriza-
ção” da cidade, de onde se extrai a máxima eficiência da localiza-
ção para o aparato produtivo, sem os inconvenientes das fortes
conurbações (congestão urbana e externalidades negativas, verifi-
cáveis em outras metrópoles).
A segunda constatação, certamente vinculada à primeira por-
que a antecede, é a da forma como se deu a urbanização e que
perpassa todos os momentos de constituição e consolidação da
capital.
Construiu-se um centro político-administrativo (o Plano-Pi-
loto) e alocou-se espaço para as cidades-satélites, separando a
população mais aquinhoada da massa operária. Dentro desta lógi-
ca, surge a seletividade espacial, representada neste trabalho pe-
las localidades de Taguatinga, Ceilândia e Samambaia.
A ideologia e a lógica da construção de Brasilia já produzi-
ram duas vertentes de explicação: a dos “ufanistas” e a dos “críti-
cos”. Diversos autores têm sustentado que a cidade constitui ver-
dadeiro divisor de águas na caracterização dos distintos momen-
A construção injusta do espaço urbano 125

tos da história do planejamento urbano no Brasil. Os ufanistas


propugnam para Brasília o título de marco inicial do planejamen-
to, que serve igualmente aos críticos como argumento para atrelar a
transferência da capital a um movimento mais amplo, de cunho
geopolítico (Vesentini 1986, e Castelo Branco 1987).
Claro está que a idealização e a posterior materialização da
cidade servem aos apologistas e aos críticos: os primeiros, tendo
como bandeira a 'interiorização do desenvolvimento” e a “*demo-
cratização do espaço interno” de Brasília; os segundos, demarcan-
do a construção do Plano-Piloto como o coroamento da “marcha
para o oeste” e a utilização de Brasília no interior da “teoria da
segurança nacional”, ambos tendo como fonte de inspiração as
“diretrizes e estratégias geopolíticas”, formuladas na Escola Supe-
rior de Guerra.

Espaço para Taguatinga: a “'satélite”” pioneira

Retornando aos três momentos da constituição de Brasília, ve-


remos que o primeiro deles antecede a inauguração oficial da ci-
dade e justamente se enquadra na idéia de que a “teoria da segu-
rança” prevaleceu. Taguatinga é criada em 1958 para o desafogo
da pressão exercida pela massa candanga (operariado pioneiro)
que, habitando a Cidade Livre (futuro Núcleo Bandeirante), cla-
mava por melhores condições de moradia.
Segundo o relato de Silva (1985), em 1958, milhares de mi-
grantes chegaram a Brasília em busca de emprego, em razão do
ritmo das construções no Plano-Piloto. Os recém-chegados não
foram alojados nos acampamentos, passando, então, a ocupar bar-
racos de madeira ao longo da avenida W3 e nas imediações do
Núcleo Bandeirante. Neste, no início de junho de 1958, aprovei-
tando a presença de Juscelino Kubitscheck, “grande massa po-
pular, que estimamos em duas mil pessoas, empunhando cartazes
(“Queremos ficar onde estamos”, “Viva o Presidente Juscelino”,
“Fundamos a Vila Sara Kubitscheck”) se postava à frente do res-
taurante, onde, às 20 horas, jantaria o presidente. A excitação era
enorme... Ambiente de expectativa, de exaltação. Subimos em um
caixote de madeira e dirigimos a palavra aos manifestantes. Dis-
semo-lhes que a Novacap já providenciara a criação de uma cida-
de-satélite, a vinte e cinco quilômetros do Plano-Piloto, e que,
126 Aldo Paviani

nesse local, cada trabalhador teria seu próprio lote e poderia ad-
quiri-lo por preço acessível, a longo prazo... As assistentes so-
ciais cadastraram o pessoal e ajudaram-nos a convencer as famí-
lias. Cerrado a dentro, de casa em casa, falamos exaustivamente a
cada um e indicamos as vantagens da transferência para o local
definitivo. Mas a resistência era enorme. Em resumo: no primeiro
dia, só conseguimos transferir uma família [para Taguatinga]”
(Silva 1985: 321-325).
Silva reporta, ainda, que houve muita resistência e luta contra
a pretendida transferência, inclusive com ameaça de os operários
atearem fogo nos pavilhões de madeira da Novacap. No trabalho
de persuasão, foi necessário investir: “compramos madeira, pre-
gos, telhas de zinco. Os barracões construídos em Taguatinga já
tinham melhor aspecto: eram localizados na parte posterior do ter-
reno, ficando a metade anterior livre para ulterior construção em
alvenaria. Afinal, em dez dias, alojamos cerca de quatro mil pes-
soas em Taguatinga: desmontamos os barracões, transferimo-los,
reconstruímo-los, transportamos móveis, utensílios, homens, mu-
lheres, crianças. Construímos quase mil fossas: uma para cada ter-
reno. Demarcamos todos os lotes de modo que cada qual já ocu-
passe seu próprio lote. Instalamos a rede provisória de água, Deus
sabe como. Instituímos o transporte diário dos trabalhadores em
caminhões da Novacap e das empresas construtoras. Asseguramos
um mínimo de assistência médica” (Silva 1985: 323).
No relato, é descrita a primeira iniciativa, com êxito, de
transferir favelados para pontos distantes da cidade em constru-
ção. De tal forma que, “em seis meses, Taguatinga já era uma
realidade. A cidade havia sido construída, e estavam em funcio-
namento a escola, o hospital, as casas para as professoras, os es-
tabelecimentos comerciais pioneiros e, em meados de 1959, inau-
gurou-se a Escola Industrial. Surgira, assim, a primeira cidade-
satélite de Brasília”” (Kubitscheck 1975: 176).
Na expressão ufanista do ex-presidente e dos que foram seus
colaboradores mais próximos, o povoamento da periferia, inaugu-
rado com Taguatinga, se apresenta como “solução” para dar abrigo
aos favelados que inchavam o Núcleo Bandeirante e aos operários
dos acampamentos das construtoras. O discurso justificativo das
transferências de favelados era o de que eles ''moravam da maneira
mais precária: barracões de madeira velha, de lata, de folhas de
A construção injusta do espaço urbano IZ

zinco, de sacos de cimento. Não havia fossas; nem água. Promis-


cuidade e falta de higiene. Tudo construído em poucos dias, prin-
cipalmente à noite, para burlar a vigilância dos fiscais” (Silva
1985: 322). Na realidade, o paternalismo das medidas, como foi
esclarecido anteriormente com a minuciosa descrição do amplo
atendimento das necessidades do operariado, encobre uma outra
leitura: a de que o bem-estar dos transferidos favorecia, isto sim,
a concretização da “ideologia de Brasília [...] como imagem de
integração nacional [...] como “cérebro do Brasil”””, tal como foi
percebido por Joffily (1977: 9).
Assim, a nova capital não poderia reproduzir as “mazelas”,
por exemplo, do Rio de Janeiro ou de São Paulo; não poderia ter
as 'nódoas” em seu tecido urbano, representadas pelas favelas e
cortiços. Brasília deveria representar o moderno, concretizado no
estilo arrojado de suas linhas e em sua arquitetura. Como é sa-
lientado por Joffily “outro aspecto de significação básica é a fun-
ção cibernética da nova capital; pelo que diz Juscelino, Brasília
foi imaginada “para funcionar como cérebro das altas decisões na-
cionais”; nem haveria proveito em mudar a capital e conservar
métdos rotineiros”” (Joffily 1977: 130).
Daí poder-se-á depreender que, para manter a “face moderni-
zante”, as sucessivas transferências de favelados acabam por in-
corporar uma parcela (um tanto constrangedora e não assumida)
da “ideologia de Brasília”.
Taguatinga, vista pelo lado dos entusiastas da integração na-
cional e da modernização do país, representou o lance inicial do
que se tornaria repetitivo e ampliado nos anos subseglentes: a
pulverização residencial dos assalariados em uma dezena das as-
sim denominadas “cidades-satélites”; vista do ângulo dos despos-
suídos, a diáspora urbana representou uma solução que, na visão
crítica do poeta pioneiro (Varela 1981: 123), é assim interpretada:

Brasília não caiu


prontinha de lá do céu
isto aqui foi sacrifício
muitas tarefas cruéis
tangido pelo caboclo
coragem mesmo a granel
Hoje o candango é esquecido
e vive sem proteção
128 Aldo Paviani

perderam a mocidade
nesta grande construção
vivem nas Cidades Satélites
porém sem satisfação
Enquanto Taguatinga era expandida, ao longo dos anos 60,
outros povoamentos urbanos eram efetivados, como Sobradinho,
Gama e a Vila Buriti, um anexo à preexistente Planaltina. Ao fi-
nal dos anos 60, é implantada o Guará I, e Brazlândia (outra locali-
dade preexistente a Brasília) recebe favelados da invasão Viet-
cong. A não ser o Guará I, as localidades criadas acabaram tor-
nando repetitivo o gesto governamental de remover favelas, de
preferência para pontos distantes do Plano-Piloto.
Ao longo destes trinta e um anos de existência, Taguatinga
estruturou-se da forma mais completa entre as satélites. Possui
equipamento social para atender a seus 270 543 habitantes (ou
cerca de 15% da população residente no Distrito Federal, em
1989; tabela 1); atividades comerciais e industriais capazes de
atender a sua população ativa (que, em 1984, representava 26%
da população economicamente ativa das cidades-satélites) e ainda
oferecer postos de trabalho para localidades menos providas, co-
mo o Gama, Brazlândia e Ceilândia. Todavia, mesmo sendo con-
siderada a mais completa entre as cidades-satélites, Taguatinga
perde força de trabalho em favor do Plano-Piloto, podendo ser
estimado um movimento pendular, diário, de cerca de 50% em di-
reção ao centro. Com isto, a mais equipada das satélites, passadas
três décadas, continua sendo, primordialmente, um núcleo-dor-
mitório. À falta de dados recentes, pode-se conjecturar que Ta-
guatinga padece da inexistência de lugares de trabalho em volume
e em qualidade compatíveis com sua população economicamente
ativa (PEA) e a dos núcleos periféricos, Ceilândia, sobretudo.

O assentamento de Ceilândia: 82 mil “erradicados”

Ao final da década de 60, o governo do Distrito Federal veri-


ficou que inúmeras favelas (as “grandes invasões”) e acampamen-
tos de construtoras (denominadas “localidades provisórias”), com
cerca de 82 mil habitantes), ocupavam territórios estratégicos, nas
proximidades do Plano-Piloto. Segundo foi reportado pela im-
prensa, o então presidente da República (general Médici) teria
A construção injusta do espaço urbano 129

manifestado ao governador (coronel Prates da Silveira) seu desa-


grado por ter em sua trajetória para o Palácio do Planalto e, deste,
para o sítio do Riacho Fundo, numerosas e “incomodativas inva-
sões”. Para atender à observação presidencial e tentando coibir a
proliferação das favelas (sempre atribuídas às fortes migrações) o
governo do Distrito Federal instituiu a Campanha de Erradicação
de Invasões (CEI), que, entre os anos de 1971 e 1972, cadastrou
todos os barracos existentes nas vilas periféricas ao Núcleo Ban-
deirante, transferindo posteriormente sua população para a nova
localidade de Ceilândia. Em razão do aparato montado, a transfe-
rência se deu sem que os percalços (poeira, lama, falta de água e
de trabalho) constituíssem motivo de revolta dos transferidos. O
comportamento adequado” dos favelados foi também atribuído à
promessa de “legalização” dos terrenos a baixo custo e pronta
instalação de equipamentos como escolas, água encanada e eletri-
cidade, facilidades que não eram encontradas nos acampamentos
e favelas da periferia do Núcleo Bandeirante.
A construção injusta do espaço para os novos moradores de
Ceilândia se revela no fato de que a nova localidade não dispunha
de oferta de trabalho, a não ser as atividades construtivas de mo-
radias, às vezes sob a forma de sobretrabalho (o mutirão). Nas fa-
velas e acampamentos da periferia do Núcleo Bandeirante, ao
contrário, o trabalho estava próximo: no próprio Núcleo ou a dez
quilômetros, no Plano-Piloto. Enquanto moradores de grandes in-
vasões e localidades provisórias, estas populações encontravam
postos de trabalho no comércio, nos serviços e na construção ci-
vil. Transferidos para a Ceilândia, viram desestrutuar-se o merca-
do de trabalho, que passou a demandar demorados percursos (mais
de uma hora), além de gastos com os deslocamentos (que antes
eram feitos a pé ou de bicicleta); outra desestruturação foi a da
vizinhança, do lazer, das feiras e das escolas, cuja problemática
nunca foi levantada por cientista social, ao menos para O caso es-
pecífico dos transferidos para a Ceilândia. Como a localidade está
sendo construída até o presente, com sucessivos anexos (as ex-
pansões dos setores P Norte e P Sul, por exemplo), não será com-
plicado imaginar o quanto de “desperdício” de mão-de-obra foi
implantado, de vez que, dos 82 mil habitantes iniciais, a Ceilân-
dia conta, hoje, com cerca de 520 mil, continuando baixa a oferta
de empregos, em face da timidez com que o governo do Distrito
130 Aldo Paviani

Federal provê setores para a instalação de oficinas e indústrias.


Em razão do volume de habitantes com que conta a Ceilândia,
poder-se-ia afirmar que se trata da maior 'metrópole-dormitório”
de todo o Centro-Sul, não se tendo previsão do tempo que de-
mandará para perder esta condição.
Passados dezoito anos de sua fundação, não se poderia espe-
rar que os postos de trabalho apenas seriam oferecidos a partir de
iniciativas das populações faveladas, transferidas para Ceilândia.
Por isso, tendo quase 30% da população e com uma população
economicamente ativa de 105 587 ou 18,5% dos ativos do Dis-
trito Federal (tabela 1), a satélite demanda um enorme esforço pa-
ra dar oportunidade de trabalho para tão importante contingente
populacional. O governo deveria, mais do que se apressar em am-
pliar o setor P (ou criação do Gama-III para 150 mil habitantes,
conforme noticiado em 25/10/89), planejar (e incentivar) a gera-
ção de lugares de trabalho em Ceilândia.
A afirmativa tem sua razão no fato de que, com 28,7% da po-
pulação economicamente ativa da periferia, Ceilândia possui (e
desenvolve) um expressivo setor informal, sobretudo composto de
vendedores ambulantes, feirantes e biscateiros, além de estabele-
cimentos comerciais, de serviços e oficinas, etc., mas que são
notoriamente insuficientes para acolher a mão-de-obra em dispo-
nibilidade. Por não se dispor de estatísticas a respeito, e com base
no transporte coletivo, pode-se estimar que, entre os moradores
de Ceilândia que trabalham, 80% o fazem no Plano-Piloto e em
Taguatinga.

Não se poderia estimar, todavia, os montantes necessários à


geração de atividades novas, capazes de absorver o enorme con-
tingente de ativos não ocupados de Ceilândia.

Também não se teria previsão para a cessação das lutas dos


que, na afirmação de Ammann (1987: 123), reagem à exclusão
social para “interferir na gestão do quotidiano coletivo e de ir
gradativamente conquistando espaços políticos importantes no
seio da sociedade”. Conforme levantou Gyori (1987), “são tantas
as carências” que Ceilândia é localizada em constante ““vir-a-
ser .
hs
A construção injusta do espaço urbano 131

O povoamento de Samambaia: a ação repetitiva

Até 1981, o local onde hoje se assenta Samambaia (ao sul da


Ceilândia) e a trinta e dois quilômetros do Plano-Piloto constava
em mapas como área reservada à Cidasp”. A proposta inicial para
o novo núcleo era construir, em módulos, 66 mil habitações para
abrigar até 330 mil habitantes (Governo do Distrito Federal
1981:73).
Na realidade, o novo assentamento constituiu, à época do go-
vemno Aimé Lamaison, uma tentativa de ultrapassar a sistemática
de serem as satélites apenas locais de moradia. Assim, Samambaia
seria construída em módulos equipados com previsão de instala-
ção de variada gama de atividades. Além disso, o povoamento se-
ria diversificado em termos do status socioeconômico de seus ha-
bitantes, prevendo-se lotes de diversas áreas e destinações; foram
designados seis grupos de destinações para atividades como: edu-
cacionais, culturais e religiosas; sociais e de saúde; institucionais
e públicas; esporte, lazer e espaços plantados; comerciais e in-
dustriais e para equipamento de transporte.
Esmeradamente pensado, o projeto de plano para Samambaia
adotou um “partido urbanístico” diverso do das demais cidades-
satélites, incluindo áreas de uso misto, ênfase para o transporte
coletivo e espaços acessíveis a pé, no que afastava a rigidez da
setorização de outros planos urbanos (o criticado Plano-Piloto,
por exemplo). Sendo a topografia de Samambaia plana, o projeto
para o uso da terra previu cinco alternativas de ocupação, com re-
finamento de desenho urbano, vias de circulação de veículos, pai-
sagismo e áreas para edificação (e respectivas “etapas de implan-
tação”) (Governo do Distrito Federal 1981: 138).
As diversas crises econômicas dos anos 80 impediram que o
governo implementasse integralmente o plano para Samambaia.
Desde a elaboração do plano, em 1981, até 1984, não foi cons-
truída nenhuma habitação. Apenas foi noticiada uma concorrência
da Sociedade de Habitação de Interesse Social (SHIS) para a
construção de seis mil moradias. As habitações em referência, to-
davia, não se enquadraram perfeitamente na estrutura do plano

9. Designação da cidade do DASP (Departamento Administrativo do Serviço Públi-


co), que, inicialmente, havia sido proposta para ocupar o sítio da antiga favela do
IAPI e que não foi implantada.
Taz Aldo Paviani

para a localidade; seriam, isto sim, uma motivação para contornar


a crise pela qual passava a construção civil e, por via de conse-
quência, o mercado de trabalho neste setorl0, Finalmente, em fins
de outubro de 1984, efetivou-se o primeiro leilão de lotes, nos
moldes estabelecidos no plano: a Companhia Imobiliária de Bra-
sília (Terracap) colocou em licitação lotes da quadra 406 Norte.
Os lotes residenciais, em número de 736, eram de 150 m?; os co-
merciais, com área entre 300 e 900 m?, e as projeções para blocos
residenciais, em número de sessenta, foram adquiridas por apenas
“seis empresas construtoras que obtiveram grandes lucros na
compra dos imóveis”11,
Com este leilão, iniciava-se a construção desigual da locali-
dade, porquanto os lotes unirresidenciais de pequena área chega-
ram a ser licitados pelo dobro do “preço referencial”, o que retira-
va do comprador de baixa renda a disponibilidade financeira para
construir no prazo (24 a 30 meses) estipulado pela Terracap. Por
outro lado, apenas em março de 1985, são iniciadas as obras de
implantação de infra-estrutura (água, eletricidade e esgoto), oca-
sião em que se demarcam os lotes.
Em março de 1987, enquanto o governo se declara “sem ver-
bas” para concluir Samambaia, o censo realizado na localidade
revelava que havia 80 famílias residentes (algo como 360 pes-
soas), e que outras não mudaram devido à absoluta falta de infra-
estrutura, principalmente linhas de ônibus (uma única linha, Sa-
mambaia-Taguatinga, circulava diariamente em apenas três horá-
nos)1!2. Este fato demonstra que, passados quatro anos do “plane-
jamento” da localidade, não houve vontade política para a efetiva-
ção do programa de assentamento, um atraso que implicou enor-
me prejuízo para a crescente demanda por habitações.
De fato, enquanto as favelas cresciam em todo o Distrito Fe-
deral, a programação da SHIS para 1987 pretendia construir cerca
de 5 700 casas até o final do ano, com o que Samambaia se torna-

10. É sugestiva a matéria do Correio Braziliense, de 24 de junho de 1984, p. 28, inti-


tulada “Samambaia salva a construção — Mas a crise no setor aumenta o número
de demissões em Brasília”, na qual foi estimado que apenas 20 mil pessoas traba-
lhavam na construção civil da cidade, um dos mais baixos contingentes da década.
11. Conforme reporta o Correio Braziliense, de 1º de novembro de 1984, p. 19, sob a
manchete “Muita procura por áreas de Samambaia”.
12. Correio Braziliene, de 13 de março de 1987, p. 21, “Sem verba, GDF não concluiu
Samambaia”. '
À construção injusta do espaço urbano 180

ria atraente para sua expansão, prevendo-se, ainda, uma segunda


etapa com mais 2 700 casas. Estas moradias seriam construídas
para compradores na faixa de renda inferior a cinco salários-mí-
nimos!3 e se distinguiriam pela exígua área construída!4, além de
uma previsível segregação entre os próprios moradores de “baixa
renda”.
Ao completar três anos do assentamento em Samambaia,
contando com cerca de dois mil habitantes, surgem os primeiros
sinais de deterioração: a pressa em construir e a falta de cuidados
ambientais, sobretudo o desnudamento da cobertura vegetal, oca-
sionaram erosões (voçorocas) de difícil combate em razão da to-
pografia e tipo de solo da localidade. Assim, enquanto era espe-
rada a entrega da segunda etapa (com 2 700 casas), em setembro
de 1988, se prenunciavam o desperdício de milhões de cruzados e a
precariedade da infra-estrutura!S. No segundo semestre, o gover-
no acenava com a possibilidade de implantação de indústrias para
ocupar mão-de-obra local, mas, para isto, a Terracap deveria mo-
dificar o destino dos lotes, alterando o que o plano inicial havia
previsto.
É interessante demarcar a diferença de estilo perceptível nos
govemos de José Aparecido de Oliveira (1985-1987) e Joaquim
Roriz (1988-1990) quanto a Samambaia: na etapa do primeiro, o
povoamento é lento e, ao final, propõe alteração do uso da terra
(com vistas à implantação de indústrias); na etapa Roriz (cujo
nome para governador foi aprovado em 15 de setembro de 1988),
o assentamento de favelados transferidos do Plano-Piloto é acele-
rado, enquanto os moradores iniciais clamam por mais infra-es-
trutura, prevendo a deterioração dos serviços com a chegada
(malvista) dos favelados!ó.
13. Em 1987, um salário-mínimo variou de Cr$ 964,80 a Cr$ 3.600,00.
14. Um relatório da Secretaria de Habitação informava que as casas de Samambaia
seriam de um a três quartos, com áreas de 27,36 ou 47 mê, na dependência da
comprovação salarial do promitente comprador.
15. A imprensa anunciava, em maio, o combate à erosão com cerca de oitocentos mi-
lhões de cruzados... e de quatrocentos milhões para asfaltar a estrada de ligação
com Taguatinga, no início de agosto (enquanto era esperada a inauguração de mo-
desta escola pública, a primeira da localidade).
16. Ver matérias do Correio Braziliense, de 16 de setembro de 1988, p. 21, “Samam-
baia pode ganhar distrito para indústria” e “Senado aprova nome de Roriz por 33
votos a 14” e reportagem de 4 de outubro, p. 18, “Samambaia pede mais infra-
estrutura —- Novas casas da SHIS vão piorar o já precário atendimento de servi-
»”
ços”,
134 Aldo Paviani

Com o novo governo, a “erradicação” de favelas ganha impul-


so, sendo Samambaia vista como o espaço-receptáculo para a via-
bilização das estratégias adrede preparadas. Para se avaliar a ve-
locidade das medidas de “limpeza” e a rapidez do assentamento de
favelados em Samambaia, registre-se que, em janeiro de 1989,
estimou-se em cerca de sete mil moradores, e, em maio, o gover-
no anunciava o atendimento de quinze mil favelados e de qua-
renta mil inquilinos “de baixa renda ou de fundo de quintal”1”,
enquanto se constatava que, de março a setembro, o assentamento
de dez mil barracos na Vila Roriz elevava a população de Sa-
mambaia para mais de cinquenta mil habitantes!ê.
O povoamento de Samambaia é ponto focal da atual adminis-
tração do Distrito Federal. A seletividade do assentamento ocorre
na medida em que, das cerca de 140 mil famílias cadastradas,
apenas 70 mil preencheram os critérios para ocupar um lote em
Samambaia (número de filhos do candidato, não ser possuidor de
imóveis em Brasília e número de anos de residência no Distrito
Federal)!º. Estas dezenas de milhares de famílias, a serem “bene-
ficiadas” pelos programas do governo, pertencem basicamente às
categorias “favelados” e “inquilinos de baixa renda”, que pressio-
nam por moradia e melhores condições de vida em Brasília. Inde-
pendentemente da pressão contrária de certos setores melhor co-
locados, social e economicamente falando, que argumentam ser
esse programa “alimentador das migrações” para Brasília, a ad-
ministração marcou a data de 31 de outubro de 1989 para o as-
sentamento dos 70 mil favelados e inquilinos de baixa renda. A
urgência com que se fazem as “erradicações” de favelas e a pressa
em distribuir lotes, em face do cronograma, aceleraram a ““produ-
ção de lotes semi-urbanizados”” em Samambaia (além dos assen-
tamentos no Gama e em Sobradinho)?º.

17. Matéria paga “Samambaia: exemplo a ser seguido”, na p. 13 do Correio Brazi-


liense, de 16 de maio de 1989. +
18. A Vila Roriz foi sendo organizada com favelados de diferentes pontos da cidade >
em cerca de seis meses, conforme noticia o Correio Braziliense, de 17 de setembro
de 1989, p. 37.
19. Devido à repercussão social, a imprensa de Brasília, mormente os jornais diários e
os noticiosos dos seis canais de televisão, tem sido pródiga em acompanhar as
ações que consolidam a futura cidade-satélite de Samambaia, inclusive divulgan-
do dados fornecidos pelo próprio governo.
20. São sintomáticas as notícias veiculadas no dia 4 de outubro de 1989 nos dois
maiores diários da cidade: “Assentamento no Gama ainda depende de área”, p. 23
À construção injusta do espaço urbano Bs

A construção injusta do espaço urbano, verificada empirica-


mente com três 'momentos” (Taguatinga, 1958; Ceilândia, 1971 e
Samambaia, 1987), demonstra o caráter processual da urbaniza-
ção com seletividade socioespacial. No que tange aos estilos da
ação governamental, e respectivos “resultados”, não há grandes
discrepâncias a registrar. No caso de Samambaia, todavia, têm
destaque: a) a pressa em que o governo atua; b) o volume dos
contingentes favelados removidos; c) o pouco cuidado com as
questões ambientais no assentamento; d) a falta de condições in-
fra-estruturais na nova localidade, em face da rapidez do povoa-
mento e do número de habitantes a ser atendido e e) a total falta
de oportunidades de trabalho na localidade.
De fato, a ocupação, na forma realizada, agrediu o ambiente,
sobretudo com a retirada (raspagem) da vegetação do cerrado. Por
isso, durante o período das secas, os moradores reclamaram da
poeira e da falta de água (afetando velhos e crianças, sobretudo);
durante o período chuvoso, as enxurradas abrem enormes voçoro-
cas, inundam os barracos, atrapalham a circulação de pessoas e
veículos e causam enormes prejuízos aos moradores. Ao lado
destes problemas, que perduram desde o início do povoamento, a
carência de equipamento urbano não condiz com o propalado su-
cesso do empreendimento?!. Assim, além das enxurradas, da ero-
são, da lama ou do pó, os novos moradores têm que enfrentar:
falta de escolas (em agosto de 1989, só funcionavam três, uma em
Samambaia I e duas na Vila Roriz); falta de posto médico (um
posto apenas para 50 mil habitantes); falta comércio diversificado
e distribuído em pontos apropriados; não há saneamento básico,
um grave problema quando do período das chuvas; a inexistência
de creches no local desfavorece o trabalho das donas-de-casa que
estavam empregadas no Plano-Piloto; não há acesso asfaltado e a
circulação de Ônibus ainda é precária; a eletricidade ainda não
chegou a todo o assentamento, o que enseja descontentamento e
protestos dos moradores destes lotes 'não-urbanizados”.

do Correio Braziliense, “Roriz quer pressa na distribuição de lotes”” e “Terracap


faz nova licitação”, p. 13 do Jornal de Brasília. Em 15 de outubro, foi anunciada a
prorrogação do assentamento por sessenta dias, com o que 37 mil lotes semi-urba-
nizados poderiam ser entregues, em Samambaia, até o final de 1989.
21. Em meados de maio de 1989, os jornais locais estamparam página inteira de anún-
cio do governo sob o título “Samambaia: exemplo a ser seguido”, enaltecendo o
136 Aldo Paviani
Além destas carências, a localidade deverá ter uma crescente
discriminação interna, fruto das contradições que permeiam todo
o processo de povoamento. Aquilo que parecia um ideal a ser
atingido — convívio de ao menos três classes sociais distintas no
mesmo sítio urbano — está caindo por terra. Os moradores da área
de mansões e os de Samambaia I (conjunto da SHIS e de coope-
rativa) começam a reagir diante do assentamento de barracos na
Vila Roriz. Ainda nos primórdios, a segregação interna de Sa-
mambaia aparecia nos protestos dos moradores iniciais (classe
média) contra a presença dos 'invasores” na Vila Roriz...
À segregação imposta mais uma vez aos transferidos deve-se
agregar a ausência de oportunidades de trabalho, fato que se re-
pete para quase todas as cidades-satélites. A urgência das transfe-
rências não possibilitou a alocação ou implementação dos planos
para dotar Samambaia de locais para: pequenas indústrias ou ati-
vidades comerciais empregadoras de mão-de-obra. Com isso, os
novos habitantes continuam na dependência dos empregos no
Plano-Piloto ou em Taguatinga.
Tal como foi concebido e realizada, a “erradicação de favelas”
deixa de atingir o objetivo de promoção humana, constituindo-se,
por isso, em mais uma tentativa de apenas mudar os pobres de lu-
gar.
Samambaia, além de não dispor de locais de trabalho, dista
32 quilômetros do Piano-Piloto, encarecendo os deslocamentos
e impondo perda de tempo e fadiga aos que se deslocam, tudo em
moldes repetitivos das ações estatais que se autodenominaram
“planejadas”.

O mercado de trabalho excludente

Inúmeros autores têm considerado que as ações de planeja-


mento privilegiam (em demasia) o aspecto físico-espacial de Bra-
sília em detrimento do socioespacial. Poder-se-ia, inclusive, le-
vantar hipóteses quanto à antinomia existente entre o traçado da
cidade e as necessidades básicas de seus habitantes, que, ao mi-
grar, estariam à procura de um posto de trabalho (uma necessida-
de vital pouco considerada em todo o processo de planejamento
urbano).

discurso do presidente José Sarney sobre o “programa de lotes semi-urbanizados


de 125 m?, com concessão de uso...”.
A construção injusta do espaço urbano 187

Ora, se o planejamento desconsiderou, no passado, a


questão geográfica do onde trabalhariam os habitantes da capi-
tal, por que teria se esmerado em alocar o setor habitacional (ao
menos para os de “baixa renda”) em pontos tão afastados do pólo
gerador de trabalho, o centro da cidade?
Na afirmativa de Campos22, a segregação foi planejada em
relação ao destino dado à terra e aos mecanismos de seu uso. Po-
der-se-ja acrescentar que a forma pela qual foi estruturada a dis-
tribuição dos empregos consolidou a segregação. Dito de outra
forma, a construção injusta do espaço urbano se processa porque
não se modifica o modelo concentrador, que gera a seletividade
socioespacial. Desta forma, os que residem no Plano-Piloto não
só estão mais próximos do trabalho, despendendo menos tempo e
dinheiro em seus deslocamentos, como se encontram mais próxi-
mos dos melhores postos de trabalho. Em Brasília, mais do que
em qualquer outra cidade brasileira, a posição socioeconômica e o
status são mensurados pela localização residencial do indivíduo
na cidade. Considera-se, ainda, que, aumentando a distância de
uma localidade em relação ao centro, decresce a renda bruta fa-
miliar anual de seus habitantes (tabela 1).
As localidades periféricas, por não gerarem empregos condi-
zentes com as respectivas populações, se constituem em núcleos-
dormitórios de reserva de mão-de-obra. Perdem enormes contin-
gentes de ativos em favor do Plano-Piloto, ocasionando movi-
mentos pendulares diários de grande monta, o que exige centenas
de ônibus (que permanecem ociosos grande parte do dia)?3.
Além de serem depósitos de mão-de-obra, as localidades peri-
féricas são excluídas do mercado formal de trabalho por não pos-
suírem atividades capazes de criar postos de trabalho. Cada vez
mais, jovens e adultos se preparam e se apresentam ao mercado
de trabalho, que não oferece postos no volume exigido pelos ati-
vos disponíveis.

22. Ver, de autoria de Neio Campos, “A segregação planejada”, neste volume.


23. Equipe do Departamento de Transportes Urbanos declarou, em 4 de outubro de
1989, em seminário promovido pela Codeplan, que há cerca de 1 500 ônibus do
tipo convencional: 800 servem especificamente a repartições públicas, 100 são do
tipo executivo e 80, transporte de vizinhança, transportando cerca de 800 mil
passageiros pagantes, diariamente.
138 Aldo Paviani

Tabela 1. Renda bruta familiar anual, população, população


economicamente ativa e distâncias no Distrito Fede-
ral
Renda População População Distância
estimada residente | economi- em
Localidade (1988)! (19892 camente relação
: ativa ao centro
(19843 | (em km)!
Plano-Piloto (centro) 5 967 459278 199692 (0)
Guará le ll 3 047 147 091 41 680 16
Núcleo Bandeirante ts) 23 603 7726 16
Sobradinho 1693 84 660 30 311 27
Taguatinga 2234 270 543 96 544 30
Ceilândia 1136 519802 105587 36
Gama 1479 188 138 54 543 42
Planaltina IR) 58 551 23 140 49
Brazlândia 1063 28 161 8 800 60
Distrito Federal 2933 1779927 568233 —
1 Última renda estimada em CZ$ 1.000,00 de 1988. Codeplan, Mensário Estatístico,
Brasília, 8 (1) p. 61, 1989.
2 Estimativa para 1989: Indicadores Conjunturais, Brasília, 16 (D: 1988. Séries Esta-
tísticas Básicas, p. 32.
3 Ultima PEA estimada para 1984: Indicadores Conjunturais, Brasília, 14 (4): 1986.
Séries Estatísticas Básicas, p. 30.
4 Distância da localidade até a Estação Rodoviária do Plano-Piloto: Departamento de
Transportes Urbanos, em exposição no Seminário sobre Plano Diretor do Distrito
Federal, em 4 de outubro de 1989.

No planejamento inicial da cidade, ao realizar-se uma verda-


deira diáspora com a moradia (e moradores empobrecidos), não
houve uma correspondente ação distribuidora de atividades e
oportunidades de trabalho. Por este motivo, no início da década
de 70, Barbosa e Paviani (1972:90) constataram que, dos que re-
sidiam em Taguatinga e no Gama e trabalhavam em outro lugar,
83,5% eram atraídos por postos de trabalho do Plano-Piloto. E,
dos ativos residentes em Sobradinho que trabalhavam em outra
localidade, 89,4% o faziam em empregos do Plano-Piloto.
Considerando que o Plano-Piloto continua sendo o pólo gera-
dor de empregos e que as cidades-satélites tiveram enorme incre-
mento populacional (tabelas 1 e 2), é de se esperar que o dese-
quilíbrio emprego-residência tenha se agravado nos últimos vinte
anos. Há que considerar ainda que ao incremento populacional
A construção injusta do espaço urbano 139

correspondente aumento da população economicamente ativa da


periferia (tabela 2).
Justamente por não ter uma periferia industrial, Brasília, neste
aspecto, não é atrativa ao surgimento de oportunidades de traba-
lho em suas cidades-satélites. E, mais do que isto, o modelo de
urbanização adotado se mantém centralizador das atividades,
aproveitando o efeito multiplicador da proximidade e da melhor
infra-estrutura no Plano-Piloto.
Resta, por fim, detectar para Brasília aquilo que alguns auto-
res têm encontrado em outros contextos, sobretudo com a intro-
dução da automação microeletrônica?4. A tecnologia colocada a
serviço do aumento da eficiência do aparato burocrático poderá
estar diminuindo o tempo para a execução de certas tarefas, redu-
zindo igualmente o número de pessoas necessárias para estas
mesmas atividades.
Tabela 2. Situação populacional da periferia do Plano-Piloto
% da % da % da % da
população forçade população força de
Localidade da trabalho da trabalho
periferia da periferia da
1970 (1) periferia 1987(2) periferia
1970 (1) 1984 (3)
Taguatinga EMigR) 34,7 20,9 26,1
Gama 21,0 17,8 14,5 14,8
Sobradinho 11,4 10,0 6,6 8,2
Núcleo Bandeirante SD 4,2 1,9 Doll
Planaltina 5,4 Sê 4,5 6,3
Brazlândia 2,8 29 2 2,4
Grandes invasões 22,8 23,6 (5) (5)
Localidades provisórias 157 1,8 (5) (5)
Guará (4) (4) 11,0 11,3
Ceilândia (4) (4) 38,4 28,1
(1) Segundo Barbosa e Paviani (1972: 89).
(2) Mesma fonte de Tabela 1 (2).
(3) Mesma fonte de Tabela 1 (3).
(4) Localidades não recenseadas por inexistirem à época do Censo de 1970.
(5) Localidades transferidas.

24. A este respeito, ver as obras de Toledo Neder e outros (1988) Automação e movi-
mento sindical no Brasil. São Paulo, HUCITEC, e de Peliano e outros (1987) Au-
tomação e trabalho na indústria automobilística. Brasília, Editora Universidade de
Brasília.
140 Aldo Paviani

Como bem percebeu Lima (1986: 126), a crise econômica de


1980/1981 levou à elaboração de “política de contenção da infla-
ção e dos gastos governamentais”, com o que se comprimiram
salários drasticamente e se suprimiram postos de trabalho à medi-
da de sua vacância por morte, aposentadoria ou demissão de fun-
cionários públicos. :
Não se tem indicadores seguros sobre o desemprego e a eli-
minação de lugares de trabalho em função das políticas econômi-
cas federais voltadas para a redução do “déficit público”. Todavia,
Brasília tem assistido à expansão das atividades “informais”, como
saída para a sobrevivência de milhares de antigos empregados
públicos ou de empresas privadas. Conforme reporta Montezuma
(1988), o SINE avaliou que, de 1980 a 1987, o “déficit acumula-
do de empregos formais foi de 180 mil” e que “*de uma população
economicamente ativa de 659 053, 30% trabalhavam no setor in-
formal””. Por outro lado, ainda para 1988, o SINE estimava que
havia 42 mil pessoas tentando ingressar no mercado de trabalho,
mas que, sendo otimista, seriam criados apenas 20 mil empregos.
Um outro indicador da crise no setor de emprego e da não ge-
ração de postos de trabalho em Brasília é a quantidade de cartei-
ras de trabalho expedidas pela delegacia do Ministério do Traba-
lho, que, nos últimos anos, se situa acima de 70 mil?, Ainda se-
gundo o SINE, em 1987, “foram gerados 8 800 empregos formais
no Distrito Federal, mas havia 40 mil pessoas tentando colocação,
o que significa que 31 200 não conseguiram trabalho com carteira
assinada” (Montezuma, 1988). Ora, se do total dos que obtêm
carteira de trabalho, pouco mais de 10% conseguem um posto de
trabalho, pode-se deduzir que é enorme o contingente dos excluí-
dos do mercado de trabalho, por certo residente em grande parte
na periferia empobrecida. Como o processo é cumulativo, isto é, a
cada ano um número maior de pessoas procura um emprego e não
o encontra, pode-se facilmente chegar a algo como mais de uma
centena de milhar de pessoas excluídas do mercado formal de tra-
balho (ou uma cidade, de porte intermediário, de desocupados...).
Corroborando esta constatação, os dados para 1989 não fogem à
regra: prevê-se que a população economicamente ativa crescerá

25:DA época do *milagre' (1974), foram expedidas 99 257 carteiras — um recorde; em


1977, 63 mil; em 1980, 87 182 e em 1982, 77 200.
A construção injusta do espaço urbano 141

em 55 mil ativos, contra a criação de apenas 18 mil novos empre-


Sos niPrmais ou quase 37 mil não encontrarão postos de traba-
lho*”.

Conclusão

A se manter a configuração socioespacial antes explicitada,


não será difícil concluir que aumentará o contingente dos excluí-
dos em Brasília. De nada adiantará alocar lotes 'semi-urbaniza-
dos” para a massa dos “semi-ocupados”, pois a solução para os
enormes problemas de uma cidade tida como planejada não passa
apenas pelo esmerado desenho de seu centro e das cidades-saté-
lites.
Aliás, o acompanhamento por longo tempo da urbanização
local nos mostra que a resolução de muitos problemas da capital
passa por outros estados da federação ou mesmo pela definição de
qual modelo socioeconômico se deseja para o país como um todo.
A equação do problema de trabalho em outras regiões, de iní-
cio, aliviaria a pressão de considerável contingente migratório,
que, carecendo de alternativas, procura a capital, por considerá-la
o eldorado onde se “doam” terrenos aos favelados. De resto, sem
considerar os que migram para Brasília, a cidade deverá preparar-
se para oferecer condições condignas de trabalho, transporte, ha-
bitação, educação, etc. a um contingente de quase 500 mil pes-
soas atualmente com menos de 10 anos de idade, parte de um nú-
mero bem maior de habitantes nascidos no Distrito Federal, que,
em poucos anos, passarão de consumidores a produtores em po-
tencial. Isto em uma cidade onde o setor terciário ocupa cerca de
660 mil pessoas, de um total de 770 mil ativos?”.
A experiência acumulada deverá dar insumos para uma saída
criativa fora da camisa-de-força representada pela máxima infle-
xível da “capital político-administrativa” vigente. A realidade tem
demonstrado a falência do modelo tecnocrático de *cidade-sem-
operariado-que-traz-problemas”. Ao contrário, aumentando-se as
possibilidades de gestão democrática, este mesmo operariado ha-

26. É sugestiva a matéria do Correio Braziliense, de 27 de abril de 1989: ““Cai a oferta


de empregos no DF”, p. 27 (reportando que, de janeiro a março, houve uma queda
de 36,4% na oferta de empregos em relação ao primeiro trimestre de 1988).
27. Mensário Estatístico do DF, Brasília, 8 (1) p. 60, 1989.
142 Aldo Paviani

verá de encontrar saídas (no setor secundário, por que não?). Li-
berando as iniciativas, surgirão pequenas fabricações, voltadas
para o mercado consumidor local, e inumeráveis indústrias de ser-
viços para a cidade e para a região de influência: indústrias ele-
tro-eletrônicas para o mercado local e nacional, indústria do ves-
tuário (roupas e calçados), indústria moveleira, indústria de medi-
camentos, indústria de embalagens (de metal, de papel e de plás-
tico) e outras tantas que, não sendo poluidoras, são compatíveis
com os destinos de uma cidade com porte metropolitano.
Se esta não é uma solução acabada para o problema dos ati-
vos em disponibilidade ao menos é um paliativo, dentro do está-
gio monopolista do capitalismo brasileiro, cujas repercussões lo-
cais são notórias e avassaladoras.
Assim sendo, não nos parecem incompatíveis as ações que vi-
sam preservar o Plano-Piloto, por ser a sede dos poderes da Re-
pública, com as que procuram desentranhar de certos segmentos
hegemônicos a tendência de perpetuar a segregação socioeconô-
mica (e espacial). Afinal, três quartos da cidade estão na periferia
e não devem ser vistos apenas como produtores/consumidores,
mas como cidadãos capazes de enormes esforços para a constru-
ção de um espaço urbano mais justo, onde todos tenham direito
por igual aos bens e serviços socialmente produzidos.
Enquanto esta meta ganha força, há expectativas quanto às
possibilidades abertas pela Constituição de 1988. Nela o Distrito
Federal assume, ao mesmo tempo, características de município e
de estado da federação. Elegeu, em outubro de 1990, seu primeiro
governador e sua primeira Câmara Legislativa. Nesta, a elabora-
ção de uma lei orgânica (e um plano diretor urbano) ensejará am-
plas consultas à população, democratizando as decisões e intro-
duzindo novas práticas em direção à participação coletiva. Por-
tanto, uma etapa a mais no jogo de forças para a construção social
do espaço em Brasília.
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MOVIMENTOS POPULARES
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LUTAS SOCIAIS:
POPULISMO E DEMOCRACIA — 1960/1964

Luciana Jaccoud

Em Brasília, o passado, homogeneizado pelos mitos que cer-


caram a construção da nova capital e pelo exercício burocrático
de suas funções institucionais, parece ter deixado para a cidade
somente uma história oficial, seja no resgate dos eventos ou na
sua interpretação. A lacuna existente quanto à memória das lutas
populares em Brasília nos dá a falsa sensação da inexistência de
participação das classes trabalhadoras na sua história social e po-
lítica. Transformada em símbolo da burocracia e do Estado, Bra-
sília parece, desde sempre, estar alheia aos embates históricos do
país, pairando acima das classes que tecem, estas sim, nossa his-
tória real. “Imaculada” como a “ilha da paz”, mas famigerada por
ser também a da “fantasia”, Brasília aparece como cidade sem po-
vo e sem história. Longe do país, mas símbolo de seus vícios. Es-
paço de repressão pensado para a plena liberdade.
Essa imagem, consolidada nos governos militares, confunde a
cidade com o próprio exercício autoritário do poder. O poder que
exclui e reprime a manifestação das classes trabalhadoras, no
Brasil e em Brasília, apagando sua história, negando suas lutas e
abafando suas mobilizações. Cabe hoje o exercício do resgate.
Este trabalho tem como objetivo o estudo do processo de mo-
bilização social e política ocorrido na cidade entre 1960 e 1964.
Partindo da análise de registros da imprensa local da época, atra-
vés de pesquisa realizada entre 1987 e 1989 nos arquivos do jor-
nal Correio Braziliense!, procurar-se-á estudar, com base nos

1. Esta pesquisa contou com o apoio da Fundação Pró-Memória e do CNPq e foi co-
ordenada pelas sociólogas Luciana Jaccound e Nair Bicalho de Sousa. Cabe agrade-
cer o cuidadoso trabalho de levantamento junto ao jornal realizado por Maria do
Socorro Macena, Fátima Gomes e Antônio Fernando Sá, assim como ao trabalho
de Carlos William Coqueiro, Wanderlan Rodrigues da Silva e David Pureza. Fo-
ram pesquisados os meses de maio de 1960 a março de 1964.
146 Luciana Jaccoud

eventos ali registrados, as lutas sociais e os movimentos popula-


res então emergentes, analisando a trajetória da participação so-
cial e política das classes tabalhadoras no período.
Desde o início de suas obras até março de 1964, Brasília vi-
veu um processo ascendente de participação e organização popu-
lar, seja através de mobilizações sindicais, de moradores ou do
funcionalismo público instalado na nova capital. Esse processo,
que vai desde a apresentação de reivindicações específicas à par-
ticipação política e social nos embates mais amplos do período,
está intimamente relacionado ao fato de a cidade ter sido criada
no bojo do populismo desenvolvimentista, do qual era símbolo, e
de ter sido contraposta, em seus primeiros anos, aos impasses do
modelo político e econômico que a sustentava.
De fato, Brasília revelava, naquele início de década, grandes
contradições. Por um lado, a cidade que representava o progresso
e o desenvolvimento nacional tinha aqui tais princípios confron-
tados cotidianamente. Era palco de péssimas condições de traba-
lho, precária e excludente estrutura urbana e do descaso gover-
namental para com as condições básicas de vida da população
operária. Por outro lado, ao menos quanto às classes médias e ao
funcionalismo público, a pressuposição de que a cidade podia
oferecer novas relações sociais e boa qualidade de vida teve de
conviver com sérias tensões políticas e contradições sociais já
amadurecidas no seio dessas categorias e no próprio sistema polí-
tico. Condicionado, tanto pelas características próprias da estrutu-
ra urbana e da organização social e política da cidade nascente,
como pelas tensões resultantes do esgotamento do nacional-de-
senvolvimentismo e da crise da democracia populista no país,
emerge aqui um significativo movimento popular e sindical.

As lutas sociais no período

A leitura da imprensa local e o exame dos principais eventos


relacionados às reivindicações e mobilizações populares em Bra-
sília, entre maio de 1960 e março de 1964, apontam para quatro
grandes temas que emergem como os catalisadores das lutas so-
ciais do período. São eles: a questão da moradia, as reivindica-
ções trabalhistas, a questão rural e as lutas sociopolíticas de ca-
ráter mais geral.
Lutas sociais: populismo e democracia: 1960/1964 147

Procurar-se-á, aqui, analisar a evolução desses temas ano a


ano, visando conhecer seu desenvolvimento assim como o dos
movimentos populares que lhes deram significado, para, em se-
guida, refletir sobre esse processo, considerando tanto as especi-
ficidades da estrutura social da cidade, como sua articulação com
o cenário político nacional.

A questão da moradia

Desde o início das obras de sua construção, a questão da mo-


radia era um dos principais problemas da cidade. Já no final de
1958, proibidas novas construções na então chamada Cidade Li-
vre, proliferaram invasões e construções irregulares que, ao lado
dos acampamentos de obras?, se constituíam nas alternativas de
habitação para os trabalhadores que afluíam à cidade. Surgem,
então, as primeiras cidades-satélites. Jogando para a periferia o
candango e isolando Brasília para a burocracia estatal que come-
çava a chegar, o governo apenas afastava o problema habitacio-
nal, recriando-o na medida em que definia, junto à segregação es-
pacial, a desigualdade de acesso aos recursos públicos e aos
equipamentos urbanos”.
A partir de 1960, os trabalhadores, que vinham se fixa com
suas famílias na nova capital em busca de oportunidades de em-
prego, enfrentavam os problemas da negociação e especulação
dos lotes e barracos nas invasões e cidades-satélites e da falta de
regularização dos terrenos por parte do governo local, fazendo
emergir um significativo movimento de moradores. Ao mesmo
tempo, os funcionários públicos para cá transferidos começavam a
lutar por acesso à moradia perante o governo federal, que assumi-
ra compromissos nesse sentido junto a seus servidores. Paralela-
mente, as precárias condições de infra-estrutura urbana da cidade,
sentidas por todos esses grupos, em diferentes níveis, estimula-
vam a apresentação de novas demandas. Estes são os principais

2. Sobre os acampamentos de obras em Brasília ver o texto de Gustavo Lins Ribeiro,


“Acampamento de grande projeto: uma forma de imobilização da força de trabalho
pela moradia”, neste volume.
3. Como aponta Oliveira (1978: 133), a própria cidade-satélite de Taguatinga “já nas-
ce com invasões, a Vila Dimas e a Vila Matias, pois alguns dentre os sem-terra não
estavam habilitados a comprar lotes dentro dos critérios estabelecidos”.
148 Luciana Jaccoud

movimentos reivindicativos daquele período quanto às manifesta-


ções dos habitantes em sua condição de moradores da cidade.
O movimento de moradores, que emerge a partir de 1960 nas
cidades-satélites e invasões de Brasília, visava à melhoria de suas
condições de vida e de moradia. Seus pleitos diziam respeito, por
um lado, à fixação das invasões, com reivindicações referentes à
regularização de assentamentos existentes, a fim de possibilitar a
construção de habitações condignas, a instalação da infra-estrutu-
ra urbana e a proximidade dos locais de trabalho e comércio.
Quanto à remoção de invasões, reivindicavam, além da participa-
ção no desenvolvimento de tal política, boas condições de mora-
dias nas cidades-satélites, regularização dos lotes e acesso a ser-
viços públicos urbanos.
Nesse sentido, durante 1960, a grande questão social enfren-
tada em Brasília referia-se à transferência do Núcleo Bandeirante.
Projetado para abrigar os primeiros habitantes da nova capital, o
Núcleo Bandeirante, então chamado Cidade Livre, era, segundo o
plano original, um núcleo provisório, que deveria ser erradicado
quando da inauguração de Brasília. Já nos primeiros números do
Correio Braziliense, registra-se o debate sobre a forma de trans-
ferência da população e do comércio ali instalados. A Associação
dos Habitantes Pioneiros do Núcleo Bandeirante e a Associação
Comercial de Brasília passaram a polarizar tal debate junto ao
governo, que iniciava o trabalho de transferência das populações
instaladas em invasões vizinhas àquele núcleo, para fixá-las prin-
cipalmente na cidade-satélite de Taguatinga. Com o crescimento
das pressões locais, que incluíram mesmo uma tentativa de parali-
sação geral por vinte e quatro horas de todas suas atividades eco-
nômicas, Juscelino Kubitscheck decidiu pela fixação e urbaniza-
ção da Cidade Livre, a que deu início. Os trabalhos de urbaniza-
ção são destaque no jornal durante o restante do ano de 1960.
Contudo, tanto o surgimento de novas invasões como a política
de remoção da população fixada no entorno do Núcleo Bandei-
rante tiveram continuidade.
Paralelamente, ainda em 1960, as cidades-satélites de Tagua-
tinga, Sobradinho e, em menor proporção, Gama desenvolviam
rápido crescimento. Destino da maior parte da população mi-
grante que continuava sendo atraída para Brasília, bem como da
população que era removida de invasões, iam se constituindo ali
Lutas sociais: populismo e democracia: 1960/1964 149

importantes núcleos de pressão com o objetivo de enfrentar os


problemas de infra-estrutura urbana e ocupação do solo. A popu-
lação destas satélites começava a apresentar, já naquele ano, rei-
vindicações referentes aos serviços urbanos (água, transporte co-
letivo, escolas, hospitais, etc.) e à regularização dos assentamen-
tos populacionais.
Em 1961, é retomada a mobilização do Núcleo Bandeirante,
agora organizada através do Movimento Pró-Fixação e Urbaniza-
ção do Núcleo Bandeirante 4. Também o entorno desta área urba-
na, objeto da política de remoção de invasões para as cidades-sa-
télites, foi palco de ampla mobilização. Observam-se, então, as
32, 42 e 5º avenidas do Núcleo Bandeirante, a Vila da Mercedes e
a do IAPI, a Candangolândia e a Vila Operária, com suas asso-
ciações de moradores, em mobilizações em prol do encaminha-
mento de seus pleitos e a participação nos processos de remoção.
Os movimentos e reivindicações urbanos alcançaram ainda na-
quele ano outros núcleos, como a Asa Norte, o Setor Econômico
Sul, conhecido como “'Bairro do Gavião”, a Vila Dimas e o Gama.
Os problemas relacionados a invasões (remoções, fixação,
posse de lotes, etc.) também foram objeto, em 1962, de mobiliza-
ções em Taguatinga, Vila Matias e imediações da Concha Acústi-
ca. Quanto às reivindicações relativas a serviços urbanos, obser-
vou-se a mobilização de moradores da Asa Norte, do Conjunto
Residencial do IAPC, de Taguatinga, Planaltina, Candangolândia
e Sobradinho, onde chamam a atenção as lutas por melhoria do
transporte público, que chegaram a gerar ameaças de depredações
de ônibus (Taguatinga), greve de motoristas (Taguatinga) e des-
truição de pontes (envolvendo centenas de pessoas em Planalti-
na). Registra-se a atuação de movimentos de moradores, como a
Sociedade de Amigos de Taguatinga e a Associação de Amigos
de Planaltina.
O problema das invasões se estendeu, em 1963, ao Gama,
mas se intensificou especialmente em Taguatinga. Ali ocorreram,
em maio, várias invasões seguidas de tentativas de depredação do
escritório do departamento de impostos naquela cidade-satélite.

4. Sobre este movimento e o processo de intensa mobilização popular que o acompa-


nhou, ver o trabalho de Nair Bicalho de Sousa, “O movimento pró-fixação e urba-
nização do Núcleo Bandeirante: a outra face do populismo janista””, neste volume.
150 Luciana Jaccoud

Esse movimento, que contou com o apoio do diretório local do


Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), desdobrou-se em comícios e
reuniões com autoridades, propondo-se a constituição de um gru-
po de trabalho para solucionar a questão dos lotes em Taguatinga.
A luta por acesso e regularização dos lotes, que naquela cidade-
satélite continuou durante todo aquele ano, também atingiu So-
bradinho. Quanto às demais reivindicações urbanas, voltadas à in-
fra-estrutura e fixação de vilas, as informações sobre 1963 dizem
respeito a solicitações por saneamento básico, urbanização, luz
elétrica, geralmente sob a forma de memoriais ou abaixo-assina-
dos.
A questão da moradia para os funcionários públicos se ex-
pressou, no período de 1960 a 1964, sobretudo por meio das in-
vasões de apartamentos, que durante os primeiros anos da nova
capital fizeram parte de seu cotidiano de lutas sociais. Elas obje-
tivavam, e de fato conseguiam, levar o poder público a agilizar a
solução para o problema. Apesar de o governo recorrer à Justiça e
conseguir habitualmente a reintegração dos imóveis ocupados,
com o despejo dos invasores, a questão política criada exigia so-
lução. Exemplos desse fato podem ser observados quando da res-
posta dada a algumas invasões ocorridas em 1960: em novembro,
radialistas despejados pela Justiça dos apartamentos invadidos do
Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPI)
receberam de Juscelino Kubitscheck a decisão de que, mesmo não
sendo funcionários federais, seriam atendidos, sendo-lhes entre-
gues 56 apartamentos do Instituto de Aposentadoria e Pensões
dos Comerciários (LAPC); em dezembro, Juscelino Kubitscheck
entregou a servidores da Companhia Urbanizadora da Nova Ca-
pital (Novacap), despejados de unidades invadidas do IAPI, ses-
senta apartamentos.
O ano de 1960 assistiu ainda a outras invasões, promovidas
por jornalistas, comerciários e funcionários públicos, e a movi-
mentos de acesso a moradia, protagonizados por médicos e den-
tistas do Hospital Distrital de Brasília (HDB) (mobilizações) e
professores secundários (greves).
Em 1961, verifica-se a continuação da luta por moradia dos
funcionários públicos com reivindicações e mobilizações. Estas
não parecem, contudo, acompanhar a intensidade do ocorrido em
1960, recrudescendo, somente em 1962, com a repetição de inva-
Lutas sociais: populismo e democracia: 1960/1964 151

sões de apartamentos por parte de funcionários do Departamento


de Correios e Telégrafos (DCT) e de professores da rede oficial
de ensino. Do mesmo modo, em 1963, mobilizaram-se sobre a
questão diversas categorias profissionais: aeroviários, funcioná-
rios do DCT, funcionários públicos de Brasília, funcionários do
Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado
(IPASE) e funcionários da Câmara dos Deputados, estes realizan-
do uma invasão de casas do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico (BNDE).
Dessa forma, vemos que, de fato, entre 1960 e 1964 (nos três
primeiros meses de 1964 não se encontraram registros importantes
quanto ao tema), observou-se a emergência de significativas ma-
nifestações e mobilizações sociais na cidade no que concerne à
problemática da moradia. Profundamente articulada à questão da
forma com que se deu a ocupação e apropriação do espaço urbano
da cidade pelos diversos grupos sociais e de sua gestão pública,
as lutas por moradia e seus condicionantes não só repercutiram
intensamente no cenário social e político da cidade na época, co-
mo tiveram profunda influência na constituição do perfil urbano
de Brasília.

As reivindicações trabalhistas

O movimento sindical em Brasília começou a se desenvolver


em grande associação com a questão habitacional. A luta por mo-
radia se dava, em larga escala, por categorias profissionais, e mo-
bilizava associações e entidades profissionais que começavam a
se formar em 1960 para o encaminhamento de reivindicações de
caráter trabalhista específicas de cada setor.
Das reivindicações trabalhistas a que despertou maic : mobili-
zação na cidade durante o ano de 1960 foi a luta pela fixação do
novo valor do salário-mínimo. Após o estabelecimento de uma
comissão, em setembro, com representantes de trabalhadores, em-
pregadores e governo para discutir o salário-mínimo de Brasília,
chegou-se a um acordo quanto ao valor de Cr$ 9.600,00. Em ou-
tubro, o governo, desrespeitando o acordo, estabeleceu o salário-
mínimo de Cr$ 6.340,00. O Sindicato dos Trabalhadores da In-
dústria da Construção e do Mobiliário (STICMB) entra então com
um mandado de segurança contra o governo e inicia grande mo-
152 Luciana Jaccoud

bilização entre os trabalhadores da construção civil, passando a


receber o apoio de entidades sindicais e categorias profissionais
tais como servidores da Novacap, motoristas, comerciários, estu-
dantes, entre outras. Kubitscheck acaba cedendo e institui o salá-
rio-mínimo conforme solicitado. Nesse momento já se destacam
duas entidades que estarão no centro .de grande parte das mais
importantes lutas da classe trabalhadora na cidade: o próprio
STICMB e a Associação dos Servidores da Novacap (ASN).
Em 1961, o movimento sindical na cidade é fortalecido com a
criação de novas entidades e o recrudescimento de reivindicações
trabalhistas. Destacam-se a ASN (reclassificação, estabilidade,
aumento salarial), o STICMB (pelo pagamento do novo salário-
mínimo e melhoria da alimentação, havendo em janeiro conflitos
em canteiros de obras de várias empresas) e, ainda, movimenta-
ções dos motoristas de ônibus, dos bancários, professores e co-
merciários.
O grande catalisador nesse ano foi, entretanto, o desemprego.
Com a redução das obras públicas após a inauguração da nova
capital e sua quase paralisação em 1961, o desemprego foi se tor-
nando o mais grave problema social da cidade. Sob a liderança do
STICMB, organizou-se um amplo movimento contra o desempre-
go. Em março, o STICMB, acompanhado por mais seis sindica-
tos, convocou uma assembléia que contou com a presença de mi-
lhares de desempregados, para discutir um memorial a ser entre-
gue ao presidente da República e ao prefeito do Distrito Federal,
propondo medidas para sanar o problema. A partir daí, abriu-se
um amplo processo de debate com o governo, visando ao reinício
das obras na cidade. O STICMB, paralelamente, buscava outras
alternativas, como uma proposta às construtoras para que reduzis-
sem as horas extraodinárias e aumentassem o número de empre-
gados.
Em novembro, o movimento sindical voltou a agitar a bandei-
ra do desemprego. O problema social se agravava, em Sobradinho
ocorrem ameaças de saques e desempregados saem às ruas pedin-
do gêneros alimentícios. Em 13 de dezembro é realizada a cha-
mada Passeata da Fome, que mobilizou centenas de trabalhadores,
apesar da ação da polícia no sentido de obstar sua chegada ao
Plano-Piloto. A pressão popular provocou o anúncio de algumas
Lutas sociais: populismo e democracia: 1960/1964 153

providências por parte dos poderes públicos. O problema, entre-


tanto, permaneceu quase intocado.
O movimento sindical registra, em 1962, grandes mobiliza-
ções. Quanto às reivindicações específicas de categorias, destaca-
ram-se as greves da ASN (por aumento salarial), dos bancários
(em junho, de quinze dias, pelo cumprimento de acordo, e, em
dezembro, contra a exclusão da categoria do projeto de lei que
concedia o décimo terceiro salário, contra o substitutivo apresen-
tado no Congresso Nacional ao projeto da reforma bancária, e
pelo cumprimento de acordo com os bancos), do STICMB e dos
radialistas (por aumentos salariais).
Mas, além dessas campanhas específicas, o movimento sindi-
cal em Brasília caracterizou-se, já neste ano, por ações intersindi-
cais de crescente politização. Em fins de abril foi realizado o
Primeiro Encontro Fraternal dos Trabalhadores de Brasília, com
delegados de todas as entidades sindicais e associações congêne-
res, além de lavradores e estudantes. Mais de cinco mil pessoas
reuniram-se na Estação Rodoviária para comemorar o Primeiro de
Maio e para o encerramento do encontro, aprovando uma procla-
mação de Brasília e uma carta política dos trabalhadores e cam-
poneses, a “tese política” do encontro. Foi criada ainda, nessa
ocasião, a Comissão Permanente das Entidades Sindicais, Profis-
sionais, Camponesas e Estudantis de Brasília (Bicalho de Sousa
1985).
Também em 1963 o movimento sindical esteve em grande
mobilização. As greves desenvolvidas, a saber, dos funcionários
da Fundação Hospitalar (FHDB) (em janeiro e setembro), dos
médicos (em abril e novembro), dos funcionários da TV-Rádio
Nacional (em maio e junho), da construção civil, dos bancários,
dos servidores da Novacap, dos funcionários da Universidade de
Brasília e dos servidores do IAPI, como as de 1962, eram marca-
das por reivindicações salariais e funcionais. Dentro do movi-
mento sindical e sobretudo para o STICMB, o desemprego conti-
nuava sendo um tema de particular importância, motor de cons-
tantes mobilizações. Em junho, desempregados se encontram
diante da Prefeitura do Gama, pedindo uma solução para o pro-
blema. Em julho, o STICMB reuniu mais de mil e quinhentos tra-

5. Essa greve teve grande repercussão no Congresso, na discussão das referidas leis.
154 Luciana Jaccoud

balhadores da construção civil em frente ao Ministério da Fazen-


da reclamando a liberação de verbas para reinício das obras. Este
tema é defendido ainda pelo STICMB em fevereiro, quando do
encaminhamento de um memorial ao presidente da República so-
licitando a retomada das obras de Brasília, e, na greve de julho/a-
gosto, contando com o apoio do movimento sindical.
Em janeiro de 1964, três importantes greves foram realizadas:
a dos funcionários das empresas particulares de ônibus urbanos,
durante mais de dez dias, por aumento salarial e jornada de oito
horas; da construção civil, por vinte e quatro horas, reivindicando
salário- mínimo especial para Brasília, medidas contra a carestia e
o abatimento de 50% nas passagens de ônibus para os trabalhado-
res sindicalizados, e a dos funcionários do IPASE, por enquadra-
mento funcional.
Em fevereiro, paralisaram suas atividades os servidores do
DCT, reivindicando moradia, ajuda de custo e pagamento de atra-
sados. Já em março, as greves atingiram os trabalhadores da TV
Brasília (movimento de advertência), motoristas (paralisação da
Empresa de Transporte Coletivo de Brasília (TCB) por enqua-
dramento, municipalização da empresa e readmissão de três em-
pregados demitidos), da construção civil (por aumento salarial,
mobilizando cerca de dezoito mil trabalhadores), e empregados da
limpeza pública (por melhores salários). Comerciários ameaçaram
realizar greve por moradia, horário de trabalho e aumento salarial.
Outras mobilizações foram ainda importantes no âmbito sin-
dical em 1964. Em janeiro foi criada a Federação dos Servidores
Públicos Civis de Brasília, congregando o funcionalismo federal,
autárquico, municipal, previdenciário, da Novacap, das funda-
ções, etc. Liderada pela Federação e pela Confederação dos Ser-
vidores Públicos do Brasil, inicia-se em fevereiro uma campanha
pela revisão salarial em prol de um aumento de 100% e da recu-
peração da paridade com os servidores militares, que havia sido
quebrada. A campanha cresceu e, em 11 de março, foi instalada
uma comissão paritária, conforme solicitado, para rever os níveis
salariais do servidores civis. Paralelamente, desde fevereiro, tam-
bém estavam mobilizados os servidores da Prefeitura de Brasília.
Por meio de sua associação, eles pleiteavam o pagamento do dé-
cimo terceiro salário de 1963, reajuste salarial com base no au-
mento do salário-mínimo, além de outros itens.
Lutas sociais: populismo e democracia: 1960/1964 155

A ascensão observada no movimento sindical de Brasília até


1964 demonstra que, de fato, a cidade não esteve alheia ao pro-
cesso mobilizatório desenvolvido no início da década de 60 entre
as camadas trabalhadoras urbanas do país. Ao contrário, já em
seus primeiros anos, Brasília foi palco de significativo movi-
mento trabalhista, marcado tanto por suas características de sede
do funcionalismo público federal e de canteiro de obras afetado
pela crise da construção civil, a partir dos primeiros anos da dé-
cada de 60, quanto pela conjuntura política nacional marcada pela
ampliação dos canais de participação e reivindicação das classes
populares.

A questão rural

Com a distribuição de lotes rurais para a produção agrícola


destinada ao abastecimento da cidade, nasceu também em Brasília
um movimento de trabalhadores rurais. Apesar de incipiente, ele
parece ter realizado algumas importantes mobilizações em defesa
dos pequenos produtores e trabalhadores rurais do Distrito Fede-
ral.
Já em 1961, encontram-se registros sobre esse movimento
com a criação da Associação Agrícola de Taguatinga e a realiza-
ção do Encontro de Lavradores e Trabalhadores Rurais de Brasí-
lia, preparatório do Primeiro Congresso Nacional de Lavradores e
Trabalhadores Rurais. Nesse encontro, que contou com cerca de
duzentos participantes dos núcleos agrícolas de Taguatinga, Braz-
lândia, Lajes, Sobradinho, Descoberto e da Associação Agrícola
de Brasília, instituíram-se duas comissões que debateram o pro-
blema agrário de Brasília e do Brasil, aprovando várias propostas
sobre o Distrito Federal e indicando vinte e cinco representantes
para o congresso nacional.
Em 1962, observa-se crescimento do movimento rural, com o
aumento de manifestações e reivindicações: em janeiro, cem tra-
balhadores rurais se dirigem à Prefeitura, sob o comando da As-
sociação dos Lavradores de Sobradinho, pedindo providências às
autoridades contra as ameaças de expulsão de lavradores nas cer-
canias de Planaltina; em julho, numa representativa assembléia,
camponeses da Associação Agrícola de Taguatinga indicam uma
comissão para ir ao Palácio do Planalto expor a “situação de pe-
156 Luciana Jaccoud

núria”” do núcleo rural daquela satélite (houve ameaças de saque,


mobilização policial e providências de remessa de alimentos); em
outubro/novembro desenvolve-se uma luta da Associação Agrí-
cola de Taguatinga para regularização da situação de terras, se-
guida de perda, na Justiça, de liminar que lhe permitiria participa-
ção no processo de outorga de lotes no Núcleo Alexandre Gus-
mão; em novembro, mais de mil trabalhadores desse núcleo fazem
passeata com o objetivo de conseguir audiência no Supremo Tri-
bunal Federal sobre a imissão de posse daquelas terras.
Em 1963, os registros sobre o movimento rural são escassos,
com destaque para a invasão de áreas no Gama (junho) e conflitos
envolvendo a Superintendência de Reforma Agrária (SUPRA),
sobressaindo-se uma reunião de líderes sindicais com represen-
tantes daquele órgão para discutir sua atitude em relação a um lí-
der camponês que estaria sendo pressionado a abandonar a granja
da SUPRA em Taguatinga (setembro).
Embora limitadas, as informações do Correio Braziliense in-
dicam que também a problemática rural no Distrito Federal foi fo-
co de significativa mobilização social e política. Pressionado no
sentido de que fosse utilizado o enorme estoque de terras públicas
em mãos do Estado, o governo procurou, ao mesmo tempo, esti-
mular em Brasília a produção de gêneros alimentícios para o
abastecimento da cidade e a ocupação racional do solo rural com
o trabalho de pequenos produtores, como foi o caso do projeto-
piloto desenvolvido pela SUPRA no Núcleo Rural Alexandre
Gusmão. Nesse processo emergiu um movimento de trabalhadores
que, apesar das pequenas proporções e das peculiares condições
de trabalho e de acesso à terra existentes no Distrito Federal, não
esteve alheio à conjuntura política nacional e à mobilização cam-
ponesa que então se desenvolvia no país.

As lutas sociopolíticas de caráter mais global

Vários foram os eventos que ensejaram a amplicação das de-


mandas e a politização das reivindicações ou manifestações diante
dos embates políticos do período por parte dos movimentos so-
ciais da cidade. No primeiro deles, em agosto e setembro de
1961, Brasília foi palco de ampla mobilização em defesa da de-
mocracia e da legalidade constitucional em função da crise aberta
Lutas sociais: populismo e democracia: 1960/1964
TSM

com a renúncia do presidente Jânio Quadros. Várias categorias


profissionais articularam-se em defesa da posse do vice-presi-
dente João Goulart, e posteriormente para indicar para a Prefeitu-
ra do Distrito Federal um nome de Brasília.
Em junho de 1962, a Comissão Permanente das Entidades
Sindicais, Profissionais, Camponesas e Estudantis de Brasília con-
vocou uma concentração seguida de passeata ao Congresso Na-
cional pedindo solução para os problemas prementes de Brasília.
Colocava-se em apoio aos bancários, então em greve, e pedia o
fim do desemprego e a retomada das obras na cidade, a distribui-
ção de terras aos camponeses do Distrito Federal e a constituição
de novo gabinete no país, então sob o sistema parlamentarista de
governo. Defendia ainda a construção de novas moradias popula-
res e a abertura de novas frentes de trabalho nas cidades-satélites
e na periferia, com a criação de pequenas indústrias.
Articuladas às lideranças nacionais, em julho, lideranças sin-
dicais locais organizaram um Comando-Geral de Greve e, junto
com a Comissão Permanente das Entidades Sindicais, convocaram
uma assembléia de todas as categorias para “em conjunto com o
movimento sindical e popular de âmbito nacional, obter a forma-
ção de um governo democrático e nacionalista, que realize as re-
formas de base”. Tal movimento dizia respeito à crise política
que se abrira com a aprovação do nome de Auro Moura Andrade
para o cargo de primeiro-ministro, após a renúncia de Tancredo
Neves, e a rejeição de Santiago Dantas pelo Congresso Nacional,
contra o que se levantou a esquerda.
Em setembro, a Comissão Permanente das Entidades Sindi-
cais lançou manifesto alertando para o clima de intrangjuilidade
reinante em Brasília, que tendia a “se agravar” pela maneira co-
mo estavam sendo encarados os problemas básicos da cidade. O
documento destacava o desemprego e a carestia e chamava a
atenção para a atuação da Sociedade de Abastecimento de Brasí-
lia (SAB) e das fundações Hospitalar e Educacional, que estariam
fugindo aos objetivos para os quais haviam sido criadas. Em 15
de setembro, as entidades sindicais de Brasília decidiram em as-
sembléia, sob o comando da Comissão Permanente das Entidades
Sindicais, aderir ao movimento nacional de paralisação pela reali-
zação do plebiscito, pelo aumento geral dos salários e pelas re-
formas de base. Nesse processo envolveram-se, inclusive, organi-
158 Luciana Jaccoud

zações ligadas à problemática urbana, como o Movimento Pró-Fi-


xação e Urbanização do Núcleo Bandeirante, que organizou, em
dezembro de 1962, uma caravana para participar da concentração
pró-referendo de 6 de janeiro, realizada na praça dos Três Poderes.
No entanto, foi principalmente a partir de 1963 que vários
movimentos ultrapassaram o limite das reivindicações específicas
avançando no terreno político, quer local, quer nacional. Em ja-
neiro, os presidentes dos sindicatos dos bancários e dos jornalis-
tas e a ASN, em conjunto com autoridades de Brasília, lançaram
uma nota convocando o povo a participar do plebiscito de 6 de
janeiro, dizendo não ao parlamentarismo. Ainda em janeiro, a
ASN enviou um memorial ao presidente João Goulart, ao prefeito
Ivo Magalhães e ao presidente da Novacap pedindo a extinção da
SAB, já que, devido a empreguismo, aumento dos preços e des-
perdícios de produtos, não exercia sua função de abastecimento
da capital.
Em abril, eclodiu um amplo movimento em prol da interven-
ção nas fundações e da implantação da municipalização dos ser-
viços públicos do Distrito Federal. Tal medida havia sido tomada
pelo prefeito do Distrito Federal, mas sustada pelo ministro para
reformas administrativas, Amaral Peixoto. A Comissão Perma-
nente das Entidades Sindicais, tendo à frente a ASN, o STICMB,
o Sindicato dos Bancários, o Sindicato dos Professores e outros,
convocou uma concentração em frente ao Palácio do Planalto pa-
ra pedir ao presidente João Goulart a publicação e aplicação ime-
diata de tais medidas. O movimento mobilizou os funcionários
das fundações da cidade (Hospitalar, Educacional, Serviço So-
cial, Zoobotânica e Cultural) que terminam, alguns dias depois,
por deflagrar uma greve pela promulgação dos decretos de muni-
cipalização. O movimento termina com a publicação desses de-
cretos.
Em junho, é divulgado um manifesto de entidades sindicais e
culturais da cidade lançando o nome de Oscar Niemeyer a pre-
feito de Brasília. Até o final daquele ano realizaram-se ainda duas
mobilizações gerais que envolveram o movimento sindical. A
primeira, ainda em junho, em protesto pela demissão, pelo pre-
feito, do engenheiro Cornélio Pimenta do Departamento de Água
e Esgotos da Novacap. Essa demissão abriu uma crise política na
cidade, com quatrocentos demissionários encabeçados por Oscar
Lutas sociais: populismo e democracia: 1960/1964 159

Niemeyer e Lúcio Costa, e deu início a uma greve-tartaruga” na


Novacap. A Comissão Permanente das Entidades Sindicais, Pro-
fissionais, Estudantis e Camponeses de Brasília lança um manifesto
de apoio ao engenheiro demitido e volta a se pronunciar pedindo
um posicionamento do presidente João Goulart. Há ameaça de
greve e manifestações de solidariedade ao prefeito. A segunda
mobilização ocorre em agosto, a partir de um ato promovido por
estudantes e operários em protesto contra o aumento de passagens
de ônibus urbanos, que desaguou em conflitos com a polícia e re-
sultou em mais de cinquenta feridos. O prefeito cancelou o au-
mento de passagens em reunião com estudantes e operários e ins-
tituiu uma comissão com representantes estudantis e sindicais pa-
ra estudar o reajuste das tarifas. Estudantes entram então em gra-
ve pela punição aos policiais agressores e a Comissão Permanente
das Entidades Sindicais convoca um dia de protesto, exigindo, em
nota oficial, a punição dos responsáveis e acusando o prefeito.
Ainda neste mesmo ano, o movimento cristão também se afirma
em Brasília: em maio é anunciada a realização do I Congresso de
Trabalhadores e Estudantes Cristãos de Brasília.
Brasília foi marcada, ainda em 1963, pela chamada “revolta
dos sargentos”. Ocorrido em 12 de setembro, esse levante teve
como motivo a decisão do Supremo Tribunal Federal de cassar a
elegibilidade dos sargentos. Em protesto, eclodiu uma rebelião de
sargentos da Marinha e da Aeronáutica, quando foram tomados o
Ministério da Marinha, a Base Aérea de Brasília e alguns prédios
públicos, como a central telefônica sul. Esse movimento, que teria
recebido, segundo uma matéria do Correio Braziliense, o apoio
da Comissão Permanente das Entidades Sindicais, assim como de
parlamentares da Frente Nacionalista, foi rapidamente sufocado,
deixando, entretanto, dois mortos e vários feridos. A repressão e
os impactos do levante foram acompanhados pela imprensa até
março de 1964.
Em 1964, emergiu na cidade um importante movimento po-
pular gerado pelo problema do desemprego. O agravamento da
crise econômica não vinha sendo acompanhado de nenhuma me-
dida efetiva do governo, apesar de objeto de campanhas sindicais
desde 1962. Neste contexto, os trabalhadores desempregados,
buscando o desenvolvimento de estratégias de sobrevivência,
formaram, no início de março, as chamadas “turmas da boa-vonta-
160 Luciana Jaccoud

de”. Organizando-se por conta própria, compraram ferramentas e


passaram a realizar um trabalho de limpeza das ruas das cidades-
satélites, na expectativa de uma gratificação da Prefeitura. Inicia-
da em Sobradinho com cerca de quatrocentos homens, a idéia es-
palhou-se, chegando a mobilizar, segundo o jornal, seis mil e
quatrocentos operários desempregados. O STICMB, apesar de
não interferir na organização dos trabalhos, apoiou a iniciativa e
reclamava junto à Prefeitura quando ocorriam atrasos de paga-
mento. Esse clima de mobilização e de crise social deu origem às
enormes manifestações que tomaram conta da cidade entre 18 e
20 de março. Provocado pelo descontentamento de desepregados
das “turmas da boa-vontade”, que não estavam recebendo da Pre-
feitura conforme esperavam, o movimento passou a ter a adesão
dos demais desempregados e se avolumou com a coincidência da
greve da construção civil que então ocorria.

Os protestos se iniciaram no dia 18, com a realização de diver-


sas manifestações que atingiram principalmente Taguatinga, o
Núcleo Bandeirante e a esplanada dos Ministérios. Na manhã do
dia 18 cerca de dez mil pessoas isolaram Taguatinga do Plano-
Piloto. O movimento começou, ali, com uma passeata de traba-
lhadores da construção civil. Transformada num comício, o mo-
vimento cresceu. A estrada para o Plano-Piloto foi bloqueada e
ocorreram manifestações durante todo o dia em diversos pontos
daquela cidade-satélite. Paralelamente, aconteciam duas outras
grandes concentrações. No Núcleo Bandeirante, cerca de cinco
mil pessoas depredaram a subprefeitura local. Foram bloqueadas
as estradas e durante o dia realizaram-se comícios-relâmpago em
que os manifestantes reivindicavam comida, trabalho e moradia.
Aí o movimento começou com a revolta dos trabalhadores da
turma da boa-vontade”, por não terem recebido o pagamento de
seus serviços referentes à segunda quinzena. Na esplanada dos
Ministérios, terceiro ponto de mobilização dos trabalhadores, a
concentração ocorreu no canteiro de obras do Tribunal de Contas
da União, onde cerca de dois mil operários da construção civil,
em seu terceiro dia de greve, reivindicaram a fixação do salário-
mínimo local em 72 mil cruzeiros. Uniram-se a eles centenas de
desempregados solicitando às autoridades públicas emprego e
comida. Cerca de três mil pessoas realizaram uma passeata pela
Lutas sociais: populismo e democracia: 1960/1964 161

esplanada, transformando em protesto público a grave questão so-


cial do período.
Em resposta ao movimento, ainda no dia 18, a Prefeitura de-
cidiu criar frentes de trabalho com a absorção de até trezentos
operários por dia, já a partir do dia 19, e acenou com a possibili-
dade de adiantamentos salariais em forma de gêneros alimentí-
cios. No entanto, novas manifestações foram registradas nos dias
19 e 20. Milhares de pessoas saíram novamente às ruas em Ta-
guatinga e no Núcleo Bandeirante, onde eclodiram agitações, co-
mícios, ameaças de depredação e choques com a polícia. A efer-
vescência atingiu também a Vila Planalto. Reuniões de autorida-
des com líderes sindicais e populares chegaram a um compromis-
so visando ao fim das manifestações: instalação de um serviço de
triagem e colocação de desempregados, abertura de novas frentes
de trabalho e instalação nas cidades-satélites de postos de lista-
gem e encaminhamento de desempregados às firmas construtoras
que mantinham contratos de obras com o governo.
Esses movimentos, que marcaram de forma profunda a cidade
em seus primeiros anos, representavam aqui o processo, vivido
nacionalmente, de inserção do movimento popular no quadro po-
lítico do país. Canalizados em alguns momentos por problemas
locais, e em outros por temas nacionais, sua ação teve, em qual-
quer caso, o mesmo sentido de ocupação do cenário político leva-
do à frente, naquele período de crise do desenvolvimentismo e da
democracia populista, pelas classes populares.

Populismo e reivindicações populares em Brasília

A partir do levantamento realizado sobre a organização e a


mobilização popular desenvolvida em Brasília no período
1960-1964, pode-se perceber com clareza uma mudança no cará-
ter das reivindicações formuladas e nos tipos de organizações que
dirigiam as lutas sociais de então. Analisando esse processo, pre-
tende-se avançar na compreensão da trajetória dos movimentos
populares do Distrito Federal no período. De fato, seja de forma
mais organizada, no que chamamos comumente movimentos so-
ciais”, ou desorganizada, em ações esporádicas, desarticuladas ou
violentas, as classes populares constroem canais de participação e
reivindicação perante a sociedade e o Estado. Busca-se aqui apre-
162 Luciana Jaccoud

ender as transformações pelas quais passaram as formas de parti-


cipação social e política daquelas classes em Brasília.
Duas questões são aqui destacadas. A primeira concerne ao
tipo e às características das reivindicações apresentadas. A se-
gunda se refere à construção de formas para sua expressão e ca-
nalização e à negociação dessas reivindicações, ou seja, sua colo-
cação não só como objeto de demanda como também de delibera-
ção, quer do Estado, quer de outras classes sociais. Reagindo às
condições de vida a que estão sendo submetidas, mobilizando-se
a partir das carências cotidianas e das contradições sociais viven-
ciadas, as classes trabalhadoras manifestam-se através de movi-
mentos nem sempre de caráter puramente defensivo. Confrontan-
do-se com outras forças sociais e políticas, assim como com o
Estado e seus nichos institucionais, suas demandas e mobilizações
podem politizar-se, forjando novos canais de participação no ce-
nário social e político, alargando o exercício de manifestação da-
quelas classes e recuperando a cidadania como prática política.
A inauguração de Brasília, com o início de sua operação co-
mo centro da máquina político-administrativa do país, foi seguida
da conseglente expectativa de funcionamento urbano da cidade,
substituindo seu caráter de “canteiro de obras”. Aguçaram-se, en-
tão, três graves problemas, a saber, as invasões, a falta de mora-
dias para o funcionalismo público e a carência de infra-estrutura
urbana, desvendando-se, ao mesmo tempo, o caráter excludente
da cidade e de seu traçado urbano, assim como do sistema socioe-
conômico que ela representava.
Como afirma Vesentini, a “transferência da capital federal do
Brasil para o “retângulo Cruls” deu-se no interior de um processo
de luta de classes como ato voltado para o reforço da dominação.
A construção de Brasília ligou-se a uma superexploração da força
de trabalho, a uma intensificação no ritmo de crescimento indus-
trial sob a cobertura de ideologias nacional-desenvolvimentistas.
Exorcizou-se o conflito capital/trabalho em nome do “esforço na-
cional” de desenvolvimento. Omitiu-se a divisão social de classes
para se glorificar o “poder criador do povo”? (Vesentini
1986: 147-148). Assim, as críticas à transferência da nova capital
“quer fossem os reclamos de trabalhadores das obras de edifica-
ção da cidade, quer fossem denúncias parlamentares sobre favo-
recimento ou outras irregularidades na construção de Brasília, ou
Lutas sociais: populismo e democracia: 1960/1964 163

ainda quaisquer objeções à transferência da capital federal para o


“sertão despovoado”””, eram rapidamente consideradas reacioná-
rias em face do caráter “técnico” e “científico”, logo “progressista”,
de que se revestia o planejamento da cidade (idem, p. 136-137).
A vivência urbana, todavia, impunha à cidade a confrontação
com sua realidade de desigualdades. A ocupação do espaço urba-
nisticamente planejado implicou a emergência e a explicitação das
contradições e carências trazidas no bojo deste projeto e da ideo-
logia que o sustenta. Estas se refletiam não só na segregação es-
pacial das populações mais pobres, como também na estratifica-
ção urbana ocorrida no próprio Plano-Piloto, nos critérios exclu-
dentes quanto à venda de lotes ou de acesso aos imóveis residen-
ciais, ou na desigualdade na distribuição e alocação de bens e
serviços de infra-estrutura urbana.
É nesse contexto, com o desenvolvimento das reivindicações
por moradia, infra-estrutura urbana e participação nos processos
de remoção e assentamento, que surge um significativo movi-
mento popular organizado por associações de moradores que en-
tão emergem, tanto nas principais invasões, quanto nas cidades-
satélites. Este movimento contou com o apoio das organizações
trabalhistas nascentes, particularmente do Sindicato dos Traba-
lhadores da Construção Civil e do Mobiliário e da Associação dos
Servidores da Novacap, que nele se empenhariam dada a impor-
tância da presença das respectivas categorias naqueles núcleos
populacionais. De fato, nos primeiros meses do período estudado,
o movimento trabalhista e sindical tinha nas reivindicações por
moradia um ponto basilar de luta.
Essa trajetória do movimento popular, cuja prioridade estava
nas lutas por moradia e infra-estrutura, respondendo à problemá-
tica urbana e social que se constituía na cidade, foi sendo substi-
tuída progressivamente a partir de meados de 1961. Passam então
a se destacar as lutas de caráter mais nitidamente trabalhista.
Como marco desse processo, podemos indicar a campanha contra
o desemprego que já se inicia no primeiro semestre de 1961. Se o
curto governo de Jânio Quadros significou para a cidade drástica
redução no ritmo das obras de construção da nova capital, o go-
verno Goulart não reverteu essa tendência, fortalecida pelo apro-
fundamento da crise econômica. A pressão crescente do movi-
mento sindical, no sentido de encaminhar propostas favoráveis às
164 Luciana Jaccoud

classes trabalhadoras e a fortalecer sua capacidade de pressão so-


bre o poder público, dava prioridade às lutas salariais, mas abria,
paralelamente, cada vez mais espaço para sua participação no ce-
nário político.
Nesse sentido, a realização do I Encontro Fraternal Sindical
dos Trabalhadores de Brasília, em maio de 1962, com a criação
da Comissão Permanente das Entidades Sindicais, Profissionais,
Camponesas e Estudantis de Brasília, pontua bem o processo em
desenvolvimento. Este processo representa o esforço de articular
as lutas trabalhistas e sociais específicas com questões políticas
mais gerais. Tal trajetória passa tanto pela crescente participação
no quadro político local — o que, de fato, já ocorria em Brasília
desde seu início, mas se acentua a partir daquele momento —, co-
mo pela atuação no plano nacional.
A presença do movimento popular, e mais especialmente do
movimento sindical, nas lutas políticas do período se insere no
processo da crise do populismo que ocorria no país. Já compro-
metido como “estilo de governo”, com seu correspondente projeto
de desenvolvimento nacional, e como “política de massas'é, o po-
pulismo provocava, no bojo de sua crise, uma ambígua relação
Estado-classe trabalhadora. A democracia populista, com o pro-
gressivo avanço do processo democrático, que permitia a organi-
zação da classe trabalhadora e a politização das reivindicações
sociais, passa a presenciar o enfraquecimento do controle do Es-
tado sobre os movimentos populares. Paralelamente, entretanto, o
Estado ainda se mantém, para aquelas classes, como o interlocu-
tor político privilegiado, para o qual canalizam as demandas po-
pulares e do qual sairiam as conquistas almejadas. Nessa crise do
populismo como mecanismo de dominação, onde nem as classes
subalternas conseguem fazer emergir um projeto próprio de trans-
formação social, nem o Estado é mais capaz de impor-lhes um
projeto nacional, o Executivo partiu de propostas desenvolvimen-
tistas e distributivas para um projeto cada vez mais reformista, não
conseguindo superar a crise do Estado burguês tal como ele se
constituíra no período da democracia populista. Nesse contexto se
colocava a questão da relação Estado-movimentos populares. Ca-

6. Quanto à caracterização do populismo como “estilo de governo” e “política de mas-


sas”, ver Weffort (1980):
Lutas sociais: populismo e democracia: 1960/1964 165

da vez mais fragilizado com a crise do populismo-desenvolvi-


mentista, o governo procura o apoio progressivo das forças po-
pulares, marcando ainda mais fortemente a ambiguidade das rela-
ções com as classes trabalhadoras, que buscavam seu fortaleci-
mento perante o poder público.
Em Brasília, esse processo era aguçado pelas características
próprias da organização social e política da cidade. A ausência de
mediadores políticos na relação dos movimentos populares com o
Estado é marcante, sendo aprofundada pela inexistência de repre-
sentação política. A relação com o Estado, por parte das classes
trabalhadoras, sempre se deu diretamente, e, com frequência, se-
quer passava pelo Executivo local.
Juscelino Kubitscheck deu início a este processo, corporifi-
cando para Brasília, ao mesmo tempo, dois papéis: o Estado,
centro de decisão da ação pública, e o protetor, a figura paterna
de quem a cidade era a obra. A ele deviam ser enviadas as reivin-
dicações populares, e não só as de caráter urbano mas também as
demandas trabalhistas e sociais, pois, mais que um vínculo com a
obra, Kubitscheck transparecia um vínculo com o povo de Brasí-
lia, que havia respondido a seu chamado e se instalado no frio e
vazio planalto central. A ele eram enviados os memoriais, as car-
tas-abertas, as reivindicações, enquanto ele de fato procurava as-
sumir e personalizar o atendimento às demandas populares, como
tão bem exemplificam as soluções dos problemas da remoção do
Núcleo Bandeirante e de moradia dos servidores da Novacap e
dos radialistas após as invasões de apartamentos por eles prota-
gonizadas. No entanto, se ao governo federal cabiam as gestões
quanto à solução dos problemas trabalhistas e sociais e ao presi-
dente da República a decisão final “mediadora”, ao governo local
cabiam as políticas de implantação da cidade que se revestiam de
maior ônus social, como as polêmicas medidas de remoção de in-
vasões. Era a face obscura do populismo em Brasília.
Durante o curto governo de Jânio Quadros, o Executivo fede-
ral não assumiu a gestão dos problemas de Brasília. O governo
local passou a incorporar, perante a cidade, maiores poderes, e o
prefeito Paulo de Tarso se transformou no interlocutor principal
para as organizações populares. Se mesmo neste período muitas
das reivindicações eram dirigidas diretamente ao presidente da
República, o que cabe ressaltar é que, se o governo federal man-
166 Luciana Jaccoud

tinha sobre Brasília, da mesma forma que no período de Jusceli-


no, um amplo controle, a esfera de pressão e negociação se deslo-
ca para a Prefeitura. Esse caráter do governo local pode ser bem
analisado no decurso da luta contra a remoção do Núcleo Bandei-
rante, a mais importante entre as desenvolvidas no período. É in-
teressante observar, ainda, que neste momento cresce a importân-
cia do Congresso no respaldo às lutas populares, e como media-
dor em suas relações com o Poder Executivo, dado, principal-
mente, o caráter autoritário que o Estado passa a assumir.
Com o governo João Goulart, o Executivo federal volta a ter
papel preponderante junto às reivindicações populares. Isso ocor-
re mesmo durante o período parlamentarista e se deve tanto ao
crescimento e à politização das reivindicações populares como ao
grande interesse do presidente da República em aumentar seu
apoio popular. Este fato é bem exemplificado pelo posiciona-
mento de Goulart diante da greve dos professores ocorrida em
maio de 1962, que, antecedida por uma invasão de casas, buscava
solução para seu problema de moradia. Manifestando simpatia pa-
ra com as reivindicações apresentadas e empenhando-se em con-
tatos com as lideranças, Goulart acaba por receber agradecimen-
tos públicos dessa categoria profissional. Assim, como em vários
outros eventos, Goulart passa a receber e negociar as demandas
populares, buscando, com a abertura do canal direto com o Esta-
do, seu fortalecimento político. Mas este é um fortalecimento re-
lativo. No bojo da crise do populismo, o Estado já não era capaz
de manter senão apoios parciais seguidos de pressões populares
cada vez maiores, que desaguavam nas ambigiiidades do projeto
nacional-reformista.

Neste contexto ampliou-se, entre 1962 e 1964, o processo de


mobilização e organização popular em Brasília. O crescimento da
participação em questões políticas mais gerais e da politização
das reivindicações populares na capital correspondia, de fato, ao
processo de mobilização política crescente no país, e era seguido
de uma ampla articulação com o movimento sindical nacional e
com as bandeiras em defesa da democracia nacionalista e das re-
formas de base. O projeto reformista crescia dentro do movimento
sindical e também do movimento popular, dando-lhe uma grande
coesão em nível de direção.
Lutas sociais: populismo e democracia: 1960/1964 167

Nesse quadro, o que parece deter a especificidade do movi-


mento local foi sua particular ambigiiidade em face do Estado.
Em Brasília, o Estado acumulava os papéis de “defensor” das cau-
sas populares, mediador de conflitos e sujeito contra quem são
apresentadas as reivindicações populares. Não existiam mediado-
res políticos para participar da negociação das demandas sociais,
nem confrontação com outros atores. O Estado, visto ao mesmo
tempo como litigante e decisor, só podia ser atingido por pressão
direta e, em alguns casos, com ajuda do Congresso Nacional, on-
de não havia, contudo, representantes locais. Não havia, tampou-
co, níveis distintos de decisão no aparelho de Estado aos quais se
pudesse recorrer ou incorporar em momentos distintos da luta po-
pular. O presidente da República e o prefeito do Distrito Federal,
por ele nomeado e mantido, acabavam por representar um mesmo
núcleo de poder, ainda quando assumindo papéis distintos. As
constantes ameaças a que estava submetida a democracia nacio-
nalista, assim como o interesse do governo reformista de Goulart
em responder favoravelmente às reivindicações populares esti-
mulavam a adesão e o apoio por parte dos movimentos sociais. O
relacionamento e a negociação com o Estado tornam-se assim um
espaço pouco definido, onde, obscurecidos os demais atores so-
ciais, confrontam-se e parecem definir-se as grandes questões sob
as quais se batem no período as classes populares: a democracia,
o desenvolvimento econômico e as transformações sociais.
No desenvolvimento desse processo histórico de mobilização
e organização popular, assentado no aguçamento das reivindica-
ções específicas de movimentos ou categorias profissionais e na
politização das demandas populares, emerge uma significativa
reação conservadora. Com o golpe militar de 1964, implacável
repressão caiu sobre as organizações sindicais e populares no
Distrito Federal. O controle da cidade, de seu povo e de seu es-
paço antecedeu o domínio da tecnocracia e de seu milagre eco-
nômico. E daí a ilusão do “silêncio”, que só será quebrada com o
final da década de 70.

Conclusão

Os movimentos populares desenvolvidos em Brasília no iní-


cio dos anos 60 representam não só uma importante face da histó-
168 Luciana Jaccoud

ria da cidade e de seus moradores como também ajudam a expli-


car o embate mais amplo que emergiu no país no fim do período
da chamada democracia populista. Se a cidade ainda tem um am-
plo resgate a fazer das lutas sociais e movimentos reivindicativos
ocorridos no início desse decênio, que tinham como objetivo de-
mocratizar o acesso a bens e serviços. urbanos e melhorar as con-
dições de vida e de trabalho, cabe também afirmar que esse pro-
cesso está inscrito no cenário de desenvolvimento e crise da de-
mocracia populista, assim como da própria ideologia do nacional-
desenvolvimento naquele período.
A memória da cidade e de suas lutas, imbuída das figuras mí-
ticas do candango, do pioneiro e do “desenvolvimento”, está tam-
bém cercada de imagens referentes à luta pela ocupação do espa-
ço, seja este conceito referido ao espaço físico e urbano e à se-
gregação dele decorrente, seja à hierarquia social aqui construída
e suas oportunidades socioeconômicas. A organização destas
imagens mostra que Brasília, mais do que símbolo do desenvol-
vimentismo populista dos anos 50 e 60, era seu próprio retrato,
revelado seja na monumentalidade das obras arquitetônicas versus
a organização injusta do espaço, seja na proposta de progresso
contraditada por suas acintosas desigualdades sociais e urbanas. É
assim que, buscando maior igualdade social e também maior de-
mocratização do Estado e do sistema político, as lutas populares
travadas nos primeiros anos de vida de Brasília fazem emergir as
ambigiidades e contradições da cidade, como também do modelo
político e social do país.
O MOVIMENTO PRÓ-FIXAÇÃO E URBANIZAÇÃO
DO NÚCLEO BANDEIRANTE: A OUTRA FACE
DO POPULISMO JANISTA

Nair Heloísa Bicalho de Sousa

Brasília: imaginário e realidade

A história tem sido escrita pelos vencedores. Esta questão bá-


sica significa a elaboração de uma versão dos fatos permeada pelo
silêncio dos vencidos, dos dominados (De Decca 1984). Passa-se
às gerações posteriores uma imagem deste passado pautada nas
celebrações da vitória, nas comemorações oficiais impregnadas
dos valores, crenças e práticas dos dominadores.
Brasília, como meta-síntese de uma proposta desenvelvimen-
tista de crescimento e integração nacional, foi apresentada à na-
ção envolta em um imaginário épico constituído pela idéia de
'marcha para o oeste'l, na qual se mescla a figura simbólica dos
bandeirantes. Nas palavras de Kubitsheck (1959) “o que agora
estamos fazendo é fundar a nação que os bandeirantes conquista-
ram [...]) E o que lhes quero dizer é que a mentalidade que eles
deixaram felizmente não desapareceu do Brasil, e aqueles que
quiserem percorrer milhares de quilômetros para conhecer o que o
governo está realizando em pleno coração do Brasil irão aí en-
contrar o mesmo espírito e a mesma decisão daqueles que há mais
de três séculos começaram a desafiar o mistério insondável deste
imenso continente.” Este imaginário de grandiosidade, força e
determinação, centrado no “bandeirantismo”, alimenta a constru-
ção das categorias de 'candangos” e “pioneiros” (Ribeiro 1980)
como substitutas dos antigos desbravadores, transferindo para a

1. Sobre esse assunto ver Esterci, Neide, O mito da democracia no país das bandeiras,
1971 (mimeo.) e Ricardo, Cassiano, Marcha para o oeste: a influência da bandeira
na formação social e política do Brasil, Rio de Janeiro, José Olympio, 1940.
170 Nair Heloísa Bicalho de Sousa

obra de construção da nova capital a mística da conquista e do


destemor.
Este discurso apelativo, de caráter nacional-desenvolvimen-
tista, recobriu um processo capitalista de internacionalização da
economia brasileira, criando um clima harmônico e mobilizador
em torno da meta-síntese do programa governamental e garantin-
do unidade e empenho em torno da grande obra, através de uma
imagem rica de significados heróicos sustentados na versão da
história oficial do país.
A ação do Estado em Brasília assumiu um caráter negociador
e conciliador no período populista (1960-1964), arbitrário e re-
pressivo na fase autoritária (1964-1985), alcançando nesta última
uma dimensão simbólica de “reino da tecnocracia” (Oliveira,
1976), uma urbe sem cidadãos, ou seja, sem reivindicações ou di-
reitos. A ausência de representação política foi um elemento adi-
cional para acentuar a relação de distância entre o Estado e os ci-
dadãos. Se na democracia populista era comum buscar a solida-
riedade dos parlamentares para as causas sindicais e populares, no
período autoritário esta possibilidade se desfez à medida que não
só o Congresso não refletia uma composição de interesses de base
popular, como também a atuação destes na cidade não oferecia
vantagens para a disputa eleitoral.
É importante lembrar que seu passado registra momentos de
intensa mobilização popular, seja no nível de categorias profis-
sionais, seja de moradores e funcionários. Se a história é escrita
pelos vencedores, ficou para Brasília o registro oficial de sua
construção e consolidação feito pelo Estado. Daí também a força
das imagens de “silêncio”, “ausência de participação”, “parasitismo”
e “despolitização”. Resgatar este passado através da trajetória do
Movimento Pró-Fixação e Urbanização do Núcleo Bandeirante é
uma forma de recuperar o significado das lutas sociais e contribuir
para criar uma tradição que permita articular as questões do pre-
sente com este passado vivido coletivamente, porém ausente da
memória social de seus moradores.

O governo Jânio Quadros em Brasília: a ruptura do modelo


cooptação/clientelismo

O Movimento Pró-Fixação e Urbanização do Núcleo Bandei-


rante abre uma discussão interessante no contexto do populismo.
O movimento pró-fixação do Núcleo Bandeirante 171

Sem propor uma revisão da literatura a respeito, cabe apontar os


elementos da análise sobre o populismo que se tornam úteis para
a elaboração de algumas hipóteses sobre o movimento.
Para Weffort (1978) o processo de incorporação das massas
populares na política brasileira data de 1930, momento do início
da pressão dessas junto ao aparelho do Estado. A partir de 1945
há uma influência indireta delas na composição e renovação das
elites, sem assumir um compromisso político com as mesmas. O
crescente processo de urbanização pós-1945 torna as cidades o
palco da ação política que, aliado à pequena penetração dos par-
tidos políticos junto às classes populares, resulta em condições
facilitadoras do exercício do jogo político de estilo populista.
Admitindo que “classes sociais determinadas tomam em da-
das circunstâncias históricas a aparência de massa”, Weffort
(1972:26) atribui ao populismo a situação histórica de disponi-
bilidade política do proletariado e da pequena burguesia de forma
a permitir o “fenômeno de massas”. É o momento em que o Esta-
do, representado através de um líder, articula-se diretamente com
os indivíduos que compõem a massa. Esses o seguem não por ra-
zões político-ideológicas, mas principalmente pelas qualidades
reais ou imaginárias que atribuem à figura do chefe.
Para Moisés (1979), o processo de desenvolvimento capita-
lista a partir de 1930 e principalmente após 1950 define uma
atuação do Estado inicialmente voltada para a regulação dos fato-
res de produção e posteriormente para a de investidor direto nas
indústrias de base da economia capitalista industrial, deixando a
descoberto uma série de serviços de consumo coletivo e criando
condições para um processo reivindicatório por parte das classes
populares urbanas.
Neste contexto, o populismo define-se como uma “política
destinada a estabelecer algum tipo de ligação entre as massas ur-
banas com os setores encastelados no Estado” (Moisés 1979: 29).
Este processo político conviveu com mobilizações de moradores
urbanos, especialmente das periferias, que pressionavam o Estado
em busca da solução de problemas concretos, como foi o caso das
sociedades de amigos de bairro de São Paulo.
Lideranças como a de Ademar de Barros (patriarcal) e Jânio
Quadros (carismática) foram impulsionadoras da manifestação
política das massas urbanas em São Paulo, cada qual sensibili-
11572, Nair Heloísa Bicalho de Sousa

zando setores sociais específicos? Para Weffort, o janismo e o


ademarismo constituíram formas populistas “espontâneas” onde
estão presentes elementos da ideologia popular que revelam os
limites da consciência pequeno-burguesa”. Mantendo este hori-
zonte pequeno-burguês, reconhece especificidades no caráter de
classe e na própria ideologia veiculada através da liderança ca-
rismática de Jânio Quadros e Ademar de Barros.
No caso de Jânio, destaca a presença de um eleitorado cujo
otimismo em relação às condições de vida pós-45 articulava-se
com ““'uma insatisfação de natureza mais profunda”. Classe média
assalariada e operários gerados no bojo do desenvolvimento ca-
pitalista manifestavam uma reivindicação por justiça, ao invés de
favores pessoais. Aí entrou em jogo o discurso moralista (“tostão
contra o milhão”) que alimentava uma “mentalidade desencanta-
da que encontra expressão nos ares do ascetismo rigoroso do lí-
der, autoritário, implacável, mas supostamente justo” (Weffort
1978: 35). Sem romper com a consciência pequeno-burguesa, o
janismo atuava como mistificador da realidade para a as massas
urbanas, apelando à violência verbal e ao ideal de justiça como
instrumentos de formação de uma base eleitoral. A ausência de
uma organização partidária tornava a figura de Jânio ainda mais
carismática e modelar do esquema clientelista e manipulador, on-
de o líder fazia promessas em troca do controle da ação das mas-
sas.
A experiência do populismo janista em São Paulo expressa
para Moisés (1979: 29) um dos raros momentos em que o Estado
preocupou-se com as contradições geradas pelo desenvolvimento
capitalista nas cidades, estabelecendo através dos aparatos locais
públicos uma “ligação para baixo”, atendendo parcialmente às
reivindicações populares urbanas?. Jacobi (1983) reforça a idéia

2. Segundo Weffort, o janismo desenvolveu-se mais em áreas urbanizadas e indus-


trializadas com forte presença dos setores assalariados, principalmente operários e
classe média assalariada, enquanto o ademarismo se fez mais presente junto a seg-
mentos marginais ao processo de desenvolvimento capitalista, especialmente pe-
quenos proprietários e setores assalariados de tipo lumpen. (Weffort, F. C., “Raízes
sociais do populismo em São Paulo”, Revista Civilização Brasileira, nº 2, maio,
1965.)
3. Weffort toma a pequena-burguesia como “classe paradigmática para a explicação
do comportamento de massa” (Op. cit., 1965, p. 48).
4. Cabe lembrar que a postura do Estado no período populista de “provedor” das ne-
cessidades gerais e ao mesmo tempo legitimador das reivindicações urbanas, por
O movimento pró-fixação do Núcleo Bandeirante IS

do desempenho janista na década de 50 em São Paulo, relacio-


nando sua articulação com a periferia, propondo incorporá-la à
cidade através de investimentos e melhorias especialmente na in-
fra-estrutura. Esta postura implicava manter uma relação cliente-
lista com os bairros periféricos, sustentada nas lideranças dos bair-
ros que exercitavam uma manipulação demagógica com as massas
populares.
O Movimento Pró-Fixação e Urbanização do Núcleo Bandei-
rante parece expressar uma contradição presente no governo Já-
nio em 1961. Tratando-se de uma cidade implementada por
Kubitscheck, a recém-fixada população urbana, composta majo-
ritariamente por migrantes de Minas Gerais, Goiás e da região
Nordeste, constituía um eleitorado em potencial de Juscelino.
Quadros de certa forma percebia a presença da ideologia desen-
volvimentista combinada às expectativas e esperanças de um futu-
ro melhor junto aos moradores da nova capital. Neste ponto, a fi-
gura carismática de Kubitscheck junto aos brasilienses era imba-
tível. De outra parte, tinha um eleitorado fiel em São Paulo e nos
diversos estados do país. Investir politicamente neste espaço ur-
bano comprometido com Juscelino era sem dúvida bastante des-
gastante, pois exigia um longo trabalho político direto com as
massas. Aliás, a cidade ainda não tinha massas, os aglomerados
urbanos estavam em processo de formação, e era preciso um certo
tempo para colocar na cena pública alguns milhares de seguido-
res, fato tão cotidiano na cidade de São Paulo.
Havia ainda um agravante: a legislação referente à nova ca-
pital não previa eleições. Por motivos não totalmente conhecidos,
ficou definida durante o governo de Juscelino Kubitscheck a
postergação do processo eleitoral em Brasília. Os brasilienses de-
veriam se submeter à indicação do prefeito e subprefeito pela
área federal, mantendo-se privados do exercício do voto livre pa-
ra a escolha de seus govemmantes.
Dentro deste contexto de hipóteses parece fazer sentido a
atitude adotada pelo governo Jânio Quadros diante da reivindica-
ção de fixação e urbanização do Núcleo Bandeirante. Juscelino

não permitir a realização plena das últimas, acabou por agravar as relações entre o
Estado e as massas populares.
174 Nair Heloísa Bicalho de Sousa

havia aceito oralmente a proposta de manter a antiga Cidade Li-


vre, cuja duração — segundo os planos iniciais — deveria coincidir
com a inauguração da nova capital. Nesta etapa de planejamento
não se previram as redes de relações sociais, econômicas e políti-
cas que uma cidade como o Núcleo Bandeirante constituiria du-
rante o período-chave da construção.. Diversos investimentos fo-
ram feitos na área, inclusive construções de alvenaria, havia
clientela para o extenso comércio e rede bancária, além de equi-
pamentos sociais e culturais. O Núcleo Bandeirante foi um esteio
básico no processo de construção da capital, um pólo de aglutina-
ção dos trabalhadores dos diversos canteiros de obras nos finais
de semana, e um ponto de referência para os migrantes que vie-
ram em busca de trabalho e de uma vida melhor.

Durante a campanha presidencial, Jânio esteve em comício no


Núcleo Bandeirante prometendo torná-lo “uma segunda Vila Ma-
ria”. Esta proposta foi ao encontro do desejo coletivo de fixação
e garantiu-lhe inúmeros votos. Uma vez presidente, manifestou-se
contrário a sua fixação e encarregou o prefeito do Distrito Fede-
ral, Paulo de Tarso, de executar uma política de transferência dos
comerciantes para a Asa Norte (bairro do Plano-Piloto) e dos fa-
velados (“invasores”) para as cidades-satélites.

Esta atitude de seu governo parece se explicar em parte atra-


vés das especificidades da situação de Brasília no cenário políti-
co-eleitoral do país. Reconhecendo a penetração da figura de Ku-
bitscheck na área do Distrito Federal, agravada pela proibição de
eleições na nova capital, Jânio retira sua máscara populista, útil
para lidar com um eleitorado servil, e mostra apenas o perfil con-
servador de sua política: repressão, intimidação e violência contra
os moradores que se organizaram através do Movimento Pró-Fi-
xação e Urbanização do Núcleo Bandeirante.

Compreendendo o voto como mediação fundamental da rela-


ção entre líder e massas populares no esquema populista, Brasília
estava realmente fora do interesse imediato dos políticos. Neste
caso, a relação clientelista perdia seu fundamento real e abria es-
paço para outras prática ocultas na face conservadora do governo
janista.
O movimento pró-fixação do Núcleo Bandeirante 175

Fontes

Coleta de dados junto ao arquivo do jornal Correio Braziliense

Este trabalho faz parte de um projeto denominado Memória


Social de Brasília, sob coordenação conjunta com Luciana de
a Jaccoud, contando com o apoio da Fundação Pró-Memó-
ria” e do CNPq. Iniciada em 1986, o levantamento de dados do
período 1960-1964 junto ao Gereia Braziliense teve a colabora-
ção de auxiliares de pesquisa”, de finindo como eixo os movi-
mentos populares rurais e urbanos do Distrito Federal deste pe-
ríodo.
A partir desta etapa preliminar foi possível identificar os
principais agentes sociais envolvidos no Movimento Pró-Fixação
e Urbanização do Núcleo Bandeirante, assim como levantar in-
formações preciosas sobre os acontecimentos de 1961, momento
de ápice deste movimento.

O trabalho de campo

Dispondo das primeiras informações pela imprensa, passamos


a efetuar um contato telefônico a partir dos nomes das duas dire-
torias do movimento. Localizado o primeiro informante, fizemos
uma entrevista a partir da qual foi possível verificar o paradeiro
dos membros da diretoria, constatando que a maioria já havia fa-
lecido. Reordenamos a lista dos entrevistados em função dos que
estavam vivos e com domicílio no Distrito Federal, alcançando
um total de seis informantes, que constituem a fonte básica da
análise dos discursos neste trabalho.
As entrevistas, com uma média de duas horas de duração, fo-
ram gravadas e transcritas, seguindo o seguinte roteiro: dados
pessoais do informante, antecedentes, origem, dinâmica e desfe-

5. O objetivo desta instituição é criar um banco de dados sobre a história social de


Brasília aberto à utilização pública, especialmente pelos pesquisadores e institui-
ções educacionais.
6. Cabe mencionar os relevantes trabalhos realizados por Maria do Socorro Gonçalves
de Macena, Antônio Fernando de A. Sá e Fátima Gomes. Agradecemos também a
contribuição de David Horn Pureza, Wanderlan Rodrigues da Silva e Carlos Wil-
liam Coqueiro.
176 Nair Heloísa Bicalho de Sousa

cho do movimento. Contendo questões específicas sobre cada um


desses tópicos, o trabalho seguiu uma abordagem sociológica,
ainda que mesclada com alguma postura de história oral. O obje-
tivo era iniciar uma experiência de campo que permitisse um certo
treino da equipe” neste estudo de caso, a partir do qual se tentaria
uma avaliação das dificuldades e possibilidades de adotar o enfo-
que da história oral nos demais trabalhos.
Apesar da distância entre o presente e o tempo cronológico
dos acontecimentos principais (1960 e 1961), a memória dos in-
formantes apresentou-se com recordações vivas sobre o movi-
mento, inclusive detalhes do cotidiano da luta, demonstrando o
envolvimento profundo que tiveram com a proposta de fixação e
urbanização da cidade.
Apesar do número relativamente reduzido de informantes, a
profundidade das entrevistas, o detalhamento dos aspectos mais
significativos para a reconstituição do movimento e o material
coletado na imprensa foram elementos que permitiram elaborar
uma versão capaz de compreender em suas diferentes dimensões.
Neste sentido, a narração realizada a seguir corresponde a uma
tentativa de lidar com as versões dos informantes sobre os dife-
rentes agentes sociais e institucionais envolvidos, imbuídas de
valores e significados transformadores do desejo de fixação e ur-
banização em ação concreta capaz de efetivá-lo.

Cidade Livre: uma vivência coletiva solidária

Núcleo Bandeirante ou Cidade Livre? Tudo começou com a


Cidade Livre em 1957...
A [Cidade Livre] surgiu quando o Juscelino decretou a mudança da
capital em Anápolis, que ele veio para aqui com as pessoas de con-
fiança dele, que construiu o Catetinho, começou a fazer o aeroporto e
ele falou pra nação que quem quisesse vir para a Cidade Livre não pa-
gava impostos por quatro anos. Então veio muita gente, chegando a
ter mais de vinte mil pessoas no Núcleo Bandeirante, porque tínhamos
acampamento da Metropolitana ali, era um acampamento grande, sur-

7. Além das duas coordenadoras da pesquisa, participaram do trabalho de campo a so-


cióloga Vera Lúcia Tolendal Gomes Ribeiro e a'antropóloga Ângela Maria Baptis-
ta, '
O movimento pró-fixação do Núcleo Bandeirante 177

giu vilas como a Placa das Mercedes, que hoje não existe mais, foi
arrancada, a Vila Tenório, Vila São José. Então foi assim que surgiu,
através da pessoa de Juscelino, e aí correu a notícia e como até hoje
vem gente pra aqui.
Esta imagem da Cidade Livre, hoje denominada Núcleo Ban-
deirante, permeia o universo simbólico dos moradores com muita
intensidade: Juscelino, o pioneiro, o desbravador, o ponto de par-
tida da construção da nova capital, aparece logo no início do dis-
curso. E o eixo da iniciativa, o ponto de referência do planeja-
mento da grande obra. Para os informantes, a Cidade Livre foi o
pólo aglutinador de migrantes chegados de diversas regiões do
país, que iam se fixando em torno deste povoado de madeira, es-
tilo faroeste. O inchamento deste espaço urbano através de várias
vilas (favelas) foi o resultado imediato do chamamento presiden-
cial, que combinado a certas facilidades econômico-financeiras
permitiu a expansão da área urbana em curto prazo.

Era a Cidade Livre porque você chegava e já botava seu comerciozi-


nho com seu nome, você já iniciava sua vida. Aqui era o centro de
convergência. Daqui era que você ia fichar nas companhias e adquirir
acampamentos ou coisa semelhante. A primeira invasão era isso, aqui.
Era uma explosão danada.
“Montar comércio sem pagar impostos” foi o lema para aque-
les que traziam algum capital para investir na obra pioneira. Po-
rém, para a maioria dos recém-chegados, a alternativa era “fichar
nas companhias” como “peão de obra”, sujeito ao ritmo intenso da
jornada e à precariedade das condições de trabalho (Bicalho de
Sousa 1983: 36-37). Esta combinação de comerciantes e trabalha-
dores assalariados dava à Cidade Livre um aspecto peculiar, re-
forçado pela própria função econômica e social que desempenha-
va junto aos moradores da nova capital. Eixo de articulação com
as áreas fornecedoras de gêneros alimentícios, insumos e bens ne-
cessários à edificação de Brasília, e espaço central da sociabilida-
de candanga, a Cidade Livre era o core da vida econômica, social
e cultural, papel este só superado por Brasília anos após sua
inauguração.
A força das imagens que cercam a vivência cotidiana na Ci-
dade Livre é o elemento principal no desvelamento da figura do
pioneiro e do candango, enfrentando as adversidades por meio da
solidariedade, do companheirismo e do patriotismo. Forja-se um
178 Nair Heloísa Bicalho de Sousa

universo pautado na liberdade, fraternidade, abundância, trabalho


e esperança.

A Cidade Livre daquela época eu chamava “nosso céu”, apesar de não


ter luz, não ter água, da poeira, não ter asfalto. Mas tinha uma grande
amizade. Naquele tempo, tinha amigos. Não sei se era interesse pró-
prio, o que era [...] A gente se comunicava mais. Eu achava que a
gente vivia mais, tinha mais contato, tinha mais alegria. Depois, tem
uma coisa: eu sou parteira e enfermeira, né? Fiz mil e oitocentos par-
tos no Bandeirante. [...] A vida era muito gostosa, era um colosso.
Todos se conheciam e se ajudavam. Não se trancavam as portas. Ha-
via um grande sentido de integração comunitária. O poder aquisitivo
era muito maior que hoje. Havia otimismo e esperança no futuro.
[A vida aqui na Cidade Livre era] ótima, todo mundo ganhava pra vi-
ver com sobra, não era essa inflação que é hoje, o dinheiro sobrava,
um operário ganhava pouco, mas o dinheiro sobrava, ele tinha o rádio
dele, a gente andava nos ônibus alegres. Hoje você vê um povo triste
[...] [O pessoal trabalhava] 18, 20 horas, havia interesse, havia patrio-
tismo. [...] Havia uma confiança, patriotismo, havia espírito de pro-
gresso, de trabalho [...] um ajudava o outro, tinha harmonia [...)

Esse cenário montado através das categorias “a vida era muito


gostosa”, “nosso céu”, “grande amizade”, “todos se conheciam e se
ajudavam”, “não se trancavam as portas” parece expressar uma vi-
são de vida compartilhada, amparada, dividida. A precariedade da
infra-estrutura, o isolamento, a jornada intensa, o cansaço e o
desconforto da vida improvisada aparecem compensados pelas
imagens positivas da vivência coletiva.
A presença súbita do presidente Juscelino Kubitscheck na ci-
dade era um evento significativo para comprometer todos com a
construção da grande obra nacional, fazendo da Cidade Livre um
ponto de relacionamento informal entre governante e governados,
onde a figura carismática de Juscelino fixou-se definitivamente,
conforme o relato do barbeiro Joaquim:

[...] Aí eu estava trabalhando quando chegou um carro preto, um


Aero Willys da Presidência da República, o Juscelino estava dentro,
um sorriso transparente... “Tudo bem?”, “Tudo bem.” “Está ajudan-
do a construir Brasília?” Aí do lado tinha uma construção de madeira
do Osvaldo, ele já conhecia o Osvaldo, porque todos que chegava ele
visitava [...] Aí ele conversou comigo: “Eu vim experimentar a sua
navalha”, “Você veio de onde?” Expliquei tudo da minha vida, aí ele
gritou: “Osvaldo!” Aí o Osvaldo sai da portinha do barraco: “Fala
O movimento pró-fixação do Núcleo Bandeirante 179

Presidente!”. E ele disse: “Amanhã eu venho almoçar com você.” [Eu


pensei]: “será que é o Presidente?” Eu fui criado numa cidade do in-
terior, pra mim falar com autoridade, eu não era acostumado a falar
[...] Af eu cheguei em casa e falei pra minha esposa: “Será que eu es-
tou sonhando? Amanhã ele vai almoçar com o Osvaldo, você quer co-
nhecer ele?”

Esta combinação da presença informal do presidente confra-


ternizando-se com os recém-chegados e as representações, arti-
culando trabalho, amizade, abundância, progresso, confiança e
patriotismo, forjam um imaginário de compromisso com a cons-
trução da nova capital, marcado na memória como um lamento
por ter deixado no passado momentos de luta e solidariedade.

As 'invasões”: a teimosia em construir a capital

Um barraco alojava, mais ou menos, duas, três, dez famílias. No co-


meço só tinha os operários que vinham do Nordeste de caminhões,
ônibus. Eles vinham e não traziam a família, mas posteriormente a
família ia chegar. Aí começou a surgir o problema social: o camarada
com a mulher e o filho não tinha onde se colocar, aí ia na Novacap. A
Novacap que comandava aqui, para localizar essas famílias. Foi aí que
se criou a Vila Matias, Vila Dimas, Taguatinga. Chapadão danado ali,
abriu ruas e mais ruas colocando o pessoal, e houve ainda um que
nesse meio aí, ainda foi o governo João Goulart, o governo pleiteava a
volta desse pessoal que vieram construir Brasília, voltar para sua ori-
gem, aí é que nós tomamos a frente da luta: “Não, não vai voltar nin-
guém. Eles vieram construir a capital e depois de construída, voltava
todo mundo e fechava as portas pra não entrar?”
A existência de uma delimitação rigorosa do espaço urbano
levou os novos habitantes a procurar alternativas de fixação. Co-
mo a Cidade Livre tinha uma função comercial, financeira e de
serviços básicos*, a lógica indicava um local que não fosse dis-

8. O primeiro recenseamento de Brasília, realizado em julho de 1957, sob coordena-


ção da Inspetoria Regional de Estatística Municipal de Goiás, registrava uma po-
pulação global na área do novo Distrito Federal totalizando 12 283 pessoas, sendo
6 000 antigos moradores e 6 283 ligados à construção civil, comércio e indústria.
Neste período, o Distrito Federal era composto pelo Núcleo Bandeirante (2 212
pessoas, 93 estabelecimentos comerciais, 10 unidades industriais, quatro agências
bancárias, um mercado; duas escolas primárias, uma igreja, um jornal (Hora de
obra, pe-
Brasília), um cinema, um médico e três dentistas), 14 acampamentos de
dreiros e olarias.
180 Nair Heloísa Bicalho de Sousa

tante. Daí a expansão ter ocorrido em áreas adjacentes: a Vila


Tenório, do outro lado do asfalto, e a Vila Mercedes, do outro la-
do da linha do trem. Eram demarcações físicas claras do espaço
permitido e do proibido, onde a população migrante se apinhava
para dar início a sua participação na construção da capital.
Bom, o caso é o seguinte: sempre existia focos, depois do Núcleo
Bandeirante existia focos para todos os lugares. Então, surgiu a Vila
Tenório Cavalcante?. Diz que o Tenório na ocasião foi lá e diz que
deu um loteamento. Aí, Tenório Cavalcante veio, aí, acho que arru-
mou lugares pro elemento morar, então foi o primeiro foco. Então,
houve invasão de muitos lotes aqui do outro lado da pista, onde estão
as boates. Aí, hoje então, ali surgiu primeiro o loteamento da Vila Te-
nório, como já existia poucos mais, foi aumentando e ficou maior que
o Núcleo Bandeirante. Aí, surgiu a Vila Mercedes!? que depois o
pessoal mais humilde subia, fazia casinha lá no morro, como no Rio de
Janeiro e em outros lugares. Subiram, fizeram casinhas lá e depois
foram aumentando a Vila Mercedes, talvez até maior que a Vila Te-
nório. Então formaram lá avenidas pequeninas, continuação do Nú-
cleo Bandeirante. Fizeram as avenidas, houve muito problema: que-
riam botar luz, diz que não podia; botaram motores, tinha muitos
motores ligados, dia e noite dava luz para todo lugar e a água era de lá
mesmo, cacimba. Então, aí aumentou a vila lá.

Assim foi sendo povoada a nova capital federal. Centenas e


depois milhares de barracos de madeira iam sendo fixados e pos-
teriormente transferidos para as cidades-satélites, escondendo na
distância geográfica a miséria dos migrantes dos olhos dos visi-
tantes ilustres e das fotografias e filmes propagandísticos da ar-
quitetura e do plano ímpar da “capital da esperança".

Origem do movimento: a garantia da palavra versus


o desconcerto entre discurso e prática

Quando estava vencendo os quatro anos, todos sabiam é ninguém ia


fazer resistência a ele [Juscelino Kubitscheck]. [Mas o povo] fez um

9. “Invasão” situada em frente ao Núcleo Bandeirante do outro lado da pista rodoviá-


ria, extinta nos anos setenta.
10. “Invasão” localizada ao lado do Núcleo Bandeirante depois da linha ferroviária,
que servia como delimitação física da área urbana do Núcleo Bandeirante e foi
erradicada no pós-64. |
O movimento pró-fixação do Núcleo Bandeirante 181

pedido, e ele cedeull, Então, o povo que gostava dele e confiava nele,
ninguém teve a inteligência de pedir a ele, ao menos um bilhete, foi
tudo na base da confiança. Mas Juscelino veio aqui [...] no começo da
urbanização, ele autorizou. Então, ele veio aí, desceu de helicóptero
ha pista, ele era um homem destemido não andava com guarda-costa,
nem o piloto, ele não precisava. Não consentiu de ele descer do heli-
cóptero, isso eu vi. Estava eu nessa distância aqui que estamos nós,
desceu e comprimentou duas pessoas subiu no trator e manejou o
trator: foi a inauguração da urbanização que foi dada por ele pessoal-
mente.

A “base da confiança” foi o elo de ligação entre os morado-


res do Núcleo Bandeirante e o presidente Juscelino para selar o
acordo inicial da fixação. Imagem heróica, de forte envolvimento
popular e credibilidade, a figura de Kubitscheck ficou na memó-
ria dos informantes como uma referência viva. Ao dar início aos
trabalhos de urbanização, comprometeu-se diretamente com a
causa da população, reforçando ainda mais a expectativa de con-
fiança já estabelecida.

11. Em maio de 1960, Kubitscheck fez uma proposta contendo os seguintes pontos:
fixação de parte da cidade como zona esportiva, recreativa, hoteleira e de pequeno
comércio; transferência de comerciantes (em torno de trezentos) para o Plano-Pi-
loto; transferência de moradores para Taguatinga e Sobradinho; concessão de lo-
tes regularizados em regime de comodato por dois anos em Taguatinga a operários
e “invasores”. A Associação Comercial manifestou-se relativamente otimista com
a receptividade de parte dos comerciantes. Por outro lado, criou-se a chamada
Associação dos Habitantes Pioneiros do Núcleo Bandeirante tendo como finalida-
de impedir a violência e controlar o processo de transferência das chamadas “in-
vasões” da área circunvizinha (Vila Mercedes, Vila Tenório, IAPI, Urubu, Que-
rosene, etc.). Na base da ação da nova entidade estava a intenção de pressionar as
autoridades no sentido da urbanização da Cidade Livre.
No início de julho, a associação propõe um movimento de protesto contra as
autoridades que ainda não haviam tomado quaisquer providências relacionadas ao
processo de urbanização. Estava previsto o fechamento das lojas e uma manifesta-
ção em frente ao Congresso Nacional, mas a atuação do Departamento de Ordem
Política e Social (DOPS), impedindo a arregimentação dos moradores através de
alto-falante, a ameaça de prisão das lideranças e a caracterização da ilegalidade do
movimento atribuindo-o a “agitadores” resultaram no fracasso desta iniciativa de
mobilização.
Pressionado por esta insatisfação coletiva, Kubitscheck responde de forma
imediata: reafirma sua posição pela urbanização da Cidade Livre garantindo sua
continuidade por mais três anos e dá início ao calçamento e asfaltamento. Entre-
tanto, seu governo se encerra sem dar solução definitiva para a situação da Cidade
Livre.
182 Nair Heloísa Bicalho de Sousa

A prática era a “garantia da palavra” pautada no compromisso


direto entre governante e governados, descartando a necessidade
de referendar por escrito o acerto feito oralmente. É esta prática
que se rompe no governo Quadros, causando certo desconcerto
sua postura durante a campanha eleitoral e as medidas adotadas
posteriormente no exercício do poder.
Eu estava contando que Jânio Quadros era candidato e ele veio fazer
o comício dele aqui no Núcleo Bandeirante, e o povo já estava esperanço-
so, já estavam construindo suas casas de alvenaria, quer dizer, o Juscelino
um dia, na praça Dom Bosco, ele verbalmente disse que a cidade estava fi-
xada e o povo começou a construir. Então o Jânio veio fazer o comício na
praça Dom Bosco, a praça cívica de Brasília naquele tempo, ele disse:
“Povo do Núcleo Bandeirante vocês são considerados invasores, aonde se
viu invasores da sua própria pátria, vocês falam não é com um candidato é
com o próprio Presidente da República e eu prometo a vocês uma cidade
condigna, e humana em que possa viver, saneada, urbanizada e não sei o
quê.” O povo então aplaudia, nós estávamos felizes, o Juscelino que sai
garantiu a fixação, o Jânio Quadros disse também que nos vai dar uma se-
gunda Vila Maria, que ele disse, muito bem, e naquele tempo não existia
movimento nenhum contra ninguém, só existia a Associação Comercial
que funcionava normalmente com seus afazeres, defendendo os comer-
ciantes e, tal. Dias depois da posse do Jânio Quadros ele nomeou Paulo de
Tarso!2 que também era um dos membros de uma lei que não me lembro,
era uma lei de fixação do Núcleo Bandeirante. Mas ele foi nomeado na-
quele tempo prefeito de Brasília, e ele então virou contra o Núcleo Ban-
deirante e esqueceu que ajudava na fixação. O Jânio Quadros!2 proibiu as
obras que estavam sendo iniciadas, mas então o pessoal levaram um susto:
“Não é possível!”, mas continuavam aqui. Logo mandou prender os cons-
trutores, aí viu que o negócio era pra valer, porque ele não queria que a ci-
dade se fixasse.

A diferença entre o discurso e a prática janista foi o ponto de


ruptura com a população do Núcleo Bandeirante. Não havia ca-

12. Deputado Federal pelo Partido Democrata Cristão (PDC), simpático às propostas
Janistas e autor do projeto de lei nº 1890 que estabelecia a criação da cidade-saté-
lite Bernardo Sayão através da urbanização do Núcleo Bandeirante.
13. Jânio Quadros, durante a campanha eleitoral, em comício na Cidade Livre havia
feito a promessa de transformá-la em uma “nova Vila Maria” (bairro onde o ex-
presidente residiu em São Paulo). Empossado, manifestou-se contrário à sua fixa-
ção e encarregou o prefeito do Distrito Federal, Paulo de Tarso, de executar uma
política de transferência dos comerciantes para a Asa Norte (bairro do Plano-Pi-
loto) e dos “invasores” para as cidades-satélites.
O movimento pró-fixação do Núcleo Bandeirante 183

risma capaz de se sustentar na atitude ambígua e ameaçadora


diante das reivindicações de urbanização e fixação por parte dos
moradores. A promessa da “segunda Vila Maria” desfez-se rapi-
damente, dando origem a uma intensa política de erradicação, que
provocou uma reação popular organizada.

Um pouco antes da saída dele [Juscelino Kubitscheck], o povo pediu e


ele deu a fixação, só que não deu um decreto. Começou a urbanização
[...] começou construções, quando entrou o Jânio Quadros e desfez
tudo. Mas aí o povo lutou e de lá nasceu o Movimento Pró-Fixação da
Cidade Livre para urbanização e fixação.

O movimento nascido do desejo de fixação vai gradativa-


mente ganhando corpo e se constituindo em um dos eventos mais
significativos da história de Brasília. Era uma alternativa para
sustentar a política janista de demolição e uma experiência de
ação solidária para preservar este espaço urbano pioneiro.

Dinâmica do movimento: a defesa coletiva da cidade

Objetivos

Centrados na idéia da fixação e urbanização, os moradores se


organizaram para defender a permanência na Cidade Livre onde
dispunham de um espaço de sociabilidade precioso, tendo em
vista as condições de isolamento dos canteiros de obra espalhados
pela área do Plano-Piloto. Manter a cidade, garantir os laços de
amizade e solidariedade dos pioneiros entre si, preservar a facili-
dade de acesso a algumas cidades-satélites e ao próprio Plano-
Piloto!” fazia parte das expectativas criadas e capazes de sus-
tentar uma luta deste tipo. O grande aliado era o presidente Jus-
celino que, apesar de estar fora do governo, permanecia como um
ponto de referência positivo na avaliação popular.
O único objetivo do movimento era não arrancar a cidade, fixar e ur-
banizar, para isso o próprio nome dele era Movimento Pró-Fixação e Ur-
banização da Cidade Livre. Hoje o nome é de Núcleo Bandeirante na Lei
402015, esse nome foi o deputado que escolheu [...] Nós não tínhamos ne-

14. Área onde está localizada a cidade de Brasília.


15. Lei aprovada no Congresso Nacional garantindo a fixação e urbanização do Nú-
cleo Bandeirante.
184 Nair Heloísa Bicalho de Sousa

nhuma intenção de ganhar terreno, tanto que compramos. Nós queríamos


era que não saísse a cidade que a gente viveu aqui, acostumou, aclimatou,
era um povo tudo com a família e conseguimos do Juscelino.

Era Jânio Quadros o pivô do conflito. Em torno de sua figura


as representações sobre o início e o fim do movimento ganham
sentido, revelando o peso negativo de sua atuação no caso do
Núcleo Bandeirante. Contra ele se voltam os moradores atribuin-
do-lhe o papel principal no exercício da erradicação. É o autor da
“demolição total””, da retirada das famílias “a muque””, responsá-
vel pela tentativa de desmantelamento da cidade.
O movimento surgiu quando o Jânio Quadros quis destruir a cidade.
Então, toda a cidade revoltou. Então, foi fundado o Movimento Pró-
Fixação e Urbanização do Núcleo Bandeirante (MPFUNB) pra que
impedisse a demolição total, que era o plano de Jânio Quadros. Como
o meio legal era a lei, nós apelamos para o Congresso.
Nós sofremos demais. A gente ficava de teimoso igual o pobre. Pobre
nasce de teimoso, né? Assim era nós, ficava aqui de teimoso. Aí, de-
pois que veio o Jânio Quadros, ele queria que a gente fosse a muque,
arrancando as casas. Eu falei: “Não, daqui não saio. Enquanto tiver
uma casa, eu sou a segunda.” Foi isso. Deus ajudou que ele [Jânio]
caiu fora.

Esses depoimentos apontam a atitude de Jânio Quadros como


o ponto de partida para a organização e ação coletiva. Decidir er-
radicar após o consentimento informal de Kubitschek e as espe-
ranças de concretização aventadas na campanha janista foi consi-
derado uma traição: ““toda a cidade se revoltou””. Esta expressão
de descontentamento generalizado sentido pelos moradores diante
da insensibilidade de Jânio, somada à determinação de resistir à
política de erradicação, acabou gerando um movimento coletivo
enraizado nos diferentes segmentos sociais da cidade.

Participação

Esse movimento era composto de comerciantes, de operários, de fa-


mílias, mas não teve entidade nenhuma que apoiasse o que nós cria-
mos, o que nós fundamos.
Quem não era funcionário público, vivia de pequeno comércio e ia
passar fome se fosse para a Asa Norte. A maioria viveu aqui sempre
O movimento pró-fixação do Núcleo Bandeirante
185

de pequenos comércios. Aí veio o Movimento Pró-Fixação da Cidade


Livre através dessas investidas de sair para o Gama.
Pequenos comerciantes, funcionários e operários de obra: esta
era a população que habitava a Cidade Livre e seus arredores no
começo. Uma composição essencialmente popular, morando em
casas de madeira e com um mínimo de infra-estrutura urbana,
formou o contingente básico do Movimento Pró-Fixação e Urba-
nização do Núcleo Bandeirante.
De início, a Associação Comercial manifestou-se favorável
ao movimento, denunciando as medidas adotadas pela Prefeitura
do Distrito Federal (PDF) mas deixava em aberto a possibilidade
de mudança, propondo certas facilidades para a transferêncialó. A
partir da aceitação de uma área para a construção da sede na Asa
Norte, houve uma divisão interna entre comerciantes mudancistas
e antimudancistas, sendo alguns dos últimos pessoas-chave do
movimento.
É antes, [a Associação Comercial estava] logo no começo mesmo.
Porque ela era muito antiga mesmo. Depois dela que foi surgindo ou-
tros movimentos, que não tinha nada a ver com a Associação Comer-
cial, que eles disseram que traíra na época. Antes contava com apoio
dela até eles saírem uma parte do comércio pra Asa Norte. Aí eles
disseram que tinham traído o Núcleo Bandeirante, aí formaram o mo-
vimento, dentro desse descontentamento.

Na versão dos informantes, fica uma imagem negativa da


atuação da Associação Comercial, à medida que se colocava de
certo modo favorável à proposta vinda da PDF, quando o ponto

16. Em 22 de maio de 1961, uma reunião realizada na Associação Comercial de Bra-


sília decidiu pela fixação do Núcleo Bandeirante, e, em caso de haver mudança,
exigiria indenização e financiamento. Reivindicavam também a permanência de
ônibus dentro da cidade e para a rodoviária do Plano-Piloto, a permanência dos
bancos e policiamento. Em 29 de maio entregaram memorial ao prefeito Paulo de
Tarso denunciando a retirada das pessoas de maneira desumana, a supressão das
linhas de ônibus, a transferência dos bancos, a mudança das linhas de ônibus, o es-
tímulo aos inquilinos para desocupar lotes, a destruição de barracos, a proibição
de construções, a liberação da zona boêmia. Em contrapartida, encaminhavam as
seguintes reivindicações: três anos para transferência, entrega de lotes na Asa
Norte a Cr$ 240.000,00 (a PDF tinha proposto Cr$ 600.000,00), financiamento de
509% pela CEF para construções, indenização dos estabelecimentos de alvenaria
regular e o fim das medidas de estrangulamento do Núcleo Bandeirante (Correio
Braziliense, 23/5/61 e 30/5/61).
186 Nair Heloísa Bicalho de Sousa

central do movimento era “lutar contra o governo”. Represen-


tantes de cultos diversos, comerciantes, funcionários e trabalha-
dores da obra estavam presentes nas assembléias para discutir os
rumos do movimento e demonstrar o caráter solidário da luta. E a
idéia de comunidade que está presente no imaginário dos morado-
res, daí a referência à “participação de todas as classes” como
uma indicação do caráter pluriclassista, unitário e homogêneo do
movimento.
Na assembléia- geral ia todo mundo, dava opinião... O Garcial”, pon-
derado, acatava todo mundo, gostava que todo mundo desse opinião.
Evitava assuntos paralelos. Essa participação de todas as classes foi
importante. As autoridades viram que era uma luta sem interesse par-
ticular. Era uma luta com interesse coletivo em defesa de uma comu-
nidade que estava ameaçada. Então, as autoridades viram isso aí e nos
apoiou. E hoje resta pouca gente dessa luta.

Estratégia

e Reuniões e assembléias

Nas reuniões o único objetivo era esclarecer o povo que nós podería-
mos ficar aqui na nossa própria casa. Fomos os fundadores de Brasí-
lia, tava todo mundo aqui, por que nós tínhamos que sair daqui? Para
onde? Nós não merecemos? O Garcia dizia assim: “Brasília era bonito
mas tinha vergonha do seu filho que estava aqui. Então esse filho ti-
nha que lutar para não ir lá para cima, mas pelo menos ficar perto de
sua mãe, que era o melhor lugar de Brasília, do Brasil. Porque todo
mundo saiu das suas terras é porque não prestava, então o Núcleo
Bandeirante era o melhor lugar do mundo.” Então, tinha que conven-
cer o elemento de qualquer maneira, embora fosse uma coisa muito
difícil. Era em reuniões que tinha [conscientização]. O povo tinha que
se conscientizar que aqui era nosso.
As imagens do Núcleo Bandeirante como ““nosso””, ““nossa
própria casa”, onde a relação mãe-filho expressa a intimidade do
pioneiro e candango com a obra em construção, revelam a dimen-
são subjetiva presente no discurso dos dirigentes, procurando to-
car fundo a sensibilidade dos moradores no sentido de uma cons-
cientização progressiva. O objetivo era “'convencer o elemento de

17. Principal líder do movimento de urbanização e fixação do Núcleo Bandeirante.


O movimento pró-fixação do Núcleo Bandeirante 187

qualquer maneira”, ou seja, conseguir a adesão de cada um para


garantir um movimento massivo e participante. “O melhor lugar
do mundo”” era uma referência apelativa para os milhares de mi-
grantes do Distrito Federal em busca de uma vida melhor. O Nú-
cleo Bandeirante poderia tornar-se o ponto definitivo da trajetó-
ria, O lugar de enraizamento social e afetivo, enfim, o lar.

Porque geralmente quando tocava o sino aqui no Núcleo Bandeirante


todo mundo vinha para cá. Via um foguete estourar, aí todo mundo
descia e ia para a Associação. Era um chamado. Não tinha jeito de
chamar, aí soltava foguetão: “Tão chamando.” Era a reunião [...] To-
do mundo vinha e se reunia. Era um pessoal que não precisava adular
não, chamasse todo mundo era obrigado a vir mesmo. Porque sabia
que era um negócio sério [...] e porque lutou muito esse movimento
pra poder tomar corpo porque antes era só reuniões mesmo que nós
fazia, não tinha movimento certo não. Depois que foi sofisticando,
mas antes era só a “patota”, como se diz. Se juntava lá na casa do
Garcia e lá se deliberava: “Olha se tiver qualquer problema no seu
setor corre aqui e fala.”
Este tom informal e comunitário da mobilização expressava
uma sociabilidade nascente permeada pela solidariedade, onde
cada um se sentia responsável pela causa de todos. O sino da
igreja era o símbolo do “chamado” para o encaminhamento da lu-
ta, o pólo de referência para a realização das assembléias. Orga-
nizado através da diretoria do Movimento Pró-Fixação e Urbani-
zação do Núcleo Bandeirante que se responsabilizava pelos con-
tatos principais com os parlamentares do Congresso Nacional, o
movimento foi tomando corpo desde as pequenas reuniões em ca-
sa dos dirigentes até as assembléias massivas do auge da luta,
muitas vezes transformadas em comícios efusivos pela causa da
fixação.

O movimento se organizava através de reunião, assembléia- geral toda


semana, comunicando o que a gente fazia naquela semana... Quando
alguns políticos falavam que iam ao Núcleo Bandeirante, a gente reu-
nia em assembléia e organizava o povo para o apoio. Os políticos viam
O que o povo queria, o que o povo sentia... O nosso objetivo das reu-
niões era colocar o povo sempre a par do que acontecia entre nós e o
Congresso Nacional. Toda semana tinha assembléia- geral porque toda
semana tinha deputado e senador no Núcleo Bandeirante fazendo dis-
curso na nossa reunião...
188 Nair Heloísa Bicalho de Sousa

Esta presença de parlamentares apoiando publicamente o mo-


vimento foi um dos pontos mais estimulantes do processo de re-
sistência à derrubada dos barracos, logo de início alvo de severa
repressão por parte da Prefeitura.
Eles [a polícia] não deixavam [realizar] reunião do movimento!8. En-
tão, o sujeito entrava disfarçadamente, e tinha vigias. Se viesse carro
da polícia dava um sinal e dispersava, porque a gente não queria ser
preso, por quando prendesse o Garcia já quebrava um esteio da casa.
Então, a gente usava da inteligência e lutava contra tudo e contra to-
dos, porque nós não tínhamos ninguém ao nosso lado, a não ser uma
certa quantidade de gente do Núcleo Bandeirante e o deputado Breno
da Silveira! [...]. Nós fomos vigiados um certo tempo, depois que
tomou corpo a nossa lei, que eles sentiram que todos os deputados
estavam contra o governo, nós tivemos apoio total do Congresso, de
todos os partidos, aí amenizou mais. E com a renúncia do Jânio Qua-
dros acabou porque a luta acabou no dia da renúncia do Jânio.
O caráter clandestino das reuniões iniciais era uma alternativa
para levar à frente o trabalho de resistência “contra tudo e contra
todos”, jogando com a possibilidade de ampliação da frente de
luta junto ao Congresso para contrabalançar a ação repressiva da
polícia sob as ordens da PDF. Este era o maior trunfo esperado e
capaz de respaldar as reivindicações em torno da fixação e urba-
nização. Foi com este objetivo que os moradores se organizaram e
projetaram uma estratégia para acuar as investidas violentas da
polícia junto à população do Núcleo Bandeirante.

Organização do movimento

As tarefas centrais da luta pela fixação eram coordenadas


pelos membros da diretoria20 do MPFUNB, além de contar tam-

18. Há relatos não-gravados sobre a forte repressão desencadeada pela PDF, obrigan-
do as pessoas a usarem senhas para entrar nas reuniões, além da montagem de um
sistema de segurança para advertir sobre a chegada da polícia nas proximidades do
local da reunião.
19. Deputado federal do Partido Socialista Brasileiro (PSB) que liderou a bancada de
parlamentares de diferentes partidos que apoiavam a proposta de fixação e urbani-
zação do Núcleo Bandeirante.
20. Além dos cargos de um presidente, três vice-presidentes, quatro secretários e três
tesoureiros compunham ainda o MPFUNB, várias diretorias (social, propaganda,
feminina, juvenil, biblioteca) e um conselho deliberativo.
O movimento pró-fixação do Núcleo Bandeirante 189

bém com comissões internas (de política, propaganda, finanças,


donas-de-casa, estudantes e comerciantes), que tomaram corpo a
partir de junho quando se intensificou a articulação com os políti-
cos no Congresso.

As comissões [grupo de jovens, feminino, propaganda, etc.) funciona-


vam em torno deste ideal, nunca se reunia separado, reunia tudo junto.
As vezes tratando, por exemplo, do grupo feminino, dona Filomena
assumiu a presidência da reunião. Organizou a creche, era a parte so-
cial do movimento... A creche tem construção definitiva... Trabalha-
deira que só vendo. O movimento acabou, mas ela nunca deixou de
trabalhar. Aquelas diretorias funcionavam de acordo com a necessi-
dade do movimento, cada um desenvolvia seu papel e era bem elogia-
do pelo presidente. A comissão de jovem procurava orientar os jovens
explicando o que era aquela luta, qual a finalidade... buscava mais jo-
vens. Uma vara quebra, duas quebram, três é mais difícil, quando
junta um feixe já não quebra. Então a unidade era muito importante.
Então, o trabalho deles era orientar e trazer cada vez mais jovens.

As diretorias e comissões mobilizavam inúmeras pessoas para


as tarefas cotidianas e mantinham uma vinculação direta com os
moradores através de ações de envolvimento em diferentes níveis.
Desde creches para abrigar crianças e curso de alfabetização até a
propaganda explícita da luta contra a PDF junto aos jovens, do-
nas-de-casa e comerciantes, constituía a prática desenvolvida em
tono do MPFUNB. Tinha também representantes de determina-
das categorias (profissionais liberais, professoras e donas-de-casa,
barbeiros, hoteleiros, comércio de tecidos, moradores do IAPI e
da 32, 42 e 52 avenidas do Núcleo Bandeirante) que participavam
de reuniões junto às autoridades públicas para negociar as de-
mandas do MPFUNB.
Havia outras tarefas importantes a serem organizadas: a defe-
sa dos barracos contra a demolição e a articulação com os parla-
mentares favoráveis ao movimento. No primeiro caso, era preciso
manter uma vigilância permanente, pois a chegada dos caminhões
com os funcionários da PDF protegidos por força policial era im-
prevista. No segundo, a comissão política chefiada por Garcia
tomava a frente dos contatos com as lideranças da Câmara e do
Senado para garantir o apoio-chave para o êxito do movimento.
À noite a gente se reunia e programava: um grupo ia no Congresso,
um grupo ia ficar de sobreaviso pra hora que chegar os carros do
190 Nair Heloísa Bicalho de Sousa

quebra-quebra pra gente fazer resistência, de modo que ficava todo


mundo sobressaltado, e ninguém podia sair [...] Tanto faz quebrar
como não quebrar, mas tinha um grupo coeso [...] Nas reuniões sem-
pre ia duzentas e tantas, cento e tantas pessoas, até mais [...] era uma
vez por semana, agora quando precisava tinha sessão extraordinária.
Esta capacidade de manter os moradores mobilizados contra
as investidas repressivas da Prefeitura combinada à sensibilização
dos parlamentares para a causa da fixação foram dois elementos
fundamentais para alcançar um crescimento progressivo da parti-
cipação e, ao mesmo tempo, o recuo da ação intimidatória e vio-
lenta das forças policiais.

Trabalho desenvolvido pelos membros do movimento


O trabalho de cada membro, de cada: organização, era acompanhar o
Movimento Pró-fixação, era junto com a diretoria do movimento. Os
jovens, por exemplo, tinham esse trabalho de informante. Eles partici-
pavam também da escola. As mulheres ajudavam dona Filomena, ti-
nham o papel de acompanhar dona Filomena nos seus trabalhos [ma-
nuais). Nem sei se chegou a concretizar, porque o nosso objetivo era o
de criar outras coisas importantes dentro do movimento, mas logo
infelizmente foi extinto.
O trabalho era [...] ir no Congresso, conversar com o deputado, ir no
correio, levar a matéria e pagar?1 porque [se não pagava, não publica-
va] [...] quando a gente precisava ir pro Congresso, como no dia da
votação, fui pedir aos proprietários da viação Pioneira, ônibus, e eles
deram, porque foi um pessoal que contribuiu muito a favor do Núcleo
Bandeirante é essa Pioneira.
Mas todo elemento podia fazer alguma coisa dentro do movimento:
era convocar o pessoal, era botar aparelho pra funcionar, era chamar
o elemento, etc. Todo elemento era responsável por tudo ao mesmo
tempo, ninguém tinha uma função definida; só o primeiro-secretário
que ia lá no momento da reunião e o tesoureiro receber o dinheiro, e o
presidente pra prestação de contas, mas todos os outros faziam o
mesmo trabalho. Então nós tínhamos um movimento unificado de fi-
xar o Núcleo Bandeirante.
A descrição do trabalho realizado pelos participantes do
MPFUNB parece indicar duas direções: uma delas ligada direta-

21. Referência à coluna “Jornal da Cidade Livre”, publicada no Correiv Braziliense a


partir de junho de 196 lxem defesa das reivindicações do MPFUNB.
O movimento pró-fixação do Núcleo Bandeirante 191

mente à comunidade (trabalho com mulheres e crianças) e outra


voltada para as tarefas específicas do movimento. A articulação
desses dois níveis organizativos sugere um certo enraizamento do
movimento junto à população, levando-a a sobreviver à investida
contra a fixação, só se desestruturando a partir da mudança do
quadro político nacional em março de 1964.
As representações sobre as atividades junto aa MPFUNB ofe-
recem um quadro participativo e democrático da divisão do tra-
balho interno. “Ninguém tinha uma função definida” era uma
maneira de dar acesso a todas as diferentes tarefas necessárias para
o encaminhamento da luta. Cabia à diretoria coordenar certas
ações básicas, tais como os contatos políticos, a arrecadação fi-
nanceira e a convocação de reuniões e assembléias. As tarefas
menores eram divididas entre os voluntários de cada dia de modo
a multiplicar a capacidade de penetração da linha-mestra do mo-
vimento junto aos moradores.

Comícios
Os comícios eram feitos com os políticos, quando os políticos vinham
tinha comício [...) Reunia muita gente [...] deputado fazia comício in-
flamado [...] descendo a ripa no presidente [...] Quando falava coisa
importante era cheio de aplausos [...] Todo mundo tinha muito apoio
pelo movimento. O Garcia sentia muito honrado, muito animado...
Quando via a praça cheia [...] era mais um motivo para lutar mais...
O comício era idéia do deputado Breno da Silveira, comício não tinha
dia. Ele saía do Congresso, ou da casa dele, chegava e dizia: “Vamos
fazer um comício.” Então um avisava o outro, cidade pequena, daí a
meia hora em frente à igreja do padre Roque tinha duas mil, três mil
pessoas e fazia o comício e esculhambava o Jânio Quadros e o Paulo
de Tarso que era o prefeito. Era ele [o deputado Breno da Silveira]
que providenciava o comício, que autorizava e fazia parte, nós apenas
dava o apoio [...] o comício era uma coisa de publicidade e de protes-
to, a finalidade do comício era protestar contra a ação do governo.
Não fazem aí os comícios políticos e mostram as vantagens daquele
partido e atacam o governo? Era isso, era como um comício político,
agora só que os ataques eram agressivos também, porque o doutor
Breno era um homem destemido, não tinha meio-termo [...] A direto-
ria do movimento também sempre falava alguma coisa.
Os comícios eram momentos de intensa mobilização da cida-
de. A chegada dos parlamentares no Núcleo era motivo para cha-
192 Nair Heloísa Bicalho de Sousa

mamento dos moradores de modo a concretizar a publicidade e o


protesto diante das investidas governamentais. Os deputados bus-
cavam esclarecer, informar, denunciar e apoiar os participantes,
deixando clara a posição solidária do Congresso Nacional diante
das reivindicações encaminhadas às diferentes esferas do Execu-
tivo.
Funcionavam como uma tribuna do movimento e um tribunal
do governo local, colocando a nu suas ações e denunciando a im-
popularidade das medidas em andamento. Motivo de festa, de
confraternização e de reforço às lutas cotidianas, os comícios fo-
ram eventos fundamentais para manter o movimento vivo e coeso.
Constitufam um momento precioso do processo de resistência,
pois ali se mediam forças com o governo de forma favorável ao
movimento. Apoiadas por entidades sociais, políticas e de classe,
milhares de pessoas colocavam-se em torno de um ideal fortaleci-
do pelas palavras de ânimo dos parlamentares, assumindo um
compromisso com a causa popular.

Instituições públicas: o eixo da ação de despejo

Prefeituras do Distrito Federal

Paulo de Tarso era contra22 e uma vez o Congresso Nacional convo-


cou ele e este apresentou slide e explicou, explicou... e não convenceu
ninguém que o Núcleo Bandeirante não podia ficar. O deputado Fer-
nando Ferrari perguntou a ele: “Por que o senhor fez junto comigo
um projeto de lei para fixar o Núcleo Bandeirante e hoje eu estou com
o povo e o senhor está contra o povo?” “Ah! eu não estou contra o
povo, mas tô obedecendo uma ordem do presidente da República e
etc. e tal” [...] O Paulo de Tarso mandava arrancar os barracos?
Queria que a cidade fosse extinta [...] Dia e noite vivíamos aquele tu-
multo, aquele pesadelo... Ninguém sabia se quando voltasse pra casa,

22. Em março de 1961, o prefeito Paulo de Tarso enviou um memorial ao subprefeito


do Núcleo Bandeirante solicitando, entre outros pontos, o envio de um plano de
“descongestionamento” em quatro dias, o estímulo à saída voluntária e à entrega
de um plano de transferência das invasões em 48 horas.
« Com as medidas de erradicação do Núcleo Bandeirante adotadas pela PDF houve
um progressivo conflito entre inquilinos e proprietários de barracos de madeira,
Pois a PDF estimulava os primeiros a se mudar e entregar as chaves dos
respecti-
vos barracos à subprefeitura local, que passava a demoli-los em seguida
(Correio
Braziliense, 217/61). N
O movimento pró-fixação do Núcleo Bandeirante 193

do serviço, encontrava seu barraco... Apesar do projeto de lei 1890,


ele cumpria ordem do presidente da República que tomou tanto ódio
da cidade. Jânio dizia que ia criar aqui a segunda Vila Maria. Até ho-
Je... Cidade maldita... Jânio sempre age impulsivamente... renunciou €
se arrependeu. Não pensava muito pra agir [...] É um homem de atitu-
de abusada, violenta [...] Mesmo arrependido, mantinha [...] mas tinha
ódio daqui...

Paulo de Tarso, parlamentar e prefeito do Distrito Federal


aparece no imaginário dos informantes como o mandatário princi-
pal do processo de erradicação. Cumpridor de ordens emitidas
pela presidência da República, ''mandava arrancar os barracos”
causando “tumulto” e “pesadelo” junto aos moradores. Sua vin-
culação direta com Jânio Quadros e a aceitação da proposta de
transferência apesar do seu projeto de lei pró-fixação envolveram
a figura do prefeito em imagens de antagonismo com o interesse
popular.

Isso era mandado por Jânio e tinha duas posições. Aquele que falava
de frente pro pessoal, e uma dessas vezes eu fui falar com Paulo de
Tarso e ele tal, tal. Ele tinha muito respeito pelo sindicato (trabalha-
dores da construção civil) porque o sindicato tinha por trás dele mi-
lhares e milhares de trabalhadores, ele sabia que era só fazer assem-
bléia, o negócio era feio. Quando a gente ia ele falava que estava fa-
vorável ao Bandeirante, que ia falar com o Presidente, não sei...

É em torno de Jânio Quadros que foram elaboradas as repre-


sentações de oposição absoluta à idéia de fixação. “Homem de
atitude abusada, violenta”, “meio esquisito”, “não pensava muito
pra agir”, “tinha ódio daqui” são expressões presentes no discur-
so, delineando uma imagem de agressão, violência e irracionali-
dade que se fazia sentir na prática das demolições com o respaldo
policial. Prefeitura e Presidência da República se fazem presentes
neste imaginário, umbilicalmente vinculadas a uma postura anti-
popular, definindo-se como opositores principais da luta assumida
pelo MPFUNB.

Subprefeitura do Núcleo Bandeirante

A imagem resgatada sobre a atuação do poder local coloca a


Subprefeitura do Núcleo Bandeirante como responsável direta pelo
acompanhamento da erradicação, ficando na memória dos mora-
194 Nair Heloísa Bicalho de Sousa

dores como opositora do movimento. A subordinação total à PDF


tomava sua prática um prolongamento das medidas repressivas
desencadeadas pela primeira, limitando-se a “cumprir ordens”.
A administração do Núcleo Bandeirante era contra o movimento. Os
funcionários da Prefeitura também. Inclusive, houve até briga entre
os funcionários e nós. Eram contra porque lá dentro a palavra de or-
dem era destruir a cidade. Muitos deles ainda moram aqui. Eram con-
tra porque recebiam ordem.

Permanece uma ambiguidade: os funcionários eram ao mesmo


tempo moradores do Núcleo Bandeirante e a transferência da ci-
dade implicava profundamente alterações em seu esquema de vi-
da. Isto dava um certo desequilíbrio à postura repressiva que
adotavam diante da reação da população de resistir à mudança e
era expresso no discurso dos informantes mais como resultado de
ordens recebidas do que escolha própria.

Ação repressiva: uma experiência de resistência


Para enfrentar a repressão desencadeada pela PDF, em que a
combinação entre a ação das ferramentas de demolição e o corpo
policial local se impunham aos moradores, foi montado um siste-
ma de informação entre funcionários do Executivo, parlamentares
e a direção do MPFUNB, que alimentava o processo de resistên-
cia permitindo-lhe atuar com certa eficácia.

Quando a polícia chegava o povo já estava reunido... nós éramos


mantidos informados de tudo... a gente organizava o povo [...] tudo
que ia acontecer a gente sabia, a gente tinha gente lá dentro do gover-
no. Eles informavam o Congresso e o Congresso informava a gente.
Naquele tempo só tinha um telefone aqui, era do Garcia. Era um te-
lefone preto, Garcia reunia com a gente e nós organizávamos. Avisa-
va uma casa da quadra e essa avisava os outros [...] Uns se avisavam...
uns aos outros... O apoio do povo era importante. Foi uma luta muito
importante. Havia um ideal que todo mundo queria e defendia mesmo
que fosse com a própria morte, mas não chegou a morrer ninguém.
Dizem que morreu criança. Teve dia perigoso... prendia, dava caceta-
da mas não matou ninguém...

Na prática, era uma luta massiva sustentada pela capacidade


de mobilização imediata diante das investidas violentas da PDF.
O ideal a ser defendido até com a própria morte era a referência
O movimento pró-fixação do Núcleo Bandeirante 195

precisa para garantir uma resposta efetiva. Era o arbítrio versus O


direito à cidade em gestação na experiência da resistência coleti-
va.
A gente não tinha prazo coisa nenhuma, só arbitrariedade. Era a von-
tade deles, “eu mando, eu forço, eu faço e acabou”, porque a lei é
clara, o sujeito condenado ainda tem um prazo. Com eles não tinha
negócio de prazo não, o negócio deles era quebrar e acabar, não esta-
vam incomodando com o pedido de ninguém [...] Nós detínhamos a
derrubada, mas o plano era destruir geral. Mas a gente resistia, vinha
dois choques da GEB 24e nós éramos quinhentas pessoas, oitocentas,
mil e tantas pessoas... Aí eles desanimavam e iam embora.
Demolir e destruir usando a força se necessário eram as or-
dens emitidas a partir da PDF, que acabaram alimentando a pro-
posta da fixação à medida que gerava revolta, indignação e soli-
dariedade. Centenas de moradores foram aprendendo, a partir do
ato de resistir às derrubadas, a capacidade real de se sobreporem
às forças da ordem, testemunhando a profunda insensibilidade das
autoridades diante das demandas populares.
Um caso especial destaca-se no conjunto das lutas: a manu-
tenção do Ginásio de Brasília.

No dia em que foi arrancar o Ginásio de Brasília tinha dois caminhões


de choque da Polícia. Nós cercamos o ginásio com mais de duas mil
pessoas. Estávamos dispostos a tudo, até mesmo morrer se fosse pre-
ciso. Mas eles chegaram e foram embora e o ginásio não foi destruído.

Cenas como esta de defesa do patrimônio pessoal e da comu-


nidade voltaram a se repetir diversas vezes, sugerindo um alto
grau de solidariedade alcançado pelo movimento. A decisão de
resistir tornou-se então o ponto de fusão dos interesses indivi-
duais e a garantia de resposta efetiva às arbitrariedades praticadas
pelo aparelho policial contra a população local.

24. A GEB (Guarda Especial de Brasília) era uma corporação paramilitar, criada no
início da construção de Brasília. O uso da violência e de práticas arbitrárias levou
à constituição de certo temor generalizado por parte dos moradores. Sua atuação
em relação ao MPFUNB é controvertida, exigindo maiores informações para pre-
cisar seu desempenho. Sobre o assunto, ver Joffily, G. 1., Brasília e sua ideologia,
Brasília, Thesaurus Editora, 1977, p. 62-63.
196 “Nair Heloísa Bicalho de Sousa

Organizações sociais e políticas

Sindicato

O Núcleo Bandeirante e suas adjacências abrigavam um


grande número de *peões de obra”, fato este que acabou levando o
Sindicato dos Trabalhadores da Construção (STICMB) a oferecer
um apoio efetivo ao MPFUNB através da criação de uma comis-
são permanente de apoio dentro do próprio sindicato. Esta se fez
presente nos principais eventos, contando com a pessoa do presi-
dente da entidade em comícios públicos e com membros da co-
missão compondo os grupos de apoio político junto ao Congresso
Nacional.
Se necessário, a gente ia no Congresso Nacional. Agora não sei
quantas vezes foram. Tinha uma comissão do sindicato que era per-
manente, para quando houvesse qualquer coisa eles tava na frente. [...]
Essa comissão sempre se reunia com o pessoal. A assembléia elabora-
va documentos dirigidos às autoridades e ia uma comissão falar com a
autoridade sobre os problemas que eles tavam lutando. A nossa soli-
dariedade era dar força para eles...

Solidariedade era a palavra-chave que mesclava o apoio do


STICMB aos moradores do Núcleo Bandeirante. Integrantes dos
abaixo-assinados e memoriais encaminhados ao governo local e
federal e parte do processo de mobilização da comunidade, os
membros do sindicato faziam-se presentes na luta, também vista
com simpatia por outras organizações profissionais e sindicais.

Congresso Nacional

O MPFUNB seguiu uma trajetória de enraizamento junto ao


Congresso Nacional com a estratégia capaz de contrabalançar os
desmandos do Poder Executivo, ao mesmo tempo em que usufruía
da única instituição com forte expressão social e capaz de funcio-
nar como caixa de ressonância das reivindicações populares na-
quele momento.
[...] Nós fomos pedir, solicitar uma coisa que tava errada, os deputa-
dos era pra resolver nossas necessidades.
A vinculação entre o Parlamento e as “necessidades” aparece
como uma identificação presente junto aos participantes do mo-
O movimento pró-fixação do Núcleo Bandeirante 897

vimento no sentido de confiança, apoio e solução. Se “havia uma


coisa que tava errada” vinda do Executivo, a alternativa que se
colocava era buscar respaldo na lei, no caso, no próprio Congres-
so que tinha em suas mãos a possibilidade de responder à deman-
da principal da luta pela fixação. Este jogo político encontrou re-
ceptividade por parte dos parlamentares e foi planejado e organi-
zado em detalhes pelos militantes, de modo que senadores e de-
putados dos mais diferentes partidos tivesem acesso às denúncias
sobre as arbitrariedades da PDF e se sensibilizassem pela causa
dos moradores.

Não tinha partido. Tínhamos apoio de todos do Congresso: PSP de


Ademar de Barros, PSB era o mais forte, PTB, UDN, PDC de Jânio
Quadros, partidos fracos, PTB, PSB e UDN apoiavam mais o movi-
mento, mas todos apoiavam.
No Congresso nós não tivemos um parlamentar contra, nem senador,
nem na UDN, porque pra conseguir a lei em regime de urgência, se
tiver dez mil lei pra ser votada, a de regime de urgência é a primeira.
Então nós tivemos apoio total do Congresso, apoio de 100%.
Este apoio unânime ao substitutivo pela fixação e urbaniza-
ção da cidade foi fruto de um intenso trabalho de mobilização
Junto aos parlamentares dos diferentes estados da Federação, ten-
do à frente o deputado Breno da Silveira do PSB. Este assumiu a
causa do Núcleo Bandeirante e passou a arregimentar colegas pa-
ra participar de comícios e garantir votos favoráveis ao substituti-
vo em exame, assim como se tornou um dos principais mediado-
res do movimento junto às autoridades públicas locais e federais.
Esta combinação entre o apoio interno do Parlamento, a mo-
bilização massiva e a organização eficiente do MPFUNB acabou
por resultar na aprovação do projeto de fixação que, devido à re-
núncia de Jânio, foi sancionado por João Goulart no final do ano.

Igreja

Logo após a construção dos primeiros barracos da Cidade Li-


vre foram erguidas também as igrejas de culto católico e batista.
Pioneiros do Núcleo Bandeirante o padre Roque e o pastor Elias
pareciam sentir-se identificados com a causa da fixação. Para
eles, conforme depoimentos diversos, não se tratava de algo polí-
tico, mas da defesa de um direito da comunidade.
198 Nair Heloísa Bicalho de Sousa

Participar da luta pela fixação tornou-se uma maneira de res-


paldar o desejo dos moradores e de obter reconhecimento por
parte dos fiéis. Lutar contra a destruição era também uma forma
de preservar um relacionamento paroquial bastante desenvolvido,
em uma comunidade onde os laços pessoais eram fortes e a soli-
dariedade uma forma de sobrevivência. Daí talvez o “apoio to-
tal”, referido por um dos dirigentes do movimento, que teria sido
dado por eles a esta luta coletiva.
Das igrejas nós tivemos o apoio total, do padre Roque, do pastor
Elias, esses que deram apoio total. O padre Roque até discutiu com o
Paulo de Tarso, isso eu presenciei ele falar pra Paulo de Tarso que
aquela igreja ele carregou com ela nas costas pra construir ela e que o
Paulo de Tarso não ia destruir. Ele foi um companheiro.
A igreja batista contribuiu muito, inclusive a primeira escola que teve
em Brasília, creche e jardim, primeiro e segundo grau. Meus filhos
estudaram lá, uma escola muito boa e de graça...

Esta presença dos representantes religiosos na comunidade,


através das atividades educacionais e do enfrentamento público
com as autoridades, parece ter contribuído de algum modo para
fortalecer o espírito de luta dos moradores e oferecer-lhes um
ponto de referência da justeza da causa.
O desfecho do movimento: a cidade retomada

À luta acabou no dia da renúncia do Jânio Quadros. O Congresso es-


tava superlotado, as galerias de gente do Núcleo. Ia votar a lei, já ti-
nha feito aquelas formalidades, o presidente já tinha anunciado. Na
hora de começar a votação, parece que chegou a citar o nome de um
deputado pra votar, porque aquilo é nominal, né, quando entrou a
notícia do presidente da Câmara: a renúncia do homem. Aí, ele anun-
ciou, todo mundo saiu. Eu vi muitas mulheres ajoelhadas naquela
grama do Congresso dando graças a Deus de ter renunciado o Jânio.
A Lei 4 02025
Esta lei, aprovada no Congresso Nacional, em agosto de
1961, representou o sinal verde do processo de urbanização. Se

25. Sancionada em 20/12/61 pelo presidente João Goulart, a Lei 4020 criava o Núcleo
Bandeirante enquanto cidade-satélite, impedindo seu deslocamento para qualquer
outra área; proibia a construção ou reconstrução de habitações de madeira; e esta-
belecia uma verba no valor de Cr$ 200.000.000,00, a ser autorizada pelo Ministé-
rio da Fazenda, para o pagamento da instalação da nova cidade-satélite, através de
convênios com a Prefeitura do Distrito Federal (Diário Oficial, 8/1/1962, p. 168.)
O movimento pró-fixação do Núcleo Bandeirante 199

até então a luta principal era para manter a cidade, a partir da no-
va lei os problemas concretos da infra-estrutura urbana tornaram-
se prioritários.
Na memória dos informantes, a aprovação da lei aparece vin-
culada ao nome do deputado Breno da Silveira, o principal apoio
do MPFUNB no Parlamento.
O deputado Breno da Silveira nos apoiou de corpo e alma, foi o autor
da lei. Não pediu sacrifício, nos ajudou muito, e conseguiu regime de
urgência pra votar a lei. Como foi votada a lei 4020, saiu até uma ver-
ba de Cr$ 200.000.000,00 pra começo, embora a administração não
cumpriu. Depois é que começou outra administração a urbanizar por-
que o Núcleo sofreu muito com a administração e até hoje (sofre).

A aprovação da lei tornou-se então um marco de referência


para os pequenos progressos nos serviços básicos que os morado-
res foram alcançando gradativamente. A base legal traduzia-se em
possibilidade de acesso aos diferentes órgãos públicos e, de certa
maneira, uma entrada no campo da cidadania primária, ou seja, a
de consumidor dos serviços do Estado.
A lei trouxe uma alegria enorme. Só depois da lei é que se passou a
solicitar à Novacap, ao DFL [Departamento de Força e Luz] que ins-
talasse o primeiro poste no Núcleo Bandeirante. O DFL exigiu que só
se o povo pagasse a rede da instalação de luz, e nós pagamos. Aí que
fomos reivindicar a rede elétrica, a água. Nós pagávamos os carros
para a Companhia de Água e Esgoto fazer a instalação de água sem
esgoto. O esgoto aqui, aliás, em alguns lugares, só foi sair agora em
EPE
Não, a Lei 4020 não esgotou os objetivos do movimento, porque a lei
quando chegou era para nós, através dessa lei concretizar mais objeti-
vos, mas o movimento de tanta euforia esqueceu do principal, porque
só a fixação não resolvia nada. [...) Praticamente houve um comodis-
mo depois disso, que a luta foi tão pesada que os elementos se retira-
ram da ofensiva, então, foi como se vencesse uma guerra. Acabou a
guerra, então...
A conquista da lei de fixação coincidiu com um certo refluxo
do movimento, à medida que para a maioria das pessoas o princi-
pal objetivo estava concretizado neste instrumento legal. Porém, o
MPFUNB continuou seu trabalho com uma plataforma voltada
para as necessidades básicas da população (água, luz, esgoto, pa-
vimentação, etc.), contando com o apoio do governo federal. O
200 Nair Heloísa Bicalho de Sousa

*'comodismo” a que se refere um dos informantes pode estar vin-


culado mais à diminuição do número de pessoas apoiando direta-
mente as reivindicações vinculadas à urbanização da área, mesmo
porque o ponto de ruptura da capacidade de ação dos moradores
parece estar relacionado ao golpe militar de 1964 e não à ausên-
cia de participação no MPFUNB.

O golpe militar de 1964 e o fim do MPFUNB

O que fracassou mesmo o movimento foi a queda de João Goulart e


depois a apreensão. Quer dizer, com a queda do João Goulart acabou
o movimento, pois se eles até levaram o arquivo, tomou filme que a
gente tinha, prenderam gente do movimento, acabou, como é que se-
gue? [...] Foi covardia dos generais [...] eles baixaram foi no país in-
teiro... [...] Uma vez tudo destruído... e também vai morrendo um Jí-
der, o outro muda... desfacelou.
O pessoal foi preso porque consideraram a luta subversiva, a luta da
fixação, apesar dela ser pacífica, nunca houve baderna, não houve
passeata em rua.

As recordações do golpe militar de 1964 estão umbilical-


mente ligadas ao fim do MPFUNB: as prisões das lideranças, o
roubo dos arquivos e dos filmes documentários sobre o processo
de resistência dos moradores às derrubadas. É um marco que
permeia a história política nacional, onde a luta dos moradores do
Núcleo Bandeirante representava apenas uma pequena experiên-
cia organizada de preservação dos direitos adquiridos.

A memória da luta

Foi bom o Movimento Pró-Fixação, porque serviu também para poli-


tizar muitas pessoas, politizar, se manifestar.
Eu me senti feliz porque saí vitorioso, porque a gente ganhar é muito
bom. Eu me sinto feliz porque a pressão que a gente sofreu, a perse-
guição... e eu estou aqui vivo, graças a Deus com saúde. O Jânio Qua-
dros foi deposto e aquela renúncia dele foi fictícia, porque as forças
armadas é que obrigou ele a renunciar. Eu nunca sofri dissabor na mi-
nha vida, sou um homem pobre, mas nunca sofri dissabor não, nunca
fui preso, não fui cassado. A liberdade não tem dinheiro que paga, eu
me sinto um homem realizado, família criada... Só eu e a velha aqui,
temos essa casinha, porque era pra gente não ter essa casinha aqui. Eu
O movimento pró-fixação do Núcleo Bandeirante 201

gostava daqui, como eu disse, o dia em que eu não puder mais morar
no Núcleo Bandeirante eu mudo daqui de Brasília, vou pra Anápolis,
vou pra minha terra. Pra mim não tem lugar melhor em Brasília do
que o Núcleo Bandeirante. Sossegado, menos ladrão, eu mesmo ouvi
falar de roubo uma ou duas vezes. Porque em outras cidades é tudo
sobressaltado. Então, eu me sinto muito feliz, eu não me arrependo da
luta. Perdi financeiramente, gastei, mas me sinto feliz...

Esta combinação de felicidade e bem-estar interior com a po-


litização presente nos discursos parece configurar os dois pla-
nos principais do resultado efetivo alcançado: um empenho pes-
soal, uma entrega a uma causa gratificante apesar de sofrida e, ao
mesmo tempo, uma experiência na esfera do político extrema-
mente rica. O envolvimento de toda a comunidade no MPFUNB,
desde jovens, mulheres e profissionais até os representantes reli-
giosos, demontrou ter um significado de coesão, fraternidade e
solidariedade para os moradores.
Os depoimentos retratam a avaliação de uma experiência vi-
vida com o coração: ali, o espaço tinha sido construído palmo a
palmo e ocupado por famílias que se relacionavam intensamente
no dia-a-dia da cidade. Ali estavam depositadas as primeiras es-
peranças e sonhos com a nova cidade. Ali também estavam guar-
dados seus sofrimentos e frustrações. Movimento solidário, dei-
Xou raízes entre os seus militantes e criou laços entre os morado-
res que até hoje se sentem em casa. A cidade cresceu, mas não
perdeu parte de sua identidade inicial, e muitos de seus moradores
continuam mantendo vivo na memória este passado de luta e pro-
messas.

O MPFUNB no governo Jânio Quadros: uma experiência


de autonomia no período populista?
O MPFUNB é um movimento situado em um período históri-
co datado pelos cientistas sociais e políticos como populista. Esta
demarcação específica induz a tomar certos cuidados para uma
abordagem explicativa preliminar dos dados coletados. Sem fugir
a algumas justificativas a respeito da inclusão desta mobilização
social como movimento, cabe lembrar especialmente as coloca-
ções de Borja (1975: 16-61), que se enquadram neste caso.
Em primeiro lugar, há um processo de informação e aceitabi-
lidade do problema, através de um grupo de moradores que con-
202 Nair Heloísa Bicalho de Sousa

vocaram, reuniram e definiram um campo reivindicatório pos-


suindo também representatividade para orientar a ação coletiva.
Formalizando em seguida uma diretoria, o MPFUNB surgiu como
um processo de resistência contra a política urbana adotada pela
PDF para o Núcleo Bandeirante. Isto acabou favorecendo seu en-
quadramento em um perfil reivindicatório em torno de um pro-
blema específico, sobre uma base social interclassista.
Para Borja (1975), a articulação entre os chamados movi-
mentos reivindicatórios urbanos e a estrutura urbana é dada pelos
efeitos políticos provocados pelos primeiros, a partir de sua capa-
cidade de pressão, de organização e do nível de consciência al-
cançado. Esses pontos parecem pertinentes para integrarem uma
avaliação do MPFUNB e auxiliarem na definição de seus contor-
nos específicos e seu significado histórico.
Incorporando a este primeiro ponto o tema do populismo, ca-
be lembrar que a literatura sobre este período aponta para proces-
sos de participação massiva no campo social e político tendo co-
mo características principais a tutela, a subordinação, a cooptação
e a manipulação por parte dos partidos políticos e do Estado. Esta
demarcação de dependência dos agentes sociais no período
pré-1964 coloca-se em questão na análise da experiência do MP-
FUNB.
O movimento nasceu a partir de uma situação concreta viven-
ciada pelos moradores e interpretada como uma postura antagôni-
ca a seus interesses. Na prática da reunião e da discussão defini-
ram seus opositores e formularam suas reivindicações. Não há
neste caso nenhuma força externa pré-determinando a eclosão e a
direção do movimento, mas este surgiu demonstrando certa capa-
cidade de auto-organização (Telles 1983: 6). Esta se explicita na
passagem de reuniões iniciais (clandestinas) às assembléias mas-
sivas de deliberação sobre os rumos da luta e na estruturação de
comissões (de política, propaganda, etc.), além da escolha de re-
presentantes de diferentes categorias (jovens, donas-de-casa, co-
merciantes, profissionais liberais, moradores das avenidas, etc.) e
da constituição posterior de uma diretoria que passou a atuar co-
mo direção efetiva do movimento.
O material levantado pela pesquisa mostra também certa ca-
pacidade de autodeterminação alcançada ao definir seus objeti-
vos, sua estratégia, seus aliados e ao assumir o enfrentamento
O movimento pró-fixação do Núcleo Bandeirante 203

com a prefeitura do Distrito Federal. Há uma escolha em jogo que


se faz a partir da dinâmica interna ao próprio processo organizati-
vo e mobilizador, ganhando espaço em cada fase da luta.
Para organizar melhor a perspectiva explicativa seria interes-
sante levantar alguns pontos a partir dessas colocações iniciais,
configurando um eixo para a compreensão do significado, da na-
tureza e da eficácia do MPFUNB. Em primeiro lugar, caberia
perguntar como o MPFUNB definiu suas relações com o apare-
lho de Estado do DF e os partidos políticos. Esta questão coloca
em cena a retomada dos elementos levantados na análise dos dis-
cursos, de forma que se possa confrontá-los com as perguntas
colocadas para a discussão deste tema.
Tomando a relação do MPFUNB com a Prefeitura do Distrito
Federal, observou-se uma certa experiência de marginalidade vi-
vida nesses contatos diretos com as autoridades. “Bandidos” e
'contrabandistas” são parte do imaginário produzido no âmbito da
esfera do poder, interferindo na negociação das reivindicações em
Jogo. Formou-se uma corrente de oposição ao MPFUNB que ti-
nha origem na Presidência da República e alimentava a ação de-
molidora nas demais instâncias. Do outro lado, Paulo de Tarso “é
mandado por Jânio”, a Subprefeitura do Núcleo Bandeirante ti-
nha como ““palavra de ordem” a “destruição da cidade””, refletin-
do a experiência de antagonismo e violência vivenciada pelos mo-
radores.
O comportamento ambíguo da PDF, ao ordenar a demolição
dos domicílios e ao mesmo tempo tentar ganhar espaço junto aos
inquilinos e comerciantes, constituiu sem dúvida uma forma de
tentar dividir os moradores. Solicitar a entrega das chaves e orde-
nar em seguida a destruição das moradias criou dúvidas, gerou
desentendimentos, estabeleceu o pânico, mas ao mesmo tempo foi
terreno fértil para que brotasse a resistência.
Se acrescentamos à esfera estatal a ação do aparelho repres-
sivo, suporte básico das equipes de demolição, podemos então re-
conhecer o campo do conflito onde os antagonismos se acentua-
ram, assim como as formas diversas de solidariedade, organização
e união. A estruturação de grupos de sobreaviso para sustar as in-
vestidas contra os barracos, baseados na rede de informações que
o movimento conseguiu elaborar através de funcionários da pró-
pria PDF, demonstrou o grau de penetrabilidade alcançado pelo
204 Nair Heloísa Bicalho de Sousa

movimento e sua capacidade mobilizadora que segurava na práti-


ca as tentativas demolidoras. O uso da força alimentou a luta pe-
los direitos adquiridos que foram gestados na própria resistência:
a revolta e a indignação gerando a solidariedade, a consciência do
“nosso”.
No plano do relacionamento com os partidos políticos há
uma particularidade. A ausência de representação política no
Distrito Federal parece ter favorecido certo distanciamento da
postura clientelista por parte dos políticos. Não havia previsão
para o início do processo eleitoral em Brasília, e isto de certa
forma resguardava os moradores de se tornarem alvo fácil da de-
magogia, da manipulação e da cooptação. Qual a importância a
curto prazo deste pequeno eleitorado? Quem ele iria sustentar? A
própria fixação do capital ainda era um assunto polêmico e os an-
timudancistas mantinham fortes esperanças de retorno da capital
para o Rio de Janeiro. Por que ampliar as bases eleitorais num es-
paço urbano com população rarefeita e de pequeno porte, quando
as bases estaduais já estavam montadas e o recurso ao voto era
uma necessidade a curto prazo?
Esses argumentos parecem ter se colocado de alguma forma
no relacionamento que se estabeleceu entre o MPFUNB e os po-
líticos dos mais diferentes partidos. É claro que a luta foi encam-
pada principalmente pelos representantes das agremiações políti-
cas com forte conteúdo popular (PSB e PTB), cabendo ao primei-
ro um compromisso maior com a causa da fixação.
O que parece estar ausente na relação entre políticos e repre-
sentantes do MPFUNB é a prática da manipulação e da coopta-
ção. Os moradores procuraram os parlamentares para apoiá-los
contra as investidas do Executivo e oferecer uma oportunidade de
solução definitiva do problema: a lei de fixação. De fato, isto po-
deria ser o início de uma relação de troca de favores que culmina-
ria na barganha do voto, mas esta não estava em questão no Dis-
trito Federal. É neste sentido que a atitude dos congressistas pa-
rece ter se restringido mais à solidariedade com uma causa popu-
lar do que à busca de eleitores fiéis e servis às regras do jogo po-
pulista.
Se olharmos para a relação estabelecida entre dirigentes e
dirigidos, à experiência do MPFUNB aponta no sentido de uma
ampla participação «dos moradores: “ninguém tinha uma função
O movimento pró-fixação do Núcleo Bandeirante 205

definida”, diz um dos entrevistados. Na prática, isto se traduziu


também na ampliação progressiva das bases do movimento, cuja
articulação entre a estruturação da resistência de um lado e o en-
raizamento na comunidade de outro (trabalho com crianças, jo-
vens e mulheres) criou condições para o enfrentamento. É inte-
ressante lembrar que a definição dos objetivos e da estratégia
adotada fez-se a partir de reuniões e assembléias onde as alterna-
tivas eram colocadas para discussão e as decisões eram fruto qua-
se consensual do processo deliberativo.
Além disso, as comissões de apoio, os representantes de di-
versas categorias, os grupos de resistências às demolições, a or-
ganização das finanças, do material diário para a coluna “Jornal
da Cidade Livre” no Correio Braziliense, a comissão permanente
de apoio do STICMB, as associações de moradores, os parla-
mentares comprometidos com o movimento no Congresso, os fun-
cionários aliados dentro da PDF, dentre outros, constituíam uma
estrutura de resistência organizada que envolvia a ação de inúme-
ras pessoas, fossem elas vinculadas ou não à diretoria do
MPFUNSB.
Se a relação dirigentes-dirigidos não socializou totalmente o
aprendizado adquirido na luta, ao menos parece ter permitido uma
experiência de participação bastante democrática, que sustentou o
movimento para além da aprovação da lei de fixação e urbaniza-
ção.
Quanto à capacidade de pressão, de organização e a cons-
ciência alcançada pelo MPFUNB, o primeiro ponto a considerar
está ligado à forma como ele conseguiu articular seus interesses
mais específicos da luta com as questões políticas mais gerais.
Esta articulação-chave do encaminhamento do movimento passa
em primeiro lugar pela própria compreensão da noção de político.
Sem defender a prioridade do campo institucional, a prática coti-
diana de luta dos moradores foi capaz de mostrar-lhes as pistas do
exercício da dominação, ou seja, como a capilaridade do poder se
fazia presente nas diferentes instâncias do social. Esta percepção
permitiu direcionar a ação coletiva para além da instituição em
confronto (seja a PDF, a Subprefeitura ou o próprio aparato re-
pressivo) e abriu novos espaços reivindicatórios. No caso do MP-
FUNB, a ênfase na demanda localizada acabou de certa forma
privilegiando a ação imediata que, combinada à própria natureza
206 Nair Heloísa Bicalho de Sousa

específica da reivindicação, manteve os horizontes do movimento


em torno da causa da fixação.
Se o alvo da pressão é algo imediato, a capacidade de organi-
zação e conscientização implica um processo crescente de parti-
cipação e crítica. É neste nível que a relação entre a direção e os
moradores coloca-se como fundamental: não basta ter a diretoria
organizada e atuante, é preciso manter este saber originário da
luta em permanente apropriação coletiva.
No caso do MPFUNB, a escolha da democracia direta para o
referendo da luta (reuniões amplas, assembléias massivas, comí-
cios, etc.) parece ter favorecido uma sociabilidade interna à sua
dinâmica, mantendo os moradores de certo modo informados, or-
ganizados e mobilizados em torno de suas reivindicações. Aí há
indícios de o movimento ter alcançado um razoável nível de par-
ticipação, sem que signifique necessariamente o mesmo em rela-
ção à postura crítica dos moradores.
Se a avaliação permanente das ações nem sempre foi alvo de
discussão para a grande maioria, ela se fez de certa forma pre-
sente nos momentos de definição dos rumos a seguir, tanto em
reuniões menores como em assembléias. Isto parece ter favoreci-
do de alguma maneira o processo de conscientização para a defe-
sa do que “era nosso”. Entrou em jogo a formação de uma iden-
tidade coletiva pautada em uma plataforma comum de demandas,
que se fortaleceu no curso da luta e sustentou o enfrentamento
imediato com o aparelho repressor.
Como última questão cabe perguntar sobre o nível de eficácia
alcançado pelo MPFUNB. Não se pretende aqui fazer cobranças
ultrapassando o campo de respostas possíveis por parte do movi-
mento, mas delimitar alguns pontos que sirvam como direção da
análise. O que estava em jogo desde o início era a permanência
ou não de uma política de erradicação do Núcleo Bandeirante
comandada pela PDF. A estruturação do MPFUNB ocorre tendo
como referência este campo de antagonismo criado a partir da
postura arbitrária e violenta da PDF. Neste âmbito, a proposta da
fixação e urbanização da cidade é afirmada como objetivo central
da luta, em torno do qual se definiram estratégias, formas organi-
zativas, alianças e mobilizações. Se o resultado final mostrou a
suspensão dessa política, poder-se-ia então considerar realmente
plena a sua eficácia em âmbito local.
O movimento pró-fixação do Núcleo Bandeirante 207

Voltamos então ao ponto de partida: houve subordinação ou


autonomia do movimento? Se os argumentos apresentados nesta
parte do trabalho forem mantidos, podemos inferir ter o MPFUNB
mantido uma perspectiva de auto-organização e autodeterminação
do ponto de vista de sua natureza, dinâmica e fins. A primeira de-
finiu a constituição de uma identidade coletiva que favoreceu a
percepção dos antagonistas e permitiu a definição de um campo
comum de interesses; a segunda demonstrou ter o MPFUNB se-
guido uma trajetória de resposta coletiva partindo dos elementos
condicionadores de conflito, ou seja, a atitude arbitrária e vio-
lenta adotada pela PDF para impor sua política nesta área urbana;
finalmente, os últimos acabaram sendo alcançados principalmente
através da articulação entre uma organização eficiente, uma mo-
bilização massiva e a definição de uma estratégia onde os aliados
tiveram um papel fundamental para garantir o resultado final da
luta, especialmente o Congresso Nacional.
Com essas considerações, o MPFUNB parece ter revelado
“outra face do populismo janista”, à medida que colocou a nu o
perfil autoritário do carismático líder, em outras áreas do país en-
coberto por uma ideologia presa a um discurso moralista, apelan-
do à violência verbal e ao ideal de justiça como meios de consti-
tuição de uma base eleitoral fiel e servil aos seus propósitos.
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MOVIMENTO DE MORADORES:
A EXPERIÊNCIA DOS INQUILINOS DE CEILÂNDIA

Mara Resende

No contexto da redemocratização do país, a partir dos anos


de 1978-1979, ressurgem, no cenário nacional, inúmeros movi-
mentos sociais dirigidos para a luta por melhores condições de
vida. Quer no espaço das fábricas, quer no espaço dos bairros,
tais movimentos ganham dimensão política ao colocar em xeque
um sistema que impede a todos de praticar o exercício da cidada-
nia.
A reconquista desse direito, por sua vez, encontra-se estrei-
tamente articulada às diversas formas de organização da socieda-
de civil. Neste particular, tem sido arrojada a atuação das comu-
nidades eclesiais de base, das sociedades de amigos de bairros,
dos movimentos dos trabalhadores e outros tantos movimentos!
que têm, entre seus méritos, o fato de promoverem um intercâm-
bio de experiências e organização, que podem chegar a desenvol-
ver novas formas de ajuda mútua como grupos de trabalho, coo-
perativas de alimentação e também gerar, por seu intermédio, um
aprendizado político comum e formas variadas de protesto social,
do que os movimentos de moradores são expressão significativa.
Dentro desse quadro, é propósito do presente artigo apresen-
tar o movimento de moradores de uma cidade-satélite de Brasília
— Ceilândia, com destaque para o movimento dos inquilinos —
abrangendo o período que vai de 1983 a 1985. Cumpre ressaltar,
no entanto, que outras experiências de mobilização coletiva foram
registradas aqui antes desta data, como o Movimento Pró-Fixação

1. Um exemplo marcante foi o Movimento do Custo de Vida, em 1983, com um mi-


lhão e trezentas mil assinaturas, reivindicando aumento do valor do salário-mínimo
e congelamento de preços.
210 Mara Resende

da Cidade Livre? ou, ainda em 1977, com o surgimento de orga-


nização de moradores no espaço nobre do Plano-Piloto.
Por que Ceilândia?
Essa cidade-satélite resultou de uma iniciativa oficial de des-
favelamento, criada para resolver o problema da ocupação urbana
em Brasília. Na verdade, o que ocorre é que Ceilândia soluciona
um problema — a moradia — e o recria a um só tempo, a ponto de
ser (re)conhecida como uma grande favela, fruto da ação do pró-
prio governo. Ceilândia encerra em si mesma uma contradição. A
partir desta constatação, torna-se provocativo conhecer o desen-
volvimento de formas de mobilização num contexto, que, até en-
tão, era marcado pela inexistência de representação política, au-
sência de autonomia política e financeira e presença marcante do
Estado nas tarefas de gerenciar todas as atividades”.

O que é um movimento de moradores

Por meio de uma variada gama de formas associativas, os mo-


radores constroem na Ceilândia uma teia cotidiana de lutas. Este
texto aborda particularmente o movimento de moradores protago-
nizado por suas associações.
Vale ressaltar que, ao aglutinar tais movimentos, as associa-
ções desempenham uma dupla função: a de canalizar e fazer fluir
as reivindicações dos moradores ao poder público e a de trazer as
informações e resoluções deste para os moradores.
Mas o que é um movimento de moradores? Esta pergunta nos
conduz a outras. O movimento de moradores é um movimento so-
cial, um movimento urbano, ou, ainda, um movimento social ur-
bano?
De alguma dessas categorias tem-se utilizado a moda analítica
em curso e, de outras, o senso comum, para designar práticas as-
sociativas de diferentes graus e tipos de organização, produto da
atuação estatal em face das camadas populares. A procura de res-
postas para as indagações acima deve, antes de tudo, buscar sepa-
radamente o significado de cada categoria, determinando as situa-

2. Ver artigo de Nair Bicalho de Sousa, “O movimento pró-fixação e urbanização do


Núcleo Bandeirante: a outra face do populismo janista””, neste volume.
3. Ver artigo de Luiz Alberto Gouvêa, “A capital do controle e da segregação social”,
neste volume. N
Movimentos de moradores 211

ções em que elas são aplicáveis e avaliando os riscos de forjar


explicações imprecisas, quando do abuso do seu emprego.
O posicionamento do francês Alain Touraine, ao estudar os
movimentos sociais, é a de que estes não são reação a uma crise, é
tampouco uma reivindicação pode ser considerada prova sufi-
ciente de sua existência. Para ele, o conflito é o eixo em torno do
qual os atores dos movimentos sociais se situam, se opõem e lu-
tam. Os agentes das classes sociais são os atores dos movimentos
sociais de que nos fala Touraine. Esses agentes, contudo, não são
apenas econômicos (definição dada a partir das relações de pro-
dução), mas agentes culturais e políticos, porque lutam pelo con-
trole da historicidade (conjunto de orientações culturais produzi-
das pelos homens). Portanto, é o conflito de classes que mobiliza
os movimentos sociais e estes não são outra coisa senão uma ex-
pressão direta ou indireta daquele.
Os moradores de que tratamos não constituem uma classe so-
cial homogênea. Vale ressaltar que a composição de classe dos
moradores da Ceilândia está marcada pela presença de um contin-
gente significativo de trabalhadores do ramo da prestação de ser-
viços, ambulantes, biscateiros, operários, etc. Constatada a hete-
rogeneidade social, é certo que Touraine relutaria em creditar,aos
moradores da Ceilândia a potencialidade necessária para torna-
rem-se agentes dos movimentos sociais.
Não resta dúvida de que a composição homogênea de classe
produz movimentos sociais de alcance mais global, à semelhança
dos estudados por Touraine. Entretanto, é preciso dizer que al-
guns estudos têm atestado avanços significativos, que extrapolam
os limites das reivindicações específicas, em movimentos de com-
posição social heterogênea.
Quando à categoria “urbano” é acrescida a de movimento so-
cial, o quadro analítico altera-se e o diálogo passa a ser com
Borja e Castells.
E o que é urbano?
É um conceito cercado de ambigiidades, retrucaria de ime-
diato Castells. É sobretudo à noção de urbano, ap por
meio de categorias ideológicas, que ele está se referindo”. Tal

de
4. Este esquema analítico é desenvolvido por Lefebvre e os discípulos da escola
Chicago, cujas críticas podem ser obtidas em Castells, 1978.
212 Mara Resende

procedimento dificulta a compreensão e mascara o significado de


urbano. Isto porque os problemas vividos pelas pessoas na prática
cotidiana são tratados simbolicamente pela ideologia, e é justa-
mente o contrário o que deve ser feito.
Assim, esse teórico sugere recordar-se que vida cotidiana cor-
responde ao que a economia marxistá denomina processo de re-
produção de força de trabalho. Para ele, são o consumo individual e
o consumo coletivo que respondem por tal processo. Muito embo-
ra os dois processos estejam articulados na prática, é o consumo
coletivo o determinante. Portanto, o processo da reprodução da
força de trabalho estrutura-se no nível do consumo coletivo e é a
partir dele que Castells identifica empiricamente os problemas da
vida cotidiana, vale dizer, aqueles ligados ao processo de repro-
dução da força de trabalho, elementos que precisam o significado
do “urbano”.
De posse do conceito de “urbano”, que se define em termos de
“reprodução coletiva da força de trabalho”, um outro pede agora
explicações: o de movimento social urbano.
Os problemas urbanos, como já assinalado, estão ligados aos
processos do consumo coletivo, que estruturam a vida cotidiana,
sendo todo esse processo realizado sob o desenvolvimento urbano
capitalista. As contradições dele emergentes provocam um con-
flito social. Pois bem, este conflito, ligado à organização coletiva
do modo de vida e decorrente das contradições específicas da
problemática urbana, geradas por contradições mais amplas no
interior do capitalismo, é identificado como sendo “movimentos
sociais urbanos”. O conflito, assim como na concepção de Tou-
raine, é o elemento propulsor de movimentos sociais, porém Cas-
tells circunscreve-o às contradições específicas da problemática
urbana.
Acompanhando o raciocínio do autor, as contradições urba-
nas são sobretudo contradições do desenvolvimento urbano capi-
talista. Explicar a determinação social desses movimentos passa
antes pela definição destas contradições. Neste sentido, o conflito
urbano expressa-se pela forma como uma coletividade responde a
estas contradições, o que equivale a dizer que nem todo conflito
que suceda no espaço urbano deve ser assim nomeado. Aqueles
vinculados à organização social do espaço e à produção, distri-
Movimentos de moradores DS

buição e gestão dos meios de consumo coletivo são os que podem


ser caracterizados como conflitos urbanos.
Na tentativa de dar-se um cunho mais aprimorado ao enten-
dimento de movimento social urbano, um outro conceito entra em
cena com vigor: estrutura urbana. É ela que assegura a reprodu-
ção dos meios de produção e reprodução da força de trabalho. A
capacidade que tem um conflito de incidir ou ainda modificar a
estrutura urbana é que irá definir o alcance do movimento.
Vale salientar, todavia, que Borja destaca dois tipos de efei-
tos que podem ser produzidos a partir da ação dos movimentos: o
efeito urbano e o efeito político. O primeiro diz respeito àqueles
conflitos ligados aos bens de consumo coletivo (moradia, equi-
pamentos urbanos), de tal sorte que os movimentos que eclodem
com esta identidade são apenas “mobilizações populares relativas
às reivindicações urbanas” (Castells 1978a: 4). Seu alcance tende
a ser curto, porque, atendidas as reivindicações, eles se esface-
lam. Esse o sentido de movimento urbano. Praticamente todo mo-
vimento tem algum efeito urbano.
Já o efeito político é mais complexo do que o efeito urbano,
pois repercute diretamente na política urbana.
Ele é resultado da modificação de fato da correlação de for-
ças entre os grupos sociais que se enfrentam no sistema urbano, O
que redunda não só em atuar e alterar a política urbana, mas em
modificar a lógica do funcionamento da estrutura urbana (Borja
1975).
Os conflitos urbanos geram um processo reivindicatório que
passa por diferentes fases. É nesta trajetória que os movimentos
se articulam, em maior ou menor grau, com outros movimentos
sociais, outras organizações e ainda estabelecem relação com o
Estado.
É o Estado que se encarrega de prover os equipamentos cole-
tivos que garantem a reprodução de força de trabalho. Portanto, o
Estado torna-se o ordenador, o “sustentáculo da política urbana”.
Isto significa que, ao mesmo tempo em que ajuda diretamente os
monopólios capitalistas, intervém no processo de consumo, to-
mando para si os encargos de vários setores de produção que são
essenciais à reprodução da força de trabalho, o que significa que
as reivindicações e as exigências sociais passam a ser gerenciadas
por ele. Isto posto e dependendo da relação movimento-Estado,
214 Mara Resende

duas situações se estabelecem. Uma que se caracteriza pela inte-


gração dos movimentos ao total domínio e vontade do Estado, e
outra em que os movimentos se opõem à manipulação do Estado,
fazem pressão, reagem, dando origem ao conflito e à mudança
(Castells 1978). Os movimentos sociais concebidos por nossos
interlocutores inserem-se no âmbito da segunda situação.
Do quadro traçado até o momento, dois pontos sobressaem-
se. O consumo coletivo — responsável pela reprodução da força de
trabalho, que a partir das contradições urbanas estimula o confli-
to, dá vazão ao movimento — e a relação do movimento com o
Estado.
A esse respeito, qualquer que seja a consideração que se
queira proferir, parece útil admitir, em princípio, que Castells
amarra estes instrumentos conceituais de trabalho a uma realidade
encontrada no capitalismo avançado. É ainda ele quem adverte:
“[...] a articulação dos movimentos sociais urbanos com o proces-
so de consumo coletivo é uma hipótese de trabalho que pode ser
verificada pela análise concreta de sociedades capitalistas avan-
çadas nas quais nos temos fixado””, e mais, que a organização dos
meios Coletivos de reprodução da força de trabalho são “meios de
consumo objetivamente socializados e que, por razões históricas
específicas, são essencialmente dependentes por sua distribuição
e gestão da intervenção do Estado” (Castells 1978: 12).
Com tudo isso Castells está querendo dizer que ele se exime
de qualquer responsabilidade analítica quando não se fizer caso
dessa advertência e quando a análise se der para além das frontei-
ras das sociedades capitalistas avançadas. Mas, ao examinarmos
seu esquema, o que fica implícito é o fato de o ator dos movi-
mentos sociais urbanos possuir os atributos inerentes ao trabalha-
dor, como vendedor de sua força de trabalho ao detentor dos
meios de produção, ou seja, uma classe social que se opõe à outra
no processo de produção.
Percebendo tal situação, Santos (1981: 198-214) coloca com
muita propriedade que o raciocínio análogo poderia ser feito as-
sim: o morador, consumidor dos bens de consumo coletivo, opõe-
se ao Estado provedor de tais bens no processo de consumo. É
um jogo que nos induz a considerar o morador como componente
de uma classe social, retirando certas especificidades que a cate-
goria morador contém. Ao nomearmos o morador da Ceilândia
Movimentos de moradores 2 IIS)

não nos reportamos a sua base de classe, que já vimos ser pluri-
classista, mas aos laços de identidade, aos sentimentos comuns
criados no local de moradia.
Os caracteres identificativos desse morador são, sobretudo, o
fato de ter sido construtor de Brasília — pioneiro, na sua fala — e
ainda ser procedente das vilas da Cidade Livre. Evidentemente,
falamos do morador de determinada área da Ceilândia. Isto porque
Outros setores foram sendo incorporados à chamada Ceilândia
tradicional, definindo o perfil de outro morador, o mutuário do
Sistema Financeiro da Habitação. Cumpre adiantar que guardam
em comum o sentimento de pertencerem ao mesmo espaço urba-
no, o que lhes confere o direito de participar da vida da cidade.
Este trecho porpõe algumas considerações que serão feitas poste-
riormente.
Finalizando a referência a Castells, resta apontar que, ao es-
tabelecer a relação movimento-Estado, apenas duas situações po-
dem ser realizadas: uma, em que os movimentos se deixam coop-
tar e, por conseguinte, se aliam ao poder do Estado, e outra, em
que os movimentos se rebelam contra o poder constituído, pro-
movendo o conflito e a mudança.
Deve ser dito que não encontramos traços tão nítidos como
estes em nossos movimentos reivindicatórios. O que alguns estu-
dos têm registrado é que, no desenrolar das ações reivindicató-
rias, o poder público tem-se apresentado sob diferentes faces e,
também, que o diálogo e a negociação têm-se constituído instru-
mentos eficazes das administrações mais modernas.
Por outro lado, é preciso admitir que, seguindo suas próprias
conveniências, as associações, no desenrolar das demandas que
faz ao Estado, também podem exibir distintas faces. Por isso, pa-
rece útil considerar as advertências de Caldeira quanto ao risco de
inscrever as práticas de todas elas numa moldura que oscila entre
'conservadorismo e radicalismo”, “tradicionalismo e modernismo”,
“classistas ou clientelistas”, “passivas e contestadoras”, ao se bus-

S. A este respeito, são exemplares os estudos de caso realizados por Carlos Nelson
Ferreira dos Santos (1981). Este autor apresenta a atuação de três movimentos po-
pulares em relação à política habitacional proposta pelo governo do Rio de Janeiro,
evidenciando, em cada caso, o papel dos personagens envolvidos no processo e na
mudança de posição que cada qual assume no desenrolar do movimento.
216 Mara Resende

car uma racionalidade classista, e a partir daí tentar atingir a polí-


tica de confronto com o Estado (Caldeira 1984).
Voltando à questão inicial de nossa discussão, concluímos
que o movimento de moradores não é um movimento social à ma-
neira de Touraine, nem tampouco à de Borja e Castells. Então,
como caracterizar o que denominamos movimento de moradores?
Afirmamos, anteriormente, que cabe ao morador o direito de
participar da vida da cidade. Não há dúvida de que esse direito só
se concretiza no usufruto dos serviços que a cidade deve oferecer
ao seu habitante: da moradia aos equipamentos comunitários bási-
cos, dos centros de lazer aos espaços culturais. Todavia, o que
ocorre em nossas cidades — e Brasília não foge à regra — é que a
moradia decente e os serviços públicos são privilégios de parte do
espaço urbano. A outra parte é marginalizada pelo poder público,
ficando, consequentemente, desprovida de condições dignas de
vida.
Da experiência vivida na desigualdade decorre, por parte de
uma coletividade, o desejo de realização de seus direitos. Para
satisfazer tal desejo irrompem, especialmente nas localidades pe-
riféricas das cidades, movimentos organizados empenhados em
afirmar um direito que não está inserido em nossos códigos le-
gais.
Na observação de Souza Júnior (1988: 38) “a representação
deste direito somente é possível no contexto paradigmático de
formulações culturais e contraculturais. No terreno da teoria do
direito, por exemplo, as circunstâncias que colocam tal possibili-
dade derivam da análise do pluralismo jurídico que admite no es-
paço social a existência de outros direitos que não os exclusiva-
mente postos pela ação do Estado.”
Assim, a reivindicação por moradia e pelos equipamentos a
ela associados compõe um conjunto de direitos construídos de
maneira informal e coletiva pelas associações de moradores e or-
ganizações comunitárias. Com efeito, quando o morador reivindi-
ca, respaldando-se nos seus direitos, está exigindo que lhe seja
resguardado o direito de viver na cidade. Neste sentido, quando o
morador manifesta consciência de seus direitos e perde o temor de
exigi-los, está se processando internamente o reconhecimento de
que, além de indivíduo, é também sujeito.
Movimentos de moradores 217

Enquanto morador/sujeito que tem direitos, ele estabelece


relações externas com o Estado e a sociedade de modo geral. O
reconhecimento, antes processado internamente, passa a deman-
dar reconhecimento de fora. Quando o Estado responde às de-
mandas formuladas pelo morador/sujeito, fica comprovado que o
reconhecimento externo de fato se consolidou, tornando legitima-
do o Estado e o próprio movimento (ver Durham 1984).
Caracterizado o significado de movimento de moradores, pas-
samos para a montagem do cenário e, em seguida, a narração da
trama desencadeada pelo morador de Ceilândia.

Ceilândia no contexto de Brasília

Do traço no papel à concretização do projeto da nova capital


muitas foram e são as considerações evidenciadas, configurando
correntes distintas de opinião que envolvem Brasília num signifi-
cado polêmico. Uma dessas polêmicas gira em torno de uma das
características do partido urbanístico da cidade, ao pretender in-
tegrar as diferentes classes sociais num conjunto urbano único.
Malgrado a “nobreza de intenções” dos planejadores da cida-
de, Brasília absorve as contradições e conflitos da sociedade bra-
sileira, que é marcada pela desigualdade, pelo antagonismo de
interesses das classes sociais e, sobretudo, pelo sistema de explo-
ração de uma classe sobre outras. É bom que se diga que come-
çou cedo a diferenciação social refletida na ocupação do espaço
em Brasília. Paralelamente ao assentamento planejado do Plano-
Piloto foram surgindo adaptações e novas formas de ocupação es-
pontâneas, não previstas nos projetos. Já no início da construção
havia os “acampamentos” das firmas construtoras, verdadeiras vi-
las onde viviam operários, engenheiros e técnicos, e que se espe-
rava fossem desaparecendo quando os trabalhos terminassem.
Com o término das obras e a contínua chegada de migrantes, re-
petiram-se as histórias de busca de moradia, a exemplo do que
ocorre nas cidades convencionais. Surgem os posseiros urbanos
de Brasília, que invadem áreas do Plano-Piloto, originalmente não
destinadas à habitação e muito menos à habitação popular.
A reação do governo do Distrito Federal foi iniciar a criação
de outros núcleos urbanos, “cidades-satélites”, para onde seria
transferida essa população. Em contraste com o caráter provisório
218 Mara Resende

dos acampamentos e das invasões, as cidades-satélites são uma


iniciativa oficial, dirigida, e sua implantação obedece a determi-
nados planos e traçados.
A criação de núcleos desse tipo vinha sendo pensada desde a
fase de definição do projeto para a nova capital (ver Costa 1984).
Mas pensava-se nisso como uma fase, exatamente, de desenvolvi-
mento posterior, quando a população do Plano-Piloto já tivesse
atingido o limite estabelecido de 500 a 700 mil habitantes. Porém
ocorreu uma inversão, segundo expressão de Lúcio Costa, porque
a população que veio para a construção aqui permaneceu, origi-
nando o problema de onde localizá-la.
Assim, desde 1958, antes mesmo da inauguração de Brasília,
cria-se Taguatinga, para absorver “invasões” da vila Sarah Kubits-
check. Em 1959, Sobradinho, em 1960, o Gama, e em 1961 o
Congresso aprova uma lei considerando o Núcleo Bandeirante — a
Cidade Livre — como cidade-satélite. A expressão cidade-satélite
é estendida às antigas cidades goianas Planaltina (fundada em
1859) e Brazlândia (desmembrada de Luziânia em 1933) e tam-
bém ao Guará, nome pelo qual fica conhecido o Setor Residencial
Indústria e Abastecimento, que, formalmente, é apenas um “setor”,
um bairro de Brasília (Guará I, inaugurado em 1960, e Guará II,
em 1972).
Em 1971 é criada a Ceilândia, dentro da mesma perspectiva
de absorver invasões, como revela o próprio nome que deriva da
sigla CEI — Campanha de Erradicação de Invasões. Até 1975 é
vinculada a Taguatinga, mas também já era cidade-satélite, não
no sentido jurídico-administrativo e sim pelo aspecto social,
efetivo, de ser um núcleo urbano que, como os demais, gravita em
torno de Brasília. Este, o sentido da expressão cidade-satélite,
esta a origem da Ceilândia, cidade-satélite de Brasília.
A distância dessa satélite ao Plano-Piloto é de aproximada-
mente 36 quilômetros. Sua área está dividida em quatro partes. A
existência de equipamentos urbanos básicos é prevista igualmente
em cada uma delas. Nas entrequadras situam-se pequeno comér-
cio, pontos de ônibus, escolas, igrejas; já nas quadras estão loca-
lizadas as habitações individuais.
O desenho das quadras, das entrequadras e dos dois eixos
cruzados dão à Ceilândia o formato semelhante ao de um barril. É
Movimentos de moradores 219

nele que se inscreve a chamada Ceilândia tradicional, com exten-


sões ao norte — Ceilândia Norte — e ao sul — Ceilândia Sul.
Para conter o déficit habitacional, são construídos conjuntos
habitacionais na extensão da Ceilândia Sul — a Guariroba — e ou-
tros mais, dando origem aos conhecidos setores O e P — norte e
sul — e ainda 6 300 lotes para autoconstrução de moradia na ex-
pansão do setor O.
Vê-se nesa área, o predomínio de uma arquitetura que combi-
na barracos de madeira, lona ou zinco com casas de alvenaria e
ainda as moradias padronizadas com carimbo do BNH. Todavia,
o que esse cenário não consegue esconder é a existência de inú-
meras famílias que dividem entre si o reduzido espaço de um lote.
A população da Ceilândia, estimada oficialmente para o ano
de 1988, foi da ordem de 492 947 habitantes, enquanto o contin-
gente populacional previsto para o Plano-Piloto foi de 377 215
(Codeplan 1984:27). Trata-se de uma população jovem, onde
75,3% tinham menos de 29 anos, em 1980.
Para o mesmo ano, das 468 133 pessoas em idade de traba-
lhar em Brasília, 20,1% eram procedentes da Ceilândia. O setor
da prestação de serviços, cujos postos de trabalho se situam em
sua maioria no Plano-Piloto, foi responsável pela absorção de
30,59% dos trabalhadores empregados dessa satélite. De modo
geral, são trabalhadores com baixo nível de escolarização e quase
nenhuma qualificação profissional.
A renda familiar em 1980, de acordo com levantamento feito
pela paróquia local, estava concentrada na faixa entre um e dois
salários-mínimos — 32,40% para o universo de 8 144 entrevista-
dos — 19,21%, na faixa de um salário-mínimo, 12,34% na de dois
e três salários-mínimos, e 10,15% situados na faixa de dois salá-
rios-mínimos.
Quanto aos problemas de infra-estrutura urbana é preciso in-
sistir que Ceilândia foi prometida a uma população favelada como
sendo um espaço digno de habitabilidade. Há que se dizer, contu-
do, que somente seis anos depois de criada é que Ceilândia ofere-
ce água encanada aos seus moradores e, a partir de 1983, a rede
de esgotos começa a ser instalada.
Contornados alguns problemas, criados e recriados outros
tantos, Ceilândia exibe, ainda hoje, toda a sorte de carências
(hospitais, espaços para lazer, pavimentação, etc.) decorrentes da
Movimentos de moradores 221

falta de assistência, por parte de nossas autoridades. Como os


problemas vividos pertencem a todos, constituem-se também o fo-
co de mobilização dos moradores. Esta é uma questão básica que
será mostrada a seguir.

Ceilândia: espaço da prática coletiva dos moradores

No período de 1979-1985, o país vive momentos importantes.


O final da repressão instaurada pelo regime militar; a anistia aos
exilados políticos; as eleições; o surgimento das oposições sindi-
cais e o novo sindicalismo; a reorganização partidária e ainda a
proposta de organização de um partido dos trabalhadores; a cam-
panha por eleições diretas para presidente; a luta nos bairros e nas
fábricas. A organização e luta dos negros, das mulheres, dos ho-
mossexuais, dos índios; o movimento dos sem-terra; o movimento
pela representação política em Brasília. Cada movimento com
seus reclamos específicos: o direito à liberdade sindical, à luz, à
água, à assistência médica, à moradia. Direito ao voto, ao prazer
e direito à igualdade.
Ouvindo o rumor de todas essas manifestações, inquilinos de
Ceilândia reavivam de maneira coletiva o movimento de recon-
quista de um espaço, como cidadãos, que anos a fio fora soterra-
do e ignorado pelo poder dominante.

A organização do movimento

As precárias condições de vida dos inquilinos de Ceilândia


constituem o estopim responsável pela deflagração de seu movi-
mento. Os barracos onde moram não oferecem as mínimas condi-
ções de habitabilidade, e quando atrasam o pagamento do aluguel
são despejados. Além disso, o inquilino vê-se na contingência de
não encontrar imóvel para alugar, caso sua família seja numerosa.
E frequentemente tem que se sujeitar a conviver com mais dez
outras famílias, num lote de 250 m?.
O movimento dos inquilinos tem início em 1983, com uma
reunião da qual participaram quinze famílias. Em seguida, duas
outras reuniões são realizadas com um número bem maior de par-
ticipantes, cento e cinquenta em uma e três mil em outra. O mo-
vimento orienta a ação em torno da moradia, que constitui a rei-
SIS) Mara Resende

vindicação central. Aos poucos, -o movimento vai conseguindo


mobilizar um número crescente de pessoas e exibir um vigor rei-
vindicativo de maior envergadura. Isto faz com que o governo or-
dene a atuação da polícia em uma das reuniões para aprisionar os
mais exaltados.
A falta de moradia aglutina efetivamente os integrantes do
movimento, porque todos compartilham o mesmo problema. No
tocante a este ponto é ilustrativa a observação feita por um parti-
cipante.
O movimento foi puxando nós, né? Nós não tínhamos idéia de fazer o
movimento do jeito que está hoje.
Inicialmente, os inquilinos decidem pela ida ao palácio do
governo para apresentar o pleito. Caso a autoridade responsável
não concedesse os lotes reivindicados, estavam dispostos a inva-
dir qualquer área para construção de suas moradias. Com essa
intenção, os inquilinos demonstram crença em seus direitos e dei-
xam às claras o sentimento de uma comunidade que se vê discri-
minada e excluída dos benefícios sociais básicos, manifestando
consciência de insubordinação contra a ordem vigente.
A ameaça de invadir uma área para fixar suas moradias pro-
voca agitação no poder público. A resposta da administração lo-
cal é no sentido de liberar uma área com três mil lotes, como for-
ma de pôr fim ao problema e debelar o movimento.
Convencidos de que o número de lotes prometidos não cor-
respondia à demanda, os inquilinos conseguem mostrar, por meio
de uma pesquisa, que dezesseis mil e seiscentas família não pos-
suíam teto próprio. Com estes dados eles se apresentam numa au-
diência com o governador que decide pela distribúição do mon-
tante de 6 300 lotes aos inquilinos de Ceilândia.
A resolução do governo é confirmada nas manchetes dos jor-
nais locais, com a contratação de uma firma especializada para
projetar a expansão racional do setor O dessa cidade-satélite, com
base num estudo que compreendia a análise do solo, limitação da
área, drenagem pluvial e, ainda, a dimensão de cada lote.
O acordo firmado entre inquilinos e governo não previa a
concessão de lotes com moradia, vez que o orçamento governa-
mental não dotava verba para esta finalidade, nem tampouco os
inquilinos poderiam arcar com o ônus financeiro de tal empreen-
Movimentos de moradores 223

dimento. Isto significa que, de posse dos lotes, os inquilinos te-


riam que sacrificar os fins de semana e erguer cada qual, indivi-
dualmente, o teto para sua família.

Do movimento à associação
O pleito acatado pelo governo repercute positivamente no
movimento dos inquilinos, revigorando sua disposição de luta.
Longe de esmorecer a mobilização mantida até então pela coleti-
vidade dos inquilinos, a concessão dos lotes abriu campo para a
formulação de novas ações, como, por exemplo: a definição de
critérios próprios para a distribuição dos lotes, a vigília perma-
nente no local das obras de loteamento e ainda na legalização do
movimento com a criação e registro da Associação dos Inquilinos
da Ceilândia (ASSINC), em fevereiro de 1984.
A constituição da associação representa a instância legítima e
legal do movimento. Internamente, é um suporte sólido para os
atores, pois, por seu intermédio, é possível dimensionar o limite
das ações. Externamente, é o espaço de intermediação reconheci-
do.
Uma vez criada a associação e instalada sua sede, é possível
ver, com frequência, um contingente expressivo de pessoas se en-
fileirando diante do prédio da ASSINC para filiação. Por um la-
do, tal procedimento indica a repercussão positiva do movimento
junto à comunidade, mas, por outro, deixa aflorar noções distorci-
das acerca do real objetivo da entidade, fato que pode ser com-
provado pelos depoimentos colhidos junto a alguns filiados.
A associação é o local onde se faz inscrição para receber os lotes que
o governo prometeu.

Para comandar o movimento dos inquilinos, duas chapas


apresentam-se numa concorrida eleição para a ASSINC, em junho
de 1984. A chapa vitoriosa é encabeçada pela liderança do movi-
mento, que tem seu trabalho reconhecido pelos votos favoráveis
depositados nas urnas.

Pra criar uma associação nós tivemos reunião com inquilino da Cei-
lândia Norte e Sul. Colocamos o que a associação podia representar
pra nós, né? E de acordo com que eles aceitaram, nós criamos a asso-
ciação. Nós trabalhamos em cima da idéia do povo.
224 Mara Resende

Em relação ao insucesso da chapa concorrente, o presidente


eleito assim se manifesta:
[...] Eles querem parar com o movimento por aqui mesmo, que o lote é
pouco e não vai dar pra todo mundo. Em vez de chamar o pessoal pra
lutar por mais lote, eles não percebem que o governo tem que ter
compromisso com todo inquilino e não só com quem está lutando.
Superadas as tensões vividas no período eleitoral, os inquili-
nos se dão conta da lentidão do trabalho de loteamento, enquanto
inúmeras famílias continuam sendo desalojadas pelos proprietá-
rios dos imóveis que ocupam.
Para avaliar essa situação, é convocada uma assembléia que
delibera pela invasão da área em obras, se o prazo de entrega dos
lotes alongar-se demasiadamente. E, para garantir o cumprimento
do que fora prometido a eles pelo governador, exigem que um
integrante do governo se faça presente para prestar esclareci-
mentos sobre o assunto, numa manifestação que fariam junto ao
prédio da administração local. O desafio incita resposta imediata
do governo que se nega a enviar qualquer representante à mani-
festação e ainda adverte sobre a possibilidade de serem tomadas
medidas enérgicas para desativar quaisquer atos de desordem na
Ceilândia.
Neste enfrentamento com o poder público, a correlação de
forças mostra-se desfavorável aos inquilinos, o que os obriga ao
recuo.

Definindo critérios

Já em pleno funcionamento, a associação incumbe-se da tare-


fa de demonstrar que o contingente de pessoas desprovidas de
moradia é superior ao montante encontrado no levantamento efe-
tuado anteriormente. Constata-se agora que mais de trinta mil fa-
mílias vivem o mesmo drama. Como o número de lotes é insufi-
ciente para contemplar a todos, sua distribuição deverá ser feita
em observância a critérios justos, estabelecidos conjuntamente
pelo governo e a associação.
E, no entanto, o governo que, em desrespeito ao que fora es-
tabelecido, oferece o primeiro critério: os contemplados com os
lotes deveriam se dividir entre os que possuíam inscrição na So-
Movimentos de moradores DS

ciedade de Habitação de Interesse Social (SHIS)º até o ano de


1979 e antigos moradores que não conseguiram cadastro nesta
empresa.
Manifestando repúdio ao que fora apresentado pelo governo,
a associação exibe seus próprios critérios. Entre os pontos arrola-
dos constavam: 1) a obrigatoriedade do cadastramento dos inqui-
linos pela ASSINC, dada sua credibilidade junto à população de
Ceilândia; 2) a formação de uma comissão paritária com repre-
sentantes da associação e da administração local, tendo em vista a
necessidade de coletar dados reais sobre as condições de vida dos
inquilinos; 3) a distribuição equânime dos lotes: 50% para os ins-
critos na SHIS e a outra metade para os não-inscritos, proposta
acatada por todas as assembléias convocadas para tal fim; 4) distri-
buição prioritária para inquilinos removidos da Cidade Livre, pois
formam um contingente numeroso de trabalhadores pioneiros de
Brasília, totalmente desassistidos pelo poder público; 5) a compo-
sição numérica da família; 6) a observação do estado civil do ca-
sal. Se a união não tivesse lastro civil, o registro do lote deveria
ser efetuado em nome da mulher, como forma de evitar a venda do
lote pelo homem e deixar os filhos expostos ao desamparo; 7) por
último, dar prioridade aos representantes de conjunto que tiveram
uma atuação efetiva na mobilização dos inquilinos e organização
do movimento (Última Hora, 15/8/84).
Estas propostas são entregues ao governo em agosto do ano
de 1984, já que a liberação dos lotes fora prometida para meados
de janeiro de 1985. Enquanto aguardam, segue-se um período in-
tenso de trabalho com reuniões, assembléias, concentrações, num
vigor reforçado pela primeira grande vitória.

6. A Sociedade de Habitação de Interesse Social (SHIS) foi criada em 1964. É um ór-


gão da administração indireta do governo do Distrito Federal, encarregada da im-
plementação dos programas habitacionais para população, sobretudo a de baixa
renda. Para a aquisição da casa própria, a SHIS exige que o promitente comprador
declare seus rendimentos, o número de filhos e outros dados complementares, no
ato de inscrição. É por meio destes dados que os inscritos são selecionados.
Em 1979, a SHIS procede à entrega de alguns conjuntos habitacionais em
quantia insuficiente para atender à demanda, interrompe a construção de novas uni-
dades habitacionais e proíbe a realização de novos cadastramentos. Registra-se,
desta forma, no movimento, a presença de um contingente numeroso de inquilinos
que, possuindo cadastramento feito pela SHIS, não conseguiram ser absorvidos por
seus programas habitacionais.
226 Mara Resende

Acho que agora, diz o presidente, é conscientizar que os lotes não vão
dar e que tem que lutar por mais. Porque se nós ficamos calados aqui
e o lote não der para todo mundo, eles podem explodir, tomar qual-
quer decisão. Foi necessário lutar por mais e a luta vai continuar.

Caminhando contra a corrente

A quadra, desenho urbano que demarca o espaço físico da


Ceilândia, compõe-se de conjuntos. No caso dos inquilinos, o
conjunto é a unidade que garante a estruturação do movimento,
pela viabilidade da comunicação interna e a proximidade entre a
associação e seus filiados. O representante de conjunto é um mi-
litante valioso, pois assegura a divulgação de informações, aciona
a comunidade para participação das reuniões e mantém o controle
do arquivo com dados básicos sobre a situação de cada integrante
da associação.
A trajetória do movimento dos inquilinos está marcada pelo
apoio dado pela imprensa e pela Igreja. Os órgãos de comunica-
ção deram cobertura de primeira mão a todos os episódios viven-
ciados pelo movimento. Pesquisar a história dos inquilinos é se-
guir o percurso dos fatos divulgados pela imprensa. Ademais, os
repórteres e jornalistas emprestaram sua imagem pública que foi
bastante preciosa nos momentos de embate com autoridades do
governo.
Se, até hoje, nós não tivéssemos a imprensa, eles nos prendiam, passá-
vamos uma semana preso. Quando a imprensa não está junto, eles
abusam da gente. Quando a imprensa não chega, eles são um tipo de
pessoa, quando a imprensa chega eles são outro tipo. Passam a res-
peitar mais.

À igreja coloca suas dependências à disposição dos inquilinos


para realização de reuniões. Nos dias de celebração de missas, O
sacerdote reforça os comunicados vindos da associação, manten-
do, com este procedimento, os inquilinos sempre informados.
O término das obras de loteamento, anteriormente previsto
para o mês de janeiro, é postergado sem que se esclareçam os
critérios a serem observados na distribuição dos lotes. No final
desse mês a administração da Ceilândia e o Centro de Desenvol-
vimento Social (CDS) coordenam novo levantamento, objetivan-
do conhecer a situação real dos inquilinos e com isto corrigir in-
Movimentos de moradores PAST)

formações imprecisas dos levantamentos anteriores, realizados


pela entidade dos inquilinos.
Ainda que inconclusas as obras na expansão do setor O, o
governo procede à distribuição dos lotes. Os primeiros inquilinos
contemplados são curiosamente os membros da diretoria executi-
va da associação”. Um golpe de mestre!
Os inquilinos mostram-se revoltados e a associação empenha-
se na ação de reverter a intenção desmobilizadora do governo.
Para tanto, são convocadas reuniões e assembléias para avaliação
do procedimento adotado pela administração da Ceilândia, ao ig-
norar por completo os critérios propostos pela associação. Todo
este barulho por parte dos inquilinos não é, contudo, suficiente
para interromper a distribuição dos lotes feita pelo órgão gover-
namental.
Dentre aqueles que receberam lotes, constava ainda um nú-
mero significativo de inquilinos com rendimentos mensais insufi-
cientes para a construção da moradia. Diante de tal fato, a
ASSINC assume outro desafio. De gravador na mão, os repre-
sentantes dos inquilinos vão até o governador refrescar-lhe a me-
mória: a promessa feita pelo governo previa a concessão dos lo-
tes, independentemente da unidade habitacional, mas, em contra-
partida, os inquilinos teriam financiamento para compra do mate-
rial de construção.
A luta dos inquilinos continua com a reivindicação pelo mate-
rial de construção, a reivindicação por justiça na distribuição dos
lotes e mais lotes para contemplar a todos. Novas diretrizes são
traçadas e novos horizontes são vislumbrados pelo movimento,
com o advento da Nova República.

Reflexões finais

Parece ser idéia corrente entre os estudiosos dos movimentos


sociais que estes surgem em nosso contexto, principalmente, co-

7. A não observância dos critérios propostos pela Associação, para a distribuição dos
lotes, produziu resultados inesperados. Inicialmente, foram remetidas pela Admi-
nistração 1 300 (hum mil e trezentas) cartas aos contemplados. Uma parcela desta
remessa não encontrou destinatário. Alguns dos que receberam o comunicado não
compareceram à Administração e outros devolveram o lote pois possufam imóvel
no Distrito Federal.
228 Mara Resende

mo resposta ao intenso processo de pauperização por que passa


uma parcela significativa da sociedade, com a deterioração de
suas condições de vida e de trabalho.
Em face desta situação, os movimentos sociais podem ser
apontados como um canal de solução coletiva dos problemas vi-
vidos pelas pessoas no seu quotidiano. É no bojo deste processo
que emergem os movimentos reivindicatórios localizados nos
bairros. A moradia, a melhoria nos transportes, pavimentação e
iluminação de ruas, redes de água e esgoto são demandas fre-
quentes que geralmente conduzem os integrantes do movimento a
um processo de tomada de consciência da situação social vivida.
Os problemas vividos por todos demandam soluções imediatas e
sua busca torna-se uma aspiração coletiva. Nestas condições, o
processo de mobilização flui com espontaneidade, arrastando o
contingente efetivo dos participantes do movimento.
Do que foi dito fica claro que é a reivindicação a mola aglu-
tinadora das forças e o elemento que garante a coesão interna dos
componentes do movimento. Fica claro também que o movimento
pode ter um período muito curto de existência, tão logo sejam
buscadas as soluções e atendidas as reivindicações.
Estas observações, que podem configurar características de
muitos movimentos, levam alguns autores a questionar sua im-
portância e igualmente seu potencial político. Para tanto, diriam:
o movimento deve extrapolar seu caráter reivindicatório e loca-
lista e definir estatégias que patrocinem mudanças a serem perse-
guidas pela ação coletiva. Sem dúvida, esta indagação marca um
posicionamento que define, a priori, o horizonte que o estudioso
espera ver contemplado nas lutas travadas pelos movimentos so-
ciais. Nestes casos, toma-se como premissa, a “potencialidade
transformadora” das lutas que se desenvolvem nas cidades e, a
partir daí, confere-se significância ao movimento.
Dentro desta vertente, explicar o movimento dos inquilinos
da Ceilândia significa tomar-lhe as características esboçadas no
decorrer da ação coletiva e, de posse dos resultados, classificar o
movimento em função da expectativa traçada previamente pelo
pesquisador. Este procedimento produz interpretações desprovi-
das de objetividade, o que contribui muito pouco para esclarecer
o significado do movimento. Torna-se claro, então, que para
apréender o significado do movimento de que tratamos, outros
Movimentos de moradores 229

caminhos devem ser percorridos. E a primeira referência recai no


exame de nossa conjuntura.
Quando emergia a luta dos inquilinos, caminhava o país para
sua fase de abertura política. Vale relembrar que inúmeros acon-
tecimentos marcam o período: as greves dos operários do ABC
paulista, o movimento pelo custo de vida, a mobilização dos mo-
radores nos bairros, etc., enfim, a sociedade civil começava a
emitir sinais de esgotamento em face da repressão política instau-
rada pela ditadura militar e a exploração econômica a que estava
submetida até então. As diferentes formas de organização que
brotam a partir daí deixam aflorar um movimento coletivo de re-
conquista de uma identidade contra a ordem dominante, que está
presente no contidiano dos partidos políticos, dos sindicatos e,
fundamentalmente, nos locais de moradia. Debruçar-se sobre a
vivência cotidiana nos locais de moradia é a segunda pista de que
dispomos para entender o significado do movimento dos inquili-
nos.
As ameaças de despejo, a precariedade das habitações, a
contingência de não encontrar imóvel para alugar quando a famí-
lia é numerosa são elementos que pontilham o quotidiano desses
moradores. São exatamente esses elementos que forçam os inqui-
linos a tomar consciência da própria exclusão e definir estratégias
de ação que façam valer o direito que se atribuem: o direito de
morar.
É neste sentido que Durham registra “a ocorrência, entre nós,
de um processo de construção coletiva de um conjunto de direitos
que está sendo realizado pelos movimentos sociais. E isto não
através de uma codificação completa e acabada de uma realidade
existente, mas como reverso de uma deficiência cumulativa de ca-
rência que são definidas como inaceitáveis” (Durham 1984: 29).
A tomada de consciência da própria exclusão orienta a defi-
nição de estratégias tendo em vista a defesa desses direitos. A
não-aceitação da quantidade de lotes inicialmente oferecida, a
ameaça de invadir uma área para a construção de suas moradias, a
institucionalização do movimento com a criação de uma entidade
representativa dos inquilinos conformam estratégias que, segundo
Souza Júnior (1988: 39), caracterizam, respectivamente, a recusa
e a resistência, a desobediência civil e a constituição de um poder
dual, ainda que complementário ou paralelo.
230 Mara Resende

Todos esses aspectos que acabamos de apontar talvez nos


possam ajudar a compreender que a reivindicação do direito de
morar, presente no movimento dos inquilinos, faz parte de um
projeto que visa garantir aos grupos espoliados uma existência
digna pelo exercício livre e pleno da cidadania.
VILA PARANOÁ:
A LUTA DESIGUAL PELA POSSE DA TERRA URBANA!

Luiza Naomi Iwakami

Introdução

Em Brasília, a construção de habitações populares combina-


se com o processo de remoção de barracos, considerados de ocu-
pação ilegal. Isto pode ser verificado no projeto original da cida-
de onde inexistiam programas de habitação para a população não-
vinculada direta ou indiretamente à administração pública. As ci-
dades-satélites tornaram-se produtos da remoção de “invasões”,
com base na destinação de um lote para cada família transferida,
o que representava uma proposta bastante atraente, capaz de re-
mover esta população para distâncias variando de 17 a 60 quilô-
metros do Plano-Piloto.
Este procedimento foi adotado até o final da década de 60,
por meio de uma ação integrada com a Secretaria de Serviço So-
cial. O exemplo da remoção de pequenas “invasões” para o Gama,
no período, é elucidativo, e a esse respeito cabe ver o texto
“Brasília: o canteiro de obras de uma cidade planejada e o fator
de aglomeração”, incluído nesta coletânea. No final da década, os
pequenos aglomerados de barracos passam a ser transferidos ini-
cialmente para a favela do IAPI (próxima ao Núcleo Bandeiran-
te), forjando uma grande concentração de domicílios precários,
transferidos posteriormente para Ceilândia, a qual acabou sendo
a maior cidade-satélite do Distrito Federal (Amann 1987; Rezen-
denlosS):

1. Este trabalho é uma versão resumida e modificada da dissertação de mestrado da


autora: Espaço urbano de Brasília e a trajetória da resistência popular na Vila Para-
noá. Brasília, Universidade de Brasília, dezembro de 1988.
DEM, Luiza Naomi Iwakami

É justamente na década de 70 que se configura a afirmação


de um mercado imobiliário em Brasília. Embora o Estado detenha
o controle da maior parte do território do Distrito Federal, os me-
canismos de varlorização capitalista estão presentes em função da
localização dos imóveis e da infra-estrutura instalada. Desta ma-
neira, não é por acaso que oito anos após sua implantação, com
melhorias demandadas e conquistadas pelos próprios moradores,
os lotes na Ceilândia sofreram reajustes artificiais, provenientes
dessa “valorização” urbana, expressão do monopólio público das
terras associado ao estabelecimento do mercado imobiliário em
transformação.
Por outro lado, os moradores da Ceilândia passam a se orga-
nizar com o objetivo de legalizar a propriedade dos lotes, for-
mando a Associação dos Incansáveis Moradores da Ceilândia, em
1979, entidade que levou à frente um processo de defesa de seus
direitos através de uma comissão da Ordem dos Advogados do
Brasil do Distrito Federal. Ocorre também, nesse período, a ex-
pansão da Ceilândia, com a construção de habitações do tipo
'embrião”, com os próprios moradores se responsabilizando pela
ampliação de suas moradias a partir de um cômodo inicial. Nessa
ocasião, eles também se envolviam em um processo de mobiliza-
ção por equipamentos coletivos, que se acentua durante a década
de 80 (ver Rezende 1985).
Em 1977, como já foi apontado, iniciaram-se os loteamentos
extensos no município de Luziânia e, em 1979, é construído o úl-
timo conjunto habitacional em grande escala destinado à popula-
ção de baixa renda (setor P Sul). Se a intenção do governo do
Distrito Federal era o deslocamento espontâneo de grande parcela
da população sem moradia mediante a oferta de lotes em Luziânia
(GO)2 onde poderiam ser adquiridos a preços relativamente aces-
síveis, empreendimento sobre o qual a própria Prefeitura mani-
festava interesse, observou-se, ao contrário, um crescimento
constante da população dentro dos limites do Distrito Federal, re-
sidindo em fundos de lotes, cortiços e “invasões” cada vez mais
numerosas.
O período de 1979 (ocasião do fechamento de inscrições para
a aquisição de casa própria pela Sociedade de Habitação de Inte-

2. Cidade da área geoeconômica do Distrito Federal localizada a 42 quilômetros do


Plano-Piloto. X
Vila Paranoá: a luta desigual pela posse da terra urbana 233

resse Social (SHIS) até 1982 não teve registro de nenhuma ha-
bitação financiada pelo Estado, sendo este um dos fatores que,
somados a outros que se seguiram, levaram à situação atual de um
déficit de cerca de 180 mil habitações. Em 1984, levantamento
realizado pelo GEPAFI indicava um número significativo de pes-
soas que moravam em barracos, principalmente dentro ou próxi-
mo ao Plano-Piloto e em Taguatinga, somando, em todo o Distrito
Federal, 70 252 habitantes de 'invasões”. A partir daí, houve um
agravamento constante da situação de vida e das condições de so-
brevivência da população residente em sub-habitações. Em 1986,
iniciou-se uma campanha oficial de retorno dos novos migrantes
para seus locais de origem, com a oferta de passagens de volta.
Por outro lado, as favelas que haviam crescido dentro do Pla-
no-Piloto eram alvo de remoção para Brasilinha (GO), a mais de
54 quilômetros de Brasília, e também era oferecida passagem de
volta para os locais de origem dos migrantes. As famílias que de-
monstrassem resistência estavam sujeitas a ter seus barracos des-
truídos a força, como se observou no episódio de remoção da fa-
vela da Quadra 110 Norte (agosto de 1987), quando centenas de
famílias permaneceram no local, recusando a oferta do governo e
propondo sua fixação dentro dos limites do Distrito Federal. Seus
barracos foram derrubados, sob uma verdadeira operação militar
(mais de mil policiais armados, cavalaria, helicópteros, etc.). As
famílias que resistiram à remoção, embora contassem com o apoio
das entidades da sociedade civil, não conseguiram solução defi-
nitiva para o problema habitacional.
Em grande parte das maiores cidades brasileirs, a formação
de áreas faveladas acompanhou o próprio agravamento das condi-
ções socioeconômicas da população, afetando principalmente os
meios de sobrevivência da parcela de trabalhadores desqualifica-
dos ou expulsos do meio rural. A história das favelas acompanha,
portanto, a clássica trajetória realizada por uma parcela significa-
tiva da população pobre: a migração constante do campo para as
cidades, ou das pequenas cidades para as grandes metrópoles. As
grandes cidades são o ponto de chegada desta trajetória e aí as di-
ferenças sociais se manifestam mais nitidamente, especialmente
no que diz respeito à segregação social em relação ao uso e apro-
priação da cidade (condição de ocupação de áreas residenciais),
refletindo o fenômeno conhecido como espoliação urbana.
234 Luiza Naomi Iwakami

A Vila Paranoá denuncia uma face desta realidade ao abrigar


uma parcela da população mais pobre de Brasília, em precárias
condições de sobrevivência, instalada no local desde o início da
cidade. No que diz respeito à formação da favela do ponto de
vista físico e às possíveis diferenças de acesso aos equipamentos
urbanos, verificamos em comparação com outras cidades certas
particularidades. A condição de Brasília como capital federal,
somada ao fato de se ter constituído sob o mais completo rigor de
concepção de cidade, segundo um planejamento modernista, teve
como consegliência a formação constante de aglomerados de tra-
balhadores que não possuíam nenhum espaço que lhes fosse per-
mitido ocupar. Essas aglomerações, situadas em espaços “ilegais”,
não poderiam ser chamadas favelas, no sentido tradicional do
termo, já que estas se formaram bem antes de existir a cidade de
fato. A permissão para fixação de favelas em Brasília, principal-
mente dentro ou próximo ao Plano-Piloto, contraria a insistência
na manutenção da pureza e integridade do plano, tal qual foi con-
cebido e desenhado.
A reflexão necessária quanto à formação de favelas em Bra-
sília implica situar a origem dessas aglomerações de barracos co-
mo locais de habitação dos trabalhadores e construtores de Brasí-
lia desde o seu início, dando origem posteriormente às cidades-
satélites, com o claro sentido de afastar tais tipos de ocupações.
Tão logo os aglomerados de barracos se tornavam suficientemente
grandes ensejava-se a possibilidade de fazer reivindicações orga-
nizadas em prol da fixação? dos moradores no local. A resposta
do Estado era a oferta de lotes em cidades-satélites. Desta forma,
eram satisfeitos os dois lados: tanto o Estado, que colocava os
moradores pobres suficientemente afastados do Plano-Piloto (i-
deal dos governantes), como os próprios moradores que viam na
posse dos lotes a segurança e a estabilidade para sua permanência
em Brasília.
A Vila Paranoá não se enquadra neste processo geral que
ocorreu na formação de Taguatinga e das demais cidades-satéli-
tes, até a criação de Ceilândia. Ela teve origem a partir de um

3. Este termo fixação é muito utilizado em Brasília, desde o movimento pela fixação
do Núcleo Bandeirante. Fixação será, portanto, um termo que utilizaremos com
frequência, indicando assentamento e posse legalizada das terras.
Vila Paranoá: a luta desigual pela posse da terra urbana 235

acampamento de obra durante a construção da barragem do lago


Paranoá, que contava na época com uma infra-estrutura mínima
constituída pelo fornecimento de água, atendimento médico pre-
cário e alojamentos para os trabalhadores da construção civil.

Vila Paranoá: sua constituição e os conflitos internos

A Vila Paranoá foi formada em função do acampamento e


sempre contou com um número reduzido de habitantes, se compa-
rada a outros aglomerados do Distrito Federal, as chamadas “inva-
sões”, que se formavam perto dos locais onde já havia alguma in-
fra-estrutura urbana. Somente a partir da década de 70 é que se
nota um aumento significativo do número de famílias que para lá
se deslocaram, principalmente durante a década de 70, quando
passou a assumir novas características (tabela 1).

Tabela 1 — Crescimento populacional e número de barracos da


Vila Paranoá

DO Número Número Taxa de


de barracos de habitantes crescimento

1969 187 1 000 —


1972 126 700* 0,7
1975 598 2 Sl 2,8
1980 1 000* 5 100 157
1983 2 650 20 000* ll
1987 3 100 36 000% 19

* Dados estimativos.
Fonte: Brandão, A. (1983).
Censo: Associação dos Moradores da Vila Paranoá (1986).

A explicação da procura do Paranoá por um número maior de


famílias a partir da década de 70 pode ser apresentada sob vários
aspectos. Como aponta Brandão, a crise de emprego e a inadapta-
ção de muitos moradores às condições de moradia nas satélites
poderiam ser um indicativo desse crescimento, apesar de se cons-
tituírem como fatores específicos dos próprios moradores do lo-
cal.
236 Luiza Naomi Iwakami

De 1957, quando se construiu o acampamento, até 1975, o maior


acréscimo de moradores se deu nos anos de 1972, 1973 e 1974, com
aumentos de 12%, 19,5% e 29,59%, respectivamente. Entre 1972 e
1974 a invasão cresceu, portanto, 61%. Tal crescimento parece asso-
ciado de modo mais estrutural à crise de emprego na construção civil
de Brasília naquela época, especialmete em 1974, com o período de
transição entre os governos Médici e Geisel, quando houve certa pa-
ralisação nas obras públicas do Distrito Federal. Outra explicação me-
nos genérica seria a dificuldade de adaptação de “invasores” removidos
para a Ceilândia e cidades-satélites distantes (Planaltina e Brazlândia),
que teriam voltado para o Paranoá. Os dados sugerem algo neste sen-
tido, já que 34 famílias do Paranoá residiram na Ceilândia e ler
Planaltina. Muitos dos residentes no Paranoá queriam mesmo era es-
capar do aluguel. Assim é que 66 famílias (11% do total) vieram de
Sobradinho, onde provavelmente pagavam aluguel, 40 vieram de Ta-
guatinga e 62, de fora do Distrito Federal. Boa parte veio ainda de
outras invasões erradicadas ou não como IAPI (10 famílias), Vila Pla-
nalto, Base Aérea, Aeroporto (31 famílias) (Brandão 1982: 136).

Como aponta esse autor, a chegada de novos moradores ao


Paranoá está relacionada a uma série de fatores, entre os quais se
destacam as condições em que foi realizada a remoção dos mora-
dores da Vila do IAPI para Ceilândia. Este fato, somado aos da-
dos numéricos dos cadastramentos realizados na época, sugere
que uma parte dos removidos para Ceilândia transferiu-se vo-
luntariamente para o Paranoá. Em 1969 havia no Paranoá 187
barracos, número que decresceu para 126 em 1972 (tabela 1).
Portanto, pode-se deduzir que o processo de concentração da Vila
do IAPI através de transferências voluntárias, além das remoções
promovidas pelo Estado, estendeu-se a todo o Distrito Federal, de
tal forma que, após a efetivação da remoção para a Ceilândia,
restara apenas um pequeno número de barracos, somando três mil
em Taguatinga, 250 no Gama e 126 no Paranoá (Brandão 1983:4).
1983: 4).
O afluxo crescente de moradores à Vila Paranoá, iniciado na
década de 70, abriu um novo tipo de ocupação, tanto no que diz
respeito ao constante crescimento local como à nova forma de
ocupação das terras. Para isso, basta lembrar que a fundação, em
1974, da Terracap, como imobiliária do Estado, inicia um proces-
so de alienação de terras públicas, implantando outra modalidade
Vila Paranoá: a luta desigual pela posse da terra urbana es

de uso do espaço e provocando uma crise na oferta de novas ha-


bitações em cidades-satélites.
Se, de um modo geral, podemos afirmar que durante todo o
período da década de 70 ocorreu um rearranjo na orientação da
ocupação espacial do Distrito Federal, no que diz respeito às ha-
bitações populares, com a criação da Ceilândia, da Terracap e a
proposta de adensamento do pólo Ceilândia-Taguatinga promo-
viam-se também as condições de ocupação de áreas destinadas a
moradores de alta renda, as chamadas “mansões”, às margens do
lago Paranoá, do lado oposto ao Plano-Piloto. Esta ocupação re-
sidencial (Setores de Habitações Individuais Sul e Norte) abria
um mercado de trabalho para a construção civil em pequenas em-
preitadas, já que se tratava da construção de residências unifami-
liares.
Podemos observar, então, que uma parcela de trabalhadores,
particularmente aqueles sem ocupação ou emprego fixo, tinha
como alternativa a possibilidade de trabalho nessas construções
que, aos poucos, começavam a tomar corpo. Estas residências pa-
ra famílias de alta renda passaram a ocupar a área mencionada no
início da década de 70, principalmente aquela mais próxima à
ponte de acesso à outra margem do lago onde está localizada a
Asa Sul. Logo se formou também um mercado de serviços e co-
mércio ainda incipiente, mas em constante processo de cresci-
mento, demandando ocupações próprias do chamado mercado de
trabalho informal, caracterizado em grande parte pela absorção
dos moradores de favelas.
A Vila Paranoá localiza-se exatamente no ponto onde se dá a
separação das duas áreas (sul e norte) do chamado Setor de Man-
sões do Lago. Embora o Lago Sul esteja mais adensado e o Lago
Norte esteja ainda ocupado predominantemente por pequenas chá-
caras, pode-se inferir que a Vila Paranoá se localiza em um ponto
estratégico no que diz respeito ao local de moradia da parcela dos
trabalhadores prestadores de serviços nestas áreas. Este fator po-
de constituir um elemento explicativo do aumento da população
residente nesta favela, ainda pequeno na década de 70, porém
significativo.
Nos anos 80, novos fatores se somaram à explicação do cres-
cimento ocorrido na Vila Paranoá. Se até então havia uma procu-
ra individual, partindo da empreitada que cada família realizava
238 Luiza Naomi Iwakami

por sua conta (em geral com a ajuda de parentes ou amigos que já
habitavam no Paranoá), um fato inusitado veio a alterar esse pro-
cesso fazendo crescer de uma só vez tanto a área ocupada pela
favela, como a população moradora. Trata-se de um episódio
ocorrido em agosto de 1981, quando houve um afluxo significati-
vo de novos moradores para o Paranoá, principalmente nos fins
de semana.
De acordo com depoimentos obtidos, circularam boatos de
que a viúva do ex-presidente Kubitscheck, que seria proprietária
das terras da Vila Paranoá, iria doá-las a seus moradores. Embora
isso realmente não passasse de boatos, houve, no entanto, nesse
período, a triplicação da população (em 1982, havia cerca de 15
mil habitantes, enquanto que em 1980 havia apenas 5 100 habi-
tantes). Outro fator importante no período é o fato de a gestão do
coronel Aimé Lamaison como governador do Distrito Federal ter
se tornado conhecida como a administração que não implementou
nenhum programa de habitação popular.
Para as famílias de menor poder aquisitivo e, principalmente,
para aqueles trabalhadores que não possuíam emprego fixo, não
havia alternativa nem perspectiva de continuar residindo nos li-
mites do Distrito Federal. Surgiam ofertas de lotes em municípios
vizinhos, principalmente em Luziânia, como exposto antes, mas,
embora fossem extensos loteamentos, não eram vistos como alter-
nativa atraente para os que trabalhavam em Brasília. Muitos ocu-
pantes das várias “invasões” do Plano-Piloto ou das satélites viam
sua permanência ameaçada pelas constantes operações de remo-
ção. Além de tudo isso, ocorreu ainda, em 1979, a suspensão do
cadastramento da SHIS para a aquisição de habitações populares,
o que implicou um aumento da demanda por habitação e repercu-
tiu diretamente na elevação dos preços dos imóveis.
O processo de ocupação do Paranoá por esses novos morado-
res, em 1981, se associa portanto a uma série de fatores que, num
quadro de agravamento e crise da habitação popular, se colocava
como alternativa possível e menos onerosa. Este episódio durou
cerca de dois meses e resultou em um confronto acirrado entre
novos moradores, agentes da Terracap e policiais que insistiam
em derrubar todos os barracos recém-instalados. Do lado dos no-
vos habitantes havia uma determinação clara de lá permanecer,
tanto que, após terem*seus barracos derrubados, reconstrufam-nos
Vila Paranoá: a luta desigual pela posse da terra urbana 239

quantas vezes fosse necessário para garantir o direito de morar.


Este episódio ficou conhecido como o primeiro “barracaço'4, de-
terminando, além do confronto com as forças repressoras, um
conflito interno entre moradores novos e antigos, sobre o qual se
falará mais adiante, na parte específica sobre os movimentos dos
moradores.
Após o encerramento dos conflitos internos entre os morado-
res, foram estabelecidos os termos de um acordo com a Terracap
no sentido de permitir a permanência de todos os habitantes no
Paranoá, sob a condição de que não seria mais tolerada qualquer
ampliação física dos barracos ou da área ocupada pela favela. De
fato, qualquer iniciativa de construção ou aumento dos barracos
era imediatamente reprimida pelos fiscais da Terracap. A partir
daí, houve um constante crescimento da população residente sem
que houvesse aumento da área ocupada, implicando maior densi-
dade de moradores nos barracos já existentes.
Os dados parecem indicar que, a partir da década de 80, tam-
bém no Paranoá (tabela 1), da mesma forma como havia ocorrido
em outras satélites, estava se iniciando um rápido aumento do
número de moradores sem habitação própria, isto é, ocupando um
espaço alugado do proprietário do imóvel, na qualidade de inqui-
linos.
Para reconstituir o processo de formação e expansão espacial,
remonta-se aos primeiros momentos da chegada dos trabalhadores
para a construção da barragem do lago Paranoá e se verifica que,
como ocorreu com tantos outros acampamentos na época da
construção de Brasília, este não fugiu à regra: rapidamente se
constituiu um aglomerado em torno do acampamento. Seus mora-
dores tinham a possibilidade de um trabalho complementar, não
diretamente vinculado à construção da barragem, como jardina-
gem, trabalho em pedreira e mesmo serviço de lavagem de rou-
pas, executado por mulheres.
Os depoimentos coletados revelam como se deu a implanta-
ção da Vila Paranoá com a chegada de novos moradores no pe-
ríodo inicial. Em geral, amigos e parentes residentes na vila co-
municavam a possibilidade de moradia mais segura, bastando a

4. Em 1980 houve uma iniciativa semelhante, mas sem a mesma repercussão da de


1981, tanto em número como em resistência à opressão.
240 Luiza Naomi Iwakami

demarcação prévia de uma área onde seria levantado o barraco, e


planejamento da data certa para que a operação fosse realizada. O
processo deveria ser muito rápido (dois ou três dias) para evitar
chamar a atenção dos órgãos do governo. Era fundamental tam-
bém que houvesse um acordo com a vizinhança para garantir O
respaldo ao bom relacionamento com o restante dos moradores.
Esta era a prática mais comum até o início dos anos 80, quando
ainda não havia um controle mais rígigo da “invasão” que ia se
ampliando gradativamente. Ainda assim, a prática da comerciali-
zação e locação de barracos existia em pequena escala, sendo in-
tensificada na década de 80.
A ocupação da Vila Paranoá foi se realizando à beira do lago
que então se formava. Desde o início, a população identificou a
água do lago como imprópria para o consumo direto, usando-a
apenas na lavagem de roupas. Desta maneira, a grande maioria
dos moradores deslocava-se cerca de três quilômetros para conse-
guir água em uma nascente, pois os três pontos de fornecimento
de água encanada eram insuficientes para o abastecimento coti-
diano. Somente quando ocorreu um adensamento significativo da
vila, com a população ultrapassando a cifra de 10 mil habitantes,
instalou-se o primeiro chafariz público (um grande tambor, com
capacidade de cerca de 20 mil litros, e várias torneiras). Ele foi
instalado em 1984, quando a precariedade do abastecimento de
água estava evidente, coincidindo com o início de um processo de
reivindicações de forma organizada por parte da população.
Uma característica básica da paisagem geral da Vila Paranoá
é, acima de tudo, a exclusividade de construções de madeira, pois
eram proibidas construções de alvenaria e qualquer tentativa con-
trária a isso era alvo de dura repressão. Até mesmo os edifícios
públicos, como escolas, postos de saúde e postos policiais, foram
erguidos com paredes de madeira ou estruturas leves de metal, o
que facilitava, evidentemente, seu rápido desmantelamento.
Todas as dimensões físicas do espaço urbano estão relaciona-
das com o processo de produção do espaço, e, portanto, a atual
configuração da Vila Paranoá também encontra sua história mar-
cada por uma seqiiência de acontecimentos cuja origem está na
própria condição que propiciou a ocupação que hoje se verifica.
Neste sentido, o que ressalta como base para explicação de uma
série de lutas que vêm ocorrendo nesta década é a condição de
Vila Paranoá: a luta desigual pela posse da terra urbana 241

ocupação a que grande parte dos moradores foi submetida. Após


a grande ocupação de 1981, os novos moradores iam se abrigando
como inquilinos de cômodos de barracos já habitados, conforme
observamos anteriormente, não tendo ocorrido paralelamente o
aumento de sua área de ocupação. Desta maneira, a densidade
populacional local foi aumentando, sem nenhum crescimento ver-
tical (como seria de se esperar se fosse de fato uma cidade esta-
belecida), através do número maior de famílias morando no mes-
mo barraco em condições cada vez mais precárias.
As diferenças de renda existentes no Paranoá não chegavam a
constituir elementos de segregação, não havendo qualquer discri-
minação da ocupação espacial em relação à renda dos moradores.
Há apenas certa especialização no que diz respeito à atividade
central, tal como ocorre com o comércio com uma rua central
ocupada dos dois lados, e certas diferenciações no acabamento
dos barracos.
A existência de conflitos entre moradores antigos e novos,
acirrados em determinados momentos, tem caracterizado a exis-
tência do Paranoá ao longo do tempo. Isto se torna mais visível
no cotidiano das relações estabelecidas entre os proprietários dos
barracos (moradores mais antigos) e os inquilinos (mais recentes)
que habitam um cômodo pagando um aluguel mensal.
Para os proprietários há a possibilidade de aumentar o rendi-
mento mensal com a ampliação do barraco e o aluguel que isso
possibilita. Para o inquilino, esta passou -a ser uma alternativa de
moradia, já que a expansão da ocupação não foi mais possível
nesta década. O acordo verbal existente entre proprietário e in-
quilino em muitos casos promove uma relação de amizade e tole-
rância quanto ao atraso ou impossibilidade de pagamento dos alu-
guéis mensais.
A partir de 1981, com a chegada de novos moradores e sua
permanência, teve início uma situação conflitiva, criando pela
primeira vez um sentimento contrário ao estabelecimento destes,
sustentado por um clima de terror e controle contra estas ocupa-
ções promovido pelos agentes da repressão. Esta atitude agravou
a situação habitacional. Quando se procurou solucionar tal situa-
ção, com novas ocupações promovidas pelos inquilinos, verifi-
cou-se a inexistência de solidariedade por parte dos proprietários.
242 Luiza Naomi Iwakami

Se a história vivida anteriormente marca a memória dos mo-


radores, criando, por um lado, determinados valores no relacio-
namento cotidiano, como foi observado no conflito entre morado-
res antigos e recentes, por outro lado, a relação dos moradores
mais antigos (trabalhadores da barragem) com o espaço de habita-
ção da Vila Paranoá é de certa satisfação. De acordo com os de-
poimentos obtidos junto a esses moradores, as melhorias conse-
guidas para o Paranoá são substanciais. Na época do trabalho du-
ro da construção da barragem, não havia material para construção
e os barracos eram feitos de sacos vazios de cimento utilizados,
para cobertura e vedação. Todo o abastecimento básico dos pri-
meiros moradores se fazia no Núcleo Bandeirante, local para on-
de se dirigia a única linha de ônibus com um circuito diário. Os
que enfrentaram situações de grande dificuldade no período da
construção de Brasília e também os que viveram experiências de
migração mais recente possuem em comum a comparação com o
passado, em geral caracterizado por condições de vida ainda mais
precárias, e assim admitem que estão mais satisfeitos no Paranoá.
Apesar da existência de contatos frequentes entre os morado-
res da vila, propiciados pela própria configuração espacial dos
pequenos espaços onde se assentam os barracos, não foi a partir
dessa relação que se gerou algum tipo de movimento coletivo.
Certamente há carências comuns que explicitam determinadas ne-
cessidades e criam um certo tipo de identidade entre os morado-
res, porém, como afirma Edison Nunes, é preciso detectar os mo-
tivos que unem a população de uma determinada localidade em
torno de certa reivindicação e a população de uma outra localida-
de em torno de outra demanda, embora tenham ““inserções pareci-
das no cenário urbano” (Nunes 1986: 49).
Finalmente, cabe ressaltar o fato de o Paranoá ter sido conce-
bido pelo Estado como uma realidade inevitável, embora indese-
Jável. Como grande parte das favelas que surgiram nos principais
centros urbanos do país a partir da década de 70 e foram trans-
formadas em alternativas de habitação para a população pobre,
também no Paranoá o reflexo da crise da construção de habita-
ções populares se fez presente. A carência de moradias em Brasí-
lia no período iniciado ao final da década de 70 fez com que o
Estado “tolerasse” a existência do Paranoá adotando certa atitude
de conivência ao implementar alguns equipamentos coletivos bá-
Vila Paranoá: a luta desigual pela posse da terra urbana 243

sicos, já que não poderia negar o atendimento mínimo a uma co-


munidade que tinha ultrapassado na época mais de 15 mil habi-
tantes. Como foi apontado no início, destacou-se a particularidade
da vila em comparação com as outras favelas conhecidas, devido
ao seu isolamento no contexto da aglomeração urbana. Isto é,
como o Paranoá ficava distante de qualquer localidade onde hou-
vesse uma concentração de equipamentos que pudesse também
servir a sua população, como ocorre em grande parte das favelas,
o Estado foi obrigado a fornecer um mínimo de serviços públicos
para a população, sob pena de vê-la sujeita a um padrão de vida
inferior ao existente na área rural.

A construção dos movimentos coletivos na Vila Paranoá


e a participação das assessorias
Tal como ocorre em qualquer aglomeração urbana, as rela-
ções criadas a partir da concentração de uma parcela numerica-
mente significativa da população refletem a evidência de determi-
nadas carências urbanas na esfera do consumo, mesmo que a esfe-
ra da produção se faça presente no seu interior e em seu entorno
espacial mais imediato. Desta maneira, a questão relativa ao brus-
co aumento populacional no Paranoá observado em 1981 pode ser
considerada como o primeiro fato que aponta para a emergência
das carências urbanas transformadas em movimento coletivo.
Evidentemente, o simples fato de ocorrer uma concentração de
habitantes em grande escala não faz emergir qualquer movimento
coletivo. Por outro lado, a discussão dos motivos que fazem eclo-
dir os movimentos sociais urbanos de maneiras diferenciadas está
na ordem do dia conforme foi observado anteriormente.
Parece certo que a qualidade do acesso aos parcos equipa-
mentos coletivos urbanos oferecidos à população pobre sofre ain-
da um agravamento considerável quando se verifica um aumento
populacional, ocasião esta em que se torna visível aquilo que não
podia ser anteriormente notado com facilidade. Se, por um lado,
este fator pode ser identificado como um dos elementos relevantes
para a análise da emergência dos movimentos coletivos no Para-
noá, por outro lado, é preciso caracterizar as forças que atuaram
para que se constituíssem tais movimentos, sem as quais a difi-
culdade de iniciativa direta dos moradores seria provavelmente
muito maior.
244 Luiza Naomi Iwakami

Nesse aspecto destaca-se o papel desempenhado pela associa-


ção de moradores, fundada em 1979, e que passou a ser concebi-
da pela população como a entidade que tinha a finalidade de tra-
zer melhorias para o Paranoá. Esta concepção sobre as várias as-
sociações de moradores existentes em Brasília parece um fenôme-
no geral, tornando difícil a existência de uma mobilização coleti-
va mais abrangente, à medida que se procura atribuir à diretoria a
incumbência de buscar atender às necessidades reclamadas pelos
moradores.
A própria formação da Associação dos Moradores da Vila Pa-
ranoá ocorreu mediante o incentivo de uma série de profissionais
vinculados ao Projeto Rondon, que formaram uma espécie de
primeira assessoria à organização de uma entidade para a defesa
dos interesses e reivindicações da coletividade. Embora isso tenha
sido realizado com a idéia de que esse trabalho competia exclusi-
vamente à diretoria, o agravamento das condições de habitação do
Paranoá, combinado com a atitude adotada pela Associação dos
Moradores e a ação conscientizadora de membros ligados à igreja
católica, fez surgir, por volta de 1983, um grupo que formou a di-
retoria da Associação dos Moradores na gestão 1985-1987. As-
sim, a construção da entidade, tal como tantas outras existentes em
Brasília, é produto de determinadas reivindicações por melhorias
locais. Costuma-se atribuir importância significativa às associa-
ções de moradores de Brasília, com a argumentação de que a ine-
xistência de eleições parlamentares até 1986 teria tornado as
mesmas canais de representação entre a população e a administra-
ção do Distrito Federal.
O período de 1981 a 1983 foi marcado pela falta de canais de
organização voltados para o encaminhamento das reivindicações
para suprir necessidades de equipamentos básicos na Vila Para-
noá, o que, na prática, assumiu um caráter de reclamações isola-
das dos moradores. Enquanto isso, continuava um processo de
crescimento camuflado, com a chegada de novos habitantes que
se instalavam nos barracos de parentes e amigos.
Em 1983 ocorre nova eleição da Associação dos Moradores,
assumindo uma diretoria bastante comprometida com as orienta-
ções do governo, cuja prática resultou no descontentamento de
grande parcela dos moradores interessados no atendimento das
melhorias desejadas. 'Paralelamente, começava a articulação de
Vila Paranoá: a luta desigual pela posse da terra urbana 245

um grupo, inicialmente formado por jovens ligados à igreja cató-


lica, que se reuniam semanalmente para atividades de catequiza-
ção e contato com a população. Nas várias reuniões com os mo-
radores, surgiu a necessidade de canais de organização abertos
para o encaminhamento das resoluções dos problemas vivencia-
dos na vila. O grupo se autodenominou Grupo Pró-Melhorias da
Vila Paranoá, iniciando contatos com os moradores mais interes-
sados no encaminhamento das lutas, principalmente em prol do
abastecimento de água, que já se tornara problema sério, dado o
crescimento populacional que se verificava.
Portanto, a partir da constatação da falta de canais para a
participação direta dos moradores nas lutas e das formas de pres-
são que se poderia exercer através da presença direta daqueles
interessados em se posicionar perante o Estado, criaram-se as
condições básicas para a estruturação de uma chapa concorrente
às eleições da associação em 1986. A preocupação com um tra-
balho que conseguisse envolver grande parte dos moradores na
participação direta e na conquista das reivindicações voltadas pa-
ra as necessidades da vila acabou favorecendo a constituição de
uma liderança bastante coesa e à frente das lutas pelas melhorias.
Ocorre ainda que os membros da diretoria possuíam conheci-
mento das propostas de fixação do Paranoá, e haviam contribuído
na elaboração de cartilhas para divulgação da proposta, colocan-
do a necessidade de participação dos moradores. Com isto, a pro-
posta de fixação da vila estava presente, desde o início da gestão
1985-1987, como reivindicação central a ser conquistada dentro
de um programa mais amplo da chapa vencedora.
No início, dando continuidade à discussão que já vinha ocor-
rendo a favor da fixação do Paranoá, as reuniões por áreas se
voltaram para a difusão de propostas e sugestões para a implanta-
ção de equipamentos coletivos, arruamentos, etc. O esquema de
organização por ruas conseguia ampliar a participação dos mora-
dores, obtendo repercussão significativa nos momentos de organi-
zação de manifestações ou de pressão sobre o governo.
A constituição de uma chapa para a diretoria da associação,
em 1985, passa, portanto, pela compreensão da entidade como
centro irradiador da organização nas lutas coletivas. Com este
intuito vários movimentos foram organizados, principalmente
voltados para a instalação dos equipamentos coletivos.
246 Luiza Naomi Iwakami

Em junho de 1985, a população cansada de esperar pelo


cumprimento da promessa de colocar em funcionamento a “escola
de lata” (a segunda escola, construída de material leve, removíÍ-
vel) iniciou um amplo processo de mobilização reivindicando sua
imediata inauguração. Esta escola fora construída no final de
1984 para atender aos alunos do primeiro grau já no início do ano
letivo, mas isso não foi cumprido, deixando a população sem
qualquer resposta. Sob o risco de ver o segundo semestre iniciado
sem o funcionamento da escola, os moradores realizaram reuniões
na associação, do que resultaram a entrega de uma carta ao go-
vernador com esta reivindicação e uma ampla passeata. Em menos
de um mês, a escola foi colocada em atividade com a alocação de
professores contratados pela Fundação Educacional. Situação se-
melhante ocorreu com o funcionamento do posto de saúde, que,
concluída sua construção, ficou por longo período sem prestar
qualquer serviço. Foi necessária a mobilização da população para
que passasse a atender ao público no início de 1986.
As reivindicações levantadas pela associação incluíam água
encanada, melhoria nas instalações elétricas dos barracos, ilumi-
nação pública, telefones públicos, posto policial, e colocavam
como prioritária a fixação do Paranoá. Se para a diretoria era
certo que a luta central era a fixação e a batalha era a conquista
de diversos equipamentos coletivos e infra-estrutura permanente,
isto não ficava tão claro em seus boletins. Além disso, havia inte-
resse da diretoria em dar prioridade ao direito à moradia para to-
dos, procurando assim superar os resquícios de possíveis senti-
mentos segregadores por parte dos antigos moradores em relação
aos novos.
Nesse sentido, adquire importância o fato ocorrido no final
do mês de outubro de 1985, quando três famílias de inquilinos de
cômodos da Vila Paranoá resolveram construir seus próprios bar-
racos por ocasião de despejo feito pelo proprietário. Imediata-
mente o esquema de repressão foi acionado com grande aparato
policial, o que levou a população a procurar de todas as formas
impedir a derrubada dos barracos. Com isso só se conseguiu evi-
tar que um dos três barracos fosse demolido. Finda a repressão
após três dias, esse barraco passou a abrigar outras duas famílias
que estavam sem teto. Com muito tempo de antecedência, os mo-
radores organizados em comissões e coordenados por um membro
Vila Paranoá: a luta desigual pela posse da terra urbana 247

da associação planejaram cuidadosamente o processo de ocupação


de terras, a compra de material de construção (em geral madeira e
telhas) e a data apropriada para que todos iniciassem simultanea-
mente a construção de seus barracos. Este episódio que ficou co-
nhecido como o segundo “barracaço” não obteve o sucesso do
primeiro, de 1981, ocasião em que, apesar da repressão e do mo-
vimento espontâneo de afluxo de moradores de diversas partes,
havia-se conseguido a permanência no local.
Quando faltava menos de um mês para a data planejada para
a grande expansão, um morador tomou a iniciativa de construir
seu barraco independentemente do projeto conjunto. Era um do-
mingo e os outros ficaram observando-o com apreensão e espe-
rança. Até o final do dia, nada havia ocorrido, isto é, ninguém
havia chegado para derrubar o barraco. Durante a noite, centenas
de famílias iniciaram a costrução de seus barracos, que continuou
durante o dia seguinte. Os fiscais da Terracap não tardaram a
chegar. No começo da tarde, iniciaram a derrubada até atingir
quinze barracos, ocasião em que a resistência dos moradores,
formando um imenso cordão humano, impediu o prosseguimento
da operação.
As declarações do governo, de acordo com a imprensa local,
justificavam a derrubada dos barracos como consequência do fra-
casso das negociações. A associação diante de uma situação pre-
cipitada procurou realizar um acordo entre os moradores. O pla-
nejamento previa a ocupação da área, com a construção de barra-
cos acompanhada por representantes de entidades civis reconhe-
cidas, bem como um planejamento espacial e esquemas de defesa
contra provável repressão. Antes que pudessem colocar em práti-
ca tais planos, houve imenso tumulto com pancadaria entre a po-
lícia e os moradores, disso resultando alguns feridos e presos.
Na realidade, a Associação dos Moradores da Vila Paranoá
passou a adquirir importância no momento em que assumiu a di-
retoria da gestão 1985-1987. De alguma forma, as propostas rei-
vindicativas que ocorriam fora da associação, privilegiando a
participação coletiva para somar forças que pressionariam no
sentido de um atendimento mais rápido, passavam a ter na asso-
ciação um espaço para que este movimento pudesse se organizar.
O ano de 1986, além de ter sido marcado pela tentativa de
ocupação, fortemente reprimida, foi assinalado também pela pri-
248 Luiza Naomi Iwakami

meira eleição realizada no Distrito Federal para deputados fede-


rais e senadores e a criação de uma prefeitura comunitária no Pa-
ranoá”. A diretoria da prefeitura foi composta por moradores lo-
cais (com exceção do próprio prefeito), e teve como base de atua-
ção a negociação e implementação de ações governamentais. Tal
condição ficou evidente quando ocorreram novas tentativas de
ocupação de terras por cerca de cem famílias no decorrer do ano
de 1987. Nesta ocasião, o prefeito se colocou como mediador
com o governo, procurando persuadir as famílias a abandonar o
local que haviam ocupado.
No processo de campanha para a eleição da nova diretoria da
Associação dos Moradores, em março de 1987, o prefeito não
poupou esforços para apoiar uma chapa da linha clientelista, mo-
bilizando o restante da diretoria da prefeitura comunitária neste
sentido. Apesar do apoio e da mobilização por meio de métodos
clientelistas conhecidos (distribuição de água e roupas à última
hora), a vitória da chapa contrária foi praticamente inevitável. O
grande grupo articulado em torno das lideranças dos movimentos
que haviam ocorrido durante a gestão 1985-1987 acreditava em
sua vitória e considerou a votação favorável como expressão da
vontade da população no sentido de trabalhar pela fixação.
O grupo formado como liderança dos movimentos organiza-
dos manteve sua atuação através da continuidade do trabalho de
algumas comissões, principalmente voltadas para as atividades
culturais, com o objetivo de oferecer à população canais de parti-
cipação e conscientização sobre sua condição de vida. Desta ma-
neira, logo após sua derrota nas eleições para a diretoria da asso-
ciação, o grupo havia iniciado um processo de avaliação dos tra-
balhos desenvolvidos durante sua gestão e definiu novas práticas
de atuação. Após seis meses de avaliação e debates em torno da
continuidade do trabalho iniciado, ficou resolvida a fundação de

5. A prefeitura comunitária ou miniprefeitura como são conhecidas estas entidades de


representação de quadras são estimuladas pelo governo do Distrito Federal, e a
grande maioria delas segue uma linha de atuação no sentido de colaboração com o
Estado, como afirma Margarida M. Cardozo: “A miniprefeitura estabelece em seu
estatuto o objetivo de ser uma organização de participação política (apartidária),
com controle financeiro e administrativo dos recursos e equipamentos destinados
ao setor, e a pretensão de atuar como órgão técnico consultivo e de colaboração ao
poder público, na organização e representação dos moradores em torno de proble-
mas inerentes ao bem da comunidade e melhoramento do setor” (Cardozo 1983).
Vila Paranoá: a luta desigual pela posse da terra urbana 249

uma nova entidade, o Centro de Cultura e Desenvolvimento da


Vila Paranoá (CEDEP). Duas comissões importantes, a de educa-
ção e de cultura, prosseguiram seus trabalhos na recém-criada en-
tidade, procurando também desenvolver novas estratégias em prol
da fixação da Vila Paranoá.
A diretoria do CEDEP foi constituída por cinco membros que
não participavam da diretoria da Associação dos Moradores, dan-
do início a um trabalho de autogestão no fornecimento de água. A
idéia era não esperar a fixação do Paranoá para obter água enca-
nada nas casas e, portanto, era preciso que a própria população se
mobilizasse efetivamente para construir aquilo que seria seu. Foi
realizada a perfuração de um poço artesiano, sob a forma de au-
togestão, para o fornecimento de água aos barracos com a instala-
ção de uma rede de distribuição. Em outubro de 1987, o poço ar-
tesiano estava concluído, tendo contado com a participação de
117 famíliasé. Para viabilizar este objetivo, foi realizado um es-
quema cooperativo, em que cada associado pagava uma taxa para
a ligação da água. Grande parte desta obra foi financiada pela Cá-
ritas Nacional (entidade ligada à igreja católica e voltada para
projetos de atendimento à população mais pobre). A instalação da
rede foi concluída em abril de 1988 e se continuou aceitando no-
vos associados interessados. A distribuição se fez condicionada a
determinados horários diários para cada área (quatro no total) e a
Companhia de Água e Esgoto de Brasília (CAESB) não se opós
diretamente à ação realizada, apesar de considerá-la clandestina.
A partir dos trabalhos desenvolvidos, principalmente no âm-
bito universitário, se inicia no Paranoá um debate posteriormente
ampliado pelo assentamento oficial da vila. Este debate em torno
da fixação teve início na década de 80, quando se enfatizaram os
aspectos espaciais e sociais obtidos a partir de levantamentos de
dados em pesquisas de campo. Uma parcela dos estudantes que na
época haviam desenvolvido trabalhos para a graduação passou
posteriormente a dar continuidade à mesma linha de trabalho co-
mo profissionais incorporados à SHIS, abrindo entre 1982 e 1984

6. De acordo com reportagem do Correio Braziliense, de 31/10/87, o poço liberava seis


mil litros por hora, tendo sido encontrado um lençol freático a apenas 52 metros de
profundidade. Perfurado posteriormente até 74 metros, foi encontrado outro lençol
freático, aumentando assim a pressão da água. Desta maneira se desmentiam os ar-
gumenitos da CAESB de que não haveria um lençol freático na região.
250 Luiza Naomi Iwakami

uma frente de ação voltada para as populações faveladas, com O


nome de Grupo Executivo para Assentamentos de Favelas e Inva-
sões (GEPA FD).
Da mesma maneira, os arquitetos envolvidos com a proble-
mática social do Distrito Federal, principalmente no que concerne
à segregação espacial na questão habitacional, davam início a um
trabalho voltado para o debate e assessoramento em torno destes
temas através de seu sindicato que contava com pouco tempo de
existência”. Assim, estruturou-se por meio desta entidade um tra-
balho permanente de acompanhamento e assessoria a algumas lo-
calidades, incluindo a Vila Paranoá, durante a gestão da Associa-
ção de Moradores no período 1985-1987.
A democratização da informação foi um dos aspectos que me-
receram destaque, na expectativa de que pudesse servir de estí-
mulo à ação organizada em torno das reivindicações da Vila Pa-
ranoá. Os primeiros trabalhos propondo o assentamento da vila,
realizados por estudantes de arquitetura, obtiveram boa repercus-
são entre os moradores, que passaram a divulgar essas informa-
ções junto à população. As propostas de assentamento desenvol-
vidas nesses trabalhos acadêmicos tinham por base a urbanização
progressiva, com a implantação de equipamentos coletivos e me-
didas a serem adotadas para a implantação da rede de água e es-
goto e sua ligação a cada habitação. Tais propostas constituíram
linha básica de atuação do GEPAFI/SHIS que, naquela ocasião,
contava com parte da equipe que havia desenvolvido aqueles tra-
balhos na Universidade de Brasília. Embora isso não apontasse
para uma efetiva solução do problema habitacional, o GEPAFI
possibilitou a perspectiva de assentamento de favelados com a
execução de três projetos. A equipe do GEPAFI contava com
profissionais de diversas áreas e produziu três cadernos contendo
estudos para o assentamento da Vila Paranoá. Mesmo com a di-
vulgação destes entre os moradores, nunca se avançou no sentido
de se implementar qualquer ação para sua execução.
É interessante observar a relação estabelecida entre o Estado
e os movimentos reivindicativos. Os argumentos que justificavam
o não-atendimento do pedido de ampliação do abastecimento de

7. O Sindicato dos Arquitetos foi precedido pela associação profissional da categoria,


sendo constituído em 1984. Em seguida foi iniciado o trabalho da Comissão Cidade
que veio a prestar assessoria'aos movimentos populares.
Vila Paranoá: a luta desigual pela posse da terra urbana 251

água, invocados pela CAESB, eram de que havia um limite con-


creto ao fornecimento de água para a região, o qual estaria se es-
gotando. A hipótese de perfuração de poços também era descarta-
da pelos técnicos da CAESB, que informavam ser isso infrutífero,
pois o terreno no local era muito rochoso, com lençol freático
muito profundo. Estes encontros com a CAESB, ocorridos no
primeiro ano da gestão da diretoria da Associação dos Moradores,
reforçaram a idéia da neutralidade dessas informações “técnicas”.
Se, por um lado, aprofundava-se na Associação dos Morado-
res do Paranoá a idéia de que a conquista de qualquer reivindica-
ção dirigida ao Estado dependia basicamente da capacidade de o
movimento se afirmar através da força de sua mobilização, por
outro lado, havia também uma tentativa de fazer valer propostas
de caráter mais abrangente no encaminhamento da problemática
habitacional no Distrito Federal.
Em face disso, foi organizado, pela Comissão Cidade do Sin-
dicato dos Arquitetos, em setembro de 1985, um amplo debate pa-
ra o qual foi convocada a maioria das associações de moradores e
entidades representativas da sociedade civil. Sob a forma de se-
minário, intitulado Habitação Já, os debates combinaram as in-
formações sobre a situação geral de déficit habitacional e as ha-
bitações sub-humanas de Brasília com condições vividas direta-
mente pelos que sofriam as consequências desta situação. Procu-
rou-se unificar as lutas que estavam sendo travadas pelas várias
associações de moradores em função da problemática habitacio-
nal, já que a Federação das Associações de Moradores do Distrito
Federal” não tinha qualquer trabalho organizativo, nem propostas
de atuação nesta área.
A linha de atuação do Estado se definia a cada passo, erradi-
cando as “invasões” e procurando conter o fluxo migratório que se
dirigia para o Distrito Federal. Desta maneira, rapidamente desfa-
ziam-se as esperanças de resolução dos problemas habitacionais
por parte da população que acreditava em mudanças positivas da
política social da Nova República.
A Comissão Cidade do Sindicato dos Arquitetos do Distrito
Federal procurava fazer, a partir deste conjunto de problemas, a

em
8, Esta federação foi criada em 1984, com pouca representatividade, e dissolvida
1986.
pS2 Luiza Naomi Iwakami

montagem de um quadro da situação habitacional como prioridade


a ser tratada na referida comissão. As comissões de trabalho, pro-
duto do Seminário Habitação Já, procuravam dar concretude à
ação conjunta das associações de moradores. A própria dificulda-
de de amadurecimento da perspectiva de desenvolvimento de lu-
tas conjuntas, associada à precariedade de locomoção (grandes
distâncias que separavam os moradores de diversas localidades),
fez desaparecer as propostas embrionárias de reivindicação con-
Junta por habitação popular.
O que se pode concluir quanto ao papel desempenhado pela
assessoria aos movimentos populares no Paranoá é que as discus-
sões travadas junto à Associação dos Moradores dificilmente se
limitavam às discussões técnicas, como era a proposta inicial. As
próprias condições em que se encaminhavam as diretrizes de ação
junto à população moradora das favelas levavam a que os debates
sobre a política urbana fossem realizados como forma de emba-
samento de suas propostas de trabalho. Desta maneira, com o
subsídio das informações recentes trazidas pelos próprios profis-
sionais vinculados aos órgãos do Estado e o material sobre políti-
ca habitacional, a diretoria da Associação dos Moradores se ins-
trumentalizava para o debate junto ao govemo.
Houve, portanto, três níveis de discussões realizadas pela as-
sessoria, no período que vai de 1985 a 1987, junto à diretoria da
Associação dos Moradores da Vila Paranoá.
1) informações acerca das propostas de fixação da Vila Para-
noá, difundindo a idéia de tal possibilidade entre os mora-
dores;
2) desmentido das informações técnicas, antes consideradas
monopólio de técnicos (como foi o caso da questão do
abastecimento de água);
3) vinculação entre a questão habitacional e a política urbana
do Distrito Federal.
Este último nível de discussão refletiu, no conjunto do traba-
lho desenvolvido pela Comissão Cidade, a perspectiva de que as
lutas referentes à questão habitacional (tal como a de fixação da
Vila Paranoá) não conseguiriam ter resultados positivos se a ação
fosse isolada. Desta maneira, o trabalho de assessoria voltou-se
com mais ênfase para a proposta unificadora dos vários movi-
Vila Paranoá: a luta desigual pela posse da terra urbana 253,

mentos que tratavam da questão habitacional, sem, contudo, ter


conseguido efetivar algum grau de consolidação.
A Universidade de Brasília tem dado grande atenção ao de-
senvolvimento de trabalhos junto à comunidade, especialmente
mais carente. A perspectiva colocada é divulgar o conhecimento
existente e produzido na universidade por meio dos diversos pro-
Jetos de extensão. Tal proposta tem se concretizado principalmene
em três frentes: na Ceilândia, onde a universidade mantém um
centro de atividades e extensão, com diversas salas; no Novo
Gama (fora do Distrito Federal) e no Paranoá. Esta última frente
de trabalho de extensão realiza atividades na área de educação e
saneamento e desenvolve estudos sobre assentamento e urbaniza-
ção da área. As duas últimas atividades mencionadas iniciaram-se
recentemente, estando atualmente em fase de contato e levanta-
mento de dados. O trabalho de extensão na área de educação tem
alfabetizado adultos. Os próprios moradores, após treinamento
específico, tornam-se monitores. Esta tem sido uma das atividades
prioritárias no Paranoá.
A assinatura do decreto de fixação da Vila Paranoá, em
agosto de 1988, ocorreu de maneira inesperada, no momento em
que terminava a gestão do governador José Aparecido de Olivei-
ra, sendo recebida com grande entusiasmo pela população. O de-
creto explicitava a condição de assentamento legalizado, sem se
referir aos detalhes (alterações e/ou implantação de equipamen-
tos) que ficaram para serem elaborados posteriormente por conta
de uma comissão que seria formada por membros do governo e
representantes das entidades existentes no Paranoá (Associação
dos Moradores, prefeitura comunitária e o CEDEP). Tudo estava
por ser feito. Ao mesmo tempo, o governo estaria propondo um
diálogo com as entidades dos moradores, uma delas francamente
comprometida com as diretrizes governamentais (prefeitura co-
munitária), e outra (Associação dos Moradores) com gestão as-
sistencialista e vinculada ao governo e, finalmente, o CEDEP,
que mantinha uma atuação crítica, mas distanciada das duas ou-
tras entidades.
Nas ocasiões em que a luta pela fixação era levantada, em
reuniões amplas ou em campanhas, tal idéia parecia difícil de ser
compreendida em profundidade pela população local. Antes de
tudo, as chamadas estratégias de sobrevivência se impunham co-
254 Luiza Naomi Iwakami

mo necessidade e havia algumas diferenças de compreensão entre


os moradores a respeito da ocupação ilegal, parte deles não acre-
ditando na possibilidade de serem retirados de lá, onde já mora-
vam há aproximadamente vinte anos. Os moradores mais recentes
imaginavam que, se chegasse a ocorrer alguma remoção, o gover-
no lhes ofereceria uma alternativa de moradia. Pensavam que,
estando inseridos no conjunto dos moradores da Vila Paranoá,
não haveria remoção a força, imaginando ser impossível haver
remoção da população de uma cidade inteira. Da mesma maneira,
consideravam os acontecimentos ocorridos visando à ocupação
dos terrenos como uma atitude que deveria ser permitida, mas,
não o sendo, haveria de chegar o momento em que o governo ad-
mitiria esta alternativa.
As lutas da Vila Paranoá, assim como as de várias localidades
do Distrito Federal, trilharam um árduo percurso de resistência
para fazer valer o direito à habitação. O decreto de fixação da
vila, baixado no final do mandato do governador José Aparecido
de Oliveira, ficou sem ser aplicado por não ter sido regulamenta-
do. A posse de um novo governo, interessado na modificação da
estrutura fundiária, levantará, sem dúvida, novas problemáticas
para os movimentos cujo posicionamento será vital para garantir
ou não um projeto autônomo perante o Estado.

Conclusão

Sendo a favela um dos elementos reveladores da segregação


social do espaço urbano, encontramos explicações de sua forma-
ção na estruturação espacial capitalista, mesmo não tendo Brasília
percorrido o processo tradicional de crescimento das cidad.: O
qual é articulado pelos diversos setores do capital.
Encontramos nas conceituações formuladas por Lojkine
(1981) e Topalov (1979), a respeito da constituição do chamado
fator de aglomeração, explicações da tendência à concentração
espacial e à estruturação dos valores de uso complexo. Se tais
conceituações se aplicam à concentração que o capital tende a
realizar no espaço urbano, os setores de serviços e comércio e,
ainda, a apropriação do espaço para habitação também parecem
ser explicados de maneira semelhante.
A diferença, no caso da Vila Paranoá, comparada com outras
favelas que conhecemos nas grandes cidades brasileiras, se deve
Vila Paranoá: a luta desigual pela posse da terra urbana
253

às características de seu relativo isolamento espacial, constituin-


do-se como embrião de uma cidade. A luta pela água e por equi-
pamentos coletivos na vila assume, portanto, uma importância
vital para a sobrevivência da população.
Os moradores passaram a se organizar, reivindicando luz e
água, desde o momento em que houve um aumento populacional
significativo. Contudo, para que isto ocorresse, foi necessário
constituir o embrião de uma liderança que mais tade faria parte da
diretoria da Associação dos Moradores. A formação de uma lide-
rança coesa, envolvendo pessoas com experiências diversificadas
(antiga Associação dos Moradores do Paranoá, grupo de jovens
da igreja católica, membros de partidos políticos) constituiu um
elemento fundamental para a articulação dos movimentos.
A tônica da atuação desta liderança baseou-se na difusão de
informações e na mobilização direta da população com a finalida-
de de pressionar o governo. Assim, notamos a ausência de um
projeto unificador dos diversos momentos da luta, dada a priori-
dade que se estabelecia em relação à capacidade de pressão por
meio de um envolvimento de um número maior de moradores.
Neste caso, a diretoria da Associação dos Moradores da Vila Pa-
ranoá, na gestão 1985-1987, atuou visando à conscientização
qualitativa dos participantes através da própria estruturação da
luta e das reivindicações, evitando aquilo que interpretavam como
fórmula acabada de mobilização. Existia também a expectativa de
desmascaramento do governador quando de confrontos diretos no
palácio do Buriti.
Se estas eram as intepretações feitas pela liderança do movi-
mento da Vila Paranoá, verificamos uma importante aliança no
quadro de estruturação do movimento, adotando posições para
concretização de perspectivas conjuntas de luta. O papel das as-
sessorias técnicas aos movimentos através das entidades sindicais
(arquitetos e assistentes sociais) assume neste quadro não apenas
a qualidade de apoio técnico, mas a integração de uma perspecti-
va comum no sentido da politização das soluções técnicas.
A compreensão da formação urbana de Brasília passa pelo
fato de o Estado possuir o monopólio das terras do Distrito Fede-
ral, o que lhe confere um poder político sem igual. Por sua vez,
esta compreensão implica uma articulação social sobre a apro-
priação do espaço urbano, assim como o conhecimento dos planos
256 Luiza Naomi Iwakami

de intervenção e controle por parte do governo, encontrando na


atuação dos movimentos um elemento central para a análise.
Assim, desde o primeiro momento de estruturação do eixo
principal das reivindicações na Vila Paranoá, ocorreu maior dis-
cussão sobre as informações dos projetos de urbanização local fa-
cilitando a visualização desta possibilidade pelos moradores. Se,
então, a proposta versava em torno da constituição de uma asses-
soria técnica, logo foi verificado que se tratava de uma luta mais
ampla, a ser levada em conjunto, o que sem dúvida faz parte da
realidade de grande parte dos movimentos sociais no Brasil.
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dições de trabalho, de infra-estrutura e
de serviços urbanos, tornando-se o lo-
cus da elitização da cidade; os pobres,
disseminados na periferia, onde as con-
dições de trabalho são reduzidas, os
equipamentos públicos são ainda precá-
rios, com necessidade de deslocamentos
pendulares diários que impõem enormes
sacrifícios à população periferizada
(cerca de dois terços do total populacio-
nal).
Uma cidade construída desta forma,
apesar de ser considerada planejada, não
poderia deixar de apresentar um conti-
nuado processo social, que se materiali-
zou em movimentos populares. A parti-
cipação social na organização do espaço
urbano aparece em um segundo mo-
mento da obra, onde se teoriza sobre
o significado e visualização das reivindi-
cações populares. Estas nem sempre se
fizeram presentes sem a repressão das
forças organizadas do poder, seja no
âmbito da administração pública, seja na
esfera das empresas privadas encarrega-
das de erguer as obras. Desta forma, os
quatro artigos finais resgatam a história
destas lutas e movimentos desde os pri-
mórdios da cidade, isto é, retrata os
acontecimentos desde a “Cidade Livre”,
que redundaram na fixação do Núcleo
Bandeirante e se estendem até a con-
quista de espaços na Ceilândia e em fa-
velas como a Vila Paranoá. Nesta se ve-
rificou uma das mais tenazes lutas pró-
fixação de favelados da história de Bra-
sília. (Diferentemente das outras obras,
esta é uma das melhores radiografias da
cidade, em termos de se entender a
construção do espaço urbano e sua con-
quista pelos diversos segmentos sociais
representados.)
De uma forma ampla, os trabalhos
deixam patente o quanto, na UnB, se
tem contribuído para o entendimento do
processo de urbanização em Brasília, ci-
dade que se constitui em verdadeiro “la-
boratório” de estudos urbanos e manan-
cial de análises para a proposição de
medidas visando à melhoria das condi-
ções de vida na Capital da República.

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