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Rio de Janeiro
Março de 2017
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A INCOMPLETUDE GRAMATICAL: ARTICULAÇÃO ENTRE
OS ENSINOS DE GRAMÁTICA E DE ESCRITA.
Rio de Janeiro
Março de 2017
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ABREU, Cybelle Borges de.
A incompletude gramatical: articulação entre os ensinos de
gramática e de escrita/ Cybelle Borges de Abreu. Rio de Janeiro: UFRJ/FL,
2017.
xii, 85f.: il., 31 cm.
Orientador: Ana Flávia Lopes Magela Gerhardt.
Dissertação (mestrado). UFRJ / FL / Programa Interdisciplinar de
Pós-Graduação em Linguística Aplicada, 2017.
Referências bibliográficas: f. 93-97.
1. Conhecimento metassintático. 2. Escrita. 3. Incompletude
gramatical. I. Gerhardt, Ana Flávia Lopes Magela. II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa Interdisciplinar
de Pós-Graduação em Linguística Aplicada. III. A incompletude
gramatical: articulação entre os ensinos de gramática e de escrita.
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A INCOMPLETUDE GRAMATICAL: ARTICULAÇÃO ENTRE
OS ENSINOS DE GRAMÁTICA E DE ESCRITA
Examinada por:
_________________________________________________
Presidente, Profa. Doutora Ana Flavia Lopes Magela Gerhardt
_________________________________________________
Profa. Doutora Adriana Leitão Martins – UFRJ
_________________________________________________
Prof. Doutor Marcel Álvaro Amorim – UFRJ
_________________________________________________
Profa. Doutora Kátia Cristina do Amaral Tavares – UFRJ, Suplente
_________________________________________________
Profa. Doutora Letícia Rebollo Couto – UFRJ, Suplente
Rio de Janeiro
Março de 2017
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Dedico este trabalho à minha família – em especial ao meu
marido, Pedro Henrique; minha mãe, Márcia; minha tia
Graça; meu irmão, Deivid; e meu pai, Luiz –, a todos os
meus amigos e aos meus alunos.
5
Agradecimentos
Este trabalho só foi possível devido ao apoio de familiares e amigos, que me incentivaram
e me mantiveram motivada a superar diversos obstáculos e minhas próprias dificuldades e
limitações. Sendo assim, não poderia deixar de agradecer a todos que estiveram ao meu lado
ao longo desse processo, e até mesmo antes. Não teria ingressado em uma universidade
pública se não fosse o auxílio e apoio dos meus queridos professores do colégio (Colégio
Santo Inácio). Também não teria conseguido vencer os obstáculos inerentes ao fato de ser
uma aluna de comunidade em uma escola privada de alto nível se não fosse pelo carinho e
amparo dos meus amigos de colégio e seus familiares, cito em especial Paula Garcia e seus
pais Elizabeth e Paulo; Paula Monção e seus pais Miriam e Paulo; Livia Miranda e seus pais,
Rosana e Marcello; Nathália Novaes e seus pais Sônia e Luiz Fernando, Gabriela Freitas e
seus pais, Márcia e Wellington; Ana Paula Bassi e sua mãe, Marilda; Fernanda Brunetta e seus
pais, Márcia e Gustavo; Helena Fernandes, Ana Helena da Fonseca, Ana Clara Bastos. Fora
os amigos da escola, fui abençoada com outros amigos que também tiveram grande
participação na minha jornada, desde a graduação até este momento tão importante. Graças a
Deus são muitos, mas citarei alguns, aos quais gostaria de dedicar meus especiais
agradecimentos; foram anjos como Patrícia Noro, Carla Vieira, Tomás Mosconi, Daphne
Segal, Gabriel Boche, Pedro Rocha, Thiago Biá, Helena Faria, Sabrina de Oliveira, Letícia
Katz. Fundamentais também foram meus companheiros grupo de pesquisa (Cogens), os quais
tenho a honra de chamar de amigos: Diego Vargas, Marina Costa, Patricia Botello, Fabiana
Esteves, Marcus Almeida, Luciana Faria, Camila Pessôa e Natália Nobre. Agradeço também
à minha orientadora, Ana Flávia Lopes Magela Gerhardt, por me aceitar como orientanda.
Também agradeço aos professores que se disponibilizaram a fazer parte da minha banca
avaliadora e a contribuir com sugestões e reflexões que tragam melhorias ao meu trabalho:
Professora Doutora Adriana Leitão, Professor Doutor Marcel Amorim, Professora Doutora
Kátia Tavares e Professora Doutora Letícia Rebollo. Além da gratidão para com os
companheiros da academia, não poderia deixar de expressar minha gratidão pelo colo e o
ouvido amigo, o apoio, a paciência e as risadas aos amigos, mais do que queridos, do Colégio
Integral Solar, instituição que me acolheu como professora de Língua Portuguesa e de
Redação e que me permitiu exercer minha profissão de forma a poder implementar na prática
as minhas crenças teóricas; desse grupo, agradeço especialmente às diretoras Iolanda
Maltaroli, Isabella Maltaroli e Ivonete Mendes, aos professores/amigos Débora Rocha,
Rodrigo Abreu, Caroline Rodrigues, Paula Coelho, Marcella Albaine, Rafael Betencourt e aos
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amigos Guilherme Maltaroli e Camilla Fagundes. Agradeço também aos meus alunos, que me
permitiram utilizar seus textos em congressos e para aprofundar meus estudos, além de
acreditarem em mim e na prática pedagógica que sigo. Não menos importante, gostaria de
registrar minha gratidão à compreensão da minha família, que precisou ter muita paciência
com minha ausência, com minha agenda totalmente tomada pelo trabalho e pelos estudos. Em
especial, agradeço ao meu Marido, minha força e suporte, o primeiro que me impulsionou a
ingressar nessa jornada, Pedro Henrique Salgado; à minha Mãe, Marcia Borges, que me deu
a oportunidade desta existência e cuidou para que nada me faltasse, que sempre foi meu
modelo de mulher guerreira e forte, batalhadora, que nunca desistiu de mim e do amor, que é
nossa luz; à minha tia Joceli das Graças e ao meu irmão, Deivid Lino, que sempre me deram,
de suas formas, força e apoio para concluir essa jornada com alegria e amor; ao meu pai, Luiz
Soares, que também colaborou para que eu tivesse a oportunidade desta existência e da
constituição de quem sou; à minha Tia Marta e meus primos Liliane Alves e Wagner Borges,
que sempre tiveram carinho especial por mim e mantiveram preces para que eu obtivesse
sucesso nessa empreitada. Não poderia deixar de agradecer a luz e o amparo, as preces e o
carinho dos meus avós postiços Dirceu Silveira e Adelayde Salgado, a qual citei no meu
prefácio; além da proteção espiritual e amorosa da minha falecida avó Thereza Borges.
Ademais, agradeço a Deus e ao Mestre Jesus, a todos os espíritos protetores que me guiaram
nessa jornada e me permitiram ser útil aos meus irmãos e participar, de alguma forma, da luta
pela melhoria da educação do nosso país a partir da construção de um trabalho que acredito
servirá para futuras pesquisas e produções de outros pesquisadores/professores que, assim
como eu, almejam dias melhores para nossa sociedade.
7
“Aprender é ser. Se eu sou, já aprendi. Se eu ainda estou me esforçando para ser,
ainda estou aprendendo.”
(Adelayde Salgado Rodrigues)
8
RESUMO
9
ABSTRACT
The purpose of the present study is to question the current model of Portuguese
teaching due to a linguistic issue, which will be presented and analyzed in this paper; and
to also support a teaching model that takes the students’ metasyntactic consciousness
development into consideration judging by their autonomy to use available language
resources that serve their basic speech needs, in accordance to Gerhardt (2016). We have
analyzed essays from prospective college student’s exams taken from UOL’s website, in
order to evaluate the grammatical incompleteness, which is a recurrent syntactic issue
present in student’s essays from different social classes and age groups, and that could
not be found in any teaching materials, nor had it been introduced as a concept thus far.
The occurrence of a grammatical incompleteness as a concept from a systemized study
allows us to 1) expose the occurrence of this issue in different levels in the text; 2)
quantify this occurrence; 3) think of a textual production teaching method for educators
to work with the written text not only as a discursive style but also as a notational system
(RAVID; TOLCHINSKY, 2002); and 4) reflect on the need for a linguistic knowledge for
textual composition; in other words, we need to develop metalinguistic abilities and
metasyntactic consciousness (GOMBERT, 1992; 2003; CORRÊA, 2004) so that students
can establish autonomy regarding the qualitative usage of their own language in different
communication contexts.
Rio de janeiro
Março de 2017
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO................................................................................................................12
1.1. APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA.............................................................................15
2. CONTEXTUALIZAÇÃO....................................................................................................18
2.1. O PROCESSO DE ESCRITA........................................................................................18
2.2. O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NOS MOLDES ATUAIS: AS AULAS DE LÍNGUA
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1. INTRODUÇÃO
12
questões de extrema relevância para a aprendizagem e desenvolvimento dos alunos, como
“o que ensinar”, “como ensinar”, “para quê ensinar” e “para quem ensinar”
(GERHARDT, 2016). Assim, em termos de ensino de língua materna, as escolas
apresentam em seu currículo uma grade dividida entre aulas de língua portuguesa e aulas
de produção textual, e da mesma forma procedem os livros didáticos. Na prática, isso
acarreta uma desarticulação entre ambas as Disciplinas: de um lado, aula de gramática no
sentido de classificar estruturas; de outro, aulas de produção de texto com foco na
exploração de gêneros textuais no sentido de estilo discursivo (RAVID; TOLCHINSKY,
2002), ou seja, lidam com os conhecimentos sobre as estruturas mais globais
(GERHARDT, 2016). As aulas de gramática não encontram aplicabilidade nas aulas de
escrita, já que classificar estruturas não faz parte das ações necessárias para a produção
escrita, como veremos mais à frente.
Sobre o ensino de gramática, veremos que muitas discussões levantadas sobre o
assunto levaram à ideia de que não há necessidade de ensinar gramática, já que esse tipo
de conhecimento não pareceu exercer nenhuma influência sobre a escrita do aluno. Ao
que parece, não é apenas o Brasil que sofre com as inadequações nas orientações das
discussões que regulam o ensino: Myhill (2012) mostra as falhas nas pesquisas realizadas
na Inglaterra nos últimos 90 anos em torno do conhecimento gramatical e sua relação com
a escrita; ela mostra que a ideia de que “o ensino de gramática escolar tem pouco ou
nenhum efeito sobre os alunos” (HILLOCKS; SMITH, 1991 apud MYHILL, 2012) é
equivocada, pois as pesquisas que afirmam isso se baseiam em dados coletados de forma
inadequada. A autora atribui essa falha ao desajuste inerente ao contexto de pesquisa:
ensina-se gramática em um contexto de aula e avalia-se a influência desse ensino em uma
produção que se dá em outro contexto. A nossa prática nos revela que o conhecimento
desenvolvido nas aulas de gramática não se dá de forma adequada, isto é, de forma que o
aluno possa aplicá-lo na escrita. Os alunos tendem a realizarem as classificações, mas não
a fazerem uso delas na construção de seus textos. Nesse sentido, podemos afirmar que o
aluno sequer está aprendendo gramática, mas sim classificações. Então, não faz sentido
avaliar um conhecimento que não foi de fato desenvolvido e determinar que a gramática
é inútil para o ensino de escrita a partir do fato de haver aulas de gramática, e, mesmo
assim, os alunos apresentarem problemas de escrita. Nós, de outra forma, acreditamos
que o problema não está na gramática em si, mas na forma como ela é trabalhada nas
aulas de português, a saber, em desconexão com sua aplicabilidade na produção escrita.
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Sendo assim, advogamos em prol de uma mudança no olhar sobre a gramática1,
considerando-a um recurso necessário e constitutivo do texto, tanto escrito quanto oral.
Segundo Gerhardt,
A não atenção ao ensino de língua em termos de sistema notacional,
1aliada à ausência de metodologias de desenvolvimento da
compreensão metalinguística sobre a língua, prejudica o objetivo de
ajudar os alunos a apropriarem-se da dimensão linguístico-estrutural do
uso da linguagem, cujo conhecimento é necessário à produção e
interpretação de textos de diversas modalidades em situações reais de
comunicação. Isso os impede, por exemplo, de produzir textos
estruturalmente adequados às finalidades e contextos a que se destinam.
Impede-os até de reconhecerem gramaticalmente os textos em termos
de estilo discursivo: isso ocorre quando recebemos de alunos materiais
escritos com fortes marcas de oralidade em diversos níveis de análise,
o que revela a sua dificuldade em compreender as diferenças estruturais
entre oralidade e escrita (GERHARDT, 2013, p. 22).
1
Quando usamos o termo “gramática” estamos nos referindo aos conhecimentos gramaticais, ao conteúdo
linguístico, e não do livro escolar.
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auxiliaria a desenvolver nossas ideias em torno de um ensino que tenha como base o
desenvolvimento da consciência do aluno sobre as estruturas linguísticas pertinentes a
sua língua e sobre como gerenciá-las em suas práticas de linguagem, ou seja, um ensino
que se volte para o desenvolvimento da consciência metalinguística – no nosso caso
específico, trataremos da consciência metassintática, que é a consciência e gerenciamento
das estruturas sintáticas que compõem o texto (GOMBERT, 2009), como veremos mais
à frente. Ao longo deste trabalho, mostraremos que o desenvolvimento das habilidades
metalinguísticas, no sentido que abordaremos aqui, traz como consequência a autonomia
do aluno quanto às suas práticas de linguagem e a possibilidade de mudanças sociais
(GERHARDT, 2016).
15
evidência, deixando em aberto o espaço para uma outra proposta de estudo sobre
a incompletude discursiva;
2) tornar a incompletude gramatical um conceito, que será apresentado dentro do
capítulo de aporte teórico.
A incompletude gramatical pode ocorrer:
No nível lexical, referindo-se à ausência de léxicos importantes para a
construção de significado e para a manutenção da coesão textual;
No nível argumental, referindo-se à ausência de um argumento projetado pelo
verbo ou pelo nome, ou ainda pela ausência do próprio verbo;
No nível proposicional, referindo-se à ausência de uma proposição inteira,
podendo esta ser um predicado ou uma oração que deveria estar articulada a
outra – na nomenclatura da gramatica tradicional, essa oração seria
correspondente a uma oração principal ou a uma das coordenadas.
Esse fenômeno linguístico se mostrou produtivo nas redações avaliadas e
evidenciou problemas relacionados aos saberes sobre práticas de linguagem dos alunos.
A observação desse problema de escrita faz emergir questões concernentes tanto ao
ensino de língua quanto ao uso da língua em si, isto é, às causas que se relacionam com
ações metacognitivas do usuário no momento de sua prática de linguagem. Em outras
palavras, notamos que havia uma relação entre a ocorrência do problema linguístico e as
falhas no ensino de língua; e entre as falhas no ensino e as ações metacognitivas referentes
às práticas de linguagem. Identificamos que os problemas de escrita apresentados pelos
alunos estavam relacionados à dificuldade de gerenciar os recursos de sua própria língua
nos seus atos de comunicação, sejam eles orais ou escritos; e essa dificuldade evidencia
o problema causado pela desarticulação entre o ensino de português e o ensino de
produção textual, além do equívoco característico da própria aula de português, que, como
veremos, entende o ensino de gramática como ensino de regras e de classificações de
estruturas da língua, sem nenhuma relação com a produção textual oral ou escrita. Ou
seja, um sistema de ensino de língua falho, que não propõe ao aluno experiências de
qualidade com a própria língua.
A partir desses achados, propomos um recorte específico, mas visamos os
conhecimentos de língua de forma geral. Trataremos da incompletude gramatical nos três
níveis, mas tendo em mente uma mudança no tratamento de todos os problemas
linguísticos. A incompletude gramatical, nesse sentido, será apenas um exemplar de
problemas linguísticos não tratados pela escola, e a sua exploração nos ajudará a mostrar
16
a importância do desenvolvimento das habilidades metalinguísticas nas aulas de
português, não no sentido de Jakbson (1960), mas de Gombert (2009), que trata dessas
habilidades como habilidade de gerenciar os recursos linguísticos disponíveis para a
construção de textos. Sendo assim, advogamos aqui, em consonância com os postulados
de Gerhardt (2016), em prol da mudança de foco no ensino: da língua para a pessoa que
usa a língua. Então, quando observamos a incompletude como um fato estrutural que diz
respeito a regras de uso da língua, estamos focalizando, na verdade, os processos
cognitivos que levam o aluno a incorrerem nesse problema; diferentemente do que se faz
no ensino hoje, estamos propondo um trabalho com o erro, em conformidade com o que
postula Gerhardt (2013, 2014, 2015, 2016). E objetivamos, com isso, abrir a possibilidade
de pensar em práticas pedagógicas que possam dar conta desse e de outros problemas
gramaticais, o que acarretará uma mudança substancial no ensino de gramática, que
passará a estar a serviço das práticas de linguagem, do efetivo uso da língua, da produção
em diferentes gêneros e contextos comunicativos em diferentes registros e modalidades,
da experiência de qualidade da pessoa com a sua língua.
Segundo Perini (2006), “precisamos conhecer as regras porque elas são parte do
mecanismo mental que nos permite relacionar formas com significados e, portanto,
compreender e transmitir mensagens” (p.64). As regras a que se refere Perini (2006) são
parte dos recursos que a língua nos oferece para construir textos, e essa relação entre o
mecanismo cognitivo de significação e a materialidade linguística, que será vista mais à
frente, é o que fundamenta a necessidade de aprendermos e nos apropriarmos dos recursos
gramaticais, já que eles são fatores importantes para a construção do significado, que é o
que possibilita a efetivação dos propósitos retóricos de um escritor ou falante – no nosso
caso específico, estaremos tratando da produção textual escrita.
17
2. CONTEXTUALIZAÇÃO
18
objetivos comunicativos; as demandas globais desse gênero, isto é, que tipo de
informações ele comporta, como as informações devem ficar dispostas, qual modalidade
é característica desse gênero e outros “enquadramentos” (GERHARDT, 2015) relativos à
proposta do escritor.
Antes de escrever, é necessário selecionar o tema ou determinar os
objetivos do escritor e antecipar o que será comunicado ao leitor a quem
o texto é direcionado. E então, é necessário encontrar, na memória de
longo prazo ou em fontes externas, as ideias que deverão ser postas em
palavras. Essas ideias devem ser organizadas de forma que se linguem
ao conhecimento prévio esperado do leitor e possua uma configuração
geral coerente. (GOMBERT, 1992, p. 166, tradução nossa)iii
2
No texto original, as expressões em inglês “written sentence” e “spoken utterance” apresentam formas
linguísticas (morfologias) diferentes. Se levássemos a tradução ao pé da letra, teríamos as expressões
“sentença escrita” e “fala falada”. Na primeira expressão, esbarramos no conceito de sentença, que não
contempla a ideia proposta pelo autor; e na última, enfrentamos o problema de coerência, já que o
substantivo “fala” se origina da nominalização do verbo “falar”. Por isso optamos pela tradução que
propusemos.
19
atenção por parte do escritor quanto às possibilidades de significados que as
estruturas por ele utilizadas podem propor, ou seja, a previsão do que é esperado
que o leitor entenda, já que, diferentemente da modalidade oral, não há
possibilidade de um feedback imediato na modalidade escrita. (ver MYHILL,
2009)
Myhill (2009) nos mostra que há um continuum entre oralidade e escrita e destaca
a aproximação entre essas duas modalidades em alguns gêneros, como o discurso oral
formal, que se aproxima bastante da escrita, e gêneros de escrita mais informais, como e-
mails e mensagens de celular, que se aproximam bastante da oralidade. Contudo, a autora
salienta que “as distinções linguísticas entre a fala informal e a escrita formal são bem
perceptíveis” (p.31, tradução nossa)vi, colocando essas modalidades e seus respectivos
registros nas extremidades do continuum oralidade-escrita. Todas essas considerações
servirão para discutirmos mais à frente as necessidades específicas envolvidas no ensino
de escrita e como elas são ou não atendidas pelo sistema educacional brasileiro.
Findo o estágio de planejamento, o escritor entra no estágio de transcrição, o qual
pode ser entendido como a fase de transformação das ideias em palavras escritas. Em uma
avaliação superficial, esse estágio parece ser relativo a uma atividade puramente motora;
no entanto, a literatura nos mostra que se trata de um processo muito mais complexo.
Como expõe Gombert (2015), é no estágio de transcrição que o escritor faz seleções
importantes para a materialização linguística de suas ideias. É durante a transcrição que
o escritor realiza ações como “escolhas lexicais e antecipação das convenções de escrita
no nível ortográfico, sintático e de pontuação – tudo isso como uma função da capacidade
de compreensão esperada do leitor pretendido” (GOMBERT, 2015, p. 166, tradução
nossa)vii. Vemos, assim, que as escolhas de ordem gramatical são feitas dentro desse
estágio de transcrição; e, sobre isso, vale observar que, assim como propõe Gerhardt
(2015, 2016), o léxico e a gramática compõem uma “faceta das ações de linguagem”; dito
de forma mais específica, esses elementos são entendidos como “componentes que
materializam estruturalmente as características discursivas de um texto” (GERHARDT,
2016, p. 44).
A fase de transcrição junto à de planejamento evidenciam as facetas discursivas e
gramaticais da produção escrita. A compreensão dessas duas facetas da língua pode ser
vista nos postulados de Ravid & Tolchinsky (2002), que nos apresentam a distinção entre,
de um lado, a língua como estilo discursivo, e, de outro, como sistema notacional (ver
RAVID & TOLCHINSKY, 2002; GERHARDT, 2016). Para o nosso trabalho, importar-
20
nos-á a observação da língua como sistema notacional, já que, como explicitamos em
nossa introdução, objetivamos articular o ensino de gramática ao ensino de texto. Sendo
assim, a fase de transcrição terá grande relevância nas discussões que serão desenvolvidas
mais à frente.
Voltando aos estágios de escrita, após o estágio de transcrição, Gombert (1992) e
Hayes e Flower (1980) nos apresentam o estágio de revisão, o qual é referente à fase de
avaliação do texto produzido e de correções de possíveis problemas. Esse estágio se
constitui de ações de “releitura, de comparação entre o texto produzido e o texto
planejado, e de implementação das correções necessárias” (GOMBERT, 1992, p. 166,
tradução nossa)viii. Os autores ainda destacam que a revisão do texto pode acontecer não
somente no final, mas também ao longo do processo de escrita. Ademais, Gombert (1992)
sinaliza que ao processo de revisão pode ser adicionado o de reescrita, que, segundo o
autor, “é mais do que um simples passo dentro do processo geral de composição,
constituindo uma forma modificada de retranscrição do texto que acabou de ser
produzido” (GOMBERT, 1992, p. 167, tradução nossa)ix.
O processo de revisão foi (e ainda é) explorado por diferentes autores. Escolhemos
construir nosso discurso em torno das ideias de revisão apresentadas por Hayes e Flower
(1980), Allal, Chanquoy e Largy (2004) e Myhill (2007). Segundo Allal, Chanquoy e
Largy (2004), a revisão acontece nos três estágios da escrita: planejamento, transcrição e
revisão. Os autores denominam a revisão que ocorrem no estágio de planejamento de
revisão “pré-textual”, que inclui as ações de “avaliação, revisão e refinamento de ideias e
objetivos”; a que ocorre no estágio de transcrição de “revisão online”; e a que se realiza
ao fim da produção de “revisão posterior”3 (ALLAL, CHANQUOY E LARGY, 2004,
apud MYHILL, 2007, p.324. tradução nossa)x. Enquanto esses autores identificam e
propõem uma divisão baseada nos momentos de ocorrência da revisão, Hayes e Flowers
(1980) tratam do processo em si.
No modelo de escrita de Hayes e Flower (1980), o processo de revisão se divide
em dois subprocessos: “(a) leitura para detecção e avaliação de erro e (b) edição para
propor alterações”. (HAYES E FLOWERS, 1980, apud MYHILL, 2007, p. 324. tradução
nossa)xi. Observemos que o modelo proposto por Hayes e Flower em 1980 não entra em
conflito com a proposta de Allal e colegas (2004), e que todos esses autores tratam da
3
O termo utilizado em inglês para o que traduzimos aqui como “revisão posterior” foi deferred revision.
Essa expressão, se tomado o significado ao pé da letra, deveria ser traduzida como “revisão postergada”.
No entanto, acreditamos que o léxico “posterior” atende melhor ao significado pretendido pelos autores.
21
revisão como um processo que pode ser realizado de forma consciente ou
inconsciente/automática; a diferença entre essas formas de rever o texto reflete na
qualidade da produção final. Sobre isso, Myhill (2007) destaca os postulados de Pea &
Kurland (1987), mostrando as dificuldades enfrentadas pelos estudantes durante o
processo de revisão: de um lado, eles apresentam dificuldade quanto a “auto-monitorar
quais são seus problemas de escrita”; e, de outro, se conseguem identificar o problema,
sentem falta de “técnicas e métodos para corrigi-los” (PEA & KURLAND, 1987, apud
MYHILL, 2007, p. 340. Tradução nossa)xii. Essas questões serão retomadas em capítulos
posteriores deste trabalho para maiores reflexões. Contudo, queremos ressaltar ainda que,
segundo Hayes (2004), “em muitos casos, revisamos nossos textos não por termos
encontrado um erro, mas por termos encontrado algo melhor para dizer ou uma maneira
melhor de se dizer o que dissemos” (p.11, tradução nossa)xiii.
Ainda tratando das ações de revisão, refinando a ideia de Hayes e Flower (1980),
Allal e colegas (2004) apresentam uma distinção entre a atividade de editar e a de
reescrever. Segundo eles, a edição do texto envolve a correção de pequenos erros sem que
haja mudanças de significado, enquanto a reescrita envolve as ações de transformar,
adicionar ou deletar elementos do texto, o que significa propor uma alteração no
significado (apud MYHILL, 2007). Veremos mais à frente que essa fase, bem como a fase
de transcrição, terá papel importante nas discussões que proporemos em torno do ensino
de gramática em articulação com ensino de texto.
Tendo finalizado as explanações acerca do processo de escrita, passaremos agora
a tratar do contexto educacional em que tal processo deve ser tratado. Na próxima seção,
observaremos como se dá o ensino de língua materna nas aulas de Português, no Brasil,
como a habilidade de escrita é ou não trabalhada nas escolas brasileiras, se as demandas
para que a produção textual seja implementada de forma qualitativa são ou não atendidas
e as consequências do modelo atual de ensino de língua portuguesa.
22
ensino de escrita bem como o de leitura. Aula de língua portuguesa deverá ser entendida
como a sendo referente à Disciplina Língua Portuguesa, que nas escolas brasileiras é
ministrada em separado das Disciplinas Redação e Literatura. O ensino de produção
textual, por sua vez, se refere ao ato de ensinar pertinente às aulas de produção textual,
ou seja, ao ato de ensinar a arte de escrever (ensino de escrita). Sendo assim, por aula de
produção textual, devemos entender a Disciplina que se dedica ao ensino da escrita, que
nos currículos brasileiros é denominada Redação ou Produção Textual.
Antes de prosseguirmos com nosso raciocínio, gostaríamos de fazer um adendo
relativo ao termo “língua materna”: esse termo é problematizado em Scherre (2005),
devido à ideia da autora sobre o que se ensina na escola não ser língua materna. A autora
se apoia no argumento de que “língua materna se adquire; não se aprende e nem se ensina”
(p. 93). Partindo desse argumento, Scherre (2005) chega a afirmar que o que se ensina na
escola também não é língua portuguesa, mas “gramática normativa, uma segunda língua
ou uma língua estrangeira” (p. 95). A autora diz ainda que “as gramáticas normativas, em
alguns aspectos, são reflexos de verdadeiras segundas línguas, no sentido de serem
reflexos de um outro estado de língua, com um outro conjunto de relações” (p. 95). Apesar
de reconhecermos que essa seja uma reflexão interessante e de admitirmos que a
gramática normativa possui suas peculiaridades, nosso trabalho não se aprofundará nessa
problematização. Por ora, nos importa a acepção de língua materna como idioma nacional
oficial; no nosso caso, o idioma oficial é o português. E devemos incluir nessa definição
os diferentes registros pertinentes a essa língua, a saber: o registro coloquial, referente
aos usos cotidiano em situações informais; e o registro formal, também denominado
registro padrão ou norma culta, ou ainda norma de prestígio, referente aos usos em
situações formais4. É em torno desse último que o presente trabalho se desenvolverá.
Posto o adendo e feitas as considerações terminológicas, iniciaremos as
considerações sobre as aulas da Disciplina Língua Portuguesa.
4
Para mais informações acerca do papel do registro no texto escrito, ver GEHARDT, 2015.
23
notamos que o foco do ensino recai sobre as classificações taxonômicas e a fixação das
normas prescritas pela gramática tradicional (ver GERHARDT, 2016). O que podemos
observar a partir da experiência como professora é que as aulas de português se voltam
para atividades de classificar palavras ou frases ou estruturas soltas, fora de um contexto;
ou de fixar regras de uso da língua, priorizando o trabalho com as regras pertinentes à
variedade culta da língua. E ainda, quando encontramos atividades que se propõem a
focalizar o texto, este acaba sendo utilizado apenas como “um suporte didático para a
realização de atividades linguísticas de identificação, de localização, de análise e de
classificação de estruturas da gramática normativa” (SILVA, 2012, p. 70). Nas palavras
de Kleiman (2008), “o professor utiliza o texto para desenvolver uma série de atividades
gramaticais, analisando, para isso, a língua enquanto conjunto de classes e funções
gramaticais, frases e orações” (p. 17).
Savioli (2014) faz uma avaliação do percurso da gramática nas ações escolares. O
autor divide esse percurso em três estágios e mostra como o ensino de gramática partiu
de uma perspectiva explicitamente preocupada apenas com as classificações gramaticais
para um ensino preocupado com a utilização de gêneros textuais como aporte para as
questões gramaticais. O que o autor nos apresenta é a transformação ocorrida no ensino
de língua, a qual, no entanto, não eliminou as atividades de classificação – houve apenas
uma alteração na nomenclatura –, nem saiu do foco na língua, apesar de, de alguma forma,
passar a considerar o aluno no processo ao rever a finalidade da língua: construção de
significado e comunicação (SAVIOLI, 2014):
Nessa concepção, a gramática passa a ser vista como um conjunto de
leis responsáveis pelas regularidades geradoras de sentidos e de efeitos
de sentido. É um programa carregado de circuitos acionáveis pelo
enunciador para produzir os resultados ajustados às suas intenções e ao
tipo de relação que pretende estabelecer com seu interlocutor numa
dada circunstância de comunicação, levando em conta o contexto
cultural (SAVIOLI, 2014, p. 144).
Notamos, com esse trecho de Savioli (2014), que o aluno, enquanto enunciador,
passa a ser considerado no processo de ensino de língua, além da gramática, que passa a
ser entendida como necessária na construção de significado nas práticas com a linguagem.
Além disso, o autor considera também a influência de fatores sociais nas práticas de
linguagem:
As teorias expostas colocam com clareza o dado de que a língua é, a um
só tempo e sob aspectos diversos, um código e também um fato social.
Na condição de código, ela tem o poder de, em quaisquer das
variedades, construir significados equivalentes; na condição de fato
24
social, cada variedade se contagia do prestígio de que desfruta a
comunidade dos seus falantes. Assim, um enunciado indiferente sob o
ponto de vista do significado, pode ser comprometedor sob o ponto de
vista do fato social (SAVIOLI, 2014, p. 145).
25
apenas demanda que o aluno as retire para, então, realizar a classificação), sem nenhuma
ligação com ou objetivo de contribuição para a produção escrita ou para qualquer outro
tipo de prática com a linguagem. Acrescido a isso, as demais atividades direcionadas ao
ensino de gramática não propõem nenhuma intervenção ou reflexão por parte do aluno
(GERHARDT, 2016); são apenas atividades de fixação de regras, sem haver uma
proposta de levar o aluno a pensar sobre os usos de tais regras na composição textual,
sobre como funcionam na construção de significados, por exemplo. Nas palavras de
Gerhardt (2016), “apresenta-se uma construção qualquer e se mostram aos alunos as
partes que a formam, com os devidos nomes [...]. E pretende-se com isso que os alunos
leiam e escrevam textos com qualidade” (p.76).
Ao verificarmos como se dá o ensino de gramática referente à habilidade de
escrita, fica evidente que esse ensino não oferece nenhum recurso que auxilie o aluno em
seu desenvolvimento como escritor, já que classificar elementos gramaticais, sejam eles
morfológicos, sejam sintáticos, não consta como uma ação necessária para o
desenvolvimento da habilidade de escrita – e, apesar de não ser nosso foco neste trabalho,
podemos afirmar que classificação taxonômica também não colabora para o
desenvolvimento da habilidade de leitura (GERHARDT, 2013, 2016). Sendo assim, é
legítimo levantar uma questão central para os professores de português que ministram a
Disciplina Língua Portuguesa: para que servem as aulas de língua portuguesa?
Como já vimos, a exclusão do ensino de gramática aparece como uma solução
para o problema de inutilidade das aulas de língua portuguesa nos moldes tradicionais.
Nosso ensino de gramática sofre do mesmo mal que o dos ingleses, como vemos em
Cameron (1995), que afirma que, no Reino Unido, “o debate sobre gramática tem sido
menos sobre gramática em si do que sobre ‘o valor particular e os padrões que a gramática
foi feita para simbolizar.” (CAMERON, 1995, apud MYHILL, 2000, p.151. Tradução
nossa)xiv. O que Cameron (1995) nos aponta, e que cabe ao que ocorre no Brasil, é que as
discussões sobre gramática acabaram girando em torno de questões políticas e
variacionistas (a briga de classes materializada no ensino de língua) do que em torno da
relação entre o ensino de gramática em si e as práticas de linguagem. O problema é que
ao excluir-se do ensino os conhecimentos sobre gramática, exclui-se o olhar sobre o
sistema notacional que constitui o texto.
Segundo Ravid e Tolchinsky (2002), a língua é constituída em dois planos: um
plano chamado de estilo discursivo, que trata das estruturas gerais dos gêneros textuais;
e um plano chamado sistema notacional, que trata da materialidade linguística que
26
constitui o texto. Ou seja, a gramática é parte constitutiva do texto e deve ser tratada como
tal. Contudo, tratar do sistema notacional implica tratar tanto da norma culta quanto do
uso coloquial da língua, o que é inadmissível segundo o discurso do “senso comum”.
Tanto linguistas como não-estudiosos da língua encontram dificuldade em entender a
gramática como parte importante na construção do significado e o uso coloquial como
item importante a ser levado em consideração, haja vista ser relativo aos saberes que o
aluno já apresenta, além de possuir seu próprio sistema de organização. Conforme nos
mostra Myhill (2000), ainda sobre a situação do ensino no Reino Unido,
Existe uma crença de que a gramática é uma entidade monolítica: da
mesma forma que não-linguistas acham difícil de entender que tanto o
inglês padrão [equivalente à nossa norma culta] quanto os dialetos
[equivalente ao nosso uso coloquial característico de cada local]
possuem de igual forma sua própria gramática sistematizada e
organizada, não-linguistas não sabem que a gramática varia de uma
língua para outra” (p. 156).
Assim, o ensino de gramática ora é pensado apenas como ensino de regras da boa
escrita, ora é ojerizado e tido como inútil; e o ensino de escrita em momento nenhum se
articula com os conhecimentos gramaticais de forma explícita, com ressalvas para as
questões de concordância verbal e nominal e colocação pronominal, como vimos ser
necessário para que qualquer aluno tenha condições de produzir bons textos – e não
apenas aqueles que já estão imersos nas comunidades linguísticas de prestígio, o que
ajuda de alguma forma a proximidade das suas produções do que é considerado bom,
socialmente aceito ou passível de significação5. E a escolha pelo trabalho com foco em
textos nas aulas de língua portuguesa não parece ter contribuído para a melhoria nem da
leitura nem da escrita, pois ainda deixava de fora os aspectos gramaticais que trabalhavam
para a construção do significado do texto.
Não se fazia o esforço interpretativo, marcado pelo propósito de
aprender os sentidos dos signos no seu interior e no modo como se
articulam para criar uma unidade de sentido. As aulas de texto, em geral,
restringiam-se a responder questionários ou testes que se fixavam
apenas nas informações de superfície (SAVIOLI, 2014, p. 140)
5
A imersão nas comunidades linguísticas de prestígio faz com que o sujeito tenha acesso à fala cujas
estruturas são mais próximas do estabelecido pela norma culta. Assim, considerando o que colocamos
anteriormente sobre o continuum fala-escrita, podemos concluir que esse sujeito advindo das comunidades
de prestígio, ainda que escreva como uma transcrição da sua oralidade, se aproxima, na escrita, do que a
norma culta estabelece como apropriado.
27
as atividades relativas a esse tema se restringem à identificação do tipo de variedade,
discussão em torno da situacionalidade – se o registro utilizado é apropriado ou não à
situação de comunicação – e correção – transformar um texto coloquial em texto formal.
Em nenhum momento, as produções dos alunos, com seus erros, suas inadequações, são
consideradas. Logo, ao não admitir as produções dos alunos, o erro, não considerar os
saberes e não saberes desses alunos, não considerar as ações cognitivas envolvidas nas
habilidades que se pretende trabalhar/desenvolver (leitura e escrita) e insistir nas práticas
pedagógicas que se voltam para a transmissão de regras apenas, o que vemos é que as
mudanças no ensino de gramática, no ensino de língua portuguesa e no ensino de escrita
de forma alguma fez com que o foco saísse da língua e se voltasse para a pessoa, conforme
nos mostra Gerhardt (2013, 2015, 2016).
A proposta de ações didáticas meramente apresentativas e definicionais
para os elementos da linguagem, seja com finalidade de análise e
classificação, seja para identificar a relação entre as formas linguísticas
e os seus significados possíveis, está presente e ocupa espaço
majoritário na maioria dos atuais materiais didáticos e propostas
pedagógicas do português como língua materna. Essa forma de ensino
está relacionada à naturalização do aprendizado porque diz respeito à
ideia de que os alunos são capazes de aprender de qualquer jeito, mesmo
que, no processo, eles estejam situados como elementos passivos, não
sendo desafiados, motivados a fazerem coisas com a linguagem, nem a
desconstruírem percepções e opiniões sobre ela, nem a compreenderem
que a efetiva intervenção consciente sobre o que produzem
linguisticamente também é uma prática de linguagem (GERHARDT,
2016, p. 73)
O que Gerhardt (2016) está nos apresentando é que o problema central do ensino
de língua portuguesa é não se centrar no auxílio ao desenvolvimento das competências
metalinguísticas (que incluem a consciência metassintática) e metatextuais dos alunos, ou
seja, na conscientização deles sobre ações envolvidas nas práticas de linguagem e dos
recursos disponíveis para melhorar a implementação de tais ações: não há um foco em
melhorar a experiência do aluno com a língua.
No capítulo que segue, aprofundar-nos-emos nesse assunto, desenvolvendo os
conceitos de metalinguagem e metassintaxe. Além disso, apresentaremos nossa visão
sobre como se daria um ensino apropriado de gramática e como atender à necessidade de
se estabelecer uma articulação entre esse ensino e o ensino de escrita, objetivando mostrar
a importância do ensino de gramática para a melhoria da produção escrita e efetivar a
mudança de foco das reflexões: da língua para a pessoa.
28
2.2.2. RESSIGNIFICANDO A GRAMÁTICA
Ao longo dos anos, o ensino de gramática, associado às aulas de língua
portuguesa, passou por grandes transformações, todas fundamentadas em diferentes
estudos, como vimos no capítulo anterior. No entanto, vimos também que nenhuma
dessas mudanças trouxe significado às aulas de gramática, nem melhoria às aulas de
produção textual; e apontamos que, conforme afirma Gerhardt (2013), isso se devia ao
fato de tais transformações não terem afetado a visão sobre o aluno e sobre o aprendizado:
o aluno continua sendo um sujeito passivo inserido contexto de aprendizado onde o
próprio aprendizado é naturalizado. Somente a partir da redefinição do papel do aluno é
que se torna possível pensar em uma desnaturalização do aprendizado, o que inclui a
realização de uma reflexão acerca de o que se deve ensinar e, consequentemente, de como
se ensinar. A partir do momento em que os agentes responsáveis pela idealização e
implementação das práticas pedagógicas concernentes ao ensino de língua materna
passarem a entender o aluno como um sujeito agentivo na relação com o aprendizado,
entenderão também a necessidade de se repensar os conteúdos que devem ser trabalhados
em sala de aula de forma a atender às necessidades desse sujeito, o que significa rever os
conteúdos das aulas de português e de produção textual de forma a atender às demandas
desse sujeito quanto às suas práticas com a linguagem. Nesse contexto, repensar-se-á
também o conceito ou a visão sobre a gramática e seu ensino. Hoje, o ensino de gramática
é visto como um instrumento de manutenção da dominância do registro padrão, ou língua
de prestígio, sobre o registro coloquial. Mas, essa visão só é possível devido à abordagem
inadequada que se tem dado a esse ensino, que não leva em conta as práticas de linguagem
dos alunos, já que “muito poucas pesquisas têm dado atenção genuína ao modo como
aprendizes aprendem gramática e aos problemas e dificuldades que eles enfrentam em
aprenderem conhecimento metalinguístico” (MYHILL, 2000, p. 152, tradução nossa)xv.
Em outras palavras, o ensino não trabalha com práticas de linguagem porque não trabalha
com erros; apenas com regras.
Nossa visão sobre a gramática e seu ensino envolve o reconhecimento da relação
entre gramática e significado (MYHILL, 2000; RAVID; TOLCHINSKY, 2002;
GERHARDT, 2013, 2015, 2016) e consideração das dificuldades relativas à experiência
dos aprendizes com a língua em prática, isto é, consideramos os problemas que os alunos
encontram ao lidarem com a gramática em contextos de comunicação; seja ele de leitura,
de escrita ou de oralidade (MYHILL, 2000; GERHARDT, 2013, 2016). Nesse sentido,
entendemos que “parte do desafio para os professores de gramática é mudar a concepção
29
do aluno sobre a gramática, auxiliando-o a deixar de entendê-la como ‘uma forma de dar
nome às partes’ e passar a ver as classes em termos de relação de significado entre
palavras dentro de uma sentença e de um texto” (MYHILL, 2000, p. 157, tradução
nossa)xvi. Ademais, concordamos com Myhill (2000) no tocante à defesa do retorno da
gramática ao currículo não significar o desejo do retorno do ensino que não leva em
consideração as práticas de linguagem dos aprendizes, e nem mesmo os leva em
consideração; mas o desejo de um outro ensino, com uma outra abordagem sobre a
gramática e outras práticas pedagógicas. Conforme assevera a autora, estamos no
momento de pararmos os debates sobre se devemos ou não ensinar gramática e de
começarmos a investir esforços em pesquisas acerca dos processos envolvidos no
aprendizado de gramática e na capacitação de professores para lidarem com as novas
concepções e novas visões em torno do ensino de língua materna (MYHILL, 2000).
Nas próximas seções, aprofundaremos nossa visão sobre a gramática,
discutiremos a importância de sua presença na constituição do currículo escolar,
entenderemos o que é a consciência metassintática e como essa habilidade estabelece a
relação entre o conhecimento gramatical e a produção escrita.
Segundo Perini (2014), “aprende-se a língua padrão através da prática,
principalmente da leitura e da escrita, não através dos estudos gramaticais” (p. 48). O
autor faz tal afirmação como forma de negar a justificativa tradicional utilizada pela
escola para o ensino de gramática permanecer dentro de suas atividades: “é preciso
estudar gramática para ajudar na aquisição da língua escrita: leitura e, principalmente,
redação” (PERINI, 2014, p.50). O pensamento de Mário Perini não é tão incomum e não
seria de todo equivocado se tomarmos como base o ensino de gramática da forma como
temos atualmente. Conforme nos mostra o autor, “a imagem da língua representada nas
gramáticas escolares é incorreta, mal dirigida em seus objetivos e deficiente em
fundamentos teóricos” (PERINI, 2014, p. 49). Essa má representação gramatical da
língua é comprovada através de diversos estudos linguísticos, que mostram que há mais
possibilidades de construções linguísticas do que nos apresentam as gramáticas que
circulam na escola (PERINI, 2014). Sobre o ensino de gramática, o autor afirma que
A maioria dos professores concordará que se aprende a ler e escrever
lendo e escrevendo; e a utilidade do conhecimento gramatical é no
máximo uma coisa marginal: como quando olhamos na gramática o
posicionamento recomendado de um pronome, ou a regência de um
verbo no dicionário. Certamente, não foi através dessas consultas que
chegamos (quando chegamos) a dominar a língua escrita” (PERINI,
2014, p. 50)
30
Se a utilidade da gramática fosse mesmo apenas para consultas periféricas,
concordaríamos totalmente com as colocações de Mário Perini. No entanto, o presente
trabalho mostrará que essa ideia não procede: a utilidade da gramática está além do que
se tem colocado nas escolas. E é por causa de as escolas estarem fazendo um uso
inadequado desse material que discursos como o de Perini se tornam comuns. As escolas
não só abordam apenas a gramática prescritiva, que de fato está estagnada em relação ao
movimento de mudanças que ocorre frequentemente na língua em uso, como também
realizam uma abordagem que nada auxilia no desenvolvimento da habilidade de escrita
(e de leitura) dos alunos; o que serve de argumento favorável às afirmações feitas por
Perini (2014). Ainda segundo ele,
A aula de gramática típica não comporta perguntas embaraçosas,
referentes a comos e por quês que não constam no livro adotado. O
professor nunca precisa justificar a análise que ensina, tem apenas que
reproduzi-la (sic) tal como a encontrou na bibliografia. Ou seja, nas
aulas de gramática não se aprende gramática, nem sequer se estuda
gramática” (PERINI, 2014, p. 55).
Dessa colocação do autor, queremos ressaltar o termo “análise”, utilizado por ele para
descrever o que se faz nas aulas de gramática. Como vimos no capítulo anterior, o ensino
de gramática, que acontece nas aulas de português, se restringe à classificações e
taxonomias (GERHARDT, 2013, 2015, 2016), o que, de fato, não significa ou não
acarreta numa aprendizagem de uso da língua, nem mesmo aprendizado de língua em si,
em termos de reconhecimento das estruturas pertinentes à língua, já que dar nome não é
sinônimo de aprender gramática. Mas, diferente do que pensamos, a proposta de solução
de Perini (2014) gira em torno de tornar o ensino de gramática uma “disciplina científica,
tal como a química, a história e a biologia” (PERINI, 2014, p. 56). De acordo com o autor,
“a gramática é uma disciplina científica, pois tem como finalidade o estudo, a descrição
e a explicação de fenômenos do mundo real” (PERINI, 2014, p. 58). E isso resolveria o
problema quanto à concepção de gramática adotada por ele: “os livros que chamamos de
“gramáticas” contêm resultados, mas nunca dizem, nem perguntam, como é que se
chegou a eles. [...] toda hora nos dizem não como a língua é, mas como a língua deveria
ser” (PERINI, 2014, p. 55-56). Ou seja, tornar a gramática uma disciplina científica abre
a possibilidade de questionamento e de estudos em torno dos processos que levaram às
determinações/prescrições que constam nesse material; além de abrir espaço para
possíveis mudanças.
31
Por um lado, a postura adotada por Perini (2014) parece bem interessante,
principalmente quando se trata das questões político-econômico-sócio-culturais
pertinentes às diversas práticas de linguagem. Por meio desses estudos propostos pelo
autor, a língua pode ser avaliada como recurso que contém características sociais,
culturais, econômicas e que participa de agendas políticas. Pode-se também compreender
usos diversos dos prescritos pela gramática tradicional, mas que são permitidos pela
língua sem que haja prejuízo na efetivação da comunicação. Além disso, tais estudos
permitem reconhecer outras estruturas, além das que já se encontram na gramática, como
legítimas e eliminar velhas ideias ou estruturas que já caíram em desuso (como a
mesóclise no uso do futuro em começo de frase) ou se mostraram inúteis, inconscientes,
incompletas ou problemáticas (como o conceito de objeto indireto, que tem como
requisito a possibilidade de converter o objeto em pronome oblíquo, mas que é utilizado
para classificar objetos como “de banana” em frases como “gosto de banana”).
Por outo lado, devido aos nossos estudos, não podemos concordar com Perini
(2014) quanto à solução para o problema no ensino atual ser abordar a gramática como
Disciplina científica. Ademais, não acreditamos também que as pessoas aprendam a
escrever apenas escrevendo. Conforme vimos no capítulo anterior, essa visão naturalizada
do ensino é problemática; além do mais, o processo de escrita envolve diversas ações
cognitivas, algumas delas que precisam de orientação explícita dos professores para
serem realizadas de forma eficiente, sobretudo as ações que envolvem conhecimentos
gramaticais. A propósito disso, esse conhecimento gramatical exigido no processo de
escrita está para além do que o proposto por Perini (2014), que o restringe a consultas
periféricas de posicionamento e regras de regência. Entendemos que o sistema linguístico
é um componente importante na construção de significado, logo a gramática, ao nosso
ver, é um material que nos auxilia no reconhecimento das estruturas passíveis de
significação, e, por consequência, de efetivar comunicação ou interação. De outra forma,
apesar de defendermos o estudo da gramática, não o fazemos sob a perspectiva de
estudiosos como Perini (2014), nem como Duarte (2008), que, apensar de olhar para as
estruturas argumentais como nós, também restringe a utilidade da gramática à mero
material de análise e ainda afirma que “todo falante domina sem esforço” os padrões
sentenciais de sua língua, o que exclui o uso formal, que é institucionalizado
(GERHARDT, 2016). Segundo Duarte (2008),
O trabalho com os termos da oração em sala de aula não deveria, em
princípio, limitar-se à sua mera identificação, sob pena de se tornar
32
enfadonho e sem finalidade. [...] Reconhecer e identificar os
constituintes da sentença é ainda importante para a boa utilização dos
sinais de pontuação: o aluno entenderá melhor, por exemplo, que a
vírgula não deve ser usada entre o predicador e seus ‘argumentos’, a
menos que ocorra um ‘adjunto’ interveniente ou que a ordem canônica
desses argumentos seja mudada. Enfim, cabe ao professor levar o aluno
a produzir sentenças a partir de predicadores verbais e nominais e torna-
lo capaz de identificar os padrões sentenciais de sua língua, que todo
falante domina sem esforço e que o estudante tem a chance de conhecer
e analisar. Afinal, o conhecimento de como funciona a própria língua é,
tal como o conhecimento de história, geografia, matemática, física,
química, uma das habilidades que a escola deve desenvolver no aluno
(DUARTE, 2008, p. 201).
33
Perini (2006), também defendemos que “a língua falada também existe e constitui um
objeto de estudo interessante e importante” (p.22). Contudo, estamos focando na forma
escrita e nosso trabalho se direciona especificamente para textos que devem ser
produzidos em contexto formal – redação de vestibular e ENEM.
Um linguista, portanto, não deve fazer julgamentos de valor a respeito
de seu objeto de estudo – para ele, qualquer variedade da língua tem
interesse, desde que realmente exista e seja usada (ou tenha sido usada)
por uma comunidade. Uma pessoa que não consegue se libertar da
sensação de que certas formas da língua são “feias”, “erradas” ou de
alguma maneira desagradáveis deveria procurar outra profissão que não
a de linguista ou professor de línguas (PERINI, 2006, p.23).
É nesse espírito de respeito proposto por Perini (2006) que queremos que nosso
interlocutor entenda a nossa escolha por explorar questões concernentes à norma culta.
Fizemos essa opção, pois, assim como Scherre (2005) coloca, entendemos que ensinar o
uso da norma culta é “ensinar a usar uma arma de luta social” (p. 93), já que é com esse
recurso que nossos alunos podem suprir seus “guarda roupas linguísticos” e terem
“roupas” para serem utilizadas nas diferentes ocasiões. Cada situação comunicativa fora
da escola demandará do aluno uma utilização de um registro da língua: situações
coloquiais – e principalmente situações orais – demandam estruturas pertinentes ao uso
coloquial da língua; situações formais – mais típicas da escrita – demandam a utilização
de estruturas pertinentes à norma culta. Em outras palavras, o que queremos deixar claro
é que o ensino de gramática possui papel importante quando pensamos no contexto social
do nosso país, não como forma de manter preconceito de qualquer espécie, mas como
forma de efetivar o que é direito do aluno: aprender todas as variedades de sua língua e a
gerenciá-las de acordo com suas necessidades comunicativas. Nos vestibulares e no
ENEM, exames que definem o ingresso do aluno às universidades, o modelo de escrita
exigido é o registro de prestígio. Sendo assim, se nossos alunos não tiverem acesso a esse
registro, no mínimo apresentarão dificuldade para atender aos requisitos dos exames e
obter uma nota que os auxilie no ingresso à comunidade acadêmica. Os alunos que
circulam em comunidades linguísticas cujo uso é a língua de prestígio terão um pouco
mais de facilidade na escrita, ainda que realizando a escrita como transcrição da oralidade,
pois esta é próxima ao que consta na gramática normativa (MYHILL, 2009). Mas e os
alunos advindos de comunidades linguísticas cujo uso está distante do prescrito na
gramática?
Ensinar gramática normativa é acima de tudo uma atitude política, e a
postura do professor na sala de aula é fundamental no processo
34
ensino/aprendizagem de gramática normativa. Na minha opinião, para
bem ensinar, além de uma atitude sem preconceito e respeitosa, o
professor tem de estabelecer outra relação com o ensino de gramática
normativa, seja esta antiga ou moderna, atualizada ou não-atualizada
(SCHERRE, 2005, p. 98).
36
este último construir o significado final das sentenças) (PERINI, 2006,
p. 101).
Conforme nos mostra Perini (2006), as regras não são apenas para serem
consultadas em atendimento a questões superficiais como a colocação pronominal
segundo a norma culta. Em contradição ao que o próprio autor coloca em 2014,
defendemos que as regras são importantes para que o escritor compreenda os recursos
disponíveis para construir os significados que desejar. E como o escritor precisa levar em
conta o seu leitor, ele também precisa entender que este irá compreender as suas
sequências de informações a partir da segmentação delas: “segmentar as sequências
37
recebidas em constituintes é uma das operações necessárias para a compreensão dessas
sequências” (PERINI, 2006, p. 47). Ao realizar esse procedimento de segmentação, o
leitor usará o seu conhecimento de mundo para “distinguir interpretações que fazem
sentido das que não fazem, ou que são tão improváveis que acabam sendo rejeitadas”
(PERINI, 2006, p. 55). De posse de todo esse conhecimento, o escritor pode, com mais
facilidade, escolher as sequências que atendam às suas necessidades.
Temos visto, portanto, o valor da compreensão sobre as estruturas gramaticais de
forma a contribuir para a produção de significado, o que de extrema importância na
efetivação dos objetivos comunicativos de um escritor. Observamos também que o
escritor deve considerar as estratégias que serão utilizadas pelo seu leitor para extrair os
significados propostos pelas estruturas linguísticas dispostas no texto, de forma a poder
escolhe-las com mais eficiência no que tange a alcançar seus propósitos. A respeito disso,
Perini (2006) nos propõe um pequeno resumo que mostra, de forma didática, essas
estratégias:
Estratégia cognitiva: com base no seu conhecimento geral de mundo, avaliar cada uma
das interpretações semânticas resultantes da estratégia léxico-gramatical e rejeitar uma
ou mais interpretações, se for o caso.
(PERINI, 2006, p.56)
O autor separa as estratégias, mas é apenas para nos mostrar de forma didática
que, para depreender o sentido de um texto, o leitor utilizará o conhecimento de mundo e
o conhecimento de língua. Logo, entendemos que ambas estratégias ocorrem de forma
conjunta. “O significado que tiramos de uma expressão linguística é resultado da
aplicação de operações mentais” (PERINI, 2006, p.56). Sobre essas operações,
GERHARDT (2016) nos mostra, a partir dos estudos cognitivistas, como elas se dariam,
isto é, como, do ponto de vista cognitivo, se efetiva a construção de significado. A
pesquisadora utiliza os postulados de Gilles Fauconnier e Mark Turner para nos mostrar
como se dá esse processo, que os autores denominam de “integração conceptual”.
Segundo Gerhardt (2016), a integração conceptual, ou mesclagem conceptual, “mostra
38
como os significados são produzidos a partir da integração entre os nossos saberes prévios
e as informações que o universo cognoscente, pleno de experiências, cenários, contextos
etc., oferece (FAUCONNIER; TURNER, 2002, apud GERHARDT, 2016).
Sendo resultado da integração entre os saberes prévios das pessoas e as
informações exteriores com as quais elas têm contato, a existência de
ideias e conceitos novos, imprevistos, é que caracteriza o ineditismo e
a singularidade da construção dos significados, na linguagem e em
qualquer outra relação de intercâmbio entre as pessoas e o mundo
(GERHARDT, 2016, p. 20).
6
Quando utilizamos o termo “erro”, fazemo-lo considerando a norma culta como parâmetro que norteia
nossas considerações. No entanto, não estamos com isso descartando a ideia de adequação da língua ao
contexto comunicativo; utilizamos apenas parâmetros específicos que são inerentes ao gênero discursivo
com o qual optamos trabalhar: o texto dissertativo argumentativo, ou redação de vestibular.
39
professor as dificuldades de seus aprendizes/escritores, o que o possibilitará propor
atividades direcionadas a resolução desses problemas e recursos que auxiliem seus alunos
a alcançarem essa solução. Nas palavras de Gerhardt (2016),
Um desencadeador da formação de novas ideias e de aprendizado é a
necessidade de resolver problemas que precisam ser superados para se
obter alguma coisa que se deseja e se precisa. Por isso, para que haja
aprendizados reais na escola, é necessário que em sala de aula sejam
colocados problemas relevantes aos alunos, para que sejam por eles
reconhecidos e discutidos, e com recursos suficientes para que possam
ser resolvidos. [...] A proposição de problemas [em termos de
gramática] significa reconhecer que os alunos, por uma série de
motivos, escrevem textos que incluem construções gramaticais
problemáticas, e que é preciso avaliar e resolver essa questão para
melhorar a qualidade dos seus textos em termos estruturais. Nas aulas
de gramática, propor aos alunos problemas de gramática é essencial
para que eles percebam e construam instrumentos para sanar as suas
próprias dificuldades de prática de linguagem (GERHARDT, 2016, p.
24).
As colocações de Gerhardt (2016) nos fazem concluir que 1) trabalhar com o erro
do aluno é o que realmente possibilita que haja aprendizado; e 2) o domínio de
conhecimentos gramaticais age como facilitador para o escritor identificar e buscar sanar
seus problemas estruturais, refinando, assim, sua produção escrita. No tocante à primeira
conclusão, desejamos acrescentar que esse tipo de trabalho é o que de fato inclui o aluno
no processo de aprendizado, pois o ensino passa a acontecer a partir das necessidades
desse aprendiz e com a finalidade de desenvolver sua autonomia no tocante ao
gerenciamento das suas construções e produções escritas. Além disso, esse tipo de ensino
passa a significar as aulas de português – antes, sem utilidade prática – ao trabalhar com
o que o aluno precisa aprender e/ou melhorar de forma a propor-lhe uma outra experiência
com a sua língua. Assim, um dos objetivos do ensino de língua portuguesa passa a ser o
desenvolvimento da autonomia dos alunos quanto às suas práticas de linguagem dentro e
fora da escola (GERHARDT, 2013,2016). A segunda conclusão acaba aparecendo como
parte da primeira, haja vista que o domínio dos conhecimentos gramaticais se relaciona
intimamente com o desenvolvimento da autonomia do aluno, pois são esses
conhecimentos que são requisitos para auxiliar na solução dos problemas que emergem
das produções desses escritores. Em outras palavras, se o aluno tiver consciência das
estruturas gramaticais de que precisa lançar mão para construir algum significado que
deseje a fim de atingir seus objetivos retóricos, ele conseguirá perceber falhas nessas
estruturas, caso ocorram, e terá recurso para corrigi-las e evitar prejuízos à sua
40
comunicação, além de ter a noção de quais estruturas são e não são apropriadas ao
contexto comunicativo em questão, podendo, com isso, gerenciar de forma consciente e
autônoma o uso da sua língua em suas interações cotidianas. A despeito dessa capacidade
de reconhecer e corrigir estruturas ou escolhas lexicais problemáticas, devemos ressaltar
que a identificação, avaliação e solução desses problemas não acontecem somente após a
produção textual estar completa; mas ao longo da produção.
Conforme nos mostra Myhill (2009), “os textos são sintaticamente organizados”
e as escolhas gramaticais são feitas na frase de tradução (do pensamento em palavras
escritas), o que “envolve tanto a seleção de um vocabulário apropriado e a estruturação
de palavras em frases quanto a organização das frases em parágrafos, e textos” (p. 30,
tradução nossa)xviii. E enquanto essas escolhas estão sendo feitas, podem também ser
conscientemente avaliadas a fim de garantir que estejam sendo feitas de forma adequada
e de corrigir de imediato possíveis escolhas inadequadas ou que possam ser substituídas
por outros elementos que expressão de uma forma melhor a ideia pretendida pelo escritor
a partir das suas considerações sobre o seu público alvo, seu receptor. Myhill (2009)
afirma ainda que “fazer escolhas linguísticas e formar frases e textos de forma a satisfazer
as necessidades de um leitor implícito é muito desafiador” (p. 33, tradução nossa)xix, o
que faz cair por terra a ideia de que a escrita é algo fácil, que se aprende apenas escrevendo
(PERINI, 2014) e não demanda o desenvolvimento de uma atitude consciente para
gerenciar as ações envolvida nesse processo, ou seja, um ser agentivo que gerencie suas
escolhas com vistas a alcançar seus objetivos comunicativos. Ao contrário, vemos que os
escritores “precisam dominar tanto as construções gramaticais pertinentes às frases
escritas quanto a habilidade de imaginar como o leitor poderá ler seus textos” (MYHILL,
2009, p. 32, tradução nossa)xx. Além disso, a autora nos mostra que é necessário, tanto
durante a ação de tradução quanto a de revisão, também ter consciência sobre as estruturas
que são pertinentes à oralidade e as que são pertinentes à escrita, o que significa que é
importante o escritor ter em mente que, conforme colocamos anteriormente, “falar não é
o mesmo que escrever” (SCHERRE, 2005, p. 100).
Isso [adquirir adaptabilidade em transformar estruturas orais em
estruturas escritas] demanda um grau de deliberação no processo de
escrita que é mais custoso cognitivamente do que simplesmente
transcrever as palavras que vêm a nossa mente (...). Isso também requer
a aquisição de um repertório linguístico o qual é específico da escrita e
que pode não ter estruturas paralela na fala” (MYHILL, 2009, p. 41.
Tradução nossa)xxi.
41
Outra questão relevante que Myhill (2012) nos apresenta se relaciona com a
escolha de registro. A autora fala da sua escolha pelo trabalho com uma gramática
descritiva, que apresenta “uma análise mais orientada para as questões social envolvidas
nas formas de uso da língua, considerando diferentes contextos linguísticos, social e
cultural” (p. 1245, tradução nossa)xxii. Nós, no entanto, estamos trabalhando com a
gramática normativa, por elegermos como objeto de estudo as redações de vestibular e
ENEM. Nesse sentido, estamos tratando como conhecimentos gramaticais os
conhecimentos acerca do que prescrevem as gramáticas normativas, ou gramáticas
escolares, especificamente. De alguma forma, estamos tentando unir o que a autora critica
na gramática normativa, que é a característica de “defender a importância da gramática
no sentido de garantir o certo na expressão escrita”, ao que ela defende por ser uma
característica da gramática descritiva, que é a de “defender a importância da gramática
para esclarecer como textos escritos produzem significado em contextos diferentes”
(MYHILL, 2012, p.1245, tradução e grifo nosso)xxiii. Quando falamos da consciência
sobre as estruturas gramaticais, que provam a necessidade de ensino de gramática – de
um tipo diferente do que se apresenta atualmente –, falamos da consciência das diferentes
estruturas, que funcionam em diferentes contextos comunicativos e em diferentes
modalidades – como já exploramos anteriormente o continuum oralidade-escrita. Logo,
falamos de construção de significado em diferentes contextos. Contudo, atendendo à
necessidade de se fazer um recorte para o trabalho que nos propomos fazer, optamos por
abordar o que é adequado dentro da norma culta, pois é ela que está como requisito para
a produção escrita no contexto comunicativo que estamos tratando (de redação de
vestibular). Então, precisamos tratar da gramática que regula a forma padrão da língua,
que é a gramática normativa/prescritiva. Porém, a articulação entre o ensino de gramática
e o ensino de escrita não precisa ficar restrito ao ensino de norma culta; é possível utilizar
a consciência sobre as estruturas da língua para melhorar a qualidade de outras
experiências, outras práticas de linguagem, que não apenas a escrita e muito menos apenas
as formais.
Ou seja, quando se trata de prática de linguagem de forma geral, podemos levar
em consideração as ideias de Myhill (2012), que mostra que “o significado é criado a
partir de formas linguísticas utilizadas para alcançar as intenções retóricas” (KOLLN,
2002; LOCKE, 2005; MICCICHE, 2004; PARASKEVAS, 2006, apud MYHILL 2012, p.
1245. Tradução nossa)xxiv, que podem ser de um escritor ou de um falante; coloquemos
como um emissor, de forma geral. A autora cita Carter (1990) para mostrar também que
42
“o controle e a escolha consciente da língua” permite ao aluno, enquanto usuário dela,
“ver através da língua de uma forma sistemática e usar essa língua com mais
discernimento” (CARTER, 1990, apud MYHILL, 2012, p. 1245. Tradução nossa)xxv. E,
quando se trata de práticas de linguagem referentes à escrita de forma específicas,
consideremos que “a escrita é um ato de comunicação” que demanda o “entendimento
dos propósitos sociais e do público alvo dos textos e de como a língua cria significado e
efeitos”, dentro disso a gramática é entendida como “um recurso de construção de
significado, que dá suporte aos escritores na escolha apropriada de formas linguísticas
que devem ajuda-los a produzir textos de forma a satisfazer suas intenções retóricas” .
(MYHILL, 2012, p. 1245, tradução nossa)xxvi
Todas essas considerações que foram expostas nessa seção sobre a relação das
estruturas gramaticais com a produção textual e sobre a necessidade consequente de essa
relação incluir o ensino de gramática nos currículos escolares atuais implicam uma
reorientação pedagógica no tocante a esse ensino de gramática, que deve ser realizado de
uma forma remodelada, “fazendo mais conexões entre escolhas linguísticas e efeitos de
construção de significado” (MYHILL, 2009, p. 41, tradução nossa)xxvii. Os estudos de
Myhill (2012) se mostraram relevantes por
ressiginificar a relação entre o ensino de gramática e a escrita. (...) O
estudo demonstrou que o aprendizado dos estudantes sobre a escrita é
melhorado pela compreensão explícita sobre como as escolhas
gramaticais podem ser usadas para produzir textos que atendam aos
objetivos retóricos dos escritores (MYHILL, 2012, p. 1258, tradução
nossa)xxviii.
43
problemáticas que falamos, no decorrer desta seção, sobre a importância do
gerenciamento consciente dos conhecimentos gramaticais nas construções de sequências
de informações que constituem um texto escrito. Esse gerenciamento consciente das
estruturas linguísticas, que deve ser um dos objetivos das aulas de língua materna e que
concorre para a autonomia do aluno quanto suas práticas de linguagem, será melhor
explorado no próximo capítulo a partir da explanação sobre a consciência metalinguística
e o desenvolvimento da consciência metassintática.
44
3. APORTE TEÓRICO: A CONSCIÊNCIA METASSINTÁTICA E A ARTICULAÇÃO ENSINO DE
GRAMÁTICA-ENSINO DE TEXTO
45
uma reflexão do usuário sobre as estruturas e os significados proporcionados por elas no
contexto comunicativo em que se insere (RAVID; TOLCHINSKY, 2002) – ou seja, uma
consciência metalinguística. Segundo Gombert, as habilidades metalinguísticas tratam de
aprendizagens que envolvem apropriação, elaboração verbal e reflexão sobre o
conhecimento que se está adquirindo em termos de língua. Já a consciência metassintática
se refere às habilidades que permitem ao escritor/leitor reconhecerem e gerenciarem os
elementos linguísticos conforme suas funções sintáticas; isto é, o saber metassintático
refere-se à habilidade de refletir sobre aspectos sintáticos da língua e exercer controle
intencional sobre a aplicação das regras gramaticais (GOMBERT,1992).
46
Sendo assim, é possível concluir que a falta de legitimação ou de apropriação
sobre o conhecimento acerca dos elementos constituintes do texto acarreta a não
observância de suas ocorrências tanto no momento de composição quanto no momento
de revisão, quando as estruturas devem ser observadas para que problemas possam ser
identificados e corrigidos. Ao não identificar o problema, o usuário não pode pensar em
soluções nem implementar melhorias no texto. Vale ressaltar que a falta de um
constituinte concorre para graves problemas de interpretação de textual: o escritor não
tem seu texto devidamente compreendido, o leitor não consegue extrair o comunicado
intentado pelo texto.
47
da estrutura argumental e no nível do período composto.
No nível do léxico, o problema de incompletude gramatical pode interferir na
coesão referencial, como ocorre no exemplo a seguir:
O uso equilibrado da disciplina na formação escolar traz, portanto,
resultados positivos na educação dos alunos. Contudo, é necessário que a
liberdade do aluno de expressar sua criatividade seja respeitada. Sem
levar-se em conta este fator, corre-se o risco de que essas instituições
estejam formando pessoas q1ue, embora capazes de cumprir tarefas, não
entendem o motivo de estas serem cumpridas.7
7
Disponível em <https://educacao.uol.com.br/bancoderedacoes/>. Acessado em: 15 de dezembro de
2016.
8
Disponível em <https://educacao.uol.com.br/bancoderedacoes/>. Acessado em: 15 de dezembro de
2016.
9
Disponível em <https://educacao.uol.com.br/bancoderedacoes/>. Acessado em: 15 de dezembro de
48
No exemplo acima, além de outros problemas, observamos uma proposição que
indica uma finalidade para algo que não está presente no texto.
A incompletude associativa foi um termo primeiramente utilizado por Alcir
Pécora (1983), que já em 1977 notava problemas que denominou de problemas de
“Elementos mínimos de constituição – períodos incompletos”.
Neste grupo localizam-se todos os elementos que dizem respeito à
exigência mínima de constituição do período, ou seja, todos os
elementos pressupostos pela noção de conjunto de orações, este
entendido tradicionalmente. No caso do conjunto unitário (período
simples), é pressuposto o domínio de regras linguísticas de base, ligadas
aos mecanismos de combinação e seleção que tornam as frases
aceitáveis para a média dos nativos de português. Joga-se aí com a
atribuição ou não de uma predicação a um sujeito. Acontece o mesmo
em relação ao período composto, onde como exigência de constituição,
se acrescenta o domínio do emprego dos termos relacionais (relatores)
e o domínio dos processos de coordenação e subordinação (PÉCORA,
1977).
2016.
49
A partir da citação acima, notamos que Pécora já apontava para um outro nível
estrutural que também apresentava o problema de incompletude. No entanto, o autor não
propôs um estudo sistematizado cujo objetivo fosse compreender os níveis em que
ocorriam tal problema, mas sim uma análise mais geral de problemas de escrita que se
enquadrassem dentro de três parâmetros avaliativos estabelecidos pelo o próprio autor:
problemas na oração; problemas de coesão textual; e problemas de argumentação. Nas
palavras de Pécora:
Este trabalho deverá ocupar-se, basicamente, de uma apresentação de
um diagnóstico dos problemas mais recorrentes encontrados na
produção escrita de vestibulandos e alunos de primeiro ano da
universidade, e de uma análise desse diagnóstico, à meia-luz do abat-
jour das noções relativas ao discurso (PÉCORA, 1999, p.19).
50
Observamos, aqui, a busca pelo autor por compreender a origem do problema de
escrita, propondo, em princípio, uma comparação com o que ocorre na oralidade. É
interessante notar que Pécora apresenta um primeiro argumento que também foi cogitado
por nós ao longo dos estudos para o presente trabalho: também refletimos sobre o
problema de a incompletude gramatical evidenciar uma dificuldade dos alunos de se
deslocarem do papel de falante para o papel de escritor, o que ocasionaria uma escrita
com reflexo da oralidade, como um diálogo de caráter online (cara a cara). Esse
apontamento, como vimos nas seções anteriores, se mostrou útil para advogarmos em
prol do ensino de norma culta como forma de situar o aluno no papel de escritor de textos
formais, como as redações de vestibular, que demandam estruturas sintáticas que são
específicas da escrita, conforme já discutimos anteriormente neste trabalho.
Continuando a reflexão de Pécora, o autor coloca, por fim, que
Esse tipo de problema, em que em meio às associações de um período
algo de essencial se perdeu para sempre, não parece difícil de ser
explicado. Ele é, mais uma vez, o resíduo das interferências escolares
sofridas pelas condições de produção da escrita. Ao assimilar esse tipo
de imagem ‘complexa e extensa’ da escrita, o que leva o aluno a
proceder às associações de um período nem sempre é o interesse em
fazer significar, nem sempre ele visa à efetivação de nexos semânticos.
Pois o efeito mais evidente dessa imagem contraditória é, justamente,
desligar o valor do desempenho escrito do valor da linguagem, da
instauração de um processo significativo. Nesse nível, o aluno passa a
concentrar-se exclusivamente na descoberta de procedimentos formais
de ocupação do espaço em branco (PÉCORA, 1999, p. 69).
Com este ponto, Alcir Pécora passa a se distanciar de nossa proposta, já que, para
ele, a questão está no objetivo de escrita do autor, que, por influência de ações escolares,
passa a ser buscar “procedimentos formais de ocupação de espaço em branco”. O que
nosso estudo vem trazer como contribuição para os apontamentos de Pécora é justamente
a mudança de foco no diagnóstico do problema, o que permite também a discussão e
proposta de alternativas didáticas que auxiliem na diminuição da ocorrência dele: tiramos
o foco da língua e passamos o foco para o usuário dela, aquele que age na e pela
linguagem.
Os estudos em desenvolvimento metalinguístico devem incluir como
variáveis, além da competência com a linguagem, a possibilidade de
que o ensino de língua também tenha como objetivo uma mudança no
comportamento e nas atitudes das pessoas diante das suas práticas de
linguagem. Refletindo sobre essa ideia, podemos enxergar, na adoção
de uma perspectiva metalinguística de observação e ensino de língua,
uma mudança radical de ponto de vista: do foco nos componentes
linguísticos usados metalinguísticamente, que é o que normalmente se
faz, para o foco no comportamento e na relação das pessoas a sua
51
experiência linguística. Essa mudança de foco exige, então, que
compreendamos quais são as ações metalinguísticas praticadas pelas
pessoas, para construirmos possibilidades de melhorar a sua qualidade
(GERHARDT, 2016, p. 43).
Conforme nos mostra Gerhardt (2015, 2016), esta mudança de foco viabilizou um
diagnóstico que, ao nosso ver, parece mais atual e acertado, considerando nosso contexto
de ensino de escrita, que se dá nas aulas de produção textual. Entendemos que a
incompletude gramatical se dá por conta da ausência de saberes gramaticais necessários
às constituições enunciativas e, portanto, à falta de possibilidade de um emprego
deliberado de tais saberes. Nesse sentido, nossa discussão, assim como a de Gerhardt
(2013, 2015, 2016), recai sobre a problematização do atual modelo de ensino de
gramática, que ocorre nas aulas de língua portuguesa, e, consequentemente, da separação
e desarticulação entre o ensino de língua portuguesa e o ensino de redação. Essa discussão
se faz pertinente na medida em que apresenta a relação entre a construção enunciativa e
os saberes gramaticais, e, sobretudo, a relação entre o ensino de gramática e as práticas
com a linguagem. Em consonância com os apontamentos de Pécora, observamos que a
incompletude gramatical afeta a integridade do corpo enunciativo. Acrescentamos a isso
a ideia de que uma unidade enunciativa prejudicada interfere na efetivação do objetivo
comunicativo, prejudicando, assim, a prática com a linguagem. Assim, reiteramos que
entendemos ser de extrema importância repensarmos o ensino de gramática com vistas à
melhoria das produções textuais, o que também significa dizer que é necessária uma
mudança no ensino de língua portuguesa de maneira que este ensino seja pensado como
forma de auxiliar os alunos a melhorarem a qualidade de suas experiências com a língua
(GERHARDT, 2013, 2015, 2016), considerando “a gramática e o léxico como
componentes que materializam estruturalmente as características discursivas do texto”
(GERHARDT, 2016, p. 44). Vale ressaltar que considerar essa articulação entre gramática
e escrita não exclui seja trabalhado nas escolas produções e avaliações de textos escritos
que demandem o uso do registro coloquial, pois mesmo esse registro, como já afirmamos
anteriormente, é gramaticalmente organizado, seja na escrita, seja na oralidade. É muito
importante que a escola considere também como parte de seu programa de ensino de
língua um trabalho mais abrangente, que abarque diferentes possibilidades de práticas
com a língua dentro do continuum fala-escrita. Focamos aqui no texto escrito em língua
de prestígio por entendermos ser um recorte mais representativo de um aprendizado que
é exclusivamente escolar.
52
Se a criança aprende a falar sem nenhum cuidado, a não ser o de colocá-
la em contato com falantes, o mesmo não acontece em relação à escrita,
que resiste vigorosamente a qualquer desabrochar espontâneo, e, não
raro, não desabrocha jamais. Quer dizer, para começar a traçar as
diferenças: entre a criança e a escrita existe a escola (sic). Entre a
capacidade de linguagem mais geral e o desempenho efetivo de um
sujeito na escrita existe um processo escolar de aprendizado (PÉCORA,
1999, p. 25).
10
Disponível em <http://portal.mec.gov.br/>. Acessado em: 12 de fevereiro de 2017.
11
Disponível em <http://portal.mec.gov.br/>. Acessado em: 12 de fevereiro de 2017.
53
diretamente na construção do significado. A incompletude gramatical, como já dissemos,
é um problema de ordem gramatical que observamos ocorrer em diferentes níveis textuais
e que não é validado pelo ensino de língua portuguesa, não estando, portanto, presente
nem nos materiais didáticos, nem nas aulas de português ou de produção textual. Estamos
tratando-a aqui como sendo relativa a um espaço não ocupado na estrutura, que gera a
noção de estrutura incompleta. Esse conceito pode se relacionar ao processo de revisão
nos moldes de Hayes e Flower (2002) no tocante à ação de adição de informação, ou seja,
a adição seria o contraponto da incompletude gramatical. Dessa forma, podemos
identificar uma incompletude quando podemos solucioná-la ao adicionarmos uma
informação ou preenchermos um espaço que não deveria estar vazio.
A partir de análise de textos de base argumentativa extraídos do banco de redação
do UOL e voltados para o ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio –, encontramos
evidências de que a incompletude gramatical pode ocorrer em três níveis, os quais serão
definidos a seguir de forma a propor um estudo sistematizado desse problema de escrita12:
I. Nível lexical
No nível lexical, encontramos problemas referentes a ausência de elementos
lexicais que deveriam constar no texto para auxiliar na construção da mensagem desejado
pelo escritor. Nesse nível, encontram-se os problemas de ausência de referente, ausência
de conectivo, ausência de preposições introdutórias de argumentos verbais e ausência de
índices preposicional marcando pronome relativo na introdução de orações adjetivas.
12
A incompletude gramatical pode ser encontra no livro “Ensino de Gramática e desenvolvimento
metalinguístico: teorias, reflexões e exercícios”, de Gerhardt (2016), como incompletude associativa ou
problema de presença. O objetivo do livro, no entanto, é ser um aparato pedagógico, pois propõe
procedimentos didáticos e utiliza o problema de incompletude como um dos problemas que podem ser
abordados e tratados com esses procedimentos. Já o nosso trabalho se propõe a construir um aparato
teórico, com foco em apresentar a incompletude gramatical como conceito e utilizá-la como base para
problematização do ensino de língua portuguesa no Brasil.
54
hoje no cinema e cada vez mais vem influenciando as pessoas. Na maioria
dos lugares se vê pelo menos um, e as pessoas passam a adquiri-lo em seus
hábitos de diversão (ALMEIDA, 2010, p. 50 apud GERHARDT, 2016).
Nesse exemplo, podemos ver que o elemento “lo” não possui um referente
possível na materialidade linguística. Isto é, não há um espaço sendo preenchido
anteriormente por um elemento que possa ser retomado por esse pronome. Observamos,
assim, que a enunciação foi prejudicada, já que não conseguimos depreender do texto o
que passa a ser adquirido como hábito de diversão.
Uma vez que o corpo do enunciado se encontra gravado, qualquer
ausência de co-referencialidade entre as duas partes, seja qual for a
distância que mantêm entre si, manifesta exatamente um problema de
coesão: afeta a integridade desse corpo (...) a unidade de um enunciado
escrito é invariavelmente uma função de todo o enunciado efetivamente
produzido e não apenas uma função da produção selecionada
sucessivamente pelo presente da enunciação (PÉCORA, 1999, p. 71).
13
Disponível em <https://educacao.uol.com.br/bancoderedacoes/>. Acessado em: 15 de dezembro de
2016.
55
desenvolvimento textual, é preciso que não se introduza nenhum elemento semântico que
contradiga, que se oponha a um conteúdo posto ou pressuposto anteriormente” (apostila
de Redação I do curso de redação do CLAC – Curso de Línguas Aberto à Comunidade –
da UFRJ) . Dessa forma, abstraindo outros erros gramaticais que não nos cabe olhar no
momento, podemos propor a seguinte correção para o exemplo iv:
Com a escravidão durante o século atual, os direitos trabalhistas são
deixados de lado pelo os empregadores. No entanto, o reforço do governo
nos direitos trabalhistas e na fiscalização de empresas e micro empresas,
colocariam em extinção o trabalho escravo.
56
faz necessário, pois, mais à frente, ele trata dos verbos que não necessitam de preposição,
mas cujo complemento a apresenta ainda assim, sem que isso afete o significado ou o
respeito à norma culta. A essa última ocorrência, o autor chama de Objeto direto
preposicionado. Esse tipo de objeto pode ocorre, por exemplo, em orações cujo verbo
“exprime sentimento ou manifestação de sentimento, e o objeto direto designa a pessoa
ou ser animado”, como em “estimava aos parentes” (BECHARA, 2010, p. 33).
Já dentro dos complementos preposicionados, para estabelecer a distinção entre
complemento relativo e objeto indireto, Bechara (2010) afirma que o complemento
relativo, diferente do objeto indireto, não pode ser substituído pelo pronome pessoal átono
lhe. Assim, teremos complemento relativo em “Diva gosta de Teresópolis” e objeto
indireto em “o escritor dedicou o romance à sua esposa” (BECHARA, 2010, p. 34-35).
Além de verbos, também há nomes cuja regência demanda a utilização de
preposição, como em “temos esperança de ganhar o jogo”. Nesse exemplo, o nome
esperança requer um complemento que seja introduzido por preposição (do que temos
esperança) ‘de ganhar o jogo’.
Nesse contexto, observamos problema de ausência de preposição em construções
em que o verbo projeta argumentos internos correspondentes ao que a gramática
normativa classifica por objeto indireto e complemento relativo ou em argumentos
projetados por nomes cuja regência é preposicionada, como acontece nos exemplos a
seguir, todos retirados das redações do banco de redação do site UOL.14
v. que por sua vez joga culpa departamento nacional de produção mineral
(DNPM).
vi. agir como age o mundo do crime, não nos leva à nada, que nos remete
à ideia que o ideal, seria estabelecer à pena de morte.
vii. Contribui-se com os impostos para assegurar-se que todos terão o
direito à vida com dignidade.
14
Todos os exemplos estão disponíveis em <https://educacao.uol.com.br/bancoderedacoes/>. Acessado
em: 15 de dezembro de 2016.
57
ter passado a entender o termo culpa como verbo, e não mais como nome pertencente ao
à expressão jogar a culpa. Essa suposição daria sentido à ausência da preposição já que
o verbo culpar projeta um argumento interno não preposicionado: culpar alguém por
alguma coisa; o alguém, no caso, seria o departamento nacional de produção mineral.
No exemplo vi, o nome ideia não tem sua regência respeitada, pois esse termo
exige preposição de introduzindo seu complemento. Além disso, observamos também a
ausência de um artigo antes do pronome relativo que que introduz a oração “que nos
remete a...”. Essa ausência do artigo definido o faz com que a proposição seguinte pareça
ser um aposto explicativo do termo precedente, nada, o que de fato não procede.
Da mesma forma que ocorre em vi, no exemplo vii, vemos a ausência da
preposição de, que deveria, dessa vez, acompanhar o complemento preposicionado
projetado pelo verbo assegurar, realizando, assim, a regência adequada desse verbo.
Nesse sentido, considerando essa análise, podemos propor como correção para os itens v,
vi e vii, as seguintes formas:
v’. que por sua vez joga a culpa no departamento nacional de produção
mineral (DNPM).
vi’. agir como age o mundo do crime, não nos leva à nada, o que nos remete
à ideia de que o ideal, seria estabelecer à pena de morte.
vii’. Contribui-se com os impostos para assegurar-se de que todos terão o
direito à vida com dignidade.
58
marcado por um índice preposicional e como o verbo gostar se acompanha (sic) da
preposição de, é imprescindível que este índice esteja introduzindo o relativo que
(BECHARA, 2010, p. 344).
15
Disponível em <https://educacao.uol.com.br/bancoderedacoes/>. Acessado em: 15 de dezembro de
2016.
59
se até perguntar, ‘o que é passível de detenção?’, e se responder, ‘dirigir sob o efeito de
álcool”, mas essa informação, que está na outra estrutura, precisa estar sintaticamente
conectada ao adjetivo” (p.150). Além disso, a autora chama a atenção para a falta de “um
verbo de ligação que conectaria passível ao seu argumento sintaticamente ausente”
(p.150).
Para exemplificar a ausência de um argumento externo e de um argumento interno
projetados por um verbo, a autora lança mão de um trecho que apresenta a ausência desses
dois constituintes de uma só vez:
ix. A crise do euro não é nada boa para o mundo, já que a europa e (sic)
o principal centro comercial dos continentes. Dá para se vê na grande
repercussão mundial onde você liga a televisão e o principal assunto é a
crise do euro16 (GERHARDT, 2016, p. 151).
Com esse trecho, a autora nos mostra que “existem apenas os núcleos dar e ver, e
não há para eles eventuais argumentos internos nem externos, embora sejam necessários
para dar conta dos significados expressos pelos núcleos” (GERHARDT, 2016, p. 150).
A seguir, vemos um exemplo da incompletude gramatical pela ausência de um
sujeito que deveria ocupar uma das lacunas argumentais projetadas pelo verbo, no caso
falta o argumento externo do verbo deixar.
x. A solução para que isso [o aumento do desemprego] termine é investir
na educação e nunca deixarem de estudar (Trecho retirado da produção de
uma aluna do Ensino Médio).
16
Trecho extraído do livro Ensino de Gramática e desenvolvimento metalinguístico: teorias, reflexões e
exercícios, de Ana Flávia Gerhardt (2016). Mas, a autora o extraiu do banco de redações do site uol,
referendando-o da seguinte forma: http://educacao.uol.com.br/bancoderedacoes/redacao/zona-do-
euro.jhtm.
60
mesmo sujeito. Vale observar que o trecho foi extraído de um texto maior, mas que, ainda
assim, não apresentou um sujeito possível para o verbo em questão. Nesse caso, podemos
especular que o sujeito pode ter ficado na mente do escritor, que não o passou para o papel
quando necessário. Mas, não são apenas os verbos que projetam argumentos; nomes
também o fazem, o que tornam estruturais nominais também passíveis de sofrerem a
ausência de um termo requisitado pelo núcleo nominal, como em
Por outro lado, o uso da rigidez em excesso na disciplina militar pode
causar prejuízos à individualidade do aluno. O estabelecimento de uma
mesma tarefa a todos de um determinado grupo não leva em conta
características intelectuais e físicas, causando constrangimento e
desmotivação àquele que falhar. Com isso, a tentativa de padronização
imposta por esse método tende a bloquear o desenvolvimento de diversas
competências e qualidades do aprendiz17.
17
Disponível em <https://educacao.uol.com.br/>. Acessado em 15 de dezembro de 2016.
18
Nesse caso específico, o responsável pela correção, do site UOL, sugere a inserção do especificador
“individuais”: características intelectuais e físicas individuais.
61
articulação. Em outras palavras, percebemos a incompletude gramatical proposicional
pela utilização de conectivos marcando linguisticamente a existência de processos de
coordenação ou de subordinação, e que não são finalizados. Esse tipo de ausência na
estrutura é a que mais prejudica a construção de significado por parte do leito, logo, é a
que mais prejudica a realização dos objetivos retóricos do escritor. Nas palavrar de
Gerhardt (2016), “quando um dos termos da articulação não está presente, o problema
que se origina é denominado incompletude associativa [...]. No caso da articulação de
sentenças, é possível encontrar orações subordinadas sem as suas principais” (p. 198).
Observamos que a autora utiliza ainda a nomenclatura proposta por Pécora (1989),
pois não havia ainda o estudo que nos propomos fazer aqui, que fez emergir a necessidade
de se propor um nome específico aos achados ao longo dele e que nos mostrou que a
incompletude não se restringe às estruturas gramaticais. Não havia, até o presente
momento, uma proposta de estudo sistematizado desse problema de escrita, então a
autora, atendendo aos seus propósitos para com a sua obra, lançou mão do termo utilizado
por Pécora sem que houvesse prejuízo às ideias que ela gostaria de compartilhar com seus
leitores. Nós, no entanto, notando haver outros tipos de incompletude que por hora o
presente trabalho não daria conta de aportar, optamos por construir o conceito em torno
das questões gramaticais, posto que essa abordagem seria a que nos permite propor as
discussões em torno do ensino de gramática e ensino de escrita como vimos
desenvolvendo ao longo dessa dissertação.
É importante ressaltar que, dentro desse nível, enquadram-se também frases que
carecem de um predicador completo, já que estamos considerando a definição de
proposição a partir do que diz a gramática, que a considera uma unidade de sentido; ou
ainda como encontramos no dicionário, uma “asserção”19. Nesse sentido, como exemplo
de problema de incompletude gramatical proposicional podemos observar os exemplos a
seguir, extraído do banco de redações do site UOL:
xi. Os colégios militares do Brasil têm apresentado bons resultados, pois
o sistema de educação é mais redigido. Visto que alcançou destaque no
Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) do ano passado. Nessas
instituições o nível de indisciplina, violência e vandalismo são menores.
xii. Trabalhadores em condições sub-humanas, onde até água para os
braçais era racionada parece coisa de outro mundo, mas foi aqui no Brasil
19
Disponível em <http://www.aulete.com.br/>. Acessado em: 12 de fevereiro de 2017
62
mas precisamente no Estado do Pará presenciado por Auditores do
Trabalho.20
No exemplo xi, vemos que o segundo período já se inicia com o conectivo “visto
que”, uma locução conjuntiva que articula duas proposições que se relacionam de forma
explicativa. No entanto, o período em que esse conectivo está inserido apresenta apenas
uma proposição, não ficando claro o que está sendo explicado pela proposição introduzida
pelo conectivo em questão. Nesse caso específico, não podemos considerar que seja
apenas um problema de fronteira (ver GERHARDT, 2016), pois a retirada do ponto final
anterior a esse período, ou mesmo o posterior, não resolve o problema. Seria necessário
criar-se uma proposição para se articular com Visto que alcançou destaque no Enem
(Exame Nacional do Ensino Médio) do ano passado ou trocá-lo de lugar com pois o
sistema de educação é mais redigido e criar-se uma proposição que se articulasse com
esta última. Em ambos os casos, seria necessário que o escritor lancesse mão do recurso
da adição para corrigir o problema.
Já no exemplo xii, dentre vários problemas sintáticos e ortográficos, vemos o
sintagma nominal trabalhadores em condições sub-humanas sem um predicador possível
que possibilite a compreensão do enunciado. Além disso, também encontramos nesse
mesmo trecho o problema de incompletude gramatical argumental, com a ausência de
argumento externo para o verbo parecer, que também serviria como argumento de o que
foi presenciado por Auditores do Trabalho.
Em todos os exemplos analisados nessa seção, notamos que o usuário da língua
apresentou problemas relacionados à utilização das estruturas sintáticas pertinentes a sua
língua, o que prejudicou sua prática de linguagem escrita. Levando essa informação em
consideração, podemos supor que o escritor não corrigiu sua falha por não as perceber; e
não as percebeu por não estar ciente de que deveria olhar para esse tipo de problema.
Identificar e poder corrigir o problema é uma ação metalinguística, na medida que a
metacognição é uma habilidade da mente humana de si monitorar e administrar, e a
habilidade metalinguística é a ação de gerenciar o uso dos recursos linguísticos de forma
deliberada, o que, no caso da incompletude gramatical, envolve o gerenciamento dos
recursos sintáticos que constituem um texto, ou seja, envolve uma consciência
metassintática.
20
Disponível em <https://educacao.uol.com.br/>. Acessado em 15 de dezembro de 2016.
63
No tocante aos nossos estudos, expostos aqui, afirmamos que sua relevância se
deve ao fato de ao sistematizarmos tipos de problemas de escrita de ordem gramatical
como o que estamos propondo, possibilitamos uma reflexão pedagógica que deve refletir
nas práticas didáticas diárias nas salas de aula brasileira quanto ao ensino de língua
portuguesa. Gerhardt (2016) aponta mais do que o problema de incompletude gramatical,
que, na ocasião da obra, ainda era denominada de incompletude associativa; abarcando
diversos problemas gramaticais concernentes à escrita e propondo atividades que podem
auxiliar na diminuição da recorrência de tais problemas. Apesar disso, esse aparato teórico
e didático não contava ainda com o estudo sobre o qual nos debruçamos aqui. Sendo
assim, afirmamos que a presente produção não é uma releitura da obra de Gerhardt
(2016), mas mais uma contribuição para os estudos em desenvolvimento metalinguístico,
em geral, e metassintático, em particular, já que apontamos aqui a sistematização de um
problema gramatical ainda não-familiar no ambiente tanto acadêmico quanto de sala de
aula de produção textual e de português e cuja legitimação permite um novo olhar do
professor sobre as produções dos alunos. No que tange a esse novo olhar do professor, tal
postura permite que esse profissional possa auxiliar com mais eficiência seus alunos ao
compreender suas dificuldades gramaticais a partir da avaliação do texto como produto
composto por um estilo discursivo, mas também por um sistema notacional, como
propõem Ravid e Tolshinsky (2002). Em outras palavras, nosso trabalho colabora para o
letramento linguístico do professor a fim de que esse profissional possa colaborar para o
letramento de seus alunos, para o desenvolvimento de suas consciências metalinguísticas,
para a sua apropriação dos recursos linguísticos inerentes a sua língua e, enfim, sua
autonomia como usuários de sua língua, de forma a auxiliá-los a atingirem seus propósitos
comunicativos em suas práticas de linguagem – no caso do presente material, na prática
de escrita de textos dissertativos para vestibular e ENEM.
Passaremos agora para avaliar a ocorrência dos diferentes tipos de incompletude
gramatical nas redações retiradas do banco de redação do site UOL. No próximo capítulo,
explicaremos a metodologia utilizada para construímos nosso banco de dados, e, em
seguida, apresentaremos nossos achados e aportaremos nossas considerações acerca
deles.
64
4. METODOLOGIA
Seguindo as sugestões de Punch (2014), começamos a desenhar nossa
metodologia a partir dos níveis de abstração. Nesse sentido, primeiramente situamos
minha pesquisa no Campo da Linguística Aplicada, especificamente na área de ensino de
língua materna, a partir das nossas motivações, que giram em torno de se pensar um
ensino de língua inclusivo, que tenha como foco as individualidades e que permita aos
aprendizes a apropriação dos recursos linguísticos inerentes à sua língua, de forma a
permiti-los gerenciar as estruturas linguísticas e flexibilizar de acordo com as
necessidades do contexto comunicativas. Essa flexibilização inclui o domínio da norma
culta, necessária para o ingresso nas universidades ou em concursos públicos, processos
importantes para a mudança social daqueles que se encontram nas margens da sociedade.
Nesse sentido, determinamos que nosso tópico seria avaliar de forma sistemática a
ocorrência de um problema linguístico de ordem sintática, buscando tornar tal problema
um conceito, denominado por nós como incompletude gramatical, ao mesmo tempo que
objetivamos utilizá-lo para problematizar o ensino de escrita em língua materna no Brasil.
As perguntas gerais que regem este estudo são “qual é a relevância do estudo desse
tema”? E “Como esse estudo pode auxiliar na mudança educacional, tão necessária em
nosso país, principalmente em termos de língua portuguesa”? As perguntas específicas
são “quais conhecimentos estão faltando e, por isso, acarretando a incorrência do aluno
no problema de incompletude gramatical”? E “como esses conhecimentos estão ou não
sendo trabalhados pelas escolas”?
O presente documento foi construído a partir de uma metodologia qualitativa
interpretativa, porém oferecerá uma amostra quantitativa da recorrência do problema de
incompletude gramatical, a fim de construir argumentos que sustentem a nossa defesa
acerca da relevância do tratamento deste objeto como ponto de partida para uma discussão
mais ampla, que se dará em torno do ensino de gramática e ensino de escrita nas escolas
brasileiras. Para tanto, selecionamos um corpus de 150 (cento e cinquenta) redações
extraídas do Banco de Redações do site UOL e escritas por vestibulandos que desejam
avaliar suas performances – conforme explanamos brevemente em nossa introdução,
esses vestibulandos submetem seus textos à correção de um profissional do site que avalia
e pontua as produções e, em seguida, posta os resultados no próprio site com comentários.
Esse profissional corrige apenas 20 (vinte) redações por tema. Não tivemos acesso nem à
metodologia utilizada para corrigir, nem a utilizada para a escolha das redações que serão
corrigidas, nem às credenciais e identificação deste profissional. Não conseguimos sequer
65
saber se se tratava de uma equipe ou apenas uma pessoa. No entanto, tais questões não se
mostraram relevantes para o nosso trabalho, não interferiam de nenhuma forma na nossa
avaliação do fenômeno linguístico em questão, já que este dependia da produção em si e
não do olhar do avaliador. A única contribuição que esse avaliador poderia nos dá seria
quanto ao fato de podermos incluir em nossas discussões a sua percepção ou não da
incompletude gramatical, e isso independia da identidade do profissional, mas das
marcações e comentários que ele fazia nos textos por ele corrigidos.
Para selecionar as 150 (cento e cinquenta) redações, optamos por dividir as
redações em grupos de maiores notas e menores notas. Escolhemos 10 (dez) temas
aleatórios e averiguamos as possibilidades quantitativas de redações com maiores e
menores notas. Logo percebemos que a melhor opção seria montar um grupo com notas
iguais ou acima de 5.0 (cinco), que chamaremos aqui de grupo A, e um grupo com notas
abaixo de 5.0 (cinco), que chamaremos aqui de grupo B – o valor máximo era 10.0 (dez).
Assim, de cada tema, selecionamos as cinco maiores notas, contando a partir de 5.0
(cinco), e as dez menores notas, considerando qualquer nota abaixo de 5.0 (cinco).
Sentimos a necessidade de selecionar um décimo primeiro tema por falta de redações
(duas redações) para o grupo de notas iguais ou acima de cinco (5.0): optamos, para
solucionar essa questão, escolher as duas maiores e as duas menores notas desse último
tema, a fim de haver um equilíbrio.
Os temas selecionados foram os seguintes:
1- Pós verdade, opinião pública e democracia.
2- Filantropia: um exemplo a ser cumprido?
3- Escola no Brasil: com ou sem partido?
4- O sucesso vem da escola ou do esforço individual?
5- Estupro: como prevenir esse crime?
6- Carta-convite: discutir discriminação na escola.
7- Impeachment: a Presidente deve perder o mandato?
8- Bandido bom é bandido morto?
9- Mariana: fatalidade ou negligência?
10- Disciplina, ordem e autoridade favorecem a educação?
11- Escravizar é humano?
66
quadro quantificando essas ocorrências e propondo uma comparação entre os resultados
encontrados nos dois grupos de redações. Nesse sentido, parece-nos claro que esta
pesquisa se mostra pertinente ao paradigma quantitativo, haja vista seu caráter
quantificador: após a avaliação de todas as redações, quantos casos de cada nível textual
ocorrerão?
Como procedimento seguinte à avaliação do quadro de resultados quantitativos,
propusemos nossas reflexões, buscando relacionar o problema avaliado a conhecimentos
gramaticais pertinentes a ele e, dessa forma, mostrar que o ensino de gramática é
necessário para a qualidade da produção escrita e assim fundamentar nossa ideia acerca
da necessidade da articulação entre o ensino de gramática e o ensino de produção textual,
de forma a se levar em consideração as ações cognitivas envolvidas no processo de
escrita, o que significa prezar por um ensino de língua portuguesa que objetive
desenvolver as habilidades metacognitivas de gerenciamento e regulação dos recursos
linguísticos com vistas a uma experiência qualitativa com a prática de linguagem escrita
por parte dos alunos. A habilidade que trata do uso consciente dos recursos linguísticos é
a habilidade metalinguística, no sentido apresentado por Gombert (2009); no nosso caso
específico, estamos tratando do trato com estruturas gramaticais, então abordaremos as
discussões pertinentes ao desenvolvimento da consciência metassintática, sem, com isso,
excluir a necessidade de se discutir outras habilidades e outras estruturas ou elementos
que, junto à estrutura sintática, também participam da construção textual e das práticas de
linguagem cotidianas das pessoas.
67
5. ANÁLISE DOS DADOS E REFLEXÕES: TEXTOS DO BANCO DE REDAÇÕES DO UOL21
21
Todos os trechos apresentados ne capítulo foram extraídos do banco de redação do site UOL e estão
disponíveis em <https://educacao.uol.com.br/bancoderedacoes/>. Acessado em: 15 de dezembro de 2016.
68
5.1. ANÁLISE DOS DADOS:
A partir da leitura analítica das 150 redações que selecionamos para este trabalho,
encontramos dados referentes à quantidade de ocorrência de incompletude gramatical e
às diferentes posições em que esse problema ocorre. Assim, observamos a ocorrência de
incompletude gramatical
I. No nível lexical, como nos exemplos a seguir:
a) Ausência de referente
No que se refere à filantropia, é possível afirmar que é um lindo
gesto de amor ao próximo que vem ganhando força no mundo
atual. Haja visto, que alguns milionários e Bilionários estão
efetuando doações para algumas obras sociais, não só trazendo
um espírito de solidariedade, mas também dando um exemplo ao
mundo. Diante de um mundo tão desigual, é importante acabar
com essa ganância e olhar para quem mais precisa.
b) Ausência de conectivo
Samarco, empresa mineradora a qual o nome esta relacionado com
o maior desastre ambiental do Brasil, ultimamente, aparece nos
noticiários como causadora da contaminação do Rio Doce e perda
de vidas humanas. Porém, a responsabilidade não pode ser
totalmente depositada na empresa, visto que o governo possui uma
parcela de culpa.
69
Nesse exemplo, observamos a ausência de um argumento necessário para
preencher o espaço projetado pelo nome “responsabilidade”: responsabilidade de quê?
Além disso, notamos também a falta de um conectivo de adição, mostrando a relação de
acréscimo de informação quanto aos culpados pelo ocorrido em Mariana. Ademais,
vemos também a ausência de artigos necessários antes do nome “Samarco” e de
“empresa”. Assim, o trecho corrigido ficaria da seguinte forma:
A Samarco, UMA empresa mineradora a qual o nome esta [ESTÁ]
relacionado com o maior desastre ambiental do Brasil, ultimamente,
aparece nos noticiários como causadora da contaminação do Rio Doce e
perda de vidas humanas. Porém, a responsabilidade DISSO OU DESSA
TRAGÉDIA não pode ser totalmente depositada na empresa, visto que o
governo TAMBÉM possui uma parcela de culpa.
c) Ausência de preposição
É possível afirmar que, a filantropia é uma atitude a ser seguida
por todos bilionários, milionários, e também aquele capaz de
contribuir com seu trabalho em ações sociais.
70
d) Ausência de índice preposicional
Não obstante, políticas de esfera regional ou nacional devem ser tomadas
para que a educação pública e privada diminuam a disparidade entre si,
possibilitando à uma maior porcentagem da população de usufruir das
oportunidades que a minoria é contemplada.
71
à última oração, introduzida por um gerúndio22. É preciso ratificar que estamos
considerando em nossa avaliação a estrutura escolhida pelo escritor para compor sua
produção, por isso, consideramos haver aqui um problema de ausência de proposição. Se
ele tivesse escolhido outro tipo de estrutura, poderia facilmente relacionar a informação
contida na última oração ao resto do texto, mas, para isso, seria necessário que estivesse
consciente do recurso que estava escolhendo (consciência metassintática) para atingir
seus propósitos comunicativos. Outra observação importante é que aparentemente há um
problema de ausência de uma proposição que deveria ser articulada ao segundo período
por meio do “para assim”; contudo, o que ocorre, na verdade, é um problema que Gerhardt
(2016) apresenta como problema de fronteira: basta eliminar o ponto final e temos a
articulação estabelecida; não há necessidade de adicionar informações.
Além dos problemas de incompletude gramatical, encontramos também
problemas de ausência que não estão sendo considerados por nós como problema de
incompletude gramatical, por se referirem a questões que estão para além do que
concernem as discussões em torno da consciência metassintática. Infelizmente, não nos
foi possível estudar mais profundamente esses tipos específicos de ‘espaço incompleto’
no texto, devido às nossas limitações de tempo, mas acreditamos que seria interessante
quantificá-los com vistas a futuros estudos e por, de certa forma, se relacionar ao conceito
de incompletude ao ser um problema de ausência de item necessário à produção.
Vejamos o quadro abaixo, com a quantificação dessas ocorrências:
TIPOS DE INCOMPLETUDE < 5.0 ≥ 5.0
Ausência de referente 119 45
Ausência de conectivo 49 17
Ausência de preposição 37 15
Os números que constam no lado esquerdo do quadro são referentes aos achados
nas redações que apresentaram notas abaixo de 5.0 (cinco); e os números no lado direito
22
O gerúndio pode ser utilizado para articular orações com relação de explicação ou de consequência.
72
se referem aos achados nas redações que apresentaram notas iguais ou maiores que 5.0
(cinco). De acordo com os nossos achados, a maior ocorrência de incompletude
gramatical tanto nas redações com notas abaixo de 5.0 (cinco) quanto nas com notas
acima de 5.0 (cinco) se deu no nível argumental, o qual se refere à ausência de um
argumento projetado ou por um verbo (argumento externo e argumento interno) ou por
um nome, ou mesma pela ausência do próprio núcleo verbal. A segunda maior ocorrência
é diferente para os dois grupos avaliados: no grupo das redações abaixo de 5.0, a segunda
maior ocorrência de incompletude se deu no nível proposicional, que se refere à ausência
de uma proposição inteira que predique um sujeitou ou que se articule com outra
proposição que se encontra materializada no texto e introduzida por um conectivo,
marcando uma relação de subordinação ou coordenação. No grupo das redações acima de
5.0, a segunda maior ocorrência se deu no nível lexical, especificamente na ausência de
referentes. Já a terceira maior ocorrência de incompletude gramatical se apresentou como
o inverso da situação anterior; nessa colocação, o grupo de redações com notas inferiores
a 5,0 apresentaram a ocorrência de ausência de referente, e o grupo de redações com notas
superiores a 5.0 apresentaram a ocorrência de ausência de proposição.
Ademais, encontramos índices significativos de ausência de conectivo e de
preposição indicativa de argumento verbal ou nominal preposicionado. A ausência de
índice preposicional introdutório de orações adjetiva apresentou índice pouco
significativo, assim como a ausência de partícula integrante que, ausência de artigo ou
mesmo esquecimento de alguma palavra. Faz-se necessário explicar que estamos
considerando esquecimento ou desatenção a ausência de alguma palavra que nos pareceu
ser relacionado a problemas de digitação, como a ausência do mais em “o mundo está
precisando cada vez Ø de pessoas assim” (Disponívei em <https://educacao.uol.com.br/>.
Acessado em 15 de dezembro de 2016.).
As produções que avaliamos foram entendidas como manifestações dos eus de
seus autores, já que “é na linguagem e por ela que o homem se constitui como sujeito,
dado que somente ao produzir um ato de fala, ele constitui-se como eu” (Benveniste,
1966, p. 259). Apesar de nosso foco recair sobre as questões gramaticais, consideramos
importante ter em mente que as estruturas sintáticas deveriam ser observadas como forma
de construir enunciados, de possibilitar expressões de sujeitos que agem na e pela
linguagem. E, ao entendermos que a redação de vestibular é um gênero que demanda
posicionamentos políticos e sociais dos vestibulandos, podemos afirmar também que
estamos tratando de construções de extrema relevância, que demonstram a habilidade ou
73
não do escritor em se fazer compreender a partir de seu texto escrito, ou seja, de se
posicionar política e socialmente por meio da escrita.
Em nosso aporte teórico, tratamos do processo de construção de significado.
Retomaremos aqui apenas algumas ideias importantes para nossas reflexões. Uma das
ideias importante é a de “admitir que cada palavra tem uma área semântica mais ou menos
definida, e que o receptor (ouvinte ou leitor) parte daí para realizar o processo que
chamamos de interpretação das estruturas que ouve ou lê”, excluindo “interpretações que
não fazem sentido” (PERINI, 2006, p. 42-43). Segundo Perini (2006), “o significado que
transmitimos através da fala é captado pelo ouvinte a partir de vários tipos de elementos
que funcionam como pistas, entre as quais figura [...] a contribuição das palavras
individuais e das estruturas das frases” (p. 55). O autor trata da oralidade, mas as mesmas
considerações se aplicam à modalidade escrita. Tendo isso em consideração, entendemos
que o problema de incompletude gramatical prejudica esse processo de interpretação, já
que dificulta, e às vezes impossibilita, a construção de significado, devido às estruturas
estarem incompletas, carecendo de palavras, frases ou orações para servirem de pistas
para a construção do significado.
É interessante colocar que as redações que avaliamos, extraídas do banco de
redações do site UOL, já haviam sido avaliadas e pontuadas por profissionais do próprio
site. Não conseguimos acessar as credenciais desses profissionais, mas, pelos comentários
que tecem ao final de cada redação, parecem ser mesmo da área de letras. Tendo em vista
esse contexto, buscamos observar também se constava, nos comentários, alguma
evidência de que o encarregado pela correção percebia a ocorrência de incompletude
gramatical. Assim, encontramos algumas marcações relativas a problemas de
incompletude e que eram avaliadas como “estrutura incompleta” ou “estrutura confusa”;
em outros momentos, o corretor não faz uma observação de ordem sintática, então ele
propõe reformulações no próprio texto, uma dificuldade que nossa experiência na área de
ensino mostrou que é comum aos professores. Observamos também que, nos comentários,
há sempre menção à dificuldade de leitura por parte do corretor devido a essas
construções que ele denomina como confusas ou incompletas. Além disso, vemos que a
obediência à norma culta de forma geral é sim avaliada, haja vista ser parte das regras
determinadas pelos idealizadores do ENEM e dos vestibulares; ou seja, precisam ser
levadas em conta também pelo corretor do banco de redação do UOL. Nesse sentido, um
dos itens contabilizados é o domínio da norma culta da língua escrita. Vale ressaltar,
portanto, que problemas como os de incompletude gramatical não só prejudicam o
74
objetivo retórico do escritor como também ferem a norma culta.
Outra colocação importante é que, para realizarmos nosso estudo e propormos a
divisão das ocorrências nos diferentes níveis já explanados, consideramos as escolhas
linguísticas feitas pelos escritores em articulação com sua intenção comunicativa. Então,
quando o escritor escolhe usar, por exemplo, o ver ter em uma oração cuja proposta não
permite sujeito – isto é, cujo verbo ideal seria o haver –, determinamos que há problema
de incompletude gramatical argumental, já que ele escolheu um verbo que projeta um
argumento externo e deixou esse espaço vazio. Uma ação consciente sobre a escolha desse
verbo faria com que o aluno percebesse que o verbo ter projeta um argumento externo,
que deve ser um sujeito que tem/possui algo, além de um argumento interno, que é o
objeto possuído. Logo, se ele deseja produzir uma oração sem sujeito, há que optar por
um verbo que não projete um argumento externo, como o verbo haver.
Vejamos a produção textual a seguir, pertencente ao grupo de redações com notas
abaixo de 5.0 (cinco):
(Sem título 086)
a (sic) Polêmica desta frase “bandido bom, é bandido morto”. Pra
muitos pode ser favorecido a frase, mas para mim não, por quê não são
somente os bandidos que causam a violência, policiais também não são
nada santinhos, descordo totalmente sobre este tema de pessoas serem
a favor desta frase, violência não era para nem existir, se o mundo
houvesse mais amor e paciência, a violência não seria praticamente
nada, a violência gera violência, não deveria ter pena de morte nem
nada, porque acho que o único que pode tirar nossas vidas, é Deus, por
mais que o bandido faça coisas erradas, que cumpre sua pena, seu
castigo por anos em uma cadeia, do que ser morto. Deus nos deu livre
arbítrio de escolher nossos caminhos, assim também como sofrer com
as consequências. Por isso sou contra a morte e a frase de “bandido
bom, é bandido morto.
(Autor anônimo. Redação extraída do banco de redações do UOL.
Nota: 2,0)23
Comentário geral
Texto fraco, marcado pela linguagem coloquial, pelas frases mal
redigidas e com muitos problemas de pontuação. Contudo, vale a pena
comparar essa redação com a outra intitulada A maldade está no
mundo. Naquela, os problemas de linguagem são tantos que mal se
compreende o que o autor quer dizer e há trechos inteiros que nada
significam. Nesta, apesar da linguagem, o autor pelo menos demonstra
compreensão do tema e tenta apresentar suas razões para defender seu
ponto de vista. Infelizmente, porém, ao fazê-lo, dá uma demonstração
de que não sabe escrever na norma culta da língua portuguesa.
(Comentário provido pelo corretor responsável pelas correções das
23
As redações são todas anônimas e estão disponíveis em <https://educacao.uol.com.br/>. Acessado em
15 de dezembro de 2016.
75
redações do banco de redações do UOL).24
24
Para nós, o corretor ficou como uma figura anônima, bem como os autores dos textos, pois não
conseguimos ter acesso à sua identidade.
76
demonstrar domínio do registro pertinente à modalidade escrita no gênero em questão,
não recebeu uma pontuação que o permitiria ingressar em uma universidade. Segundo
esse corretor, o texto foi avaliado em 2.0 (dois) ponto de um total de 10.0 (dez), o que
equivaleria a 200 (duzentos) em um total de 1000 (mil) – pontuação atual do ENEM.
Outro destaque que cabe aqui é ao fato de o corretor sinalizar que, no outro texto,
“os problemas de linguagem são tantos que mal se compreende o que o autor quer dizer
e há trechos inteiros que nada significam”. Ou seja, ele evidência que problemas
linguísticos não só ferem o uso do registro adequado como também prejudicam a
compreensão, a significação do texto, o que impede que seja alcançado o objetivo
comunicativo do escritor e a expressão e defesa de suas ideias.
Analisemos agora uma produção do grupo de redações com notas acima de 5.0
(cinco):
Quando a exceção vira notícia
Ainda que existam casos de alunos que conseguiram ascender em sua
via acadêmica de forma brilhante, são evidentes as consequências da
desigualdade social no panorama da educação. Esses eventos de
exceção tomam destaque na mídia convencional por seu teor
excepcional e levanta dúvidas quanto à capacidade do sistema de
ensino para os cidadãos mais pobres.
Neste cenário desfavorável, alternativas surgem e animam o jovem
estudante, como o sistema de cotas. Esta saída promete ao aluno uma
perspectiva maior numa sociedade excludente em que é obrigado a
lidar todos os duas. Ainda que a parte majoritária do país seja marcada
pela pobreza.
Não obstante, políticas de esfera regional ou nacional devem ser
tomadas para que a educação pública e privada diminuam (sic) a
disparidade entre si, possibilitando à uma maior porcentagem da
população de usufruir das oportunidades que a maioria é contemplada.
Portanto, à curto ou médio prazo, com investimentos na infraestrutura
e qualidade de ensino, além de programas de incentivo, os eventos de
exceção, como pobres ingressando na faculdades (sic) com louvores,
deixariam de ser dignos de nota nos jornais e os tornariam apenas
membros comuns de uma sociedade mais igualitária com
oportunidades à todos.
(Autor anônimo. Redação extraída do banco de redações do UOL.
Nota: 7,5)
Comentário geral
Texto bom, que, porém, dá um enfoque muito peculiar à proposta de
redação e deixa sem resposta a pergunta que traduz a essência do tema.
O autor reduz a um fenômeno midiático o esforço daqueles que
estudaram em condições adversas e conseguiram atingir seus
objetivos. Isso é um equívoco. Muito antes da mídia atingir o alcance
que tem hoje, já havia casos de gente humilde que fazia sucesso em suas
áreas de atuação, como é o caso de Machado de Assis e André
Rebouças. Enfim, essa é uma questão de conteúdo: o aluno interpreta
o tema de acordo com as suas referências ideológicas.
77
Independentemente disso, há também problemas de linguagem
relativamente graves. Mas o texto se salva, pois segue a estrutura
dissertativa e o aluno demonstra capacidade de argumentar em defesa
de um ponto de vista.
(Comentário provido pelo corretor responsável pelas correções das
redações do banco de redações do UOL).
Nesse texto, vemos que o autor conseguiu demonstrar um bom domínio da norma
culta e das estruturas necessárias para se compor um texto escrito em consonância com
essa norma. Nele, encontramos problema de ausência de índice preposicional introdutório
de orações adjetiva, como em “usufruir das oportunidades [COM] que a maioria é
contemplada”. Além disso, encontramos problemas de incompletude gramatical como,
dentre outros, os seguintes exemplos:
Incompletude gramatical lexical – ausência de referente: “os eventos de exceção,
como pobres ingressando na faculdades (sic) com louvores, deixariam de ser dignos de
nota nos jornais e os tornariam apenas membros comuns de uma sociedade mais
igualitária”. Nesse trecho, vemos um pronome que não encontra um referente possível,
já que, linguisticamente, o sujeito de tornariam é eventos de exceção, o que faz desse os
um objeto, algo que é tornado em membro comum de uma sociedade igualitária pelos
eventos de exceção, o que não é possível. Se esse escritor estivesse conscientemente
gerenciando sua escrita, haveria uma grande possibilidade de que ele notasse que sua
intenção ao utilizar o verbo tornar só seria atingida com a mudança, ou melhor, acréscimo
de um outro sujeito. Dessa forma, eventos de exceção continuaria sendo sujeito de
deixaria, e seria criado um outro sujeito para tornariam. Sobre esse problema, o corretor
faz uma observação no espaço destinado a comentários sobre aspectos pontuais. Antes de
explorarmos o comentário do corretor, faz-se necessário esclarecer que o corretor marca
no texto os elementos problemáticos. Algumas vezes, ele propõe a correção no próprio
texto, em verde; outras, ele apenas destaca o elemento em vermelho e comenta sobre ele
depois, seja nos comentários gerais, seja nos aspectos pontuais. No caso específico que
estamos tratando, o corretor marcou de vermelho o trecho no texto e fez um comentário
posterior. Ele mostra que notou a mudança de sujeito e a falta de ciência do escritor sobre
suas próprias ações. Nas palavras do corretor,
Mais um grave problema de sintaxe que prejudica o conteúdo. O sujeito
do período é eventos de exceção, que evidentemente não podem se
tornar membros comuns de uma sociedade. O autor mudou o sujeito de
sua declaração, passou a falar de pobres, sem fazer as necessárias
alterações no período que lhe dessem coerência. (Comentário provido
pelo corretor responsável pelas correções das redações do banco de
78
redações do UOL).
79
Nesse exemplo, vemos que não há um elemento que possa ser retomado pelo
anafórico onde. Para resolver esse problema, que também foi notado pelo corretor, nossa
sugestão seria adicionar um referente, como ‘em lugares’ ou ‘que vivem em lugares’.
Como exemplo do onde como problema de pertinência, temos o seguinte:
ii. No ano de 2014, o Brasil parou como para em todo ano de eleição,
principalmente quando chegou o momento do segundo turno, onde
brasileiros tiveram que escolher (autor anônimo. Texto: Contra [a]
corrupção? 9.5).
iii. A pós-verdade traz um conceito onde a verdade real é deixada de lado
(autor anônimo. Título: Verdade absoluta já! 2.5).
No exemplo ii, vemos que o advérbio onde não é um anafórico sem referente, já
que o espaço de referente está preenchido. O problema é, na verdade, o fato de a estrutura
escolhida pelo escritor não comportar o onde, mas um em que ou um quando como
elemento coesivo. E no exemplo iii, o onde está sendo utilizado de forma equivocada,
pois não pode retomar o elemento que ocupa o espaço de referente. Nesse caso, cabe
também uma substituição do onde pelo em que para resolver o problema. Observamos,
assim, que, em ambos os casos, o espaço de referente não está vazio e a solução para o
problema não demanda adição de informação; logo, não estamos de frente para um
problema de incompletude gramatical, mas de pertinência.
Outra questão linguística que nos chamou a atenção foi a ausência de conectivos
em algumas produções, evidenciando o problema de incompletude gramatical no nível
lexical. Como exemplo desse tipo de ocorrência temos os trechos a seguir:
iv. Há um foco tão grande em colocar a culpa em alguém que apenas
mencionamos a presidente, acabamos nos esquecendo do fundamental
(autor anônimo. Texto: Impeachment não é a solução. 7.0).
v. Um macaco então é substituído e sem saber de nada, tenta subir na
escada quando é atacado pelos demais, até o ponto em que ele adere a
esse comportamento (autor anônimo. Texto: Intolerância programada.
4.5).
80
proposições, como o conectivo mas. E no exemplo v, notamos, dado o contexto em que o
trecho se inseria, a ausência de um conectivo que indicasse adição, como o também, a fim
de mostrar que o macaco em questão era mais um que aderira o comportamento descrito
no texto de onde extraímos esse trecho. Ou seja, ao corrigirmos os trechos, teríamos as
seguintes propostas:
iv’. Há um foco tão grande em colocar a culpa em alguém que apenas
mencionamos a presidente, mas acabamos nos esquecendo do
fundamental.
v’. Um macaco então é substituído e sem saber de nada, tenta subir na
escada quando é atacado pelos demais, até o ponto em que ele também
adere a esse comportamento.
81
O trecho vii carece de um núcleo verbal para predicar as estruturas “o que se pode
tentar” e “debater o tema”. Nesse sentido, propusemos a seguinte possibilidade de
correção:
vii’. o que se pode tentar é debater o tema com maior frequência nas
escolas, conversar com a comunidade estudantil sobre a implementação de
novas matérias no currículo escolar.
82
através de palestras e ensino de direitos do cidadão nas escolas, para que
possam reivindicar seus direitos (autor anônimo. Título: Verdade absoluta
já! 2.5.)
83
redação em diferentes níveis estruturais, como, por exemplo, o problema de incompletude
gramatical. Esse tipo de trabalho atenderia ao que colocamos anteriormente sobre a
necessidade de se trabalhar com o erro, com as produções dos alunos como fonte de
aprendizado. E essa fonte serve de aprendizado também para o professor que, a partir da
observação acurada sobre a produção de seus alunos, pode identificar com mais segurança
os saberes e não saberes que seus aprendizes apresentam, obtendo, assim, maior facilidade
em propor atividades que possam auxiliá-los a aprenderem o que não sabem e a
desenvolverem ou refinar o que já sabem.
Esse papel de direcionador do olhar é apresentado, de certa forma, por Bruner
(1959) ao descrever um experimento com Estudos Sociais, o qual apresenta um professor
direcionando o olhar dos alunos com vistas a solucionar um problema relativo à
disciplina: o professor queria que os alunos encontrassem as cidades mais importantes em
um ponto delimitado de um mapa e, para isso, direcionou o olhar dos alunos para
características específicas a partir de um debate – os alunos levantavam pontos e o
professor guiava a discussão –, afunilando as reflexões possíveis para chegar à resposta e
proporcionando um momento de debate e descoberta para os alunos. A partir do
direcionamento para as características de uma cidade importante, mesmo sem dar os
nomes das cidades constantes na área delimitada no mapa, o professor trouxe à
consciência dos alunos o que e onde buscar (BRUNER, 1959, p.19).
É interessante notar que “os professores, e não os dispositivos, são os principais
agentes do ensino, mas as opiniões se dividiram sobre como deve o professor ser
auxiliado” (BRUNER, 1959, p.13 e 14). Para que esse auxílio se dê de forma eficiente e
adequada, faz-se necessário adotar alguns questionamentos levantados por Ausubel
(1980), como os que seguem:
Quais as principais variáveis da estrutura cognitiva e como elas afetam
a aprendizagem significativa e a retenção? Quais as medidas
pedagógicas que o professor pode adotar para maximizar a influência
da transferência ou o efeito das variáveis da estrutura cognitiva sobre a
aprendizagem atual na sala de aula? (...) Qual é a relação entre a
linguagem e a transferência? (AUSUBEL, 1980, p.137)
84
significativo (Conteúdo do assunto no contexto da aprendizagem escolar) é sempre, e só
pode ser aprendido em relação a um conteúdo previamente assimilado de conceitos
relevantes” (AUSUBEL, 1980, p.137). Vemos, portanto, que Ausubel sustenta a
importância de avaliarmos o conteúdo, de estruturá-lo de forma a organizar uma
progressão na complexidade do conhecimento apresentado aos alunos. Cada conteúdo
deve poder partir do que o aluno já sabe.
Já sobre a retenção de novos conhecimentos, o autor destaca que “se a estrutura
cognitiva for clara, estável e adequadamente organizada, significados precisos e não
ambíguos emergem, tendendo a reter sua força de dissociação ou disponibilidade”
(AUSUBEL, 1980, p.138). Ou seja, a estrutura facilita a retenção de informações novas.
Por isso, quando se trata de língua materna, entendemos que é importante haver uma
estrutura conteudística crescente, em termos de conhecimento linguístico, que deve partir
do uso e função da palavra, passar pelo período simples, aumentar a complexidade com
a introdução do período composto, passar para a organização do parágrafo, e, então,
finalizar com a avaliação de todas as estruturas – discursivo-pragmáticas e gramaticais –
do texto como um todo. Como nosso foco recai sobre a estrutura gramatical, ao se propor
um ensino linguístico que respeite a articulação entre o conhecimento prévio do aluno e
os novos conhecimentos (GERHARDT, 2016), espera-se que o aluno consiga observar
como o conhecimento gramatical a que gradativamente tem acesso se fez necessário para
a melhoria da qualidade sua produção textual, haja vista a necessidade desse
conhecimento para que o gerenciamento do trato com o texto se dê de forma mais
qualitativa. Também se espera que ele perceba que, a cada novo conhecimento com o qual
entre em contato, o conhecimento antigo é modificado e sua habilidade de escrita se refina
cada vez mais. Ele deve perceber que, pelo conhecimento acerca da sintaxe que constitui
o texto, pôde identificar, na sua revisão, durante e após a produção, questões que
comprometeriam sua enunciação por não construir os significados desejados de forma
adequada, donde se conclui que ele se conscientiza de que o conhecimento de texto passa
pelo conhecimento de gramática e que o desenvolvimento da consciência metassintática
influencia no refinamento do texto por tornar a escrita um “trabalho consciente,
deliberado, planejado, repensado” (FIAD E MAYRINK-SABINSON, 1989, p. 63).
Segundo Ausubel (1980), “quando deliberadamente tentamos influenciar a
estrutura cognitiva, de modo a maximizar a aprendizagem significativa e a retenção,
chegamos ao âmago do processo educativo”. (p.138). O trabalho com a consciência
metassintática 1) dá significado ao ensino de gramática, a partir da correlação entre o
85
conhecimento gramatical e a produção textual; 2) otimiza a aprendizagem significativa e
retenção dos conhecimentos linguísticos e colabora na melhoria da qualidade da escrita;
e 3) influencia a estrutura cognitiva do aprendiz ao propor um trabalho com metodologia
adequada, que envolve apresentação, ordenação e teste de aquisição do conteúdo exposto,
em conformidade com as seguintes colocações de Ausubel:
A estrutura cognitiva do aprendiz pode ser influenciada (1)
substantivamente, pela inclusividade, poder explanatório e
propriedades integrativas dos conceitos e princípios particulares
unificadores apresentados ao aprendiz; e (2) programaticamente, por
métodos adequados de apresentação, ordenação e testes da aquisição
significativa da matéria (AUSUBEL, 1980, p.138).
86
A principal estratégia (...) para deliberadamente manipular a estrutura
cognitiva de modo a aumentar a facilitação proativa e a minimizar a
interferência proativa, envolve o uso de materiais adequados relevantes
e inclusive introdutórios (organizadores) que são maximamente claros
e estáveis. Estes organizadores são normalmente introduzidos antes do
próprio material de aprendizagem e são usados para facilitar o
estabelecimento de uma disposição significativa para a aprendizagem
(AUSUBEL, 1980, p.143).
87
capítulos anteriores, não encontramos nesses materiais associação entre o ensino de
gramática e o ensino de produção textual, o que caracteriza uma exposição desestruturada,
sem uma ordenação lógica, clara, integrada e sem significação para o aprendiz. Ou seja,
se avaliarmos esses livros didáticos à luz dos expostos de Ausubel (1980), poderemos
afirmar que eles não proporcionam uma experiência de aquisição de conhecimento. Nos
termos do autor, o que vemos é o rompimento da “reconciliação integrativa”.
“O princípio da reconciliação integrativa da estrutura cognitiva quando
obtido por meio da programação de materiais instrucionais pode melhor
ser descrito como antitético à prática usual dos escritores de livro-texto
de compartimentalizar e segregar ideias ou tópicos particulares dentro
dos seus respectivos capítulos ou subcapítulos. (...) São feitos poucos
esforços sérios no sentido de explorar explicitamente relações entre
estas ideias, de assinalar semelhanças e diferenças significativas, e de
reconciliar inconsistências reais ou aparentes. (...) Barreiras artificiais
são erguidas entre tópicos relacionados, obscurecendo importantes
aspectos comuns, e assim tornando impossível a aquisição de
discernimentos dependentes do reconhecimento destas comunalidades”
(AUSUBEL, 1980, p.161).
Não há, no entanto, garantias plenas de que todos os conteúdos trabalhados por
meio de procedimentos de ordem metalinguística e metassintática serão sempre
aprendidos em sua totalidade e sempre por todos os aprendizes. O que temos até o
presente momento é que a maior parte dos alunos que se submeteram à prática de
atividades de cunho metalinguístico25 demonstraram melhora na qualidade de suas
produções, com a diminuição (e, em alguns casos, eliminação) da ocorrência de
problemas de escrita devido à consciência sobre o gerenciamento dos recursos
linguísticos disponíveis na sua língua. Os alunos que realizaram atividades desse tipo26
pensavam em quais estruturas precisava selecionar para construir os significados
desejados e atingir seus propósitos comunicativos, e, ainda ao longo do processo de
produção, nos momentos de autocorreção, esses mesmos alunos, conscientes das
possíveis estruturas gramaticais de sua língua, puderam direcionar seu olhar para buscar,
identificar e corrigir possíveis problemas de forma imediata. Isso resultou numa produção
final de maior qualidade quando comparada a produções anteriores no sentido estrutural
– e pode-se especular que até mesmo no sentido discursivo.
25
Estamos tratando aqui da aplicação dos procedimentos didáticos desenvolvidos por Gerhardt (2016).
26
Alunos que participaram do curso de Oficina de Língua Portuguesa, alunos particulares e alunos da
instituição filantrópica em que a autora da presente dissertação trabalha.
88
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: POR UM OUTRO ENSINO DE GRAMÁTICA
89
de nossos expostos teóricos, da nossa conceituação de um problema de ordem linguística
e da discussão em torno das ideias subjacentes ao contexto de análise de produções
textuais escritas, desejamos viabilizar para o professor o encontro de respostas para suas
questões pedagógicas. Quanto às questões relacionadas ao “o que ensinar”, mostramos
que o professor precisa buscar trabalhar com problemas que advêm dos próprios textos
dos alunos, como o problema de incompletude gramatical, que se mostrou produtivo nos
tempos atuais e que não é encontrado dentre os conteúdos apresentados pelos livros
didáticos, pelos currículos escolares ou pelos documentos oficiais que regem o ensino de
língua no Brasil. Dessa forma, acreditamos que, ao se implementar as alterações que
mostramos ser necessárias no fazer diário dos professores, a aula passa a fazer sentindo
não só para o aluno como também para o professor, que se torna um orientador do olhar
de seus aprendizes quanto aos conteúdos gramaticais que devem ser focalizados em cada
aula. Nossa proposta abordou também a ideia de os professores entenderem os recursos
linguísticos (ou gramaticais) como parte constitutiva do texto, o que significa ligar o
ensino de gramática ao ensino de texto, considerando que a construção de significado
depende também da administração adequada das estruturas sintáticas.
Gostaríamos de concluir este trabalho com as palavras de Gerhardt (2015):
É preciso imperativamente desenvolver um trabalho metodológico e de
organização de conteúdo voltado para o entendimento metalinguístico
das condições de produção dos textos de diferentes gêneros, incluindo
reflexões que busquem trazer à consciência da pessoa os mecanismos
linguísticos atravessados pelas variações decorrentes das múltiplas
possibilidades de usar a língua. (...) As pessoas, em sua vida cotidiana,
realizam ações metalinguísticas de várias naturezas: planejam,
selecionam, comparam, aprimoram o que desejam dizer. Mas, apenas a
prática sistematizada e orientada dessas ações, que deve ser conduzida
na escola, lhes permitirá alcançar generalizações sobre a construção da
linguagem em um patamar metalinguístico, uma capacidade necessária
para a sua autonomia como usuária de uma língua em suas diferentes
dimensões semióticas (GERHARDT, 2015).
90
inclusive do ENEM, o que será um facilitador para os corretores.
91
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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portuguesa: apropriações de professores. In: SILVA, S. P. Didática do ensino de língua:
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Notas:
i
Texto original: “material social practice in which meaning is actively made, rather than passively relayed
or effortlessly produced.”
ii
Texto original: “The process of written composition, classically described in three stages (planning,
transcription, revision).”
iii
Texto original: “Before all writing, it is necessary to select a theme or determine its objectives and
antecipate what is to be communicated to the reader for whom the text is intended. It is then necessary to
find, in long-term memory or in external sources, the ideas which are to be put into words. These ideas
must be organized in such a way that they link up with prior knowledge expected in the reader and
possess a coherent overall configuration.”
iv
Texto original: “Writing is more lexically dense and integrated than speech”.
v
Texto original: “Writing is not speech written down: it is shaped and constructed differently and is
governed by different grammatical and social conventions. A written sentence is not the same as a spoken
utterance”.
vi
Texto original: “the linguistic distinctions between informal speech and formal writing (at either end of
the speech-writing continuum) are well understood”.
vii
Texto original: “lexical choice and antecipation of the conventions of writing in the level of
orthography, sintax and punctuation – all this as a function of the capacity for comprehension expected of
the intended readers”.
viii
Texto original: “rereading, a comparison between the produced text and the planned text, and the
implementation of the necessary corrections”.
96
ix
Texto original: “is more than a simple step within the overall processo f composition, constituting rather
a modified retranscription of the text which has already been produced”.
x
Texto original: “pretext revision, which includes evaluation, revision, and refinement of ideas and
purposes at the planning stage; online revision, which occurs during writing; and deferred revision, which
happens once writing is complete”.
xi
Texto original: “(a) Reading to detect error and to evaluate and (b) editing to make changes”.
xii
Texto original: “Students had difficulties both in self-monitoring and identifying precise problems, and
difficulty with implementing strategies to solve these problems”.
xiii
Texto original: “we revise not because we discover a fault but because we discover something better to
say or find a better way to say what we have said”.
xiv
Texto original: “the debate about grammar has been less about grammar itself than about ‘the particular
values and standards the idea of grammar has been made to symbolise”.
xv
Texto original: “very little genuine research attention has been accorded to the way pupils learn
grammar and the problems and difficulties they face in acquiring metalinguistic knowledge”.
xvi
Texto original: “Part of the challenge for teachers of grammar is to discourage learners from a
conception of grammar as the naming of parts, but rather to see word class in terms of meaningful
relationships between words within sentences and texts”.
xvii
Texto original: “writing requires a more sophisticated shaping of language to meet the needs of an
absent reader in contrast to the instant feedback provided by a conversation partner”.
xviii
Texto original: “It involves both the selection of appropriate vocabulary and the structuring of words
into sentences, and the organization of sentences into paragraphs, and texts”.
xix
Texto original: “Making linguistic choices and shaping sentences and texts to satisfy the needs of an
implied reader is more challenging”.
xx
Texto original: “Young writers, therefore, need to master both the grammatical construction of written
sentences and an ability to imagine how a reader might read their text”.
xxi
Texto original: “This demands a degree of deliberateness in the process of writing which is more
cognitively costly than simply writing down the words that come into your head (…) It also requires the
acquisition of a linguistic repertoire which is specific to writing and may have no parallels in talk”.
xxii
Texto original: “a more socially-oriented analysis of how language is used, including in different
social, linguistic and cultural contexts”.
xxiii
Texto original: “A prescriptivist theory of a grammar-writing relationship would argue for the
importance of grammar in securing correctness in written expression; a descriptivist theory of a grammar
writing relationship would argue for the importance of grammar in illuminating how written text
generates meaning in different contexts”.
xxiv
Texto original: “meaning is crafted and created through shaping language to achieve the writer’s
rhetorical intentions”.
xxv
Texto original: “conscious control and conscious choice over language which enables both to see
through language in a systematic way and to use language more discriminatingly”.
xxvi
Texto original: “writing is a communicative act supporting writers in understanding the social
purposes and audiences of texts and how language creates meanings and effects; secondly, grammar is a
meaning-making resource: supporting writers in making appropriate linguistic choices which help them to
shape and craft text to satisfy their rhetorical intentions”.
xxvii
Texto original: “making more connections for developing writers between linguistic choices and
meaning-making effects”.
xxviii
Texto original: “reframing research in the relationship between grammar teaching and writing. (…)
The study demonstrates that more able students’ learning about writing is enhanced by explicit
understanding of how grammar choices can be used to shape written text to satisfy writers’ rhetorical
goals”.
xxix
Texto original: “Metalanguage or metalinguistic activities (different from ‘metalanguage’ in its
linguistic meaning): subfield of metacognition concerned with language and its use – in other words
comprising: (1) activities of reflection on language and its use; (2) subjects’ ability intentionally to
monitor and plan their own methods of linguistic processing (in both comprehension and production).
These activities and abilities may concern any aspect of language, whether phonological (in which case
we speak of metaphonological activities), syntactic (metasyntactic activities), semantic (metasemantic
activities) or pragmatic (metapragmatic activities)”.
97