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TOTEM E TABU

Tabu ainda persiste na sociedade enquanto imperativo


categórico, promovendo ações coercitivas e rejeitando com
veemência qualquer pensamento contrário.

Totemismo foi uma instituição social-religiosa que, por certos


traços, ainda existe em certas e poucas práticas religiosas, além
de usos e costumes na sociedade.

Avanços técnicos e sociais afetaram bem menos o tabu do


que o totem.

I. HORROR AO INCESTO

Há coincidências entre a psicologia de povos primitivos e de


neuróticos. Para o estudo, valeu-se dos povos aborígenes da
Austrália, que não constroem moradias permanentes, não
trabalham o solo, não criam animais domésticos (à exceção do cão)
e não dominam a arte da cerâmica, vivendo da carne da animais
abatidos e de raízes. Não têm um líder, mas uma assembleia de
anciãos, que decide sobre as questões do grupo. Vivem nus e não
possuem uma moral sexual com severas limitações, a não ser o
impedimento de relações incestuosas.

Os aborígenes australianos mantêm o sistema de


totemismo até os dias atuais. Cada clã é nomeado segundo o seu
totem que, na quase totalidade das vezes, é um animal. O totem é
visto como um ancestral comum do grupo, exercendo a sua
proteção espiritual, enviando oráculos e poupando os seus
protegidos de males que pode inflingir a membros de outros povos.
Por conta disso, o animal representando pelo totem não é caçado
ou comido pelo grupo, ou mesmo dele se usufrui de outros modos.
Em cerimônias, os componentes do clã dançam e se movimentam
em imitação ao totem como forma de honrá-lo. O totem não tem
território definido e fixo, estendendo-se a lugares para os quais os
seus protegidos se mudarem. Clãs distantes, mas que possuem o
mesmo totem, interagem e empenham-se em conviver em
harmonia uns com os outros, daí sobrepor-se o totemismo a tribos
ou a parentesco consaguíneo.

Uma característica desse sistema que interessa a


psicanálise é o fato de membros de um mesmo grupo totêmico
estarem impedidos de ter relações sexuais entre si ou de se
casarem, sendo adotada, assim, a exogamia vinculada ao totem.

A transgressão à exogamia implica uma punição enérgica


aos culpados, deles se vingando os demais membros do clã,
encarando-os como ameaça a todos, como se precisassem deles
se livrar para que a ofensa sobre o totem não implicasse punição a
todos os seus protegidos. O castigo é a morte ao homem e à
mulher envolvidos no ato; contudo, se conseguirem escapar da
perseguição, depois de certo tempo, podem ser perdoados e
reintegrados ao clã. Se a mulher foi coagida, ela não é morta, mas
espancada ou ferida com uma lança. Há, em todos os casos, uma
repulsa extrema à violação dessa lei.

Interessante notar que quando um homem de um clã


(canguru, por exemplo) se casar com uma mulher de outro clã
(emu; outro exemplo), os filhos, homens e mulheres, passam a ser
integrantes do clã materno, impossibilitando aos filhos homens
manterem relações incestuosas (com a mãe ou irmãs), por serem
todos do mesmo clã. Aliás, essa norma evita que um homem tenha
relações com todas as mulheres do mesmo clã, mesmo que não
tenham laços de parentesco entre eles, constituindo-se o laço
totêmico como impeditivo a todos os componentes do grupo.
Portanto, o laço do indivíduo com o grupo suplanta qualquer outro
nessa estrutura familiar expandida e sustentada por outras
convenções. Com isso, todas as mulheres e todos os homens
menos jovens são tidos por todos como mãe e pai, enquanto que
todos os mais jovens se entendem como irmãos e irmãs, ou seja,
os laços sociais predominam sobre os biológicos.

Não é possível precisar quando e como a estrutura social


totêmica se instaurou, mas se especula que teria sido um modo
não só de estabelecer uma maior coesão social e fortalecer o clã,
como também de firmar alguma normativa de conduta sexual em
grupos nos quais a liberdade sexual não se encontrava submetida a
restrições morais ou religiosas.

Há outros povos e tribos que possuem outras configurações


relacionais, onde, por exemplo, são realizados casamentos
grupais, com o que, homens e mulheres – de clãs distintos – assim
casados podem se relacionar uns com os outros, denotando outras
dinâmicas sociais e sexuais. Ainda assim, regras totêmicas
imperam, de modo que o incesto se mantém vigorosamente
vedado no que tange a filhos nascidos em tais conformações,
preservando-se a exogamia. Aliás, mesmo quanto a isso há outra
restrição, que consiste na consideração de uma subclasse
denominada fratria, o que limita mais a interação sexual mesmo
entre pessoas de clãs diversos, já que, pela quantidade histórica de
relações matrimoniais entre clãs específicos, convencionou-se um
modo para que isso se desse de forma mais sortida entre os
grupos totêmicos distintos, como ainda para ampliar a evitação
do incesto, já que a possibilidade dos laços frequentemente
estabelecidos favorecerem uma ligação familiar se torna mais
evidenciada.

Como se nota, há toda uma organização envolvendo clãs


diferentes com o mesmo intuito de impedir totalmente o incesto, o
que indica um verdadeiro horror ao mesmo. Isso pode ser visto
também em ilhas e povos próximos à Austrália, onde há tribos em
que o garoto, após atingir a puberdade, deixa a casa dos pais e se
muda a um local junto a outros, onde dorme e toma as refeições.
Ainda que possa visitar a sua casa de origem, se a irmã lá estiver,
ele não pode entrar. Se estiver outro irmão, a irmã tem de se
esconder. Não bastasse isso, também não pode pronunciar o nome
dela e nem se aproximar dela fora da casa, valendo igualmente esta
última regra para a irmã. A mãe, por sua vez, deixa de tratá-lo por
você, utilizando o meio mais formal de “senhor”, realçando a
ausência de intimidade. Restrições também são aplicadas para
primos, cunhados e pais/filhas em povos diversos, inclusive na
África, podendo atingir até mesmo sogros/genros/noras. O horror
ao incesto, em certos lugares, estende-se a animais domésticos.
Em síntese, ao elevar à condição de impedimento sagrado tais
contatos, reforça-se o distanciamento, e mesmo a hostilidade ou
desconfiança, com o que se busca combater qualquer forma de
ternura entre os envolvidos.

É possível perceber que há impulsos psíquicos em jogo,


acarretando conflitos internos e externos. Embora a hostilidade
seja culturalmente promovida, não é suficiente para evitar o
surgimento de bons afetos entre aqueles que se encontram em tais
relações. Isso ocasiona posturas ambivalentes, denotando a
presença de sentimentos e posições socialmente estabelecidos
de um lado, ao passo que, do outro, há empatias que podem
naturalmente surgir. Embates de poder são firmados nessas
circunstâncias, ainda que não suficientemente explicitados. É o
exemplo da mãe que reluta em perder a companhia e a atenção
amorosa da filha, tratando-a como sua posse, de modo que
desenvolve forte desconfiança quanto ao pretendente ou esposo
da mesma, levando-a a reforçar sua posição de dominante quanto
à vontade da filha tal como estava acostumada quando habitavam
juntas. De sua vez, o pretendente ou o marido da filha, como
amostra de seu poder, adota a resolução de não mais se submeter
à vontade alheia (de figuras parentais), também reagindo com
ciúmes às pessoas a quem, e antes, era dirigido o afeto de sua
esposa. A despeito disso, como a sogra evoca traços da mulher
com quem se uniu, pode haver uma simpatia oculta pela sogra,
que, na mesma toada, pode desenvolver igual ou similar
sentimento, ainda que barrado pelos parâmetros culturais.

Se houver, por parte da mãe, uma profunda empatia com a


filha, isso pode produzir um enamoramento do homem amado pela
mesma, o que pode ocasionar casos graves de adoecimento
neurótico em consequência da luta psíquica contra essa
disposição afetiva. Ora, se a mãe, no exemplo citado, encontrar-
se numa situação de insatisfação emocional, pode proteger-se
disso justamente pela intensa empatia ou identificação com os
filhos, tomando como suas as vivências emocionais deles. Por isso
é que pode haver uma significativa resistência quando percebida
a separação do(a) filho quando se envolvem com outras pessoas,
já que passa a detectar a possibilidade de eles ficarem ausentes
por longos períodos ou se mudarem para locais muito distantes por
conta de seus relacionamentos, fato que fará com que a mãe atue
contrariamente aos mesmos, inclusive, e até, pela via
transferencial, desenvolvendo afeto ao genro/nora como forma de
capturar os sentimentos dele/dela só para si, assim preservando o
amor dos filhos apenas para si. Em sentido inverso, o psiquismo
pode provocar o sadismo da mãe contra o genro/nora, atuando
com hostilidade para afastá-lo(la) de prole com quem se
identificou.

Proibições obsessivas implicam renúncias e limitações


de caráter autoimpositivas, assim podendo se expressar como
penitência, expiação, medida defensiva ou manias (limpeza, por
exemplo), tudo com o intuito de afastar ou purificar o sujeito do
contato com o tabu, resultando posturas evitativas.
Curiosamente, obsessivos, ao lidar com seus afetos
ambivalentes, tendem a adotar atitudes de exagero quanto a eles,
como se precisassem extrapolar as expressões emocionais de um
afeto para combater o outro que lhe é contrário.
Outra característica típica do neurótico obsessivo é a
projeção de sua hostilidade a algo ou a alguém de seu ambiente
externo. Aliás, figuras demoníacas, tão presentes em civilizações
e povos do passado como nos atuais, exprimem bem esse aspecto.
Por intermédio da projeção, desloca-se para fora afetos que o
sujeito encontra dificuldades em admitir a existência em si mesmo,
conferindo uma espécie de justificativa à ira e à agressividade
que o habitam. Entretanto, é bom salientar que a projeção pode
acontecer como simples meio de conferir sentido às percepções
da realidade, adequando-as àquilo que a pessoa experimenta em
seu mundo interno, denotando que a projeção não se prende à
mera defesa psíquica.
Os neuróticos mantêm ainda uma relação difícil com a
morte. Ao lembrar-lhes de sua fragilidade e da imprevisibilidade
do viver, a morte é temida a ponto de serem criadas diversificadas
fantasias para apaziguar o medo e a angústia que evoca. Não
bastasse isso, neuróticos obsessivos podem tender à
autorrecriminação quando do falecimento de um ente querido,
atormentando-se por crerem lhes ter diso possível evitar o óbito e,
por conseguinte, a dor que lhes acomete. Nisso também se
assemelham os neuróticos à cultura do tabu, dada a similitude de
percepção observada em povos de eras mais distantes. E se para
esses povos a construção de figuras demoníacas adquiriram
consistência e força ao passar do tempo, igual circunstância se
verifica entre os obsessivos de hoje, onde demônios são igualmente
configurados como meios a justificar os seus mais profundos e
secretos receios, bem como para tentar explicar a agressividade e
o ódio que, como humanos, costumam sentir, atribuindo-se a tais
construtos culturais a influência e a origem desses sentimentos.

O tabu, então, reflete essa dinâmica psíquica


ambivalente presente em pessoas das mais diversas culturas e
épocas. Ambiguidades emocionais, onde querer e não poder
querer encontravam-se em curso, não só deram gênese a tabus,
mas, e ainda, à própria consciência moral desenvolvida em tais
povos. Assim, havendo tabu, de um lado, e a moralidade, de outro,
teve-se como efeito a culpa advinda da transgressão ao tabu, daí
a imponente presença da culpa – e do medo – ligada à violação do
tabu, do que a consciência moral passou a ressoar em suas
construções sociais.

O problema da consciência assim formada é que ela se


impõe, sob a influência do tabu e sob a égide da “verdade”,
buscando conferir ares racionais ao pensamento e às práticas
nele fundamentados. Essa consciência reforça e valida a rejeição
a determinados desejos que passam a se inserir no âmbito do tabu.
Fundamentações mais acuradas tornam-se desnecessárias porque
a referida consciência moral coloca-se num patamar onde a
minuciosa reflexão se revela dispensável, bastando a percepção
do que se estipulou como “verdade” em relação aos males que o
tabu representa. Há, todavia, em razão da ambivalência abordada,
neuróticos que se situam na outra extremidade, ou seja, ao invés
de condenar o outro, julgam e condenam a si mesmos, sentindo-se
responsáveis ou corresponsáveis por qualquer violação ao tabu,
mesmo quando isso tenha se dado tão apenas no âmbito
imaginário, vez que o tabu adquire para obsessivos o caráter
mandamental inflexível e inquestionável, a ponto de muitos
obsessivos não viverem, apenas obedecerem a tais comandos.

Por conseguinte, a culpa emerge com enorme impacto a


quem se sente o tempo todo prestes a violar os mandamentos
assim constituídos, intensificando a ansiedade e o temor, o que
demandará um acirramento da vigilância sobre si mesmo e o que
se encontra ao seu redor. Se a crença do obsessivo for o seu
principal referencial, ela agirá para dominar e reprimir qualquer
resquício que possa equivaler ao desejo que ferozmente mantém
recalcado. Daí a imprescindibilidade de detectar a origem da
penosa consciência de culpa dos neuróticos obsessivos a fim de
dar curso a um processo clínico capaz de aplacar seus sintomas e
sofrimentos. Para tanto, importante lembrar que desejos
reprimidos transformam a libido em angústia, a qual, de certo
modo, precisa ser mantida como alerta permanente dos riscos
quanto a eventuais desprezos acerca das proibições
autoimpostas.

Não se proibe, logicamente, aquilo que pessoa alguma


deseja fazer, mas tão só o que muitos, senão todos, desejam
concretizar. Sendo assim, a grande presença de tabus
relacionados ao incesto, dentre outros aspectos da vida
estruturada em grupos sociais, remeter à existência de algum
ímpeto dessa ordem. Ora, se se tratasse de uma singela cogitação,
uma hipótese apenas, a vedação far-se-ia supérflua, caindo no
esquecimento; porém, não é isso que se nota nos estudos sobre
diversos grupos humanos. Por conseguinte, chega-se à conclusão
de que tabu, neurose e consciência moral encontram-se
interligados e assim permanecerão enquanto não for possível uma
ação analítica acerca dos mesmos em benefício de cada indivíduo
e grupo social.

Realçando a constatação de que onde existe uma


proibição se esconde um desejo reprimido que causa horror ao
sujeito, é de bom alvitre anunciar a tese de que os processos
psíquicos inconscientes sobredeterminam muito do que a
consciência de uma pessoa ou de um grupo de pessoas
estabelece como proibição. Ademais, tal como se dá na formação
de sonhos, uma certa vedação pode ser fruto de um
deslocamento, o que explicaria uma série de tabus que, à primeira
vista, parecem desprovidos de qualquer sensatez e praticidade
(vide o exemplo hebraico antigo de não só deixar de cortar a barba,
como ainda de fazê-la crescer com duas pontas).

Embora não mais se fale nos mesmos moldes tabus que


dantes, o que passou a ser construído na cultura como regras de
moralidade, com os seus respectivos imperativos e proibições,
pode ser entendido como efeito de características psíquicas
marcadamente obsessivas, isto é, neuróticas. Ora, como a lógica
do tabu foi hodiernamente assimilada por variadas instituições
sociais, processos neuróticos adquiriram caráter oficial e
legitimado.

O pensamento obsessivo é povoado por “monstros”


sempre à espreita. Nessa seara, caso haja a transgressão de
alguma regra moral, seja imposta por alguma instituição
referencial para o sujeito, seja autoimposta, os processos de
defesa do psiquismo podem atuar em sua percepção a ponto de
acreditar até mesmo na possibilidade, para ele evidente, de alguém
que lhe é próximo ser atingido pelo castigo da violação por aquele
perpetrado, fato que opera por deslocamento do desejo
inconsciente de punir quem se ama por algum prejuízo que
ocasionou ao sujeito, para o medo de que isso venha lhe ocorrer.

Se para os povos circunscritos pelo tabu a punição


sustentada no sistema de crenças em vigor poderia se estender a
toda comunidade, do que se esforçavam para evitar o contágio
(infecção) do mau exemplo dado pelo violador, inclusive dando vez
aos seus próprios ímpetos quando da aplicação de atos punitivos,
para os povos atuais é comum vislumbrar idêntico sistema de
castigos, mas, e agora, pautado na racionalização da vingança
por vias legalizadas, como é o caso da pena de morte ainda
aplicada em diversas nações tidas como civilizadas. Ademais, na
raiz da proibição encontra-se certo impulso inconsciente, não
admitido ou reconhecido em vigília, sinalizando alguma
possibilidade de o sujeito desejar e vivenciar aquilo que passou a se
constituir como impeditivo social. Então, quanto mais reforça o seu
posicionamento contrário a determinado aspecto da vida humana
que adquiriu contornos de tabu, mais a pessoa revela que está nela
operando um processo psíquico de contradesejo, justamente para
manter sob controle, ou em negação, um desejo reprimido
relacionado à vedação que defende com imenso ardor.

Voltando à situação de morte de determinada pessoa,


inclusive amada, o sujeito pode ter desejado isso à mesma por
conta de algum atrito mais sério havido entre ambos em
determinado momento do relacionamento, tendo este afeto sido
reprimido e assim se encontrando no inconsciente, sendo que, se
a pessoa posteriormente falecer ou correr o risco de isso se
efetivar, o sujeito do inconsciente passa a adotar posturas
inesperadamente desproprocionais ao fato, seja pela dedicação
extremada ao moribundo, seja por lamentações desmesuradas e
luto infindável em caso de sua morte. Portanto, o processo
neurótico em curso, ao se revelar altamente altruísta, costuma
sinalizar um modo de compensação de sentimento atitude oposta
(de repúdio ou ódio) ao outro, do que se infere que impulsos
sociais possuem estreitos vínculos com as pulsões fundamentais
de seus membros, evidenciando-se, assim, a institucionalização
da neurose.

Levando em conta que as forças atuantes na neurose têm


origem sexual, as proibições relacionadas a certas modalidades
de contato sexual (consensual) apontam para a repressão que
sustenta tais restrições, afinal, pulsões sexuais recalcadas
acabam sendo deslocadas para o seu contrário em face de tais
processos neuróticos. Assim, para negar a existência dessas
tendências pulsionais, o sujeito se sente impelido e obrigado a se
opor veementemente àqueles que dão livre fruição a impulsos
dessa ordem. Por efeito, quanto maior a ênfase na negação de
determinado prazer sexual, maior é a força atuante no sujeito para
reprimir o desejo relacionado a essa experiência.

Nesse âmbito social, pode-se até mesmo arriscar a


afirmação de que a histeria é a caricatura de uma obra de arte
(cênica); a neurose obsessiva, de uma religião; o delírio
paranoico, de algum sistema filosófico de pensamento estanque.
A expansão para o social das neuroses individuais, ao mesmo
tempo em que produz deformações das respectivas construções
coletivas, delas também se retroalimentam, criando-se um ciclo
neurótico interminável e cada vez mais restritivo. Uma cultura
assim constituída, apesar de negar suas bases neuróticas, passa a
naturalizar o psicopatológico, adotando-o como padrão. Com
isso, a natureza antissocial da neurose, que se alicerça na fuga da
realidade insatisfatória, ocasiona o surgimento de construtos
sociais calcados em idealizações e fantasias. Ocorre que, ao dar
costas à própria humanidade, o sujeito mantém-se cada vez mais
afastado da realidade da vida, em geral, e de sua identidade
desejante, em particular.

III. ANIMISMO, MAGIA E ONIPOTÊNCIA DOS PENSAMENTOS


Animismo diz respeito a crenças relacionadas a espíritos, os
quais podem se referir não só a pessoas como a outros seres (rios,
árvores, animais etc.), inclusive inanimados (pedras, montanhas
etc.). O mundo anímico é povoados por bons e maus espíritos,
sendo a eles atribuída a capacidade de conferir bênçãos ou
malefícios. As almas dos humanos podem migrar, após a morte,
para outros seres, tendo por premissa fundamental a imortalidade
da alma. Interessante aqui notar a tendência natural presente em
cada indivíduo de atribuir às pessoas e a outros seres
características que ela possui, denotando sua dificuldade em
compreender e aceitar as muitas diferenças entre todos, com o
que se evita o enigma do estranhamento e se mantém na
familiaridade a que está habituado, sentindo-se, assim, mais
confortável e menos desafiado por inúmeras incertezas do viver.
O animismo é uma importante fonte inspiradora de mitos, por onde
se procurou conferir respostas e explicações a uma série de
questões cosmológicas, como também de, ao estabelecer
sentidos e significados, apaziguar a angústia diante do
desconhecido, firmando previsibilidades, ainda que ilusórias. A
isso se acresce o desejo de deter controle sobre as circunstâncias
do viver, envolvendo pessoas, fenômenos naturais e sobrenaturais.
Nessa seara é que surgiram concepções e práticas relacionadas à
magia (aquisição e desenvolvimento de poderes especiais) e à
feitiçaria (conjuração, influência e controle sobre espíritos).

O pensamento mágico, ao trazer consigo a ideia e a crença


quanto à utilização de poderes capazes de tornar reais os desejos
e as vontades dos que dele se valem, expandiu-se e sofisticou-se
com o passar do tempo, mantendo-se até os dias atuais sob
variadas formatações. Cerimônias dessa ordem também se
difundiram, por cujo intermédio se tentou produzir uma similitude
simbólica entre o ato nelas realizado e o evento esperado por seu
intermédio.

Um cerimonial comum identificado em determinados povos é


o canibalismo. Essa prática tem por intento a aquisição de forças
e atributos do inimigo morto ou das características de determinadas
partes de seu corpo, estabelecendo uma modalidade de vínculo
mágico do qual se apodera o devorador. Desse jeito, por conta da
associação de ideias bem consubstanciadas em crenças
compartilhadas por membros de um grupo, o sujeito não
desenvolve culpa, arrependimento ou remorso, mas sim
sensações que o fortalecem. Desse modo, o pensamento
mágico e a sua respectiva cultura fomenta meios pelos quais o
psiquismo da pessoa passa a naturalizar e justificar os seus atos,
situação que concede significativo empoderamento e fruição aos
seus desejos, dado o respaldo social que os abarca.

Desejos podem obter satisfação também por vias


alucionatórias capazes de produzir a referida sensação, inclusive
mediante excitações de órgãos sensoriais (alucinações motoras),
o que pode ser denominado de representação imitativa, o que se
observa, por exemplo, em brincadeiras infantis. Com o tempo, o
desejo impele a vontade (impulso motor), de modo que a
experiência sensorial antes obtida pela via mágica
(representacional) pode se estender a algo típico da realidade
objetiva, isto é, processa-se um deslocamento para a ação, já que
superpotencializadas as condições para a sua concretude, ainda
que, aparentemente, seja entendido como efeito da crença mágica,
fato que a robustece ainda mais. Sintetizando, o modo animista é
calcado na onipotência do pensamento do crente, o que a
assemelha à neurose obsessiva, onde a expectativa
supersticiosa é marca comumente presente, embora não exclusiva
desse tipo de neurose.

Nos neuróticos, o elemento decisivo na formação dos


sintomas é a realidade do pensar, não a do viver. Por isso é que
aquilo que pensam e imaginam adquirem intensidade a ponto de o
afeto disso decorrente não se importar com aspectos da realidade
objetiva que o sustente. Por exemplo: os histéricos, em seus
ataques, repetem vivências que se deram preponderandemente em
suas fantasias, denotando que se encontram ali fixados de foma
sintomatológica.

A culpa que marca os neuróticos não precisa, assim, estar


relacionada a algo concretamente vivenciado. Isso pode ser
constatado em neuróticos obsessivos que são oprimidos por sua
consciência de culpa que extrapola em muito atos, omissões,
pensamentos ou emoções que deram gênese à mesma. Em
acréscimo, como o excesso os habita, quaisquer pequenos afetos
ou atitudes bastam para que se sintam assim, inclusive quanto à
raiva e agressividade, acompanhadas que são de algum desejo
de aniquilação de quem as provocou. Como resultado desses
peculiares processos psíquicos em que os pensamentos se
impõem de forma onipotente e superestimada, a vida emocional
do neurótico depende menos de atos e fatos do que de sua
percepção subjetiva.

Clinicamente, quando a ação analítica permite aceder ao


consciente certos conteúdos inconscientes, o neurótico pode se
dar conta de que seus pensamentos não são tão livres e
verdadeiros como acreditava, apesar de que, nesse percurso,
apresentará forte resistência quanto à expressão de desejos tidos
por ele como maus e errados, já que tende a concluir que se os
exprimir, eles poderão ser concretizados em seu prejuízo ou de
outrem. Ora, vislumbra-se com isso o quanto essa modalidade de
pensar se aproxima da maneira de civilizações mais antigas que
tiveram por cerne o tabu e a magia.

Muitas neuroses são acompanhadas de expectativas de


desgraças que poderiam afetar o sujeito e/ou o seu entorno, quiçá
o mundo como um todo. Esse aspecto faz com que um grande
número de neuróticos se valham de crenças de caráter
absolutista como meio de afugentar o medo, algo, portanto,
similar a feitiços e a contrafeitiços de povos de eras passadas.
Assim se portam também quanto ao medo da morte que lhes
apavora, o que pode facilmente ser deformado e deslocado para
variadas e mínimas coisas. Fórmulas mágicas, então, são usadas
como protetoras e afugentadoras dos males e da morte,
direcionando o curso de ações obsessivas, as quais podem até se
voltar contra a sexualidade individual ou geral, vez que, pautadas
que são pela sobrenaturalidade, distanciam o sujeito de sua
dimensão corpórea, quase que o fixando no que lhe seria sua
parte espiritual, do que são fomentados recalques e renúncias
sexuais, como se houvesse a necessidade de se achar puro para
rebater o mal, no qual são incluídos os “maus desejos”, cujo
mecanismo igualmente se assemelha à cultura do totem e do
tabu.
Iniciada pela fase animista, onde as pessoas se acreditavam
dotadas de capacidades mágicas para intervir no mundo,
passando pela fase religiosa, quando esse poder foi transferido a
deidades, embora mantida a possibilidade de influenciá-las, até
chegar à fase científica, na qual se passou a ser mais frequente o
reconhecimento da própria pequenez e o conhecimento sobre os
processos naturais, mas e sobre os quais intenta prever e
controlar pela técnica, a fé em algum tipo de onipotência persiste
na humanidade, como se tratasse de alguma necessidade
psíquica para evitar um colapso diante da realidade.

A citada onipotência também é fortalecida pelo narcisismo.


Para entender essa situação, é bom lembrar que, primeiro, cada
componente pulsional da sexualidade atua para a obtenção de
prazer pela via do próprio corpo do sujeito (autoerotismo); depois,
num novo momento, processa-se a escolha de objeto para essa
satisfação. Acontece que, entre um e outro estágio, pode haver um
intermediário no qual as pulsões sexuais difusas daquele primeiro
se aglutinam no eu, que se torna, por isso, objeto de investimento
das forças pulsionais, o que pode se der de forma fixada, e,
assim, de caráter patológico, que é justamente o que caracteriza o
referido narcisismo, fazendo com que a pessoa se sinta enamorada
de si mesma, já que revestida da condição de objeto do próprio
desejo. E ainda que isso possa ser modificado mediante o
reinvestimento libidinal em objeto externo, fatores narcísicos se
manterão em alguma medida, fazendo com que emanações da
libido permaneçam aderidas ao eu, ainda que ocasionalmente se
destinem a algum outro objeto, situação que cria condições para
retorno ao eu. É nesse âmbito que as psicoses são desenvolvidas.
Se antes, então, se falou em onipotência por conta de
pensamentos advindos de percepções e crenças mágicas, com
a introdução do narcisismo é agora possível afirmar que a
superestimação do sujeito pode ser descrita como ato psíquico
comum a “primitivos” e neuróticos, mas com uma diferença
importante: naqueles, o pensamento era, em grande medida,
sexualizado em face do poder que atribuíam aos seus desejos;
nestes, mesmo que elementos “primitivos” sejam ainda
identificados, a repressão sexual ocasiona uma sexualização dos
próprios processos de pensamento, o qual é superinvestido de
libido, dando vez ao narcisismo intelectual.

Poder-se-á, então, reformular os estágios anteriormente


descritos, pontuando a correspondência da fase animista ao
narcisismo; a fase religiosa, à eleição do objeto, donde sobressai
a ligação aos pais; e a fase científica, ao adulto que atingiu
suficiente amadurecimento para renunciar à emergência do
princípio do prazer a fim de buscá-lo no mundo exterior em
consonância à realidade. Nesse passo, para Freud, a onipotência
dos pensamentos apenas poderia subsistir pela via da cultura e
mediante as artes, pelas quais as pessoas podem se sentir
consumidas pelo desejo de algo que lhes transcende, mas cuja
experimentação sensorial lhes permitiria obter satisfação tal
como se cuidasse de algo real.

Tecidas essas considerações, fica claro discernir que a


concepção animista do mundo era de teor psicológico, onde as
percepções dos fenômenos naturais operava em conformidade às
características da subjetividade humana e da cultura de cada
grupo, promovendo um deslocamento das relações estruturais
da psique para o mundo ao seu redor, disso resultando o
pensamento mágico e a sua intenção de impor às coisas reais os
mesmos processos operacionais do psiquismo. Mas, se no mundo
antes habitado pela magia, toda a onipotência era dispensada aos
pensamentos, com o animismo surgiu a particularidade de ceder
parte dela aos espíritos, favorecendo, com o tempo, o
estabelecimento de religiões, povoadas por deidades, espíritos e
demônios, que nada mais seriam do que projeções das próprias
emoções e sentimentos dos seres humanos, fato que lhes traz
algum tipo de alívio, motivação, esperança e sentido.

Interessante notar que a paranoia se utiliza frequentemente


do mecanismo de projeção para dar conta de conflitos presentes
no psiquismo do sujeito, inclusive quando impulsos distintos
aspiram à condição de onipotência, a qual, todavia, não pode ser
conferida a todos. A diferença aqui é que, nos neuróticos, é
possível uma alternância entre estados conscientes e
inconscientes, mantida a possibilidade de retorno aos primeiros
após a manifestação dos últimos, enquanto que, em casos
psicóticos, esse retorno não mais se sucede.

O conflito decorrente da ambivalência de afetos operando


no psiquismo do sujeito faz com que sintomas sejam produzidos
retratando os ferrenhos embates entre o desejo e a defesa na
esfera inconsciente. O sintoma é, assim, uma expressão de
fantasias e reminescências atuando na pessoa, mas barradas
pela resistência e censura de caráter recalcador, assim se dando
mediante paralisias de movimentos ou de fala, cegueira e tantos
outros meios imobilizantes. Todavia, não são os sintomas o que
mais importa ou que precisa ser inicial ou diretamente sanado, mas
os processos psíquicos que lhes originaram e ainda lhes
conferem sustentação, ou, em outras palavras, os determinantes
ocultos em continuada operação inconsciente. E como isso se
deve às peculiaridades de cada pessoa, sempre haverão
especificidades que hão de marcar as formas variadas pelas quais
os quadros sintomatológicos se instauram e desenvolvem.

No plano social estudado, partindo do animismo, o que se


observa é a geração de múltiplos sintomas de matriz neurótica
que tiveram gênese em face de uma série de proibições ou
ameaças de punições advindas desde a crença totêmica, fato
que, aliás, se manteve e até se ampliou com o surgimento de novas
expressões culturais e religiosas que se seguiram ao animismo,
cujo condicionamento do pensar, sentir e agir a padrões rígida e
universalmente estabelecidos, legitimadas por uma autoridade
política ou religiosa, criaram condições favoráveis à manutenção e à
expansão de normas repressoras aos desejos e hábitos naturais
dos indivíduos. Ainda que hodiernamente racionalizadas, as
práticas ainda se inserem num âmbito mágico e sobrenatural
típico do animismo.

IV. O RETORNO DO TOTEMISMO NA INFÂNCIA

A lembrança do primeiro grande ato sacrificial tornou-se


indestrutível. Se o pai da horda primeva adquiriu o status de deus
com o tempo, essa conexão se firmou na sociedade, favorecida
pelas autoridades religiosas que assim passaram a interpretá-lo e
ensiná-lo. Tal fato trouxe por efeito uma ampliação do sentimento
de culpa pelo parricídio original, que passou a se constituir um
pecado que a todos alcançava, sendo preciso um ato expiatório
por excelência para apagar a mácula do crime cometido pelos filhos
daquele pai, que, por serem da mesma família que os demais
membros do clã, demandava uma redenção grupal. Logo, aquela
rebelião primeira consubstanciada no descumprimento e a
desobediência às leis impostas pelo grande pai passou a ser
entendida como ato transgeracional, precisando todos de uma
salvação, ainda mais porque a culpa se intensificou pela
consciência ante às menores violações das muitas normas
religiosas que se criaram para o cerceamento de todo tipo de
impulso que irrompesse nas pessoas e que fosse relacionado a
alguma ofensa ao deus, sobretudo os de natureza sexual. Em
suma: repressão social e recalque pessoal retroalimentaram-se
por ideários culturais definidos como provindos da vontade divina.

Ainda que a dinâmica da vida social tenha sofrido


modificações em decorrência de diversos processos históricos, as
condições para o reacionarismo ao modelo hegemônico de pensar
estavam suficientemente consolidadas para rebaterem quaisquer
mudanças na estrutura rígida que se conformou por causa da
culpa, da vergonha e do medo, já que o psiquismo da imensa
maioria das pessoas estava subjugado a constantes influências
condicionadoras que limitavam o viver e o desejar do sujeito em
seus mais variados aspectos.

E como os filhos do deus-pai foram os primeiros culpados


pelo parricídio, apenas um filho revestido da capacidade de
reparação seria capaz de conferir redenção. Entretanto, esse filho
tão esperado e profetizado por gerações deveria ter atributos que o
aproximassem ou mesmo o igualassem ao deus, necessitando,
portanto, estar dotado de características únicas e especialíssimas,
unindo componentes humanos e divinos. A mitologia a isso se
prestou com lendários personagens como Adônis e Átis, por
exemplo, alguns dos quais tinha o seu caráter humano-divino
marcado pelo episódio de retornar à vida depois de morto,
envolvendo prantos pelo óbito sacrificial e intensas alegrias pela
ressurreição, insígnia da vitória sobre o destino mortífero.

Nesse passo, se Mitra, para os persas, foi exemplo de igual


façanha ao abater um touro (animal sacrificial), do que
proporcionou aos irmãos de seu povo a redenção, livrando-os da
opressiva culpa pelo ato por ele realizado, para um grupo de
discípulos judeus, Jesus trouxe a salvação mediante o sacrifício da
própria vida, permitindo que os demais seus irmãos fossem
igualmente libertados do pecado original, que passaram a
reconhecê-lo como o “Cordeiro de Deus”.

A concepção de pecado original originou-se nos mistérios


órficos, da qual os gregos se apropriaram conforme pode ser lido
em sua mitologia (homens descendentes de Titãs que mataram
Dioniso Zagreu, cujo crime os oprimia) e filosofia (Anaximandro
contava que a unidade do mundo fora quebrada por um crime
primordial do qual a humanidade tinha de suportar o castigo que
se dava mediante as sofrimentos que ocorriam). Vale destacar que
tanto Dioniso quanto Orfeu eram divindades juvenis que se
tornaram vítimas de assassinatos.

Dar a vida em nome de todos apenas dispunha de valor, na


ótica da antiguidade, se isso trouxesse benefícios a cada um, caso
contrário teria se tratado de uma morte em vão, ainda que revestida
de heroísmo. Além disso, na perspectiva judaica, onde a lei do
talião ainda exercia influência, uma vida precisaria ser ofertada em
nome de outra que foi tirada, do que se infere que o crime teria sido
precisamente contra a figura de deus-pai, que, então, clamaria por
um sacrifício para reparação da culpa por todos sentida e que
estaria relacionada ao seu homicídio. Dada uma vida por outra, a
expiação realizada forneceria a almejada reconciliação com deus-
pai.

Não tendo esposas, o Cordeiro a isso também teria


renunciado em sinal expiatório; contudo, por intermédio do seu
ato, alcançou algo maior e mais amplo, tornando-se deus como o
pai, de quem passou a sentar ao lado, em igualdade de poder e
honra. Dessa feita, a religião que se estabeleceu ao redor da figura
de deus-pai transformou-se em nova crença, agora também
centrada na figura de deus-filho. E como sinal ritualístico do
episódio salvífico, a carne e o sangue ofertados pelo redentor
passaram a ser comungados em celebrações solenes e festivas
pelos novos crentes, propiciando-lhes santificação mediante a
identificação com o “Cordeiro de Deus”, o que foi absorvido com
similar valor sacramental do que antes havia. Disso tudo é possível
concluir que elementos do totemismo continuaram bastante
presentes em religiões posteriores que, com o tempo, se
universalizaram.

Do mito de Orfeu, depreende-se que o heroi teria de sofrer


para que o seu destino trágico se revestisse de sentido. Assim, o
temerário empreendimento do protagonista, por ter se rebelado
contra a autoridade humana que se impunha como se divina fosse,
fez com que a culpa que lhe era atribuída por conta disso, mas que
também era dirigida àqueles que igualmente se sentiam
injustiçados pela mesma razão, experimentassem purgação e
alcançassem alento e esperanças. O coro da peça acompanha o
heroi em sua jornada, entoando lamentos à história de Orfeu com
quem se identificam, de modo que ele se torna uma espécie de
salvador do coro (do grupo de irmãos).

Em síntese, todas essas considerações permitem perceber o


quanto o complexo de Édipo tem efeitos intra e intersubjetivo,
sobretudo pelo fato de elementos da cultura (arte, religião,
moralidade, organização social) refletirem a tragédia humana
experimentada em tal fase edípica, que se constitui núcleo de
neuroses (pessoais e sociais). Ademais, revelou-se de notável
importância perceber como a figura do pai está relacionada a
conflitos psíquicos internos que são projetados na sociedade,
principalmente por conta da ambivalência de afetos que lhe dizem
respeito, bem como o quanto de culpa se faz presente no
psiquismo das massas, que se sentem impelidas, então, a se
articular em prol de alguma reparação, para o que criam múltiplas
organizações sociais que realçam a autoridade do (deus-) pai e
que conferem a sensação de lei e ordem que lhes se torna
imprescindível, situação que é transmitida de geração a geração,
ainda que sob novas formatações, mas sempre conservando igual
disposição psíquica.

E como os processos repressivos ou recalcadores impostos


não conseguem extinguir ou anular por completo e em definitivo os
impulsos humanos contra os quais lutam, elementos residuais,
deformados pela resistência e censura, dão gênese a impulsos
substitutivos que se deslocam para outros objetos. À psicanálise,
por sua vez, cabe a tarefa de identificar, interpretar e desfazer as
deformações que o psiquismo de cada analisando operou para lidar
com a angústia advinda da ambivalência dos afetos
anteriormente tratada, descondicionando o sujeito de sua herança
afetiva calcada primordialmente na culpa, que é um sentimento
corriqueiro aos neuróticos, gerando-lhes a necessidade de
reproduzirem e criarem novas regramentos morais a fim de
cercear seus impulsos e funcionarem como penitência a crimes
que presumem ter cometido e dos quais anseiam por expiação e
salvação. Isso é constatado desde o animismo e totemismo até
às crenças das civilizações contemporâneas, independentemente
de se relacionarem a realidades psíquicas e não factuais, que se
trata de marca característica das neuroses, já que realizam uma
superestimação extraordinária de seus atos psíquicos
(pensamentos; crenças e expectativas) em detrimento do que se
pode chamar de “realidade objetiva”. Isso porque as ideias e
crenças neuróticas atribuem a desejos e impulsos o mesmo valor
que a atos, de maneira que o recalque passa a operar por todas as
vias possíveis, constituindo uma obsessão de cunho controlador e
moralista.

Entretanto, não se cuida exclusivamente de aspectos


psíquicos e próprios de cada sujeito que dão vez a tais neuroses,
já que condições históricas também exercem poderosa influência
para a sua formação e desenvolvimento. Na infância, impulsos
variados, inclusos de natureza perversa, foram sentidos, e em
muitas ocasiões vivenciados, até que ações repressoras se
impuseram contra os mesmos. O indivíduo excessivamente moral
já foi alguém que experienciou situações anteriores do viver nas
quais traços de perversão tiveram a ocasião de se exprimirem com
maior liberdade. Tomado posteriormente de culpa e vergonha,
reage expiatoriamente àquilo que antes se permitiu não apenas
mediante a repressão de seus próprios impulsos, mas de toda a
sociedade. Quanto mais clama pela ordem e por controle social,
defendendo severas punições a violações às normas morais,
tanto mais isso expressa a robustez do processo repressivo em
curso em sua interioridade.

Há, porém, uma significativa distinção entre os neuróticos


modernos, chamados de civilizados, daqueles da antiguidade,
chamados de “primitivos”: o neurótico contemporâneo é inibido no
agir, de modo que o seu pensar sempre atua mais enfaticamente
que o fazer; o “primitivo” não era inibido, o que permitia que o seu
pensamento se convertesse mais facilmente em ato, do que, ao
reverso do primeiro, substituiria o pensar, podendo disso concluir
que, no começo, havia e imperava o ato.

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