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PRO

OPINIÃO & ANÁLISE

PANDEMIA

Levando a economia a sério:


o problema do álcool em gel
O problema é consequência do controle de preços,
promovido pelo governo sob as ameaças dos órgãos
de proteção ao consumidor

LEVY BRAVO

03/04/2020 09:37

Crédito: Pixabay

Em texto publicado no JOTA, três teses


foram defendidas, quais sejam: a de que o
consumo desenfreado do álcool em gel
geraria um problema de tragédia dos
comuns; a de que o teorema de Coase
poderia ser aplicado de forma a se buscar
soluções consensuais à escassez; a de
que, além das medidas de controle de
preço e de controle de vendas, as soluções
consensuais deveriam ser implementadas
– embora não haja indicações de quais
soluções consensuais seriam essas.

O texto apresenta um mau entendimento


dos conceitos econômicos utilizados, além
de um problema clássico de cherry-picking
econômico, típico de muitos textos
jurídicos que se aventuram nessa
temática: utiliza apenas a parte da teoria
econômica que interessa para defender a
proposta dos autores, deixando de lado
partes muito mais fundamentais. Tentarei
demonstrar esses equívocos e problemas,
e propor soluções para o problema de
escassez que estejam de acordo com o
raciocínio econômico.

Primeiramente, é preciso compreender em


que condições surge um problema de
tragédia dos comuns. Uma das condições
necessárias é a presença de um recurso
comum, que, por deVnição, é bem não-
excludente e rival: não-excludente signiVca
que eu não posso impedir que outra
pessoa utilize esse bem, e rival signiVca
que o fato de uma pessoa utilizar esse
bem diVculta ou impede utilização do
mesmo bem por outra pessoa.

Um exemplo de recurso comum seriam os


peixes de um lago sem dono: eu não
posso impedir que outras pessoas
pesquem neste lago, porém cada peixe
que eu pego é um peixe a menos que
outras pessoas podem pegar. A
consequência dessa situação é que os
custos sociais marginais de cada peixe
pescado não são completamente
interiorizados pelos agentes econômicos,
e, por isso, existe uma tendência de
sobreutilização do recurso até que ele se
esgote.

No texto citado, os autores defendem que


o recurso comum em questão é a saúde
pública: o consumo desenfreado de álcool
em gel causaria uma externalidade
negativa sobre a saúde de todos, na
medida em que várias pessoas não teriam
acesso ao produto e, assim, maior chance
de se contaminarem e de transmitir o vírus
– até para aquelas que possuem o
produto.

Trata-se de uma grande forçação de barra:


a saúde pública está muito mais próxima
de um bem público do que de um recurso
comum, aVnal, não é um bem rival, já que
ter uma boa saúde não afeta
negativamente a saúde dos outros. Com
efeito, trata-se de um bem não-rival e não-
excludente, como a segurança nacional,
iluminação pública, conhecimento, etc.

No caso de bens públicos, todos os


agentes econômicos consomem
forçosamente a mesma quantidade desse
bem, de modo que a externalidade
negativa do consumo de álcool em gel já é
considerada pelo consumidor. AVnal, este
sabe que seu consumo afetará o nível de
saúde pública que todos terão que
“consumir”, inclusive ele próprio. Eventuais
ineVciências podem surgir devido a
preferências distintas e assimetria de
informações, mas trata-se de um
problema distinto de falha de mercado.

Na verdade, o problema de
escassez do álcool em gel
é um problema muito mais
conhecido e fundamental
em economia: é
consequência direta do
controle de preços,
promovido pelo governo
sob as ameaças dos
órgãos de proteção ao
consumidor[1].

Todo preço re]ete os custos de


oportunidade de um bem, que,
grosseiramente falando, é tudo aquilo do
qual se está abrindo mão para consumi-lo.
Se há uma mudança brusca nas
preferências individuais e as pessoas
passam a demandar mais álcool em gel, é
natural que o preço aumente em um
primeiro momento, já que houve um
aumento da escassez relativa desse
produto, e, portanto, dos custos de
oportunidade do seu consumo.

A elevação dos preços tem dois efeitos


positivos: primeiro, faz com que cada
consumidor interiorize corretamente o
custo social de se consumir uma unidade
adicional de álcool em gel. Se os preços
estão congelados, o custo enfrentado pelo
indivíduo é menor do que o custo social,
fazendo com que ele consuma mais do
que a quantidade socialmente ótima[2]. O
resultado são as prateleiras vazias: alguns
com muitas unidades, outros com nada.
Houvesse livre aumento do preço, o
consumidor pensaria duas vezes antes de
comprar uma unidade adicional, e haveria
mais álcool em gel disponível já no curto
prazo.

Segundo, o aumento do preço gera


incentivos ao aumento da produção.
Imagine que o produtor vende o seu
produto a $5, e tem uma margem de lucro
de $1. Se de repente o preço da unidade
sobe para $20, sua margem de lucro sobe
para $16. Não só ele terá interesse em
aumentar a produção e conseguir um
volume maior de lucro, como outros
produtores entrarão no mercado, de olho
no lucro exorbitante.

Contudo, se o preço estiver congelado em


$5, o produtor não conseguirá aumentar
sua produção, pois para isso teria que
incorrer em um custo com novas
máquinas e novos empregados, que não
são cobertos com o lucro marginal de $1.
Tampouco outros produtores vão querer
se arriscar no mercado de produção desse
bem. A produção continua abaixo da
demanda e a escassez persiste.

Frequentemente usa-se como argumento


contra o aumento de preços o fato de que
os pobres seriam excluídos de comprar o
produto. Em relação a esse argumento,
cabe a pergunta: com prateleiras vazias,
algum pobre conseguirá comprar? O
aumento dos preços e o consequente
incentivo à produção faz com que mais
quantidades do produto sejam ofertadas, o
que por sua vez diminui o preço do
produto no longo prazo, igualando-o a um
valor próximo dos custos de produção –
quando isto ocorre, temos um novo
equilíbrio de mercado. Isso demora tempo,
é claro, mas voltaremos a esse tópico.

Ainda nesta esteira, as pessoas que


acabaram com os estoques são pessoas
que tiveram informação antecipada sobre
a seriedade da e as formas de prevenção,
e que tiveram a capacidade de antecipar o
consumo de álcool em gel de diversos
meses em um dia – ambas características
que indicam que essas pessoas são mais
ricas do que a média. O congelamento de
preços, portanto, também não beneVcia os
mais pobres – nem no curto prazo nem no
longo, já que a escassez permanecerá.

O texto em questão ainda utiliza um outro


conceito econômico de forma errada: o
teorema de Coase. Os autores utilizam
esse teorema para propor que, além do
controle de preços, os consumidores
deveriam, em comum acordo, decidir
regras sobre como esses bens deveriam
ser alocados – apesar de não haver
nenhuma sugestão clara neste sentido no
texto. Contudo, o teorema de Coase é, na
verdade, uma coisa completamente
distinta. Basicamente, o que o teorema de
Coase diz é: se os direitos de propriedade
forem bem de8nidos, e os custos de
transação forem pequenos, os agentes
econômicos entrarão em acordo que
resultará em uma alocação de bens
pareto-eVciente[3].

Perceba a ênfase em direitos de


propriedade bem deVnidos. A lição que
tiramos do teorema de Coase é que
muitos dos problemas de falha de
mercado seriam resolvidos com a
deVnição dos direitos de propriedade. Por
exemplo, voltando ao nosso exemplo do
lago de peixes, se este lago fosse
propriedade de alguém, esta pessoa
incorreria nos custos de ver seu recuso ser
sobreutilizado, e tomaria medidas para
evitar que pessoas sem permissão
usassem o seu bem. Ao conceder
permissão de usufruto sobre a lagoa, o
dono colocaria no preço dessa permissão
os custos de oportunidade da captura dos
peixes. E o resultado seria pareto-eVciente.

O problema é que, no caso do álcool em


gel e da saúde, não temos um problema de
deVnição de direitos de propriedade, pelo
menos não da forma entendida pelos
autores. Todos sabem quem é o dono de
um frasco de álcool em gel, e todos têm
direito à saúde. Aplicar o teorema de
Coase aqui seria permitir que uma pessoa
vendesse o seu direito à saúde para a
outra – algo vedado pelo nosso
ordenamento jurídico – de modo que
quem comprasse mais direitos à saúde
poderia consumir uma quantidade maior
de álcool em gel[4].

Ou ainda, o que é equivalente, que quem


comprasse álcool em gel indenizasse
quem não comprou pelos danos causados
à saúde. Só que os custos de transação
para organizar esse tipo de mercado são
gigantes, e por isso o teorema de Coase
não se aplica! Ao contrário do que foi dito
no texto, um baixo custo de transação não
é consequência da aplicação do teorema
de Coase, e sim condição necessária para
sua aplicação. Essa ideia, portanto, não só
é inviável jurídica e economicamente,
como certamente não é o que os autores
defendem, o que mostra uma falta de
compreensão do signiVcado do teorema.

Por Vm, não quero ser o rabugento que


perdeu horas escrevendo um texto
criticando alguém sem propor nada
melhor. Além de ser rabugento, quero fazer
sugestões também. Vimos que o mercado
volta ao equilíbrio no longo prazo, com a
quantidade ofertada igual à demandada e
com preços muito próximos dos custos de
produção[5].

Isso é o que todos querem, mas há um


porém: tempo. Enquanto a epidemia
cresce exponencialmente, aumentar a
produção de um bem é algo custoso e
moroso, que envolve compra de
maquinário, contratação de empregados e
obtenção de licenças do governo. E aqui o
Estado pode ter um papel fundamental:
lubriVcar as trocas de modo a permitir que
o mercado chegue mais rápido a esse
equilíbrio. Isso pode ser feito por algumas
medidas:

1 – Corte dos impostos sobre o álcool em


gel. O corte de impostos faz com que o
produtor possa se apropriar do valor do
imposto na forma de lucro sem que esse
valor se re]ita nos preços, aumentando os
incentivos para a produção sem piorar a
situação do consumidor. Isso já está
sendo aplicado em diversos estados.

2 – Criação de uma linha especial de


crédito para que produtores de álcool em
gel possam se expandir e mais produtores
possam entrar no mercado. Assim, os
agentes interessados em produzir álcool
em gel já terão condições de aumentar a
capacidade de produção mesmo antes
das vendas se realizarem, em antecipação
aos lucros que obterão.

3 – Possibilitação de um contrato de
trabalho temporário para essa indústria.
Muitos produtores podem ter medo de
expandir suas operações com medo de a
demanda voltar aos níveis anteriores, e
terem que incorrer em obrigações
assumidas quando a demanda estava alta.
O maquinário (capital) é algo fácil de
resolver: basta revender ou alugar. Os
contratos de trabalho, porém, tendem a ser
mais rígidos. Flexibilizar os contratos de
trabalho para essas empresas especíVcas
torna o risco muito menor para o produtor.

4 – Diminuição da burocracia. Uma fábrica


de álcool em gel precisa de determinadas
permissões e licenças do poder público
para funcionar, até mesmo pelo caráter
in]amável do produto. Há de se perguntar,
contudo, se em tempos de calamidade
pública todas as licenças são realmente
necessárias, e se não há como priorizar
essa indústria.

Todas essa sugestões têm suas


diVculdades, mas estão em linha com o
raciocínio econômico. O que não faz
sentido é tentar utilizar a linguagem
microeconômica de forma equivocada,
invocando-se, sem conhecimento,
conceitos mais avançados como o
teorema de Coase e deixando de lado algo
tão simples e fundamental: a lei da
demanda.

—————————————————————-

[1]Tente jogar no google “Procon álcool em

gel”.

[2]Note que isso nada tem a ver com

tragédia dos comuns. O que narramos é


uma mera competição por um bem
privado (bens rivais e excludentes), e não
um recurso comum.

[3]EVcência de pareto quer dizer,

grosseiramente, que não há como


melhorar um agente sem piorar o outro.

[4]Sei que esse tipo de raciocínio soa mal

aos ouvidos de estudantes de Direito, mas


é exatamente desse tipo de troca que trata
o teorema de Coase. É um raciocínio
econômico, de eVciência, e não de justiça
ou legalidade.

[5]Supondo que há concorrência perfeita, o

que não é nada irrealista. Você se


preocupa se o seu álcool em gel é da
marca X ou Y? A renda de monopólio das
farmácias, ligada ao ponto de venda,
também seria afetada negativamente pela
maior disposição dos consumidores em
procurar um bem tão desejado.

LEVY BRAVO – Mestrando em Economia pela UnB e


Bacharel em Direito pela UERJ. Assistente de
pesquisa do IPEA

C O M PA RTILHE

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