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Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.

2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

Comicidade em José Cândido de Carvalho

Maria Renata Santos Ferreira


Graduação/UFS

Nosso estudo objetiva analisar os aspectos da comicidade na obra de José


Cândido de Carvalho, seus procedimentos cômicos e funções, investi-
gando o comportamento e as relações socioculturais da época através de
personagens que revelam o “malandro jeitinho brasileiro” em todos os
níveis sociais. Para proceder à análise, estaremos nos baseando em três
teorias sobre a comicidade: O riso – ensaios sobre a significação do cômi-
co (1983) de Henri Bergson, Os chistes e sua relação com o inconsciente
(1977) de Sigmund Freud e o capítulo “O chiste” de André Jolles (1976)
em seu livro Formas simples.

Palavras-chave: Cômico; José Cândido de Carvalho; Conhecimento.

Introdução
Este projeto de iniciação científica intitulado de Comicidade em José Cândido de Carvalho
tem por objetivo analisar sistematicamente os aspectos de comicidade na obra do autor,
em que percebermos a contribuição de sua obra para moderna literatura brasileira, atra-
vés de sua linguagem bem humorada carregada de uma minuciosa denuncia social, defla-
grando a ironia, a parodia, a comicidade de palavras e o rebaixamento como algumas das
características que se manifestam no decorrer dos contos analisados. Percebe-se na obra
de José Cândido de Carvalho através das relações socioculturais destacadas um retrato do
estereótipo do Brasil e do brasileiro.

Para análise dos aspectos cômicos presentes nos contos estudados utilizamos três das prin-
cipais teorias de estudo sobre a comicidade: O riso: ensaios sobre a significação do cômico
(1983) de Henri Bergson, Os chistes e sua relação com o inconsciente (1977) de Sigmund
Freud e o capítulo “O chiste” de André Jolles (1976) em seu livro Formas simples.

Podemos perceber que, para Bergson, o cômico seria o “mecânico calcado no vivo”, ou seja
a comicidade aparece quando o ser humano passar a agir maquinalmente perdendo sua
própria essência humana. Freud define o cômico como efeito de “válvula de escape”, isto é

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funciona como alívio de tensão, dando vazão a conteúdos reprimidos através das manifes-
tações do inconsciente. Já para Jolles, o chiste é uma disposição mental que desmonta as
coisas, é o modo de desatar as coisas e desfazer nós, ou seja os chistes desatariam a ética,
a moral e a linguagem.

Partindo das teorias da comicidade, adentramos em um estudo de fato sobre as obras e a


trajetória de José Cândido de Carvalho. Autor regionalista da segunda geração modernista,
romancista, contista e jornalista nascido em cinco de agosto de 1914, em Campos dos Goita-
cases, Rio de Janeiro, filho de lavradores portugueses. Aos 16 anos iniciou-se como jornalista
trabalhando como editor da revista O Liberal, trabalhou em diversos jornais do Rio de Janei-
ro, passando pelo jornal Folha do Comercio, O Dia, Gazeta do Povo, O Monitor Campista,
foi chefe editor internacional da revista O Cruzeiro, a revista brasileira de maior circulação
na época, foi o primeiro presidente da Funarte. Em 1937, obteve o bacharelado em direito,
admirador de Raquel de Queiroz e José Lins do Rêgo, José Cândido de Carvalho estreou na
literatura brasileira em 1939, com o romance Olha para o céu Frederico, vinte e cinco anos
depois pública seu segundo romance O coronel e o lobisomem, sua mais importante obra,
considerada um clássico da moderna literatura brasileira.

A partir de 1973, entrou para a Academia Brasileira de Letras, quinto ocupante da cadeira 31
sucedendo, Cassiano Ricardo Leite, só o romance O coronel e o lobisomem bastaria para lhe
reservar um lugar de destaque, mas Cândido também publicou dois livros de contos Porque
Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon e Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos.

Em suas obras além de tratar das questões políticas e sociais, José Cândido revela uma crítica
a questões morais como o famoso “jeitinho brasileiro” e o patriotismo exagerado, através de
estilo único que se tornou sua grande marca com uma linguagem aparentemente simples,
carregada de uso do exagero, gírias e expressões populares tipicamente do interior do Brasil,
misturando-se sempre a um tom de ironias e uso de metáforas com personagens que retratam
os “tipos” humanos da sociedade brasileira. O cômico em José Cândido de Carvalho aponta
as falhas das pessoas, da sociedade e da cultura.

Sobre o corpus estudado, os dois livros de contos do autor Um ninho de mafagafes cheio de
mafagafinhos e Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon, ambos são muito pareci-
dos, inclusive possuem o mesmo subtítulo: “Contados, astuciados, sucedidos e acontecidos
do povinho do Brasil,” trazem como diz o próprio José Cândido na descrição do livro, uma
caricatura do Brasil, com uma linguagem bem humorada e inteligente em narrativas curtas,
mas que dizem muito como é o Brasil e o brasileiro.

Os contos nas duas obras, são organizados por partes, em histórias que dialogam entre si. Os
títulos dos contos um dos primeiros aspectos observado nesse estudo, já chama a atenção do
leitor no primeiro contato com o livro, provocando o riso e a curiosidade, pois utiliza-se de
ditados e expressões populares, além dos nomes dos personagens que são verdadeiramente
inusitados como traz o próprio autor em Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos, uma
lista no início do livro com os nomes dos personagens considerados estrambóticos.

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Nas obras analisadas, selecionei como corpus os contos “A morte não tira férias”, “Se a vida
acabou, compre outra” e “Na próxima vez venho de dilúvio à bordo” integrantes do livro Um
ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos, mas para chegar a definição desse corpus especí-
fico, trafegamos entre um estudo mais superficial de outros contos como “Toda honestidade
tem sua fita métrica” integrante de Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos e do livro
Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon, “Ferreiro não tem mulher de pau” e “Do
purgativo saiu uma borboleta”, entre outros, cujos títulos aproximam-se de ditados populares
de forma direta ou parodiando, anunciando assim, a temática abordada. A seleção do corpus
se deu por cada um representar um ambiente social diferente, revelando a amplitude de te-
mas ligados às relações socioculturais, que denunciam o “malandro” em todos os níveis.

1. Revisão teórica
1.1. Henri Bergson
Para Bergson, em seu estudo sobre a comicidade “o cômico é o mecânico calcado no vivo”, ou
seja isso acontece quando o homem passa agir maquinalmente, assim segue definindo que o
cômico é eminentemente sócio-cultural, só ocorre no âmbito de uma sociedade.

Ao falar que a função do riso é castigar os costumes, Bergson começa a responder para que serve
o cômico, o qual para ele é um gesto que reprime a excentricidade das pessoas, para que essa,
passe agir da forma ditada pela sociedade, concluindo que o riso é o cômico calcado no vivo.

Em resumo, se deixarmos de lado, na pessoa humana, o que interessa à nossa sensibilidade e


consegue nos comover, o resto poderá converte-se em cômico, e o cômico estará na razão
direta da parte da rigidez que ai se manifeste (BERGSON, 1983, p. 71).

Bergson associa o cômico ao feio para explicar como o riso discorre, acentuando suas defor-
midades passando do disforme ao risível, pois para ele as formas e os gestos acentuam o ri-
sível. Isso porque a forma é vista como a caricatura do palhaço, e os gestos, os “tiques”, essas
expressões acentuadas e repetitivas, são consideras cômicas.

1.2. Sigmund Freud


Já Freud, para explicar o que é o cômico, o “chiste”, parte para uma revisão teórica dos au-
tores que se propuseram a falar dos chistes como Jean Paul Richter e os filósofos Theodor
Vischer, Kuno Fisher e Theodor Lipps, mesmo não desconsiderando o trabalho feito ante-
riormente por esses estudiosos, ele discorda da temática dos chistes proposta por esses au-

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tores, os quais restringe-se a relacionar o chiste ao cômico, pois de início Freud acreditava
que havia um cômico que não tinha ligação com o inconsciente, e outro que tinha relação
com o inconsciente, chamado de chiste.

Na citação de Fischer trazida por Freud por exemplo, “um chiste é um juízo que produz
contraste cômico; participa já, tacitamente, da caricatura, mas apenas no juízo assume sua
forma peculiar e a livre esfera do seu desdobramento” (apud FREUD, 1977, p. 22). Com essa
constatação Fischer como também os outros estudiosos citados, contrasta o chiste com o
cômico, enquanto Freud tenta separá-los, apenas no final da investigação ele percebe que
essa separação é impossível.

Ao falar dos propósitos dos chistes, Freud explica para que serve o cômico, cuja função seria
servir para que o inconsciente manifeste certas coisas e sirva como “válvula de escape”, assim
para ele o chiste serve para alívio de tensão ao manifestar aquilo que é vedado e proibido,
além de constatar em sua investigação que os chistes atuam como fonte de prazer.

Um chiste nos permite explorar no inimigo algo do ridículo que não poderíamos tratar
aberta ou inconscientemente, devido a obstáculos no caminho; [...] o chiste evitará as restri-
ções e abrirá fontes de prazer que se tinham tornado inacessíveis. Ele ademais subordinará
o ouvinte com sua produção de prazer, fazendo com que ele se alinhe conosco sem uma
investigação mais detida (FREUD, 1977, p. 123).

Para explicar como os chistes são construídos, Freud menciona os autores Heymans e Lipps ,
os quais explicam que o caráter do chiste reside no pensamento ou na sentença com isso ele
começa a explicar o processo de deslocamento e condensação usando o exemplo do chiste
de condensação “familionariamente” em que o deslocamento aparece como duplo sentido
ou seja transfiguração de uma palavra em outra coisa para tornar engraçado, ocorre também
como metonímia , a condensação é a junção das coisas familiares, ou seja a junção das pa-
lavras em uma única para formar a expressão “familionariamente”. Com isso Freud constata
que o esclarecimento causa prazer no ouvinte.

O jogo de palavras nada mais é que uma condensação sem formação de substitutivo; por-
tanto, a condensação permanece sendo a categoria mais ampla. Todas estas técnicas são
denominadas por uma tendência à compressão, ou antes a economia. (FREUD, 1977, p. 58).

1.3. André Jolles


André Jolles, define o chiste como a forma que “desata as coisas e desfaz nós” (JOLLES, 1976,
p. 206). Ou seja, chiste desataria tanto a ética, a lógica e a linguagem, como as próprias formas.

Ao falar das formas simples, Jolles mostra que os chistes revelam as formas de diferentes épo-
cas, pois não existe época ou lugar em que ele não se encontre caracterizando a raça, o povo,

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o grupo e o tempo onde se encontram. Além disso para o autor o chiste se alimenta de todos
os recursos da linguagem sempre na sua função de desmonte.

Para Jolles, o chiste recorre a inconveniência, na medida em que no absurdo a lógica é desfei-
ta, na inconveniência acontece o desenlace. Para ele, o chiste trabalha com o duplo sentido,
mas desfaz as coisas quebrando os estereótipos e desmontando as respostas prontas. Essa
seria uma das funções do cômico. Na medida que tenta desfazer o repreensível a partir de sua
insuficiência, ou a insuficiência a partir dela mesma, o chiste é chamado de zombaria.

O autor também faz uma distinção entre a sátira e a ironia destacando que a primeira tem
sempre um caráter agressivo e moralizante de zombaria a fim de corrigir o desvio se asseme-
lhando com a abordagem bergsoniana, já a segunda tem um sentido revelador, sem arrogân-
cia, quem zomba faz parte do que é zombado, revelando ao indivíduo o que ele tenta escon-
der de si próprio se assemelhando com a abordagem trazida por Freud. “O azedume da sátira
visa o seu objeto; o azedume da ironia resume-se em encontrar em nós o que censuramos em
outrem” (JOLLES, 1976, p. 212).

Jolles aponta que a zombaria rebaixa e fala do caso particular, já no gracejo ele diz que
se diferencia da zombaria na medida em que fala do geral. O gracejo não tem os aspectos da
agressão que encontramos na zombaria, proporcionando alívio de tensão. Já os chistes para ele
atuam como dupla função se sustentando na teoria conservadora de Bergson e a libertadora de
Freud ao desmontar e desfazer a tensão. A zombaria condena enquanto o gracejo é libertador,
assim a função do cômico em Jolles é desmontar a linguagem, a lógica as próprias formas.

Assim, podemos concluir que para Jolles o chiste exerce uma tarefa de dupla função “desfaz
um edifício insuficiente e desafoga uma tensão” (JOLLES, 1976, p. 213).

2. Análise da obra

Na próxima vez venho de dilúvio a bordo


E desembarcaram o sapateiro Finfilóquio Tupinambá em Santo Antônio do Banhado na oca-
sião em que o Circo de Bagdá montava para a distinta assistência o número mais arriscado
de seu repertório: a bala humana. Sem saber de nada, bêbado de trocar pernas, perfeito peru
de aniversário, Finfilóquio entrou no camarim do mágico, atarraxou a cartola dele na cabeça,
bem assim como vestiu o fraque e arrumou o cachecol no pescoço. E soltando aguardente
pelas juntas dos cotovelos foi parar no picadeiro do circo de Bagdá e no picadeiro, como
fazia o mágico, tirou do bolso o lenço puxador de pombinhos na justa hora em que o ca-
nhão fazia funcionar a bala humana: um sujeito todo prateado, voando de passarinho. Com
o estrondo do tiro, o leão do circo, pegando jaula descuidada, saltou de cabrito diante do
povo arrumadinho em bancos e cadeiras. Foi um corre corre sem tamanho e feitio, gente
por cima de gente num atropelado de gritos e chiliques. Basta relatar que um perneta subiu
de macaco pelo mastro dos trapézios, e uma senhora bojuda, redonda de não caber nos ves-
tidos, ficou entalada entre as cadeiras e desatou a gritar pelo nome de seu falecido marido:

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– Capanema, Capanema! Chegou o fim do mundo. Me espera no céu que eu já estou subin-
do.Vou atrasar um pouco porque perdi os óculos. Me espera, Capanema.
No meio do picadeiro, de queixo caído e cartola na mão, o bêbado Finfilóquio falou baixinho:
Finfim, Finfim, tu é o maior mágicão do mundo. Só no puxar do lenço tu inventou um canhão
e mais um danoso de um leão que já saiu comendo a perna de um par de bolivianos e mais
as partes traseiras de uma dona de óculos metida a fazer discursos, foramente um serviço
de parto que o leão fez só de berrar junto dos nove meses da barriguda. Lhe digo uma coisa,
Finfilóquio. Se tu calibra a magicação, como manda o regulamento, tu era Finfilóquio de botar
no picadeiro duas dilatadas cobras, um par de tigres, uma dúzia de elefantes, quatro leões
marinhos, manadas de bicicletas, cinco dobrados da gloriosa Banda Marcial de Santo Antônio
do Banhado e mais uma batelada de gringos para o povinho esborraçar a pau. Mais que isso,
Finfim velho, tu era homem de trazer a arca de Noé de volta. Com o tal do Dilúvio e demais
benefícios (CARVALHO, 2005, p. 21-22).

O conto “Na próxima vez venho de dilúvio a bordo” se passa em torno de um personagem cha-
mado Finfilóquio Tupinambá, um sapateiro que desembarcou na pequena cidade de Santo
Antônio do Banhado, altamente alcoolizado ao avistar a apresentação do circo de Bagdá, in-
vade o camarim do mágico e se passa por ele. No momento do número mais arriscado, a bala
humana, vestiu-se com todo o traje de mágico e foi para o picadeiro, onde o leão pelo barulho,
se assusta e vai na direção do público, causando um enorme alvoroço na plateia, com o que o
bêbado Finfilóquio se vangloria ao achar que todo o tumulto se dá em função de sua mágica.

Percebe-se nesse conto o desconcerto da plateia na medida que o leão aparece, gerando um
enorme alvoroço que revela o comportamento do ser humano diante do medo de morrer, as
quais passam a agir irracionalmente, sem pensar no que falar, como agir e se comportar. O
instinto de sobrevivência prevalece, como visto, de forma ironizada no trecho:

Foi um corre-corre sem tamanho e feitio, gente por cima de gente num atropelado de gri-
tos e chiliques. Basta relatar que um perneta subiu de macaco pelo mastro dos trapézios, e
uma senhora bojuda, redonda de não caber nos vestidos, ficou entalada entre as cadeiras e
desandou a gritar pelo nome de seu falecido marido (CARVALHO, 2005, p. 21).

Bergson, lembra que “não é, pois, a mudança brusca de atitude que causa o riso, mas o que
há de involuntário na mudança, é o desajeitamento” (BERGSON,1983, p. 9). E esse desajeita-
mento, o tumulto que é explorado na cena acima.

Ao usar a expressão “povo arrumadinho em bancos e cadeiras” José Cândido, faz uma crítica
à sociedade que vive de aparências, ditando a maneira como as pessoas devem se comportar,
agir e se vestir, além disso nessa mesma expressão o autor expõe uma crítica à divisão social
existente nessa sociedade, pois ao mencionar que a plateia estava organizada em bancos e
cadeiras revela que ocupam lugares distintos dentro de um mesmo ambiente, provavelmente
as classes privilegiadas ficam na frente e ocupam o conforto e a visibilidade nas cadeiras e os
demais, vistos como o “povinho” ficam atrás nos bancos da arquibancada.

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Um dos procedimentos cômicos identificados nesse conto foi o rebaixamento, que aparece
nitidamente na medida em que a plateia avista o leão em sua direção e mudam drasticamente
de atitude, deixando de lado as aparências sociais e passando a agir de forma instintiva, oca-
sionando uma sucessão de cenas inusitadas explicadas por Bergson, ao falar sobre o efeito de
bola de neve “de cena em cena, a mudança de posição do objeto leva mecanicamente a mu-
dança de situação cada vez mais graves entre as pessoas” (BERGSON, 1983, p. 41).

Nesse conto, Cândido também propôs ilustrar uma figura típica sempre presente nas come-
dias, o “bêbado” que acaba sempre se metendo em alguma confusão, que por uma infeliz
coincidência no momento exato que o leão apareceu na plateia assustado pelo barulho do
tiro da bala humana, o atrapalhado e embriagado Finfilóquio, trajado no figurino do mági-
co entrou no picadeiro. É cômico também o fato de Finfilóquio enganar-se ao acreditar que
realizou uma grandiosa mágica e que foi o causador de todo o tumulto. Isso torna a situação
ainda mais engraçada, como visto na passagem final, ao se vangloriar da “mágica” que acre-
dita ter realizado:

No meio do picadeiro, de queixo caído e cartola na mão, o bêbado Finfilóquio falou baixinho:
-Finfim, Finfim tu é maior magicão do mundo. Só no puxar de lenço tu inventou um ca-
nhão e mais um danoso de um leão que saiu comendo a perna de um par de bolivianos
e mais as partes traseiras de uma dona de óculos metida a fazer discursos, foramente
um serviço de parto que o leão fez só de berrar junto dos nove meses da barriguda
(CARVALHO, 2005, p. 21,22).
Como lembra Freud, “Sob a influência do álcool o adulto torna-se outra vez e uma criança,
tendo de novo o prazer de dispor de seus pensamentos livremente sem observar a compul-
são da lógica” (1977, p. 150).

Outro ponto observado nesse conto, é a forma como Cândido utiliza-se da linguagem, abu-
sando propositalmente de um estilo que é sua grande marca, com uso de gírias e expressões
populares tipicamente do interior do Brasil, a fim de causar humor e, com isso, também des-
crever a realidade social e a maneira como a maioria da população, chamada carinhosamente
por ele em suas obras de “povinho brasileiro”, se comunica. Os trechos a seguir ilustram o uso
desses recursos. “Soltando água ardente pela juntas dos cotovelos” (CARVALHO, 2005, p. 21)
“tu é o maior magicão do mundo” (CARVALHO, 2005, p.22).

3. Considerações Finais
Chegamos ao final da pesquisa, após um ano de estudos e investigações, concluindo que
José Cândido de Carvalho, através de uma linguagem carregada de bom humor e ironia, vai
apontar uma crítica ao patriotismo exagerado e ao valores morais, através de personagens que
retratam o estereótipo do Brasil e do brasileiro, denunciando os problemas sociais, mas tam-
bém dando voz a partir de sua literatura aos que ele vem chamar carinhosamente de “povinho

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brasileiro”, como visto no conto “Na próxima venho de dilúvio a bordo”, colocando qualquer
cidadão em um mesmo patamar, desde um simples sertanejo, juiz, bêbado, ladrão ou polí-
tico como protagonista de suas histórias. Podemos, por fim, dizer que a comicidade em José
Cândido de Carvalho vai apontar as falhas das pessoas, da cultura e da sociedade e mesmo
anos depois da publicação de suas obras os problemas sociais e políticos enfrentados pela po-
pulação brasileiro perpetuam-se enraizados até os dias atuais, fazendo assim, suas obras pa-
recerem que foram escritas sob a perspectiva da realidade atual em que o Brasil se encontra.

Um autor diferenciado, este foi José Cândido de Carvalho, através de sua linguagem
aparentemente simples, “o jeitinho Cândido de ser”, revela, adverte e ensina de forma bem
humorada, explorando da caricatura do Brasil e do brasileiro até a última gota para expor a
realidade escondida através das aparências sociais.

Referências bibliográficas
BERGSON, Henri. (1940). O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Trad. Natanael C. Caxeiro-2o ed.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.

CARVALHO, José Cândido de. O coronel e o lobisomem. 57a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.

CARVALHO, José Cândido de. Porque Lulu Bergatim não atravessou o Rubicon: contatos, astuciados,
sucedidos e acontecidos do povinho do Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

CARVALHO, José Cândido de. Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos: contados, astuciosos, su-
cedidos e acontecidos do povinho do Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

FREUD, S. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Tradução: Jayme Salomão.1o edição, Vol. III. Rio
de Janeiro: Imago, outubro de 1977.

JOLLES, A. O Chiste. In: Formas simples. Trad. Álvoro Cabral. São Paulo: Cultrix,1976.

NINA, Claudia. ABC de José Cândido de Carvalho/ Claudia Nina. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.

LEDUC, L’ ESPERANCE. Vincent, Pierre. Ecce Homo: o riso. [Vídeo]. Produção de Vincent Leduc, Di-
reção de Pierre L’ Espérance. O productions Coscient, 1998. 50 min. Disponível em https://www.youtube.
com/watch?v=S1KFRkiMGCI. Acesso em: 11jan. 2016.

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