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Soldados ou cidadãos guardas nacionais: diversidade

e possibilidades nas mobilizações das forças


imperiais para a Guerra dos Farrapos
José Iran Ribeiro*

Até o século XIX, as Forças Ar-


Resumo madas do Brasil eram formadas por
Durante a Guerra dos Farrapos, o go- diferentes grupamentos. Além dos mi-
verno do Brasil mobilizou diferentes litares profissionais, os civis também
grupamentos armados para derrotar eram responsabilizados pela defesa do
os republicanos sulinos. Essa diver- território e pela preservação da ordem
sidade reproduzia a hierarquia social interna. Nesses tempos a diferenciação
do Império e influía nos desígnios do social marcava a maneira de participa-
esforço de guerra. Essa análise discute ção das diferentes categorias de cida-
as diferentes possibilidades e recursos dãos e essa hierarquização também
utilizados por militares do Exército e
distinguia os serviços prestados por
Guardas Nacionais que tentaram se
esses diferentes setores. Na década de
recusar a ser mobilizados para a guer-
1830, o efetivo do Exército Imperial so-
ra.
freu diminuições significativas e uma
Palavras-chave: Exército Imperial. das razões disso foi a criação da Guar-
Guarda Nacional. Guerra dos Farra- da Nacional, uma das mais significa-
pos. tivas marcas da hegemonia do poder
civil naqueles tempos.

*
Doutor em História Social (PPGHIS/ UFRJ),
professor Adjunto do Departamento de Metodo-
logia do Ensino da UFSM. Pesquisa financiada
pela Capes.

Recebido em 08/01/2011 - Aprovado em 14/02/2012

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Inspirada nos modelos francês e nor- víduos que, em Santa Catarina ou no Rio
te-americano, a Guarda Nacional foi cria- Grande do Sul, eram reunidos às unidades
da em 1831 para sustentar a ordem vigen- que necessitassem preencher suas fileiras.
te e manter a integridade do Império sob Dessa forma, as unidades eram construí-
o comando das autoridades civis, como os das e reconstruídas a todo o momento,
juízes de paz, os presidentes de província, conforme a necessidade e a chegada de
o ministro da justiça. Somente os cidadãos reforços. Pode-se utilizar o relato do des-
brasileiros que tivessem o mínimo de ren- locamento de um batalhão para se estimar
da necessário para o exercício dos direitos os arranjos necessários para as viagens
políticos poderiam ser qualificados guar- dos grupamentos militares. A unidade em
das nacionais. O restante dos indivíduos questão devia marchar de Pernambuco
deveria continuar sentando praça no Exér- para a corte no máximo em três dias, o que
cito. Somente em casos excepcionais, como era impossível, segundo o comandante, em
guerras externas ou grandes conflitos in- razão das muitas dificuldades. Inicialmen-
ternos, os guardas nacionais poderiam se te, ele e seus auxiliares deveriam registrar
subordinar às autoridades militares. os nomes dos militares, as consignações
Não obstante, a enorme demanda que deixavam para as famílias e os procu-
de efetivos militares durante as lutas da radores de cada expedicionário. Tinham de
regência tornou necessário mobilizar os arrumar todos os objetos necessários para
efetivos existentes em todo o país. E nas a viagem e deixar o restante no arsenal de
linhas que seguem trata-se do contexto guerra. Havia também a necessidade de
da Guerra dos Farrapos, quando as forças resolver o que fazer com os doentes da uni-
imperiais eram integradas tanto por mili- dade, definir substitutos para as funções
tares profissionais quanto por civis mobili- dos expedicionários, ajustar a instrução
zados como guardas nacionais. O objetivo dos efetivos às necessidades da guerra no
da análise é destacar as diferentes possibi- sul, entre outros arranjos.1
lidades de uns e outros desses defensores Contudo, além das questões pura-
da autoridade imperial contra os republi- mente organizacionais, o envio de uma
canos rio-grandenses, quando foram orde- unidade militar para frente de combate
nados a deixar suas províncias e marchar poderia resultar em muitos outros proble-
para o Rio Grande do Sul. mas. Era preciso reunir praças e oficiais
não apresentados, esclarecer as escusas
dos que se autoisentavam de integrar as
Fazer marchar os profissionais
expedições e forçar os desgostosos com as
da guerra movimentações. Um bom exemplo dessas
dificuldades se passou em Santa Catarina
Os efetivos do Exército podiam ser
com o 2º Corpo de Artilharia de posição. O
mobilizados em unidades, que já saíam or-
problema iniciou depois que o comandan-
ganizadas de suas províncias e chegavam,
te divulgou a notícia de que a unidade iria
assim, no sul, ou em grupamentos de indi-

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ser deslocada para o Rio Grande do Sul e a parte, recolhendo-se na mesma noite
recebeu o aviso de “que o corpo se recusava muitas famílias que se tinham retirado
aos mais cidadãos que se achavam ao
a esta marcha”. Tentando resolver a situ-
longo do mar em observação.3
ação, os militares da unidade foram reu-
nidos no “arrabalde da Vila” para serem Alguns autores já mencionaram essa
lembrados de que os “deveres [do corpo], rebelião,4 mas não passaram disso. Dife-
o dispunha para a marcha. Nesta ocasião, rentemente, pretende-se aqui analisar o
manifestou-se a oposição [...] do major, e acontecido e situá-lo no contexto em que
mais alguns oficiais, e praças [...]; o que o ocorreu. A situação que desaguou na nega-
mesmo comandante precedentemente dis- ção desses militares já estava sendo cons-
similou, e fez recolher o corpo ao quartel”.2 truída há alguns anos, senão ainda mais
Mas o caso não terminou com a prisão dos atrás. O 2º Corpo de Artilharia de posição,
militares, como registrou o juiz de paz da originário da corte,5 estava aquartelado no
localidade Desterro desde 1828. Era uma das muitas
unidades de diversas províncias estaciona-
Observei os habitantes todos em um total
alvoroço, a embarcarem famílias para os das em Santa Catarina no início da década
sítios [...] para mais de trinta famílias e de 1830. Essa concentração resultou num
outros se retiraram para as matas, e em aumento considerável das despesas mili-
canoas para o mar [...] e sou informado tares com soldos, etapas e comedorias que
que o motivo era por correr a notícia que
estava a romper a rusga [...], [e o coman- iam além das possibilidades financeiras da
dante do 2º corpo avisou] dado princípio província.6
algum movimento no corpo do seu co- A situação se agravou dia a dia, até
mando [...]. Lancei mão do único recurso que ocorreram os “excessos tais como o que
o que podia, consegui imediatamente as
nesta cidade tivemos a infelicidade de ver
guardas nacionais e todos os mais cida-
dãos que se reunissem para replicarem no primeiro [grifo meu] exemplo na noite
qualquer insulto que tentassem os desor- de 22 de abril” de 1831. A documentação
deiros; com efeito em menos de uma hora não refere o que ocorreu nessa ocasião.
via-me com mais de cem cidadãos [...]. E
Sabe-se que antes circulavam “pasquins,
a vista desta barreira, e da energia que
mostrou o [...] comandante do corpo, ex- ou antes, proclamações incendiárias pro-
pedindo igualmente patrulhas, e indo ele vocando às tropas a revolta com o pretex-
mesmo para ver se os desordeiros se inti- to de se fazerem pagar por força do que se
midavam, e nada puderam em prática do lhes está devendo”. Mas, apesar das várias
que projetaram. Contudo, consta-me que
no aquartelamento sempre tentavam
tentativas de garantir a tranquilidade pú-
romper por vezes, mas foram repelidos blica, acreditava-se que a “única medida
pelos dignos oficiais do corpo; também eficaz para conservar a disciplina na tro-
algumas vezes quiseram sair, e as patru- pa, e poder se contar com ela é pagar-lhe
lhas dos guardas os fizeram voltar, e fi-
efetivamente todo ou parte do que se lhe
nalmente tudo se concluiu esta noite sem
o menor ultraje, nem violência de parte deve, e continuar-lhe regularmente os pa-
gamentos mensais”. O que não foi feito e

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resultou na ocorrência de algo. O teor da o que precisavam depois de manifestarem
documentação permite inferir que naquela sua situação ou, em 1831, amedrontarem
noite de abril de 1831 houve grande agita- a população local. O medo era um instru-
ção no Desterro. Seja lá o que aconteceu, mento que os militares dispunham para
rapidamente motivou vários habitantes da alcançar suas necessidades mais urgentes.
província a emprestarem o dinheiro neces- Sua eficácia era garantida pela possibili-
sário para o pagamento dos soldos das vá- dade dele ser usado quando suas necessi-
rias unidades, restaurando-se o sossego.7 dades e interesses eram desconsiderados.
Portanto, a gravidade do acontecido foi di- Segundo os exemplos, uma alternativa
retamente proporcional à rápida mobiliza- a isso era resignarem-se para manter a
ção em toda Santa Catarina para reunir o disciplina, o que podia significar fome e a
montante do dinheiro necessário para sal- contrariedade das vontades dos indivíduos
dar a dívida do governo com os militares. que compunham os efetivos.
Em 1832, os militares estacionados Tanto a população da província quan-
na província continuaram a ter seus sol- to os efetivos do 2º Corpo de Artilharia de
dos atrasados por longos períodos, condi- posição tinham presenciado ou participado
ção que os fazia “tremerem as pernas de da ocorrência de 1831 e da penúria resig-
fome”. A situação tornou-se tão difícil que, nada de 1832. Parece que os moradores da
num movimento iniciado pelos oficiais do província foram surpreendidos pelas ati-
2º Corpo de Artilharia de posição, as uni- tudes dos militares em abril de 1831, mas
dades de 1ª linha enviaram petições “im- a experiência não foi esquecida. Em 1836,
plorando eles submissamente os seus pa- eles não se deixaram apanhar e se anteci-
gamentos”. Dessa vez, apesar dos temores param à revolta dos militares, fugindo de
de alguns, não ocorreram novos tumultos Laguna. Talvez se possa dizer que dian-
porque havia mais oficiais que praças, as- te da contínua insatisfação dos militares
sim a ordem foi mantida mais facilmente e e dos consequentes possíveis levantes, os
as justas petições dos militares “em nada moradores civis da província incorporaram
se apartam da disciplina”.8 no seu cotidiano a possibilidade de terem
Situações como essa não eram inco- de fugir rapidamente a qualquer momen-
muns. Em vários contextos de mobilização to. Diante da realidade dessa possibilida-
de tropas, os atrasos nos soldos e a penú- de puderam escapar, só retornando depois
ria dos efetivos faziam parte do cotidiano. que os revoltosos, até então responsabili-
Da mesma forma, são inúmeras as men- zados pela defesa da autoridade do Impé-
ções das populações terem de arcar com o rio no Rio Grande do Sul, fossem subme-
custeio do pagamento dos soldos das tro- tidos por cidadãos guardas nacionais. Da
pas amotinadas, principalmente, nas si- mesma forma, o comandante do 2º Corpo
tuações de maior tensão.9 Não obstante, a de Artilharia de posição, que era a única
frequência dessas situações não invalida o unidade de 1ª linha em Santa Catarina em
fato de que aqueles militares só obtiveram 1836,10 quando retirou a unidade do centro

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da localidade, também previu a possibili- tístico criminal do 2º corpo de artilharia de
dade de uma nova revolta, isolando seus posição...” Esse documento também infor-
homens para minimizar as consequências ma que o tenente era lisboeta e já havia
de um levante. Portanto, a experiência ha- sido punido com serviço no Oriente, mas
via ensinado prudência à população e ao parece haver fixado residência em Santa
comandante da unidade. Catarina. Pelo menos é o que indica a pe-
Se esse raciocínio explica o compor- tição que encaminhou solicitando que seu
tamento da população e do comandante da filho soldado fosse mantido numa unidade
unidade diante da possibilidade de ocorrer naquela província. Quando participou da
um novo motim militar, resta ainda ten- rebelião em Laguna, José Maria Franco já
tar entender três questões. Primeiro, por tinha mais de cinquenta anos. Sua idade
que os militares da unidade não deseja- avançada contribuiu para que fosse refor-
vam marchar para o sul; segundo, por que mado como capitão, embora pouco tempo
alguns deles se revoltaram; terceiro, por depois tenha sido mandado voltar à ativa
que, ao que parece, nem todos os integran- por decreto em 1840.11
tes da unidade se revoltaram; afinal, se O tenente Francisco de Almeida Va-
deixaram recolher pelo comandante depois rella foi outro dos envolvidos. Antes da re-
de alguns integrantes da unidade manifes- volta em Laguna, ele já havia sido preso
tarem sua indisposição de marchar. duas vezes por pequenas faltas. Da mesma
A rebelião foi liderada por um major, forma que José Maria Franco, Varella foi
dois tenentes, um sargento e seis soldados, detido por ordem do presidente de Santa
que ficaram detidos em Santa Catarina à Catarina, acusado de “cometer grave in-
disposição, nas palavras do presidente da subordinação para com seu comandante”,
província, dos conselhos de guerra, “que conforme as notas no “mapa estatístico”
vou mandar proceder [...] a que devem res- referido anteriormente. Apesar desse his-
ponder os oficiais e mais praças implica- tórico não muito recomendável, em 1840,
das”, quando a unidade finalmente partiu o catarinense capitão Varella pediu para
para o Rio Grande do Sul. A documentação ser promovido major e para comandar o
que descreve a situação só nomeia os tenen- Forte de Santa Ana, em Santa Catarina.
tes e o sargento envolvidos. Ficou registra- Num novo pedido no mesmo sentido, em
do da participação na revolta de um desses 1842, solicitou promoção a major por an-
homens, o tenente José Maria Franco, que, tiguidade, sem pretender qualquer fun-
em “princípio”, usou “uma linguagem mais ção especial. Em 1846, Varela finalmente
militar, mas depois se tornou criminoso era major e no ano seguinte passou para
como os outros”. Passados alguns meses, a terceira classe do Exército – para onde
“por insubordinação, embriaguez e falta de iam os capazes de realizar serviços leves
execução de ordens”, Franco foi condenado ou que seriam reformados – no mesmo mês
a um ano de prisão pelo Conselho Supremo em que foi autorizado a residir em Santa
Militar, segundo as notas no “mapa esta- Catarina.12

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Curiosamente, as anotações sobre a as famílias desses homens viviam em San-
conduta do 2º cadete e sargento Luis Mar- ta Catarina. Na falta de outro elemento,
ques, o terceiro líder da revolta, não ates- essa característica comum pode explicar
tam que sofreu grandes punições. Curioso seus desejos de não deixarem a província.
porque foi ele quem tentou matar o coman- Para tentar alcançar a razão de te-
dante da unidade. Parece que a única con- rem se revoltado, são úteis as seguintes
sequência da sua participação na rebelião palavras de Giovani Levi quando escreveu
foi ter sido transferido para outra unidade, que “toda ação social é [...] o resultado de
conforme sugestão do comandante amea- uma constante negociação, manipulação,
çado. O que não ocorreu tão prontamente escolhas e decisões dos indivíduos, diante
como o tenente-coronel possa ter deseja- de uma realidade normativa que, embora
do. Não obstante, alguns anos depois, já difusa, não obstante oferece muitas pos-
tenente, Luis Marques foi mandado apre- sibilidades de interpretações e liberdades
sentar-se no Desterro, provavelmente para pessoais”.14 Depois do motim de 1836, o
responder a uma investigação relacionada comandante do 2º Corpo de Artilharia de
com a punição que lhe foi decretada pelo posição afirmou “crer que, no criminoso
Conselho Supremo Militar, ou também po- procedimento tido por alguns oficiais, não
deria ser sobre outra questão, já que Mar- entra, politicamente falando, traição ao
ques era casado e tinha um filho nascido sistema de governo jurado”. Quer dizer,
em Santa Catarina.13 não acreditava que a revolta tivesse sido
Além das punições resultantes das motivada por razões políticas. Então, a or-
suas ativas participações na rebelião de dem para que a unidade marchasse para
1836, as histórias desses três indivídu- o Rio Grande do Sul, em 1836, não era a
os apresentam outros traços em comum. primeira nesse sentido. Em outubro de
Suas antiguidades, já que todos ocupavam 1835, já tinha sido ordenado que para lá
postos que demandavam alguns anos de marchassem, quando o comandante solici-
serviço, sugerem que eram militares expe- tou uma longa lista de artigos necessários
rientes e é crível que tenham presenciado, para a mobilização e iniciou o deslocamen-
senão participado, daqueles acontecimen- to do corpo do Desterro para Laguna, onde
tos iniciados na noite de abril de 1831, a unidade seria embarcada. Contudo, no
como também da petição de 1832. Contu- final de janeiro de 1836, notícias da cal-
do, o traço comum mais evidente é que to- maria política no Rio Grande do Sul fize-
dos tinham vínculos com Santa Catarina. ram com que o presidente recém-nomeado
Dois haviam nascido na província, um pe- dessa província determinasse que o corpo,
diu para residir ali depois de reformado e o temporariamente, não marchasse, e o em-
outro, apesar de ser um português viajado, barque foi sustado na espera de novas de-
solicitou que seu filho soldado não servisse cisões, que chegaram logo e fizeram seus
em outro lugar. Essas alusões sugerem que homens causarem todo aquele tumulto em
Laguna. É importante mencionar que a

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negação da unidade em obedecer à ordem mentânea, de oficiais, praças graduadas
de marchar animou os farroupilhas, moti- e soldados insubordinando-se e demons-
vando-os a tentarem restabelecer o comér- trando, assim, um sintoma do baixo grau
cio entre Santa Catarina e Rio Grande do de profissionalização daquele Exército.
Sul.15 Uma consequência importante e que Infelizmente, nesse caso, a falta de melho-
ajuda a mensurar o significado da revolta res informações impossibilita uma análise
de uma unidade para além de uma simples mais aprofundada da construção dessas
questão de insubordinação cotidiana. solidariedades.
Descartando-se, portanto, a possibili- A resposta para a terceira questão,
dade de terem agido por motivação política, sobre o porquê apenas parte da unidade se
mas relacionando a conhecida indisposição rebelou, obviamente pode estar na simples
de marchar para o sul de alguns dos mili- disposição dos militares da unidade em
tares do 2º Corpo de Artilharia de posição e lutar no Rio Grande do Sul, já que para
os meses que correram entre a primeira e a militares profissionais servir num desta-
última ordem de marcha, pode-se concluir camento podia significar maiores chances
que os desgostosos com as ordens de mar- de promoção, as vantagens financeiras das
cha tiveram tempo suficiente para tentar gratificações (abono de um terço do soldo,
conquistar o apoio de seus camaradas, no pagamento de cavalgaduras etc.), a opor-
sentido de construírem uma posição co- tunidade de conhecer outras regiões, entre
mum contra as ordens de se deslocarem ao outras possibilidades. Entretanto, essa
Rio Grande do Sul. Dessa forma, reagiram disposição também poderia ter relação
de uma das formas possíveis e conhecidas: com os contextos tratados acima. Apesar
amotinaram-se. Usando novamente o re- de a unidade ser originária da cidade do
curso da revolta e esperando serem aten- Rio de Janeiro,16 grande parte dos oficiais
didos novamente, ou seja, da mesma ma- e praças graduadas era catarinense, ainda
neira que antes, em 1831, quando haviam que no total houvesse mais indivíduos de
obtido resultados positivos, recebendo os outros lugares (paulistas, portugueses, rio-
soldos tão atrasados, graças ao medo que -grandenses, fluminenses etc.). Esse dado,
infligiram aos administradores da provín- tomado a partir do que já foi dito sobre a
cia e a população em geral, e que não ha- aversão de marchar de alguns indivíduos
via sido posta em prática em 1832, quando com vínculos em Santa Catarina, poderia
famélicos oficiais garantiram a manuten- colocar em xeque essa conclusão, levando a
ção da disciplina. Só que dessa última vez, crer que a origem desses militares não te-
em 1836, o resultado foi diferente: foram ria necessariamente a ver com sua decisão
coagidos de volta à ordem, sem que suas de se negarem a marchar.
reivindicações fossem atendidas e, mais, Contudo, se a experiência e as pos-
ficarem sujeitos às punições decorrentes sibilidades auxiliavam nas tomadas de
de seus atos. Outro aspecto interessante atitudes por parte dos indivíduos, não se
dessa situação é a união, ao menos mo- deve esquecer que, em 1832, a iniciativa

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dos oficiais do 2º Corpo de Artilharia de po- de uma unidade era parte do trabalho co-
sição possibilitou a manutenção da disci- tidiano dos comandantes, oficiais e praças
plina, apesar da penúria em que se encon- graduados e a indisciplina era algo absolu-
travam. Se existisse a petição da unidade, tamente normal.
poder-se-ia tentar localizar e acompanhar Em razão disso, pode-se acreditar
os signatários para se evidenciar o quan- que o maior destaque dado àquela situa-
to essa atitude pode ter influído nas suas ção em Santa Catarina ocorreu devido ao
carreiras. De qualquer forma, se a experi- terror que causou na população e na neces-
ência da revolta pode ter se transformado sidade de movimentar guardas nacionais
num instrumento acessível para alguns, e outros cidadãos para coagir os amotina-
a manutenção da disciplina também pode dos. Em outras palavras, a situação pode
ter servido de orientação ao posicionamen- ter sido ressaltada não propriamente em
to de outros, no sentido de continuarem razão da ocorrência, mas porque foi neces-
a acatar seus superiores, apesar de po- sário o envolvimento de setores e lideran-
derem não desejar marchar tanto quanto ças não militares para solucioná-la. Nesse
os demais. Esta última conjectura talvez sentido, se houve outras ocasiões em que
explique porque nem todos os membros do unidades se recusaram a marchar para o
2º Corpo de Artilharia de posição acompa- Rio Grande do Sul, desde que as recusas
nharam tão veementemente seus camara- tivessem se mantido dentro dos quartéis,
das nos protestos contra a ordem de mar- poder-se-ia não encontrar muitas menções
cha. Afinal, não há nada que determine, na documentação. Simplesmente os res-
necessariamente, que indivíduos numa si- ponsáveis seriam atendidos ou castigados,
tuação muito semelhante decidam e atuem presos, transferidos, enfim, nada além
sempre da mesma forma.
de situações cotidianas, se administrá-
Não foram encontrados outros relatos
veis pelas próprias autoridades militares.
sobre a ocorrência de tensões resultantes
Um exemplo desse procedimento ocorreu
das ordens de marcha e isso pode sugerir
quando uma unidade no Rio Grande do
que as unidades geralmente não se revol-
Sul se insubordinou para impedir a posse
tavam. No entanto, sem esquecer a impor-
de um novo comandante.17 Apesar da se-
tância dos contextos locais, é significativo
riedade da situação, o caso foi resolvido
o fato de que alguns oficiais e praças de
depois que outros grupamentos militares
uma unidade tenham se rebelado com tan-
garantiram a manutenção da disciplina e
ta ousadia, inclusive ameaçado a vida do
os responsáveis foram punidos.18 Portanto,
comandante, sem que isso não fosse uma
sem a participação ou ameaças aos civis e
ocorrência tão incomum para outras par-
com pouco alarde.
tes do Brasil. Talvez, uma resposta pos-
sível à falta de outras referências esteja
no fato de as rebeliões se restringirem ao
âmbito dos quartéis na maioria dos casos.
Em outras palavras, manter a disciplina

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Negociar para mobilizar cidadãos da força, e aí termos de ver conseqüências
desastrosas, não menores que as da impu-
guardas nacionais nidade e desobediência a lei, que podem
ser fecundas em desgraças e percussores
A mobilização dos guardas nacionais da ruína total do nosso belo país.20
seguia uma sistemática diferente da em- Antes dessa situação, em 1836, os
pregada com os efetivos do Exército. Nor- guardas nacionais de São Paulo já haviam
malmente, depois de terem sido escolhidos se negado a marchar para o Rio Grande do
por instâncias locais segundo a norma Sul21 e o passar do tempo não modificou
legal, os guardas nacionais eram mobili- sua indisposição. Diante do impasse da
zados para a guerra individualmente. A situação transcrita na citação, a alterna-
documentação do Exército permite algu- tiva possível, diante do “pequeno número
ma ideia desse processo. Existem outros de voluntários que se apresentaram para
exemplos, mas o que melhor dá conta da fazer parte do corpo da Guarda Nacional
complexidade na mobilização dos guardas que deve marchar para a província do Rio
nacionais vem de São Paulo. Em 1838, o Grande do Sul”, foi organizá-los numa
presidente da província mandou um ofício companhia. Para estimular novas apre-
circular para algumas localidades, infor- sentações, também foi autorizado “dar-
mando que o governo do Império mandara -lhes fardamento e quatro meses de sol-
formar um corpo “de trezentos e onze pra- dos adiantados com vantagem adicional”.
ças da Guarda Nacional destinado” ao ser- Nada teve resultado. O cerne da questão
viço no Rio Grande do Sul.19 Algum tempo para os guardas nacionais não era a falta
depois, o encarregado da tarefa informou: de motivações morais ou financeiras, tan-
Minha comissão nas vilas e povoações [...] to que na ocasião em que se cogitou uma
nenhum fruto tem produzido [...] não se invasão de Curitiba pelos republicanos “a
apresentaram os guardas nacionais que
Guarda Nacional [...] ofereceu-se em massa
lhes toca destacar no corpo que estou in-
cumbido de organizar [...] que preferiram para defender nossa fronteira”.22 Portanto,
serem todos processados que marcharem para aqueles guardas nacionais o que real-
para o sul, que resistiram por todas as mente importava era a decisão inabalável
maneiras, porque dizem que não está o de não saírem de São Paulo. Afinal, para a
governo autorizado a empregar guardas
nacionais foram das suas províncias e tal
maioria deles, que não eram militares pro-
é a indisposição geral, e tal a acintosa ne- fissionais, não valia a pena deixar casas,
gação que tenho presenciado a se presta- famílias e interesses para arriscar a vida
rem voluntários, e o cabal conhecimento no sul, onde teriam de enfrentar o rigor do
que tenho do espírito de revolta, que receio
clima e sobreviver com a inconstância dos
exigir os contingentes que os conselhos de
qualificação devem designar, pois que se- soldos e das etapas.
rão tantos os indivíduos designados, quan- Três meses depois a situação continu-
tos os processados, e impunes infratores ava na mesma. Restou, então, substituir o
da lei, por isso que não haverá maneira de responsável pela reunião, porque o “atual
os coagir ao círculo dela senão pelo meio

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chefe da expedição [estava] destituído da a lei permitia, os comandantes da Guarda
força moral necessária, conquanto tenha Nacional não concordavam e empregavam
ele feito todos os esforços”. Para encontrar todo o esforço para não ver seus subordina-
o substituto, o presidente da província es- dos arregimentados no Exército.24
creveu que necessitava de “informações Isso é o que se verifica nessa situa-
de algumas pessoas cordatas, visto ser eu ção. Em 1839 foi criada uma divisão, deno-
inteiramente alheio ao pessoal da provín- minada paulista, da serra ou do rio Negro,
cia”. Da sua parte, o ministro da Justiça com pouco mais de seiscentos homens para
orientou que os conselhos de qualificação ser deslocada até o Rio Grande do Sul.
– instâncias distritais formadas por lide- Entretanto, chamados mais uma vez, os
ranças locais que verificavam, ou melhor, oficiais guardas nacionais avisaram “não
qualificavam os moradores detentores de querer marchar a incorporar-se a esta di-
direitos políticos – indicassem que guar- visão” e obtiveram como resposta a ame-
das nacionais deveriam ser destacados e aça de serem despedidos e presos. Ao que
ameaçou enviar para o Exército “todos os também não deram muita importância e se
guardas nacionais que, sendo designados, mantiveram firmes na recusa, dizendo aos
se recusassem a marchar”.23 seus subordinados “que nada lhes acon-
Essa atitude de ameaçar igualar ci- teceria”.25 Essa possibilidade, dos oficiais
dadãos eleitores, guardas nacionais, aos se negarem a cumprir ordens superiores e
desclassificados sociais que serviam no estabelecerem conexões de solidariedade
Exército era radical e teve pouco efeito. com seus subordinados, era uma lacuna
Como destacou Jeanne Berrance de Cas- imprevista na complexidade do sistema26
tro, a discussão sobre o recrutamento para que orientava o funcionamento da Guarda
a 1ª linha de guardas nacionais iniciou no Nacional e do Estado imperial.
contexto da guerra contra os republicanos A manutenção da indisposição dos
rio-grandenses. Era, portanto, fruto da ne- guardas nacionais motivou o governo a
cessidade de aumentar os efetivos no sul. propor um acordo, pelo qual se compro-
Entretanto, o recrutamento dos cidadãos- metia em só mobilizar os guardas nacio-
-eleitores guardas nacionais também esta- nais para fora da província nos casos de
va inserido nas disputas políticas locais, extrema necessidade. Seria isso o reconhe-
onde a qualificação podia sujeitá-los aos cimento da condição de homens livres dos
interesses das lideranças locais e o recru- guardas nacionais, frente à qual o Esta-
tamento para o Exército podia ser imposto do e os comandantes dificilmente podiam
aos opositores. Diante desse quadro, em se opor.27 Finalmente, então, os guardas
1837, o governo central permitiu e esta- nacionais se movimentaram. E mais con-
beleceu os critérios para o recrutamento fiantes “voluntariamente e independente
dos guardas nacionais. O principal deles de designação concorreram de muito boa
era negação dos guardas nacionais parti- vontade, e até com certo grau de entusias-
ciparem dos destacamentos. Contudo, se mo para o serviço [...] aquém das frontei-

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ras”. Porém, o comandante da divisão, de grande confiança pela administração da
“abusando por tal modo da confiança”, os província, merecendo
fez “recear que [...] não estava resolvido a a gratidão do país pela prontidão com que
manter as promessas feitas”, fazendo-os corre ao ponto de defesa, apenas aparece o
marchar “para além da fronteira, quatro- menor indício de perigo; e não se pode du-
vidar de que a tranqüilidade de que goza a
centos guardas nacionais”, resultando na
província, não obstante a proximidade (...)
deserção “compreensível” de muitos deles. do Rio Grande do Sul, deve-se em grande
Diante desse novo impasse, o governo de parte, à lealdade que tem manifestado a
Império teve de “insinuar ao general La- Guarda Nacional curitibana, e às reitera-
batut [comandante da divisão] para não das demonstrações que tem dado de seu
decidido amor à monarquia constitucio-
obrigar os guardas nacionais a prestar,
nal, e à integridade do Império.32
contra sua vontade, o serviço nos corpos
destacados fora da província” e garantir a Aqueles guardas nacionais haviam
manutenção do acordo.28 conseguido dobrar os interesses do gover-
Ainda assim, a divisão foi mantida, no e impor os seus. Dessa forma, só resta-
porém formada por parte de guardas na- va aos administradores elogiar os serviços
cionais paulistas voluntários e parte de que os guardas nacionais se prestavam
soldados do Exército que estavam em San- a fazer, sem mencionar as indisposições
ta Catarina. Composta dessa forma em que tivessem manifestado. Em nenhuma
1841, a divisão fez uma incursão ao Rio parte dos relatórios provinciais paulistas
foi mencionada qualquer indisposição dos
Grande do Sul, que resultou em pouco su-
cidadãos guarda nacionais em servir na
cesso.29 Depois disso, diante da possibilida-
guerra no Rio Grande do Sul. No máximo,
de de uma nova incursão dos republicanos
foram aludidos problemas funcionais que,
a Santa Catarina, mas também porque,
resolvidos, tornariam mais eficientes os
segundo o testemunho de um ex-presiden-
trabalhos dos cidadãos guardas nacionais.
te do Rio Grande do Sul,30 “nenhum plano
Apesar de os guardas nacionais, pre-
combinado se pode fazer com” as forças
tensamente, serem grandes interessados
paulistas e catarinenses, a divisão sob o
na defesa da ordem existente, a ocorrência
comando de Labatut foi dissolvida. Os sol-
de situações como essa evidencia que podia
dados do Exército que a integravam foram
ser muito difícil mobilizá-los, principal-
distribuídos em outras unidades, enquan-
mente com a agilidade necessária aos mo-
to foram licenciados “todos os guardas na-
mentos de maior dificuldade. O que, aliás,
cionais que voluntariamente não quiserem
já foi dito por inúmeros autores analisando
continuar a servir [...] prestando-lhes [...]
diferentes contextos.33 Algo diferente, Fer-
todo o auxílio necessário para a viagem até
nando Uricoechea sugere que “a perversão
Santos ou Paranaguá”. Entretanto, no ano
política”, que a tornaria ineficaz como ins-
seguinte, em 1842, a Guarda Nacional de
tituição armada, só teria ocorrido a partir
Curitiba, “cujos habitantes são os mais ap-
da segunda metade do XIX. Portanto, em
tos para a guerra do Sul”,31 era reputada
contrariedade as situações discutidas.34

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Algumas considerações possibilidade de serem coagidos a mar-
char. Não que inexistissem forças para
A partir do que foi lido, tornam-se isso, afinal, mesmo que grande parte dos
necessárias algumas ponderações para cidadãos das localidades fossem guardas
melhor compreender o que podia ser a nacionais, havia muitos militares do Exér-
movimentação para a guerra das partes cito disponíveis para qualquer necessi-
que compunham os efetivos do Exército dade. Contudo, movimentar soldados da
imperial. A tentativa de mobilizar esses 1ª linha para coagir cidadãos eleitores a
guardas nacionais em muito se parece à cumprirem suas obrigações como guardas
forma com que ao menos parte do efetivo nacionais, não condizia com a hierarquia
da unidade do Exército recebeu a ordem de social do Império e dificilmente uma me-
partir para o Rio Grande do Sul. No en- dida nesse sentido passou, realmente, pela
tanto, tem-se aqui uma situação interes- cabeça das autoridades.
sante: dois grupos que foram ordenados e Às sucessivas recusas da maioria dos
se negaram a marchar para o Rio Grande guardas nacionais, em participar dos des-
do Sul. Contudo, as diferenças entre os tacamentos, apesar de gerar indignação
indivíduos que faziam parte do Exército às autoridades responsáveis, respondeu-
e da Guarda Nacional não permitem que -se com ameaças de prisão e de destitui-
eles sejam comparados como iguais. Entre ção dos postos dos oficiais. Enquanto os
uma e outra instituição, ou melhor, entre insubordinados da 1ª linha foram presos,
os membros de uma e outra instituição, chicoteados, transferidos etc., a maior pu-
havia muitas distinções referendadas pela nição aludida aos guardas nacionais era
legislação e publicamente reconhecidas o recrutamento para o Exército. Não obs-
por todos. Portanto, tinha-se em comum tante, ainda que fosse uma possibilidade
a indisposição de marchar e a negação em legal, tudo indica que poucos guardas na-
atender ordens nesse sentido, diferiram-se cionais foram punidos dessa maneira. Isso
na forma de protesto e no que estavam su- porque, nas poucas vezes em que guardas
jeitos por suas atitudes. nacionais recrutados solicitaram o retorno
Diante das recusas, os procedimen- para a Guarda Nacional ao Ministério da
tos das autoridades foram muito diferen- Justiça, o argumento utilizado foi sempre
tes. Para obrigar os militares profissionais o mesmo: tinham “conduta ilibada e res-
a marcharem para o Rio Grande do Sul, peito ao cumprimento de seus deveres”,35
fez-se o uso da força e não foi encontrada quer dizer, afirmavam possuir duas quali-
qualquer ponderação em favor deles na dades. Primeiro, garantiam seu bom com-
acepção de entender seus motivos. Muito portamento como cidadãos e, só depois,
antes o contrário. Com os guardas nacio- afirmavam subordinação aos superiores. É
nais ocorreu exatamente o oposto. Com- claro que a subordinação era importante,
preendiam-se suas razões e em nenhum mas tinha um peso maior na relação dos
documento foi feita sequer uma alusão à guardas nacionais com seus comandantes

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imediatos no jogo político das localidades, revolta liderada por seus concidadãos, por
ao passo que se tornava menos relevante isso fugiram. Para os guardas nacionais,
no trato distante e impessoal, além de o recurso de amedrontar as populações lo-
intermediado pelos oficiais, dos guardas cais não tinha sentido. Como a organiza-
nacionais com as autoridades governa- ção da Guarda Nacional era distrital, to-
mentais. Se não fosse assim, aqueles in- dos os guardas nacionais viviam na região
subordinados guardas nacionais paulistas e, dessa forma, eram suas as famílias que
teriam sido transferidos para o Exército. viviam na província.
Os militares de 1ª linha se negaram e se Para os guardas nacionais, o fator
amotinaram até serem presos e punidos; local também deve ser considerado, mas
os guardas nacionais se recusaram con- de uma maneira diferente daquela que
tínuas vezes e suas negativas resultaram influiu no motim dos militares do Exérci-
num acordo que os atendeu. to em Santa Catarina. Os guardas talvez
Os guardas nacionais, além da expe- tenham mensurado a possibilidade de
riência de algo semelhante, uma vez que usarem sua localização em favor do que
desde 1836 se recusavam sucessivamente desejavam. Ainda que isso não lhes tenha
a marchar para o Rio Grande do Sul, tam- parecido importante, a proximidade entre
bém baseavam suas atitudes na certeza de São Paulo e o Rio Grande do Sul, como
que seus comandantes não só os apoiariam também a recente incursão dos farroupi-
como também manifestariam sua indispo- lhas a Santa Catarina, facilitaram e con-
sição em sair de São Paulo. De forma seme- tribuíram favoravelmente para a decisão
lhante, os militares também podem ter se de os administradores das forças imperiais
baseado nas suas experiências anteriores, atenderem às reivindicações daqueles ci-
quando a deflagração de um motim resul- dadãos eleitores. O que, muito provavel-
tou na organização de uma subscrição pro- mente, não aconteceria se fossem guardas
vincial para saldar seus soldos atrasados. nacionais, por exemplo, do Ceará.
Portanto, usaram o conhecido receio das
populações da província e das autoridades Soldiers or citizens national guardsmen: diversity
quanto à ocorrência de um novo motim and possibilities in the mobilization of forces for
militar. Muito provavelmente, esse temor the imperial War of Farrapos
foi levado em conta e integrou a estraté-
gia dos idealizadores da sublevação do Abstract
Corpo de Artilharia de posição em Lagu-
na. Ainda que os líderes da revolta fossem During the Farrapos War, Brazil’s
moradores de Santa Catarina, o 2º Corpo government mobilized different armed
de Artilharia era originário da corte e for- groupings to defeat southern repub-
mado por militares de várias províncias. licans. This diversity reproduced the
Assim, exceto os familiares dos militares Empire social hierarchy and influ-
catarinenses, a população em geral não ti- enced in the War effort plans. This
analysis discusses different possibili-
nha qualquer garantia sobre os limites da

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ties and resources used by soldiers of 28/7/1846, 4/3/1847, 27/3/1847, ministro da
the Army and National Guards who Guerra ao presidente da província de Santa
Catarina.
tried to refuse to be mobilized to the 13
AHRS, AM, M. 129, Desterro, 14/10/1837, te-
War. nente Manoel J. de Souza ao marechal Antonio
E. M. e Brito; M. 126, Rio Grande, 3/1/1837,
comandante do 2º Corpo de Artilharia de posi-
Keywords: Farrapos War. Imperial ção ao presidente Província do Rio Grande do
Army. National Guard. Sul; AHEx, Cód. 91, Rio de Janeiro, 9/7/1841,
ministro da Guerra ao presidente da província
do Rio Grande do Sul; AHRS, AM, M. 126, Rio
Notas Grande, 1/1/1837, comandante do 2º Corpo de
Artilharia de posição.
14
1
Arquivo Nacional (AN), Fundo Série Guerra LEVI, 1992, p. 135
15
(SG), IG¹ 67, Recife, 18/2/1843, chefe da seção. AN, SG, IG¹ 529, Desterro, 14/10/1835, coman-
2
AN, SG, IG¹ 529, Santa Catarina, 2/4/1836, dante do 2º Corpo de Artilharia de posição ao
José M. de A. Cavalcante a Manoel da F. L. e ministro da Guerra; Desterro, 30/12/1832,
Silva. comandante do 2º Corpo de Artilharia de po-
3
AN, SG, IG¹ 529, Laguna, 22/3/1836, João A. de sição ao província de Santa Catarina; Museu
O. Tavares ao presidente dapProvíncia de San- de Comunicação Social Hipólito José da Costa
ta Catarina. (MCSHJC), jornal O Mensageiro, 26/2/1836;
4
BOITEAUX, 1935; FRAGOSO, 1939. AN, SG, IG¹ 529, Laguna, 28/1/1836, José M. de
5
Ministério da Guerra, 1934. A. Cavalcante a José de A. Ribeiro; MCSHJC,
6
AN, SG, IG¹ 529, Desterro, 30/12/1832, coman- jornal O Mensageiro, 5/5/1836.
16
dante do 2º Corpo de Artilharia de posição ao AHRS, AM, M. 126, Rio Grande, 1/1/1837, co-
presidente da província de Santa Catarina; mandante do 2º Corpo de Artilharia de posição.
17
Desterro, 12/10/1831, Feliciano N. Pires a Ma- FRANCO, 2000.
18
noel da F. Lima e Silva. AN, SG, IG¹ 174, Porto Alegre, 5/8/1839, Satur-
7
AN, SG, IG¹ 529, Desterro, 7/4/1831, a Miguel nino de S. e Oliveira ao ministro da Guerra.
19
de S. M. e Alvim; 16/5/1831, vice-presidente da AN, SG, IG¹ 150, São Paulo, 3/11/1837, presi-
província de Santa Catarina a José M. de Mo- dente da província de São Paulo aos prefeitos
raes; 30/4/1831, Francisco L. do Livramento a de Itapeva, Curitiba e Príncipe.
20
José M. de Moraes. AN, SG, IG¹ 150, Castro, 15/12/1837, Balduíno
8
AN, SG, IG¹ 529, Desterro, 30/1/1832, José H. de A. Jaques ao presidente da província de São
de Paiva ao comandante das Armas. Paulo.
21
9
CIDADE, 1948; SEIDLER, 2003; RIBEIRO, CASTRO, 1979.
22
2005. AN, SG, IG¹ 150, São Paulo, 5/1/1838, Bernardo
10
AN, SG, IG¹ 529, Desterro, 4/10/1835, Feliciano J. P. G. Peixoto; IG¹ 385, São Paulo, 19/8/1840,
N. Pires ao barão de Itapícuru Mirim. Rafael T. de Aguiar ao ministro da Justiça.
23
11
AN, SG, IG¹ 529, Desterro, 2/4/1836, presiden- AN, SG, IG¹ 150, São Paulo, 28/3/1838, presi-
te da província de Santa Catarina ao Ministro dente da província de São Paulo ao Ministro da
da Guerra; IG¹ 529, Laguna, 24/3/1836, coman- Guerra.
24
dante do 2º Corpo de Artilharia de posição ao CASTRO, 1979.
25
presidente da província de Santa Catarina; Ar- AHRS, AM, M. 134, Paranaguá, 9/2/1840,
quivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), Pedro Labatut ao presidente da província do
Fundo Autoridades Militares (AM), Maço (M.) Rio Grande do Sul; AN, SG, IG¹ 297, Lages,
126, Rio Grande, 1/1/1837, comandante do 2º 13/7/1840, general Pedro Labatut, respectiva-
Corpo de Artilharia de posição; Arquivo Histó- mente, a Salvador J. Maciel e ao ministro da
rico do Exército (AHEx), Códice (Cód.) 74, Cor- Guerra; IG¹ 297, Rio Negro, 30/6/1840, coman-
te, 12/2/1841, 12/5/1840, Ministro da Guerra ao dante do ponto do Rio Negro ao comandante da
presidente da província de Santa Catarina. divisão de São Paulo, Pedro Labatut.
26
12
AHEx, Cód. 91, Corte, 19/9/1840, ministro da LEVI, 1992.
27
Guerra ao presidente da província do Rio Gran- URICOECHEA, 1978.
de do Sul; Cód. 74, Rio de Janeiro, 7/11/1842,

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28
Sobre o acordo entre os guardas nacionais FRAGOSO, Augusto Tasso. A Revolução
e o governo, ver AN, SG, IG¹ 383, São Paulo, Farroupilha. Rio de Janeiro: Oficinas Gráfi-
19/8/1840, presidente da província de São Pau-
cas da Almanak Laemmert, 1939.
lo ao ministro da Justiça. As citações foram ex-
traídas, respectivamente, de AN, SG, IG¹ 385, FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre ci-
São Paulo, 19/8/1840, Rafael T. de Aguiar ao dade sitiada (1836-1840). Um capítulo da
ministro da Justiça; Rio de Janeiro, 11/10/1840,
Revolução Farroupilha. Porto Alegre: Suli-
Antônio P. L. de Abreu ao presidente da provín-
cia de São Paulo. na, 2000.
29
FRAGOSO, 1939. LEVI, Giovani. Sobre a micro-história. In:
30
OLIVEIRA, 1986 [1842].
31 BURKE, Peter (Org.). A escrita da história:
AHEx, Cód. 91, Rio de Janeiro, 10/5/1841, mi-
nistro da Guerra ao presidente da província novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992.
do Rio Grande do Sul; relatório do ministro da p. 135
Justiça, 1836.
32
Relatório do presidente da província de São
MINISTÉRIO DA GUERRA. Exército bra-
Paulo, 1842. Disponível em: http://www.crl. sileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1934.
edu/pt-br/brazil/provincial/s%C3%A3o_paulo.
33
DORATIOTO, 2002; CARVALHO, 2003; RIBEI- OLIVEIRA, Saturnino de S. Bosquejo histó-
RO, 2005. rico e documentado e negócios do Rio Gran-
34
URICOECHEA, 1978.
35
de. Porto Alegre: Corag, 1986 [1842].
AN, SG, IG¹ 385, Rio de Janeiro, 30/4/1841,
1/5/1841, 2/5/1841, comandante Lázaro J. RIBEIRO, José Iran. Quando o serviço os
Gonçalves ao ministro da Guerra; quartel, chamava: milicianos e guardas nacionais no
21/4/1841, major Rafael J. Carvalho ao coman- Rio Grande do Sul (1825-1845). Santa Ma-
dante superior da Guarda Nacional; IG¹ 383,
Niterói, 15/2/1841, Manoel J. de S. França ao ria: UFSM, 2005.
ministro da Guerra. SEIDLER, Carl. Dez anos no Brasil. Brasí-
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Referências URICOECHEA, Fernando. O minotauro im-


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nial brasileiro no século XIX. São Paulo/Rio
BOITEAUX, Lucas Alexandre. A Marinha
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imperial na Revolução Farroupilha. Rio de
Janeiro: Imprensa Naval, 1935.
CARVALHO, José Murilo de. A construção
da ordem: a elite política imperial. Teatro de
sombras: a política imperial. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
CASTRO, Jeanne Berrance. A milícia cida-
dã: a Guarda Nacional de 1831 a 1850. 2. ed.
São Paulo: Nacional, 1979.
CIDADE, Francisco de Paula. Lutas contra
os espanhóis e seus descendentes (1680-1828).
Rio de Janeiro: Biblioteca Militar, 1948.
DORATIOTO, Francisco. Maldita guerra:
nova história da Guerra do Paraguai. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002.

153
História: Debates e Tendências – v. 12, n. 1, jan./jun. 2012, p. 139-153

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