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OS DISCURSOS DO

TERCEIRO SETOR:
SENTIDOS DE
COMUNICAÇÃO,
TRABALHO E
EDUCAÇÃO
EM ONGs DE
COMUNICAÇÃO

IV SICCAL

[ GT3 – TERRITÓRIO E CONFLITOS URBANOS ]

Camila Acosta Camargo


Universidade de São Paulo (USP)
Camila Acosta Camargo

Os discursos do terceiro setor: sentidos de comunicação, trabalho
e educação em ONGs de comunicação 614


[ R ES U MO AB STR AC T RESUME N ]

Apresentaremos, neste artigo, parte dos resultados da pesquisa “A comunicação do


“terceiro setor” como expressão do neoliberalismo: as práticas discursivas e os sentidos
do trabalho em ONGs de comunicação”, que visou investigar como se expressam os
sentidos e as relações de comunicação e trabalho em organizações sem fins lucrati-
vos que elencaram a comunicação como principal ferramenta de atuação em defesa
de uma causa social. Para isso, selecionamos três organizações sociais nomeadas na
pesquisa “ONGs de comunicação”, localizadas no município de São Paulo e ativas du-
rante o período de realização da pesquisa – 2016-2018, nas quais aprofundamo-nos em
seus enunciados institucionais e na experiência dos trabalhadores a partir de relatos
próprios. O artigo contemplará o tópico de resultados de análise sobre os sentidos de
comunicação, trabalho e educação que circulam em suas práticas e seus discursos.
Palavras-chave: Comunicação. Trabalho. Educação. Neoliberalismo. Ideologia do terceiro setor.

This article presents part of the research entitled “The communication of the “third
sector” as an expression of neoliberalism: the discursive practices and the meanings
of work in Communication NGOs”, in which we aimed to investigate how the
relations of communication and labor are expressed in non-profit organizations
that selected communication as their main tool in defense of a social cause. To do
this, we selected three social organizations named here “Communication NGOs”,
located in the city of São Paulo and active during the period of study - 2016-2018,
in which we deepened in their institutional communication and the workers’
experience based on their own statements. This article will contemplate the
analysis topic about the meanings of communication, work and education that
circulate in their practices and their discourses.
Keywords: Communication. Labor. Education. Neoliberalism. Ideology of the third sector.

En este artículo, presentaremos parte de los resultados de la investigación “La comuni-


cación del ‘tercer sector’ como expresión del neoliberalismo: las prácticas discursivas
y los sentidos del trabajo en ONGs de comunicación”, que pretendió estudiar cómo se
expresan los sentidos y las relaciones de comunicación y trabajo en organizaciones
sin fines de lucro que eligieron la comunicación como principal herramienta de ac-
tuación en defensa de una causa social. Para ello, seleccionamos a tres organizaciones
sociales nombradas aquí como “ONGs de comunicación”, que se ubican en la ciudad de
São Paulo y estuvieron en actividad en el período de realización de la investigación -
2016-2018, desde las cuales profundizamos en sus enunciados institucionales y en la
experiencia de los trabajadores según relatos propios. El artículo contemplará la parte
de resultados de análisis sobre los sentidos de comunicación, trabajo y educación que
participan en sus prácticas y discursos.
Palabras clave: Comunicación. Trabajo. Educación. Neoliberalismo. Ideología del tercer sector.

DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2019.153911

Extraprensa, São Paulo, v. 12, n. esp., p. 613 – 632, set. 2019 [ EXTRAPRENSA ]
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Introdução da sociedade, cria-se a percepção de que


é possível solucionar os problemas exis-
tentes dentro do modo de produção capi-
O presente artigo decorre da pesquisa talista sem enfrentar diretamente as suas
intitulada “A comunicação do “terceiro causas – como a desigualdade de classes
setor” como expressão do neoliberalismo: e a opressão do trabalho.
as práticas discursivas e os sentidos do
trabalho em ONGs de comunicação” 1, Para entender empiricamente este
desenvolvida no Centro de Pesquisa em processo, fizemos visitas às sedes das orga-
Comunicação e Trabalho, que almejou com- nizações onde observamos os espaços de
preender como se expressam os sentidos de trabalho, realizamos coleta de dados nos
comunicação e trabalho em organizações websites; relatórios de atividades; vídeos
sem fins lucrativos nas quais a comuni- e reportagens; e entrevistas em profundi-
cação foi elencada como o principal meio dade. Operamos uma pesquisa exploratória
adotado em defesa de uma causa social, de caráter empírico, definimos como recorte
o que denominamos ONGs de comunicação. de estudo três instituições localizadas no
município de São Paulo e que se encontra-
Objetivamos identificar em que ram ativas e atuantes durante o período da
medida as práticas discursivas e as rela- pesquisa (2016-2018).
ções de trabalho instituídas são atra-
vessadas pelos sentidos hegemônicos Ao conceber este recorte específico
vinculados à ideologia do “terceiro setor”2 de pesquisa, buscamos investigar ONGs que
(MONTAÑO, 2002) a partir da análise estão impreterivelmente imersas no uni-
dos enunciados oficiais e dos relatos dos verso comunicacional, conhecem as especifi-
trabalhadores. O conceito presume que o cidades e as principais discussões do campo,
fenômeno de ascensão das ONGs integra tendo-o em seus mais diversos aspectos
um projeto neoliberal de responsabiliza- como objeto de atenção. Em algumas delas
ção do indivíduo e de cooptação das pau- a comunicação é o objetivo-fim do traba-
tas progressistas pelo poder dominante. lho, em outras ela é a principal ferramenta
Ao estabelecer um formato de organiza- para a defesa de uma causa social, como
ções privadas que realizam a ‘gestão do a educação, a capacitação profissional etc.
social’ como parte de um setor distinto No caso específico das entidades analisadas
em nossa pesquisa, em todas elas notamos
o grande destaque dado a comunicação em
1 Dissertação de mestrado apresentada ao seu discurso institucional e em sua prática de
Programa de Pós-Graduação em Ciências da trabalho, e para nós foi interessante enten-
Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da der como essa comunicação se expressa,
Universidade de São Paulo.
que função exerce e o que cada uma delas
2 O conceito de ideologia do “terceiro setor” foi pro-
posto pelo autor Carlos Montaño, que apresenta uma entende como comunicação. Finalmente,
análise crítica ao fenômeno de trato da questão social observamos a associação entre as temáticas
dentro do projeto neoliberal. Dessa forma, a termino- da comunicação, do trabalho e da educação
logia “terceiro setor” é colocada em questionamento,
ao negarmos a divisão setorializada da sociedade, e por
como estando entrelaçadas neste processo,
isso é utilizada entre aspas. e buscamos apresentar suas correlações.

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Metodologia inserção em uma conjuntura mais contempo-


rânea no que tange tanto aos aspectos sociais
quanto aos comunicacionais.
Inicialmente, fizemos uma investiga-
ção para identificar instituições com sede Dessa forma, o primeiro levantamento
no município de São Paulo que autodecla- resultou na pré-seleção de seis instituições
radamente exercem atividades entendidas a partir de uma amostragem não-proba-
no mundo profissional como práticas espe- bilística por escolha racional (POUPART,
cíficas do campo da comunicação – a isso 2008). Buscamos compor uma seleção que
entendemos como ONGs de comunicação. se enquadrasse no perfil determinado, mas
que possuísse particularidades em relação às
O campo das instituições sem fins temáticas e às formas de atuação, permitindo
lucrativos está fortemente marcado no ima- assim resultados empíricos mais variados. Elas
ginário popular pela atuação em causas como diferem em tamanho, origem, proposta, perfil,
assistência social, educação, saúde e defesa práticas de trabalho entre outros aspectos.
do meio ambiente. Mais recentemente, com
a centralidade que as tecnologias da comuni- A partir do levantamento inicial e a
cação e informação adquiriram na sociedade, pré-seleção de seis instituições, nosso objetivo
temas deste universo passaram a atravessar era ainda de promover uma filtragem para
as questões sociais e foram incorporados chegar na definição final de três delas para
nos discursos e práticas de trabalho nos a aplicação do estudo, pois entendemos o
segmentos filantrópicos. Ficamos interes- número como ideal para o aprofundamento
sados, assim, em entender mais sobre como empírico de forma concretizável durante o
se determina a dinâmica da comunicação tempo de desenvolvimento da pesquisa. Para
quando ela se estabelece como uma causa esta etapa, alguns aspectos foram levados em
social, e propomos essa investigação no consideração na triagem das instituições: rele-
âmbito do binômio comunicação e trabalho vância da instituição em seu nicho de atuação;
proposto pela autora Roseli Figaro (2008). maior possibilidade de acesso à observação,
entrevistas com funcionários e documentos
Para a seleção das ONGs, estabelece- oficiais; website e redes sociais com uma quan-
mos o seguinte critério: 1) serem constituídas tidade significativa de conteúdo disponível
juridicamente como associações; 2) estarem para a análise e; multiplicidade de temas de
baseadas no município de São Paulo; 3) esta- atuação, estruturas organizativas, tamanho,
rem ativas durante o período de realização localização e comunicação ‘oficial’.
do estudo; 4) atuarem com a temática da
comunicação como causa social. O primeiro Um dos códigos que se revelou per-
mapeamento revelou a existência de diversas tinente neste momento foi também o de
instituições com este perfil no município. origem/fundação das instituições, pois
Descartamos, então, aquelas instituídas uni- assumimos este aspecto como essen-
camente como mídias comunitárias – jornais cial para expressar diferentes práticas de
e rádios – visto que já há uma ampla literatura comunicação e trabalho em cada uma delas.
sobre o tema. Buscávamos organizações com Identificamos que três delas são vinculadas
propostas de comunicação que indicassem a a empresas ou empresários (1) (2) e (3); uma

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decorre de movimentos sociais (4); uma de (5 - comunitária) e (6 - acadêmica) para a


vinculação comunitária/periférica (5); e uma aplicação do estudo. Vale destacar que não
de acadêmicos e profissionais da área (6). adotamos o método comparativo de aná-
lise – nossa proposta foi de apontar como
Com isso, chegamos por fim na os sentidos identificados se expressam em
seleção de três ONGs (2 - empresarial), cada uma das organizações.

[ Tabela 1 ]
Descrição das organizações selecionadas

ONG COMUNITÁRIA ONG ACADÊMICA ONG EMPRESARIAL

Formação de jovens Disseminação de Capacitação de jovens


Área de atuação
em educomunicação informação em audiovisual
Distrito periférico da Distrito da Zona Distrito central
Localização
Zona Sul de São Paulo Oeste de São Paulo de São Paulo
Impulsiona o uso das Identifica e torna públicas Promove o
Tecnologias de Informação as situações que violam desenvolvimento
e Comunicação – TIC – os direitos fundamentais
profissional,
como estratégia para o dos brasileiros por
O que faz3
acesso e a ampliação de meio de reportagens,
sociocultural e pessoal
direitos sociais, culturais e jornalismo investigativo, de jovens por meio da
econômicos entre jovens pesquisas e metodologias formação socioeducativa
e comunidade escolar. educacionais. em audiovisual.

Ano de fundação 2011 2001 2003

Acadêmicos e
Perfil dos fundadores Membros da comunidade
profissionais
Empresariado

Empresários e
Perfil do conselho Ex-educandos Profissionais da área
figuras públicas
1) Prestação de
serviços na área de 1) Doação de empresas
1) Prestação de serviços desenvolvimento de (leis de incentivo e
Financiamento
no ramo do audiovisual pesquisas e formação investimento direto
socioeducativa de recursos)
2) Doações

Receita anual Não informado 2 milhões em 2017 4 milhões em 2016

Tamanho Até 10 funcionários Até 20 funcionários Até 50 funcionários

Fonte: Elaboração própria

Optamos por realizar a pesquisa de assim como analisar as falas dos entrevis-
maneira confidencial, visando propiciar tados sem gerar comprometimentos para
maior liberdade para descrever os processos os mesmos. O interessante desta proposta
é que ela não personaliza o estudo, ao con-
trário, estabelece parâmetros para a com-
3 Texto extraído e adaptado da comunicação insti-
preensão de um cenário maior que situa
tucional apresentada nos websites das organizações. as organizações como representações

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simbólicas e resultantes de processos que com comunicação realizado na organi-


são históricos e sociais. zação, no qual nosso objetivo é entender
melhor como a instituição e os funcioná-
A partir de então, como estratégia rios enxergam a comunicação; como ela
idealizada para a pesquisa de campo, busca- pode ser assumida como uma causa social
mos executar as seguintes técnicas de coleta dentro do universo da filantropia; e o que
em todas as instituições: levantamento de consideram ser a função da comunicação
dados da comunicação institucional em na instituição. Os dois últimos blocos são
websites, redes sociais, relatórios de ati- aplicados com trabalhadores em cargos
vidades, reportagens e outros; entrevis- gerenciais, sendo que algumas perguntas
tas qualitativas (DUARTE, 2005) por meio são adaptadas aos demais casos.
de um questionário semiestruturado; e a
observação do ambiente de trabalho. Abaixo, apresentamos as principais
estratégias de contato e técnicas de coleta
Para as entrevistas qualitativas, sele- adotadas, apontando as ferramentas espe-
cionamos dentro do corpo de funcionários cíficas para cada uma delas e também como
prioritariamente os gestores e coordena- elas são utilizadas.
dores, em seguida incluímos conversas e
entrevistas com demais trabalhadores, uti- Para a interpretação dos dados coleta-
lizando o roteiro de perguntas semiestru- dos, criamos categorias de análise a partir
turadas, o gravador e o caderno de campo de critérios que surgiram tanto a partir do
como ferramenta de trabalho. estudo teórico quanto da própria vivência
da pesquisa empírica. No presente artigo,
Em todas as organizações tivemos a apresentamos os resultados da categoria
oportunidade de conversar com trabalha- O que é comunicação? O ponto de vista das
dores em cargos de chefia e demais funcio- organizações, na qual propomos tanto a
nários, tendo sido em entrevistas oficiais ou interpretação dos enunciados “oficiais”
em conversas informais (não registradas). quanto das falas dos trabalhadores.
A entrevista semiestruturada se inicia com
o primeiro bloco de perguntas sobre a tra-
jetória profissional do trabalhador, que nos
ajuda a entender melhor seu lugar de fala,
para em seguida adentrarmos nas questões O “terceiro setor”
sobre sua função na organização; tempo enquanto ideologia
de cargo; sua visão sobre o trabalho em
ONGs, em contraponto a experiências no
setor privado e suas rotinas diárias. Essa Para entender melhor as condições
primeira parte é composta de perguntas e relações de comunicação e trabalho
sobre vivências individuais e são aplicadas a (FIGARO, 2008) nestas organizações, con-
trabalhadores que ocupam todos os cargos. sideramos essencial localizá-las no pro-
cesso histórico, social e discursivo que não
O segundo bloco é composto por apenas as constituem individualmente,
perguntas que especificam o trabalho mas as inserem em um projeto estrutural

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maior. Assim, buscamos compreender a negócio social, economia solidária, entre


razão de ser e existir de uma ONG a partir outras que surgem como signos ideológi-
da trajetória de seu campo de inserção, cos (VOLOCHINOV, [1929]2017) no dis-
entendido como o “terceiro setor” / socie- curso do capitalismo neoliberal.
dade civil organizada.
Afirmar a existência do terceiro setor
Partimos do entendimento de que o é considerar que antes forma-se um pri-
“terceiro setor” se trata de um fenômeno meiro setor (Estado) e um segundo setor
complexo e contraditório em sua própria (mercado), e que estes teriam funcionamen-
constituição. Este universo abrange tanto tos e diretrizes completamente distintos.
organizações vinculadas à ideais progres- Assim, as correntes às quais o conceito em
sistas e libertários quanto conservadores questão deriva entendem a sociedade de
e neoliberais, e segundo Maria da Glória forma fragmentada e setorializada, como
Gohn (2000), se estrutura em torno de um é o caso das abordagens positivista, estru-
objetivo comum: a defesa da cidadania. Tal turalista e funcionalista, entre outras.
noção engloba uma série de sentidos que
permitem que os discursos da cidadania Muitas perspectivas teóricas advindas
tenham incorporação tanto em iniciati- das ciências sociais aplicadas e da administra-
vas que visam a emancipação de setores ção partem de premissas que endossam o con-
populares quanto àquelas meramente ceito. Para Ruth Cardoso, ex-primeira-dama
assistenciais e estruturadas sob lógicas e forte referência nos estudos do “terceiro
estratégicas de mercado. setor” e assistência social no Brasil, define-o
como um espaço autônomo e independente
Optamos por uma abordagem que do mercado e do governo:
destoa em grande parte das publicações
sobre o tema, que assumem a existência O conceito Terceiro Setor descreve um
do “terceiro setor” e o enxergam como espaço de participação e experimentação
um espaço de transformação pacífica da de novos modos de pensar e agir sobre
realidade, capaz de promover mudanças a realidade social. Sua afirmação tem o
sociais sem o levantamento de maiores grande mérito de romper com a dicoto-
confrontos. É comum neste campo depa- mia entre público e privado, na qual o
rarmo-nos com teorias que abordam o público era sinônimo de estatal e privado
“terceiro setor” como um bloco único e de empresarial. Estamos vendo o surgi-
homogêneo, desconsiderando suas dife- mento de uma esfera pública não-estatal
renças e contradições, recaindo assim em e de iniciativas privadas com sentido
observações reducionistas desta realidade. público. Isso enriquece e complexifica a
Nosso olhar para o tema busca, ao contrá- dinâmica social. ([1997] 2005. p. 8)
rio, complexificar o debate com o intuito
de problematizar os sentidos hegemônicos Pedro Jaime aponta a crítica durante
circulantes e revelar os conflitos existen- o período de crescimento do conceito no
tes a partir do debate acerca da ideologia Brasil entre os anos 1990 e 2000, e revela
do “terceiro setor” e suas noções análogas, como a concepção reflete e refrata a cons-
tais quais as de empreendedorismo social, trução de um pensamento que busca

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fortalecer o discurso de um desenvolvi- “seus projetos e ações sociais orientam-se


mento social inteiramente vinculado a na potenciação dos indivíduos (autoajuda,
noção de privado, sob uma ótica neoliberal – empoderamento, empreendedorismo, auto-
“a dimensão política da sociedade civil é motivação, capacitação etc.) ou na ajuda ao
esvaziada em nome de um terceiro setor, próximo (solidariedade, responsabilidade
cuja natureza está relacionada com a social empresarial, parcerias, filantropia,
capacidade de estabilizar a crise que atra- etc.).” (MONTAÑO, 2014, p. 37). O sentido
vessa o sistema capitalista, amortecendo de liberdade, nesta visão, claramente advém
os efeitos do desemprego estrutural ou da tradição liberal, ao entender o sujeito
tecnológico” (2005, p. 78). livre para exercer sua ação, seja na socie-
dade civil ou no mercado.
Nossa abordagem teórica também
se vincula à perspectiva crítica ao con- Evelina Dagnino aponta o início
ceito, entendendo que as instituições deste pensamento no período de redemo-
sociais estão vinculadas e, mais do que cratização brasileira, em grau similar na
isso, submetidas, às lógicas do capital, América Latina como um todo, quando os
sendo impossível sua completa separa- projetos político-culturais da democracia e
ção autônoma e independente. Partimos do neoliberalismo disputavam espaço em
da premissa de Montaño, que defende a um jogo discursivo que resultou no que
existência de uma ideologia do “terceiro denomina a confluência perversa, sendo
setor”, ou seja, um sistema de valores sob que “a perversidade estaria colocada,
os quais este conceito foi coordenada- desde logo, no fato de que, apontando para
mente construído. O autor define: direções opostas e até antagônicas, ambos
os projetos requerem uma sociedade civil
Entendemos por Ideologia do “Terceiro ativa e propositiva” (2004, p. 197). Assim,
Setor” o conjunto de termos e lingua- a ideologia do “terceiro setor” carrega um
gens, de conceitos teóricos e de valo- sentido que favorece os interesses hege-
res éticos e políticos, que sustentam a mônicos (o projeto neoliberal), porém seus
autorresponsabilização dos sujeitos por promotores advêm das classes popula-
suas próprias condições de vida, e pela res, intelectuais e militantes (o projeto
solução de seus problemas e satisfação da esquerda possibilista).
de suas necessidades, des-responsabili-
zando o Estado da ação social e desone- A concepção de um “terceiro setor”,
rando o capital nessa tarefa. (2014, p. 41) como uma alternativa ao mercado e ao
Estado, “engloba uma ideologia, que apre-
Montaño defende, assim, que a ideo- senta conceitos, valores, interesses, de forma
logia constitutiva do “terceiro setor” parte mistificada e mistificadora, para se cons-
de uma junção de valores do projeto neoli- tituir como ideologia hegemônica, aceita
beral com o projeto de uma esquerda possi- como algo natural e/ou desejável por todos”
bilista ou reformista, por mais contraditório (MONTAÑO, 2014, p.38), e parte de uma
que isto pareça à princípio, pois ambos noção de cidadania que se dá no âmbito de
embutem ao cidadão a responsabilidade da uma sociedade civil organizada que se esta-
mudança social. Estas visões da realidade, belece descolada do conflito de classes.

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ONGs de comunicação Ao tentarmos definir um uso para o


termo comunicação, o que está em ques-
tão é nos colocarmos de acordo sobre
Nossa proposta, desde o início, foi o que falamos, e que por conseguinte
de delimitar organizações que atuam de nos interessa estudar. Trata-se então de
forma direta ou indireta com a comunica- falar de uma mesma coisa e não de se
ção tendo a função de causa social. Assim, estabelecer a verdade derradeira sobre
surgiu nosso primeiro desafio: o que con- o que é comunicação (2001).
sideramos comunicação para fazer este
recorte? Partimos teoricamente do pres- Se, do ângulo epistemológico e teó-
suposto de que a comunicação é parte da rico, partimos de certa acepção para a
constituição do homem enquanto ser social comunicação que permite uma refle-
(VYGOTSKI, [1954] 2008), e enfatizamos a xão sobre a realidade e também sobre o
importância de não a reduzir a sua função próprio campo científico, no âmbito da
técnico-instrumental. Assumimos que a empiria, nós assumimos justamente as
comunicação e o trabalho são atividades contradições e multiplicidade de olhares
inter-relacionadas, e que a comunicação possíveis que refletem e refratam a
no mundo do trabalho economicamente compreensão que se tem sobre o tema,
produtivo é concebida como a relação entre em especial no mundo concreto da
os trabalhadores consigo, com os outros e atividade de trabalho. Recorremos, assim,
com o ambiente – podendo ser relações ao entendimento da práxis comunicacio-
mediadas ou não por dispositivos de comu- nal na dinâmica do mundo do trabalho,
nicação e informação (FIGARO, 2008). baseada em um senso comum constituído
nas últimas décadas com a emergência
Assim, toda instituição humana é das ferramentas de comunicação.
constituída por relações de comunicação,
o que configura atestar que toda organi- Neste cenário, construiu-se uma per-
zação é uma organização de comunicação. cepção da comunicação sempre vinculada
Contudo, temos clareza de que tal defi- à técnica, como o rádio, o cinema, o jornal,
nição entra em conflito com a própria a TV e posteriormente também os meios
necessidade de delimitação conceitual digitais. Nasceram, assim, profissões asso-
que nosso trabalho em específico exige ciadas ao que se considerou o campo da
para olhar o objeto. comunicação, como o jornalismo, a publi-
cidade, as relações públicas etc.; e estas se
Entendemos que existem inúmeras renovam constantemente em vias de se
abordagens possíveis de serem elencadas adequar às inovações pautadas justamente
em uma investigação em nosso campo, pelas tecnologias. Esta construção social
e o debate não se trata de atribuir um que se estabeleceu acerca das possibilida-
sentido único em detrimento de outros, des comunicacionais no campo profissio-
mas sim apontar as múltiplas possibili- nal delimita certas práticas como sendo
dades e destacar dentre elas qual melhor pertencentes ao campo da comunicação
responde ao nosso problema de pesquisa, em detrimento de outras. Deste modo,
como enfatiza Luiz Martino: atividades como o jornalismo, a assessoria

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de imprensa, a produção audiovisual, a pedagógicas advindas dos debates da área


propaganda e a comunicação corporativa, de educação e comunicação; o acesso e
para dar alguns exemplos, se instituíram direito à informação e à comunicação ganha
como campos vinculados à ideia gene- destaque como pauta de organizações e
ricamente constituída de comunicação, movimentos sociais; a alfabetização digi-
enquanto curiosamente campos como o tal e a capacitação técnico-profissional em
design e até mesmo o marketing são mais instrumentos de comunicação passam a
usualmente associados a outros campos – o ser entendidas como essenciais ao cidadão.
design vinculado às linguagens visuais e
o marketing à administração. Estas e outras possibilidades inte-
gram o que aqui assumimos como ONGs
Existe, portanto, um imaginário social de comunicação.
sobre as expressões da comunicação no mer-
cado profissional, e sem dúvida esta visão é
respaldada por discursos teórico-científicos
que validam e reforçam estas concepções.
Partimos deste princípio para delimitar nosso As expressões de trabalho
objeto. Se, no mundo do trabalho tradicional- no “terceiro setor”
mente constituído e essencialmente privado,
as organizações de comunicação são assumidas
como as agências de publicidade, assessorias Na perspectiva do materialismo
de imprensa, jornais, agências de relações histórico, a categoria trabalho assume
públicas, produtoras de vídeo, veículos de uma posição ampliada na constituição do
mídia, entre diversos outros que afloram com homem como ser social. Contudo, a apro-
as mudanças no mundo produtivo, buscamos priação do trabalho pelo capital promove
investigar como se expressam essas atividades alterações em seu sentido, que resultam
dentro de outro universo, das organizações em uma relação de constante contradição
sem fins lucrativos – o “terceiro setor”; enten- entre o sujeito, seu ofício e o espaço em que
dendo que, ao constituir-se a partir de uma se está inserido, atravessada pelos domí-
trajetória sócio-histórica particular, tem a nios da exploração e da emancipação, em
potencialidade de originar novos sentidos um campo de disputas que se dá no mundo
para o trabalho. Neste caso, o trabalho no do trabalho e se reflete na produção inte-
campo da comunicação. lectual sobre o tema.

Alguns exemplos já existentes reve- Marx e Engels trazem uma contri-


lam como este cenário tem se estruturado. buição riquíssima para demarcar um pen-
ONGs que atuam como rádios e jornais samento que revela como a desigualdade
comunitários foram um forte símbolo da endêmica do sistema é resultado direto
década de 1960-1980; com o disparar do da expropriação do trabalho e apontam
avanço tecnológico, nascem as organiza- com isso se manifesta concretamente na
ções voltadas à inserção digital; o trabalho relação entre capitalistas e empregados
socioeducativo na área da assistência social com o mecanismo da retirada da mais-
passou a ser atravessado pelas possibilidades -valia. A atualização destes conceitos na

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contemporaneidade nos ajuda a explicar valorização de capital – já que não são


como as expressões do capital engendram orientadas pelo lucro, estando inseridas
as relações sociais para além desta situação na categoria marxiana de trabalho impro-
direta de exploração, e como os sentidos dutivo. Contudo, como explicamos acima,
hegemônicos passam a ser incorporados elas estão intrínseca e historicamente
pelos sujeitos de uma forma que o capi- imbricadas nas lógicas dominantes e, por
talismo não mais representa apenas um conseguinte, favorecem o processo de
sistema econômico, ele opera também no acumulação por representarem parte de
nível das inter-relações, alterando de forma uma estratégia de expansão do grande
acentuada as nossas percepções de vida e capital e do projeto neoliberal.
a nossa subjetividade.

Compreender esse movimento é


essencial para falarmos da dinâmica das
relações em organizações sem fins lucrati- O que é comunicação?
vos, espaços de ‘cunho social’ onde circulam O ponto de vista das organizações
expressões de trabalho singulares, como a
própria concepção de trabalho voluntário,
mistificado pelos discursos de boa vontade, O sentido assumido pelas três orga-
ação desinteressada e ajuda ao próximo, que nizações selecionadas acerca do que consi-
fortalece uma mentalidade que desassocia deram comunicação se mostrou como uma
a “questão social” da questão de classe. categoria de análise pertinente, já que suas
distintas significações expressam sobre as
As ONGs são locais que não atuam suas visões de mundo e, principalmente,
de forma direta sob os preceitos da sobre as suas visões sobre o trabalho.

[ Tabela 2 ]
Sentidos de comunicação, educação e trabalho nas organizações

ONG COMUNITÁRIA ONG ACADÊMICA ONG EMPRESARIAL

Assumida em seu sentido Dispositivo de


amplo, como relação entre disseminação de A comunicação é
COMUNICAÇÃO indivíduos, e também informação por meio do assumida como
em seu sentido técnico trabalho com jornalismo ferramenta audiovisual
como ferramenta investigativo

Parte de um projeto
pedagógico de formação Instrumento de
Metodologia de formação
EDUCAÇÃO de lideranças locais e desenvolvimento pessoal
do público atendido
educadores para os temas e capacitação técnica
dos direitos fundamentais

Finalidade O trabalho na forma


O tema da defesa do
profissionalizante dos de profissionalização e
TRABALHO direito ao trabalho decente
conteúdos apreendidos inserção no mercado
aparece como causa social
para geração de renda surge como causa social

Fonte: elaboração própria

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Camila Acosta Camargo

Os discursos do terceiro setor: sentidos de comunicação, trabalho
e educação em ONGs de comunicação 624


Ao decidirmos que a comunicação formativos e ativação de trabalho


seria o ponto central para a observação das e renda em todos os serviços ins-
instituições, sabíamos que outros temas titucionais que nome da ong* capta.
surgiriam como expressões de sentido que (Comunicação institucional no web-
atravessam este primeiro – em especial, site – ONG COMUNITÁRIA)
considerando o fato de que a atuação de
instituições sem fins lucrativos comumente 2. Então a conjuntura é muito difícil. Hoje
gira em torno de determinadas pautas vin- em dia, assim o nosso principal desafio
culadas aos discursos do desenvolvimento este ano é lidar com essa conjuntura
social, cidadania, direitos fundamentais, adversa que vai tentar punir os tra-
equidade social, justiça socioambiental, balhadores por conta dos problemas
entre outros. Desse modo, identificamos econômicos do país. Então, a gente vai
que justamente a temática do trabalho sur- bater o pé em relação a isso, orientar
giu como central concomitante à educação os nossos programas pra essa temática,
como parte essencial da atuação das insti- né. (Trabalhador em cargo de chefia –
tuições, nas quais entendemos que estes ONG ACADÊMICA)
três tópicos permeiam de forma singular
suas práticas e discursos. 3. OPORTUNIDADE: Proporcionar aos
jovens oportunidades de trabalho em
Entender como as organizações se que eles se realizem e conquistem
relacionam com cada uma destas práticas sua independência. (Comunicação
revela bastante sobre seu funcionamento. institucional no website – ONG
Todas atuam com formação pedagógica EMPRESARIAL)
socioeducativa no campo do trabalho, con-
tudo o viés da ONG Comunitária e da ONG Referindo-se ao momento político
Empresarial é o da capacitação técnica e atual do país 4 e assumindo uma pos-
da profissionalização; enquanto o foco da tura crítica, o entrevistado na sequência
ONG Acadêmica está na disseminação de (2) defende, em nome da instituição, o
informações sobre trabalho decente e direi- posicionamento combativo que guiará
tos humanos, para a formação de atores as ações da organização perante o que
na sociedade que possam multiplicar estes entende como uma “conjuntura adversa
conhecimentos. Se, de um lado, a tríade que vai tentar punir os trabalhadores”. É
comunicação – educação – trabalho simboliza uma fala que contrapõe a visão neoliberal
a busca por geração de emprego (1) e inser- de ‘crise como oportunidade’ e desvela o
ção no mercado (3), de outro, a característica sentido de classe por trás da formação
é a busca pela formação de uma consciência discursiva.
do sujeito em relação às suas condições de
trabalho e vida (2).

1. Uma janela de experimentação em 4 O Brasil vive a ascensão de uma crise das insti-
que reconhecemos os jovens como tuições políticas, tendo como principais aspectos a
Operação Lava Jato, o processo de impeachment da
produtores, artistas e com baga- presidente Dilma Rousseff em 2016 e a prisão do pre-
gem técnica. Propomos encontros sidente Lula em 2018.

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Uma diferença crucial nos senti- que a forma como as organizações sociais
dos atribuídos à atividade profissionali- tratam o tema é parte representativa de
zante entre a ONG Comunitária e a ONG suas crenças e da ideologia às quais estão
Empresarial encontra-se no fato de que a subsumidas; e, apesar da questão trabalho
concepção de capacitação técnica surge para carregar fortemente o sentido político-
a primeira atrelada à ideia de geração de -econômico-ideológico, é nítido também
renda, enquanto para a segunda, cujo viés a sua transição para ser tratado apenas
corporativo é forte, é a noção de inserção como questão técnico-operativa nas orga-
no mercado que adquire destaque. nizações que atuam com a capacitação
profissional.
4. Uma educação que fortalece propósi-
tos, não profissões (Manifesto – ONG É interessante notar como a comuni-
COMUNITÁRIA) cação é materializada na forma de instru-
mento que viabiliza este processo a partir
Na oração retirada do manifesto do uso da educação para o desenvolvi-
institucional (4), busca-se exprimir um mento de habilidades comunicacionais,
sentido de valorização do indivíduo como altamente requisitadas pelo mercado na
crença prioritária em detrimento da con- contemporaneidade.
cepção de profissionalização, indicando que
a comunicação é vista primeiro em seu Mesmo assim, remetendo à tradi-
sentido relacional. A instituição apresenta ção do campo das organizações sociais,
um enunciado que sugere que a capaci- a visão de comunicação destas organi-
tação técnica é um resultado secundário zações ainda está fortemente pautada
de um processo que é, primeiramente, de nos sentidos amplamente discutidos no
formação pessoal. campo teórico da comunicação comuni-
tária e popular, em especial no caso da
Para Montaño, o conceito de “ter- ONG Comunitária – a única situada na
ceiro setor” opera uma transferência de periferia; e, em menor medida, mas ainda
sentidos – “o que ocorre é uma verdadeira presente, nas outras duas.
transformação de uma questão político-
-econômico-ideológica numa questão Assim sendo, a comunicação comunitária
meramente técnico-operativa” (2002, 185), diz respeito a um processo comunicativo
ao retirar o significado crítico da pauta que requer o envolvimento das pessoas
social e inseri-lo na dinâmica do mercado, de uma “comunidade”, não apenas como
lidando com as problemáticas resultantes receptoras de mensagens, mas como
da disputa de classes como mercadoria na protagonistas dos conteúdos e da gestão
qual a desigualdade torna-se ‘produto’ a dos meios de comunicação (PERUZZO;
ser negociado no mercado. ALMEIDA, 2003, p. 246).

Assim, sendo o trabalho uma catego- Do ponto de vista da comunicação


ria central no sistema econômico capita- institucional, alguns aspectos discursivos se
lista e tendo seus sentidos essencialmente destacaram nas falas da ONG Comunitária:
subvertidos na lógica liberal, entendemos a valorização do território; a comunicação

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como ferramenta de transformação do Milton Santos (2000), foi adotado a partir


espaço e seus habitantes; e o fomento ao do século XIX para referenciar o papel
desenvolvimento de autonomia e criativi- atribuído ao Estado no controle das rela-
dade dos jovens por meio do aprendizado ções entre as classes sociais e os espa-
técnico das ferramentas de comunicação. ços ocupados. A incidência do discurso
geográfico na fala da ONG Comunitária
5. Já testada, nossa metodologia propõe está inserida em um contexto maior de
a ocupação afetiva, física e criativa dos militância de grupos e coletivos na peri-
territórios por meio da criação, produ- feria que, ao falarem em território, dei-
ção e distribuição de produtos comu- xam implícito o local de produção deste
nicativos.(Comunicação institucional discurso – este espaço indeterminado
no website – ONG COMUNITÁRIA) e não particularizado, mas que se opõe
implicitamente ao centro e àquilo que ele
A partir de (5), retirada da área ‘quem representa. Este enunciado visa produzir
somos’ no website, entendemos que para o efeito de que estes sujeitos falam a partir
a ONG os processos comunicacionais são de sua experiência, este é seu lugar de fala
relevantes para o estabelecimento de novas e, portanto, estão autorizados a enunciar
dinâmicas relacionais entre os moradores uma realidade que lhes pertence.
da periferia e o próprio espaço que habi-
tam. É um discurso que busca contrapor Para Xavier e Kahil, inspirados em
a produção de conteúdo midiático exclu- Milton Santos, o espaço na cidade é distri-
sivo do “centro”, das áreas privilegiadas, buído em função do capital, salientando o
que não dialogam com sua realidade local. viés de classe da polarização centro-periferia:
Para a organização, existe um processo
de aquisição de autonomia e emancipação Os espaços periféricos não recebem
impulsionado pela capacidade dos jovens tal denominação por que se localizam
de se apropriarem do fazer comunicativo, nos limites marginais da cidade ou por
que ao mesmo tempo em que possibilitam que são espaços residuais, mas por que
uma transformação individual também independente da sua localização e do
fomentam a transformação coletiva e do seu tamanho, são do ponto de vista
ambiente. A proposição “nossa metodologia urbano e social, espaços não valorizados
propõe a ocupação afetiva, física e criativa dos pelos fluxos de capital, técnica e ciência
territórios” indica a busca pela construção de (2006, p. 331).
uma nova narrativa social, que redireciona
o ideário de violência e falta de cultura asso- Iniciativas artísticas, culturais e de
ciado trivialmente à vida na periferia, para movimentos sociais nestas regiões são com-
o de afetividade e criatividade, assumindo preendidas nesta acepção como expressões
essa mudança de perspectiva como algo que de resistência às lógicas dominantes de ges-
deve ser impulsionado de dentro para fora tão do espaço.
pelos próprios cidadãos.
Há subespaços da cidade de São Paulo
Observamos também o uso político atingidos pelas modernizações que
atribuído ao termo território que, segundo exercem centralidade e possuem poder

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de comando enquanto as periferias aco- de conhecimento do mundo, podem oca-


lhem aqueles que não podem pagar pelo sionar reflexões sobre a própria situa-
ônus dessa valorização e subvertem, ção e culminar em práticas contrárias
criam formas de urbanizar desobe- e resistentes ao discurso dominante
dientes aos regulamentos urbanísticos (Ibidem, p. 336).
vigentes (Ibidem).
A ênfase no vínculo formado entre
Para nós, a perspectiva de Xavier organização, jovens participantes e o ter-
e Kahil romantiza e idealiza a condição ritório reafirma as origens de quem vive
social fruto da desigualdade, ao afirma- na periferia e, mais do que isso, fornece
rem que “tais condições potencializam a sustentação e credibilidade ao discurso
vocação do povo brasileiro para a comu- institucional da ONG, que constrói uma
nicabilidade, que na base da pirâmide narrativa baseada no fortalecimento da
social amplia a vocação para a criativi- identidade periférica. Este discurso não
dade” (Ibidem, p. 335), completando ainda se expressa de forma revolucionária ou
que “por serem pobres e consumidores anticapitalista, mas demonstra vontade
incompletos, escapam às normatizações em fortalecer sentidos que questionem
e subvertem ordens estabelecidas hege- o local atribuído ao sujeito excluído na
monicamente e podem melhor exercitar sociedade, enxergando-o como ativo no
a espontaneidade.” (Ibidem). Encontramos processo de significação de sua vida e seus
vestígios deste pensamento no discurso da espaços de convívio, revelando a contra-
ONG Comunitária, no qual é recorrente dição desta relação. O ideário remete à
a idealização da criatividade como forma ideologia do “terceiro setor” ao reforçar
de transcender os obstáculos resultantes uma visão reformista de sociedade.
da desigualdade.
A ONG Empresarial tem uma atua-
Deste modo, mesmo reconhecendo a ção bastante similar à ONG Comunitária
disputa de classe, este enunciado respalda no que diz respeito à sua causa. Ela tam-
a ideia de que há oportunidades a serem bém trabalha com a formação de jovens
extraídas do conflito entre dominadores em técnicas de comunicação, tendo como
e dominados, o qual entende o espaço dos foco o audiovisual, com cursos na área
dominados como um espaço de criação de de câmera, som, figurino, entre outros.
novos sentidos, que por serem construí- Porém, as diferenças entre elas se reve-
dos à margem da centralidade, têm maior lam na medida em que desaparece o
potencial contra-hegemônico. conflito centro-periferia, ao contrário, a
ONG Empresarial associa a centralidade
A partir de uma criação cultural conce- ao sucesso e, consequentemente, a uma
bida e fundamentada em uma raciona- clara adaptação aos sentidos hegemônicos.
lidade comunicativa, consumidores da
indústria cultural, vítima da informação A noção de comunicação para capa-
generalizada podem se transformar em citar e empregar aparece como o sentido
sujeitos ativos. O conhecimento sobre o de maior destaque nos enunciados institu-
lugar onde vive e as possibilidades atuais cionais. A simbologia do desenvolvimento

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pessoal do jovem parece estar sempre atre- trabalho. Nesse sentido, entendemos que
lada à perspectiva de profissionalização e sustentar seu enunciado oficial em torno
inserção no mercado, como fica explicitado da temática dos direitos dos trabalhado-
nas sequências (6) e (7). res, e assumindo um caráter de classe, a
organização se insere em um universo
6. 
B usca transformar a habilidade semântico vinculado a uma visão mais
criativa natural dos jovens em ativo crítica de sociedade – fator expressivo em
econômico e estimula modelos ino- todo o discurso oficial, no qual expressões
vadores para a produção audiovisual. mais próximas do discurso liberal ou de
(Relatório anual de atividades 2017 – mercado estão inexistentes.
ONG EMPRESARIAL)
8. Foi fundada [...] com o objetivo de
7. Promover o desenvolvimento profis- fomentar a reflexão e ação sobre as
sional, sociocultural e pessoal de jovens diversas situações de injustiça presen-
por meio do audiovisual. (Comunicação tes em nossa sociedade, tanto nos casos
institucional no website – ONG de flagrante desrespeito aos direitos
EMPRESARIAL) humanos, como nas condições sociais
e estruturais sub-humanas de vida.
O discurso da criatividade volta a (Comunicação institucional no website –
aparecer (6) associado à concepção de ONG Acadêmica)
essência “natural dos jovens”. A instituição
coloca-se como a responsável por promo- O uso de termos como mobilização,
ver a transformação desta criatividade em lideranças sociais, respeito aos direitos huma-
“ativo econômico”, em um claro sentido de nos, igualitário, democrático, injustiça atesta
educação para a empregabilidade e, acima um posicionamento institucional crítico e
de tudo, para a otimização dos processos remete ao discurso historicamente asso-
produtivos – expresso na sentença: “esti- ciado aos movimentos sociais.
mula modelos inovadores para a produ-
ção audiovisual”. O jovem, moldado para
tornar-se um funcionário capacitado –
e uma mão de obra mais barata, por ter
formação técnica e não superior – com Considerações
boas habilidades profissionais e também
relacionais (desenvolvimento sociocultural
e pessoal), simboliza um produto a ser Para se constituir enquanto uma
ofertado para o mercado com o discurso ideologia, o conceito de “terceiro setor”
de venda da inovação. e seu respectivo sistema de valores se
vale de uma série de concepções teóri-
A ONG Acadêmica parece ter mais cas que reafirmam seu local enquanto
distanciamento da ideologia do “terceiro “sociedade civil organizada” pacificadora
setor” ao colocar-se discursivamente e articuladora de parcerias. Em princí-
como uma força antagônica aos interesses pio, o conceito de ação social que apa-
dominantes, em especial na temática do rece tradicionalmente em seu discurso

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remete àquele explanado por Weber, que Estado democrático de âmbito redu-
assume a ação orientada por respostas ou zido ao essencial, que não se enqua-
reações de outros indivíduos (WEBER, dra na esfera de ação dos dois outros
1969, p. 5 apud MONTAÑO, 2014, p. 39), setores: economia de mercado, globa-
mas que descola o conceito social de seu lizada o mais possível, e um Terceiro
sentido coletivo e histórico. Outro con- Setor forte, eticamente estruturado,
ceito advém de Habermas e sua proposta abrangente mediante a participação
da razão comunicativa, que batalha em do maior número possível de cidadãos
direção ao consenso, assim como os dis- – essa parece ser a fórmula capaz de
cursos recorrentemente encontrados no permitir ao século XXI escapar das
“terceiro setor” que trazem fortemente a mazelas daquele que passou entre tan-
noção de parceria à ação social. Para inte- tos desastres e tragédias (ANDRADE,
grar estes sentidos, a concepção de sujeito [1997] 2005, p. 77-78).
que aparece no pensamento pós-moderno
é utilizada aqui para amarrar os conceitos Para o autor, o Brasil deve inspirar-se
apresentados e tratar de uma ação social no modelo norte-americano de estrutura-
que é cidadã, propositiva e individual. ção do setor, desconsiderando inclusive as
distintas trajetórias históricas de cada um
considerados os indivíduos como “pro- destes países.
tagonistas” (e responsáveis) por suas
condições de vida e suas soluções, a A partir disso, buscamos demonstrar
“emancipação social” (vista como uma que os discursos circulantes nas organi-
emancipação individual) jamais será zações do “terceiro setor” não necessa-
resultado de lutas estruturadas contra riamente representam uma ruptura às
o sistema capitalista, mas o conjunto de práticas dominantes, ao contrário, podem
ações desarticuladas entre si, que supe- revelar-se favoráveis à sua sustentação. No
rariam as diversas formas de “exclusão caso específico das ONGs de comunicação,
social”, mediante processos de motiva- refletimos sobre como tal hegemonia pode
ção, “empoderamento”, autoajuda, solida- se perpetuar nas práticas que envolvem,
riedade dos pares, capacitação, inclusão em especial, o mundo do trabalho. A orga-
social e as chamadas “ações afirmativas” nização de base comunitária e a organi-
(MONTAÑO, op. cit., p. 40). zação de base empresarial convergem ao
abordar a temática da empregabilidade
A ideologia do “terceiro setor” como forma de emancipação do indivíduo,
assume a fragmentação e setorialização enquanto a organização de base acadêmica
da realidade social, desvinculando as expressa um contraponto ao propor criti-
dimensões econômicas e políticas e cla- camente uma reflexão acerca das práticas
ramente associando a dimensão social às de opressão endêmicas do sistema.
dimensões culturais e comunicacionais,
que exaltam a vivência do indivíduo e Essa explanação não busca deslegi-
o responsabilizam pela sua condição de timar as ações sociais destas instituições,
vida. Com uma proposta teórica de viés mas sim apontar a contradição existente
neoliberal, Roberto Andrade: neste tripé instituído entre organizações

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sociais, capital e Estado. Desta forma, as


críticas realizadas são compreendidas num
sentido histórico e dialético, e não tem
uma solução simples, refletindo, como nos
apresenta Montaño, que “para além dos
eventuais objetivos manifestos de algu-
mas organizações ou da boa intenção que
move o ator solidário e voluntário singu-
lar, termina por ser instrumentalizado,
pelo Estado e pelo capital, no processo de
reestruturação neoliberal” (2002, p. 19).

[ CA M IL A ACOSTA CA M A RG O ]
É mestre em Ciências da Comunicação pela
ECA-USP e bacharel em Relações Públicas pela
mesma instituição. É professora do curso de
Relações Públicas no FMU FIAM-FAAM Centro
Universitário. Integra o Centro de Pesquisa em
Comunicação e Trabalho (CPCT/ECA-USP). Atua
profissionalmente com foco em comunicação para
projetos sociais em ONGs e é sócia-fundadora da
consultoria especializada Eixo Social.
E-mail: camila.acosta.camargo@usp.br

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