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Esquerda armada brasileira: uma revisão


histórica, política e sociológica
Brazilian Armed Left: A historical, political and sociological
review

Lucineli   Pikcius Bezerra de Siqueira 1

Resumo
Este trabalho foi realizado com o objetivo de compreender como a História e as
Ciências Sociais estudam a luta armada que ocorreu no Brasil durante a ditadura
militar – 1964 a 1985. Realizamos uma pesquisa exploratória e essencialmente
bibliográfica, que nos proporcionou identificar alguns dos motivos que geraram a
ascensão dos grupos armados e também seu declínio. Além disso, conseguimos
identificar algumas das características dos agentes e dos grupos que proporcionaram a
estruturação das organizações armadas. Dividimos a literatura científica entre os ex-
militantes da luta armada e os autores que não tiveram parti pris nesta experiência. A
partir disso visualizamos algumas diferenças nos procedimentos metodológicos e nos
resultados de todo o conjunto da literatura.

Palavras chave: Luta armada no Brasil, Extrema esquerda, Ditadura militar.

Abstract
This work was conducted in order to understand how History and the Social Sciences
study the armed struggle that occurred in Brazil during the military dictatorship -
1964 to 1985. We conducted an exploratory and essentially bibliographic research,
which made it possible for us to identify some of the causes that generated the rise of
armed groups and their decline. In addition, we were able to identify some of the
characteristics of agents and groups that provided the structure of the armed
organizations. We divided the scientific literature between former militants of the
armed struggle and authors who had not participated in this experiment. From this
we noted some differences in the methodological procedures and in the results of the
entire body of literature.

Keywords: Armed struggle in Brazil, Extreme left, Military dictatorship.


                                                                                                               
1
Mestranda em Ciência Política – Universidade Federal do Paraná

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Apresentação quartel da década de 1970 – a partir


das categorias analíticas das Ciências
Os debates científicos sobre os
Sociais, tais como composição social,
aspectos que circunscrevem o
período da ditadura militar no Brasil classes, organização interna e externa
das facções da esquerda armada,
aquecem os campos científicos das
relações entre as facções e as
Ciências Sociais e da História.
instituições civis e governamentais,
Existem muitas teses que explicam os
motivos do golpe, as organizações de com base em estudos da História e
das Ciências Sociais.
apoio e resistência a ele, o tipo de
ditadura que resultou do pós-64 1 , Nosso objetivo é verificar na
dentre outros temas. No entanto, literatura científica os fatores de
verifica-se que as análises sobre a ascensão e declínio da esquerda
experiência da esquerda armada são armada, e as razões e significados
majoritariamente do campo da internos e externos da luta armada. A
História. Este trabalho representa pesquisa que gerou este trabalho foi
um esforço em reconstruir as análises exploratória e essencialmente
realizadas sobre a esquerda armada bibliográfica. Importante frisar que
brasileira – do último quartel da para alcançar esse objetivo
década de 1960, até o segundo poderíamos ter utilizado outras
                                                                                                                referências, tais como biografias,
1
Carlos Fico apresenta, analisa e confronta
várias teses sobre os motivos e as razões do documentos das organizações,
Golpe de 1964. Verificar: FICO, C. “Versões
e controvérsias sobre 1964 e a ditadura materiais jornalísticos. No entanto,
militar”. Revista Brasileira de História. São
Paulo, v.24, n° 47, p.29-64 – 2004. Em como não houve tempo hábil para
relação às teses que tratam das organizações
de apoio ao golpe, consultar, por exemplo: analisar essas matérias – que tornam
MENDES, R.A.S. “Direitas,
mais tênue a linha entre o
desenvolvimentismo e movimento de 1964”.
In: Coleção Comenius. Democracia e conhecimento científico e a realidade
Ditadura no Brasil. Ed. UERJ, Rio de
Janeiro, 2006. Jacob Gorender e Marcelo –, priorizamos a literatura acadêmica,
Ridenti abordam as organizações de
resistência ao golpe. ainda que desta façam parte autores

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que eram/são militantes de um mapeamento dos aspectos


organizações de esquerda. constituintes dessas organizações. A
síntese desse procedimento resultou
Ao analisar os textos
na formulação de algumas hipóteses
selecionados para este trabalho
que poderão ser analisadas
priorizamos identificar e destacar o
futuramente.
tipo de pesquisa realizada, o
problema, a hipótese, e as conclusões A pesquisa nos revelou que
de cada autor, para depois alguns estudiosos que eram
estabelecer conexões, comparações, militantes no período ditatorial-
complementações entre as teses militar, preocuparam-se, sobretudo,
sobre a esquerda armada. Nesse em detectar os motivos e as causas da
sentido, organizamos o trabalho em derrota da esquerda armada e dos
duas partes, sendo a primeira voltada movimentos de massa. Também há a
a explorar as teses sobre como tendência desses autores em
procedeu a ascensão da esquerda direcionar seus estudos para frisar
armada brasileira durante o período diferenças táticas e estratégicas entre
militar, e seu declínio na primeira as diversas organizações que lutavam
metade da década de 1970; e a contra a ditadura. Essas diferenças
segunda parte destinada a esmiuçar são importantes, mas insistir em
quem, como e pelo que lutavam as basear as análises nelas nos impede
organizações de esquerda armada – a de avançar na compreensão da
moral revolucionária; a violência resistência à ditadura militar como
revolucionária; a composição social um período de acontecimentos
das organizações. Ou seja, a lógica do estruturantes da esquerda brasileira.
trabalho consiste em situar as Falaremos disso mais a frente. Os
organizações armadas no processo trabalhos científicos realizados por
estruturante do campo da esquerda gerações posteriores à luta armada
brasileira, para isso desenvolvemos abordam essa experiência a partir de

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múltiplos aspectos que não ditatorial, e da participação


necessariamente estão predominante das camadas médias
comprometidos com uma das classes sociais. Essas hipóteses
determinada linha política, mas que são conclusões do trabalho, e não
pretendem reconstruir a história de foram testadas, podendo sê-las
militantes e organizações, bem como futuramente.
suas principais contribuições na
O interesse principal que fez
transformação da sociedade
surgir este trabalho está relacionado
brasileira.
às inúmeras interrogações em torno
A pesquisa também gerou a dos significados, dos motivos e da
hipótese de que à medida que relação entre concepções e ações de
direitos de natureza democrática são uma fração da esquerda que se
violados, torna-se previsível a luta radicalizou no interior de um
por estes. E é nesse sentido que contexto ditatorial. Tal radicalização
usamos o termo “extrema esquerda”, esvaia-se à medida que retorna a
pois num período de radicalização de democracia e suas instituições.
uma ditadura, a tendência é que Portanto, hoje em dia, é mais difícil
direita e esquerda caminhem ao falar em “extrema esquerda”, levando
extremo. As frações de classes que em conta ações práticas, e não
mais provavelmente lutariam para concepções políticas. Portanto, este
recuperar e garantir direitos debate pode tornar mais evidentes
democráticos seriam aquelas com alguns dos motivos que fazem surgir
maior capital cultural para organizações políticas classistas
compreender a dimensão das perdas radicalizadas em específicas
propriamente democráticas. Isso condições históricas.
explicaria os motivos das táticas de
guerrilha saírem dos pensamentos e
dos documentos num momento

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Parte I – Teses sobre as razões e os pesquisa, além de ser um campo


significados da ascensão e do pouco explorado. Na onda dessa

declínio da esquerda armada curiosidade, apresentaremos nesta

brasileira parte algumas teses importantes


sobre ascensão e o declínio da
Não é estranho esbarrarmos no
esquerda armada, pressupondo que
termo “aventura” quando se trata da
isso nos leve a compreender em
luta armada contra a ditadura militar
alguma medida o sentido, ou razão,
no Brasil, executada por organizações
dessa “aventura”.
de esquerda que viam nessa
alternativa a solução contra a Também não é estranho

ditadura militar. Tal termo sugere encontrarmos entre aqueles que

que os grupos que optaram por essa viveram essa experiência uma

via foram efêmeros no campo da disposição maior em apontar a

esquerda brasileira, pois se origem e principalmente os motivos

consolidaram em 1968 e declinaram do fim, ou da derrota, das facções

em 1975. Os marcos dessa divisão armadas da esquerda. Percebemos

são: i) o AI-5 e a impossibilidade de que uma pesquisa realizada com base

organizar movimento de massa; e, ii) numa relação muito próxima entre

o assalto total da Guerrilha do cientista e objeto tem pontos

Araguaia, última a ser desarticulada negativos, e também positivos.

pela repressão militar. Ainda que Dentre estes destacamos a riqueza

efêmera, acreditamos – mas não nos detalhes e informações do dia-a-

sustentaremos isso aqui – que a dia das organizações, e dentre

experiência da luta armada culmina aqueles destacamos a passionalidade

em rupturas e continuidades no militante, que pode gerar uma

habitus da atual esquerda brasileira. análise com tendências voltadas a

Remontar essa trajetória pode defesa direta ou indireta de teses e

constituir em tarefa árdua de orientações político-partidárias.

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Entre os que representam esse grupo da luta armada, percebemos que as


de autores com parti pris na abordagens e as conclusões já não
experiência, que vivenciaram em estão mais voltadas a entender o
algum grau a política numa porquê de uma suposta derrota ou
organização armada, destacamos: qual organização estava mais ou
João Quartim de Moraes, expulso da menos certa em suas estratégias e
VPR em 1969, por determinação de táticas. O estudo sociológico de
Onofre Pinto – divergência na linha Marcelo Ridenti (2010), por exemplo,
política (GORENDER, 1987, p.133); contribui para entender como era
Daniel Aarão Reis Filho, ex-militante formado o campo da esquerda que
da Dissidência da Guanabara (DI- lutou contra a ditadura, como
GB), que posteriormente nomeou-se surgiram, como se organizavam,
Movimento Revolucionário 8 de quem lutava, como era o contexto
outubro (MR-8) (RIDENTI, 2010, social, cultural, político. Outros
p.30); Jacob Gorender, ex-militante trabalhos mais atuais analisam, por
do PCB, que rompeu com este e exemplo, o papel do exílio na
fundou, junto a outros dissidentes o configuração da esquerda
Partido Comunista Brasileiro (ROLLEMBERG, 2007) e o papel dos
Revolucionário (PCBR), cuja intelectuais (RAMOS, 2006).
estratégia girava em torno da
Um dos dilemas do primeiro
revolução socialista imediata, ainda
grupo de autores – com parti pris – se
que esta não fosse realizada apenas
expressa numa das teses de João
pela via armada, mas acompanhada
Quartim de Moraes (1989), o qual
de um trabalho de massa (RIDENTI,
demonstrou que a luta armada no
2010, p.259). Nos estudos atuais,
Brasil foi uma resposta aos
realizados por autores que vieram
problemas internos, e não mero
nas próximas gerações, e, portanto,
reflexo do que ocorria em outros
não participaram – organicamente –
países. Essa discussão veio do campo

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político para o teórico. Moraes coloca movimento estudantil é destacado


que desde as mobilizações de massas, por Moraes como um movimento que
como as estudantis da década de atuou até esse período com pautas
1960, até o surgimento da esquerda construídas a partir das condições
armada, os motivadores eram gerados políticas e econômicas – sobretudo
por problemas essencialmente relacionadas à educação – internas ao
nacionais. Na linguagem militante país, e constituía um embrião da
isso representa que não foi nenhuma esquerda armada.
organização soviética ou cubana, por
As facções que aderiam ao
exemplo, que organizou
movimento de massa perderam
horizontalmente a luta armada. Nesse
espaço de atuação política no
sentido, para Moraes, a esquerda
decorrer do amadurecimento da
armada brasileira foi uma resposta
repressão ditatorial. No percurso da
direta a duas questões: o Golpe de
supressão dos direitos políticos – e
1964 e a consolidação do Estado
logo dos humanos –, a esquerda em
ditatorial através da Constituição de
questão passou a adotar outros
1967. A conjuntura era mais favorável
métodos de luta contra a ditadura,
para alguma participação política
pois as ações de massa foram ficando
durante a primeira fase da ditadura,
cada vez mais inviáveis. Nesse
quando os movimentos de massa
sentido, parte daqueles que antes
agiam com maior constância e
compunham os movimentos de
organicidade, como o próprio João
massa, principalmente o estudantil,
Quartim de Moraes lembra: “até o dia
optou por organizar e realizar
13 de dezembro de 1968 (...) a
guerrilhas contra o novo regime
imprensa se exprimiu com alguma
político. Essas organizações surgem a
liberdade e a oposição pode fazer
partir da crença/constatação da
valer publicamente suas críticas e
impossibilidade do trabalho de
suas denúncias” (1989, p.135-136). O
massas, fortemente reprimido pela

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Ditadura. Esses fatos ilustram a experiência ocorreu depois de um


afirmação de que a luta armada é intenso processo de repressão e de
fruto da conjuntura nacional, no aprofundamento da ilegalidade.
entanto é inegável que ela também
As organizações – de ambos os
tenha tido motivadores externos,
tipos – sofreram do que o autor
como por exemplo, os treinamentos
chama de “um desvio relativamente
ofertados pelo Estado Revolucionário
às suas concepções estratégicas”, pois
de Cuba e da China. Podemos dizer
muitas organizações “estavam
que o golpe de 1964 e o
perseguindo outros objetivos
aprofundamento do Estado
estratégicos” (1989, p.144). Isso quer
Ditatorial-Militar e a Constituição
dizer, de acordo com nossa leitura,
Federal de 1967 foram os estopins
que na teoria, a esquerda armada
para a luta armada, fatos que
defendia a revolução socialista, e o
justificam uma guinada aos métodos
objetivo era um novo modelo de
militaristas de luta política. João
produção social, e isso exige tomar
Quartim de Moraes diz ter havido,
de assalto o Estado. Mas esse
em 1968, um encontro acidental
romântico objetivo não encontrava
(MORAES, 1989, p.144)2 entre ações
bases materiais e nem humanas para
de massa em declínio e ações
acontecer de fato. Na prática, a
armadas em ascensão, desse
esquerda armada lutava para se
encontro surgiram tipos específicos
expressar, para se manter, apesar de
de facções: aquelas que defendiam a
estar na ilegalidade; ou seja, a luta
junção das duas táticas – trabalho de
imediata era garantir o mínimo de
massas e ações armadas; e outra que
democracia. Se isso for verdade, as
acreditava na via única da luta
teses, talvez então as declarações e
armada. Sendo que o fim da
toda fonte primária de pesquisa
                                                                                                               
2
O autor diz ser acidental pois, para ele, trariam em si essa contradição, pois
“não há relação direta de causa e efeito entre
ambos” p.144. concebem automaticamente a

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esquerda armada como democrático-nacionais do PCB. O


“revolucionárias”, ao invés de autor afirma que “as organizações
“guiadas pela vontade comunistas autoproclamavam-se
revolucionária”. Isso nos faz vanguardas políticas, estados-
questionar o alcance das análises dos maiores” (1990, p.16), inspiradas nas
documentos das organizações, como grandes referências históricas
reveladores das razões e ações internacionais, como Lenin, Mao
internas e externas destas. Tsé-Tung, Guevara. Essa
Defendemos que fontes primárias autoproclamação gerava uma onda,
são mais úteis como fontes entre os militantes comunistas
discursivas de atores e atrizes, brasileiros, de que a revolução estava
individuais e coletivos, que em processo de concretização, e isso
compuseram a experiência. dependia da vanguarda, de suas
capacidades e valores (1990, p.40).
A abordagem de Daniel Aarão
Para Reis Filho, essa certeza
Reis Filho também transpõe um
mostrou-se falsa na medida em que
problema do campo político para o
se desdobravam os processos que
campo das análises acadêmicas, o
culminaram na derrota da esquerda,
autor acerta as contas com os
e a consequente vitória do Estado
comunistas do PCB e elenca uma
militar, por isso: “A revolução faltou
série de erros organizacionais
ao encontro”.
gerados pelos comunistas que
levaram à derrota da esquerda para o Reis Filho (1990) remonta o
Estado ditatorial. Os comunistas da conjunto das características que
década de 60 são como raízes das formam a natureza das facções
organizações armadas, que surgem comunistas, essa natureza passa a ser
como alternativa à impossibilidade responsável pela derrota de todo o
das ações de massa, e também como conjunto da esquerda para as forças
alternativa às teses e orientações golpistas. O autor afirma

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indiretamente que se a esquerda forte referência nos modelos das


tivesse agido de outra forma e sob organizações comunistas que, sob
outras bases, possivelmente algum aspecto, foram vitoriosas em
poderiam assegurar a derrota do processos de conflitos sociais. Vemos
golpe militar. Sabemos que é muito aqui uma opinião que diverge da tese
complicado explicar um fato pelo que de Moraes que vimos anteriormente.
não aconteceu, mas poderia ter O sentimento de ser vanguarda do
acontecido. As características da proletariado, com responsabilidades
esquerda que levaram seu imenso quase épicas, não tinha projeção
conjunto à derrota são chamadas por material, visto que a composição
Reis Filho de “mitos coesionadores: a social de tais facções era formada
revolução socialista (...) a missão principalmente por “elites sociais
redentora do proletariado” (1990, intelectualizadas, com alto nível de
p.182); as características instrução, muito jovens, do sexo
vanguardistas; o alto grau, exigido e masculino, residindo em algumas –
exercido, de disciplina e conduta poucas – grandes cidades” (1990,
revolucionária; o papel majoritário p.184), como veremos mais a frente.
dos intelectuais. Portanto seriam
Os comunistas, portanto, não
estes “os fatores determinantes dos
conseguiram sistematizar uma
‘erros’ de avaliação que levam a
oposição e assim não foram capazes
tantos desencontros, a tantas
de impedir o golpe. Nesse sentido,
derrotas” (REIS FILHO, 1990, p.
nosso terceiro autor com parti pris na
184), essas características são as
luta armada, Jacob Gorender, afirma
mesmas de organizações que outrora,
que a esquerda reconhece a derrota
e em outro lugar, foram vitoriosas em
de 1964 e constrói um modelo de
relação aos seus projetos políticos. O
organização que representa uma
que o autor sugere é que a esquerda
“violência retardada” (1987, p.249).
comunista brasileira de 1960 tinha
Portanto, este autor não vê um

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continuum entre comunistas de 1960 partidária. Esta ala rompe com o


e os guerrilheiros do pós-64, como PCB e forma o PCdoB 3 ; c) havia
viu Reis Filho. Gorender remonta a também os trotskistas do POR (T) –
gênese da esquerda armada a partir Partido Operário Revolucionário
de suas matrizes organizacionais. Ou (Trotskistas), que defendiam o
seja, o campo da esquerda brasileira, obreirismo e o Estado operário; d) a
antes de 1964 era formado: a) pelos ORM-POLOP (Organização
comunistas do PCB, que abrem os Revolucionária Marxista, da revista
anos 1960 defendendo as duas etapas Política Operária), restrita ao
da revolução socialista no Brasil, ambiente intelectual, absorveu de
concepção oriunda do VI Congresso forma não dogmática a produção
da Internacional Comunista, em trotskista; e) a AP (Ação Popular),
1928. A primeira etapa é oriunda do movimento estudantil
democrático-nacional, que seria uma católico, que pretendia chegar ao
revolução burguesa, capaz de fazer socialismo a partir de ações efetivas
com que a sociedade brasileira de massas, tendo em vista
desenvolvesse potencialmente o reivindicações relacionadas às
capitalismo e suas instituições, reformas de bases; f) as Ligas
avançando no sentido democrático. Camponesas, que a partir de 1961
Essa etapa daria condições para a defendem a guerra de guerrilhas
segunda etapa da revolução, que como forma de chegar ao socialismo;
seria socialista (GORENDER, 1987, e, g) a linha brizolista, que não era
p.29-30); b) pela ala Stalinista, de socialista, mas se destacou pelo
concepções maoístas, que racha com populismo trabalhista (1987, p.20-39).
o PCB em 1962, por conturbações                                                                                                                
3
Em 1960, no V Congresso do PCB, este
causadas pelo relatório de Khruchov muda o nome de “Partido Comunista do
Brasil” para “Partido Comunista Brasileiro”,
e por conflitos gerados por para se defender das acusações que diziam
que o PCB era uma seção da Internacional
diferenças nas concepções da prática
Comunista no Brasil.

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Para Gorender essas organizações esquerda brasileira” (1987, p.79-83).


sofriam de males que as É nesse sentido que o autor concebe
impossibilitaram de resistir ao golpe a esquerda armada como um
e fazer uma revolução. São conjunto de organizações que
características comuns a elas: surgiram motivadas pelos erros
A hegemonia da liderança nacionalista anteriores e pelas inspirações dos
burguesa, a falta de unidade entre as
várias correntes, a competição entre grandes feitos revolucionários
chefias personalistas, as insuficiências
organizativas, os erros desastrosos militaristas. Isso gerou a composição
acumulados, as ilusões reboquistas e
as incontinências retóricas – tudo isso
do que Reis Filho chama de
em conjunto explica o fracasso da “violência retardada”, pois foi o
esquerda. Houve a possibilidade de
vencer, mas foi perdida (1987, p.67). reconhecimento das causas da

Gorender afirma que houve derrota de 1964 que fez a esquerda

uma falência dos modelos optar pelas armas e abandonar

organizativos das organizações muitos elementos do leninismo e das

revolucionárias, que se tornou “velhas” práticas do PCB.

evidente em 1964. O caminho


O foquismo, o maoísmo e o
pacífico estava descartado por muitos
trotskismo – ainda que sejam
militantes. Dessa forma, a teoria
correntes com concepções políticas
foquista da revolução cubana torna-
diferentes e divergentes entre si –
se uma alternativa viável para as
formam o que Gorender chama de
condições brasileiras, um foco
“Receitas para a luta armada”, que
guerrilheiro faria amadurecer as
influenciam essa ala da esquerda
condições subjetivas inerentes à
brasileira, pois concordam em um
revolução socialista. Somado ao
aspecto: a própria luta armada. A
foquismo, “as sentenças de Mao – os
partir da análise de Gorender,
imperialistas e os reacionários são tigres
compreendemos que pode ter havido
de papel, o poder nasce da boca do fuzil
um alto grau de incorporação dos
– se tornaram senhas mágicas (...) da
modelos revolucionários

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internacionais. O autor destaca várias esgotamento da esquerda armada,


facções armadas que surgiram no que se apoiava em assaltos, fugas,
pós-64: aquelas que surgem do racha sequestros, ações armadas urbanas
no interior do PCB, propondo a luta em geral, para dar condições de
armada imediata – a Ação existência às suas organizações. Mais
Libertadora Nacional (ALN), o uma vez aparece a questão da
Partido Comunista Brasileiro diferença entre objetivos políticos e
Revolucionário (PCBR); o Movimento realidade política da esquerda
Nacionalista Revolucionário, oriundo armada no discurso acadêmico de
“da articulação entre exilados de autores com parti pris.
Montevidéu e os adeptos de Brizola
O aprofundamento da repressão
no Brasil” (1987, p.127), que
pós AI-5 gerou a certeza de que “o
defendiam o foco guerrilheiro; a
capítulo das lutas de massas estava
Vanguarda Popular Revolucionária
encerrado” (GORENDER, 1987,
(VPR), dissidência foquista da
p.153), restando à luta armada o
Política Operária (POLOP); a
combate frontal e militarizado. É
Vanguarda Armada Revolucionária –
como se a violência tivesse sido a
Palmares (VAR-Palmares), que surge
última cartada, o último apelo de
de uma decomposição da VPR, que
poder organizar-se. No entanto, a
se junta com parte do Comando de
repressão do Estado foi aprimorada
Libertação Nacional (COLINA).
com mecanismos que apelaram à
Essas organizações, e outras que
profunda investigação, baseada em
optaram pela luta armada,
prisões e torturas. Dessa forma a
sustentavam-se na clandestinidade, e
esquerda armada foi fatalmente
sobreviveram nessas condições por
perseguida, criminalizada e
um curto período, entre 1968 e 1674.
desmantelada. Gorender destaca que
A situação de clandestinidade,
nessas condições, cada vez mais, os
segundo Gorender, gerou o
grupos passam a carecer de base

21  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

social. Além disso, entre 1968 e 1974 1965, em resposta à derrota expressa
o “milagre econômico”, fruto da pelo golpe. Essa violência retardada,
modernização conservadora, estava ainda que organizada, falhou e
no seu auge, fortalecendo o apoio novamente a esquerda perdeu. É
civil aos militares, em detrimento aos como se a antiga lei penal de Talião
ditos “subversivos” (1987, p.158-159). estivesse na agenda do dia: “olho por
Gorender relaciona o fracasso da olho, dente por dente”, violência não
esquerda armada com questões tem outro antídoto que não seja ela
internas (os erros) das organizações – mesma.
como sectarismo e vanguardismo – e
Para Alcides Freire Ramos
externas a elas– as condições
(2006), autor que não teve parti pris
determinadas pela política de
na luta armada, o golpe de 1964
repressão do Estado Militar. O autor
gerou um intenso processo de
ainda toca na questão da composição
autocrítica nas organizações de
social da esquerda armada,
esquerda, que as levaram a perceber
colocando que o Estado Militar
que os erros eram frutos da moral e
“cortou os galhos podres da própria
do comportamento pequeno-
classe dominante para defendê-la”
burguês, sobretudo entre os
(GORENDER, p.227), ou seja, as
dirigentes (2006, p. 3-5). Esse
organizações armadas eram formadas
processo de autocrítica se
por frações mais privilegiadas das
intensificou nas esquerdas armadas,
classes sociais. Em resposta à
ainda que a composição social destas
violência militar, surge a inevitável
não fugisse ao padrão pequeno-
violência dos oprimidos (das
burguês intelectualizado. De
referidas frações de classes). O autor
qualquer forma, os militantes das
finaliza sua análise afirmando que o
facções armadas, longe de serem
sentido da experiência armada foi a
maioria proletária, acreditavam que
violência retardada, elaborada desde
“o trabalho deveria continuar, a

22  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

partir do material humano simbólica” (RAMOS, 2006, p. 10). E é


disponível” (2006, p. 7). O aqui que a análise de Ramos, como
comportamento dos guerrilheiros era autor sem participação militante na
guiado pela confiança na Revolução, luta armada, se diferencia dos
e pela certeza de que “firmeza, autores anteriores, pois foca no
convicção ideológica e espírito de sujeito militante, mas mesmo assim o
sacrifício” desencadearia este evento autor parte do binômio erro/acerto,
(2006, p.8). Essa autocrítica levou a vitória/derrota. A morte simbólica
esquerda armada a substituir o deriva de uma sequência de
intelectual pelo combatente prescrições de comportamentos, que
revolucionário, fator responsável foram identificadas por Ramos nos
pelo processo que intensificou a documentos das organizações, já nos
militarização da extrema esquerda no depoimentos dos militantes o autor
período ditatorial. Podemos destaca as dificuldades que estes
identificar a máxima desse processo encontravam em proceder tais
na Ação de Libertação Nacional prescrições. As dificuldades dos
(ALN), de Carlos Marighella e militantes em serem sujeitos da
Câmara Ferreira, ex-militantes do revolução giravam em torno da
PCB, que passaram a promulgar a convivência com a morte, em dois
ação revolucionária como fator sentidos, o simbólico, acima descrito,
central da organização, em e a concreta, advinda da intensa
detrimento das discussões teóricas, repressão (2006, p.14). Esses fatores
postas de lado. dificultaram a criação do combatente
e do intelectual orgânico, em
O autor afirma que “o
detrimento do pequeno-burguês. E
intelectual de origem e formação
nesse sentido, a esquerda armada
pequeno-burguesa, que desejasse se
não se constituiu em grupos políticos
transformar em combatente deveria
potencialmente revolucionários,
passar por um processo de morte

23  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

devido à contradição entre a real múltiplas determinações. Nesse


identidade de classe dos militantes, e sentido, se o golpe e a Constituição
aquela desejada, prescrita pelas de 1967 não tivessem ocorrido,
organizações a partir dos processos seriam mínimas as chances de ter
de autocrítica. Além disso, o que se acontecido a luta armada. Moraes
esperava dos militantes eram parte da afirmação de Jacob
posturas que poucos adotam, dada a Gorender, e a supera. Para este
diversidade de preferências e autor, a luta armada representou uma
tendências de indivíduos. violência retardada, uma resposta à
derrota de 1964, no entanto Moraes
Façamos agora uma breve
esclarece que esta afirmativa esbarra
comparação metodológica e
em alguns detalhes: “aqueles que
conclusiva entre estes autores, com o
tomaram a decisão de não lutar em
objetivo de visualizar como a
1964, continuaram a não lutar em
literatura clássica e estudos mais
1968” (MORAES, 1968, p.140), além
recentes da História e da Sociologia
disso, no período de
vêm tratando do período de maior
desencadeamento da luta armada, as
radicalização da esquerda brasileira.
condições favoreciam mais o
João Quartim de Moraes, para
amadurecimento desta, devido ao
defender sua hipótese 4 , faz uma
aprofundamento ditatorial. Moraes
análise comparativa entre os eventos
também se opõe a Gorender no que
históricos e as possibilidades do
se refere ao erro fundamental das
contrário, utilizando a tese marxiana
esquerdas, de não se prepararem
de que “o concreto é a síntese de
devidamente para a luta armada,
múltiplas determinações” (1989, p.
como se esta fosse uma fatalidade
138), logo a luta armada é a síntese de
(1968, p. 141), para Moraes essa tese
                                                                                                               
4
De que a luta armada resultou da condição de Gorender engessa o movimento
política posta pela Ditadura Militar, sendo a
CF 1967 pré-condição, pois regulamenta os da luta de classes. Parece-nos que a
processos de coesão do Estado militarizado.

24  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

análise de Gorender pretende-se encontram-se os repetidos erros da


mais normativa no que se refere às esquerda e suas consequentes
formas de luta, e isso reflete um derrotas. O autor remonta, numa
pouco da relação do autor com o pesquisa explicativa, o percurso da
objeto, como o próprio João Quartim esquerda brasileira de modo a
de Moraes frisa. Este autor também apresentá-la como um campo político
engessa, em certa medida, a constituído por grupos, cuja coesão
apreciação sobre o desencadeamento estava alinhada aos parâmetros dos
da luta armada, ao delimitar “revolucionários vitoriosos” (1990,
rigorosamente, como dito alhures p.186). Portanto, Reis Filho deixa
neste trabalho, os condicionantes da recair sobre a esquerda todo o peso
luta armada no Brasil e a necessidade de sua própria derrota, ao mesmo
de um verdadeiro partido de tempo em que a minimiza enquanto
vanguarda que, segundo ele, faltou agentes transformadoras da realidade
na resistência ao Estado Militar. Na social. As assertivas elaboradas por
mesma linha, determinada pelo alto Reis Filho são em parte convergentes
grau de envolvimento do pensador com Moraes, quando este destaca o
com o objeto pensado, Reis Filho forte componente dogmático das
defende que naquele período, a facções armadas, no entanto, Reis
esquerda tinha “um projeto político Filho parece muito mais disposto a
com vida própria” (1990, p. 18), e os um “acerto de contas” do que
militantes estavam condicionados a Moraes. A Tabela 1 demonstra as
ele, precisavam manter princípios e diferentes conclusões dos autores
condutas prescritas, e isso exigia acerca do tema que estamos
mais dos militantes do que a abordando.
compreensão da própria luta de
classes no Brasil. Nesse processo

Tabela 1. Teses de autores que militavam em organizações de

25  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

esquerda, sobre ascensão e declínio da luta armada no Brasil

Desencadeamento da Declínio da luta


luta armada armada

Resposta aos
condicionantes internos
- golpe e
Moraes aprofundamento Terrorismo de Estado
ditatorial ligado a CF67
- e ao percurso dos
movimentos de massas

"Violência Retardada" -
ou seja, uma resposta à
A esquerda não se
derrota configurada
Gorender preparou para a luta
pelo golpe de 1964, em
armada
que a oposição estava
sem direção.

Resposta aos erros da Erros de condutas, tais


prática democrática e como o vanguardismo
massistas advindas das e a fragmentação das
Reis
teses do PCB, que facções; erros de
Filho
geram organizações leitura da realidade da
guiadas por novas luta de classes no
concepções de luta. Brasil.

(Organizado pela autora)

Alcides Ramos, numa outro se deu com a ascensão da luta

abordagem histórica, foca no papel armada, ou seja, o agente político

do intelectual revolucionário, e como que combina com organizações

este foi se modificando, e passou do extremistas e armadas é aquele que

intelectual pequeno-burguês, age muito mais que estuda a

teorista, para o combatente conjuntura nacional. Portanto, a

revolucionário. Ambos os papéis conjuntura política determina a

sociais parecem pouco comuns na agenda das organizações políticas.

sociedade. A substituição de um pelo Ramos não apresenta os mesmos

26  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

impasses dos que militaram na importam com os “erros”, muito mais


esquerda durante o período, isso do que com os acertos, das ações e
resulta numa análise menos decisões das referidas facções, dado o
prescritiva. Além disso, o autor não resultado final da disputa nada justa
se preocupa em explicar como a entre esquerda resistente e ditadura
esquerda armada surgiu, mas sim um militar. Há uma predominância da
efeito gerado por esta nas historiografia, em detrimento dos
organizações de esquerda. O autor métodos da pesquisa social, da
compara documentos das análise de discurso, das trajetórias,
organizações com depoimentos de das instituições. A base dessas
guerrilheiros, e conclui que o análises são documentos,
militante almejado pelas depoimentos e experiências, e o uso
organizações se constituía num tipo de métodos quantitativos é escasso.
difícil de concretizar-se, e isso Para efeito deste trabalho, defendo
formava um dilema para os que a história dos vencidos também é
guerrilheiros, que passavam por um formada de acertos da parte destes e,
processo de morte simbólica para se ainda que a derrota tenha ocorrido,
adequarem aos padrões. nem sempre o vencido tem
responsabilidade por ela. O que
Em suma, todos os autores
importa para a ciência não é julgar se
fazem alguma referência à
um ou outro lado estava certo, mas
composição social da esquerda
sim identificar continuidades e
armada, sendo o intelectual um
rupturas entre fatos políticos e
agente social ligado aos cargos
sociais do passado e a atualidade. A
dirigentes, e reconhecido como a
luta armada ainda não foi conectada
fração de classe preponderante nas
com a atualidade, e acreditamos que
facções armadas. Também em algum
essa agenda política seja importante
grau, todos os autores partem do
para entender o habitus – numa
julgamento “errou ou acertou”, e se

27  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

linguagem bourdiesiana – do campo A desigualdade de recursos foi


da atual esquerda brasileira. importante tanto para a vitória do
golpe sob a esquerda em 1964,
Medir forças com aqueles que
quanto para a intensificação da
possuem os meios de coação é uma
repressão pós AI-5. Dado que os
tarefa a qual se devem considerar
golpistas também estavam
fatores que escapam da lógica da
fragmentados e sua ação em 1964 não
derrota/vitória. A luta desigual – e
estava tão bem planejada como
essa desigualdade tem níveis, que
recorrentemente podemos imaginar.
talvez possamos definir comparando
os meios de um e outro lado – entre
grupos sociais, determinada pela
Parte II – Características das
posse dos meios de coação e pela
organizações armadas
legitimidade da representação de
classes e frações de classes, acaba Inserir a esquerda armada no campo
determinando o resultado de um político, com o objetivo de
processo de combate. Com mais ou compreender os motivos de sua
menos coesão, nascida de tal ou qual ascensão e declínio, requer
processo, a esquerda armada era reconstruir algumas de suas
fraquíssima frente ao inimigo características, que apontem para a
número um, a ditadura, e mais fraca forma e para o significado destas
ainda quando comparada ao inimigo organizações no campo político.
sistêmico, o capitalismo. A base Assim, nesta parte do artigo
social de apoio era cada vez mais apresentaremos a esquerda armada
estreita e a posse de recursos de sob o prisma de autores sem parti pris
guerra era infinitamente menor; que destacaram: i) a sua composição
grande era a confiança de que uma social; ii) as teorias revolucionárias
vanguarda bem organizada poderia que serviram como norteadoras das
transformar os rumos da sociedade. organizações; iii) a moral estruturante

28  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

do militante e estruturada pela derrota da luta armada tem relação


organização e; iv) a violência com a representação das bases
revolucionária. Essas características sociais. Para ele, a derrota não foi de
foram destacadas por serem uma ou outra organização, mas sim
recorrentes na literatura sobre o “de um projeto político de
tema. representação” (2010, p. 241); sem
apoio das bases sociais, as ações
2.1 Composição social da esquerda
armadas estavam condenadas ao
armada
próprio fim. Ou seja, as classes e
A composição social da esquerda diz frações de classes que formavam a
respeito à relação que estas esquerda armada eram distintas
organizações têm com as bases da daquelas cujos interesses eram
sociedade. Ou seja, quais classes e defendidos por estas. Na nossa
frações de classes deram origem à leitura, havia uma distância
luta armada, e quais classes e frações considerável entre representantes e
de classes essas se dispuseram a representados no campo da
representar. Nesse sentido, Marcelo esquerda.
Ridenti (2010), com base nos dados
Os dados analisados por
do Projeto Brasil Nunca Mais – que
Ridenti formam uma amostra que
pretende esclarecer e divulgar a
não representa todo o universo da
violação de direitos humanos
esquerda armada, mesmo assim
cometida pelo Estado Militar –
sugerem valiosas informações sobre a
analisou as bases sociais da esquerda
origem social dos militantes das
armada (2010, p.163-238). Esse
referidas organizações. Abaixo
estudo é importante no campo da
apresentamos duas tabelas, que
projeção social dessa parte da
sintetizam um pouco a origem social
esquerda. Ridenti, ainda sobre o
da esquerda, e mais especificamente
prisma derrota/vitória, afirma que a
das facções armadas. Os militantes

29  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

listados na tabela compunham as na guerra popular chinesa ou em


seguintes organizações: “ALA”, qualquer experiência que preconizou
“ALN”, “AP”, “COLINA”, formas de lutas – contabilizamos
“CORRENTE”, “DI-DF”, “DVP”, dezoito organizações que
“FALN”, “FLNe”, “G. de 11”, seguramente optaram pela via das
“MAR”, “MEL, “MNR”, “MOLIPO”, armas: (“ALA”, “ALN”, “COLINA”,
“MR-21”, “MR-26”, “MR-8”, “MRM”, “FALN”, “FLNe”, “MAR”, “MNR”,
“PCdoB”, “PCB”, “PCBR”, “PCR”, “MOLIPO”, “MR-26”, “MR-8”,
“POC”, “POLOP”, “PORT”, “PRT”, “PCdoB”, “PCBR”, “POC”, “PRT”,
“RAN”, “REDE”, “VAR”, “VPR”, “RAN”, “REDE”, “VAR”, “VPR”).
“Vários grupos” (Ridenti, 2010, Dessas organizações participavam
p.277). Quando analisados um a um, indivíduos que Ridenti categorizou
notamos que nem todos os grupos como pertencentes a “camadas de
eram adeptos – preconizavam e/ou base”, “camadas em transição” e
agiam – da luta armada. Dos que “camadas médias intelectualizadas”,
optaram por esse tipo de tática – seja descritas nas seguintes tabelas.
com referência no foquismo cubano,

Tabela 2. Composição Social da Esquerda – todas as citadas

Camadas médias intelectualizadas:


Camadas em transição:
Camadas de Base: Lavradores, empresários, estudantes, oficiais
Autônomos, empregados,
militares de baixa patente e militares, professores, profissionais Total
funcionários públicos, militantes,
trabalhadores manuais urbanos liberais ou com formação superior e
técnicos médios e outros.
religiosos.

Total de militantes com 704 (19,0%) 1.085 (29,4%) 1.908 (51,6%) 3.698 (100%)
ocupação conhecida

(Fonte: adaptado de Ridenti, 2010, p.277.)

Tabela 3. Composição Social da Esquerda – facções seguramente armadas

30  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

Camadas médias intelectualizadas:


Camadas em transição:
Camadas de Base: Lavradores, empresários, estudantes, oficiais
Autônomos, empregados,
militares de baixa patente e militares, professores, profissionais Total
funcionários públicos, militantes,
trabalhadores manuais urbanos liberais ou com formação superior e
técnicos médios e outros.
religiosos.

Total de militantes com 273 (14,7%) 498 (26,8%) 1.089 (58,5%) 1.860 (100%)
ocupação conhecida

(Fonte: adaptado de Ridenti, 2010, p.277.)

As tabelas demonstram que no especializados e pela pequena e


seio da esquerda armada, as camadas média burguesia, proprietários dos
médias intelectualizadas eram meios de produção e frações mais
predominantes. Quando privilegiadas das classes-que-vivem-
comparamos os dados das duas de-trabalho. Ou seja, a representação
tabelas e quando destacamos a de classe que era projetada pelas
esquerda armada do conjunto da teses das esquerdas armadas não
esquerda, percebemos que dos 1.908 revelava suas próprias formações. As
militantes oriundos das camadas frações da classe trabalhadora que
médias intelectualizadas, 1.089 estavam em processo de ascensão ou
pertenciam a grupos armados. Ou em ascensão social, aos moldes do
seja, o trabalho de Ridenti nos capitalismo, lutavam motivadas pelos
mostra que a esquerda armada era problemas sociais vividos pelas
mais elitizada que o restante das frações mais exploradas da classe
esquerdas, a origem social dos trabalhadora. De fato, havia um
grupos armados estava, problema de representação social.
preeminentemente, entre as frações
2.2 Esquerda armada e teorias
mais privilegiadas da classe
revolucionárias
trabalhadora e da pequena
burguesia, visto que as “camadas A esquerda armada brasileira surge
médias intelectualizadas” são de um declínio das concepções
formadas por trabalhadores teóricas e práticas advindas da

31  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

estratégia democrática-nacional, revoluções como a chinesa, a


defendida pelo PCB, como já vimos. argelina, a cubana. Ridenti (2010),
Para as facções armadas, acreditar com base num artigo de Marco
que há uma etapa revolucionário- Aurélio Garcia, desdobra as
burguesa entre capitalismo e características que diferenciavam a
socialismo – no sentido de esquerda brasileira. Separou-se
desenvolver as bases para o total em três grandes coordenadas as
divergências entre os vários grupos em
amadurecimento do capitalismo, e que se fragmentava a esquerda
brasileira na década de 1960: uma
por isso para uma revolução referente ao caráter da revolução
brasileira; outra, às formas de luta
proletária – pesou na derrota de para chegar ao poder; uma terceira, ao
1964, como indicam diversos autores, tipo de organização necessária à
revolução. As divergências em torno
como Ridenti (2010), Gorender (1987) desses três grandes temas no interior
das esquerdas tinham como paralelo
entre outros. Armar-se indicava uma indissociável as transformações pelas
quais passava a sociedade brasileira
mudança de tática e, portanto, de (RIDENTI, 2010, p.32).
concepções de como se fazer
Estas subdivisões propostas por
revolução, já que a via pacífica e
Garcia, bem como a
democrática mostrou-se falha, na
indissociabilidade da conjuntura
mesma medida que a via armada
social apontada por Ridenti, são
apresentava-se como vitoriosa em
eficazes para demonstrar sob quais
Cuba, na China, etc. Fazer a
pilares teórico-metodológicos se
revolução socialista era a ação
constituiu e desenvolveu a esquerda
política fundamental desses grupos,
armada. O grau de superação das
ainda que o motivo último tenha sido
precedentes formas de compreender
o aprofundamento da ditadura.
o capitalismo, a luta de classes no
Baseados no completo imobilismo da
Brasil e a ação no campo político
esquerda frente ao golpe de 1964,
variaram entre as organizações
alguns militantes passam a defender
armadas, no entanto Ridenti defende
novos métodos, inspirados em
que “muitas organizações que

32  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

pegaram em armas mantiveram com reproduzia muitas das suas ações. O


poucas alterações” o esquema quadro abaixo sintetiza as
democrático-nacional etapista do subdivisões de Garcia, usada por
PCB (Ridenti, 2010, p.33). Isso quer Ridenti, e por nós consideradas
dizer que mesmo havendo uma importantes para compreender a luta
superação teórica das estratégias armada.
pecebistas, a esquerda armada ainda
Quadro 1: Subdivisões no interior da esquerda socialista/comunista

Tipo de organização
Caráter da Revolução Formas de luta para
necessária à
Brasileira chegar ao poder
revolução
Via pacífica Partido de Vanguarda
Democrática Nacional Insurreições de Pequenos grupos
massas militarizados
Guerra popular
prolongada - guerrilha
Exército popular, base -
Socialista rural como
campo
catalisadora
Foquismo

(Elaborado pela autora, com base em Ridenti (2010) p.32-56.)

as várias formas de guerra de


A estratégia democrática-
guerrilhas e, em relação ao modelo
nacional era combinada com a via
de organização, poderia ser tanto um
pacífica e democrática e com o
partido de vanguarda como
modelo do partido de vanguarda. O
pequenos grupos militarizados. A
PCB era o melhor exemplo, defendia
estratégia das facções armadas era a
que a burguesia brasileira deveria
socialista, pois estas organizações
compor um bloco revolucionário
defendiam que o capitalismo no
com o objetivo de libertar a nação do
Brasil já estava plenamente
imperialismo, e com isso amadurecer
desenvolvido, e a burguesia nacional
o capitalismo no Brasil. Já a
assumia posição de colaboração,
estratégia socialista era combinada
cooperação e aliança com o
com as insurreições de massas, com
33  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

imperialismo, o que as tornavam sobre formas de lutas e análises


aliadas, e jamais inimigas de classes. conjunturais, havia certos parâmetros
compartilhados pelas facções desse
No geral, ainda que as
campo político. Esses parâmetros
estratégias, as formas de luta e o tipo
advinham da moral que circunscrevia
de organização fossem temas que
o conjunto das grandes experiências
despertavam calorosos debates entre
da esquerda no campo da luta de
as esquerdas, que divergiam e se
classes. Back nos lembra que
fragmentavam motivadas por essas
desde Engels, Gramsci, e Lukács a
questões, ainda assim as facções Mao Tse Tung, Che Guevara e Fidel
Castro, são elencados ascetismo,
armadas agiam de forma muito solidez teórica e política, auto-
sacrifício, iniciativa, disciplina,
parecida, e isso acontecia pelas generosidade, modéstia, engajamento,
espírito de camaradagem,
condições materiais sob as quais elas
disponibilidade, simplicidade,
se encontravam, a clandestinidade, a altruísmo, “despojamento heroico
cotidiano” (palavras de Fidel),
repressão, e pela similitude de suas discrição, submissão aos interesses
coletivos (BACK, 2001, p.4).
bases sociais e seu consequente
Os militantes eram indivíduos
problema de representação.
que, em nome de um projeto
2.3 Moral revolucionária revolucionário de cunho
socialista/comunista – que na
Lilian Back (2001) fez um estudo
verdade era muito mais anti-
comparativo entre duas organizações
ditatorial, portanto democrático –
revolucionárias, a ALN (Brasil) e o
construíam a si mesmos com base em
PRT-ERP (Argentina), com o
parâmetros descritos por agentes
objetivo de entender como essas
políticos envolvidos das revoluções
organizações forjavam a identidade
épicas. Nesse sentido, ainda que as
de seus militantes, e quais as
esquerdas estivessem fragmentadas, a
características reais dos mesmos.
moral revolucionária que agia como
Ainda que entre as esquerdas fossem
uma herança no plano da cultura
recorrentes as divergências teóricas

34  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

política, e que culminava na seja, Back vê a moral dos grupos


construção de um novo homem, era armados como voltada ao combate, à
um fator de coesão. E esse era um sobrevivência da luta política, e Reis
traço comum entre a diversidade das Filho vê essa mesma moral como
facções armadas. Vemos no estudo desagregadora da esquerda.
de Back (2001) ecos do que Reis
Daniel Aarão Reis Filho (1990)
Filho escrevera em 1990. Essa moral
também elenca características que
forjada pela esquerda armada foi um
eram prezadas pelos comunistas, os
dos elementos que pesaram para sua
quais definiam suas organizações
própria derrota, pois a imobilizava e
como “Estados Maiores
seccionava. Back nos informa que o
revolucionários”. Para Reis Filho, à
imobilismo era rechaçado pelas
medida que as organizações se
facções armadas (2001, p.15), e isso
afirmavam Estados Maiores, a
nos revela uma contradição entre o
manutenção dos princípios tinha
ser e o vir a ser dos militantes. Essa
importância maior que o processo
contradição também aparece na
real da luta de classes no Brasil.
composição social e na
Segundo o autor, essa lógica acabou
representação, como vimos
debilitando a ação política dos
anteriormente. Destacamos das
comunistas, e os conduziram às
conclusões de Back o que importa
sucessivas derrotas. Em suma, a
para este trabalho, ou seja, havia uma
moral revolucionária dá coesão à
predisposição dos militantes – guiada
organização, e na mesma medida
pela moral revolucionária, forjada
limita suas ações, pois o conjunto de
pela inteligência coletiva das facções
valores e concepções gera impasses
– à violência, à transposição da ação
para a ação interna e externa – com
em relação à teorização e por isso
aliados e não aliados.
“um rechaço ao intelectualismo e ao
imobilismo” (BACK, 2001, p.15). Ou

35  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

2.4 Violência revolucionária e esses fatos. Conforme vimos no


memória social início, Moraes (1989) defende que
sim, que a luta armada teve como
O uso da violência é característica
base motivadora o golpe e a
básica da esquerda armada.
legitimação do Estado Autoritário
Gorender apresenta uma abordagem
(fatores internos). Ridenti coloca que
clássica, afirmando que a violência da
“a resistência armada teria sido o
esquerda – representante dos
último recurso para aqueles que
oprimidos – é uma resposta à
ficaram sem espaço de atuação”
violência dos militares –
(RIDENTI, 2010, p.63), soma-se a
representantes dos opressores. O
isso o fato de que a esquerda que
golpe teria gerado entre a esquerda
lutava antes do golpe não era mais a
uma violência retardada. Essa tese
mesma daquela que se constituiu
torna, em alguma medida, nebulosa a
depois do golpe, mais
história da esquerda que, muito antes
especificamente depois do AI-51. Ou
do AI-5 e mesmo do golpe em 1964,
seja, a tese da violência retardada,
já vinha esboçando táticas armadas
ainda que revele vários aspectos da
revolucionárias, como é o caso das
esquerda, como seus limites em
Ligas Camponesas. Sobre isso
relação ao uso da violência, oculta
defendemos que o motivador para a
outros, que dependem da percepção
esquerda rever suas táticas – e
da continuidade da composição das
preferir às armas em detrimento das
facções da extrema esquerda.
ações de massa – foi o golpe militar,
Portanto, a constituição e o
bem como o aprofundamento da
fortalecimento da esquerda armada
repressão militar em 1968, que
devem ser observados num prisma
marcou o ápice da opção pela via
                                                                                                               
armada, mas duvidamos que a 1
João Quartim de Moraes nos lembra de que
grande parte dos militantes da esquerda
esquerda armada tenha sido armada estavam, em 1964, envolvidos com
movimentos de massas, sobretudo o
constituída apenas em resposta a estudantil.

36  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

que extrapola o período da ditadura incorporado pela esquerda brasileira,


militar. marcada, como toda a sociedade na
época, por concepções e práticas
Nascimento (2004) fez uma
autoritárias” (ROLLEMBERG, 2007,
análise das produções acadêmicas de
p. 291), exigindo dos antigos
1980 e 1990 – dentre elas a de
guerrilheiros uma nova postura
Gorender – sobre a esquerda durante
frente à sociedade. Disso
o regime militar. Para o autor, essas
compreendemos que essa nova
produções “insistiram como premissa
esquerda pós-80 formou-se a partir
básica na tese do ‘suicídio
da negação da violência como tática
revolucionário’ e na busca das
política. Compreendemos que essa
‘causas da derrota’, do projeto
negação tem por base os erros
revolucionário, a fim de atender as
cometidos pelas facções armadas
demandas políticas da conjuntura
que, envoltas em violência,
política dos anos 80” (2004, p. 48). Ou
construíram-se e destruíram-se – ou
seja, Nascimento defende que as
foram destruídas – por ela. É como
produções desse gênero estavam
se a violência fosse crescendo à
ligadas ao novo projeto político,
medida que a democracia fosse
materializado no Partido dos
suprimida, e sua prática criticada, na
Trabalhadores, quer dizer, “no
mesma medida que a democracia
começo de 80, em particular, deu
voltasse a reger.
origem a uma concepção da luta
política norteada pela crítica a Contudo, o que hoje se sabe,
qualquer forma de práxis sustentada se pensa e se divulga sobre a
na guerra de guerrilhas” (p.49). experiência armada da esquerda
Soma-se a isso o fato de que na durante a ditadura militar gira em
segunda metade dos anos 1980 “a torno, sobretudo, da anistia e dos
democracia foi aparecendo e se direitos humanos, envoltos na
impondo como valor a ser perspectiva da memória. Sobre isso,

37  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

Vitor Amorim de Ângelo fez um atualmente abrange a história da luta


estudo com o objetivo de armada. Para Ângelo, a luta armada
compreender os reflexos da relação não chegou a ameaçar a ditadura,
entre esquerda armada e ditadura como a memória social da esquerda
militar na memória social. Para este sustenta, no entanto, a construção
autor, a violência vivenciada pela dos mitos que envolvem essa
esquerda era envolta na assertiva de memória cumpre uma função de
que “a guerrilha, na verdade, capital simbólico (ANGELO, 2012,
facilitou a vitória do regime – e não p.23) no seio da atual esquerda. Essa
sua derrota – ao lhe fornecer o conclusão do autor é instigante, pois
argumento de que precisava para demonstra que a experiência armada
ampliar a repressão” (2012, p.1). Ou se estendeu no percurso da práxis da
seja, a violência do oprimido esquerda brasileira.
intensificou a violência do opressor
2.5 Procedimentos metodológicos da
que, muito mais provido de recursos
literatura
de guerra, teve facilidade em
desmantelar o projeto revolucionário Esse conjunto de informações sobre
de esquerda. a esquerda armada resulta de várias
pesquisas históricas e sociais, com
Nesse contexto, a memória
procedimentos metodológicos bem
social da luta armada está imersa em
diferentes. O quadro 2 resume a
mitos, que ocultam a derrota
forma como a literatura histórica e
relativamente fácil à repressão
social aborda a esquerda armada
militar. Os ideais de revolução
brasileira. Nele verificamos que o uso
socialista das organizações armadas
dos métodos analíticos das ciências
deram espaço, na memória social,
sociais é minoritário. E, como
para a lógica democrática, o que
utilizamos referências clássicas da
explica de certa forma o foco na
anistia e nos direitos humanos que

38  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

década de 1980, observa-se forte


ênfase na lógica da derrota.
Quadro 2: principais estudos sobre
esquerda armada brasileira

(Elaborado pela autora, dados coletados

Problema Hipóteses Procedimentos  metodológicos Algumas  Conclusões


Autor  (a)  e  
grande  área
Mobilização  e studantil  
Qual  a  relação  e ntre   Separa  "eventos"  de   desencadeou-­‐se  por  motivos  
movimentos  de  massas   A  condição  política  fundamental   "processos";  confronta  e ventos   internos,  confirma-­‐se  a  
J.Q.  de  Moraes,  
e    o  desencadeamento   para  a  l uta  armada  foi  a  ditadura   históricos  com  a  possibilidade   hipótese.  O  e ncontro  e ntre  
Ciências  Sociais
da  l uta  armada  no   militar,  e  a  pré-­‐condição  foi  a  CF-­‐67 do  contrário,  e stabelece   mobilizações  de  massa  e  l uta  
Brasil  e m  1968? relações  causais,  compara. armada  fez  surgir  a  certeza  de  
que  a  e stratégia  e ra  outra.
Qual  as  raízes  sociais  e   Remonta  a  órbita  política  da  
A  revolução  brasileira  frustou  e  não   As  organizações  clandestina  
o  significado  da  l uta   esquerda  e  suas  composições  
M.S.  Ridenti   amadureceu,  o  acerto  de  contas  é   marginalizaram-­‐se  e  perderam  
dos  grupos  de   sociais.  Utiliza  dados  do  BNM,  
Ciências  Sociais fundamental  para  que  os  e rros  não   representação;  o  i nimigo  
esquerda,  sobretudo   entrevistas  e  depoimentos.  Uso  
se  repitam. principal  tornou-­‐se  a  ditadura.
os  armados? da  e statística.
Manter  os  princípios  e ra   O  autor  mostra-­‐se  
fundamental  para  a  e squerda,  bem   intensamente  e nvolvido  com  o   A  derrota  das  e squerdas  
Como  e xplicar  a   como  a  criação  da  vanguarda;  os   objeto,  l ogo  faz  uma  análise   ocorreu  pois  a  natureza  das  
D.A.  Reis  Filho  
derrota  dos  comunistas   motivos  para  as  reviravoltas  na   histórica,  clínica  e  e xplicativa  da   organizações  e ra  formada  por  
História
brasileiros? esquerda  e ram  i nternos;   fragmentação,  dos  i mpasses  e   características  que  debilitavam  
predominavam  os  i ntelectuais,   das  atitudes  dos  comunistas   as  ações  dos  comunistas.
sobretudo  na  cúpula. frente  ao  AI-­‐5
O  autor  mostra-­‐se  
A  e squerda  e rrou  e m  não  ter  
A  e squerda  armada  brasileira  
intensamente  e nvolvido  com  o  
se  preparado  para  o  combate  
Esclarecer  fatos   copiava  os  modelos  
objeto,  l ogo  faz  uma  análise  
armado;  e ste  representou  
J.  Gorender   políticos  da  relação   revolucionários  de  outros  paises,  
histórica  e  clínica,  a  partir  de  
uma  violência  retardada  a  
História entre  e squerda  e   no  e ntanto  sua  constituição  
pesquisa  documental,  
1964;  o  milagre  e conômico  foi  
ditadura  militar. ocorreu  como  resposta  ao  golpe  
observação,  participação  e  
importante  para  o  declínio  da  
militar,  a  violência  retardada.
análise  l iterária.  
esquerda.
A  e squerda  armada  justificou  a  
O  aprofundamento  da  ditadura   repressão,  pois  e ra  vista  como  
Qual  a  relação  e ntre   Identificou  e lementos  
com  o  AI-­‐5  deve  ser  e xplicado  pela   inimigo  i nterno;  sua  
ditadura  militar  e   constitutivos  da  memória;  
V.A.  de  Angelo   luta  armada,  formada  por   fragmentação  facilitou  a  
esquerda  armada  e   reconstruiu  o  contexto  histórico  
História organizações  que  depois  passam  a   repressão;  a  l uta  armada  não  
qual  o  reflexo  disso  na   no  qual  se  e struturou  e ssa  
serem  vistas  como  combatentes   ameaçou  a  ditadura,  e  passou  
memória  social? memória.
pela  democracia. a  ser  vista  como  a  l uta  pela  
democracia.

Comparar  a  moral   A  moral  forjada  por  ambas  as  


revolucionária   Pesquisa  e x-­‐post-­‐facto,  com   organizações  divergiam  do  
O  novo  homem  e ra  o  i ndivíduo  
L.  Back                 preconizada  pelo  PRT-­‐ variáveis  i ndependentes  não-­‐ imobilismo  e  i ntelectualismo,  
moral  dessas  organizações  de  
História ERP  e  pela  ALN  e   manipuláveis.  Análise   e  convergiam  a  ação  e  a  
esquerda.
compará-­‐las  com  os   comparativa. violência.  Moral  de  e  para  o  
militantes  reais. combate.

O  diagnóstico  é  composto  por   Vai  do  micro  ( guerrilha  do  


Qual  o  diagnóstico   As  causas  da  derrota  guiam  a  
D.M.   críticas  as  ações  e  concepções  da   Araguaia)  para  o  macro  
produzido  e m  1980/90   crítica  a  e xperiência  armada;  é  
Nascimento   esquerda  armada,  e  e stá   (grerrilhas  no  Brasil).  Pesquisa  
sobre  a  e squerda   preciso  e studar  e sta  
História subordinado  ao  projeto  político  do   bibliográfica  com  e studo  de  
armada? dissociada  da  defesa  do  PT.
PT. casos.
Os  i ntelectuais  não  
A  acusação  de  vícios  pequeno-­‐ conseguem  agir  de  acordo  com  
Analisar  depoimentos  e  
Como  foi  modificado  o   burgueses  e ra  tendência  e ntre  os   interesses  de  uma  classe  que  
A.F.  Ramos   apontar  diferenças  e ntre  os  
papel  do  i ntelectual   militantes  de  e squerda;  a  l uta   não  é  de  origem;  por  i sso  a  
História documentos  dos  partidos  e  os  
revolucionário?   armada  fez  o  i ntelectual  ser   identidade  de  classe  se  
depoimentos  dos  combatentes.
substituído  pelo  combatente. constitui  numa  fragilidade  da  
esquerda. 39  
  Como  parte  da  
Os  valores  democráticos  foram,  
Análise  de  e xemplares  da  
A  "Debate"  foi  renovada  no  
D.  Rollemberg   esquerda  e voluiu  no   revista  "Debate",  comparação  
numa  dinâmica  histórica,  sendo   exílio,  e  mesmo  negando  ser  
História exílio  a  respeito  da  sua   das  matérias  contidas  na  revista  
impostos  a  e squerda. plural  constituiu-­‐se  assim.
participação  política? com  suas  ações  políticas.
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

de toda a bibliografia). a forma como se processou a

Considerações finais construção da memória social da


esquerda armada brasileira. No
Grande parte da produção acadêmica
entanto, as pesquisas históricas nos
que contempla a luta armada no
fornecem dados importantes para
Brasil durante a Ditadura Militar
perceber a estrutura do campo
advém de pesquisas históricas, além
político. Carlos Fico coloca que
disso, muitas são realizadas por ex-
“processa-se uma mudança
militantes das organizações armadas.
geracional, sendo cada vez mais
Nascimento (2004) analisa alguns
frequente que pesquisadores do tema
estudos feitos na década de 1980 por
não tenham parti pris” (2004, p.29).
ex-militantes, que no decorrer de um
Ou seja, existe uma tendência de a
processo de crítica e autocrítica,
literatura sobre luta armada no
rompem com a política das armas
Brasil, no campo da História ou das
para construir um projeto
Ciências Sociais, superar as análises
democrático, logo, suas teses
guiadas pela lógica da derrota.
expressam algo parecido com um
acerto de contas com o período da Os autores que utilizamos para

luta armada. compor este estudo foram mapeados


a partir das categorias: tipo de
Depois dessa fase da literatura,
pesquisa, problema, hipótese,
comprometida, segundo o autor, com
procedimentos metodológicos e
o projeto do PT, as pesquisas sobre
conclusões, como demonstrado no
as facções armadas tendem a destacar
quadro 2, exibido anteriormente. A
essa experiência da totalidade
respeito disso, nossa primeira
histórica, limitando a conexão dela
conclusão gira em torno do
com organizações políticas atuais.
reconhecimento de que mais
Isso não ocorre com o trabalho de
variáveis devem ser mobilizadas para
Back (2001), por exemplo, que estuda
compreender os ecos das facções

40  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

armadas na política da esquerda vitórias de algumas organizações


atual. A análise guiada pela derrota marxistas que se basearam na luta
encerra o assunto. Outra conclusão armada, em Cuba, China, etc.; o
revelada pelo estudo e presente no amadurecimento do espírito de
quadro 2 é o uso estatístico aplicado vanguarda combinado com a certeza
ao objeto, muito carente na da necessidade de um partido que
literatura. Temos certeza de que os guie a classe trabalhadora; e,
números revelam pouco sobre a principalmente, a violação de direitos
realidade social, no entanto, torna-se de natureza democrática. De modo
fundamental a quantificação quando geral, o conjunto da literatura nos
se pretende demonstrar e remontar permitiu gerar essas questões, em
um universo de relações sociais. acordo e em desacordo com nossas
Podemos afirmar que os estudos referências bibliográficas.
feitos até então sobre a esquerda
O conjunto da literatura sobre
armada brasileira do período
a esquerda armada nos fornece dados
ditatorial-militar, não revelam – ou
detalhados da forma de organização
revelam pouco – o peso dessa
hierárquica, das teses
experiência no campo político
revolucionárias, dos traçados táticos,
brasileiro da atualidade.
das histórias dos militantes, entre
Também concordamos que os outros aspectos. Isso representa que
motivos que consagraram a o estudo deste objeto está localizado
militarização das facções foram: a num terreno fértil da história. Além
impossibilidade de agir nas ruas e em disso, são inúmeras as matérias
espaços públicos, mobilizando jornalísticas e memorialísticas sobre
massas; a descrença nos métodos o tema, o que potencializa as
revolucionários preconizados pelas pesquisas nesse campo. Os autores
organizações precedentes, como o que estiveram envolvidos com as
PCB e a internacional comunista; as organizações armadas tendem a vê-

41  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

las sob o prisma dos erros e acertos, da forma como Back coloca,
e aqueles que não tiveram parti pris relacionada ao projeto democrático,
tendem a explorar novos aspectos, tenha sido uma resposta a este
como a memória, o intelectual e o processo.
guerrilheiro, e a moral, por exemplo.
Dessa forma, poderíamos
A ascensão e o declínio da entender a esquerda armada
esquerda foram relacionados a brasileira como uma fase radicalizada
muitos fatores, e neste trabalho da esquerda, a partir de um processo
concluímos que os motivos da ditatorial extremamente repressivo,
ascensão são aqueles listados como inspirada nos grandes processos
de uma necessária militarização, e a revolucionários que se
derrota está ligada à composição desencadeavam em todo o mundo.
social e à conjuntura em que a Seu declínio tem menos relação com
esquerda armada atuava. Ou seja, a os possíveis erros de ação e
vanguarda revolucionária era concepção das organizações, e
formada por indivíduos das frações também com as condições em que
mais abastadas da classe estas estavam inseridas, além do
trabalhadora, e até mesmo de frações problema de representação e
da burguesia. Isso gera o que Ridenti projeção das bases sociais. Mesmo
chamou de problema de assim,
representação. Este problema, junto todos os grupos de esquerda, armados
ou não, embora gestados em lutas
à intensa repressão e criminalização sociais, tornavam-se cada vez mais
exteriores e distantes dos
da esquerda, fez murchar as bases de trabalhadores, pretendendo impor-
lhes as políticas mais diversas, de fora
apoio das organizações armadas, que e de cima para baixo, alheios à sua
gradualmente isolaram-se, realidade social. Nenhum grupo tinha
condições de converter-se numa
impossibilitadas de participarem da efetiva representação de classe, todos
tendiam a arvorar-se em agentes-
órbita política. Pensamos que a substitutos da ação política da classe
trabalhadora, entrando numa
memória social da esquerda armada,

42  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

dinâmica que não os levariam a lugar atual esquerda. Para isso, seria
algum (RIDENTI, 2010, p.252).
importante considerar todo o leque
Ao contrário do que afirma
de estudos científicos do período e
Ridenti ao final dessa passagem,
do campo específico, bem como
acreditamos que a luta armada levou
matérias jornalísticas e documentos
todo o conjunto da esquerda a novas
das organizações. Foi notável
concepções de luta, portanto a luta
também a divisão no campo
armada foi um momento de
científico de investigação: quem
transformação em todo o campo da
estuda a esquerda armada é guiado
esquerda.
por vontades políticas individuais e

Em suma, este trabalho nos organizacionais, ou quem estuda a

possibilitou compreender alguns esquerda armada está comprometido

processos que envolveram e foram em esmiuçar um campo social com

envolvidos pelas ações políticas de objetividade? De qualquer forma, nos

agentes da luta armada, guiados pelas deparamos com um universo a ser

teses marxianas e marxistas explorado pelas Ciências Sociais,

revolucionárias. Notamos a mais especificamente pela Sociologia

necessidade de estudar os efeitos da Política e pela Ciência Política.

experiência da luta armada na


composição – doxas e habitus – da

Referências

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BRASA Congress. University of Illinois at Urbana-Champaign. 06-08 September
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julho 2001.

43  
 
Enfoques                                                                                                                                                                                      Vol.  14  (n.2)  Dez-­‐2015  

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