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Universidade La Salle

Canoas, V. 8, N. 1, 2019
REDES
Revista Eletrônica
ISSN 2318-8081 Direito e Sociedade
http://dx.doi.org/10.18316/2318-8081.15.0
v. 8, n. 2

Canoas, 2020
UNIVERSIDADE LA SALLE Fernando Tonet, IMED, Brasil
Reitor - Paulo Fossatti, fsc Francisco Javier Pérez-Serrabona, Universidad de Granada
Master, Espanha
Vice-reitor - Cledes Antônio Casagrande, fsc
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Pró-reitor Acadêmico - Miguel Nascimento da Costa
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Pró-reitor de Desenvolvimento - Renaldo Vieira de Souza
Hakan Hyden, Lund University, Suécia
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CONSELHO EDITORIAL Jacson Luiz Zilio, Academia Brasileira de Direito
Constitucional, ABDCONST, Brasil
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João Pedroso, Universidade de Coimbra, Portugal
Cledes Antonio Casagrande
João Martins Bertaso, URI-Universidade Regional
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José Geraldo de Souza Junior, UNB, Brasil
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Zilá Bernd
Espanha
Juliana Neuenschwander Magalhães, UFRJ, Brasil
REDES - REVISTA ELETRÔNICA DIREITO E SOCIEDADE Lenio Luiz Streck, Unisinos, Brasil
Leonel Severo Rocha, Unisinos, Brasil
Editor: Marcos Catalan
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Coordenação: Editora Unilasalle
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Diagramação: Editora Unilasalle
Portugal
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Fluminense, Brasil
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Arnaldo Bastos Neto, UFGO, Brasil
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Pernambuco, Brasil
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Wanda Cappeller, IEP-Toulouse
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Daniel Francisco Nagao Menezes, Universidade
Presbiteriana Mackenzie, Faculdade de Direito, Brasil
Else Bonthuys, University of Witwarsterand, Africa do Sul
Felipe Chiarello de Souza Pinto, Mackenzie-SP, Brasil
Universidade La Salle

REDES
Revista Eletrônica
Direito e Sociedade
v. 8, n. 2

Canoas, 2020
4

SUMÁRIO
1. Table of contents ................................................................................................................................................. 07

Editorial
2. Por uma criminologia da liberdade e da não-violência: homenagem a iago Fabres de Carvalho ........ 09
Daniel Achutti, Mariana de Assis Brasil e Weigert, Raffaella Pallamolla, Salo de Carvalho

Artigos
3. Aspectos simbólicos, políticos e práticos da letalidade policial no Rio de Janeiro e em São Paulo durante o
governo Bolsonaro ................................................................................................................................................ 17
André Filipe Pereira Reid dos Santos, Lucas Melo Borges de Souza, iago Fabres de Carvalho

4. O papel da família como vetor educacional primário ao consumo responsável e seus desa os diante do
abuso da comunicação mercadológica infantil ................................................................................................... 41
Dennis Verbicaro, Grace Baêta de Oliveira, Pastora do Socorro Teixeira Leal

5. A ausência da atividade scalizadora na lei geral de proteção de dados pessoais e sua ine cácia ............ 61
Diogo de Calasans Melo Andrade, Roberta Hora Arcieri Barreto

6. Hermenêutica humanista, ética da magistratura e os princípios de Bangalore: elementos de uma


normatividade estruturante .................................................................................................................................. 75
Eliseu Raphael Venturi

7. Diálogos com o “realismo marginal” e a crítica à branquidade: por que a dogmática processual penal
“não vê” o racismo institucional da gestão policial nas cidades brasileiras? .................................................... 95
Evandro Charles Piza Duarte

8. El poder de la vulnerabilidad. Implicancias en la interpretación y aplicación del derecho ..................... 121


Guillermina Leontina Sosa

9. Danos colaterais em tempos de pandemia: preocupações quanto ao uso dos dados pessoais no combate a
COVID-19 ............................................................................................................................................................ 143
Jéssica Andrade Modesto, Marcos Ehrhardt Junior

10. “Gato e sapato ”: a solução negociada e a pilhagem da bacia do rio Doce ................................................ 163
Luciana Tasse Ferreira

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5

11. Proteção jurídica da existencialidade ........................................................................................................... 181


Maria Helena Diniz

12. Critical considerations on Arti cial Intelligence liability: e-personality propositions .......................... 193
Sthéfano Bruno Santos Divino

Resenha
13. Judicialização da política, ativismo e discricionariedade judicial ............................................................. 215
João Humberto Cesário

14. O fascismo eterno, uma resenha ................................................................................................................... 223


José Alexandre Ricciardi Sbizera

Direito em movimento em perspectiva


15. Deep Web e Dark Web: implicações sociais e repercussões jurídicas ...................................................... 227
Mateus de Oliveira Fornasier, Norberto Milton Paiva Knebel

16. A teoria do direito de Evgeni Pachukanis nos 100 anos da revolução de outubro .................................. 245
Luiz Rosado Costa, Maurício Ferreira da Cruz Júnior

17. Somos modernos? Considerações sobre o Estado e a democracia brasileira a partir de Raízes do Brasil
................................................................................................................................................................................ 257
Vinícius Balestr

Dissertações e teses
18. Para muito além da democratização: o programa Universidade para Todos (ProUni) sob o prisma da
decolonialidade negra. ......................................................................................................................................... 269
Felipe Montiel da Silva

19. A percepção da injúria racial pelo tratamento dado às vítimas e aos seus estigmas: busca da igualdade
social e racial por meio da mediação penal como prática de justiça restaurativa. ........................................ 271
Mauri Quiterio Rodrigues

20. Cansaço de si e cuidado dos outros: a precarização das relações pro ssionais de mulheres vinculadas
aos serviços gerais de limpeza terceirizada no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. ........ 273
Tainá Machado Vargas

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 01-05, ago. 2020.


Por uma criminologia da liberdade e da não-violência:
homenagem a iago Fabres de Carvalho
Daniel Achutti
Universidade LaSalle, Canoas, RS, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-2843-3305

Mariana de Assis Brasil e Weigert


Grupo de Estudos em Ciências Criminais, Faculdade Nacional
de Direito, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-7023-3833

Raffaella Pallamolla
Universidade LaSalle, Canoas, RS, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-4668-9889

Canoas, v. 8, n. 2, 2020
Salo de Carvalho
Editorial Universidade LaSalle, Canoas, RS, Brasil
DOI http://dx.doi.org/10.18316/REDES.v8i2.7127 https://orcid.org/0000-0002-2006-9916

É notório que o campo do direito é conservador e, portanto, resistente


a mudanças. Essa característica não é exclusiva de nosso país, mas
uma marca dos sistemas jurídicos ocidentais modernos, objeto
de pesquisa de inúmeros autores das ciências jurídicas e sociais
[...] Esse é um dos motivos pelos quais não é comum encontrar
pesquisadores críticos no campo do direito, mas os autores deste
livro são, sem sombra de dúvidas, exemplos de exceção a essa
constante. São força contrária à inércia, ao pensamento tradicional
que insiste em não ver seus limites e pensar em possíveis saídas fora
das possibilidades mais evidentes, daquilo que lhes é familiar1.

Assim Daniel Achutti e Raffaella Pallamolla iniciaram o


prefácio do livro de iago Fabres de Carvalho, Natieli Giorisatto
de Angelo e Raphael Boldt2, para contextualizar a obra em que os

1
ACHUTTI, Daniel; PALLAMOLLA, Raffaella. Prefácio. In: CARVALHO,
iago Fabres de; BOLDT, Raphael; ANGELO, Natieli Giorisatto de (Org.).
Criminologia crítica e justiça restaurativa no capitalismo periférico. São
Paulo: Tirant lo Blanch, 2019. p. 11.
2
CARVALHO, iago Fabres de; BOLDT, Raphael; ANGELO, Natieli Giorisatto
de (Org.). Criminologia crítica e justiça restaurativa no capitalismo
periférico. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019.
10 Daniel Achutti, Mariana de Assis Brasil e Weigert, Raffaella Pallamolla, Salo de Carvalho

autores trabalharam as intersecções entre criminologia crítica e justiça restaurativa no capitalismo periférico
brasileiro. O prefácio foi enviado no dia 05 de agosto de 2019, e o livro foi impresso alguns meses depois.
Tema de especial relevância no cenário nacional da justiça restaurativa, em que o sistema penal segue
funcionando como se não tivesse nada de errado, o lançamento do livro foi motivo de celebração.

Em fevereiro deste ano, quarta-feira de cinzas, como um rompante, iago faleceu. Quase quatro meses
depois, ainda não conseguimos acreditar nisso direito. A distopia da pandemia de covid-19 torna tudo ainda mais
nebuloso e confuso, mas não impede o avanço imperativo de uma realidade que teima em não deixar de acontecer.

Alexandre Wunderlich e Felipe Moreira de Oliveira diversas vezes relataram a ocasião de quando
conheceram iago: em um seminário do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), no nal
dos anos 1990, ouviram alguém comentando que gostaria de ir ao Rio Grande do Sul estudar e, teriam então
conversado com iago, passando-lhe seus números de telefone e oferecendo, por cortesia, algum auxílio
caso decidisse ir. Cortesia comum em momentos como aquele, sobretudo em se tratando de Alexandre e
Felipe, que não imaginavam que, menos de um ano depois, ele realmente iria. O comentário de ambos a
esse respeito, por sinal, sempre foi idêntico: “e não é que ele veio mesmo?!”.

Com certa frequência gostamos de recordar da forma leve com que transcorriam as aulas de
criminologia de iago na PUCRS, no já longínquo ano de 2004, período em que iniciava seus estudos de
doutorado na Unisinos, sob a orientação de seu mestre de sempre, Prof. Dr. Lênio Streck.

iago ia e voltava com as lições de Martine Xiberras e seu “Teorias da exclusão”, e também gostava de
brincar com o tempo, especialmente o do direito, de François Ost, e das leituras e dos longos debates desde
os con ns do mundo jurídico de Norbert Rouland. Com Antoine Garapon, o debate sobre a possibilidade
de punir em democracia virou fonte para novos questionamentos e, quiçá, um dos fundamentos para a
busca por uma criminologia da não-violência.

Com Pierre Clastres, iago questionava até que ponto a sociedade não devia se voltar contra o
Estado – sobretudo quanto ao seu braço punitivo – e se utilizava com frequência da mitologia grega, sempre
citando as lições de Jean-Pierre Vernant, para tentar melhor entender justamente o que distingue o Brasil
e o torna tão particular e, por isso mesmo, tão difícil de compreender.

Mas eram os autores nacionais que mais prendiam a sua atenção: Lênio Streck, Nilo Batista, Vera
Malaguti Batista, Vera Regina Pereira de Andrade, Juarez Cirino dos Santos, Maria Lucia Karam, Jessé Souza,
Geraldo Prado, Luiz Eduardo Soares, dentre muitos outros, eram presença constante em seus trabalhos,
conferências e nas sempre profícuas conversas de mesa de bar. Presenças que, por sinal, eram acompanhadas
da boa arte: sua leitura cativante de Abril Despedaçado e a forma como procurou compreender o fenômeno
da violência no Brasil pelas composições de Legião Urbana, Cazuza, Chico Buarque e muitos outros, eram
também um traço marcante da sua forma de ver o mundo e da maneira como interpretava os fenômenos
sociais ligados às ciências criminais.

Ao mesmo tempo em que a leveza dos encontros trazia um garoto, amigo de toda a gente, expunha
também um pensador so sticado, cuja profundeza dos argumentos por vezes escapava aos mais desatentos.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 09-16 ago. 2020.


Por uma criminologia da liberdade e da não-violência: homenagem a iago Fabres de Carvalho 11

A consistência teórica, aliada a uma rara sensibilidade, tornavam possível a emergência de um pensamento
autêntico, peculiar, mergulhado em uma procura constante por um mundo menos doloroso, menos
punitivo, mais acolhedor.

Autor de quase 30 artigos cientí cos e 5 livros, esteve presente no evento inaugural do Grupo
Brasileiro de Criminologia Crítica, em 2014, na Universidade La Salle, ocasião em que se de niu que Vitória,
sua cidade natal, receberia o encontro no ano seguinte. Em parceria com sua instituição de vínculo à época
– Faculdade de Direito de Vitória (FDV) – decidiu-se pela submissão dos trabalhos então apresentados
para avaliação e publicação, de forma compartilhada, entre os dois PPGs em Direito, por meio de suas
respectivas revistas: nesta mesma REDES – Revista Eletrônica de Direito e Sociedade (vol. 3, n. 1, 2015)3, e
na Revista de Direitos e Garantias Fundamentais (vol. 15, n. 1, 2014)4.

3
BOZZA, Fabio da Silva. Política criminal contemporânea e neoliberalismo. Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas,
v. 3, n. 1, p. 63-82, maio 2015. BUDO, Marilia de Nardin. Ideologia, hegemonia e opinião pública: As contribuições de Gramsci
à criminologia crítica. Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 3, n. 1, p. 179-202, maio 2015. CHIARI, Vanessa. A
repressão penal no Brasil Contemporâneo pelo olhar da criminologia radical. Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas,
v. 3, n. 1, p. 223-238, maio 2015. DIVAN, Gabriel Antinol . Justa causa para a ação penal e suas possibilidades criminológicas
– criminologia(s) no processo penal (hipótese preliminar). Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 3, n. 1, p. 83-94,
maio 2015. GARCÍA, José Ángel Brandariz. Gerencialismo y políticas penales. Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas,
v. 3, n. 1, p. 109-138, maio 2015. GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Proposições sobre o presente e o futuro da criminologia
crítica no Brasil. Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 3, n. 1, p. 9-28, maio 2015. LEMOS, Clecio. Seletividade
estrutural: Sistema punitivo e seu cerne político. Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 3, n. 1, p. 51-62, maio
2015. MATSUMOTO, Adriana. Contribuições do materialismo histórico-dialético para a análise das alianças psi-jurídicas no
estado democrático de Direito Penal. Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 3, n. 1, p. 29-50, maio 2015. MELLO,
Marilia Montenegro Pessoa de et al. Notas sobre pesquisa qualitativa em uma unidade de internação feminina: Experimentando
contradições e desa os na investigação criminológico-crítica. Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 3, n. 1, p. 203-
222, maio 2015. MOURA, Marcelo, PILAU, Lucas. Criminologia crítica, sistema penal e complexidade: A operacionalidade da
máquina de morte revelada a partir da análise dos homicídios ocorridos na cidade de Pelotas nos anos de 2012 e 2013. Revista
Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 3, n. 1, p. 139-160, maio 2015. SANTOS, Mariana Chies Santiago. Rei cação e
Resistência: O adolescente selecionado pelo sistema de Justiça Juvenil em Porto Alegre. Revista Eletrônica Direito e Sociedade,
Canoas, v. 3, n. 1, p. 161-178, maio 2015. ZILIO, Jacson Luiz. O que resta da criminologia crítica. Revista Eletrônica Direito e
Sociedade, Canoas, v. 3, n. 1, p. 95-108, maio 2015.
4
ACHUTTI, Daniel. Abolicionismo penal e justiça restaurativa: do idealismo ao realismo político-criminal. Revista de Direitos
e Garantias Fundamentais, Vitória, v. 15, n. 1, p. 33-69, 2014. BUJES, Janaina de Souza. Governar infratores ou tratar corpos?
A medicalização de jovens internados na FASE/RS como política da/na socioeducação. Revista de Direitos e Garantias
Fundamentais, Vitória, v. 15, n. 1, p. 105-124, 2014. CAPPI, Riccardo. Onde mora o “perigo”: a possível contribuição da Escola
de Louvain para (mais) uma criminologia crítica. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, v. 15, n. 1, p. 157-175,
2014. CARVALHO, Salo de. O “gerencialismo gauche” e a crítica criminológica que não teme dizer seu nome. Revista de Direitos e
Garantias Fundamentais, Vitória, v. 15, n. 1, p. 125-155, 2014. LARRUSCAHIM, Paula Gil; SCHWEIZER, Paul. A criminalização da
pixação como cultura popular na metrópole brasileira na virada para o século XXI. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais,
Vitória, v. 15, n. 1, p. 13-32, 2014. PACHECO, Pedro José; VAZ, Viviane Naisinger. Outras práticas possíveis da psicologia na prisão.
Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, v. 15, n. 1, p. 177-198, 2014. RUDNICKI, Dani. Criminologia e prisões:
interesses no campo dos direitos humanos. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, v. 15, n. 1, p. 83-103, 2014.
SCAPINI, Marco Antonio de Abreu. Assombros da violência. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, v. 15, n. 1,
p. 71-81, 2014. SKULJ, Agustina Iglesias. Violencia de género en América Latina: aproximaciones desde la criminologia feminista.
Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, v. 15, n. 1, p. 199-237, 2014.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 09-16 ago. 2020.


12 Daniel Achutti, Mariana de Assis Brasil e Weigert, Raffaella Pallamolla, Salo de Carvalho

Em coautoria com seu parceiro de longa data, André Filipe Pereira Reid dos Santos, a edição da
Revista de Direitos e Garantias Fundamentais foi assim apresentada:
Quando fomos convidados para participar do Encontro de Criminologia Crítica, realizado em maio de 2014,
em Canoas/RS, não fazíamos ideia da importância histórica daquele evento, que fundaria um grupo de trabalho
tão próximo, apesar de nossas distâncias geográ cas. Tivemos certeza, lá em Canoas, de que a criminologia
crítica era maior do que nós, e que não deveríamos mais enfrentar sozinhos as di culdades cotidianas de realizar
pesquisas críticas/re exivas sobre a realidade do sistema penal brasileiro e sobre políticas criminais. Passamos
a nos sentir fortes desde então, capazes de conectar nossas pesquisas e de inferir na realidade social brasileira5.

Em um único parágrafo, iago e André resumiram o ambiente e o clima proporcionado por aquele
encontro: mais do que nunca, era preciso unir os diferentes pesquisadores da criminologia crítica brasileira.
Hoje, seis anos depois, o Grupo Brasileiro de Criminologia Crítica já realizou diversos encontros, em
diferentes estados do país, e – apesar do negacionismo intrigante de alguns – consolidou uma frente de
pesquisa que está muito ativa. Em pleno desenvolvimento, mas, de algum modo, incompleta desde aquela
quarta-feira de cinzas.

A criminologia crítica, vale registrar, fez-se presente de forma constante na produção intelectual
de iago: desde o seu Criminologia, (In)visibilidade, reconhecimento: o controle penal da subcidadania no
Brasil6, até sua última obra, Política Criminal e Estado de Exceção no Brasil: o direito penal do inimigo no
capitalismo periférico7, organizada com ninguém menos que Vera Malaguti Batista. Traço característico de
suas obras, ocupou espaço privilegiado na abordagem de seus problemas de pesquisa, a partir da perspectiva
de que era necessário aproximar o debate criminológico (crítico) da dura realidade brasileira.

Realidade, por sinal, marcada pela violência (urbana e estatal) e pelo desprezo cotidiano aos
direitos fundamentais, atravessada por questões fundamentais (racismo, patriarcalismo, desigualdades
sociais, encarceramento em massa, etc.) que escancaram a complexidade que signi ca pensar o Brasil.
Complexidade que, em meio à pandemia do novo coronavírus, apenas se acentuou e tornou ainda mais
difícil a vida dos mesmos invisíveis de sempre. A subcidadania característica do contexto brasileiro, tão
bem trabalhada (e criticada) por iago, fará com que o sofrimento de considerável parcela da população
seja ainda maior, por mais tempo e com maior intensidade.

E é nesse sentido que se pode dizer que as atuais políticas de segurança pública revelam os traços
mais marcantes dessa subcidadania do controle penal no Brasil: mortes não só normalizadas, mas sobretudo
desejadas, de corpos indóceis que teimam em não se resignar com suas condições de eternos subcidadãos
de um país desde sempre produtor de desigualdades, violências e humilhações.

5
CARVALHO, iago Fabres de; SANTOS, André Filipe Pereira Reid dos. Apresentação. Revista de Direitos e Garantias
Fundamentais, Vitória, v. 15, n. 1, p. 7-8, 2014. p. 7.
6
CARVALHO, iago Fabres. Criminologia, (In)visibilidade, reconhecimento: o controle penal da subcidadania no Brasil.
Revan: Rio de Janeiro, 2014.
7
CARVALHO, iago Fabres; BATISTA, Vera Malaguti (Orgs.). Política criminal e estado de exceção no Brasil: o direito
penal do inimigo no capitalismo periférico. Revan: Rio de Janeiro, 2020.

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Por uma criminologia da liberdade e da não-violência: homenagem a iago Fabres de Carvalho 13

Desde a análise dos discursos dos governos Witzel (RJ), Doria (SP) e Bolsonaro (Brasil) acerca da
letalidade policial enquanto política de segurança, iago, em coautoria com André Filipe Pereira Reid
dos Santos (FDV) e, também, com Lucas Melo Borges de Souza (FDV), é publicado neste momento artigo
de especial interesse à área das ciências criminais, mas que poderia (deveria) ser lido por todos que se
preocupam com o futuro de nossa tão ameaçada democracia.

Os autores apresentam elementos quantitativos e qualitativos da letalidade policial no Rio de


Janeiro e em São Paulo na pós-redemocratização, com a nalidade de analisar a “relação existente entre
sinergia discursiva e efeitos simbólicos, políticos e práticos na letalidade policial, em um contexto no qual,
a despeito de disputas na arena política tradicional, as administrações estaduais do Governo Witzel e do
Governo Doria e a administração federal do Governo Bolsonaro reproduzem uma mesma lógica de apoio
à violência policial enquanto ferramenta de segurança pública”8.

Lançando mão de extensa revisão bibliográ ca, que inclui autores como Sérgio Adorno, Roberto
Kant de Lima, Michel Foucault, Paulo Sérgio Pinheiro, Luiz Eduardo Soares e muitos outros, utilizaram-se
de valiosas bases de dados, como as do Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada (IPEA), do Instituto de
Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ISP/RJ) e da Secretaria de Segurança Pública do Estado de
São Paulo (SSP/SP), bem como de reportagens jornalísticas, relatórios do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública e, ainda, dos dados compilados pelo Atlas da Violência9, para demonstrar a permanência de uma
cultura do extermínio nas instituições responsáveis pelo controle social formal no Brasil.

Inicialmente, apresentam dados sobre a letalidade policial no Rio de Janeiro e em São Paulo desde
a redemocratização (décadas de 1990, 2000 e 2010) e, posteriormente, expõem a “relação existente entre
sinergia discursiva e efeitos simbólicos, políticos e na letalidade policial na administração federal do
Governo Bolsonaro e nas administrações estaduais do Governo Witzel e do Governo Doria”, em que pese
as constantes atitudes e demonstrações recíprocas (entre os referidos governadores estaduais e o atual
presidente da república) de que seriam adversários políticos10.

Ao nal, concluem que tanto a administração federal quanto as gestões dos estados do Rio de
Janeiro e de São Paulo “têm operado a partir do paradigma da segurança pública como questão de polícia”
(grifo no original). Referem que não se trata de nada de novo no pós-redemocratização e que, portanto,
a novidade não estaria na condução e no incentivo a “uma política criminal feita com sangue”, com a

8
CARVALHO, iago Fabres de; SANTOS, André Filipe Pereira Reid dos; SOUZA, Lucas Melo Borges de. Aspectos simbólicos,
políticos e práticos da letalidade policial no Rio de Janeiro e em São Paulo durante o Governo Bolsonaro. Revista Eletrônica
Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, ahead of print.
9
CARVALHO, iago Fabres de; SANTOS, André Filipe Pereira Reid dos; SOUZA, Lucas Melo Borges de. Aspectos simbólicos,
políticos e práticos da letalidade policial no Rio de Janeiro e em São Paulo durante o Governo Bolsonaro. Revista Eletrônica
Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, ahead of print.
10
CARVALHO, iago Fabres de; SANTOS, André Filipe Pereira Reid dos; SOUZA, Lucas Melo Borges de. Aspectos simbólicos,
políticos e práticos da letalidade policial no Rio de Janeiro e em São Paulo durante o Governo Bolsonaro. Revista Eletrônica
Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, ahead of print.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 09-16 ago. 2020.


14 Daniel Achutti, Mariana de Assis Brasil e Weigert, Raffaella Pallamolla, Salo de Carvalho

rea rmação das polícias militares estaduais enquanto instituições que desprezam os direitos humanos,
mas “nos efeitos simbólicos, políticos e práticos, provocados pela eleição da letalidade policial enquanto
instrumento basilar de segurança pública, no atual contexto”11.

Em texto publicado no início dos anos 2000, Elena Larrauri, ao analisar a obra “A cultura do controle”,
de David Garland, chamou a atenção para os fatores apresentados pelo autor que teriam contribuído para
a substituição de um modelo punitivo orientado à ressocialização do condenado por outro, orientado à sua
incapacitação. Dentre eles, destacou a autora: (a) o aumento do clima punitivo na população; (b) o retorno
da vítima que reivindica direitos; (c) o privilégio da proteção da sociedade e da vítima em detrimento da
proteção do réu em relação ao Estado; (d) a rea rmação da prisão como meio para conter as pessoas que
cometem crimes (potencializada pelo discurso da impunidade); (e) a delegação das tarefas de controle
do delito à comunidade ou à vítima e à iniciativa privada; e (f) a politização e o uso eleitoral das questões
atinentes ao delito e ao sistema penal (discurso punitivo e conservador)12.

Ainda de acordo com Larrauri, a substituição de um modelo punitivo por outro, na esteira de
Anthony Bottoms, inaugurou uma época marcada pelo ‘populismo punitivo’, na qual os governantes são
guiados por três premissas: (1) penas maiores podem reduzir o crime; (2) as penas contribuem para o
reforço do consenso moral que há na sociedade; e (3) a utilização da pena traz benefícios eleitorais13.

John Pratt, por sua vez, refere que o populismo penal traduz a ideia de que criminosos e apenados
acabam se bene ciando de alguma forma por não cumprir nenhuma lei ou mesmo por desrespeitá-las, em
detrimento das vítimas de crimes e dos cidadãos que as cumprem (discurso muito similar ao sustentado,
no Brasil, pelos autodenominados “cidadãos de bem”)14. No Brasil, inclusive, tramita um projeto de lei no
Senado Federal (PLS n. 580/2015) que propõe instituir a obrigatoriedade de o preso ressarcir o Estado das
despesas geradas com a sua manutenção no estabelecimento prisional15.

Não é difícil perceber, mesmo a partir dessas breves palavras, que prepondera em nosso país uma
cultura extremamente punitiva, que se manifesta tanto na prática (e, atualmente, também no discurso) das
instituições de justiça e de segurança pública, quanto na própria sociedade.

Nesse sentido, o que a leitura do texto de iago, André e Lucas permite concluir é que esse
populismo punitivo, até então restrito ao aumento do rigor dos procedimentos penais e das punições,

11
CARVALHO, iago Fabres de; SANTOS, André Filipe Pereira Reid dos; SOUZA, Lucas Melo Borges de. Aspectos simbólicos,
políticos e práticos da letalidade policial no Rio de Janeiro e em São Paulo durante o Governo Bolsonaro. Revista Eletrônica
Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, ahead of print.
12
LARRAURI, Elena. Populismo punitivo... y como resistirlo. Jueces para la democracia. Información y debate, Madrid, n. 55,
p. 15-22, mar. 2006. p. 15.
13
LARRAURI, Elena. Populismo punitivo... y como resistirlo. Jueces para la democracia. Información y debate, Madrid, n. 55,
p. 15-22, mar. 2006. p. 15.
14
PRATT, John. Penal populism. Nova York: Routledge, 2007. p. 12.
15
Para maiores informações acerca do PLS 580/2015, acessar o sitio eletrônico do Senado Federal: https://www25.senado.leg.br/
web/atividade/materias/-/materia/123021/. Acesso em 16 de junho de 2020.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 09-16 ago. 2020.


Por uma criminologia da liberdade e da não-violência: homenagem a iago Fabres de Carvalho 15

parece ter ultrapassado as fronteiras do direito penal e processual penal para alcançar um novo patamar,
que erta sem pudores com a ilegalidade e assume abertamente sua vocação sanguinária: do populismo
penal passou-se a uma espécie de populismo penal do extermínio.

O controle penal da subcidadania, para parafrasear iago, parte do pressuposto de que o subcidadão
não tem direito sequer à própria vida, de modo que tudo está plenamente justi cado, sobretudo se for
possível mirar na cabecinha e soltar fogo, para lembrar (e jamais esquecer) das lamentáveis palavras de
Wilson Witzel, ao se referir ao plano de segurança de seu governo, que contaria com atiradores de elite
prontos para abater quem estivesse portando fuzil e que os policiais que executassem essas pessoas não
deveriam ser responsabilizados “em hipótese alguma”16. Se até mesmo pessoas portando um guarda-
chuva – ou uma furadeira – já tiveram suas vidas ceifadas pelo Estado, alegadamente em razão de uma
leitura equivocada das situações por parte da polícia17. pode-se concluir que, de fato, essa política não é
uma novidade, mas o fato de ser explicitamente defendida pelas autoridades representa, efetivamente, a
con rmação da hipótese do artigo.

iago, professor de dois importantes Programas de Pós-graduação em Direito – inicialmente, da


Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e, depois, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) –
pode ser considerado um autêntico representante de uma Escola Crítica de Vitória, que se formou das
inúmeras parcerias intelectuais e afetivas não só com André, mas também com Carla Joana Magnago,
Nelson Camatta Moreira, Clécio Lemos, Raphael Boldt e muitas outras pessoas que, mais próximos ou
mais distantes, contribuíram para a formação de um grupo sempre atento às estruturas das desigualdades
brasileiras.

iago pode ter nos deixado, mas seu legado estará sempre conosco, seja por seus livros e artigos, por
seus ex-alunos e ex-alunas, seja pelas memórias alegres que todos nós, sem exceção, guardamos conosco.

E ao mesmo tempo em que é difícil classi car iago a partir de uma linha de pensamento ou
perspectiva teórica, é muito fácil perceber onde queria chegar: simplesmente buscava um mundo melhor,
com menos desigualdades e repressões, mais liberdade e, claro, mais tempo para surfar com seu lho Davi.

***

Cumpre ainda informar os leitores que sete dos dez papers publicados na seção artigos são resultado
de investigações cientí cas conduzidas por professores doutores de forma individual, por meio de
interessantes duetos ou a seis mãos. Além do artigo salientado na primeira parte deste editorial destacam-
se, ainda, a bela pesquisa feita em solo portenho acerca de vulnerabilidades, o instigante artigo da professora
Maria Helena Diniz e outros deliciosos artigos que tratam de temas tão atuais quanto provocantes.

16
Entrevista concedida em 01/11/2018, ao jornal O Estado de S. Paulo. Disponível em https://politica.estadao.com.br/noticias/
eleicoes,a-policia-vai-mirar-na-cabecinha-e-fogo-diz-novo-governador-do-rio,70002578109. Acesso em 17 de junho de 2020.
17
“PM confunde guarda-chuva com fuzil e mata garçom no Rio, a rmam testemunhas”. Notícia veiculada no jornal El País, em
19 de setembro de 2018. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/19/politica/1537367458_048104.html. Acesso
em 15 de junho de 2020.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 09-16 ago. 2020.


16 Daniel Achutti, Mariana de Assis Brasil e Weigert, Raffaella Pallamolla, Salo de Carvalho

Textos lapidados em artigos produzidos em todas as cinco regiões do Brasil. Textos e autores
unidos pela diversidade e a partir de suas peculiaridades e idiossincrasias e, obviamente, por conta de suas
diferenças. Textos que atribuem um pouco de cor ao negro que com pesar está estampado intencionalmente
na capa do segundo número da REDES publicado em 2020.

En m, textos e (ou) pareceres elaborados com todo cuidado por nossos dedicados revisores
singraram o Brasil de Norte a Sul, do Centro Oeste ao Nordeste, passando pelo Sudeste. Indo e vindo,
com sugestões, críticas e, claro, elogios. Pesquisadores que vivem em mais da metade dos estados da
federação somaram esforços para a edição de mais esse exemplar da REDES. Uruguaios, espanhois e
italianos também ajudaram a dar-lhe vida, garantindo a idoneidade das pesquisas que têm sido publicadas
na Revista Eletrônica Direito e Sociedade.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 09-16 ago. 2020.


Aspectos simbólicos, políticos e práticos da letalidade
policial no Rio de Janeiro e em São Paulo durante o
Governo Bolsonaro

André Filipe Pereira Reid dos Santos


Faculdade de Direito de Vitória, Vitória,
Espírito Santo, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-8559-1959

Lucas Melo Borges de Souza


Faculdade de Direito de Vitória, Vitória,
Espírito Santo, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-0737-442X

iago Fabres de Carvalho


Canoas, v. 8, n. 2, 2020 Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória,
Espírito Santo, Brasil
Artigo
https://orcid.org/0000-0002-1304-4630
Recebido: 22.04.2020
Aprovado: 27.04.2020
Resumo: O problema que move o presente artigo é o de expor quais os
Publicado: 11.05.2020 efeitos simbólicos, políticos e práticos de uma sinergia discursiva dos
governos estaduais do Rio de Janeiro e de São Paulo com o administração
DOI http://dx.doi.org/10.18316/REDES.v8i2.6830
federal do Governo Bolsonaro, no que tange à letalidade policial como
política de segurança pública. Inicialmente são examinados alguns
elementos quantitativos e qualitativos da letalidade policial no Rio de
Janeiro e em São Paulo, depois da redemocratização. Em um segundo
momento é exposta a relação existente entre sinergia discursiva e
efeitos simbólicos, políticos e práticos na letalidade policial, em um
contexto no qual, a despeito de disputas na arena política tradicional,
as administrações estaduais do Governo Witzel e do Governo Doria
e a administração federal do Governo Bolsonaro reproduzem uma
mesma lógica de apoio à violência policial enquanto ferramenta de
segurança pública. Por m é apresentado, a título de considerações
nais, um cenário de formação de um corpo político reprodutor de
e obsessivo por uma lógica sanguinária, imaginada como uma tática
capaz de alcançar uma sensação de segurança e libertação total da
violência e do crime, de modo que a morte do outro pela polícia
assume um signi cado coletivo de adesão simbólica, política e prática
à barbárie enquanto política criminal.
Palavras-chave: Segurança Pública; Letalidade Policial; Rio de Janeiro;
São Paulo; Governo Bolsonaro.
18 André Filipe Pereira Reid dos Santos, Lucas Melo Borges de Souza, iago Fabres de Carvalho

Symbolic, political and practical aspects of police lethality in Rio de Janeiro and São Paulo
during the Bolsonaro Administration

Abstract: e question that moves the present article is to expose which are the symbolic, political and practical
effects of a discursive synergy, among the state administrations of Rio de Janeiro and São Paulo and the Bolsonaro
administration, in relation to police lethality as public security police. Initially are examined some quantitative
and qualitative elements of police lethality in Rio de Janeiro and São Paulo, aer the redemocratization. Next, it
is exposed a relation between discursive alignment and practical effects in police lethality, on a context which,
despite disputes in the traditional political arena, Witzel Administration, Doria Administration and Bolsonaro
Administration replicates an approach of support of police violence as public security tool. At last is presented, as
nal considerations, a scenario of formation of a political body that reproduces a and is obsessive witha bloody logic,
imagined as a tactic capable of reach a sense of security and total liberation of violence and crime, in a way that the
death of the other by the police assume the collective meaning of symbolic, political and practical attachment to
barbarism as criminal policy.
Key-words: Public Security; Police Lethality; Rio de Janeiro; São Paulo; Bolsonaro Administration.

Considerações iniciais

O problema que move o presente artigo é o de expor quais os efeitos simbólicos, políticos e práticos
de uma sinergia discursiva dos governos estaduais do Rio de Janeiro e de São Paulo com o administração
federal do Governo Bolsonaro, no que tange à letalidade policial como política de segurança pública.

A escolha metodológica da administração federal e das administrações estaduais do Rio de Janeiro


e de São Paulo para a realização da análise foi feita principalmente com base em dois fatores. O primeiro é
o de que se está a falar de dois estados da federação que, muitas vezes, servem de parâmetro de avaliação
e de re exo de políticas públicas adotadas no Brasil. Nesse sentido, a metáfora da “caixa de ressonância”
do Brasil ainda não perdeu o signi cado no que se refere às políticas de segurança pública adotadas pelos
dois estados, embora a adoção de tal metáfora não deva levar a um descaso para o que ocorre em outros
estados. O segundo fator levado em conta foi a existência de uma sintonia entre tais administrações no
campo da segurança pública, especialmente em relação a uma retórica de legitimação da repressão policial,
apesar de cada vez mais os governadores do Rio de Janeiro e de São Paulo marcarem uma possível posição
de adversários políticos do presidente da república e vice-versa.

Assim, essa sintonia discursiva acerca da letalidade policial, apesar de se dar em um contexto de
inexistência de unidade e de composição de forças entre esses atores na arena política tradicional, faz
com que se levante o questionamento se não se está diante de um movimento simultâneo de ascensão
e consolidação da violência policial enquanto uma pauta política transversal, o que pode resultar, por
exemplo, em uma normalização coletiva da morte como tática de segurança pública.

Para a escrita do trabalho foram utilizadas as seguintes ferramentas: revisão bibliográ ca de autores
que pesquisam a problemática da segurança pública no Brasil desde a redemocratização; bases de dados do
Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada, do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro
e da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo; notícias e reportagens jornalísticas; relatórios
do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Atlas da Violência.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 17-40, ago. 2020.


Aspectos simbólicos, políticos e práticos da letalidade policial no Rio de Janeiro e em São Paulo
durante o governo Bolsonaro 19

No primeiro tópico são apresentados alguns elementos quantitativos e qualitativos da letalidade


policial no Rio de Janeiro e em São Paulo, nas décadas de 1990, 2000 e 2010. Em um segundo momento é
exposta a relação existente entre sinergia discursiva e efeitos simbólicos, políticos e na letalidade policial
na administração federal do Governo Bolsonaro e nas administrações estaduais do Governo Witzel e do
Governo Doria, a despeito desses atores se comportarem atualmente como adversários políticos. A título
de considerações nais, é apresentado um cenário de formação de um corpo político reprodutor de e
obsessivo por uma lógica sanguinária, imaginada como uma tática capaz de alcançar uma sensação de
segurança e libertação total da violência e do crime, de modo que a morte do outro pela polícia assume um
signi cado coletivo de adesão simbólica, política e prática à barbárie enquanto política criminal.

A letalidade policial e a segurança pública no Rio de Janeiro e em São Paulo na Nova República

A violência no Brasil é um tema debatido há algumas décadas, por estudiosos e pesquisadores de


diversas áreas de conhecimento. Ainda que existam diferentes abordagens teóricas e metodológicas, uma
das questões mais debatidas diz respeito aos obstáculos enfrentados para a consolidação da democracia
brasileira, em um contexto de materialização da violência enquanto componente naturalizado nas relações
entre Estado e cidadão, bem como nas relações entre cidadãos (ADORNO, 2002, p. 88).

Um exemplo da presença dessa espécie de “falta” da democracia brasileira foi dado por Paulo Sérgio
Pinheiro, em um artigo publicado no ano de 1997. Ao colocar a violência em duas perspectivas de análise,
o autor expôs algumas formas de materialização da violência no contexto brasileiro pós-ditadura militar.
Ao olhar para os limites à atuação do Estado, a Constituição da República de 1988 reconheceu uma série
de direitos individuais garantidores de proteção legal ao cidadão em face da violência estatal, porém, o
funcionamento das instituições o ciais encarregadas de exercer o controle da criminalidade e de aplicar
a lei evidencia um distanciamento entre a determinação legal e o cotidiano de arbitrariedades estatais
(aqui incluídas práticas de tortura, execuções sumárias e detenções ilegais). Por outro lado, desde pelo
menos a década de 1980, a sociedade brasileira vive um quadro social no qual o homicídio violento é
uma ocorrência diária em diversas cidades e regiões metropolitanas. A explicação dada pelo autor para
esse estado de coisas levou em conta os seguintes fatores: não tem ocorrido a concretização das energias
emancipatórias que constituíram uma rede de proteção e justiça social na Constituição da República de
1988, de modo que as desigualdades sociais ainda são uma marca da sociedade brasileira, com grande
parte da população excluída do acesso a bens e serviços básicos para a efetivação da cidadania; no Brasil,
o aparato violento do Estado foi historicamente instrumentalizado como forma de controle das camadas
despossuídas de bens e serviços públicos e de manutenção de tal ordem social extremamente desigual;
com a opção primária do Estado por imposições arbitrárias, ao invés de mediações políticas e sociais, a
população não democraticamente integrada, em certa medida, reproduz e produz formas de violência que
se inserem no e caracterizam o cotidiano brasileiro (PINHEIRO, 1997, p. 43-44).

Essa “bola de neve” da violência na sociedade brasileira encontra re exos diretos nas estatísticas.
De acordo com os dados do Atlas da Violência, entre 1985 e 2017 foram registrados pelo Sistema de

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 17-40, ago. 2020.


20 André Filipe Pereira Reid dos Santos, Lucas Melo Borges de Souza, iago Fabres de Carvalho

Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde um número total de 1.431.994 homicídios1. Em


números absolutos, no ano de 1985 foram contabilizados o cialmente 19.748 homicídios e no ano de
2017 foram registrados 65.602 homicídios. Em números relativos, o ano de 1996 (primeiro no qual houve
registro o cial pelo IPEA) mostrou uma taxa de 24,78 homicídios para cada 100 mil habitantes e o ano de
20172 uma taxa de aproximadamente 31,6 homicídios para cada 100 mil habitantes. De 65.602 homicídios
registrados no ano de 2017, 46.217 vítimas foram homens negros, 13.187 foram homens não negros,
3.288 foram mulheres negras e 1.544 foram mulheres não negras3, a uma taxa de 76,19 mortes de homens
negros para cada 100 mil habitantes, 30,36 homens não negros para cada 100 mil habitantes, 5,26 mulheres
negras para cada 100 mil habitantes e 3,05 mulheres não negras para cada 100 mil habitantes. Ainda no
mesmo ano, 33.772 das vítimas de homicídio foram homens (incluídos negros e não negros) e 2.008 foram
mulheres (incluídas negras e não negras) na faixa etária de 15 a 29 anos de idade (IPEA, s.d.).

Sobre os altos números de jovens vítimas de homicídio no Brasil, o Atlas da Violência de 2019
nomeou o fenômeno de “juventude perdida” (IPEA, 2019, p. 25), algo crescente desde a década de 1980 e
que no ano de 2017 representou a principal causa de morte entre jovens brasileiros. O ano de 2017 é apenas
um exemplo do que se repete ano após ano, que é a existência de um padrão de vítimas de homicídio no
Brasil: homens, jovens, negros. Os dados reforçam a a rmação sobre a existência de um extermínio ou
genocídio da juventude negra na sociedade brasileira4, a ponto de ser possível falar que o homicídio no
Brasil tem cor de pele, faixa etária e sexo.

Embora a conclusão de Paulo Sérgio Pinheiro aponte para a naturalização da violência na


Nova República como um fenômeno que “vai de ponta a ponta”, isto é, presente tanto na relação
entre cidadão e Estado como na relação entre cidadãos, a prioridade do presente tópico é trabalhar
o fato da política de segurança pública no estado do Rio de Janeiro e no estado de São Paulo serem
representativas, desde o início do processo de redemocratização, de uma tática voltada para o trato violento
e arbitrário dos alvos históricos do sistema penal.

1
Segundo os organizadores do Atlas da Violência, o conceito de homicídio utilizado não é a noção adotada pela lei brasileira. O
conceito de homicídio da pesquisa é o adotado pelo Protocolo de Bogotá e envolve a ideia de morte de uma pessoa ocorrida por
uma agressão intencional de outra (inclusive aquelas na qual o particular estava em legítima defesa e aquelas praticadas por agentes
públicos em serviço, legais ou ilegais), o que exclui dos números o homicídio culposo e as tentativas de homicídio (IPEA, 2019, p. 5).
2
Os organizadores do Atlas da Violência 2019 sublinharam que nos últimos dez anos houve um aumento no número de
homicídios nas regiões Norte e Nordeste e uma queda nos números de homicídios nas regiões Sul, Sudeste e Centro-oeste. As
razões apontadas pela pesquisa estão em dois processos: a modi cação da economia da droga na América do Sul com a queda de
produção de Cocaína na Colômbia e o aumento da participação do Peru e da Bolívia tornou o Brasil – especialmente as regiões
Norte e Nordeste – um entreposto de exportação para esses dois países; a expansão e a luta por domínio pelo Primeiro Comando
da Capital e o Comando Vermelho, em meados da década passada, pelo domínio do comércio e transporte de drogas ilícitas nas
regiões Norte e Nordeste (IPEA, 2019, p. 7-8).
3
O IPEA destaca que o Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde considera não negro o indivíduo
declarado como branco, amarelo e indígena e considera negro o indivíduo declarado como negro e pardo. Aqueles sem declaração
são ignorados e não entram no cálculo.
4
Abdias Nascimento, já na década de 1970, fazia uso do termo “genocídio do negro brasileiro”, ainda que com base em uma
leitura histórica, cultural e econômica (NASCIMENTO, 1978).

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 17-40, ago. 2020.


Aspectos simbólicos, políticos e práticos da letalidade policial no Rio de Janeiro e em São Paulo
durante o governo Bolsonaro 21

Sobre o enfrentamento policial violento, Roberto Kant de Lima lembra que o ethos militar da
“cultura policial” brasileira forma uma atividade policial que, se em teoria deveria ser um componente na
administração de con itos, na prática opera pela lógica do combate, do extermínio e da captura do inimigo
(LIMA, 2009, p. 250-251). E esse ethos militar está inserido como elemento constituinte de uma tradição
autoritária das forças policiais no Brasil, que conformou a violência e o arbítrio na atuação do policial.
Nessa tradição, a lei não aparece na qualidade de parâmetro balizador primário para a formação de uma
concepção social e institucional sobre o modo apropriado da ação policial em face de determinadas ações
criminosas. A tortura, as execuções sumárias e as detenções ilegais são práticas enraizadas e legitimadas no
“combate ao crime”, ou melhor, a certo tipo de criminalidade, principalmente a criminalidade de rua (furto,
roubo, trá co) para a qual a polícia, em regra, direciona as ações.

Como lembra Luiz Eduardo Soares, o modelo atual de uma atuação policial calcada na violência e no
arbítrio é uma herança da ditadura militar, mas esse modo de agir é algo que já se fazia presente no quadro
de criação e organização da instituição no período imperial. Essa tradição é um componente constituinte
das forças policiais brasileiras que, ao longo da história e principalmente dos períodos autoritários, passou
por adaptações, intensi cações e reorganizações (SOARES, 2015, p. 319-320).

Tendo em vista a centralidade que a polícia historicamente assumiu na segurança pública, de tempos
em tempos são produzidos inimigos internos a serem enfrentados e combatidos. No Império as instituições
encarregadas pelo policiamento se voltaram para os escravos, os libertos e os homens livres pobres, na República
Velha os alvos foram ex-escravos e descendentes de escravos, os imigrantes e a classe operária, na Era Vargas
o foco recaiu sobre os dissidentes políticos da classe trabalhadora, na Ditadura Militar o inimigo número um
foi o subversivo de esquerda. Com a redemocratização, o perigo na segurança pública continuou no interior
da sociedade, mas saiu da esquerda e passou a ser visto nas margens. O discurso de culpabilização (in)direta
dos despossuídos pela violência urbana e o discurso de guerra às drogas provocaram um direcionamento
na atuação policial para as periferias e favelas. Um direcionamento que foi expressão de uma série de
fatores, entre eles, a título ilustrativo, o preconceito em face do negro e do pobre, a criminalização da
pobreza (WACQUANT, 2004), as decisões políticas pelo enfrentamento repressivo contra o trá co de
drogas (CARVALHO, 2010) e a ação da mídia na cobertura da criminalidade de rua (ZAFFARONI, 2013).
Se consolidou, desse modo, uma forma marginal-de-vida, quali cada enquanto tal pela inserção contínua
da barbárie na experiência urbana cotidiana, em detrimento dos modos políticos e jurídicos típicos da
democracia (BARREIRA; BOTELHO, 2013, p. 128).

Como as instituições policiais não passaram por uma transição democrática após o m do regime
ditatorial brasileiro, a política de segurança pública continuou a se apoiar no trato arbitrário e violento sobre
as camadas mais vulneráveis, que são aquelas produzidas ideologicamente como populações perigosas
(ADORNO, 1999; PINHEIRO, 1997). De certo modo, a permanência das instituições policiais em uma
lógica militarizada é, simultaneamente, uma condição de possibilidade e um efeito do ethos militar e da
tradição de violência e arbítrio das instituições policiais.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 17-40, ago. 2020.


22 André Filipe Pereira Reid dos Santos, Lucas Melo Borges de Souza, iago Fabres de Carvalho

E ainda há que se falar sobre a introdução cada vez maior das forças armadas na segurança pública
brasileira, a nal, desde o início dos anos 1990 vêm ocorrendo uma série de experimentações e observações
sobre a participação das forças armadas, com a justi cativa de combate à criminalidade, principalmente
em relação ao trá co de drogas. O Rio de Janeiro tem funcionado, nesse quadro, enquanto um verdadeiro
laboratório político de “ensaio geral do processo de militarização da segurança” (BARREIRA; BOTELHO,
2013, p. 115). Um experimento sempre com a possibilidade aberta de ser aprimorado e exportado para
outras cidades.

No cenário carioca, a Operação Rio, no ano de 1994, foi emblemática por ter sido instalada em
torno de um discurso midiático5 que colocava as forças armadas como a única salvação para a vida do
“bom cidadão carioca” diante do pretenso caos promovido pela criminalidade6. Tal operação ofereceu
uma abertura para a entrada futura, pontual ou permanente, das forças armadas na política criminal
(CARVALHO, 2010, p. 48), sob o argumento de combate à criminalidade caótica e perigosa.

A militarização da segurança pública e o investimento violento e arbitrário da polícia sobre


determinadas populações também devem ser compreendidos como práticas que necessitam de uma
legitimação ideológica (KARAM, 2015) e afetiva, de algo que seja capaz de formar e conformar o
imaginário e o discurso da população. Nesse sentido, a legitimação da militarização da segurança pública
e do trato violento e arbitrário por parte das instituições policiais também passa por um processo político
de investimento em determinados discursos e afetos (SAFATLE, 2015).

Na linha do que disse Vera Malaguti Batista, o medo joga historicamente um papel central na
legitimação de políticas de segurança pública violentas e arbitrárias, ao manipular a imaginação do caos
e do perigo enquanto elementos supostamente inerentes às populações marginalizadas das metrópoles
urbanas (BATISTA, 2003, p. 21). Filipe dos Anjos, secretário-geral da Federação de Favelas do Estado do
Rio de Janeiro, sintetizou esse arranjo político-criminal nas seguintes palavras: “a favela é considerada área
hostil, onde todas e todos são inimigos. A construção da gura do inimigo é ponto central na loso a da
guerra adotada pelas forças de segurança nos morros cariocas” (SANTOS, 2018, p. 14).

Do ponto de vista do discurso o cial, o “enfrentamento ao crime” é direcionado aos supostos


criminosos provocadores de medo e insegurança nas cidades contemporâneas. Na prática, trata-se antes
de tudo de uma estratégia de controle e extermínio através de uma política criminal de guerra contra

5
No jornal O Estado de S. Paulo de 7 de agosto de 1994, uma das notícias saiu com o seguinte título: “Trá co põe o Rio em
situação de emergência” (O ESTADO DE S. PAULO, 1994, p. 44).
6
A manchete do Jornal do Brasil de 1º de novembro de 1994 diz: “Exército intervém na polícia do Rio e assume o combate ao crime”.
No convênio rmado entre o Estado do Rio de Janeiro e a União para a Operação Rio, também publicado no Jornal do Brasil de
mesma data, consta: “considerando competir às Forças Armadas não só a garantia dos poderes constitucionais, mas também, da
lei e da ordem; considerando a situação da criminalidade no Estado do Rio de Janeiro, com a atuação de grupos de delinquentes,
estruturados em torno do trá co local de drogas e fortemente armados, gerando a intranquilidade e a insegurança no seio da
população e violando os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos; considerando que esses fatos já ameaçam gravemente a
ordem pública e exigem a ação coordenada da União e do Estado, sob comando uni cado” (JORNAL DO BRASIL, 1994, p. 1-13).

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 17-40, ago. 2020.


Aspectos simbólicos, políticos e práticos da letalidade policial no Rio de Janeiro e em São Paulo
durante o governo Bolsonaro 23

os mais vulneráveis, entre ladrões de rua, pequenos comerciantes e consumidores das substâncias hoje
consideradas ilícitas. Uma guerra contra os pobres, os negros, os moradores de favelas e de periferias, os
que são automaticamente etiquetados como suspeitos, seja devido à cor da pele, ao local de moradia, à
maneira de se vestir ou de se portar (KARAM, 2015).

Em outras palavras, o medo não é apenas um afeto inibidor, também é produtor. A centralidade
histórica do medo na segurança pública brasileira produziu um corpo político paranóico (SAFATLE, 2015,
p. 24), que reiteradamente procura con rmar uma falsa realidade, na qual as populações marginalizadas
são as principais responsáveis pela violência urbana cotidiana. Como a operação política do medo é um
processo persistente na sociedade brasileira, mesmo que particular em cada contexto histórico (os escravos,
os imigrantes, a classe operária e a esquerda são alguns exemplos de indivíduos ou grupos “encarnados”
pelo medo), a política criminal instantaneamente é convertida em gestão da fobia social (SAFATLE, 2015,
p. 106) por meio da guerra (não) declarada (FOUCAULT, 2005, p. 22) a setores da população marcados
social, econômica, espacial e racialmente

No dia 16 de fevereiro de 2018, logo depois do feriado de carnaval, o presidente em exercício Michel
Temer decretou uma Intervenção Federal na área da segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, sob o
pretexto de pôr m “ao grave comprometimento da ordem pública” (BRASIL, 2018a). O Senado Federal e
a Câmara dos Deputados aprovaram o decreto na data de 20 de fevereiro de 2018.

Em discurso o cial após a assinatura do decreto, Michel Temer colocou o papel do crime
organizado como o principal protagonista do m da “tranquilidade do nosso povo” (BRASIL, 2018b).
Na visão do presidente em exercício, circunstâncias extremas necessitam de medidas extremas, sendo
a intervenção federal o caminho para enfrentar e derrotar o crime organizado e diminuir os índices de
violência no Rio de Janeiro.

Na data de 19 de fevereiro de 2018, em uma reunião do Conselho da República logo após a decretação
da intervenção federal no Rio de Janeiro, o comandante do Exército a rmou que a ação dos militares na
segurança pública carioca precisava estar protegida do risco de surgimento futuro de uma nova Comissão
da Verdade (CALEGARI, 2018). Uma vontade que parece estar alinhada com mudanças legais, como a lei n.
13.491/2017, que determinou a competência da Justiça Militar da União para julgar crimes dolosos contra
a vida cometidos por militares das Forças Armadas contra civis em determinados casos, por exemplo,
quando do cumprimento de ações estabelecidas pelo presidente da República (BRASIL, 2017a), tal qual a
intervenção na segurança pública do Rio de Janeiro.

Os resultados da intervenção federal não divergiram das sequelas da Operação Rio de 19947 e de
outras operações das forças armadas na área da segurança pública brasileira, a exemplo da ocupação do
Morro do Alemão em 2010 (BARREIRA; BOTELHO, 2013, p. 119). Como precisamente de nido pelo

7
Todas as operações protagonizadas ou com participação das forças armadas na área da segurança pública carioca, desde a Operação
Rio de 1994, foram cercadas de denúncias de práticas violadoras de direitos humanos, tais como tortura, prisões clandestinas,
restrição à liberdade de locomoção, violação de domicílio, execuções sumárias, dentre outras (BARREIRA; BOTELHO, 2013).

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 17-40, ago. 2020.


24 André Filipe Pereira Reid dos Santos, Lucas Melo Borges de Souza, iago Fabres de Carvalho

Observatório da Intervenção, a decisão do governo federal foi uma “velha invenção”, isto é, uma atualização
do passado recente de abordagem de problemas estruturais e complexos envolvidos na violência e
criminalidade com a lógica da guerra (OBSERVATÓRIO DA INTERVENÇÃO, 2019, p. 1). A diferença
no caso da Intervenção Federal de 2018 para, por exemplo, a ocupação do Morro do Alemão em 2010,
foi que aquela priorizou operações de combate enquanto que esta realizou uma ocupação temporária de
territórios pelas forças armadas (uma situação de ocupação militar de fato e um estado de vidas sitiadas).
Em ambos os casos a população sujeitada à pura força de Estado8 foi a mesma: os moradores de periferias
e favelas, regiões consideradas pelo Estado como “zonas con agradas”.

Os números mostram uma priorização, por parte da Intervenção Federal, à proteção da propriedade,
já que durante o ano de 2018 houve uma queda efetiva apenas dos crimes de roubo de carga, com uma
diminuição de 15,3% em relação ao ano de 20179. A média anual de mortes violentas (homicídios dolosos,
latrocínios, lesão corporal seguida de morte e morte por intervenção de agentes do Estado) no Estado do
Rio de Janeiro nos três anos anteriores cou em torno de 6 mil. Durante fevereiro e novembro de 2018
morreram violentamente no Estado 6.041 pessoas, uma redução de 1,7% em relação ao mesmo intervalo
no ano de 2017. Foram registrados 109.952 roubos de rua, um aumento de 0,8% em comparação com o
mesmo período em 2017. Em compensação, 1.287 pessoas foram mortas por intervenção de agentes do
Estado, o que signi cou um aumento de 36,3% em comparação com o ano de 2017. Foram registrados
8.193 tiroteios, um aumento de 56% em relação ao mesmo intervalo no ano de 2017. Também foram
contabilizadas: a morte de 103 agentes do Estado; o ferimento intencional de 1.090 pessoas, a ocorrência
de 53 chacinas, que resultaram em 213 mortes; a apreensão de 1,3% a mais de armas de fogo que no mesmo
período do ano de 2017 (NUNES, 2019, p. 4-11).

Quanto às milícias cariocas, que não são um poder paralelo, mas a própria manifestação da
ilegalidade (corrupção policial) e da violência sem limites entranhada nas instituições de segurança do
Estado (ALVES, 2003), pois formada em grande medida por policiais militares, policiais civis e bombeiros,
não foi prioridade das ações militares ao longo da intervenção federal no Rio de Janeiro. Ainda não foi posta
em prática uma política pública de segurança direcionada para a reforma das instituições policiais, com o
intuito de lidar com a questão das milícias (somente foram e continuam sendo realizadas investigações e
prisões de pessoas suspeitas de integrar milícias). Entretanto, é indispensável lembrar a ação de visibilização
e as propostas de enfrentamento desse fenômeno pela Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembleia

8
Durante a intervenção federal, o Exército passou a submeter moradores de favelas do Rio de Janeiro a um procedimento
de identi cação forçada, com a fotogra a do rosto e do documento de identi cação civil de cada um, em uma espécie de
chamento, objetivando a formação de um banco de dados de segurança, de acordo com o comandante da operação. A ação
cou conhecida após reportagem que fazia a cobertura de ações militares nas comunidades Vila Kennedy, Coreia e Vila Aliança,
todas da zona norte do Rio de Janeiro (RANGEL; VERPA, 2018).
9
Para efeitos comparativos, quando se fala em “ano” neste parágrafo se quer dizer o período o cial de duração da Intervenção,
que foi de fevereiro a dezembro.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 17-40, ago. 2020.


Aspectos simbólicos, políticos e práticos da letalidade policial no Rio de Janeiro e em São Paulo
durante o governo Bolsonaro 25

Legislativa do Estado do Rio de Janeiro10, tanto quanto as investigações o ciais decorrentes da possível
participação de milicianos cariocas no assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson
Gomes, no mês de março de 2018.

Em relação às milícias, também é fundamental destacar a prática de apagamento dos rastros de


violência por meio do desaparecimento forçado, que funciona enquanto “técnica de fazer desaparecer corpos”
(ARAÚJO, 2014, p. 35). Embora não seja uma prática exclusiva das milícias – basta ver o caso da descoberta de
um cemitério clandestino em Porto Alegre, com cerca de cem corpos, utilizado por uma das maiores facções
do Rio Grande do Sul para enterrar pessoas executadas (ALMEIDA, 2019) –, o desaparecimento de corpos
é uma das técnicas do repertório dos agentes de segurança pública e dos milicianos no contexto da violência
urbana e da violência de Estado. No Rio de Janeiro, a Polícia Civil e o Ministério Público encontraram, no
ano de 2018, em cidades da Baixada Fluminense, seis cemitérios clandestinos, com aproximadamente trinta
corpos e mais de dez ossadas, ao que tudo indica utilizados pelas milícias para escamotear a atuação e os
índices de homicídio nas regiões sob o controle de tais grupos (ALBUQUERQUE, 2019).

Diante de um cenário social de naturalização da violência e do arbítrio na política de segurança


pública, era de se esperar que o Ministério Público e o Poder Judiciário cumprissem o seu papel democrático
determinado pela Constituição Federal de 1988 e atuassem na coibição da violência de Estado praticada
pela atuação da polícia e das forças armadas.

É indiscutível que tratar o Poder Judiciário e o Ministério Público (assim como a polícia) como
órgãos unívocos, sem con itos internos e visões opostas, é uma redução desmedida. Porém, no presente
trabalho não se quer entrar no mérito da con ituosidade interna das instituições. O objetivo é destacar que,
ao m e ao cabo, a ressonância institucional da polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário tem sido,
respectivamente, a naturalização da violência e do arbítrio enquanto modo de agir, o amparo aos excessos das
ações policiais e militares de enfrentamento à criminalidade e a homologação nal das mesmas.

E uma das materializações dessa ressonância institucional é a burocratização do massacre, por meio
da legitimação judicial mecânica de ações policiais que resultam na morte de civis. Em Indignos de vida,
Orlando Zaccone, com base em autos de resistência resultantes de ações dos agentes de segurança no
combate à criminalidade na cidade do Rio de Janeiro entre 2003 e 2009, desvela uma engrenagem de
morte no Estado, que toma uma forma jurídica na prática banal de pedidos de arquivamento do Ministério
Público e determinados pelo Poder Judiciário (ZACCONE, 2015). Sem maiores investigações por parte das

10
O relatório nal da CPI das Milícias destaca a complexidade envolvida na conceituação do fenômeno, mas a leitura do
sociólogo Ignácio Cano conjugada com a de outros autores certamente oferece algumas diretrizes: 1) controle de territórios e de
moradores por grupos armados irregulares; 2) caráter coativo do controle, pois os milicianos coagem os moradores a aceitarem
os bens e serviços oferecidos pelos grupos e caso se recusem, estão sujeitos a violência física e moral; 3) a nalidade da milícia
é o lucro com a prestação e venda de bens e serviços que incluem segurança, transporte, água, sinal de TV a cabo, gás, internet,
empréstimo nanceiro, com práticas de grilagem, participação no trá co de drogas, na construção civil, etc.; 4) discurso de
legitimação do controle sob o argumento de proteção contra o crime e o trá co; 5) participação ativa de agentes dos órgãos de
segurança do Estado, como policiais militares, policiais civis e bombeiros (ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO
DE JANEIRO, 2008).

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 17-40, ago. 2020.


26 André Filipe Pereira Reid dos Santos, Lucas Melo Borges de Souza, iago Fabres de Carvalho

instituições, a lei ganha forma na prática de arquivamento mecânico da morte, de maneira a reduzir vidas
a números o ciais em pesquisas e papeis esquecidos do Estado.

Ao cruzar dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISPRJ, s.d.), do Núcleo de
Estudos da Cidadania, Con ito e Violência Urbana (NECVU, 2011) e do Atlas da Violência (IPEA, s.d.),
entre 1993 e 2018 foi registrado no Estado do Rio de janeiro o número de 18.905 autos de resistência
ou mortes por intervenção de agentes do Estado, em um total de 172.164 homicídios dolosos. E entre
2003 e 2018 morreram 471 policiais civis e militares em serviço, em comparação a um número de 14.882
mortes por intervenção de agentes do Estado. Os dados apontam que as mortes cometidas por policiais
representaram 10,98% do total de homicídios ocorridos no Estado do Rio de Janeiro entre 1993 e 2018 e
que morreram 31,5 civis para cada policial civil ou militar morto em serviço entre 2003 e 2018.

Em cruzamento de dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (GOVERNO


DO ESTADO DE SÃO PAULO, s. d.) e do Atlas da Violência (IPEA, s.d.), entre 2003 e 2018 foi registrado
no Estado de São Paulo o número de 8.678 mortes por intervenção de agentes do Estado11, dentro de
um total de 113.313 homicídios dolosos. E no mesmo intervalo de tempo morreram 388 policiais civis e
militares em serviço. Os dados apontam que as mortes cometidas por policiais representaram 7,79% do
total de homicídios ocorridos no Estado de São Paulo entre 2003 e 2018 e que morreram 22,3 civis para
cada policial civil ou militar morto em serviço no mesmo período.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2013, três critérios internacionais servem
como padrões para a aferição de abuso de força letal por parte das instituições policiais (ainda que seja
insu ciente avaliar a abusividade da força letal da polícia apenas com mensurações quantitativas): (a) a
relação entre civil morto e policial morto; (b) a razão entre civil ferido e civil morto pela polícia; (c) a
proporção de civis mortos pelas instituições policiais em comparação com o total de homicídios praticados
dolosamente. Para o critério “a”, uma média de aceitabilidade da força letal é de 4 civis mortos para cada
policial morto (Ignácio Cano) e uma proporção maior que 10 civis mortos para cada policial morto é
indicativa de abuso no uso de força letal (Paul Chevigny). Para o critério “c”, com base em estudos nos
Estados Unidos durante um intervalo de 5 anos (Adriana Loche), se veri cou que 3,6% do total de registros
de homicídios dolosos foram decorrentes de ação policial com vítima civil (BUENO; CERQUEIRA; LIMA,
2013, p. 119). Tanto o critério “a” quanto o critério “c” foram calculados acima para os estados do Rio de
Janeiro e de São Paulo nos períodos destacados. Ambos os critérios con rmam com números a a rmação
do excesso da violência letal na prática policial nos dois estados, o que é um sintoma da estruturação
histórica da violência e do arbítrio nas instituições policiais brasileiras.

11
A título de observação, é necessário destacar que entre os anos de 1996 e 2002 a Secretaria de Segurança Pública não distinguia
as mortes por intervenção de agentes do Estado durante o serviço ou a folga. Somente a partir do ano de 2003 passou a ser feita
tal diferenciação. Optou-se, assim, pela não colocação dos dados referentes ao período de 1996 e 2002, que contabilizou 3.071
mortes por intervenção de agentes de Estado, tanto em serviço como em folga.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 17-40, ago. 2020.


Aspectos simbólicos, políticos e práticos da letalidade policial no Rio de Janeiro e em São Paulo
durante o governo Bolsonaro 27

Em pesquisa sobre autos de resistência entre 2001 e 2011, o Núcleo de Estudos da Cidadania, Con ito
e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro acompanhou nas delegacias distritais da
Polícia Civil, na 1ª Central de Inquéritos do Ministério Público e nos Tribunais do Júri do Estado do Rio
de Janeiro, os modos pelos quais são construídas as narrativas das circunstâncias, as classi cações legais
dos casos e as legitimações discursivas, que levam a uma disposição para a inércia investigativa e a falta
de controle, scalização e atuação, por parte da Polícia Civil, do Ministério Público e do Poder Judiciário,
sobre os homicídios praticados por policiais militares sob o argumento de legítima defesa.

Um primeiro ponto a ser sublinhado na pesquisa é a constatação de uma espécie de narrativa padrão
dos policiais militares envolvidos em autos de resistência:
os policiais estavam em patrulhamento de rotina ou em operação, perto ou em localidade dominada por grupos
armados de tra cantes, quando foram alvejados por tiros e, então, revidaram a ‘injusta agressão’. Após cessarem
os disparos, teriam encontrado um ou mais ‘elementos’ baleados ao chão, geralmente com armas e drogas por
perto, e lhes prestado imediato socorro, conduzindo-os ao hospital. Em quase todos os ‘autos de resistência’, é
relatado que as vítimas morreram no caminho para o hospital (NECVU, 2011, p. 33).

Na delegacia de polícia civil, é assumido desde o princípio pelo delegado que a versão dos policiais
militares é verdadeira, o que faz com que a investigação policial não realize diligências para aprofundar
o conhecimento do caso. Em muitas ocorrências se observou que os policiais civis compartilham de uma
visão comum, qual seja, a de que a violência letal da polícia se justi ca do ponto de vista moral e funcional
quando a vítima é um “criminoso delinquente”, como se percebe na seguinte declaração de um policial civil:
Como a lei não mata o cialmente, ela mata extrao cialmente. O executor da lei acaba sendo o executor da pena.
O sujeito na adrenalina não é o mesmo. Só quem lida que sabe. O cara que matou um polícia já entra com um
poder na cadeia. A adrenalina do momento do tiroteio não tem como reconstituir. O policial é ser humano
e reage aos estímulos cerebrais. Um animal acuado é a mesma coisa. Às vezes, o próprio cara não sabe o que
aconteceu. Ali você é o juiz, é o promotor, é o executor. Aquele momento é único (NECVU, 2011, p. 43).

Quando são tomados os testemunhos de pessoas diferentes dos policiais envolvidos diretamente no
caso, as perguntas feitas pelos policiais civis geralmente envolvem uma tentativa de construção do per l
moral do morto, como saber se era “trabalhador”, “inocente”, “homem de bem” ou “vagabundo”, “suspeito”,
se tinha algum “vício” ou se estava envolvido na “vida criminosa”. Com o envio do inquério policial para
o Ministério Público, em regra os promotores opinam pelo arquivamento do caso e concordam com a
preponderância do fator moral para a legitimação da narrativa dos policiais envolvidos. Os juízes de direito,
por sua vez, aceitam o pedido do promotor de justiça e determinam o arquivamento do inquérito policial.
Nos poucos casos em que houve algum tipo de apuração por parte da promotoria e o oferecimento de
denúncia, raramente o tribunal do júri decidiu pela condenação – principalmente quando o morto tinha
antecedentes criminais –, a não ser que existissem indícios evidentes de que foi uma execução (NECVU,
2011, p. 48-66).

A conclusão dos pesquisadores é a de que a perpetuação da alta incidência de autos de resistência


no Estado do Rio de Janeiro não é algo atribuível somente à polícia militar e à polícia civil. O Ministério
Público e o Poder Judiciário são mecanismos cúmplices dessa estratégia, na medida em que a legitimam

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 17-40, ago. 2020.


28 André Filipe Pereira Reid dos Santos, Lucas Melo Borges de Souza, iago Fabres de Carvalho

através da falta de controle e scalização nas investigações e da concordância ideológica para com o discurso
discriminatório de violência e arbítrio sobre as vidas julgadas matáveis (NECVU, 2011, p. 128).

Em entrevista para a preparação de um relatório da Anistia Internacional, um especialista resumiu


de maneira semelhante esse modo de pensar e agir que atravessa as instituições policiais: “ele [o policial]
acredita piamente que tem que matar mesmo. Esse policial acha que está fazendo o bem para a sociedade.
A lógica da polícia é a seguinte: ‘eu não vou gastar meu tempo com bandido’. ‘Menos um’ é a lógica deles”
(ANISTIA INTERNACIONAL, 2015, p. 65). É o ethos militar interiorizado na polícia brasileira (e na
sociedade) que faz com que a política criminal de guerra seja uma das formas de sanção e recondução de
desigualdades sociais históricas (FOUCAULT, 2005, p. 23) sobre os negros, os pobres, os moradores de
regiões periféricas e de favelas no Brasil12.

As análises de iago Fabres de Carvalho (2007), Humberto Ribeiro Júnior e Luciana Pianca (2017)
seguem um mesmo caminho e também apontam para a existência de uma política criminal estruturada na
produção em série de morte na área da segurança pública brasileira. E aqueles continuamente submetidos
à pura força estatal são, em regra, os cidadãos discursivamente vestidos com a máscara de inimigos da
sociedade: homens, jovens, negros, moradores de regiões periféricas e favelas.

Aspectos sociais e políticos da letalidade policial no Rio de Janeiro e em São Paulo durante o Governo
Bolsonaro

Depois de apresentar algumas engrenagens da violência policial e, mais especi camente, da


letalidade policial no Rio de Janeiro e em São Paulo nas décadas de 1990, 2000 e 2010, no presente tópico
são analisadas as atuações das polícias nas administrações atuais de ambos os estados, no quadro do
Governo Bolsonaro.

Uma primeira observação a ser reforçada é a do cenário político no qual essas três administrações
emergiram e o momento em que se encontram atualmente. Durante as eleições de 2018, um componente
presente em discursos eleitorais e/ou programas de governo dos candidatos Jair Bolsonaro, Wilson Witzel e
João Doria era a defesa da ação policial violenta. No programa de governo do então candidato a presidente
Jair Bolsonaro, uma das propostas no tópico “segurança pública e combate à corrupção” era a aprovação
de uma “retaguarda jurídica”, pelo uso da excludente de ilicitude, que garantisse o não processamento
criminal do policial que viesse a matar em serviço um suposto criminoso (BOLSONARO, 2018). Em linha

12
Em relato pessoal sobre a experiência psicológica enfrentada pelo embate por tentar ser um policial militar crítico e consciente
de seu papel social dentro de uma “cultura policial” ideologicamente comprometida com a violência e míope quanto ao seu
real papel, Martel Alexandre Del Colle (que sofreu uma destruição psicológica nesse embate a ponto de tentar o suicídio)
diz: “todos acreditam estar fazendo o bem. Eu não duvido deles, pois eu também já acreditei. Somos treinados com o mantra
BANDIDO BOM É BANDIDO MORTO, mas eu nunca vi um policial sair para executar um deputado bandido, um juiz que
vende sentença, um senador que é chefe de trá co. E eu não espero que saiam. O que eu quero demonstrar é que você, policial,
está sendo enganado. Você está numa guerra ideológica para matar pobre. Não é bandido bom é bandido morto, mas sim, pobre
bom é pobre morto. Você está sendo manipulado” (DEL COLLE, 2019). O depoimento também mostra a relevância do caráter
super cial das compreensões que veem as instituições enquanto espaços unívocos, sem con ituosidades internas.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 17-40, ago. 2020.


semelhante, o programa de governo do então candidato a governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel
colocou, enquanto uma das medidas a serem adotadas, a “autorização para abate de criminosos” que
estivessem portando armas de fogo de uso exclusivo das forças armadas, com base na excludente de ilicitude
da legítima defesa (WITZEL, 2018). O programa de governo do então candidato a governador de São Paulo
João Doria não colocou uma proposta semelhante à dos outros dois políticos (DORIA, 2018), mas em
entrevista à Rádio Bandeirantes a rmou que caso fosse eleito, recomendaria a suspeitos que não entrassem
em confronto com a polícia militar e civil, pois a polícia atiraria e seria para matar (RODRIGUES, 2018).

Durante o período de eleições, os três candidatos apresentaram uma harmonia considerável de


ideias, inclusive em outras áreas, que de certo modo os aproximaram de um mesmo espectro político.
Quando era pré-candidato à presidência da república, o então deputado federal Jair Bolsonaro declarou em
discurso na cidade de Manaus, no dia 14 de dezembro de 2017:
nós vamos brigar pelo excludente de ilicitude. O policial militar em ação responde, mas não tem punição. Se
alguém disser que quero dar carta branca para policial militar matar, eu respondo: quero sim. O policial que não
atira em ninguém e atiram nele não é policial. Temos obrigação de dar retaguarda jurídica a esses bravos homens
que defendem nossa vida e patrimônio em todo Brasil (CARVALHO, 2017).

Durante a campanha eleitoral, João Doria, como exposto acima, a rmou que a polícia, em seu
governo, atiraria para matar. Alguns dias depois do resultado das eleições de 2018, Wilson Witzel defendeu
a ideia do “abate preventivo” por atiradores de elite de pessoas portando fuzil, pontuou que “o correto é
matar o bandido que está de fuzil”, que “a polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e... fogo! Para
não ter erro” e também disse que os policiais que atuassem em tal sentido não seriam responsabilizados em
nenhuma hipótese (PENNAFORT, 2018).

Depois das eleições, surgiram con itos entre os administradores estaduais e o presidente da república
que zeram com que aqueles se apresentassem como opositores e adversários deste, sob a suposição de
que poderiam ser eventuais candidatos ao Planalto nas eleições de 2022. A despeito do clima adversarial
estabelecido ao longo de 2019 e 2020 entre as administrações estaduais do Rio de Janeiro e de São Paulo
em relação à administração federal, os três governantes defendem, em linhas gerais, uma forma similar de
atuação das polícias na segurança pública. Outros discursos e pronunciamentos feitos por esses agentes
reforçam as defesas feitas, durante as eleições, no tema da atuação da polícia no campo da segurança
pública e, mais especi camente, na questão criminal.

Essa sintonia ou sinergia discursiva entre esses agentes políticos apresenta diferentes camadas de
signi cação que, por sua vez, remetem a diferentes efeitos na esfera social e política. Em primeiro lugar,
essa sinergia discursiva deve ser pensada não apenas enquanto uma expressão de uma compreensão
política preexistente sobre a instituição policial e o seu modo de funcionamento na sociedade, mas também
como uma força política que não está mais, em regra, reduzida ao próprio jogo interior de embates da
Instituição Policial, do Ministério Público, do Poder Judiciário e da Academia, pois conquistou espaço
na arena política tradicional e está em luta para consolidar posições e para naturalizar uma determinada
forma de pensar o papel da polícia. Ou seja, o ganho de espaço realizado por essa sinergia discursiva, a
despeito de eventuais rivalidades eleitorais de agentes políticos, é uma luta para se apoderar e assentar um
30 André Filipe Pereira Reid dos Santos, Lucas Melo Borges de Souza, iago Fabres de Carvalho

discurso (FOUCAULT, 2013a, p. 10) em defesa da atuação letal da polícia como a verdadeira forma de ver
e compreender o agir adequado da instituição.

Além de gerar efeitos no campo da política tradicional, com a eleição de defensores dessa visão
sobre a polícia e a segurança pública, essa sintonia discursiva não se reduz ao domínio das palavras, já
que tal discurso, ao ser alçado ao status de verdadeiro, efetiva e produz diferentes impactos (FOUCAULT,
2013b, p. 17-19) na relação entre polícia, governo e sociedade.

É fundamental ressaltar que o excesso de uso de força letal é uma prática da polícia veri cada
no Rio de Janeiro e em São Paulo ao longo de todo o período da Nova República, ainda que em alguns
períodos mais intensamente do que em outros. Os dados apresentados no tópico anterior evidenciam uma
regularidade de altos números de mortes provocadas por intervenção de agentes da segurança, durante
o serviço, nos dois estados da federação. Em outras palavras, a novidade não está exatamente em uma
pedagogia política do uso excessivo de força letal, pois as polícias carioca e paulista já adotam a letalidade
como uma das principais formas de intervenção social. A mudança está na legitimidade política aberta e
pública conferida pelos governantes à atuação letal da polícia. O efeito simbólico mais imediato disso é a
instalação da seguinte lógica: se tanto o representante eleito pela maioria no âmbito estadual (governador)
quanto o eleito pela maioria no âmbito federal (presidente) apoiam e defendem a letalidade policial como
ferramenta de política de segurança pública, então certamente a maioria da população carioca, paulista e,
na verdade, brasileira, também concorda.

Com isso não se quer descartar o fato de que as instituições policiais, conquanto estejam submetidas em
última instância às ordens do governador, possuem uma autonomia própria. O uso excessivo de força letal pelas
polícias não é a novidade, mas uma prática construída histórica e socialmente na segurança pública brasileira. A
particularidade está na possibilidade de uma maior integração entre polícia, governo e sociedade, no sentido de as
polícias contarem com um amparo o cial da política e da sociedade, que passam também, de maneira mais clara,
a subscrever e assinar uma predileção pela letalidade policial como suposto instrumento de segurança pública.

Em sentido transversal a essa decorrência simbólica, se opera um efeito social sobre a própria
constituição dos cidadãos enquanto agentes políticos. Vladimir Safatle, ao destrinchar o texto O
homem Moisés e a religião monoteísta de Freud, esclareceu a ideia do criador da psicanálise de que não
necessariamente o representante político é um tipo de expressão corporal do que o povo é e do que pensa.
A partir da frase “o homem Moisés que criou os judeus” (FREUD, 2014, p. 149), foi exposta a possibilidade
de um outro movimento, que é aquele no qual o próprio líder atua para produzir e de nir quem são e o que
pensam os próprios sujeitos como agentes políticos (SAFATLE, 2015, p. 127-134). Nessa linha, a ascensão
de um discurso em defesa da letalidade policial entre representantes políticos deve ser pensado como
um movimento político duplo, tanto de emergência de uma força política baseada na defesa da repressão
policial para determinados tipos de crimes, quanto de afetação capaz de atravessar e formatar o que o
cidadão pensa e advoga em tema de segurança pública e de uso de força letal pela polícia.

Também se pode veri car alguns resultados práticos, como a apresentação de mudanças legislativas
e o aumento do número de mortes por intervenção dos agentes de segurança nos estados.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 17-40, ago. 2020.


Aspectos simbólicos, políticos e práticos da letalidade policial no Rio de Janeiro e em São Paulo
durante o governo Bolsonaro 31

Uma das propostas do pacote anticrime apresentado pelo ministro da justiça era exatamente a alteração
no instituto da legítima defesa, para regular o excesso em caso de medo, surpresa ou violenta emoção, além
da previsão de uma nova modalidade especí ca voltada para o agente policial ou de segurança pública em
con ito armado ou em risco de con ito armado (BRASIL, 2019). Apesar de críticas direcionadas a algumas
propostas contidas no pacote, o governador Wilson Witzel elogiou as possíveis mudanças na excludente de
ilicitude da legítima defesa (FERREIRA, 2019), até porque não ia de encontro ao defendido pelo mesmo em
seu programa de governo. O governador João Doria elogiou o pacote anticrime e a rmou não ver pontos de
discordâncias no que foi apresentado e que o mesmo seria apoiado pelos governadores (RODRIGUES, 2019).

Quando da aprovação do pacote anticrime, a mudança no instituto da legítima defesa foi descartada
pelo Congresso Nacional. A medida serviria como mais um resguardo legal, uma proteção jurídica extra,
à mecânica de extermínio das instituições policiais, já inserida na lógica de combate à criminalidade e de
uso discricionário da força. Assim, além da existência de uma mecânica entre Polícia, Ministério Público
e Poder Judiciário que, na prática, inviabiliza possíveis esclarecimentos e responsabilizações penais de
agentes policiais que matam civis, através de uma inércia investigativa e de uma aceitação acrítica das ações
o ciais13, a legítima defesa especí ca para agentes policiais e a regulação do excesso poderiam levar a uma
construção legal de uma “legítima defesa preventiva, antecipada” (GONÇALVES; MACHADO, 2019), que
alcançaria até os poucos casos de mortes de civis por agentes policiais que são investigados e julgados.
Nesse cenário, poderia ocorrer uma densi cação da “cortina de fumaça” (ANISTIA INTERNACIONAL,
2015, p. 4) já gerada pela utilização dos autos de resistência, que levaria a um encobrimento ainda maior de
execuções sumárias das polícias.

Apesar de a mudança no âmbito legislativo não ter se efetuado, uma série de acontecimentos
marcaram a segurança pública do Rio de Janeiro e de São Paulo ao longo do ano de 2019.

Nos primeiros meses do Governo Witzel ocorreram uma operação da polícia militar (elogiada pelo
governador) nas comunidades do Fallet e do Fogueteiro que terminou com 15 mortos e uma operação no
Complexo da Maré que deixou 8 mortos. O governador sugeriu que se houvesse autorização da ONU e se
fosse em outro país, poderia ter lançado um míssil para explodir pessoas armadas que foram lmadas na
Cidade de Deus (DOLZAN; GRELLET, 2019).

13
Mais uma vez, é imprescindível lembrar que a relação entre Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário não é despida de
con itos, visões e ações múltiplas. Ainda está em jogo uma disputa interna pelo domínio de uma concepção do que deve ser e de
como deve ser a relação entre polícia-ministério público-judiciário. Um exemplo dessa con ituosidade é a “Ação Civil Pública da
Maré” de 2016, que teve como autores a defensoria pública do Estado do Rio de Janeiro e a ONG Redes da Maré e na qual cou
estabelecido, pelo Poder Judiciário, quatro determinações para a atuação da polícia carioca em ações no complexo da Maré, na
zona norte do Rio de Janeiro: 1) os mandados de busca e apreensão só poderiam ser cumpridos durante o dia; 2) instalação nas
viaturas policiais de equipamentos de vídeo, áudio e GPS; 3) presença de ambulância durante a realização de operações policiais;
4) construção de um plano de redução de danos para as operações policiais. No dia 19 de junho de 2019, a juíza da 6ª Vara da
Fazenda Pública do Rio de Janeiro anulou a decisão, sob o argumento de não ser atribuição do Poder Judiciário, mas sim do
Poder Executivo, determinar a forma de atuação da polícia. Ainda segundo a magistrada, quer se concorde, quer se discorde, as
políticas públicas na área da segurança pública são escolhas do chefe do poder executivo (BARBON, 2019a).

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32 André Filipe Pereira Reid dos Santos, Lucas Melo Borges de Souza, iago Fabres de Carvalho

No dia 07 de abril de 2019, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, militares do Exército fuzilaram
um carro de uma família que se dirigia a um chá de bebê. A ação, com mais de 240 tiros de fuzil e pistola,
resultou na morte do músico Evaldo Rosa (motorista do veículo) e do catador de material reciclado Luciano
Macedo (não estava no interior do veículo, mas tentou ajudar o resto da família a sair do carro). Sérgio
Gonçalves de Araújo acabou ferido pela ação dos militares. A esposa, o lho e uma amiga do músico não
foram atingidos. Os militares foram denunciados pelo Ministério Público Militar por duplo homicídio e
tentativa de homicídio e respondem ao processo em liberdade após decisão do Superior Tribunal Militar
(AGÊNCIA BRASIL, 2019).

Em entrevista à BBC News Brasil, a fala do subprocurador-geral da Justiça Militar que apresentou
parecer pela soltura dos nove militares, então presos preventivamente, é sintomática da lógica bélica e
da política de morte interiorizada no modo de sentir, pensar e agir a segurança pública brasileira. O
funcionário público defendeu uma maior proteção jurídica aos agentes de segurança pública envolvidos
em morte de civis, para evitar o processamento criminal mesmo em casos de erro na atuação; alegou que
no Rio de Janeiro a situação é de guerra e atingir civis é inevitável; disse ser favorável ao uso de helicópteros
em operações policiais em áreas densamente povoadas e de atiradores de elite para abate de pessoas em
porte de fuzis; a rmou ser grave o “caso dos 80 tiros”, mas que os militares agiram na crença de que se
tratava de um bandido (PASSARINHO, 2019).

Na data de 20 de setembro de 2019, a menina Ágatha Félix foi morta quando retornava para casa,
acompanhada da mãe, em uma Kombi, no complexo do Alemão. Após investigação, um policial militar
foi denunciado pelo ministério público, por ter sido o autor do disparo que atingiu a vítima, pois atirou
em situação na qual não se constatou con ito entre cidadãos armados e polícia militar (BARBON, 2019b).

Esses casos devem ser colocados em perspectiva, visto não ser possível pensá-los fora dos efeitos
simbólicos, políticos e práticos ensejados pela sintonia discursiva entre os atuais representantes políticos.

Por esse ângulo, não deve ser tratado como uma surpresa que os dados no Estado do Rio de Janeiro
mostrem um aumento nas mortes por intervenção de agentes do Estado entre os meses de janeiro e
dezembro de 2019, quando em comparação com o mesmo período de 2018 (vale lembrar que os números
do ano passado já tinham registrado um aumento devido à intervenção federal na área da segurança
pública do Estado do Rio de Janeiro). Entre janeiro e dezembro de 2018 foram registradas 1.534 mortes por
intervenção de agentes do Estado, a uma taxa de 9 mortes para cada 100 mil habitantes, enquanto que no
mesmo intervalo de tempo no ano de 2019 foram registradas 1.814 mortes, a uma taxa de 11 mortes para
cada cem mil habitantes, um aumento absoluto de 280 mortes (18,3%) e um aumento relativo de 2 mortes
para cada cem mil habitantes. O ano de 2019 contabilizou o maior número absoluto e relativo de mortes
por agentes de segurança desde 2003, primeiro ano com registros estatísticos do Instituto de Segurança
Pública. Essas 1.814 mortes representaram cerca de 31% do total de homicídios intencionais ocorridos no
ano de 2019 no estado do Rio de Janeiro. Quando comparadas com o número de mortes em serviço de
policiais militares (22 mortos) e policiais civis (nenhum morto) no mesmo ano, se chega ao número de
aproximadamente 82,45 civis mortos para cada agente de segurança morto em serviço (ISPRJ, s.d.).

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Aspectos simbólicos, políticos e práticos da letalidade policial no Rio de Janeiro e em São Paulo
durante o governo Bolsonaro 33

Em relação ao estado de São Paulo, o governador João Doria parabenizou as ações dos policiais
militares que “colocaram no cemitério mais 10 bandidos” suspeitos de roubo a banco na cidade de
Guararema e disse que iria homenageá-los no Palácio dos Bandeirantes, junto com outros policiais militares
(ADORNO, 2019). Ao comentar a notícia de que doze pessoas foram mortas a tiros na capital paulista em
quatro dias no mês de maio de 2019, o governador a rmou que “se forem os bandidos, estão indo para o
lugar que merecem” (BERGAMIM; STOCHERO, 2019). No mês de setembro de 2019, durante entrevista
coletiva sobre a redução do número de homicídios em São Paulo, o governador a rmou que a redução da
letalidade policial não é uma meta obrigatória da gestão (RIBEIRO, 2019).

Na região de São Vicente, litoral de São Paulo, durante uma operação policial na comunidade Dique
do Caxeta, a polícia militar matou quatro jovens e deixou um ferido. A corporação a rmou que os policiais
militares foram alvejados e, ao responderem, teriam matado e ferido os rapazes. Os moradores, por outro
lado, a rmaram que não houve troca de tiros, que os policiais militares “vieram para matar”, que apenas
um dos alvos tinha “envolvimento com o crime” e que todos estavam rendidos, com as mãos na cabeça.
Também foi feito um vídeo que mostra um policial militar jogando um corpo de um jovem de 16 anos de
idade em uma vala (G1 SANTOS, 2019).

De acordo com relatório da Ouvidoria da Polícia de São Paulo, o Estado registrou, no ano de
2019, o número absoluto de 867 mortes por decorrência de intervenção de policiais militares e civis. Em
comparação, o ano de 2018 terminou com o número de 851 mortes. O mesmo relatório apontou que a
ROTA foi responsável pela morte de 104 civis no ano de 2019, um aumento de 98% em comparação ao ano
de 2018, que registrou 59 ocorrências do tipo. Além disso, o documento apontou que 7 policiais militares e
3 policiais civis morreram em serviço no ano de 2019. Quando comparados os números de mortes de civis
com mortes de policiais, se chega ao número de aproximadamente 86,7 civis mortos para cada agente de
segurança morto em serviço (GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2020). Em questão de números
absolutos não houve uma alta considerável no ano de 2019, quando em comparação com o ano de 2018,
entretanto, segundo dados do Monitor da Violência, as 867 mortes por decorrência de intervenção de
policiais militares e civis corresponderam cerca de 23% de todas as mortes intencionais ocorridas no ano
de 2019 no estado de São Paulo (MONITOR DA VIOLÊNCIA, s.d.).

O capitão Rafael Henrique Cano Telhada, comandante da Força Tática do 4º Batalhão da zona oeste
de São Paulo, ao comentar os dados apresentados pela ouvidoria em uma rede social, disse: “que venham os
200% em 2020”. Sobre os mesmos dados, o delegado de polícia civil de São Paulo Rafael Vallejo Fagundes,
declarou: “bora dobrar a meta, meu irmão da Rota. Porque enquanto a criminalidade estiver abaixando e o
cidadão de bem estiver mais seguro, eu quero mais é que vagabundo se exploda”. E o pai do capitão Rafael
Telhada, o deputado estadual Paulo Telhada, parabenizou a rota pelos números “porque não são cidadãos
mortos, não são inocentes mortos, são criminosos, bandidos” (DALAPOLA, 2020).

Em entrevista, o sociólogo Benedito Mariano, que foi ouvidor da polícia civil e da polícia militar
no estado de São Paulo no período entre 1995 e 2000 e depois entre 2018 e 2020, até ser substituído pelo
governador, fez uma comparação entre os diferentes governos do PSDB no estado. Se antes a ouvidoria

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 17-40, ago. 2020.


34 André Filipe Pereira Reid dos Santos, Lucas Melo Borges de Souza, iago Fabres de Carvalho

contava com um respaldo para scalizar as ações policiais e procurar reduzir a letalidade policial, agora
o órgão entrava em con ito com o governador, por discordância quanto à pauta da letalidade policial. Na
opinião do sociólogo, esse impasse criado entre a visão do governador e a da ouvidoria teria levado à não
recondução do mesmo ao cargo, embora tivesse sido escolhido pela lista tríplice. Ainda segundo o mesmo,
o discurso de Doria acaba por incentivar a letalidade policial (ADORNO, 2020).

Apresentados alguns dados e elementos da letalidade policial no Rio de Janeiro e em São Paulo
durante o Governo Bolsonaro, é preciso retornar aos efeitos simbólicos, políticos e práticos da sinergia
discursiva das administrações dos respectivos estados com a administração federal sobre a forma de
atuação da polícia no campo da segurança pública.

As manifestações públicas dos governadores do Rio de Janeiro e de São Paulo (e até de funcionários
da administração pública estadual) são amostras de um simbolismo no qual a ação letal da polícia carioca
e da polícia paulista é avalizada pela autoridade pública eleita pela maioria da população. Mais uma vez,
tendo em vista a autonomia institucional própria e a mecânica de legitimação de suas ações operada pelo
Ministério Público e pelo Poder Judiciário, as polícias dos estados em questão não necessitam desse aval para
implementar a letalidade policial como uma de suas agendas na área da segurança pública. O que talvez se
assente enquanto novo é a possibilidade de con guração gradual de um arranjo cada vez mais arquitetado
entre polícia, governo e sociedade, onde a letalidade policial, a ação de matar o “bandido”, a suposta ameaça
à ordem social, ganha o sentido simultâneo de reação dos órgãos de segurança, materialização da decisão
política do governo e desejo do povo.

E a con guração desse arranjo pode sofrer uma aceleração, tendo em vista que segundo os dados do
Monitor da Violência, o ano de 2019 viu o número de mortes violentas (homicídio doloso, latrocínio e lesão
corporal seguida de morte) no Brasil diminuir cerca de 20%, quando comparado com os dados de 2018.
Foram 41.365 vítimas de crimes violentos no ano de 2019, o número mais baixo desde 2007 (MONITOR
DA VIOLÊNCIA, s.d.). No estado do Rio de Janeiro foram 4.154 vítimas em 2019, contra 5.180 vítimas em
2018. Em São Paulo, 3.209 vítimas em 2019 e 3.463 em 2018 (MONITOR DA VIOLÊNCIA, s.d.).

Isso porque há mobilizações políticas que buscam vincular a queda das mortes violentas no ano
de 2019 às mudanças na segurança pública promovidas pelos novos governos. Ao comentar sobre os
dados do Rio de Janeiro, o governador Wilson Witzel defendeu, no nal de 2019, a política de confronto
adotada na segurança pública carioca (MELLO, 2020). Sobre o mesmo tema, o ministro da justiça
relacionou a queda no número de mortes violentas a ações integradas entre municípios, estados e união,
que garantiu um enfrentamento rme ao crime organizado, a lideranças de presídios e ao trá co de
drogas (GLOBONEWS, 2019).

Alguns argumentos enfraquecem a hipótese de que a atuação repressiva e rme estaria por trás da
diminuição do número de mortes violentas no Brasil. Ao examinar os dados, Samira Bueno e Renato Sérgio
Lima (2020) veri caram uma redução no número de mortes violentas também em unidades da federação
com baixos índices de letalidade policial, a exemplo do Espírito Santo, Distrito Federal e Paraíba; de acordo
com exames feitos no Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a redução no número de mortes

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 17-40, ago. 2020.


Aspectos simbólicos, políticos e práticos da letalidade policial no Rio de Janeiro e em São Paulo
durante o governo Bolsonaro 35

violentas no Brasil foi uma tendência já presente no ano de 2018 e ainda não é possível saber ao certo qual
a leitura mais adequada do fenômeno, embora existam algumas interpretações de cunho nacional, sem
que a política de segurança pública do ministério da justiça tenha qualquer in uência (KAHN, 2019); em
relação ao Rio de Janeiro, os dados do Instituto de Segurança Pública (s.d.) referentes aos anos de 2017,
2018 e 2019 descartam uma suposta vinculação entre aumento do número de mortes por intervenção
de agentes de estado e diminuição do número de mortes violentas. Para exempli car, seguem os dados
da região metropolitana do estado, com a maior incidência de casos: no ano de 2017 ocorreram 4.325
mortes violentas (76,9% do total) e 1.055 mortes por intervenção de agentes de estado (93,6% do total), no
ano de 2018 foram 3.771 mortes violentas (72,8% do total) e 1.381 mortes por intervenção de agentes de
estado (90% do total) e no ano de 2019 foram 3.059 mortes violentas (73,4% do total) e 1.647 mortes por
intervenção de agentes de estado (90,8% do total); ainda sobre o Rio de Janeiro, segundo levantamento do
UOL também com base nas estatísticas do Instituto de Segurança Pública, nas 55 áreas onde se constatou
um aumento no número de mortes por intervenção de agentes do Estado, houve uma redução de apenas
15,2% nas mortes violentas entre 2018 e 2019 (de 2.952 ocorrências para 2.503), enquanto que nas 82 áreas
onde se percebeu uma queda na letalidade policial, sobreveio uma redução de 27,7% nas mortes violentas
entre 2018 e 2019 (de 2.228 ocorrências para 1.651) (MELLO, 2020).

Mesmo que os dados e as análises indiquem a inconsistência dos argumentos partidários de uma
ideia de segurança pública repressiva e rme, a mobilização política pode ser vista não só como uma busca
para legitimar determinadas atuações das policias dos governos dos representantes eleitos, mas também para
moldar na sociedade determinada visão sobre a maneira mais adequada de encarar a violência e o crime.

A capacidade de circulação e incorporação dessa forma de sentir e pensar o papel da polícia


constitui um dos fatores de um prognóstico capaz de determinar se a predileção pela letalidade policial
como ferramenta de segurança pública irá ser mantida a curto, médio ou longo prazo no Rio de Janeiro
e em São Paulo, bem como se irá ser instalada essa racionalidade a nível nacional. Enquanto isso, o efeito
prático mais provável e imediato é o acúmulo de mortos decorrente da inclinação pela letalidade policial e
por uma política criminal de guerra, com a assinatura dos governos, da polícia, do Ministério Público, do
Poder Judiciário e de parte da sociedade.

Considerações nais

A administração federal e as administrações estaduais do Rio de Janeiro e de São Paulo têm operado
a partir do paradigma da segurança pública como questão de polícia. Um paradigma que não é um fenômeno
novo, pois se assentou histórica, política e socialmente desde o início da Nova República. Assim, a novidade
não está na reprodução de uma política criminal feita com sangue (BATISTA, 1997), que rea rma a polícia
carioca e a polícia paulista como instituições perpetuadoras da violação de direitos humanos, mas sim nos
efeitos simbólicos, políticos e práticos, provocados pela eleição da letalidade policial enquanto instrumento
basilar de segurança pública, no atual contexto.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 17-40, ago. 2020.


36 André Filipe Pereira Reid dos Santos, Lucas Melo Borges de Souza, iago Fabres de Carvalho

Além do fortalecimento de um estado regular de violação de direitos humanos por parte das ações
policiais, a predileção pelo uso da força letal da polícia em um quadro de diminuição dos números de
mortes violentas no Rio de Janeiro, em São Paulo e, de fato, no país inteiro, pode levar a uma formação
de um corpo político reprodutor de e obsessivo por uma lógica sanguinária, imaginada como uma tática
capaz de alcançar uma sensação de segurança e libertação total da violência e do crime. Por um lado, os
tipicamente selecionados pelo sistema penal no Brasil vêm a sofrer ainda mais com a opção por mais
repressão e violência policial. De outro viés, essa sinergia discursiva em torno de uma “atuação policial
guerreira” retroalimenta uma visão política autoritária na qual o ser cidadão não é um estado político
irremovível, mas uma decisão discricionária por parte do Estado e daqueles que se julgam “mais cidadãos”
do que outros.

Se em grande parte das décadas de 1990, 2000 e 2010 a política de segurança pública e os direitos
humanos foram colocados, em regra, como polos opostos por questões ideológicas (BARATTA, 1997. p.
58), o nal da década de 2010 e o início da década de 2020 podem marcar o período no qual a morte do
outro pela polícia assume um signi cado coletivo de adesão simbólica, política e prática à barbárie enquanto
política criminal.

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O papel da família como vetor educacional primário ao
consumo responsável e seus desa os diante do abuso da
comunicação mercadológica infantil
Dennis Verbicaro
Universidade Federal do Pará, Belém, Pará, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-2663-3303

Grace Baêta de Oliveira


Universidade Federal do Pará, Belém, Pará, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-3539-1155

Pastora do Socorro Teixeira Leal


Universidade Federal do Pará, Belém, Pará, Brasil
https://orcid.org/0000-0001-5265-483x

Canoas, v. 8, n. 2, 2020 Resumo: O presente artigo tem como objetivo abordar o papel da
família como vetor educacional primário ao consumo responsável diante
Artigo do abuso da comunicação mercadológica infantil e discorrer sobre
a vulnerabilidade existencial da criança e o diálogo das fontes como
Recebido: 16.11.2019 mecanismo viabilizador da concretização dos seus direitos fundamentais.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, a defesa do consumidor
Aprovado: 24.03.2020
e os direitos da criança e do adolescente se desenvolveram e, com base
Publicado: 30.03.2020 nos princípios constitucionais, trilharam caminhos no sentido de tutelar
grupos vulneráveis frente às relações de poder consumerista, em que a
DOI http://dx.doi.org/10.18316/REDES.v8i2.6239
mídia exerce sua in uência instantânea, incentivando o público infantil ao
hiperconsumo. Assim, o consumidor-criança é um grupo que se encontra
em fase de desenvolvimento biopsicológico, precisando de proteção
integral, por meio do acompanhamento da família em conjunto com a
escola, para desenvolver um mecanismo social protetivo mais efetivo. Por
m, apresentam-se ferramentas para combater essa problemática, que é de
responsabilidade de todos. Utilizou-se o método dedutivo e a metodologia
de pesquisa deu-se por meio da análise bibliográ ca, da legislação nacional
e das decisões judicias, que dispunham acerca da tutela dos direitos e
garantias constitucionais e consumerista.
Palavras-chave: Família; Consumo Responsável; Abuso da Comunicação;
Defesa do Consumidor; Vulnerabilidade Existencial da Criança.

e role of the family as a primary educational vector for


responsible consumption and its challenges in the face of
child marketing abuse
Abstract: is article aims to address the role of the family as a primary
educational vector for responsible consumption in the face of abuse of
42 Dennis Verbicaro, Grace Baêta de Oliveira, Pastora do Socorro Teixeira Leal

child marketing communication and to discuss the existential vulnerability of children and the dialogue of sources
as a mechanism for the realization of their fundamental rights. With the advent of the Federal Constitution of
1988, consumer protection and the rights of children and adolescents were developed and, based on constitutional
principles, followed paths to protect vulnerable groups from consumerist power relations, where the media exercises
its instant in uence, encouraging children to hyperconsumption. us, the consumer-child, because it is a group
that is in the biopsychological development phase, needs full protection, through accompanying the family together
with the school, to develop a more effective protective social mechanism. Finally, we present tools to combat this
problem, which is everyone’s responsibility. e deductive method was used and the research methodology was
given through bibliographic analysis, national legislation and judicial decisions, which provided for the protection
of constitutional and consumer rights and guarantees.
Keywords: Family; Responsible Consumption; Abuse of Children’s Marketing; Communication Existential Vulnerability.

Introdução

O presente artigo visa a abordar a importância do papel da família como vetor primário ao
consumo responsável da criança diante das práticas abusivas advindas da comunicação mercadológica
infantil. O desa o de saber lidar com a mídia e administrar o tempo para acompanhar e orientar crianças
e adolescentes, no espaço doméstico, torna-se cada vez mais essencial, pois, nesse diálogo entre família e
consumo, o dever social de proteção, apesar de ser uma prática de todos, deve ser promovido inicialmente
pelo núcleo familiar.

A realidade da família contemporânea é marcada pelo grande volume de informações, pela


tecnologia e inúmeras atividades que pro ssionais precisam dar conta para vencer seus compromissos.
No entanto, as 24 horas diárias não são mais su cientes. O direito à desconexão parece, muitas vezes,
impossível e o tempo que se tem para conciliar trabalho e família encontra-se cada vez mais escasso.

É verdade que a tecnologia e a velocidade das informações não fazem parte apenas da vida pro ssional
das pessoas, mas também do núcleo familiar, cujo acesso fácil é, progressivamente, mais precoce e íntimo
das pessoas que compõem o espaço doméstico. Assim, a mídia direcionada à criança e adolescentes invade
lares, propagando novas necessidades, exigindo novas mercadorias, que, por sua vez, estabelecem desejos
para tentar atender a uma intensidade de vontades que será alimentada pelo imediatismo e pelo sentimento
da rápida substituição dos objetos destinados à ilusória satisfação.

Em um ambiente consumerista extremamente volátil e excludente percebe-se que a velocidade com


que as informações mercadológicas e as tendências que de nem padrões são recebidas pelas crianças são
as mesmas que as in uenciam e, até mesmo, as afastam de modo imperceptível das relações familiares,
pois, são personalidades ainda em desenvolvimento, que, pela falta de maturidade, podem ser moduladas
facilmente pela mensagem da necessidade de consumir e pela pseudosatisfação de pertencimento a um
determinado grupo arti cial, o que gera, em contrapartida, um sentimento de exclusão, motivado pelos
pedidos sucessivos e pela incapacidade dos pais em atendê-las.

Segundo Bauman,
[...] a instabilidade dos desejos e a insaciabilidade das necessidades, assim como a resultante tendência ao
consumo instantâneo e à remoção de seus objetos, também instantâneas, harmonizam-se bem com a nova

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 41-59, ago. 2020.


O papel da família como vetor educacional primário ao consumo responsável e seus desa os diante do
abuso da comunicação mercadológica infantil 43

liquidez do ambiente em que as atividades existenciais foram inscritas e tendem a ser conduzidas no futuro
previsível. Um ambiente líquido-moderno é inóspito ao planejamento, investimento e armazenamento de longo
prazo. De fato, ele tira do adiamento da satisfação seu antigo sentido de prudência, circunspecção e, acima de
tudo, razoabilidade. A maioria dos bens valiosos perde seu brilho e sua atração com rapidez e se houver atraso
eles podem se tornar adequados apenas para o depósito de lixo, antes mesmo de terem sido desfrutados1.

Os modelos publicitários de massa, cada vez mais convincentes, in uenciam diretamente no


comportamento do consumidor que, no caso das crianças, vai muito além do ato de possuir, podendo
englobar consequências para a sua formação e para as interrelações.

A cultura do consumo imediatista promovida pelas mídias sobrevaloriza a aquisição de bens de


consumo e alimenta o desejo quase que insaciável pelas novidades, ou seja, cria-se o capitalismo com o
seu caráter neoliberal e descobre-se, ainda, que é preciso dar um passo mais além, que é o de criar nas
pessoas o desejo pelo supér uo, fazendo com que isto se torne uma necessidade. Nesse contexto, a família
precisa assumir seu protagonismo no sentido contrário à doutrina difundida pela publicidade direcionada
ao consumidor infantil, que utiliza técnicas de convencimento persuasivas e abusivas, afastando a ideia de
limites e de real necessidade de consumo, ao mesmo tempo em que se propaga um padrão de felicidade a ser
alcançado diante da volatilidade de consumo das sensações gasosas, que em poucos minutos se evaporam
quando se deparam com uma novidade suscitada pelo mercado.

Para Marques, a publicidade consiste em “[...] toda a informação ou comunicação publicitária


difundida com o m direto ou indireto de promover, junto aos consumidores, a aquisição de um produto
ou a utilização de um serviço, qualquer que seja o local ou meio de comunicação utilizado2.

Essa publicidade, frequentemente agressiva, gera uma mercantilização das relações humanas e da
própria humanidade, na qual os produtos é que agregam valor à pessoa. Para a criança, isso pode lesar a sua
própria alma, pois, ao ser submetida a um bombardeio de informações, têm direitos violados em função da
sua falta de entendimento e maturidade.

Neste sentido, Silveira Junior e Verbicaro a rmam que:


[...] a busca frenética por um inverossímil estado de felicidade paradoxal pela autossatisfação hedonista e por
uma vida produtiva em matéria de experiências, acarreta a tentativa, quase sempre frustrada, de diferenciação
social a partir de símbolos transitórios de consumo, em que há cada vez menos espaço para as necessidades
utilitaristas (aquelas que cumprem uma função real na vida do sujeito), que vão fragilizando a autoestima e a
própria capacidade racional do consumidor de fazer escolhas responsáveis3.

Todavia, a felicidade não é um bem comprado, por isso o desespero do mercado, que tenta, a qualquer
custo, o convencimento por meio das mídias, vendendo a ideia de que a felicidade é a soma de prazeres.

1
BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 45.
2
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 7. ed.
São Paulo: RT, 2014, p. 872.
3
SILVEIRA JUNIOR, Antonio Morais da; VERBICARO, Dennis. A tutela normativa da publicidade infantil na relação de
consumo e seus desa os. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, a. 26, v. 112, p. 201-226, jul.-ago. 2017, p. 3.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 41-59, ago. 2020.


44 Dennis Verbicaro, Grace Baêta de Oliveira, Pastora do Socorro Teixeira Leal

Neste sentido, a publicidade se utiliza de todas as formas para atrair o consumidor, quer seja adulto, quer
seja infantil. Logo, questiona-se: Qual o papel da família diante da in uência e dos apelos utilizados pela
mídia direcionada ao consumidor infantil, mesmo havendo previsão legal sobre a publicidade abusiva na
Lei nº 8.078/1990, que dispõe sobre o Código de Defesa do Consumidor?

A metodologia utilizada neste artigo recorreu a análise bibliográ ca referente ao tema, bem como da
legislação nacional que dispunha acerca da tutela dos direitos e garantias constitucionais da criança, além dos
deveres da família, sociedade e Estado na proteção desses direitos. O texto foi organizado em cinco partes
unidas com o escopo de analisar, por meio do recurso ao método qualitativo e de pesquisa bibliográ ca
nacional, os contornos da publicidade infantil no atual contexto de uma sociedade consumista e cada vez
mais exposta ao assédio de consumo da indústria cultural capitalista.

A publicidade infantil e a vulnerabilidade existencial da criança frente ao assédio de consumo

A sociedade contemporânea é marcada pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,


que dá início a uma nova Era, pois passa a atuar como ltro axiológico do direito civil, em que seus dispositivos
são interpretados conjuntamente com o objetivo comum da busca pela efetivação dos direitos humanos.

Os princípios constitucionais, também, passam a re etir por todo o ordenamento jurídico, a exemplo
da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social, promovendo uma despatrimonialização e uma
repersonalização do direito civil, com ênfase na pessoa humana. Percebe-se, então, a aplicabilidade dos
direitos fundamentais às relações privadas, superando a dicotomia entre o direito público e o privado.
Segundo Marques e Miragem, “os direitos fundamentais seriam as novas normas fundamentais e estes
direitos constitucionais in uenciaram o novo direito privado, a ponto de o direito civil assumir um novo
papel social, como protetor e como inibidores de abusos”4.

Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – com a sua ordem, unidade e
harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Esse fenômeno,
identi cado por alguns autores como ‘ ltragem constitucional’, consiste em que toda a ordem jurídica deve
ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados5.

O direito civil, igualmente, desloca a pessoa para o centro de suas preocupações, em que se observam
duas tendências: a primeira é acerca da descodi cação das fontes, com a constitucionalização de novos
sujeitos de direito; a segunda se refere à uni cação das fontes, por meio da junção das obrigações civis, dos
deveres e das cláusulas gerais. Nesse sentido, os novos sujeitos identi cados e reconhecidos pelo direito,
como crianças, idosos, de cientes físicos e consumidores, passam a reivindicar leis especiais, de caráter
protetivo, visando a concretização do princípio da igualdade não só formal, mais existencial, no que se

4
MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 2. ed. São Paulo: RT, 2014. p. 223.
5
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do
novo modelo. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 407.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 41-59, ago. 2020.


O papel da família como vetor educacional primário ao consumo responsável e seus desa os diante do
abuso da comunicação mercadológica infantil 45

refere a modi car o tratamento dado aos desiguais, ou seja, às pessoas que, devido as suas especi cidades,
merecem tutela especial.

Marques e Miragem asseveram que:


[...] esta evolução no direito parece indicar que estamos diante de uma nova igualdade, que renova o signi cado
da ideia de isonomia perante a lei e na lei. Pontes de Miranda, então Embaixador, em um discurso político
sobre a igualdade na lei, a rmou: “o princípio mais importante para o direito atual e de séculos é o princípio
da isonomia”6.

Nessa acepção, a defesa do consumidor prevista na Constituição Cidadã, posteriormente,


constitui-se também, como um microssistema vinculado aos preceitos constitucionais, no qual
o Código de Defesa do Consumidor (CDC), previsto na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990,
reconhece a importância de adotar uma prática de proteção diferenciada para determinados grupos
de consumidores, em virtude da sua condição de vulnerabilidade, como o grupo das crianças, objeto
especí co deste artigo, a qual é intrínseca a todo e qualquer consumidor, por ser esta a parte mais fraca da
relação de consumo. Aliás, o direito do consumidor foi posto em virtude do próprio reconhecimento dessa
vulnerabilidade na nossa sociedade7.

Com a constitucionalização do direito privado, crianças passaram a ter uma proteção jurídica
melhor estruturada, na condição de sujeitos de direito e titulares de interesse, concepção que se veri ca
no artigo 227 da Constituição de 1988, que conferiu dignidade e proteção à criança, suscitando, inclusive
a sistematização infraconstitucional dessa tutela – o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é um
exemplo disso.-

Assim, é necessário fazer um breve apanhado histórico acerca da tutela da criança. Para isso,
convém lembrar que antes, a criança era vista como um objeto de intervenção do mundo adulto,
inferior e carente de proteção. O marco de mudança se deu a partir da Declaração de Genebra de 1924,
reconhecendo que a humanidade devia ao infante o que melhor tinha para dar e que era seu dever dotá-
la de garantias.

Em 20 de novembro de 1959, a Organização das Nações Unidas (ONU) adota, em assembleia, uma
declaração especial, “visando que a criança tenha uma infância feliz e possa gozar, em seu próprio benefício
e no da sociedade, dos direitos e das liberdades”8.
[A] Declaração de Direitos Humanos, Pacto de San José de Costa Rica, aprovada em convenção em 22 de
novembro de 1969, em seu artigo 19 intitulado “Direitos da Criança”, prescreveu que toda criança “tem direito às
medidas de proteção, que a sua condição de menor requer, por parte da sua família, da sociedade e do Estado”,

6
MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 2. ed. São Paulo: RT,
2014. p. 193.
7
DIAS, Lúcia Ancona de Magalhaes. Publicidade e hipervulneráveis: limitar, proibir ou regular? Revista de Direito do
Consumidor, São Paulo, a. 24, v. 99, p. 185-231, mai.-jun. 2015. p. 286.
8
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração Universal dos Direitos da Criança. 1959. Disponível em:
http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-1069.html. Acesso em: 28 jun. 2019.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 41-59, ago. 2020.


46 Dennis Verbicaro, Grace Baêta de Oliveira, Pastora do Socorro Teixeira Leal

avançando, ainda que timidamente, no reconhecimento de interesses subordinantes da criança ou adolescente,


ainda que enxergasse sob a ótica da carência. O reconhecimento internacional de que crianças e adolescentes são
titulares de direitos restou coroado com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, adotada
pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 e, no Brasil, aprovada pelo Decreto
Legislativo nº 28, de 14 de setembro de 1990 e promulgada pelo Decreto nº 99.710 de 21 de novembro de 19909.

Observa-se que a evolução do direito e o pluralismo de fontes legislativas têm sua origem no
reconhecimento de direitos individuais e especi cidades. Assim, para as crianças, destaca-se, também, a
Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que
em função da complexidade das relações privadas, necessitam de uma proteção que respeite suas diferenças
e sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, assim, tal efeito alcança as relações de consumo.

Nesse diapasão, é possível constatar que, no âmbito do direito civil, o instituto da vulnerabilidade,
utilizado nas mais diversas vertentes, como por exemplo, no direito do consumidor, foi construído e
reconstruído, com ênfase em valores existenciais, no reconhecimento dos direitos da personalidade, bem
como no conteúdo jurídico da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social.

Por outro lado, a falta de cuidado e o tratamento da criança a partir da vulnerabilidade padrão
já não garantem a proteção adequada a esse grupo de consumidores ainda mais fragilizado, motivo pelo
qual urge a necessidade de se aprofundar o conceito de vulnerabilidade, ou seja, favorecendo um olhar
mais sensível do Direito em relação ao público infantil. Daí a preferência de referir, em tais casos, a uma
vulnerabilidade existencial. Segundo Konder,
não obstante, é fundamental reconhecer que, quando se está diante de uma situação jurídica com
função existencial, o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana impõe ao intérprete um
tratamento diferenciado. A vedação de qualquer mercantilização, combinada com a satisfação do livre
desenvolvimento da personalidade, demanda que, quando estiverem em jogo aspectos da personalidade
como a integridade, a identidade e a privacidade, os instrumentos e procedimentos jurídicos aplicáveis
sejam de uma categoria diversa 10.

A vulnerabilidade existencial seria a situação jurídica subjetiva em que o titular se encontra sob
maior suscetibilidade de ser lesionado na sua esfera extrapatrimonial, impondo a aplicação de normas
jurídicas de tutela diferenciada para a satisfação do princípio da dignidade da pessoa humana11, a partir
da construção de mecanismos próprios que sejam compatíveis e se revelem adequados para tutelarem
bens existenciais.

Ressalte-se, ainda, que autores como Marques e Miragem preferem a expressão ‘hipervulnerabilidade’,
segundo eles é o grau excepcional (e juridicamente relevante) da vulnerabilidade geral dos consumidores,

9
PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Criança e dignidade da pessoa humana. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio
Marques de (coord.). Tratado luso-brasileiro da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 1001.
10
KONDER, Carlos Nelson. Vulnerabilidade patrimonial e vulnerabilidade existencial: por um sistema diferenciador. Revista
de Direito do Consumidor, São Paulo, a. 24, v. 99, p. 101-123, mai.-jun. 2015. p. 109.
11
KONDER, Carlos Nelson. Vulnerabilidade patrimonial e vulnerabilidade existencial: por um sistema diferenciador. Revista
de Direito do Consumidor, São Paulo, a. 24, v. 99, p. 101-123, mai-jun. 2015. p. 111.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 41-59, ago. 2020.


O papel da família como vetor educacional primário ao consumo responsável e seus desa os diante do
abuso da comunicação mercadológica infantil 47

tratam dessa terminologia para designar o aumento, agravamento, aquilo que é além do ordinário, que
está em outra dimensão mais sensível, que abre um espaço especial (no caso de proteção do mais fraco)12.
Todavia, preferiu-se a expressão ‘vulnerabilidade existencial’ para dar ênfase ao estado de formação da
criança, que, ainda, não tem consciência de seus direitos e de seu papel na sociedade global e pressões
do mercado. Nessa linha, a criança é o principal exemplo cuja vulnerabilidade existencial se associa à sua
personalidade em desenvolvimento. Desde o seu nascimento, ela demanda de amparo material para a
sua sobrevivência e amparo afetivo para a construção da personalidade de forma sadia e sociável. Assim,
a vulnerabilidade da criança requer efetiva tutela, qual seja qualitativa, para preservar e assegurar o seu
desenvolvimento psíquico e físico frente ao fenômeno da publicidade mercadológica abusiva e da relação
de poder que exerce sobre a vida desse grupo de consumidores.

Segundo Pitol, as crianças, por serem mais vulneráveis, reclamam proteção mais rigorosa do que
aquela com a qual são contemplados os adultos consumidores. Neste cenário, em que pese interessante
do ponto de vista mercadológico, não se mostra desarrazoado cogitar que fragilidades e características
próprias da pouca idade, explicitadas pelas crianças quando diante da sedução publicitária, possam ser
consideradas e exploradas no processo de segmentação do marketing. Receia-se, assim, que estratégias
direcionadas a elas se a gurem importantes justamente porque se mostram aptas a capturar e explorar,
com maior competência mercadológica, as características vinculadas à pouca idade, manifestadas diante
de apelos de marketing que lhes são atraentes, sedutores13.

Pitol a rma, também, que as crianças consomem os elementos que compõem a atrativa embalagem,
antes de consumirem o produto que sob ela é acondicionado. Some-se a isso, ainda, os traços que as tornam
mais frágeis, impulsivas e suscetíveis de verem-se seduzidas pelos apelos emanados do marketing14. Percebe-
se, então, que o mercado publicitário é uma poderosa indústria que exerce seu poder de convencimento e de
persuasão sobre as pessoas, em especial sobre as crianças, com a nalidade de explorar a sua vulnerabilidade.

Boaventura de Souza Santos parte da concepção de poder proposta por Foucault e vai procurar
identi car espaços de poder na sociedade, sem perder a dimensão que estes espaços estão relacionados e o
poder não é algo estático. O autor identi ca seis espaços de poder que são: “o espaço doméstico, o espaço
da produção; o espaço do mercado; o espaço da comunidade; o espaço da cidadania e o espaço mundial.
Em cada um veri ca-se uma forma preponderante de poder, de saber e de direito”15.

12
MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 2. ed. São Paulo: RT, 2014. p. 205.
13
PITOL, Yasmine Uequed. A publicidade infantil na sociedade de consumo: uma análise empírica da publicidade e de sua
(in) conformidade com o direito brasileiro. 2017. 162f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em
Direito, Faculdade de Direito, Universidade La Salle, Canoas, RS, 2017. p. 103-109.
14
PITOL, Yasmine Uequed. A publicidade infantil na sociedade de consumo: uma análise empírica da publicidade e de sua
(in) conformidade com o direito brasileiro. 2017. 162f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em
Direito, Faculdade de Direito, Universidade La Salle, Canoas, RS, 2017. p. 109.
15
SANTOS, Boaventura de Souza. Crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 2.ed. Porto: Edições
Afrontamento, 2002 apud STAUT JÚNIOR, Sérgio. Poder e contrato(s): um diálogo com Michel Foucault. In: FACHIN, Luiz Edson
et al. (coord.). Diálogos sobre direito civil: construindo uma racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 284.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 41-59, ago. 2020.


48 Dennis Verbicaro, Grace Baêta de Oliveira, Pastora do Socorro Teixeira Leal

O que se veri ca no mercado são modelos de convencimento em massa, com conteúdos abusivos e
direcionados, também, ao consumidor-criança, que sem discernimento para compreender o conteúdo da
mensagem, pode ser in uenciado, gerando consequências negativas para o seu bem-estar e para as relações
familiares, tais como stress, situações de desentendimentos oriundas do sentimento de exclusão por não se
achar pertencente a determinado grupo arti cial, ansiedade, compulsão e desejos adultos, mesmo sendo
biologicamente infantil, por cada vez mais ter sua pureza e a sociabilidade roubadas.

Em estudo recente, acerca da publicidade infantil na sociedade de consumo, Pitol destaca outros
problemas relacionados com o marketing dirigido às crianças, em especial a in uência que exerce sobre os
hábitos alimentares dessa parcela da população, contribuindo para o aumento da obesidade infantil e para
o desencadeamento de problemas de saúde daí advindos. A autora a rma que o estímulo ao consumo de
alimentos pode ser considerado, no mínimo, uma das causas aptas a provocar efeitos nocivos às crianças,
prejudicando, desta forma, sua saúde e seu desenvolvimento16.

Portanto, o que se observa são estratégias direcionadas aos interesses de ordem econômica em
prejuízo dos direitos das crianças, sujeitas ao consumo abusivo, que parece passar despercebido pelo
Estado, o que o torna negligente diante do seu dever constitucional de cuidado.

Nesse sentido, a rmam Verbicaro e Ohana,


[...] que a máquina estatal no seu atual gerenciamento, talvez por grande parte dos efeitos de globalização de
redução de fronteiras e ampliação da abertura a grandes empresas multinacionais, tem hodiernamente perdido
seu poder persuasivo e cada vez menos formulando estratégias ou políticas públicas, assim, recaindo sobre
entraves que inviabilizam a efetiva proteção de direitos na seara do consumidor17.

Elencam-se como alguns desses entraves a falta de investimentos e gestão de qualidade


direcionada ao consumidor, o gerenciamento político das agências reguladoras e o modelo político
liberal das relações consumeristas.

A ilusão consumista tornou o consumo a maior e mais poderosa força propulsora da sociedade,
desprezando os modos de se relacionar e exprimir os traços da personalidade, fazendo com que a
espontaneidade perdesse cada vez mais espaço para a materialidade, muitas vezes sem que os indivíduos
sequer percebam, já que a dinâmica da modernidade líquida mantém todos ocupados demais para re etir
sobre isso.

Para o mercado, a criança é um consumidor em formação, consumidor de hoje e do amanhã, e essa


in uência será fundamental para modular o seu comportamento, que no decorrer do seu desenvolvimento,

16
PITOL, YASMINE UEQUED. A publicidade infantil na sociedade de consumo: uma análise empírica da publicidade e de
sua (in) conformidade com o direito brasileiro. 2017. 162f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação
em Direito, Faculdade de Direito, Universidade La Salle, Canoas, RS, 2017. p. 93.
17
VERBICARO, Dennis; OHANA, Gabriela. A perda da in uência nas relações de consumo e a involução da proteção
administrativa daí decorrente. In: ROVER, José Aires et al. (coords.). Direito, governança, novas tecnologias e desenvolvimento
econômico sustentável, globalização e transformações na ordem social econômica. Zaragoza: Prensas de la Universidad de
Zaragoza, 2019. p. 128.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 41-59, ago. 2020.


O papel da família como vetor educacional primário ao consumo responsável e seus desa os diante do
abuso da comunicação mercadológica infantil 49

terá consequências nos processos de escolha de produtos ou serviços. Nesse cenário de interesses econômicos e
campanhas publicitárias que invadem o espaço doméstico, torna-se um grande desa o conciliar o tempo na vida
pro ssional dos pais, isto é, disponibilizar um momento de qualidade voltado para a educação, especialmente,
a do consumo responsável dos lhos; mas é preciso persistir na atuação contundente da família diante do dever
social de proteção integral do consumidor infantil, conforme postulam Silveira Junior e Verbicaro:
O setor produtivo se aproveita dessa frequência de trabalho para aliciar o público infantil de diversas formas. O
avanço tecnológico também forneceu diversas ferramentas de convencimento ao setor produtivo. O écran passa
a um novo membro familiar, o qual possui a mesma, senão a maior, in uência sobre a educação das crianças18.

A teoria do Diálogo das Fontes como mecanismo viabilizador da concretização dos direitos fundamentais
do consumidor-infantil

A partir da Constituição de 1988, o direito se depara com uma nova dimensão protetiva, marcada
pelos direitos fundamentais em face da vulnerabilidade, que se re ete diretamente no papel individualista
do Código Civil e o faz se adaptar a essa realidade, alterando o seu eixo central de caráter patrimonial para
a pessoa. Nesse sentido, o Diálogo das Fontes torna-se uma importante ferramenta para a irradiação e
concretização dos direitos fundamentais, possibilitando ao intérprete a busca da aplicação do ordenamento
jurídico por meio do diálogo entre os mecanismos normativos e doutrinários, difundindo preceitos
constitucionais como a dignidade da pessoa humana e a solidariedade social.

Assim, aplicação do ordenamento jurídico de forma sistemática tutela categorias de sujeitos em


situações jurídicas de vulnerabilidade, decorrentes de casos relacionados ao contexto social, econômico,
familiar e ambiental.

Segundo Leal,
[...] transladando-se para o discurso jurídico os elementos do conceito de vulnerabilidade, identi ca-se
diversos subsistemas normativos que são reconhecidos por regularem situações cuja tônica é a vulnerabilidade
que reside na desproporcionalidade da distribuição de poderes (jurídicos, econômicos e sociais) entre os
sujeitos da situação ou da relação jurídica, diminuindo a sua capacidade de resposta, a exemplo das legislações
laborais, de consumo e ambientais, bem como os setores do direito civil pertinentes ao direito de família e aos
direitos da personalidade19.

A característica relacionada a determinados grupos de sujeitos de direitos, como a vulnerabilidade,


passa a exigir métodos interpretativos que se ajustem às novas situações resultantes de práticas abusivas
consumeristas que possam causar danos à pessoa humana, que, nesse estudo especí co, trata-se do
consumidor infantil.

18
SILVEIRA JUNIOR, Antonio Morais da; VERBICARO, Dennis. A tutela normativa da publicidade infantil na relação de
consumo e seus desa os. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, a. 26, v. 112, jul.-ago. 2017. p. 14.
19
LEAL, Pastora do Socorro Teixeira. Diálogo das Fontes e coerência na concretização. In: VELOSO, Zeno; OLIVEIRA,
Frederico; BACELAR, Jeferson (orgs.). Ciência e interpretação do Direito: homenagem a Daniel Coelho de Souza. 2. ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 336.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 41-59, ago. 2020.


50 Dennis Verbicaro, Grace Baêta de Oliveira, Pastora do Socorro Teixeira Leal

É imprescindível registrar que nas relações de consumo, a pretensão de tutela à parte vulnerável,
como direito básico do consumidor, encontra previsão no inciso VII do art. 6º do CDC, que dispõe sobre o
acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais
e morais, individuais, coletivos ou difusos, bem como fundamento no princípio da vulnerabilidade,
princípio estruturante e informador da Política Nacional de Relações de Consumo, por força do disposto
no inciso I do art. 4.º do CDC, que reconhece a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo,
enquanto que a Teoria do Diálogo das Fontes se infere do art. 7º do CDC, a saber:
Art. 7°. Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções
internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas
autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia,
costumes e equidade.

Note-se que o art. 7º do CDC rea rma a ideia de sistema no ordenamento jurídico, em que as leis
não devem ser interpretadas de maneiras literal e isolada, devendo, portanto, re etir e materializar os ns
sociais a que elas se destinam.

O Diálogo das Fontes propõe a aplicação simultânea e coerente de diversas legislações – nacionais
e internacionais –, combinadas com os argumentos contidos em decisões judiciais, bem como pelo
entendimento doutrinário quali cado. A teoria surge para fomentar a ideia de que o Direito deve ser
interpretado com racionalidade e como um todo, de forma sistêmica.

Tributa-se o desenvolvimento da teoria do “Diálogo das Fontes” ao próprio alemão Erik Jayme,
no seu Curso Central de Haya de 1995, voltado para questões de direito internacional privado20. Em se
tratando do direito nacional, quem introduziu a referida Teoria no Brasil foi a professora Dra. Cláudia Lima
Marques, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Esclarece que o Diálogo das Fontes, no direito
brasileiro, deve ser entendido como a aplicação coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas, leis
especiais e gerais, de origem internacional e nacional, que possuem campos de aplicação convergentes, pois
é justamente a ausência dessa coerência que enseja as antinomias e os con itos de leis no tempo21.

A Teoria em comento, ao apresentar um novo modelo de como lidar com as fontes formais do
direito, rompe com os paradigmas clássicos, fazendo um diálogo entre as normas e os princípios jurídicos
sob a análise do intérprete e aplicador do Direito diante do caso concreto.

Segundo Verbicaro e Ataíde,


o pluralismo de fontes legislativas, ao contrário de apresenta-se como um olhar apressado sobre o que a questão
poderia sugerir, não signi ca selecionar a lei aplicável ao caso mediante o ato reducionista de afastar uma e
priorizar outra. Tanto nos casos de con ito entre leis quanto naqueles em que coexistem mais de microssistema
tutelando o mesmo grupo de sujeito (ainda que sob perspectivas distintas), há a necessidade de buscar-se

20
LEAL, Pastora do Socorro Teixeira. Diálogo das Fontes e coerência na concretização. In: VELOSO, Zeno; OLIVEIRA,
Frederico; BACELAR, Jeferson (orgs.). Ciência e interpretação do Direito: homenagem a Daniel Coelho de Souza. 2. ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 337.
21
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 6. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 615 e ss.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 41-59, ago. 2020.


O papel da família como vetor educacional primário ao consumo responsável e seus desa os diante do
abuso da comunicação mercadológica infantil 51

coordenação exível entre elas (e não a exclusão), como exigência de um sistema e ciente e justo, onde [sic] as
leis devem ser articuladas para realizar o sistema de valores constitucionais o respeito à dignidade humana22.

O Diálogo das Fontes tem sido bastante aplicado em situações que se sujeitam, concomitantemente,
às disposições contidas no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, que visam a proporcionar
tutela e caz e efetiva do bem jurídico em simetria com os postulados constitucionais, conforme dispõe o
art. 5º, inc. XXXII, da Constituição de 1988, a saber: “[...] o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do
consumidor”, prevalecendo, assim, a norma mais favorável ao consumidor.

Nessa toada, o direito se depara com um pluralismo de sujeitos a proteger, como o consumidor
infantil, que devido a sua peculiar condição de formação física, mental e cultural, apresenta uma
vulnerabilidade especial, a chamada hipervulnerabilidade.

Assim, o aprimoramento da proteção à pessoa faz nascer um novo direito privado, mais social e
solidário, atento às desigualdades, que utiliza o arcabouço normativo, ou seja, utiliza o pluralismo das fontes,
para a proteção do mais fraco diante dos riscos que as crianças são expostas pelos interesses econômicos
que circundam a comunicação mercadológica, mas que também estimula a ocupação dos novos espaços
políticos de deliberação.

Nesse sentido, a vulnerabilidade característica da criança é o fundamento para a existência de um


sistema especial de proteção, posto que surge a necessidade de se romper com a desigualdade material à
qual ela é submetida no seio social, a m de se atingir a “igualdade jurídica material”, ou seja, igualdade
de fato23.

Foi com este escopo, de se promover e tutelar a concretização dos direitos fundamentais da criança
e do adolescente que se recorreu ao Diálogo das Fontes, para se alcançar a dialética necessária voltada
para o cumprimento do dever social de proteção integral da criança, pela família, sociedade e Estado. Os
direitos fundamentais seriam as novas normas fundamentais, que in uenciariam o novo direito privado,
a ponto de o direito civil assumir, também, um papel social, como protetor da pessoa e como inibidores
de práticas abusivas24.

Segundo Leal,
o Código de Defesa do Consumidor (CDC) conferiu sequência à lógica racional material desencadeada
a partir da Constituição Federal de 1988. O CDC representou uma transformação signi cativa na lógica
das relações contratuais entabuladas no Brasil, pois sua orientação material é ostentada claramente na
pretensão da tutela à parte vulnerável da relação. Além disso, a consagração da boa-fé objetiva se fez

22
VERBICARO, Dennis; ATAÍDE, Camille da Silva Azevedo. Diálogo das Fontes: a gestão democrática nas escolas como
instrumento de efetivação do direito da criança à educação para o consumo. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, a.
28, v. 121, jan.-fev. 2019. p. 162.
23
SILVEIRA JUNIOR, Antonio Morais da; VERBICARO, Dennis. A tutela normativa da publicidade infantil na relação de
consumo e seus desa os. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, a. 26, v. 112, p. 201-226, jul.-ago, 2017. p. 4.
24
MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 2. ed. São Paulo: RT,
2014. p. 223.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 41-59, ago. 2020.


52 Dennis Verbicaro, Grace Baêta de Oliveira, Pastora do Socorro Teixeira Leal

perceber, o que sintetiza a inserção de elemento de ética social numa posição estratégica em um referido
corpo normativo25.

Percebe-se então, que o consumidor infantil alberga, ainda, uma especial valoração e a necessidade
de tutelar direitos fundamentais, em razão do reconhecimento da sua condição extraordinária. Nesse
diapasão, observa-se uma visão contemporânea de pluralidade, normativa, de sujeitos e de fontes de
proteção, em que o direito privado é chamado a dialogar com o direito público, com o to de tutelar os
grupos vulneráveis, dentre eles o consumidor infantil, em um sistema privado plural, mutável e complexo.

Em um mundo globalmente capitalizado, o indivíduo se tornou refém de seus impulsos


materialistas que, sobrevalorizados pelos meios de publicidade e convencimento em massa, são
vendidos como verdadeiras necessidades de consumo, supostamente fundamentais para o bem-estar
físico e psíquico na lógica das necessidades arti ciais acrescentes e sob a premissa de um objeto de
desejo sempre oscilante.

Dentro desse contexto é preciso afastar o individualismo jurídico, ultrapassando a visão simplista
de que o problema acerca da falta da proteção da norma jurídica estaria na dogmática tradicional, como se
uma concepção plural de direito não dependesse, também, da construção de uma nova identidade cívica
para o consumidor, apresentando-se o ideal de solidariedade como uma forma verdadeiramente autêntica
de se compreender a realidade na qual está inserida a relação de consumo.

Para Verbicaro,
[...] o individualismo distancia o cidadão de uma atitude política mais gregária e participativa, especialmente
quando o fracasso das instâncias de representação política fez o cidadão perder a própria autoestima cívica,
deixando de acreditar no potencial transformador de sua atuação, seja individual ou coletivamente26.

Uma participação política efetiva é fundamental para o próprio sentido de vida, pois não há
frustração maior do que desperdiçar a experiência e, ao nal da vida, constatar-se que, na verdade, deixou-
se de viver. É importante resgatar o sentido do prazer solidário, único capaz de modi car estruturas viciadas
de poder e opressão.

A partir dessa propagação de pluralismo, será possibilitada a participação dos consumidores em


um sistema de livre oportunidade para formular suas preferências e indicar os melhores caminhos para
concretizar suas necessidades de consumo no plano coletivo, além disso, promoverá esse re exo no direito.

Observa-se que, a sociedade brasileira sempre padeceu de grandes males que atravancaram
seu desenvolvimento social e amadurecimento político, a saber: inconsciência, moral, miopia, crítica,
comodismo e ênfase ao individualismo, nesse diapasão, o Direito deverá ser menos individualista e mais

25
LEAL, Pastora do Socorro Teixeira. Diálogo das Fontes e coerência na concretização. In: VELOSO, Zeno; OLIVEIRA,
Frederico; BACELAR, Jeferson (orgs.). Ciência e interpretação do Direito: homenagem a Daniel Coelho de Souza. 2. ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 332.
26
VERBICARO, Dennis. Consumo e cidadania: identi cando os espaços políticos de atuação quali cada do consumidor. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 24.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 41-59, ago. 2020.


democrático27, favorecendo o reconhecimento dos direitos individuais, também denominados de ‘trunfos
políticos’, porém, deverá prestigiar àqueles de repercussão coletiva, por terem maior penetração social e
capacidade de inibir comportamentos prejudicais à estabilidade da coletividade28.

Logo, o grande desa o da sociedade é construir um espaço político de atuação quali cada do
consumidor, voltado à solidariedade, para que as condutas abusivas fortaleçam a ideia de uma autoridade
partilhada, mediante a união de grupos que assumam o compromisso de cobrar responsabilidades no
plano judicial, dos grupos movidos apenas por interesses econômicos.

Nesse sentido, surge o conceito de cidadania instrumental do consumidor, por meio da qual a
igual possibilidade de participação no processo político-deliberativo sobre as normas de consumo é que
confere a noção de isonomia entre consumidores, criando uma espécie de solidariedade entre “estranhos”.
E é justamente a partir dessa percepção de ver o outro como sujeito de direitos e como integrante da
mesma categoria de consumidores que fortalece os laços cívicos de empatia social e comprometimento
para com o grupo. O que se propõe é fomentar a ideia de solidariedade com o objetivo de incentivar
a utilização de melhores instrumentos de emancipação cívica, por meio do Direito do Consumidor,
principal difusor dos direitos individuais e coletivos da sociedade, diante de condutas econômicas
predatórias e persuasivas.

Abre-se, portanto, espaço para a modernização social, com base na maior participação do
consumidor na sociedade, de modo que as suas respectivas preferências e necessidades sejam consideradas
e discutidas em condições de igualdade no debate político, a m de tutelar direitos não só de consumidor
adulto, mais, principalmente, do consumidor infantil.

O papel da família como vetor educacional primário ao consumo responsável infantil

Pode-se dizer que o consumismo é uma ideologia que se tornou uma das características culturais
mais marcantes da sociedade contemporânea, cujo impacto pelas mídias de massa atinge a todos, sendo
estimulados a consumir de modo inconsequente e impulsivo.

O mercado, então, percebeu a importância da criança; primeiro, pelo apelo emocional ao in uenciar
os pais a comprarem; segundo, pela falta de discernimento; e, terceiro, porque são impactadas desde
muito jovens e tendem a ser mais éis às marcas e ao próprio hábito consumista que lhes é imposto. Por
vivenciarem uma fase de peculiar desenvolvimento e, portanto, sendo mais vulneráveis, as crianças sofrem
cada vez mais cedo com as graves consequências relacionadas aos excessos do consumismo, mencionadas
alhures, o que torna a temática de extrema importância e de interesse geral para a família e educadores.

27
VERBICARO, Dennis. Consumo e cidadania: identi cando os espaços políticos de atuação quali cada do consumidor. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 29.
28
VERBICARO, Dennis. Consumo e cidadania: identi cando os espaços políticos de atuação quali cada do consumidor. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 79.
54 Dennis Verbicaro, Grace Baêta de Oliveira, Pastora do Socorro Teixeira Leal

Dias diz que “a família é o primeiro agente socializador do ser humano. É tanto uma estrutura
pública como uma relação privada, pois identi ca o indivíduo como integrante do vínculo familiar e
também como partícipe do contexto social”29.

É imperioso reconhecer a importância que o núcleo familiar exerce sobre o comportamento da


criança em relação ao acesso à publicidade, no ambiente doméstico, no que diz respeito ao controle e
acompanhamento do horário e conteúdo publicitário relacionado às novidades que o mercado de consumo
produz, pois a criança passa a ser estimulada pela super cialidade imediata promovida pelo desejo do
consumo de bens e serviços.

Nota-se que as técnicas de persuasão desenvolvidas pelos pro ssionais especializados na área de
publicidade e que são utilizadas para o convencimento do consumidor estão cada dia mais atrativas e
so sticadas, o que demonstra o cuidado redobrado dos pais, mesmo sabendo que existam normativas que
protegem o consumidor-infantil. É preciso estar atento ao assédio do mercado.

Para ilustrar a questão da conduta abusiva, traz-se o emblemático caso do julgamento do Recurso
Especial nº 1.558.08646, que considerou a publicidade abusiva por duas práticas, por violar as regras do
CDC, com destaque para a violação direta da regra legal esculpida no § 2º do artigo 37 e no inciso I do artigo
39, bem como o disposto no art. 2º, inciso VIII da Resolução nº 163 do Conselho Nacional dos Direitos
da Criança e do Adolescente (CONANDA), que caracteriza como abusiva a publicidade, especialmente o
da promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis ou com apelos ao público infantil.
No referido julgamento, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) declarou ilegal a campanha “É
Hora de Shrek”, veiculada em 2007 pela empresa Pandurata, detentora da marca Bauducco, por caracterizar
publicidade abusiva dirigida às crianças, por se utilizar da ingenuidade e imaturidade do público infantil.
Na campanha em tela, as crianças precisavam juntar cinco embalagens de qualquer produto da linha
‘Gulosos Bauducco’ e pagar o valor de R$5,00 para ganhar um relógio exclusivo do lme ‘Shrek’, o que é
vedado pelo ordenamento jurídico, publicidade que contenha apelo imperativo30.

Outro julgado interessante e que foi apreciado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, refere-
se ao consumo de pipoca aliada à bebida alcoólica (cerveja), de forma indistinta, mensagem capaz de

29
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10. ed. São Paulo: RT, 2015. p. 30-31.
30
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 2. Turma. Recurso Especial n.º 1558086/SP. Relator: Ministro Humberto Martins.
Diário da Justiça Eletrônico. São Paulo. 15 abr. 2016. “PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO CIVIL
PÚBLICA. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. SÚMULA 284/STF. PUBLICIDADE DE
ALIMENTOS DIRIGIDA À CRIANÇA. ABUSIVIDADE. VENDA CASADA CARACTERIZADA. ARTS. 37, § 2º, E 39, I, DO
CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. 1. Não prospera a alegada violação do art. 535 do Código de Processo Civil, uma
vez que de ciente sua fundamentação. Assim, aplica-se ao caso, mutatis mutandis, o disposto na Súmula 284/STF. 2. A hipótese
dos autos caracteriza publicidade duplamente abusiva. Primeiro, por se tratar de anúncio ou promoção de venda de alimentos
direcionada, direta ou indiretamente, às crianças. Segundo, pela evidente “venda casada”, ilícita em negócio jurídico entre adultos
e, com maior razão, em contexto de marketing que utiliza ou manipula o universo lúdico infantil (art. 39, I, do CDC). 3. In casu,
está con gurada a venda casada, uma vez que, para adquirir/comprar o relógio, seria necessário que o consumidor comprasse
também 5 (cinco) produtos da linha “Gulosos”. Recurso especial improvido”.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 41-59, ago. 2020.


O papel da família como vetor educacional primário ao consumo responsável e seus desa os diante do
abuso da comunicação mercadológica infantil 55

induzir o público infanto-juvenil a se comportar de maneira prejudicial à sua saúde. O marketing realizado
pela cerveja nos invólucros das pipocas comercializadas pela apelante caracterizou publicidade abusiva,
haja vista que deveria ter sido dirigida somente ao público maior de idade, fato que não ocorreu, já que a
venda foi realizada de forma indistinta e direcionada a qualquer faixa etária. Além disso, o fato de conter a
cláusula de advertência “aprecie com moderação”, não tem o condão de afastar a abusividade da promoção,
uma vez que a comercialização de bebidas alcoólicas é proibida para menores de 18 (dezoito) anos31.

No último julgado, o Tribunal de Justiça do Estado São Paulo negou o recurso interposto pela
fabricante Mattel, que desde 2012 tentava a anulação de uma multa de mais de R$ 400 mil aplicada pelo
Procon-SP. O relator do processo constatou que as peças publicitárias desconsideraram a imaturidade do
discernimento do público infantil. O referido julgado, reúne várias condutas consideradas abusivas, que
se aproveitam da condição da criança para induzi-la a erros, como no caso da embalagem do produto
“Real Casa com Boneca”, que ostenta diversos acessórios que não integram o brinquedo; a embalagem
do produto “Boneca Little Mommy Real Baby” contém a expressão “Eu falo mais de 80 frases”, o que
não condiz com o informativo, con gurando-se, portanto, como publicidade enganosa; a publicidade
televisiva relacionada ao produto “Max Steel Turbo Mission” representa abusividade na medida em que,
aproveitando-se da de ciência de julgamento da criança, revela representação de bonecos movimentando-
se sem a interferência humana32.

Percebe-se, na conduta da recorrente, a clara intenção de direcionar à parte vulnerável o encargo de


interpretar corretamente o reclamo, desvirtuando a lógica protetiva imposta pela legislação consumerista.
A vulnerabilidade agravada, intrínseca do público infantil e evidenciada nos julgados supracitados, está
diretamente relacionada ao conteúdo das campanhas publicitárias que utilizam técnicas para atrair e
induzir esse consumidor, sobrepondo sempre o interesse econômico.

31
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Quinta Câmara Cível. Apelação Cível 3238162 PR 0323816-2. Relatora
Desembargadora Roseane Arão de Cristo Pereira. Diário de Justiça do Paraná. 27 jun. 2006. “Mandado de segurança. Multa.
PROCON/PR. Competência para a autuação. Propaganda de bebida alcoólica em invólucros de pipoca. Comercialização de
forma indistinta. Possibilidade de induzir o consumidor infanto-juvenil a se comportar de maneira prejudicial à sua saúde.
Cláusula de advertência. Não descaracterizadora da infração. Propaganda abusiva caracterizada. [...]. 2. A propaganda de cerveja
realizada nos invólucros de pipoca comercializadas pela apelante, caracterizou a propaganda abusiva, haja vista, que ela deveria
ter sido dirigida somente ao público maior de idade, fato que não ocorreu, pois a venda foi realizada de forma indistinta e a
qualquer faixa etária. 3. O consumo de pipoca aliada à propaganda de bebida alcoólica (cerveja) é capaz de induzir o público
infanto-juvenil a se comportar de maneira prejudicial à sua saúde. 4. O fato de a propaganda conter a cláusula de advertência
“Aprecie com moderação”, não tem o condão de afastar a abusividade da promoção, haja vista, que a comercialização de bebidas
alcoólicas é proibida para menores de 18 (dezoito) anos. Apelação desprovida”.
32
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. 6. Câmara de Direito Público. Apelação 0021696-50.2011.8.26.0053. Relator:
Décio Leme de Campos Junior. Diário O cial [da] União. 18 jun. 2018. “PRELIMINAR Nulidade da decisão por falta de
fundamentação Inocorrência. Não acolhimento. AÇÃO DECLARATÓRIA. Auto de Infração que resultou na multa aplicada pelo
PROCON Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). Reconhecimento das infrações cometidas. Redução da multa
imposta. Inviabilidade. Valor que se mostra razoável e proporcional, segundo os critérios da legislação consumerista. Sentença
mantida. Recurso improvido”. Disponível em: https://tj-sp.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/592813195/216965020118260053-
sp-0021696-020118260053/inteiro-teor-592813259?ref=serp. Acesso em: 29 jun. 2019.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 41-59, ago. 2020.


56 Dennis Verbicaro, Grace Baêta de Oliveira, Pastora do Socorro Teixeira Leal

A sociedade de consumo prospera enquanto consegue tornar perpétua a não satisfação de seus
membros, daí a importância da família, no espaço doméstico, atuar diretamente no monitoramento de
acesso à publicidade, em conjunto com a prática constante do diálogo, afastando a ideia de ostentação
promovida pela indústria cultural e fortalecendo o entendimento sobre o consumo utilitário.

Os pais precisam estar presentes na educação dos lhos e orientá-los quanto a real necessidade
e escolha de produtos, visando protegê-los de conteúdos e assédios consumeristas inadequados, que de
forma camu ada parecem oxigenar a fantasia infantil, quando, na verdade, induzem comportamentos
imediatistas e impulsivos. Esse acompanhamento terá repercussões na reprodução desse comportamento
fora do ambiente familiar, se estendendo para o convívio na escola, contribuindo para que as crianças
reproduzam atitudes baseadas no consumo consciente e responsável.

É fundamental que as comunidades familiar e escolar, juntas, possam atuar na educação infantil,
a partir de espaços direcionados às reuniões pedagógicas, em que os pais e professores possam debater
e implementar atividades que incluam a educação para o consumo, despertando o interesse da criança
a partir de práticas criativas e lúdicas, bem como a organização de palestras e feiras especí cas sobre o
tema nas quais haja a interação e troca de experiências entre os alunos, objetivando expandir as atividades
curriculares complementares e a construção de uma pedagogia do consumo voltada, também, para a
educação nanceira que componha o planejamento educacional.

Além disso, a família, como referência, precisa acompanhar e monitorar aplicativos e sites, que
muitas vezes são meios utilizados para compartilhar comportamentos e estilos por meio de per s criados
nas redes sociais, como é o caso do fenômeno – digital in uencer, que cada vez mais atrai seguidores e
gera renda com seus conteúdos na internet, todavia esse conteúdo, muitas vezes não se adequa ao público
infanto-juvenil.

O trabalho em conjunto da escola e da família direcionado à economia comportamental infanto-


juvenil e à introdução básica de direitos consumeristas reforçará a educação e o conhecimento adquirido
será empregado durante toda a sua vida adulta.

Considerações Finais

No decorrer da pesquisa foi possível demonstrar que o assédio publicitário pode prejudicar o
desenvolvimento psicológico e social da criança, que na condição de consumidor hipervulnerável, precisa
ser protegida pela tríade composta pela família, sociedade e Estado. Diante dos avanços tecnológicos e da
rapidez com que as informações trafegam nos meios de comunicação, vislumbra-se, crescentemente, a
tutela normativa contra a publicidade ilícita direcionada ao consumidor infantil, a qual é regulamentada
pelo Código de Defesa do Consumidor e pelo Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (CONAR),
no sentido da scalização mais rigorosa por parte do Poder Público.

Além da tutela normativa, cabe à sociedade, enquanto coletividade, exercer seu direito
verdadeiramente plural e inclusivo, com a nalidade de oportunizar novos mecanismos de tutela material

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 41-59, ago. 2020.


O papel da família como vetor educacional primário ao consumo responsável e seus desa os diante do
abuso da comunicação mercadológica infantil 57

e processual, a partir de uma perspectiva de grupo, fundamentada no diálogo das fontes que utiliza o
ordenamento jurídico, de forma sistemática, para a promoção e concretização dos direitos fundamentais
do consumidor, em especial da criança, na defesa de seus direitos.

O Estado Democrático de Direito não se esgota no ordenamento jurídico, nem tampouco é possível
resolver o problema moral e os con itos intersubjetivos de muitas sociedades contemporâneas, por meio
do direito positivo. Faz-se necessário empoderar a família dentro desse contexto, sobretudo quando o
próprio Estado já admitiu, como algo inevitável, o compartilhamento de sua autoridade política por sua
impossibilidade de combater, sozinho, a so sticação das práticas abusivas no mercado de consumo.

Conforme mencionado alhures, a máquina estatal atualmente, in uenciada pelos efeitos


da intensi cação do processo de internacionalização das economias capitalistas, que se convencionou
chamar de globalização veio contribuir para a atuação de um Estado mínimo, que muitas vezes re ete na
inviabilização efetiva da proteção de direitos do consumidor. Portanto, o sentimento de solidariedade é
essencial para um novo entendimento e consciência rumo ao desenvolvimento da sociedade, incentivando
sua participação e sua capacidade decisória na condição de consumidor diante de condutas alienadoras
e persuasivas advindas da atividade econômica dinâmica e massi cada, principalmente quando essa
atuação for para preservar direitos fundamentais da criança, desrespeitados pela prática da publicidade e
da comunicação mercadológica abusiva.

Todavia, cabe à família, como berço inicial das relações e de aprendizado, a função de orientação
primária para o consumo responsável, a partir da prática do diálogo no espaço doméstico, que combata
a indústria do consumo e incentive a sociabilização da criança, inibindo, assim, a concorrência que a
publicidade instaura com a família e com a escola. Portanto, em razão do exercício do poder parental, além
de orientar, cabe aos pais decidir a respeito da utilização, pelos lhos, dos meios de comunicação que lhes
são disponíveis e que os expõem a todo e qualquer tipo de publicidade.

Em razão disso, o diálogo é essencial para combater a dependência de modelos comportamentais


estimulados desde cedo pela publicidade, direcionada à criança, no que diz respeito ao consumismo
exacerbado e à felicidade arti cial, propagada pelas estratégias manipuladoras do mercado.

Por m, a pesquisa destacou que as comunidades familiar e escolar podem combater a cultura do
consumo imediatista, descontruindo a ideia de consumo e de felicidade arti cial, ao propor, nas escolas,
atividades criativas, lúdicas e neurolinguística, palestras e feiras voltadas para a noção básica de consumo, tais
como noções de prioridade, utilidade e educação nanceira, auxiliando na formação e na conscientização
dos alunos, enquanto consumidores futuros, que serão essenciais ao exercício da cidadania.

Ao lado das ações escolares, a família, no seu espaço doméstico e como vetor educacional primário,
precisa acompanhar, limitar e estabelecer critérios de controle quanto ao uso e monitoramento de
aplicativos e sites, bem como o incentivar leituras educativas, que despertem o interesse pela temática e
combatam a ostentação e a necessidade arti cial, promovendo a valoração do ser ao invés do ter. Nesse
sentido, também, torna-se imprescindível o apoio do Estado à rede pública, para orientar e desenvolver

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 41-59, ago. 2020.


58 Dennis Verbicaro, Grace Baêta de Oliveira, Pastora do Socorro Teixeira Leal

atividades voltadas aos alunos e às famílias acerca de informações direcionadas ao assédio publicitário e
aos direitos do consumidor, em especial o da criança e do adolescente.

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O papel da família como vetor educacional primário ao consumo responsável e seus desa os diante do
abuso da comunicação mercadológica infantil 59

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Prensas de la Universidad de Zaragoza, 2019.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 41-59, ago. 2020.


A ausência da atividade scalizadora na lei geral de
proteção de dados pessoais e sua ine cácia

Diogo de Calasans Melo Andrade


Universidade Tiradentes, Aracaju, SE, Brasil
http://orcid.org/0000-0003-2779-9185

Roberta Hora Arcieri Barreto


Universidade Tiradentes, Aracaju, SE, Brasil
http://orcid.org/0000-0002-3857-2181

Resumo: O Brasil passou a compor o rol de países que possuem legislação


especí ca voltada à proteção de dados pessoais na rede mundial de
computadores. Trata-se da Lei n. 13.709 aprovada em agosto de 2018,
cujo veto do Presidente da República contra a criação de um ente
scalizador denominado Autoridade Nacional da Proteção de Dados e
Canoas, v. 8, n. 2, 2020 posterior edição de Medida Provisória, traz incertezas quando a e cácia
da Lei. Assim, o presente artigo tem por objetivo apresentar, por meio
Artigo da análise crítica da Lei Geral de Proteção de Dados, considerações a
respeito da e cácia ou ine cácia da Lei, inicialmente diante da ausência
Recebido: 03.10.2018 da gura administrativa independente que exerceria a atividade
scalizadora e em seguida, diante de um órgão scalizador ligado
Aprovado: 16.09.2019
à Presidência da República. A metodologia recorreu a abordagem
Publicado: 08.06.2020 qualitativa do problema, sendo a pesquisa de natureza exploratória,
utilizando-se do procedimento de pesquisa bibliográ ca e documental
DOI http://dx.doi.org/10.18316/REDES.v8i2.5407
com a análise de doutrinas, documentos, legislações e demais textos
cientí cos pertinentes à temática, para ao nal concluir que, em que
pese a Lei Geral de Proteção de Dados tenha sido alicerçada no conjunto
de leis vigentes sobre o tema, não terá a mesma efetividade adquirida na
União Europeia, uma vez que a Autoridade Fiscalizadora autonômica
é o que fundamenta toda a estrutura normativa da proteção de dados
hodiernamente defendida no Brasil.
Palavras-chave: E cácia; Ine cácia; Lei Geral de Proteção de Dados;
Autoridade Nacional da Proteção de Dados.

e absence of the inspection activity in the general law of


personal data protection and the ineffectiveness of the law
Abstract: Brazil has started to compose the list of countries that have
speci c legislation focused on the protection of personal data in
the worldwide computer network. is is Law No. 13,709 approved
in August 2018, whose disallowed of the President of the Republic
against the creation of a supervisory authority called the National Data
Protection Supervisor and subsequent edition of Provisional Measure,
62 Diogo de Calasans Melo Andrade, Roberta Hora Arcieri Barreto

brings uncertainties when the effectiveness of the law. erefore, this article aims to present, through the critical
analysis of the General Law of Data Protection, considerations regarding the efficacy or ineffectiveness of the law,
initially faced with the absence of the independent administrative gure that would exercise the supervisory activity
and then, towards a supervisory organ related to the presidency of the Republic. e methodology used was based
on a qualitative approach to the problem, and the research was exploratory in nature, using the bibliographic and
documentary research procedure, through the analysis of doctrines, documents, legislations and Other scienti c
texts relevant to the theme, to nally conclude that, in spite of the Brazilian General Data Protection Act has being
grounded in the of effective norms, will not have the same effectiveness as the European Union, whereas that the
independent inspector authority is the basis for the entire normative structure of data protection that has been
defended in Brazil.
Key-words: Effectiveness; Ineffectiveness; General Data Protection Act; National Data Protection Authority.

Introdução

A parca legislação brasileira em torno de questões concernentes à privacidade de informações


na Internet, garantiam o direito à intimidade e ao sigilo insu cientemente, além de concebida em um
cenário díspar da conjuntura tecnológica contemporânea. Por conseguinte, sociedade empresárias,
provedores e operadoras que atuam na área das comunicações não conferiam o suporte ideal almejado
pelos consumidores e não se viam compelidas a preservar o sigilo de dados con denciais.

Ainda em razão da ausência de legislação especí ca, o descaso na manipulação de dados pessoais
atingia, inclusive, o âmbito governamental. Exemplo disso é a suspeita de venda de dados pessoais pelo Serviço
Federal de Processamento de Dados – SERPRO. Em junho de 2018 o Ministério Público do Distrito Federal1
apontou a venda milionária de dados, conhecida como Extração de CPFs e CNPJs, transação pela qual foram
comercializadas pela SERPRO informações como endereço, nome da mãe, sexo e data de nascimento.

A necessidade de uma legislação especí ca para tratar o tema vem sendo discutida no Brasil desde
2003 e resulta da compilação e aperfeiçoamento de projetos de lei amplamente discutidos que tramitaram
no Senado, PLS 330/2013 e na Câmara dos Deputados, PL 4060/2012 e PL 5276/2016. O Brasil passou,
então, a fazer parte do rol de países que possuem legislação especí ca voltada à proteção de dados pessoais
com a Lei n. 13.709 aprovada em agosto de 2018 e com entrada em vigor projetada após 18 meses da data
de publicação o cial.

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD é lei especí ca inspirada no Regulamento Geral
de Proteção de Dados2 (rígidas leis que regem acerca da privacidade na União Europeia e in uenciam
relações por todo o mundo) e determina o modo pelo qual os dados de cidadãos podem ser colhidos e
tratados no Brasil, prevendo sanções correspondentes para cada violação do disposto na lei.

1
Informações publicadas no site do Ministério Público do Distrito Federal. Disponível em: <http://www.mpd.mp.br/portal/
index.php/comunicacao-menu/sala-de-imprensa/noticias/noticias-2018/10099-sites-de-consulta-de-informacoes-pessoais-de-
brasileiros-podem-estar-utilizando-base-de-dados-de-orgaos-publicos>. Acesso em: 07 de dezembro de 2018.
2
Regulamento Geral de Proteção de Dados. Em inglês, General Data Protection Regulation – GDPR. Entrou em vigor em 2017
e regulamenta a questão da proteção de dados pessoais para os países da União Europeia. GDPR. General Data Protection
Regulation. 2016. Disponível em: <https://ec.europa.eu/commission/priorities/justice-and-fundamental-rights/data-
protection/2018-reform-eu-data-protection-rules_e>. Acesso em 11 dez. 2018.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 61-73, ago. 2020.


A ausência da atividade fiscalizadora na lei geral de proteção de dados pessoais e sua ineficácia 63

A LGPD acarreta em modi cações que intervirão, principalmente, de forma a compelir os excessos
cometidos no tratamento de dados pessoais no Brasil que há tempos violam direitos fundamentais de
cidadãos brasileiros, tais como a privacidade e autonomia para decidir como quem acessa e o modo pelo
qual serão acessadas informações pessoais.

Os dez capítulos e 65 artigos que versavam sobre a manipulação e tratamento de dados, principalmente
em meios digitais, não foram integralmente aprovados. Dentre os vetos então Presidente da República,
Michel Temer, houve oposição à criação da Autoridade Nacional da Proteção de Dados – ANPD, espécie
de agência reguladora responsável por de nir parâmetros e monitorar infrações à nova legislação, cuja a
inicial inexistência e posterior criação de uma autoridade scalizadora, por meio de Medida Provisória,
desconforme à originalmente prevista, trouxe certo ceticismo quanto à e cácia ou ine cácia da lei.

Considerando a recente aprovação da LGPD e a importância de um órgão competente para


scalizar a proteção de dados no Brasil, o presente texto pretende analisar criticamente o veto presidencial
e a consequente e cácia ou ine cácia da lei, sem a pretensão de esgotar a matéria. Dessa forma, incialmente
serão realizados breves apontamentos a respeito da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, com
levantamento dos principais dispositivos e vetos impostos à lei, seguido da análise especí ca do veto à
criação da ANPD e ponderação no que tange às consequências do veto.

A metodologia utilizada promoveu abordagem qualitativa do problema, sendo a pesquisa de natureza


exploratória, utilizando-se do procedimento metodológico da pesquisa documental e bibliográ ca com a
análise de doutrinas, documentos e demais textos cientí cos que guardam pertinência com o tema.

Violações recentes que demonstram a necessidade de legislação especí ca e e caz

Não são poucos os incidentes envolvendo o vazamento de dados de usuários de redes sociais.
Ocorrências recentes de exposição fortuita ou intencional de dados pessoais envolveram grandes expoentes
como Twitter e Facebook.

Em 2014 foi publicado artigo cientí co3 cujo objetivo de pesquisa era veri car se usuários de redes
sociais eram suscetíveis e in uenciados pelo conteúdo que liam nas redes sociais, a partir da veri cação
das publicações dos usuários a medida em que eram expostos a notícias positivas ou negativas. O artigo
justi cava a legalidade da pesquisa considerando que ao aceitar os termos de uso do Facebook, os usuários
consentiam que suas informações fossem utilizadas para ns cientí cos. Assim, foram acessados dados de
mais de 600 mil usuários que teriam aceitado as políticas de privacidade da rede social4.

3
KRAMERA, Adam; GUILLORY, Jamie; HANKOCK, Jeffrey. Experimental Evidence of massive-scale emotional contagion
through social networks. PNAS. Princeton, v. 111, n. 29, 2014.
4
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p.
233-235.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 61-73, ago. 2020.


64 Diogo de Calasans Melo Andrade, Roberta Hora Arcieri Barreto

Recentemente, o Facebook reconheceu o vazamento de fotos de mais de 6,8 milhões de usuários5,


quando um erro permitiu que outros aplicativos acessassem fotos postadas na rede social sem o intuito
de compartilhamento com amigos ou outros usuários. Ainda no segundo semestre de 2018, o Facebook
anunciou uma falha de segurança que expôs cerca de 50 milhões de usuários da rede social, mas não indicou
quais dados dos usuários foram acessados por hackers6 e em novembro do mesmo ano, o Twitter alertou
seus usuários, em comunicado o cial7, acerca da divulgação de dados pessoais após alegada “atividade
anormal” que revelava o país associado ao número de telefone do usuário e se a conta estava bloqueada pela
própria rede social, mas não informava quantos usuários foram afetados pelo problema.

A recorrência de incidentes envolvendo violações a direitos dos titulares de dados pessoais na Internet
é fator que provoca o movimento de busca pela legislação especí ca e e caz no Brasil, além do credenciamento
para que o país integre a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OECD.

Esses são somente alguns exemplos práticos de como os dados pessoais podem ser compartilhados,
vendidos ou cedidos em ambientes virtuais, atingindo um número exorbitante de indivíduos. Tais situações
trazem à tona debates em torno dos limites de consentimento dos titulares de dados pessoais.

Os casos concretos acima delineados demonstram que o mero “aceite” nos termos de uso de uma
rede social, potencialmente causa violação aos direitos de personalidade dos usuários. Nesse sentido,
Bruno Bioni pontua que se faz necessário reunir informações a m de veri car a integridade do uxo de
informação e observar o “valor social da privacidade informacional e negociabilidade limitada dos direitos
de personalidade”8.

Principais aspectos da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais

As novas tecnologias apresentam provocações acerca da tutela da dignidade humana, compelindo


ao reexame contínuo dos direitos da personalidade. São os direitos da personalidade particularidades
incorpóreas ou corpóreas que projetam a pessoa humana na sociedade. Dentre outras singularidades, o
nome, a honra, e integridade física e psíquica, conformam os prolongamentos e projeções do indivíduo.
Em razão de tais características, que distinguem o ser humano de outros seres e entre seus semelhantes,
o direito salvaguarda os indivíduos das ofensivas que atingem a sua individualidade perante a sociedade9.

5
FACEBOOK a rma que nova falha permitiu acesso a fotos de 6,8 milhões de usuários. G1, 4 dez. 2018. Disponível em:
http://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2018/12/14/facebook-a rma-que-nova-falha-permitiu-acesso-a-fotos-de-
68-milhoes-de-usuarios.ghtml. Acesso em: 14 dez. 2018.
6
FACEBOOK descobre ataque virtual que afeta quase 50 milhões de per s. G1, 29 set. 2018. Disponível em: https://g1.globo.
com/economia/tecnologia/noticia/2018/09/28/facebook-diz-que-descobriu-falha-na-seguranca-que-afeta-quase-50-milhoes-
de-per s.ghtml. Acesso em: 14 dez. 2018.
7
PROBLEMA relacionado a um dos nossos formulários de suporte. Twitter. Disponível em: https://help.twitter.com/pt/support-
form. Acesso em: 14 dez. 2018.
8
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 238.
9
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 238. p. 63.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 61-73, ago. 2020.


A ausência da atividade fiscalizadora na lei geral de proteção de dados pessoais e sua ineficácia 65

Sob esse prisma, o dado pessoal é adstrito à esfera do indivíduo e assim compreendido na categoria
de direitos da personalidade10. No mesmo sentido, Laura Schertel Mendes defende o direito fundamental
à proteção de dados pessoais por “tratar-se de direito à personalidade, já que os dados armazenados
representam a pessoa na sociedade”11.

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD foi editada com o intuito de assegurar a privacidade
e resguardar direitos fundamentais ao disciplinar a metodologia a ser empregada na manipulação de dados
pessoais, tanto na esfera privada quanto pelo poder público e ainda, posicionar o Brasil no mesmo patamar
de outros países que são paradigmáticos em legislação referente a proteção de dados. Segundo Patrícia
Peck Pinheiro12 “é uma legislação extremamente técnica, que reúne uma série de itens de controle para
assegurar o cumprimento das garantias previstas cujo lastro se funda na proteção dos direitos humanos”.

Sua importância torna-se evidente diante da compreensão que proteger dados pessoais é resguardar
a personalidade do indivíduo, pois, constituem as características que distinguem um ser de humano de outro.
Destarte, veri ca-se do mesmo modo a relevância da LGPD como um conjunto de regras que possuem o
condão de garantir ao cidadão maior controle sobre o manuseio e utilização de suas informações pessoais.

Nos termos do artigo 14, inciso I, do Decreto Regulamentador do Marco Civil da Internet13 o
dado pessoal relaciona-se ao ser humano identi cado ou identi cável, o conceito engloba números de
documentos, formulários cadastrais, endereços físicos, endereços de e-mail, números de IP, e demais
identi cadores eletrônicos correlacionados aos titulares. Outrossim, o rol supra elencado não é restritivo,
podendo haver interpretação extensiva da de nição de dados pessoais.

Para Rony Vainzof dado pessoal tem valor monetário na economia moderna, notadamente relevante
para as práticas de negócios empresariais, pessoais ou sociais, bem como para a execução de políticas
públicas. Prossegue esclarecendo que não resta dúvida sobre o relevante valor do dado pessoal para o
progresso econômico global14.

O disposto na LGPD é extraterritorial, precisa ser necessariamente observado em quaisquer


atividades econômicas que utilizem dados pessoais colhidos em território nacional, sendo indiferente se
os titulares são cidadãos brasileiros ou estrangeiros. Torna-se possível o envio dos dados coletados para
liais ou sedes em outros países, desde que o país destinatário disponha de procedimentos semelhantes aos
exigidos pela Lei n. 13.709/2018.

10
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 65-67.
11
MENDES, Laura Schertel. O direito fundamental à proteção de dados pessoais. Revista de Direito do Consumidor, São
Paulo, a. 20, v. 79, p. 45-81, jul./set. 2011. p. 75.
12
PINHEIRO, Patrícia Peck. Proteção de dados pessoais: comentários à Lei n. 13.709/2018. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 15.
13
BRASIL, Decreto 8.771 de 2016. Regulamenta a Lei n. 12.965, de 23 de abril de 2014. Disponível em <http://www.planalto.
gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2016/Decreto/D8771.htm>. Acesso em 01 mar. 2019.
14
VAINZOF, Rony. Dados pessoais, tratamento e princípios. In: MALDONADO, Viviane Nóbrega; BLUM, Renato Opice
(Coords.). Comentários ao GDPR: Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia. São Paulo: omson Reuters
Brasil, 2018. p. 37.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 61-73, ago. 2020.


66 Diogo de Calasans Melo Andrade, Roberta Hora Arcieri Barreto

São axiomas da nova lei a necessidade de consentimento e o legítimo interesse, conforme preveem
os artigos 7º e 10º, respectivamente. Em linhas gerais, os dados pessoais somente poderão ser coletados
por empresas públicas ou privadas com a aquiescência do titular, com solicitação realizada de forma
clara, para que o titular tenha plena compreensão de quais informações serão coletadas e para quais ns
serão empregadas.

O princípio da nalidade, incluso no artigo 6º da LGPD, estabelece que é preciso que o motivo da
coleta ou fornecimento de dados pessoais se coadune com o objetivo nal do tratamento ao qual o dado
será submetido, com o escopo de vincular a informação à sua origem e a nalidade da coleta, evitando a
utilização do dados para nalidade diversa da estabelecida anteriormente sem o conhecimento do titular15.

Rompendo-se o encadeamento do consentimento de uso dos dados para m especí co, surgiria
precedente para a utilização dos dados pessoais para um m diverso da informação pessoal e, por
conseguinte, inutilizando meios de proteção e controle das informações pessoais por seus titulares16.

Outra alteração signi cativa trazida pela aprovação da LGPD é a necessidade de nova autorização
do titular dos dados caso haja alteração de destinação ou transferência dos dados a terceiros, consoante
parágrafo 2º do artigo 9º, além da possibilidade da suspensão da autorização em qualquer tempo, solicitar
o acesso, exclusão, portabilidade, complementação ou reti cação dos dados fornecidos previamente.

Deu-se evidência aos denominados Dados Sensíveis. São informações concernentes a crenças
religiosas, preferências políticas, liações partidárias, atributos físicos, particularidades relativas à saúde
e detalhes sobre a vida sexual, que são passíveis de utilização para práticas discriminatórias ao titular.
O acesso e utilização dos dados sensíveis tornou-se mais restrito a m de mitigar a relação entre dados
pessoais e discriminação, perseguindo as concepções da General Data Protection Regulation. Havendo
quaisquer situações que apresentem riscos de segurança ou comprometimento de dados pessoais, em
observância ao artigo 48, as autoridades competentes deverão ser noti cadas e indicar o procedimento
adequado para cada situação concreta, o que inclui a exposição da ocorrência.

Foram refutados pelo Governo Federal trechos importantes da Lei Geral de Proteção de Dados
Pessoais17. Merecem destaque no artigo que ora se delineia os vetos à criação da Autoridade Nacional de
Proteção de Dados e do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e Privacidade (artigos 55 a 59);
sanções administrativas ao descumprimento do disposto na Lei (artigo 52, VII, VIII e IX); a possibilidade
de divulgação do compartilhamento de dados pessoais entre órgãos e entidades públicas (artigo 28); o
artigo que se refere a preservação de dados pessoais de requerentes de acesso à informação nos termos da

15
DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção dos dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 378.
16
DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção dos dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 378.
17
Veto do Presidente da República. Mensagem n. 451 de 14 de agosto de 2018, publicada no site da Câmara dos Deputados e no
Diário O cial da União – Seção 1 – 15/08/2018. p. 80. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2018/lei-13709-
14-agosto-2018-787077-veto-156214-pl.html>. Acesso em 05 dez. 2018.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 61-73, ago. 2020.


A ausência da atividade fiscalizadora na lei geral de proteção de dados pessoais e sua ineficácia 67

Lei de Acesso à informação18 e, ainda, a vedação do compartilhamento no âmbito do Poder Público e com
pessoas jurídicas de direito privado (artigo 23).

Nessa conjuntura, a legislação brasileira se afasta da legislação europeia, cujo cerne e elemento
essencial consiste na autoridade independente responsável pela scalização e aplicação da lei. O veto aos
artigos que criavam a autoridade nacional de proteção de dados no país apresenta a LGPD defectiva no
momento, é onde reside a controvérsia da temática, sobretudo na indispensabilidade de órgão autônomo
quali cado conferir efetividade à lei19.

O veto sobre a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados e o comprometimento quanto à


e cácia da lei

Os dados pessoais avivam a economia, sustentam e são o ativo que impulsionam uma gama de
negócios e políticas públicas. Para além da in uência na economia, há uma sociedade que padece com a
ausência da privacidade e a degradação da intimidade. Por conseguinte, a normatização da proteção de
dados, de regra, combina a nalidade de salvaguardar a privacidade e outros direitos fundamentais, bem
como a de estimular o desenvolvimento econômico20.

A LGPD foi editada com base na composição do Regulamento Geral de Proteção de Dados da União
Europeia, cujo cerne é a redução de possíveis riscos e danos decorrentes da coleta, uso, compartilhamento
e guarda de tais dados. Para tanto, os Membros da União Europeia designaram uma ou mais Autoridades
Públicas Independentes – DPAs, para atuar na scalização e cumprimento do GDPR, que enfatiza as
atribuições das autoridades a m de salvaguardar os direitos e liberdades fundamentais dos titulares de
dados pessoais21.

Semelhante à legislação Europeia, a gura da Autoridade Nacional de Proteção de Dados é o


sustentáculo da estrutura normativa da lei brasileira. Na mesma seara, é possível assinalar que dos 120
países que possuem legislação especí ca voltada à proteção de dados, somente dois, quais sejam Angola e
Nicarágua, não instituíram uma autoridade autônoma para assegurar a materialidade da lei.

Sob distinta perspectiva, Laura Schertel Mendes e Danilo Doneda, dois dos autores do anteprojeto
da lei de proteção de dados, advertem que aprovação da LGPD sem uma autoridade scalizadora perpetua
a violação de direitos fundamentais de cidadãos brasileiros e acarreta em embaraços para que o país integre

18
BRASIL. Lei n. 12.527 de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do
art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111,
de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências.
19
LEMOS, Ronaldo. A Lei Geral de Proteção de Dados e o desa o da doutrina jurídica. In: COTS, Márcio; OLIVEIRA, Ricardo
(Orgs.). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais Comentada. São Paulo: ompson Reuters Brasil, 2018. p. 9-12.
20
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 108.
21
BLUM, Renato Opice; ARANTES, Camila Rioja. In: MALDONADO, Viviane Nóbrega; BLUM, Renato Opice (Coords.).
Comentários ao GDPR: Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia. São Paulo: omson Reuters Brasil,
2018. p. 229.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 61-73, ago. 2020.


68 Diogo de Calasans Melo Andrade, Roberta Hora Arcieri Barreto

a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE. Do mesmo modo, di culta que
empresas brasileiras acessem o mercado europeu, uma vez que contar com autoridade scalizadora para
controle do tratamento de dados é exigência da União Europeia22.

Os vetos exercidos pelo governo federal ao texto aprovado na Câmara dos Deputados e Senado
Federal podem impossibilitar a e ciência da norma sancionada. Mormente os artigos 55 ao 59 que tratam
sobre a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados foram vetados sob o argumento de havia
vício de iniciativa: “Os dispositivos incorrem em inconstitucionalidade do processo legislativo, por afronta
ao artigo 61, § 1º, II, ‘e’, cumulado com o artigo 37, XIX da Constituição.”23. Assim, foi afastada a expectativa
da criação do órgão adstrito ao Ministério da Justiça, que teria a prerrogativa de inspecionar a observância
dos dispositivos da lei.

Na Exposição de Motivos da Medida Provisória 869/2018 que criou a ANPD, justi ca-se o veto
presidencial:
Sobre a urgência e relevância da medida, necessário ressaltar que embora a ANPD estivesse prevista na Lei
13.709, de 2018, sua inclusão se deu de forma irregular, gerando vício de iniciativa na proposta, o que levou à
necessidade do veto presidencial ao capítulo que tratava da matéria. O veto, acabou por gerar grande risco de
insegurança jurídica para a Sociedade Civil em face da falta de de nição do órgão responsável pela regulação,
controle e scalização da aplicação da Lei, o que deve ser de nido o quanto antes para permitir que o órgão
criado esteja em pleno funcionamento quando da entrada em vigor dessa proposta, para garantir sua plena e
total aplicabilidade24.

Do mesmo modo, e sob o mesmo argumento acima colacionado, foi rejeitada a criação do
Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade, atrelado a Autoridade Nacional de
Proteção de Dados, a ser constituído por 23 representantes do poder público e da sociedade civil, que seria
incumbido de desenvolver as diretivas técnicas, amparar a construção da política nacional, bem como a
instrumentalização da ANPD.

Patrícia Pinheiro aponta que o veto presidencial reproduz uma falha estrutural que existia
anteriormente à aprovação da Lei 13.709 e que se ansiava suplantar, além de tolher a ascensão do Brasil
ao patamar da GDPR europeia e obstar relações comerciais que exigem uma scalização independente da
aplicação e medidas equivalentes25.

Para refutar o argumento de que outros órgãos independentes poderiam fazer as vezes da Autoridade
Nacional de Proteção de Dados, a exemplo do Ministério Público, é preciso compreender que o tema é

22
MENDES, Laura Schertel; DONEDA, Danilo. Laura Schertel Mendes e Danilo Doneda: Lei de proteção de dados não pode
morrer na praia. Folha de São Paulo, 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2018/07/laura-schertel-
mendes-e-danilo-doneda-lei-de-protecao-de-dados-nao-pode-morrer-na-praia.shtml?loggedpaywall. Acesso em: 02 dez. 2018.
23
Veto do Presidente da República. Mensagem n. 451 de 14 de agosto de 2018, publicada no site da Câmara dos Deputados e no
Diário O cial da União – Seção 1 – 15/08/2018, p.80. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2018/lei-13709-
14-agosto-2018-787077-veto-156214-pl.html>. Acesso em 05 dez. 2018.
24
BRASIL. Exposições de motivos n. 00239/2018 da Medida Provisória n. 869 de 2018.
25
PINHEIRO, Patrícia Peck. Proteção de dados pessoais: comentários à Lei n. 13.709/2018. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 112.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 61-73, ago. 2020.


A ausência da atividade fiscalizadora na lei geral de proteção de dados pessoais e sua ineficácia 69

de intricada ordem técnica, o que demanda a centralização em um único órgão, a m de desembaraçar


a implementação de novos requisitos, por meio de normas complementares, documentos técnicos e
scalização, por meio de um quadro técnico especializado26.

A fundamentação para o veto aos artigos que constituiriam a Autoridade Nacional de Proteção
de Dados e o Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade (artigos 55 a 59, Lei
13.709/2018) se fundam em questão procedimental, tendo em vista que anterior à criação de tais órgãos,
se fazia necessária a previsão do Poder Executivo pra a composição de uma nova Autoridade e Conselho,
afora a previsão orçamentária27.

Diante do argumento da Presidência da República para o veto dos artigos que previam a criação
da Autoridade Nacional de Proteção de Danos e do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e
da Privacidade, Ilmar Nascimento Galvão e Jorge Octávio Galvão28 assentaram parecer jurídico no sentido
de que quando o Congresso Nacional concluiu que seria mais bené co se o órgão scalizador fosse um
ente descentralizado, provido de autonomia e independência, não houve qualquer inovação parlamentar,
considerando que o Poder Executivo já havia de nido a criação de órgão para efetivar o serviço público de
proteção de dados, através do artigo 53 do Projeto de Lei 5.276 de 2016: “com o objetivo de dar efetividade à
regulamentação sugerida, a proposta prevê um órgão competente para a proteção de dados pessoais no país”.

Assim, o processo legislativo de iniciativa do Presidente da República foi acertadamente iniciado,


não tendo que se falar em ausência de procedimento. Pelo exposto, não havia razoabilidade para se levantar
inconstitucionalidade ou vicio formal.

Em situação análoga, o Supremo Tribunal Federal entendeu que é possível Emenda Parlamentar a
projetos de iniciativa do Poder Executivo, contanto que não decorra em aumento de despesas.
1. Agravo Regimental em recurso extraordinário. 2. Direito Constitucional. Emenda parlamentar a projeto de
lei de iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo. Possibilidade, desde que não gere aumento de despesa.
Precedentes. 3. Rever interpretação dada pelo Tribunal de origem quanto ao aumento de despesas necessita do
reexame do conteúdo probatório. Incidência do Enunciado 279 da Súmula do STF. 4. Ausência de argumentos
su cientes para in rmar a decisão agravada. 5. Agravo Regimental a que se nega provimento29.

Ilmar Galvão e Jorge Octávio Galvão30 nalizam o parecer jurídico asseverando que não é tangível
o vício de constitucionalidade formal alegado nas razões do veto presidencial. Somente há pouco dias de

26
PINHEIRO, Patrícia Peck. Proteção de dados pessoais: comentários à Lei n. 13.709/2018. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 22.
27
PINHEIRO, Patrícia Peck. Proteção de dados pessoais: comentários à Lei n. 13.709/2018. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 112.
28
GALVÃO, Ilmar; GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat Galvão. Parecer sobre a inconstitucionalidade na criação da ANPD. Jota,
Brasília, 2018. Disponível em: https://www.jota.info/docs/ex-ministro-diz-que-nao-ha-vicio-de-inconstitucionalidade-na-
criacao-da-anpd-31072018. Acesso em: 05 dez. 2018.
29
STF. ARRE nº 257163. Relator: Min. Gilmar Mendes. DJe-043 06/03/2013.
30
GALVÃO, Ilmar; GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat Galvão. Parecer sobre a inconstitucionalidade na criação da ANPD. Jota,
Brasília, 2018. Disponível em: https://www.jota.info/docs/ex-ministro-diz-que-nao-ha-vicio-de-inconstitucionalidade-na-
criacao-da-anpd-31072018. Acesso em: 05 dez. 2018.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 61-73, ago. 2020.


70 Diogo de Calasans Melo Andrade, Roberta Hora Arcieri Barreto

terminar seu mandato presidencial, o então Presidente da República em exercício, Michel Temer31, editou
Medida Provisória criando a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, com a nalidade de reti car os
vícios alegados originalmente na Lei 13.709 de 2018.

Das questões a serem enfrentadas pela autoridade nacional de proteção de dados, alinhar a
interpretação da lei é uma das mais signi cativas. Se faz imprescindível balizar os limites e mudanças
trazidas pela LGPD, complexa, sobremodo especializada, permeada de conceitos notadamente vagos, que
carecem de interpretação técnica apta diante, inclusive, da imposição de penas que chegam à 50 milhões
de reais por infração ou 2% do faturamento da pessoa jurídica no seu último exercício. Na ausência da
autoridade nacional de proteção de dados capaz de tomar decisões técnicas de forma independente,
a interpretação da lei poderia recair aos mais de 17 mil juízes brasileiros de primeira instância, que se
pronunciariam acerca das especi cidades técnicas da LGPD32.

Nesse sentido, o que se almejava do governo brasileiro é que, quando proposto o supracitado
projeto de lei para criação do órgão scalizar, que fosse preservada a particularidade de autonomia da
Autoridade de Proteção de Dados, conforme previsto incialmente na lei editada, tendo em vista que esta é
uma condição indispensável para o desempenho pleno de suas funções e exequibilidade. Caso contrário, a
inovação e progresso que se conjectura com a aspirada legislação brasileira especí ca na seara da proteção
de dados estarão essencialmente comprometidos.

Medida Provisória 869 de 2018

Originalmente a Lei Geral de Proteção de Dados previa a criação da Autoridade Nacional de


Proteção de dados, que gurava como componente fulcral, com a incumbência de interpretar, supervisionar
e aplicar a lei. Diante do veto presidencial que implicou na ausência da Autoridade Nacional e da demora
da criação da ANPD pelo então Presidente da República, entidades, instituições acadêmicas e organizações
convergiram-se em um Manifesto33 para requerer ao Governo Federal que viabilizasse com premência a
constituição do órgão scalizador nos moldes do previsto a princípio, ressaltando a indispensabilidade
de um órgão especial e autônomo, tendo em vista que um órgão administrativo com equipe técnica
multidisciplinar, autonomia nanceira, ligado ao Ministério da Justiça, com competência normativa e
de scalização, teria maior habilidade para observar as atribuições previstas ao órgão, do que o Poder
Judiciário, por exemplo, que interveria como intérprete somente como último recurso.

31
Na solenidade da sanção do projeto de lei de proteção de dados o Presidente da República, Michel Temer anunciou o veto à
criação da ANPD em razão de um vício formal e reforçou que o Poder Executivo enviaria ao Congresso Nacional um projeto de
lei para a formulação de um órgão scalizador competente. Informação publicada no período Valor Econômico em 14/08/2018.
Disponível em: <https://www.valor.com.br/politica/5735299/temer-vai-criar-agencia-sobre-protecao-de-dados-por-projeto-
de-lei>. Acesso em: 05 dez. 2018.
32
LEMOS, Ronaldo. A Lei Geral de Proteção de Dados e o desa o da doutrina jurídica. In: COTS, Márcio; OLIVEIRA, Ricardo
(Orgs.). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais Comentada. São Paulo: ompson Reuters Brasil, 2018. p. 9-12.
33
Manifesto pela Criação Imediata da Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais – ANPD. Disponível em: <https://
www.conjur.com.br/dl/manifesto-entidades-criacao-autoridade.pdf>. Acesso em: 07 fev. 2019.

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A ausência da atividade fiscalizadora na lei geral de proteção de dados pessoais e sua ineficácia 71

Em tal conjuntura, foi publicada a Medida Provisória 869 de 201834 que constitui a ANPD como
órgão adstrito à Presidência da República, sem aumento de despesa, contudo, trans gurado, uma vez que
deixa de ser uma autoridade independente, contígua ao Ministério da Justiça.

Nesse sentido, a Exposição de Motivos que acompanha a MP 869/2018 traz que:


A ANPD será criada como órgão da administração pública federal integrante da Presidência da Republica, e
a despeito de ser órgão, os membros de seu Conselho, embora designados pelo Presidente da Republica, têm
mandato e somente perderão o mandato em virtude de renúncia, condenação judicial transitada em julgado
ou pena de demissão decorrente de processo administrativo disciplinar, o que reforçará a autonomia técnica da
autoridade35.

Dessa forma, a ANPD deteriora-se perdendo pujança. Torna exível o poder de scalização sobre o
tratamento de dados pelo Estado ao passo em que preserva unicamente as regras originais para o setor privado.

Laura Schertel Mendes critica a vinculação da ANPD ao Poder Executivo, ressaltando que a ANPD
se tornou um órgão para supervisionar as esferas pública e privada, assim “[...] vai controlar a administração
dentro da própria administração. Isso trará di culdades no âmbito internacional para que as empresas
brasileiras tenham livre uxo com a União Europeia”36.

Prevalece, então, o receio de que as decisões tomadas pela Autoridade Nacional, órgão da administração
pública acessório à Presidência da República, delibere de forma política e não unicamente técnica.

Considerações nais

Ainda que fundamentada em legislações internacionais consideradas exitosas na matéria de tutela


de dados pessoais, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais brasileira não conseguirá conferir o mesmo
grau de preservação de dados que outros países que instituíram o órgão scalizador independente como
pilar do arcabouço legal da política de proteção de dados. Em resumo, os titulares de dados pessoais no
Brasil continuarão desprotegidos em comparação aos cidadãos de mais de cento e quinze países.

O escopo precípuo da Lei Geral de Proteção de dados é a maior proteção a usuários de internet
e quaisquer cidadãos e salvaguardar garantias alicerçadas na proteção dos direitos humanos, mormente
no que tange à tutela de dados pessoais e privacidade. Ocorre que a concretização de efetiva proteção de
dados impõe a criação de um órgão autônomo que veri que se a Lei editada está sendo aplicada e que as
sanções previstas tenham caráter pedagógico e disciplinar para coibir abusos. Resta evidente que tanto a
ausência do órgão scalizador, quanto a criação de um órgão que não seja independente e autônomo, abre

34
BRASIL. Medida Provisória n. 869 de 2018. Altera a Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018, para dispor sobre a proteção de
dados pessoais e para criar a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, e dá outras providências.
35
BRASIL. Exposições de motivos n. 00239/2018 da Medida Provisória n. 869 de 2018.
36
SOPRANA, Paula. Temer cria autoridade de proteção de dados vinculada à Presidência. Folha de São Paulo, 28 dez. 2018.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/12/temer-cria-autoridade-de-protecao-de-dados-vinculada-
apresidencia.shtml. Acesso em 10 fev. 2019.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 61-73, ago. 2020.


72 Diogo de Calasans Melo Andrade, Roberta Hora Arcieri Barreto

uma janela para que infrações passem despercebidas e que a legislação nova, recém editada, deixe de ter a
efetividade esperada.

Mais que a defesa da privacidade, o que se pretende resguardar com a LGPD, ao longo de suas
asserções é o direito de acesso do titular e de controle de suas informações pessoais. Resta patente
a necessidade de uma Autoridade Nacional, autônoma, especializada, para que assegure ao cidadão
a proteção necessária para que este possa usufruir das in nitas possibilidades da tecnologia digital.
Destarte, defende-se no presente artigo que somente com arcabouço normativo efetivo e com scalização
o titular dos dados pessoais, parte vulnerável da relação, poderá reaver a autonomia e o controle sobre
seus próprios dados.

Referências

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Forense, 2019.

BLUM, Renato Opice; ARANTES, Camila Rioja. In: MALDONADO, Viviane Nóbrega; BLUM, Renato Opice
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GALVÃO, Ilmar; GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat Galvão. Parecer sobre a inconstitucionalidade na criação da
ANPD. Jota, Brasília, 2018. Disponível em: https://www.jota.info/docs/ex-ministro-diz-que-nao-ha-vicio-de-
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KRAMERA, Adam; GUILLORY, Jamie; HANKOCK, Jeffrey. Experimental Evidence of massive-scale emotional
contagion through social networks. PNAS. Princeton, v. 111, n. 29, 2014.

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PINHEIRO, Patrícia Peck. Proteção de dados pessoais: comentários à Lei n. 13.709/2018. São Paulo: Saraiva
Educação, 2018.

PROBLEMA relacionado a um dos nossos formulários de suporte. Twitter. Disponível em: https://help.twitter.com/
pt/support-form. Acesso em: 14 dez. 2018.

SOPRANA, Paula. Temer cria autoridade de proteção de dados vinculada à Presidência. Folha de São Paulo, 28
dez. 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/12/temer-cria-autoridade-de-protecao-
de-dados-vinculada-apresidencia.shtml. Acesso em 10 fev. 2019.

VAINZOF, Rony. Dados pessoais, tratamento e princípios. In: MALDONADO, Viviane Nóbrega; BLUM, Renato
Opice (Coords.). Comentários ao GDPR: Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia. São Paulo:
omson Reuters Brasil, 2018.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 61-73, ago. 2020.


Hermenêutica humanista, ética da magistratura e os
princípios de Bangalore: elementos de uma normatividade
estruturante

Eliseu Raphael Venturi


Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil
https://orcid.org/0000-0001-9096-2825

Resumo: Ante o “desa o humanista” enunciado por juristas, lósofos


do direito e igualmente insculpido nos diplomas fundamentais
asseguradores de direitos, abordam-se nesse artigo algumas das
possibilidades hermenêuticas do tema, em especial sob a óptica dos
debates acerca da humanização da justiça e da legitimação ética dos
processos de intervenção na sociedade realizados sob a técnica jurídica,
que se encontram, igualmente, implicados pelo aspecto crítico que
questiona e problematiza o humanismo. A ética da magistratura, por
força de seus princípios, encontra-se diretamente envolta no debate,
Canoas, v. 8, n. 2, 2020 em especial pelos Princípios de Bangalore. Trata-se de pesquisa
bibliográ ca, teórica e interpretativa.
Artigo Palavras-chave: Axiologia Constitucional; Ética Judicial; Hermenêutica
Jurídica; Humanismo; Princípios de Bangalore.
Recebido: 05.05.2018
Aprovado: 03.01.2019
Publicado: 13.04.2020
Humanist hermeneutics, judicial ethics and Bangalore
principles: elements of a structuring regulation
DOI http://dx.doi.org/10.18316/REDES.v8i2.4743
Abstract: Faced with the “humanistic challenge” enunciated by jurists,
philosophers of law and inscribed at the fundamental rights laws and
Constitution, some of the hermeneutic possibilities of that subject are
discussed at this article, especially from the point of view of the debates
about the humanization of justice and legitimation ethics of the processes
of intervention in society carried out under legal procedures, which are
also implicated by the critical aspect that questions and problematizes
humanism. e justiceship ethics, by virtue of its principles, are directly
involved on the debate, especially by the Bangalore Principles. It is a
bibliographical research, theoretical and interpretive.
Keywords: Constitutional Axiology; Humanism; Judicial Ethics; Legal
Hermeneutics; Principles of Bangalore.

Introdução

O debate atual sobre o humanismo se desdobra em diversas


vertentes de interesse losó co, jurídico, político, educacional,
médico, en m, em todos os campos do conhecimento que se
76 Eliseu Raphael Venturi

encontram implicados diretamente, em seus objetos, pelas questões da convivência humana, das relações
sociais, da realização de determinados valores na prática cotidiana e calcados em pressupostos da ética do
cuidado e da alteridade.

Mais do que um momento histórico determinado havido no período da Renascença italiana pré-
moderna xando as bases do humanismo cívico que in uenciou decisivamente a moderna teoria republicana
(BIGNOTTO, 2000) com contribuições sobre a contemporânea ou sinônimo de um cultivo intelectual das
culturas clássicas greco-romana, o humanismo aponta para um pressuposto essencial de apego ao que é
“humano” na apreciação da realidade, indicando para o debate sobre a natureza e a condição humanas de
um modo mais amplo e articulado nos paradigmas da diferença, do multiculturalismo do meio ambiente
e do direito dos animais.

Tanto é assim que autores utilizam sua expressividade para apontar um verdadeiro modelo de Estado
que ultrapassa as formas do Estado legalista e do constitucional, referindo-se, então, ao Estado Humanista,
aquele que integra as perspectivas do Direito Internacional dos Direitos Humanos a um complexo sistema
de fontes (MAZZUOLI; GOMES, 2010; TRINDADE, 2006).

Esse quadro de pressupostos, por evidente, não é de fácil solvência, contudo, a indiferença e
afastamento de sua preocupação redundam em desumanização, tecnocratização e frieza do apreço ao outro,
representando dé cit de alteridade e campo aberto às violações de direitos. O humanismo em sentido
amplo deve ser uma preocupação ética e, no Direito, a ética assume um caráter obrigacional por meio da
normatividade.

A condição humana, assim, passa a ser objeto de interesse determinante e, quando lançada no campo
de compreensões jurídicas, é ampli cada no contexto da dignidade da pessoa humana, dos direitos de
personalidade, dos direitos fundamentais, dos direitos humanos, assim como, dos objetivos constitucionais e
valores insculpidos nos preceitos da Constituição (SOUSA, 1995; SZANIAWSKI, 2005; SARLET, 2001, 2007).

Nas linhas do pensamento consagrado de Hannah Arendt, o contexto jurídico posterior à Segunda
Guerra Mundial não pode prescindir do ético ínsito ao político e ao jurídico e esse imperativo hermenêutico
se fortalece indissociavelmente do desdobrar cientí co e losó co em torno do papel do direito nas
sociedades atuais (SAID, 2007; VILLEY, 2008, 2009).

A antropologia losó ca (MONDIN, 1983), neste contexto, somada à antropologia jurídica


(SUPIOT, 2007) é disciplina própria ao cabedal descritivo losó co do conceito de homem e o direito
se apropria de alguns de seus pressupostos para torná-los normatividade. Esse sistema de ideias, assim
visualizado, produz um problema hermenêutico a ser enfrentado pelos intérpretes do direito (das carreiras
jurídicas, da sociedade civil, dos cidadãos), que se veem vinculados em uma estrutura de entendimento
da realidade e confronto desta, em cadeias de dialogia ôntica e deôntica e de realimentação dos sentidos,
entre os enunciados jurídicos e a ordem das coisas no plano real, até se alcançar um ajustamento coeso e
coerente para se dizer acerca desta mesma realidade, normativamente (NOGUEIRA, 1989; SOUZA, 2008;
VASCONCELOS, 2006).

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Hermenêutica humanista, ética da magistratura e os princípios de Bangalore: elementos de uma
normatividade estruturante 77

O humanismo, assim, mais do que uma ideologia a se ancorar de nitivamente o pensamento, se


apresenta como ponto de partida para uma abordagem dinâmica e uída da realidade, que não prescinde
do questionamento radical de “o que é o homem” e qual seu lugar na ordem das relações.

O humanismo é essencialmente polissêmico, conjugando-se em distintas cosmovisões: humanismo


cientí co, humanismo teológico, humanismo ateu, humanismo cristão, humanismo burguês, humanismo
proletário (NOGARE, 1977); a nal, qual o humanismo jurídico e sua relação com os demais humanismos,
em uma sociedade essencialmente plural?

Nesse contexto de ideias e plano de problema, o presente artigo pretende dar continuidade à
discussão do problema do humanismo jurídico, com o escopo de veri car alguns pontos de contato da
questão do humanismo projetando-na em orbe de interpretação jurídica, para então se identi car sua
presença no sentido da loso a do direito e suas pretensões, em especial na mudança de uma aproximada
Weltanschauung (FREUD, 1976), ou seja, de uma “visão de mundo”1 desperta pela “humanização” entendida
em um contexto de hermenêutica.

O artigo, assim, trata de um percurso que vai do conceito losó co do humanismo em uma
discussão ampla (incluindo a Filoso a do Direito e o Direito Constitucional), passando-se pelas práticas da
humanização enquanto uma instância epistêmica e hermenêutica no campo da Hermenêutica Filosó ca, a
partir do exemplo das ciências médicas.

É a partir deste horizonte hermenêutico que, então, recorre-se a um conjunto de normatividade


jurídica (que inclui referências legais, constitucionais e internacionais) respectiva à ética judicial para,
então, se pensar o problema do humanismo e da humanização na ótica do Estado Humanista e de sua
integração de fontes.

Por isso, ao nal, enfoca-se a ética da magistratura, em especial por meio do Código Ibero-Americano
de Ética Judicial e dos Princípios de Bangalore de Conduta Judicial (ATIENZA; VIGO, 2008; ONU, 2008).

Destaca-se, por m, que os referidos Princípios são insertos em uma estrutura hermenêutica que
se pretende compreender a partir da noção de humanização. Este é o objeto próprio do artigo, razão pela
qual não se abordam detalhadamente os elementos normativos, os quais, por si, rendem estudos pontuais
diversos. É no ponto de junção das referências e sua função em uma estrutura hermenêutica de humanização
e visão de modo que se pode localizar o conjunto de referências ora proposto.

1
Weltanschauung, palavra alemã (GÖTZ; HAENSCH; WELLMANN, 2008) traduzível como “visão de mundo”, “mundividência”,
“cosmovisão”, pode ser resumida como uma categoria hermenêutica da consciência histórica sobre as estruturas vitais (DILTHEY,
2002) pela qual se sintetiza um modo de compreender e avaliar a realidade a partir de um conjunto de posições, perspectivas,
valores, nalidades e demais pressupostos compreensivos que orientam o entendimento dos objetos dados ao conhecimento e
à avaliação. Pode-se falar na cosmovisão de um romance, de um autor, de uma escola literária ou mesmo de um ordenamento
jurídico. Ou seja, trata-se de uma referência analítica em loso a, que auxilia a localizar objetos em linhagens de historicidade
a partir de contextos epistemológicos segundo as cosmovisões envolvidas em grandes quadros de explicação e que orientam os
processos hermenêuticos realizados pelos sujeitos (DILTHEY, 1997).

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78 Eliseu Raphael Venturi

Trata-se de pesquisa bibliográ ca, teórica, interpretativa, na medida em que se procuram fundir
horizontes de uma postura hermenêutica ante princípios jurídicos vinculantes da interpretação da
magistratura no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Sobre o humanismo

O humanismo, a despeito de sua polissemia, tem sido investigado em diversas dimensões do


pensamento jurídico. Seja pela ascendência dos direitos humanos no debate dos rumos dos Estados
no contexto internacional e na regulação interna, seja pelo pleito de humanização das relações sociais
(como contra-argumento ante a miséria, pobreza, corrupção, violação de direitos), ao compasso do
engrandecimento do tema trazido pela Constituição Federal de 1988, além do enfrentamento de
problemas losó cos de raiz postos pelo cotidiano jurídico, o humanismo se coloca como problema ao
pensamento jurídico.

Diversos estudos (tais como WOLKMER, 2005; MEZZAROBA, 2008) têm explorado as variações
de um humanismo jurídico pensado em suas estruturas políticas e axiológicas, bem como em seu aporte
crítico ante um dé cit humanista perceptível nas relações atuais. O que tais pensadores propõem nas obras
por eles organizadas é articular leituras dos clássicos do pensamento político e losó co em torno do
que o humanismo pode signi car como visão de mundo, signi cância da vida social, nalidade do agir
comunitário. Para tanto, partem de uma visão de problemas atuais, sejam eles teoréticos ou sociais, de
modo a reunir elementos em torno de uma teoria do humanismo jurídico, que se constrói por meio da
conjugação de múltiplas leituras, compreensões políticas e entendimentos das funções e conformação do
direito na vida social.

Os desa os da realidade contemporânea e da globalização, assim, são enfocados, convocando-se os


agentes sociais diversos a se engajarem em temáticas de interesse pelo enfrentamento de tais problemas.
Com isso, uma postura ativista é demandada, na medida em que se opõe a uma inação indiferente.

O humanismo, assim, assume uma função cognitiva distinta da restritamente conceitual: debater
o humanismo, mais do que se fechar em um conceito certo, determinado e vinculante, é assumir uma
estrutura uída e uente, que encaminha discursos éticos e jurídicos na composição de um ponto de vista.

Por isso, com base em tais leituras, pode-se a rmar que o humanismo assenta-se na esteira dos
questionamentos losó cos e antropológicos – em peso de cunho existencialista – acerca do “sentido da
vida” (Sinn des Lebens, de Karl Jaspers e outros, ou, por exemplo, em SOMMERDHALDER, 2010), assim
como da “perspectiva” ou “visão de mundo” (Weltanschauung).

A questão pode se ver diretamente na loso a do direito. Por exemplo, re etindo sobre o processo
civil, confrontando sua larga experiência como magistrado e docente, além de suas inquietações losó cas,
Herkenhoff (2001) concluiu que os desa os do jurista são os da humanização do processo, do direito e da
justiça. Esta condição implica no reconhecimento, adesão e realização de valores humanistas.

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Hermenêutica humanista, ética da magistratura e os princípios de Bangalore: elementos de uma
normatividade estruturante 79

Para o autor, a efetivação humanista é condição de aceitabilidade e destinação ética do processo,


sendo, portanto, a grande nalidade de toda a complexa trama de regras procedimentais e materiais
veiculadas no trâmite processual e sustentadas pela organização judiciária.

A conscientização do problema humanista nesse contexto, para Herkenhoff (2001, p. 142),


dependeria de uma investigação de loso a do processo, em que se alcançasse sua realidade, natureza,
signi cação, ao compasso de sua estrutura e relações constituintes internas, para então se veri car também
sua razão de ser. A veri cação do sentido intrínseco do projeto “processo” seria, pois, indispensável para
se compreender a ação social desenvolvida neste contexto, e a re exão losó ca seria o meio adequado
para tanto.

Por isso, a busca da essência do direito seria ponto de partida para se pensar o humanismo jurídico,
considerando-se uma apreensão global e crítica do sistema do direito positivo, que leva em conta aspectos
da “[...] percepção global, causal, teleológica”, pela qual “[...] poderá o jurista entender melhor seu próprio
ofício e o sentido maior do Direito a que deve servir” (HERKENHOFF, 2001, p. 143).

Ante a “crise do mundo contemporâneo” o “resgate do humanismo” seria o meio pelo qual as
preocupações poderiam ser canalizadas em busca de soluções. O aperfeiçoamento das técnicas cientí cas
do direito, em especial, do processo, não poderiam levar a uma ausência de apreço pelo humano: “em nome
da ciência não pode haver o esquecimento do homem” (HERKENHOFF, 2001, p. 145).

A própria descrença do problema do humanismo e da preocupação com o homem e sua diversidade


existencial representa o sintoma desta crise apontada.

Entende Herkenhoff que quanto mais pessoal for o impacto do processo, mais sensível deve ser o
magistrado ao seu mais ágil e célere manejo, sem prejuízo dos efeitos coletivos dos procedimentos mais
amplos e que implicam menos diretamente as partes. A justiça e o processo, pela expressão jurisdicional,
devem representar a libertação existencial, e jamais conduzirem, por de ciências técnicas ou de
administração, “[...] pela lentidão de seus caminhos, à doença e à morte” (HERKENHOFF, 2001, p. 146).

Nesse mesmo sentido, a justiça, nanceiramente custosa, seria negação da democracia, ao mesmo
compasso das renúncias de direito baseadas ou em conciliações forçadas ou por temor às fragilidades da
organização judiciária e custas das causas, que seriam afronta à dignidade das pessoas – e que se veem
repetir hodiernamente, por força das mesmas estruturas de citárias.

Por outro lado, as lides coletivas, a proximidade dos juízes com os litigantes, a simplicidade e a
tolerância dos julgadores com as implicações dos diferentes per s econômicos, ao compasso da capacidade
de ouvir, tudo isso conformado com o direito vigente representaria um dos grandes ns do direito que, no
dizer de Dinamarco, em “A Instrumentalidade do Processo”, e que fundamentou a re exão de Herkenhoff,
seria o contido no seguinte raciocínio: “as pessoas buscam o processo para eliminar os con itos que as
envolvem através [sic] de decisões justas. O processo é colocado à disposição das pessoas para que sejam
mais felizes” (HERKENHOFF, 2001, p. 149).

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A re exão jurídica teleológica, somada à humanização das relações sociais mais amplas, e ao
entendimento de que não apenas leis (sem a vinculação de seus intérpretes e pessoas que a vivem) serão
su cientes para o implemento normativo humanista marcam o discurso do autor.

Para Herkenhoff, em suma, pode-se compreender, o grande desa o estaria em veri car a questão:
“por que não compreender que nossa Justiça é uma Justiça feita por seres humanos, para seres humanos,
daí não poder haver outra justiça que não seja aquela com face humana?” (HERKENHOFF, 2001, p. 153).

Esse cenário de questionamento e preocupações de re exão losó ca marca a busca pelos sentidos
do humanismo, por isso se concluiu por seu encaixe no campo do sentido e da cosmovisão.

Outro magistrado, Carlos Ayres Britto (2007), também conjugou experiências práticas e inquietações
losó cas para re etir sobre o humanismo e expor seu entendimento do direito e dos intérpretes, em
peso, a partir da vinculação ao texto constitucional. O autor não trata propriamente da humanização,
discorrendo, antes, sobre o humanismo, e indicando a interferência deste no procedimento hermenêutico
empregado pelo julgador na realização de ideais políticos democráticos e republicanos.

Para Britto, dos muitos sentidos que o humanismo assume, poder-se-ia destacá-lo enquanto
ilustração mental (domínio das referências clássicas, em suma), enquanto, em outro sentido, poderia
ser compreendido como um compromisso com a emancipação política e social das pessoas em situação
de desfavorecimento e fragilidade (2007, p. 17), e nesse encaminhamento começaria o sentido de um
humanismo jurídico.

Ainda, veri car-se-ia, aproximando-se da antropologia losó ca, o sentido de exaltação da


humanidade e cultivo de seu apreço, notando-se em cada indivíduo a humanidade e nela o traço do
indivíduo, em constante realimentação entre as partes e o todo. A centralidade de explicação do mundo a
partir do homem indicaria esse referencial primeiro de conhecimento.

A premissa do homem, nesse contexto, é a dele enquanto centro das coisas e criação cósmica, o que
marcaria esta primeira aproximação (distinta de antropocentrismo, que é reducionista), do homem em que
se reconhece o indício e expressão da humanidade, vocacionado à convivência e a superação e mutação das
contingências naturais e sociais.

A dignidade da pessoa humana residiria neste “microcosmo” que expressa um “macrocosmo”, e tal
expressividade só se garantiria por meio de um atendimento de patamares mínimos de direitos individuais
e coletivos. A limitação à intervenção estatal, e a promoção das ações a rmativas, por exemplo, segundo
Britto, se assentaria neste encaminhamento.

Para Britto, o humanismo se adensaria no movimento do “constitucionalismo cumulativo”, que


vincula o Estado de Direito ao Estado de direitos. Para o autor, um constitucionalismo superavitário,
crescente e progressivo rea rmaria tal característica, de modo que se encontraria a expressão da “[...] a
humanidade que mora em cada um de nós é em si mesma o fundamento lógico ou o título de legitimação
de tal dignidade [...] a constitutividade em si já está no humano em nós” (BRITTO, 2007, p. 25).

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O humanismo, assim, se caracterizaria pelo reconhecimento e respeito pelas condições individuais


de cada um, com a noção de dignidade e pluralismo político, cultural, social, com vistas a uma maximização
da igualdade de oportunidades e voz política, econômica, educacional e social, ao compasso do combate aos
preconceitos, acesso ao Judiciário, serviços públicos, seguridade social, com participação na vida econômica
e qualidade de vida. O atendimento de necessidades de todas as ordens indicaria uma quali cação em
termos ambientais, sociais e de integração comunitária fraternal.

A democracia, nesse conceito, seria um processo de “transubstanciação” de direitos e práticas, e o


humanismo uma “transubstanciação” da democracia política, econômico-social e fraternal, donde a expressão
sintética do autor: “o Direito enquanto meio, o humanismo enquanto m” (BRITTO, 2007, p. 37).

A relevância desta cosmovisão, para Britto, residiria por sua plena contraposição aos problemas
de desigualdades sociais, de falta de qualidade de vida, descompassos de desenvolvimentos regionais,
subemprego, preconceitos, economia informal, indistinção de espaços público e privado, e toda sorte de
práticas sistêmicas corruptivas e antidemocráticas que violam os preceitos constitucionais.

O fosso entre os discursos humanistas e as práticas deletérias não serviria para desautorizar o
humanismo; pelo contrário, deve animar a busca de sua realização do que a condescendência a sua violação
diária, religando-se a justiça em abstrato e a justiça em concreto, razão especulativa e emoção e intuição,
criatividade e conhecimento. Os referenciais de cortesia, fraternidade, respeito seriam intransponíveis ante
qualquer diferenciação socioeconômica, do que depende o espírito republicano, democrático e humanista.

Neste contexto, a proposta de Britto se coordena em uma governabilidade constitucional que seja
governabilidade humanista, em que a vontade de Constituição se expressa em uma vontade principiológica,
programática, axiológica e concretista2.

Da análise de ambos os entendimentos dos magistrados, Herkenhoff e Britto, assim como do


espectro de múltiplas leituras e discussões sobre o humanismo jurídico tal qual organizado nos estudos
de Wolmer e Mezzaroba, pode-se depreender o caráter hermenêutico em que se envolve o pro ssional,
intérprete do ordenamento jurídico e das relações sociais, para veri car os problemas de interesse jurídico,
posto que nascidos da vida social e aferíveis por meio das balizas normativas, sejam no âmbito interno ou
internacional, xando horizonte semântico a signi car a realidade.

2
Considerando as pretensões hermenêuticas concretistas, o que se soma às aberturas dos paradigmas pós-positivistas aptos
à questão do humanismo como um problema também jurídico, e no intento do manejo de fontes proposta neste artigo,
especialmente na seção nal 3, em que se reúnem normas regulamentadoras da ética judicial quando da condução dos processos
hermenêuticos e decisórios, é de se destacar uma visão do Direito segundo a teoria estruturante proposta por Friedrich Müller.
A partir desta referência de metodologia jurídica, a relação do texto legal e a realidade é intermediado por diversas etapas de
concretização, ou seja, o processo interpretativo é todo perpassado por atos, de modo que a norma-decisão é fruto da norma
jurídica, que contém o trabalho de relação do âmbito normativo e do programa normativo (MULLER, 2013). Nesse sentido,
a humanização pode ser compreendida de um modo integrado a esta metódica, como uma dimensão ética que diz respeito
especialmente ao intérprete ao pautar sua relação material com o processo interpretativo ele mesmo, sua subjetividade, sua
consciência histórica interpretativa, seus compromissos e deveres pro ssionais, legais e ante o estado da arte do seu ofício. Desta
maneira, humanismo e humanização judiciais representam um esforço auto-crítico, autorre exivo e auto-problematizante sobre
as relações do próprio ofício com a vontade de poder e a limitação jurídica garantista das extensões da atividade de julgar.

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Posta a necessidade, expressa ou implícita, de “humanização” do intérprete e da comunidade de


intérpretes, colocada pelos autores, e que representa uma mudança de “visão de mundo” (Weltanschauung),
pode-se perceber, recorre-se a uma breve análise a partir de um campo em que a discussão se consolida e
institucionaliza cada vez mais: das ciências médicas, abordado a partir de alguns pressupostos da loso a
hermenêutica e que demonstra o referido movimento de passagem de pressupostos e referenciais de
compreensão de mundo.

Os signi cados e dimensões da humanização: contributo das ciências médicas e sua ética do cuidado

Dos estudos de Ayres (2005) sobre o tema, re etindo sobre as implicações hermenêuticas da ideia
de humanização, especi camente no campo da saúde, podem-se destacar alguns pressupostos úteis para
se pensar as relações do direito, dos processos e das técnicas da ciência do direito conjuntamente aos
problemas do campo da humanização.

Isso porque, no campo das ciências médicas, desenvolveu-se profundamente uma noção de
humanismo contemporâneo, que encontra na noção de humanização uma série de preceituações que
auxiliam na compreensão da visão de mundo encerrada por essas teorias.

O exemplo mais forte da vinculação da hermenêutica losó ca com a atuação institucional em altos
níveis de formalização jurídico-política é a Política Nacional de Humanização (HumanizaSUS), vigente
desde 2003 no Brasil e que, baseada nos princípios da transversalidade, da indissociabilidade entre atenção
e gestão, e do protagonismo, corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e coletivos, objetiva efetivas os
princípios constitucionais do SUS nas práticas cotidianas de saúde pública (BRASIL, 2008).

Vê-se, assim, como a humanização é um vetor hermenêutico que pode coligar elementos jurídicos
e estruturar, no caso do exemplo, a atuação institucional por meio de políticas públicas, o que pode ser
utilizado como um caso analógico em termos da produção da decisão judicial em seus elementos de visão
de mundo e de ética pro ssional, proposta deste artigo.

A humanização, neste contexto teórico e político de base hermenêutica, é vista como um processo
de mudança de mentalidades e de interrelações entre as partes envolvidas, considerando inclusive o papel
do aporte institucional, vinculando políticas e práticas com normatividades expressas na ação cotidiana.

O fundamento hermenêutico, enquanto atitude losó ca e compreensão que confere plasticidade


aos processos de conhecimento, apresenta-se imprescindível nesse caso, reunindo-se, para se chegar à
humanização, fundamentos da loso a hermenêutica com hermenêutica crítica – esta, que, no dizer de
Ayres, “[...] baseia-se em um distanciamento crítico que, a partir dos interesses práticos de reconstrução
da vida social, explora dialeticamente os valores negados nos processos de comunicação que geraram, ou
geram, os discursos interpretados.” AYRES, 2005).

Para o autor, o conceito de humanização progressivamente marca e se assenta na quali cação dos
serviços públicos de saúde, signi cando um amplo espectro de sentidos no contexto da integralidade,
efetividade e acesso.
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normatividade estruturante 83

Para o autor, as mudanças pretendidas pelo implemento de uma “humanização” dependem


diretamente de reestruturação tecnológica e de planejamento dos serviços, mas, igualmente, de produção de
bases teóricas e losó cas que subsidiem as mudanças pretendidas por meio do conceito de humanização,
permitindo avaliações e validações de práticas.

Para o enfrentamento de tais desa os, o autor explora a hermenêutica contemporânea como
meio de signi cação dos desa os éticos e epistemológicos decorrentes. Não por acaso a epígrafe, de
frase de Gadamer, utilizada por Ayres no texto em apreço: “a possibilidade de o outro ter direitos é a
alma da hermenêutica”.

Para Ayres (2005) a noção de humanização, ao menos no que tem sido empregada no campo
da saúde, se refere diretamente à vedação de violência institucional; à quali cação dos atendimentos; à
excelência técnica, capaz de acolher e dar respostas; o cuidado com as condições de trabalho e a expansão
dos processos comunicativos entre os envolvidos nas trocas dos serviços de saúde, mas não se limita apenas
a essas qualidades.

O autor destaca que o sentido que enfoca é o de que “[...] o ideal de humanização pode ser
genericamente de nido como um compromisso das tecnociências da saúde, em seus meios e ns, com a
realização de valores contrafaticamente relacionados à felicidade humana e democraticamente validados
como [o] bem comum” (AYRES, 2005).

Veja-se, primeiro, como a de nição do autor é de alto interesse jurídico (quanto mais sendo o direito
uma ciência eminentemente cultural e hermenêutica), e, como destaca seu autor, repleta de horizonte
normativo para referência ética e moral pro ssional, orientando as formações discursivas com pretensão
de regular a vida social em processos intersubjetivos e por meio da problematização.

Assim, a proposta de humanização representa uma continuidade do apreço pelos conteúdos


tecnocientí cos e seus critérios de nidos e validados, com alto grau de objetivação e formalização,
acrescendo-lhes, então, a dimensão crítica ética, que é uma expansão do núcleo instrumental da ciência
para os aspectos relacionais e formativos.

Por isso, a rma o autor que a humanização, se entendida como um valor ao qual se destina
deferência, fundamenta um sentido em que “[...] o cuidar da saúde implica reiterados encontros entre
subjetividades socialmente conformadas, os quais vão, progressiva e simultaneamente, esclarecendo e (re)
construindo não apenas as necessidades de saúde mas aquilo mesmo que se entende ser a bhoa vida e o
modo moralmente aceitável de buscá-la” (AYRES, 2005).

O autor destaca, nessa esteira, a funções hermenêuticas do conceito de humanização: amplia


horizontes normativos éticos; evita a acriticidade dos padrões restritos tecnocientí cos, sem negá-los, mas
transcendendo seus limites; corrigindo os horizontes demasiados amplos de diplomas internacionais (por
exemplo, a de nição de saúde da OMS), conferindo-lhes a característica do “devir” que sua cristalização
linguística suprime (de um “estado” ao “devir”), vivi cando, assim, o campo semântico.

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Destaque-se que, em momento algum, a ideia de humanização desconstrói saberes cientí cos
ou normativo-internacionais: a preocupação da humanização é a de implemento e manejo dos diversos
sentidos e técnicas disponíveis, com a nalidade do cuidado precípuo que fundamenta os esforços. Em
suma, o que o conceito de humanização de Ayres possibilita é visualizar o in uxo do devir, o processo de
reconstrução de um projeto em curso, que se faz em sua execução.

Além disso, a felicidade (experiência singular e pessoal) se coloca como horizonte normativo deste
processo de humanização, conforme compreensão de Ayres (2005). A valoração positiva das experiências
vividas, marcando uma estreita relação entre experiência vivida, valor e aspirações, no sentido de realização
de um projeto existencial, assim como relações entre valores e processos de cuidado e prevenção são traços
relevantes. O “projeto de felicidade” seria uma construção de caráter “contrafático” (conforme termo de
Habermas), indicando o fulcro em valores “quase-transcendentais”, na medida em que, no estabelecimento
deles, não se prescinde da percepção do valor para a vida humana que, ao serem negados ou obstaculizados
emergem em seu pleno sentido.

Sendo assim, o “projeto de felicidade” não pode ter um conteúdo apriorístico, mas sempre posto no
campo contrafático e, desse modo, para o autor, os projetos de felicidade devem ser afastados tanto de um
fundamentalismo, uma de nição objetiva e restrita de seu teor, quanto de seu descolamento abstrato da
realidade. Tais projetos só serão acessíveis se veri cados “[...] obstáculos concretos à realização dos valores
associados à experiência dos indivíduos e comunidades” (AYRES, 2005), eis que “a felicidade nunca deixa
de fazer notar sua falta e, pela sua ausência, algo que nos está faltando” (AYRES, 2005).

A relação entre humanização e felicidade, pois, se dá na medida em que, embora não se possa
instituir a felicidade de modo de nitivo e em conteúdo, se deve, por meio da validação democrática de
valores publicamente aceitos, os mecanismos e meios que permitam a experiência da felicidade, e, assim, a
proposta política ingressa em jogo e, em suma, seja por teorias imanentistas ou transcendentais, a referência
objetiva dos projetos de felicidade individuais se encontra na vida em sociedade, e a felicidade vista como
“[...] índice racionalmente inteligível de orientação prática a formas de vida que nos satisfazem desde uma
perspectiva, simultaneamente, pessoal e compartilhada” (AYRES, 2005).

Por todos esses sentidos, a humanização, para Ayres, representa uma face e politicidade e outra de
socialidade, tendo, assim, severas implicações institucionais, perfazendo um projeto existencial político,
uma proposta de modo de condução das coisas públicas, imantando os discursos cognitivo, normativo
e da subjetividade nas esferas normativa, proposicional e expressiva, com vistas ao mundo da vida, em
jargão habermasiano.

Nesta perspectiva hermenêutica, a superação da dicotomia sujeito-objeto é decisiva para se


compreender os fatos e obras humanos, de sorte que quem quer compreender precisa se reconhecer
incluído no objeto a ser compreendido, perfazendo a totalidade vivida contextualizada a partir da
qual emerge a forma especí ca de cada fenômeno humano, em movimento que realiza o círculo
hermenêutico gadameriano.

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Hermenêutica humanista, ética da magistratura e os princípios de Bangalore: elementos de uma
normatividade estruturante 85

Conforme Ayres destaca, apenas a partir dessa integração “com tudo o que é humano”, tal como
visualizara Pascal em célebre referência, permitiria compreender um fato humano, xando os campos das
experiências próprias e as dos outros, delimitando, assim, a identidade do “eu” e do “outro”.

Nesse “outro” se realizaria a “fusão de horizontes”, em uma dialética de pergunta e resposta igualmente
gadamerianos, sem pretensões de objetividade do outro, mesclando-se nesse jogo de decodi cação de
necessidades, possibilidades e uxos de informações de acesso recíproco. Os horizontes do “eu” e do “outro”,
assim, compartilham sentidos.

Assim, para Ayres, o movimento “do conceito à palavra, e de volta”, segundo imagem de Gadamer
para sugerir o meio de se alcançar o outro, traduz a humanização em um processo de “[...] ideal de
construção de uma livre e inclusiva manifestação dos diversos sujeitos no contexto da organização das
práticas de saúde” (2005), reunidos para a construção de valores e verdades em relações de maior simetria.
A difusão das tecnociências demanda essa percepção, por meio de aproximações hermenêuticas.

Conforme reitera o autor, os projetos de felicidade obstaculizados se tornam foco de atenção e a


problematização meio de identi cação destas causas, ante o que as novas tecnologias e discursividades devem
servir à humanização, em um processo de reconstrução intersubjetiva, reunindo novas vozes transdisciplinares.

Dessa forma, a leitura de Ayres acerca de autores da hermenêutica losó ca, para então pensar os
caminhos de humanização da saúde, revela pontos de partida, focos de problema e métodos de resolução
que indicam pontos de partida losó cos para superação de di culdades havidas no cerne da convivência
entre as pessoas e com as técnicas variadas que ora as aproximam, ora distanciam.

A felicidade existencial visada, a partir de parâmetros contextuais delimitados, as interações diante


de horizontes normativos, a “re exividade dos saberes humanísticos” coligados aos saberes técnicos, assim
como o diálogo das partes envolvidas nos serviços e processos indicam um caminho de interações e de
expressão de subjetividades que, em última análise, re ete-se em uma construção conjunta da humanização,
que só pode se fazer nas trocas dos “eus” e dos “outros”.

Ética judicial e humanização: normatividade estruturante

O humanismo, sendo tema precípuo e polissêmico de loso a, pode encontrar na discussão da ética
pro ssional uma incidência direta de suas preocupações, sem prejuízo, evidentemente, do interesse pelos
demais contextos implicados, como o da interpretação e da tutela de direitos.

Como demonstrado em subseção precedente, com o exemplo da relação da hermenêutica losó ca


a partir de Ayres quando da humanização da saúde e a política pública instituída pelo HumanizaSUS, é
possível abrir um conjunto de interfaces e relações conceituais entre as dinâmicas do processo hermenêutico
e a condução de políticas institucionais construídas pelo Direito.

Para se pensar as referências da normatividade vigentes no ordenamento jurídico brasileiro


contemporâneo, especialmente acerca dos pressupostos envolvidos na produção das decisões judiciais, há

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 75-93, ago. 2020.


86 Eliseu Raphael Venturi

farto material normativo que permite a correlação proposta no problema deste artigo.

De imediato, em termos de normas vigentes, refere-se ao Código de Ética da Magistratura Nacional


(CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019), ao compasso de preceitos da Lei Orgânica da Magistratura
Nacional (Lei Complementar n. 35/1979) (BRASIL, 2019).

No mesmo sentido, destaca-se a Resolução n. 75 de 2009 do CNJ (CONSELHO NACIONAL DE


JUSTIÇA, 2009), especialmente no tocante às exigências da formação humanística dos julgadores, o que,
interpretativamente, não pode ser dissociado do elevado status constitucional da Magistratura em termos
de proteção e promoção das garantias democráticas.

Esta normatividade estruturante do sistema, por meio de uma série de valores e pressupostos
declarados em exposições de motivos e enunciados em regras e princípios, pode ser compreendida
enquanto uma “visão de mundo” (Weltanschauung) humanista. Os Princípios de Bangalore, nalmente, no
plano do Direito Internacional dos Direitos Humanos, densi cam o horizonte semântico e pragmático que
compõe esta normatividade vigente.

A busca de “con ança da sociedade” e a “autoridade moral da magistratura”, preocupações constantes


em todas as referências da ética na magistratura, pois, se coadunam com o alinhamento da humanização dos
procedimentos judiciais, em especial pela tutela intransigente dos direitos de personalidade, fundamentais
e humanos, ao compasso da hermenêutica concretista.

O contexto atual do direito demonstra o perpasse constante das questões técnicas com as éticas e
morais, superando-se uma visão cienti cista, restrita à lógica formal, do direito na Modernidade, calcado
exclusivamente na noção de ordem e segurança na expressão do monismo jurídico. Lógica e anseio social,
preceitos positivistas e entendimentos pós-positivistas convivem na realização de um paradigma pós-
moderno, composto pelo mosaico de compreensões e cosmovisões (MORRISON, 2006).

O pós-positivismo, ou como se queira nominar os movimentos atuais de entendimento do direito,


procura o enfoque da ética, da realização dos valores jurídicos, da concretização máxima do conteúdo
normativo, assim como a identi cação de contingências históricas e das subjetividades que in uem nas
decisões, psicossocialmente produzidas. A cultura judicial, por força da cultura democrática, passa a se
preocupar com os fundamentos e implicações morais das decisões, assim como com o cuidado com os
processos argumentativos e sua contextualização, conjugando casos fáceis e difíceis em busca da realização
dos preceitos vigentes (MORRISON, 2006).

O papel do Poder Judiciário, assim, avulta em sua guarda da justiça e da democracia, de sorte que
o fortalecimento da integridade judicial é imperativo para a preservação do Estado e das instituições
democráticas. No cerne desse problema, a atuação institucional ética é imprescindível e a quali cação
losó ca de seus membros inevitável.

Conforme consagrado por Konrad Hesse (1991) vontade da Constituição e vontade de Constituição
expressam os princípios republicano e democrático marcando, assim, um agir humanista. A ética judicial,
por seus valores, pode realizar preceitos humanistas, seja diretamente, seja por seu intermédio, e daí

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advém a relevância do debate sobre o humanismo enquanto loso a de fundo no agir segundo preceitos
positivados, incrementando o uxo linguístico que anima o conhecer e o agir.

Em tal contexto é útil destacar alguns dispositivos preambulares do Código de Ética da Magistratura
Brasileira (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019) de modo a veri car algumas questões colocadas
pelo texto, e que se aproveitam no debate humanista ora proposto.

Conforme o artigo 1º, os “princípios da independência, da imparcialidade, do conhecimento


e capacitação, da cortesia, da transparência, do segredo pro ssional, da prudência, da diligência, da
integridade pro ssional e pessoal, da dignidade, da honra e do decoro” devem guiar toda a atividade, e o
desdobramento do conjunto de regras e princípios se faz totalmente em torno de seu escopo semântico,
tanto assim que ao longo do texto dessa norma são apresentados rami cações de cada um deles em regras
próprias, também com uma textura aberta.

O dever geral de proteção do ordenamento se xa no artigo 2º do mesmo diploma, que prescreve:


“ao magistrado impõe-se primar pelo respeito à Constituição da República e às leis do País, buscando
o fortalecimento das instituições e a plena realização dos valores democráticos”. Esse dispositivo, pois,
reforça o dever de um procedimento hermenêutico e argumentativo mais amplo e cuidadoso, com uma
série de ponderações e avaliações jurídicas detidas.

O respeito pela Constituição e pelos valores democráticos, como é consabido, constitui tarefa
complexa e que demanda o estudo e conhecimento constante, e não apenas o jurídico, o que retoma,
inclusive, a ideia do humanismo enquanto ilustração, contudo, no caso, transcendendo-se o diletantismo e
erudição para robustecer uma compreensão mais ampla, losó ca e sensível da realidade hipercomplexa.

Por m, destaca-se o artigo 3º, que também xa o horizonte de sentido da norma em apreço: “a
atividade judicial deve desenvolver-se de modo a garantir e fomentar a dignidade da pessoa humana,
objetivando assegurar e promover a solidariedade e a justiça na relação entre as pessoas”.

Neste mesmo contexto, assim, destaca-se mais propriamente, enquanto horizonte de sentido, alguns
elementos dos Princípios de Bangalore, que inspiraram o Código Ibero-Americano de Ética Judicial (e o
brasileiro) e que permitem visualizar entradas e saídas para as aspirações do humanismo e da humanização,
insertos no “espírito ético da magistratura” (ATIENZA; VIGO, 2008; ONU, 2008).

De modo sintético e esquemático, os Princípios de Bangalore se ancoram em seis eixos axiológicos


básicos, a partir dos quais se desdobram demais regras, sendo eles: independência, imparcialidade,
integridade, idoneidade, igualdade e competência e diligência, assim como, um apêndice sobre tradições
culturais e religiosas (ou seja, como se compreende o ofício de julgar em tradições não ocidentais). Cada
eixo se rami ca em um princípio abordado conceitualmente e com vistas à aplicabilidade na prática da
administração e da realização da atividade jurisdicional.

O documento nasceu dos trabalhos internacionais do Grupo de Integridade Judicial, constituído


no âmbito das Nações Unidas, nos anos 2000, formulados em Bangalore, na Índia, atingindo aprovação em
novembro de 2002 em Haia (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2008, p. 7).
88 Eliseu Raphael Venturi

A percepção dos problemas de morosidade, corrupção e parcialidade nos julgamentos levou


à constituição do referido grupo e à necessidade de formulação de uma normatividade mais clara e
incisiva, tanto por meio dos Princípios quanto pela construção de regulações internas que reforçassem
os imperativos de integridade judicial, autoridade moral, correção, decoro e virtude dos julgadores,
imparcialidade dos julgamentos e estímulo de condutas condizentes com a sociedade democrática
esperada pelos textos constitucionais.

A preocupação nasce da evidência de que o Judiciário, um dos três pilares da democracia, é o último refúgio do
cidadão contra leis injustas e decisões arbitrárias. Se aos jurisdicionados lhes falta a con ança em sua Justiça,
restará ferido o próprio Estado democrático de Direito, cujo fundamento é a aplicação, a todos os atos e atores
sociais, de leis e regras preestabelecidas (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2008, p. 7).

Um Judiciário de incontestável integridade é a instituição base, essencial, para assegurar a conformidade entre
a democracia e a lei. Mesmo quando todas as restantes proteções falham, ele fornece uma barreira protetora
ao público contra quaisquer violações de seus direitos e liberdades garantidos pela lei (ORGANIZAÇÃO DAS
NAÇÕES UNIDAS, 2008, p. 9).

Enquanto instituição democrática, assim, o Judiciário só pode encontrar a legitimidade de seus


atos se a produção processual se der em conformidade não apenas das regras processuais e materiais
especi camente envolvidas no contexto do caso em debate, mas, também, segundo os preceitos éticos de
atuação de seus agentes. Esta dimensão é pouco discutida não apenas nas análises midiáticas de processos
quanto na própria formação jurídica geral e nas escolas de magistratura.

Tais valores e rami cações dos Princípios de Bangalore conduzem, conforme motivação do Código
de Ética da Magistratura Brasileira (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019), ao compromisso
institucional3 visando a excelência (que não se reduz à e ciência estrita) na prestação do serviço público
jurisdicional, fortalecendo a legitimidade do Poder Judiciário, expressando o reforçamento ético da
instituição que xa a função educativa e exemplar de cidadania sobre os grupos sociais diversos que
compõem o tecido social.

A defesa da dignidade, honra e decoro da pro ssão e a manutenção da conduta irrepreensível


rati cam esse fortalecimento institucional do qual dependem os substratos da construção normativa
esperada pela jurisdição.

A partir de tais dispositivos, pode-se visualizar o imperativo de o magistrado coordenar-se com os


preceitos constitucionais, legais e do direito internacional, o que, embora soe óbvio, demanda a preocupação
com a textura mais re nada e sutil da con guração do direito, que soma aos textos postos a necessidade
de interpretação e aplicação argumentativa, o que implica em um reforço por meio de conhecimentos
transdisciplinares, xando uma estrutura complexa de entendimento e expressão.

3
Conforme regra do Código: “Art. 30. O magistrado bem formado é o que conhece o Direito vigente e desenvolveu as capacidades
técnicas e as atitudes éticas adequadas para aplicá-lo corretamente” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019).

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Hermenêutica humanista, ética da magistratura e os princípios de Bangalore: elementos de uma
normatividade estruturante 89

Sendo assim, o complexo de regras e princípios que normatizam a conduta e a atividade jurisdicional
estabelecem as bases de uma humanização do Judiciário, entendida em sua política institucional e qualidade
de atendimento à sociedade.

Considerações nais

Na vida da cidade republicana e democrática, um corrupto, um autoritário ou um totalitário são


essencialmente anti-humanistas. A violação dos direitos, seja de qual categoria forem, representa dor,
sofrimento, desalento e, assim, são igualmente anti-humanistas porque violam a essência do projeto de
felicidade de cada um, o que é de pleno interesse jurídico.

Não se trata, porém, de um anti-humanismo teórico, com preocupações epistêmico-políticas, em


que se combate uma noção de natureza humana4 em seus efeitos de profunda exclusão e violência; é, antes,
este referido anti-humanismo no exercício da vida pública nas instituições, a negação prática do signi cado
jurídico que “humanidade” pode assumir enquanto um conceito axiológico e constitutivo de obrigações no
exercício dos poderes soberanos.

Após as breves constatações sobre o humanismo propostas em sua forma contemporânea neste artigo,
tem-se, primeiro, seu fundamento de validade, inclusive se pensado ante o teor axiológico-normativo do
ordenamento jurídico, tanto em sua face interna quanto em suas projeções semânticas internacionais, em
peso, pelos preceitos dos direitos humanos. A vigência destes direitos é, por si, constitutiva das obrigações
dos intérpretes em posturas de ética do cuidado e de proteção dos jurisdicionados, a despeito das condutas
atribuídas ou desvaloradas e a conscientização deste dever é uma medida de humanização, ou seja, de não
reducionismo à rei cação e alienação das pessoas sujeitas ao direito e seus agentes.

A violência estrutural, cultural e hegemônica encontra no direito legitimado pelos fundamentos


constitucionais um forte contraponto para se atingirem os objetivos maiores de liberdade e de igualdade,
entendida no rumo de sentidos estabelecido pelos frutos das experiências históricas de violação.

A cultura do medo, da corrupção pública e privada, a força bruta do armamento e a força econômica
e a descon ança da atuação do Poder Judiciário são controvertidos pela tutela dos direitos, que em sentido
contrário objetiva uma promoção de condições de convivência, bem-estar e sustentabilidade.

O Direito, assim, assume sua feição de resistência às arbitrariedades e aos autoritarismos, deem-
se em nome de qual ideal, lícito ou ilícito, sejam expressas. Evidentemente, e essa tem sido uma crítica
recorrente ao humanismo, que o discurso dito humanista pode ser utilizado com as mais diferentes
intencionalidades e nalidades na vida social. Como qualquer outro sistema de explicação e valoração da
realidade, seu teor pode ser desviado na vida prática, e seus preceitos podem ser alterados ou desprezados
no implemento cotidiano.

4
Ao exemplo do debate clássico de Foucault e Chomsky, derivando-se toda a linhagem do pensamento pós-humanista crítico
das premissas do anti-humanismo atribuído àquele lósofo (CHOMSKY; FOUCAULT, 2014).

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90 Eliseu Raphael Venturi

O humanismo, nesse campo de problemas, expressaria apenas uma outra, e mais outra ideologia, ou
discurso de justi cação, para apenas perpetuar situações de dominação, opressão, óbices à plena realização
da vida individual, silenciamento de pretensões de revolta política e assim por diante, expressando-se em
meios de técnica de violência doce.

Mas, nesses casos, como ocorreria com qualquer outro sistema de ideias – inclusive a tão
famigerada crítica ao “idealismo” dos preceitos constitucionais – estar-se-ia apenas diante de uma dupla
má-fé: do intérprete da situação, que contamina as ideias, criticando-as apenas em face do mau uso que
se faz delas (mau uso entendido no sentido de deturpação deliberada de seu direcionamento) e, daquele
que degenera o sentido do corpo de ideias para mascarar uma outra intenção, geralmente criando apenas
um engodo retórico.

Dessa sorte, tal como ocorre com a “democracia”, com os “direitos humanos”, com “a lei” e demais
termos de ancoragem, e, quanto mais, com o “humanismo”, evidentemente não mais se está diante da
forma intelectiva pretendida pelo campo dos estudos do tema, servindo a ressalva como meio de controle
para a apreciação e avaliação dos processos sociais que em seus discursos se valerem do apelo humanista.

O ordenamento jurídico tem se fortalecido com os valores e padrões de conduta pública que objetivam
estabelecer um padrão lógica e hermeneuticamente vinculado aos mais caros preceitos republicanos e
democráticos, o que representa uma ressigni cação do espaço público e uma legitimação de sua existência,
na luta diária pela construção de uma sociedade cujos membros sejam atendidos em suas necessidades e
cujas relações sejam temperadas por meio de preceitos de razoabilidade e proporcionalidade, como meios
de garantir projetos de vida e de felicidade individuais e em sentidos distintos.

A magistratura tem o forte papel institucional de promoção, proteção e garantia dos valores
democráticos e de regulação da vida coletiva, razão pela qual o humanismo encontra em seu trabalho um
fundamental veículo de sua realização.

Assim como todo debate sobre humanização, é preciso pensar as implicações deste conceito para
todas as partes envolvidas, inclusive no sentido das garantias institucionais internas, que devem ser
efetivadas para que o Judiciário possa dar as respostas esperadas por seus jurisdicionados, cujos anseios ou
se expressam presentemente, ou por intermédio da vontade da, e de, Constituição.

Foi neste cenário que o presente artigo pretendeu abordar um debate sobre o conceito losó co do
humanismo, em uma discussão ampla, que incluiu a Filoso a do Direito e o Direito Constitucional, para
então se integrar uma perspectiva da humanização enquanto uma instância epistêmica e hermenêutica no
campo da Hermenêutica Filosó ca, com o exemplo das ciências médicas.

Tratando-se de hermenêutica jurídica, recorreu-se ao conjunto de normatividade jurídica


(referências legais, constitucionais e internacionais) respectivas à ética judicial, pensando-se o problema
do humanismo e da humanização na ótica do Estado Humanista e de sua integração de fontes, em especial
com a criação de obrigações aos julgadores.

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Hermenêutica humanista, ética da magistratura e os princípios de Bangalore: elementos de uma
normatividade estruturante 91

Em conturbados tempos de atuação institucional sob suspeita e da legitimidade das instituições e


formas jurídicas em geral, atravessadas por ruídos de interesses das grandes mídias e com a de agração
de movimentos questionáveis de agentes diversos, o resgate do signi cado normativo dos Princípios de
Bangalore, integrados aos demais preceitos da ética judicial e em consonância a instâncias losó co-
hermenêuticas, podem ser um interessante “começo” para se avaliar nossa qualidade democrática, hoje e
futura. Isto independe de partidos e preferências políticas: é uma questão de Ética e de Direito.

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Diálogos com o “realismo marginal” e a crítica à branquidade:
por que a dogmática processual penal “não vê” o racismo
institucional da gestão policial nas cidades brasileiras?1

Evandro Charles Piza Duarte


Faculdade de Direito da Universidade de Brasília,
Brasília, DF, Brasil
http://orcid.org/0000-0002-0077-0297

Resumo: O texto tematiza as relações entre discurso jurídico e racismo


institucional no Brasil. Trata, especi camente, da violência silenciosa
contida na forma como o próprio discurso jurídico quali ca (ou não
quali ca) as violências das formas de gestão dos espaços urbanos e dos
espaços de encarceramento. Empenha-se em compreender o papel dos
juristas na reprodução dessa violência cotidiana. Para exempli car,
propõe a interpretação dos textos de Eugênio Raúl Zaffaroni sobre as
relações entre a violência institucional e o papel de uma dogmática
Canoas, v. 8, n. 2, 2020 penal crítica para conter a seletividade da agência policial. Desde
o Realismo Marginal (e de sua crítica), sugere que a branquidade
Artigo é essencial para entender os limites das melhores propostas de
reconstrução da dogmática, pois a formação tradicional acadêmica
Recebido: 03.10.2018 provoca efeitos concretos de violência sobre os corpos negros. Logo, a
crítica à dogmática penal necessita ser situada para além da crítica de
Aprovado: 16.09.2019
suas promessas não realizadas. O processo de racialização dos saberes
Publicado: 25.05.2020 e das práticas jurídicas deve ser compreendido nas articulações entre o
dito e o não-dito. Logo, deve incluir os não-ditos dessas promessas de
DOI http://dx.doi.org/10.18316/REDES.v8i2.5151
racionalização da violência institucional, e nominar os que caram fora
do pacto da branquidade de garantia de direitos.
Palavras-chave: Criminologia Crítica; Branquidade; Racismo
Institucional; Violência Policial.

Dialogues with “marginal realism” and the critique to


whiteness: Why criminal procedural dogmatic “doesn’t see” the
institutional racism of police management in Brazilian cities?

Abstract: e text illustrates the relationship between legal discourse


and institutional racism in Brazil. Speci cally, it addresses the silent

1
Este texto revisita e desenvolve argumentos contidos em dois escritos
anteriores, nos prefácios aos livros de Rafael de Deus Garcia e de Tarsila Flores.
Agradeço à Capes que, mediante a concessão de bolsa de pesquisa pós-doutoral
(2018-2019), permitiu a elaboração deste texto, como parte da pesquisa em
andamento na Universidade da Pensilvânia, no Population Studies Center, sob
orientação do Professor PHD Tukufu Zuberi.
96 Evandro Charles Piza Duarte

violence contained in the way the legal discourse itself quali es (or does not qualify) the violence in the management
methods of urban and imprisonment spaces. It strives to understand the role of jurists in reproducing this daily violence.
To exemplify, it proposes the interpretation of Eugênio Raúl Zaffaroni’s texts on the relations between institutional
violence and the role of a critical criminal dogmatic to incorporate the selectivity of the police action. From Marginal
Realism (and its critique), it suggests that whiteness is essential to understanding the boundaries of the best proposals
for reconstructing the legal theory, since traditional academic education causes concrete violent effects on black bodies.
us, the critique of criminal legal theory needs to be situated beyond the critique of its unful lled promises. e
process of racialization of knowledge and legal practices must be understood in the articulations between the said and
the unsaid. erefore, it must include the unspoken aspect of these promises of institutional violence rationalization,
and name those that have fallen outside the whiteness pact that guarantees rights.
Keywords: Critical Criminology; Whiteness; Institutional Racism; Police Violence.

Introdução

Neste texto, apresento argumentos sobre as relações entre o discurso jurídico e o racismo institucional
no Brasil. A questão que me move é a necessidade de re etir sobre os limites reproduzidos cotidianamente
no discurso jurídico que trata de uma parte importante da realidade social: a gestão policial nas cidades e
a gestão do sistema carcerário. Nessas duas formas de gestão, observamos como o discurso jurídico: não
identi ca os atos de violência ilegal; imuniza a responsabilidade dos sujeitos que praticam tais atos; não
debate a responsabilidade daqueles que estão no comando da gestão; não atribui a condição de vítima
àqueles que são afetados direta ou indiretamente por essa gestão; não busca identi car os processos
institucionais que servem para produzir a violência; en m, não entra em contato com os fatos cotidianos
da violência, não confronta os atores que praticam diretamente a violência ilegal ou estão em postos de
comando, não tem mecanismos de transparência e tampouco se importa com os relatos das vítimas.
Portanto, trato da violência silenciosa contida na forma como o próprio discurso jurídico quali ca (ou não
quali ca) as violências dessas formas de gestão (dos espaços urbanos e dos espaços de encarceramento).
Estou empenhado em sugerir outros modos de pensar o discurso da dogmática processual e penal e, ao
mesmo tempo, em denunciar o papel dos juristas na reprodução dessa violência. Isso porque quase sempre
voltamos nossos olhos para a denúncia da violência praticada por um policial, mas não para a violência dos
juristas. Aquela violência, registrada em cenas absurdas, somente pode existir porque há este outro tipo de
violência, aparentemente silenciosa.

Todavia, não utilizo os conceitos explicativos sobre a realidade social em assertivas absolutas,
de tal modo, por exemplo, que a teoria me obrigue a dizer que esta ou aquela característica seja a única
possibilidade porque seja “da natureza das coisas, do sistema, das relações, do direito burguês” etc. O uso
de categorias explicativas desse modo pode servir para ocultar processos e sujeitos reais que estão em
múltiplas tensões, e produzir homogeneização onde há, na verdade, campos de disputas. Esse uso arrisca
a produzir uma desesperança (que pode ser mobilizada politicamente, mas sem perspectiva estratégica)
e um certo gozo aristocrático do intelectual (de um sujeito que pretende ser portador de uma verdade
capaz de explicar todas as dimensões dos fenômenos sociais). Retomar as relações de força e suas tensões
instáveis e contraditórias na produção simbólica e na dimensão institucional do direito é, a meu ver,

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Diálogos com o “realismo marginal” e a crítica à branquidade: por que a dogmática processual
penal “não vê” o racismo institucional da gestão policial nas cidades brasileiras? 97

um modo de fugir à falsa oposição maniqueísta entre “mudanças desde a sociedade” versus “mudanças
desde o direito”.

Para iniciar o debate sobre o modo como os juristas constroem seu raciocínio, escolhi um exemplo
insuspeito de defesa dos Direitos Humanos e da própria racionalidade jurídica como possibilidade. Re ro-
me a Eugênio Raúl Zaffaroni, que propôs, há três décadas, uma resposta teórica, no plano da dogmática
penal, à violência racista do sistema penal na América Latina. Dialogo, portanto, com uma posição à qual
me lio e com um autor pelo qual tenho profundo respeito. Estou empenhado em demonstrar como as
perspectivas críticas sobre a branquidade teriam sido um elemento importante para avançar em alguns dos
limites de sua proposta e como esses limites coincidem com parte da percepção dos juristas, responsáveis
por tornar o racismo institucional invisível para a dogmática (penal e processual).

A seguir, desde a proposta de Zaffaroni, e valendo-me das vivências pessoais como professor
(“branco”) de direito penal e processual penal na rede privada e pública, ensaio uma descrição da forma
como os saberes cotidianos racializados são convertidos em estruturas de raciocínio no aprendizado da
dogmática penal (o que chamo do uso do “exemplo” e do “caso”). Dialogo com o conceito de revolução de
paradigmas e de crise da ciência de omas Kuhn para constatar a importância, novamente, da racialização
das instituições e comunidades cientí cas, responsáveis por sustentar um modelo de percepção jurídica
sobre o racismo institucional das práticas de gestão policial nas cidades brasileiras e no sistema penal.

Ao nal, insisto, em diálogo com a perspectiva do Realismo Marginal, na necessidade de aprofundar


a possibilidade de reconhecimento do racismo institucional como problema pela dogmática jurídica.
Porém, destaco que não se trata “apenas” da diminuição dos padrões de seletividade dos casos individuais
que são levados ao (des) conhecimento dos juízes, mas das dimensões institucionais da produção dessa
violência, inclusive no plano acadêmico, onde a exclusão dos corpos negros representa uma forma de
de nir as sensibilidades sobre os problemas que são considerados relevantes e as estratégias de decisão.

Embora o tema ainda seja pouco desenvolvido, a crítica à branquidade como sistema de poder
tem sido um elemento importante para explicitar como, desde as experiências e a posição situada, são
construídas as perspectivas sobre a investigação teórica e as decisões em que a solidariedade com o destino
do outro é um elemento central (BERTÚLIO, 1989; PRANDO, 2017).

Nesse sentido, Calazans et. al. (2016) propõem considerar as ausências na Criminologia Crítica da
“questão racial”. Por sua vez, Ortegal preocupa-se com as interrelações entre violência, criminalidade e raça
e a forma como tais categorias aparecem no discurso criminológico e na Criminologia Crítica. Identi ca
certo “silêncio” do discurso criminológico crítico, de base teórica marxista, quanto à raça e ao racismo,
muito embora essas categorias tivessem assumido posição central no denominado “paradigma etiológico”
(2016). Freitas desenvolve o argumento de que o “silêncio criminológico”, materializado no ocultamento da
temática racial na produção teórica em Criminologia Crítica, não impediu o surgimento de “interpretações
marginais e divergentes”. O silêncio decorreria da manutenção de posições de poder (de raça, de classe e
de gênero) e de hierarquias no campo do discurso criminológico que nega a condição de sujeitos aos
negros, seja como vítimas ou como intelectuais. Trata-se da manutenção, pela Academia, dos “privilégios

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98 Evandro Charles Piza Duarte

da branquitude”, reprodutora da mesma lógica de marginalização que estrutura o genocídio negro (2016).
Prando (2017) aborda o campo da Criminologia Crítica a partir da in uência da branquidade, propondo a
existência de “dois efeitos da lógica e métodos brancos na produção do conhecimento do campo”: “Tratam
em seus estudos da categoria raça e não das relações raciais e invisibilizam a norma branca que escreve,
pesquisa e produz seus resultados no campo” (2017, p. 10).

A crítica ao silêncio é central a esse debate. A propósito, Dora Lucia de Lima Bertúlio (1989)
escreveu “Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao racismo”, relacionando sistema penal e
racismo institucional, iniciando a crítica dos usos da ideologia da Democracia Racial pelos juristas
brasileiros como forma de negar as demandas por reconhecimento das pessoas negras que são vítimas
de atos de racismo. Sua obra, no entanto, reunia, num momento em que sequer a Teoria Crítica da Raça
havia se organizado no cenário americano, elementos da crítica marxista e liberal para passar em revista as
estruturas normativas constitucional e penal brasileiras, denunciando os elementos racializados de nossa
cultura jurídica, e inspirando intelectuais e juristas negros e dissidentes. Porém, restou isolada pelo poder
acadêmico da branquidade e, em grande medida, desconhecido. Somente as mudanças institucionais,
provocadas pelas lutas sociais por ações a rmativas, foi capaz de provocar algumas fraturas nos espaços de
visibilidade acadêmica e, sobretudo, novos espaços de diálogo. O silêncio dos juristas foi um tema central
de suas pesquisas. Um silêncio que, às vezes, é cuidadosamente articulado para produzir efeitos de poder.

Nesse cenário, destaco que minha posição crítica em relação à branquidade não se situa no plano
dos prazeres da crítica teórica e das honrarias acadêmicas. Como aprendi com a trajetória de vida dessa
intelectual pioneira, a crítica à branquidade não é um jogo de efeitos de verdade e representação do poder
acadêmico, mas uma luta cotidiana de resistência para produzir novos arranjos nas relações de poder
capazes de construir novos direitos. Por tal razão, insisto na necessidade de tematizar como a formação
tradicional acadêmica da branquidade também provoca os efeitos concretos de violência sobre os corpos
negros2. A crítica à dogmática penal se situa para além da crítica de suas promessas não realizadas. O
processo de racialização dos saberes e das práticas jurídicas deve ser compreendido nas articulações
entre o dito e o não-dito. Logo, deve incluir os não-ditos dessas promessas de racionalização da violência
institucional, e nominar os que caram fora do pacto da branquidade.

Um diálogo com o realismo marginal a partir da crítica da branquidade

Para iniciar o debate sobre o modo como os juristas constroem seu raciocínio escolhi um jus-
lósofo e criminólogo que tematizou em seus escritos o racismo. Eugenio Raul Zaffaroni, na obra Em
busca das Penas Perdidas, propôs, a partir da ótica do Realismo Marginal, uma alternativa à cultura jurídica
penalista. Seu diagnóstico reconhecia o impacto do colonialismo (genocídio e racismo) do sistema penal.
Disso resultariam a hipertro a das funções policiais normalizadoras, a subsidiariedade do encarceramento
nos processos de violência institucional e a presença de práticas e discursos subterrâneos, acobertados

2
Sigo, portanto, parte do caminho trilhado por FREITAS (2016).

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Diálogos com o “realismo marginal” e a crítica à branquidade: por que a dogmática processual
penal “não vê” o racismo institucional da gestão policial nas cidades brasileiras? 99

por uma cultura jurídica legalista e formalista incapaz de lidar com elementos empíricos da realidade do
sistema penal.

Zaffaroni demonstrou que as diversas agências do sistema penal estão longe de constituírem um
“sistema orgânico” e, ao invés disso, mantêm áreas de competição. Qualquer um que acompanha o debate
penal já ouviu as queixas de que a polícia civil não respeita o trabalho da polícia militar, de que os juízes
não conhecem o trabalho dos policiais nas ruas e de que o mundo dos gabinetes e das salas de aulas é
diferente daquele “da prática” (ZAFFARONI , 1991).

A Criminologia Crítica, por sua vez, como reconhece o autor, demonstrou o caráter seletivo do
sistema penal, ou seja, enquanto há inúmeras condutas criminosas sendo de nidas e praticadas na realidade,
apenas uma pequena parte dessa realidade chega a ser de conhecimento das instituições. Estas, por sua vez,
operam inúmeras outras seleções que resultam numa minoria de pessoas condenadas. Ao mesmo tempo, o
campo criminológico crítico demonstrou que é impossível, de fato, punir a todos, pois as pautas punitivas
são irracionais e atendem a demandas de legitimação política, ao invés de formularem políticas criminais
consistentes com os recursos efetivamente disponíveis. A lei nunca será para todos, porque o sistema penal
se funda em mecanismos de reprodução da desigualdade, distribuindo desigualmente o bem negativo
“punição” para os mais vulneráveis na hierarquia do poder político e econômico.

O Realismo Marginal comprovou como a punição nos sistemas latino-americanos está em todos os
momentos em que o sistema penal “toca” sua clientela. Aqui a punição sem condenação efetiva, decorrente
de violências nas ruas, nas delegacias, de prisões processuais infundadas, demonstra como a legalidade não
consegue produzir uma legitimidade democrática. Há um mundo de seleções produzidas pelas instituições
que resultam de discursos que não podem ter legitimação pública, pois não decorrem de um monopólio
legítimo da violência, ou seja, da violência regulada previamente pelo direito (ZAFFARONI, 1991). Desse
diagnóstico, resultava uma pergunta: Para legitimar a violência aqui produzida seria necessário que o
direito se degradasse em seus discursos em direção à guerra?

Qual foi a resposta dada pelo Realismo Marginal ao diagnóstico da violência institucional? De
modo direto, se a seleção operada pela polícia era marcada por discriminações e violências cotidianas, qual
deveria ser o papel do direito? O direito, representado especialmente na gura dos juízes e promotores,
deveria usar um discurso de garantia capaz de diminuir o caráter violento dessas seleções, impedindo a
continuidade dos processos de violência naqueles casos:
(...) partindo-se da deslegitimação do sistema penal, é possível de nir provisoriamente o direito penal (o
saber jurídico-penal) como a reconstrução discursiva que interpreta as leis de conteúdo punitivo (leis penais)
para dotar a jurisdição dos limites exatos para o exercício do poder decisório e de modelos ou opiniões não
contraditórios para os con itos que o poder das demais agências seleciona a m de submetê-los a sua decisão,
de modo a proceder de forma menos violenta (ZAFFARONI , 1991).

Ou ainda, em termos de estratégia:


[o] que se deve pretender – e fazer – é que a agência judicial empregue todos os seus esforços de forma a reduzir
cada vez mais, até onde o seu poder permitir, o número e a intensidade destas violações, operando internamente

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100 Evandro Charles Piza Duarte

em nível de contradição com o próprio sistema, a m de obter, desse modo, uma constante elevação dos níveis
reais de realização operativa desses princípios (ZAFFARONI, 1991, p. 235).

A proposta era trazer para a dogmática penal um contra-discurso ao poder. Todavia, a resposta
do Realismo Marginal continha um silêncio importante: ele não estava focado em atuar na realidade
cotidiana da gestão da violência nas cidades que, de fato, nunca é levada ao Poder Judiciário. Ao invés
disso, propunha-se a tarefa de atuar na pequena parte da realidade social selecionada pelo sistema, na
qual caberia, aos juristas, produzir soluções que interrompessem o processo de seletividade. A tarefa aqui
(na parte selecionada pelo sistema) é, sem dúvida, imensa. Ela tem sido esquecida, sobretudo diante do
aumento do número de encarcerados. Teria muito impacto social, pois representaria uma mudança de
postura dos juízes e promotores em relação à violência institucional. Se cássemos apenas na gestão do
sistema “carcerário”, por exemplo, é notório que há um conjunto de problemas bem conhecidos em que a
mera aplicação da Lei de Execução Penal representaria, na prática, mudanças importantes para diminuir
a violação de direitos. Em síntese, padrões garantistas no processo penal, no direito penal e na execução
levariam à absolvição de milhares de pessoas ou à diminuição do caráter a itivo da institucionalização.

Entretanto, silenciosamente, no discurso de Eugenio Zaffaroni, há o reconhecimento de que o


Estado Policial, para aquém dos casos processados e levados ao judiciário, resta aí, como que algo do real,
um excesso, não judicializável, não discursivo (MAGALHÃES, 2017)3. Alguns insistem em chamá-lo de
Estado de Exceção permanente. Lá, bem aqui, estaria o impensável juridicamente, constitucionalmente,
legalmente, dogmaticamente, em tratados ou textos, processos, decisões... As práticas policiais são
“ontologicamente” não jurídicas? A segurança pública não é um problema jurídico? Ali, bem aqui, algo de
silêncio sobre uma sensação de impotência diante da normalização de corpos e mentes que ocorre nas ruas
das cidades. Porém, de quem são os corpos nessas cidades e nas academias que re etem sobre a violência?
Ou quais são o lugares em que o discurso funcionaliza o controle da violência e onde ele resta inaplicável?
Essa normalização (FOUCAULT, 2011)4 (da ciência normal) comporta distinções e privilégios (sociais,
raciais e de gênero). Para alguns, a normalização consiste em fechar os olhos e viver no mundo do direito.
Para outros, a normalização consiste em ter seus corpos e suas vidas apropriadas pelas práticas cotidianas
de violência. Para alguns, é o silêncio sobre o mundo; para outros, é o silêncio imposto pelo mundo.

Na América Latina, as ditaduras deixaram registrada para uma parte da intelectualidade a


proximidade entre gestão policial das cidades e Terror de Estado. Para essa parte, o Poder Judiciário foi
uma esperança e uma estratégia importante para salvar as vidas de modo singular. Ainda assim, foi uma
esperança frustrada, como mostram as diversas experiências da Justiça de Transição. Para outra parte, as
ditaduras representaram um incremento das formas de violência cotidiana, ou seja, foi a época de invenção
das rondas e dos camburões nas periferias, a consolidação de um modelo de urbanização com instituições
cada vez mais militarizadas, e, paulatinamente, com assassinatos justi cados em razão da política de drogas.

3
Valho-me das leituras derridianas de Camilla MAGALHÃES (2017).
4
O conceito de normalização como o fenômeno de irradiação da “norma” sobre todo o corpo social está desenvolvido em
FOUCAULT (2011, 176-177).

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penal “não vê” o racismo institucional da gestão policial nas cidades brasileiras? 101

Ou seja, o Terror de Estado subsiste como uma dimensão cotidiana do Estado Colonial. Nas Ditaduras
Militares, as técnicas de violência utilizadas para uma nova clientela composta de intelectuais de esquerda
foram desenvolvidas a partir das práticas cotidianas da gestão policial das cidades. Os porões da ditadura
foram construídos a partir dos porões da segurança pública.

Entretanto, é preciso compreender que:


a racialização não atinge apenas o corpo dos racializados como subalternizados, mas os corpos nas sociedades
ocidentais, regulando e distribuindo os modos de se habitar um corpo, sentir-se adequado, sofrer e ter prazer
com este corpo, narrar-se como uma continuidade biológica (a família, os antepassados, a origem etc.). Nesse
sentido, não apenas “negros” e “indígenas” foram racializados enquanto os demais grupos não teriam sido objeto
de práticas racializadoras. A branquidade é também um modo de subjetivação do corpo, de sentir com sua
presença biológica. O racismo, como teoria racial, foi pensado em hierarquias internas ao grupo racial e externas
em relação ao demais grupos (DUARTE et. al, 2016, p. 01).

Nesse sentido, são as diferentes formas de racialização que explicam o privilégio de ser vítima, como
destacam Flauzina & Freitas (2017):
Fato é que, de forma extremamente paradoxal, apesar de a vitimização ser a constante na relação de terror
estabelecida a partir das dinâmicas abusivas do terror de Estado, o seu reconhecimento é marca de um privilégio.
Privilégio esse reservado aos parâmetros da branquitude, seja no plano político macro, como evidenciado nas
trincheiras dos processos de revisão histórica que reclama a categoria de presos políticos de forma exclusiva, seja
nos padrões quotidianos em que as mortes, o aprisionamento ilegal e o tratamento abusivo são naturalizados
como rotina porque dirigidos a corpos que não têm a seu dispor a prerrogativa da vitimização (FLAUZINA,
FREITAS, 2017, p. 68).

Para vítimas eventuais, singulares, estratégias de proteção jurídica individuais parecem su cientes
para barrar os processos de violência. Para vítimas sistemáticas, em que o processo de vitimização precede
ao momento considerado “jurídico” pelos juristas, as mudanças requerem novos ajustes institucionais
e, provavelmente, estruturais. Estratégias jurídicas podem ser utilizadas para tensionar as mudanças
institucionais. Porém, neste caso, seria necessário que essa dimensão fosse, no mínimo, objeto do próprio
discurso jurídico, que elas estivessem contidas nas “promessas” de uma dogmática garantista (marginal).

Muito embora a obra de Zaffaroni seja um dos momentos mais importantes da crítica ao racismo
do discurso dos juristas, tanto pelo seu conteúdo quanto pela sua autoridade no campo, não creio que a
violência massi cada e cotidiana tenha sido colocada na centralidade das preocupações do autor. Ela não
considerou os limites de sua proposta nos impactos reais sobre a vida e os corpos que sofrem a maior parte
da violência “fora do sistema legal” e de como ela enfrentaria resistência em instituições administradas
a partir do poder da branquidade. De fato, o autor faz parte de uma geração em que a universalidade na
linguagem é um ponto importante para a legitimação de suas propostas na sociedade e, desde esse ponto de
vista, as sensibilidades também são vistas como universais, mesmo quando trazem as experiências situadas
de um intelectual branco.

Entretanto, como disse acima, esses limites não são capazes de descartar a profunda relevância de
suas re exões, a possibilidade de que elas sejam deslocadas para novas dimensões e o fato de que suas

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propostas constituem uma agenda política teórica e prática relevante. Raúl Zaffaroni foi contundente ao
reconhecer quatro elementos da relação do Judiciário com o processo genocida na América Latina: (a)
que o discurso dos órgãos dos sistemas penais era um “discurso underground” para “comprometidos”,
reprodutor do velho discurso racista-biologista; que era o discurso racista do século XIX, convertido
em um saber para iniciados e em fragmentos que compunha o imaginário dos juristas em sua dimensão
prática; (b) que esse discurso era na verdade o discurso político usado pelas elites locais para justi car
sua posição de hegemonia (o que nos lembra que ele permeia as diversas dimensões de interpretação do
direito, administrativo e constitucional); (c) que o judiciário mantinha com o aparato policial uma relação
marcada por aquele imaginário racista, pois eles são compostos por grupos distintamente racializados
(uma maioria branca e outra negra); (d) por m, que nos meios universitários, repetem-se os discursos
teóricos centrais (gerados para racionalizar um exercício de poder dos órgãos de nossa região marginal)
e, de outro, o discurso dos órgãos dos sistemas penais degrada-se em um “discurso underground” para
“comprometidos”, expressando publicamente um saber discursivamente contraditório e confuso, ao qual o
autor designa de “atitude” (ZAFFARONI, 1991, p. 79).

A ponderação aqui proposta sobre sua posição pode ser exempli cada no modo como o autor
descreve a deslegitimação dos sistemas penais latino-americanos de forma inovadora, ao mesmo tempo
em que não re ete sobre o racismo na produção da inércia desse sistema, “apesar de sua deslegitimação”.
Segundo o autor, haveria uma deslegitimação teórica e uma deslegitimação pelos próprios fatos cotidianos
de violência, característica de nossa região. Desse modo, ele nos convidou a abrir as páginas dos jornais
ou acessar as imagens de violência policial e de matanças nos cárceres, olhar e ver os ataques à dignidade
humana. Ao mesmo tempo, apontou dois elementos centrais para compreender a continuidade de um
sistema penal que, de fato, está deslegitimado: o papel da mídia e o papel da formação jurídica, vinculando-
os aos mecanismos de reprodução do colonialismo (ZAFFARONI, 1991).

Todavia, considero essa resposta insu ciente. Por que nós vivemos numa cultura jurídica cega aos
fatos mais elementares da vida social? Por que os juristas não tematizam a vida das pessoas negras e os
problemas advindos do racismo institucional? Por que as faculdades de direito não tomam como tema a
violência cotidiana?

Bertúlio (1989), Duarte (1997), Flauzina (2008), Goes (2016) têm insistido que a hierarquia racial
e a produção do genocídio do povo negro são a chave explicativa da diferenciação entre os discursos de
proteção jurídica e de violência no âmbito do direito. Zaffaroni tentou descrever as diversas “camadas”
de discursos que integram nosso sistema (discursos fragmentados, discursos subterrâneos, discursos
teoricamente degradados) (1991).

Gostaria de voltar a uma cena pessoal, presenciada, portanto, por um professor branco, para
pensar essa relação racializada sobre o que pode ser “aceito” como um problema jurídico e os diferentes
níveis de discurso. Numa palestra da professora Barbara Hudson, escritora que tratou do tema das
discriminações de classe, gênero e raça na Criminologia inglesa, uma aluna branca brasileira levantou-
se de forma agressiva em minha direção para dizer: “que o sistema penal persegue pobres, isso eu já sei,

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não vou car ouvindo isso”. Interessante é que ela já sabia, mas não poderia car naquele ambiente para
falar algo sobre o tema. Por que isso não pode ser discutido? Por que era algo óbvio? Um processo já
su cientemente debatido?

Em minha vivência de professor5, descobri, sobretudo antes da implementação das políticas de


ação a rmativa nas universidades, que estudantes brancos de direito tinham di culdade em falar sobre
desigualdade, em debatê-la, e estudantes negros sentiam-se mais confortáveis em falar em termos de classe
social. Acho que isso faz sentido por razões distintas, pois o grupo branco e os intelectuais negros isolados,
com algumas exceções, fugiam da posição racial no debate. Para os estudantes negros, falar de pobreza
era buscar, muitas vezes, uma experiência pessoal, mas também uma forma de alcançar um ponto de vista
universal, ou seja, de falar, incluindo a sensibilidade suposta do outro, de tematizar a desigualdade sem
implicar-se pessoalmente em dimensões subjetivas, resultantes de experiências dolorosas. Para o grupo de
estudantes brancos, “não falar” é um lugar confortável para quem tem privilégios ou que pretende esconder
uma marca de origem naquele local privilegiado. A propósito, certa vez entrevistei um advogado negro que
havia sido reprovado três vezes na prova oral em concurso para juiz. Ao ser perguntado se tinha sofrido
racismo, apresentou alguns atos de discriminação ao longo de sua vida. Porém, no momento em que o
tema das provas orais apareceu, sua negativa tomou a forma de uma contrariedade profunda, inclusive,
corporal: “Se eu achar que foi racismo, daí não posso mais fazer a prova; desisto, entende?” O silêncio sobre
a dimensão racializada e a tolerância eventual para a dimensão social estavam articulados.

Atualmente, há elementos “novos”. Os estudantes brancos, diante de estudantes negros que fazem
interpelações sobre o racismo, continuam com as formas de desquali cação discursiva (sobretudo aquelas
veladas, consistentes em micro agressões tais como fazer barulho, olhar para o lado, conversar etc.) ou
apelam para discursos sobre desigualdade econômica, atribuindo valor a explicações que os distanciam
das relações raciais (aliás, creio que esta é uma das causas da reedição do marxismo vulgar ou versões
empobrecidas da teoria da dependência com o apelo à teoria dos sistemas). A acusação moral, aparentemente
contida ou lida como tal, nos argumentos sobre o racismo é di cilmente aceita por estudantes brancos que
tendem a pensar o racismo como um problema de preconceito individual. O debate sobre o racismo atinge
um tema em que o repertório dos argumentos aceitos como “racionais” no espaço público não é acionado,
pois o espaço público, até recentemente, antes das políticas de ação a rmativa e do ativismo pós 1988, era
hegemonicamente branco, sem grandes fraturas discursivas. Por sua vez, uma das cenas que se repete sobre
racismo é uma pessoa branca argumentando que ela não é racista, ou seja, as dimensões públicas de um
problema são transformadas rapidamente numa dimensão pessoal e privada, em tom acusatório, ainda
que o discurso genérico não contenha uma acusação. Essa assunção do problema como culpa pessoal não
ocorre comumente nos espaços em que discutimos desigualdade de renda ou uma inadequação sistêmica,
aqui todos os privilégios raciais são ocultados. A estratégia de crítica aos discursos que denunciam a
existência de desigualdades econômicas não é tomada como um problema de ofensa pessoal. Todavia, há

5
Entrei no curso de direito em 1989 na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e comecei minhas atividades de professor
em 1995.

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104 Evandro Charles Piza Duarte

uma dimensão moral e subjetiva do debate sobre o racismo que atinge as dimensões da sensibilidade e das
experiências negadas no cotidiano, constituindo um interdito importante que precisa ser considerado.

Esse interdito, porém, não pode ser explicado por opções de estratégias discursivas desses estudantes.
A ciência normal, em sua colonialidade, estruturou uma ideologia, a Democracia Racial (MOURA, 1998),
que propõe retratar (e resolver) as “relações entre as raças” como questões da vida privada. Casa Grande &
Senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal (CG&S), publicado em 1933,
foi a interpretação mais conhecida desse ethos brasileiro que, de fato, era uma das facetas “conciliadoras”
do discurso das elites coloniais. Situou a identidade nacional na continuidade da herança portuguesa do
patriarcalismo e na plasticidade racial que estaria presente nos engenhos de açúcar do período colonial. O
problema racial era o “problema negro”, ou seja, da presença do contingente negro na sociedade brasileira,
que era identi cado como a marca do atraso. A solução brasileira teria nascido da miscibilidade dos
portugueses, de sua capacidade de se misturarem, biologicamente e culturalmente, fazendo “bom uso”
das heranças africanas e indígenas. Todavia, a bondade da solução da “valorização” de Freyre somente
faz sentido num contexto em que o direito de desconsiderar a participação africana no plano cultural e
material, e de subordinar e excluir do plano dos direitos as pessoas negras, estrutura o espaço público e,
especialmente, a academia. Ou seja, num ambiente racista, onde se prega a eliminação e a desvalorização
absoluta das pessoas negras, Freyre soa como inovador e bondoso.

Ademais, Gilberto Freyre pensava em “relações entre as raças” como entidades biológico/culturais,
ao invés de “relações raciais” em que a dimensão do poder é central à própria ideia de construção da
percepção da “raça” (constructo social). Todavia, a sua maior “virtude” acadêmica, responsável por garantir
sua hegemonia acadêmica na branquidade, foi não atacar os aspectos institucionais e estruturais do racismo
brasileiro. Ao invés disso, a obra de Freyre reconciliou os descendentes dos senhores de escravos com o seu
passado e, ao mesmo tempo, foi utilizada como uma estratégia de silenciamento dos intelectuais negros. Ela
pretendeu colocar uma pá de cal sobre outras narrativas da violência colonial, transformando a violência
numa dimensão relacional entre o branco sádico e o negro masoquista, e fez das vítimas do escravismo
peças silenciosas da construção de uma sociedade (BERTÚLIO 1989). A circularidade do argumento da
“democracia racial” é importante: “Se não há racismo no Brasil, porque nossa sociedade não é racista, as
denúncias dos intelectuais negros não fazem sentido”. No espaço público, falar de racismo é incentivar o
con ito e, portanto, romper a unidade nacional. Essa ideologia garante o isolamento da academia diante
das demandas das pessoas negras. Todavia, a produção de sentido dessa estratégia somente existe quando se
consegue fechar bem os olhos e os ouvidos, impedir o acesso e as vozes de intelectuais negros na academia
(ou contra ela) (DUARTE, 2011).

No direito, a a rmação de que vivemos numa “democracia racial” permite que o racismo, mesmo
quando constitui o ethos central dos operadores, seja, paradoxalmente, visto apenas como um deslize
individual e não prejudicial, se não for publicamente e explicitamente apresentado (BERTÚLIO 1989).
Todavia, são esses pequenos deslizes de bastidores que mostram como se constroem as decisões. O
discurso para iniciados (e identi cados racialmente como brancos), como falava Zaffaroni, projeta,

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Diálogos com o “realismo marginal” e a crítica à branquidade: por que a dogmática processual
penal “não vê” o racismo institucional da gestão policial nas cidades brasileiras? 105

no cotidiano, o outro racializado. Por meio da rea rmação da “democracia racial”, como demonstrou
Dora Lúcia Bertúlio, os juízes negam a palavra das vítimas de racismo, desvalorizam as provas dos atos
de discriminação racial e solidarizam-se com os agressores (BERTÚLIO 1989). Mais ainda, o direito
ao deslize e ao uso estratégico da integração somente pode existir num ambiente em que os brancos
falam de si e para si, dominam a esfera pública e, portanto, onde predomina, literalmente, a “opinião do
homem branco heterossexual médio”.

O principal interdito sobre o racismo é a dimensão hegemônica da branquidade contida na estrutura


e na representação das carreiras jurídicas e acadêmicas. A irracionalidade de nossa dogmática tem um
vínculo direto com o racismo, o racismo como elemento operacional de produção de violência e o racismo
contido na construção da branquidade como forma de ser dos operadores do direito. Logo, a branquidade
não se manifesta apenas na não consciência de si (de ser racializado como branco), mas no modo como se
organiza os próprios espaços de poder, reproduzindo em outros corpos brancos a continuidade do poder
acadêmico, eventualmente, até para produzir críticas sobre o racismo.

Em razão das múltiplas interpretações que a a rmação anterior pode ter, é imprescindível dizer:
que não considero “ser branco” uma ontologia, decorrente da epiderme, mas uma historicidade (SEGATO,
2007); que não considero “ser branco” uma totalidade, ausente de contradições e fraturas; que não se pode
“ser branco” ou deixar de sê-lo por opções pessoais e construções individuais, pois os sistemas de referência
que produzem sentido social às nossas ações, muito embora não sejam estáticos, não são controlados por
nossos desejos e decisões individuais (DUARTE, 2011).

Portanto, utilizo o termo branco e branquidade como termos que indicam sistemas de poder e não
como grupos de indivíduos, portadores de uma subjetividade estática e previsível. De fato, considero que
pensar a branquidade de forma estática é assumir como válido o argumento racista, das teorias sobre as
raças no século XIX, de que o destino dessas “entidades” (as raças) seja o con ito.

Concordo com Frankenberg, para quem:


1. A branquidade é um lugar de vantagem estrutural nas sociedades estruturadas na dominação racial; 2. A
branquidade é um ‘ponto de vista’, um lugar a partir do qual nos vemos e vemos os outros e as ordens nacionais e
globais; 3. A branquidade é um lócus de elaboração de uma gama de práticas e identidades culturais, muitas vezes
não marcadas e não denominadas, ou denominadas como nacionais ou ‘normativas’, em vez de especi camente
raciais; 4. A branquidade é comumente redenominada ou deslocada dentro das denominações étnicas ou de
classe; 5. Muitas vezes, a inclusão na categoria ‘branco’ é uma questão controvertida e, em diferentes épocas
e lugares, alguns tipos de branquidade são marcadores de fronteiras da própria categoria; 6. Como lugar de
privilégio, a branquidade não é absoluta, mas atravessada por uma gama de outros eixos de privilégio ou
subordinação relativos; estes não apagam nem tornam irrelevante o privilégio racial, mas o modulam ou
modi cam; 7. A branquidade é produto da história e é uma categoria relacional. Como outras localizações
raciais, não tem signi cado intrínseco, mas apenas signi cados socialmente construídos. Nessas condições, os
signi cados da branquidade têm camadas complexas e variam localmente e entre os locais; além disso, seus
signi cados podem parecer simultaneamente maleáveis e in exíveis; 8. O caráter relacional e socialmente
construído da branquidade não signi ca, convém enfatizar, que esse e outros lugares raciais sejam irreais em
seus efeitos materiais e discursivos (FRANKENBERG, 2004, p. 312–313).

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106 Evandro Charles Piza Duarte

Creio que as noções de branquidade dialogam com os argumentos propostos pelo Realismo
Marginal, trazendo novos elementos para a forma como pensamos a formação jurídica e a racionalidade
dos discursos dos juristas, de sua “dogmática penal”.

O trivial cotidiano da formação jurídica é composto, por discursos “não jurídicos” em sala de
aula, pelos aprendizados nos estágios junto aos operadores do direito, as conversas cotidianas, pelo per l
dos professores (na sua maioria homens brancos cis e heterossexuais), pela qualidade do espaço público
(incapaz de debater desigualdades e discriminações). O lado prático e não público da formação (o discurso
de iniciados) constrói um tipo de racionalidade que impacta na compreensão da dogmática. A dogmática
trata dos grandes temas porque aborda, justamente, aquilo que os juristas não falam no cotidiano. O mundo
da dogmática “re nada” não tem utilidade para o trivial, mas apenas para a exceção estrangeira. Esse olhar
da cópia busca no real a repetição do que está lá fora, mas desde que isso não estabeleça um confronto com
a dimensão prática e cotidiana onde os corpos racializados circulam.

O que permite essa identi cação, essa mediação, é a branquidade, a branquidade como estrutura
de poder, por exemplo, das redes internacionais de poder acadêmico formadas pelos mesmos sujeitos e,
também, como patologia, ou seja, como o desejo de ter ou identi car-se com os símbolos da branquidade
que faz da academia colonial branca, muitas vezes, um conjunto de tipos sociais (também risíveis) de
caricaturas das universidades americanas e europeias. A busca da legitimação, interna e externa, transforma
as academias da periferia (da branquidade) espaços mais brancos que as academias dos países centrais,
tanto em sua presença numérica quanto em suas performances6.

A crítica à ciência normal da branquidade e sua crise moral

O debate proposto por omas Kuhn sobre as Revoluções Cientí cas tem sido central na
Criminologia Crítica para pensar os debates acadêmicos sobre o modo como pensamos a punição e os
sujeitos envolvidos em sua dinâmica social. Para o autor, as Mudanças de Paradigmas são considerados
como episódios de desenvolvimento não cumulativos, em que um paradigma mais antigo é substituído
por um novo, incompatível com o anterior. Nesse contexto, o termo paradigma possui dois sentidos
complementares: (a) “toda a constelação de crenças, valores, técnicas, etc..., partilhadas pelos membros
de uma comunidade determinada;” (b) “um tipo de elemento dessa constelação: As soluções concretas
de quebra-cabeças que, empregadas como modelo ou exemplos, podem substituir regras explícitas como
base para a solução dos restantes quebra-cabeças da ciência normal” (KUHN, 1996, p. 218). Logo, se o
paradigma indicava as crenças de fundo, essas crenças eram traduzidas no “quebra-cabeças” que orientava
a ação intelectual. As crenças de fundo e, por assim dizer, as dimensões práticas dessas crenças, de modo
circular, de niam a própria comunidade cientí ca. Ou seja: “Um paradigma é aquilo que os membros
de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade cientí ca consiste em homens que
partilham um paradigma” (KUHN, 1996, p. 219).

6
O argumento de que há menos professores ou alunos negros em universidades brasileiras que em universidades europeias tem
sido defendido por CARVALHO (2003; 2006) e também foi constatado em minhas poucas experiências de internacionalização.

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Ao re etir sobre as mudanças nos paradigmas cientí cos, Kuhn aposta no esgotamento racional das
perguntas “quando os membros da pro ssão não podem mais esquivar-se das anomalias que subvertem a
tradição existente da prática cientí ca – então começam as investigações extraordinárias que nalmente
conduzem a pro ssão a um novo conjunto de compromissos, a uma nova base para a prática da ciência.
Daí seu conceito de “revolução cientí ca” para denominar “os episódios extraordinários nos quais ocorrem
essa alteração de compromissos pro ssionais”. As revoluções cientí cas são complementos desintegradores
da tradição à qual a atividade da ciência normal está ligada. Por sua vez, a ciência normal “signi ca a
pesquisa rmemente baseada em uma ou mais realizações cientí cas. Essas realizações são reconhecidas
durante algum tempo por alguma comunidade cientí ca especí ca como proporcionando os fundamentos
para sua prática posterior” (1996, p. 25-29).

Se a “revolução cientí ca” implicava num esgotamento das questões práticas internas, omas
Kuhn indicava, porém, a importância da “percepção subjetiva” dos pesquisadores, das “sensibilidades” da
“comunidade cientí ca” ou, nas palavras do autor, “o sentimento de funcionamento defeituoso”:
De forma muito semelhante (ao que ocorre nas revoluções políticas), as revoluções cientí cas iniciam-se com um
sentimento crescente, também seguidamente restrito a uma pequena subdivisão da comunidade cientí ca, de
que o paradigma existente deixou de funcionar adequadamente na exploração de um aspecto da natureza, cuja
exploração fora anteriormente dirigida pelo paradigma. Tanto no desenvolvimento político como no cientí co,
o sentimento de funcionamento defeituoso, que pode levar à crise, é um pré-requisito para a revolução (KUHN,
1996, p. 126).

Alessandro Baratta (1989; 1990, 1997) e Vera Regina Pereira Andrade (1995, 1997), no âmbito
da crítica criminológica, ao abordarem o tema, apresentaram as transformações na ciência relativas ao
esgotamento das perguntas centrais do paradigma etiológico e o desenvolvimento do paradigma da
reação social. Ao mesmo tempo, demonstraram como o paradigma etiológico não tinha uma sustentação
meramente interna, pois ele era responsável pela consolidação de uma ideologia mais ampla: “a Ideologia
da Defesa Social”. Logo, no sistema penal os “saberes penais” eram elementos da prática interna dos juristas
(a comunidade cientí ca) e, no mesmo passo, da reprodução ideológica do sistema que passava pela
formação acadêmica (as universidades) e, ainda, pelo acoplamento do sistema à reprodução ideológica
social (especialmente pela mídia).

Nas resistências epistemológicas (CARNEIRO, 2005), os conceitos de experiência situada e


sensibilidade, defendidas por epistemologias feministas e pelo pensamento negro (COLLINS, 2016), têm
sido duas estratégias importantes para provocar deslocamentos na verdade produzida pela ciência normal
(PRANDO, 2017). Novas sujeitas, ao falarem de si de uma perspectiva situada, trazem novas dimensões
para compreender os conceitos de violência. Novas formas de narrar produzidas por novas sujeitas que
vivem para além dos portões institucionais ou que conseguiram vencer as barreiras do racismo institucional
(DUARTE, QUEIROZ E FARRANHA, 2017).

Alguns nichos acadêmicos de intelectuais feministas, queers e negros se organizam em espaços


de resistência, muitas vezes excluídos de redes mais amplas de poder acadêmico, e produzem dinâmicas
contra-hegemônicas que permitem organizar novos campos de conhecimento. Todavia, na nossa academia
108 Evandro Charles Piza Duarte

colonial, com algumas exceções, as novas intelectuais têm diante de si a árdua tarefa de iniciarem seus
textos num duplo movimento: há ensaios de se valer das experiências de outros países ou de criar novos
marcos gerais à força da urgência que, em sua urgência, vive na precariedade. A precariedade do lugar
institucional acadêmico é, de fato, uma posição determinante para aqueles que habitam a precariedade
produzida e reproduzida nos poderes da branquidade que domina e molda as instituições.

Habitar entre as fronteiras, todavia, pode ser uma virtude (COLLINS, 2016). Valho-me do exemplo de
ula Pires, que avança na possibilidade de uma outra perspectiva criminológica em “pretuguês”, utilizando-
se dos textos de Lélia Gonzalez, outra intelectual negra excluída dos espaços acadêmicos da branquidade:
Tem-se por objetivo, mobilizar as categorias de análise desenvolvidas por Lélia Gonzalez para propor uma crítica
criminológica decolonial que “carrega na tinta”, que busca racializar para politizar as disputas em torno do
signi cado da política criminal, direito penal e processo penal, segurança pública e direitos humanos, de modo
a ser apreensível pelos corpos que secular e desproporcionalmente aguentam os ônus do modelo de extermínio,
controle e punição hegemônico (PIRES, 2017, p. 552).

Entretanto, é preciso ressaltar, numa academia, ainda apropriada pelo poder da branquidade, que a
crise da ciência normal é apenas moral (BUCK-MORSS, 2011)7. Não se trata de uma crise paradigmática,
pois isso sequer pode, na maioria dos campos de conhecimento, ser colocado em questão. A ideia de “crise
moral” pode ser pensada a partir da noção de “desautorização”, ou seja, de situações nas quais nossos
discursos éticos professados publicamente são incompatíveis com nossas práticas. De certo modo, tal
posição de confronto é inerente à condição humana, às críticas que dirigimos a nós mesmos e que nos são
dirigidas. A “desautorização” nos impulsiona a processos transformadores importantes, em que nossas
ações negam nossas ações passadas para que nosso agir esteja adequado aos valores que professamos. A
“desautorização” se assemelha à noção de inadequação paradigmática, porém, as práticas dos pro ssionais
de uma ciência não serão revistas de modo racional e em seu conjunto. Desautorizadas, as práticas que
reforçam a branquidade, geram um desconforto individual em alguns, mas a ciência segue.

Numa academia colonial (ou quando se observa desde determinadas perspectivas da exclusão) os
padrões de contradição entre discursos e práticas adquirem níveis sistêmicos. Como explicar que estudantes
talentosos e com excelentes temas de pesquisa sejam excluídos porque a instituição considera “normal”
a exclusão de determinados temas de pesquisa, os quais alcançam grupos pertencentes a grupos sociais
determinados? Onde a branquidade domina as formas de acesso na formação de pesquisadores, as pautas
de pesquisa, os critérios de excelência, as redes de apoio e de nanciamento, não há crise paradigmática. A
branquidade pode seguir fazendo as mesmas perguntas e dando-se as mesmas respostas. A branquidade
não duvida de sua fábula de competência e produtividade. Não há esgotamento, há mesmicidade e auto-
honrarias (PIRES, 2017). A crise somente pode ser moral porque a universidade está cada vez mais exposta
à realidade virtual e a diversas esferas públicas contra-hegemônicas, como o movimento negro, LGBT e
de mulheres. Às vezes, a crítica vem de dentro e, em raras situações, é absorvida. Porém, sem mudança
nas redes de poder acadêmico, a universidade ameaça perder o seu mais importante momento de uma

7
Valho-me do conceito de desautorização presente em BUCK-MORSS (2011).

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Diálogos com o “realismo marginal” e a crítica à branquidade: por que a dogmática processual
penal “não vê” o racismo institucional da gestão policial nas cidades brasileiras? 109

nova reconstrução num cenário em que as políticas de ação a rmativa produzem efeitos na pós-graduação
(CARVALHO, 2003).

Apreender a branquidade no “quebra-cabeça” das ciências criminais

Creio que se pode pensar ainda em situações em que as “sensibilidades” estruturam, de fato, o
“quebra-cabeça” interno nas ciências criminais. Nesse sentido, gostaria de apresentar argumentos quanto:
(a) às práticas de ensino e de exposição dos manuais de direito; (b) ao conceito de violência legítima
contida nos discursos sobre nalidade do direito processual penal; (c) ao conceito de inquérito como
procedimento que registra a investigação ocorrida na fase pré-processual. Esses três argumentos, como
disse no início, parecem-me dimensões em que as sensibilidades se articulam com as crenças e as soluções.
Obviamente, não descarto a importância de ideologias como a Ideologia da Defesa Social e o Punitivismo.
Porém, o objetivo é compreender a articulação da produção do silêncio e da decisão no “quebra-cabeças”
dos juristas vinculados à operatividade do sistema penal.

Na ciência normal, o conceito de violência partiu de noções desistorizadas dos construtores dos
discursos e de sua audiência participante. Sujeitos violentadores, ações de violação, direitos violados e
vítimas foram os elementos para de nir os tipos de violência: individual, institucional e estrutural.
O discurso sem história e, portanto, sem corpo, universalizou determinadas percepções e pressupôs a
existência de leitores universais. Um dos temas que atravessa os limites dessas de nições são os resultados
aonde se chega e que, de fato, estão pressupostos nos exemplos e nos casos. Eles trazem a sensibilidade do
escritor em sua historicidade: branco, heterocisnormativo, proprietário, defensor de alguma moral e senso
de estética hegemônicas. Assim, por exemplo, num manual de direito a violência individual é descrita pela
ação do homem que esfaqueia outro homem. Nada se fala sobre as microagressões que levam ao suicídio
de indivíduos encurralados pelo preconceito (JUNQUEIRA, 2012). O ato único de força do “macho”
guerreiro, transformado em lição, tampouco retrata seus gritos, suas ameaças e os estupros às mulheres no
cotidiano de casamentos socialmente impostos.

Na tradição do ensino continental, o exemplo, mais do que o caso concreto, é o arquétipo que
a realidade deve repetir para ser considerada relevante para o direito. O arquétipo busca seu duplo na
realidade e orienta a ação. Explica-se em sala de aula o conceito de furto famélico (aquele que não contraria
o direito por con gurar “estado de necessidade”), propondo um desenho. Os contornos são construídos
a partir do olhar do desenhista e do provável leitor nas academias de direito e nos tribunais (compostos
em sua maioria por homens brancos heterocisnormativos). Neste caso, a hipótese que parece sugerir uma
imitação do real, na realidade, di cilmente se realiza para bene ciar a clientela do sistema penal, formada
por pessoas negras e pobres. O exemplo é o caso do náufrago que durante dias sem comer chega em terra e
invade a casa na praia, mas não é a mãe negra que furta leite em pó ou fraldas para sua lha. Nessa tradição,
o exemplo fala de um real imaginado para não falar do real que está por toda parte, ao redor da sala de
aula (PONTE CARVALHO, DUARTE, 2018; DUARTE, 2017; DUARTE, KALKMANN, 2018; DUARTE,
QUEIROZ, COSTA, 2016).

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110 Evandro Charles Piza Duarte

No ensino de tradição inglesa, o caso tem dois usos bem conhecidos. O caso de estudo empírico e
o caso jurídico.

O caso jurídico parece seguir o sentido oposto, parte do inusitado da realidade e, ao ser estudado,
fornece uma nova dimensão não reconhecida dos casos anteriores. Ele alarga o sentido. pois há um novo
olhar sobre o real (DWORKIN, 2007). O caso, porém, tem sua relevância construída pelo poder de decisão
de uma corte formada por aqueles mesmos senhores do exemplo. No caso, a sensibilidade que alarga o olhar,
o restringe ao mesmo tempo. A Suprema Corte Americana, ao longo de sua história, decidiu inúmeras
vezes sobre casos nos quais o racismo era o tema central, sem jamais tocar no assunto e, quando o fez,
construiu o belo conceito de diversidade das instituições sem questionar o próprio poder da branquidade
(WARE, 2007) resultante do colonialismo e da escravidão (DUARTE, QUEIROZ, 2017).

Por sua vez, o caso de estudo empírico nos leva ao poder acadêmico que, assim como o poder
jurídico, se organiza em bases semelhantes. Os conceitos de interesse e de visão de mundo têm servido
para demonstrar como os estudos empíricos e as rupturas no campo correspondem a in uências externas
e a mudanças institucionais que transformam as pautas de pesquisa acadêmica. Porém, a ideia de prova
empírica exerce um outro poder fundamental, semelhante ao do precedente, pois quem se propõe inovar
em algo no campo cientí co tem a seu desfavor o acúmulo histórico da ciência branca colonial europeia.
A prova empírica encontra sua validação na capacidade de se relacionar a outras provas e, assim, de
modo encadeado, falar mais do mesmo e para os mesmos que dominam as linhas de pesquisa e os
estudos anteriores.

Quando se considera a crise da dogmática (ANDRADE, 2007)8 processual penal, percebe-se que ela
somente não é mais evidente porque uma de suas estruturas centrais de legitimação é a própria de nição
do âmbito de abrangência de suas contradições internas. A leitura de obras introdutórias de processo penal,
inclusive algumas do espectro crítico, demonstra que o esforço discursivo do campo está em organizar
conceitos, percepções, recomendações práticas, a partir do reconhecimento da necessidade de provocar
um equilíbrio entre o direito de punir estatal e o direito de liberdade dos indivíduos. Desde esse ponto
de partida, ora se agrupam os que pretendem, de modo mais truculento ou mais envernizado, defender a
supremacia da necessidade da punição (interesse da sociedade, da coletividade, público etc.), ora aqueles
que apontam para a necessidade de estruturar a punição racionalmente, produzindo, neste caso, conceitos
que garantam os direitos fundamentais dos acusados. Na sua aparente contradição, disputam o campo

8
Como argumenta Vera Andrade: “A Dogmática Penal é um dos desdobramentos disciplinares da Dogmática Jurídica (que
deita raízes na Escola histórica, como Dogmática do Direito privado) e, como tal, é o modelo de Ciência do Direito Penal que
se consolidou desde nais do século XIX na Europa ocidental (especialmente desde Alemanha e Itália) e se transnacionalizou,
sendo posteriormente recebido em outros Estados da Europa continental (Espanha, Portugal, Grécia, Holanda...) e da América
Latina (Brasil, Argentina, Costa Rica, Peru, Venezuela...) e assumindo então o estatuto de um paradigma , com uma marcada
vigência histórica no centro e na periferia da modernidade – o que aponta para um potencial universalista do paradigma
que lhe permite funcionar contextualizadamente e fora do lugar de origem. No Brasil é recepcionado pela comunidade de
penalistas desde as primeiras décadas do século XX, por in uência principalmente de Arturo Rocco e Vincenzo Manzini, e, por
consequência, do Código Penal italiano de 1930, in uenciando o Código Penal brasileiro de 1940” (ANDRADE, 2007).

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Diálogos com o “realismo marginal” e a crítica à branquidade: por que a dogmática processual
penal “não vê” o racismo institucional da gestão policial nas cidades brasileiras? 111

dentro dessas fronteiras onde ressurge o poder de punir, legitimado por suas funções de segurança, quer
da sociedade quer dos indivíduos (ou de outras abstrações que lhe sejam correspondentes). Mas como
poderia ser diferente? Em ambos os polos está a representação do Estado como monopólio legítimo da
violência, cumprindo o seu papel de conter a violência social e tornando legítimo, mediante o respeito aos
procedimentos, o próprio uso da violência.

A racionalidade dessa dogmática processual penal, portanto, é sustentada pelo mito do Estado de
Direito que, como mito, não é debatido em sua historicidade concreta, mas produz efeitos de verdade
ao ser tomado como realidade. Que Estado de Direito é esse forjado a partir da Guerra Colonial contra
sociedades inteiras, instrumento de escravização, de desumanização de sujeitos, de apossamento de corpos,
de expropriação de terras, de aniquilamento e apropriação de culturas? Que Estado de Direito é esse, desde
sempre, apropriado privadamente por elites econômicas racializadas que reproduzem seus privilégios (da
branquidade e da colonialidade) tanto na composição das instituições quanto no monopólio do discurso
sobre o passado e o presente das disputas sociais por direitos? (DUARTE, QUEIROZ, COSTA, 2016;
FLAUZINA, 2008; DUARTE, 2002; CARVALHO, DUARTE, 2017; FRANKLIN, 2017; NOVAES, 2017;
SANTOS, 2016; DUARTE, SCOTTI, CARVALHO NETO, 2015; FREITAS, 2016; CALAZANS et al, 2016)

A face bélica do Estado, apenas em sua super cialidade aparentemente neutra e sempre em disputa
nas lutas por hegemonia, traz em seu DNA institucional a marca colonial. Reforçar a cultura punitiva
e as estratégias de punição é, sem muito esforço, alimentar esse modelo de colonialidade do direito
(SANTAMARIA, 2010; QUIJANO, 2005). A disputa pelo direito, especialmente o debate constitucional,
compõe tentativas de moldar a guerra, limitando as formas de violência (BARATA, 1997; ROSA, 2014;
CARVALHO, 2004)9. Porém, esse caminho necessário corre sempre o risco de, ao negar-se o confronto
com sua historicidade, transformar em vazios semânticos as palavras e a gramática utilizada para falar
sobre direitos fundamentais.

A questão está em saber: quais são as disputas constitucionais que rede nem, efetivamente, as
dimensões bélicas do exercício do poder punitivo?

Como tem deixado evidenciado o Realismo Marginal e a “crítica à branquidade”, a Luta pelo Direito,
expressão cunha por Ihering (2009), não deveria ser descrita como intuitiva como fez a tradição liberal, pois
ideologicamente ela nunca é10. A hegemonia cultural11 presente na de nição dos problemas com os quais a

9
Alessandro Baratta a rma: “Um esforço conjunto de fantasia da parte dos juristas e de imaginação coletiva possibilitaria
emancipar a cultura da política da cultura do penal. Esse esforço deve visar uma releitura radical de todas as necessidades e de
todas as emergências, através do sistema dos direitos fundamentais e da arquitetura normativa da Constituição. Não se trata
simplesmente de desenhar o direito penal da Constituição, mas sim de rede nir a política segundo o desenho constitucional,
como política de realização dos direitos” (BARATTA, 1997). Nesse sentido, vejam-se: (ROSA, 2014; CARVALHO, 2004).
10
Veja-se o caráter privatista e elitista que a “luta pelo direito” comumente recebe a partir da obra de IHERING (2009).
11
Uso o conceito de hegemonia a partir de Gramsci, que signi ca a preponderância da persuasão sobre a coerção na construção
das relações interativas entre indivíduos. Como argumenta Carlos Nelson Coutinho: “(...) Gramsci articula explicitamente a
hegemonia com a obtenção do consenso, distinguindo assim da coerção enquanto meio de determinar a ação dos homens”
(COUTINHO, 1989, 67-68).

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112 Evandro Charles Piza Duarte

dogmática processual penal deve se ocupar aproxima, mais do que distancia, os dois extremos em disputa
pela de nição do “equilíbrio”, a defesa dos direitos fundamentais e a garantia da tutela penal. A composição
das universidades, das revistas especializadas, dos congressos, dos espaços de “reprodução ideológica do
sistema” (BARATTA, 1990, p. 34) inclui um treinamento para a defesa e para a crítica do sistema. Não
signi ca que a defesa de um ponto de vista punitivista e de outro garantista sejam idênticos. Não o são,
com certeza. Todavia, há muito a dizer sobre o silêncio em relação a formas cotidianas de violência. Não
é por acaso que no campo da dogmática processual penal as cções jurídicas são tão fantasiosas quanto
ambivalentes. Num dia o excelentíssimo Ministro da Corte Constitucional acorda garantista para, ao nal
do dia, sonhar-se punitivista. De fato, faltam adjetivações para o caráter delirante de muitos dos esquemas
mentais utilizados. De igual modo, novas percepções sobre a realidade e tentativas de rede nição das
fronteiras são rapidamente reapropriadas em modas acadêmicas, do garantismo ao garantismo de escritório
(ANDRADE, 2007), do abolicionismo ao denuncismo acadêmico de redes, da crítica radical ao auditório
radicalmente constituído pela audiência socialmente privilegiada etc.

De outra parte, há toda uma geração que, ao se defrontar com problemas cotidianos, foge rapidamente
da disputa no campo dogmático para produzir discursos radicais de denúncias sobre a realidade (valendo-se
da repetição dos conceitos da moda crítica), mas que não articula soluções dogmáticas, estratégias políticas
ou dialoga com sujeitos coletivos. Denúncias contundentes sem respostas técnicas e sem diagnóstico.
No mesmo passo, os grandes debates da dogmática processual situam-se em problemas que constituem
violações fundamentais graves, mas que, quase sempre, não se dirigem aos graves problemas cotidianos
para a população. O que dizer da doutrina (garantista) da exclusão da prova ilícita que pouco ou nada diz
sobre o direito mais elementar do cidadão de estar no espaço público? Fala-se em violação da intimidade
nas interceptações telefônicas, mas nada sobre o baculejo, o tapa na cara, o desce e encosta todo mundo
na parede (WANDERLEY, 2017). O que dizer da doutrina (garantista), que se ergue contra a possibilidade
do uso do inquérito policial como elemento de prova, mas silencia sobre as investigações realizadas
diuturnamente pelas polícias militares? Fala-se do inquérito como se a violência hoje nas periferias se
situasse nas delegacias, fechando os olhos ao fato de que os bairros da periferia se transformam em zonas
de guerra nas quais repressão, juízo e execução estão num contínuo de violência, ali na cada dura. Fala-se
em liberdade de expressão enquanto as polícias transformam as periferias em áreas de exceção, nas quais
se impõe toques de recolher, estratégias de intimidação e repressão (como o aumento das revistas, prisões,
presença ostensiva e criminalizadora) quando há manifestações populares (como bailes, casamentos, festas
etc.) (REIS, 2001; AVELAR, 2016; BATISTA, 2009).

Todos os problemas que interessam a uma dogmática processual garantista, desde uma perspectiva
do Realismo Marginal, deveriam ser (também) problemas da gestão policial (dos con itos sociais, dos
processos de construção da verdade, de aplicação de sanções penais etc.). São os problemas da gestão
policial trazidas ao processo e os problemas esquecidos nas práticas jurídicas de uma “ciência normal” do
direito. Problemas sobre o indizível.

Para começar, é preciso reconhecer que o inquérito não começa e tampouco termina na de nição
dos manuais segundo a qual o inquérito se trata de um procedimento escrito. Nada está escrito no Inquérito.

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Diálogos com o “realismo marginal” e a crítica à branquidade: por que a dogmática processual
penal “não vê” o racismo institucional da gestão policial nas cidades brasileiras? 113

Ao contrário, ele é apenas o resultado de um trabalho cuidadoso de ocultação dos procedimentos que
levam à produção de um resultado, consistente na atribuição arbitrária de uma culpa, por parte de um
poder que não se submete às regras jurídicas, mas, tão somente, busca validar a posteriori suas opções de
controle social. O inquérito não começa nas delegacias, começa nas ruas, na gestão racializada dos espaços
na cidade.

Segundo, é preciso reconhecer que a unidade do sistema não existe. A reforma processual de
1941 dizia pretender impedir a fragmentação do sistema pela manutenção do inquérito, diante da
impossibilidade de impor um “juiz de instrução”. De fato, era algo bem diferente. A presença do inquérito
permitia a maleabilidade jurídica e o ocultamento de que nos diferentes estados, em diferentes cidades,
delegacias, a fase de investigação se confundia e se transformava junto aos mecanismos de gestão da
população. As regras de controle de escravos e libertos, a legislação sobre vadiagem, as prisões e detenções
para averiguação, as regras processuais sobre prisão preventiva e as exceções para os sem trabalho e sem
domicílio e, nalmente a política de combate às drogas, mostram um contínuo e, ao mesmo tempo, uma
adaptação local à segregação urbana e social de direitos. Aqui as polícias estão em trabalho sincrônico com
o Poder Judiciário. Muito se insiste sobre o caráter inquisitório do processo a partir das possibilidades legais
conferidas aos juízes na gestão da prova na fase processual (especialmente, a possibilidade de determinar
a prova de ofício). O argumento convence, mas não vence a realidade cotidiana dos processos penais. Em
sua dimensão cotidiana e massi cada, o juiz padrão surge como um burocrata legalista que esconde suas
decisões na inércia (VARGAS, 2011).

Todavia, há um ato jurisdicional fundante do processo penal: a decisão de validar, de não questionar,
de não problematizar, de reconhecer o valor intrínseco de tudo que é feito na fase de investigação. Não se
trata apenas de trazer o inquérito para o processo, trata-se de sequer questionar como aquilo se transformou
em inquérito. A dogmática processual, o habitus (BOURDIEU, 2007)12 acadêmico e pro ssional não têm
categorias para dizer ou acessar essa realidade. A ladainha silenciosa é sempre a mesma. O juiz padrão olha
atenciosamente os papéis e copia atenciosamente seus arquivos de jurisprudência, tem horror ao que está
ali na rua, diante do Fórum. Não precisa fazer força para ser inquisidor. Seu papel é mais simples, precisa
apenas dizer para si e para o mundo que não há inquisição alguma matando pessoas todos os dias. O
irretocável trabalho das polícias é a face dinâmica das mãos sempre limpas dos juízes. Diante do aparato
policial que entrega os corpos e os discursos de culpabilidade, as delegacias e os inquéritos apagam as
manchas de sangue, formalizando os discursos, e o sistema judicial valida a “fraude processual”.

Como se constrói esse pacto de silêncios? E poderia ser diferente? É preciso reconhecer que o modo
como os operadores da dogmática processual penal raciocinam em relação ao aparato policial não é da
natureza das coisas, desse código da natureza que separaria o jurídico do não jurídico, estabelecendo que o
juiz deve se calar sobre fatos tão duvidosos quanto a investigação. A leitura de decisões da Suprema Corte

12
Bourdieu de ne habitus como um: “sistema de disposições socialmente constituídas que, enquanto estruturas estruturadas e
estruturantes, constituem o princípio gerador e uni cador do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo
de agentes” (BOURDIEU, 2007, 191).

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114 Evandro Charles Piza Duarte

Americana, das Cortes Europeias, do Tribunal Europeu de Direitos Humanos e da Corte Interamericana
de Direitos Humanos nos faria encontrar diversas tentativas de controle jurisdicional da fase policial
(DUARTE, MURARO, LACERDA, DEUS GARCIA, 2014; WANDERLEY, 2017; RODRIGUES, 2015).

Infelizmente, a resposta jurídica padrão já está dada: é preciso melhorar o treinamento policial.
Seguramente as formas de intervenção no aparato policial são múltiplas (CANO, 2005). O que se questiona
aqui é o papel do Direito e dos Juristas, e especialmente do Direito Constitucional (CARVALHO NETTO,
2000, 2003, 2003; CARVALHO NETTO, SCOTTI, 2012). No plano prático, é possível falar em treinamento
para a melhoria, ao mesmo tempo em que se valida o bom trabalho trazido ao processo? Como a dogmática
processual penal tematiza as atividades policiais e seus resultados? Essas perguntas não podem ser
descartadas por não terem a resposta única e ideal. De fato, essas questões deveriam compor um horizonte
de novas problemáticas (DUARTE, MURARO, LACERDA, DEUS GARCIA, 2014).

Considerações nais

A proposta deste texto foi re etir sobre a violência contida no discurso jurídico quando ele trata
uma parte importante da realidade social: a gestão policial nas cidades e a gestão do sistema carcerário.
Tentei demonstrar como os limites “jurídicos” para tratar desses problemas não são jurídicos, mas decorre
do modo como a branquidade impacta os arranjos institucionais, de ne pautas políticas, formas de
aprendizado e subjetividades.

Uma primeira questão fundamental é: como o Poder Judiciário, o Ministério Público e as Defensorias
interagem, do ponto de vista racial, com o aparato policial? A segunda questão fundamental: por que devo
aceitar sua resposta calcada numa tradição acadêmica que não resolve as questões centrais da violência no
Estado Colonial?

Há, obviamente, uma ausência de estudos mais sistemáticos sobre a composição racial e as dinâmicas
racializadas dessas instituições. A própria ausência é uma das marcas do racismo institucional, pois muitas
das instituições decidem não produzir ou não publicizar os dados. Do ponto de vista ético, as vítimas de
um sistema de poder sem transparência (ou transparência reduzida) não podem ser responsabilizadas pela
ausência desses dados. O Poder Judiciário é desproporcionalmente branco e, nos níveis de maior hierarquia,
branco e masculino. O mesmo se pode dizer do Ministério Público e parcialmente das defensorias. Por
sua vez, o aparato policial é, nos postos mais altos da hierarquia da gestão, predominantemente branco, e,
nas atividades de policiamento, desproporcionalmente branco, mas com uma maior presença de pessoas
negras (DUARTE & FREITAS, 2018).

O discurso mais comum no cotidiano das respostas institucionais é, por parte do Poder Judiciário,
atribuir a responsabilidade pela violência aos policiais que fazem a atividade de policiamento urbano,
especialmente à sua falta de formação; e, por parte dos Comandos das Polícias, atribuir a responsabilidade
pela violência aos policiais que seriam as “maçãs podres”, especialmente porque trariam de seus lugares
de origem social comportamentos violentos ou desonestos para dentro das corporações. Logo, há uma

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Diálogos com o “realismo marginal” e a crítica à branquidade: por que a dogmática processual
penal “não vê” o racismo institucional da gestão policial nas cidades brasileiras? 115

imunização dos espaços da branquidade que correspondem, justamente, aos locais de maior prestígio,
capital social e econômico, bem como maior poder institucional para gerenciamento do sistema de
segurança e para alterar os padrões coletivos de comportamento (DUARTE & FREITAS, 2018).

Nos discursos públicos das instituições brasileiras, a dimensão racializada surge ainda no modo
como se distribui as representações sobre o valor do próprio trabalho diante das críticas da sociedade ou
das vítimas. O espaço corporativo das instituições policiais produz uma oposição em relação aos lugares
de origem e, ao mesmo tempo, a mobilização em defesa da corporação, identi cada com o comando. O
aparato policial nega as críticas externas sobre racismo, porque ele se estrutura em bases racializadas.

Porém, o mais relevante nesse cenário é o modo como o Poder Judiciário segue se apresentando
com as “mãos limpas” diante do genocídio, quando, de fato, suas mãos estão sujas de sangue.

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El poder de la vulnerabilidad. Implicancias en la interpretación
y aplicación del derecho1
Guillermina Leontina Sosa
Universidad Lomas de Zamora, Buenos Aires, Argentina
https://orcid.org/0000-0002-5415-4297

Resumen: El presente artículo aborda la trascendencia de la detección


de la presencia de sujetos en condición o situación de vulnerabilidad
para la interpretación y aplicación del derecho en orden a su efectividad
y la prevención y (o) mitigación del daño. Pone de relieve la importancia
de la construcción de lineamientos que permitan reducir los costos de
litigación y la reedición de con ictos. Asimismo, se dedica un apartado
para destacar las implicancias de la situación de pobreza como modo
autónomo o de agravante de la situación de fragilidad de las personas
en el ejercicio y goce de sus derechos. El método utilizado consiste
en el análisis jurisprudencial de los lineamientos generales esbozados
por el sistema interamericano de derechos humanos a partir de los
Canoas, v. 8, n. 2, 2020 cuales se deslinda un marco de referencia particular para los supuestos
de vulnerabilidad. Este método puede contribuir tanto a esbozar
Artigo estimaciones que permitan predecir y prevenir costos de litigación así
como también a la efectividad de los derechos humanos.
Recebido: 31.03.2020 Palabras clave: Vulnerabilidad; Prevención del Daño; Principio de
Aprovado: 10.04.2020 Efectividad; Derechos Humanos; Pobreza.

Publicado: 04.05.2020
e vulnerability´s power. Its implications for interpretation
DOI http://dx.doi.org/10.18316/REDES.v8i2.6732
and applicability of law
Abstract: is article focuses on the importance of earlier detection
of vulnerable people for the interpretation and application of law
institutes. Furthermore, it analyses the transcendence of that detection
for prevention of damages and/or mitigation of torts. Its emphases
the relevance of capital value of jurisprudence as a way for reducing
litigation costs and re-edition of con icts. Finally, poverty is examined as
an autonomic or aggravated form of vulnerability. e method utilized
in this article is the analysis of the general legal rules dictated by the
Interamerican System of Human Rights in order to feature particular
references for judicial interpretation or application of law (such as
“Rules of interpretation”) in cases with vulnerable people. is method
may contribute for estimation bias in order to predict and prevent the
costs of litigation and the effectiveness of human rights.
Keywords: Vulnerability; Prevention of Damages; Mitigation; Effet Utile;
Human Rights; Poverty.

1
Articulo basado en la disertación efectuada en el XV Congreso Internacional
de Derecho Privado organizado por los Doctores Andrés Mariño y Arturo
Caumont en 4, 5 y 6 de octubre 2019, Punta del Este Uruguay.
122 Guillermina Leontina Sosa

Líneas de inicio

En la década del 60 expresaba Bobbio que el problema grave de nuestro tiempo respecto a los
derechos humanos no era el de fundamentarlos, sino el de protegerlos2. Hoy a más de 50 años de dicha
a rmación el desafío de la efectividad de los derechos no ha cambiado de foco, sino que ha expandido su
espectro a la luz de la sociedad moderna, interconectada y con multiplicidad de interrelaciones incluido
el despegue virtual de las mismas que ha originado nuevos códigos para el lenguaje, la comunicación, las
emociones y el modo de conectarnos unos con otros, incluso con la aparición de la inteligencia arti cial.
Todo ello demanda la creación de respuestas jurídicas cada vez más so sticadas no solo para lograr la
efectividad de los derechos sino también para prevenir su vulneración y con ello el acaecimiento del daño
y (o) su agravamiento.

Re ejo de lo expuesto resulta el aumento de tratados de derechos humanos de tutela especí ca,
evidenciando – de algún modo – la insu ciencia de las cartas de derechos genéricas de otrora. Baste
mencionar la Convención de los Derechos del Niño, la Convención para la Eliminación de todas las formas
de Discriminación Racial o más recientemente la Convención sobre los Derechos de las Personas con
Discapacidad o en el ámbito interamericano la Convención sobre la Protección de los Derechos de las
Personas Mayores.

¿Es que acaso el hombre ha parcelado su humanidad?

Esta proliferación de tratados de derechos humanos con enfoque especi co en colectivos de


personas que se conglomeran por determinadas similitudes ya sea por alguna condición especi ca como
género, edad, discapacidad o por la situación en que se encuentren como migrantes, privados de libertad o
defensores de derechos humanos; expone que aun cuando la vigencia y efectividad de los derechos humanos
resulta un desafío constante para todas las personas, lo cierto es que para algunas de ellas o grupos de ellas
el reto es mucho más arduo: las personas vulnerables.

Esa brecha entre el desafío que han de afrontar unos y otros, es la que le con ere a la vulnerabilidad
el poder para que la interpretación y aplicación del derecho deba contar con elementos que consideren
sus singularidades.

El texto tiene por método el análisis de los lineamientos del Sistema Interamericano de Derechos
Humanos en materia de vulnerabilidad a n de delinear un esquema particular de interpretación y
aplicación judicial del derecho desde esa perspectiva.

Perspectiva de vulnerabilidad

Efectividad de los derechos, prevención y (o) mitigación del daño

El abordaje de la vulnerabilidad como perspectiva que transversalmente atraviesa todo el


ordenamiento jurídico ha de verse re ejada en la interpretación y aplicación del mismo, cobrando especial

2
BOBBIO, Norberto. El tiempo de los derechos. Madrid: Sistema, 1991. p. 63.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 121-142, ago. 2020.


El poder de la vulnerabilidad. Implicancias en la interpretación y aplicación del derecho 123

relevancia no solo para lograr la efectividad de los derechos de las personas en dicha situación sino también
por cuanto la detección oportuna de la persona jurídicamente frágil permitirá prevenir o mitigar daños.
Por su parte, la de nición de criterios objetivos tanto de detección como de actuación en dichos casos,
conducirá a la reducción tanto de los costos de litigación como de la reedición de con ictos.

Es preciso resaltar que el aspecto preventivo del acaecimiento del daño no resulta mera retórica, sino que
se deriva de las obligaciones de garantía del Estado en relación con la protección de los derechos humanos. En
este sentido la Corte Interamericana de Derechos Humanos ha precisado que “este deber de prevención abarca
todas aquellas medidas de carácter jurídico, político, administrativo y cultural que promuevan la salvaguarda
de los derechos humanos y que aseguren que las eventuales violaciones a los mismos sean efectivamente
consideradas y tratadas como un hecho ilícito que, como tal, es susceptible de acarrear sanciones para quien
las cometa, así como la obligación de indemnizar a las víctimas por sus consecuencias perjudiciales”3.

Ahora bien, el termino vulnerabilidad tomado de las ciencias naturales justamente se origina con
dicha ciencia madre por resultar una característica inherente al ser humano. Todos podemos ser vulnerables.
Todos en algún momento podemos experimentar fragilidad.

La vulnerabilidad “es universal o una constante dimensión de la condición humana pero una condición
que es tanto variada como compleja en el modo en que es experimentada demandando respuestas so sticadas”4.

¿Entonces, cuál será la vulnerabilidad que ha de tutelar el derecho?

El mundo del jurista – a rma con excelsa elocuencia Kemelmajer de Carlucci – es el de la palabra5.
Aun cuando el vocablo “vulnerabilidad” se caracteriza por su indeterminación y exibilidad para abarcar
y contemplar en sí mismo nuevos supuestos, lo cierto es que si – como decía Borges en el Golem6 – “el
nombre es arquetipo de la cosa en las letras de ‘rosa’ está la rosa y todo el Nilo en la palabra ‘Nilo’”, en
la palabra vulnerabilidad se hallan todas las personas que aun cuando disimiles entre si encuentran un
punto de conversión: la imposibilidad o di cultad en el ejercicio o goce de sus derechos a raíz de o como
consecuencia de la situación o condición en que se encuentran.

Así las cosas, podemos sintetizar que es regionalmente reconocido el valor de las reglas de Brasilia
para conceptualizar que: “Se consideran en condición de vulnerabilidad aquellas personas que, por razón de
su edad, género, estado físico o mental, o por circunstancias sociales, económicas, étnicas y (o) culturales,
encuentran especiales di cultades para ejercitar con plenitud ante el sistema de justicia los derechos
reconocidos por el ordenamiento jurídico”7.

3
Corte Interamericana de Derechos Humanos. Opinión Consultiva Oc-23/17 de 15.11.2017. Solicitada por la República de
Colombia. Medio ambiente y derechos humanos, ap. 228.
4
FINEMAN, Martha Albertson. e Vulnerable Subject and the Responsive State. Emory Law Journal, Atlanta, v. 60, s.p., 2010.
5
KEMELMAJER DE CARLUCCI, Aida. El lenguaje en el Código Civil y Comercial Argentino. La Ley, 09.10.2019. p. 2.
6
BORGES, Jorge Luis. El otro, el mismo. Buenos Aires: Ed. Emece, 1969.
7
Reglas de Brasilia sobre Acceso a la justicia de las personas en condición de vulnerabilidad. Sección 2ª. Bene ciarios de las Reglas.
1. Concepto de las personas en situación de vulnerabilidad, disponible en https://www.acnur.org/ leadmin/Documentos/
BDL/2009/7037.pdf

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 121-142, ago. 2020.


124 Guillermina Leontina Sosa

Recae sobre el derecho – sus operadores – lo que la Corte IDH ha denominado “una mayor diligencia
de las autoridades estatales”8 y con ella la elevada tarea de garantizar el ejercicio y goce derechos de aquellos
más desventajados.

Esta mayor diligencia de las autoridades estatales o “deber reforzado de tutela” (en la terminología de
la Corte Suprema de Justicia Argentina) implica que el Estado no solo deberá cumplir con la obligación de
garantía9 que se deriva su condición de Parte de la CADH, en cuanto deberá derogar, sancionar o readecuar
sus normas y prácticas para el cumplimiento del mismo absteniéndose de realizar todo acto contrario
al objeto y n de la Convención así como también prevenir su incumplimiento sino que además ante la
presencia de un sujeto vulnerable la acción que despliegue deberá resultar lo su cientemente adecuada
para que la persona logre salvaguardar su derecho. De ello se sigue, el consiguiente deber del juzgador
– como último eslabón del control de convencionalidad en el orden doméstico – de “poner una especial
diligencia y celeridad para la resolución del proceso”10.

Esta vulnerabilidad, lejos de ser una carta de “bondad” parafraseando un título de doctrina que
así lo deslizaba11, se caracteriza por elementos objetivos que sitúan a la persona en dicha condición y que
demandan la adopción de acciones positivas de los Estados y en última instancia de los operadores jurídicos
para lograr la efectividad del derecho.

Hemos tomado como referencia para el desarrollo de este tema los pronunciamientos del Sistema
IDH, aun cuando aludiremos a algunos precedentes de la Argentina, lugar del que somos nacionales.
Lo primero, por cuanto el Sistema Interamericano de Derechos Humanos importa para todos nosotros
una doctrina legal de trascendencia que hermanada con la Corte Europea de Derechos Humanos utiliza
el método de interpretación universal que al decir de Estupiñan-Silva12 implica que la jurisprudencia
interamericana esté marcada por la apertura hacia fuentes externas al sistema con nes de interpretación
de la Convención13.

8
Corte IDH, Caso Furlán, Sebastián y familiares vs. Argentina, sentencia de 31.08.2012, ap. 215.
9
Corte Interamericana de Derechos Humanos. Opinión Consultiva Oc-23/17 de 15.11.2017. Solicitada por la República de
Colombia. Medio ambiente y derechos humanos, ap. 227. Interpretación y alcance de los artículos 4.1 y 5.1 en relación con
los artículos 1.1 y 2 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos: “la obligación de garantía se proyecta más allá de
la relación entre los agentes estatales y las personas sometidas a su jurisdicción, abarcando asimismo el deber de prevenir, en la
esfera privada, que terceros vulneren los bienes jurídicos protegidos”.
10
Corte IDH, Caso Furlan vs. Argentina, sentencia de 31.08.2012.
11
RAJMILOVICH, Dario. Justicia no es bondad hacia los vulnerables. La Ley, 17.04.2019. p. 10.
12
ESTUPIÑAN-SILVA Rosmerlin. La vulnerabilidad en la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos:
esbozo de una tipología. In: BOURGORGUE-LARSEN, Laurence et al (Coord.). Derechos humanos y políticas públicas.
Barcelona: Edo-Serveis, 2013.
13
La autora expresa que “El universalismo jurídico del juez interamericano tiene fundamentos convencionales precisos: el artículo
1-1 consagra la obligación estatal de respetar y garantizar los derechos convencionales, el artículo 2 establece el deber estatal de
adecuar el derecho interno y el artículo 29 prohíbe expresamente una interpretación restrictiva de los derechos convencionales
estableciendo la superioridad del principio pro homine (pro personae) o favor libertatis”. Op. cit. referencia 12.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 121-142, ago. 2020.


El poder de la vulnerabilidad. Implicancias en la interpretación y aplicación del derecho 125

Todo ello, permite considerar sus parámetros jurídicos, independientemente del debate sobre la
vinculatoriedad de sus pronunciamientos fuera de lo dispuesto por el art. 68 de la CADH, por intérpretes
de distintas partes del orbe.

Lo segundo, por cuanto estimamos de valor la visualización del modo de adopción de los lineamientos
del Sistema Interamericano por el ordenamiento interno.

En este sentido, son conocidas, así como sumamente investigadas y abordadas por la doctrina las
vulnerabilidades caracterizadas por la edad de las personas (ya sea niñez o ancianidad), por el género, o
la discapacidad.

De un modo más incipiente y tenue se ha hecho en relación a una de las causas de vulnerabilidad
más diseminada en nuestro tiempo y que, en caso de con uir, agrava todas las vulnerabilidades posibles. Nos
referimos al agelo de la pobreza. Resaltaban Tattenbacj Yglesias y Cançado Trindade que debe darse más
importancia a la temática de la “pobreza crónica como un atentado a la totalidad de los derechos humanos”14.

En la diaria, la pobreza, y aún más si es estructural, importa no solo la imposibilidad de ejercicio de


los derechos sino su mismísima aniquilación.

La con uencia de supuestos de vulnerabilidad conduce a a rmarla existencia de situaciones de


hipervulnerabilidad que conllevan a una mayor tutela jurídica. En este sentido el reciente anteproyecto
de reforma del estatuto del consumidor en la Argentina, alude especí camente a esta situación de
vulnerabilidad como un “presupuesto del sistema normativo de protección del consumidor y, en particular,
del principio de protección” e incluso se explicita como principio rector el de “protección especial para
situaciones de hipervulnerabilidad”, indicando la doctrina que “este principio marca la existencia de una
protección diferenciada y especialmente acentuada para defender a grupos que ya han sido identi cados
como especialmente vulnerables, principalmente en el campo de los derechos humanos así como al acceso
al consumo, consumo sustentable, principio de precaución, antidiscriminatorio, políticas de protección,
acceso a la información, deberes del Estado15. Todos estos postulados, conforme señala Mariño Lopez,
“deben interpretarse y aplicarse en conexión y coordinación con el principio de respeto a la dignidad de la
persona humana” que “es la base de la regulación principista del anteproyecto”16.

14
Cf. CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. La persona humana como sujeto del derecho internacional: avances
de su capacidad jurídica internacional en la primera década del siglo XXI. Ponencia ofrecida en el marco del XXV Curso
Interdisciplinario en Derechos Humanos, 9 al 20 de Julio de 2007, San Jose de Costa Rica. Disponible en http://www.Corte IDH.
or.cr/tablas/r22025.pdf
15
STIGLITZ, Gabriel et al. Sobre algunas claves e innovaciones del Anteproyecto de Ley de Defensa del Consumidor. In:
SANTARELLI, Fulvio; CHAMATROPULOS, Alejandro. Comentarios al anteproyecto de Ley de Defensa del Consumidor:
homenaje a Rubén S. Stiglitz. Buenos Aires: La Ley, 2019. p. 15.
16
MARIÑO LOPEZ, Andrés. Principio protectorio, protección de consumidores y obligación de informar en el Anteproyecto
de Ley de Defensa del Consumidor. In: SANTARELLI, Fulvio; CHAMATROPULOS, Alejandro. Comentarios al anteproyecto de
Ley de Defensa del Consumidor: homenaje a Rubén S. Stiglitz. Buenos Aires: La Ley, 2019. p. 889.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 121-142, ago. 2020.


126 Guillermina Leontina Sosa

El art. 1 de la Convención Americana de Derechos Humanos contiene las obligaciones de respeto y


garantía ya aludidas. Siguiendo a Nash Rojas “La obligación de respeto consiste en cumplir directamente la
conducta establecida en cada norma convencional, ya sea absteniéndose de actuar o dando una prestación”
en tanto que “la obligación de garantía se traduce en la obligación que asume el Estado de promover, a
través de sus órganos, la posibilidad real y efectiva de que sus ciudadanos ejerzan los derechos y disfruten
las libertades que se les reconocen. Es decir, el Estado está obligado a crear condiciones efectivas que
permitan el goce y ejercicio de los derechos consagrados en la Convención, cualquiera sea su contenido
normativo. Esta es una obligación complementaria a la de respetar, ya que no sólo implica el cumplimiento
estricto del mandato normativo que establece cada derecho, sino que una obligación positiva de crear
condiciones institucionales, organizativas y procedimentales para que las personas puedan gozar y ejercer
plenamente los derechos y libertades consagrados internacionalmente”17.

La Corte IDH ha establecido que el art. 1 de la Convención, es una norma de carácter general
cuyo contenido se extiende a todas las disposiciones del tratado, dispone la obligación de los Estados
Partes de respetar y garantizar el pleno y libre ejercicio de los derechos y libertades allí reconocidos “sin
discriminación alguna […] es por ello que existe un vínculo indisoluble entre la obligación de respetar y
garantizar los derechos humanos y el principio de igualdad y no discriminación”18, lo que – agregamos – se
relaciona directamente con la perspectiva de vulnerabilidad, ámbito en el que ante la condición o situación
en la que se encuentra el sujeto se exacerba el deber de prevención del daño.

Consecuentemente, toda distinción realizada por el Estado debe contar con una justi cación
objetiva y razonable para no ser tildada de discriminatoria. Es decir que la distinción para ser objetiva y
razonable debe perseguir un n legítimo y existir una relación razonable de proporcionalidad entre los
medios utilizados y el n perseguido19.

Asimismo, el Tribunal Interamericano ha expresado que cuando se trata de una medida que
establece un trato diferenciado en que está de por medio una de las categorías comprendidas en el art. 1.1
de la Convención se debe aplicar un “escrutinio estricto que incorpora elementos especialmente exigentes

17
NASH ROJAS, Claudio. Las reparaciones ante la Corte Interamericana de Derechos Humanos (1988-2007). 2. Ed. Chile,
Andros Impresores, 2009. p. 19.
18
Caso Comunidad Indígena XákmokKásek Vs. Paraguay. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24.08.2010. Serie C,
n. 214. p. 268. http://www.Corte IDH.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_214_esp.pdf. En el mismo sentido: Caso Atala Riffo y
niñas Vs. Chile. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24.02.2012. Serie C, n. 239. p. 78; Caso NadegeDorzema y otros
Vs. República Dominicana. Fondo Reparaciones y Costas. Sentencia de 24.10.2012. Serie C, n. 251. p. 224; Caso Veliz Franco
y otros Vs. Guatemala. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 19.03.2014. Serie C, n. 277. p.
204; Caso I.V. Vs. Bolivia. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 30.11.2016. Serie C, n. 329.
p. 239; Caso Trabajadores de la Hacienda Brasil Verde Vs. Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 20.10.2016. Serie C, n. 318. p. 335. Ver Cuadernillo de jurisprudencia de la corte interamericana de derechos
humanos: igualdad y no discriminación, San Jose, p. 1-189, 2019. Aceso en http://www.Corte IDH.or.cr/sitios/libros/todos/
docs/cuadernillo14.pdf
19
Corte IDH. Caso Norín Catrimán y otros (Dirigentes, miembros y activista del Pueblo Indígena Mapuche) Vs. Chile. Fondo,
Reparaciones y Costas. Sentencia de 29.05.2014. Serie C, n. 279, ap. 200.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 121-142, ago. 2020.


El poder de la vulnerabilidad. Implicancias en la interpretación y aplicación del derecho 127

en el análisis, esto es, que el trato diferente debe constituir una medida necesaria para alcanzar un objetivo
convencionalmente imperioso. Así, en este tipo de examen, para analizar la idoneidad de la medida
diferenciadora se exige que el n que persigue no sólo sea legítimo en el marco de la Convención, sino
además imperioso. El medio escogido debe ser no sólo adecuado y efectivamente conducente, sino también
necesario, es decir, que no pueda ser reemplazado por un medio alternativo menos lesivo. Adicionalmente,
se incluye la aplicación de un juicio de proporcionalidad en sentido estricto, conforme al cual los bene cios
de adoptar la medida enjuiciada deben ser claramente superiores a las restricciones que ella impone a los
principios convencionales afectados con la misma”20.

En su Opinión Consultiva OC-24/17 relativa a Identidad de género, e igualdad y no discriminación a


parejas del mismo sexo21 la Corte sostuvo que: “los Estados están obligados a adoptar medidas positivas para
revertir o cambiar situaciones discriminatorias existentes en sus sociedades, en perjuicio de determinado
grupo de personas. Esto implica el deber especial de protección que el Estado debe ejercer con respecto a
actuaciones y prácticas de terceros que, bajo su tolerancia o aquiescencia, creen, mantengan o favorezcan
las situaciones discriminatorias”22.

Asimismo, expreso: “Ahora bien, la Corte recuerda que […] en casos de tratos diferentes desfavorables,
cuando el criterio diferenciador se corresponde con uno de aquellos protegidos por el artículo 1.1 de la
Convención que aluden a: (i) rasgos permanentes de las personas de los cuales éstas no pueden prescindir
sin perder su identidad; (ii) grupos tradicionalmente marginados, excluidos o subordinados y (iii) criterios
irrelevantes para una distribución equitativa de bienes, derechos o cargas sociales, la Corte se encuentra
ante un indicio de que el Estado ha obrado con arbitrariedad”23.

La Corte alude a dichas distinciones como indicio de arbitrariedad. Sin embargo, como los
parámetros sentados por la misma constituyen un piso de derechos para los ordenamientos domésticos,
nada impide que, para el control de convencionalidad interno, los magistrados como último eslabón del
mismo, las consideren una presunción.

Ahora bien, la no adopción de medidas positivas y ajustes razonables en aras de lograr la igualdad
de lo más frágiles para poder ejercer y gozar de los derechos de los que resultan titulares, importa la
responsabilidad del estado. Es que la detección de una persona en situación de vulnerabilidad pone en
alerta la ponderación del régimen jurídico a la luz del principio effetutile. Se sigue de ello que cuando una
persona en este supuesto se encuentre en un proceso administrativo o judicial – o, en su caso, que pueda

20
Corte IDH. Caso I.V. Vs. Bolivia. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 30.11.2016. Serie C,
n. 3291, ap. 241.
21
Corte IDH. Identidad de género, e igualdad y no discriminación a parejas del mismo sexo. Obligaciones estatales en relación
con el cambio de nombre, la identidad de género, y los derechos derivados de un vínculo entre parejas del mismo sexo
(interpretación y alcance de los artículos 1.1, 3, 7, 11.2, 13, 17, 18 y 24, en relación con el artículo 1 de la Convención Americana
sobre Derechos Humanos). Opinión Consultiva OC-24/17 de 24.11.2017. Serie A, n. 24.
22
Op. Consultiva citada, ap. 65.
23
Op. Consultiva citada, ap. 66.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 121-142, ago. 2020.


128 Guillermina Leontina Sosa

verse afectada por el mismo – el juzgador deberá evaluar si para la efectividad de su derecho se ha efectuado
una distinción que era necesaria y razonable.

En este sentido, permítasenos un paréntesis. La interpretación de los derechos humanos requiere


de un test que considere al menos tres principios fundamentales: principio pro persona, principio de
progresividad que va de la mano del principio de no regresividad y principio del effetutile.

El principio pro persona (o pro homine) es aquel que impone la interpretación de toda norma de
acuerdo a aquella que resulta más bene ciosa a la persona. Garcia Ramirez describe en forma simple el
concepto al expresar que “es la aplicación – a través de una interpretación especí camente orientada – de
la norma más favorable a la persona”24.

Por su parte, Pinto lo ha conceptualizado en los siguientes términos: “El principio pro homine
es un criterio hermenéutico que informa todo el derecho de los derechos humanos, en virtud del cual
se debe acudir a la norma más amplia, o a la interpretación más extensiva, cuando se trata de reconocer
derechos protegidos e, inversamente, a la norma o a la interpretación más restringida cuando se trata
de establecer restricciones permanentes al ejercicio de los derechos o su suspensión extraordinaria. Este
principio coincide con el rasgo fundamental del derecho de los derechos humanos, esto es, estar siempre a
favor del hombre”25.

El principio de progresividad podría sintetizarse en que, una vez alcanzada una protección de la
persona con determinada extensión, dicha interpretación se erige en un piso mínimo, admitiendo que a
la postre solo pueda subirse la vara procurando una mayor protección del derecho en cuestión. El derecho
avanza hacia la mayor tutela de la persona. En este sentido se ha expresado que “la observancia de la
progresividad, atenta al máximo esfuerzo para conseguirla, y la negación de la regresividad, que contraría
los postulados y el espíritu del corpus juris de los derechos humanos y que también debe ser valorada por
las jurisdicciones correspondientes”26.

La Corte Interamericana de Derechos Humanos ha sostenido, asimismo, que “el Estado tiene una
obligación de hacer, es decir de adoptar providencias y adoptar los medios necesarios para responder a las
exigencias de efectividad de los derechos involucrados siempre en la medida de los recursos económicos y
nancieros de que disponga para el cumplimiento del respectivo compromiso internacional adquirido. Así,

24
GARCIA RAMIREZ, Sergio. El control judicial interno de convencionalidad. Revista IUS. Ciudad de México, v. 5, n. 28,
p.123-159, 2011.
25
PINTO, Mónica. El principio pro homine. Criterios de hermenéutica y pautas para la regulación de los derechos humanos, en
La aplicación de los tratados sobre derechos humanos por los tribunales locales. Argentina: El Puerto, 1997.p-163-172.
26
Conf. Corte IDH, “Caso Acevedo Buendía y otros ...”, ob. cit., voto concurrente del juez Sergio García Ramírez, párr. 21, cit. En
MEJÍA RIVERA, Joaquín. Las obligaciones internacionales en materia de derechos económicos, sociales y culturales a la luz de
la Convención Americana sobre Derechos Humanos. Revista Internacional de Derechos Humanos, Mendoza, n. 3, p. 79-102,
2013. p. 91. V. muy interesante articulo doctrinario sobre el tema NASH ROJAS, Claudio. Los derechos económicos, sociales y
culturales y la justicia constitucional latinoamericana: tendencias jurisprudenciales. Estudios Constitucionales, Talca, a. 9, n.
1, p. 65-118, 2011.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 121-142, ago. 2020.


El poder de la vulnerabilidad. Implicancias en la interpretación y aplicación del derecho 129

la implementación progresiva de dichas medidas podrá ser objeto de rendición de cuentas y, de ser el caso,
el cumplimiento del respectivo compromiso adquirido por el Estado podrá ser exigido ante las instancias
llamadas a resolver eventuales violaciones a los derechos humanos”27.

Finalmente, y en lo que aquí nos interesa destacar, el principio ut res magis valeat quam pereat,
“ampliamente respaldado por la jurisprudencia internacional, y que corresponde al llamado effet utile (a
veces denominado principio de la efectividad), en virtud del cual hay que asegurar a las disposiciones
convencionales sus efectos propios en el derecho interno de los Estados Partes”28.

También se ha aludido a este principio como el de “principio de interpretación relativa a la protección


práctica y efectiva y no teórica o ilusoria” indicando que las disposiciones “deben ser interpretadas de
manera tal que otorguen una real y efectiva protección a los individuos”29, señalándose como leading case
en el tema, el de la Corte Europea de Derechos Humanos (Corte EDH) el caso “Airey vs Ireland”30.

Es notorio el impacto de este principio a la hora de ponderar las acciones desplegadas por el Estado
para dar cumplimiento al deber de tutela reforzada que recae sobre sus espaldas en relación a una persona
en condición o situación de vulnerabilidad. A la luz de este principio el goce parcial, la inminencia de
vulneración o vulneración en sí misma en el caso de un sujeto jurídicamente frágil implicara una presunción
de responsabilidad.

Por su parte, la judicialización de la contienda, en sí misma, resulta un indicio de la inefectividad de


la conducta desplegada por el Estado para tutelar el derecho.

De todo lo expuesto se sigue que siendo la tutela de las personas en situación de vulnerabilidad un
objetivo convencionalmente imperioso, la no consideración de dicha circunstancia ya sea para adoptar normas
de garantía y protección o a los efectos de proceder a la aplicación de una práctica o norma, permite presumir
la responsabilidad del Estados a la luz del principio de effet utile. En de nitiva, se impone nuevamente un
escrutinio estricto de la actividad estatal (ya sea por acción u omisión) pudiendo exonerarse de ella en la
medida que acredite que el despliegue de la acción necesaria resultaba desproporcionado con el n buscado.

Es que la detección de la persona con condición o en situación de vulnerabilidad impone la


realización de un escrutinio estricto, esto es, que las acciones desplegadas por el Estado deberán ser lo
su cientemente idóneas y razonables para proteger la efectividad del derecho.

Ante la exigencia de este análisis, solo se podrá eximir de responsabilidad en la medida que acredite
que la prevención, mitigación y (o) evitación del daño en el caso concreto implicaba para el Estado el

27
Corte IDH, caso “Acevedo Buendía”, de 1° de julio de 2009, párr. 102.
28
Corte IDH. Asunto James y otros respecto Trinidad y Tobago. Medidas Provisionales. Resolución de la Corte Interamericana
de Derechos Humanos de 25 de mayo de 1999, Voto concurrente del juez A.A. Cançado Trindade. p. 12, disponible en http://
www.Corte IDH.or.cr/CF/Jurisprudencia2/index.cfm?lang=es&nId_Estado=29
29
AGUILAR CAVALLO, Gonzalo. Principios de interpretación de los derechos fundamentales a la luz de la jurisprudencia
chilena e internacional. Boletín Mexicano de Derecho Comparado. Ciudad de México, a. 49, n. 146, p. 13-59, mayo/ago. 2016.
30
AIREY V IRELAND: ECHR 9 OCT 1979.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 121-142, ago. 2020.


130 Guillermina Leontina Sosa

despliegue de medidas irrazonables y (o) desproporcionadas con el n perseguido. En este sentido, nos
recuerda Estupiñan-Silva que la Corte IDH aplica una especie de self-restraint cuando acepta la tesis de la
“protección imposible” como medio de defensa del Estado caso por caso31.

En relación a este supuesto se puede considerar lo expuesto por la Corte en ejercicio de su función
consultiva, en la OC-23/17 relativa a “Medio Ambiente y Derechos Humanos”32 al expresar “teniendo en
cuenta las di cultades que implican la plani cación y adopción de políticas públicas y las elecciones de
carácter operativo que deben ser tomadas en función de prioridades y recursos, las obligaciones positivas
del Estado deben interpretarse de forma que no se imponga a las autoridades una carga imposible o
desproporcionada”.

Pero insistimos, ante la presencia de sujetos vulnerables ha de ser examinada con un criterio exigente
y exhaustivo a la luz de los principios expuestos.

Lo antedicho evidencia lo que intuíamos en el titulo que diera motivo a estas líneas: El poder de
la vulnerabilidad. La CONEXIÓN existente entre el nivel de vulnerabilidad del sujeto y el potencial de
cambio que su situación reviste para el derecho.

Una conexión entre el grado de vulnerabilidad del sujeto y la necesidad de una tutela diferenciada.
Sintetizando:

• La detección de vulnerabilidad de la persona implicará la necesidad de una tutela judicial


diferenciada.

• El nivel de vulnerabilidad del sujeto, tendrá directa incidencial en el potencial de cambio


para la aplicación del derecho. A mayor vulnerabilidad, mayor posibilidad de interpretación
diferenciada.

31
ESTUPIÑAN-SILVA Rosmerlin. La vulnerabilidad en la jurisprudencia de la Corte Interamericana deDerechos Humanos:
esbozo de una tipología. In: BOURGORGUE-LARSEN, Laurence et al (Coord.). Derechos humanos y políticas públicas.
Barcelona: Edo-Serveis, 2013. Explica que, en 2006, en el caso de la Comunidad Indígena de Sawhoyamaxa v. Paraguay, la Corte
recordó que: “Es claro para la Corte que un Estado no puede ser responsable por cualquier situación de riesgo al derecho a la
vida. Teniendo en cuenta las di cultades que implica la plani cación y adopción de políticas públicas y las elecciones de carácter
operativo que deben ser tomadas en función de prioridades y recursos, las obligaciones positivas del Estado deben interpretarse
de forma que no se imponga a las autoridades una carga imposible o desproporcionada”. v., Corte IDH, Comunidad Indígena
de Sawhoyamaxa vs. Paraguay, precitado, párr.155. Este dictum se vio re ejado, por ejemplo, en el caso Castillo González vs.
Venezuela, donde la Corte IDH aceptó como medio de defensa “la protección imposible” alegada por el Estado estimado que:
“en principio, no compete a la Corte determinar la procedencia o utilidad de acciones o medidas concretas de investigación,
a menos que la omisión en su realización resulte contraria a pautas objetivas, o irrazonable de modo mani esto” Corte IDH,
Castillo Gonzalez et al. vs. Venezuela, 27 noviembre 2012, párr.153, 160, 161. Véase igualmente, Corte IDH, Masacre de Pueblo
Bello vs. Colombia, pre-citado, párr.124.
32
Corte Interamericana De Derechos Humanos Opinión Consultiva Oc-23/17. 15 de nov. 2017 Solicitada Por La República De
Colombia Medio Ambiente Y Derechos Humanos (Obligaciones Estatales En Relación Con El Medio Ambiente En El Marco De
La Protección Y Garantía De Los Derechos A La Vida Y A La Integridad Personal - Interpretación Y Alcance De Los Artículos
4.1 Y 5.1, En Relación Con Los Artículos 1.1 Y 2 De La Convención Americana Sobre Derechos Humanos).

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El poder de la vulnerabilidad. Implicancias en la interpretación y aplicación del derecho 131

• Ante estos supuestos: se impone un escrutinio estricto de responsabilidad. Ello implica que
recae sobre el Estado el deber de acreditar que en el caso se esta ante un supuesto de protección
imposible y (o) irrazonable y desproporcionada con el n perseguido.

Recepción doméstica. Construcción de lineamientos para la reducción de los costos de litigación y de


reedición de con ictos

A n de volcar la mirada a las implicancias prácticas de los criterios expuestos y su recepción en el


ámbito doméstico, nos permitimos traer a colación algunos fallos recientes de la Argentina.

La Corte Suprema de Justicia de la Nación Argentina declaró inconstitucional el cobro del


impuesto a las ganancias en el caso de una persona jubilada y con problemas de salud. Para así decidir,
el voto mayoritario considero que las categorías scales vigentes resultan insu cientes al no ponderar la
“vulnerabilidad vital del colectivo” conformado por jubilados, pensionados, retirados o subsidiados. Señalo
el deber del Congreso de adoptar, en relación con el impuesto a las ganancias, un tratamiento diferenciado
para los jubilados en condiciones de vulnerabilidad por ancianidad o enfermedad que conjugue este factor
relevante con el de la capacidad contributiva potencial.

El precedente se alinea con lo expresado por la Corte IDH en la causa Furlan respecto a la entonces
vigente ley de consolidación de deudas y resaltar la falta de consideración de la condición de la persona
para su aplicación, expresando que “una norma puede no resultar inconvencional de modo general y, sin
embargo, si serlo en su aplicación al caso concreto”33.

La Corte Argentina, a su vez, efectúa una lectura progresiva del derecho destacando que las
categorías vigentes devinieron insu cientes al ser elaboradas en un contexto histórico diferente con
antelación a la reforma constitucional de 1994 que impone estipular respuestas especiales y diferenciadas
para los sectores vulnerables.

Es decir, que la distinción del legislador en sujetos pasivos y activos, resulta insu ciente para pasar
el tamiz de constitucionalidad y convencionalidad. En una sociedad que presta atención a las partes
del todo, resulta necesario detener la mirada en los sujetos a quienes se pretenden aplicar las categorías
preestablecidas. Consecuentemente, aun cuando la Corte dejo a criterio del legislador las subcategorias que
puedan estar razonablemente de acuerdo con los principios constitucionales y convencionales de igualdad,
lo cierto es que puso en claro que la ley no puede desconocer el carácter de sujetos vulnerables potenciales
que puede haber para aplicar categorías jurídicas prestablecidas.

En comentario a este fallo destacan CLERICO-ALDAO que aun cuando del mismo se desprende
que “las normas son interpelables si existe situación de vulnerabilidad y esta no ha sido tomada como
relevante en la interpretación y adjudicación de derechos” no ha sido preciso en la objetivización del

33
Véase, Corte IDH, Caso Furlán y familiares vs. Argentina. Sentencia de 31 ago. 2012 (Excepciones Preliminares, Fondo,
Reparaciones y Costas), con relación al análisis de la convencionalidad de la Ley de Consolidación de Deudas. Disponible en
http://www.Corte IDH.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_246_esp.pdf.

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132 Guillermina Leontina Sosa

criterio de vulnerabilidad para casos futuros34. La certeza de la a rmación no desnaturaliza el hecho de


que, en materia tributaria, particularmente, dicha tarea recae sobre el legislador.

En el caso “Institutos Médicos Antártida s/ quiebra s/ inc. de veri cación”35 el razonamiento que
fuera esbozado por la disidencia pronunciada por los Dres. Rosatti y Maqueda en autos “Asociación
Francesa Filantrópica y de Bene cencia s/ quiebra s/ incidente de veri cación de crédito por L. A. R. y
otros”36 se vuelve mayoría37.

En este precedente la Corte no aplicó el régimen de privilegios establecidos por la ley de concursos
y quiebras a un crédito en la que resultaba acreedora una niña que había quedado con severa discapacidad
con motivo de una mala praxis médica pues señalo quela aplicación lisa y llana de la ley se erigiría en el
quebrantamiento del derecho de un sujeto especialmente vulnerable.

El voto del ministro Dr. Rosatti por el que remite a su entonces voto en disidencia en el caso
Asociación Francesa Filantrópica y de Bene cencia nos permite profundizar la idea de que la tutela de los
vulnerables es un deber de todos.

Nos referimos a su mención a los deberes que recaen sobre la sociedad en aras de la protección de
los frágiles jurídicos que la integran. Mención con expresa recepción normativa de rango convencional
pero que, más aún, se desprende de la esencia misma del derecho.

Aun cuando el régimen concursal no ha efectuado una consideración particular del sujeto vulnerable
como acreedor preferente, la Corte Interamericana de Derechos Humanos ha sido contundente en cuanto
a que “la efectividad de las sentencias depende de su ejecución”38.

Debe agregarse que en este trascedente pronunciamiento (“Furlan vs. Argentina) la Corte IDH
razonó “que era necesario que las autoridades que ejecutaron la sentencia judicial hubieran realizado
una ponderación entre el estado de vulnerabilidad en el que hallaba Sebastián Furlan y la necesidad de
aplicar la ley que regulaba estas modalidades de pago. La autoridad administrativa debía prever este tipo
de impacto desproporcionado e intentar aplicaciones alternativas menos lesivas respecto a la forma de

34
CLERICO, Laura; ALDAO, Martin. Situación de mayor vulnerabilidad. El fallo “Garcia” sobre haberes previsionales y el
carácter multidimensional del art. 75 inc. 23 CN: luces y sombras. Revista Derecho del Trabajo. Buenos Aires, p. 1208-1237,
mayo 2019. p. 1208.
35
Corte Suprema de Justicia de la Nación Argentina. 26/03/2019. Id SAIJ: FA19000045, disponible en http://www.saij.gob.ar/corte-
suprema-justicia-nacion-federal-ciudad-autonoma-buenos-aires-institutos-medicos-antartida-quiebras-inc-verificacion-
raf-lrh-fa19000045-2019-03-26/123456789-540-0009-1ots-eupmocsollaf ?&o=13&f=Total%7CFecha%7CEstado%20
d e % 2 0 Vi g e n c i a % 5 B 5 % 2 C 1 % 5 D % 7 C Te m a % 5 B 5 % 2 C 1 % 5 D % 7 C O r g a n i s m o % 5 B 5 % 2 C 1 % 5 D % 7 C Au t o r-
%5B5%2C1%5D%7CJurisdicci%F3n%5B5%2C1%5D%7CTribunal/CORTE%20SUPREMA%20DE%20JUSTICIA%20DE%20
LA%20NACION%7CPublicaci%F3n%5B5%2C1%5D%7CColecci%F3n%20tem%E1tica%5B5%2C1%5D%7CTipo%20de%20
Documento/Jurisprudencia&t=15635
36
De fecha 06/11/2018. Cita Fallos Corte: 341:1511
37
Puede verse nuestro comentario al fallo: La tutela de los vulnerables: un deber de todos en Rubinzal Culzoni Online Argentina,
Cita Online: RC D 598/2019.
38
Corte IDH, caso Furlan y familiares vs. Argentina. Sentencia de 31 ago 2012. Ap. 209

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ejecución más perjudicial para las personas en mayor vulnerabilidad.”39 Razones por las cuales consideró
que la ejecución de sentencia no fue efectiva y generó desprotección judicial de la víctima por cuanto
“no cumplió la nalidad de proteger y resarcir los derechos que habían sido vulnerados y que fueron
reconocidos mediante la sentencia judicial”40.

Los fundamentos resaltados resultan de análoga aplicación al supuesto de marras en que la


aplicación lisa y llana de la ley se erigiría en el quebrantamiento del derecho de un sujeto especialmente
vulnerable.

El máximo intérprete de los derechos humanos en el ámbito interamericano, adopta un criterio


que no debe ser jamás soslayado al momento de ponderar la aplicación de cualquier régimen que pretenda
cercenar derechos reconocidos por la Convención: el juicio de razonabilidad y proporcionalidad41.

Otra cuestión debe destacarse del voto en comentario que como adelantáramos, es la mención
explícita al deber de todos de tutelar a nuestros frágiles como un deber jurídico de orden convencional y
constitucional42. No puede resultar sorpresivo para los acreedores ni lesivo de la seguridad jurídica el hecho
de que el juzgador priorice el pago a un sujeto especialmente vulnerable, aun cuando dicho privilegio no
se encuentre expresamente previsto en la norma, la adecuación formal y material que la misma debe a su
suprema (CN y Tratados de derechos humanos) impone dicha interpretación y aplicación.

Finalmente, valga resaltar lo a rmado por la Conjuez Medina en relación al deber del Estado de
desplegar acciones efectivas a la tutela de las personas vulnerables, así como también el hecho de que los
jueces no deben limitarse a la aplicación mecánica de las normas.

Aun cuando celebramos la solución del fallo en cuanto reconoce la particularidad de la persona
vulnerable a la que se pretendía aplicar lisa y llanamente una ley general, se reitera en este precedente
la imposibilidad, al menos por el momento, de que esta jurisprudencia se pueda erigir en un capital de
valor. Ello por cuanto este valor de capital se genera por la convicción de la procedencia de la resolución
mediante la aplicación de un criterio previsible. Importa el producto del trabajo de los litigantes, abogados,

39
Ap. 217.
40
Ap. 219.
41
En este sentido ha expresado Carbonell que “el principio de proporcionalidad se vuelve relevante si aceptamos que no existen
derechos absolutos, sino que cada derecho se enfrenta a la posibilidad de ser limitado. La cuestión que interesa entonces es de
qué manera y con qué requisitos se pueden limitar los derechos. El discurso sobre el principio de proporcionalidad no empata
ni de lejos con el discurso conservador que quiere ver siempre limitados a los derechos fundamentales; por el contrario, se
trata de una técnica de interpretación cuyo objetivo es tutelarlos de mejor manera, expandiendo tanto como sea posible su
ámbito de protección, pero haciendo que todos los derechos sean compatibles entre ellos, en la medida en que sea posible.
De hecho, el principio de proporcionalidad constituye quizás el más conocido y el más recurrente ´límite de los límites´ a
los derechos fundamentales y en esa medida supone una barrera frente a intromisiones indebidas en el ámbito de los propios
derechos”. CARBONELL, Miguel. Presentación. In: CARBONELL, Miguel; GRANDEZ CASTRO, Pedro. (Coord.). El principio
de proporcionalidad en el derecho contemporáneo. Lima: Palestra, 2010 apud CARNOTA, Walter (Dir.). Tratado de los
tratados internacionales. Buenos Aires: La Ley, 2011, t. 1. p. 68.
42
V. en particular p. 12 del voto del Sr. Min. Dr. Rosatti.
134 Guillermina Leontina Sosa

doctrinarios y operadores de justicia a n de dar resultado a un estándar o regla43, lo que, si bien teniendo
en cuenta el fallo “Garcia” todo indicaría que va per lándose, afortunadamente, en dicho sendero, lo cierto
es que la mayoría de la Corte se conformó con el voto de conjuez, por lo que habrá de veri carse en lo
sucesivo como se consolida la doctrina jurisprudencial.

Si el valor de capital del precedente se consolida, esa información, resultado de un proceso complejo
de integración será de utilidad para reducir los costos de litigación en la medida que resulte claro para los
sujetos como se solucionaría su probable contienda y cuál es el rango de posibilidad de que el mismo se vea
modi cado a los nes de entablar una acción judicial44.

El costo de generación de dicho valor de capital es sobrellevado por muchos actores pero fecho
podrá ser aprovechado por todos.

La objetivización de la vulnerabilidad facilitará el acceso a la información a los posibles actores, así


como la predicción de las decisiones para casos análogos y, consiguientemente, contribuirá a la seguridad
jurídica. Los individuos buscan mediante el poder estatal contar con un registro o cial de las reglas judiciales,
lo que implica ver reforzados sus derechos y obligaciones, a la vez de constituir guías para futuros con ictos.

Permitirá reducir los costos de litigación en la medida que se considere la innecesaridad de concurrir
al litigio o en su caso de transitar por varias etapas judiciales para la obtención del objeto del pleito. Es que
si se generan guías claras que posibiliten la previsibilidad de la resolución de los con ictos posibles, se
puede trabajar sobre la generación de incentivos, desincentivos, a anzamiento y refuerzo de las normas
que reduzcan la concurrencia a la jurisdicción y fomenten la resolución alternativa de disputas mediante
una respuesta oportuna y e caz.

La previsibilidad de los cursos de acción para la tutela de las personas vulnerables, a anza la efectividad
de los derechos. La dispersión informativa eleva los costos [o incluso, puede erigirse en impeditivo] de
respuestas efectivas a las necesidades de las personas más frágiles de nuestra sociedad. Es que como han
destacado los autores HOLMES – SUNSTEIN, los individuos gozan de derechos, no en sentido moral sino
legal, sólo si su propio gobierno repara en forma justa y predecible las ofensas que sufren45.

La pobreza, agelo de nuestro tiempo

Al inicio de estas líneas enfatizamos la situación de pobreza como aquella que aunque no suele
verse de modo aislado en las resoluciones judiciales como causa de vulnerabilidad si se la encuentra como
supuesto de agravamiento de algún otro factor. Aun así, la situación de desventaja económica constituye
per se una situación agelante que la más de las veces coloca al individuo fuera del alcance de cualquier
protección y ante una clara situación de fragilidad social.

43
Remitimos a nuestra tesis en Derecho y Economia, disponible en Biblioteca de la Universidad de Buenos Aires, Facultad de Derecho.
44
SOSA, Guillermina Leontina. Hacia una teoría de la vulnerabilidad. La Ley, 16.14.2019. p. 1.
45
HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. El costo de los derechos, por qué la libertad depende de los impuestos. Mexico: Siglo XXI, 2015.

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El poder de la vulnerabilidad. Implicancias en la interpretación y aplicación del derecho 135

En este orden de ideas, un estudio de Naciones Unidas sobre la relación entre pobreza y derechos
humanos identi ca a las oportunidades restringidas para acceder al bienestar como una característica
para de nir a la “persona pobre”. Continúa señalando el informe que, en este sentido, bienestar se
re ere no solo a un nivel de ingreso sino a capacidades básicas que son comunes a todos, por ejemplo,
estar adecuadamente vestido y acobijado, al reparo de un techo, poder evitar la mortalidad prevenible,
tomar parte en la vida comunitaria y tener la posibilidad de mostrarse en público con dignidad. En este
entendimiento de la pobreza – indica el informe – un importante elemento a considerar es el inadecuado
dominio sobre los recursos económicos. Si un individuo pierde la disposición de sus recursos económicos
y esto lo lleva a una falla en relación a las capacidades descriptas anteriormente, entonces esa persona
será considerada como pobre.

Este informe pone de relieve la incidencia de la pobreza en la capacidad de elección, en la posibilidad


de lograr un proyecto autoreferencial y vivir dignamente.

Tal es el impacto de la pobreza para el acceso a los derechos que estimamos necesario dedicar un
apartado y referirnos a dos casos que sirven de muestra de lo expuesto.

En el primero de ellos46, una pareja en situación de calle promovió una demanda contra el Gobierno
de la Ciudad de Buenos Aires y un hospital por los daños y perjuicios que dijeron haber sufrido como
consecuencia del fallecimiento de su descendiente, ocurrido a sus veinticinco días de vida. El juez de grado
hizo lugar parciamente a la demanda y ordenó al accionado a abonar las sumas cuanti cadas. La sentencia
fue apelada.

La Cámara con rmó lo decidido, aunque redujo el monto otorgado en concepto de daño moral.

Para así decidir, consideró la omisión del Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires en renovar las
prestaciones sociales a la familia demandante que continuaba en la misma situación de vulnerabilidad; a lo
que se sumó que el demandado estaba advertido de la peligrosidad que signi caba para la madre y el recién
nacido la situación de calle.

Entendió que el hecho de que la familia demandante haya tenido que vivir, una vez nacido su hijo,
debajo de un puente, demostraba la existencia de nexo causal entre el obrar antijurídico del demandado y
la privación de la posibilidad del niño de evitar la neumopatía que produjo su deceso. En este sentido, el
juez de grado a rmo que el recién nacido “murió por la falta de un Estado presente”47.

Es de destacar que el Estado había ofrecido diversas propuestas a la familia. Sin embargo, la Cámara
con rmo la decisión de grado resaltando que “al margen de la aceptación o el rechazo de las diversas
propuestas precarias ofrecidas por el personal estatal, para el demandado, en su momento, era previsible

46
Cámara de Apelaciones en lo Contencioso administrativo y Tributario de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, sala I,
14/03/2018, N. A. M. A. y otros c. GCBA y otros s/ Daños y perjuicios (Excepto Resp. Médica), Publicado In: La Ley Online;
Cita Online: AR/JUR/5547/2018
47
Juzgado en lo Contencioso administrativo y Tributario Nro. 15 de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, 14/12/2016, N. A.
M. A. y otros c. GCBA y otros s/ daños y perjuicios (excepto resp. médica), La Ley Online; Cita Online: AR/JUR/83392/2016.

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136 Guillermina Leontina Sosa

la producción de algún perjuicio hacia los actores y, no obstante, omitió adoptar medidas con el alcance
legalmente exigible según la situación de vulnerabilidad comprometida. Más aún, tal como se indicó en la
decisión atacada, la circunstancia de que el demandado, luego del deceso del menor, haya resuelto en un
día la situación habitacional del grupo accionante, refuerza lo aquí decidido, pues ¿se reitera? la situación
de emergencia de la familia actora, durante la época en juego, se mantuvo sin alteraciones”.

Finalmente, y en lo que aquí interesa destacar, señaló que los “paradores” no constituyen una
solución adecuada, pues se trata de ámbitos donde la intimidad de las personas no se halla debidamente
resguardada, prevén estadías meramente temporarias y la permanencia durante el día es excepcional (del
voto del Dr. Balbín).

En esta misma tendencia de ponderar la vulnerabilidad social y los contextos de exclusión en que
pueden hallarse las personas para activar el deber del Estado de acciones reforzadas a los nes de tutelar los
derechos, se encuentra el fallo resuelto por la Cámara Civil y Comercial de Mar del Plata48.

En este caso, la Cámara hizo lugar a la demanda de daños deducida contra el Estado provincial
por la muerte de una menor que fue sometida a servidumbre y fue sujeto del delito de abandono de
persona, pues la antijuridicidad de la conducta reprochada al Poder Judicial de la provincia se advierte
en el incumplimiento de los razonables deberes de protección de una niña en situación de vulnerabilidad
mani esta, cuyo seguimiento y control fue omitido pese al conocimiento que tenían las autoridades
judiciales de la situación perjudicial, o al menos dotada de clara potencialidad dañosa que se cernía
sobre ella.

Se expresó que “el conocimiento de una situación de riesgo real e inmediato, que se cierne sobre un
individuo respecto a la cual pudo ejercerse el deber de prevención – como se hizo al otorgarle la guarda
a su abuela desde los dos meses y hasta los ocho años – y que haya posibilidades de prevenir o evitar ese
riesgo, son los requisitos que ha exigido la Corte Interamericana para considerar incumplido un “deber de
prevención razonable”.

Asimismo, se señaló que “tanto la actuación del Juez, como del asistente social que veía
“normalidad” y “protección de los niños” al limitar su trabajo a entrevistas con los victimarios, como la
posterior omisión de controlar y vigilar la evolución de esas situaciones mani estamente peligrosas para
la menor, constituyen la irregularidad en que la falta de servicio consiste, violando tanto los mandatos
expresos de las normas consignadas como la razonable prevención ante el cabal conocimiento de una
situación potencialmente dañosa”.

Finalmente, indicó que “no resultan admisibles ante la víctima del daño injusto, ni la escasez de
recursos económicos, técnicos o de personal, casi siempre circunscriptos en los hechos, tampoco las

48
Cámara de Apelaciones en lo Civil y Comercial de Mar del Plata, Sala II, 10/08/2018, S. R. L. c/ Fisco de la Provincia de
Buenos Aires s/ daños y perjuicios, Cita: MJ-JU-M-113171-AR | MJJ113171 | MJJ113171, disponible en https://aldiaargentina.
microjuris.com/2018/11/20/responsabilidad-del-poder-judicial-local-por-la-muerte-de-una-menor-que-sujeta-al-delito-de-
abandono-de-persona-y-sometida-a-servidumbre/

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El poder de la vulnerabilidad. Implicancias en la interpretación y aplicación del derecho 137

di cultades nancieras o limitaciones presupuestarias para desplegar funciones públicas sin otra causa
que no haya sido la negligencia (con resultado criminal) en el cumplimiento de sus deberes funcionales, la
indiferencia y el olvido”.

Ambos supuestos re ejan la dureza de las condiciones en las que quedan sumergidos e invisibilizados
los individuos más frágiles de nuestra sociedad cuando a su vulnerabilidad inicial se adune la situación
de escasez, ocasionando un supuesto de hipervulnerabilidad que demanda del Estado el despliegue de
acciones concretas dirigidas a sacar a la persona de dicha situación de indefensión.

El test de respuesta imposible en este caso ha de ser especialmente rígido y exigente. La detección
temprana de la situación de vulnerabilidad implica no solo la posibilidad de un goce oportuno del derecho
por parte de los más frágiles jurídico sino también la evitación de la agravación o la mitigación del daño.
La detección oportuna opera como un supuesto de prevención del daño.

La fuerza de la pertenencia a un colectivo especialmente vulnerable reside en la directa relación


y el poder que dicha circunstancia tiene para in uir en el modo en que se ha de interpretar y aplicar del
derecho. En opinión que compartimos, se ha a rmado que “se trata de un derecho propio que asiste a
esta población vulnerable, a recibir respuestas efectivas del sistema judicial, que deben de reformularse,
adaptarse y especializarse para atender las necesidades y las situaciones particulares de cada uno de los
casos donde guren”49.

Vulnerabilidad: desafío de respeto, prevención y (o) reparación. En busca de soluciones creativas

En estos términos todo lo atinente a vulnerabilidad se per la como un gran desafío. Desafío que
los Estados deben asumir en los tres aspectos destacados por la Corte IDH, respeto, prevención y (o)
reparación y a los que ya hemos aludido a lo largo de estas líneas.

Las reformas legislativas de nuestro tiempo y la jurisprudencia de los últimos años, especialmente en
materia ambiental y consumeril, ha puesto de resalto la trascendencia de la función preventiva y precautoria.

A modo de síntesis, en palabras de Mariño Lopez, “la función preventiva del daño se realiza mediante
la inhibición temporal o de nitiva de conductas que produzcan daños o existan probabilidades de que
produzcan daños. Presenta dos aspectos funcionales diferentes de acuerdo con la certidumbre cientí ca
existente sobre el riesgo de daños: por una parte, la prevención del daño con certidumbre cientí ca
respecto de su acaecer y, por otra, la precaución del daño respecto de cuya producción existe una cuota de
incertidumbre cientí ca”50.

49
MONGE NÚÑEZ, Gonzalo; RODRÍGUEZ RESCIA, Víctor. Manual general de litigio en el sistema interamericanocon
enfoque diferenciado Niñez y adolescencia, pueblos indígenas y afrodescendientes. Costa Rica, Instituto Interamericano de
Derechos Humanos, 2014. p. 193.
50
MARIÑO LOPEZ, Andrés. Principio precautorio, protección de consumidores y obligación de informar en el Anteproyecto
de Ley de Defensa del Consumidor. In: SANTARELLI, Fulvio; CHAMATROPULOS, Alejandro. Comentarios al anteproyecto
de Ley de Defensa del Consumidor: homenaje a Rubén S. Stiglitz. Buenos Aires: La Ley, 2019. p. 889

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138 Guillermina Leontina Sosa

Es que como decía con acierto la querida jurista y amiga cordobesa Matilde Zavala de González
“cuando el omitente no presta la ayuda debida, el hecho continúa generando su propia causalidad, que en
apariencia es indiferente respecto de la omisión. Pero solo en apariencia, porque el punto de vista debe
trasladarse a lo que pudo hacer y no hizo, convirtiendo la omisión en máximamente signi cativa […] y
si el sujeto que podía obrar e cazmente no actuó, ha contribuido con su pasividad a generar el desenlace
mediante una causa concurrente con el peligro extraño, frente al cual se mantuvo inerte […] y la relación
causal es adecuada dentro del sistema civil toda vez que la conducta esperada era previsiblemente idónea
para evitar el daño”51.

Y así es: la función primordial en torno a la vulnerabilidad es su detección oportuna y la adopción


de medidas que eviten – o mitiguen – el acaecimiento del daño.

En estrecha relación con la evitación y mitigación del daño, así como la reducción de los costos de
litigación y la utilización de datos para evitar la reedición de con ictos, es preciso aludir a la multiplicación
de sistemas alternativos de resolución de controversias en el mundo entero.

A tono con los cambios a los que aludíamos al inicio de estas líneas, vale la pena destacar los Online
Dispute Resolution Systems. Sus inicios han sido potenciados de la mano del sector privado (piénsese vgr.,
en particular, los modelos desarrollados por Ebay o Amazon) que pudo advertir el elevado costo del litigio
y la necesidad de ahondar en herramientas de resolución de con ictos que permitan no solo prevenir su
judicialización sino también priorizar la conservación de las relaciones negociales.

Sin embargo, la necesidad tanto del sector público como privado de lidiar con un volumen creciente
de disputas y presiones para que se resuelvan con rapidez, a bajo costo y de modo proporcionado mientras
entregan una mejor experiencia a todos los involucrados52, ha llevado a ambos sectores a seguir desarrollando
y apostando por la implementación de estos nuevos modelos de solución de disputas y la utilización de
big data e inteligencia arti cial para la prevención de daños y la optimización en el delivery de respuestas
e caces a supuestos análogos. El sistema se retroalimenta, asimismo, con la información obtenida de las
múltiples interacciones de los interesados, independientemente de su carácter de actores o demandados,
convergiendo todos en el mandato ultimo de optimización de respuestas efectivas a situaciones de con icto.

Del mismo modo, el individuo como integrante de la sociedad pone de relieve la dinámica relacional
del concepto de vulnerabilidad que implica esfuerzos, como se evidenciaba en el fallo de Corte en relación

51
ZAVALA DE GONZALEZ, Matilde, Responsabilidad por omisión frente a víctimas de violencia familiar, La Ley, 30.11.2014,
citado en voto del Dr. Loustaunau en caso sobre responsabilidad del Estado por omisión en el ámbito del poder judicial. Los
hechos que dan origen al fallo pueden sintetizarse en la inactividad de un tribunal y Ministerio Pupilar para tutelar a una
persona vulnerable en razón de su edad. El trágico desenlace de la niña (falleció) da lugar a la acción incoada por su abuela quien
reclamo en pos de su tutela sin recibir respuesta oportuna. Muy interesante voto del mencionado magistrado, ver: Cam. Apel.
Civ. y Com. Mar del Plata, Sala Segunda, 10/08/2018, Sotelo, Rosa Lorenzo c. Fisco de la Provincia de Buenos Aires s/ danos y
perjuicios, fallos JUBA.
52
e Impact of ODR Technology on Dispute Resolution in the UK, omson Reuters, disponible en https://blogs.thomsonreuters.
com/legal-uk/wp-content/uploads/sites/14/2016/10/BLC_ODRwhitepaper.pdf

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 121-142, ago. 2020.


El poder de la vulnerabilidad. Implicancias en la interpretación y aplicación del derecho 139

a los privilegios de los concursos y quiebras, no solo por parte del Estado sino también de la sociedad en su
conjunto. La relación de individuo – sociedad también ha de caracterizarse por un vínculo que promueva
el mantenimiento y fortalecimiento de las relaciones humanas. Como ha expresado el Dr. Rossati en el
voto que se transformara en mayoría en el caso sobre privilegios al que aludimos previamente, el deber de
todos de tutelar a nuestros frágiles no es aspiración de deseos, sino que importa un deber jurídico de orden
convencional (y constitucional, en el caso de Argentina)53. Ello por cuanto “Toda persona tiene deberes
respecto a la comunidad, puesto que sólo en ella puede desarrollar libre y plenamente su personalidad”54.

En palabras de Basset “la vulnerabilidad instala otra noción más rica de relacionalidad o alteridad
de las relaciones humanas: una que pone de relieve la interdependencia esencial y constitutiva de todo
ser humano en virtud de su nitud y sus carencias […] El derecho percibe, a través de la perspectiva de la
vulnerabilidad, a la persona en su interdependencia”55.

Los esfuerzos sociales no serán vanos en la medida que se permita obtener de dicha información la
generación de un bien de capital que optimice las respuestas futuras, previniendo y (o) mitigando el daño
y (o) reduciendo los costos de litigación.

A su vez, el fortalecimiento de la empatía a más de la capacitación constante de los operadores jurídicos


es la clave para avanzar hacia detecciones tempranas de presencia de sujetos vulnerables que conlleven a
prevenir, evitar y (o) mitigar el daño. No es casual que desde la doctrina se aluda al termino resiliencia
en relación a la vulnerabilidad. Así, en palabras de Rosmerlin Estupiñan-Silva56 “cuando la Corte IDH se
re ere al artículo 2 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos, los jueces interamericanos
están concentrando sus esfuerzos en incidir en las políticas públicas del Estado para introducir respuestas
en términos de reparación y garantías de no repetición (para el caso preciso), pero también en términos de
adaptación prospectiva, esto es, de disminución de la vulnerabilidad futura (resiliencia)”57.

Cada vez se hace más necesario poner el foco en el aspecto preventivo del daño. Para ello resulta
fundamental la creación o desarrollo en términos de previsibilidad de la aplicación de los institutos jurídicos a
las personas en condición o situación de vulnerabilidad a n de evitar la ocurrencia o el agravamiento del daño.

53
Conf. Vgr. Arts. 16, 21 y en especial art. 29 de la Declaración Universal de Derechos Humanos, Art. 19 Convención Americana
de Derechos Humanos, Preámbulo, arts. 8 y 28 Convención sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad, arts. 8 y 24
Pactos Internacionales de Derechos Económicos, Sociales y Culturales y Civiles y Políticos; Arts. 8 y 24, éste último en relación
tuitiva de la niñez del Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos; Convención sobre los Derechos del Niño, Cap. II de la
Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre referido especialmente a los deberes de la persona.
54
Art. 29.1 de la DUDH.
55
BASSET, Ursula, La vulnerabilidad como perspectiva: una visión latinoamericana del problema. Aportes del Sistema
Interamericano de Derechos Humanos In: BASSET, Ursula, FULCHIRON, Hugues, BIDAUD-GARON, Christine,
LAFFERRIEERE, Jorge. (Dir.). Tratado de la vulnerabilidad. Buenos Aires: La Ley, 2017. p. 24.
56
ESTUPIÑAN-SILVA Rosmerlin. La vulnerabilidad en la jurisprudencia de la Corte Interamericana deDerechos Humanos:
esbozo de una tipología. In: BOURGORGUE-LARSEN, Laurence et al (Coord.). Derechos humanos y políticas públicas.
Barcelona: Edo-Serveis, 2013.
57
Los términos “recuperación”, “adaptación prospectiva” y “resiliencia” ha sido de nidos por las Naciones Unidas como parte de
la prevención de desastres. UN, doc. 7817(2009), op. cit. pp. 4, 26, 28.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 121-142, ago. 2020.


140 Guillermina Leontina Sosa

Re exiones de cierre

Nuevamente, en palabras de la querida Matilde Zavala de González “nunca es jurídicamente


minúscula la nocividad injusta, porque tampoco es mínima humanamente”58.

Las personas vulnerables se encuentran más expuestas al riesgo en razón de su condición y (o) la
situación en que se encuentran, lo que di culta y (o) impide el ejercicio de sus derechos.

La multiplicación de instrumentos jurídicos con foco en las singularidades del individuo es un


re ejo de la evolución de las interacciones e interrelaciones sociales y la insu ciencia de las cartas de
derecho genéricas para la protección integral de la dignidad de las personas en condición de igualdad.

La pobreza conforme se ha destacado por Naciones Unidas59 limita las posibilidades de elección
de vida y puede llevar a los individuos a asumir riesgos y tomar decisiones sobre su vida y futuro que
nunca hubiesen elegido si su condición económica se encontrara a niveles aceptables. Ello pone de relieve
la necesidad de combatir el agelo de la pobreza que expone a las personas a múltiples fragilidades y se
constituye en agravante de cualquier otra condición de vulnerabilidad.

La detección oportuna de la condición o situación de vulnerabilidad resulta necesaria para la


prevención, evitación y (o) mitigación del daño, y consecuentemente, para la efectividad de los derechos.
Asimismo, por las implicancias a las que dicha fragilidad conduce en la interpretación y aplicación del
derecho. Dichas implicancias pueden sintetizarse en:

• La detección de vulnerabilidad de la persona implicará la necesidad de una tutela judicial


diferenciada.

• El nivel de vulnerabilidad del sujeto, tendrá directa incidencial en el potencial de cambio


para la aplicación del derecho. A mayor vulnerabilidad, mayor posibilidad de interpretación
diferenciada.

• Ante estos supuestos: se impone un escrutinio estricto de responsabilidad. Ello implica que
recae sobre el Estado el deber de acreditar que en el caso se esta ante un supuesto de protección
imposible y (o) irrazonable y desproporcionada con el n perseguido.

El Sistema Interamericano de Derechos Humanos brinda lineamientos de actuación a los efectos


del cumplimiento de los deberes de respeto y garantía que recaen sobre los Estados. Asimismo, ha puesto el
foco en que dichos deberes incluyen los aspectos tanto de reconocimiento de derechos como de la función
preventiva y eventualmente resarcitoria.

58
ZAVALA DE GONZALEZ, Matilde, La Ley, 2004-E, 1316.
59
V. Office of the High Commissioner for Human Rights, Human Rights and Poverty Reduction: A conceptual Framework
(HR/PUB/04/1) p. 5-12; OFFICE OF THE HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS Recommended Principles and
Guidelines on Human Rights and Human Trafficking, texto disponible enhttps://www.ohchr.org/Documents/Publications/
Traffickingen.pdf

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 121-142, ago. 2020.


El poder de la vulnerabilidad. Implicancias en la interpretación y aplicación del derecho 141

Ante el principio de actuación subsidiaria del Sistema Interamericano de Derechos Humanos es


fundamental la detección oportuna de sujetos vulnerables en el orden interno a los nes de la efectividad
de los derechos en tiempo oportuno.

La existencia de nuevas plataformas electrónicas, virtuales y de gestión de datos permiten un


procesamiento de la información que con el adecuado impulso y desarrollo contribuirán a la previsibilidad
de respuestas y a lograr el acceso a justicia oportuno de todos los sectores sociales en el ámbito tanto público
como privado. Su utilización efectiva se erige así en un motor de avance en la precisión y previsibilidad de
respuestas adecuadas y superadoras para casos análogos.

El avance en la determinación de criterios objetivos de detección de supuestos de vulnerabilidad,


así como de actuación en dichos casos, facilitará el acceso a la información a los posibles actores, así como
la predicción de las decisiones y, consiguientemente, contribuirá no solo a la reducción de los costos de
litigación y de la reedición de con ictos sino también a la seguridad jurídica.

Es que tras la perspectiva de la vulnerabilidad se haya implícito el sueño esbozado por Martin
Luther King, uno de los más grandes defensores de los derechos de las minorías. Ese sueño de igualdad
para toda la raza humana que transforma el disonante y estridente ruido en una sinfonía de hermandad. La
materialización de este sueño impone interpretar el derecho y aplicarlo para que las personas en posición
más frágil de nuestra sociedad encuentren los ajustes necesarios para poder gozar y ejercer sus derechos
en igualdad. Solo así, cerraba el célebre Martin Luther King aquel inolvidable discurso, ¡podremos ser
“ nalmente libres”!

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Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 121-142, ago. 2020.


Danos colaterais em tempos de pandemia: preocupações
quanto ao uso dos dados pessoais no combate a COVID-19

Jéssica Andrade Modesto


Universidade Federal de Alagoas, Maceió, Alagoas, Brasil
http://orcid.org/0000-0002-2626-5088

Marcos Ehrhardt Junior


Universidade Federal de Alagoas, Maceió, Alagoas, Brasil
http://orcid.org/0000-0003-1371-5921

Resumo: Desde o nal de 2019, a pandemia do novo coronavírus vem


infectando e provocando a morte de milhares de pessoas em todo
o mundo. Para reduzir a disseminação da doença, os governos têm
adotado diversas medidas, muitas das quais envolvem o tratamento
de dados pessoais para mapear possíveis infectados, bem como para
Canoas, v. 8, n. 2, 2020 identi car aqueles que não estão cumprindo o período de quarentena.
Nesse cenário, o presente trabalho se propôs a analisar as questões
Artigo jurídicas que envolvem o tratamento de informações pessoais pelo poder
público, destacando-se as lesões que tal tratamento pode acarretar aos
Recebido: 07.04.2020 titulares dos dados, buscando-se identi car se há limites ao tratamento e
divulgação desses dados em situações como a atual. Partiu-se da hipótese
Aprovado: 10.04.2020
de que o direito à privacidade pode sofrer restrições quando o interesse
Publicado: 04.05.2020 coletivo assim o exigir, no entanto, a utilização de dados pessoais
pelos Estados com a nalidade de proteção sanitária pode ocorrer em
DOI http://dx.doi.org/10.18316/REDES.v8i2.6770
observância aos direitos fundamentais. Para tanto, procedeu-se a uma
pesquisa bibliográ ca/documental em doutrina, matérias jornalísticas
e legislação nacional e estrangeira acerca do tema. Concluiu-se que,
por meio da observância de determinados princípios, o respeito à
privacidade pode e deve conviver com as medidas de tratamento de
dados pessoais empregadas para controle da disseminação da pandemia
e monitoramento dos pacientes. Entretanto, é tarefa bastante árdua
estabelecer o ponto de equilíbrio no tratamento dos dados pessoais
em prol do interesse coletivo, razão pela qual os limites precisam ser
construídos na análise do caso concreto.
Palavras-chave: Dados Pessoais; Privacidade; Tratamento de Dados;
Danos Colaterais; Pandemia.

Collateral damages in times of pandemic: concerns about


the use of personal data to combat COVID-19

Abstract: Since the end of 2019, the new coronavirus pandemic has been
infecting and killing thousands of people around the world. To reduce
the spread of the disease, governments have adopted several measures,
144 Jéssica Andrade Modesto, Marcos Ehrhardt Junior

many of which involve the processing of personal data to map possible infected people and to identify those who are
not complying with the quarantine period. In this scenario, the present work aimed to analyze the legal issues that
involve the treatment of personal information by the public power, draing the injuries that such treatment can cause
to the data subjects, seeking to identify if there are limits to the treatment and disclosure this data in situations like
the current one. It was assumed that the right to privacy may be restricted when the collective interest so requires,
however, the use of personal data by States for the purpose of health protection may occur in compliance with
fundamental rights. A bibliographic/documentary research was carried out on doctrine, journalistic articles and
national and foreign legislation on the subject. It was concluded that, through the observance of certain principles,
respect for privacy can and must live with the measures of treatment of personal data used to control the spread of
the pandemic and monitor patients. However, it is a very arduous task to establish the balance point in the treatment
of personal data for the bene t of the collective interest, so that the limits need to be constructed in the analysis of
the speci c case.
Keywords: Personal Data; Privacy; Data Processing; Collateral Damages; Pandemic.

Introdução

No nal de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recebeu um comunicado do governo


chinês alertando sobre uma série de casos de pneumonia na província de Wuhan, cuja origem era, ainda,
desconhecida. Em 9 de janeiro de 2020, foram anunciadas as primeiras análises sequenciais do vírus,
indicando que a origem desses casos de pneumonia se devia a um novo tipo de coronavírus, o qual recebeu
o nome técnico COVID-191. Desde então, o COVID-19 matou milhares de pessoas e infectou mais de 1
milhão de indivíduos em todo o mundo2, o que fez com que, em 11 de março desse ano, a OMS declarasse
a pandemia do coronavírus3. Também no Brasil, milhares de pessoas foram contaminadas pelo vírus, o que
provocou a morte de centenas destas4.

Toda essa situação tem feito com que os países adotem diversas medidas para a contenção do
COVID-19, o que inclui impor às pessoas regimes de distanciamento social: a chamada quarentena.
Nesse cenário, o tratamento de dados pessoais tem sido amplamente utilizado por diversos países no
enfrentamento à pandemia.

1
ALVES, Rafael. Tudo sobre o coronavírus – Covid-19: da origem à chegada ao Brasil – perguntas e respostas sobre o vírus
descoberto em dezembro na China e que se tornou emergência de saúde pública de interesse internacional. Estado de Minas,
27 fev. 2020. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/02/27/interna_nacional,1124795/tudo-sobre-
o-coronavirus-covid-19-da-origem-a-chegada-ao-brasil.shtml. Acesso em: 06 abr. 2020.
2
AFP. O GLOBO. Número de mortos pelo coronavírus no mundo chega a 65 mil neste domingo. 05 abr. 2020. Disponível
em: https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus-servico/numero-de-mortos-pelo-coronavirus-no-mundo-chega-65-mil-
neste-domingo-24352620. Acesso em: 06 abr. 2020.
3
MOREIRA, Ardilhes; PINHEIRO, Lara. OMS declara pandemia de coronavírus. G1 – Bem Estar, 11 mar. 2020. Disponível
em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/11/oms-declara-pandemia-de-coronavirus.ghtml. Acesso em:
06 abr. 2020.
4
G1 – Bem Estar. Brasil tem 486 mortes e 11.130 casos con rmados de coronavírus, diz ministério. 05 abr. 2020. Disponível
em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/05/brasil-tem-486-mortes-e-11130-casos-con rmados-de-
coronavirus-diz-ministerio.ghtml. Acesso em: 06 abr. 2020.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 143-161, ago. 2020.


Danos colaterais em tempos de pandemia: preocupações quanto ao uso dos dados pessoais no
combate a COVID-19 145

Dados pessoais são informações relacionadas a uma pessoa identi cada ou identi cável, como o
nome, o CPF, o endereço, os dados genéticos, o histórico médico, o Internet Protocol (IP) e os dados de
localização de uma pessoa, isto é, são dados vinculados, direta ou indiretamente a determinado indivíduo,
os quais revelam algo sobre ele.

O tratamento dessas informações pode se mostrar bastante útil na execução de políticas


governamentais de combate ao coronavírus. Isso porque os dados pessoais podem indicar as pessoas com
quem o infectado teve contato e, assim, o governo pode contatá-las para que realizem testes de diagnóstico
do COVID-19 e para que se mantenham em isolamento. Também é possível inferir, a partir da manipulação
de tais dados, se as pessoas estão desrespeitando o período de quarentena, permitindo a adoção de medidas
que garantam a efetividade dos decretos governamentais que obrigam ao distanciamento social5.

Diante disso, o presente trabalho se propõe a analisar as questões jurídicas que envolvem o tratamento
de informações pessoais pelo poder público no enfrentamento à pandemia, bem como, abordar as lesões
que tal tratamento pode acarretar – e em alguns casos tem acarretado – aos titulares dos dados, lesões estas
cujos efeitos podem ser bem mais danosos, do ponto de vista individual, que os da própria doença.

Em tal cenário, busca-se responder aos seguintes questionamentos: O interesse coletivo pode
justi car toda e qualquer limitação ao direito à privacidade ou há limites ao tratamento e divulgação desses
dados em situações como a atual? O indivíduo pode sofrer danos colaterais decorrentes do tratamento de
dados pessoais com vistas a combater o COVID-19?

Parte-se da hipótese de que, inexistindo direito fundamental que seja ilimitado, o direito à privacidade
pode sofrer restrições quando o interesse coletivo assim o exigir, mas sua tutela não pode ser compreendida
numa perspectiva de exclusão quando cotejada com outros direitos. Dito de outro modo: diante de uma
situação concreta, a diretriz a pautar o trabalho do intérprete deve ser de que a tutela do direito à saúde,
privacidade e proteção de dados, devem coexistir. Para tanto, procedeu-se a uma pesquisa bibliográ ca/
documental acerca do tema em doutrina, matérias jornalísticas e legislação nacional e estrangeira, com
vistas a identi car quais são as medidas de enfrentamento à pandemia que utilizam dados pessoais adotadas
pelo Brasil e demais Estados, bem como, quais os potenciais danos que essas medidas podem acarretar,
analisando-se as questões jurídicas que envolvem a matéria.

A proteção dos dados pessoais e os efeitos do tratamento de dados no combate à pandemia

No Brasil, após viajar para o casamento de um amigo, no início desse mês, C. R. desembarcou
no aeroporto da capital sergipana. Alguns dias depois, começou a sentir dor de cabeça que logo evoluiu
para sintomas que ela acreditou serem de uma gripe e que a deixaram indisposta. Foi quando recebeu
uma ligação da Vigilância Epidemiológica de Aracaju informando que o órgão estava buscando as pessoas
que estiveram no mesmo voo que C.R, porque um dos passageiros fora diagnosticado com coronavírus.

5
Esses são só alguns exemplos de como os dados pessoais podem ser utilizados com vistas a se combater o COVID-19. As
possibilidades são várias, no entanto, o uso indiscriminado de tais informações também pode gerar diversos danos colaterais.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 143-161, ago. 2020.


146 Jéssica Andrade Modesto, Marcos Ehrhardt Junior

A vigilância solicitou, então, que C.R. fosse a um hospital para realizar um exame para o diagnóstico da
COVID-196.

Antes mesmo de saber do resultado do teste – positivo para o coronavírus –, os dados pessoais de C.R.
estavam circulando nas redes sociais. Juntamente com seu nome, foto e local, as pessoas compartilhavam
em tais redes diversos ataques a ela, os quais iam desde inverdades a respeito do descumprimento do
isolamento até a rmações de que ela merecia ser presa. Tudo isso fez C.R. a rmar que a exposição que
sofreu a deixou mais doente do que o próprio COVID-19.

Na Coreia do Sul, “S” participa de uma aula, em seu trabalho, sobre assédio sexual. Acaba contraindo
o coronavírus em decorrência do contato com o instrutor da turma. Assim que é diagnosticado com a
doença, o governo começa a enviar mensagens para a população informando o resultado da vistoria clínica.
Nas mensagens constam o sexo, a idade, o distrito de residência e o distrito de trabalho do infectado, a
ocasião e de quem o infectado contraiu o vírus, os locais e horários por onde passou após a infecção e,
até mesmo, a informação de que “S” e o instrutor estiveram juntos em um bar até as 23h03, o que gerou
boatos de que os dois teriam um romance. Apesar de nenhum nome ou endereço ser informado, não é
difícil imaginar como a divulgação dessa vasta quantidade de dados, a princípio não identi cados, torna-os
facilmente identi cáveis7.

Ainda na Coreia do Sul, outro alerta no celular informa que uma mulher de 27 anos que trabalha
na Samsung, em Gumi, contraiu o COVID-19 no dia 18 de fevereiro, às 23h, quando visitou sua amiga que
havia participado da reunião da seita religiosa Shincheonji, a maior fonte de infecções no país. Logo depois,
o prefeito de Gumi revelou o sobrenome da coreana em seu Facebook, momento em que os moradores da
cidade, em pânico, começaram a pedir que o prefeito lhes dissesse o endereço da infectada. Assustada, a
mulher implorou por meio da rede social que o prefeito não divulgasse suas informações pessoais, pois, tal
comportamento poderia trazer danos à família dela e a seus amigos, o que, para a infectada, era mais difícil
que a dor física.

Toda essa riqueza de informações que o governo divulga em seus alertas é fruto da massiva coleta
dos dados pessoais daqueles que são infectados pelo coronavírus, que vai da entrevista do paciente até a
veri cação das transações com cartões de crédito feitas pelo infectado, passando pela coleta de dados de
localização dos smartphones e lmagens de câmeras de vigilância para recriar a rota do infectado um dia
antes de os sintomas aparecerem.

Diante de tantos casos nos quais a identi cação dos infectados foi possível, situações de
linchamento virtual, além de casos que, mesmo sem a pontual identi cação, geraram diversos comentários
vexatórios, os sul-coreanos passaram a ter tanto ou até mais medo do estigma social, das críticas e de

6
G1 SE. Mulher diagnosticada com coronavírus em Sergipe fala sobre preconceito: ‘Isso me deixou mais doente que a própria
dor’. 19 mar. 2020. Disponível em https://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/2020/03/19/mulher-diagnosticada-com-coronavirus-
em-sergipe-fala-sobre-preconceito-isso-me-deixou-mais-doente-do-que-a-propria-dor.ghtml. Acesso em: 6 abr. 2020.
7
BBC NEWS. Coronavirus privacy: are South Korea’s alerts too revealing? 05 mar. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/
news/world-asia-51733145. Acesso em: 6 abr. 2020.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 143-161, ago. 2020.


Danos colaterais em tempos de pandemia: preocupações quanto ao uso dos dados pessoais no
combate a COVID-19 147

outros danos do que da própria doença. Ademais, os alertas também estão afetando lojas e restaurantes,
pois, as mensagens associam os nomes desses estabelecimentos ao vírus. Esse fato tem sido utilizado por
pessoas mal-intencionadas que contraíram o COVID-19 e passaram a chantagear os proprietários de
tais estabelecimentos, exigindo dinheiro em troca de não informarem às autoridades de saúde que por
lá passaram8.

Em outro lugar, uma pessoa preocupada com o coronavírus resolve baixar um aplicativo em seu
smartphone para acompanhar as estatísticas sobre a pandemia, além de poder visualizar um mapa de calor
que mostra os pontos críticos de infecção. Após a instalação, o aplicativo solicita algumas permissões de
acesso e de tela de bloqueio; o indivíduo então as concede, certo de que agora estará mais bem informado
sobre a pandemia. Nesse momento, a pessoa se surpreende não com as informações que obtém acerca da
pandemia, mas com o bloqueio da tela do dispositivo e a informação de que se ela não pagar US$ 100 em
Bitcoin dentro de 48 horas, todas as fotos, contatos e demais dados do aparelho serão excluídos, além do
vazamento das mídias sociais9.

No Brasil, dezenas de golpes que se utilizam da pandemia e do período de quarentena para enganar
pessoas e fazê-las acessarem links maliciosos atingiram – até o momento – 2 milhões de usuários. São
golpes que prometem, por exemplo, informações sobre a pandemia da Covid-19, distribuição de álcool
em gel e “auxílio cidadão coronavírus”10. Os links maliciosos, por sua vez, podem causar diversos danos,
inclusive o acesso não autorizado a dados pessoais.

As situações apresentadas demonstram que a pandemia de coronavírus, para além de seus re exos
na saúde pública e na economia, também impacta a privacidade dos indivíduos. A divulgação de dados
pessoais no intento de auxiliar o combate ao coronavírus é capaz de gerar danos outros às pessoas, cuja
gravidade individual, efeitos e duração no tempo podem ser muito mais lesivos que os causados pela
própria COVID-19.

Nesse cenário, surgem alguns questionamentos:

• Os Estados podem coletar e tratar dados pessoais para combater a pandemia, sem aviso prévio
e informação sobre a natureza e a extensão dos dados coletados?

• O interesse coletivo pode justi car toda e qualquer limitação ao direito à privacidade?

8
KIM, Nemo. ‘More scary than coronavirus’: South Korea’s health alerts expose private lives. e Guardian. 06 mar. 2020.
Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2020/mar/06/more-scary-than-coronavirus-south-koreas-health-alerts-
expose-private-lives. Acesso em: 6 abr. 2020.
9
DIRETORIA de Segurança da Informação e Governança. Superintendência de Tecnologia da Informação e Comunicação –
UFRJ. COVIDLOCK: Malware para Android disfarçado de aplicativo que rastreia o coronavírus. 19 mar. 2020. Disponível em:
https://www.security.ufrj.br/alertas/covidlock-malware-para-android-disfarcado-de-aplicativo-que-rastreia-o-coronavirus/.
Acesso em: 6 abr. 2020.
10
FRANCO, Marcela. ‘Auxílio coronavírus’ e outros golpes no WhatsApp atingem 2 milhões. TechTudo, 23 MAR. 2020.
Disponível em: https://www.techtudo.com.br/noticias/2020/03/auxilio-coronavirus-e-outros-golpes-no-whatsapp-atingem-2-
milhoes.ghtml. Acesso em: 6 abr. 2020.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 143-161, ago. 2020.


148 Jéssica Andrade Modesto, Marcos Ehrhardt Junior

• Há limites ao tratamento e a divulgação de dados pessoais realizados pelos Estados em situações


como essas?

• O que se pode fazer em caso de abuso no tratamento dos dados pessoais?

Na atualidade, o direito à privacidade tem sua compreensão ampliada em razão de a evolução das
formas de divulgação e apreensão de dados pessoais ter expandido as possibilidades de violação da esfera
privada, máxime pelo acesso não autorizado de terceiros a esses dados. Nesse sentido, Anderson Schreiber
a rma que, em uma “sociedade caracterizada pelo constante intercâmbio de informações, o direito à
privacidade deve se propor a algo mais que àquela nalidade inicial, restrita à proteção da vida íntima”,
devendo abarcar também o direito do indivíduo de manter o controle sobre seus dados pessoais11.

Dessa feita, a tutela da privacidade alarga seus contornos tradicionais de “direito a ser deixado só” ou
“direito de ser deixado em paz”12 para apresentar-se também como o direito de manter o controle sobre as
próprias informações e de determinar as modalidades de construção da própria esfera privada13 e, dentro
desse contexto, o direito à proteção de dados pessoais passou a ser reconhecido como uma espécie do
direito fundamental à privacidade14 e alicerça-se na autodeterminação informativa, isto é, sinteticamente,
no direito de cada indivíduo decidir quando e como dispor de suas informações.

Como mencionado, o conceito de dado pessoal pode ser entendido como os fatos, comunicações e
ações que se referem a um indivíduo identi cado ou identi cável15. Em outras palavras, dado pessoal é todo
dado relacionado a uma pessoa singular que possa ser identi cada, direta ou indiretamente, em especial
por referência a um identi cador, como por exemplo um nome, um número de identi cação, dados de
localização, identi cadores por via eletrônica ou a um ou mais elementos especí cos da identidade física,
siológica, genética, mental, econômica, cultural ou social dessa pessoa singular16.

A proteção aos dados pessoais é um direito fundamental, devendo, portanto, ser assegurado pelo
Estado. Entretanto, nas situações concretas, seja nas relações particulares ou nas relações entre indivíduo
e Estado, muitas vezes a coexistência equilibrada dos direitos fundamentais de diferentes titulares não é
tarefa fácil, de modo que a realização plena e simultânea desses direitos nem sempre é possível.

11
SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 137.
12
BRANDEIS, Louis; WARREN, Samuel. e right to privacy. Harvard Law Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220, 15 dec. 1890.
13
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância: a privacidade hoje. Trad. Danilo Doneda; Luciana Cabral Doneda. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008. p. 109.
14
Sobre a privacidade enquanto termo guarda-chuva que abriga distintos direitos da mesma família, ver: PEIXOTO, Erick
Lucena Campos; EHRHARDT JÚNIOR, Marcos. Breves notas sobre a ressigni cação da privacidade. Revista Brasileira de
Direito Civil, Belo Horizonte, v. 16, n. 2, p. 35-56, abr./jun. 2018.
15
MENDES, Laura Schertel. Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: linhas gerais de um novo direito
fundamental. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 55-56.
16
Art. 4º. UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (EU) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016,
relativo a proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e a livre circulação desses dados
e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral de Proteção de Dados. Disponível em: https://protecao-dados.pt/wp-
content/uploads/2017/07/Regulamento-Geral-Prote%C3%A7%C3%A3o-Dados.pdf. Acesso em: 20 nov. 2019.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 143-161, ago. 2020.


Danos colaterais em tempos de pandemia: preocupações quanto ao uso dos dados pessoais no
combate a COVID-19 149

De acordo com a doutrina especializada, essas situações devem ser solucionadas por meio da
ponderação17, isto é, balanceando-se os bens em jogo, de acordo com as circunstâncias fáticas do caso
concreto18, buscando-se chegar à solução que todos os direitos envolvidos tenham a máxima efetividade
possível de acordo com tais circunstâncias.

Assim, situações como a atual pandemia podem envolver con itos entre diferentes direitos
fundamentais. Quando isso acontece, é preciso buscar soluções jurídicas que permitam com que todos os
direitos sejam, em algum grau, resguardados. Desse modo, se o tratamento de dados pessoais se mostrar
uma medida adequada e necessária para o combate da pandemia, de modo a resguardar o direito à vida e à
saúde de toda a coletividade, o Estado poderá, sim, restringir parcialmente a privacidade, assim como o faz,
com as determinações de distanciamento social, com outros direitos, a exemplo do direito de associação,
que é temporariamente obstaculizado visando a impedir a disseminação da COVID-19.

No que diz respeito ao tratamento de dados pessoais para esse m, a existência ou não de
legislação especí ca sobre a matéria no país muito in uenciará a forma como isso ocorrerá, já que não
há uma diretriz internacional única a ser seguida indistintamente por todos os Estados. Os diferentes
ordenamentos jurídicos são mais ou menos permissivos quanto às hipóteses em que os dados pessoais
podem ser legalmente tratados, bem como, quanto aos princípios que tal tratamento deve seguir.

Antes de prosseguir, é preciso estabelecer uma premissa fundamental: proteção de dados e utilização
do seu tratamento para ns de proteção sanitária para a coletividade não são inteiramente incompatíveis e
não precisam ser considerados dentro de uma lógica de exclusão (perde x ganha), podendo coexistir desde
que observados certos princípios.

Na citada Coreia do Sul, por exemplo, após o surto de Mers – uma epidemia asiática de outro
coronavírus, em 2015, na qual esse país foi o segundo com maior número de casos da doença –, o governo
foi bastante censurado por ocultar informações que, na visão dos críticos, teriam ajudado a conter a
disseminação, como dados sobre a localização dos pacientes. Diante disso, aquele país promoveu mudanças
signi cativas em sua legislação acerca do gerenciamento e compartilhamento público de informações sobre
pacientes de doenças infecciosas. A Personal Information Protection Act, de 2016, passou a prever que as
disposições legais que se referem ao consentimento, às limitações, bem como às garantias dos direitos
dos titulares dos dados pessoais que devem ser observadas quando do tratamento de tais dados não se
aplicam às informações pessoais processadas temporariamente, quando urgentemente necessárias para a
segurança, o bem-estar e a saúde pública19.

17
ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no estado de direito democrático.
Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 217, p. 67-79, 1999.
18
LINHARES, Marcel Queiroz. O método da ponderação de interesses e a resolução de con itos entre direitos fundamentais.
Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, v. 35, p. 232-233, 2001.
19
COREIA DO SUL. Personal Information Protection Act. 29 mar. 2011. Disponível em: https://www.privacy.go.kr/cmm/fms/
FileDown.do?atchFileId=FILE_000000000830758& leSn=1&nttId=8186&toolVer=&toolCntKey_1=. Acesso em: 6 abr. 2020.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 143-161, ago. 2020.


150 Jéssica Andrade Modesto, Marcos Ehrhardt Junior

Assim, possibilitou-se, em situações como a da COVID-19, uma vasta coleta de dados pessoais, bem
como a divulgação de uma quantidade considerável de dados não identi cados, mas que, pela possibilidade
de agregação, acabam por se tornar potencialmente identi cáveis, o que tem gerado muitos problemas e
discussões, mesmo em meio a toda a preocupação com a atual pandemia do coronavírus.

Para os que estão isolados e com receio de contrair a doença, a preocupação com a forma como
ocorrerá o tratamento dos dados pessoais e eventuais abusos ao direito de privacidade parece ser uma
questão de menor importância. No entanto, a experiência em outros países demonstra que a perspectiva
muda radicalmente quando, uma vez infectada, a mesma pessoa passa a vivenciar as restrições provocadas
pela exposição, muitas vezes não consentida e nem sequer comunicada, de dados pessoais, incluindo dados
sensíveis. Situações de discriminação e exclusão social nesses casos não têm uma duração que corresponda
ao período da doença, podendo persistir por períodos muito mais longos.

Se a questão se mostra complexa e delicada em países que já dispõem de legislação para disciplinar
tais questões, o que esperar do tratamento do tema em nosso país, que até o momento, ainda não possui
em vigor uma legislação especí ca sobre a proteção de dados pessoais capaz de disciplinar seu tratamento
em situações como a atualmente vivida? Não custa lembrar que a Lei 13.709/2018 – Lei Geral de Proteção
de Dados –, está em vacatio legis até agosto deste ano20. Entretanto, mesmo no transcurso do período de
dormência, o Estado brasileiro e os tribunais têm procurado adequar, no que diz respeito ao tratamento de
dados, suas ações e decisões às previsões da LGPD. Neste particular:
[não] é preciso escolher soluções extremas sem levar em consideração princípios que há anos são desenvolvidos
pela doutrina e jurisprudência e que foram incorporados ao texto da LGPD (art. 6°). Qualquer atividade
de tratamento de dados pessoais deverá observar a boa-fé objetiva e a nalidade do tratamento, vale dizer,
sua realização, propósitos legítimos, especí cos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de
tratamento posterior de forma incompatível com essas nalidades. Apenas a nalidade não é su ciente. É
preciso compatibilidade do tratamento com as nalidades informadas ao titular, de acordo com o contexto do
tratamento, o que impõe a exigência de adequação.

Mesmo com tratamento adequado e existindo propósitos legítimos, ainda resta avaliar a necessidade do
tratamento, que deve se limitar ao mínimo necessário para a realização de suas nalidades, com abrangência dos
dados pertinentes, proporcionais e não excessivos. Considerando os dados pessoais como extensão dos direitos
de personalidade da pessoa natural, devem-se garantir aos titulares dos dados informações claras, precisas e
facilmente acessíveis sobre a realização do tratamento e os respectivos agentes de tratamento (responsáveis pela
coleta e utilização dos dados), como expressão da transparência que deve ser mantida em operações deste tipo.

Não se pode transigir quanto à impossibilidade de realização do tratamento para ns discriminatórios ilícitos ou
abusivos. A lógica da não discriminação é inegociável e deve vir acompanhada da necessária responsabilização e
prestação de contas, que ocorre com a demonstração, por parte do agente responsável pelo tratamento, da adoção

20
No momento da elaboração deste artigo, ainda havia não sido aprovada a provável postergação do período de dormência da Lei
para 2021, com novo escalonamento de sua vigência. Independentemente disso, é preciso re etir se as preocupações econômicas
com a imposição de penalidades pelo descumprimento da LGPD devem prevalecer sobre o início de vigência de uma série de
direitos pessoais fundamentais que estabelecerão, pela primeira vez, de forma clara, os direitos do titular dos dados e, especialmente,
os deveres de informação, cuidado e proteção exigíveis de quem se dispuser a realizar qualquer operação de tratamento.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 143-161, ago. 2020.


Danos colaterais em tempos de pandemia: preocupações quanto ao uso dos dados pessoais no
combate a COVID-19 151

de medidas e cazes e capazes de comprovar a observância e o cumprimento das normas de proteção de dados
pessoais e, inclusive, da e cácia dessas medidas, a m de prevenir a ocorrência de danos, em especial aqueles
decorrentes de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração,
comunicação ou difusão de informações pessoais21.

Nessa senda, o artigo 11 da LGPD permite que os dados pessoais sensíveis, aí incluídos os dados
referentes à saúde, sejam tratados sem o consentimento do titular, quando tal tratamento for indispensável,
além de outras hipóteses, à execução, pela administração pública, de políticas públicas previstas em leis ou
regulamentos, à proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro, bem como à tutela
da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por pro ssionais de saúde, serviços de saúde ou
autoridade sanitária. Isso não quer dizer que as outras previsões legais da Lei 13.709/2018 não são aplicáveis
ao tratamento de dados realizados nas referidas hipóteses. Ao contrário, os direitos dos titulares continuam
garantidos, assim como, também devem ser observados, conforme apontado acima, os princípios elencados
no artigo 6° da LGPD.

Posto isso, mesmo em meio a uma pandemia como a COVID-19, deve-se tutelar a privacidade,
ainda que com as restrições que o momento exige. Desse modo, ao tomar determinada medida que se
utilize do tratamento de dados pessoais no enfrentamento à transmissão do coronavírus, o Estado deve
fazer um juízo de ponderação, bem como avaliar se a medida atende aos princípios previstos na LGPD.

Nesse contexto, questiona-se se a coleta e a divulgação de tantos dados pessoais como tem ocorrido
na Coreia do Sul é medida realmente necessária para o combate à pandemia. Sobre isso, pode-se argumentar
que o país se tornou exemplo no enfrentamento à COVID- 19, conseguindo, em poucas semanas, fazer
com que o número de casos con rmados por dia caísse dos três dígitos para algumas dezenas22. No entanto,
até que ponto se pode atribuir tal feito à utilização das informações pessoais?

Além dos alertas sobre novos infectados, a Coreia do Sul tornou-se o país que mais seleciona
pessoas per capita a m de realizar o teste para diagnóstico do coronavírus no mundo, disponibilizando
milhares de exames gratuitos ou a preços bastante acessíveis, no intento de alcançar a participação de
grande parte da população. Os testes podem ser feitos por meio de drive thru. Ainda, pequenas e grandes
organizações empresárias passaram, de forma voluntária, a cancelar reuniões e a incentivar o home office.

Apesar de não ser possível analisar, pelo menos no momento, a e ciência de cada uma das medidas
adotadas, é certo que nenhuma delas, sozinha, foi a responsável pela acentuada queda no número de
novas infecções.

Com tantas outras medidas sendo adotadas, a divulgação de tantos dados dos infectados não se
mostrou excessiva, desproporcional à nalidade de alertar a outros sul-coreanos que estes poderiam ter sido

21
EHRHARDT JUNIOR, Marcos; SILVA, Gabriela Buarque Pereira. Privacidade e proteção de dados pessoais durante a
pandemia da Covid-19. Jusbrasil, 26 mar. 2020. Disponível em: https://marcosehrhardtjr.jusbrasil.com.br/artigos/824475623/
privacidade-e-protecao-de-dados-pessoais-durante-a-pandemia-da-covid-19. Acesso em: 6 abr. 2020.
22
MOREIRA, iago Mattos. As lições da Coreia do Sul no Combate ao Coronavírus. Época – mundo, 20 mar. 2020. Disponível
em: https://epoca.globo.com/mundo/as-licoes-da-coreia-do-sul-no-combate-ao-coronavirus-1-24315715. Acesso em: 6 abr. 2020.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 143-161, ago. 2020.


152 Jéssica Andrade Modesto, Marcos Ehrhardt Junior

contaminados? Será que tal divulgação, acaso ocorresse de modo semelhante em nosso país, seria tratada
como “mero aborrecimento”, e não ensejaria a possibilidade de reparação? Ou seria possível vislumbrar os
contornos do disposto no art. 187 do Código Civil, que veda o abuso do direito?

A divulgação pública de informações como a situação em que a pessoa contraiu o COVID-19, bem
como de qual infectado contraiu o vírus, é realmente necessária para o combate da pandemia? Não bastaria
que as autoridades de saúde tivessem o conhecimento da situação?

No atual cenário, surge ainda outro questionamento: além de poder coletar e tratar dados pessoais
sem o consentimento do indivíduo, o Estado pode, no combate à pandemia, obrigar o indivíduo a, de
maneira ativa, fornecer tais dados, seja por meio de entrevista, seja por outro meio tecnológico?

No Amazonas, por exemplo, o governo estadual decretou regime de quarentena para os passageiros
que desembarcarem no Aeroporto Internacional Eduardo Gomes. Além disso, o governo do Estado
desenvolveu um aplicativo para smartphones que deverá ser instalado por todos esses passageiros e que
monitorará a localização, em tempo real, por 14 dias das pessoas submetidas à quarentena23.

Não se pode ignorar que o tratamento de dados pessoais pode ser uma importante ferramenta
nessa luta. Localizar pessoas que estiveram em contato com indivíduos diagnosticados com a COVID-19 é
medida importante, principalmente, tendo em vista que muitos dos portadores do vírus são assintomáticos
ou desenvolvem sintomas leves, facilmente confundidos com os de outras doenças, o que pode obstaculizar
o diagnóstico e, por conseguinte, inviabilizar que o infectado tome as medidas adequadas para não
transmitir os vírus a outras pessoas.

Esse tratamento de dados pessoais deve ser feito de maneira proporcional ao m almejado, não se
admitindo que uma quantidade excessiva de informações seja coletada, e muito menos exposta, sob pena
de ofensa ao direito fundamental à privacidade, a nal, não é difícil antever que tais violações podem causar
danos que perdurarão por muito mais tempo que a pandemia.

Nesse sentido, como carão as relações sociais de C.R., a sergipana que vem sofrendo diversos
ataques de boa parte dos moradores de sua cidade? Quais as consequências, a curto e longo prazo, que os
boatos envolvendo assuntos personalíssimos, trarão para os sul-coreanos?

Mas não é preciso fazer “uma escolha de So a”. Um bom exemplo de tratamento adequado de
dados pessoais no enfrentamento ao coronavírus tem sido a utilização dos dados de localização para traçar
as rotas de pessoas infectadas e veri car outros indivíduos com quem o infectado possa ter entrado em
contato, para enviar-lhes alertas sobre a possibilidade de infecção, como tem feito Israel24. Tem-se, aí, a

23
AMAZONAS. Governo do Estado. Wilson Lima anuncia monitoramento remoto de pessoas que chegam pelo aeroporto
e aquisição de testes rápidos. 25 mar. 2020. Disponível em: http://www.amazonas.am.gov.br/2020/03/wilson-lima-anuncia-
monitoramento-remoto-de-pessoas-que-chegam-pelo-aeroporto-e-aquisicao-de-testes-rapidos/. Acesso em: 6 abr. 2020.
24
FOLHA. Israel começa a rastrear infectados por coronavírus com localização de celulares. 17 mar. 2020. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/israel-comeca-a-rastrear-infectados-por-coronavirus-usando-localizacao-
dos-celulares.shtml?pwgt=l94mlh69ox4ei08rmwxen2kbau2tlx3l5bsmk3xlg81flog2&utm_source=whatsapp&utm_
medium=social&utm_campaign=compwagi. Acesso em: 6 abr. 2020.

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Danos colaterais em tempos de pandemia: preocupações quanto ao uso dos dados pessoais no
combate a COVID-19 153

coleta de dados mínimos, adequados e proporcionais para uma nalidade especí ca, sem que se permita a
identi cação do infectado.

Em Recife, a municipalidade começou a utilizar sistemas de localização de celulares dos recifenses


para coordenar ações de incentivo ao isolamento social, informando que o tratamento de dados pessoais
ocorre de maneira coletiva, para se veri car, bairro a bairro, se a orientação de isolamento domiciliar
está sendo cumprida, o que permitirá a execução de uma série de ações para incentivar o isolamento
social, como o envio de carros de som para a área, o envio de noti cações por celular, além de outras
ações de comunicação25.

Segundo informações divulgadas na imprensa, na iniciativa pernambucana observa-se a


preocupação em não individualizar os dados tratados eis que isso não é necessário tampouco proporcional
à nalidade buscada: fazer a análise, por área, a respeito de as pessoas estarem ou não saindo às ruas;
não analisar quem está fora de casa. Ainda assim, mais transparência, com informações claras e em
linguagem acessível sobre o modo de realização do tratamento de dados e o período de sua duração,
seria bem-vinda, especialmente, ante a impossibilidade de se poder contar com a scalização de uma
autoridade nacional de proteção de dados.

Considerações nais

A atual pandemia de coronavírus tem demandado diversos esforços coletivos e individuais com vistas
a se combater a disseminação do COVID-19. As pessoas têm se mostrado bastante tolerantes a abrirem
mão temporariamente do exercício de parte de seus direitos fundamentais em prol do enfrentamento
dessa emergência. Nesse sentido, os Estados têm estabelecido duras restrições a determinados direitos,
como ao direito de associação, impedindo, inclusive, que as pessoas participem dos enterros de seus entes
queridos, bem como, ao direito de ir e vir determinando que, mesmo pessoas não infectadas, permaneçam
em quarentena. Por sua vez, os indivíduos, em sua maioria, têm cumprido tais determinações.

Entre as medidas estatais adotadas, o tratamento de dados pessoais para esse m tem se tornado cada
vez mais comum. São vários os exemplos de como esses dados podem ser úteis para evitar a disseminação
do vírus. A esse respeito, se, na situação concreta, esse tratamento se mostrar medida adequada e necessária
para o combate da pandemia, de modo a resguardar o direito à vida e à saúde de toda a coletividade, o
Estado poderá, sim, restringir, temporária e parcialmente, alguns aspectos relacionados à privacidade.

Entretanto, várias são as situações em que a utilização e divulgação indiscriminada das informações
pessoais podem provocar danos colaterais aos indivíduos. Por esta razão, o uso dessas informações deve
observar princípios que permitam o seu tratamento para ns de proteção sanitária para a coletividade com
a proteção de dados pessoais. A ausência da LGPD, não pode ser considerada um obstáculo intransponível

25
G1 PE. Recife rastreia 700 mil celulares para monitorar isolamento social e direcionar ações contra coronavírus. 24
mar. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/03/24/recife-rastreia-700-mil-celulares-para-
monitorar-isolamento-social-e-direcionar-acoes-contra-coronavirus.ghtml. Acesso em: 6 abr. 2020.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 143-161, ago. 2020.


154 Jéssica Andrade Modesto, Marcos Ehrhardt Junior

para a proteção da vida privada das pessoas. Assim, o respeito à privacidade pode e deve conviver com
as medidas de tratamento de dados pessoais empregadas para controle da disseminação da pandemia e
monitoramento dos pacientes.

Evidente que, na prática, estabelecer os limites à coleta e tratamento de dados pessoais no intento
de se combater a pandemia é tarefa bastante árdua, especialmente, enquanto ainda estamos combatendo
a crise sanitária. A Coreia do Sul, há cinco anos, foi acusada de proteger sobremaneira a privacidade em
detrimento da proteção da vida e da saúde dos sul-coreanos. Agora, torna-se motivo de preocupação
justamente por restringir demais a privacidade dos sul-coreanos com o objetivo de reduzir a contaminação
pelo COVID-19 no país.

Encontrar o ponto de equilíbrio no tratamento dos dados pessoais em prol do interesse coletivo
é o grande desa o que se impõe cada vez que surge uma nova emergência, pois, situações de grande
preocupação social, como a atual pandemia, costumam propiciar que as pessoas tolerem intrusões cada vez
maiores em suas liberdades individuais em nome do “bem maior”. Foi justamente no cenário pós-epidemia
de Mers que a Coreia do Sul aprovou mudanças tão signi cativas em sua legislação.

Soluções em abstrato não parecem ser adequadas ao enfrentamento da problemática. Limites


precisam ser construídos na análise do caso concreto. O fato de novas circunstâncias se veri carem
rapidamente e exigirem novas medidas de contenção só aumenta a complexidade de um problema, que
certamente seguirá sendo estudado e analisado nos próximos anos.

Referências

AFP. O GLOBO. Número de mortos pelo coronavírus no mundo chega a 65 mil neste domingo. 05 abr. 2020.
Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus-servico/numero-de-mortos-pelo-coronavirus-no-
mundo-chega-65-mil-neste-domingo-24352620. Acesso em: 06 abr. 2020.

ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no estado de direito
democrático. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 217, p. 67-79, 1999.

ALVES, Rafael. Tudo sobre o coronavírus – Covid-19: da origem à chegada ao Brasil – perguntas e respostas sobre
o vírus descoberto em dezembro na China e que se tornou emergência de saúde pública de interesse internacional.
Estado de Minas, 27 fev. 2020. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/02/27/interna_
nacional,1124795/tudo-sobre-o-coronavirus-covid-19-da-origem-a-chegada-ao-brasil.shtml. Acesso em: 06 abr. 2020.

AMAZONAS. Governo do Estado. Wilson Lima anuncia monitoramento remoto de pessoas que chegam pelo
aeroporto e aquisição de testes rápidos. 25 mar. 2020. Disponível em: http://www.amazonas.am.gov.br/2020/03/
wilson-lima-anuncia-monitoramento-remoto-de-pessoas-que-chegam-pelo-aeroporto-e-aquisicao-de-testes-
rapidos/. Acesso em: 6 abr. 2020.

BBC NEWS. Coronavirus privacy: are South Korea’s alerts too revealing? 05 mar. 2020. Disponível em: https://www.
bbc.com/news/world-asia-51733145. Acesso em: 6 abr. 2020.

BRANDEIS, Louis; WARREN, Samuel. e right to privacy. Harvard Law Review, Cambridge, v. 4, n. 5, p. 193-220,
15 dec. 1890.

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COREIA DO SUL. Personal Information Protection Act. 29 mar. 2011. Disponível em: https://www.privacy.go.kr/
cmm/fms/FileDown.do?atchFileId=FILE_000000000830758& leSn=1&nttId=8186&toolVer=&toolCntKey_1=.
Acesso em: 6 abr. 2020.

DIRETORIA de Segurança da Informação e Governança. Superintendência de Tecnologia da Informação e


Comunicação – UFRJ. COVIDLOCK: Malware para Android disfarçado de aplicativo que rastreia o coronavírus.
19 mar. 2020. Disponível em: https://www.security.ufrj.br/alertas/covidlock-malware-para-android-disfarcado-de-
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EHRHARDT JUNIOR, Marcos; SILVA, Gabriela Buarque Pereira. Privacidade e proteção de dados pessoais durante
a pandemia da Covid-19. Jusbrasil, 26 mar. 2020. Disponível em: https://marcosehrhardtjr.jusbrasil.com.br/
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Danos colaterais em tempos de pandemia: preocupações quanto ao uso dos dados pessoais no
combate a COVID-19 157

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158 Jéssica Andrade Modesto, Marcos Ehrhardt Junior

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 143-161, ago. 2020.


Danos colaterais em tempos de pandemia: preocupações quanto ao uso dos dados pessoais no
combate a COVID-19 159

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 143-161, ago. 2020.


160 Jéssica Andrade Modesto, Marcos Ehrhardt Junior

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 143-161, ago. 2020.


Danos colaterais em tempos de pandemia: preocupações quanto ao uso dos dados pessoais no
combate a COVID-19 161

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 143-161, ago. 2020.


“Gato e sapato1”: a solução negociada e a pilhagem da
bacia do rio Doce

Luciana Tasse Ferreira


Universidade Federal de Juiz de Fora, Governador Valadares,
Minas Gerais, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-0285-6040

Resumo: O modelo de solução negocial foi a opção das empresas e dos


órgãos do sistema de justiça para o tratamento dos danos decorrentes
do desastre da Samarco/Vale/BHP Billiton. Assim, no plano macro, via
Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), foram negociados acordos
sobre acordos, cujos termos têm sido reiteradamente descumpridos
pelas empresas; e, no plano micro, a reparação dos atingidos foi
individualizada, a partir da técnica da mediação negociada, empregada
no Programa de Indenização Mediada (PIM). Com efeito, a opção por
soluções contratuais ou negociadas foi propositada e têm permitido
a privatização do tratamento do desastre e a sua gestão empresarial
Canoas, v. 8, n. 2, 2020
(ROJAS; PEREIRA, 2017), sob a batuta da Fundação Renova, o que
diminui os custos da reparação para as empresas causadoras dos danos.
Artigo
Embora a solução alternativa de con itos, neste caso, apresente um
Recebido: 31.01.2020 verniz de legalidade, na prática, as empresas são desresponsabilizadas,
o que perpetua a acumulação por espoliação (HARVEY, 2005) em favor
Aprovado: 26.02.2020 das empresas mineradoras também no momento da (não) reparação
Publicado: 18.05.2020 dos danos causados. Além disso, o discurso jurídico e economicista, que
desquali ca a via judicial como morosa e burocrática, tem legitimado
DOI http://dx.doi.org/10.18316/REDES.v8i2.6524 a pilhagem dos territórios da bacia do rio Doce, pela negligência dos
direitos da população atingida.
Palavras chave: Desastre da Samarco/Vale/BHP Billiton; Solução
Alternativa de Con itos; Violação de Direitos Humanos.

Playing the fool: negotiated resolution and the plunder of


rio Doce basin

Abstract: e negotial resolution model was the option of companies


and organs of the justice system to deal with the damages resulting from
the Samarco / Vale / BHP Billiton disaster. us, on the macro level,
via the Conduct Adjustment Term (TAC), agreements on agreements
were negotiated, whose terms have been repeatedly breached by
companies; and, at the micro level, the reparation of those affected was
individualized, using the negotiated mediation technique, used

1
Alusão à fala de um atingido, registrada no Parecer nº 279/2018 do MPF e
MPMG (2018, p. 40): “Eles estão fazendo de gato e sapato as pessoas e ninguém
toma providência”.
164 Luciana Tasse Ferreira

in the Mediated Indemnity Program (PIM). In effect, the option for contractual or negotiated solutions was proposed
and has allowed the privatization of disaster treatment and its business management (ROJAS; PEREIRA, 2017), under
the baton of the Renova Foundation, which reduces the repair costs for the companies causing the damage. Although
the alternative solution of con icts, in this case, presents a varnish of legality, in practice, companies are not held
accountable, which perpetuates the accumulation by plunder (HARVEY, 2005) in favor of mining companies also
at the time of (not) repairing damage caused. In addition, the legal and economic discourse, which disquali es the
judicial process as slow and bureaucratic, has legitimized the plundering of the territories of the Doce River basin,
due to the neglect of the rights of the affected population.
Key-words: Samarco/Vale/BHP Billiton Disaster; Alternative Con ict Resolution; Violation of Human Rights.

Introdução

O risco de rompimento de barragens é inerente à atividade minerária. Em todo caso, o rompimento


de Fundão deve ser particularmente compreendido no contexto de pós-boom das commodities, isto é, após
2011, quando houve uma expressiva queda do preço do minério de ferro – principalmente em decorrência
da redução da demanda da China.

Para compensar a queda do preço do minério de ferro no mercado global, a Samarco S.A (Samarco)
adotou a estratégia de expandir as suas operações, de modo a aumentar sua produtividade, garantindo o
ganho de escala na produção. Por outro lado, reduziu uma série de custos operacionais, mesmo os mais
básicos, como os investimentos em manutenção de barragens e segurança do trabalho (WANDERLEY et
al., 2016).

Tal estratégia corporativa denota uma gestão operacional arriscada e negligente, pautada pela pressão
do mercado nanceiro em manter os patamares de retorno dos acionistas, em prejuízo de níveis aceitáveis
de segurança nas operações de exploração mineral, incluindo as estruturas de barragens. Na verdade, a
Samarco e as suas controladoras, Vale S.A. e BHP Billiton Brasil Ltda. operam de maneira arriscada no
Brasil (WANDERLEY et al., 2016; MILANEZ et al., 2017; ZHOURI et al., 2016), particularmente em Minas
Gerais, o que conduziu ao extremo do rompimento de Fundão, em novembro de 2015.

Para reparar o desastre, as empresas apostaram na gestão empresarial (ROJAS, PEREIRA, 2017, p.
15) como estratégia para controlar os custos da reparação à bacia do rio Doce, privatizando o seu tratamento
pela via da solução negociada e da criação Fundação Renova.

A opção pela solução contratual ou extrajudicial como forma de tratamento do desastre é


propositada: sendo frágil, desresponsabiliza as empresas, ao negligenciar quase completamente a reparação
socioambiental e socioeconômica da bacia. Como se verá, a formalização de Termos de Ajustamento de
Conduta (TACs) sucessivos e seu descumprimento reiterado; a privatização do tratamento do desastre,
pela instituição da Fundação Renova; e a aplicação da mediação negociada pelo Programa de Indenização
Mediada (PIM) para a indenização individual dos atingidos, têm o caráter de reduzir os custos da
reparação na bacia, pois permitem a sobreposição dos interesses econômicos das empresas sobre os
direitos das comunidades. Na “gestão empresarial do desastre”, capitaneada pela Renova, o que interessa é
desresponsabilizar as empresas.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 163-180, ago. 2020.


“Gato e sapato”: a solução negociada e a pilhagem da bacia do rio Doce 165

Todavia, o efeito de desresponsabilização não se entrevê imediatamente no discurso jurídico em


favor da adoção dos mecanismos extrajudiciais, como no caso do TAC e da mediação, empregados no
caso Samarco. Pelo contrário, a justi cativa acionada pelas empresas, advogados e pelos órgãos do sistema
de justiça, é a de que estes meios oferecem um caminho mais célere e e ciente, em comparação com a
morosidade e a formalidade da via jurisdicional. Como se verá, esse argumento não se justi ca. O desastre
da Samarco, Vale e BHP Billiton segue longe de uma solução satisfatória para os atingidos e atingidas,
mesmo depois de 4 anos do rompimento de Fundão.

Por isso mesmo, é fundamental entender como o discurso da legalidade e as tecnologias jurídicas,
como a solução alternativa de con itos, legitimam e estruturam a pilhagem (MATTEI, NADER, 2013)
da bacia do rio Doce, ao negarem a reparação às comunidades atingidas, ao mesmo tempo em que
desresponsabilizam e reduzem os custos do tratamento do desastre para as empresas.

Assim, no intuito de investigar o tratamento negociado do desastre tecnológico da Samarco, Vale e


BHP Billiton, bem como o discurso jurídico empregado nos instrumentos extrajudiciais aplicados ao caso,
o presente artigo está dividido em três sessões.

A primeira trata sobre como o discurso e a forma jurídica negociada operam, em favor das empresas,
para a redução dos custos de reparação e a pilhagem da bacia do rio Doce. Por sua vez, a segunda trata dos
TACs empregados no caso, assim como da privatização da condução da reparação pela Fundação Renova.
E a terceira se propõe a discutir a mediação negociada do Programa de Indenização Mediada (PIM) como
uma contratualização (ACSERALD, 2014) da reparação ambiental, que promove a sobreposição dos
interesses econômicos das empresas aos direitos dos atingidos.

O discurso jurídico e a legitimação da pilhagem da bacia do rio Doce

O Direito tem sido usado para viabilizar, legitimar e administrar a pilhagem de territórios periféricos,
em um processo iniciado no colonialismo e que se perpetua, atualmente, pela atuação de corporações
transnacionais e de agentes políticos internacionais, num contexto de capitalismo neoliberal empresarial
(MATTEI; NADER, 2013, p. 2).

Por pilhagem, Mattei e Nader (2013, p. 17) entendem a distribuição injusta de recursos praticada
pela exploração dos fortes às custas dos fracos, e a transferência de recursos aos agentes econômicos,
causando pobreza e sofrimento social. Tudo de maneira legal e protegida pelas estruturas jurídicas.

Daí é importante perceber que, tanto o modelo neoextrativista (GUDYNAS, 2009) de exploração
mineral no Brasil, quanto a negação do direito de reparação à bacia do rio Doce, pela atuação displicente das
empresas e da Fundação Renova, operam a pilhagem deste território e destas comunidades, funcionando
em favor de um modelo de acumulação por espoliação (HARVEY, 2005), caracterizado pela degradação
ambiental, desregulamentação, privatização e regressão de direitos.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 163-180, ago. 2020.


166 Luciana Tasse Ferreira

Neste sentido, a retórica universalista do Estado de Direito e das formas jurídicas ocidentais tem se
prestado ao papel de camu ar a apropriação da terra, da mão de obra e de recursos naturais em favor dos
países centrais e do capital, exatamente como no colonialismo, num processo de continuidade. Enquanto
a exploração colonial se sustentava com base no cristianismo e na noção de civilização, a atual exploração
imperialista se vale do discurso do desenvolvimento e da e ciência no Direito para garantir e legitimar o
processo histórico de pilhagem, a partir da retórica da legalidade (MATTEI; NADER, 2013, p. 3).

Assim como as noções de ‘e ciência’ e de ‘Estado de Direito’, Mattei e Nader (2013, p. 135) defendem
que a ideologia da harmonia contida na solução alternativa de con itos também contribui para o processo
de pilhagem. Segundo os autores, os modelos de “harmonia” são tomados essencialmente por infalíveis e
bené cos, o que deixa desapercebido que a disparidade de poder produz resultados ainda mais perversos
na via extrajudicial. Na verdade, as pesquisas de Nader (1994) demonstram que a retórica da harmonia e
da paci cação social foram usadas pelos missionários cristãos como forma de eliminar a resistência para
favorecer a pilhagem da colonização na América Latina.

Com efeito, reformas jurídicas ocorridas em vários países padronizam cada vez mais globalmente
os mecanismos extrajudiciais, impondo uma lógica contratual e técnica ao tratamento dos con itos, em
que o contexto no qual a disputa se desenvolve perde importância.

Assim, a solução alternativa de con itos propõe uma forma de justiça privada, informal e negociada,
num movimento mais geral que consiste em privatizar tudo, de prisões a prestações de direitos de bem estar
social, eliminando, assim, a possibilidade do exercício de uma contra-hegemonia pelo Poder Judiciário
local (MATTEI, NADER, 2013, p. 136).

Como se verá, na prática, com a adoção da solução negociada a partir dos TACs e do Programa
de Indenização Mediada (PIM), as empresas são desresponsabilizadas, o que amplia a acumulação por
espoliação (HARVEY, 2005) em favor das mineradoras, assim como a pilhagem dos territórios da bacia do
rio Doce pela negligência da reparação dos danos causados em virtude do rompimento de Fundão.

Os TACs e privatização do tratamento do desastre da Samarco, Vale e BHP Billiton pela Fundação Renova

O discurso de que a via judicial, ou o sistema tradicional de solução de con itos, é incapaz de
lidar com a complexidade das demandas socioambientais tem se tornado cada vez mais dominante. Esse
discurso também busca justi car o tratamento extrajudicial dos con itos ambientais, especialmente a
partir dos Termos de Ajustamento de Conduta2 (TACs) e da mediação (FREITAS; LIMA, 2018; CERUTI;
ALCARÁ, 2018; SOARES, 2010; SILVA JUNIOR, 2009).

Com efeito, o próprio Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) aplicado ao desastre
tecnológico da Samarco/Vale/BHP Billiton reconhece a autocomposição como a “forma mais célere e

2
O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) é um instrumento alternativo de solução de con itos, que tem como objeto a composição
de direitos transindividuais que tenham sido violados ou estejam ameaçados. Para tanto, o TAC pode ser proposto previamente, para
evitar a judicialização da lide, ou mesmo durante a tramitação de uma Ação Civil Pública, para dar m ao processo.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 163-180, ago. 2020.


“Gato e sapato”: a solução negociada e a pilhagem da bacia do rio Doce 167

efetiva para a resolução da controvérsia” (UNIÃO et al., 2016), tendo em vista o caráter de urgência para o
tratamento dos desastres ecológicos e a morosidade da via judicial.

Todavia, o “caso Samarco” contraria o argumento “auto evidente” da celeridade e da e ciência da


via extrajudicial. Os TACs aplicados ao caso tiveram negociações pouco transparentes e enfrentam uma
imensa di culdade para possibilitar a participação social dos atingidos e a scalização pelo poder público
(MILANEZ; PINTO, 2016; ROLAND et. al., 2018).

Na verdade, o desastre da Samarco/Vale/BHP Billiton redundou em um longo processo de negociação


de acordos sobre acordos, cujos termos ainda estão longe de serem cumpridos. Esse arranjo di culta a
compreensão das normas efetivamente vigentes, não só pela complexidade dos programas de reparação
e compensação, como pela fragmentação dos temas, dispostos em quatro TACs sucessivos: o Termo de
Transação e Ajustamento de Conduta3 (TTAC), rmado em março de 2016; o Termo de Ajustamento
Preliminar4 (TAP) e o Termo Aditivo ao TAP5, assinados, respectivamente, em janeiro e novembro de 2017;
e, nalmente, o TAC Governança6, rmado em junho de 2018.

A pedido do MPF, a homologação judicial do TTAC foi anulada em agosto de 2016, pela falta de
participação dos atingidos, e do próprio Ministério Público nas negociações do acordo. Apesar disso, o TTAC
segue vigente subsidiariamente. Da mesma forma, a Fundação Renova, por ele instituída, continua responsável
por executar os programas de reparação e compensação aos danos causados na bacia do rio Doce.

Por sua vez, o TAC Governança7 foi rmado para possibilitar aos atingidos uma maior participação
na condução da reparação dos danos. Todavia, o acordo criou uma estrutura excessivamente complexa e
de difícil entendimento. O “sistema de governança” estabelece um emaranhado burocrático de instâncias8,
sem paridade na composição dos órgãos dotados de poder decisório, adotando uma lógica participativa
restrita e desgastante para os atingidos, que, no m das contas, correm o risco de apenas legitimar decisões
já tomadas (LOSEKANN; MILANEZ, 2018, p. 36).

O receio de uma participação meramente representativa ou discursiva não é infundado. Passado


mais de um ano e meio da homologação conjunta do Termo Aditivo ao TAP e do TAC Governança,

3
Também conhecido como “acordão”, instituiu a Fundação Renova, responsável por executar 42 Programas de reparação e
compensação, divididos entre os eixos socioambiental e socioeconômico.
4
O TAP contratou um quadro de peritos e assistentes técnicos para avaliação dos programas em curso e para a realização do
diagnóstico dos danos socioambientais e socioeconômicos.
5
Reconheceu o direito à assessoria técnica independente, para acompanhamento e mobilização dos atingidos durante todo o
processo de reparação.
6
O TAC Governança altera o sistema de “governança” da bacia estabelecido pelo TTAC e pretende aprimorar os mecanismos de
participação dos atingidos no processo de reparação.
7
Em todo caso, o conteúdo do TAC Governança não revoga os acordos anteriores (TTAC, TAP e Termo Aditivo ao TAP), que
permanecem vigentes no que não lhe contrariarem, por força da sua Cláusula Centésima Segunda.
8
Dentre elas, estão as Comissões Locais, as Câmaras Regionais, o Fórum de Observadores, o Comitê Interfederativo (CIF), as
Câmaras Técnicas e a Câmara de Repactuação.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 163-180, ago. 2020.


168 Luciana Tasse Ferreira

em agosto de 2018, ainda não há um cronograma factível sobre quando as instâncias de governança
entrarão efetivamente em funcionamento. Da mesma forma, as entidades escolhidas pelas comunidades
para realizarem a assessoria técnica9 aos territórios ao longo da bacia ainda não foram formalmente
contratadas10, o que inviabiliza o exercício de diversos direitos pelos atingidos, dentre eles, o acesso à
informação de con ança - fundamental para a busca da reparação integral.

Até o momento, 18 territórios da bacia já escolheram as suas entidades de assessoria técnica, o


que foi feito com o acompanhamento do Fundo Brasil de Direitos Humanos, expert do Ministério
Público Federal responsável pela condução do processo. As escolhas tiveram início em outubro de 2018,
no território de Colatina-ES e Marilândia-ES, com a escolha da ADAI (Associação de Desenvolvimento
Agrícola Interestadual), e a Terra Indígena Krenak foi o último território a realizar a escolha pelo Instituto
de Pesquisas e Ações Sustentáveis (iPAZ), em julho de 2019.

A lentidão para as contratações nais é sintomática do descompromisso da Renova com a reparação


dos danos na bacia. Em vista de todo o envolvimento na escolha das assessorias técnicas, todavia, a ausência
de cronograma11 tem gerado um clima de confusão e de descon ança entre os atingidos, já desgastados
após mais de 4 anos de violações e de lutas por direitos que lhes seguem negados pela atuação abusiva12
e protelatória da Samarco e suas acionistas Vale e BHP Billiton, com a participação da Fundação Renova
(MPF; MPMG, 2018; RAMBOLL, 2018; RAMBOLL, 2019a).

Com o objetivo de repudiar o tratamento protelatório das Empresas e da Renova, cinco das
entidades escolhidas como Assessorias Técnicas Independentes em 16 dos territórios da bacia, zeram uma

9
A bacia do rio Doce foi dividida em diversos territórios para que comunidades a ns escolhessem entidades de con ança para a
realização da sua assessoria técnica independente, dentre eles: Rio Casca e Adjacências (MG); Parque Estadual do Rio Doce e sua
Zona de Amortecimento (MG); Vale do Aço (MG); Governador Valadares, Ilha Brava, Baguari e Alpercata (MG); Tumiritinga e
Galileia (MG); Conselheiro Pena (MG), Resplendor e Itueta (MG); Território Terra Indígena Krenak (MG); Aimorés (MG); Baixo
Guandu (ES); Colatina e Marilândia (ES); Aracruz e Serra (ES); Terras Indígenas Tupiniquim, Comboios e Caieiras Velha II (ES);
Regência (ES), Povoação (ES); Linhares (ES); Território da Macrorregião Litoral Norte Capixaba (MG); Território Quilombola de
Degredo (ES). Neste sentido ver o site institucional do Fundo Brasil de Direitos Humanos. Disponível em: https://www.fundobrasil.
org.br/fundo-brasil-vai-viabilizar-trabalho-de-assessorias-tecnicas-na-bacia-do-rio-doce/. Acesso em 06 jan. 2020.
10
Até o mês de janeiro de 2020, em que este artigo foi nalizado.
11
Finalmente, em 13 de janeiro de 2020, o magistrado da 12ª Vara Federal de BH intimou a Fundação Renova e as Empresas a
se manifestarem sobre a contratação das assessorias técnicas aos atingidos, com prazo até o dia 29 de janeiro de 2010, conforme
o despacho de ID 152995352. Todavia, ainda não há um cronograma que preveja com segurança jurídica um prazo factível para
a contratação das entidades de Assessoria Técnica independente para os territórios.
12
Sobre os abusos da Renova, ver: Recomendação conjunta Nº 10 de 26 de março de 2018, expedida pelo Ministério Público
Federal (MPF), Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MP-MG), Ministério
Público do Estado do Espírito Santo (MP-ES), Defensoria Pública da União (DPU), Defensoria Pública do Estado de Minas
Gerais (DP-MG) e Defensoria Pública do Espírito Santo (DP-ES) à Samarco Mineração S.A, Vale S.A. e BHP Billiton Brasil
Ltda., instando as empresas a respeitarem os direitos dos atingidos e levantando os abusos cometidos pela Fundação Renova,
principalmente no que tange à falta de transparência e ao fornecimento de informações equivocadas, frequentemente induzindo
os atingidos a erro. O principal objetivo da Recomendação é frear os abusos da Fundação Renova. Disponível em http://www.
mpf.mp.br/mg/salade-imprensa/docs/recomendacao-conjunta-mpf-fundacao-renova. Acesso em: 13 fev. 2019.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 163-180, ago. 2020.


“Gato e sapato”: a solução negociada e a pilhagem da bacia do rio Doce 169

nota, publicada em janeiro de 2020, em que denunciam “quatro anos de espera, frustração e indignação”.
Em síntese, postulam que “participação de fachada é reparação de fachada” e denunciam um “completo
desrespeito e descumprimento do TAC Governança” por parte das empresas, que questionam, a cada
reunião, os escopos de trabalho dos projetos já aprovados pelas comunidades, bem como seus valores e
outras questões já pactuadas, no intuito de inviabilizar ou esvaziar a implantação das Assessorias13.

No mesmo sentido, o monitoramento dos 42 programas socioeconômicos e socioambientais para


restauração da bacia do rio Doce constatou que a maioria dos programas permanecem com escopos
inde nidos, o que di culta a avaliação da efetividade das ações já realizadas. Vários outros programas
tiveram o cronograma adiado, gerando atrasos recorrentes na implantação e no desenvolvimento das
atividades inicialmente previstas no TTAC (RAMBOLL, 2019a, p. 3).

Por exemplo, em relação ao Cadastro14 Integrado dos atingidos, o monitoramento identi cou o
descumprimento das cláusulas 19 e 20 do TTAC, que estabelecem o prazo de oito meses após a assinatura
do acordo para a conclusão do cadastramento dos atingidos, com a identi cação das áreas afetadas pelo
desastre - o que está longe de acontecer (RAMBOLL, 2018)15.

Na verdade, o Cadastro é um processo burocrático, baseado numa metodologia não participativa e pouco
transparente, que não oferece critérios claros de elegibilidade e não contempla a diversidade dos territórios
(RAMBOLL, 2018, p. 189). A própria Fundação Renova reconhece a necessidade de revisão do programa, mas
até o momento, apresentou à Câmara Técnica de Organização Social e Auxílio Emergencial (CT-OS) apenas
uma proposta de revisão de metodologia do Cadastro considerada insu ciente, pois “foi concebida sem a
participação dos atingidos” (RAMBOLL, 2019a, p. 12). Ocorre que a inadequação do programa de Cadastro
é um ponto crítico, pois o cadastramento é requisito para o atingido acessar outros Programas, tais como, o
Programa de Auxílio Financeiro Emergencial (AFE) e o Programa de Indenização Mediada (PIM).

Por sua vez, o Programa de Auxílio Emergencial, comumente chamado de “cartão” pelos atingidos,
é excessivamente burocrático e tem um processo de análise lento e nada transparente, o que tem deixado
os atingidos à mercê de critérios arbitrários e de uma longa espera pelo deferimento de uma medida que
deveria ser imediata, já que de caráter emergencial (RAMBOLL, 2018, p. 190).

A falta de transparência dos critérios de elegibilidade para o recebimento do auxílio emergencial


(“cartão”) e o tratamento diferenciado entre os atingidos já era denunciado reiteradamente desde o início
do Programa, e foi apurada em todas as comunidades visitadas ao longo da bacia pelos técnicos do MPF

13
Neste sentido, ver: https://www.aedasmg.org/post/quatro-anos-de-espera-frustra%C3%A7%C3%A3o-e-indigna%C3%A7%C3%A3o-
participa%C3%A7%C3%A3o-de-fachada-%C3%A9-repara%C3%A7%C3%A3o-de-fachada. Acesso em 20 jan. 2020.
14
No TTAC o programa destinado ao cadastramento dos atingidos é denominado “Programa de levantamento e cadastro dos
impactados” e está disposto nas cláusulas 19 a 30.
15
Nos termos do relatório da Ramboll (2018, p. 189): “Em relação ao Cadastro Integrado dos atingidos, a Fundação Renova
informa um total de 27.424 cadastros enviados ao CIF, o que contempla um total de 80.209 pessoas. Destes, 3.580 cadastros
ainda se encontram sob análise do CIF, o que corresponde a 9.090 pessoas. Há ainda 18.500 solicitações de cadastro realizadas
entre janeiro e agosto/2018.”

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 163-180, ago. 2020.


170 Luciana Tasse Ferreira

e MPMG que elaboraram o Parecer nº 279/2018/SPPEA, publicado em março de 2018. A completa


falta de critérios para a concessão do auxílio tem gerado con itos internos nas comunidades e deixado
desamparadas diversas pessoas que comprovadamente perderam renda16 (MPF; MPMG, 2018, p. 36).

O relatório de monitoramento da Ramboll (2018; 2019a) também identi ca que nenhuma das
famílias que perderam as moradias foi reassentada. A construção da obra de reassentamento da comunidade
de Bento Rodrigues está atrasada, mas a conclusão está prevista para agosto/202017. Todavia, as obras das
comunidades de Paracatu de Baixo e de Gesteira ainda não começaram, nem têm qualquer perspectiva
de início, o que con gura uma violação quotidiana18 ao modo de vida e à dignidade dessas pessoas, que
passaram a ser desalojadas permanentes.

Sobre a questão da saúde, prevalece uma insegurança generalizada quanto à qualidade da água
(mesmo a tratada) e do pescado, bem como sobre os riscos de consumi-los. Esses temas são alvo de
constantes questionamentos da população, que seguem sem resposta.

Na verdade, os atingidos não con am nas informações e nos pareceres técnicos divulgados pela
Fundação Renova, que se limita, no mais das vezes, a comunicar “a inexistência de nexos causais entre o
desastre e grande parte dos sintomas e agravos identi cados na população” (RAMBOLL, 2018, p. 190).

Com efeito, o Parecer do Ministério Público identi ca uma enorme di culdade de acesso à
informação sobre a real situação da bacia. Neste sentido, é expressiva a manifestação de um atingido, citada
no Parecer nº 279/2018/SPPEA, MPF e MPMG (p. 75): “a empresa nunca tem uma informação concreta,
não tem resposta, o portal da Renova direciona o olhar, é voltado ao marketing institucional”. Tal fala é
con rmada pela própria Ramboll (2019a, p. 3), mesmo após a homologação do TAC Governança: “o que se
percebe em campo é que, por vezes, mais se confunde a população sobre seus direitos e sobre os programas
da Fundação, do que se garante participação e controle social efetivo”.

A realidade é que, mesmo após mais de 4 anos do rompimento de Fundão, ainda não há estudos
conclusivos (e independentes) sobre os potenciais riscos à saúde da população da bacia do rio Doce. A
Câmara Técnica de Saúde (CT-Saúde) estima que 1 milhão de pessoas tenham sido atingidas em sua
saúde física e/ou mental, e os resultados preliminares do Estudo de Avaliação de Riscos à Saúde Humana
(EARSH), iniciado em julho/2018, revelam presença de metais pesados no solo (Cd, Ni) e nas poeiras
domiciliares (Cd, Ni, Pb, Cu, Zn) (RAMBOLL, 2018, p. 190).

16
A negligência da Fundação Renova na execução do Programa de Auxílio Emergencial foi novamente identi cada pelo relatório
da Ramboll (2018), publicado em novembro, o que revela que nada foi feito pela Fundação Renova para solucionar os problemas
longamente apontados neste Programa.
17
Embora a data prevista para a conclusão tenha sido estabelecida e fornecida pela Samarco, Vale e BHP Billiton, por meio da
Fundação Renova, as próprias empresas estão tentando se esquivar da obrigação judicial de cumprimento do prazo conforme
ata de audiência judicial realizadas em 2019, a partir de junho, na ação civil pública de nº 0400.17.004149-7.
18
As violações da Fundação Renova são tão agrantes, que mesmo em relação às moradias temporárias disponibilizadas para
as famílias atingidas em Mariana e Barra Longa, o relatório da Ramboll (2018, p. 4) constatou que, aproximadamente, 55 % das
moradias são inadequadas à habitabilidade das pessoas, colocando a sua saúde e segurança em risco.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 163-180, ago. 2020.


“Gato e sapato”: a solução negociada e a pilhagem da bacia do rio Doce 171

De maneira aqui muito resumida, os relatórios e pareceres independentes não fazem mais do que
con rmar o que se percebe a olhos vistos em qualquer um dos territórios da bacia do rio Doce: as pessoas
seguem praticamente desassistidas, e a recuperação ambiental é extremamente falha, para não dizer inexistente.

Não obstante, a narrativa institucional da Fundação Renova/Vale/BHP Billiton é a de que as ações


de reparação e compensação dos danos estão adequadamente encaminhadas, o que assume o caráter de
propaganda corporativa para as mineradoras, que, como se não bastasse, ainda se bene ciam comercialmente
com a “alquimia argumentativa” (SCOTTO, 2018) da Responsabilidade Social pós-desastre.

Na percepção dos atingidos, as di culdades de acesso aos programas de reparação e mesmo a


negligência no seu cumprimento são propositais e constituem a própria estratégia da Fundação Renova para
“vencer pelo cansaço”, induzindo que as pessoas em situação de necessidade aceitem o quanto oferecido, ou
mesmo, que desistam da reparação (MPF; MPMG, 2018, p. 39). As empresas interpostas à Renova, a nal,
“lucram”, ao reduzirem os custos19 da reparação.

Assim, apesar de a Fundação Renova ter forma jurídica de fundação privada, ela serve de pessoa
jurídica interposta para o interesse das empresas, o que é inegável diante da condução negligente e abusiva
na execução dos programas de reparação e compensação, sempre no sentido de reduzir os custos do
desastre para suas mantenedoras e desresponsabilizá-las.

De fato, ca difícil defender a autonomia da Fundação Renova quando se observa que os serviços
de administração da Fundação eram feitos pela Samarco S.A., entre 2016 e 2017, e que cerca de 20% dos
seus funcionários são ex-empregados das empresas que a mantém, os quais apenas trocaram o uniforme
(MACIEL, 2018). Na verdade, a relação é tão clara que os próprios atingidos reconhecem a Renova como
“as empresas” (MPF; MPMG, 2018, p.71).

A estratégia das empresas de criar, via TTAC (o “acordão”), a Fundação Renova para assumir a
gestão dos programas de compensação e reparação ambiental, do processo de cadastramento dos atingidos,
e da negociação das indenizações, é considerada uma “privatização” da solução para o desastre ambiental
(CAMPOS; SOBRAL, 2018, p. 168; SANTOS; MILANEZ, 2018).

A Fundação Renova foi, a nal, alçada ao papel de agente principal, quando não único, da “gestão
dos riscos” do desastre, o que, na prática, transmitiu às próprias empresas o protagonismo da reparação
dos danos que elas mesmas causaram, e reduziu a capacidade de atuação do Estado no caso (LOSEKANN;
MILANEZ, 2018).

Assim, a di culdade de scalização e de sanção à Fundação Renova pelos poderes públicos não é
à toa. Nesse modelo privatizado, o Estado foi colocado como coadjuvante, como agente scalizador, mas
sem qualquer estrutura para acompanhamento das ações de reparação dos danos, que são sucessivamente

19
A Fundação Renova alega ter gasto até abril de 2019 um total de R$ 5,88 bilhões de reais nos programas de reparação e
compensação dos danos na bacia do rio Doce, valor muito aquém dos R$ 155 bilhões da ação civil pública proposta pelo MPF
e suspensa pelos TACs rmados. Neste sentido, ver o site da Fundação Renova, com os valores de desembolso e orçamento:
https://www.fundacaorenova.org/dadosdareparacao/#desembolso. Acesso em 17 jun. 2019.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 163-180, ago. 2020.


172 Luciana Tasse Ferreira

descumpridas, sem que os órgãos públicos tenham capacidade institucional para obrigar o seu cumprimento,
ou sequer sancionar as empresas e a Fundação.

O PIM e a reparação socioambiental negociada

O Programa de Indenização Mediada (PIM), executado pela Fundação Renova, também se


vale do modelo negociado e extrajudicial para viabilizar a indenização individual dos atingidos. Neste
caso, como o próprio nome do Programa insinua, a mediação é a técnica empregada para se chegar aos
“acordos” indenizatórios.

Apesar de a adesão ao Programa ser (em tese) voluntária, a via extrajudicial do PIM tem sido a via
prioritária para a xação e pagamento das indenizações20 por danos morais e materiais ao longo da bacia.
Com isso, praticamente não resta escolha aos atingidos, senão aderir ao Programa. A via judicial, além
de não ser apresentada como uma opção pela Renova, é inviável para maioria deles, que têm urgência no
recebimento das verbas indenizatórias, e não pode arcar com os custos de uma ação judicial.

O discurso favorável à solução negociada no tratamento do desastre da Samarco marca não só a


atuação das empresas e da Fundação Renova, que se bene ciam desse modelo para reduzir os custos da
reparação (ROJAS; PEREIRA, 2017), como também dos poderes públicos e dos órgãos do sistema de justiça,
sob a justi cativa da “e ciência e e cácia, harmonia e paci cação, consenso e solidariedade, negociação e
acordo, participação e diálogo, informalidade e celeridade” (VIÉGAS; PINTO; GARZON, 2015, p. 4).

Na verdade, o incentivo às soluções privadas vem se consolidando desde o Consenso de Washington


(1989) que receitou a adoção de meios alternativos de solução de con ito, como parte das medidas
necessárias ao “ajuste macroeconômico” dos países em desenvolvimento (MEIRELLES, 2007; ACSERALD;
BEZERRA, 2010, p. 7).

A partir daí, teve início uma progressiva desquali cação da esfera jurisdicional na América Latina,
que se explica, não apenas pelo movimento de “acesso à justiça”, mas, igualmente, pela pressão do campo
econômico por formas de solução mais e cientes e adequadas ao ritmo das transações econômicas
(MEIRELLES, 2007, p. 77). Percebe-se, então, que o discurso em favor dos meios alternativos de solução
de con itos é parte do projeto neoliberal21 de Estado mínimo e está historicamente ligado a interesses
privados e de mercado.

A antropóloga Laura Nader (1994) vai mais longe para dizer que a ideia de que “tudo pode e deve ser
negociado” se naturalizou, transformando-se numa verdadeira “harmonia coercitiva”. Com efeito, a noção
de e ciência econômica e a “ideologia da harmonia” estão sempre implícitas na retórica que sustenta a

20
Para a nalidade de indenização, o programa conta com duas vertentes: uma voltada à indenização do dano moral; e, uma
outra, destinada à indenização de danos gerais, para aqueles que perderam bens e/ou renda.
21
Nesse sentido, o Documento Técnico Número 319 do Banco Mundial, de 1996 (p. 83), traz como recomendações uma série de
reformas para o Poder Judiciário dos países latino-americanos, que objetivam torná-lo mais compatível com “mercados mais abertos
e abrangentes”. Dentre as recomendações, consta expressamente a adoção de “Mecanismos Alternativos de Resolução de Con itos”.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 163-180, ago. 2020.


“Gato e sapato”: a solução negociada e a pilhagem da bacia do rio Doce 173

solução alternativa de con itos como bené ca e positiva, sem importar o contexto fático em que o con ito
se desenvolve.

Não por acaso, o PIM incorpora essa retórica. Assim, na linha utilitarista da escola de mediação de
Harvard, que subsidiou a elaboração do formato do PIM, Faleck22 (2017, p. 13), seu idealizador, a rma que
a operacionalização do Programa conta com “constante busca de e cácia, e ciência, de utilização de uxo
ágil e inteligente de processos”, o que evita o caminho da “via crucis judicial”.

O “modelo harvardiano” de mediação adotado no PIM consiste, basicamente, em encontrar


interesses comuns entre as partes “em disputa”. Segundo esta técnica, o papel do mediador de con itos
consiste em convencer as partes de que a busca pelo acordo acarreta menos custos que o apego a uma
postura beligerante e con itiva (URY, BRET, GOLDBERG, 1988). Assim, ca claro que o objetivo
principal da técnica de mediação empregada no PIM é a redução de custos, e não a reparação integral
dos atingidos.

Na verdade, apesar de o PIM apresentar a retórica do consenso entre as partes, é possível questionar
até mesmo se há, efetivamente, consentimento23. Segundo o próprio site da Fundação Renova, “os critérios e
valores para o cálculo de indenização dos danos gerais já foram previamente discutidos com representantes
do poder público e de entidades técnica”24, o que denota que, na prática, não há uma discussão acerca
dos valores a serem indenizados, mas uma matriz de danos pré- xada, com base na qual os valores são
“tecnicamente” calculados, e a proposta, feita. Resta ao atingido apenas aceitar ou recusá-la, como num
contrato de adesão: essa é a “negociação” do PIM.

Corroborando essa visão, o relatório da Ramboll (2018, p. 190) considera a de nição da matriz de
danos feita pela Renova problemática, tanto pela falta de participação popular na sua de nição, quanto pela
escolha metodológica adotada na preci cação dos danos, que desconsidera variáveis imateriais, morais e
temporais para retomada autônoma da vida pós-desastre.

Com efeito, o relatório de monitoramento do PIM realizado pela Ramboll (2019c) atesta a
inadequação dos valores propostos para as indenizações materiais, bem como a falta de informações sobre
a matriz de danos adotada para o cálculo. Além do mais, não se confere centralidade às pessoas atingidas,
que têm suas declarações sobre os danos colocadas em questão, pela exigência excessiva de documentos
e pelo não reconhecimento de diversas categorias como atingidos, dentre eles, os areeiros, ribeirinhos,
lavadeiras e pescadores de subsistência.

22
Diego Faleck é o idealizador do “Design de Sistema de Disputa” (DSD) do PIM e é o principal expoente do “modelo Harvard
de mediação” no Brasil.
23
É importante destacar que mesmo que houvesse uma negociação entre os atingidos e a Fundação Renova sobre os valores a
serem pagos a título de indenização, isso já seria questionável do ponto de vista jurídico, tendo em vista que a responsabilidade
civil ambiental impõe a reparação integral dos danos e a compensação para os danos irreversíveis. Neste caso, não há espaço
para “negociação”, pois a Lei 6938/81 e o art. 225, §3º da Constituição Federal, impõem a noção de que a reparação ambiental
deve conduzir a uma situação o mais próxima possível da situação anterior ao dano.
24
Disponível em: https://www.fundacaorenova.org/indenizacoes/. Acesso em 16 fev. 2019.

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174 Luciana Tasse Ferreira

Sobre as categorias que chegaram a receber as indenizações pelos danos materiais via PIM, o
monitoramento aponta que os valores não têm sido disponibilizados em tempo adequado para atender
à população alvo do programa. Para se ter uma noção do tamanho da negligência, dos 30.062 núcleos
familiares cadastrados, apenas 9.329 (31%) receberam indenização por danos materiais, o que denota um
percentual mínimo, quando se consideram os 4 anos do desastre. Assim, em vista de tantas di culdades
sobrepostas para a realização da desejada reparação integral, está em curso um acentuado processo de
empobrecimento da população dos territórios atingidos (RAMBOLL, 2019c).

Da mesma forma, é possível dizer que o uso de soluções extrajudiciais, ditas negociadas, para
reparação e compensação dos danos à bacia do rio Doce tem neutralizado a discussão sobre os direitos
das comunidades atingidas e sobre a (in)justiça das soluções, já que a prioridade (discursiva) da e ciência
econômica e da celeridade tem tornado esse debate secundário.

Neste sentido, uma aplicação generalizada da mediação, sem maiores considerações sobre o
contexto fático do con ito, representa uma aplicação do contratualismo, nos moldes da razão de mercado,
para uma situação de desastre. A concepção contratualista de sociedade, implícita nos modelos de solução
negociada, isto é, uma sociedade composta por indivíduos iguais, que contratam racional e livremente os
seus ganhos e riscos, legitima, neste caso, a “contratualização” de todo tipo de con ito, o que é ainda mais
absurdo em se tratando de comunidades vulneráveis (NICÁCIO, 2012, p. 11).

De fato, quando há uma desigualdade abissal entre as partes, como no caso de desastres ambientais,
a “negociação” se revela extremamente prejudicial para o atingido, considerando que este não tem o menor
poder de barganha e se encontra numa situação de hipossu ciência face às empresas causadoras dos
danos. Na verdade, boa parte dos atingidos da bacia do rio Doce teve sua atividade econômica afetada
pelo desastre e, quando recebem as propostas de “acordo” do PIM, estão pressionados pela necessidade de
subsistência. Nestes casos, o consentimento é obtido sob coação econômica (MEIRELLES, 2007, p. 77-78),
sendo o acordo, na verdade, uma rendição.

Assim, a opção pela solução contratual é propositada, pois reduz os custos das indenizações a serem
pagas, ao permitir a sobreposição dos interesses econômicos das empresas sobre os direitos dos atingidos.
Na “gestão empresarial do desastre” (ROJAS; PEREIRA, 2017) capitaneada pela Renova, o que importa,
a nal, é desresponsabilizar as empresas.

Neste sentido, o Parecer nº 279/2018 do MPF e MPMG (2018, p. 78-79) identi cou que “as
‘conversas’ no âmbito do PIM estão marcadas por uma assimetria de poder e de informações que resultam
na impossibilidade de uma negociação efetiva acerca de como devem ser garantidos os direitos dos
atingidos”. De acordo com o parecer, os atingidos não têm acesso a informações claras sobre os critérios
de elegibilidade do programa ou sobre a de nição da matriz de danos, além de não reconhecerem os
“mediadores” atuantes no caso como imparciais - já que contratados pela Renova.

É certo, também, que o descumprimento reiterado da cláusula 37 do TTAC, que obriga as empresas
a custearem assistência jurídica gratuita à população hipossu ciente no âmbito do PIM, tem causado um

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 163-180, ago. 2020.


ônus excessivo principalmente aos mais pobres (MPF et al., 2018), que se encontram, até o momento, sem
assistência jurídica ou assessoria técnica, ou seja, literalmente sem qualquer apoio para a defesa de seus
direitos individuais e coletivos.

Da mesma forma, os atingidos relataram que a Fundação Renova se vale de estratégias para forçar
acordos, sendo uma delas a protelação (MPF; MPMG, 2018, p. 78). Realmente, de acordo com a cláusula
38 do TTAC, o PIM deveria ter sido concluído em um prazo de doze meses, sendo que o pagamento das
indenizações deveria ter sido efetuado em até três meses da conclusão das negociações realizadas.

Todavia, o que se vê na prática é que o PIM é sucessivamente prorrogado, sem data prevista para
a sua conclusão25. Essa insegurança coloca em questão a alegada “celeridade”, justi cadora da opção pela
mediação, e leva a crer que a prorrogação, em si, compõe a estratégia da Renova para pressionar por acordos
em benefício das empresas.

Assim, quanto mais o tempo passa sem a reparação que lhes é de direito (e lá se vão mais de 4 anos!),
mais os atingidos se encontram coagidos a aceitarem os termos propostos pela Fundação, já que boa parte
deles se encontra em situação de vulnerabilidade social. Neste sentido, a fala de um atingido do médio rio
Doce, é muito expressiva:
Eles estão fazendo de gato e sapato as pessoas e ninguém toma providência. […] As pessoas já estão cansadas
desse leva e traz, desse vai e vem, é Sinergia, daí a pouco surge uma outra empresa e não avisam nada a gente
[...]. São coisas que eles não tomam providências, cam cansando nós, e uma pessoa sem conhecimento acaba
assinando o papel, para ver se recebe alguma coisa, investe em alguma coisa. Vai vir uma mixaria, mas é melhor
essa mixaria na mão do que… você entendeu? É o desespero. (Parecer MPF, p. 40).

Não por acaso, o PIM vem sofrendo uma série de denúncias de abusos em sua execução desde
a sua implantação pela Renova. E, mesmo com todas as denúncias por parte dos atingidos26, de
movimentos sociais27 e da comunidade acadêmica (ROJAS, 2017; DIAS, 2017; BORGES; NABUCO;
ALEIXO, 2018) sobre a forma como o PIM e demais programas da Renova têm sido conduzidos, nenhum
dos programas em execução foi alvo de revisão no TAC Governança, que se limitou a determinar a
continuidade do PIM e uma possível “repactuação” futura dos demais programas, todavia disposta de
maneira vaga e imprecisa.

25
Conforme informações do site da Fundação Renova, de notícia publicada no dia 21 de junho de 2018. Disponível em:
https://www.fundacaorenova.org/noticia/renova-informa-prorrogacao-no-cronograma-de-negociacao-e-pagamento-de-
indenizacoes/. Acesso em 16 fev. 2019.
26
Neste sentido, o Jornal A Sirene, organizado pelos próprios atingidos para publicizar as violações sofridas, denuncia a
insu ciência das medidas de reparação promovidas pela Renova, que não possui uma política clara de cadastramento dos
atingidos, deixando várias pessoas desassistidas. Disponível em: http://jornalasirene.com.br/espirito-santo/2018/04/24/fomos-
reconhecidos-mas-nao-fomos. Acesso em 27 fev. 2019.
27
Da mesma forma, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) denuncia que os atingidos não dispõem de orientação
jurídica su ciente para participar do PIM, que quali cam como uma “armadilha” para o atingido. De acordo com o MAB,
a partir da “farsa da mediação”, o PIM viola o direito à reparação integral. Disponível em: https://www.mabnacional.org.br/
noticia/programa-indeniza-mediada-armadilha-para-os-atingidos-pela-samarco. Acesso em 27 fev. 2019.
176 Luciana Tasse Ferreira

O próprio Relatório de 2017 do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) sobre o
rompimento da barragem de Fundão, recomendou a suspensão do PIM, e a (re)negociação coletiva dos
seus termos, com o objetivo de criar critérios isonômicos e uma metodologia adequada à xação e valoração
dos danos sofridos pelos atingidos, evitando-se a fragmentação dos pleitos, que deveriam ser coletivos, e
não pautados numa lógica individual.

Corroborando todas as críticas, a Recomendação Conjunta nº 10, faz um apanhado de todos os


abusos por parte das empresas e da Fundação Renova. Dentre as violações mencionadas, cabe destacar a
di culdade de acesso à informação e “a atuação unilateral e discricionária da Fundação Renova na execução
do Programa de Indenização Mediada (PIM)” (MPF et al., 2018).

Neste sentido, o documento alerta que o fornecimento de informações equivocadas tem induzido
os atingidos a erro, e os coagido a aceitar as condições oferecidas. De fato, um exemplo emblemático
disso ocorreu com a divulgação pela Renova da (des)informação de que ocorreria a prescrição do direito
à indenização, após três anos do desastre, gerando grande a ição à população da bacia, até que a falsa
informação fosse corrigida pelo Ministério Público28.

Algumas das recomendações feitas pelos órgãos ministeriais, Defensorias e CNDH já foram
acatadas pela Fundação Renova. Todavia, o formato nal do PIM, após a assinatura do TAC Governança,
permanece em disputa. Aliás, a demanda pela repactuação do PIM deve se acirrar pelos próximos
tempos, já que a expectativa é que o programa passe por uma revisão, depois das assessorias técnicas
contratadas. Está em disputa, até mesmo, se os acordos individuais já rmados poderão ser revistos
com o apoio das assessorias.

Em todo caso, como visto, não há qualquer cronograma xando prazos para a contratação formal
das assessorias, o que tem trazido insegurança e ansiedade à população da bacia. Assim, mesmo após meses
da conclusão do processo de escolha das entidades em diversos territórios, os atingidos permanecem sem
qualquer assistência para a defesa dos seus direitos. Enquanto a contratação formal das assessorias não
acontece, a Fundação Renova segue rmando acordos no âmbito do PIM, valendo-se da vulnerabilidade
dos atingidos para xar termos mais favoráveis às empresas.

Conclusão

Visto que para compensar a queda do preço do minério de ferro em 2011, após o boom das
commodities, a Samarco/Vale/BHP Billiton adotaram uma gestão empresarial arriscada e economicista,

28
Para evitar o mal entendido sobre a prescrição, foi rmado um Termo de Compromisso em outubro de 2018, entre a Fundação
Renova/Samarco/Vale/BHP Billiton e os Ministérios Públicos e Defensorias para garantir que não haverá prescrição até que os
atingidos pelo desastre sejam indenizados de maneira integral. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/
docs/termo-de-compromisso-prescricao. Acesso em 22 jun. 2019.
Ao mesmo tempo, em 02 de outubro de 2018, no juízo da comarca de Mariana/MG, foi homologado um acordo judicial entre
Samarco/Vale/BHP Billiton e o MPMG, apartado do Termo de Compromisso, no qual as empresas reconhecem a suspensão da
prescrição e que põe m à Ação Civil Pública nº 0400.15.004335-6.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 163-180, ago. 2020.


“Gato e sapato”: a solução negociada e a pilhagem da bacia do rio Doce 177

cortando custos operacionais básicos, como os de manutenção de barragens, não era de se esperar uma
conduta diferente quando da adoção dessa mesma gestão empresarial, pelas mesmas empresas, na reparação
do desastre. A opção pela solução contratual ou extrajudicial como forma de tratamento do desastre é
propositada: sendo frágil, desresponsabiliza as empresas, ao negligenciar quase completamente a reparação
socioambiental e socioeconômica da bacia.

Foi demonstrado que os instrumentos contratuais rmados para a reparação do desastre da


Samarco/Vale/BHP Billiton operam discursivamente, criando uma autoverdade abstrata sobre diversos
aspectos que não se veri cam na realidade concreta, como a efetiva participação dos atingidos e atingidas
e a transparência das negociações no PIM, o acesso a informações e o monitoramento dos 42 programas
de responsabilidade da Fundação Renova. Trata-se de direitos desenhados no papel, mas que, diante de
uma (des)responsabilização quase que exclusiva das empresas para efetivá-los, não se veri cam na prática.
Ao contrário, o que se veri ca é um efetivo descumprimento de vários direitos e reiterados adiamentos de
prazos acordados.

A solução negocial não é uma ação isolada. A sua real motivação não é o discurso anunciado da
e ciência e da celeridade na reparação dos atingidos, mas garantir um ajuste macroeconômico neoliberal
nos países em desenvolvimento, legitimado pelo discurso jurídico universalista, orientado, inclusive, por
agências internacionais, como o Banco Mundial. Ao m, o discurso jurídico da e ciência das soluções
negociadas só faz garantir o processo histórico de colonização por pilhagem, a partir da retórica de que
a legalidade contém a normatização da ordem moral a ser seguida. No caso, a ordem neoliberal. Nesta
lógica, sai de cena a reparação integral, ca o interesse corporativo, garantindo-se assim a acumulação por
espoliação (HARVEY, 2005) em uma gestão empresarial do desastre.

Tal lógica corporativa coloca em risco a própria democracia e soberania do Estado, uma vez que
uma agenda externa de privatização das políticas públicas passa a ser executada por agentes e fundações
privadas, com a chancela dos órgãos do sistema de justiça, sem a participação das comunidades atingidas
por essa agenda. Não bastasse, a partir da operação discursiva manipulada com o uso do discurso jurídico,
a própria sociedade, ao mesmo tempo em que é alijada de seu direito à participação quanto à escolha das
políticas adotadas para a reparação dos danos sofridos, é empobrecida sob uma racionalidade economicista,
nos moldes da razão do mercado.

Referências

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Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 163-180, ago. 2020.


Proteção jurídica da existencialidade

Maria Helena Diniz


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, SP, Brasil
https://orcid.org/0000-0001-5696-2362

Resumo: Neste artigo procurar-se-á analisar, brevemente, a necessidade


de reparação do dano existencial para proteger a dignidade humana já
que tal dano abrange qualquer lesão a direito fundamental ou a direito
da personalidade, que cause frustração a algum projeto de vida e
reprogramação de atividades cotidianas. O dano existencial diz respeito
ao “não mais poder fazer”, “a dever agir de outro modo”, ou até mesmo à
perda de uma chance, logo pode ser considerado um “tertium genus” na
seara da responsabilidade civil, distinto do dano patrimonial ou moral.
O dano existencial é indenizável porque ninguém tem o direito de
modi car a vida das pessoas, tirando-lhe as expectativas ou a realização
de seus desejos.
Canoas, v. 8, n. 2, 2020
Palavras-chave: Dignidade Humana; Dano Existencial; Direitos
Artigo Fundamentais; Direitos da Personalidade; Responsabilidade Civil.

Recebido: 04.05.2020
Aprovado: 09.06.2020
Legal Protection of existentialy

Publicado: 01.07.2020 Abstract: is article seeks to brie y analyze the need to repair
existential damage to protect human dignity, since such damage covers
DOI http://dx.doi.org/10.18316/REDES.v8i2.6885 any injury to a fundamental right or to the right of the personality,
which causes frustration to some life project and reprogramming of
daily life. Existential damage refers to “not being able to do it anymore”,
“to behave differently”, or even to the loss of a chance, therefore, it can be
considered a “tertium genus” in the area of civil responsibility, different
from the damage patrimonial or moral. e existential damage is liable
to indemnity because nobody has the right to change people’s lives,
taking away their expectations or the ful llment of their desires.
Keywords: Human Dignity; Existential Damage; Fundamental Rights;
Personality Rights; Civil Responsibility.

Introdução: Dano patrimonial e/ou dano moral como


pressuposto da responsabilidade civil

A todo momento surge o problema da responsabilidade


civil, pois cada atentado sofrido pelo homem, relativamente à sua
pessoa ou ao seu patrimônio, requer reparação de conformidade
com os ditames da justiça.
182 Maria Helena Diniz

Para que haja responsabilidade civil alguns requisitos são imprescindíveis como: (a) existência de
uma ação (comissiva ou omissiva), quali cada juridicamente, isto é, que se apresenta como um ato ilícito
ou lícito, pois ao lado da culpa, temos o risco; (b) ocorrência de um dano moral e/ou patrimonial causando
à vítima por ato comissivo ou omissivo do agente ou de terceiro por quem o imputado responde, ou por
um fato de animal ou coisa a ele vinculado. Não pode haver responsabilidade civil sem o dano que deve ser
certo, a um bem ou interesse jurídico, sendo necessária a prova real e concreta dessa lesão. E, além disso, o
dano moral é cumulável com o patrimonial (STJ, Súmula n. 37); (c) nexo de causalidade entre dano e ação
(fato gerador da responsabilidade) pois a responsabilidade civil não poderá existir sem o vínculo entre a
ação e o dano1.

Como se pode ver o dano é um dos pressupostos da responsabilidade civil, visto que não poderá
haver ação de indenização sem a existência de um prejuízo: Só haverá responsabilidade civil se houver um
dano a reparar. Com muita propriedade, ponti ca Giorgio Giorgi que “nessun dubbio sulla verità di questa
princípio: sia pura violata l’ obbligazione, ma se il, danno manca, manca la materia del risarcimento”2.

Não pode haver responsabilidades civil sem a existência de um dano a um bem jurídico, sendo
imprescindível a prova real e concreta dessa lesão. Deveras, para que haja pagamento de indenização pleiteada
é necessário comprovar a ocorrência de um dano patrimonial ou moral, fundados não só na índole dos
direitos subjetivos afetados, mas nos efeitos de lesão jurídica, de modo que, como nos ensina Artur Oscar
de Oliveira Deda3, quando a vítima reclama a reparação pecuniária em virtude do dano moral que recai,
por exemplo, sobre a honra, não pede um preço para sua dor, mas apenas que se lhe outorgue um meio de
atenuar, em parte, as consequências do prejuízo. Na reparação do dano moral, o dinheiro não desempenha
função de equivalência, como no dano material, porém, concomitantemente, a função satisfatória e a de
pena. Se a responsabilidade civil constitui uma sanção, não há por que não se admitir a ressarcimento do
dano moral, misto de pena e de compensação. Portanto, há danos cujo conteúdo não é dinheiro, nem uma
coisa comercialmente redutível a dinheiro, mas a lesão a um direito da personalidade, visto que não se podem
avaliar a dor, a emoção, a afronta, a a ição física ou moral, ou melhor, a sensação dolorosa experimentada
pela pessoa. O dano moral que se traduz em ressarcimento pecuniário não afeta, a priori, valores econômicos,
embora possa vir repercutir neles. O dano patrimonial compreende o dano emergente e o lucro cessante, ou
seja, a efetivação diminuição no patrimônio da vítima e o que ela deixou de ganhar.

O dano, en m, pode ser de nido como a lesão (diminuição ou destruição) que, devido a um certo
evento, sofre uma pessoa, contra sua vontade, em qualquer bem ou interesse jurídico patrimonial ou moral4.

1
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 34 ed. São Paulo: Saraiva, v. 7, 2020. p. 52-54. MARTY, Gabriel;
RAYNAUD, Pierre. Droit civil: les obligations. Paris: Sirey, v. 50, 1962, t. 2. p. 352.
2
GIORGIO, Giorgi. Teoria delle obbligazione. Torino: UTET, v. 2, 1930. p. 137.
3
DEDA, Artur Oscar de Oliveira. Dano moral (reparação). In Enciclopédia Saraiva do Direito, São Paulo: Saraiva, v. 22, 1978.
p. 279-292.
4
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 34 ed. São Paulo: Saraiva, v. 7, 2020. p. 77-80.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 181-191, ago. 2020.


Proteção jurídica da existencialidade 183

Con guração jurídica do dano existencial como um tertium genus

A Itália, na década de 1960, já falava em danno alla vita di relazione, dano à convivência ou ao
relacionamento social, que podia atingir direta ou indiretamente, a capacidade laborativa da vítima. O dano
à vida de relação é o que impede alguém de gozar dos prazeres advindos de atividades artísticas, recreativas
– esportes, pesca, turismo etc. – religiosas ou culturais, que in uenciam seu relacionamento pro ssional ou
social, reduzindo chance de obter êxito, o que poderá repercutir na obtenção de rendimentos5, portanto,
será dano existencial todo aquele que, potencialmente, impeça qualquer atividade que realize o ser humano.

Dano existencial é qualquer agressão aos direitos fundamentais e aos direitos de personalidade,
garantidos constitucionalmente, que cause modi cação nas atividades exercidas pela vítima ou frustre seus
projetos de vida, gerando perda do sentido da vida.

Segundo Carlos Fernandez Sessarego, o dano existencial é o que tem como “consequência a
frustração do projeto de vida da pessoa. A saber, se trata de um feito de tal magnitude, que truncaria a
realização da pessoa humana de acordo com sua mais profunda e intransferível vocação” 6.

Na lição de Flaviana Rampazzo Soares o dano existencial constitui uma alteração prejudicial nas
relações familiares, sociais, culturais, afetivas etc. E todo acontecimento que incide, de modo negativo, total
ou parcialmente, sobre os afazeres da pessoa, podendo repercutir, temporária ou permanentemente, sobre
sua existência, levando-a a modi car sua rotina. Daí a denominação de dano existencial7.

Para Júlio César Bebber trata-se de lesão injusta que compromete liberdade de escolha e frustra o
projeto de vida elaborado pela vítima, impedido o pleno desenvolvimentos de sua personalidade, pouco
importando a repercussão nanceira, pois requer uma reprogramação em seus relacionamentos e em suas
atividades cotidianas8.

O projeto de vida de uma pessoa, além de repercutir em sua vida, envolve fatores familiares,
educacionais, econômicos etc., que in uem no íntimo da pessoa e, consequentemente, em suas escolhas,
pois a existência é convivência com outras pessoas em vários mundos circundantes ou ambientes, pois
como se diz, o “ser humano existe não apenas em sua relação corpórea ou pelo lugar que ocupa no espaço”,
ou seja, “existe em relação a sua condição de ser-no-mundo”9, a conveniência com os demais membros do

5
ALMEIDA NETO, Amaro de. Dano existencial: a tutela da dignidade da pessoa humana. Revista Síntese – Direito Civil e
Processual Civil, São Paulo, v. 12, n. 80, p. 09-36, nov./dez. 2012.
6
SESSAREGO, Carlos Fernandez. Derecho de las personas. Exposiciones de motivos y comentarios al libro primero de código
civil peruano. Lima: Studiun, 1986. p. 33-34. SESSAREGO, Carlos Fernández. É possível proteger, juridicamente, o projeto de
vida? Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 5, n. 2, p. 41-57, nov. 2017.
7
SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre: LAEL, 2009. p. 44.
8
BEBBER, Júlio Cesar. Danos extrapatrimoniais (estético, biológico e existencial): breves considerações. Revista LTR, São
Paulo, v. 73, n. 1, p. 26-29, 2009. p. 28.
9
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Augusto. Psicoterapia existencial. São Paulo: omson Learning Brasil, 2007. p. 25.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 181-191, ago. 2020.


184 Maria Helena Diniz

corpo social (ser-como) fez parte dessa sua condição de ser-no-mundo, isto é, o “existir é originalmente
ser-com-o outro” – ser-no-mundo-com-os-outros10 – Esse projetar para o futuro faz estabelecer planos
que darão sentido à existência ou à vida, possibilitando realizações em várias esferas (familiar, pro ssional,
recreativa, religiosa, educacional etc.), Por tal motivo, a dimensão existencial vem preocupando juristas e
aplicadores do direito em razão dos re exos nocivos que certos danos causam à pessoa, levando-a alterar o
planejamento que traçou para sua vida.

Todos têm direito à uma existência digna, ou seja, à incolumidade física e psíquica, à automanutenção
nanceira, à prática de atividades sociais, culturais, artísticas, recreativas e desportivas, à escolha dessas
atividades que dão sentido a sua vida.

A situação existencial humana – o conjunto de relações nas quais o ser humano se encontra no
mundo, com as coisas e outros homens11 e o direito ao mínimo existencial – direito ao necessário à
existência digna12 dialogam com necessidades materiais e com aspirações transcendentais, pois a pessoa
precisa projetar-se para fora de si para encontrar seu próprio signi cado, satisfazendo suas necessidades
básicas para que possa desenvolver-se de modo saudável13. Daí o direito de, livremente, moldar sua vida e
seu destino e de escolher os meios para atingir sua realização pessoal.

Se for injustamente impedida de desenvolver uma atividade que lhe dava prazer e realização pessoal,
ter-se-á dano existencial indenizável, visto que deu azo à renúncia involuntária de atividade cotidiana.

A lesão ao projeto de vida é o núcleo do dano existencial indenizável, por ser prejudicial ao destino
pretendido e à realização pessoal integral, levando a renúncias com compulsórias ou ao replanejamento de
um modo diferente ante as limitações causadas pela ofensa sofrida.

O dano existencial é uma espécie do gênero dano moral, por impor, como assinalamos, uma
renúncia indesejada de atividades cotidianas, tolhendo a vítima da liberdade da escolha feita sobre o seu
destino. O dano existencial é uma lesão à vida de relação pessoal ou social que auxilia o desenvolvimento
da personalidade, daí ser decorrência do dano moral.

10
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11
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Latin, 2003. p. 82-83.
12
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13
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ao projeto de vida: re exões à luz do direito comparado. Revista Síntese – Direito Civil e Processual Civil, São Paulo, v. 12, n.
80, p. 57-83, nov./dez. 2012. p. 59.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 181-191, ago. 2020.


Proteção jurídica da existencialidade 185

Pontes de Miranda já fazia menção ao dano à normalidade de vida de relação, como uma modalidade
de lesão extrapatrimonial indenizável, por haver uma substituição ou uma alteração perniciosa de ritmo de
vida ou de prazer que desapareceu14.

O dano moral afeta a integridade física e psíquica da pessoa, o dano existencial atinge as atividades
cotidianas da pessoa, pois esta deixará de fazer certas coisas, ou deverá fazê-las de modo diferente logo
poderá não haver lesão de ordem psíquica ou patrimonial, por ex: basta que haja impedimento para fruição
de certo direito15.

A indenização por dano moral e existencial é cumulável, pois, um dano à integridade física ou
psíquica pode alterar projeto de vida.

Dano moral envolve o sentir e o dano existencial o deixar de fazer algo, sendo indenizável porque
ninguém tem o direito de mudar a vida das pessoas, tirando-lhe as expectativas.

Logo, o dano existencial é um desdobramento do dano moral e patrimonial, mas pode ser
considerado como uma categoria autônoma16. São sinônimos os termos: dano existencial, dano à vida
de relação, (préjudice d’agrément), perda de amenidades, perda do gozo de direitos essenciais a qualquer
pessoa em estado normal de vida (loss of amenities of life), ou loss enjoymente of life, ou hedonic damages,
perte de jouissance de vie ou perda do gozo da vida, de chances, projetos, desejos etc.

Para Flaviana Rampazzo Soares e qualquer ofensa que prive a pessoa de gozar os prazeres da vida
ou o bem estar que a existência lhe proporciona17. Giovanni Comandé entende “por dano existencial toda
consequência não econômica de destruição ou diminuição, permanente ou temporária, de uma faculdade
que priva a pessoa lesada de participar de atividades normais e apreciar a vida por completo”18.

Por isso, Paulo Cendon chega a a rmar, com muita propriedade, que o dano existencial seria um
“tertium genus” no âmbito da responsabilidade civil, distinto do dano patrimonial e do moral, conducente
à renúncia forçada a certas atividades concretas, ao transtorno da agenda cotidiana, à perda do convívio, a
um relacionamento diferente19. Provoca uma reviravolta forçada na vida do lesado ou seja uma modi cação
nociva no dia à dia, que lhe retira a paz espiritual e expectativas de vida. O dano existencial diz respeito,

14
PONTES DE MIRANDA. Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 2003, t. 26. p. 57 e 60.
15
NASCIMENTO, Maria Emília Costa. do Responsabilidade civil por dano existencial. Revista Síntese – Direito Civil e
Processual Civil, São Paulo, v. 12, n. 80, p. 37-56, nov./dez. 2012. SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por
dano existencial. Porto Alegre: LAEL, 2009. p. 111.
16
VITTORIA, Daniela. Un “regolamento di con ni” per il danno esistenziale. Contratto e Impresa, Padova, v. 19, n. 3, p. 1217-
1265, 2003. p. 1.217.
17
SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre: LAEL, 2009. p. 48-49.
18
COMANDÉ, Giovanni. Risarciameto dal danno alla persona e altenative istituzionali. Torino: Giappichelli, 1999. p. 49.
19
CENDON, Paolo. Non di sola salute vive l’uomo. Il danno esistenziale. Una nuova categoría della responsabilità civile, ao
cuidado de Paolo Cendon e Patrizia Ziviz. Milano: Giuffrè, 2000.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 181-191, ago. 2020.


186 Maria Helena Diniz

convém repetir ao “não mais poder fazer” ou a “dever agir de outro modo”, “deixar de fazer o que bem
entender” como diz Malteo Maccarone20.

O direito existencial é o direito do ser humano de programar sua vida, como lhe aprouver, para obter
seus ideais: estudar, conseguir seu sustento, ter saúde física e mental; constituir família, praticar seu culto
ou esporte; descansar fazer turismo etc. “Essa e a agenda do ser humano: caminhar com tranquilidade no
ambiente em sua vida se manifesta rumo ao seu projeto de vida”21.

Mosset Iturraspe esclarece que a vida de relação, seja no lar ou nos variados grupos sociais, conduz
a atividades multiformes que enriquecem a personalidade logo, se houver ofensa, não será necessário que
o prejuízo tenha repercussão econômica para o lesado, para que haja responsabilidade civil do lesante22.

São, exempli cativamente, danos existenciais:


(a) ato de imperícia médica que acarrete impossibilidade de praticar esporte, de ter um lho.

(b) divulgação de notícia caluniosa ou difamadora infundada que cause humilhação e depressão.

(c) acidentes que provoquem tartamudez, incapacidade laborativa ou recreativa.

(d) lesão de integridade psicofísica, que cause re exo prejudicial à vida sexual, à esfera espiritual, cultural, social,
recreativa, esportiva, produtiva etc.

(e) abandona material de lho menor que por ex. perde chance de estudar.

(f) stress decorrente de excesso de ruído, de férias frustradas por culpa de alguém.

(g) lesão e humilhação à dignidade pessoal do trabalhador: vítima de mobbing.

(h) protesto ilegítimo que causa repercussão na atividade laborativa de alguém.

(i) uso indevido de agulha em exame laboratorial, que venha contaminar paciente pelo vírus da AIDS, Hepatite C.

(j) aquisição de HIV por recém-nascido ou por paciente em transfusão de sangue.

(k) lesão culposa que acarrete impedimento ou di culdade de manter relação sexual, atingindo a vítima e seu parceiro.

(l) atraso na entrega de imóvel residencial.

(m) anulação de ato de admissão de servidor público.

(n) doença adquirida por exposição, no ambiente laboral, a gases tóxicos.

(o) bullying no ambiente escolar.

20
MACCARONE apud ALMEIDA NETO, Amaro de. Dano existencial: a tutela da dignidade da pessoa humana. Revista Síntese
– Direito Civil e Processual Civil, São Paulo, v. 12, n. 80, p. 09-36, nov./dez. 2012.
21
ALMEIDA NETO, Amaro de. Dano existencial: a tutela da dignidade da pessoa humana. Revista Síntese – Direito Civil e
Processual Civil, São Paulo, v. 12, n. 80, p. 09-36, nov./dez. 2012. p. 33.
22
MOSSET ITURRASPE, Jorge. El daño fundado en la dimensión del hombre en su concreta realidad. Revista dos Tribunais,
São Paulo, v. 85, n. 723, p. 23-45, 1996.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 181-191, ago. 2020.


Proteção jurídica da existencialidade 187

(p) assédio sexual.

(q) prisão arbitraria ou realizada por erro judiciário.

(r) violência urbana ou rural.

(s) perda de um parente.

(t) atos de terrorismo.

(u) guerra civil, golpe de Estado, revolução etc.

Dano existencial e perda de chance

O dano patrimonial abrange, como se infere do disposto no código Civil nos termos dos artigos 402 e
403, não só o dano emergente (o que o lesado efetivamente perdeu), mas também o lucro cessante (o aumento
que seu patrimônio teria, mas deixou de ter em razão do evento danoso). Logo, ao se admitir indenização por
lucro cessante, procurar-se-á em razão de juízo de probabilidade averiguar a perda de chance (perte d’ une
chance ou loss of a chance) ou da oportunidade, de acordo com o normal desenrolar dos fatos.

Trata-se não só de um eventual benefício perdido, como também de perda de oportunidades ou de


expectativa em que seria obtido um benefício, caso não houvesse o corte abrupto em decorrência de um
ato ilícito, que requer o emprego do tirocínio equitativo do órgão judicante, distinguindo a possibilidade
da probabilidade e fazendo uma avaliação das perspectivas favoráveis ou não à situação do lesado, para
atingir a proporção da reparação e deliberar seu quantum. Consequentemente, nesta última hipótese, a
indenização não seria o ganho que deixou de ter, mas, na verdade, da chance.

A chance frustrada caracteriza-se pela perda de oportunidade de obtenção de uma vantagem ou


pela frustração da oportunidade de evitar um dano. En m, a perda da chance é de modo genérico, a
frustração de probabilidade de obtenção de um benefício na esfera jurídica de quem foi lesado, moral ou
patrimonialmente, por um ato comissivo ou omissivo do lesante. Trata-se de um tipo de dano indenizável
pela perda de uma oportunidade de alcançar uma vantagem futura.

A perda da chance é um dano real indenizável se se puder calcular o grau de probabilidade de sua
concretização ou da cessação do prejuízo. Se assim é, o dano deve ser apreciado em juízo, segundo o maior
ou menor grau de probabilidade de converter-se em certeza. A chance, ou oportunidade, seria indenizável
por implicar perda de uma expectativa ou probabilidade. A perda de uma oportunidade é um dano cuja
avaliação é difícil, por não ser possível a condução da vítima ao statu quo ante, pois não mais terá a chance
perdida. O lesado deve ser indenizado pelo equivalente daquela oportunidade; logo o prejuízo terá um valor
que variará conforme maior ou menor probabilidade de a chance perdida se concretizar. Como exemplos
de perda de chance poder-se-ão apontar: o ato culposo de um advogado que não apresenta, sem motivo
justiçável recurso cabível, retirando de seu constituinte a oportunidade de ver sua pretensão examinada em
instância superior, que poderia dar-lhe ganho de causa; candidato a concurso público que, por um acidente
de trânsito, se vê impedido de comparecer na data marcada para o exame; associado de sindicato que

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 181-191, ago. 2020.


188 Maria Helena Diniz

perde a chance de ver sua pretensão apreciada pela justiça trabalhista, porque advogado indicado pelo
sindicato ajuizou a demanda depois de transcorrido o prazo prescricional. Pelo enunciado n. 444 da V
jornada de Direito Civil: “A responsabilidade civil pela perda de chance não se limita à categoria de danos
extrapatrimoniais, pois conforme as circunstâncias do caso concreto, a chance perdida pode apresentar
também a natureza jurídica de dano patrimonial. A chance deve ser séria e real, não cando adstrita a
percentuais apriorísticos”.

Na verdade, em regra, a perda da chance, de auferir vantagem ou evitar evento desfavorável constitui
dano moral em razão da oportunidade perdida.

A perda da chance, oriunda de lesão extrapatrimonial, abarca o dano existencial, ou dano a um


projeto de vida, por ser uma lesão à existência e à dignidade da pessoa, decorrente da violação de um dos
direitos fundamentais ou direitos da personalidade, que provoca frustração, ou melhor, modi cação nas
atividades cotidianas por ela exercidas na consecução de um plano de vida pessoal, pouco importando a
repercussão econômica, dando azo a um ressarcimento para que haja proteção à personalidade, por exemplo:
(a) paciente, portador de pneumonia dupla, com febre alta, liberado prematuramente por médico que o
orienta a fazer uso de antipirético, agravando sua saúde, retardando seu ingresso no hospital e provocando
sua morte, fazendo-o perder a chance razoável de sobreviver; (b) grávida que esconde sua gravidez e o
posterior nascimento da criança de pai, frustrando a convivência paterno- lial; (c) senhora, que costumava
viajar com amigas, é atropelada e ca obrigada a usar cadeira de rodas, sofre dano existencial, por haver
uma alteração em seu hábitos e deterioração em sua qualidade de vida, por perder convívio com seu grupo
de viagem e alegria de conhecer o mundo. Houve uma privação em sua liberdade ou em seu direito ou fazer
ou deixar de fazer o que aprouver ou de concretizar metas.

O dano à existência gera mudança brusca no dia a dia, modi cando a relação de vítima na esfera
familiar, amorosa, social, escolar, pro ssional etc. As normas que regem indenização por dano moral
podem ser aplicadas na ressarcibilidade do dano existencial (CF, artigos 1º III, 5º, V e X; CC, artigos 12,
186, 927, 948, súmula 37 do STJ; súmula 491 do STF). Trata-se da perda do gozo ou qualidade de vida, que
abrange frustração de projetos, desejos, inclinações, chance etc., impondo à vítima uma reprogramação e
a um relacionar-se de forma diferente no contexto sociocultural ou no mundo que a circunda, visto que
sofreu lesão no seu direito de autodeterminação ou de moldar sua vida e seu destino.

A perda da chance, que cause dano existencial, deverá ser quanti cada, considerando-se: (a) a
situação do lesado se a oportunidade invocada como perdida tivesse se realizado; (b) a chances em si
mesma, a ser avaliada em função do interesse prejudicado, do grau de probabilidade de sua produção e do
caráter reversível ou irreversível do prejuízo que provoque sua frustração; (c) o montante indenizatório
que adviria da realização de chance. Como se pode ver, o lesado não receberia a totalidade da vantagem
esperada, mas uma porcentagem proporcional à probabilidade de sua concretização23.

23
ARAUJO, Vaneska Donato. A perda de uma chance. In TARTUCE, Flávio; CASTILHO, Ricardo (Coord.). Direito civil,
direito patrimonial e direito existencial. São Paulo: Método, 2006. p. 439-470. NORONHA, Fernando. Direito das obrigações.
São Paulo: Saraiva, v. 1, 2003. p. 665. SANTOS, Antônio Jeová. Dano moral indenizável. São Paulo: RT, 2003. p. 107-108.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 34 ed. São Paulo: Saraiva, v. 7, 2020. p. 87-90.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 181-191, ago. 2020.


Proteção jurídica da existencialidade 189

Renascimento do dano existencial como proteção da dignidade da pessoa humana

Não se pode acatar, como vimos, a ideia de que apenas o dano material ou imaterial seja protegido
juridicamente. Qualquer dano injusto sofrido pelo ser humano deve ser reparado (CC, artigos 12, 186, 927).

Pela CF há obrigatoriedade de tutelar a pessoa humana, pois consagra os direitos fundamentais e os


da personalidade; para que tenha uma existência digna e protegida de qualquer ofensa.

A existência é “o modo de ser do homem no mundo”, e a dignidade é o núcleo da existência humana24. A


dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) se concretiza com o respeito dos direitos fundamentais, ou seja, da
sua proteção em face do Estado, e dos direitos da personalidade, tutelados em suas relações entre particulares.

Deve haver, portanto, proteção jurídica, suscetível de reparação, contra quaisquer abusos praticados
pelo homem e pelo Estado, contra o patrimônio, o bem-estar da pessoa ou a sua existência.

Todos têm direito à existência digna, de buscar paz de espírito e lazer, logo, o dano existencial deve
ser reparado.

O respeito à dignidade da pessoa humana é o cerne de todo ordenamento jurídico. Deveras, a


pessoa humana a sua dignidade constituem fundamento e m da sociedade e do Estado, logo não se pode
admitir qualquer conduta que retire o direito a uma existência ou vida digna25. E a CF artigos 1º, III, 5º, V e
X e o CC artigos 12, 186, 927 e 949. Admitem reparação de dano moral e patrimonial e, consequentemente,
do dano existencial.

A responsabilidade civil por dano existencial é a consagração da tutela do respeito da dignidade da


pessoa humana.

Conclusão

À guisa de conclusão poder-se-á dizer que:


(a) o dano é um dos requisitos para que haja responsabilidade civil.

(b) o dano existencial pode ser considerado apesar de ser um desdobramento do dano moral ou patrimonial,
como uma categoria autônoma.

(c) o dano existencial constitui uma lesão a direito fundamental ou a direito de personalidade, que impeça o
exercício de qualquer atividade humana ou frustre projeto de vida, levando a vítima a alterar seu ritmo de vida.

(d) a perda de chance, decorrente de dano extrapatrimonial, abarca o dano existencial.

(e) dano existencial deve ser indenizado, pois o lesado tem direito à vida digna.

24
ALMEIDA NETO, Amaro de. Dano existencial: a tutela da dignidade da pessoa humana. Revista Síntese – Direito Civil e
Processual Civil, São Paulo, v. 12, n. 80, p. 09-36, nov./dez. 2012. p. 15.
25
GARCIA, Emerson. Dignidade da pessoa humana: referencial metodológico e regime jurídico e regime jurídico. De jure,
Belo Horizonte, n. 8, p. 137-163, jan./jul. 2007.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 181-191, ago. 2020.


190 Maria Helena Diniz

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Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 181-191, ago. 2020.


Critical considerations on Arti cial Intelligence liability:
e-personality propositions

Sthéfano Bruno Santos Divino


Universidade Federal de Lavras, Lavras, Minas Gerais, Brasil
http://orcid.org/0000-0002-9037-0405

Abstract: e present article intends to discuss the notion of liability


of acts practiced by arti cially intelligent entities. e rst topic is
the analysis and de nition of the term arti cial intelligence, while the
second is the subject of discussion and theoretical assumptions about the
lato sensu liability of such entities. In the end, it is shown that, although
such entities are endowed with a certain degree of autonomy, subjective
criteria for personal accountability are ignored. us, personally
attributing the cause and liability of unlawful acts to them might render
scienti c-legal production unviable. As an alternative means, it is
proposed the incision of an objective liability for the eventual resolution
of disputes that may arise from this context. e present reasoning is
Canoas, v. 8, n. 2, 2020
anchored in the deductive and integrated research method, and in the
legal analysis and re ection.
Artigo
Keywords: Arti cial Intelligence; New Technologies; E-personality;
Recebido: 04.04.2019 Liability.
Aprovado: 28.05.2019
Publicado: 01.07.2020 Considerações críticas sobre responsabilidade de
DOI http://dx.doi.org/10.18316/REDES.v8i2.5614 Inteligência Arti cial: inferências à e-personality

Resumo: O presente artigo objetiva discutir a noção de responsabilidade


pelos atos praticados por entidades inteligentes arti cialmente. Incumbe
ao primeiro tópico a análise e de nição do termo inteligência arti cial,
enquanto o segundo pretende discutir e teorizar as diretrizes da
responsabilidade em sentido amplo dessas entidades. Ao nal, propõe-
se que, apesar de tais entidades possuírem certo grau de autonomia,
inexiste a presença de subjetividade em seus desígnios. Portanto, atribuir
a causa e responsabilidade pessoalmente aos atos ilícitos cometidos por
uma IA pode inviabilizar a produção cientí ca-jurídica e legal. Como
meio alternativo, propõe-se a incisão de uma responsabilidade objetiva
para eventual resolução dos litígios que possam surgir a partir deste
contexto. Ancora-se o presente raciocínio nos métodos de pesquisa
dedutivo e integrado, bem como na hermenêutica legislativa.
Palavras-chave: Inteligência Arti cial; Novas Tecnologias;
E-personality; Responsabilidade.
194 Sthéfano Bruno Santos Divino

Initial designs

e modern feeling by the technological nature that emerges in the twentieth century presupposes
the triumph of new resonant identities in the contemporary scenario. e primary task is entirely new: how
to include or accept these factual situations to incorporate them into the legal system in a way that helps us
and helps us to seek discernment for a complete rationality.

Since Descartes, the body-mind relationship has acquired new intersections. A substantial dual
posture was objected to inferring new concepts from physical and psychological reality. With the structuring
and social orientation in purely market terms, one must evaluate and reconsider some positions hitherto
worked by language as dogmas.

From this perspective, in the early 1950s we had an important writing in the eld of philosophy
of mind that served as the design for one of the greatest events we have at one and the same time: Alan
Turing’s seminal paper Computing Machinery and Intelligence published by Mind, one of the greatest
existing philosophical vehicles. Turing’s main observation was the proposition that machines, if constituted
in certain aspects, can think like humans. From this point on, another important event occurred both in
the technological scenario and in the legal scenario. John McCarthy (2007, p. 2-15), based on Turing’s
paper, in 1956 at the Darthmouth conference, coined the notion and concept of Arti cial Intelligence (AI).
At that time, the novelty was already surprising and only visible in the eld of literary ction, especially
in the early 1950s, with Isaac Asimov (1976), creator of I, Robot. Since then, the concept and concept of
Arti cial Intelligence has been developed and worked on constantly, despite its disappearance in the 1980s,
due to the lack of interest of the researchers. However, in the contemporary scenario, the presence of these
entities is noticeable and presents challenges for legal science.

On the one hand, we have the classic institutes of liability, covering both civil and criminal aspects.
On the other, we have the right struggle to incorporate new technologies and adapt them to these institutes.
But is this the right position? Does the new suit the old? Would not law be better suited to new technologies?
is continuous erosion of questions modi es and bring a perspective of coexistence between two sciences
so different in their regulatory character. But the con icting form does not exempt us from the analysis of
the disputes brought by increasingly sophisticated electronic beams. And this is currently visible.

e performance of intelligent beings arti cially covers a range of legal relationships, we bring some
examples. In the intellectual area, we discuss about the authorship of the works produced by an IA. ere
are two patent cases: e Next Rembrandt and e Obvious Group Case. e rst took place on April 5,
2016, when a group of Dutch museums and research institutions, in partnership with Microso, brought
up a painting named by them as e Next Rembrandt. Rembrandt Harmenszoon van Rijn, a late and
renowned painter, le several works, but this is not one of them, on the contrary, it is the result of the
artistic work produced by an AI.

e intelligent entity arti cially responsible for the elaboration of the work used two methods
well known in computer science: machine learning, described by such scholars as the ability to acquire

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 193-213, ago. 2020.


Critical considerations on Arti cial Intelligence liability: e-personality propositions 195

and accumulate own experiences through the repetition and repetition of tasks through an algorithm
(GOLDBERH; HOLLAND, 1988, p. 95-99); and deep learning, described as a method analogous to
human brain functioning, in view of contextualizing the situations that were put to it and transcending
them short of its initially stipulated program (ČERKA, GRIGIENĖ; SIRBIKYTĖ, 2015, p. 376-389) .
Initially, arti cial intelligence examined Rembrandt’s entire work and work, pixel-by-pixel, through 3D
scanned materials and high-resolution les. Hence, AI was able to fragment the author’s entire work into
objective statistical data. In approximately 500 hours, all features, geometric analysis, composition and
painting materials, it was possible to accurately replicate depth and texture, shadows and light, contours
and dimensions, to create e Next Rembrandt. So far there are no legal claims about copyright claim,
but they may eventually arise.

e second patent case involved the Obvious group, consisting of three French students, Hugo
Caselles-Dupré, Pierre Fautrel and Gauthier Vernier, with the aim of expanding and democratizing Arti cial
Intelligence through art. e group used an open source code written by the young Robbie Barrat, 19, who
publishes his works on GitHub, to produce an algorithm capable of producing artistic pictures equivalent
to e Next Rembrandt. One of the works made by the IA belonging to the group Obvious, called “Edmond
de Belamy”, was sold for $ 432,500. e problem is that those responsible for its elaboration did not give
the due credits to Barrat, the programmer and initial developer of the code. e group does not deny the
appropriation and use of Barrat’s designs, however, until shortly before the sale was made, they quieted
and did not divulge this fact. Barrat dissatis ed with what happened said in his social network “I had no
idea what you were doing with it -” democratized “sounds like you were doing some open source project.
Conveniently cutting out the part where I ask you to credit a few weeks later aer I see you posting the
images for the rst time for sale “(BARRAT, 2018). e Obvious group was pressured and felt compelled to
give credit to Barrat, since the computer community was designating him as a thief1.
We believe that the legal framework is not ready yet and that the technology is not advanced enough to grant
the authorship of an artwork to a virtual person. An AI doesn’t have an intention and is far from having one, as
opposed to what we tend to see in science- ction. We believe that the authorship should go to the entity holding
the artistic approach (OBVIOUS, 2018).

Another patent case that we can highlight is the issue of civil liability and criminal liability of
arti cially intelligent entities. In 1950, Asimov drew up 3 laws for robotics2 which, if followed, would tend
to regulate all human-machine relations in an objective and rigid way. Under the glimpses of the complex
and endless possibilities of human interactions (also with machines), Asimov’s laws are problematic. (1)
What would happen if a person ordered a robot to hurt a person for their good? (2) If the robot is in the
police scope and the superior responsible for the operation determines the arrest of a subject and he resists,

1
https://twitter.com/DrBeef_/status/1055360024548012033
2
1 – A robot may not injure a human being, or, through inaction, allow a human being to come to harm. 2 – A robot must obey
the orders given it by human beings except where such orders would con ict with the First Law. 3 – a robot must protect its own
existence as long as such protection does not con ict with the First or Second Laws (ASIMOV, 1976, p. 6)

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 193-213, ago. 2020.


196 Sthéfano Bruno Santos Divino

how should he proceed without breaching the rst law? (3) What would happen to the surgical-medical
robot that has a request from the patient to pause its operation and then an order from the doctor in charge
to proceed with the procedure because it is bene cial to the patient, should you fail the order? It should be
noted that the above-mentioned laws referred only to robots.

How does this really apply? We have a patent case known as Robot Sophia. On October 25, 2017,
Arti cial Intelligence created by David Hanson, was the rst robot to acquire citizenship, becoming citizen
of Saudi Arabia (STONE, 2017). In addition, Sophia is also able to simulate human behaviors such as sense
of humor and feelings. His discursive capacity also impresses. Sophia delivered a brief speech at the UN
on humanitarian issues such as the lack of Internet access and the lack of electricity in much of the world
(UNITED NATIONS, 2017).

Now it is asked: who would be responsible if Sophia committed a civil or criminal wrongdoing?
Who would respond for the damage done? Could Sophia personally be designated as an offender and
responsible for such acts? e most advanced dogmatic codes have no legal solution to such questions.
We need to seek some answers in comparative studies in philosophy, especially in the mental area. is
brief descriptive scenario is capable of demonstrating the impossibility of exhaustion of the main factual
relations with legal re exes in view of the in nite discipline that technology tends to relieve us and to bring
in an experimental and de nitive character.

us, the article intends to discuss, albeit in initial considerations, the responsibility of the arti cial
entities arti cially. e participation of these inferences may be valuable for future con icts to come. In no
way do we intend to impose the discursive criterion. Even because this would be a paradox. It is intended
to open doors to an indispensable and immature debate around the world, but which reveals distortions in
the formative process of legal science itself and in the classic institutes of this system.

us, the rst topic deals with a conceptual delimitation of the term arti cial intelligence. e
second deals with the essential elements for the consideration of the broad liability of these entities, as
well as the indispensable propositions for the development of the personality and personality of these
virtual communities together with the pre-existing social and juridical formations. Just as each of us is in a
condition to nd a place in the virtual to satisfy our own pretensions, such entities can, to a certain extent,
strengthen the factual and juridical sense of a social composition based on the cooperation between man-
machine and, perhaps, to create the necessary conditions for the restructuring of modern identity.

In the end, it is concluded that in view of the extreme extension of the area covered by AI’s
participation and the theoretical discussions and the complex experiences of recent years, the classic
institutes of Law, especially the notion of liability, need to be updated to the factual de nitions that embody
our life. e relationship between the changes determined by information technologies and the changes
in their concept require a form and possible reference to the necessary application and speci c legal
protection of the personal and instrumental sphere of those who are inserted in them. For that, deductive
methodological reasoning and integrated research are adopted.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 193-213, ago. 2020.


Critical considerations on Arti cial Intelligence liability: e-personality propositions 197

e de nition of Arti cial Intelligence: what is it?

e term Arti cial Intelligence, as said earlier, was coined by John McCarthy in 1956 at the
Darthmouth College Arti cial Intelligence Conference: the next y years (MOOR, 2006, p. 87-91).
McCarthy (2007, p. 2) design an AI as:
It is the science and engineering of making intelligent machines, especially intelligent computer programs. It is
related to the similar task of using computers to understand human intelligence, but AI does not have to con ne
itself to methods that are biologically observable.

Although McCarthy does not specify in detail, he leaves some conceptual gaps. What is intelligence,
for the author? McCarthy’s (2007, p. 2-3) concept of intelligence is tied to the notion of technology,
describing it as the “computational part of the ability to achieve goals in the world.” McCarthy assumes the
impossibility of a conceptual and dogmatic construction of intelligence short of his ontological relation
and equivalent to the human mind, but according to his propositions anything could be an entity endowed
with intelligence, even machines as simple as thermostats, for the author, have beliefs. “- John Searle (2017,
p. 34) questioned him,” What beliefs does your thermostat have? “McCarthy replied,” ermostat has three
beliefs – it’s too hot here, it’s too cold here and it’s right here.

McCarthy’s inspiration for formulating this concept derives from the theoretical guidelines of
Turing and his seminal essay. However, the claims of the mathematical scientist and father of arti cial
intelligence seem at least confusing. ere is no theoretical and philosophical precision in his propositions.
is is how there are two philosophical strands intended to explain the ontology of an arti cially intelligent
entity, both grounded in philosophical specters in the mind. e rst is called Strong AI, postulating
the existence of reproduction of mental phenomena in machines in the same way as mental operations
occurring in human brains. e second, described as Weak AI, or cautious, proposes only the simulation
of the intentional phenomena and the causal power of the human brain in arti cially intelligent beings.
e difference between the two lies in the factual and conceptual scope. While the former advocates the
possibility of reproduction, which consists of the production of mental content ontologically identical to
the brain contents, the latter advocates the simulation as something abstract and unnatural, linking literally
to the arti cial term. Here, the computer acts only as an instrument to mediate the attitudes expressed in
the facticity between the mental content, the functions of the mind and the phatic world. In the rst case
the computer is the mind itself.

If McCarthy’s concept is veri ed, it is impossible to t in any of these philosophical directives. For
the author, since anything can be endowed with intelligence and the philosophical strands necessarily
compare the intelligence of machines with cerebral mental phenomena, the notion of Strong IA or Weak
IA in McCarthy becomes impaired and unintelligible.

e development and dissemination of AI as a technological innovation also affected the legal sector.
Both the strong and weak conceptions of these beings have their followers. Hallevy, Yanisky-Ravid, and
Velez-Hernandez designate characteristics and linking elements to the notion of identity of an AI. For the
rst author Hallevy (2010, p. 6) are ve elements that designate what is an intelligent entity arti cially: (1)

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198 Sthéfano Bruno Santos Divino

communication ability; (2) internal knowledge (of itself); (3) external knowledge (about the world); (4) goal
driven behavior and (5) creativity. Shlomit Yanisky-Ravid and Luis Velez-Hernandez (2018, p. 7) transcend
Hallevy’s conceptual optics and list ten necessary and indispensable attributes for the identi cation and
characterization of an arti cially intelligent entity: (1) innovation; (2) autonomy3; (3) unpredictable; (4)
independence; (5) rationality; (6) evolving and capable of learning ability; (7) efficiency; (8) accuracy; (9)
goal orientated and (10) free will ability to make choices.

Although the number of elements inserted to identify and characterize an AI vary from author to
author, apparently none of these een items seems to take into account the ontology of AI itself. ey are
elements related to the observer himself. Behavioral and behavioral descriptions insufficient to designate
the very nature of the thing. A square is a square because it has four sides. However, not everything
that has four sides is a square. ese characteristics can have consequences and consequences for the
legal considerations that may arise later. Its ontology, for us, is from a computer program. An arti cial
intelligence is nothing more than a complex computer program based on algorithms. eir behavioral
skills are acquired through objective standards made by their programmers through deep learning and
machine learning. is, however, does not change its ontology. An arti cially intelligent entity can simulate
digestion, but it cannot be a stomach. In the same way, such a thing can simulate photosynthesis, but it can
never be a plant. is, then, is not to be confused with reproduction. at is why AI’s weak notion may be
the most acceptable today.

Other jurists want to differentiate the AI from Robot concept. Calo, Froomkin and Kerr (2016,
p. 1) postulate that robots are composed of “(1) some sort of sensor or input mechanism, without which
there can be no stimulus to react to; (2) some controlling algorithm or other system that will govern the
responses to the sensed data, and (3) some ability to respond in a way that is at least noticeable by the
world outside the robot itself ”. Richards and Smart (2016, p. 11) elaborate their de nition of a robot with
substrates in a non-biological agent, treating it as an autonomous agent derived from a constructed system
capable of presenting physical and mental activity, but which is not alive in the strictly biological sense.

e main difference between these subjects (if so we can designate them) is that the robot acts as
a physical and intermediate receptacle between AI and the phatic world. Apparently, every AI can turn
out to be a robot, but not every robot can be considered an AI. In the rst case we can designate the robot
Sophia itself. In the second, we can demonstrate existing and operative AI programs that are executed
only in restricted computing environments, through soware and hardware in a certain computer, such as
the Uber automotive vehicles. us, even designating something as robot does not authorize us to confer
arti cial intelligence, since it depends on a complex algorithm elaborated by programmers to maintain
an interaction between the soware and the executing hardware of that AI to the robotic structure and its
interaction with the world.

3
“It means that, within certain limits, machines ought to be able to take “decisions” autonomously and independent of external
(e.g., remote) control on how to proceed with a given task should new conditions arise unexpectedly”. (NEELIE KROES, 2011,
p. 357).

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Critical considerations on Arti cial Intelligence liability: e-personality propositions 199

is conceptual divergence between robot and AI transcends the academic eld and enters
the legislative scenario as a novelty. e European Parliament’s resolution of 16 February 2017, with
recommendations to the Civil Law Commission on Robotics (2015/2103 (INL)) (EUROPEAN UNION,
2017), in its rst paragraph, prefers not to differentiate AI robots, treating them only the robots. European
legislation also characterizes these entities and they are endowed with: (1) acquisition of autonomy using
sensors and / or data exchange with their environment (interconnectivity) and the exchange and analysis
of these data; (2) self-learning ability with experience and interaction – resulting from machine and deep
learning methods; (3) a minimal physical medium – receptacle to interact with the world; (4) adapting
their behavior and actions to the environment – also a result of deep learning -; (5) and lack of life in the
biological sense of the term (EUROPEAN UNION, 2017).

We will consider enough and adopt the differentiation of Calo, Froomkin and Kerr (2016, p. 1),
since our focus is the responsibility of the intelligent beings arti cially, and not only of the robots. You need
soware running such a program to designate it as intelligent. In this way, the term arti cial intelligence
is designated and conceptualized as the present topic has its objective satis ed. It is now necessary to
understand the notion of liability prescribed by the classic institutes of law and to insert it in the technological
conception to verify its compatibility and, if necessary, postulate some guidelines.

e liability of arti cial intelligence entities: initial proposal for a future approach

e insertion of beings endowed with arti cial intelligence in society is reality. Examples such as
the Sophia robot are demonstrative of the numerous cases that are being programmed to be subsequently
increased day by day. But how can one act if one of these entities commits an unlawful civil or criminal act and
causes harm to others? Is there speci c legislation to regulate? Is it possible to hold them accountable for the
practice of such an offense? Are the classic institutes of civil liability and criminal liability sufficient for such
an approach? ese questions will be answered in this topic. And we will start with the criminal disposition.

e Criminal Liability

In order for a criminal agent to be criminally responsible for the practice of illicit crimes, criminal
psychology sets objective parameters for the imposition of such ownership. Two elements must necessarily
coexist. e rst is the external element or indeed, translated into the agent’s own criminal conduct. Such
an element is known as actus reus. e second element, however, is the internal or mental design, of a
subjective character, inferred by the knowledge or interaction vis-a-vis (in the face of) criminal. Here your
appointment is made as mens rea. As stated, such elements must coexist with each other. If one of them is
absent, the application of criminal responsibility becomes impossible (HALLEVY, 2010, p. 8).

Actus reus is responsible for the designation of actions or omissions. e participation of certain
external elements such as occur, as in the case of obtaining speci c results for certain conduct. On the
contrary, mens rea may possess innumerable levels of mental elements. For Hallevy the most advanced

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200 Sthéfano Bruno Santos Divino

is knowledge, which may accompany a prior intention or a speci c intention. In the lower brain levels,
there is what we understand as guilt stricto sensu, which includes neglect, recklessness and malpractice.
Hallevy’s criminal conception brings these two basic criteria for the necessary attribution of criminal
responsibility to a human being or any other type of entity, including legal entities. ere are other
detectable abilities in human action, but it is enough for the presence of actus reus and mens rea to hold
it criminally responsible. And it exempli es the author that a spider may be able to act but is unable to
formulate or designate the requirement required by the mens rea. In the absence of this, the sting of the
spider cannot be criminally held accountable. In the same sense, a parrot is able to repeat words it hears
or has been taught, but is unable to con gure the internal element of mens rea for the commission of
offenses (HALLEVY, 2010, p. 10).

ere are three theories on the “criminal liability of AI entities” subject. e rst is known as the
perpetration-by-another liability model. e second is designated as the natural-probable-consequence
liability model. Finally, the direct liability model. e three theories are independent of each other. However,
there may be situations that require a joint action between them to ensure effectiveness of criminal liability.

e rst model (the perpetration-by-another liability model) postulates that an AI has no human
attributes. Here AI is considered innocent. A machine is a machine, so it will never be human. However,
Hallevy points out that the capabilities of an AI cannot be ignored. In this model, such capabilities, however,
are not sufficient to generate indications of actus reus and mens rea. erefore, an AI, according to this
theoretical guideline, cannot be the author of an offense.

e most important locus and design in the perpetration-by-another liability model is the
visualization of an intermediary for the commission of the wrongful act. One is attributed liability of
AI, who does not have any mental capacity to a certain responsible person, guardian, curator or legal
representative judicially designated for the conduct coming from that entity. As we are approaching the
possible practices coming from an AI, who can we designate as perpetrator-via-another (the real criminal
agent)? Apparently, there may be two: the rst could be the programmer responsible for the elaboration
of the soware that gave rise to the AI; the second could be the end user who would control it. In the rst
case, the developer can build an algorithm and program an AI to commit criminal acts. In the second case,
the end user can designate and determine that an AI commits such an offense described in the penal code.
In any of these situations presented, according to this model, liability is attributed to the one who gave
the order or to the one who programmed the intelligent entity arti cially, since in this case it acts only as
an instrument capable of practicing crimes. erefore, for the perpetration-by-another liability model an
intelligent entity arti cially has no mental capacity or any other equivalent to human capabilities. So is our
conception and theoretical line adopted (HALLEVY, 2010, p. 10-12).

e second model, called the natural-probable-consequence liability model, tries to distinguish the
function for which the AI was initially programmed and what were the acts practiced later. It is necessary to
verify the different conduct and the one considered illegal, as well as the actions of the programmers who have
programmed it for activity X and, without their consent, AI practiced Y. A factual and quite discussed case

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Critical considerations on Arti cial Intelligence liability: e-personality propositions 201

can be brought: accidents involving vehicles of Uber (KINGSTON, 2018). e multinational has developed a
soware and a system to operate exclusively as passenger transport inside its vehicles considered autonomous.
However, in one such accident one person died. e intent of the company was not to kill someone; the AI
apparently did not intend to do that. us, in this model, as the intention and presence of the actus reus
and mens rea elements is veri ed, it is not possible to ascertain the possibility of criminal liability y for such
an offense and to attribute it to the intelligent entity arti cially. However, a person may be criminally liable
if the wrongful act is a natural and probable consequence of the originally-practiced (natural-probable-
consequence-liability) (HALLEVY, 2010, p. 15-17). e application of this model resembles the liability
attributed to the co-authorship of criminal offenses, even though the participation occurred indirectly, or the
one that induced or instigated someone to commit suicide or to help them do so.
Natural-probable-consequence liability seems to be legally suitable for situations in which an AI entity committed
an offense, while the programmer or user had no knowledge of it, had not intended it and had not participated
in it. e natural probable-consequence liability model requires the programmer or user to be in a mental state
of negligence, not more. Programmers or users are not required to know about any forthcoming commission
of an offense as a result of their activity, but are required to know that such an offense is a natural, probable
consequence of their actions (HALLEVY, 2010, p. 17).

In a sense, the natural-probable-consequence liability seems to be applicable in situations where an


AI committed a criminal offense without the knowledge and involvement of its programmer/user. In this
model, it is required that these people be acting in a mental state of neglect, not anymore. e participation
or knowledge of the perpetrators of any future commission of an offense as a result of their activity is
dispensable, but they are obliged to know that this offense is a natural and probable consequence of their
actions (HALLEVY, 2010, p. 17).

Although Hallevy only inserts negligence into the natural-probable-consequence liability model,
the complete inference of guilt stricto sensu seems to be more appropriate. e question is: why should
the programmer or the end user be held responsible for an arti cially intelligent entity that has acted
negligently and not responsible for those who have acted with imprudence or malpractice that resulted in
the practice of a criminal offense by such entity? It is necessary to analyze this questioning both in the cases
of action and omission of all those participants involved in that legal situation. in this way, programmers
and developers must foresee and necessarily have a probabilistic-statistical notion of the risks and possible
acts that an AI may have in relation to the commission of certain crimes, and may be held liable on the basis
of guilt stricto sensu, had not been so designated (HALLEVY, 2010, pp. 20-21).

e natural-probable-consequence liability presents a distinction from the previous model. ere


are two scenarios. e rst occurs when an AI acts exclusively innocently, without the knowledge that its
conduct is criminally punishable. Under such circumstances the liability of the actions of this entity is
identical to the perpetration-by-another liability model. However, the second scenario happens when an
AI does not act innocently. Here, in addition to the liability of the programmer/developer subsidized in the
natural-probable-consequence liability, the AI must also be criminally liable for its attitudes (HALLEVY,
2010, p. 20-21).

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202 Sthéfano Bruno Santos Divino

Finally, the third and nal model, the Direct Liability Model assumes that an AI is totally independent
of its programmer or the end user who uses it; it focuses on the intelligent entity itself arti cially. As the
requirement to characterize a criminal offense is only the detection of actus reus and mens rea, no matter
what other internal and external elements, for Hallevy nothing prevents these elements from being lled
by an AI.

In Hallevy’s guidelines, an AI algorithm may present numerous features and quali cations superior
to those of an ordinary human being. However, such characteristics and quali cations are dispensable from
consideration of criminal liability. When a person, whether physical or legal, meets the requirements of the
external element and the internal element, there is the con guration of criminal liability. us, if an IA is
able to meet and satisfy these requirements, which the author advocates compliance by such entities, there
are no obstacles that prevent the characterization of liability to these entities (HALLEVY, 2010, p. 22-23).

e presence of the actus reus in a homicide committed by the robot Sophia is visibly veri able.
Just an analysis of the penal norm, which will describe the typical fact, as well as the event committed by
AI. is facility is not present when analyzing the existence of mens rea. Because it is an internal element,
AI entities at rst cannot create it. Although this is a philosophical consideration dealt with later, Hallevy
assumes the existence of different mental elements according to technological evolution. e greater the
evolution, the greater the cognitive capacity of AI.

Hallevy (2010, p. 24) adopts the concept of knowledge as the reception and sensory understanding
of factual data. With the technology of machine learning and deep learning, AI, according to the author, is
very well equipped for this reception. From sensory sensing receptors, voice simulators, physical contact,
touch, etc., are present in arti cially intelligent entities, including the Sophia robot. It is through these
receivers that data will be transmitted to the central processing units that will analyze the data through
processes. For the author, these processes are not so different. In humans it is given through the ve senses.
Already in the cognitive scenario of an AI are advanced algorithms executed by soware in a hardware that
tend to simulate human brain processes.

In one aspect, trying to appear more realistic, abstracting from ction, Hallevy infers that only
certain processes can be simulated by AI. Strong feelings like love and hate are impassive of automated
reproduction. However, for the author this is not due to the ontology of the mind, but because there is a
technological limitation. And the same can be applied to criminal liability. e existence of knowledge of
an AI on a criminal type already guarantees liability for its illicit acts. is theoretical guideline, however,
does not exclude the rst, as initially addressed. e creator of the AI or the user who used it as a tool may
be taxed as co-perpetrators of the wrongdoing.
When an AI entity establishes all elements of a speci c offense, both external and internal, there is no reason
to prevent imposition of criminal liability upon it for that offense. e criminal liability of an AI entity does
not replace the criminal liability of the programmers or the users, if criminal liability is imposed on the
programmers and/or users by any other legal path. Criminal liability is not to be divided, but rather, added. e
criminal liability of the AI entity is imposed in addition to the criminal liability of the human programmer or
user (HALLEVY, 2010, p. 29).

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Critical considerations on Arti cial Intelligence liability: e-personality propositions 203

It is assumed that the Direct Liability Model can be applied without the presence of guilty sctricto
sensu, actus reus and mens rea of programmers or of the person who used AI for illicit. Here, there is
protection for humans. Only AI would be criminally responsible for the illicit acts arising from its autonomy.
It is assumed that the mens rea will be lled through the computational cognition of machine learning and
deep learning. Hallevy even postulates something surprising: starting from the premise that AI are formed
by objective data and experiences, it may act in self-defense to defend its existence4.

e Civil Liability

Alongside the criminal guidelines, some considerations in the eld of civil liability must be woven.
e Brazilian Civil Code brings the institute of civil liability expressed in two norms. e rst is that
inserted in art. 186, assigning liability to the person who commits an unlawful act by voluntary act or
omission, negligence or recklessness, violating law and causing harm to others, even if of an intrinsically
moral character. In this prism is the subjective liability. e purposes for veri cation of its occurrence are
necessarily: unlawful act through an action, fault, damage and causal nexus. e second form of liability is
the objective modality described in art. 927, sole paragraph. Unlike its subjective modality, a person who
damages another by virtue of an unlawful act shall repair it irrespective of fault, in cases strictly designated
by law, or when the activity normally developed by the person causing the harm implies, by its nature, risk
for the rights of others.

e main consideration that should be given and what is relevant for the present theme is girdled
in the analysis of the element of fault. Now, imagine that the robot Sophia was in a dialogue with Jose and
during that conversation it inferred physical and verbal aggressions to Jose, causing to him physical and moral
damages. How to verify the presence of guilt in Sophia’s conduct to designate objective or subjective liability?

First of all, the con guration of subjective liability for action or omission stems from a voluntary
conduct necessarily derived from a prior intentionality expressed in a culpable conduct. To exist the very
conception of guilt the agent must have intentionality. One cannot verify the guilt in agents that do not have
intentional phenomena. In this way, the conscientious being must be inserted into a particular background
to understand the purposes of his action or omission to be legally held accountable. A classic example of
this is the one prescribed in art. 932, I, of the Civil Code, which gives parents strict liability for the wrongful
acts committed by their children. us, it designates the code by virtue of the relative or absolute incapacity
of these agents, for it is incomplete the notion of discernment and mental phenomena to understand the

4
Not only positive factual and mental elements might be attributed to AI entities. All relevant negative fault elements are
attributable to AI entities. Most of these elements are expressed by the general defenses in criminal law; e.g., selfdefense,
necessity, duress, intoxication, etc. For some of these defenses (justi cations), there is no material difference between humans
and AI entities, since they relate to a speci c situation (in rem), regardless of the identity of the offender. For example, an AI
entity serving under the local police force is given an order to arrest a person illegally. If the order is not manifestly illegal, the
executer of the order is not criminally liable. In that case, there is no difference whether the executer is human or an AI entity.
(HALEVY, 2010, p. 30).

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 193-213, ago. 2020.


204 Sthéfano Bruno Santos Divino

re exes arising from that conduct and, therefore, cannot be held responsible. erefore, to provide subjective
liability and assign it to the agent, the agent must have intentionality and understand the background that
is inserted. As machines, as de ned, cannot think and do not possess intentional phenomena, they do not
contain the semantic meaning of the notion of guilt. e damage done by Robot Sophia may have been
nothing more than a failure of previous programming by its developers/programmers, or even intentional
act of these, but never of the Sophia entity. It is for this reason that the classic institute of civil liability, in its
subjective modality, is incapable of being effective if applied in the actions or omissions of acts coming from
Arti cial Intelligence, since it is necessary the evaluation of guilt, content that does not exist in these entities.

On the contrary, the notion of objective civil liability, by dispensing with the analysis of guilt, can
adequately frame the unlawful acts originating from Arti cial Intelligence. is positioning is followed by
European regulations, when postulating that robots cannot be held responsible for actions or omissions that
cause damage to third parties. A human agent will be the speci c responsible, such as the manufacturer, the
operator, the owner or user, as well as the agent that could have predicted and avoided harmful behavior
of the robot. is positioning is equated with liability for the product contained in arts. 12 to 17 of the
Brazilian CDC, since these last subjects could be considered strictly responsible for the actions or omissions
of a robot (EUROPEAN UNION, 2017).

ČERKA et al. refutes the possibility of assigning liability for the fact of the product of an AI to
its agent programmer/developer. According to the authors, if AI has a system of self-learning such as
machine or deep learning, which improves with experience and improves AI decisions, it is difficult to
verify and prove where there was the mistake or the human error in its programming. e authors’ solution
is based on a theory attached to the theory of risk: the deep pocket theory. According to this theory, if a
person is involved in dangerous activities that are pro table and useful to society, one must compensate the
damages caused to the society by the pro t obtained. It is assumed that all those involved in the creation,
programming, distribution, execution or any contact with the AI that will provide the service to society
is responsible for the damages of their conduits. erefore, you must ensure your dangerous activities by
requiring compulsory insurance of your civil liability.
Also in some cases it would be difficult to apply the product liability case, because AI is a self-learning system
that learns from its experience and can take autonomous decisions. us, for the plaintiff it would be difficult to
prove an AI product defect and especially that the defect existed when AI le its manufacturer’s or developer’s
hands. It is hard to believe that it is possible to draw the line between damages resulting from the AI will, i.e.
derived from self-decision, and damages resulting from product defect; unless we would equate the independent
decision-making (which is a distinctive AI feature) with a defect. [...]
[...] Liability without fault is based on the theory of risk. e theory is based on the fact that a person carries
out activities that he or she cannot fully control; therefore, a requirement to comply with the safety regulations
would not be reasonable, because even if the person acted safely, the actual risk of damage would still remain.
In this case, it would be useful to employ the “deep pocket” theory which is common in the US. e “deep
pocket” theory is that a person engaged in dangerous activities that are pro table and useful to society should
compensate for damage caused to the society from the pro t gained. Whether the producer or programmer, the
person with a “deep pocket” must guarantee his hazardous activities through the requirement of a compulsory
insurance of his civil liability (ČERKA et al, 2015, p. 386).

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It agrees in part with the authors. Regarding the impossibility of setting liability for the fact of the
product, the authors bring the classic notion of guilt to the discussion. In Brazil, as the rule in the CDC
is the objective liability it is not necessary to verify if there was a human error or misconception in the
programming and the development of the arti cial entity, since the notion of guilt is incompatible with AI.
As much as the machine has an apprenticeship, it will be simulated. e mind is a biological product. e AI
will acquire factual data and transform it into objective syntactic data. ere is no behavioral reproduction,
but only simulation. If an AI acquires the capacity to cook, for her, this is just a product because, apparently,
she does not understand the semantic content of taste, hunger and satisfaction in eating what was done.
erefore, any damage arising from his conduct, falls within the possibility of arts. 12 to 25 of the CDC, in
their respective modalities and rules.

Regarding the deep pocket theory, the authors present a plausible solution. e creation of a
guarantee fund to compensate for any damage done by the IA is useful. However, this is apparently only
possible in cases of strict liability, in which it waives the verdict of guilt and it is possible to attribute joint
liability to any entity in the consumer chain. And in cases of subjective liability, when there is no relation
of consumption and the arti cial entity commits some damage, as in the hypothesis of robot Sophia? How
to apply deep pocket theory? It is prized by the creation of an electronic personality. Some considerations
must be made.

First, there is no confusion between the legal concept and the philosophical concept of person. e
philosophical concept of person is set apart. It develops in another theoretical and ontological spectrum, because
it refers exclusively to what we understand per person, in its natural sense – as being. Apparently, the notion of
person as a linguistic animal in Taylor (2013) is adequate, but this complex argumentative development is not
pertinent to the present study. e legal concept of a person, on the other hand, translates into personality as “a
susceptibility to being the holder of legal rights and obligations” (DE CUPIS, 2008, p. 19).

Such confusion does not occur precisely because there is a legal difference between entities natural
person and legal entity, each with its attributions and peculiarities.

Moreover, in this line, the notion of Arti cial Intelligence does not seem to t any of the two
legal classi cations of person, whether natural or juridical. While the former refers to human beings,
endowed with consciousness and intentionality, the second refers to abstract entities, with their own
description and historical composition. e insertion of AI into any of these categories would make
this entity strange and dislocated, without a factual, legal and historical context. As AI is endowed with
uniqueness in relation to preexisting legal categories, the regulation and insertion of an adequately
adequate is viable: the electronic personality.

e electronic personality should be attributed exclusively to the intelligent beings arti cially. It
results in the creation of a legal regulation to suppress the veri cation of guilt in the occurrence of illegal
acts that falls short of the legal hypotheses anticipated. at is, the electronic personality is a hypothesis to
be inserted in the legal role of objective responsibilities. Its particularity is that it should be accompanied by
a guarantee fund, as expressed in the deep pocket theory, to repair or compensate for the damage done to
206 Sthéfano Bruno Santos Divino

another. In turn, it will not exclude CDC’s possibilities of liability, as it will act in a complementary manner.
e electronic personality, in principle, will be applicable in legal hypotheses in which there is no relation
of consumption, since the CDC itself has rules to do so, setting it in arts. 12 to 25.

Another consideration concerns personality rights. ese are understood as “legal faculties whose
object are the various aspects of the subject’s own person, as well as their extensions and projections”
(FRANÇA, 1983, p. 37). It is not intelligible and feasible to carry out the extension of the rights of the
personality of the natural person and the legal person to the intelligent beings arti cially. e dogmatic
construction of the rights of the personality is strictly linked to the philosophical notion of the person;
person as being, and not mere legal description. Such a position is advocated by Perlingieri and Tepedino
when they object to the extension of the personal rights of the natural person to the legal entity. And their
arguments can also be used as coexisting with AI entities.
It is possible to remove the misconception about the extension of human rights to legal persons. (...) Hence a
dogmatic and unitary conception of subjectivity as a neutral fact. e value of the individual subject is, however,
different from that of the legal entity. (...) Industrial secrecy, bank secrecy, etc. may also be partly guaranteed
by law, but not on the basis of the general clause governing the protection of the human person. e attempt to
justify banking secrecy with the protection of privacy should be denied. It expresses an existential value (respect
for the privacy of the private life of the individual); an interest of the bank and / or the client (PERLINGIERI,
2002, p. 157-158)

Still in reference to the subject in question, the general clause contained in art. 52 of the Civil Code, according to
which “the protection of the rights of the personality applies to legal persons.” e legislator was well advised not
to grant the legal person rights informed by values inherent to the human person. e mechanism was limited
to allow the application, by loan, of the technique of personality protection, and only to the extent applicable,
to the protection of the legal entity. e latter, although endowed with the capacity to exercise rights, does not
contain the justi catory elements (axiological foundation) of the protection of the personality, conceived as a
legal good, the object of existential situations. is is how the text of art. 52 seems to recognize that the rights of
the personality constitute a category dedicated to the defense and promotion of the human person. So much so
that it does not assure to juridical persons the subjective rights of the personality, admitting, only, the extension
of the technique of the rights of the personality for the protection of the legal person. (...) Strictly speaking, the
fundamental logic of the rights of the personality is the protection of the dignity of the human person. Even so,
probably for practical convenience, the coder intended to extend them to legal entities, which can not mean that
the conception of personality rights is a neutral conceptual category, applicable indiscriminately to legal persons
and to human persons (TEPEDINO, 2004, p. 55-56).

e origin of the rights of the personality has an affinity with the ontology of the philosophical
concept of person, but not only. ere must be the subjective character, which is not in the arti cial entities
because they do not have minds and do not have intentionality. us, the creation of a personality for
Arti cial Intelligence is basically a response to the insufficiency of the factual and legal adequacy of these
entities in the veri cation and veri cation of subjective civil liability in legal relationships dispensed with
the consumerist character. Making it objective, with the creation of a guarantee fund on behalf of the IA,
according to the theory of the deep pocket, can bring greater security for those that relate to AI, because, in
case of moral or material injury, there is no need to verify agent or programmer/creator.

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Critical considerations on Arti cial Intelligence liability: e-personality propositions 207

A nal consideration concerns the possibility of the IA conducting legal business. As manifestation
of will is an indispensable element to the con guration and negotiation (PONTES DE MIRANDA, 2012),
arti cial entities cannot arti cially gure as agents to externalize this will, since they are absent from
intentionality. What may occur is a situation analogous to the existing business with a legal entity: in
setting up the e-personality of the AI, its developer, programmer or other persons strictly related to its
creation will automatically be considered representatives to carry out the business acts on its behalf, as well
as act in their interests when in court. It will be of this representative that the volitional negotiation will be
expressed, but never of the AI.

Philosophical considerations

And what is the philosophical justification for attributing personality to an intelligent entity
artificially? Hallevy’s arguments encourage enthusiasts and scholars of the area. The union between
fiction and reality is clearly present in the authoritative personality of the author. But we must analyze it
with caution. Under the philosophical approach, there is a deficiency in his work. First, the philosophical
concept of mind is not equivalent to the philosophical concept of knowledge. Secondly, as characteristic
of the mind we have subjectivity. Hallevy ignores this characteristic and defines it as something objective
in its nature. The definition and the distinctive features are fit for different goals. But he cannot answer the
questions: what causes a mind? Can a machine, as defined, think? Is it right to attribute Intelligence to an
inanimate being? The supposed propositions that will guarantee a greater scientific rigor come from the
analysis of two philosophical currents of the mind: the functionalism and biological naturalism.

So far, we have assumed the impossibility of holding artificial intelligence accountable for its
acts committed by virtue of its lack of intentionality. But how can we sustain this position? At first, the
philosophy of mind will give us some help, especially by confrontation between Turing’s computational
functionalism and Searle’s Biological Naturalism. The first chain, called functionalism, advocates a view
that mental states (events, properties, processes) are not identical to the brain states, nor are they dispositions
of behavior; mental states are, first and foremost, functional states of an organism (SCHWARTZ, 2017,
p. 182). Such functional states can be designated as that which produces or causes the behavior of an
organism under specific conditions. It defines itself by what it does and its relations with other mental
states. In short, it translates into a mental state capable of playing a causal role in the particular behavioral
organization of a being. In functionalist idealization, this state is a function that receives an input stimulus,
together with other mental states, generating a product called output, which depends on that input and on
that set. Mental state tends to take an input and the entire mental state of the organism is to generate a
product – and the products can be changes in the mental state of that organism. In this way, functionalism
presupposes mental states as genuine internal states of the organism, not just behavioral redescriptions and
dispositions for it, as advocated by the behaviorist chain (SCHWARTZ, 2017, p. 183-184).

In functionalism, according to Searle (2010, p. 345) mental states are identified by their functions
and not by the way in which these functions take place in the brain. Searle contests this current, claiming it

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208 Sthéfano Bruno Santos Divino

to be unverifiable and unintelligible, for “mental states in question are intrinsic5 and functions are always
relative to the observer” (SEARLE, 2010, p. 345). “There are no two types of mental phenomena, the
intrinsic ones and those related to an observer; there are, rather, attributions of mental predicates that do
not attribute a mental phenomenon intrinsic to the subject of attribution” (SEARLE, 2010, p 341). “The
assignment of a function to a system or an element of a system is always done in relation to an objective,
purpose or purpose, and functions are never just the causes; are causes within the context of teleology
(SEARLE, 2010, p. 345). In other words, since interiority is intrinsic to mental states, the functional states
do not possess it, because they are bound exclusively to the observer. Therefore, they cannot be elements
of mental states.

Putnam and Dennett gave a new feature to functionalism. They turned it into computational
functionalism, or Turing’s machine functionalism. With this incursion, a more robust and complete theory
of mind is presented, equating mental processes with computational processes6 (SEARLE, 2010, p. 347).
According to their mental state guidelines, “they are in fact functional states, but not of any kind. They are,
rather, logical states of a computer and therefore are intrinsic states, at least at the level of the computer
program’s description” (SEARLE, 2010, p. 347). Metaphorically, the mind can be equated to software
while the brain is hardware.

The veracity of the Turing functionalist chain can be realized through a test. First of all, you
need two rooms. Two rooms, is the first requirement. Each one will be occupied with different subjects:
a human in one and a computer in another. Human agents elaborate and ask questions. Such agents
interact with the two occupants of the rooms by asking them questions. Both the human agent and
the computer should talk and give a written response. If the human agents responsible for the contact
between the occupants of the room cannot distinguish which occupant is the human agent and which
occupant is the computational agent, it will pass the test. Turing’s assumption is that the computer will
be indistinguishable from a human agent if its input and output are functionally indistinguishable from
a normal person (SCHWARTZ, p. 67)

e Turing test has a trace of unintelligibility. Searle nds him and assumes the creation of the
Chinese room to make him stand out. e hypothetical situation is the following: a room with a human
agent inserted in it. is agent is locked in this environment, where there are several baskets with Chinese

5
“Intrinsics” simply means that states and events actually exist in the mind / brain of agents; the attribution of these states and
events must be understood literally, not as a force of expression nor as a synthesis of an assertion that describes a complex set of
events and relations occurring outside the agent. “ (Searle, 2010, pp. 122-123).
6
A Turing machine can be viewed as nothing more than a nite system of instructions to perform simple operations on strings
of symbols which constitute the “input”. e instructions are gathered into “machine states”, each of which is a nite sequence
of instructions, and a master instruction, or state-switching function, which prescribes which sequence of instructions is to
be followed given the input. Such a speci cation is obviously entirely neutral about how such operating and switching is to be
accomplished, and hence a particular Turing machine can be “realized” in very different ways: by a mechanical tape-reading
device, by simulation on a digital computer, or by “hand simulation”, where the operations are performed by a person or persons
following written instructions on “state” cards”. (DENNETT, 1981, p. 257).

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Critical considerations on Arti cial Intelligence liability: e-personality propositions 209

symbols. is agent does not understand any word in Chinese, does not even know what is written.
However, you are provided with a manual with rules for manipulating your native language to produce
Chinese symbols, with the aim of creating new words.

According to Searle, suppose that, aer a while, the subject is so effective and so good at following
the instructions to manipulate the Chinese symbols and the programmers are so good at writing the
programs that, if observed from the external point of view, from the point from someone outside the room
where the subject is locked, his answers to the questions initially asked are utterly indistinguishable from
those of native Chinese speakers. So, just by looking at the individual’s answers, no one can say that he does
not understand and does not speak a word in Chinese7.

For Searle the simple manipulation of symbols in the Chinese room is something purely formal
and syntactic. Syntactic, in this case, means automatic. It does not resemble the semantic mental character.
Nothing guarantees that the agent inside the room can speak Chinese. He only manipulates them according
to the rules described in the manual that was granted to him. As in the Turing test, computer responses
may or may not be similar to human responses depending on the degree of data entered into the machine.
Here, it works exclusively in the eld of syntax, not semantics. e difference between these elements lies
in the contextualization of meaning in a speci c background. According to Searle’s biological naturalism,
a digital computer, as de ned, can even understand the meaning and concept of pain; including, probably,
simulating it, such as photosynthesis; but he has no access to the content of pain and the content of
photosynthesis. A machine does not feel anger, does not learn Chinese, and does not know how to derive
the burden and semantic meaning of words short of its formal-syntactic programming. us, even if an
intelligent entity is arti cially developed and programmed using the computational cognitive methods of
deep learning and machine learning, it will only simulate situations for which it was initially constructed,
without understanding the real semantic meaning of its attitudes.

e ability of human programming and the malice of the individual in manipulating the symbols
obeying the rules does not make possible the learning of the Chinese by the simple manipulation and
obedience to the manual. From the point of view of an outside observer, by virtue of the completion of a
formal computer program, that person behaves exactly as if he understands Chinese, but he does not even
understand a single word. If the individual does not understand Chinese, no other computer can understand
it because no digital computer, due to the simple execution of a program, has something that we do not
have. From this we can deduce that computers do not have minds, are not intelligent and act exclusively in
the syntactic formal scope, manipulating objective data to insert itself in social communication.

7
“Suppose also that aer a while I get so good at following the instructions for manipulating the Chinese symbols and the
programmers get so good at writing the programs that from the external point of view that is, from the point of view of somebody
outside the room in which I am locked -- my answers to the questions are absolutely indistinguishable from those of native
Chinese speakers. Nobody just looking at my answers can tell that I don’t speak a word of Chinese”. (SEARLE, J 1980, p. 420)

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210 Sthéfano Bruno Santos Divino

In summary, Searle’s elementary propositions (2017, p. 51-52) are:

(1) brains cause minds – the mental processes that make up the mind are caused by processes that
occur within the brain.

(2) Syntax is not enough for semantics – here there is the articulation and distinction of what is
purely formal and what has content.

(3) computer programs are entirely de ned by their formal or syntactic structure.

(4) Minds have mental contents; speci cally, have semantic content.

Searle’s nal assumption is that no computer program is by itself enough to create a mind to an
electronic system. Because computer programs cannot be considered minds. e fact that there is similarity
between the mental brain causal functions and a soware or hardware is not enough to consider it. If Searle’s
assumptions are correct, Hallevy’s guidelines are unintelligible. It is assumed that what causes minds must
have causal powers equivalent to that of the human brain. erefore, the realization and execution of a
computational program in a constructed artifact endowed with mental states close to humans would not
suffice to attribute it as a mental subject. Substantial equivalence to human brain powers is required.

ere are ontological traits that distinguish and characterize the mind. Subjectivity is one of
them. e theoretical development involved in this theme needs to take into consideration how the
conception of consciousness needs to explain a set of processes that can eventually lead a person to
a subjective state of sensitivity. ere is also unity of mind. In a sense, experiences are not sparse in a
person’s head. ey unite in a conscious place. Furthermore, there must be intentionality, understood
as “that property of many states and mental events by which they are directed to, or about, objects and
states of affairs in the world.

Other elements are indicated by Searle. Everyone has its due importance. But if we look at these
elements under Hallevy’s guidelines, we will nd that his propositions are apparently false. First, then, if
Searle is correct, knowledge has no elemental force to cause a mind. No matter what the technological state
of science. e main and brain-causing element are brains.

Second, thoughts are about something. ey must have meaning. Linked to the mind, thoughts
have semantic content. ey transcend the formal and syntactic structure of a computer program. ere is
the understanding, even if words cannot describe, the meaning of pain, to withdraw the life of someone,
inscribed in a background. Machines do not even have the temporal sense to understand what is 1 month
or 1 year, maybe homicide or illicit acts.

There is also a lack of mens rea to establish a criminal offense. Although actus reus is present,
it is not enough to set up criminal liability. The actus reus is only the occurrence of the conduct
described in the criminal type. A machine apparently feels nothing when it kills a person. She cannot
speak of despair, sadness or euphoria. It has no intentionality. It only acts as programmed. And if you
act differently, it may have been due to errors or misconceptions of your programmer. There is no

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Critical considerations on Arti cial Intelligence liability: e-personality propositions 211

mind in this being. Minds have strict biological connection. And if we consider the term intelligence
linked to the mind, it becomes a mistake to designate these beings as intelligent. The best designation
for them is “computer program”.

Finally, the directives of biological naturalism appear to be true, automatically distorting Hallevy’s
functionalism and assumptions. erefore, it is believed that the most viable model is the perpetration-by-
another liability model. e intelligent entity arti cially cannot be held responsible for having no evidence
of will. ere is no mind. Responsibility should be assigned under those who have acted in the background.
Programmers or end user. It presupposes a responsibility and the duty of surveillance of the human being
under the intelligent entities arti cially. Moreover, comparing a machine to a mentally handicapped person
is at least naive to those who do, such as Hallevy. A person remains a person even with reduced mental
abilities. Machine will always be considered a machine, even if the technology provides otherwise. e
robot Sophia, in a few years, will continue being robot, although its system evolves drastically. erefore,
the false conception of intelligence tied to a ctitious mind cannot serve as a means to block the effective
application of legal responsibility, whether in the civil or criminal sphere. Only those who really have actus
reus and mens rea can be liable.

Final Considerations

Although new technologies bring new challenges to law, this institute must conform to other sciences
to ensure more effective applicability. To assert the presence of mind in an entity designated as arti cially
intelligent is, in terms of the philosophy of mind, erroneous. us, the criterion of intelligence is intrinsically
linked to the intentional phenomena of the mind. And this, as such, presents itself as a biological phenomenon
acting in the linguistic semantic eld, a fact distinct from the designs of arti cial intelligence.

e problem initially proposed was the possibility of assigning responsibility to the intelligent
entities arti cially. It is evident that, in the eld of law, especially in the civil area and in the criminal area,
we encounter difficulties. e classic institutes of responsibility still have an intrinsic notion of guilt in their
construction. Blame in the broad sense, encompassing both fault and guilt stricto sensu. So, if it is assumed
that a robot equipped with arti cial intelligence has no mind, it cannot be said that such an entity has the
culpable animus. us, if viewed from the standpoint of classical notions of responsibility, an arti cial
intelligence cannot be held responsible for the absence of mental phenomena.

On the other hand, analysis from the point of view of objective responsibility brings with it important
considerations, since it dispenses with the faulty analysis. Preference is given to this institute rather than its
subjective mode. However, in order to avoid solipsistic embarrassments in certain judgments, it is proposed
to create an electronic personality, translated into the hypothesis of legal insertion of an incision in the
role of objective responsibility described in arts. 932 et seq, of Civil Code. e current wording of these
devices is not enough to legally support the electronic personality. A broad interpretation and acceptance
of the community is necessary to avenge and become applicable. However, the legal provision to regulate
the subject is indispensable, since the judge’s analysis in the concrete case to verify the presence of the

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212 Sthéfano Bruno Santos Divino

requirements of art. 927 would basically bring a subjective judgment. e electronic personality, therefore,
would be the key to accountability of these entities, in conjunction with the deep pocket theory.

Anyway, all the insertions made here and all the ideas presented are the germ of countless and
future discussions that can and will happen when approaching these subjects (if we can so designate them).
It is intended to open the way and new doors to other writings and in no way consider this article as an end
point, but only as a window pointed to an in nite horizon.

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joins-meeting-arti cial-intelligence-and-sustainable>. Acesso em: 25 fev. 2019.

YANISKY-RAVID, Shlomit; VELEZ-HERNANDEZ, Luis Antonio. Copyrightability of artworks produced by


creative robots and originality: the formality-objective model. Minnesota Journal of Law, Science and Technology,
Minnesota, v. 19, n. 1, p. 01-53, 2018.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 193-213, ago. 2020.


Judicialização da política, ativismo e discricionariedade
judicial

João Humberto Cesário


Escola Superior da Magistratura Trabalhista de Mato Grosso,
Cuiabá, Mato Grosso, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-3250-0184

VERBICARO, Loiane Prado. Judicialização da política, ativismo e


discricionariedade judicial. Prefácio de José Eduardo Faria. 2. ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2019. 549 p.

A política produz o direito, o direito controla a política, a


política é conduzida pelas diretrizes do direito.

Loiane Prado Verbicaro

Canoas, v. 8, n. 2, 2020 O livro a seguir resenhado, chamado ‘Judicialização da


política, ativismo e discricionariedade judicial’, de autoria da
Resenha
professora Loiane Prado Verbicaro, publicado pela editora Lumen
Recebido: 22.04.2020 Juris em primeira edição no ano de 2017 e em segunda edição no
Aprovado: 27.04.2020 ano de 2019, é o resultado, em parte, da tese de doutoramento
da autora em Filoso a do Direito, defendida na Universidade de
Publicado: 01.07.2020
Salamanca, na Espanha, na data de 15 de dezembro de 2014, com
DOI http://dx.doi.org/10.18316/REDES.v8i2.6673
alguns recortes em certos temas e ampliações em outros, além de
acréscimos oriundos de ideias que já vinham sendo previamente
desenvolvidas em diversos periódicos acadêmicos.

A autora da obra é pós-doutoranda em Filoso a e Teoria


Geral do Direito pela Universidade de São Paulo, é doutora em
Filoso a do Direito pela Universidade de Salamanca, é mestre em
Ciências Sociais e em Direito pela Universidade Federal do Pará,
é graduada em Direito e em Filoso a pela Universidade Federal
do Pará, foi coordenadora do Curso de Direito e professora do
Programa de Mestrado e da Graduação em Direito do Centro
Universitário do Pará e, atualmente, é professora adjunta da
Faculdade de Filoso a e do Programa de Pós-Graduação em
Filoso a da Universidade Federal do Pará.

Pode-se desde já intuir, da simples análise das credenciais


acadêmicas da autora, professora doutora Loiane Prado Verbicaro,
que o livro em resenha é uma obra de qualidade incomum, que
216 João Humberto Cesário

prima pelo rigor metodológico e pela densidade de conteúdo. E é justamente isso que o leitor encontra ao
se embrenhar pelas suas re nadas páginas, repletas de raciocínios so sticados, devidamente adensados
por criteriosas citações bibliográ cas, pelas quais des lam autores do mais elevado quilate, entre os quais
destacam-se, pela importância das suas respectivas obras doutrinárias para o adequado tratamento dos
assuntos abordados no livro, Herbert Lionel Adolphus Hart, Ronald Dworkin, Jeremy Waldron e Wilfrid J.
Waluchow, além de incontáveis outros que poderiam ser nominados.

A propósito, o tema central do livro diz respeito ao crescente expansionismo dos tribunais, aos
modelos de atuação judicial e ao problema da discricionariedade na prática jurídica contemporânea. Dito
de outro modo, a obra desa a o tormentoso impasse acerca dos limites da inserção do Poder Judiciário no
âmbito da arena política majoritária, cujo protagonismo incontrolado detém potencial su ciente para a
promoção de um indesejável desiquilíbrio do status quo político, social e econômico.

Para enfrentar o problema proposto, o trabalho apresenta uma escolha metodológica consciente de
aproximar a análise conceitual da loso a do direito, com as categorias da loso a e ciência política. Tal
opção, altamente elogiável e extremamente bem desenvolvida, confere uma profundidade rara à pesquisa,
transformando-a, sem nenhum favor, em um escrito de referência sobre a intrincada matéria abordada.

Estruturalmente falando, o livro se divide em cinco capítulos.

No primeiro deles, denominado ‘O direito, a dogmática e o papel dos juízes na práxis jurídica’, a
exposição parte do pluralismo jurídico e da discricionariedade que caracterizaram o medievo, decorrentes,
evidentemente, da descentralização jurídico-política própria do feudalismo, analisando, a partir do advento
da modernidade, o processo de formação dos Estados centralizados, que culminou, juridicamente falando,
na assunção do chamado positivismo. Nesta esteira, a narrativa apresenta algumas formas de interpretação
que emergiram com o juspositivismo, como, por exemplo, a neutralidade axiológica exegética de um lado
e, de outro, o reconhecimento de uma certa função política da magistratura, a qual adveio da transposição
do Estado Liberal, calcado em uma visão abstencionista, para o Estado Social, arrimado na promessa de
a rmação de direitos positivos como o trabalho, a saúde, a educação, o lazer, etc.

Já no segundo capítulo, chamado ‘A teoria da separação dos poderes e a supremacia da Constituição’,


são analisados com especial destaque os lineamentos institucionais que conduziram – não raramente até
mesmo de modo exagerado – ao exercício da função contramajoritária dos tribunais. A partir dos textos
federalistas de James Madison, Alexander Hamilton e John Jay, publicados em 1787 no Independent Journal
de Nova York, que repeliam a chamada ditadura da maioria e defendiam que o Judiciário assumisse a feição
de um órgão contramajoritário capaz de preservar os direitos individuais, o livro estuda detidamente a
ideia de supremacia da Constituição no paradigma do constitucionalismo liberal e republicano.

Outrossim, no seu terceiro capítulo, intitulado ‘Os modelos de atuação judicial’, a obra estuda
seis padrões de atuação jurisdicional, a saber: (a) o modelo dedutivo; (b) o modelo decisionista; (c) o
modelo discricionário; (d) o modelo hermenêutico; (e) o modelo da processualização; (f) o modelo da
coerência. Tais standards veiculam, em graus diferenciados, os limites de vinculação e de liberdade do
órgão adjudicatório em face das normas.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 215-221, ago. 2020.


Judicialização da política, ativismo e discricionariedade judicial 217

No modelo dedutivo, correspondente à exegese francesa, à jurisprudência dos conceitos alemã e à


analítica inglesa, marcado por um ideário racional e iluminista, o juiz julga sem liberdades interpretativas,
por via de uma simplória equação silógica que, descritivamente, confronta duas premissas, uma maior e
outra menor, para assim extrair uma conclusão que, tomada como um julgado, deve corresponder elmente
à vontade da lei.

De outro tanto, o modelo decisionista, fundado nas escolas francesa da livre investigação e alemã
do direito livre, bem como no chamado realismo jurídico, concede ampla liberdade decisória ao julgador,
que se vendo livre das amarras da lei, acaba por vaticinar, solipsisticamente, aquilo que ele próprio deseja
que o direito seja.

Por uma vertente diferenciada, o modelo discricionário, capitaneado por autores como Hans
Kelsen e Herbert Hart, reconhece de um modo geral, embora existam algumas divergências pontuais
entre os seus principais teóricos, que as leis possuem uma certa zona de indeterminação semântica nos
seus enunciados, existindo, outrossim, até mesmo lacunas nos ordenamentos jurídicos (premissa repelida
por Kelsen e admitida por Hart). Deste modo, diante da necessidade de atribuição signi cacional aos
elementos indeterminados das regras e, em última instância, da imperiosidade de colmatação das lacunas
do ordenamento, tal sistema atribui uma discricionariedade forte aos órgãos responsáveis pela adjudicação,
que nem de longe se confunde, é bom que se diga, com a arbitrariedade que caracteriza o decisionismo.

De sua vez, o modelo hermenêutico, desenvolvido em meados do século XX, primeiramente na


loso a propriamente dita por Hans-Georg Gadamer e depois no direito por Arthur Kaufmann, ao colocar
em xeque o dualismo positivista da criação/aplicação das leis, assevera que o julgador, em alguma medida,
também produz o direito quando interpreta os textos legais, fazendo-o, por assim dizer, em um processo
dialético-circular no qual o todo deve ser compreendido por via das partes e estas por meio do todo.

Já o modelo da processualização do direito, embora reúna tendências um tanto distintas, pode ser
perfeitamente enxergado pelo amálgama doutrinário de Neil MacCormick, que ao desenvolver uma teoria
integradora da argumentação, termina por conceber a coerência como um ideal a ser atingido por uma
ordem jurídica na qual as normas devem se adequar aos valores ou às políticas perseguidos.

Finalmente, o modelo da coerência, cujo expoente máximo é Ronald Dworkin, arrima-se na


investigação de critérios que concedam integridade à ordem jurídica, garantindo o máximo respeito
ao direito mesmo nos hard cases. As suas principais ambições são o combate à discricionariedade e,
consequentemente, a busca da única resposta correta.

Uma vez estudados os modelos de atuação judicial, o livro passa ao seu quarto capítulo, chamado
‘O problema (?) da discricionariedade judicial’. Nesta parte, a obra se põe a discutir os sentidos da
discricionariedade judicial forte e fraca, preconizados, respectivamente, por Herbert Hart e Ronald
Dworkin. Hart, como visto anteriormente, ligado ao standard da discricionariedade, reconhece um
espaço signi cativo de liberdade aos órgãos responsáveis pela adjudicação, mormente quando estes se
defrontam com os reptos de atribuição de sentido a conceitos vagos e de preenchimento das chamadas

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 215-221, ago. 2020.


218 João Humberto Cesário

lacunas do sistema. Já Dworkin, de seu turno, ligado ao método da coerência, rechaça a discricionariedade,
reconhecendo-lhe, quando muito, um sentido fraco, preconizando, por corolário, a existência de uma única
resposta correta mesmo para os casos difíceis. Tais ângulos de visada, desde sempre contrapostos, abriram
espaço à ocorrência daquele que muito provavelmente foi o mais profícuo debate jurídico do século XX,
do qual o livro sob resenha se ocupou com maestria.

O quinto capítulo, fechando a obra, atrela a questão da discricionariedade à judicialização da


política e ao ativismo judicial. Quanto ao primeiro fenômeno, qual seja, o da judicialização da política,
enxerga-o como uma decorrência da própria existência de conceitos indeterminados no interior das
Constituições, circunstância que acaba por naturalizar a inserção do Poder Judiciário no palco político,
econômico e social. Relativamente ao segundo, ou seja, o problema do ativismo judicial, propõe a
rediscussão das fronteiras interpretativas e institucionais de atuação dos órgãos da adjudicação, a m
de que sejam evitados o arbítrio judicial, o subjetivismo, o decisionismo e ainda a conversão do regime
democrático em uma ditadura das togas.

Uma vez exposta a estrutura do livro em análise e devidamente per lados os temas suscitados no
seu interior, parece claro, pelo menos aos olhos deste resenhista, que são três, em essência, os dilemas
jurídicos- losó cos que a obra almeja colocar sob os holofotes. A saber:

É mais satisfatória, em termos jurídicos, a teoria da discricionariedade adjudicatória ou a tese da


única resposta correta?

É conveniente, democraticamente falando, que os tribunais, imunes a qualquer forma de


accountability, inter ram no procedimentalismo majoritário quando do exercício do judicial review,
fazendo-o em nome do substancialismo contramajoritário?

Pressupondo-se contemporaneamente a inexorabilidade da judicialização da política, quais cautelas


devem ser tomadas para que o ato adjudicatório não se transforme em puro e simples ativismo judicial?

Elucidando a primeira dúvida, o livro, fortemente escudado nas ideias de Wilfrid Waluchow1, coloca
em debate, resumidamente falando, a seguinte equação: para que não houvesse discricionariedade bastaria
que o Direito se propusesse meramente a controlar a decisão ou, muito ao contrário, seria imprescindível
que o direito efetivamente lograsse êxito em controlar ou governar a decisão a ser tomada?

Em resposta ao dilema proposto, ainda com base em Waluchow, a obra clari ca que existem situações
nas quais as pautas jurídicas de fato almejam controlar a decisão, embora na prática não consigam fazê-lo.
Nessas ocasiões, não se pode concluir de modo diferente, a não ser para se compreender que o julgador
deverá eleger uma das alternativas que se lhe apresentam, circunstância que inquestionavelmente implica
no uso de discricionariedade forte. Neste passo, a presente resenha pode a rmar, por sua conta e risco, que

1
Sugere-se, para a aproximação do leitor com as ideias de Waluchow, o contato com a seguinte obra: WALUCHOW, Wilfrid.
Positivismo jurídico incluyente. Trad. Marcela S. Gil y Romina Tesone. Rev. de Trad. Hugo Zuleta. Madrid/Barcelona: Marcial
Pons, 2007.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 215-221, ago. 2020.


Judicialização da política, ativismo e discricionariedade judicial 219

o argumento de Waluchow é devastador. Uma coisa é o Direito ambicionar controlar as decisões judiciais,
outra, bem diferente, é ele deter clareza e completude su cientes que o habilite a fazê-lo.

É óbvio que no terreno da idealidade seria desejável que não ocorresse discricionariedade no ato
decisório, para que assim a segurança jurídica plena fosse alcançada. Isso, contudo, além de ser impossível
no terreno prático, fatalmente conduziria a situações de insuportável iniquidade, as quais podem ser
parcimonicamente evitadas no ato decisório por via da axiologia contida nos princípios incorporados.
Tudo precedido, naturalmente, de um debate sério e consistente no âmbito dos órgãos responsáveis pela
adjudicação, que lhes permita atribuir sentido e densidade aos valores invocados no julgamento, de modo
a que as razões decisórias democraticamente construídas sejam observadas por todos no futuro, passando,
pois, a fazer parte das fontes formais do Direito.

Nas situações verdadeiramente complexas, dessarte, não podemos perder de vista que o Direito
volta e meia se mostra apto a produzir, em termos adjudicatórios, aquilo que a estatística chamaria
de ‘empate técnico’. Mesmo em hipóteses que tais, vedado o non liquet, os juízes têm de decidir. Tal
circunstância, per se, joga por terra a perspectiva dworkiniana de que não seria legítimo reconhecer uma
discricionariedade mais forte aos órgãos da adjudicação. Insista-se: uma coisa é o Direito ambicionar
controlar por completo as decisões judiciais, outra, muito diferente, é ele deter clareza e completude
su cientes que o habilitem a tanto.

Já no segundo tema candente anteriormente elencado, que diz respeito à conveniência ou não
de os tribunais interferirem nas deliberações majoritárias em nome da prevalência de certos direitos
indisponíveis, a obra acertadamente amalgama, segundo a visão desta resenha, as perspectivas doutrinárias
de Jeremy Waldron e Ronald Dworkin, conforme será visto.

O debate, no caso, é travado entre aqueles que podem ser chamados de procedimentalistas e aqueles
que podem ser denominados como substancialistas. Os primeiros enaltecem a tomada da decisão no plano
político, priorizando, assim, o procedimento democrático, cujo resultado, traduzido em uma decisão
majoritária, haverá de ser respeitado. Os segundos, de outro tanto, asseveram que o critério último de
respaldo a uma decisão política é a sua correção substantiva, que, de tal arte, não pode ultrajar certos valores
de justiça incorporados pelas Constituições democráticas. É de se intuir, com efeito, que os primeiros,
lastreados no pensamento de autores como Jeremy Waldron2, são refratários ao judicial review, a passo que
os segundos, assentados em autores como Ronald Dworkin3, o admitem com alguma parcimônia.

Relativamente ao tema, o livro, como já indicado, posiciona-se ao centro. Dito de modo direto, a
obra assenta-se na visão de que coletivamente falando os canais majoritários são os mais adequados para

2
Sugere-se, para a aproximação do leitor com as ideias de Waldron, o contato com as seguintes obras: (a) WALDRON, Jeremy.
A dignidade da legislação. Trad. Luís Carlos Borges. Rev. de Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 2003 e (b)
WALDRON, Jeremy. Derecho y desacuerdos. Trad. José Luis Martí y Águeda Quiroga. Madrid: Marcial Pons, 2005.
3
Sugere-se, para a aproximação do leitor com as ideias de Dworkin, o contato com pelo menos as seguintes obras: (a) DWORKIN,
Ronald. Levando os direitos a sério. 3 ed. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2010, (b) DWORKIN, Ronald. O
império do direito. 2 ed. Trad. Jeferson Luiz Camargo. Rev. Gildo Sá Leitão Rios. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 215-221, ago. 2020.


220 João Humberto Cesário

elaborar políticas públicas e promover reformas na sociedade, vez que são mais aptos para colher reivindicações
e implementar políticas equânimes, distributivas e inclusivas. No âmbito individual, porém, a obra defende
que há um locus legítimo de atuação do Poder Judiciário na proteção de certos núcleos fundamentais de
direitos constitucionais.

Percebe-se, pois, que segundo a compreensão adotada na pesquisa em estudo, o Poder Judiciário
deverá ser deferente à política quando o objeto do debate for as táticas para a adequada satisfação dos
interesses gerais da coletividade. Todavia, ainda que reconhecendo a legitimidade majoritária nessas
hipóteses, o trabalho não transige com a invasão de certos espaços que, acaso afetados, aniquilarão
direitos e garantias dos quais o indivíduo não pode dispor sem que seja malferido o mínimo existencial
destinado aos cidadãos pelas Cartas de Direitos. Tal signi ca, em última instância, que a obra abraça a
ideia dworkiniana de que os direitos fundamentais são trunfos das minorias contra as arbitrariedades das
maiorias de plantão, mesmo porque a segurança jurídica, comprometida com a tutela efetiva dos direitos,
só pode existir em um ambiente verdadeiramente democrático, sendo certo que a democracia jamais foi ou
será sinônimo de ditadura das maiorias.

Por m, relativamente ao último dos três pontos anteriormente destacados, o livro parte do
pressuposto da inexorabilidade da judicialização da política, mormente no contexto do segundo pós-
guerra, a partir de quando cou claro que in nomine legis foram praticadas pelos regimes totalitários as
maiores barbaridades que se têm notícia no século XX.

Restou hialino, daquele momento em diante, que os direitos e as garantias previstos nas constituições
então emergentes, por mais abstratos que fossem, não poderiam car sem concretização. Neste momento,
as Constituições deixaram de ser vistas como meras pautas programáticas ou declarações de boas intenções,
para assumirem a normatividade ínsita ao direito. Neste diapasão, os direitos fundamentais assumiram uma
feição subjetiva e uma outra objetiva, sendo enxergados, respectivamente, como direitos e como vetores
interpretativos do ordenamento, a reclamar uma leitura das leis em conformidade com as Constituições.
Tudo isso, como não poderia ser diferente, cambiou radicalmente as atribuições do Poder Judiciário.

A partir do giro linguístico ocorrido em meados do século XX, cou evidente para os juristas a
diferença entre a lei e a norma, sendo a primeira vista como simples texto e a segunda como o comando
emergente do texto interpretado e otimizado pelos direitos e as garantias fundamentais. A lei, por assim
dizer, passou a ser vista como o objeto da interpretação, ao passo que a norma foi tomada como o
resultado da atividade interpretativa da comunidade cognoscente do direito, cujo debate se encerra no
seio do Poder Judiciário.

Uma vez constatados tais fatos e sabendo-se que as Constituições são carregadas de conteúdos
polissêmicos, a Judicialização da política, que em si não pode ser tomada como um mal, senão como uma
decorrência lógica da vida contemporânea, passou a ser vista como algo normal. O problema que se abriu,
então, não foi o da Judicialização da política propriamente considerada, mas sim o do ativismo judicial, vez
que os órgãos responsáveis pela adjudicação, ainda que sem o respaldo majoritário, se viram municiados de
um ferramental capaz de impor a sua visão de mundo sobre os demais, fazendo-o não raramente com base

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 215-221, ago. 2020.


Judicialização da política, ativismo e discricionariedade judicial 221

na exacerbação da função contramajoritária do direito que, embora ínsita à supremacia das Constituições,
decididamente não pode ser invocada abusivamente, sob pena da inauguração de uma repulsiva tirania das
togas, capaz de inverter as pautas e políticas públicas ansiadas pela coletividade.

A questão nal proposta pelo livro, dessarte, é a de investigar o alcance admissível da discricionariedade
na prática jurídica contemporânea em um contexto de juridicização das relações sociais, políticas e
econômicas. Desvencilhando-se da tarefa imposta, a obra defende que a presença da discricionariedade na
prática jurídica não representa qualquer dissociação entre direito e razão ou o afastamento da ideia de decisão
judicial como procedimento racional e com potencial de legitimação. Tal signi ca que há parâmetros, regras
e procedimentos que se destinam a tornar a prática adjudicatória o mais racional possível e com certo grau
de objetividade. Tudo isso quer dizer que não estão autorizados os juízes a promoverem uma politização da
justiça ou a implementação de decisões personalistas e idiossincráticas. Logo, não são os juízes, com as suas
ideologias individuais, que decidem, mas o direito, construído em bases democráticas, que se faz realizar por
meio dos seus intérpretes. É imperioso que se respeite, portanto, o potencial de referibilidade do direito.

Ao m e ao cabo, o livro defende o ponto de vista de que deve haver uma conciliação da tensão entre
a pretensão objetiva da norma versus a atuação subjetiva do intérprete judicial. Há de se compreender, isto
posto, que não há como aniquilar a força normativa da norma para triunfar a volição do decisor, sendo certo,
de outro tanto, que também não é possível domesticar e neutralizar o intérprete como um ser autômato.

De tudo o quanto foi dito, embora seja arriscado dizê-lo, a presente resenha sustenta que, do ponto
de vista da Filoso a do Direito, o livro está predominantemente situado, sem deixar de abraçar outros
pressupostos teóricos, no espaço do positivismo inclusivo ou incorporacionista de Hart4 e Waluchow,
que permite que os princípios morais inter ram no ato adjudicatório apenas na estrita medida em que
detenham as necessárias conexões institucionais, como naquelas hipóteses em que apresentem lastros
normativos robustos. Se tal pressuposição está correta, a obra merece ser novamente aplaudida, não mais
apenas pelas virtudes antes mencionadas, mas também porque o positivismo inclusivo, tomado como o
centro gravitacional da Teoria do Direito, se mostra capaz de uni car, moderada e consistentemente, as
preocupações de justiça e segurança que interessam a toda a humanidade.

4
Sugere-se, para a aproximação do leitor com as ideias de Hart, o contato com a seguinte obra: HART, Herbert Lionel Adolphus.
O conceito de direito. 3 ed. Trad. A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 215-221, ago. 2020.


O fascismo eterno, uma resenha

José Alexandre Ricciardi Sbizera


Faculdades Londrina; Universidade Positivo,
Londrina, Paraná, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-3211-5967

ECO, Umberto. O fascismo eterno. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro:


Record, 2018. 63p.

Umberto Eco foi um lósofo, semiólogo e crítico literário


italiano, professor e diretor da Escola Superior de Ciências
Humanas da Universidade de Bolonha; lecionou também,
temporariamente, em Yale, Columbia, Harvard, no Collège de
France e na Universidade de Toronto. Foi colaborador de diversos

Canoas, v. 8, n. 2, 2020 periódicos acadêmicos e publicou centenas de trabalhos sobre


uma in nidade de temas e, em paralelo, escreveu narrativas
Resenha aclamadas pela crítica literária, como, por exemplo, “O nome da
rosa”, “O pêndulo de Foucault” e “Baudolino”.
Recebido: 22.04.2020
Aprovado: 27.04.2020 Apesar de sua versatilidade temática, é amplamente

Publicado: 01.07.2020 considerado um dos maiores intelectuais de nosso tempo e um


pensador contínuo das condições e possibilidades da sociedade.
DOI http://dx.doi.org/10.18316/REDES.v8i2.6826
É neste sentido que a presente resenha vem sugerir a releitura
do texto “O fascismo eterno”. Tal trabalho é originariamente
uma conferência proferida por Eco na Columbia University em
1995 e publicada no mesmo ano. No Brasil, teve sua primeira
publicação em 1997, parte de obra autoral mais ampla, “Cinco
escritos morais”, com tradução de Eliana Aguiar. No ano de 2018
foi republicado pela Editora Record e vale como um novo convite,
um novo alerta, uma lembrança da necessidade de reler e de estar
atento ao fenômeno infeliz do fascismo eterno.

Em um momento geral de ascensão mundial do erte com


o fascismo, mas sobretudo, em particular, com a ameaça real do
estabelecimento do fascismo no Brasil, reler “O fascismo eterno”
nos ensina, nos lembra ou nos auxilia a pensar o sentido da história
e a importância da memória para não repetir maiores erros
pretéritos. A so sticação cada vez maior das práticas fascistas, tais
como o medo da diferença, a oposição e intolerância à crítica, o
224 José Alexandre Ricciardi Sbizera

machismo estruturado e não pensado do cotidiano, a repressão e controle da sexualidade e da reprodução


dos indivíduos, a exaltação cega e ignorante de messias salvadores de medos irracionais, a intimidação
e a propagação de medos e temores constantes mas invisíveis, fanatismos religiosos, dentre outras, são
características que formam uma nebulosa fascista, tanto ontem como hoje, e infeliz mas possivelmente
amanhã tanto mais do que hoje.

Para abordar tudo isso, Umberto Eco conta rapidamente sua experiência pessoal com o fascismo.
Lembra que Mussolini não tinha nenhuma loso a, mas apenas uma retórica articulada com algo de
emocional; que o fascismo não tem uma única essência, que não é uma ideologia monolítica, mas uma
colagem de diversas ideias esfumaçadas, confusas e muitas vezes contraditórias, de grupos arrebanhados
que ora se aproximam e ora se afastam para no dia seguinte se aproximarem novamente, numa dinâmica
sempre adaptável às conveniências de inúmeras ordens.

Deste modo, a obra toca em atualíssimos temas, caracterizando o fascismo eterno da seguinte
maneira: (a) um culto à tradição, a partir de onde não existe avanço do saber nem pelo saber, uma vez que a
verdade já foi anunciada anteriormente e não pela razão; (b) a recusa da modernidade, ou seja, uma aderência
de algum modo manifestada a algo irracional; (c) o culto da ação pela ação, que considera toda a re exão
e pensamento desnecessários, como um desperdício, como algo indolente, e que, por contraposição, leva à
suspeita constante contra os lugares do saber, do mundo intelectual, cientí co; (d) a ideia de que tudo que
está contra o seu próprio pensamento é uma traição; (e) a busca incessante de consenso e a naturalização
do medo da diferença, e aí entram diferenças de gênero, sexo, raça, cor, classe, etc.; (f) o jogo constante
com a frustração individual ou social, de onde decorre o apelo às classes médias apenas eventualmente
desvalorizadas por construídas crises econômicas ou alegadas humilhações políticas que apenas raramente
são assustadas pela pressão de grupos sociais subalternos; (g) a obsessão da conspiração, muitas vezes
de ordem internacional, que faz surgir imposições de identidades comuns e o rápido estabelecimento de
inimigos; (h) a ambivalência e o deslocamento dos estabelecidos como inimigos, que podem ser facilmente
alteráveis de acordo com os interesses da vez; (i) a ideia de que a vida é uma guerra permanente contra
aqueles inimigos, os quais podem e devem ser derrotados por uma solução sempre nal, o que conduz a
uma guerra permanente, já que outro inimigo é abruptamente restabelecido; (j) um elitismo popular que
despreza toda manifestação de fraqueza, ou seja, é a ideia de que há sempre alguém ou grupo mais fraco,
logo você é forte, o que gera a produção e a reprodução de opressões de todas as sortes; (k) por conta
disso, cada um é in uenciado e conclamado a ser um herói disposto a morrer prontamente pelas suas
ideias, embora corriqueiramente provoque mesmo apenas a morte de outras pessoas e ideias; (l) como a
guerra permanente e o jogo de herói são na prática difíceis de acontecer, o fascista transfere sua vontade de
exercício de poder para questões sexuais, gerando machismos, sexismos e, como seu sucedâneo, delicados
gostos por armas de grossos calibres; (m) o desaparecimento da ideia de indivíduo e seus direitos, vontades
e diferenças em detrimento de uma vontade comum do povo, a qual é sempre conhecida, interpretada e
a rmada pelo líder e somente por ele, e qualquer alegação em desconformidade a esta é posta em dúvida,
deslegitimada, descredibilizada e apontada como alvo a ser destruído; (n) a pobreza de vocabulário, de
pensamento e de raciocínio, impeditivos de análises e compreensões complexas e críticas; (o) por m, Eco

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 223-225, ago. 2020.


O fascismo eterno, uma resenha 225

comenta que o fascismo eterno está ao nosso redor, muitas vezes em trajes civis, sob vestes as mais inocentes
e que “nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para cada uma de suas novas formas – a cada dia, em
cada lugar no mundo”1; e, ainda: “Liberdade e libertação são uma tarefa que não acaba nunca”2.

Para nós, juristas, a leitura interessa no todo, tendo em vista o tensionamento e o risco que o fascismo
coloca ao Estado Democrático de Direito e os Direitos Humanos, mas é especialmente provocativa para
estudiosos que têm em mente preocupações mais urgentes com o direito penal, o processo penal, as políticas
criminais, o sistema de justiça e o sistema carcerário. E isto porque, ainda que o texto de Eco não se re ra
exatamente a estes temas e suas minúcias, nos ajuda a pensá-los de modo mais amplo e complexo, uma
vez que a mera imbricação mental da obra com estes temas de certo modo escancara a miríade de formas,
desde as mais sutis e so sticadas até as mais agressivas e contundentes, com que o sistema penal atua de
maneira fascista e faz incidir todo o seu poder a determinados indivíduos e grupos.

Para novatos nos estudos do Direito, o fascismo eterno de que fala Umberto Eco é chocante e faz
entrar em estado de alerta. Pra quem estuda o sistema de justiça criminal e suas nuances há tempos e se
preocupa com o ser humano e com a sociedade, o fascismo não é nenhuma novidade, é eterno o fascismo
porque sempre esteve aí; mas não menos assustador. Não se estarrecer diante deste fascismo, é torná-lo
eterno, uma vez outra. Até quando? “A justiça que havemos de fazer”3.

1
ECO, Umberto. O fascismo eterno. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2018. p. 61.
2
ECO, Umberto. O fascismo eterno. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2018. p. 61.
3
FORTINI, Franco Apud. ECO, Umberto. O fascismo eterno. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2018. p. 63.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 223-225, ago. 2020.


Deep Web e Dark Web: implicações sociais e repercussões
jurídicas

Fernanda Viero da Silva


Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul, Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-3978-7395

Mateus de Oliveira Fornasier


Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul, Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-1617-4270

Norberto Milton Paiva Knebel


Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Canoas, v. 8, n. 2, 2020 Grande do Sul, Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-0674-8872
Direito em moviemnto em perspectiva

Recebido: 03.04.2020 Considerações iniciais


Aprovado: 27.04.2020
A Internet e o ciberespaço adornam quase todos os
Publicado: 01.07.2020
aspectos da vida atualmente, con gurando-se um inédito grau de
DOI http://dx.doi.org/10.18316/REDES.v8i2.6756 interconexão entre o mundo real e o mundo virtual. Pelo menos nas
sociedades mais modernizadas é seguro a rmar que quase todos os
aspectos da vida estão sendo digitalizados e processados por meio
de algum sistema de computador, e essa revolução tem um aspecto
dúbio: enquanto as pessoas agora podem interagir com um alto
nível de facilidade (nunca visto antes), todos os dados sobre essas
interações são constantemente registrados e armazenados1.

A massiva camada populacional da contemporaneidade


pensa que a Internet e a Web são termos sinônimos, quando de fato,
são dois termos diferentes com elementos comuns (ou, o primeiro
é gênero, enquanto o segundo, espécie ou âmbito). A Internet
inclui várias redes e sua enorme infraestrutura, permitindo assim
a conexão de milhões de computadores, sendo criada uma rede
na qual qualquer computador pode se comunicar com os demais,

1
BELLABY, Ross. Going dark: anonymising technology in cyberspace. Ethics
and Information Technology, Del, n. 20, p. 189-204, 2018.
228 Fernanda Viero da Silva, Mateus de Oliveira Fornasier, Norberto Milton Paiva Knebel

desde que conectados à Internet; enquanto que a web é um meio que fornece acesso à informação2. Em
outras palavras, enquanto a web é apenas um tipo (muito grande) de conteúdo, composto de sites acessíveis
por meio de mecanismos de pesquisa como Google, Firefox etc., a Internet é a grande rede na qual vários
âmbitos (inclusive a web, mas não apenas) estão, de alguma forma, disponíveis para acesso e comunicação
dos usuários, por meio das mais variadas plataformas e aplicativos.

O problema que norteou esta pesquisa, diante do cenário exposto, pode assim ser descrito: quais os
efeitos dessas redes de internet alternativas para a regulação e os direitos dos usuários da internet? Indica-
se como hipótese a necessidade de regulação inovadora, frente à associação das tecnologias de rede com
a lógica mercantil instaurada na deep ou dark web – sendo que atividades que afrontam a lei são dispostas
de forma a serem livremente comercializadas. Essa especi cidade aponta para a necessidade de conhecer
essas redes em vista a não criminalizar a liberdade na internet e a defesa à privacidade, mas entender o
caráter único dessas redes – um meio para exercício de atividades com ns lucrativos.

O objetivo geral deste trabalho é investigar as características da Deep Web e da Dark Web,
compreendendo para além de aspectos conceituais de ambas nomenclaturas (que muitas vezes são
confundidas como sinônimos), abordando-se como tais plataformas marcadas pelo expressivo anonimato
operam na sociedade contemporânea pautada pela utilização massiva de tecnologias. A existência de
mercados clandestinos expõe um perigo relativo ao direito absoluto à privacidade, enquanto a criminalização
dessas condutas pode signi car consequências signi cativas para privacidade de todos.

Para a consecução desse objetivo geral, três objetivos especí cos foram elencados, cada qual
correspondente a uma seção do artigo. Em um primeiro momento, busca-se esclarecer as diferenças
entre Deep Web e Dark Web, bem como Internet e Web além de investigar questões pontuais ao longo
da história. A segunda seção se destina a estudar de que formas a Dark Web proporciona a existência de
mercados clandestinos com diversas destinações e toda uma lógica capitalista. Por m, são apresentadas
criticamente algumas estratégias estatais para o policiamento e investigação de tais plataformas, além de se
debater como tais estratégias se relacionam ao direito à privacidade dos usuários.

A presente pesquisa tem natureza exploratória, sendo seu método de procedimento hipotético-
dedutivo, sua abordagem qualitativa, e sua técnica de pesquisa bibliográ ca-documental.

A Deep Web e a Dark Web na sociedade contemporânea

O termo Deep Web é usado para conceituar uma gama de conteúdos da Internet que, por razões
técnicas, não é indexada pelos tradicionais mecanismos de pesquisa, e como qualquer forma de tecnologia,
o anonimato trazido por si pode ser utilizado tanto para propósitos bené cos quanto perniciosos3.

2
SUSURI, Arsim; BESHIRI, Arbër. Dark Web and it’s impact in online anonymity and privacy: a critical analysis and review.
Journal of Computer and Comunications, Wuhan, n. 7, p. 30-34, 2019. p. 31.
3
CHERTOFF, Michael; SIMON, Tobby. e impact of the Dark Web on internet governance and cyber security. Global
Comission on Internet Governance, Waterloo, n. 6, 2015.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 227-244, ago. 2020.


Deep Web e Dark Web: implicações sociais e repercussões jurídicas 229

A Deep Web pode representar ameaças invisíveis, a nal as pessoas costumam usar as tecnologias
digitais atualmente de forma integrada a sua rotina e, nesse contexto, seus dados passam a ser registrados
pelas modalidades de pesquisa, tendo suas informações assim, vulneráveis. Tais apontamentos na verdade
são a ponta de um iceberg, a nal uma plataforma de pesquisa tradicional obtém uma baixa porcentagem
de informações4. Enquanto que grande parte do resto está imersa no que podemos entender como Deep
Web, que consiste em dados que não podem ser localizados com uma simples pesquisa no Google.

A Internet e a Web são duas coisas separadas, mas se encontram relacionadas. A Internet é uma rede
enorme de redes, que é capaz de conectar milhões de dispositivos que podem se comunicar, enquanto que a
World Wide Web, ou simplesmente Web, é uma maneira de ter acesso a informações por meio da Internet5. Na
atualidade, em que se consomem informações produzidas e comunicadas instantaneamente, há uma grande
parcela que já ouviu falar da Dark Web, que é moldada popularmente como um covil de atividades misteriosas
e ilícitas, que como a maioria dos estereótipos, para Chertoff6 isso é um equívoco com alguma verdade por trás.

Para desmembrar a duvidosa Dark Web, é preciso primeiro entender do que se trata e como ela se
difere do que a maioria dos usuários considera erroneamente a Internet. Na realidade, a internet compreende
todos os servidores, computadores e outros dispositivos conectados juntos em uma rede de redes e pode ser
dividida em dois elementos: o Surface Web e a Deep Web. Enquanto a Surface Web (ou seja, camada super cial
da web) é o que normalmente se associa ao termo “Internet”, se trata de um compilado de sites indexados por
ferramentas de pesquisa (como Google, Yahoo e Bing), e que podem ser acessados por protocolos padrão, a
Deep Web, por sua vez, se demonstra oculta aos usuários que se utilizam de ferramentas padrão, necessitando
de outros meios mais especí cos7. A superfície da Web, mais conhecida do usuário comum, é a parte dela
que foi rastreada e indexada pelos mecanismos de pesquisa padrão, como o próprio Google ou Bing, via
um navegador da Web comum. Em contrapartida, sendo utilizada a metáfora da superfície no que tange à
conexão virtual/humano, devemos tão logo supormos que há uma escuridão abaixo, onde se encontra a Dark
Web, também conhecida como Web Invisível ou Escondida (hidden)8.

Estima-se atualmente que Deep Web responde por 90% do tráfego na Internet, o que pode ser visto
de forma surpreendente para a maioria dos usuários que não percebem que estão acessando o Deep Web
regularmente9. Os dados provenientes de mídias sociais como o Facebook ou o Twitter, por exemplo, podem
ser classi cados Deep Web, uma vez que só podem ser acessados por meio de interfaces de programas de aplicativos.

4
CHERTOFF, Michael; SIMON, Tobby. e impact of the Dark Web on internet governance and cyber security. Global
Comission on Internet Governance, Waterloo, n. 6, 2015. p. 01.
5
CHERTOFF, Michael; SIMON, Tobby. e impact of the Dark Web on internet governance and cyber security. Global
Comission on Internet Governance, Waterloo, n. 6, 2015. p. 01.
6
CHERTOFF, Michael. A public policy perspective of the Dark Web. Journal of Cyber Policy, London, v. 2, n. 1, p. 26-38, 2017. p. 26.
7
CHERTOFF, Michael. A public policy perspective of the Dark Web. Journal of Cyber Policy, London, v. 2, n. 1, p. 26-38, 2017. p. 26.
8
SUI, Daniel; CAVERLEE, James; RUDESILL, Dakota. e Deep Web and the Darknet: a look inside the internet’s massive black
box. SSRN Electronic Journal, Amsterdã, n. 314, 2015. p. 06.
9
CHERTOFF, Michael. A public policy perspective of the Dark Web. Journal of Cyber Policy, London, v. 2, n. 1, p. 26-38, 2017. p. 27.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 227-244, ago. 2020.


230 Fernanda Viero da Silva, Mateus de Oliveira Fornasier, Norberto Milton Paiva Knebel

Contudo, ao se tratar da Deep Web, normalmente termos como Dark Web aparecem em discussões,
como se fosse uma diferente nomenclatura de tal fenômeno; neste sentido resta esclarecer que a Dark Web
(de acordo com a comunidade cienti ca), na verdade, é uma parte muito pequena e de difícil acesso da
Deep Web, sendo estritamente responsável por menos de 0,01% dos sites na internet10. A única maneira
de acessar a Dark Web é usando um navegador especial como e Onion Router (ou Tor), que não
estranhamente necessita de uma senha. A Dark Web é um espaço marcado pelo anonimato, condição que
pode facilitar a ação de grupos outsiders, desde dissidentes de regimes políticos até cibercriminosos. Nesse
ponto se destaca a distinção entre deep e dark web, terminologicamente: a primeira é o conceito amplo,
toda a rede alheia à surface web; já a dark web é uma especi cidade, ou seja, uma parte especí ca da deep
web com exigências especí cas que devem ser atendidas pelo usuário, como a completa anonimidade e
o acesso somente por endereços exclusivos inacessíveis pela internet comum – entre outros mecanismos
extras de segurança11.

Tal parcela da Web que não foi rastreada e indexada e assim está além do alcance do sonar dos
mecanismos de pesquisa padrão. Atualmente é tecnicamente impossível estimar com precisão o tamanho
da Deep Web, entretanto, sabe-se que que o Google (atualmente o maior mecanismo de pesquisa) até
indexou apenas 4 a 16% da superfície da Web, enquanto que a Deep Web é aproximadamente 400-500
vezes mais ampla, a nal estima-se que os dados armazenados apenas nos 60 maiores sites Deep Web sejam
40 vezes maiores que o tamanho de toda a web super cial12.

A Dark Web é uma questão antiga existe sob a superfície da Internet de acordo com muitos estudiosos
e seu desenvolvimento da internet começou na década de 1960 como parte do esforço do Departamento de
Defesa dos EUA para conectar seus sistemas de computadores em rede, mas a internet não se tornou um
nome familiar até a década de 1990. A Dark Web em si permaneceu obscura para a maioria das pessoas,
mas ganhou uma certa infâmia em 2013, quando Ross William Ulbricht (também conhecido como Dread
Pirate Roberts), operador da Rota da Seda, foi preso13. A Rota da Seda era um mercado de bens e serviços
ilegais acessados por meio do Tor.

Um sistema que concede o anonimato como o Tor é apenas uma ferramenta, e o que importa não
é do que se trata tal tecnologia, mas sim, de como e para que é usada14. O acesso padrão de um usuário
na Web gera um sinal de seu dispositivo pela Internet para o então servidor que abrange o material que
deseja visualizar, seja ele qual for. Tal servidor lhe retorna tais dados para o seu dispositivo e assim se
dá o relacionamento direto entre o usuário e a sua ferramenta de pesquisa/ navegador. Sua solicitação

10
CHERTOFF, Michael. A public policy perspective of the Dark Web. Journal of Cyber Policy, London, v. 2, n. 1, p. 26-38, 2017. p. 27.
11
CHERTOFF, Michael. A public policy perspective of the Dark Web. Journal of Cyber Policy, London, v. 2, n. 1, p. 26-38, 2017. p. 27.
12
SUI, Daniel; CAVERLEE, James; RUDESILL, Dakota. e Deep Web and the Darknet: a look inside the internet’s massive
black box. SSRN Electronic Journal, Amsterdã, n. 314, 2015. p. 06.
13
SUI, Daniel; CAVERLEE, James; RUDESILL, Dakota. e Deep Web and the Darknet: a look inside the internet’s massive
black box. SSRN Electronic Journal, Amsterdã, n. 314, 2015. p. 08.
14
JARDINE, Eric. e Dark Web dilemma: tor, anonymity and online police. In: Global Commission on Internet Governance
– Paper Series n. 21, 2015. p. 01.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 227-244, ago. 2020.


Deep Web e Dark Web: implicações sociais e repercussões jurídicas 231

de pesquisa é captada pelas redes da Internet para o local que contém as informações que você deseja
visualizar e são devolvidas15.

O Tor acessa informações na Web da mesma forma e assim, tal navegador opera como uma versão
anônima de um jogo infantil em um telefone do qual o usuário envia sua solicitação para uma informação
especí ca para um computador ou servidor em algum local na rede Tor. Este por sua retransmite
essas informações para outro computador em outro lugar da rede e assim, mais uma vez, esse servidor
simplesmente repassa sua solicitação para outra máquina. Essa terceira máquina solicita as informações
que você deseja visualizar e as envia de volta por um caminho semelhante e desarticulado16.

Diariamente os usuários deixam “pegadas” na internet (informações sobre horário, itinerário,


tempo, etc., de seus acessos), e assim, tais dados pessoais denotam sua identidade digital, e assim, por
consequência, sua representação no ciberespaço. O anonimato da Internet pode ser garantido quando os
endereços de IP (Internet Protocol) não podem ser rastreados, despistando qualquer forma de localização
virtual, e isso é que torna a Dark Web propicia para a ação de cibercriminosos17. A Dark Web oferece uma
plataforma segura para os cibercriminosos patrocinarem uma grande quantidade de atividades ilegais, por
exemplo, mercados anônimos por meios seguros de comunicação, sob uma infraestrutura não rastreável.

A Dark Web nesse contexto parece ser local propício para ação e desenvolvimento de terroristas,
a nal suas ações implicam na necessidade da existência de uma rede anônima. Outro aspecto a ser
considerado é que atualmente comprar informações de cartão de crédito roubadas nunca foi tão fácil,
a nal já existem sites especializados que oferecem tais serviços, como o Atlantic Carding no qual quanto
mais você paga, mais recebe18. Em meio a Dark Web não se pode deixar de destacar a presença da pedo lia
e da pornogra a infantil.

Entretanto, o que se pode extrair dos estudos de Gehl é que muito embora a Dark Web seja associada
preponderantemente ao trá co e a pornogra a, esta oferece inúmeras possibilidades, com o seu anonimato,
para jornalistas, ativistas e denunciantes que desejam falar livremente, apesar do monitoramento estatal
da Internet19. Neste sentido, os agentes acima mencionados percebem que por meio de tais sowares de
anonimato como o Tor, estes podem bene ciar a si mesmos ou qualquer outra pessoa, que queira dissociar
sua fala da sua identidade – incluindo nesse diálogo dissidentes políticos.

15
JARDINE, Eric. e Dark Web dilemma: tor, anonymity and online police. In: Global Commission on Internet Governance
– Paper Series n. 21, 2015. p. 02.
16
JARDINE, Eric. e Dark Web dilemma: tor, anonymity and online police. In: Global Commission on Internet Governance
– Paper Series n. 21, 2015. p. 02.
17
CHERTOFF, Michael; SIMON, Tobby. e impact of the Dark Web on internet governance and cyber security. Global
Comission on Internet Governance, Waterloo, n. 6, 2015. p. 03.
18
CHERTOFF, Michael; SIMON, Tobby. e impact of the Dark Web on internet governance and cyber security. Global
Comission on Internet Governance, Waterloo, n. 6, 2015. p. 04.
19
GEHL, Robert. Power/freedom on the dark web: a digital ethnography of the Dark Web social network. New Media & Society,
Newbury Park, v. 18, p. 1219-1235, 2016. p. 1223.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 227-244, ago. 2020.


232 Fernanda Viero da Silva, Mateus de Oliveira Fornasier, Norberto Milton Paiva Knebel

A estrutura de fóruns na Dark web só permite o acesso há quem tenha habilidade técnica para
encontrá-los, também, exige uma disposição de comunicação que respeite a privacidade a níveis profundos:
conversas sobre questões como suicídios, golpes políticos e pedo lia não são tratadas como assuntos
marginalizados, não pode haver retaliação. Todavia, esses sites não funcionam sem administração e é
constante a exclusão seletiva de certos assuntos. Por isso que Gehl20 considera esses fóruns experimentos
fechados de poder e liberdade por meio do anonimato.

É importante esclarecer que, enquanto grandes partes da Dark Web são acessíveis apenas via Tor, o
próprio navegador Tor pode realmente ser usado para outros ns bené cos, como simplesmente navegar
no dia-a-dia de modo livre de restrições de conteúdo censurado e preocupação com a vigilância estatal ou
corporativa21. Criminalizar o uso do Tor não faria sentido justamente porque é um aplicativo normal, que
depende do comportamento do usuário, sendo possível usá-lo como qualquer outro navegador de grandes
empresas, como o Google Chrome ou o Mozilla Firefox.

Assim, o resultado nal deste sistema narrado é uma forma originária de usar a Internet
anonimamente, com toda a imunidade que isso proporciona. Claramente esse anonimato abre a porta
para abusos. A Dark Web diante do exposto se apresente como uma maneira viável para que agentes
mal-intencionados troquem mercadorias ilegalmente, de maneira anônima e tem potencial para abrigar
um número cada vez maior de atividades maliciosas. Pesquisadores acerca da temática de segurança e
privacidade precisam permanecer vigilantes e encontrar novas formas de identi car os serviços maliciosos
futuros (e que podem acarretar o surgimento de mercados especí cos) para lidar com novos fenômenos o
mais rápido possível22.

A visão ideológica e capitalista a partir da Deep Web

A natureza atual da Web é dupla. Em primeiro lugar ela é composta por recursos de informação
que são negligenciados nos resultados de mecanismos de pesquisa de uso geral; e o outro lado da natureza
da Web é a “Dark Web”, que aloca atividades ocultas atrás de portais anônimos23. Assim, tal plataforma é
moldada e equipada pela tecnologia e igualmente pelo conhecimento limitado do público sobre o que é e
como usá-la, sendo este seu combustível principal.

O mundo capitalista contribui para a criação de uma Web invisível, por meio de empresas que
criam novos mecanismos de busca e assim tais formas de Webs resultam do que não é indexado por esses

20
GEHL, Robert. Power/freedom on the dark web: a digital ethnography of the Dark Web social network. New Media & Society,
Newbury Park, v. 18, p. 1219-1235, 2016. p. 1232.
21
JARDINE, Eric. e Dark Web dilemma: tor, anonymity and online police. In: Global Commission on Internet Governance
– Paper Series n. 21, 2015. p. 02.
22
CHERTOFF, Michael; SIMON, Tobby. e impact of the Dark Web on internet governance and cyber security. Global
Comission on Internet Governance, Waterloo, n. 6, 2015. p. 07.
23
DEVINE, Jane; EGGER-SIDER, Francine; ROJAS, Alexandra. e evolving impact of the invisible web: exploring economic
and political rami cations. Journal of Web Librarianship, Philadelphia, v. 9, n. 4, p. 145-161, 2015. p. 146.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 227-244, ago. 2020.


Deep Web e Dark Web: implicações sociais e repercussões jurídicas 233

mecanismos de pesquisa24. Tais empresas são responsáveis também pelo desenvolvimento de recursos
internos que são protegidos por protocolos de não busca e rewalls de segurança.

Nas redes sociais atualmente, os elementos anônimos estão muito distantes do que agora
reconheceríamos como mídia social convencional, que envolve identidades do mundo real cada vez mais
vinculadas às preferências do consumidor e controle biopolítico. O cenário anônimo e virtual não tem ns
lucrativos e não está interessado em reproduzir a partir de seus membros um novo nicho de público a ser
vendido aos pro ssionais de marketing; além disso, por parecer ser virulentamente dedicado a proteger os
membros contra a aplicação da lei e o poder do Estado25.

As empresas responsáveis pelos mecanismos de pesquisa atendem às demandas governamentais


no que tange a censura; logo como resultado, um aspecto político da Web invisível está emergindo, sendo
moldado pelos governos de um lado, e por uma facção de pessoas que pretendem burlar os governos, por
outro26. Plataformas de pesquisa como Google, Bing e Yahoo! possuem um papel primordial na captação
de informações e dados de cidadãos de determinados países, mesmo em conformidade com a censura do
governo. Logo, é na internet visível que os dados pesquisados são retidos, utilizados para ns de interesse
das empresas que gerem essas plataformas de busca.

Com tais implicações, surge uma nova modalidade de mercado, voltado à Dark Web e seus sowares,
que bene ciam a ação de hackers, que quando utilizadas, violam as leis de crimes de computador. Nos
Estados Unidos por exemplo, há a incidência da Lei de Abuso e Fraude de Computadores (CFAA), que
proíbe invasões, acesso não autorizado e danos a computadores no comércio interestadual ou internacional
e também proíbe o trá co de acesso não autorizado a computadores e espionagem de computadores27.

Com a ascensão da internet, o processamento e rapidez das comunicações atingiram patamares


históricos e com o fácil acesso à informação surgiram por consequência novas formas rápidas e
e cientes do crime organizador operar. O trá co de seres humanos, por exemplo, é uma atividade
criminosa que é capaz de atravessar fronteiras e alcance legislativo; os responsáveis por tais ocorrências
operam esse negócio visando ao lucro e se utilizam das mais recentes tecnologias disponíveis para
esconder suas condutas criminosas, a nal o avanço da tecnologia proporciona lugares para os usuários
se esconderem28.

24
DEVINE, Jane; EGGER-SIDER, Francine; ROJAS, Alexandra. e evolving impact of the invisible web: exploring economic
and political rami cations. Journal of Web Librarianship, Philadelphia, v. 9, n. 4, p. 145-161, 2015. 147.
25
GEHL, Robert. Power/freedom on the dark web: a digital ethnography of the Dark Web social network. New Media & Society,
Newbury Park, v. 18, p. 1219-1235, 2016. p. 1232.
26
DEVINE, Jane; EGGER-SIDER, Francine; ROJAS, Alexandra. e evolving impact of the invisible web: exploring economic
and political rami cations. Journal of Web Librarianship, Philadelphia, v. 9, n. 4, p. 145-161, 2015. p. 150.
27
SUI, Daniel; CAVERLEE, James; RUDESILL, Dakota. e Deep Web and the Darknet: a look inside the internet’s massive
black box. SSRN Electronic Journal, Amsterdã, n. 314, 2015. p. 11.
28
RHODES, Leanne Maree. Human trafficking as cybercrime. Agora International Journal of Administration Sciences,
Oradea, n. 1, p. 23-29, 2017. p. 23.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 227-244, ago. 2020.


234 Fernanda Viero da Silva, Mateus de Oliveira Fornasier, Norberto Milton Paiva Knebel

O SilkRoad foi o primeiro mercado de Dark Web predominante e que introduziu muitas práticas
que são usadas até hoje em tais mercados; ideologicamente, ele foi moldado pelos fundamentos libertários
do mercado: os dados de seus fundadores foram criados em um local de mercado para qualquer forma
aceitável de comércio, aparentemente fora da área de abrangência do Estado. Tais mercados oferecem
uma quantidade cada vez maior de reservas de bons serviços e serviços lucrativos, com destaque para
medicamentos recreativos, como cocaína, cannabis e psicodélicos, mas também oferece uma ajuda a
heroína, várias formas de novas substâncias bioativas, e informações digitais29.

Quando se analisa a Dark Web, e portanto, os cibercrimes é necessário entender que o crime
organizado em si é, pelo menos em parte, motivado por ganhos nanceiros; entretanto gerar ganhos
criminais também gera riscos, a nal os ganhos criminais, e especialmente os gastos desses ganhos, podem
gerar suspeitas, o que por sua vez pode levar à prisão e con sco dos ativos, assim, lavagem de dinheiro,
portanto, é uma necessidade básica para jogadores em mercados criminais cujos ganhos excedem as
despesas diárias – a presença do crime organizado nessa rede pode ser de nida por três fatores: a estimativa
de riscos, os canais de destruição e os tipos de capital necessário para o sucesso econômico da atividade30.

Enquanto o anonimato desempenha uma função relevante no que tange o desenvolvimento de novas
ferramentas de comunicação e colaboração, as tecnologias de aprimoramento da privacidade também são
apropriadas regularmente como suporte à atividade criminosa e assim, as apropriações ilícitas a partir
do anonimato on-line desa am a autoridade da aplicação da lei e reestruturam as relações de a nal a
capacidade de ocultar a identidade que protege os usuários da acusação pode ser usada em vários níveis31.
Dessa forma surgem mercados de criptomoedas que capitalizam estruturas voltada ao anonimato, lhe
aprimorando; mercados ilegais que vendem drogas, armas e todo tipo de material ilícito também surgem
na Dark Web com regularidade preocupante, a m de mascarar a conduta do comércio criminoso32.

A pornogra a, por sua vez, é um exemplo de campo que muito embora já fosse consolidado no mundo
do trá co tomou proporções imensas com a ascensão da internet e da Deep Web, mais especi camente e
dentre tais consequências está a preservação da identidade do consumidor, a nal, antes da atual tecnologia
da informação e comunicação, era necessário encontrar um intermediário para o consumo de pornogra a,
gerando certo impedimento natural, atualmente, a pornogra a está plenamente disponível online, portanto,
não é acaso o acentuamento do uso dela na atualidade33.

29
DITTUS, Martin; WRIGHT, Joss; GRAHAM, Mark. Platform criminalism: the “last-mile” geography of the Dark Net market
supply chain. In: WWW 2018: e 2018 Web Conference, ACM. Security and Privacy on the Web, p. 277-288. 2018. p. 278-279.
30
WEBER, Julia; KRUISBERGEN, Edwin. Criminal markets: the dark web, money laundering and counter strategies Trends in
Organized Crime, Berlim, p. 347-356, 2019. p. 347-349.
31
SARDÁ, ais; NATALE. Simone; SOTIRAKOPOULOS; Nikos; MONAGHAN, Mark. Understanding Online Anonymity.
Media, Culture & Society, Newbury Park, v. 41, n. 4, 2019. p. 04.
32
JARDINE, Eric. Privacy, censorship, data breaches and Internet freedom: the drivers of support and opposition to Dark Web
Techonologies. New Media & Society, Newbury Park, v. 20, p. 2824-2843, 2018. p. 2825.
33
RHODES, Leanne Maree. Human trafficking as cybercrime. Agora International Journal of Administration Sciences,
Oradea, n. 1, p. 23-29, 2017. p. 24.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 227-244, ago. 2020.


Deep Web e Dark Web: implicações sociais e repercussões jurídicas 235

A facilidade do acesso à pornogra a hoje também impulsionou um mercado virtual voltado a


tal demanda, que clama adicionais por material; alguns dos quais se tornam cada vez mais hediondos
por natureza, permitindo que indivíduos realizem fantasias em realidade virtual. A web combinada
com fatores como esse fornece um ambiente lucrativo para os tra cantes operarem seus negócios. A
Fight the New Drug a rma que 25% de todas as solicitações de mecanismos de pesquisa são para material
pornográ co34.

O terrorismo e as organizações terroristas na Deep Web são preocupações constantes ao governo,


uma vez que se trata de uma ameaça à segurança nacional. Extremistas, por exemplo, se bene ciam
ao utilizarem a Dark Web ao recrutarem jovens vulneráveis para tais organizações. Simpatizantes ao
terrorismo por sua vez, não possuem restrições na Dark Web ao se expressarem e atraem atenção de
outros simpatizantes que apoiam a causa; grupos terroristas como o ISIS se utilizam da Dark Web par se
comunicar entre si e organizar suas atividades, e ainda, se utilizam para prover informações e instruções
pertinentes as suas pretensões35.

A internet também está se tornando um local de escolha para os tra cantes venderem os serviços
que eles impõem às vítimas36. A publicidade on-line não é o único método usado pelos tra cantes para
vender seus produtos, mas é um componente essencial para muitos deles, garantindo que a listagem on-line
ocorra no maior número possível de lugares. Alguns até obrigam suas vítimas a gastar tempo publicitando
on-line com identidades fotográ cas reais e diferentes, a nal fotos falsas são frequentemente usadas para
ocultar a exploração por idade.

O mercado da Dark Web para além da comercialização da pornogra a desenvolve o trá co de drogas
e medicamentos por exemplo; a utilização de um usuário em tal meio implica na identi cação de dados em
um dos maiores mercados do Tor (‘Cryptomarket’) que relaciona envolvidos na venda de medicamentos e
tal rede permite recriar uma rede completa de transações para todos os opioides e fornecedores no mercado
de criptogra a37.

Nessa mesma lógica, a internet também está sendo usada como uma ferramenta para auxiliar no
recrutamento de vítima, e ainda, coletar informações delas e criar per s falsos para criar relacionamentos virtuais,
a m de preparar futuras vítimas38. Assim, é perceptível que a Dark Web possibilita um tripé de atuações: (a) ser
uma plataforma de trá co; (b) plataforma de recrutamentos; e (c) uma plataforma de venda/lucro.

34
RHODES, Leanne Maree. Human trafficking as cybercrime. Agora International Journal of Administration Sciences,
Oradea, n. 1, p. 23-29, 2017. p. 24.
35
LIGHTFOOT, Summer. Surveillance and privacy on the Deep Web. Surveillance, Privacy and Rights, Nova York, 2017. p. 12.
36
RHODES, Leanne Maree. Human trafficking as cybercrime. Agora International Journal of Administration Sciences,
Oradea, n. 1, p. 23-29, 2017. p. 24.
37
DUXBURY, Scott W. HAYNIE, Dana. e networl structure of opioid distribution on a darknet cryptomarket. Journal of
Quantitative Criminology, Berlim, v. 34, p. 921-941, 2017. p. 924.
38
RHODES, Leanne Maree. Human trafficking as cybercrime. Agora International Journal of Administration Sciences,
Oradea, n. 1, p. 23-29, 2017. p. 25.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 227-244, ago. 2020.


236 Fernanda Viero da Silva, Mateus de Oliveira Fornasier, Norberto Milton Paiva Knebel

Há de se ponderar, entretanto que o capital e as habilidades necessárias para operar em tais mercados
de comercio on-line são muito diferentes daqueles necessários off-line, uma vez que o mercado on-line é
mais competitivo que o mercado off-line, pois é preciso entregar um bom atendimento ao cliente, fotos
de alta qualidade do produto e descrições precisas e ainda os clientes têm a oportunidade de comparar
vários fornecedores e os serviços que oferecem39. O mercado de drogas da “silk road” foi capaz de difundir
novas drogas e criar relações entre clientes e produtores, diminuindo o papel violento dos tradicionais
intermediários de drogas (tra cantes)40.

Em contrapartida, a regulamentação internacional no que se refere a atividade cibernética ilícita se


encontra ainda em um estágio inicial de desenvolvimento, a nal nenhum tratado ainda lida de maneira
abrangente e e caz com a insegurança gerada pela disponibilidade de ferramentas e ações de hackers que
atuam na Darknet41. A mercantilização da deep web representa uma mudança de paradigma quanto ao
estudo da criminalidade, os “criptomercados” não são um mero “Ebay para drogas ilícitas”, mas representam
uma transformação na cibercultura alinhada com a privacidade e a liberdade absoluta, criando um mercado
descentralizado e volátil42.

O crescimento dos criptomercados na “dark web” se fundamenta, também, na tomada de risco


pelos vendedores de drogas, por exemplo, ao expandirem as suas operações ao nível internacional,
compreendendo essa ferramenta como segura o su ciente para buscar clientes cada vez com mais recursos43.
Portanto, esses mercados não são somente a expressão digital do trá co de drogas, mas estão transformando
profundamente esse negócio, no nível estrutural das práticas, as regulando internacionalmente44.

O policiamento da Dark Web e as estratégias de controle por parte do Estado

Atualmente os governos se utilizam de táticas que eliminem as atividades criminosas da Dark Web
e, ao mesmo tempo, protejam o anonimato de usuários inocentes, e talvez essa seja uma missão difícil.
As táticas mais e cazes e razoáveis são aquelas que podem direcionar usuários anônimos especí cos e
responsabilizá-los por suas ações, em vez de desarmonizar vastas faixas de dados do usuário45.

39
WEBER, Julia; KRUISBERGEN, Edwin. Criminal markets: the dark web, money laundering and counter strategies Trends in
Organized Crime, Berlim, p. 347-356, 2019. p. 347.
40
ALDRIDGE, Judith; DÉCARY-HÉTU, David. Hidden wholesale: e drug diffusing capacity of online drug cryptomarkets.
International Journal of Drug Policy, Amsterdã, v. 35, p. 7-15, 2016. p. 7.
41
SUI, Daniel; CAVERLEE, James; RUDESILL, Dakota. e Deep Web and the Darknet: a look inside the internet’s massive
black box. SSRN Electronic Journal, Amsterdã, n. 314, 2015. p. 11.
42
ALDRIDGE, Judith; DECARY-HETU, David. Not an ‘ebay for drugs’: the cryptomarket “silk road” as a paradigm shiing
criminal innovation. 2014. p. 20.
43
DÉCARY-HÉTU, David; PAQUET-CLOUSTON, Masarah; ALDRIDGE, Judith. Going international? Risk taking by
cryptomarket drug vendors. International Journal of Drug Policy, Amsterdã, v. 35, p. 69-76, 2016.
44
MARTIN, James. Lost on the silk road: online drug distribution and the ‘cryptomarket’. Criminology & Criminal Justice,
London, v. 14, n. 3, p. 351-367, 2014.
45
CHERTOFF, Michael. A public policy perspective of the Dark Web. Journal of Cyber Policy, London, v. 2, n. 1, p. 26-38, 2017. p. 35.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 227-244, ago. 2020.


Deep Web e Dark Web: implicações sociais e repercussões jurídicas 237

Pode-se fazer uma distinção acerca de dois tipos de códigos pertinentes na presente pesquisa: (a) o legal; e (b)
o tecnológico; no qual o código legal é o positivado, elaborado pelo Congresso e pelos governantes (a exemplo das
leis e decretos) enquanto que o código tecnológico é o desenvolvido por programadores e possuí em si instruções
contidas em sowares e hardwares que se incorporam às experiências de interação com o mundo virtual46.

Neste âmbito é possível ponderarmos a importância de uma cooperação internacional que possa a
vir ser aplicada à Dark Web e a outras atividades cibernéticas ilícitas, na proporção em que elas obstruam
leis e acordos comerciais nacionais. A cooperação policial foi facilitada pela Convenção de Budapeste,
que focou em crimes cibernéticos no ano de 2001 (também conhecida como Convenção do Conselho da
Europa sobre Crimes Cibernéticos); o acordo gerado em tal ocasião buscou harmonizar as leis criminais
e aprimorar a investigação e a cooperação entre as agências policiais (internacionalmente) em questões
como segurança de redes de computadores, falsi cação, fraude, pornogra a infantil e violações de direitos
autorais47. Vale destacar que no art. 6º da tal convenção cou estabelecido que os Estados Partes devem
criminalizar a venda, aquisição e distribuição de ferramentas de hacking.

É de grande importância observar que é de grande valia aplicar uma política uni cada bem como
recomendações padronizadas em escala internacional, uma vez que as atividades de criminosos cibernéticos que
afetam a região da UE podem resultar de qualquer lugar do mundo, por exemplo48. Além disso, como foi descrito,
a Dark Web fornece anonimato e, portanto, é altamente difícil identi car criminosos entre os usuários em geral.

A comunidade internacional tem levado a sério a colaboração e os diferentes padrões de privacidade,


uma vez que em 2007, a OCDE adotou a Recomendação sobre Cooperação Transfronteiriça na Aplicação
de Leis de Proteção da Privacidade para tratar da privacidade em escala global. Em resposta a isso, a Federal
Trade Commission (FTC) dos EUA, juntamente com as autoridades de execução de todo o mundo, fundou
a Rede Global de Reforço da Privacidade para promover o compartilhamento de informações, investigação
e cooperação transfronteiriça49.

Recentemente a INTERPOL e a Europol propuseram o estabelecimento de uma Força-Tarefa


Conjunta de Cooperação e Compatibilidade com Crimes Cibernéticos para ajudar a harmonizar diferentes
sistemas legais e criar um método e ciente para cooperação e tal façanha facilitou a cooperação internacional
por meio uma espécie de “assistência jurídica mútua”, em que um país pode solicitar ao governo de outro
país que um juiz local emita um mandado para as informações em questão50. A Assistência Jurídica Mútua

46
FERES, Marcos Vinício Chein. OLIVEIRA, Jordan Vinícius. Dos códigos legais aos códigos do ciberespaço: re exões sobre
direito e Deep Web. PIDCC, Aracaju, v. 11, n. 2, 2017. p. 235.
47
SUI, Daniel; CAVERLEE, James; RUDESILL, Dakota. e Deep Web and the Darknet: a look inside the internet’s massive
black box. SSRN Electronic Journal, Amsterdã, n. 314, 2015. p. 11.
48
KAVALLIEROS, Dimitrios; KOKKINIS, Georgios; CHALANOULI, Christina; PAPATHANASIOU, Anastasios. Searching for
crime on the web: legal and ethical perspectives, 2018. p. 07.
49
VOGT, Sophia Dastagir. e digital underworld: combating crime on the dark web in the modern era. Santa Clara Journal of
International Law, Santa Clara, v. 15, n.1, p. 105-123, 2017. p. 121.
50
VOGT, Sophia Dastagir. e digital underworld: combating crime on the dark web in the modern era. Santa Clara Journal of
International Law, Santa Clara, v. 15, n.1, p. 105-123, 2017. p. 120.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 227-244, ago. 2020.


238 Fernanda Viero da Silva, Mateus de Oliveira Fornasier, Norberto Milton Paiva Knebel

pode ser considerada como uma solução para a obtenção de dados que não normalmente mantidos
internacionalmente; é um acordo entre países para fornecer assistência um a um.

A coleta e a pesquisa focadas de dados, juntamente com o formulador de políticas e a educação


pública, são pré-requisitos para uma revisão sistemática de qualidade e melhoria da estrutura reguladora
existente nos níveis nacional e internacional. Os formuladores de políticas precisam entender melhor as
condições que dão origem ao Dark Web e que são relevantes para a aplicação da lei, o design regulatório e
a segurança nacional51.

A cobertura popular da mídia no que tange a Dark Web é construída sobre uma noção de pânico
moral, que está de certa forma associado à cultura da Internet nos últimos 35 anos ligada ao receio da
invasão de hackers de computadores e ataques de telefone na década de 80. Nesse sentido há de se citar a
Lei de Decência de Comunicações do Congresso dos EUA (1996) e a Lei de Exclusão de Predadores Online
do Congresso dos EUA (2006), ambas inspiradas pelo pânico social sobre pedó los (e o compartilhamento
de pornogra a por consequência) no Myspace – rede social preponderante na época52. A Dark Web
atualmente está inspirando um pânico semelhante, voltado no medo das drogas, das armas, do comércio
que surge de tais façanhas e assassinos de aluguel.

O FBI assim, desenvolveu a possibilidade de usar um veri cador de endereços de protocolo de


computador (CIPAV) para identi car suspeitos que suspeitem estar disfarçando sua localização usando
serviços de anonimato e isso não compromete o anonimato dos usuários, mas ajuda a reduzir os parâmetros
de pesquisa quando o FBI realiza uma investigação por exemplo53.

A Agência de Projetos de Pesquisa Avançada em Defesa do Departamento de Defesa (DARPA) por


sua vez está desenvolvendo uma ferramenta chamada Memex, que pode descobrir padrões para ajudar a
aplicação da lei a combater atividades ilegais54 e esse projeto especi co pode ser entendido como uma outra
maneira pelas quais as agências de investigação podem entender o tráfego do Tor sem precisar desmascarar
todos os usuários do desta55.

51
SUI, Daniel; CAVERLEE, James; RUDESILL, Dakota. e Deep Web and the Darknet: a look inside the internet’s massive
black box. SSRN Electronic Journal, Amsterdã, n. 314, 2015. p. 12.
52
GEHL, Robert. Power/freedom on the dark web: a digital ethnography of the Dark Web social network. New Media & Society,
Newbury Park, v. 18, p. 1219-1235, 2016. p. 1222.
53
CHERTOFF, Michael. A public policy perspective of the Dark Web. Journal of Cyber Policy, London, v. 2, n. 1, p. 26-38, 2017. p. 35.
54
CHERTOFF, Michael. A public policy perspective of the Dark Web. Journal of Cyber Policy, London, v. 2, n. 1, p. 26-38, 2017. p. 35.
55
CHERTOFF, Michael. A public policy perspective of the Dark Web. Journal of Cyber Policy, London, v. 2, n. 1, p. 26-38, 2017.
p. 35. Em fevereiro de 2015 o FBI usou uma ferramenta de hackers para identi car os endereços IP dos usuários que acessam
um site oculto de abuso infantil Tor chamado Playpen (Cox 2016). Dentro de um mês após o lançamento em 2014, o Playpen
tinha 60.000 contas de membros. Até 2015, havia 215.000 contas, 117.000 postagens e 11.000 visitantes únicos por semana (Cox
2016). Para derrubar o site, o FBI tomou a iniciativa sem precedentes de apreender o servidor Playpen e transferir o site para um
servidor do FBI, sob um mandado emitido por um juiz federal no Distrito Leste da Virgínia (Satter eld 2016). O FBI executou o
Playpen do servidor de 20 de fevereiro a 4 de março de 2015 e conseguiu acessar os computadores de cerca de 1000 usuários do
Playpen durante esse período. Isso resultou em evidências su cientes para trazer cerca de 1500 casos contra pessoas acessando
imagens de abuso infantil no Playpen.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 227-244, ago. 2020.


Deep Web e Dark Web: implicações sociais e repercussões jurídicas 239

A Dark Web é, por sua natureza, anônima e incapaz de discriminar criminosos e usuários comuns
e as agências de execução devem resolver esse problema empregando táticas que mantêm a privacidade do
usuário comum e desmascarando o criminoso. A maneira mais e caz de fazer isso é procurar sites ilegais
em vez de usuários ilegais56.

Dotados de autoridade legal, hackers “do governo” podem colocar ferramentas nos computadores
dos usuários que acessam o site, e se o governo apenas desligar o site, outro aparecerá em seu lugar. Mas há
de se ponderar que os usuários de um site ilícito, os futuros usuários que estiverem pensando em acessar sites
ilegais estarão mais hesitantes em fazê-lo por causa do risco de serem pegos. Assim a opção nal seria que
o governo tentasse quebrar o Tor, em outras palavras, para identi car todos os usuários do Tor, entretanto,
isso também implica no desuso de uma ferramenta útil para usuários legítimos, como dissidentes57.

A Agência de Projetos de Pesquisa Avançada em Defesa dos EUA (DARPA) desenvolveu um


mecanismo de busca chamado Memex para ajudar o Departamento de Defesa a combater o trá co
de pessoas e potencialmente ajudar a descobrir outras atividades ilegais na Dark Web; resumindo, o
Memex está indexando milhões de páginas da web que não podem ser acessadas por mecanismos de
pesquisa tradicionais, incluindo milhares de sites apresentados em navegadores da Dark Web, como
o TOR58.

Enquanto o Memex não “desmascara” os endereços de IP ou identidades dos usuários, ele analisa
o conteúdo para descobrir padrões; resta esclarecer que embora grande parte do conteúdo que o Memex
seja destinado a indexar não seja acessível por meio de um mecanismo de busca comercial, as informações
são, no entanto, ainda consideradas públicas59. Nesse sentido se instauram discursos acerca do Direito
à privacidade dos usuários que se utilizam da Dark Web, e que tais mecanismos que fossem capazes de
rastrear IP’s apenas focassem em per s com condutas maliciosas.

É de fato desa ador regular o espaço da Dark Web e respeitar o anonimato de usuários não criminosos
simultaneamente, logo o governo deve entender essas questões coletivamente e de nir uma agenda estratégica
de segurança cibernética para atualizar e reforçar as regulamentações e políticas existentes60. Os avanços
tecnológicos devem ser utilizados pelas autoridades para a identi cação precoce de atividades de crimes
cibernéticos e, ao mesmo tempo, respeitam os direitos fundamentais de todos os usuários.

Compreender as melhores técnicas de imposição é apenas o primeiro passo. Os Estados Unidos


estão constitucionalmente comprometidos em proteger a liberdade de expressão na Internet de maneiras

56
CHERTOFF, Michael. A public policy perspective of the Dark Web. Journal of Cyber Policy, London, v. 2, n. 1, p. 26-38, 2017. p. 36.
57
CHERTOFF, Michael. A public policy perspective of the Dark Web. Journal of Cyber Policy, London, v. 2, n. 1, p. 26-38, 2017. p. 37.
58
VOGT, Sophia Dastagir. e digital underworld: combating crime on the dark web in the modern era. Santa Clara Journal of
International Law, Santa Clara, v. 15, n.1, p. 105-123, 2017. p. 114.
59
VOGT, Sophia Dastagir. e digital underworld: combating crime on the dark web in the modern era. Santa Clara Journal of
International Law, Santa Clara, v. 15, n.1, p. 105-123, 2017. p. 120.
60
KAVALLIEROS, Dimitrios; KOKKINIS, Georgios; CHALANOULI, Christina; PAPATHANASIOU, Anastasios. Searching for
crime on the web: legal and ethical perspectives, 2018. p. 07.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 227-244, ago. 2020.


240 Fernanda Viero da Silva, Mateus de Oliveira Fornasier, Norberto Milton Paiva Knebel

que muitos outros países não o são61. Alguns países desejam ter controle completo do tráfego na internet.
Eles veem a liberdade de expressão como uma ameaça ao seu poder e a Dark Web como uma ferramenta
que permite aos dissidentes falarem livremente62.

Atualmente o caso de censura por parte do governo mais conhecido de é que ocorre na China. O
Google.com antes mesmo do seu lançamento o cial em 2006 já era fortemente censurado e derrubado
às vezes devido à pressão política em tal país, que atuava na versão Google.cn. O governo chinês detém
uma longa lista de termos proibidos, como “Tiananmen”, “4 de junho”, “Tibet”, “democracia”, “democracia”,
“liberdade”, “sexo”, “Falun Gong” e assim por diante63.

Em razão disso, em março de 2010, em vez de continuar autocensurando seus resultados, o Google
decidiu fechar seu site em chinês (google.cn) e movê-lo para Hong Kong (google.com.hk) para fornecer
resultados de pesquisa sem censura64. A realidade demonstra uma deep web ambígua, que ao mesmo tempo
possibilita a denúncia de violências aos direitos humanos, pode promover crimes, é uma ambiguidade
digna da privacidade plena do anonimato65.

A internet é, por sua natureza, uma rede internacional de computadores, entretanto, a jurisdição
aplicada a ela pode ser considerada nebulosa, então os governos devem encontrar maneiras de cooperar no
estabelecimento de pelo menos alguns regulamentos mutuamente aceitáveis que governam a Dark Web. O
debate em torno da Dark Web não terminou de maneira alguma, a nal o anonimato online é uma “faca de
dois gumes que deve ser manuseada com cuidado, e à medida que os formuladores de políticas avançam,
eles devem monitorar atentamente a evolução da Dark Web e garantir que a aplicação”66.

Discussões sobre o uso da rede Tor e sobre criptogra a em geral, são altamente polarizadas, a nal
de um lado se a rma que a tecnologia precisa ser o mais próximo possível do “inquebrável” para que
atores nefastos não possam obter acesso; enquanto que outro lado a rma que tecnologias criptografadas
e anônimas, como o Tor, di cultam a aplicação da lei e do Direito em si67. A Dark Web mediante a todo

61
VOGT, Sophia Dastagir. e digital underworld: combating crime on the dark web in the modern era. Santa Clara Journal
of International Law, Santa Clara, v. 15, n.1, p. 105-123, 2017. p. 120. Uma grande tendência para obstáculos jurisdicionais que
advêm do uso da Dark Web é a cooperação mais estreita com as agências estrangeiras de aplicação de convenções internacionais
e leis domésticas. Alguns dos mais famosos casos de crimes cibernéticos ocorreram através da cooperação internacional,
como a remoção de Shiny Flakes na Alemanha, e a Operação Onymous, nos quais a colaboração entre A Europol, o FBI e o
Departamento de Segurança Interna dos EUA levaram à prisão de dezessete pessoas em vários países em conexão com vários
grupos criminosos do mercado negro.
62
CHERTOFF, Michael. A public policy perspective of the Dark Web. Journal of Cyber Policy, London, v. 2, n. 1, p. 26-38, 2017. p. 37.
63
DEVINE, Jane; EGGER-SIDER, Francine; ROJAS, Alexandra. e evolving impact of the invisible web: exploring economic
and political rami cations. Journal of Web Librarianship, Philadelphia, v. 9, n. 4, p. 145-161, 2015. p. 150.
64
DEVINE, Jane; EGGER-SIDER, Francine; ROJAS, Alexandra. e evolving impact of the invisible web: exploring economic
and political rami cations. Journal of Web Librarianship, Philadelphia, v. 9, n. 4, p. 145-161, 2015. p. 150.
65
SILVA, Matheus Fernando de Arruda; MARTINS, Rui Decio. Re exão sobre a relação entre a internet e o estado nas sociedades
contemporâneas: a importância de uma regulamentação que compreenda a dinâmica do desenvolvimento tecnológico e valorize
os direitos fundamentais. Revista de Direito, Governança e Novas Tecnologias, Brasília, v. 2, n. 1, p. 55-73, 2016. p. 68.
66
CHERTOFF, Michael. A public policy perspective of the Dark Web. Journal of Cyber Policy, London, v. 2, n. 1, p. 26-38, 2017. p. 37.
67
JARDINE, Eric. e Dark Web dilemma: tor, anonymity and online police. In: Global Commission on Internet Governance
– Paper Series n. 21, 2015. p. 07.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 227-244, ago. 2020.


Deep Web e Dark Web: implicações sociais e repercussões jurídicas 241

exposto pode ser vista para muitos como o lado obscuro da Internet, por razões válidas, que incluem sua
natureza anônima, mercados virtuais e moedas criptográ cas. No entanto, a Dark Web é e sempre será uma
ferramenta, e embora muitas atividades criminosas ocorram nessa rede, o Dark Web não é criminogênico,
a nal muitas dessas atividades também podem existir fora dela68.

Sob outra perspectiva, Jardine anota que o policiamento da Internet talvez não seja o ideal, mas sim,
se as pessoas parassem de usar redes de anonimato, como Tor, para fazer coisas ilegais69. Isso permitiria
que a rede fosse usada para contornar a censura e a vigilância em países repressivos, sem nenhuma das
consequências lesivas que o anonimato on-line produz70.

Naturalmente, não há como negar que a Dark Web apresenta um sério risco à segurança. Em
razão às suas características únicas, como anonimato, mercados virtuais e uso de criptomoedas, uma
série de atividades criminosas pode ser realizada nessa rede com facilidade; logo deve ser investigado
mais seriamente71. O estudo de Décary-Hétu e Giommoni aponta para a ine cácia de operações polícias
tradicionais em criptomercados de drogas, sendo até mesmo incapaz de causar aumento nos preços
comercializados – apontando para uma já tradicional adaptabilidade do trá co de drogas72.

O anseio punitivista sugere que a obscuridade acerca da dark web deva ter como resposta a
restrição da liberdade pelo Direito Penal e pela criminalização, independente da verdade, todavia, sugere-
se o conhecimento dos complexos fenômenos ligados a essas redes, considerando a realidade off-line e
online dos criptomercados ligados ao comércio de práticas ilícitas. A política criminal da Internet precisa
estar atenta aos princípios constitucionais como o da presunção de inocência, que garante ao indivíduo,
também, a tutela da privacidade73, não podendo a justi cativa do combate aos cibercrimes ser utilizada
como pretexto de controle da liberdade nas redes74.

68
JUNG, Jeyong; MIREA, Mihnea; WANG, Victoria. e not so dark side of the darknet: a qualitative study. Security Journal,
London, n. 32, p. 102-118, 2019. p. 114.
69
JARDINE, Eric. e Dark Web dilemma: tor, anonymity and online police. In: Global Commission on Internet Governance
– Paper Series n. 21, 2015.
70
JARDINE, Eric. e Dark Web dilemma: tor, anonymity and online police. In: Global Commission on Internet Governance
– Paper Series n. 21, 2015. p. 11. A rede é frágil, apesar de sua resiliência, e se tentarmos encontrar uma solução tecnológica
rápida e fácil para problemas que são realmente sociais, corremos o risco real de quebrar a Internet. Em vez de descartar o Tor
ou quebrar o anonimato e a criptogra a do sistema pelas portas traseiras da aplicação da lei, o foco deveria estar no policiamento
do que acontece na própria rede. O policiamento tem a vantagem de minimizar os custos que a Dark Web impõe à sociedade,
enquanto permite que a Dark Web tenha o máximo potencial de efeito positivo globalmente. Não é perfeito, mas é o melhor que
provavelmente podemos fazer.
71
JUNG, Jeyong; MIREA, Mihnea; WANG, Victoria. e not so dark side of the darknet: a qualitative study. Security Journal,
London, n. 32, p. 102-118, 2019. p. 114.
72
DÉCARY-HÉTU, David; PAQUET-CLOUSTON, Masarah; ALDRIDGE, Judith. Going international? Risk taking by
cryptomarket drug vendors. International Journal of Drug Policy, Amsterdã, v. 35, p. 69-76, 2016.
73
PINTO, Felipe Martins; GUIMARÃES, Johnny Wilson Batista. O Direito à Privacidade e o sigilo de dados na internet. Revista
da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 69, p. 201-220, 2016.
74
FERREIRA, Márcio Ricardo; BERARDI, Regina Celli Marchesini. Sociedade virtual do risco vs. loso a libertária
criptoanarquista: livre manifestação do pensamento, anonimato e privacidade ou regulação, segurança e monitoramento da
rede. In: CONPEDI (Org.). Direito, governança e novas tecnologias. Florianópolis: Conpedi, 2016.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 227-244, ago. 2020.


242 Fernanda Viero da Silva, Mateus de Oliveira Fornasier, Norberto Milton Paiva Knebel

A política criminal precisa compreender que não há objetivo inerente nas tecnologias de rede
- frequentemente associado a práticas criminosas - , mesmo nas redes alternativas como a deep web, o
rótulo de ambiente criminógeno é injusti cado e a criminalização precipitada dos seus usuários é um erro,
tendo em vista que os ideias de privacidade dessas redes pode muito bem servir a ns diversos - como a
resistência à violação dos dados pessoais. Essa é uma visão sociológica da infraestruturas das redes: De fato,
é uma plataforma tecnológica usada por diferentes indivíduos para uma variedade de propósitos75. Logo
a Dark Web pode ser observada sob o seguinte prisma: que nada mais é do que um espelho da sociedade:
distorcida, ampliada e mutada pelas condições estranhas e não naturais da vida on-line76.

Considerações nais

Estudar a temática da Deep Web e por consequência da Dark Web é sempre desa ador, a nal se
trata de um espaço virtual marcado pelo anonimato – que por si só é alarmante na sociedade. Mesmo em
meio a tudo que se a rma ainda há muito a se descobrir, pois o que se sabe é ainda pouco comparado ao
vasto universo que a Deep Web de fato é.

Logo, preliminarmente se pode concluir que o presente artigo não visa exaurir a temática, e que
tal problemática ainda deve ser investigada e debatida profundamente visto que em a atual sociedade,
marcada pela forte presença das tecnologias digitais, a internet como um todo é um assunto de grande
relevância no cotidiano dos usuários bem como as repercussões advindas desta.

Conclui-se que o anonimato oferecido pela Dark Web (uma parcela da Deep Web, portanto)
desencadeia inúmeras possibilidades e dentre elas o desenvolvimento de marcados ilegais e clandestinos que
operam por meio de cibercriminosos. A mídia exerce um papel importante na divulgação de dados, mas
também é responsável por gerar um temor público que associa a Deep Web automaticamente a prática de
crimes “nas escuras” e de fato um mercado negro. Portanto, a caracterização de um ideológico mercado de
capitalismo libertário, os criptomercados, surgem como a verdadeira ameaça, não essas redes como tecnologia.

Não há como se negar que a Dark Web, mais especi cadamente, gera riscos à sociedade pela forma
com a qual opera, e que nela há uma forte comercialização do trá co de drogas, pessoas, pornogra a e até
mesmo opera como um meio de reunir simpatizantes por exemplo, do terrorismo. Não há como se negar,
portanto, os riscos advindos de tais práticas a sociedade e à e cácia da ideia de legislação estatal e a defesa
aos Direitos Humanos. Entretanto, é possível concluir também, que o anonimato para além dos crimes
cibernéticos opera como uma máscara para seus usuários, que por sua vez se sentem confortáveis em
defenderem causas próprias e assuntos políticos, por exemplo, quando não são identi cados; o anonimato
gera encorajamento.

75
JUNG, Jeyong; MIREA, Mihnea; WANG, Victoria. e not so dark side of the darknet: a qualitative study. Security Journal,
London, n. 32, p. 102-118, 2019. p. 114.
76
SUI, Daniel; CAVERLEE, James; RUDESILL, Dakota. e Deep Web and the Darknet: a look inside the internet’s massive
black box. SSRN Electronic Journal, Amsterdã, n. 314, 2015. p. 12.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 227-244, ago. 2020.


Deep Web e Dark Web: implicações sociais e repercussões jurídicas 243

Conclui-se que deve haver investigações mais apuradas e precisas no meio, e que a existência de
convenções e acordos internacionais que visem legislar tais práticas e amparar possíveis riscos. Rejeitam-
se políticas criminais punitivistas acerca da deep ou dark web, pois a literatura indica que esses termos são
utilizados como forma de mascarar um controle sobre a liberdade dos usuários, é preciso compreender
formas inovadoras de reprimir o verdadeiro problema, que não é a forma tecnológica das redes: os
criptomercados de atos ilícitos, que possuem frentes online e off-line.

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A teoria do direito de Evgeni Pachukanis nos 100 anos da
revolução de outubro

Luiz Rosado Costa


Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-0851-8459

Maurício Ferreira da Cruz Júnior


Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-3680-7386

Considerações iniciais

Evgeni Bronislávovich Pachukanis1 (1891-1937) foi um


Canoas, v. 8, n. 2, 2020
jurista soviético membro do partido bolchevique que ocupou
Direito em movimento em perspectiva diversos cargos no governo instaurado após a Revolução de
Outubro de 1917. Em 1924 publicou a primeira edição de sua
Recebido: 27.09.2018
principal obra “Teoria geral do direito e marxismo”, revestida de
Aprovado: 24.10.2018
valor histórico, pois foi escrita ainda no calor revolucionário, e
Publicado: 01.07.2020 epistemológico, por vincular de forma original o método de
DOI http://dx.doi.org/10.18316/REDES.v8i2.5130 crítica da economia política feita por Marx, especialmente em O
Capital, com a crítica do Direito.

Este trabalho visa a descrever criticamente, utilizando-


se do método bibliográ co e de análise de conteúdo, a teoria
marxista do Direito de Pachukanis, inserindo-a no contexto das
fases pós-revolucionárias da Nova Política Econômica (NEP) e do
stalinismo, que se sucederam da publicação da obra até a morte
do autor, condenado como “inimigo do povo” em 1937, após ser
obrigado a sucessivas revisões de sua teoria.

O estudo divide-se em duas partes: na primeira é apresentada


a teoria do Direito de Pachukanis, descrevendo-se como o autor
relaciona o método marxista e a forma jurídica, situa a relação
jurídica como núcleo do Direito e expõe a impossibilidade de

1
Também grafado como Pasukanis, Pashukanis, Pachoukanis, Pašukanis e
Paschukanis. Optamos pela grafia Pachukanis por ser a corrente nas traduções
para o português de sua obra.
246 Luiz Rosado Costa, Maurício Ferreira da Cruz Júnior

existência de um Direito socialista/proletário; na segunda parte, analisa-se a teoria de Pachukanis inserida


no contexto soviético entre 1924 e 1937, demonstrando-se como sua obra dialoga com a de Piotr Stutchka2
durante o NEP, e é combatida por Andrei Vychinsky3 durante o stalinismo.

A teoria do direito de Pachukanis

Marx não realizou um estudo sistematizado da superestrutura jurídica e o direito aparece em sua
obra apenas de forma fragmentada, principalmente como instrumento de crítica ao idealismo:
o centro de suas atenções estava na a rmação da concepção materialista da história, segundo a qual o que
determina a consciência é a existência e não o contrário como a rmava a maior parte da loso a e ideologias
idealistas de sua época. Segundo esse ponto de vista era mais importante mostrar o direito como um epifenômeno
e não como elemento determinante da realidade (ALAPANIAN, 2009, p. 25-6)

Embora a tentativa de uma teoria marxista do direito tenha sido esboçada por juristas que o
antecederam, destacando-se dentre eles Stutchka, coube a Pachukanis elaborar o maior marco teórico
do direito pela perspectiva marxista, “Teoria geral do direito e marxismo”, ao conseguir estender a análise
de Karl Marx da forma mercantil, feita especialmente em O Capital, à forma jurídica, fornecendo uma
explicação materialista e historicamente determinada do ordenamento jurídico e da função desempenhada
pelo direito no capitalismo.

O método marxista e a forma jurídica

Pachukanis parte do método desenvolvido por em O capital – obra na qual Marx buscou explicitar
a dinâmica capitalista e suas contradições sob o ponto de vista da economia política – para demonstrar que
a forma jurídica estaria enraizada na estrutura econômica no princípio da troca de equivalentes.

Sua metodologia de análise do direito tal qual a análise de Marx do capital foi grande elemento
diferencial de Pachukanis, em relação aos tradicionais juristas soviéticos (MASCARO, 2002, p. 139). Seu
modelo metodológico parte de duas observações sobre a obra de Marx (PACHUKANIS, 1988, p. 31).

A primeira, refere-se ao papel da abstração nas ciências sociais: parte-se do abstrato ao concreto,
assim, conceitos como sociedade, população e Estado não devem ser o ponto de partida, mas o de chegada,
como resultado das re exões; a segunda observação refere-se aos conceitos, que nas ciências sociais, ao
contrário do que ocorre com as ciências naturais, evoluem conforme a dialética real do processo histórico.

Pachukanis transpõe para o direito a dialética entre forma e conteúdo: o ponto é saber de que maneira
a forma e o conteúdo do direito são determinados reciprocamente no curso da história. O direito, assim,

2
Também grafado como Stucka, Stuchka e Stučka. Mantivemos a neste estudo a gra a Stutchka por ser a mais corrente nos
textos acadêmicos brasileiros.
3
Grafado como Vyshinsky nos textos de língua inglesa

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 245-255, ago. 2020.


A teoria do direito de Evgeni Pachukanis nos 100 anos da revolução de outubro 247

em sua construção teórica, não existe somente como abstração, mas como categoria histórica concreta que
se desenvolve a partir de relações humanas reais, inseridas nas relações de produção.
O pensamento de Pachukanis está claramente construído sobre o mesmo método dialético a partir do qual
Marx elaborou O capital, o que resulta numa análise tendente a reconstruir o direito como totalidade concreta;
o mesmo que Marx, do ponto de vista econômico, buscou fazer com o capitalismo, com vistas a explicitar toda a
sua dinâmica interna e todas as suas contradições imanentes (KASHIURA JÚNIOR, 2009, p. 55).

Pachukanis, no entanto, não se limitou a organizar o pensamento de Marx sobre o direito, tratado
em sua obra de modo esparso, mas logrou, ao estender seu método à análise do direito, construir uma
teoria jurídica marxista nova.

Ao analisar o direito como um fenômeno objetivo em uma sociedade historicamente situada,


rejeitando seu caráter meramente ideológico, Pachukanis une suas investigações jurídicas à crítica da
economia política feita por Marx. Para o jurista soviético, “a natureza ideológica de um conceito não
suprime a realidade e a materialidade das relações por ele expressas” (PACHUKANIS, 1988, p. 39), i.e., a
constatação da forma ideológica do direito não dispensa o estudo de sua realidade objetiva.

Neste sentido, Pachukanis expõe uma de suas principais críticas à teoria neokantiana do Direito,
cujo principal expoente foi Hans Kelsen, argumentando que essa teoria “abre mão não só dos elementos
objetivos e materiais da realidade, mas também do psiquismo humano real” (PACHUKANIS, 1988, p.
39). A forma jurídica surge da forma econômica e não o contrário, como sustentam as teorias jurídicas
desvinculadas da realidade material histórica.

A desvinculação entre os domínios do sein (ser) e sollen (dever ser) – feita por juristas neokantianos
como Hans Kelsen –, segundo a qual essa última categoria seria historicamente imutável, obscurece a
compreensão da natureza do direito que, como produto de condições históricas, surge, da forma que hoje
é compreendido, junto com o modo de produção capitalista.

Assim, no plano da realidade e materialidade das relações reais, Pachukanis parte da premissa de
que o direito é o re exo da relação de troca entre proprietários de mercadorias, e é esta relação a sua
própria essência.

A forma jurídica somente é possível a partir da troca de equivalentes referenciados a partir do trabalho
humano medido pelo tempo, o que ocorre na sociedade calcada no princípio da divisão do trabalho:
em tal sociedade mercantil, o circuito das trocas exige a mediação jurídica, pois o valor de troca das mercadorias
só se realiza se uma operação jurídica – o acordo de vontades equivalentes – for introduzida. Ao estabelecer um
vínculo entre a forma do direito e a forma da mercadoria, Pachukanis mostra que o direito é uma forma que
reproduz a equivalência (NAVES, 2008, p. 57).

Pachukanis relaciona a forma com o conteúdo do Direito, ambos ligados à circulação mercantil:
o conteúdo é determinado pela circulação de mercadoria e a forma jurídica é o que permite que esta
circulação de mercadoria funcione. E para Márcio Naves (2008, p. 53): “relacionar a forma da mercadoria
com a forma jurídica resume, para Pachukanis, o essencial de seu esforço teórico”.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 245-255, ago. 2020.


248 Luiz Rosado Costa, Maurício Ferreira da Cruz Júnior

Em suma, na teoria pachukaniana, a forma do direito já é um problema em si: a própria existência


da norma se baseia na relação entre sujeitos de direito que só existe em sua plenitude em uma sociedade
de mercado capitalista. Sua análise ainda logra abranger todas as fases da “vida” da forma jurídica: desde as
condições necessárias para seu surgimento, advindas da circulação de mercadoria, até as condições sob as
quais ela deve desaparecer, como consequência do m do capitalismo.

O sujeito de direito

Para que ocorram as condições necessárias para a produção capitalista, cujo núcleo é a troca
de mercadorias, é necessária a existência de sujeitos de direito, que são o “átomo da teoria jurídica”
(PACHUKANIS, 1988, p. 68): a negociação de mercadorias não pode ser feita sem o consentimento mútuo
de seus proprietários, que é expresso juridicamente por meio de contrato, acordado com a assunção da
condição de sujeitos de direito dos contratantes (proprietários). As relações de troca que nos sistemas
feudal e escravista eram fundadas na força, no capitalismo são fundadas na relação contratual. Assim, a
relação jurídica, e não a norma, é para Pachukanis (1988, p. 47), “a célula central do tecido jurídico”, através
da qual o direito se realiza como fenômeno social objetivo.

A norma, segundo ele, ou é deduzida diretamente das relações já existentes, ou representa, com
certa probabilidade, a previsão de nascimento das relações correspondentes (PACHUKANIS, 1988, p. 49).

A dogmática jurídica tradicional parte da relação jurídica como um dado apriorístico, mas, conforme
aduz Ferreira (2009, p. 107), “para um marxista que considera historicamente toda forma social, devem ser
explicitadas as condições materiais que fazem de uma categoria uma realidade”. Não é a norma que transforma
a pessoa em sujeito de direito, mas o vínculo econômico formado para que ocorra a troca de mercadorias.

Conforme exposto, Pachukanis situa o surgimento da categoria de sujeito jurídico no ato de troca,
que realiza o valor abstrato da mercadoria. E é na troca, ainda, que se realiza na prática, a autodeterminação
e os direitos de liberdade e igualdade. Estes direitos “universais”, presentes no lema da revolução burguesa
(francesa) são interpretados na teoria de Pachukanis como liberdade de “apropriação e de alienação” (1988,
p. 104) e igualdade para contratar, que é condição necessária “para que os produtos do trabalho humano
possam entrar em contato entre si como valores” (1988, p. 104).

Márcio Naves (2008, p. 65), neste sentido, aponta que “a forma-sujeito de que se reveste o homem
surge como a condição de existência da liberdade e da igualdade que se faz necessária para que se constitua
uma esfera geral de trocas mercantis”.

A relação de trocas de mercadorias de valor equivalente entre os proprietários, portadores de uma


vontade de igual peso, é expressa juridicamente pelo contrato que, por essa razão, torna-se um conceito
central do direito.

O desenvolvimento do mercado, a circulação de mercadoria e a consequente necessidade de troca


pelo equivalente, inclusive com a troca de trabalho, são os elementos que transformam o homem em

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 245-255, ago. 2020.


A teoria do direito de Evgeni Pachukanis nos 100 anos da revolução de outubro 249

sujeito de direito, que pode vender e comprar livre e igualmente mercadorias, com a negociação entre os
proprietários dos meios e aqueles que só dispõem de sua força de trabalho.

Direito e socialismo: a extinção da forma jurídica

Karl Marx (2012, livro digital) em “Crítica ao programa de Gotha” relaciona o m do direito à fase
nal do socialismo ao a rmar que: “numa fase da sociedade comunista [...] o estreito horizonte jurídico
burguês poderá ser plenamente superado”.

Ao relacionar o m do direito apenas à fase nal, Marx deixa subentendida a existência de um


direito de transição, que para Pachukanis, ao contrário do que a rmaram outros autores soviéticos como
Stutchka e Vychinsky, não tem a natureza de um direito proletário. Para ele, o direito é algo especí co do
capitalismo e constitui-se em um de seus elementos centrais: só com a forma jurídica torna-se possível a
troca de mercadorias que ocorrem através de relações jurídicas entre sujeitos de direito. Assim, para ele,
seria impossível a existência de um direito socialista.

Como forma burguesa que é, o direito não pode ser substituído por um equivalente socialista, e ele
sobrevive na fase de transição para o socialismo apenas como forma de regulação técnica, pois a revolução
não consegue substituir de uma hora para outra “as trocas de mercadorias e o vínculo entre as diversas
unidades econômicas através do mercado” (PACHUKANIS, 1988, p. 87).

Pachukanis assume postura radical ao não desvincular o direito da circulação de mercadorias e de


sua natureza eminentemente burguesa, nem após a instauração do Estado soviético, pois, segundo ele, o
período imediato à Revolução seria um capitalismo de Estado no qual sobrevive a troca de mercadorias, mas
as oposições de interesses são suprimidas dentro da indústria nacionalizada (PACHUKANIS, 1988, p. 88).
Nesse período pós-revolucionário, em curso quando lançou sua teoria no ano de 1924, vigoraria um direito
burguês não-genuíno, que por sua origem revolucionária, difere do direito burguês genuíno anterior:
Pachukanis distingue o direito burguês tout court ou genuíno, do direito burguês não genuíno, o direito que
vigora no período de transição socialista. Mas qual o fundamento dessa distinção? O que distingue os dois
direitos burgueses é que o direito burguês genuíno é um elemento “mediatizador do processo de exploração”, ao
passo que o direito burguês não genuíno possui origem revolucionária. São essas características que permitem
emprestar ao direito soviético uma “natureza especí ca singular” (NAVES, 2008, p. 98).

A transição para o comunismo (socialismo avançado), para Pachukanis, seria feita não com a adoção
de novas formas jurídicas, mas com a extinção gradativa da própria forma jurídica: “o aniquilamento
das categorias do direito burguês signi cará nestas condições o aniquilamento do direito em geral, ou
seja, o desaparecimento do momento jurídico das relações humanas” (PACHUKANIS, 1988, p. 27), i.e.,
a revolução socialista não extingue a forma jurídica e o Estado de forma imediata, mas cria as condições
necessárias para sua progressiva extinção.

Em outras palavras, a permanência da forma jurídica no Estado soviético formado não signi ca a
construção de um direito socialista/proletário, mas o início da extinção da própria forma jurídica como um
todo, que se completará quando alcançado o socialismo avançado/comunismo.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 245-255, ago. 2020.


250 Luiz Rosado Costa, Maurício Ferreira da Cruz Júnior

Esta negativa de um direito socialista acabaria por custar a vida de Pachukanis no Grande Expurgo
da era Stálin na década de 1930.

A teoria do direito de Pachukanis no contexto Soviético (1924-1937)

Nesta seção serão analisadas as ideias de Pachukanis no contexto soviético e seus impactos nas
diferentes fases pós-revolucionárias, entre 1924, ano de lançamento de sua principal obra, e 1937, ano de
seu desaparecimento no Grande Expurgo, contrapondo-se suas ideias às dos principais autores soviéticos
de seu tempo, Piotr Stutchka, durante a Nova Política Econômica (NEP) implantada por Lênin, e Andrei
Vychinsky, durante o regime stalinista.

O direito na primeira fase pós-revolucionária: diálogo com a teoria de Piotr Stutchka

A obra de Pachukanis dialoga principalmente com a de Piotr Ivanovitch Stutchka (1865-1932),


jurista soviético que assumiu protagonismo ativo na revolução e foi comissário do povo para a Justiça
no primeiro governo revolucionário liderado por Lênin. Sua principal obra “A função revolucionária do
Direito e do Estado” foi publicada em 1921 e, além de Pachukanis, foi o único jurista soviético que na
década de 1920 procurou traçar uma teoria geral do Direito inspirada no marxismo de forma sistematizada
num corpo doutrinário articulado (CERRONI, 1976, p. 55)

Para Stutchka, o direito é expressão direta da luta de classes, decorre das relações de produção, não
das de troca e corresponde aos interesses da classe dominante, que não necessariamente será a burguesa
em todos momentos históricos. Em suas palavras: “el derecho es un sistema (u ordenamiento) de relaciones
sociales correspondiente a los intereses de la clase dominante y tutelado por la fuerza organizada de esta clase”
(STUCKA, 1974, p. 16). Sua de nição de direito seria geral, portanto, “capaz de comprender todo derecho,
ya sea el derecho general o burgués, ya el derecho feudal, ya el derecho soviético, etc.” (STUCKA, 1974, p. 22,
destaque nosso).

Após a Revolução, a classe trabalhadora tornara-se a classe dominante e o direito re etiria, assim,
segundo Stutchka, os seus interesses e desenvolveria ainda importante papel nesta fase de transição do
capitalismo para o comunismo:
la esencia de la revolución proletaria consiste em que su victoria y la instauración de la ditadura proletária entregan
a la revolución um nuevo y poderoso instrumento: el poder estatal; y el ejercicio del poder estatal consiste, por uma
parte, precisamente em la promulgación de la ley, em la posibilidad de de nir em el curso de los acontecimietos y
ante todo en la lucha de classes de una manera organizada, por médio del derecho (STUCKA, 1974, p. 338).

Ao contrário de Pachukanis, que não concebia a existência de um direito socialista, Stutchka


defendia a existência de um direito proletário e lhe atribuía uma importante função até a eliminação do
Estado e do próprio direito com a consolidação do comunismo.

A contribuição fundamental de Stutchka, todavia, foi demonstrar que existe certa modulação do
direito que advém da luta de classes e expressa o nível das contradições e lutas das classes: quando a classe

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 245-255, ago. 2020.


A teoria do direito de Evgeni Pachukanis nos 100 anos da revolução de outubro 251

trabalhadora está fortalecida, o direito tende a favorecê-la, por exemplo, com a ampliação de direitos sociais,
ao passo que com o enfraquecimento da classe trabalhadora haverá uma tendência a redução de direitos
conquistados. Segundo Mascaro (2016, p. 408), “a ideia de Stutchka sobre o direito, ligada à luta de classes, é um
grande passo de aproximação com o pensamento de Marx, mas ainda carente de um maior aprofundamento”

A de nição de direito de Stutchka, ao fundar-se na dialética, aproxima-se do pensamento marxista,


mas ainda é insu ciente para explicar o fenômeno jurídico em toda sua complexidade. A luta de classes é
importante para a compreensão do capitalismo, mas não é seu “átomo”. Segundo Marx:
a riqueza das sociedades em que domina o modo-de-produção capitalista apresenta-se como uma “imensa
acumulação de mercadorias”. A análise da mercadoria, forma elementar desta riqueza, será, por conseguinte, o
ponto de partida da nossa investigação (1983, p. 157, destaque nosso).

Pachukanis, a partir da obra de Marx, extrai a forma jurídica a partir da forma da mercadoria e,
assim, contrapõe o aspecto central da teoria do direito de Stucka: o direito como um fenômeno de classe
(HEAD, 2008, p. 140).

O aspecto geral almejado pela definição de Stutchka, que abarcaria todo o direito e em todas as
épocas, também é alvo de críticas de Pachukanis que considera que sua teoria falha ao não examinar as
raízes históricas da lógica de salvaguarda dos interesses da classe dominante, que é tarefa que, segundo
ele, deveria ser colocada em primeiro plano em uma teoria marxista (PACHUKANIS, 1988, p. 146).
Pachukanis analisa ainda o direito a partir de uma relação social específica de troca entre os proprietários
de mercadoria e, neste sentido, critica Stutchka por deslocar a análise de uma relação social específica
para o âmbito geral das relações sociais (PACHUKANIS, 1988, p. 46). Esta relação social específica da
qual parte a análise pachukaniana é característica do modo de produção capitalista, de modo que se torna
inviável uma conceituação do direito desvinculada de seu contexto histórico e válida para todas as épocas.

Por não explicar o porquê de o direito revestir-se da forma que assume: “esta definição [de Stutchka]
revela o conteúdo de classe das formas jurídicas, mas não nos explica a razão por que este conteúdo reveste
semelhante forma” (PACHUKANIS, 1988, p. 46). Ainda Stutchka, se equivoca, segundo Pachukanis, ao
deslocar a análise de uma relação social específica, de troca entre os proprietários de mercadoria, para o
âmbito geral das relações sociais, i.e., não distingue o direito das demais relações sociais (PACHUKANIS,
1988, p. 46). Assim, segundo Cotterrell (2009, p. 106), para Pachukanis, na busca por uma teoria do direito
mais adequada ao marxismo, as relações sociais:
Assumem forma jurídica na medida em que assumem a forma das (ou são modi cadas pelas) relações sociais
especí cas corpori cadas pelo direito. Estas relações especí cas são aquelas entre proprietários de mercadorias
no mercado e a forma jurídica é uma simples extensão da forma fetichizada da mercadoria que ao mesmo tempo
realiza e obscurece a essência do modo capitalista de produção (COTTERRELL, 2009, p. 106).

A luta de classes se desenvolve em um contexto mais amplo de exploração do homem pelo homem
na circulação de mercadorias com base no valor de troca pelo equivalente e, segundo, Mascaro (2009, p.
48), “não se desenvolve, no capitalismo, a partir de bases neutras e indiferentes”. Assim, a teoria de Stutchka
toma o todo pela parte ao relacionar o direito a apenas uma das engrenagens do sistema capitalista: a luta
de classes.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 245-255, ago. 2020.


252 Luiz Rosado Costa, Maurício Ferreira da Cruz Júnior

Ao conseguir aprofundar as teses de Marx usando seu método, Pachukanis vai além e situa o direito
no contexto geral capitalista, ao relacionar a forma jurídica à forma mercantil. Mas, ao contrário do que
em um primeiro momento possa parecer, sua teoria não se contrapõe à de Stutchka, mas a complementa
na explicação da função desempenhada pelo direito:
Pachukanis explica o que o direito é; Stutchka [...] soma-se à empreitada explicando em que pé o direito está. O
direito pode estar mais contra ou mais ao lado dos trabalhadores, mais liberal ou mais de bem-estar social, mas
o direito é a lógica de reprodução do capital. (MASCARO, 2009, p. 51)

Assim, Pachukanis, ao aprofundar o estudo da relação do direito com a lógica capitalista como um
todo, não contraria, mas sofistica a teoria de Stutchka que iniciou a aproximação, de forma sistematizada
mas ainda não profunda, da teoria do direito com o marxismo

A teoria jurídica no stalinismo: Vychinsky e a substituição da teoria marxista por uma teoria soviética
do direito

A construção de um Estado totalitário soviético que envolvia o reforço do aparelhamento jurídico e


estatal ao limite levou à refutação, na prática, da tese defendida por Marx da progressiva extinção do Estado
e do direito com o avanço do socialismo. Com sua ascensão ao poder e para fundamentar a construção
em curso de um Estado totalitário, Stálin reapresentou esta ideia de forma paradoxal: para a extinção do
Estado, exige-se necessariamente o seu reforço máximo (NAVES, 2009, p. 96).

Na teoria do direito, a refutação às teorias jurídicas vinculadas ao marxismo ortodoxo, que


propunham a extinção das formas jurídicas no socialismo, foi feita principalmente por Andrei Y. Vychinsky
(1883-1954), que ocupou o cargo de Procurador-Geral no governo de Stálin, “culminando no abandono
das orientações de Stutchka (morrera em 1932) e no ‘desaparecimento’ de Pachukanis no nal do decênio”
(FERREIRA, 2009, p. 74).

Vychinsky, neste contexto, destacou-se no pensamento soviético por ter fundamentado juridicamente
o stalinismo: “o ponto de partida de Vichinsky é a aceitação integral da versão estalinista do ‘materialismo
dialéctivo e histórico’” (CERRONI, 1976, p. 76).

Retomou-se o conceito positivista de direito como forma, resgatando o idealismo combatido por
Marx, a m de legitimar o regime stalinista e o fortalecimento das instituições jurídicas e do Estado: o
direito será socialista se uma norma assim estabelecer.

Nas palavras de Vychinsky, o direito soviético é de nido como:


the totality of the rules of conduct, established in the form of legislation by the authoritative power of the toilers
and expressing their will- the application of said rules being guaranteed by the entire coercitive force of the
socialist state to the end (a) of defending, securing, and developing relantionships and orders advantageous
and agreeable to the toilers, and (b) of annihilatin, completely and finally, capitalism and its survivals in
the economy, manner of life, and consciousness of the people, with the aim of building communist society
(VYSHINSKY, 1946, p. 74).

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 245-255, ago. 2020.


A teoria do direito de Evgeni Pachukanis nos 100 anos da revolução de outubro 253

Houve, desta forma, o renascimento formal do direito com Vychinsky durante o regime de Stálin:
“o direito era agora um produto da sociedade socialista, na qual não existiam classes antagônicas. Não se
falava mais de sua próxima extinção” (LOSANO, 2007, p. 177) e Pachukanis, perseguido, foi obrigado a
fazer sucessivas revisões de sua teoria a m de “adequá-la” ao novo sistema

O marxismo jurídico confundia-se com a expressão normativa do Estado soviético, um tipo de


juspositivismo socialista (MASCARO, 2009, p. 46) e os que defendiam a impossibilidade de um direito
socialista foram acusados por Vychinsky de traidores:
only traitors and those who betray the interests of socialism (like Pashukanis, Krylenko, and other apostates of
four country) could deny the socialist nature of Soviet law, asserting that our law is a mere replica or adaptation of
burgeois law. Soviet law protects the interests of the toiling masses, who have been emancipated from exploitation
and the weight of capitalism (VYSHINSKY, 1948, p. 75).

O renascimento do normativismo, com a realocação da norma como base do direito, fundamentou


a repressão aos opositores políticos e ideológicos do regime, especialmente com a in uência de Vychinsky,
como Procurador Geral, na prática legislativa e jurisprudencial.

Ainda que se possa considerar algum mérito teórico de sua teoria, seu triunfo na União Soviética
não foi epistemológico mas político: enquanto Stutchka e Pachukanis esboçaram teorias que buscavam se
alinhar ao marxismo, Vychinsky esboçou uma teoria soviética, legitimadora do agigantamento do Estado,
de sua burocracia e dos atos repressivos do stalinismo. Estes desdobramentos políticos e a sua teoria
jurídica legitimadora são elementos que, segundo José Damião Trindade (2011, p. 235), “não podem ser
desconsiderados no esforço [...] de compreensão do rumo e do desfecho melancólico que aguardariam
o país que havia realizado a primeira revolução socialista vitoriosa da História”. Assim, a construção de
um Estado totalitário soviético, que hipertro ou o Estado e a forma jurídica, signi cou a ruptura com a
perspectiva marxista clássica do m progressivo do Estado e do direito com o avanço do socialismo e esta
ruptura teórica pode ser simbolizada pelo desaparecimento de Pachukanis em 19374, no Grande Expurgo,
após sua condenação como “inimigo do povo”.

Considerações nais

Ao vincular metodologicamente a crítica do direito com a crítica da economia política, tal como
feita por Karl Marx em O Capital, Pachukanis aprofunda a teoria marxista ao estendê-la ao fenômeno
jurídico de forma inovadora, fornecendo uma explicação materialista e historicamente determinada do
ordenamento jurídico. Assim, sua obra remanesce essencial para a compreensão não apenas da função
exercida pelo direito no sistema capitalista, mas do próprio marxismo, mesmo decorridos mais de 90 anos
do lançamento da primeira versão de sua Teoria.

4
Sabe-se que Pachukanis foi preso pela polícia política em 4 de janeiro de 1937. Ainda permanece incerto o que lhe sucedeu
após seu desaparecimento.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 245-255, ago. 2020.


254 Luiz Rosado Costa, Maurício Ferreira da Cruz Júnior

O mérito de sua análise, em relação aos demais juristas soviéticos, foi conseguir demonstrar, com
rigor e nos moldes do materialismo dialético, a ligação existente entre o direito e o sistema capitalista ao
relacionar a forma do direito à forma da mercadoria.

Ao considerar o direito como forma burguesa, a teoria de Pachukanis nega a possibilidade de


existência de um direito socialista ou proletário: o direito está fadado à extinção com a abolição da forma
mercantil decorrente do advento do socialismo evoluído.

Durante o NEP, Stutchka elaborou a teoria do direito marxista mais so sticada até então, ao
relacionar o direito com uma das elementares do capitalismo: a luta de classes. Nesse sentido, Pachukanis
avançou em relação a essa teoria por conseguir relacionar o direito com o sistema capitalista como um todo
(e não apenas com a luta de classes). Fiel ao marxismo mais ortodoxo, a proibição da obra de Pachukanis, a
partir da década de 1930 e sua refutação, feita principalmente por Andrei Vychinsky durante o stalinismo,
é simbólica para demonstrar o afastamento do regime soviético da teoria marxista.

O agigantamento do Estado e das estruturas jurídicas, ao invés de progressivamente desaparecerem,


ocorrido principalmente a partir do regime de Stálin, não refutam a concepção marxista e pachukaniana da
impossibilidade de um direito socialista, mas, pelo contrário, con rmam que o Estado soviético se afastava
do socialismo ao consolidar um capitalismo de Estado, como o m da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas, no ano de 1991, demonstrou.

Referências

ALAPANIAN, Silvia. A crítica marxista do direito: um olhar sobre as posições de Evgeni Pachukanis. In: NAVES,
Márcio Bilharinho. O discreto charme do direito burguês: ensaios sobre Pachukanis. Campinas: UNICAMP, 2009.

CERRONI, Umberto. O pensamento jurídico soviético. Póvoa de Varzim: Publicações Europa-América, 1976.

COTTERRELL, Roger. Forma mercantil e forma jurídica: Pachukanis e o esboço de uma teoria materialista do
direito. In: NAVES, Márcio Bilharinho. O discreto charme do direito burguês: ensaios sobre Pachukanis. Campinas:
UNICAMP, 2009.

HEAD, Michael. Evgeny Pashukanis: a critical reappraisal. Nova York: Routledge-Cavendish, 2008.

KISHIURA JÚNIOR, Celso Naoto. Dialética e forma jurídica – considerações acerca do método de Pachukanis.
In: NAVES, Márcio Bilharinho. O discreto charme do direito burguês: ensaios sobre Pachukanis. Campinas:
UNICAMP, 2009.

LOSANO, Mario Giuseppe. Os grandes sistemas jurídicos: introdução aos sistemas europeus e extra-europeus.
Trad. Marcela Varejão. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

MARX, Karl. Crítica do programa de Gotha. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2012. Edição digital [e-pub].

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983, v. 1, t. 1.

MASCARO, Alysson. Filoso a do direito. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2016.

MASCARO, Alysson. Nos extremos do direito (Schmitt e Pachukanis). Lua Nova, São Paulo, n. 57, p. 135-140, 2002.

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A teoria do direito de Evgeni Pachukanis nos 100 anos da revolução de outubro 255

MASCARO, Alysson. Pachukanis e Stutchka: o direito, entre o poder e o capital. In: NAVES, Márcio Bilharinho. O
discreto charme do direito burguês: ensaios sobre Pachukanis. Campinas: UNICAMP, 2009.

NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2008.

NAVES, Márcio Bilharinho. Observações sobre “O discreto charme do direito burguês: uma nota sobre Pachukanis”.
In: NAVES, Márcio Bilharinho. O discreto charme do direito burguês: ensaios sobre Pachukanis. Campinas:
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PACHUKANIS, Evgeni Bronislávovich. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. Silvio Donizete Chagas. São
Paulo: Acadêmica, 1988.

STUCKA, Petr Ivanovich. La función revolucionaria del derecho y del Estado. Trad. Juan-Ramón Capella.
Barcelona: Península, 1974.

TRINDADE, José Damião de Lima. Os direitos humanos na perspectiva de Marx e Engels: emancipação política e
emancipação humana. São Paulo: Alfa-Omega, 2011.

VYSHINSKY, Andrei Yanuaryevich. e law of the soviet state. Trad. Hugh Babb. Nova York: e Macmillan
Company, 1948.

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Somos modernos? Considerações sobre o Estado e a
democracia brasileira a partir de Raízes do Brasil

Vinícius Balestra
UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
https://orcid.org/0000-0001-8706-1196

Introdução

O presente texto tem por objetivo criticar alguns


aspectos da interpretação do Brasil que se manifestam na obra
do historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda1, Raízes do
Brasil2. Para isso, valemo-nos da obra A Modernização Seletiva,
do sociólogo Jessé de Souza. A chave de leitura de Jessé reconstrói
uma interpretação do Brasil a partir de críticas e reparos feitos ao
que o autor convencionou chamar de sociologia da inautenticidade;
Canoas, v. 8, n. 2, 2020 tais críticas são feitas, especialmente, às interpretações de Sérgio
Buarque de Holanda (em Raízes do Brasil), Raymundo Faoro (Os
Direito em moviemnto em perspectiva Donos do Poder) e Roberto DaMatta (O que faz do Brasil, Brasil?).
Recebido: 13.05.2019 O intuito é dialogar com a rica crítica de Jessé de Souza,
Aprovado: 30.06.2019 especi camente ao ensaio histórico de Sérgio Buarque de
Publicado: 01.07.2020 Holanda e inserir novos elementos para potencializá-la. Para
atingir esse objetivo, nos valeremos de modesta porção da variada
DOI http://dx.doi.org/10.18316/REDES.v8i2.5726
fortuna crítica já produzida sobre Raízes do Brasil, a m de dar
aprofundamento e novos subsídios à análise de Jessé de Souza.
Nesse sentido, se torna especialmente importante o conceito
de cordialidade, presente na obra de SBH e com o qual temos
intenção de dialogar.

1
Paulistano, nasceu em 1902. Crítico literário, ensaísta e historiador, militou
junto à geração modernista dos anos 20. Ainda em tal década, se estabeleceu
na Alemanha, período em que viveu entre a boêmia e a universidade. Retorna
ao Brasil com o projeto de escrever um livro intitulado ‘Teoria da América”,
do qual jamais se encontraram fragmentos. Em vez disso, publica, em 1935,
pela Revista Espelho, “Corpo e Alma do Brasil: um ensaio de psicologia social”.
Morreu também na cidade de São Paulo, em 1982. Para detalhes, cf. DECCA,
Edgar Salvadori de. Ensaios de Cordialidade em Sérgio Buarque de Holanda.
In: AXT, Gunter; SCHÜLER, Fernando (Org.). Intérpretes do Brasil. Porto
Alegre: Artes e Ofícios, 2004. p. 214-228.
2
Publicado em 1936, Raízes do Brasil desenvolve com completude as ideias
esboçadas por Sérgio Buarque de Holanda, um ano antes, em “Corpo e Alma do
Brasil: ensaio de psicologia social”.
258 Vinícius Balestra

Raízes, espaços e tempos

Sandra Jatahy Pesavento, em texto intulado “Cartogra as do Tempo: palimpsestos na escrita da


história”3, dá valiosa contribuição para entender Raízes do Brasil, a partir da noção de espaço histórico.
Pesavento tem como intuito estabelecer relações entre a obra de Sérgio Buarque e os pensadores que, certa
ou provavelmente, informaram a concepção de espaço histórico do autor. Ao fazê-lo, Sandra nos aproxima
da provável concepção de história de Sérgio Buarque de Holanda e, assim, aprimora o nosso entendimento
de Raízes.

Tomada por esse intuito, Pesavento nos apresenta ao primeiro historiador que in uenciou Holanda:
Leopold Von Ranke. De fato, a in uência de Ranke sobre Holanda não apenas é perceptível na leitura e
interpretação de sua obra mais importante, mas está como que con rmada pelo próprio Sérgio, que é autor
de texto intitulado “O atual e o inatual em L. Von Ranke”, publicado em 1974 pelo número 100 da Revista
de História4.

Sabemos de Leopold Von Ranke que advogava uma metodologia para o escrever da história que
tratasse as fontes históricas com apurado rigor cientí co. O intuito de Ranke e daquela que seria sua
corrente seria o de retratar os fatos tal como haveriam acontecido, de modo a transportar o leitor do texto
para o ambiente que se busca retratar no passado.

A apresentação estrita dos fatos seria possível graças a um método que valorizava as fontes
documentais, o ciais, método que esse consolidou um novo paradigma para a história. Ranke privilegiara
o estudo do Estado, adotando postura de pretensa neutralidade diante da política5.

Essa postura rendeu a Ranke, como de se esperar, diversas críticas – dentre elas, a de amoralismo,
ceticismo político, dentre outras. Não é esse, no entanto, o aspecto que Sérgio Buarque de Holanda resgata
na obra do autor, mas o seu viés historista: signi ca dizer que Ranke entendia tempos históricos distintos
no acontecer e na sua apreensão. A contribuição de Ranke estaria, assim, na acepção de que o esforço da
historiogra a seria na verdade um esforço pela explicitação da diferença histórica6.

Haveria, assim, para Ranke, dois tempos distintos: o tempo do acontecer histórico, que é único –
e na transposição desse momento para o presente é que reside o trabalho do historiador – e o tempo de
interpretação, de descoberta de signi cado, de apreensão do passado pelo historiador.

O historiador que segue o caminho indicado por Ranke segue uma lógica em seu trabalho: pesquisa
arquivos e documentos e os submete a uma análise de critérios rigorosos, de modo que possa resgatar as
experiências do passado. É como se a familiaridade com o emaranhado de acontecimentos do passado de

3
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Caligra as do tempo: palimpsestos na escrita da história. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy
(Org.). Um historiador nas fronteiras: O Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: UFMG, 2005. p. 17-79.
4
PESAVENTO, Caligra as do tempo. Cit..., p. 22.
5
PESAVENTO, Caligra as do tempo. Cit..., p. 23-25.
6
PESAVENTO, Caligra as do tempo. Cit..., p. 26.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 257-268, ago. 2020.


Somos modernos? Considerações sobre o Estado e a democracia brasileira a partir de Raízes do Brasil 259

que se ocupa tornasse o historiador uma testemunha ocular do passado. O ineditismo do acontecimento
obriga o historiador, assim, a mergulhar no passado, decifrar seu contexto e relevar o sentido ao leitor7.

Não se deve confundir, no entanto, a busca desse sentido como a busca de um sentido para a própria
história, um sentido teleológico e geral. A esse respeito, escreve Pesavento:
A busca de sentido, procurada pelo historiador, não seria, pois, a de um sentido geral ou teleológico para a
história. Não se tratava de endossar uma loso a da história, que construísse terminalidades e ns, mas sim de
buscar um sentido no tempo do acontecido, este espaço histórico, este lugar no tempo, onde algo teria ocorrido
no passado8.

Ranke, nesse sentido, está verdadeiramente afastado de um contemporâneo seu, Johann Gustav
Droysen. Segundo Pesavento, ao contrário do que ocorreu em relação à Ranke, a respeito do qual Sérgio
Buarque escrevera um artigo, não há na obra desse pensador brasileiro nenhuma alusão explícita à obra de
Droysen. É possível, no entanto, identi car as marcas do pensamento de Droysen na obra de SBH.

Droysen se dedicou ao esudo de problemas de teoria e metodologia da história, postura bastante


distinta daquela de seu rival Ranke. Droysen defendeu a ideia de que o método histórico passava por fases:
a coleta e seleção de documentos históricos; uma fase de análise das fontes, com o intuito de analisar seu
grau de veracidade; uma fase de interpretação, na qual o historiador atribui signi cado às fontes coletadas,
que é seguida pela fase nal, a de exposição da narrativa histórica9.

Para Droysen, o tempo e o espaço dos acontecimentos históricos só estariam disponíveis para
nós em forma de representações. Os acontecimentos passados seriam registrados em fontes, que seriam
representações construídas em outra época. Ao historiador caberia, assim, ao interpretar as fontes, a tarefa
de elaborar representações sobre representações passadas.

Essas representações construídas pelo historiador, no entanto, seriam bem elaboradas se seguissem
um método de compreensão e investigação, que envolve buscar motivações, sentimentos, razões deixadas
nessas fontes. Assim, a partir da análise das fontes, o historiador poderia tentar reproduzir o passado, mas
sempre ciente de que o resgate desses acontecimentos é sempre uma possibilidade, não uma certeza10.

Não apenas no tratamento das fontes é que Droysen se afasta de Ranke, segundo Pesavento11. Se, por
um lado, Droysen parece mais disposto a levar em conta fontes históricas que não apenas as documentais,
com o intuito de representar os sentidos do passado, é mais rígido quanto ao modo de exposição histórico
do que Ranke. De fato, Ranke era conhecido por ser um escritor de estilo literário, quase ccional, a
despeito de sua xação pelo método de análise rígido de fontes documentais. Nesse ponto é que Pesavento
nos aponta outra divergência entre entre ambos:

7
PESAVENTO, Caligra as do tempo. Cit..., p. 27.
8
PESAVENTO, Caligra as do tempo. Cit..., p. 28.
9
PESAVENTO, Caligra as do tempo. Cit..., p. 29.
10
PESAVENTO, Caligra as do tempo. Cit..., p. 31.
11
PESAVENTO, Caligra as do tempo. Cit..., p. 31-32.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 257-268, ago. 2020.


260 Vinícius Balestra

Ao comentar Ranke, Droysen opunha a narrativa, como forma de exposição ligada à cção e à estética, às outras
formas de exposição – de pesquisa, didática e de discussão –, próprias à história como ciência. A cção criava
uma ilusão do espírito, como se o acontecimento, em sua integralidade, estivesse ali presente, como se o passado
tivesse um início e um m e, nalmente, como se fosse possível articular imagem objetiva sobre o passado12.

Ora, se Droysen, por um lado, se apresenta como um historiador de vanguarda, vez que admite
a impossibilidade de o historiador restaurar a imagem do passado no nível de uma verdade cientí ca,
por outro, parece em contradição consigo mesmo ao não admitir que a exposição da história se dê pela
narrativa. A pergunta não respondida, tomado o contexto de seu pensamento, é: se a narrativa ccional é
rejeitada como modo de contar a história, e a verdade histórica, por outro lado, impossível de ser alcançada,
de que outro modo de narrar os acontecimentos o historiador deve lançar mão?

Desse debate entre Ranke e Droysen, Pesavento nos aponta que estes foram lidos por Sérgio Buarque
de Holanda e, certamente, in uenciaram seu pensamento – Ranke, de maneira explícita, e Droysen de
modo implícito. Esses autores zeram parte daquilo que se convenciou chamar de culturalismo alemão,
movimento intelectual que abriga muitas outras leituras de Sérgio Buarque. A princípio, o que podemos
dizer é que Sérgio Buarque tanto tem de rankiano – em seu modo de escrever, próximo da narrativa
ccional, bem como nas multiplicidades temporais presentes em sua obra, que logo apontaremos – como
de droyseniano. A respeito da similaridade do cruzamento entre Droysen e Holanda, escreve Pesavento:
Droysen enumera diversos materiais, discursivos ou imagéticos, postos à disposição do historiador, indo dos
contos de fadas à alta literatura, das moedas e das ruínas arquitetônicas às pinturas. Em uma atualização das
poerguntas, poderíamos indagar: tudo, então, seria matéria para a história? Sim, seria a respostas para estes
pensadores alemães e, aparentemente, para SBH também, pois seria portador de um registro de vida no tempo13.

Eis aqui a divergência fundamental (expressa em seu texto) de Sérgio Buarque com Ranke. Ranke
era um historiador objetivo, com quem Holanda compartilhava a noção de múltiplas temporalidades, mas
que não chegava aos fundamentos, às raízes do acontecer histórico, dada sua indisposição de analisar
fontes que não fossem as documentais.

Monta-se um quadro, então, de diversas in uências que Sérgio Buarque recebeu dos autores que leu
em sua passagem pela Alemanha. É certo que também tenha lido Dilthey14, que aprofundou seu conhecimento
a respeito de Ranke, e com quem Sérgio Buarque compartilha a concepção hemernêutica de história.

Isto signi ca dizer que Holanda, in uenciado pelos culturalistas alemães – Dilthey, Ranke, Droysen,
entre outros15 – tem uma visão de que a história comporta múltiplas temporalidades, justamento pelo fato

12
PESAVENTO, Caligra as do tempo. Cit..., p. 32.
13
PESAVENTO, Caligra as do tempo. Cit..., p. 34.
14
PESAVENTO, Caligra as do tempo. Cit..., p. 35-37.
15
“Seu modo de compreender e praticar a história foram profundamente marcados por sua passagem pela Alemanha, em
especial por Berlim, nos anos decisivos de 1929-1930. Essa viagem fez-se divisor de águas em sua formação, a grande ruptura
quando de nitivamente opta pela história como pro ssão de fé, em detrimento da crítica literária, que tão genialmente praticara
até àquela altura – e da qual nunca abandonará de nitivamente.” MALERBA, Jurandir. Atualidade de Sérgio Buarque de
Holanda. Artcultura, Uberlândia, v. 14, n. 25, p. 09-20, dez. 2012.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 257-268, ago. 2020.


Somos modernos? Considerações sobre o Estado e a democracia brasileira a partir de Raízes do Brasil 261

de que o acontecimento histórico é único e, portanto, só pode ser recomposto em sua con guração espaço-
temporal única. O tempo como formulação conceitual, para Dilthey e para Sérgio, é mutável.

Sabemos, então, que a concepção histórica de Holanda é a de um tempo único, inédito, na apreensão
de cada acontecimento, e, por isso mesmo, mutável. Um tempo que, no decorrer do que aconteceu, não
pode ser recuperado de maneira dedigna, apenas apreendido, interpretado – daí a importância da
hermenêutica na história – e por m representado16.

Tomados esses elementos, resta acrescentar o modo com que a in uência weberiana irá se entrelaçar
com a concepção de espaços históricos que está implicita na obra de Buarque. Pesavento17 escreve que a
categoria weberiana de grande importãncia, aqui, é a do tipo ideal.

Isto porque o tipo ideal é uma construção conceitual da sociologia weberiana pura e abstrata. Uma
de nição que alcança o ponto de ser generalizada, em referência a determinado momento histórico, por
meio do resgate de múltiplos casos concretos fornecidos pelo estudo da história. O tipo ideal é a categoria
que irá permitir à sociologia construir leis gerais, no contexto weberiano.

Como conjugar, no entanto, esses conceitos invariantes que são os tipos ideais, com a concepção de
multiplicidade temporal que demonstramos estar presente em Raízes?

O tipo ideal weberiano seria, para o próprio Holanda, um modo de compreender a relação entre a
parte e o todo, ou seja, entre o particular da história e o geral da sociologia. O intuito de Weber, é certo, foi
de descobrir as signi cações culturais dos fenômenos sociais, apoiado nos conceitos sociológicos. Eis o que
nos escreve Pesavento, a esse respeito:
Mas, se os tipos ideais são conceitos puros e invariantes de um método cognitivo, todas as esferas da vida –
política, psíquica, econômica, religiosa – seguem uma evolução própria, demarcadas por tempos diferentes
de realização. Assim, Weber concilia as multiplicidades e as descontinuidades do tempo com a xidez de tais
conceitos, entendidos como construções abstratas, lógicas e precisas, que expressam regularidades observáveis
na variabilidade das situações históricas. O tipo ideal é um instrumento conceitual para poder submeter a uma
espécie de regra geral a variedade da experiência humana no tempo18.

Devemos notar, portanto, que estamos diante de um autor que está marcado por essas leituras
alemãs e que procurou fazer, em “Raízes do Brasil”, uma captação de de signi cados históricos construídos
no tempo, signi cados que ele narrou e apresentou por meio de uma narrativa de estilo ccional19. As
variedades temporais do passado permitem, quando estudadas e interpretadas em conjunto, a formulação
do tipo ideal, que representa, por sua vez, uma temporalidade longa, perene. Para Pedro Meira Monteiro,
os tipos ideais de Sérgio Buarque de Holanda têm caráter utópico, e, à semelhança dos tipos ideais de

16
PESAVENTO, Caligra as do tempo. Cit..., p. 43.
17
PESAVENTO, Caligra as do tempo. Cit..., p. 40.
18
PESAVENTO, Caligra as do tempo. Cit..., p. 40.
19
PESAVENTO, Caligrafias do tempo. Cit..., p. 48.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 257-268, ago. 2020.


262 Vinícius Balestra

Weber, “não se confunde com a realidade empírica”20, mas é ferramenta que permite, ao ser comparada
com o real, “tornar inteligível o desenrolar dos fenômenos históricos”.

Com isso, montamos um quadro de sobreposições teóricas que informaram e in uenciaram Sérgio
Buarque no seu fazer histórico. Sabe-se, ainda, que no contexto da in uência weberiana, o conceito que
pretendemos trabalhar no presente texto – o homem cordial – con gura, verdadeiramente, um tipo ideal.
Vejamos em que consiste o conceito de homem cordial, para depois retomarmos o modo com que esse
conceito se entrelaça na con guração temporal da obra.

A Cordialidade Perene

“Raízes do Brasil”, publicado pela primeira vez em 1936, é um ensaio21 histórico dividido em sete
capítulos; o capítulo que nos traz o conceito de homem cordial é o quinto, sendo os capítulos anteriores como
que uma preparação para a introdução desse conceito. Os cinco primeiros capítulos fazem um apanhado
histórico não-linear da História do Brasil, que culminam na con guração do tema da cordialidade brasileira.

Nesse sentido, Sérgio Buarque de Holanda se insere numa tradição de autores brasileiros que
procuram de nir “quem somos”. Com essa de nição, esses autores propõem modelos de ação política para
o futuro do país. Também fazem parte desse trio, de acordo com Alfredo Bosi, os autores Gilberto Freyre
(Casa-grande & Senzala) e Caio Prado Júnior (Formação do Brasil Contemporâneo)22.

De fato, a proposta de ação política de Sérgio Buarque se encontra justamente nos dois últimos
capítulos de Raízes, logo após a formulação e explicação do conceito de homem cordial. Nesse ponto,
podemos dizer que a cordialidade é o conceito crucial para entendermos a proposição política feita ao nal
por Holanda23.

A formulação do conceito de homem cordial se dá a partir da constatação de Sérgio de que, no


Brasil, o modelo de ação no seio familiar, privado, contamina o modo de viver público24. Segundo ele,
no Brasil predominam as vontades particulares em detrimento de ordenações impessoais e objetivas; os
círculos sociais, em especial o da família, é que forjaram o modelo de todas as outras relações sociais do
brasileiro. Escreve o autor:

20
MONTEIRO, Pedro Meira. A queda do aventureiro: aventura, cordialidade e os novos tempos em Raízes do Brasil. 1996. 265
f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Sociologia, UNICAMP, Campinas, 1996. p. 56
21
Para Malerba, o ensaio é um estilo muito “próprio” de Sérgio Buarque de Holanda, que marca sua obra e seu modo de fazer
história. MALERBA, Jurandir. Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. Artcultura, Uberlândia, v. 14, n. 25, p. 9-20, dez. 2012.
22
“São estes os livros que podemos considerar chaves, os que parecem exprimir a mentalidade ligada ao sopro de radicalismo
intelectual e análise social que eclodiu depois da revolução de 1930 e não foi, apesar de tudo, abafada pelo Estado Novo”. Cf.
BOSI, Alfredo. O signi cado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995. p. 9.
23
DECCA, Ensaios de Cordialidade em Sérgio Buarque de Holanda. Cit..., p. 216-217.
24
Esse con ito entre público e privado, Estado e família, é metaforicamente representado, em Raízes, pelo antagonismo entre
Antígona e Creonte. Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 141.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 257-268, ago. 2020.


Somos modernos? Considerações sobre o Estado e a democracia brasileira a partir de Raízes do Brasil 263

No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da
urbanização – que não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios
de comunicação, atraindo vastas áreas rurais para a esfera de in uência da cidade – ia acarretar um desequilíbrio
social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje25.

O que Buarque está dizendo, com isso, é que a organização patriarcal, familiar, que esteve em voga
no Brasil desde os tempos coloniais, foi levada para os círculos urbanos e estatais, de onde se tem, então, o
funcionamento de um Estado patrimonialista.

Essa formulação a respeito da predominância do privado sobre o público ocupa toda a primeira parte
do quinto capítulo de Raízes do Brasil. Só depois de formular suas considerações a esse respeito é que Holanda
irá trazer o conceito de homem cordial26. A cordialidade, traço típico do caráter brasileiro, fora forjada nos
meios patriarcais e rurais, e é comumente associada à generosidade, hospitalidade e bons tratos que os
brasileiros dispensam aos estrangeiros. Está ligada a um modo distante de uma vida ritualística e impessoal.

Não se deve confundir, entretanto, a cordialidade com o conceito de bondade. Essa confusão,
inclusive, foi motivo de debate entre o autor de Raízes do Brasil e Cassiano Ricardo27. De fato, a cordialidade
tem como pressuposto a aversão ao ritual, vez que procedente da esfera patriarcal e íntima da família. O
homem cordial pode ser assim considerado mesmo quando não se porta pautado por sentimentos de
concórdia e sentimentos positivos. Cordialidade não é sinônimo de amizade; caracteriza-se pelo agir
emotivo típico de ambientes privados, não por ser positiva ou amistosa. Uma ação ou reação violenta pode
ser, em termos buarquianos, cordial, desde que motivada de modo pessoalizado, emotivo, distante de um
agir orientado de modo impessoal.

O que caracteriza a cordialidade é o agir com o coração, é o estranhamento ao convencionalismo


e formalismo. A amizade e inimizade estão abarcadas na cordialidade, e deixam esse campo quando,
publicizadas, passam a ser benevolência e hostilidade, respectivamente28.

A explicação para essa aversão ao formalismo, à convenção social, à vida impessoal do âmbito
público está explicada, em Raízes, como decorrência do pavor que o brasileiro tem de conviver consigo
mesmo. Como decorrência, a vida brasileira acaba sendo marcada pela ausência de formas de convívio
que não sejam calcadas numa ética de fundo emocional29. Eis o cerne do que Sérgio Buarque de Holanda
chama de cordialidade.

Façamos uma retomada, agora, do raciocínio desenvolvido por Pesavento a respeito das leituras
alemãs do autor de Raízes do Brasil. Vejamos parágrafo esclarecedor a respeito:

25
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 145.
26
A expressão não é original de Sérgio Buarque de Holanda, tendo sido tomada da obra do poeta Ribeiro Couto. Cf. DECCA,
Ensaios de Cordialidade em Sérgio Buarque de Holanda. Cit..., p. 219.
27
DECCA, Ensaios de Cordialidade em Sérgio Buarque de Holanda. Cit..., p. 216.
28
HOLANDA, Raízes do Brasil. Cit..., p. 205.
29
HOLANDA, Raízes do Brasil. Cit..., p. 148.

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264 Vinícius Balestra

Ainda sob o in uxo de Ranke, SBH trabalha com múltiplas temporalidades em sua obra Raízes: a das
permanências ou do tempo longo (da herança ibérica, do caráter do povo e das mentalidades, dos tipos ideais)
e a das mudanças ou do tempo curto (as construções cambiantes no espaço brasileiro, as lentas rupturas, o
cotidiano, a cultura material), além da tríade cósmica construída pelos homens ao longo da história (um
presente, um passado, um futuro)30.

Vê-se, portanto, que Pesavento coloca as múltiplas temporalidades presentes na narrativa de SBH
em pelo menos dois planos distintos: a do tempo curto e a do tempo longo. A temporalidade de tempo
longo é aquela que comporta a dos tipos ideais de Weber, como já dissemos, a que permite a interação entre
a parte e o todo, entre a particularidade histórica e a formulação sociológica generalizante. A cordialidade,
enquanto tipo ideal, se apresenta como um conceito forjado no tempo longo, con gurado num contexto
de permanência na história nacional.

Nestes termos, a mentalidade cordial (que subjuga a coesão social em favor da solidariedade familiar
e privada) é uma herança do passado que explica o presente, uma continuidade que prende o país ao atraso
colonial e o impede de ser moderno. Para Sérgio Buarque, o caráter brasileiro põe em relevo um indivíduo
indiferente às leis gerais, que tem desapreço pela ordem coletiva. Mais ainda, o brasileiro dá tal peso às suas
a nidades emotivas de modo a ter desapreço por um princípio individual de supraorganização31.

Escreve Sérgio Buarque de Holanda:


Assim, só raramente nos aplicamos de corpo e alma a um objeto exterior a nós mesmos. E quando fugimos à
norma é por simples gesto de retirada, descompassado e sem controle, jamais regulados por livre iniciativa.
Somos notoriamente avessos às atividades morosas e monótonas, desde a criação estética até às artes servis, em
que o sujeito se submeta deliberadamente a um mundo distinto dele: a personalidade individual di cilmente
suporta ser comandada por um sistema exigente e disciplinador32.

Este trecho de Raízes do Brasil compõe justamente o início do sexto capítulo, em que Sérgio Buarque
começa a deixar a de nição de “quem somos” para analisar o campo político brasileiro. Vemos, portanto,
a presença da tríade citada por Sandra Jatahy Pesavento: o passado, de onde Holanda colhe os elementos
para formular seus conceitos; o presente, no qual são perceptíveis as permanências que nos mantêm como
nação atrasada politicamente; e o futuro, que está em disputa e que se abre para à ação política agora que o
passado e os problemas do presente estão constatados33.

O “homem cordial” é, assim, uma categoria buarquiana que representa o caráter nacional desde
os tempos coloniais, que se forja e se impõe em nosso passado. No entanto, enquanto tipo ideal, sua
temporalidade é longa, de modo que permanece no presente, se insere na vida nacional e ainda de ne

30
PESAVENTO, Caligra as do tempo. Cit..., p. 64.
31
HOLANDA, Raízes do Brasil. Cit..., p. 154.
32
HOLANDA, Raízes do Brasil. Cit..., p. 155
33
“Tanto Sérgio, como Freyre e Prado Júnior, ao pergunarem ‘quem somos’, preocuparam-se com os destinos da nacionalidade
e, nesse sentido, abriram o debate para novas direções, com a expectativa de rede nição da presença dos sujeitos sociais para se
repensar a cidadania”. Cf. DECCA, Ensaios de Cordialidade em Sérgio Buarque de Holanda. Cit..., p. 214.

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Somos modernos? Considerações sobre o Estado e a democracia brasileira a partir de Raízes do Brasil 265

quem somos e como agimos socialmente. A cordialidade, portanto, é perene na história nacional e está
inserida em nosso caráter como regra geral – ao menos é o que se depreende da leitura de Sérgio Buarque
de Holanda.

Como dado perene, é inibidor de nossa modernização. Preceitos básicos do Estado moderno,
herdados da constelação liberal, como a igualdade perante a lei, encontram na cordialidade uma barreira
para se realizarem. A nal, uma igualdade fundamental di cilmente poderá conviver com uma eticidade
de fundo emotivo34.

No jogo de temporalidades curtas e longas que SBH nos apresenta em seu livro, a cordialidade
estaria entre as de longo alcance, de modo a integrar nossos acontecimentos particulares ao nosso “todo”.
Em Buarque, encontramos no “homem cordial” um tipo ideal que permite interpretar o país de modo
abrangente e que permite explicar nosso presente e planejar nossa ação política futura.

Cordialidade e Modernidade: a crítica de Jessé Souza

“A Modernização Seletiva”, de Jessé Souza, é um livro que tenta recuperar uma tradição das ciências
sociais brasileiras, que perdeu força a partir dos anos 60, de interpretar o Brasil a partir de um modelo
analítico. Segundo Avritzer35, essa tradição frequentemente analisava a formação social brasileira a partir de
um elemento sob teorias de caráter ensaístico. Já a partir dos anos 60, com uma crescente pro ssionalização
das ciências sociais, a metodologia mais apurada se ocupou de temas de médio alcance – o sistema político,
os partidos, a escola, etc. Poucas obras, desde a pro ssionalização das ciências sociais, voltaram a se ocupar
de visões de longo alcance sobre o processo de formação social do Brasil. O livro de Jessé se insere nesse
contexto, como tentativa de preencher essa lacuna.

O intuito de Jessé é demonstrar que foi criado no Brasil um modelo de auto-interpretação que nos
classi ca com um país atrasado, que ainda não se inseriu na Modernidade. Esse modelo estaria baseado,
segundo Jessé, nos conceitos de personalismo, patrimonialismo e herança ibérica36, bem como numa
comparação constante da colonização brasileira com a colonização estadunidense37.

Além de desconstruir os argumentos de que o Brasil seria, por isso, um país pré-moderno e atrasado
– introduzindo, então, o conceito de modernização seletiva, para provar que o Brasil é, sim, um país moderno
–, Jessé delineia sua própria de nição de “quem somos”, a partir de uma releitura da obra de Gilberto Freyre38.

34
VIEIRA, Diego Vinícius. Terra Brasilia, ex corde: política, cultura e estado nas octogenárias Raízes do Brasil. 2016. 123 f.
Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016, p. 83.
35
AVRITZER, Leonardo. A singularidade brasileira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 16, n. 45, p. 165-176,
fev. 2001.
36
SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília: UNB, 2000. p. 11
37
Interessante notar que, em Raízes do Brasil, é frequente a comparação com a colonização espanhola, a despeito de Sérgio
Buarque ser um grande artí ce da interpretação da herança ibérica brasileira.
38
SOUZA, Jessé. A modernização seletiva. Cit..., p. 209-252.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 257-268, ago. 2020.


266 Vinícius Balestra

É nesse contexto que a obra de Sérgio Buarque de Holanda se torna especialmente importante na
construção argumentativa de Jessé. Para Jessé, SBH é o mais in uente autor daquilo que ele chama de
sociologia da inautenticidade, mas seu livro Raízes do Brasil estaria cheio de imprecisões a respeito da
herança portuguesa, que, em muitos momentos, Sérgio Buarque parece contrapor ao calvinismo ascético e,
em outros, à herança espanhola das outras colônicas americanas. A falta de uma de nição de europeísmo
leva SBH a não formular em que termos, exatamente, Portugal é menos europeu do que o restante da Europa,
e, por conseguinte, sua de nição do próprio atraso brasileiro ca comprometida por essa imprecisão39.

A matriz da crítica de Jessé aos três autores citados – Holanda, Da Matta e Faoro – é o iberismo.
Na argumentação de Jessé, Raízes do Brasil gura como marco inaugural dessa tradição de interpretação
do país pelos olhos de nossa herança ibérica, em virtude da força argumentativa de Sérgio Buarque de
Holanda. Jessé nos aponta, nesse sentido, a importância do conceito de “homem cordial”: é por meio dele
que SBH irá condensar todas as ideias as ideias do livro.

Em outras palavras, esse conceito irá colocar em ordem geral aquilo que o autor viera colhendo
dos exemplos particulares da história. Jessé aponta para o fato de que mesmo em manifestações
institucionalizadas impessoais, o personalismo do homem cordial está presente, tais quais o Estado e
a religião. No âmbito de uma cordialidade, o Estado é um Estado Patrimonialista (ainda que conserve
elementos burocráticos40) e o catolicismo é um catolocismo familiar.

O patrimonialismo é um desenvolvimento direto do personalismo, é a atitude do funcionário


público de zelar antes pelo seu interesse particular do que pelos interesses objetivos do Estado41. Em virtude
da tomada do Estado nacional por esse patrimonialismo é que não se consolidou – de acordo com SBH –
um Estado burocrático racional típico das democracias modernas ocidentais42.

Nas palavras de Diego Vieira:


Tendo como pano de fundo uma eticidade emotiva, o homem cordial imprimiu sua marca no modo de ocupar
o campo e a cidade. Na zona rural, valeu-se de um modo de produção exploratório e pouco racional, que lhe
rendesse lucros fáceis ao custo do menor trabalho possível. Adaptou-se ao meio rural com notória facilidade,
e tal capacidade de adaptação levou-o à cidade; no meio urbano, incitado a erigir as instituições políticas do
Estado, encontrou grande di culdade em apartar a ordem familiar da ordem estatal43.

Nesse ponto é que Jessé avança para apontar um dado da obra de Holanda: a de que o personalismo,
o patrimonialismo, en m, a herança ibérica – uni cados, como vimos, na fórmula do “homem cordial” – são
colocados na lógica de uma causalidade atávica, de um princípio que ronda nosso caráter nacional e que não
deixa de aparecer mesmo em eventos que, à primeira vista, nos seriam modernizadores. Escreve Jessé:

39
SOUZA, Jessé. A modernização seletiva. Cit..., p. 13.
40
HOLANDA, Raízes do Brasil. Cit..., p. 146.
41
HOLANDA, Raízes do Brasil. Cit..., p. 166.
42
SOUZA, Jessé. A modernização seletiva. Cit..., p. 166.
43
VIEIRA, Diego Vinícius. Terra Brasilia, ex corde. Cit ..., p. 84.

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Somos modernos? Considerações sobre o Estado e a democracia brasileira a partir de Raízes do Brasil 267

O que salta aos olhos na elaborada e re nada argumentação de Buarque é a a rmação de uma certa causalidade
atávica, um princípio ativo que atravessa séculos com diferenças apenas epidérmicas, meros disfarces do retorno
do mesmo: o personalismo gestado na colônia e herdade de Portugal44.

O que Jessé capta nesse parágrafo é a essência mesma do que já apontamos como a temporalidade
longa presente na formulação do homem cordial. Em outras palavras, o retorno do personalismo (que
seria melhor colocado nos termos de um retorno da cordialidade, vez que o personalismo compõe esse
conceito maior e mais abrangente) dito por Jessé expressa a mesma ideia que Pesavento nos informara a
respeito da permanência temporal, da perenidade dos tipos ideais na obra de Buarque. O personalismo
retorna porque é essa a concepção de tempo histórico que SBH constrói das leituras do culturalismo
alemão que havia feito – a de que as múltiplas temporalidades do passado, uma vez reinterpretadas,
podem ser representadas sob ideais gerais. Aqui, SBH cruza passado e presente, particular e geral,
história e sociologia.

Ora, é nisso que reside a crítica de Souza. Essa permanência da cordialidade (e, portanto, do
personalismo, do patrimonialismo, etc.) encerra um ciclo no qual o Brasil estaria fadado a não alcançar a
modernidade: o modo cordial de relações sociais não permite a uni cação do país sob princípios impessoais
objetivos, e contamina o Estado pelo patrimonialismo.

Desse modo, não prospera uma democracia de moldes modernos, verdadeiramente ocidental.
Contaminado pela cordialidade e pelo patrimonialismo, nosso Estado não poderia atender aos objetivos
impessoais que se espera de um Estado burocrático e racionalizado. Se nossa cordialidade, personalismo,
patrimonialismo, en m, nossa herança ibérica sempre retorna – ou, colocado de outro modo, é uma
temporalidade longa, permanente –, o país estaria fadado a não alcançar o desenvolvimento típico dos
países ocidentais, a não atingir a Modernidade45.

Assim, Jessé de Souza se ocupa de, primeiramente, fazer a crítica à Raízes do Brasil, antes de partir
para a crítica a Faoro e Da Matta, pois está consciente do marco inaugural que essa obra representa no
âmbito da sociologia da inautenticidade. Assim, em SBH reside o núcleo de equívocos a respeito do debate
do caráter nacional que Jessé recupera e recoloca em outros termos. O pano de fundo comum a todos esses
autores é a crença de que a herança ibérica é nosso fator de atraso e de impedimento para que chegar à
Modernidade. O cerne do contra-argumento de Jessé, no entanto, está justamente em recolocar os termos
pelos quais de nimos a modernidade. Segundo ele:
[o] Brasil não é um país moderno e ocidental no sentido comparativo de a uência material e desenvolvimento
das instituições democráticas. Mas o Brasil é certamente um país moderno no sentido ocidental do termo, se
levarmos em conta que os valores modernos e ocidentais são os únicos aceitos como legítimos. Esses são os
nossos valores dominantes e é isso que explica o fascínio do tema da modernização entre nós46.

44
SOUZA, Jessé. A modernização seletiva. Cit..., p. 13.
45
Para Pedro Meira Monteiro, em artigo, Raízes do Brasil é um verdadeiro “prefácio à modernidade”. Cf. MONTEIRO, Pedro
Meira. A queda do aventureiro: Cit..., p. 181.
46
SOUZA, Jessé. A modernização seletiva. Cit..., p. 267.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 257-268, ago. 2020.


268 Vinícius Balestra

A recolocação do Brasil como um país efetivamente moderno (modernidade seletiva, na qual


convivem contradições internas e complexidades, fenômeno que não difere daquele que ocorre também
nos EUA ou na Alemanha) é a maneira com que Jessé critica a sociologia da inautenticidade e propõe seu
modelo de interpretação do Brasil. O sociólogo enxerga no argumento da repetição causal da herança
ibérica enquanto fator de atraso do país o cerne da imprecisão da chamada sociologia da inautenticidade.

Como vimos, em Raízes do Brasil, esse argumento atávico é fruto mesmo das leituras culturalistas
alemãs de seu autor, que acaba por conceber um plano temporal para seus tipos ideais – a cordialidade, o
personalismo, etc. – no qual esses conceitos se tornam regras gerais de formação do caráter nacional, carácteres
perenes da identidade e história nacionais. Nessa crítica contundente que faz a SBH e aos autores posteriores,
Jessé contribui efetivamente para a desconstrução de um mito do pensamento brasileiro47, e repõe a questão
da modernidade, que este clássico de Sérgio Buarque de Holanda nos coloca, sob novos pilares.

Referências

AVRITZER, Leonardo. A singularidade brasileira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 16, n. 45, p.
165-176, fev. 2001.

BOSI, Alfredo. O signi cado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.

DECCA, Edgar Salvadori de. Ensaios de cordialidade em Sérgio Buarque de Holanda. In: AXT, Gunter; SCHÜLER,
Fernando (Org.). Intérpretes do Brasil. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2004.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

IANNI, Octávio. Tipos e mitos do pensamento brasileiro. Sociologias, Porto Alegre, n. 7, p. 176-187. jun. 2002.

MALERBA, Jurandir. Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. Artcultura, Uberlândia, v. 14, n. 25, p. 9-20, dez. 2012.

MONTEIRO, Pedro Meira. A queda do aventureiro: Aventura, cordialidade e os novos tempos em Raízes do Brasil.
1996. 265 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Sociologia, UNICAMP, Campinas, 1996.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Caligra as do tempo: palimpsestos na escrita da história. In: PESAVENTO, Sandra
Jatahy (Org.). Um historiador nas fronteiras: O Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: UFMG, 2005.

SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília: UNB, 2000.

VIEIRA, Diego Vinícius. Terra Brasilia, ex corde: política, cultura e estado nas octogenárias Raízes do Brasil. 2016.
123 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016.

47
Octávio Ianni trata, em instigante texto, dos tipos do pensamento nacional que se tornam, sob a égide da ideologia dominante,
verdadeiros mitos. Ianni cita, por exemplo, o mito da democracia racial, o mito da inescapável dependência externa e, por
m, o mito do patriarcalismo estatal. Segundo o autor, mitos como o do homem cordial, dentre outros, “contribuem para
taquigrafar, organizar e administrar uma sociedade civil incipiente, pouco articulada, (...). O que está em causa é despolitizar
a sociedade civil em formação, de ni-la e organizá-la desde cima, tomá-la como pouco ativa e pouco organizada, gelatinosa,
carente de tutela. Daí o Estado forte, demiurgo, oligárquico, autoritário e tirânico. Tudo isso como expressão de uma cultura
política arrogante e opressiva, produzida no curso de séculos de escravismo.” Cf. IANNI, Octávio. Tipos e mitos do pensamento
brasileiro. Sociologias, Porto Alegre, n. 7, p. 176-187, jun. 2002.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 257-268, ago. 2020.


Para muito além da democratização: o programa
Universidade para Todos (ProUni) sob o prisma da
decolonialidade negra

Felipe Montiel da Silva

SILVA, Felipe Montiel da. Para muito além da democratização:


o programa Universidade para Todos (ProUni) sob o prisma
da decolonialidade negra. 2020. 220f. Dissertação (Mestrado) –
Universidade La Salle (Programa de Pós-Graguação em Direito).
Canoas, 2020
Defesa em: 30 de março de 2020

Oridentador: Prof. Dr. Leonel Pires Ohlweiler

Resumo: Instituído por intermédio da Medida Provisória nº 213/2004,


mais tarde convertida na Lei Federal 11.096/2005, o Programa
Universidade para Todos (ProUni) reformulou o acesso à educação
Canoas, v. 8, n. 2, 2020
terciária no Brasil ao garantir, principalmente, bolsas de estudo a
estudantes vinculados a famílias economicamente vulneráveis que
Dissertações e Teses
poderiam ou não encontrar pertencimento nas populações negra e
autóctone-americana. Em contrapartida aos benefícios estudantis, as
instituições particulares de ensino que estabeleceram vinculação com
o Estado por meio do ProUni passaram receber isenções scais sobre
tributos preponderantemente voltados ao nanciamento do sistema de
seguridade social, recuperando, no caso das instituições de educação
privadas em sentido estrito (comerciais), parte dos benefícios scais
perdidos a partir da adoção da forma mercantil. A sutura que une as
expectativas de estudantes desprovidos de recursos econômicos e as
demandas das instituições privadas de ensino terciário foi o ponto de
partida da presente pesquisa, apontando-se, ao nal do estudo, o pólo
mais bene ciado pelo aparente consenso. Para identi car o lado para o
qual pendia – ou ainda pende? – a balança harmonizada pela conciliação
de anseios antagônicos, a investigação realizou três entrevistas,
adotando como parâmetro avaliativo os relatos ofertados por egressos
do bacharelado em Direito que obtiveram grau através do ProUni. Em
hipótese, o estudo considerou que o diploma não oportuniza acesso
aos trabalhos mais prestigiados do campo jurídico aos prounistas,
alçando-os, por outro lado, isto é, em relação aos trabalhos exercidos
longe da diplomação obtida, a ofícios de menor desgaste físico. A
segunda hipótese conjecturou que os percursos estudantis dos egressos
participantes da investigação foram atravessados por limitações raciais
e sociais que encontrariam repetição no ato de validação laboral do
diploma. A última hipótese pontuou que as di culdades enfrentadas por
prounistas brancos ganhariam contorno mais acentuado nas trajetórias
estudantis e laborais de prounistas negros. O estudo traçou abordagem
teórica interdisciplinar, suspendendo o universalismo abstrato que
270

orienta o Direito e, em espécie, o direito humano à educação. Ao m, as bases conceituais extraídas da revisão
bibliográ ca atravessaram os dados coletados nas entrevistas, evidenciando, no último capítulo, as contradições que
constituem o ProUni como política pública mais bené ca ao campo econômico-educacional.
Palavras-chave: Capitais; Decolonialidade Negra; Direito Humano à Educação.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 269-270, ago. 2020.


A percepção da injúria racial pelo tratamento dado às vítimas
e aos seus estigmas: busca da igualdade social e racial por
meio da mediação penal como prática de justiça restaurativa

Mauri Quiterio Rosdrigues

RODRIGUES, Mauri Quiterio. A percepção da injúria racial pelo


tratamento dado às vítimas e aos seus estigmas: busca da igualdade
social e racial por meio da mediação penal como prática de justiça
restaurativa. 2020. 220 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade La
Salle (Programa de Pós graduação em Direito). Canoas, 2020
Defesa em: 28 de fevereiro de 2020

Orientador: Prof. Dr. Daniel Silva Achutti

Resumo: A presente pesquisa apresenta um estudo sobre a percepção da


Injúria Racial pelo tratamento dado às vítimas e aos seus estigmas pelos
pro ssionais envolvidos no seu atendimento até sua possível chegada
Canoas, v. 8, n. 2, 2020
ao Programa Mediar. O objetivo geral dessa proposta é estudar a
possibilidade da Mediação Penal, como prática de Justiça Restaurativa,
Dissertações e Teses
de satisfazer de forma diferenciada e efetiva às necessidades de uma
vítima de Injúria racial, ou seja, de satisfazer o negro(a) enquanto
integrante de uma sociedade complexa e discriminatória. Para tanto,
utilizando-se da metodologia Análise de Conteúdo e da técnica de
Análise Categorial ou Temática, desenvolvida por Laurence Bardin,
partiu-se do seguinte problema: A histórica estruturação dos estigmas
na criminologia viabiliza a inserção da Justiça Restaurativa no cenário
jurídico penal brasileiro como solução do crime de Injúria Racial? Para
tal intento, percorreram-se algumas Delegacias de Polícia onde funciona
o Programa Mediar e se estudou os tratamentos que eram oferecidos aos
negros. Para este estudo, baseado em leituras de autores vinculados a
problemática étnico racial utilizou-se, durante o campo, de entrevistas
que nortearam toda a sistemática do trabalho. Estas viabilizaram o
entendimento dos diversos grupos de entrevistados onde se pode
traduzir o que realmente às vítimas de Injúria Racial necessitavam e, de
que forma o sentimento subjetivo produzido pela Injúria é percebido
ou não pelos operadores do direito, envolvidos na solução desse tipo
de controvérsia. Desta forma, o estudo relaciona os diversos estigmas
ligados ao crime de Injúria racial a conceitos como intolerância,
discriminação racial, pessoa desacreditada, entre outros, sob a ótica da
linha interacionista simbólica, que tem como marco teórico as ideias de
Erving Goffman sobre estigma. Coloca em evidência o tratamento dado
aos estigmas suplantados por uma vítima de Injúria racial, na Justiça
Restaurativa, em relação ao tradicional tratamento oferecido pela Justiça
Retributiva que a muito vem sofrendo contestações.
Palavras-Chave: Estigma; Injúria Racial; Justiça Restaurativa; Programa
Mediar.
Cansaço de si e cuidado dos outros: a precarização das
relações pro ssionais de mulheres vinculadas aos serviços
gerais de limpeza terceirizada no Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul

Tainá Machado Vargas

VARGAS, Machado Tainá. Cansaço de si e cuidado dos outros: a


precarização das relações pro ssionais de mulheres vinculadas aos
serviços gerais de limpeza terceirizada no Tribunal de Justiça do Estado
do Rio Grande do Sul. 2020. 233 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade
La Salle (Programa de Pós graduação em Direito). Canoas, 2020
Defesa em: 28 de fevereiro de 2020

Orientadora: Paula Pinhal de Carlos

Resumo: A política econômica neoliberal é um fenômeno preocupante


Canoas, v. 8, n. 2, 2020 à medida que não demonstra apenas versatilidade de autoajuste na
economia dos países globais. Ela também age nas relações subjetivas de
Dissertações e Teses gênero e trabalho, alterando o entendimento das classes sociais sobre
o valor do seu próprio trabalho. Pensando nisso, a pesquisa realizada
no TJRS buscou apresentar a rotina institucional de trabalhadoras
terceirizadas no setor de limpeza, asseio e conservação geral dentro
dos quadros da Administração Pública. A escolha de desenvolver
o estudo sociológico sobre o tema da terceirização questiona o
argumento da “modernização econômica”, usado para sustentar
uma governabilidade de reestruturação do Estado, sob a condução
hegemônica do neoliberalismo na área trabalhista. Para isso, o problema
de pesquisa busca compreender como a violência econômica neoliberal
se sobressai de diferentes formas psicológicas, impondo exigências e
obrigações maiores sobre os corpos e a vida das mulheres, de formas
não tão perceptíveis nas relações sociais. Interrogou-se, portanto, que
percepções as múltiplas jornadas de trabalho das mulheres despertam
e de que maneira se articulam com a distribuição cultural de maiores
atividades de desempenho e de entrega de resultados (no trabalho
reprodutivo e no produtivo). Como metodologia de pesquisa, adotamos
o método de entrevistas semi estruturadas, trazendo a narrativa de
13 trabalhadoras terceirizadas. Veri camos se existe, de fato, uma
racionalidade neoliberal que, em linhas gerais, opera no sentido de
precarizar, adoecer e empobrecer ainda mais, demonstrando tais efeitos
como alguns de seus maiores ímpetos. A terceirização é de nida como
um método, uma das amostragens dessa racionalidade neoliberal, que
surge como um potente problema político de justiça, ao estacionar
questões de gênero na desigualdade. Os resultados da pesquisa
empírica se mostraram condizentes com as hipóteses de autoexploração
levantadas, e embasaram o pressuposto da investigação foi organizada
em 11 categorias de análise diferentes. O recorte desse estudo busca
274

encontrar gatilhos para repensarmos a divisão sexual do trabalho, as condições de precarização da mão de obra
terceirizada, as desigualdades de gênero e na crise política do cuidado como grandes problemas para a democracia.
Palavras Chave: Mulheres; Terceirização; Neoliberalismo; Administração Pública.

Redes: Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 8, n. 2, p. 269-270, ago. 2020.

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