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RELAÇÕES DE GÊNERO E PODER: TECENDO CAMINHOS PARA A

DESCONSTRUÇÃO DA SUBORDINAÇÃO FEMININA

Renata Gomes da Costa1


Clara Maria Holanda Silvera2
Maria Zelma de Araújo Madeira3

Resumo
O presente artigo tem por objetivo refletir sobre a articulação entre as categorias relações de
gênero e poder, sendo atributos necessários para o desvendamento da desigualdade de gênero e a
subordinação feminina, o que pode contribuir com as análises e estudos sobre a violência contra
mulher e seu enfrentamento. Pensar as relações de gênero articuladas com as relações de poder
também nos fornece subsídios analíticos para o entendimento das identidades de gênero, estudos
que encampam grandes debates na contemporaneidade. Apesar das identidades de gênero não
serem foco principal do artigo, ao tocar nas relações de gênero e poder, encontramos caminhos
para pensá-las e problematizá-las.

Palavras-chave: Relações de gênero. Relações de poder. Identidades de Gênero. Violência


contra a mulher.

1 INTRODUÇÃO

O surgimento das relações de gênero como conceito científico está intrinsecamente ligado
à história do movimento feminista, o qual vem pautando a condição da mulher nas sociedades
ocidentais desde o século XIX. Em seus primórdios, as reivindicações estavam ligadas ao
chamado sufragismo em prol do voto feminino. Já em meados de 1960 as feministas passam a
produzir livros e artigos de forma mais contundente sobre a situação de opressão da mulher.
No Brasil, apenas nos finais de 1980 as feministas brasileiras se apropriaram da discussão
de gênero. A referida categoria foi bastante debatida entre as francesas e as norte-americanas,
possuindo, com o passar dos debates e formulações teóricas, alguns direcionamentos em sua
conceituação e utilização.
A compreensão das relações de gênero perpassa por várias conceituações e estudos, desde
a construção de papéis masculinos e femininos, do aprendizado destes que formam a identidade
dos sujeitos; da sexualidade; do enfoque na violência contra a mulher; das discussões sobre as
masculinidades, até as questões que conseguem relacionar gênero e poder, colocando em
evidência que a subordinação feminina não é natural, estática e imutável. Com o tramitar
histórico, percebe-se que as identidades não são fixas, mas mutáveis e transformáveis, além de
serem plurais e diversas. Assim, vai se gestando a concepção de gênero como relacional, ou seja,
pertencente às relações sociais entre os sujeitos e um modo de significar as relações de poder.

1
Mestranda em Serviço Social, Trabalho e Questão Social pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), bolsista do
Programa de Demanda Social da CAPES, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Afrobrasilidade,
Gênero e Família (NUAFRO) da Universidade Estadual do Ceará (UECE). renatagomesdc@yahoo.com.br
2
Assistente Social, mestranda em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará.
3
Profa.. Dra. do mestrado acadêmico em Serviço Social, Trabalho e Questão Social e do curso de Serviço Social da
Universidade Estadual do Ceará 222
As primeiras concepções das relações de gênero fincavam as análises entre o binarismo
masculino e feminino, sob os polos dominantes e dominados, em que enfoca o sistema de
sexo/gênero e não consegue desnaturalizar os sujeitos, restringindo-se, assim, a distinções apenas
nas características biológicas. Quando se referiam ao poder, o abordavam como atributo único
dos homens, por vezes tratando o gênero como um destino2, vitimizando a mulher. Ao conceituar
rigidamente as relações de gênero tratava-se a temática de modo essencialista e fixa,
desconsiderando as possíveis resistências às relações desiguais postas às mulheres.
Muitos estudos feministas3 tiveram como uma das preocupações centrais as relações de
poder, desejando explicitar a subordinação e exploração das mulheres, o que foi primordial ao
evidenciar publicamente sua situação social, econômica e política. Todavia, por vezes,
encontramos abordagens que se centram no binarismo homem dominante em contraposição à
mulher dominada, esquema este que com o passar do tempo apresenta limites para explicar a
complexidade social que as relações de gênero estão imersas.
O estudo das relações de gênero requer a articulação com os estudos das relações de
poder, este entendido como exercido e mutável. Privando-se dessa análise corre-se o risco de
dicotomizar os sujeitos e as relações, não dando conta de entender as situações postas pela
desigualdade de gênero, a exemplo do machismo, homofobia e violência contra mulher.
Dessa maneira, o presente artigo tem por objetivo apresentar uma discussão articulando
as categorias relações de gênero e poder, a fim de compreender as desigualdades de gênero
presentes na contemporaneidade. Para tal, fundamentamo-nos num aporte teórico que subsidia as
reflexões sobre a desnaturalização da subordinação da mulher, embasando-se para compreender
gênero em Grossi (1998), Scott (1990) e Saffioti (19992) e para o entendimento das relações de
poder dialogou-se, principalmente, com Louro (1997), Foucault (1999) e Deleuze (1992).
A apreensão das relações de poder em suas variadas formas e manifestações nos
proporciona perceber que as relações de gênero não são dicotômicas e maniqueístas, entre
dominados e dominadas, mas mutáveis e transformáveis, pois ninguém é fixo numa posição e
muito menos detém unicamente o poder. De tal modo, que nos possibilita compreender que a

2
Saffioti (2001) explicita essa questão citando duas autoras que detiveram essa postura em seus estudos, assim
afirma: “[...] Chauí e Gregori [...] em ambos os textos em pauta há bastante ambiguidade, pois a mulher oscila entre
ser passivo, coisa e cúmplice do agressor. Em outros termos, tratava-se de responsabilizar as mulheres pelas
agressões sofridas. Em última instância, culpabilizavam-se as mulheres pela dominação e exploração de que
eram/são alvo por parte dos homens, mas se as tomavam como incapazes de agir/reagir. A rigor, confundia -se o
tratamento de coisa dispensado às mulheres com uma presuntiva incapacidade de ação/reação. Atualmente, é
possível avaliar como positivo o papel desempenhado por estas publicações, já que provocaram a emergência de
outras posições, com maior capacidade de discriminar entre a passividade e as estratégias calculadamente utilizadas
por mulheres vítimas de violência na relação com seus agressores (p. 12-13)
3
Com destaque para Grossi (1998), Louro (1997), Saffioti (2001, 1999), em outros textos dessas autoras.

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equidade de gênero é possível e que a desigualdade foi construída, senso passível de
transformação.

2 RELAÇÕES DE GÊNERO: HISTÓRIA E CONCEITO

No período entre 1970-1980, a questão da mulher era referenciada nos estudos sobre a
mulher enfocando a dimensão contestadora e política, tratada pelo movimento feminista que se
articulava com a esquerda brasileira na luta contra a ditadura militar. De acordo com Queiroz
(2008), Stoller foi o primeiro estudioso a utilizar a terminologia gênero, isto em 1968, porém o
termo não foi adotado amplamente, tendo maior difusão a partir de 1975 com o clássico texto de
Gayle Rubin intitulado The traffic in women: notes on the political economy of sex, o qual
abordou o sistema sexo/gênero.
As mulheres engajadas no movimento feminista e na luta nos anos de Ditadura Militar
enfrentaram repressão, perseguição e violência do regime, tendo, muitas, buscado exílio em
outros países, principalmente nos europeus. No período da reabertura democrática, em meados
dos anos 1970, algumas dessas mulheres retornam ao Brasil trazendo a experiência do
movimento feminista europeu, especialmente das feministas francesas e italianas, que se
aproximavam das teorias socialistas e marxistas. Esse período demarca a primeira fase do
feminismo no Brasil e de sua produção teórica (MORAES, 2000).
Posteriormente, temos a influência do feminismo norte-americano que se articulava com
os movimentos de “insubordinação civil [...] a luta libertária incluía as questões relacionadas à
autoridade dos mais velhos e ao conservadorismo do american way of life [...]” (MORAES,
2000, p. 95).
Dessa maneira, o surgimento dos estudos de gênero foram demarcados e antecedidos
pelos estudos sobre a mulher. No Brasil em 1980 surge e legitima-se, sobretudo no meio
acadêmico, os chamados estudos de gênero que realizou outras análises conceituais da condição
da mulher, fazendo com que o movimento feminista de então repensasse questões primordiais,
principalmente aqueles referenciais que tratavam a temática feminista na perspectiva biológica –
sexuais (BENOIT, 2000).
As investigações passaram a considerar a cultura e o simbólico para entender as
denominadas relações de gênero entre mulheres e homens. Conforme Benoit (2000), as
pesquisas acadêmicas sobre o assunto contribuíram para um avanço teórico dos temas
trabalhados pelo movimento feminista de outrora. Passaram a utilizar teóricas como Joan Scott
que trata a categoria gênero em seu aspecto relacional, analisando o caráter social das diferenças
entre mulheres e homens. Considera-se, dessa maneira, de suma importância “a superação de um

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suposto reducionismo biológico que sobredeterminava as diversas categorias da anterior reflexão
feminista: conceitos como “luta entre os sexos”, “diferenças sexuais entre mulher – homem”,
dentre outras. [...] O gênero enfatiza o aspecto relacional das definições normativas de
feminidade” (ibidem, p. 77).
Scott (1990) considera que somente no final do século XX a categoria gênero emerge
como uma preocupação teórica, ao encontrar-se ausente em grande parte das teorias sociais,
desde o século XVII até o início do século XX. Nesse espaço de tempo se discutiam questões
desde a oposição entre masculino/feminino, a partir do reconhecimento da existência de uma
questão feminina, à definição de uma identidade sexual. Não existia nas análises e estudos a
terminologia gênero, a fim de pautar as relações sociais entre os indivíduos.
No período em que a categoria gênero surge como um termo científico e é adotada pelas
ciências sociais, Scott (1990) credita ser essa uma atitude empreendida por algumas feministas
contemporâneas que consideravam as teorias existentes sobre as desigualdades entre homens e
mulheres insuficientes para definir tal diferença.
A referida autora apresenta sua definição de gênero em duas partes compostas de sub
partes, sinalizando estas com a seguinte definição: “o gênero é um elemento constitutivo de
relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro
modo de dar significado às relações de poder” (p. 14).
A partir dessa definição, Scott elenca quatro elementos necessários para se entender a
categoria gênero, a saber: os símbolos culturais que remetem a representações simbólicas, como
as figuras religiosas de Eva e Maria; os conceitos normativos encontrados na religião, na
política, na ciência e na educação, que oferecem conceituação do feminino e do masculino; a
educação e o sistema político; e a identidade subjetiva que deve ser compreendida na sua
construção histórica e relacionada com as atividades, organizações e representações sociais.
Esses quatro elementos estão presentes nas análises da autora como sua primeira parte da
definição de gênero. Scott (1990) ressalta que tais elementos são articulados, porém não agem ao
mesmo tempo e nem são apenas reflexos um do outro. A segunda parte de sua acepção refere-se
ao conceito de gênero como primeiro modo de significar as relações de poder, pois gênero é:

[...] um primeiro campo no seio do qual ou por meio do qual, o poder é articulado. O
gênero não é o único campo, mas ele parece ter constituído um meio persistente e
recorrente de dar eficácia á significação do poder no Ocidente, nas tradições judaico-
cristãs e islâmicas. [...] O gênero é então um meio de codificar o sentido e de
compreender as relações complexas entre diversas formas de interação humana. Quando
as (os) historiadoras(es) buscam encontrar as maneiras pelas quais o conceito de gênero
legitima e constrói as relações sociais, elas (eles) começam a compreender a natureza
recíproca do gênero e da sociedade e as maneiras particulares e situadas dentro de
contextos específicos, pelas quais a política constrói o gênero, e o gênero constrói a
política (p. 16-17).

225
Se gênero é a primeira maneira de significar as relações de poder, torna-se primordial
compreender como estas se espraiam socialmente e fazem parte da construção social do
masculino e feminino. As relações de poder estão imersas e permeiam as relações de gênero, não
se consegue apreender esta sem esmiuçar como o poder se constitui nas relações sociais que
apresentam-se nas diferenças construídas entre masculino e feminino. Isso não quer dizer que
gênero seja o único campo de existência do poder, mas um espaço primordial que possibilita o
entendimento da organização da vida social. Dessa maneira:

[...] talvez o adequado não seja simplesmente dizer que gênero esteja relacionado à
noção de poder, mas sim que gênero é fundado nesta relação: gênero deve ser concebido
como uma relação de poder e não uma posição fixa atribuída às pessoas. E ainda
ressaltamos que ser mulher, do mesmo modo que ser homem, não são modos de viver
universais, nem mesmo quando se toma como exemplo uma única pessoa: esta pessoa
vive de modos variados o que supõe ser a sua vida (LIMA; MÉLLO, 2012, p. 191).

Isso significa que “sexo e gênero são noções construídas e transformadas em relações de
poder nos processos sociais” (ibidem, p. 186). Dizer o que é ser homem, o que é ser mulher,
atribuir significados, papéis e funções diferenciadas a partir dessa identidade vai estabelecer
relações de poder que por vezes colocará os sujeitos em polos opostos e desiguais.
Esse campo cultural perpassa a construção do ser homem e do ser mulher, bem como as
trajetórias culturais dos sujeitos que não são unívocas, nem homogêneas, mas sim “[...] campo de
confrontos atravessados por fluxos multidirecionais” (JÚNIOR, 2003, p. 26).
Dessa maneira os sujeitos vão se construindo e se reconstruindo no decorrer de seus
processos e relações sociais, o que nos faz perceber que a leitura das relações de gênero e das
relações de poder deve “[...] explorar as complexidades tanto das construções de masculinidade
quanto as de feminilidade, percebendo como essas construções são utilizadas como operadores
metafóricos para o poder e a diferenciação em diversos aspectos do social (PISCITELLI, 1998,
p. 150).
As relações de gênero, como categoria histórica analítica, oferece reflexões e
explicitações sobre as práticas culturais e sociais que condiciona as formações identitárias dos
sujeitos, no caso de ser homem e ser mulher. De tal modo, que ser homem ou mulher não é
definido pelo sexo biológico de cada um/a, mas a partir de relações sociais e culturais que
determinam lugares, deveres e direitos distintos conforme a identidade de gênero atribuída.
Gênero é uma categoria que não trata de diferença sexual, mas sim de relação social entre
mulheres e homens, homem/homem, mulher/mulher4 entendendo como se constrói enquanto

4
Com o passar dos estudos sobre as relações de gênero muitas teóricas, com destaque para Judith Bather, passaram
a questionar a matriz heterossexual (heteronormativa) que regimentava a categorização desse conceito, baseavam a
definição a partir da relação social entre homens e mulheres, desconsiderando as outras identidades de gênero e
identidades sexuais que também compõe as discussões de gênero. Deve-se obervar que: “[...] A dicotomia marca,

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sujeitos sociais. Tal categoria não se caracteriza apenas como analítica e descritiva, é também
histórica. Dessa forma, a categoria gênero surge a fim de dar conta da discussão acerca da
subordinação da mulher, sua reprodução e as várias e diversas formas que sustentam a
supremacia masculina na sociedade, através da desigualdade de gênero.
De acordo com Grossi (1998) devemos identificar as devidas distinções entre identidade
de gênero5 e práticas afetivo-sexuais, pois a sexualidade é uma das variáveis do gênero e não a
única, de tal modo que sexo, gênero, identidade de gênero e sexualidade não são sinônimos. Ao
referirmos ao sexo estamos elencando as diferenciações biológicas entre mulheres e homens,
todavia ao tratarmos de gênero estamos situando as construções culturais em relação a
masculinidade e feminilidade. Dessa maneira, temos que “[...] identidade de gênero é uma
categoria pertinente para pensar o lugar do indivíduo no interior de uma cultura determinada e
que sexualidade é um conceito contemporâneo para se referir ao campo das práticas e
sentimentos ligados à atividade sexual dos indivíduos” (idem, p.12).
Conforme Grossi, refletir sobre identidade é referir-se aos processos de socialização dos
sujeitos percebendo que ao depara-se com um conjunto de convicções do que se concebe
socialmente como masculino e feminino, define, dessa maneira, a forma de ser e agir no mundo.
Ao sinalizarmos as características masculinas e femininas, perceberemos que atributos de
delicadeza, doçura, paciência, dedicação, cuidado compõe o ser mulher, já em relação ao ser
homem temos a virilidade, a força, coragem, autoconfiança, a agressividade, assim “[...] o
feminino é constantemente associado nesses discursos, à horizontalidade. A mulher, no próprio
ato sexual, representaria esta posição, enquanto o homem, o poder, o domínio, o ativo,
representaria a verticalidade, a ordem hierárquica que não deveria ser ameaçada” (JÚNIOR,
2003, p. 33).
A constatação dessas características da feminilidade e da masculinidade não podem ser
compreendidas fixamente, aparentando que todos os sujeitos obedecem as regras desses códigos
culturais, sem levar em conta as múltiplas formas dos indivíduos exercerem suas identidades e
que estas são historicamente construídas, ou seja, passíveis de transformações. Desejamos
salientar nessa assertiva que os códigos culturais legitimados socialmente embasam-se nessas

também, a superioridade do primeiro elemento. Aprendemos a pensar e a nos pensar dentro dessa lógica e
abandoná-la não pode ser tarefa simples. A proposição de desconstrução das dicotomias – problematizando a
constituição de cada polo, demonstrando que cada um na verdade supõe e contém o outro, evidenciando que cada
polo não é uno, mas plural, mostrando que cada polo é, internamente, fraturado e dividido – pode se constituir numa
estratégia subversiva e fértil para o pensamento” (LOURO, 1997, p. 31).
5
Em complementação as ideias de Grossi (1998) vale destacar as reflexões de Louro (1997) concernente a
identidade de gênero e identidade sexual. Dessa maneira, “ [...] identidades sexuais se constituíram, pois, através das
formas como vivem sua sexualidade, com parceiros/as do mesmo sexo, do sexo oposto, de ambos os sexos ou sem
parceiros/as. Por outro lado, os sujeitos também se identificam, social e historicamente, como masculinos ou
femininos e assim constroem suas identidades de gênero. Ora, é evidente que essas identidades (sexuais e de gênero)
estão profundamente inter-relacionadas: nossa linguagem e nossas práticas muito frequentemente as confundem,
tornando difícil pensá-las distintivamente” (p. 26-27).

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caracterizações dos sujeitos, os quais são frutos das transformações socioeconômicas e políticas
de cada período histórico.
As sociedades contemporâneas foram definindo papéis e funções diferenciadas aos
sujeitos conforme a identidade de gênero. A posição da mulher em outras organizações sociais,
como o período colonial e imperial brasileiro, era resguardada a condição de propriedade do pai
e, por conseguinte do marido, sem direitos políticos, econômicos e sociais. Essa desigualdade foi
se afirmando em nosso país, e mulheres e homens ocupando diferentes lugares sociais, fato que,
como sinalizamos anteriormente, tornou-se bandeira de luta do movimento feminista e de
mulheres.
É inegável as desigualdades entre mulheres e homens, a exemplo no mercado de trabalho
que ainda hoje apresente salários diferenciados conforme o gênero, e as teóricas feministas
trataram de desvendar esse processo desigual e denunciar através de suas reivindicações que as
condições de vida e trabalho das mulheres são inferiores as dos homens. Todavia, o que
desejamos problematizar é que mesmo em situações opostas e desiguais, homens e mulheres não
podem ser identificados como dominadores e dominados, uma vez que gênero e poder são
relações historicamente construídas, podem ser questionadas, mudadas e transformadas.
Dessa maneira, não se consegue compreender mais aprofundadamente as relações de
gênero senão tratar de apreender as relações de poder, necessitando de uma conceituação que
compreenda o poder em suas múltiplas e variadas formas e não reduzindo a questão
dicotomicamente em que o masculino sempre terá prioridade nas relações, lócus onde se
concentra o poder, inviabilizando o entendimento das relações de poder como exercido de
diversas maneiras. A proposta dessa análise é sinalizar que as relações de poder entre os sujeitos
não são fixas e determinadas. Articular gênero e poder nos estudos é de suma importância para
não se dicotomizar, nem naturalizar os indivíduos e muito menos as relações.

3 GÊNERO E PODER: UMA ARTICULAÇÃO NECESSÁRIA

O conceito de poder atrelado a discussão das relações de gênero torna-se substancial na


compreensão da desigualdade de gênero, desmistificando a oposição entre dominadores, os
homens, e dominadas, as mulheres. Para uma das grandes estudiosa das relações de gênero,
Saffioti, a categoria poder torna-se primordial na discussão, contudo não é qualquer aporte
teórico que consegue evidenciar as nuances que encobre as relações desiguais entre homens e
mulheres, estando imersas pelas relações de poder.
O conceito de poder na teoria marxista não contempla os estudos de gênero em sua
totalidade, pois, de acordo com Saffioti (1992), apenas por essa teoria não se consegue desvendar

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e desnaturalizar a subordinação feminina. Por isso, a referida autora utiliza Foucault para
compreender o poder expresso nas relações de gênero, uma vez que para tal estudioso o poder
possui ramificações e entrelaçamentos, assim temos que:

[...] nem a arqueologia, nem, sobretudo, a genealogia têm por objetivo fundar uma
ciência, construir uma teoria ou se constituir como sistema: o programa que elas
formulam é o de realizar análises fragmentárias e transformáveis. [...] as análises
genealógicas do poder [...] produziram um importante deslocamento com relação à
ciência política, que limita ao Estado o fundamental de sua investigação sobre o poder
[...] Foucault, a partir de uma evidência fornecida pelo próprio material de pesquisa, viu
delinear-se claramente uma não sinonímia entre Estado e poder (MACHADO, 1979, p.
11).

O Estado não seria o aparelho único e central do poder, pois há exercício do poder para
além do aparelho estatal, acontecendo de maneiras variadas e heterogêneas. A existência de
outras relações de poder não interligadas diretamente e nem emanadas do Estado, significa dizer
que tal ente não funda todas as formas e manifestação de poder, uma vez que este ocorre por
níveis variados em nexos distintos do tecido social, assim “os micro-poderes existem integrados
ou não ao Estado [...]”, mesmo porque o poder “[...] intervém materialmente, atingindo a
realidade mais concreta dos indivíduos – o seu corpo- e que se situa ao nível do próprio corpo
social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana e por isso podendo ser caracterizado como
micro-poder ou sub-poder” (MACHADO, 1979, p. 12).
Para Queiroz (2008), as feministas pautaram como uma das hipóteses da subordinação da
mulher o poder distribuído diferentemente a homens e mulheres. Porém, não seria um poder
centrado na figura do Estado e nos aparatos burocráticos, mas o expresso nas diversas relações e
espaços sociais, que se propaga não apenas em comportamentos e atitudes autoritárias, mas
também nas afetivas e amorosas.
Embasar-se em Foucault para compreender o poder nas relações de gênero ocasionou
inúmeros debates no movimento feminista e entre estudiosas de gênero, uma vez que tal autor
retrata em suas análises uma nova concepção de poder, desvencilhada daquela que defende que
apenas uma parcela da população o possui ou mesmo um ente, no caso o Estado. O estudioso
não parte de uma teoria geral do poder, mas o compreende como relação que se esparrama como
teia na vida cotidiana, ninguém está destituído dele, daí a compreensão de uma microfisica do
poder. Neste sentido, torna-se valiosa sua contribuição quando tratamos da violência contra a
mulher, mediante o convite para compreendermos a gama de fatores que perpassam as relações
permeadas por violência, as mulheres não se encontram destituídas de poder, mas fazem uso dos
mecanismos que detém naquele momento.
Em uma pesquisa realizada por Costa (2011) na Casa de Privação Provisória de
Liberdade (CPPL III), localizada em Itaitinga/Ceará, junto aos homens que cumpriam pena por

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violência contra mulher, observou-se que todos os entrevistados colocavam a culpa na
companheira pela violência cometida e, geralmente, estava atrelada a uma função relacionada ao
feminino e não realizada. Um dos entrevistados relatou que perfurou a coxa da companheira com
uma faca de mesa por ela ficar conversando na calçada em vez de preparar seu jantar, outro
agrediu fisicamente a companheira com um cabo de vassoura por não obedecer suas ordens. Em
relação a justificação da violência cometida, os entrevistados explicitaram consensualmente que
“Tem um motivo né? Porque um homem num vai bater numa mulher sem um motivo. Porque eu
num ia agredir minha esposa se eu não tivesse um motivo, duma raiva que eu tenho dela. Quem
bate sem motivo é um covarde né?” (GURIATÃ- primário).
Percebemos que ao sentir sua autoridade de homem, provedor e marido ameaçada os
entrevistados partiram para os atos violentos, como lesão corporal e tentativa de homicídio,
expressando uma das interfaces da desigualdade de gênero, ou seja, a violência contra mulher.
Todavia, as mulheres não estão imóveis e nas relações buscam mecanismos de poder dentro das
possibilidades encontradas, no interior das relações domésticas e afetivas-sexuais, por exemplo.
Sendo assim:
As mulheres lidam, via de regra, muito bem com micropoderes. Não detêm savoir faire
no terreno dos macropoderes, em virtude de, historicamente, terem sido deles alijadas.
Mais do que isto, não conhecem sua história e a história de suas lutas, acreditando -se
incapazes de se mover no seio da macropolítica [...] Entretanto, quando se apercebem de
que há uma profunda inter-relação entre a micropolítica e a macropolítica, elas podem
penetrar nesta última com grande grau de sucesso. Na verdade, trata-se de processos
micro e processos macro atravessando a malha social. [...] Evidentemente, há uma
malha grossa e uma malha fina, uma sendo o avesso da outra e não níveis distintos. E as
mulheres sabem como tecer a malha social, operando em macro e em microprocessos
(SAFFIOTI, 1999, p. 05).

Dessa maneira, não se pode desconsiderar essa concepção de poder até mesmo quando se
pondera sobre a sociabilidade do capital. Concordando com Saffioti (1992), uma análise das
relações de gênero requer retomar esse conceito de Foucault, principalmente quando se estuda
violência contra mulher.
Foucault (1979) desenvolve uma arqueologia do saber e uma genealogia do poder
descrevendo sua constituição a partir da sociedade capitalista, soberana e disciplinar. Ele não
despreza o poder centrado na economia, mas vai além ao elencar as diversas formas de poder,
conforme a organização da sociedade. O poder para o autor é uma constatação que perpassa
todas as relações em variados níveis, assim:

No contexto desse referencial teórico, fica extremamente problemático aceitar que um


polo tem poder – estavelmente – e outro, não. Em vez disso, deve-se supor que o poder
é exercido pelos sujeitos e tem efeitos sobre suas ações. Torna-se central pensar no
exercício do poder; exercício que se constitui por manobras, técnicas, disposições, as
quais são por sua vez, resistidas e contestadas, respondidas, absorvidas, aceitas ou
transformadas. É importante notar que, na concepção de Foucault, o exercício do poder
sempre se dá entre sujeitos que são capazes de resistir [...] (LOURO, 1997, p. 39).

230
Foucault historiciza a categoria poder, apresenta suas formas a partir dos contextos
históricos específicos, como, por exemplo, ao abordar as mudanças trazidas pela Revolução
Francesa para a medicina, psiquiatria e sistema penal, salientando como os saberes e os poderes
transformam e são transformados. Isso não quer dizer que o estudioso partiu de um método
específico para o entendimento do poder, pelo contrário, deixa bem claro em seus escritos que
não parte de um método inflexível e nem cria uma teoria geral do poder, mas se orienta por suas
pesquisas, seus estudos e investigações bem delimitadas pelos seus objetos de estudos, o que
concedeu-lhe possibilidade para o entendimento do poder em três grandes eixos: soberano,
disciplinar e biopoder.
Em relação ao poder soberano, Foucault (1999) parte da teoria clássica da soberania para
compreendê-lo, asseverando a concepção de direito à vida e direito a morte que envolvia esse
tipo de poder. O soberano tinha em suas mãos o poder de deixar viver e morrer, assim “[...] a
vida e a morte dos súditos só se tornam direitos pelo efeito da vontade do soberano” (p. 286). Se
o poder que o soberano exercia sobre a vida de seus súditos só fazia sentido pelo poder que
detinha sobre a morte de tais, “[...] é porque o soberano pode matar que ele exerce seu direito
sobre a vida” (p. 287). Esse poder soberano teve grande expressão no período dos reis e
monarcas.
Com as transformações do século XVIII e XIX, surgem em cena o poder disciplinar, que
não substituiu em sua completude o soberano, mas se destacou e ganhou ênfase nesse período.
Foucault (1999) esclarece que as transformações relacionadas ao poder de que trata não segue
uma análise a partir da política, mas sim dos mecanismos, técnicas e tecnologias do poder que
demarcaram certos períodos, nas palavras do autor:

[...] é que nos séculos XVII e XVIII, viram-se aparecer técnicas de poder que eram
essencialmente centradas no corpo, no corpo individual. Eram todos aqueles
procedimentos pelos quais se assegurava a distribuição espacial dos corpos individuais
(sua separação, seu alinhamento, sua colocação em série e em vigilância) e a
organização, em torno desses corpos individuais, de todo um campo de visibilidade.
Eram também as técnicas pelas quais se incumbiam desses corpos, tentavam aumentar-
lhes a força útil através do exercício, do treinamento, etc. Eram igualmente técnicas de
racionalização e de economia estrita de um poder que devia se exercer, da maneira
menos onerosa possível, mediante todo um sistema de vigilância, de hierarquias, de
inspeções, de escriturações, de relatórios: toda essa tecnologia, que podemos chamar de
tecnologia disciplinar do trabalho. Ela se instala já no final do século XVII e no decorrer
do século XVIII (p. 288).

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Era uma relação de poder com suas especificidades, destinada ao controle dos corpos dos
indivíduos, por meio de mecanismos de controle. A esse poder Foucault denomina de poder
disciplinar. Conforme Machado, é “[...] um poder que não atua do exterior, mas trabalha o corpo
dos homens, manipula seus elementos, produz seu comportamento, enfim, fabrica o tipo de
homem necessário ao funcionamento e manutenção da sociedade industrial capitalista” (1979, p.
18).
Ao tratar o poder a partir de sua positividade no sentido de produzir, criar e não somente
como negatividade, perceberemos que nesse estágio da sociedade capitalista se produz seres
adestrados, disciplinados, úteis economicamente e dóceis politicamente. As mulheres não estão
somente fadadas ou determinadas ao julgo do outro, pois elas, num misto de relações, podem
também exercer micro poderes expressos nas práticas cotidianas.
O principal mecanismo de controle do poder disciplinar é a vigilância, tanto que os
hospitais, as fábricas, as prisões são instituições disciplinares exemplares para a compreensão do
poder pautado no controle dos corpos, buscando tornar o indivíduo dócil e útil. No caso da
família, a partir dessa definição e historização do poder disciplinar, podemos problematizar que
os homens dirigiam-se às suas companheiras como objeto-propriedade e buscavam controlar
seus corpos, disciplinando-as e vigiando-as.
Todavia, assim como o poder soberano foi perdendo centralidade para o disciplinar, este
vai perdendo espaço para o que Foucault denomina de biopoder, baseado num poder exercido
não sobre um individuo ou seu corpo, mas sobre uma população. Nas palavras de Deleuze “[...]
as disciplinas por sua vez, também conheceriam uma crise, em favor de novas forças que se
instalavam lentamente e que se precipitariam depois da Segunda Guerra Mundial: sociedade
disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de ser (1992, p. 220). Dessa
maneira, temos uma transformação do poder soberano e disciplinar:

Aquém, portanto, do grande poder absoluto, dramático, sombrio que era o poder da
soberania, e que consistia em poder fazer morrer, eis que aparece agora, com essa
tecnologia do biopoder, com essa tecnologia do poder sobre a “população” enquanto tal,
sobre o homem enquanto ser vivo, um poder contínuo, científico, que é o poder de
“fazer viver”. A soberania fazia morrer e deixava viver. E eis que agora aparece um
poder que eu chamaria de regulamentação e que consiste, ao contrário, em fazer viver e
em deixar morrer (FOUCAULT, 1999, p. 294).

Foucault (1999) esclarece que na segunda metade do século XVIII surge outra tecnologia
de poder diferente da disciplinar, porém não exclui esta, mas a integra, a modifica parcialmente,
contudo não é a mesma disciplina, se incrusta naquela, porém tendo outro suporte, contanto com
diferentes elementos e instrumentos que auxiliam seu exercício, além de ser “diferentemente da
disciplina, que se dirige ao corpo [...] ela se dirige não ao homem corpo, mas [...] ao homem
espécie” (ibidem, p. 289).
232
De acordo com Deleuze (1992), generaliza-se uma crise dos meios de confinamento,
prisão, hospital, fábrica, escola, família. Nesse período muitas autoridades governamentais
passaram a propor reformas nessas instituições, pois não estavam respondendo ao que se
propunham, todavia “[...] trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação
das novas forças que se anunciam. São as sociedade de controle que estão substituindo as
sociedades disciplinares” (p. 220). Vale ressaltar que essas sociedades de controle tratadas por
Deleuze não são fechadas, voltadas ao disciplinamento do individuo, mas são abertas, exercem o
controle em uma gama de indivíduos:

A fábrica constituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato


que vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizava uma massa de
resistência; mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexplicável como sã
emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada
um, dividindo-o em si mesmo (ibidem, p. 221).

Ao contrário de Deleuze, Foucault não aponta para o fim das sociedades disciplinares,
seu desaparecimento em prol das sociedades de controle, mas sim esclarece que ainda existem
elementos disciplinares, mas partem de outros suportes e de outras técnicas, em vez de tratar pela
nomenclatura sociedade de controle, compreende ser “uma biopolítica da espécie humana”
(FOUCAULT, 1999, p. 289).
No início do século XIX, momento de fortalecimento do processo industrial, a biopolítica
passa a inserir outros mecanismos de assistência, diferentemente das instituições assistenciais
clássicas e da igreja, incidindo diretamente em grandes populações e exercendo poder sobre tais.
Para Foucault (ibidem), seria a seguridade, os seguros individuais e coletivos, sendo mecanismos
mais sutis e racionais. Assim, o campo de intervenção da biopolítica vai se delineando,
destacando-se como primeiro campo de saber e poder, a natalidade, a morbidade, as
incapacidades biológicas “[...] é disso tudo que a biopolítica vai extrair seu saber e definir o
campo de intervenção de seu poder” (p. 292).
Para a compreensão do biopoder, Foucault (ibidem) traça três elementos importantes no
entendimento da biopolítica. Primeiramente afirma que ela lida com a população como problema
científico, político, biológico e de poder. Em segundo lugar, os problemas tratados pela
biopolítica só são pertinente em nível de massa, sendo imprevisíveis e aleatórios, só fazendo
sentindo na coletividade, ocorrendo em um período relativamente longo. Por fim, os mecanismos
utilizados pela biopolítica referem-se a previsões, estimativas, estatísticas, medições globais “[...]
vai se tratar [...] não de modificar tal fenômeno em especial [...] tal individuo, mas [...] intervir
[...] nas determinações desses fenômenos [...] no que eles têm de global [...] baixar a morbidade
[...] encompridar a vida [...] estimular a natalidade (ibidem, p. 293).

233
Para Louro (1997) o biopoder é o poder de controlar as populações, baseado num
conjunto de disposições e práticas; no caso do gênero, empregaram dispositivos diferentes para
regular homens e mulheres, uma vez que:

[...] é possível identificar estratégias e determinações que, de modo muito direito,


instituíram lugares socialmente diferentes para os gêneros, ao tratarem, por exemplo, de
medidas de incentivo ao casamento e a procriação. Aqui também se trata de um poder
que é exercido sobre os corpos dos sujeitos, ainda que agora esses sejam observados de
um modo mais coletivo – trata-se do corpo molar da população (p. 41).

O bipoder, assim como o poder disciplinar, irá condicionar o que é ser homem e mulher
na sociedade, ao centrar-se nas populações e busca regulamentar e controlar as taxas de
natalidade, mortalidade, as condições de saúde, expectativa de vida “ [...] a normalização da
conduta dos meninos e meninas, a produção dos saberes sobre a sexualidade e os corpos, as
táticas e as tecnologias que garantem o ‘governo’ e o ‘auto-governo’ dos sujeitos” (p. 42).
As transformações das tecnologias do poder estudadas e analisadas por Foucault nos
ajudam a compreender o que é ser homem e mulher nas sociedades, bem como os mecanismos
de poder contribuem para a afirmação das desigualdades de gênero.
Essas mudanças nas relações de poder estão relacionadas com as transformações
econômicas, sociais, políticas e culturais de cada período histórico. As modificações nas
tecnologias do poder não ocorrem do nada, sem conexão alguma com a realidade e as
transformações ocorridas ao longo dos séculos. Percebemos que a biopolítica ganha ênfase no
século XIX, período em que a industrialização se sedimentava em alguns países europeus,
destacadamente em seu berço, a Inglaterra.
O poder nas análises de Foucault não é uma coisa a ser apropriada, mas uma relação, por
isso deve-se ser entendido como se processa, não a partir de uma dicotomia entre opressor e
oprimido, mas embasando-se na premissa de que todo poder gera resistência, e que seu exercício
também, e até principalmente, ancora-se na premissa de que seu exercício está ligado ao saber,
pois “[...] foi a introdução nas análises históricas da questão do poder como um instrumento de
análise capaz de explicar a produção dos saberes” (MACHADO, 1979,p. 10).
Foucault não desenvolveu uma teoria geral do poder, seu objetivo não era considerar o
poder por sua natureza e essência, para, assim, definir suas características universais, pois “[...]
não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas díspares, heterogêneas,
em constante transformação. O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e,
como tal, constituída historicamente” (ibidem, p. 10).
Diante desse conceito foucaultiano de poder, compreende-se que no processo de
desigualdade de gênero expresso pela violência contra mulher, por exemplo, não se pode tratar

234
em vítima e agressor, como se fossem lugares estáticos ocupados pelos sujeitos, sem
possibilidade de mudança nas relações, bem como de ausência de resistência por aquela que
sofre a violência. Tais nomenclaturas encaixotam os sujeitos como se não vivessem em
relações sociais históricas e mutáveis:
Homens e mulheres certamente não são construídos apenas através de mecanismos de
repressão ou censura, eles e elas se fazem, também, através de práticas e relações que
instituem gestos, modos de ser e de estar no mundo, formas de falar e de agir,condutas
e posturas apropriadas (e, usualmente, diversas). Os gêneros se produzem, portanto, nas
e pelas relações de poder (LOURO, 1997, p.41).

A partir dessa concepção o poder é exercido, podendo ele ser contestado, aceito resistido
e absorvido. Dessa maneira, essa concepção contraria aquelas que acreditam ser apenas o
Estado único detentor de poder e sinaliza que o exercício do poder pressupõe que ele
circula nas relações sociais penetrando-as sutilmente (QUEIROZ, 2008).
Essa definição de poder permite pensar que as mulheres em situação de violência
doméstica, não são subordinadas totalmente, sendo incapazes de oferecer resistência aos seus
autores de violência, pois “[...] a resistência, ou melhor, a multiplicidade de pontos de
resistência seria inerente ao exercício do poder. [...] jamais podemos ser inteiramente
aprisionados (as) pelo poder [...] há sempre a possibilidades de modificarem sua dominação em
condições determinadas e segundo estratégias precisas” (ibidem, p. 83).
No seio das relações de poder se apresentam desigualdades e diferenças, expressas nas
análises das categorias de gênero, classe social, sexualidade e raça/etnia, que são demarcadas
historicamente por hierarquias, violências, discriminação e desigualdades, já que o poder pode
se manifestar de maneira sutil e invisível, e no caso das relações de gênero acarreta
malefícios a algumas mulheres quando expresso pelas várias manifestações da violência.
Conforme Foucault, o poder se apresenta nas dimensões macro e micro, adequando-se
mais esse conceito para se analisar as relações de gênero, pois a mulher mesmo obtendo uma
pequena parcela do poder conferido socialmente em maior escala aos homens, não deixa de
exercer poder:
Lembremos a célebre frase de Foucault: “o poder se exerce, não se possui. Não
se guarda numa caixinha”, ou em um armário. Ele produz verdades, disciplinas e
ordem, mas também está sempre em perigo e ameaçado de perder-se. Por isso, não são
suficientes leis e normas, ameaças cumpridas e castigos exemplares. As (os) dominadas
(os) têm um campo de possibilidades de readequação de obediência aparente, mas
desobediência real, resistência, manipulação da subordinação. Daí então é que os
lugares de controle sobre as mulheres – em nossas sociedades- o desempenho
dos papéis das mães-esposas-donas de casa – sejam também espaços de poder das
mulheres: o reprodutivo, o acesso ao corpo e a sedução, a organização da vida
doméstica. [...] Tornam-se então espaços contraditórios inseguros. Sempre em tensão.
As mulheres podem, por exemplo, ter filhos que não sejam do marido, aparentar
esterilidade ou se negar simplesmente a tê-los, engravidar em momentos
inoportunos, se relacionar sexualmente com outras e outros, seduzir com diferentes
objetivos, se negar a trabalhar no lar impedindo a sobrevivência de seus integrantes,
incluindo-se aí as crianças recém- nascidas, etc (BARBIERI, 1993, p. 12).

235
Retomar esse conceito de Barbieri (ibidem), fundamentada em Foucault (1987), nos faz
compreender que a mulher não é por natureza dominada, pois oferece resistências às situações
impostas, nos estimula a perceber que a mulher possui seu campo de poder e o exerce também,
mesmo em graus menores. Dessa forma, o silenciamento e o segredo podem ser âmbitos do
poder, uma vez que:

[...] os discursos, como os silêncios, nem são submetidos de uma vez por todas
ao poder, nem opostos a ele. É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o
discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também
obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de estratégia oposta. O discurso veicula
e produz poder; reforça-o também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. Da
mesma forma, o silêncio e o segredo dão guarita ao poder, fixam suas interdições; mas,
também, afrouxam seus laços e dão margem a tolerâncias mais ou menos
obscuras (FOUCAULT, 1988, p. 96).

Foucault em suas análises sobre o poder não partiu do centro para a periferia, do marco
para o micro. As relações de gênero, a desigualdade entre homens e mulheres no plano da
família, do mercado de trabalho, da política, não são extensões apenas e unicamente do poder do
Estado, outras práticas culturais e sociais também determinam esse contexto. Conforme
Roberto Machado, Foucault parte das especificidades elencadas, percebendo as nuances
envolvidas e as práticas sociais que determinam costumes e valores orientadores das condutas
dos indivíduos. Dessa maneira:

[...] partir da especificidade da questão colocada, que para a genealogia que ele tem
realizado é a dos mecanismos e técnicas infinitesimais de poder que estão intimamente
relacionados com a produção de determinados saberes – sobre o criminoso, a
sexualidade, a doença, a loucura, etc – e analisar como esses micro-poderes, que
possuem tecnologia e história especificas, se relacionam com o nível mais geral
do poder constituído pelo aparelho de Estado [...] Foucault [...] estuda o poder não
como uma dominação global e centralizada que se pluraliza, se difunde e repercute nos
outros setores da vida social de modo homogêneo, mas como tendo uma existência
própria e formas especificas ao nível mais elementar (MACHADO, 1979, p. 13-14).

De tal modo, quando refletimos sobre a desigualdade de gênero expressa, por exemplo,
pela violência contra mulher, não podemos considerar que a mulher é uma vítima passiva da
situação e que não possui capacidade de resistência. Saffioti (2001) é uma das estudiosas que
contesta essa posição de vitimizada, pois afirma a impossibilidade de ressiginificarem as relações
de poder, e como bem coloca Foucault (1999) o poder não é algo estático, sem dinamicidade
e mutabilidade, existindo sim uma possibilidade de subversão.
Dessa maneira, observamos que as relações de poder não passam apenas pelo nível do
direito, nem somente da violência, muito menos contratuais e unicamente repressivas, mas
sim
um leque de relações que comportam as mais heterogêneas possibilidades. Para Saffioti (1992), o
sexo transforma os sujeitos em mulheres e homens, no entanto são as relações de gênero que
configuram o tornar-se homem e o torna-se mulher, pois a sexualidade isolada não forma e nem
constituem os indivíduos. 236
Os sujeitos e suas identidades de gênero perpassam por processos sociais complexos, não
podendo considerá-los como processos naturalizados, sendo o sexo socialmente moldado. Como
define a autora:

[...] a origem do gênero não é temporalmente discreta precisamente porque o gênero


não é subitamente originado num certo momento no tempo, depois do qual ele adquire
uma forma fixa. [...] não se pode traçar o gênero até uma origem definível,
porque ele próprio é uma atividade criadora ocorrendo incessantemente [...] o
gênero é uma maneira contemporânea de organizar normas culturais passadas e
futuras, um modo de a pessoa situar-se em e através destas normas, um estilo de viver o
corpo no mundo. [...] o gênero é uma maneira de existir do corpo e o corpo é uma
situação, ou seja, um campo de possibilidades culturais recebidas e reinterpretadas. O
corpo de uma mulher é essencial para definir sua situação no mundo. Contudo, é
insuficiente para defini-la como mulher. Esta definição só se processa através da
atividade desta mulher na sociedade. Isto equivale dizer [...] que o gênero se constroi-
expressa através das relações sociais (SAFFIOTI, 1992, p. 189).

Dito isto, entendemos que as relações de gêneros são dialéticas, refletindo contradições e
concepções diferenciadas de gênero internalizadas por diferentes atores sociais de ambos os
sexos. Quando se trabalha com a categoria relações de gênero deve-se entender que mulheres
e homens vivenciam relações e experiências distintas, haja vista que na sociedade
contemporânea não existe igualdade de gênero.
O capitalismo enquanto sistema que regula as relações econômicas e sociais é baseado no
antagonismo de classe social e na desigualdade abrupta e miserável entre sujeitos, como falar em
equidade real e efetiva em uma sociedade tendo por sustentáculo de sobrevivência
antagonismos e desigualdades?
Isso não quer dizer que ao transformar as relações econômicas, mecanicamente todas
as relações sociais e culturais desiguais serão superadas e modificadas, como bem
evidencia Huberman (1986) tudo faz parte do processo histórico, alguns elementos
permanecem, outros mudam e os que permanecem podem ser passíveis de transformação. O
que se deseja evidenciar não é uma leitura mecanicista da história, mas que ao pautar outra
ordem societal deve-se articular que as desiguais de classe social, etnia, gênero e orientação
sexual sejam suplantadas.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Refletir sobre as relações de gênero e poder nos subsidiam teoricamente para o


entendimento das identidades e desigualdades de gênero, discussão tão primordial na
contemporaneidade, ao expor publicamente que homens e mulheres possuem papéis e
funções sociais diferenciadas, distinção esta que coloca tais sujeitos, conforme sua identidade
de gênero, em processos desiguais nas suas condições de vida, no trabalho e nas relações afetivas
e sexuais.
237
A compreensão dessas questões não é de fácil apreensão correndo-se o risco em recair
nas análises vitimistas, essencialistas e biologizantes. De tal modo que, ao adentramos nessa
capciosa teia analítica faz-se necessário uma abordagem das relações de poder, oferecendo
elementos críticos e dialéticos para o entendimento da disparidade entre homens e mulheres.
As relações de poder são expressas através das relações de gênero, interpondo as relações
sociais, sejam de classe, orientação sexual e/ou etnia. Esses fenômenos se inserem nas estruturas
de poder, não sendo sinalizados apenas como ideologia, pois até mesmo esta é compreendida
como algo material por ter experiências e práticas vivenciadas cotidianamente pelos sujeitos de
uma dada realidade social.
Problematizar as relações de poder nos faz perceber que existe desigualdade, a qual pode
ser transformada mediante a luta e resistência dos sujeitos tanto no âmbito individual como
coletivo. Todavia, a real superação dessas desigualdades em prol da equidade requer
uma sociedade com bases socioeconômicas diferentes da contemporânea. O
desvendamento das relações de gênero e poder, além de descortinar a subordinação das
mulheres e as relações entre os sujeitos sociais, nos faz pautar sobre tais desigualdades, dando-
nos ânsia e fôlego para pensar em uma sociedade em que os sujeitos detenham de iguais
condições.
Todavia, mesmo que a ordem econômica mude muito se precisará lutar e pautar para
que essas relações sejam suplantadas na nova sociedade. As lutas e reivindicações
permanecerão, porém, espera-se que, em bases sociais igualitárias, e não num sistema baseado
na desigualdade como no capitalismo.
As mudanças nas relações econômicas e produtivas deverá se conectar com as relações
sociais, culturais e políticas, pois o nascimento de outro sistema produtivo igualitário, sem
dominação de classe não pode se sustentar com as desigualdades de gênero, etnia e orientação
sexual. Não se fala em outro sistema sem contradições, não se pensa aqui em um sistema puro
sem limites a serem superados, mas que se garanta que as desigualdades vivenciadas na
sociedade atual não sejam os pilares e não coexistam em outra ordem societal.

Abstract: This article aims to reflect on the relationship between the categories of gender
and power relations, because are attributes required for the unveiling of gender inequality
and subordination of women, which may contribute to analyzes and studies on violence
against women and face it. Thinking about gender relations with articulated power
relations also provides us subsidies for analytical understanding of gender identities, studies
that are budding big debates in contemporary times. Despite gender identities are not the main
focus of the article, to touch on gender and power relations, we find ways to think them and
problematize them.

Keywords: Gender relations. Power relations. Gender identities. Violence against women.

238
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